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UNIVERSIDADE SÃO FRANCISCO-USF
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM
EDUCAÇÃO
Claudinéia Passarelli Cherini
A PRÁTICA SOCIAL DA CULINÁRIA: ALGUMAS REFLEXÕES
NA CONSTRUÇÃO CURRICULAR DA MATEMÁTICA NA
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Itatiba - SP
2007
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ii
Claudinéia Passarelli Cherini
A PRÁTICA SOCIAL DA CULINÁRIA: ALGUMAS REFLEXÕES
NA CONSTRUÇÃO CURRICULAR DA MATEMÁTICA NA
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade o
Francisco, unidade Itatiba, como exigência parcial do Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, linha de pesquisa:
Matemática, Cultura e Práticas Pedagógicas, sob a orientação da
Professora Doutora Alexandrina Monteiro.
Itatiba- SP
2007
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iii
Ficha catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias do Setor de
Processamento Técnico da Universidade São F
Ficha catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias do Setor de
Processamento Técnico da Universidade São Francisco.
371.399.51 Cherini, Claudinéia Passarelli.
C449p A prática social da culinária: algumas
reflexões na construção curricular na matemática
na Educação de Jovens e Adultos / Claudinéia
Passarelli Cherini. - Itatiba, 2007.
167 p.
Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Educação da Universidade São
Francisco.
Orientação de: Alexandrina Monteiro.
1. Etnomatemática. 2. Educação de Jovens e Adultos
3. Culinária. 4. Currículo. I. Monteiro, Alexandrina.
II. Título.
iv
v
DEDICATÓRIA
Dedico esse trabalho a meu esposo Luís Henrique, a meus pais, a minha irmã,
Claudia, e a seu esposo Edson, a meus queridos sobrinhos, Lucas e Larissa, a minha avó,
Jandyra, e a minha sogra, Darcy, que sempre me apoiaram durante a realização deste
trabalho. Dedico também a minha amiga Marta pelo incentivo, sem o qual não seria
possível a realização desta pesquisa, e ao meu primo, Marcio, que sempre me ajudou nos
momentos mais difíceis desta trajetória.
A todos aqueles que me ensinaram a cozinhar e a tomar gosto pela culinária, em
especial pela minha avó materna, Sebastiana, e minha tia, Reni e minha prima Cleusa, mas
que já partiram desta vida, e acredito que hoje participam do banquete celeste. E também ao
meu sogro, Henrique, que também se encontra no plano espiritual e passou os bons
momentos de sua vida ao redor do fogão e junto à mesa, compartilhando com aqueles que
mais amou as diversas festividades e reuniões entre familiares e amigos.
E, por fim, a minhas tias Hilda, Carmem, Angélica, Nair e a meus tios Osvaldo e
Mauro, que estão sempre presentes, cozinhando e ajudando a organizar as festas na minha
chácara.
vi
AGRADECIMENTOS
É chegado o momento tão esperado por mim para agradecer a todos que, de uma
forma ou de outra, contribuíram para que esta caminhada fosse possível. Foram muitos
familiares e amigos que compartilharam comigo os momentos de dúvidas e entusiasmo.
Desse modo, quero dizer muito obrigada.
Em primeiro lugar, a Deus por dar-me o dom da vida e, acima de tudo, saúde.
À Professora Doutora Alexandrina Monteiro, por toda a disponibilidade, dedicação,
paciência, apoio e amizade que permearam nossa relação orientadora-orientanda. E também
por ter trazido, durante todo esse percurso, inúmeras contribuições relevantes para esta
pesquisa.
A todos os meus familares, em especial a esposo, Luís Henrique, a meus pais, a
minha irmã Claudia, pelo apoio durante esta trajetória. A meus tios, José e Dolores, a
minha Tia Zezé, ao Luís Carlos, a Fátima, a Letícia, a Lívia, o José Waldomiro, a Lourdes e
os seus filhos Zezé e Lígia que sempre rezaram por mim pedindo proteção a Deus. E
também a minhas amigas Marta, Luclécia, Juliana, Helóisa, Isaura, Amália e aos
companheiros de trabalho, o professor mestre Antonio Carlos, e aos professores Mauro e
Sinzomar, pelo incentivo.
Aos professores e amigos do programa Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da
Universidade São Francisco, Itatiba, por todo o apoio durante o mestrado.
À Direção da Escola na qual foi realizada essa pesquisa e aos entrevistados e
entrevistadas, alunos dessa instituição escolar, cuja participação foi relevante para a
realização deste trabalho.
vii
[...] cozinhar é o suporte de uma prática alimentar,
humilde, obstinada, repetida no tempo e no
espaço, com raízes na urdidura das relações com
os outros e consigo mesmo, marcada pelo
“romance familiar” e pela história de cada uma,
solidária das lembranças de infância como ritmos
e estações.
(Michel de Certeau, 1996)
viii
PASSARELLI, Claudineia Cherini (2007).
A prática social da culinária: algumas
reflexões na construção curricular da matemática na Educação de Jovens e Adultos. (Dissertação
de Mestrado). Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu - Mestrado em Educação. Itatiba, SP:
Universidade São Francisco.
RESUMO
A presente dissertação discute a prática social da culinária de um grupo de alunos da EJA que
estudam numa escola pública municipal na cidade de Mogi Guaçu, no interior de São Paulo. O
objetivo é analisar a prática social da culinária na perspectiva da Etnomatemática, visando
contribuir para uma discussão curricular da matemática na Educação de Jovens e Adultos. A
abordagem metodológica utilizada foi qualitativa e usou procedimentos de questionários e
entrevistas. Participaram como sujeitos de pesquisa quatro alunos. O arcabouço teórico está
alicerçado no campo da Etnomatemática e das teorias curriculares críticas. Nossas análises
apontam que o ensino da matemática na Educação de Jovens e Adultos, ao valorizar apenas a
matemática escolar e excluir a matemática produzida em outras práticas, como a prática da
culinária, limita o envolvimento e a participação de muitos alunos no processo de escolarização.
Daí deriva a exclusão não apenas de saberes, mas também dos sujeitos que os produzem.
Defendemos, a partir disso, que o currículo da Matemática escolar passe a considerar saberes
produzidos em outras práticas sociais, a partir da discussão e da valorização dos procedimentos e
das linguagens e que os constituem.
Palavras-chave: Etnomatemática; prática social da culinária; Educação de Jovens e Adultos;
currículo.
ix
ABSTRACT
The present dissertation discusses the social practice of cooking in a group of students of EJA
(Educação de Jovens e Adultos Education of youngsters and adults) who study in a public
municipal school in the city of Mogi Guaçu, in the inner part of the state of São Paulo. The
objective is to analyze the social practice of cooking in the perspective of the Ethnomathemactics,
aiming to contribute to a curricular discussion of mathematics in the Education of youngsters and
adults. A qualitative methodological approach was used as well as interviews and questionnaires.
Four students participated as subjects of the research. The theoretical background is based on the
field of Ethnomathematics and on critical curricular theories. Our analysis point that the teaching
of mathematics in the Education of youngsters and adults, when solely scholar mathematics is
valued, excluding the one produced in other practices such as the cooking practice, ends up
limiting the involvement and the participation of many learners in the educational process of this
subject. From such a position derives the exclusion not only of knowledge, but also of the
subjects who produce it.
It is defended, in this regard, that the curriculum of Mathematics in schools start considering
knowledge that is produced in other social practices, from the discussion and valuing of
procedures and languages which constitute them.
Key words: Ethnomathematics; social practice in cooking; education of youngsters and adults;
curriculum.
x
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................1
1.1 - A prática docente na Educação de Jovens e Adultos.......................................................2
1.2 - A escolha do grupo e tema a ser investigado...................................................................7
1.3 - Os sujeitos e o local da pesquisa ....................................................................................8
1.4 - Problematização da pesquisa..........................................................................................16
1.5 - A metodologia da pesquisa.............................................................................................17
1.6 – As entrevistas..................................................................................................................20
2 - UMA ANÁLISE DO CONTEXTO ESCOLAR E A QUESTÃO CURRICULAR
NAS DIVERSAS PERSPECTIVAS E TENDÊNCIAS....................................................22
2.1 - Algumas considerações sobre a exclusão escolar..........................................................22
2.2 - Escola: um espaço de exclusão e de reprodução das desigualdades sociais...................24
2.3 - Uma definição e algumas considerações sobre currículo................................................27
2.4 - Currículo: uma tradição inventada..................................................................................31
2.5 - Alguns debates das últimas décadas sobre a questão curricular, nas diversas
perspectivas e tendências ................................................................................................35
2.6 - Etnomatemática: uma abordagem de dimensão política e antropológica...................... 41
2.7 - O currículo do ensino da matemática, na perspectiva da Etnomatemática.................... 48
3 - QUEM SÃO OS JOVENS E OS ADULTOS DA EJA? ............................................... 52
xi
3.1 - Algumas ponderações iniciais..........................................................................................52
3.2 - Um breve relato histórico da EJA, as Conferências Internacionais, as parcerias
entre a sociedade civil e o Estado e os fóruns educacionais no Brasil......................................53
3.3 - O jovem na Educação de Jovens e Adultos.......................................................................60
3.4 - O adulto na Educação de Jovens e Adultos ......................................................................70
4-PRÁTICA SOCIAL DA CULINÁRIA...............................................................................76
4.1 – Prática social .....................................................................................................................76
4.2 - Algumas considerações sobre a prática social da culinária................................................84
5- ANÁLISE DAS ENTREVISTAS ........................................................................................92
5.1- Coleta de dados, organização e análise das entrevistas........................................................92
5.2 – Eixo temático: O gosto.......................................................................................................97
5.2.1 - A formação social do gosto............................................................................................100
5.3 Eixo temático: o uso das medidas na culinária....................................................................111
5. 3 .1. Algumas considerações sobre grandeza e medida.........................................................111
5.3.2. Um pouco da história das medidas..................................................................................113
5.3.3. A medidas na culinária....................................................................................................115
5.4 As medidas na matemática da Educação de Jovens e Adultos ..........................................120
5.4.1 – Algumas considerações sobre as reformas curriculares no ensino da matemática..............
xii
no Estado de São Paulo a partir de 1980...................................................................................120
5.4.2 Um olhar para a proposta curricular de matemática da EJA.........................................................122
5.4.3 Os PCNs do Ensino Médio na matemática .....................................................................126
6- CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................129
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................135
ANEXO I
Questionário da pesquisa....................................................................................................... 141
ANEXO II
Entrevista com a Ariane..............................................................................................................143
Entrevista com o Gonçalves....................................................................................................... 150
Entrevista com a Ana...................................................................................................................156
Entrevista com a Teresa...............................................................................................................161
1
1 INTRODUÇÃO
Educar é viajar pelo mundo do outro sem nunca penetrar nele. É usar o
que passamos para nos transformar no que somos. O excelente
educador abraça quando todos rejeitam, anima quando todos
condenam, aplaude os que jamais subiram no pódio, vibra com coragem
de disputar dos que ficaram nos últimos lugares. Não procura o brilho,
mas se faz pequeno para tornar seus filhos, alunos e colegas de trabalho
grandes.
Augusto Cury
Este projeto de pesquisa tem como foco problematizar algumas das práticas culinárias,
especialmente as que envolvem a produção de saberes matemáticos em seu interior, visando
contribuir para a discussão curricular do curso de matemática na Educação de Jovens e Adultos.
O interesse pela Educação de Jovens e Adultos está vinculado à minha atuação docente no
curso de Suplência (atual Educação de Jovens Adultos), desde 1989, ano em que iniciei a minha
carreira no magistério na rede estadual. Primeiramente, atuei como professora de física da
Suplência do 2º grau (o termo 2º grau equivale ao atual ensino médio); mais tarde, como
professora de matemática, na escola estadual mais antiga da cidade
1
, denominada E.E.P.S.G.
“Padre Armani”, localizada na região central. Nesse mesmo período, trabalhei como professora
do Grau (atual ensino fundamental) na escola E.E. “Luiz Martini”, na qual atualmente possuo
um cargo efetivo como professora de matemática. Além disso, também fui convidada para
trabalhar em uma fundação municipal que oferecia curso da pré-escola até o ensino do grau
profissionalizante. Este último era composto por cursos técnicos particulares e suas mensalidades
tinham preços acessíveis, pois a fundação era subsidiada pela prefeitura.
Com a aprovação da Constituição de 1988, a Fundação passou a ser uma instituição
pública municipal. Em 1990, essa entidade realizou um concurso público e assim pude me
efetivar, continuando a lecionar em cursos técnicos que davam habilitação para o Grau (atual
ensino médio).
Mais tarde, em 1996, com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB 9.393/96), os cursos técnicos foram extintos. Diante disso, a escola continuou a oferecer os
cursos desde o maternal até o ensino médio, sendo o ensino fundamental e a Educação de Jovens
1
A cidade se refere à Mogi Guaçu, localizada no interior do Estado de São Paulo.
2
e Adultos mantidos pela prefeitura municipal. Nos outros cursos oferecidos pela entidade: os
jardins I e II, a pré-escola e o ensino médio são cobradas mensalidades inferiores às das escolas
particulares da cidade e da região.
Atualmente leciono como professora de matemática em duas escolas: desde 1989, no ensino
fundamental e médio, na E.E. “LUIZ MARTINI”, uma escola estadual, e no ensino fundamental,
na Educação de Jovens e Adultos nos 1º, e termos da EJA, como professora de matemática,
em uma escola municipal à qual aqui me refiro como FEG (FUNDAÇÃO EDUCACIONAL
GUAÇUANA), como é conhecida. Foi com os alunos desta última que optei por fazer minha
investigação no curso do mestrado.
1.1 A prática docente na Educação de Jovens e Adultos
Trabalhar com o curso de Educação de Jovens e Adultos me traz uma grande satisfação
pessoal e foi o que me levou à escolha do foco deste trabalho. Através do convívio com os alunos
da EJA, uma troca de experiência relevante que ultrapassa minha prática docente. Esses
alunos, especialmente os adultos, voltam ao ambiente escolar com o objetivo de concluir os seus
estudos, que, por diversos motivos e circunstâncias de suas vidas, não conseguiram terminar o
ensino médio. A falta de contato com o ambiente escolar permitiu, muitas vezes, a partir de
algumas práticas desenvolvidas no seu cotidiano, a construção de outros caminhos, outras lógicas
e outros procedimentos, os quais, desde que devidamente valorizados e legitimados, com o
retorno à vida escolar, vieram a enriquecer as atividades desenvolvidas em sala de aula. Nesse
sentido, Oliveira (1999a:2-3) argumenta:
Refletir sobre como esses jovens e adultos pensam e aprendem envolve, transitar
pelo menos em três campos que contribuem para a definição de seu lugar social:
a condição de “não-crianças”, a condição de excluídos da escola e a condição de
membros de determinados grupos culturais.
Outros estudiosos da Sociologia da Educação, entre eles Bourdieu, consideram a escola
uma instituição construída e organizada para controlar e legitimar um determinado tipo de
3
conhecimento acadêmico denominado “saber escolar”, o qual, associado à sua estrutura
administrativa, tem a função de reproduzir um sistema social excludente e desigual.
Na Educação de Jovens e Adultos, essa reprodução é reforçada, entretanto, de uma forma,
às vezes mais tranqüila, pois os adultos, ao longo de suas experiências sociais adequam suas
ações, sua conduta e seu controle sobre o corpo, minimizando a função da escola nesse aspecto.
Além disso, por terem sido excluídos pelo sistema oficial de ensino, os estudantes, ao
retornarem à escola nos programas de EJA, em geral, constroem uma imagem de escola
tradicional e autoritária. Assim, aqueles alunos, antes considerados inadequados, às vezes com
baixo potencial ou até mesmo indisciplinados, hoje têm se tornado a referência de aluno quase
ideal para muitos docentes. Assim, arrisco afirmar que, talvez por seu interesse pessoal por voltar
a estudar - o que o faz comprometido com o processo de escolarização —, esse aluno tende a se
aproximar mais do modelo de aluno ideal construído pelo professor.
De fato, a partir da minha experiência profissional pude perceber que boa parte dos alunos
matriculados na EJA adquire uma postura diferente daquela assumida pelos alunos do ensino
regular: seu comportamento mais maduro e responsável e sua participação mais intensa nas
atividades propostas na sala de aula tornam seu rendimento escolar satisfatório, próximo do ideal.
Como educadora, a evasão escolar sempre me preocupou, pois o aluno, quando retorna à escola,
busca uma melhora na sua vida, no aspecto tanto pessoal quanto profissional, mas,
simbolicamente, o que realmente ele visa é o reconhecimento social. Afinal, como sabemos, ser
letrado, ou seja, dominar a língua para ler, falar e escrever adequadamente, ser capaz de
posicionar-se criticamente diante do mundo, assumindo plenamente seu papel de cidadão, são
motivos de distinção social e cultural em nossa atual sociedade.
Durante o tempo em que venho atuando como professora de matemática, algumas questões
com relação à aprendizagem dos alunos da EJA me chamaram a atenção e muitas vezes me
inquietaram. Aos poucos fui percebendo que os alunos possuíam um conhecimento não escolar
construído de acordo com as suas necessidades pessoais e com a sua vida diária. Dessa maneira,
também esse saber, muitas vezes, estava relacionado com a profissão de cada aluno, como por
exemplo: pedreiros, eletricistas, marceneiros, enfermeiras e cozinheiras, entre outras.
Percebi, ainda, na sala de aula, que os alunos muitas vezes tinham um raciocínio próprio e
muito caracterizado pela oralidade, além de uma enorme facilidade para efetuar os cálculos
mentalmente; dominam uma matemática construída em sua prática social, mas que nem sempre
4
corresponde à linguagem e aos procedimentos legitimados pela prática escolar do ensino dessa
disciplina.
Assim, apresentam capacidade de raciocínio lógico, percepção de espaço e medida, além de
cálculos brilhantes, embora pouco adequados à formatação e à linguagem escolarizada. No
entanto, apesar da sua capacidade intelectual, muitas vezes, esses alunos apresentam grande
dificuldade na compreensão dos conceitos e fórmulas da matemática escolar, provocando
frustração e evasão.
Tais inquietações orientaram minhas reflexões pedagógicas; a elas associei a leitura de
alguns artigos de revistas da SBEM (Sociedade Brasileira da Educação Matemática) sobre a
Etnomatemática e outros, por indicação da Profa. Dra. Altair de Fátima Furigo Polletini
2
- amiga
e professora de Análise Matemática durante a minha graduação -, que atuou como ATP
(Assistente do Trabalho Pedagógico) na então Diretoria de Ensino de Mogi Mirim e foi, também,
na época, membro da Diretoria da SBEM (Sociedade Brasileira da Educação Matemática).
Ampliou-se minha preocupação em proporcionar a esses alunos um processo educativo
democrático e comprometido com a valorização do sujeito; com o respeito pelo outro e, portanto,
pelo potencial do conhecimento construído pelos educandos, a partir das suas práticas cotidianas.
Entretanto, somente mais tarde, no mestrado, pude entender e aprofundar essas questões.
Percebi que tais questionamentos e interesses são abordados no campo da Educação Matemática,
especificamente, na Etnomatemática. O encontro com a literatura sobre Etnomatemática me fez
vislumbrar uma trajetória pedagógica direcionada para o crescimento pessoal e intelectual dos
alunos, mas também para o meu próprio - especialmente político e humano. Nesse sentido, vale
ressaltar o pensamento de Taylor, (1993, p. 134), ao afirmar: “A Etnomatemática tem seu mais
2
Professora e Coordenadora do mestrado em Educação Matemática da Unesp Rio Claro. Como educadora, teve
uma vida de integral dedicação à educação pública. Foi aluna da rede pública de ensino, graduou-se na Universidade
Estadual de Campinas UNICAMP, onde também concluiu o mestrado em Matemática Pura (Álgebra), doutorando-se
em Educação Matemática na Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos da América. Lecionou na rede pública de
ensino estadual por mais de vinte anos. Foi Assistente Pedagógica da Diretoria Regional de Ensino de Mogi Mirim,
integrou o corpo docente das Faculdades Integradas Maria Imaculada, na cidade de Mogi Mirim, e foi membro da
Diretoria da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM). Dentre as suas últimas atividades, dedicou-se
ao programa de Pós-Graduação em Educação Matemática na Universidade de São Paulo UNESP, no Instituto de
Geo-Ciências, em Rio Claro, cuja coordenação assumiu em 1997. Realizou várias publicações sobre Educação
Matemática, notadamente na formação de professores. O trabalho que desenvolvia na área de educação foi
interrompido, na manhã do dia 22 de dezembro de 1999, no dia seguinte à sua reeleição à Coordenadoria do
Programa de Pós-Graduação quando, ao dirigir-se à UNESP Rio Claro, para participar de um exame de qualificação
de uma de suas orientandas, foi vítima de um seqüestro e morta por asfixia.
5
profundo efeito na dimensão do político. Constantemente desafiando e ocasionalmente rompendo
o discurso canônico, ela injeta vitalidade na Educação Matemática.”
Nesta minha construção teórica, um autor mostrou-se fundamental para minha
compreensão da proposta Etomatemática: o Prof. Dr. Ubiratan D´Ambrosio. Este estudioso
afirma que:
A etnomatemática se encaixa nessa reflexão sobre a descolonização e na
procura de reais possibilidades de acesso para o subordinado, para o
marginalizado e para o excluído. A estratégia mais promissora para a educação,
nas sociedades que estão em transição da subordinação para a autonomia, é
restaurar a dignidade de seus indivíduos, reconhecendo e respeitando aa suas
raízes. Reconhecer e respeitar as raízes de um indivíduo não significa ignorar e
rejeitar as raízes do outro, mas, num processo de síntese, reforçar suas próprias
raízes. Essa é, no meu pensar, a vertente mais importante da etnomatemática.
(2001:42)
Através da perspectiva da Etnomatemática, pude compreender minhas inquietações sobre
as questões relacionadas à aprendizagem dos alunos que não conseguiam compreender a
matemática escolar e, a partir da proposta da Etnomatemática, foi-me possível repensar a função
da escola, seu compromisso social e cultural.
As pesquisas em Etnomatemática têm explorado diversas matemáticas produzidas por
diferentes culturas e práticas sociais, mostrando que a matemática escolar é apenas uma das
matemáticas e que, ao ser considerada a matemática verdadeira e legitimada, exclui e desvaloriza
não apenas outros saberes, mas especialmente os sujeitos que os utilizam e produzem. Diante
disso, a Etnomatemática passou a representar um aporte teórico relevante para a elaboração deste
trabalho que, por pretender contribuir para a construção curricular da EJA, deve buscar, de
acordo com KnijniK (1996): “a investigação das concepções, tradições e práticas matemáticas de
um determinado grupo social, no intuito de incorporá-las ao currículo como um conhecimento
escolar.” (p.87)
Segundo Knijnik (1996), o estudo dos saberes do cotidiano, das crenças e dos valores de
um grupo social para uma possível articulação com o currículo escolar insere-se na vertente
vinculada à produção de D’Ambrosio (1987, 1990, 1991 a, 1993 a) compartilhada também por
Borba (1990, 1992 a), Bishop (1988, 1989a), Ferreira (1987, 1991) e Gerdes (1985, 1991a,
1991b), entre outros. Entretanto, a Etnomatemática também aborda questões relacionadas a
6
outros campos, como a história, a antropologia, entre outros, o que levou Knijnik, no contexto do
seu trabalho com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST -, a utilizar a
expressão Abordagem Etnomatemática, a qual designa como:
A investigação das tradições, práticas e concepções matemáticas de um grupo
social subordinado (quanto ao volume e composição de capital social, cultural e
econômico) e o trabalho pedagógico que se desenvolve com o objetivo de que o
grupo: - interprete e decodifique seu conhecimento; - adquira o conhecimento
produzido pela Matemática acadêmica e estabeleça comparações entre seu
conhecimento e o conhecimento acadêmico, analisando as relações de poder
envolvidas no uso destes dois saberes. (ibid., p. 88)
Estabelecer relações entre os saberes escolares e não escolares, no sentido de contribuir
para uma discussão curricular na EJA, representa, assim, o principal objetivo deste trabalho.
Então, diante desta inquietação e destes aportes teóricos, surgiu a questão central que norteia este
trabalho, ou seja:
Que relações podem ser estabelecidas entre os saberes escolares e não escolares no contexto
da EJA?
Compreender as relações estabelecidas entre saberes escolares e não escolares levou-me a
optar por uma determinada prática social. Essa escolha tomou como referência uma das práticas
mais comuns exercidas pelos meus alunos, na turma da EJA do Ensino Médio do ano letivo de
2005 e 2006 - a culinária.
Esse tema foi escolhido também porque é um assunto de interesse pessoal desde a minha
tenra idade. Ademais, a culinária é uma prática cultural que caracteriza uma nação, uma região ou
grupos sociais diferenciados por idades e gênero.
Diante da amplitude e da complexidade do tema culinária –, não tenho aqui pretensão de
explorar a prática social da culinária: procurarei centrar-me nas práticas vinculadas ao fazer dos
meus alunos.
Assim, parto do princípio de que sob a perspectiva da Etnomatemática, a discussão
curricular tende a ser mais profunda e politicamente mais transformadora tanto das práticas
escolares, como das atitudes e ações legais que as definem. Todavia, ao olhar etnomatemático
não interessa apenas descrever determinadas práticas, mas, sim, compreendê-las em sua
complexidade e seu valor de uso e, além disso, explicitar as condições sociais, culturais,
7
econômicas que proporcionaram a produção de determinados saberes. Devemos considerar que
esse saber adquirido por todos nós ao longo de nossa vida, seja ele escolarizado ou não, possui o
mesmo valor e a mesma importância social.
1.2 - A escolha do grupo e o tema a ser investigado
Como disse anteriormente, durante a minha trajetória como educadora, encontrei
diversos alunos da EJA que atuavam em diferentes profissões. Essa experiência levou-me a
pensar em investigar a presença da matemática na prática profissional desses alunos.
Dessa forma, optei por investigar a matemática presente na arte da culinária, considerando
especialmente o contato com alunos que trabalham nessa área, além daqueles que, apesar de não
trabalharem profissionalmente na área, em seu cotidiano exercem a função de cozinhar.
Essa opção também foi influenciada pelo contato com o campo da Etnomatemática, a partir
da qual percebo, que ao discutir a questão da culinária no contexto da EJA, poderei contribuir
para debates em torno das questões, que buscam relacionar o conhecimento escolar ao
conhecimento cotidiano do educando.
Portanto, o eixo central deste trabalho será a discussão sobre a produção do conhecimento
no interior de práticas sociais e sua relação com o contexto da prática escolar, tendo a culinária
como uma prática social a ser investigada, pois, como explicitado acima, ela está presente no
cotidiano dos alunos com que trabalho e também por ser uma prática de meu próprio interesse.
Por que escolher a prática social da culinária?
Aqui busco explicitar melhor a importância dessa escolha: desde a minha infância,
rodeava o fogão, e minha avó ralhava por receio de me queimar, mas, eu estava sempre junto a
ela, observando como cozinhava e ajudando-a a lavar verduras e legumes, cortando batatas,
enfim, nos diversos afazeres da cozinha.
Com o passar do tempo, comecei a cozinhar, colecionar receitas e preparar diversos pratos.
Atualmente, o ato de cozinhar representa para mim mais que uma necessidade diária: é visto
como uma forma de “terapia”, contribuindo para o meu bem-estar físico e mental. Para mim, é
extremamente prazeroso decidir o cardápio, ir ao supermercado para fazer compras, selecionar os
8
ingredientes, lavar os alimentos, molhar as mãos, lidar com o fogo, reunir a família e os amigos,
enfim, estar junto àqueles de quem tanto gosto, para apreciar um bom prato.
Além disso, minha infância foi marcada pelos muitos encontros em torno da mesa, os quais
fortaleciam e estreitavam os laços familiares e de amizades.
Logo após o meu casamento, fui ocupando dentro da família a função de organizar todas as
festas e encontros em torno da mesa. Anualmente, em minha chácara são realizadas diversas
festas que se iniciam no Ano Novo; em fevereiro, a festa da pamonha; em julho, a festa em
louvor a São Pedro; a festa do porco no rolete; as peixadas e os apetitosos churrascos, com a
famosa costela gaúcha na brasa, apreciada por todos, preparados pelo meu marido e realizados
em qualquer mês do ano; os aniversários dos meus familiares e amigos; e, para finalizar, a
confraternização do Natal, em dezembro.
Devemos considerar que, em nossa sociedade, é ao redor da mesa que diversos grupos
sociais se reúnem para festejar os bons momentos da vida. Atualmente, a culinária é uma prática
social dentro de um contexto sociocultural e vem sendo praticada não apenas como uma
necessidade, mas também como hobby. Desse modo, o trabalho à beira do fogão ode ter efeito
terapêutico, conforme propôs o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951): “Não pense,
cozinhe!”
3
1.3 OS SUJEITOS E O LOCAL DA PESQUISA
Os sujeitos da pesquisa o alunos da EJA da Fundação na qual atuo como professora de
matemática. O início do trabalho de campo ocorreu quando ainda eu estava fazendo os créditos
do mestrado. Inicialmente apliquei um questionário — com questões abertas e fechadas —
(anexo) para os alunos da primeira, segunda e terceira séries do Ensino Médio da EJA, com o
objetivo de traçar um perfil do jovem e do adulto da EJA dessa escola e averiguar quais os alunos
e as alunas que cozinhavam ou atuavam como cozinheiros e cozinheiras. Os questionários
realizados quanto a sua estrutura são abertos, ou seja, as questões que os compõem são abertas.
3
(apud DÁVILA, Marcos. Cozinha na moda. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 de maio de
2005. Folha Equilíbrio, p. 6-9).
9
Segundo Goldenberg (1992), o pesquisado responde livremente sobre as perguntas propostas no
questionário.
A partir dos 102 questionários realizados, pude obter algumas informações desses
educandos quanto a: idade, atividade profissional, os motivos que os levaram a retornar aos
estudos, a opinião sobre a matemática. A investigação a respeito da atividade profissional
permitiu a constatação de que, dentre os alunos, vários cozinham.
Para este trabalho, selecionei as perguntas mais relevantes, cujas respostas são
apresentadas nos gráficos a seguir. Dos 102 entrevistados são: 56 mulheres e 46 homens.
1-Com relação à idade temos o gráfico número 1:
Observando o gráfico acima, constata-se que a maioria dos entrevistados possui mais de
30 anos, o que representa 65% do total do número de matriculados.
Faixa Etária dos Matriculados na EJA
15%
20%
50%
15%
De 15 a 19 anos
De 20 a 29 anos
De 30 a 39 anos
Mais de 40 anos
10
2- O gráfico número 2 se refere à porcentagem dos alunos que realizam algum trabalho
remunerado:
O gráfico acima mostra que 67% dos alunos que responderam o questionário realizam
algum trabalho remunerado.
3-O gráfico número 3 mostra a porcentagem dos alunos que realizam atividades relacionadas ao
ato de cozinhar:
Alunos que realizam algum trabalho remunerado
67%
33%
Trabalham
Não trabalham
Alunos que atuam com atividades relacionadas com o ato
de cozinhar
13%
87%
atuam
não atuam
11
O gráfico mero 3, mostra que 87% dos alunos que responderam o questionário
responderam que exercem alguma atividade ligadas ao ato de cozinhar.
4- O gráfico abaixo mostra os motivos que levaram os alunos da EJA da escola pesquisada a
voltar a estudar:
A partir dos dados do gráfico acima,. constata-se que a maioria dos alunos que
responderam o questionário retornam aos estudos para conseguir um bom emprego e garantir um
futuro promissor.
5- O gráfico abaixo se refere à pergunta do questionário: “A matemática escolar se parece com a
matemática do dia-a-dia?”
Motivos que os levaram a voltar a estudar
74%
20%
5%
1%
Para conseguir um
emprego ou garantia
de um futuro melhor
Interesse pessoal
Convite de um amigo
Outros
12
A partir dos dados do gráfico constata-se que a maioria dos alunos acha que a matemática escolar
se parece com a matemática do cotidiano
6- O gráfico seguinte mostra as situações em que usa matemática no dia-a-dia:
O gráfico acima mostra que a matemática está presente nas compras (60%) e 17% dos
alunos responderam que a matemática está presente na cozinha.
Situações em que usa a matemática no dia-a-dia
17%
60%
10%
13%
Na cozinha
Nas compras
No seu trabalho
Em tudo
A matemática escolar se parece com a
matemática do dia-a-dia
71%
29%
Sim
Não
13
7- Com relação à pergunta: Você sabe cozinhar?
Dos alunos que responderam o questionário temos:
24% disseram que não sabem cozinhar e 76% disseram que sabem cozinhar.
8- O gráfico seguinte se refere à pergunta: “Você gosta de cozinhar?”.
O gráfico acima mostra que a maioria, ou seja, 65% gostam de cozinhar e que uma
minoria responderam que não gostam de cozinhar.
9- Quanto aos tipos de conhecimento que o cozinheiro deve ter. As respostas foram:
38% acham que o cozinheiro deve ter noção de medida.
33% acham que o cozinheiro deve entender tudo sobre culinária.
11% responderam que deve ter noção de higiene.
6% deve ter curso de gastronomia.
6% deve ter paladar.
6% deve saber inventar.
10 – Com relação à área de trabalho. Os entrevistados atuam:
Você gosta de cozinhar
?
8%
65%
27%
Não gostam
Gostam
Depende da
situação
14
35% no comércio.
20% exercem uma atividade em casa.
15% na indústria.
15% trabalham na agricultura.
15% no serviço público.
10% na prestação de serviços.
Após a realização dos questionários no primeiro semestre de 2005, convidei dois homens
e três mulheres que atuavam na área da culinária para participar da entrevista. Tendo eles
aceitado, as entrevistas iniciaram-se no primeiro semestre de 2006. Nesse período, alguns dos
alunos que haviam concordado em participar da pesquisa abandonaram a escola, o que dificultou
o meu contato com eles. Diante disso, decidi realizar as entrevistas apenas com os alunos que
permaneceram na escola, ou seja, três alunas que freqüentavam o ensino médio da escola
pesquisada. Entretanto, por sugestão da banca de qualificação, procurei os alunos desistentes e
realizei a entrevista com um deles no início de 2007. Além disso, para complementar algumas
informações, também entrevistei novamente as três alunas da EJA que havia entrevistado em
2006. E somente após a qualificação é que eu entrevistei o quarto sujeito da pesquisa. Optei por
indicar os entrevistados por nomes fictícios escolhidos por eles mesmos. Cabe ressaltar que as
entrevistas, depois de transcritas, foram apresentadas aos entrevistados, que autorizaram sua
utilização neste trabalho.
Como mencionei, a realização das entrevistas deu-se entre idas e vindas desde a casa
dos sujeitos da pesquisa até o local de trabalho dos entrevistados e também nos restaurantes. A
entrevista com Ariane foi realizada na sua casa, assim como a entrevista com Ana. Gonçalves
foi entrevistado no seu restaurante e a entrevista com Teresa aconteceu no trabalho. Pretendo aqui
traçar um perfil dos entrevistados desse trabalho. As entrevistas, em seu inteiro teor, encontram-
se anexas. Apresento a seguir os sujeitos da pesquisa:
Ariane:
Jovem de 18 anos, terminou a EJA em 2007, mora com os pais, trabalha numa clínica de
recuperação de jovens dependentes químicos e todo final de semana trabalha, desde os doze anos,
como cozinheira de um pesqueiro no interior de São Paulo, onde faz porções de peixe e camarão,
casquinhas de siri e vários molhos de acompanhamento para peixes, inventados por ela. É uma
15
jovem alegre, bonita, descontraída e bem-humorada. Quando a vi pela primeira vez na escola e
ela disse que trabalhava como cozinheira num restaurante, sua aparência chamou a atenção, pois
essa aparência não condizia com o modelo estereotipado que tinha a respeito de uma cozinheira.
Para a pesquisadora, a cozinheira deveria ter um aspecto de uma pessoa gorda, que não se
preocupa com a aparência e não seria uma jovem bonita.
Gonçalves:
Tem 47 anos. Parou de estudar com 17 anos, na sétima rie, pois trabalhava como ajudante de
cozinha no estabelecimento comercial de seu pai. Esse trabalho comprometeu seus estudos, pois
chegava muito tarde do bar. Começou como ajudante de cozinha e, segundo ele, tomou gosto
pela cozinha. Depois de aprender a fazer massas para pastéis e salgados, passou a preparar
churrasquinhos, lanches e outros quitutes servidos em lanchonetes. Depois montou o seu próprio
negócio, no qual trabalha mais de vinte e cinco anos. Retornou aos estudos na oitava série da
EJA, em 2005, e fez até o primeiro ano, mas desistiu por causa do seu trabalho. Ele era um bom
aluno em matemática e não apresentava dificuldade na aprendizagem.
Ana:
Ana é uma moça de 37 anos e tem uma filha. Ela faz de tudo na cozinha: massas, doces, pães,
roscas, mas a sua especialidade são salgadinhos e bolos de aniversário e também o beliscão, um
tipo de bolachinha com recheio de goiabada, delícia apreciada por todos que experimentam.
Trabalha em sua casa e sua mãe a ajuda quando Ana tem muitas encomendas. Segundo ela, sua
mãe também é uma excelente cozinheira. Ela retornou aos estudos na EJA para concluir, no ano
passado, o Ensino Médio e atualmente não estuda. Seu sonho é montar seu próprio negócio, num
estabelecimento comercial, e atender a sua clientela. É uma pessoa batalhadora e uma mãe muito
carinhosa e “doce” como aqueles que ela faz para os aniversários. Como profissional, preocupa-
se com a qualidade dos ingredientes para bem servir a freguesia fiel, que conhece os seus
produtos. Era uma aluna que não tinha dificuldade em matemática e apresentava bom rendimento
escolar.
Teresa
Uma senhora de 49 anos, casada, mãe de três filhos. É uma pessoa amável e sensível. Ela trabalha
em uma escola, como funcionária para serviços gerais: cuida da limpeza e também faz serviços
na cozinha. No final de semana, ela faz trufas e bombons para vender na escola e também para a
sua filha, que vende na escola em que estuda. Teve uma infância difícil, pois perdeu a mãe com
16
treze anos e assumiu a responsabilidade da casa e da criação dos três irmãos mais novos. Um fato
curioso de sua vida é que foi à escola com nove anos, pois ela e sua irtiveram registro de
nascimento depois que seu pai começou a trabalhar numa indústria. Estudou muito pouco e
apenas concluiu a quarta rie do Curso Primário, atual Ensino Fundamental, e, depois de quase
vinte e cinco anos, retornou aos estudos na Fundação, na quinta série da EJA. Concluiu em 2006
o Ensino Médio. Depois, em agosto do mesmo ano, matriculou-se no Curso Normal na mesma
escola, mas teve que parar por problemas de família. Durante a entrevista, ela demonstrou muita
tristeza ao falar desse assunto e arrependimento por ter parado de estudar. Na cozinha, ela faz de
tudo, mas a sua especialidade é o chocolate, com a produção de trufas, bombons e ovos de
páscoa. Na escola ela vendia trufas e ficou muito conhecida pelos alunos que, na hora do
intervalo, iam comprar na sala em que ela estudava. Era uma aluna dedicada, esforçava-se para
entender a matéria, embora tivesse dificuldade na aprendizagem.
1.4 - Problematização da pesquisa
Existe um crescente discurso no campo pedagógico, indicando a importância de relacionar o
conhecimento cotidiano ao conhecimento escolar. Essa idéia muitas vezes se pauta no aspecto
motivacional, entretanto entendemos ser necessário problematizar o significado dessa possível
relação entre os saberes produzidos no contexto escolar e fora dele.
Essa questão está presente nas discussões teóricas a respeito da EJA, nos PCNs (Parâmetros
Curriculares Nacionais). No entanto, as perspectivas presentes nos documentos oficiais concebem
o conhecimento não escolar mais como uma fonte de motivação, numa concepção de
conhecimento prévio que deve ser superado e transformado.
Por questionar as possibilidades de relações entre saberes escolares e não escolares, de
forma que este último seja valorizado e legitimado, a teoria da Etnomatemática se enquadra como
suporte teórico desta pesquisa e pretende superar a concepção de conhecimento prévio, tão
difundida pela psicologia educacional dos anos 70 do século passado.
17
Desse modo, para abordar o tema que aqui pretendo investigar, me apoiar-me-ei, nas
discussões que emergem no campo da Etnomatemática. As questões norteadoras deste trabalho
podem ser assim explicitadas:
Que saberes matemáticos e procedimentos são produzidos no interior da prática
culinária de pessoas que a exercem profissionalmente? Que contribuição essa análise pode
trazer para a construção de uma proposta curricular de matemática num Curso de
Educação de Jovens e Adultos? Que relações podem ser estabelecidas entre os saberes
escolares e não escolares no contexto da EJA?
Entretanto, considerando que a atuação no campo da culinária é algo abrangente e
complexo, limitar-me-ei a discutir a prática social de alunas da turma da EJA com que trabalho,
que cozinham e também produzem e vendem bolos, trufas, bombons, ovos de chocolate,
salgadinhos e doces.
1.5 A metodologia da pesquisa
Segundo Abramo (1988, p.21): “pesquisar se aprende mediante o próprio fazer, e sendo
assim enfatizam os especialistas: nada poderia substituir esta prática”. Ao longo do trabalho,
muitas situações inesperadas podem ocorrer durante a pesquisa de campo. Diante disso, é
importante que o pesquisador tenha um embasamento teórico sólido e utilize uma metodologia
adequada.
Em minha pesquisa farei uso de recursos metodológicos advindos da abordagem
qualitativa de cunho etnográfico, como, por exemplo, entrevistas, questionários abertos, contato
com as pessoas em sua casa e também no seu local de trabalho.
Na obra A arte de pesquisar, Goldenberg (1992) enfatiza a importância da pesquisa
qualitativa em Ciências Sociais. Esse tipo de pesquisa teve início na Universidade de Chicago nos
anos 30, no departamento de Sociologia e Antropologia de pesquisas etnográficas. A proposta de
trabalho tinha como objetivo produzir conhecimentos para a solução de problemas sociais como:
imigração, delinqüência, desemprego, pobreza e problemas raciais enfrentados na cidade de
18
Chicago e seus resultados contribuíram para o desenvolvimento e o aprimoramento das pesquisas
qualitativas.
Segundo Erickson (1984), a etnografia é um processo que permite realizar um estudo minucioso
do campo e de todos os atores envolvidos no contexto social. Dessa forma, permite aproximar o
pesquisador de todo o contexto e dos atores, sujeitos da pesquisa, o que é possível ocorrer
através da pesquisa de campo, pois esta favorece o diálogo com os membros do grupo social;
possibilita também analisar e compreender a cultura e suas práticas sociais.
Para esse autor, a etnografia é um processo de investigação que beneficia o campo de
pesquisa qualitativa, também conhecida como pesquisa social, pois compreende um estudo pela
observação direta e minuciosa, por um determinado tempo, de um grupo de pessoas, analisando
os seus costumes e suas relações sociais no cotidiano.
De acordo com Erickson (1984), o termo Etnografia vem do grego ethnos (povo, tribo,
nação) e grafia (do verbo escrever). Esse estudo envolvendo pesquisas sobre as nações era
usada pelos gregos, na Antiguidade. Na verdade, a etnografia envolve um grupo de pessoas, e não
necessariamente uma nação ou tribo. Por sua vez, esse grupo pode ser um bairro, uma escola ou
um grupo de pessoas regidas pelos mesmos costumes. O que importa não é o tamanho do grupo:
o objetivo da pesquisa é a análise dos sujeitos envolvidos no processo de investigação.
Os métodos qualitativos de investigação, chamados de etnográficos, no ambiente escolar
foram usados por Erickson e, nos anos 1970, esse trabalho de campo participativo e interpretativo
foi utilizado nas ciências sociais como método de investigação.
O trabalho do pesquisador implica: uma participação intensiva a longo prazo no campo;
um registro cuidadoso no diário de campo, fazendo uma descrição detalhada de todos os fatos
ocorridos no cenário do campo; uma reflexão sobre os registros obtidos no contexto. Dessa
forma, importa tentar identificar o significado das ações dos atores e os acontecimentos do
cotidiano no meio social.
Esta pesquisa, pela sua própria natureza, insere-se numa abordagem qualitativa, pois seu
foco centra-se nos processos de significação, produção e transmissão dos saberes e fazeres
conhecidos no interior dessa prática social. Diante disso, neste trabalho, pretendo realizar, dentre
os procedimentos metodológicos, um estudo de caso, um dos métodos advindos da Etnografia.
A justificativa dessa escolha vincula-se ao fato de que a prática social de cozinhar, investigada
neste trabalho, foi realizada por três mulheres e um homem, estudantes da EJA. Desse modo,
19
constitui-se uma prática desenvolvida por um grupo delimitado histórica, social e
geograficamente, o que leva a compreendê-la como estudo de caso. Segundo Erickson (1989), o
estudo de caso um dos tipos de pesquisa qualitativa que vem ganhando crescente aceitação na
área educacional.
Segundo Goldemberg (1992), o estudo de caso era utilizado na pesquisa médica e
psicológica representava uma análise profunda de um caso particular e tinha como objetivo
identificar o diagnóstico de uma dada doença. Mais tarde, tornou-se um dos procedimentos mais
utilizados na pesquisa qualitativa.
No campo das Ciências Sociais, o estudo de caso representa o maior número de
informações detalhadas e minuciosas, através de diversas técnicas de pesquisa. Desse modo, tem
como objetivo assimilar a totalidade de uma situação e descrever a complexidade de um caso
concreto, o que possibilita uma análise profunda do contexto.
A observação participante e a entrevista são recursos utilizados no estudo de caso, mas
não existem regras precisas acerca dessa aplicação de tais técnicas. Por isso, o pesquisador deve
não apenas estar preparado para lidar com as diversas situações que podem aparecer durante a
observação e a entrevista, mas também evitar generalizações.
O início do meu trabalho de campo se deu com a realização de um questionário, a fim de
averiguar quais os alunos e alunas da EJA que fazem uso da culinária como atividade
profissional, ou seja, que atuam, por exemplo, como: confeiteiros, padeiros e cozinheiros. Após
ler os questionários, verifiquei que vários alunos atuavam profissionalmente na culinária: um
padeiro que trabalhava na padaria do supermercado; um dono de uma pastelaria; duas doceiras,
uma das quais faz doces, salgados e bolos de aniversários; a outra, além de fazer encomendas
para aniversários, também faz trufas e ovos de chocolate; e uma adolescente que trabalha como
cozinheira no restaurante do pesqueiro de propriedade do seu tio.
Após esse levantamento, conversei com todos eles, convidei-os para participarem da
minha pesquisa e perguntei se aceitariam fazer a entrevista. No final do mês de maio de 2005, os
alunos que atuavam como padeiro e como dono de pastelaria abandonaram os estudos. Segundo
as informações dos alunos da sala, o padeiro saiu da escola por motivos particulares e o dono da
pastelaria, por tê-la vendido montado um restaurante self-service, não mais dispunha de tempo
para estudar. Desse modo, foram realizadas quatro entrevistas, sendo as duas primeiras com as
20
doceiras que freqüentavam o termo, e a terceira com a jovem cozinheira no termo da EJA e
por ultimo, com o dono do restaurante.
1.6 As entrevistas
Segundo os autores Bodgan e Biklen (1994), a entrevista parece-nos um procedimento
simples e familiar e que podemos fazer sem pensar, como se fosse uma conversa informal.
Porém, nas entrevistas qualitativas, esses autores argumentam:“A entrevista é utilizada para
recolher dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, permitindo ao investigador
desenvolver intuitivamente uma idéia sobre a maneira como os sujeitos interpretam aspectos do
mundo” (p.134). Desse modo, o pesquisador deve ficar atento aos relatos recheados de palavras
que revelam as perspectivas do entrevistado e assim contribui para maior riqueza da coletas de
dados da pesquisa.
Com relação a esta pesquisa, as entrevistas foram gravadas e realizadas na residência das
entrevistadas, justamente para que elas se sentissem bem à vontade. O trabalho se desenvolveu,
portanto, em um clima agradável, possibilitando às entrevistadas mais segurança e confiança.
Confesso que tive que entrevistá-las mais de uma vez, pois, após a transcrição das entrevistas,
percebia que algumas respostas não eram claras, o que me levou a formular outras perguntas para
a nova entrevista, justamente para obter mais informações.
A utilização do gravador é um recurso importante nas entrevistas, mas deve ser usado de
forma que não atrapalhe e nem intimide o entrevistado. Segundo Erickson (1989), o recurso
de gravação eletrônica permite ao pesquisador, através do movimento da fita cassete do gravador
para frente e para trás, verificar as falas mais importantes dos entrevistados para a coleta de
dados.
Erickson (1989) também ressalta que o uso de registros eletrônicos como fonte primária
de dados possui, no entanto, duas limitações principais: uma delas é que, ao rever a gravação, o
pesquisador pode interagir com ele mesmo e fica impedido de testar as suas hipóteses. Outra
21
limitação se deve ao fato de que, às vezes, o analista, geralmente, precisa ter acesso a
informações contextuais, que não estão disponíveis na própria gravação.
Outro aspecto também importante para a autora refere-se à triangulação, que
representa a combinação de metodologias diferentes no estudo de um fenômeno, permitindo
abranger a máxima amplitude na descrição e na compreensão do objeto de estudo. Nesse
processo podem ser utilizados métodos qualitativos e quantitativos durante a pesquisa, como:
questionários, entrevistas, observação participante e diário de campo, proporcionando uma
melhor compreensão do objeto de estudo.
Com base nas considerações até aqui apresentadas, este trabalho será assim organizado: este
capítulo – que é a introdução -, terá a seguinte seqüência:
No capítulo 2, faço uma análise do contexto escolar e da questão curricular, focando as diversas
perspectivas e tendências das últimas décadas. O Capítulo 3 enfoca a questão do jovem e o adulto
da Educação de Jovens e Adultos. O capítulo 4 discute a prática social da culinária. O capítulo 5
faz uma análise das entrevistas. O capítulo 6 traz as considerações finais e uma contribuição para
a construção de uma proposta da Matemática para a EJA no que diz respeito à prática social da
culinária no estudo de medidas.
22
2- UMA ANÁLISE DO CONTEXTO ESCOLAR E A QUESTÃO
CURRICULAR NAS DIVERSAS PERSPECTIVAS E TENDÊNCIAS
Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos.
Paulo Freire
No presente capítulo, pretendemos fazer uma análise da escola na sociedade atual, na
perspectiva de diversos estudiosos da Educação e da Sociologia da Educação, enfocando as
diversas tendências, teorias, movimentos e debates ocorridos no campo da Educação e da
Sociologia da Educação.
Inicialmente, faremos uma retrospectiva histórica das últimas décadas, enfocando as
transformações sociais ocorridas nesse período enfatizando a questão da exclusão social que, de
certa forma, afetaram diversos segmentos da sociedade, dentre eles o campo educacional. Num
segundo momento, faremos algumas considerações sobre o currículo e uma análise da instituição
escolar no meio social e, em seguida, discutiremos os diversos movimentos ocorridos no campo
educacional nas últimas décadas do século passado, destacando as propostas educacionais
construídas na perspectiva da Etnomatemática.
2.1 Algumas considerações sobre a exclusão social
Desde o final do século XX, a sociedade tem vivido diversas transformações sociais,
culturais e econômicas, decorrentes do avanço da tecnologia e do processo de globalização que,
de forma assustadora, modificaram os meios de produção da sociedade, afetando principalmente
os aspectos sociais, econômicos e culturais nos países mais pobres do planeta.
O desenvolvimento tecnológico no processo de industrialização e a globalização nos
últimos trinta anos agravaram ainda mais as desigualdades sociais nos países pobres, aumentando
consideravelmente os índices de desemprego gerado pela forte exclusão do mercado trabalho.
23
Nesse sentido, Castells
4
(1998) considera: “A ascensão do capitalismo global informacional
é, na verdade, caracterizada simultaneamente pelo subdesenvolvimento e desenvolvimento
econômico, inclusão e exclusão social”. (p. 82)
O desenvolvimento tecnológico trouxe muitos benefícios para a nossa sociedade com
relação aos meios de consumo e à praticidade do nosso cotidiano, facilitando a realização de
tarefas do dia-a-dia, o que, por meio dos avanços da informática, possibilitou maior acesso e
rapidez no mundo da informação.
Assim, o novo modelo econômico mundial surgiu a partir dos avanços da ciência em
diversos campos, como, por exemplo, a engenharia genética. A informação digitalizada e a
rapidez na comunicação possibilitaram um novo modelo de vida na sociedade. A micro-
eletrônica modificou os setores econômicos da sociedade, modernizando os meios de produção, o
que propiciou o surgimento de novas atividades e profissões no mercado de trabalho. Por outro
lado, esse avanço tecnológico trouxe muitos problemas nos aspectos sociais, econômicos e
culturais, pois causou mudanças na vida diária das pessoas, ampliando, em alguns casos, suas
incertezas.
Além disso, a modernização e a automatização dos meios de produção nos últimos anos
provocaram uma diminuição da oferta de vagas no mercado de trabalho, aumentando as taxas de
desemprego. Nesse processo, mudanças no setor secundário (indústria) e no setor primário
(agricultura, pesca, mineração) da economia ou, de modo geral, nos diversos setores da
economia, provocaram o desaparecimento de muitas profissões. Todas essas transformações na
sociedade agravaram ainda mais as desigualdades sociais, aumentando a exclusão social.
Muitos estudiosos consideram que alguns dos valores e das representações presentes no
mundo tendem a excluir as pessoas. Por exemplo, os valores relacionados à tecnologia
classificam e excluem pessoas não preparadas e desconhecedoras das habilidades necessárias
para viver num mundo informatizado.
Os excluídos da nossa sociedade de certa forma representam uma “ferida” no meio social,
são marginalizados pela sociedade e considerados responsáveis pela sua própria condição social,
mas, na verdade, representam o produto final de um sistema capitalista global, injusto e
desumano.
4
Eis o texto original de Castells (1998, p. 82): “The ascent of informational, global capitalism is undeed characterised by
simultaneously economic development and underdevelopment, social inclusion in social exclusion”.
24
O problema da exclusão social tem sido eixo central de diversos debates no campo das
Ciências Sociais, na Sociologia da Educação e na Educação. Muitos estudiosos consideram a
escola uma instituição que exclui, pois está comprometida com um sistema de práticas que
desrespeitam as diferenças entre os atores do ambiente escolar.
A sociedade de consumo marcada pelas incertezas afetou as formas de vida do nosso
cotidiano, gerando crises de valores morais e culturais que se estendem pelos diversos setores do
contexto social, inclusive no campo educacional. Por essa razão, as transformações sociais,
culturais e econômicas, que caracterizam a sociedade de informação geram uma crise de
identidade decorrente, especialmente, do choque entre a cultura escolar e a cultura não-escolar
dos alunos, afetando, assim, as relações interpessoais dentro do ambiente escolar.
2.2 Escola: um espaço de exclusão e de reprodução das desigualdades sociais
A escola sempre foi uma instituição respeitada no meio social durante todo o seu processo
histórico e sempre ocupou uma posição de destaque na sociedade. Atualmente, a instituição
escolar é considerada um agente de socialização capaz de integrar e preparar o indivíduo para o
mundo globalizado e informatizado. Ao mesmo tempo, apesar de a sociedade de informação
valorizar a escolarização, a instituição escolar sofre um processo de deslegitimação e vive
incomodada com os conflitos gerados pela relação escola-sociedade. Mas, diante disso, podemos
pensar: o que gerou essa crise? Inicialmente podemos analisar a escola em diversos aspectos, a
começar pela cultura reproduzida no seu contexto.
A instituição escolar está alicerçada em formas e práticas pedagógicas que ela reproduz e
mantém como única cultura legítima, justamente porque ela, a instituição, representa os interesses
e a manutenção do conhecimento científico legitimado.
Na perspectiva de Bourdieu (1998d) a instituição escolar tem tido a função de reprodução
e legitimação das desigualdades sociais. Segundo esse sociólogo, existe uma relação entre a
cultura escolar e a cultura familiar do aluno. Para os alunos das classes dominantes, a cultura
escolar seria sua cultura “natal” e, para os alunos de classes menos favorecidas, ela seria como
25
uma cultura “estrangeira”. Dessa forma, os alunos de classes dominantes obtêm melhor êxito na
escola, pois a sua herança cultural favorece o seu desempenho no ambiente escolar, enquanto que
os alunos de classes menos favorecidas culturalmente apresentam maior dificuldade em assimilar
os conteúdos escolares, o que os leva ao fracasso escolar.
Diante disso, a instituição escolar favorece o discurso da elite intelectual que, detentora do
poder econômico e cultural, reproduz um conhecimento tido como único, verdadeiro e legitimado
pelo meio social. Esse conhecimento, também conhecido como cultura escolar, de acordo com
Bourdieu (1998d), exclui os alunos de classes sociais inferiores, que possuem uma cultura
familiar desconectada do saber dito culto, ou seja, a sua herança cultural está distante da cultura
legitimada da escola.
A instituição escolar, por sua vez, não legitima a cultura familiar das classes não
dominantes, excluindo-a do sistema educacional. Com isso, esses alunos se desmotivam, sua
auto-estima é afetada, o que os leva ao fracasso e ao abandono da instituição escolar.
Esse modelo escolar, instituído historicamente, com o passar do tempo gerou uma relação
conflituosa entre aluno e escola, reproduzindo sérios problemas escolares: os altos índices de
reprovação e evasão escolar.
As dificuldades causadas pelos altos índices de repetência e evasão escolar continuam
presentes no sistema educacional público, preocupando educadores e estudiosos da Sociologia da
Educação. Nas últimas décadas, pesquisas, debates e discussões no campo educacional têm
contribuído para a redução da exclusão no meio escolar. Entretanto, essa redução muitas vezes
parece mais presente nos dados estatísticos do que na sala de aula, onde atuamos, uma vez que é
possível perceber uma redução nos índices de reprovação, mas não processos de exclusão.
Diante disso, devemos nos perguntar: Quais são os fatores que contribuem para os altos
índices de repetência e evasão escolar ocorridos nas últimas cadas? Como podemos
compreender os diferentes processos de exclusão, especialmente quando não se concretizem em
repetências?
A partir de estudos realizados, diversos pesquisadores e estudiosos no assunto constataram
que a premissa do modelo educacional vigente não atende aos anseios da grande parte dos
educandos. Desse modo, o atual modelo escolar é excludente, pois, ao não aceitar as diferenças
entre os alunos de diferentes grupos sociais, gera conflito entre alunos, alunos e professores, além
de outros. Esse processo leva à marginalização de alunos, que muitas vezes não evadem
26
legalmente, mas se tornam alunos presentes e, ao mesmo tempo, ausentes no processo de
construção do conhecimento escolar. Bourdieu, preocupado com a exclusão no ambiente escolar,
afirma:
para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais
desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore no conteúdo do
ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de
avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes
sociais (BOURDIEU 1998d, p.53, apud NOGUEIRA 2004, p.86).
Com relação a essas questões, podemos enfocar alguns aspectos: a instituição escolar,
diante das transformações sociais ocorridas nos últimos tempos, não conseguiu se ajustar às
novas perspectivas do mundo moderno. Desse modo, manteve-se conservadora e presa às normas
e regras do currículo e às formas educativas, desencadeando no meio social uma série de
conflitos. Por sua vez, estes geraram sérios problemas, levando as entidades governamentais a
buscar soluções através de reformas educacionais.
Na nossa opinião, apesar das sucessivas reformas propostas pelo governo e dos grandes
investimentos dos últimos vinte anos, não podemos perceber melhorias significativas. Tal fato
pode ser explicado por duas razões: porque as reformas ocorrem de forma autoritária, ou seja, são
impostas, e não existe um diálogo com os educadores e porque as reformas educacionais no
âmbito pedagógico não se articulam com as reformas administrativas, de forma a possibilitar sua
execução.
Diante do exposto, podemos afirmar que a instituição escolar é excludente, e essa exclusão
atualmente pode ser observada pelos índices de evasão, embora se faça de forma sutil, a partir das
más condições de trabalho dos professores, da organização curricular sem o compromisso da
comunidade, entre outros fatores.
27
2.3. Uma definição e algumas considerações sobre currículo
De acordo com Goodson (1995), a palavra currículo vem do latim scurrere e quer dizer
“correr”; também se refere ao percurso ou ainda ao curso a ser seguido. Para Barrow (1984), o
currículo deve ser entendido como o conteúdo apresentado para estudo; nesse sentido, ele
representa um curso a ser estudado e é organizado e estruturado por aqueles que esboçam e
definem o curso. Desse modo, o currículo é definido e proposto pelas pessoas que detêm o poder
de definir o saber legitimado dentro do meio escolar.
Dentre as teorias de currículo, Silva (2002), destaca três: as tradicionais, as críticas e as
pós-críticas. As primeiras surgiram em 1918, com a publicação da obra de Bobbitt The
curriculum, nos Estados Unidos. Segundo Silva (2002), a nação americana passava por um
processo de modernização da industrialização e por ciclos imigratórios, que contribuíram para um
movimento de reflexão sobre os objetivos e as formas de educação de massa. Nesse sentido,
buscavam respostas e caminhos para traçar o perfil e as metas da educação americana.
Para Silva (2002), essas teorias tradicionais tinham como proposta para o sistema
educacional americano um ensino conservador: a escola deveria funcionar como uma empresa
industrial ou comercial e deveria ser eficiente para atender todos os objetivos educacionais. Esse
modelo escolar está ligado às idéias de Frederick Taylor, para quem o currículo deveria ser um
processo industrial e administrativo e a escola funcionaria como uma empresa.
Por volta de 1949, ainda de acordo com Silva (2002), outro estudioso americano, Ralfh
Tyler, passaria a dominar o campo do currículo nos Estados Unidos e em vários países, inclusive
no Brasil. Tyler possui um modelo técnico de currículo e a sua organização está atrelada às idéias
de Bobitt, mas também se preocupa com a questão educacional no que se refere à psicologia da
aprendizagem e à filosofia.
Para Silva (2002), Bobitt e Tyler representam as teorias tradicionais de currículo e têm
como proposta uma educação tecnicista e conservadora. O currículo proposto por Tyler é mais
técnico, enquanto o de Bobitt, mais progressista, com base na psicologia. No entanto, ambos
propõem um currículo voltado aos interesses econômicos das classes dominantes. A partir dos
28
anos 1970, essas teorias passaram a ser criticadas e contestadas nos Estados Unidos, dando início
a uma nova tendência: as teorias críticas.
Silva (2002) nos informa que estas teorias surgiram em diversos países. Nos Estados
Unidos, ocorreram o “movimento de reconceptualização”, que tinha como proposta uma
renovação da teorização sobre o currículo. Na Inglaterra, a publicação da obra Knowledge and
control, de autoria de Michael Young, em 1971, marcou o início dessa teoria crítica, que passaria
a ser conhecida como Nova Sociologia da Educação (NSE). Na França, destacaram-se as
publicações e os ensaios de alguns autores críticos, como: Althusser, Bourdieu e Passeron,
Baudelot e Establet, entre outros.
No Brasil, segundo Silva(2002), a teoria crítica iniciou-se a partir da publicação da obra A
pedagogia do oprimido, de Paulo Freire, em 1970, em que este considera o modelo educacional
tradicional como uma “educação bancária”. Segundo o autor, essa educação representa o ato de
depositar, de transmitir valores e conhecimentos, em que o educador representa o ator principal e
o educando, um coadjuvante do contexto escolar. Nesse sentido, Freire (1987) argumenta:
O educador é o que educa: os educandos, os que são educados. O educador é o que
sabe; os educandos os que não sabem. O educador é o que diz a palavra; os educandos,
os que escutam docilmente. O educador é o que disciplina; os educandos, os
disciplinados. O educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos, os que
seguem a prescrição. O educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de
quem atuam, na atuação do educador. O educador escolhe o conteúdo programático; os
educandos, jamais ouvidos nessa escolha, se acomodam a ele. O educador identifica a
autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à
liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele. O
educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos. (p.59)
Para Freire, a educação bancária é um sistema de opressão: o currículo escolar é imposto e
estático, pois não reconhece o conhecimento adquirido pelo aluno no seu cotidiano. O educando
representa no sistema escolar um ser passivo, que absorve todos os conteúdos transmitidos pelo
educador. o educador, em posição contrária do educando, representa um sujeito que oprime e,
através das suas relações de poder, transfere para o educando todos os valores e conhecimentos
legitimados pelo currículo.
Essa teoria possui uma visão oposta à das teorias tradicionais e critica as formas de
organização e elaboração do currículo tradicional. Considera também que a escola e o currículo
29
contribuem para as desigualdades e injustiças sociais, pois o modelo escolar tradicional está
atrelado a valores e métodos que atendem os interesses dos grupos dominantes da sociedade.
Nesse sentido, Bernstein (1980) afirma: “As formas através das quais a sociedade seleciona,
classifica, distribui, transmite e avalia o conhecimento educativo considerado público refletem a
distribuição do poder e dos princípios de controle social”. (BERNSTEIN, 1980, apud
SACRISTAN, 2000: p.47).
Para Bernstein, o currículo define as práticas educacionais e avalia o conhecimento escolar
do educando, a partir do conhecimento escolar legitimado pelo meio social. Dessa forma,
controla todas as relações de poder dentro do contexto escolar e, ao mesmo tempo, exclui aqueles
que não assimilam esse saber.
As teorias pós-críticas surgem em conexão com os novos movimentos intelectuais da
Sociologia: o pós-modernismo e o pós-estrutularismo, que se faz necessário mencionar. Segundo
Silva (2002), o pós-modernismo teve seu início na metade do século XX, entre as décadas de 50 e
60 e tem como base uma oposição aos fundamentos do pensamento moderno.
A Modernidade inicia-se com a Renascença e com o Iluminismo, estende até a metade do
século XX e defende os ideais da razão, da ciência e da racionalidade, que permitiram o grande
avanço tecnológico da sociedade em que vivemos atualmente. Para os pós-modernistas, a razão e
a racionalidade representam as raízes dos problemas sociais atuais. Em nome do progresso e da
ciência, a sociedade vive em constantes conflitos diante das desigualdades sociais provocadas
pelos sistemas brutais e cruéis de opressão e exploração. Não podemos negar os benefícios dos
avanços da ciência e da tecnologia na sociedade, mas, para o pensamento pós-modernista, o
progresso não é algo necessariamente desejável e benigno.
Silva (2002) afirma que, no que se refere ao campo educacional, a pedagogia e o currículo
estão fincados nas idéias da Modernidade. O currículo escolar preocupa-se com a discussão do
conhecimento científico e com a formação do indivíduo racional e autônomo e sua forma segue
as características modernas: é linear, rígido, estático. Nesse sentido, o currículo está
fundamentado nas concepções do conhecimento da ciência e define duas culturas: a “alta
cultura”, representada pelo conhecimento científico e a “baixa cultura”, caracterizada pelo
conhecimento cotidiano.
De um modo geral, para Silva (2002), as teorias s-críticas representam as teorias de
currículo que criticavam:
30
- o currículo que reproduz as desigualdades culturais e as etnias dos diferentes grupos sociais
dentro do contexto escolar;
- o currículo desigualmente dividido por gênero, ou seja, em que algumas disciplinas eram
consideradas masculinas e outras femininas ou materiais curriculares, como os livros didáticos,
que apresentavam desigualdades de gênero. Nesse sentido, o currículo refletia e reproduzia os
estereótipos da sociedade, que privilegiava os interesses e os pensamentos masculinos;
- o currículo que define a identidade sexual humana apenas como masculina e feminina e
considera a identidade homossexual um problema. Em geral, os conteúdos curriculares raramente
enfocam a sexualidade e, quando abordam esse tema, tratam-no apenas como informação ligada
aos aspectos biológicos reprodutivos;
- o currículo que aborda as questões do domínio de algumas nações sobre outras e inclui as
relações atuais de dominação entre os países, baseadas na exploração da economia e no
imperialismo cultural. As relações entre os países colonizadores e colonizados, com forte
valorização da cultura daqueles e sua supremacia sobre a cultura destes, e o domínio do Ocidente
sobre o Oriente são características marcantes nos seus conteúdos.
Devemos considerar que as teorias críticas e pós-críticas apontam o currículo tradicional
como reprodutor e articulador das relações de poder dentro do contexto escolar. O conhecimento
proposto pelo currículo está incorporado no saber científico proposto pelo movimento iluminista,
que valoriza a razão e a racionalidade. Sua teoria também está impregnada pelos interesses do
mundo capitalista que dissemina a intolerância, a indiferença, a discriminação racial e o
desrespeito às diferenças culturais dos indivíduos. Nesse sentido, Silva (2002) afirma:
O currículo não é um corpo neutro, inocente e desinteressado de conhecimentos.
[...] O conhecimento corporificado no currículo é um conhecimento particular.A
seleção que constitui o currículo é o resultado de um processo que reflete os
interesses particulares das classes e grupos dominantes. ( p. 46)
De acordo com essa visão, o currículo está apoiado nos interesses da elite dominante e, ao
definir regras e normas a serem seguidas dentro do ambiente escolar, produz as diferenças sociais
e as diversas identidades culturais dentro do meio em que atua.
31
2.4 Currículo: uma tradição inventada
Segundo Silva (1995), fazer uma análise da história do currículo significa auxiliar-nos a
ver o conhecimento incorporado no currículo não como algo fixo, mas como um objeto social e
histórico, sujeito às alterações e flutuações. Para esse autor, o currículo atual não foi estabelecido
de uma vez por todas e passou por conflitos ao longo da sua construção histórica. Por isso, vem
procurando ajustar-se às diversas modificações ocorridas na sociedade e, desse modo, o currículo
está em constante fluxo e transformação.
Para o autor, a construção histórica do currículo não pode ter como meta principal apenas
descrever como se organizava o conhecimento escolar do passado, para simplesmente compará-lo
com o atual ou, ainda, analisar o seu conhecimento incorporado no currículo escolar como um
artefato social e cultural. O objetivo deve ser compreender e analisar como o currículo veio a
tornar-se o que é; descrever a dinâmica social que o fez moldar-se dessa forma. Talvez seja
interessante saber como era o currículo de matemática, no final do século XIX, nas escolas
brasileiras dedicadas à educação das classes dominantes, por exemplo, mas seria relevante,
também, compreender por que razões essa matemática e não a outra, essa forma de ensinar e não
aquelas acabou sendo legitimada dentro do contexto escolar.
Diante disso, podemos pensar como e por que o currículo foi e continua sendo construído.
Todavia, essas variações foram apenas ajustes para adequar as mudanças sociais, mas muito
pequenas, se atentarmos para o quanto nossa sociedade mudou durante as últimas décadas, nos
aspectos sociais, morais, econômicos e culturais, modificando o modo de vida de todos os
indivíduos da sociedade.
Atualmente a instituição e o currículo escolar vivem uma crise gerada pelas mudanças
sociais: a instituição escolar vive um conflito social, que não atende às aspirações da nossa
sociedade e às dos educandos, enquanto o currículo escolar, por sua vez, não atende às
necessidades e às concepções sociais atuais.
Para Silva (1995), a educação institucionalizada representa uma espécie de condensação
social, a partir dos interesses dos diversos grupos sociais, que refletem e projetam suas visões e
aspirações no meio escolar. Para tentar amenizar esses conflitos gerados em seu ambiente, a
escola vem procurando introduzir no seu currículo questões sociais, conteúdos escolares e até
32
disciplinas escolares, que tratam de assuntos como: direitos humanos, sexo, ética, drogas, meio
ambiente, voluntariado e outros assuntos abordados pela mídia na sociedade naquele momento.
Nesse sentido, esses temas, por sua relevância, devem ser debatidos dentro do contexto
escolar: diretamente ligados ao cotidiano do educando, não podem ser desprezados pela escola
que, como entidade socializadora, deve abordá-los.
A partir de todas essas discussões, poderíamos fazer as seguintes perguntas: Por que o
currículo é construído dessa forma? Por que algumas disciplinas, dentro do currículo escolar, são
mais importantes que as outras? Será que as disciplinas que estão no topo dessa hierarquia são
aquelas que mais reprovam e, portanto, são as mais temidas e respeitadas pela clientela escolar?
Com relação à primeira pergunta, Goodson (1995) afirma que Hobsbawn (1985), poderia
responder utilizando o termo “tradição inventada”, isto é:
Tradição inventada significa um conjunto de práticas e ritos: práticas
normalmente regidas por normas expressas ou tacitamente aceitas; ritos ou
natureza simbólica –que procuram fazer circular certos valores e normas de
comportamento mediante repetição, que automaticamente implica em
continuidade com o passado. De fato, onde é possível, o que tais práticas e ritos
buscam estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.[...]
inclui tanto tradições inventadas, construídas e formalmente instituídas, quanto
tradições que emergem de modo menos definível num período tempo breve e
datável coisa talvez de alguns anos que se estabelecem com grande rapidez
(HOBSBAWN, 1985, p.1, apud GOODSON, p.27).
Dessa forma, a confecção do currículo passou por um processo de tradição inventada. No
entanto, esta foi construída para atender aos interesses sociais e políticos dos grupos dominantes e
para a manutenção do poder destes. Tal situação envolve os conteúdos e as disciplinas do
currículo chamadas de “matérias tradicionais”, as quais estão presentes em todos os currículos
escolares, uma vez que são consideradas relevantes e essenciais para compor o currículo, do
ponto de vista daqueles que definem a organização deste dentro do meio escolar.
Com relação à segunda e à terceira perguntas, o pensamento bourdieusiano poderia
respondê-las quando discute as disciplinas tradicionais do currículo escolar. Segundo Bourdieu
(1974), o sistema escolar possui uma hierarquia entre as disciplinas de ensino que se estende das
disciplinas canônicas, as mais valorizadas, às disciplinas secundárias e, finalmente, àquelas
33
consideradas as marginais, ou seja, as mais desvalorizadas no contexto social. Desse modo, esse
autor argumenta:
A exemplo das distinções entre sexos e faixas etárias, são também diferenças
sociais que recobrem as diferenças entre as disciplinas ordenadas segundo uma
hierarquia comumente reconhecida: desde as disciplinas mais canônicas, como o
francês, as letras clássicas, a matemática ou a física, socialmente designadas
como as mais importantes e mais nobres (dentre outros indícios, em virtude do
peso nos exames, pelo estatuto de “professor principal” conferido aos docentes
dessas áreas e, finalmente, pelo consenso dos docentes e alunos), até as
disciplinas secundárias como a história e a geografia, as línguas vivas (que
constituem um caso à parte), as ciências naturais, e as disciplinas marginais
como o desenho, a música e a educação física. (BOURDIEU, 1974, p.238c, apud
NOGUEIRA, 2004, p.95).
Para o autor citado, a instituição escolar valoriza e coloca no topo dessa hierarquia as
disciplinas mais teóricas, mais abstratas e formalizadas. Essas disciplinas organizam-se a partir
de uma lógica que expressa valores presentes num determinado grupo social, ou seja,
pertencentes aos alunos provenientes de famílias de maior poder aquisitivo e com mais
escolaridade, as quais possibilitam aos alunos um tipo de leitura, de informação e recursos
materiais que tendem a facilitar seu acesso, uma vez que a cultura escolar expressa parte dessa
cultura familiar. Para complementar essa idéia, Bourdieu (1974) exemplifica com o sistema de
ensino francês, indicando o uso ideológico que a escola faz do conceito de dom, ou seja, segundo
ele, a escola distingue os alunos por seu rendimento, mas justifica esse critério com dois
argumentos: “talento” e “trabalho”, ou seja:
[...] de um lado, matérias como o francês (e um outro registro, a matemática)
parecem exigir o talento e o dom e, de outro, matérias como geografia (e em
menor grau, a história), as ciências naturais e as línguas vivas que requerem
sobretudo trabalho e estudo. No pólo oposto ao francês (ou em grau bem menor,
à filosofia) que desvaloriza a boa vontade e o zelo escolar tanto para a
imprecisão de tarefas como pela indeterminação e pela incerteza dos signos de
êxito ou fracasso, exigindo via de regra um capital prévio (“é preciso ter
leitura”) e muitas vezes indefinível (que se trate de estilo ou de cultura geral),
disciplinas como a história, a geografia, as ciências naturais ou as línguas (tanto
modernas como, em grau menor, as antigas) propõem tarefas onde se podem
exprimir o gosto pelo trabalho “bem feito” e pelas manipulações minuciosas,
como por exemplo os mapas de geografia ou dos desenhos em ciências naturais,
que aparecem como “seguras” e “gratificantes”, pois o esforço sabe onde
34
concentrar-se e porque o efeito do trabalho é medido com mais facilidade
(BOURDIEU, 1974c, p.242, Ibid., p.96).
Nesse sentido, Bourdieu acusa a escola de fazer uso da idéia de dom ou talento para
justificar as diferenças no aproveitamento escolar, o qual, segundo esse estudioso, depende muito
mais da familiaridade ou não que os alunos possuem com as propostas curriculares estabelecidas.
Consideramos o pensamento bourdieusiano relevante para este trabalho, quando analisamos
a questão das disciplinas no currículo da EJA. Inicialmente é possível perceber a grande
dificuldade apresentada pelos alunos nas aulas de matemática, quando desenvolvidas de forma
tradicional. Nessa perspectiva tradicional essa disciplina exige do aluno um determinado tipo de
raciocínio dedutivo e lógico e, principalmente, um determinado tipo de linguagem que nem
sempre está relacionado às experiências e aos saberes construídos nas diversas práticas sociais
vivenciadas pelos alunos da EJA.
Dessa forma, ao retornar aos bancos escolares, esses alunos enfrentam o grande desafio de
superar a matemática trabalhada no contexto escolar, uma das disciplinas responsáveis pelo maior
índice de reprovação e evasão do meio escolar, especialmente no ensino regular, mas também na
EJA.
Estes fatos, ou seja: o uso ideológico do “dom” e a disparidade entre currículo e os saberes
construídos em diferentes práticas sociais vêm justificar ainda mais a necessidade de buscar
caminhos alternativos que possibilitem, no contexto da EJA, a construção curricular de forma
participativa e comprometida com as classes sociais menos favorecidas e/ou excluídas do
contexto escolar. Assim, de acordo com Bourdieu, a escola não é uma instituição neutra: seu
currículo e suas práticas escolares, em geral, valorizam as elites dominantes, ou seja, o discurso
da escola, o saber escolar legitimado são aqueles condizentes com os valores e os conhecimentos
legitimados pela elite cultural.
Desse modo, segundo Silva (1995), o currículo não deve ser visto apenas como resultado de
um processo social necessário para a transmissão de valores, conhecimentos e habilidades para a
clientela escolar. Para ele, a sua construção deve ocorrer em torno de um processo constituído de
conflitos e de diferentes tradições e concepções do contexto social. Dessa maneira, o currículo
deve constituir-se de fatores epistemológicos, intelectuais e determinantes sociais como:
interesses; rituais; conflitos simbólicos e culturais; necessidades de legitimação e de controle; e
propósitos de dominação dirigidos por fatores ligados à classe, à raça, ao gênero.
35
2.5 Alguns debates das últimas décadas sobre a questão curricular, nas
diversas perspectivas e tendências
Segundo Candau (2000), dentre os diversos fatores que geram a crise escolar, devemos
considerar que o saber escolar e a relação entre escola e cultura têm sido indicados como
explicações para o fracasso escolar. Esses motivos promoveram diversos debates entre os
pesquisadores e estudiosos do campo da Sociologia da Educação nas últimas décadas.
Para a autora, esse debate vem ocorrendo nos Estados Unidos desde a década de 1960,
quando surgiu a teoria do handicap ou do deficit cultural. De acordo com essa teoria, as
diferenças culturais entre os grupos sociais representados na escola eram apontadas como a razão
principal do fracasso escolar, mas os alunos deveriam também superar as dificuldades que
determinam o seu fracasso, enquanto à escola caberia contribuir para essa superação. Dessa
forma, a escola não é responsabilizada pelo fracasso escolar dos alunos, pois a ela compete
apenas amenizar o problema. Entretanto, o que nos chama atenção é o fato de o aluno também ser
considerado responsável pelo seu próprio insucesso no ambiente escolar.
Essa teoria foi e ainda continua a ser questionada e debatida por diversos sociólogos da
Educação, especialmente por aqueles inspirados nas idéias marxistas do final dos anos 1960 e
início dos anos 1970, quando surgiu uma outra vertente, contrapondo-se à visão da educação
como instrumento para a transformação e a ascensão social. Iniciou-se, então, uma nova
abordagem, que iria exercer grande influência na produção de trabalhos e debates na Sociologia
da Educação até os dias atuais.
Denominada de “reprodutivista”, tal abordagem utilizou como arcabouço teórico dos seus
trabalhos as idéias de Marx, Durkheim e Weber e seus estudos têm como ênfase a reprodução dos
valores, do imaginário e das condições sociais do capitalismo no interior dos processos
educacionais Candau (2000), destaca dentre seus principais estudiosos: Pierre Bourdieu e Jean-
Claude Passeron que, a partir da visão de Durkheim, preocuparam-se em analisar o fato de haver,
na sociedade capitalista, a imposição de estilos de relacionamento com os conhecimentos que
visavam à reprodução cultural. Assim, o processo de transmissão do saber nas escolas, segundo
esses autores, gera o que chamam de violência simbólica.
36
A partir dos trabalhos publicados pelos reprodutivistas, a escola passou a ser vista como uma
instituição de reprodução social e de controle simbólico. Essa idéia, bem aceita no meio
acadêmico, tornou Bourdieu e Passeron autores respeitados no campo da Sociologia da
Educação. Nesse sentido, particularmente Bourdieu é considerado o autor que mais contribuiu
para evidenciar as desigualdades sociais nas sociedades contemporâneas.
Destacaram-se, também, nesse período, muitas críticas em relação ao currículo comum, e,
ainda no final dos anos 1970, iniciou-se um novo movimento, conhecido como
multiculturalismo, que ganhou força no início dos anos 1980 e deu ênfase às questões e aos
problemas ligados às disparidades culturais entre as classes sociais.
Segundo Candau (2000), essa corrente de pensamento surgiu a partir de reflexões e questões
no contexto escolar, geradas pelas tensões e pelos conflitos entre as diferentes culturas dos grupos
sociais. Para a autora, as diferenças culturais entre os alunos representam um grande desafio de
cunho cultural e político no meio escolar e tornam cada vez difícil a aceitação de um currículo
comum. Nesse sentido, Forquim destaca:
Desde os anos 80, ela se desloca, entretanto, entre termos relativamente novos,
devido à presença massiva, no território nacional e no interior das escolas, de
populações de origens diversas, cujas atitudes e tradições culturais são
freqüentemente muito diferentes daquelas do país que acolhe, onde passam a
viver. Com o fenômeno do multiculturalismo, a escola e, particularmente, o
ensino secundário encontram-se colocados diante de um desafio, sem
precedente, que provoca um repensar sobre as questões dos conteúdos do
currículo (FORQUIM, 1997, apud CANDAU, 2000, p.30).
Apesar de todos esses conflitos gerados no meio escolar, a partir dos diversos movimentos
sociais, a instituição parece irredutível diante dessas questões. Nesse sentido, Sacristan enfoca o
cotidiano escolar:
A cultura dominante nas salas de aula é a que corresponde à visão de
determinados grupos sociais: nos conteúdos escolares e nos textos aparecem
poucas vezes a cultura popular, as subculturas dos jovens, as contribuições das
mulheres à sociedade, as formas de vida rurais e dos povos desfavorecidos
(exceto os elementos do exotismo), o problema da fome, do desemprego, os
maus tratos, o racismo e xenofobia, as conseqüências do consumismo e muitos
outros que parecem “incômodos”. Consciente e inconscientemente se produz um
37
velamento que nos rodeiam quotidianamente (SACRISTAN, 1995, apud
CANDAU 2000, p. 52).
É provável que a cultura escolar se mantenha “cega” às questões sociais, às discussões e
aos debates dos problemas sociais da realidade social por estar atrelada aos interesses daqueles
que detêm o poder econômico e intelectual do país e assim se desejam manter. Diante disso, a
cultura escolar, incapaz de incorporar as diferentes linguagens e expressões culturais dos alunos
às diversas formas de conhecimento adquiridas fora do ambiente escolar, mantém-se pouco
democrática em relação à aceitação das diversas mudanças socioculturais da sociedade.
Assim Candau explicita o conceito de cultura escolar:
Cultura escolar como um produto singular, uma cultura sui generis, uma versão
particular da cultura é um artefato especial com significado próprio[...]a cultura
estaria configurada com papéis, normas, rotinas e ritos próprios da escola como
instituição específica. (CANDAU, 1999, p. 3-4).
A autora tenta mostrar que a cultura escolar está condicionada à organização da instituição
escolar que, por sua vez, possui uma forma própria de se organizar: segue um modelo instituído
por regras, normas e padrões previamente estabelecidos. Pelo fato de a escola ser uma instituição
que obedece a um padrão, ela tem uma posição autoritária e reluta em aceitar as diferenças
culturais dos alunos.
De acordo com essa autora, Forquim (1997) argumenta que com o surgimento do
multiculturalismo nos anos 1980, iniciou-se uma nova reflexão sobre a questão dos conteúdos do
currículo do ensino. Devemos considerar que esses movimentos ocorridos nas décadas de 70, 80
e 90 do século XX contribuíram para a reflexão sobre ao papel da escola na sociedade e também
sobre os modelos pedagógicos existentes. Essas reflexões indicaram um currículo escolar
excludente, pois não respeita as diferenças culturais dos educandos.
E também destaca o pensamento de Silva:
As recentes transformações na teorização social, sob o impacto dos novos
movimentos sociais, dos estudos culturais, das dúvidas e problematizações
epistemológicas colocadas pelo s-modernismo e pós-estruturalismo, e, de
forma mais geral, das radicais e profundas mudanças sociais em curso, estão
tendo seu efeito também sobre a teorização curricular. Quando formas de
conceber o conhecimento e a cultura entram em crise e são radicalmente
38
questionadas, o currículo não pode deixar de ser atingido (SILVA, 1997, apud
CANDAU, 2000. p.31).
Para esse autor, a questão curricular deve ser repensada no sistema educacional, no qual o
currículo é considerado como uma seleção de conhecimentos a partir de critérios e valores da
classe dominante do sistema e possui um papel predominante na estruturação das desigualdades
sociais. Nesse sentido, o currículo deve ser uma prática que aceite as diversas culturas dos
sujeitos que atuam dentro do ambiente escolar.
Segundo Candau (2000), a questão curricular vem sido discutida desde o final dos anos
1960 até os dias atuais, a partir de uma série de debates. Dentre os temas debatidos, destacamos a
não-neutralidade do currículo; portanto, esse tema tornou-se o pólo principal da tensão, nos
debates entre os setores da direita e da esquerda no campo educacional.
Ali estão presentes duas perspectivas: a perspectiva universalista, que defende a
possibilidade de um currículo comum, e a perspectiva relativista, que possui uma visão oposta à
primeira e defende a idéia da existência de um currículo definido em função das diferenças
culturais. A partir de posições e idéias opostas em relação à questão curricular, essas perspectivas
são denominadas universalismo acrítico e relativismo acrítico.
É relevante lembrar que, nos anos 1980, o fracasso escolar no Brasil conduziu a questão
dos conteúdos escolares à posição de eixo principal das discussões no campo educacional e
político. Esse período foi marcado pela busca de novos caminhos para o campo da educação. Para
Moreira (1990, apud CANDAU, 2000), os pesquisadores do campo da educação procuraram
distanciar-se das influências estrangeiras e seguir um novo caminho nas discussões dos conteúdos
escolares, a partir da realidade brasileira.
Essa idéia gerou duas tendências nessa época: a teoria crítico-social dos conteúdos, em
que se destacaram os nomes de Demerval Saviani, Guiomar Namo de Mello e José Libâneo, e a
educação popular, associada ao nome de Paulo Freire e Moacir Gadotti, entre outros. Nesse
sentido, Moreira (1990, p.174, apud Candau, 2000, p.40) evidencia que: “Assim como os
conteudistas, também os educadores populares procuraram teorizar a partir da realidade
brasileira, propondo programas a serem desenvolvidos com comunidades populares específicas e
práticas pedagógicas alternativas”.
39
Segundo Candau (2000), essas correntes contribuíram para despertar o interesse pela
pesquisa no campo educacional do Brasil nos anos 1970, abrindo novos caminhos para a reflexão
que tinha como foco a instituição escolar. Nessa época, a escola passava por um momento de
crise marcado pelos altos índices de reprovação provocados pelo fracasso escolar e passou a ser
vista como um espaço caracterizado por conflitos, confrontos, relações de poder, mas também
representava uma instituição social com grande poder de transformação da sociedade.
Essas duas teorias, apesar de possuírem visões opostas, possuem um fator em comum:
ambas procuravam levantar questões do cotidiano escolar dentro da realidade brasileira. Nesse
sentido, Moreira(1990, p. 164 apud CANDAU,2000 p. 42) afirma que: “Embora haja
concordância quanto à importância da defesa da escola para as camadas populares, há profundas
discordâncias em relação ao currículo dessa mesma escola”.
Para Candau (2000), na década de 1980, essas tendências travaram debates entre si, pois
cada tendência possuía um olhar próprio quanto à instituição escolar e o currículo. A teoria
crítico-social dos conteúdos tinha como preocupação a transmissão destes, defendia um currículo
comum e estava associada às perspectivas universalistas. Já a educação popular defendia a
necessidade de respeitar a cultura do aluno, de modo que se preocupava com a conscientização
política das classes populares e se inscrevia nas perspectivas mais relativistas. A discordância
entre as correntes estava relacionada à importância atribuída aos conteúdos pela escola e à visão
por esta assumida.
Segundo essa autora, a corrente liderada por Demerval Saviani defendia o resgate dos
conteúdos escolares, ou seja, a valorização da cultura escolar legitimada pelas classes
dominantes. Neste caso, a escola tem como principal objetivo transmitir conteúdos comuns a
todos, independentemente das diferenças sociais e culturais dos educandos e ao aluno das classes
menos favorecidas é dada a oportunidade de preparar-se, por meio do acesso escolar, para
combater as injustiças sociais que a sociedade lhe impõe.
a educação popular, segundo Candau (2000), defendia a valorização do universo cultural
do aluno e estava menos preocupada com os conteúdos escolares: a escola representa uma
instituição aberta aos educandos das classes populares, permitindo o desenvolvimento de um
conhecimento capaz de fortalecer o seu poder de resistência e de luta contra a estrutura social que
os exclui.
40
É importante a crítica feita por esta segunda corrente ao saber escolar alicerçado na cultura
estabelecida pela elite intelectual, um saber culto legitimado pela cultura dominante.Dessa forma,
esse grupo de estudiosos contestava essa estrutura escolar excludente e defendia a mudança do
modelo escolar predominante, conforme podemos comprovar pela seguinte citação de Paulo
Freire
5
:
Como, porém, aprende a discutir e a debater numa escola que nos habitua a
discutir, porque impõe? Ditamos idéias. Não trocamos idéias. Discursamos
aulas. Não discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos
com ele. Impomo-lhe uma ordem a que ele não se ajusta concordante ou
discordantemente, mas se acomoda. Não lhe ensinamos a pensar, porque
recebendo fórmulas que lhe damos, simplesmente as “guarda”. Não as
incorpora, porque a incorporação é o resultado da busca de algo que exige, de
quem o tenta, o esforço da realização e de procura. Exige reinvenção.
(
FREIRE, Educação e atualidade brasileira, 2003)
O pensamento de Freire contribuiu para uma nova reflexão sobre o cotidiano escolar no
campo educacional, colocando em foco as limitações das teorias fundamentadas na psicologia e
na sociologia, que pretendiam explicar as inúmeras relações e os fatos que caracterizam o
cotidiano escolar. Essa idéia fez nascer um novo olhar em relação ao conhecimento adquirido
pelo educando no seu cotidiano, ou seja, promoveu uma valorização da cultura do aluno.
Diante disso, entendemos que o educando possui um conhecimento não escolar adquirido
no seu dia-a-dia e a escola subestima esse conhecimento, pois o modelo escolar valoriza a sua
própria cultura e exclui a cultura do aluno, gerando uma situação conflituosa entre escola e aluno.
O conflito na relação escola–aluno tem gerado inúmeros problemas de indisciplina, de
aprendizagem e nas relações interpessoais, causando desconforto e inquietação nos atores sociais
do contexto escolar. Essa problemática no ambiente escolar levou a diversas investigações no
campo da educação, com o objetivo de buscar respostas e soluções para os problemas que
permeiam o cotidiano escolar.
Outro ponto que tem sido discutido se refere à questão do cotidiano não escolar do aluno e
suas práticas sociais, que compõem as linhas de investigação do campo educacional, em
particular da Educação de Jovens e Adultos.
5
FREIRE, Paulo. Prefácio. In: ROMÃO, José Eustáquio (org.). Educação & Atualidade Brasileira.São Paulo:
Editora Cortez e Instituto Paulo Freire, 2003
.
41
A Educação Matemática, preocupada com as questões educacionais na disciplina da
matemática, aponta que, no ambiente escolar nos anos 1960, os altos índices de repetência foram
gerados pelo ensino tradicional de matemática, um dos maiores responsáveis pelo grande número
de reprovação escolar.
O ensino, nessa época, estava apoiado nas idéias da Matemática Moderna, teoria que
valorizava a linguagem formal da matemática, as aplicações e as técnicas para o entendimento do
conteúdo da matemática pura e acadêmica. Conseqüentemente, esse modelo acarretou um alto
índice de reprovação na disciplina e, por sua vez, o descontentamento dos educadores e
matemáticos, que passaram a discutir, a refletir e a realizar pesquisas sobre as possíveis causas do
fracasso no ensino da matemática.
A preocupação com estas questões no campo da Educação Matemática gerou um novo
campo de pesquisa, associado a um novo olhar para o ensino da matemática e para o papel da
escola. Desse modo, envolvida desde o seu início com as relações de conhecimento e cultura,
surgiu a Etnomatemática.
2.6 Etnomatemática: uma abordagem de dimensão política e antropológica
Neste item pretendemos discutir o aporte teórico fundamental para a realização desta
pesquisa, a Etnomatemática; essa abordagem teórica sustentação a este trabalho e, conforme
citamos anteriormente, permitiu-nos não um novo olhar para a prática docente da
pesquisadora, para os alunos da EJA, mas também uma reflexão sobre a questão curricular.
Conforme apontado na introdução, a partir da Etnomatemática pudemos perceber que o
currículo escolar não atendia às necessidades dos alunos e que estes, ao retornarem aos bancos
escolares, sentiam-se “assustados” com as fórmulas complicadas” da matemática escolar no
ensino médio e, diante de tanta dificuldade, muitos desanimavam e abandonavam a escola.
Era muito comum, dentro da sala de aula, ouvir comentários dos alunos, em que muitos, na
forma de desabafo, diziam: Nossa, professora, como é difícil.; Mas essa matemática é
complicada, parece um “bicho de sete cabeças”... ; Professora, o que eu faço com esse número e
a letra x?...; ou ainda: Onde eu vou usar toda essa matemática?
42
Outros guardavam a frustração para si, mas muitos demonstravam em seu olhar um
sentimento de tristeza, talvez pela sensação de incompetência para compreender a matemática
escolar. Isso, de certa forma, sempre inquietou a pesquisadora, pois todos esses alunos ali
estavam para recuperar o tempo perdido e, por algum motivo em suas vidas, não puderam
concluir os seus estudos. Desse modo, a Etnomatemática, durante o mestrado, permitiu que a
pesquisadora compreendesse todas essas questões.
De acordo com a bibliografia consultada, os primeiros estudos etnomatemáticos estavam
ligados à investigação de uma matemática presente nos contextos culturais diferentes do contexto
escolar, ou seja, nas práticas sociais dos grupos estudados. Essa idéia surgiu a partir das teorias de
Ubiratan D’ Ambrosio, que idealizou o termo Etnomatemática e esclarece:
A etnomatemática não é apenas o estudo de matemáticas das diversas
etnias”.[...] para compor a palavra etno, matemática utilizei as raízes tica,
matema e etno para significar que há várias maneiras, técnicas, habilidades
(ticas) de explicar de entender, de lidar e de conviver (matema) com distintos
contextos naturais e socioeconômicos da realidade (etnos).(AMBROSIO
, 2001,
p. 70)
Segundo o autor, uma das principais preocupações da Etnomatemática como linha de
investigação é a função de resgatar, reconhecer e valorizar as raízes culturais dos grupos sociais
que ocupam uma posição inferior na sociedade e são, de certa forma, marginalizados no contexto
social: os favelados, os sem-terra, os sem-teto, os índios, enfim, todos os grupos em desvantagem
no meio social e que, por isso, estão fora do sistema escolar. Assim, lembra D’ Ambrosio:
A etnomatemática
se encaixa nessa reflexão sobre a descolonização e na procura
de reais possibilidades de acesso para o subordinado, para o marginalizado e
para o excluído. A estratégia mais promissora para a educação, nas sociedades
que estão em transição da subordinação para a autonomia, é restaurar a
dignidade de seus indivíduos, reconhecendo e respeitando suas raízes.
Reconhecer e respeitar as raízes de um indivíduo não significa ignorar e rejeitar
as raízes do outro, mas, num processo de síntese, reforçar suas próprias raízes.
Essa é, no meu pensar, a vertente mais importante da etnomatemática.
(AMBROSIO, 2001, p. 42).
43
A Etnomatemática tem como objetivo valorizar as diferentes práticas dos diversos grupos
sociais, cuja não-valorização no contexto escolar determina a exclusão dos alunos que a eles
pertencem. Segundo Monteiro (2001), essa linha de investigação tem como aspiração que a
escola, a partir de um novo olhar e da aceitação das práticas sociais, seja um espaço aberto ao
diálogo baseado no respeito às idéias, às diferenças culturais e às práticas sociais dos diversos
grupos.
Essa abordagem qualitativa está alicerçada nas idéias de diversos pensadores e educadores,
com grande influência no Brasil de Paulo Freire, um defensor da aprendizagem dialógica.Essa
proposta, por romper com o discurso imposto pelo modelo escolar tradicional, é capaz de
transformar as relações entre as pessoas e seu meio, ao defender a idéia de que a educação e a
aprendizagem devem ser direcionadas para a mudança.
Entretanto, a Etnomatemática possui características próprias ligadas às questões
antropológicas. Knijnik (1996) defende que a Etnomatemática tem como um dos objetivos
respeitar as culturas dos diferentes grupos sociais e, se possível, incorporar esses conhecimentos
do cotidiano no currículo escolar. Nesse sentido, devemos destacar o pensamento de Monteiro &
Pompeu Jr. (2001, p.66), em relação à Etnomatemática:
[...] mais como uma postura a ser adotada do que um método propriamente dito,
isto é, numa perspectiva pedagógica, tal como proposta traz à luz alguns
princípios básicos de uma proposta educacional voltada para a humanização,
para a esperança de um mundo mais fraterno.Tais princípios são: o respeito, a
solidariedade e a cooperação.
Essas idéias levam-nos a refletir sobre a Etnomatemática como proposta educativa e
procuram fazer uma ligação harmoniosa entre os conhecimentos escolar e do cotidiano,
alicerçada numa aprendizagem aberta ao diálogo e ao respeito, que garanta aos educandos a
aquisição das habilidades do saber escolar em suas práticas e que lhes possibilite transformar-se
em sujeitos pensantes, atuantes no meio social.
Segundo D’ Ambrosio (2001), a Etnomatemática é uma subárea da História da Matemática
e da Educação Matemática, mas também está relacionada com a Antropologia e as Ciências da
Cognição e possui um indiscutível foco político. Ele também considera a Etnomatemática uma
matemática praticada por grupos culturais pertencentes tanto à zona urbana como à zona rural,
44
grupos de trabalhadores das mais diversas classes profissionais, crianças de certa faixa etária,
grupos indígenas e outros grupos sociais.
Dessa forma, a Etnomatemática possui um caráter político e também antropológico e está
alicerçada na ética, no respeito ao indivíduo e à cultura, aos costumes, às tradições e às práticas
matemáticas do cotidiano dos grupos sociais, valorizando a sua história, construída ao longo das
gerações, independentemente de raça, cor, língua, nacionalidade ou status.
Para os estudiosos da Etnomatemática e também para outros autores do Campo das
Ciências Sociais e da Sociologia da Educação, o conhecimento escolar desvaloriza o
conhecimento adquirido pelo indivíduo a partir das suas práticas cotidianas; diante disso, a
dignidade e o respeito humano são violentados pela exclusão social.
Segundo D Ambrosio (2001), a Etnomatemática vem intensificando os seus estudos há
mais de quinze anos, desde que foi fundado o International Study Group of
Ethomathemics/ISGEm, um grupo de estudos da Etnomatemática espalhado pelo mundo inteiro.
Em congressos nacionais e internacionais, têm sido apresentados inúmeros trabalhos de pesquisas
da Etnomatemática realizados nos quatro cantos do mundo.
A preocupação da Etnomatemática em estudar os diversos grupos sociais e suas respectivas
culturas compreende abordar as questões relacionadas ao saber e ao fazer do cotidiano desses
grupos que, a partir de suas práticas, produzem a sua própria matemática. Dessa forma, podemos
considerar a existência de diversas matemáticas relacionadas às práticas cotidianas. Assim,
podemos dizer que existe a matemática do sapateiro, a do marceneiro e a do cozinheiro, além das
de outros profissionais que utilizam uma matemática própria e específica de acordo com as suas
práticas. D’ Ambrosio (2001) destaca que o grande motivador desse programa de pesquisa é
procurar entender o saber/fazer matemático ao longo história da nossa civilização. Desse modo,
esse saber/fazer está presente nas práticas dos diferentes grupos sociais, comunidades, povos e
nações.
Outro aspecto relevante apontado por D’ Ambrosio(2001) é que existe distintas maneiras
de fazer(práticas) e de saber(teorias), que caracterizam a cultura de um determinado grupo. Para o
autor, os indivíduos de um grupo social compartilham seus conhecimentos, tais como linguagem,
ritos, mito, costumes e culinária, e têm seus comportamentos compatibilizados e subordinados
aos valores culturais do grupo.
45
Para D’ Ambrosio (2001), assim como comportamento e conhecimento, as maneiras de
saber e fazer estão em permanente interação. São falsas as dicotomias entre saber e fazer, assim
como teoria e prática. Nesse sentido, entendemos que saber e fazer se complementam, ou seja,
que ao fazer adquirimos conhecimento (saber).
Para esse autor, dentre as diversas maneiras de fazer e de saber, algumas previlegiam,
comparar, classificar, quantificar, medir, explicar, generalizar, inferir e, de algum modo, avaliar.
Segundo ele, o nosso cotidiano está impregnado dos saberes e fazeres próprios da cultura. Dessa
forma, compreendemos que o saber/fazer matemático está presente nas diferentes práticas dos
grupos sociais.
Com relação à prática da culinária, por exemplo, as cozinheiras utilizam a matemática para
medir os ingredientes de uma receita. Elas usam, para as medidas do grama e do litro, como
instrumentos de medida: o copo americano, a xícara de cae de chá e as colheres de diversos
tamanhos, possivelmente para facilitar o manuseio dos utensílios de cozinha. Também a balança
é utilizada pelos profissionais da cozinha, para vender os seus produtos por quilo ou por receita,
como é o caso do bolo, das balas de coco, dos docinhos de aniversário. Para a venda dos
salgadinhos, como a coxinha, a bolinha de queijo, os risoles, entre outros, utilizam o cento. . A
utilização dos utensílios de cozinha como instrumentos de medida também está presente nos
livros de receitas, nas revistas especializadas em culinária e nos sites de Internet.
Vários estudos sobre a etnomatemática do cotidiano, segundo D’Ambrosio (2001), nos
diversos ambientes fora do contexto escolar, como no lar, no trabalho e no lazer foram realizados
por diversos pesquisadores etnomatemáticos do mundo inteiro; entre eles destacam-se: a pesquisa
sobre as práticas matemáticas dos feirantes, realizada por Terezinha Nunes; a investigação que
David Carraher e Ana Lúcia Schliemann fizeram com crianças que moram no Recife e ajudam os
pais na feira livre, adquirindo uma prática aritmética para lidar com dinheiro, para fazer troco e
dar descontos, sem levar prejuízo.
Além desses, ainda a pesquisa de Gelsa Knijnik com o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra no Rio Grande do Sul, que tem como foco a formação de professores para os
projetos de educação de adultos do MST (Movimento dos Sem-Terra) e a tese de doutorado de
Alexandrina Monteiro, outra importante pesquisa com essa abordagem: apresenta uma
investigação com os trabalhadores rurais de um assentamento do interior do Estado de São Paulo,
46
tendo como foco as práticas cotidianas envolvendo conceitos matemáticos das medidas de área e
de volume.
Outro trabalho etnomatemático é a tese de doutorado de Maria Cecília de Castello Branco
Fantinato, que realizou sua pesquisa etnográfica na favela do Morro de São Carlos, na cidade do
Rio de Janeiro: a pesquisadora acompanhou a rotina local de um curso de educação de jovens e
adultos, assim como os aspectos da vida diária dos educandos e da vida comunitária na favela.
Seu objetivo era compreender as relações entre os conhecimentos matemáticos de jovens e
adultos em diferentes contextos de vida e os conhecimentos escolares, no momento de retorno
desses alunos ao ensino fundamental.
D’ Ambrosio (2001) também destaca importantes trabalhos de pesquisa, realizados em
outros países, cujo objeto é o reconhecimento de práticas matemáticas no cotidiano, como, por
exemplo: Maria Luisa Oliveras trabalhou com os artesãos em Granada, na Espanha; na África, o
Paulo Gerdes, em Moçambique, enfocou os trabalhos de cestaria, tecidos e jogos tradicionais;
Samuel López Bello trabalhou com os professores de tradição quéchua na Bolívia; um trabalho
de pesquisa, abrangendo os produtos encontrados em supermercados, foi desenvolvido na Itália
por Cíntia Bonotto.
Após as discussões realizadas acima, podemos enfatizar que, dentre as tendências
abordadas nas perspectivas de diversos autores, a concepção da educação popular de Paulo Freire
e a Etnomatemática representam a base da fundamentação teórica desse trabalho. A educação
popular de Paulo Freire defende a valorização da cultura do aluno, ou seja, a cultura adquirida na
sua própria experiência de vida. Eis o que Freire (1998:85-86, apud Saul, 2004, p.64) afirma:
não podemos deixar de lado, desprezando como algo imprestável o que os
educandos, sejam crianças, chegando à escola, ou jovens e adultos a centros de
educação popular, trazem consigo de compreensão do mundo nas mais variadas
dimensões de sua prática social de que fazem parte. Sua fala, sua forma de
contar, de calcular, seus saberes em torno do chamado outro mundo, sua
religiosidade, seus saberes em torno da saúde, do corpo, da sexualidade, da vida,
da morte, da força dos santos, dos conjuros.
De acordo com a bibliografia consultada, Freire faz duras críticas ao saber escolar, pois
esses saberes entram em choque com as aspirações, com os desejos e com a cultura da maioria
dos educandos e propiciam condições para que estes se sintam culpados pelo próprio fracasso.
47
Ele tem como proposta a dialogicidade
6
; dessa forma, permite fundamentar ações direcionadas à
prática pedagógica e à criação de estratégias de ensino capazes de despertar o senso crítico, ético
e a criatividade do aluno.
Conforme Freire explicitou: “é possível ouvir os alunos falarem como compreender seu
mundo, caminhar junto com eles no sentido de uma compreensão crítica e científica dele” (1983,
p.101, apud SAUL, 2004, p.67). E logo em seguida, Freire argumenta: “a partir de sua descrição
sobre suas experiências da vida diária, da sua realidade concreta, do senso comum para chegar à
compreensão rigorosa da realidade”.( ibid.p.131, apud SAUL, 2004, p.67).
Freire ressalta que a participação do aluno no processo ensino-aprendizagem no ambiente
escolar, através do diálogo e do respeito à relação aluno-escola favorece a aprendizagem. Dessa
forma, esse caminho propõe uma nova posição quanto ao papel da escola, uma vez que exige
uma mudança nas relações de poder no interior desta. Acreditamos nessa proposta, porque
representa uma das soluções para amenizar os conflitos que permeiam o ambiente escolar.
A Etnomatemática veio como concepção teórica condizente com este projeto de pesquisa,
justamente porque vem ao encontro das aspirações e ideais da pesquisadora, como educadora.
É importante esclarecer que os alunos da Educação de Jovens e Adultos representam
aqueles que, por diversos motivos e situações de suas vidas, foram obrigados a abandonar a
escola na sua infância ou na adolescência, ou seja, foram excluídos do sistema escolar. Outra
característica desse grupo de alunos é sua grande dificuldade em assimilar o conteúdo de
matemática, apresentando baixo rendimento escolar na disciplina, o que parece ser explicado pelo
fato de o currículo escolar no ensino da matemática legitimar a matemática acadêmica e não
valorizar o conhecimento matemático do aluno.
Esse fato parece indicar que o ensino da matemática pode ser considerado um dos motivos
da reprovação e da evasão escolar dos alunos da Educação de Jovens e Adultos, assunto que se
abordado no próximo item.
6
Conceito de diálogo na pedagogia de Paulo Freire.
48
2.7 O currículo do ensino da matemática, na perspectiva da Etnomatemática
De acordo a bibliografia consultada, olhar para o currículo da EJA, na perspectiva da elite
dominante, revela aquela educação voltada para as atividades educativas de forma a
compensar a escolarização perdida com o passar do tempo — e ligada a um currículo conteudista
e tecnicista. Entretanto, essa visão de currículo sempre esteve presente ao longo da história e
ainda continua presente e atuante dentro do contexto escolar.
Devemos destacar os trabalhos de Paulo Freire, em Pernambuco, e de Moacir Góes, no Rio
Grande do Norte, os quais desenvolveram um trabalho de alfabetização com adultos de forma
diferenciada e inovadora, se comparado com os das escolas regulares. As propostas pedagógicas
desses educadores bem diferentes das propostas curriculares então conhecidas no contexto
escolar valorizavam o saber das práticas cotidianas do adulto. Diante do sucesso da sua
proposta pedagógica, Paulo Freire foi convidado para trabalhar com o presidente João Goulart e
propôs um Plano Nacional de Alfabetização, mas, com o golpe militar de 1964, sua proposta foi
esquecida.
Durante o regime militar, até 1985, as reformas educacionais realizaram poucas mudanças
nos programas de alfabetização de adultos e não obtiveram um resultado significativo.
Instituídos em 1999, os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) representam uma
proposta curricular do governo federal que tem como objetivos: difundir os princípios da reforma
curricular e orientar o professor em busca de novas metodologias. Essa proposta indica um novo
caminho a ser seguido, mas ainda muito a ser feito para solucionar as tensões e conflitos que
norteiam o ambiente escolar. Um desses problemas assim se define: os PCNs tratam o
conhecimento não escolar, ou seja, o conhecimento do aluno adquirido fora do contexto escolar
apenas como conhecimento prévio, e não como um conhecimento válido, que pode contribuir no
processo de aprendizagem da escola.
Com relação à Educação de Jovens e Adultos, consideramos que a estrutura escolar e o
currículo do ensino da matemática são impostos pelo sistema de ensino vigente e, desse modo,
devem ser repensados. O aluno da Educação de Jovens e Adultos, como vimos afirmando, é um
excluído do sistema regular de ensino e, segundo observamos, a disciplina de matemática é uma
das responsáveis pela exclusão. Nesse sentido, Ferreira (1993:13) ressalta: “Sem dúvida, é a
49
matemática a disciplina que é mais chamada na hora de arbitrar para a cidadania. É ela quem
mais reprova e portanto é a grande responsável pela exclusão da maioria da população de
participar da cidadania.”
Para o autor, a matemática tradicional contribui para a exclusão escolar, pois está atrelada
ao conhecimento matemático acadêmico e ao saber intelectual. Desse modo, não legitima o
conhecimento matemático do aluno, adquirido a partir de suas práticas sociais. Devemos
repensar essa questão como meta da Educação de Jovens e Adultos, para garantir que os alunos
não sejam excluídos novamente do sistema escolar.
As discussões e as questões que permeiam o campo acadêmico da Educação Matemática,
na perspectiva do campo da Etnomatemática, em relação à Educação de Jovens e Adultos nos
levam não somente a pensar um novo olhar para o ensino e para a questão do currículo escolar,
mas também a entender o jovem e o adulto como indivíduos que retornam aos bancos escolares
para tentar resgatar a sua cidadania.
Nesse sentido, a Etnomatemática tem como proposta pedagógica o resgate da cultura e dos
conhecimentos adquiridos pelo aluno em suas práticas sociais e, conseqüentemente, sugere uma
possível articulação entre os saberes escolares e os saberes do cotidiano.
Segundo D’Ambrosio (2001), uma boa educação não será avaliada pelo conteúdo ensinado
pelo professor e aprendido pelo aluno, pois na perspectiva da Etnomatemática a escola não deve
estar apenas presa ao currículo e às disciplinas escolares. Para ele, o paradigma educacional
“ensino-aprendizagem” verificado através de avaliações é insustentável. Desse modo, também, o
autor defende uma educação capaz de possibilitar ao aluno a aquisição e a utilização dos
instrumentos comunicativos, analíticos e os materiais essenciais para o exercício da cidadania.
Para esse autor, a construção da cidadania do educando no sentido de focalizar a
organização de conhecimentos e comportamentos propõe três termos, denominados trivium, a
partir dos conceitos de literacia, materacia e tecnoracia, e dessa forma acredita que essa nova
conceituação de currículo possa responder às exigências do mundo moderno. Segundo D’
Ambrosio (2001):
50
LITERACIA: a capacidade de processar informação escrita e falada, e, inclui
leitura, escritura, cálculo, diálogo, ecálogo, mídia, internet, na vida quotidiana
[instrumentos comunicativos].
MATERACIA: a capacidade de interpretar e analisar sinais e códigos, de propor
e utilizar modelos e simulações de vida cotidiana, de elaborar, abstrações sobre
representações do real [instrumentos analíticos].
TECNORACIA: a capacidade de usar e combinar instrumentos, simples ou
complexos, inclusive o próprio corpo, avaliando as suas limitações e a sua
adequação a necessidades e situações diversas [instrumentos materiais]. (p. 66-
67)
Para o autor, a proposta é organizar o currículo nas três vertentes acima citadas. Desse
modo, ele defende a mudança do currículo escolar: de conteudista e tecnicista presente no
contexto educacional para articulador das práticas educacionais, dos conteúdos escolares e dos
critérios de avaliações. Assim, a questão curricular precisa ser revista, pois a instituição escolar
vive um momento de crise calcada numa relação conflituosa, envolvendo aspectos sociais e
culturais entre os atores do contexto.
O respeito à cultura do aluno da EJA e ao conhecimento por ele adquirido no seu
cotidiano representa um dos fatores fundamentais para a diminuição dos conflitos gerados no
meio escolar e para solucionar o problema da exclusão e da evasão escolar. A valorização do
educando na escola somente será possível se modificarmos o currículo escolar vigente, pois este
está alicerçado na transmissão de um saber pronto e acabado e de um conhecimento formal
desvinculado da realidade do aluno, que contribuem para a manutenção da dominação
econômica e político-ideológica na sociedade.
Este é o grande desafio para todos nós, educadores e pesquisadores do campo educacional.
Dessa forma, devemos concordar com Candau (2000), que tem como proposta a reinvenção da
escola. Segundo essa autora, a escola deve ser um espaço de busca, de construção, de diálogo e
de confronto; de prazer, de desafio; de conquista de espaço, de descoberta de diferentes
possibilidades de expressão, de aventura; de organização cidadã, de afirmação da dimensão ética
e política de todo processo educativo. E ainda acrescenta a importância da cidadania
concebida como uma prática social cotidiana no meio escolar como eixo central no contexto
escolar.
Até o momento, fizemos uma retrospectiva sobre as transformações sociais movidas pelo
processo de globalização e modernização dos meios de produção, que vieram contribuir para uma
significativa mudança na estrutura da sociedade, afetando o modo de vida das pessoas, os valores
51
culturais em todos os seus segmentos do meio social. Dentre esses segmentos, fizemos um
recorte no campo educacional, destacando a sua crise, que vem permeando o sistema escolar
várias décadas e vem sendo discutida em diversas tendências e correntes do meio acadêmico no
campo da Sociologia da Educação e da Educação.
Por fim, os conflitos e problemas educacionais presentes na escola estão relacionados ao
currículo, às práticas pedagógicas e aos critérios de avaliação, entre outros. Pretendemos nos
próximos capítulos, aprofundar nossas discussões sobre a matemática trabalhada nos cursos de da
EJA, bem como a estrutura da mesma especialmente no que se refere à questão do jovem e do
adulto e da matemática produzida por alguns alunos e alunas na prática social da culinária para a
partir disso retomar a nossa discussão curricular.
52
3. QUEM SÃO OS JOVENS E OS ADULTOS NA EJA?
Este novo panorama, pouco a pouco, foi modificando o ambiente escolar,
exigindo dos professores uma nova postura e um jeito novo de conviver com
estes alunos, cada dia mais jovens.
Carmem Brumel
3.1 Algumas ponderações iniciais
O Programa da Educação dos Jovens e Adultos no Brasil vem atendendo uma clientela
cada vez mais heterogênea, cujo perfil vem mudando em relação à idade, às expectativas e ao
comportamento. O jovem e o adulto da EJA são aqueles que foram excluídos do sistema regular
de ensino por diversas razões como: a impossibilidade de acesso à escolarização, a exclusão do
próprio sistema educacional ou a necessidade de trabalhar.
Os educandos da EJA, de um modo geral, trabalham e atuam como profissionais de
diversas áreas; outros esperam ingressar no mercado de trabalho; outros ainda pretendem receber
a certificação para manter o seu emprego, cursar uma faculdade, ou conseguir uma melhor
colocação no mercado de trabalho.
Desse modo, quando esses educandos retornam aos bancos escolares, trazem consigo
muitos conhecimentos e saberes adquiridos fora do contexto escolar, os quais, embora muitas
vezes não valorizados pela escola, são “saberes nascidos dos seus fazeres”, ou seja, são
conhecimentos adquiridos a partir das suas práticas diárias, seja no trabalho ou em casa, mas não
reconhecidos pelas práticas escolares como formas de conhecimento.
Assim, cabe-nos perguntar: Quem são os jovens e os adultos da EJA? Numa sala de aula
da EJA encontramos jovens e adultos dentro do contexto escolar com concepções diferentes, mas
com o mesmo objetivo; concluir os seus estudos. De um lado, temos o adulto advindo de diversas
cidades e estados do País, portanto, de origens culturais variadas e de várias idades; possuem
valores, crenças e religiões diferenciadas; atuam em diferentes profissões e apresentam diversas
condições físicas e socioeconômicas, mas todos eles têm algo em comum: diversos fatores de
ordem social e econômica os impediram de prosseguir os seus estudos.
53
E os jovens quem são? Esses jovens, na sua grande maioria advindos do ensino regular,
após sucessivas reprovações, abandonam os seus estudos e matriculam-se na EJA para terminar
os seus estudos. Apesar de todas as dificuldades e desafios, esses jovens buscam o seu espaço
dentro do contexto escolar. Assim como os adultos, os jovens desejam ter vez e voz dentro do
ambiente escolar e, dessa forma, concluir o Ensino Médio, fazer suas escolhas; enfim, ter
garantias de um futuro promissor.
Neste capítulo, inicialmente pretendemos fazer um breve relato histórico sobre a EJA e,
posteriormente, enfocar a questão do jovem e do adulto na Educação de Jovens e Adultos.
3.2 Um breve relato histórico da EJA, as Conferências Internacionais, as
parcerias entre a sociedade civil e o Estado e os fóruns educacionais no Brasil
Pretendemos, nesta parte do trabalho, enfocar a Educação de Jovens e Adultos na
contemporaneidade, uma vez que ela vive um momento cheio de desafios e objetivos a serem
alcançados e vem sido discutida por diversos profissionais da educação.
Ao longo da história, percebemos que a educação no Brasil passou por diversas reformas,
todas elas justificadas pela intenção de adequar os currículos às diversas mudanças sociais e
políticas. Paiva (2004) argumenta que o uso político da educação no processo histórico do País
serviu apenas para atender os privilégios das classes dominantes: o voto do analfabeto, sem
direito a ler e escrever sugere a forma como a educação vem sendo usada para fins eleitoreiros.
Vale salientar que, nas últimas décadas, a educação passou por reformas impulsionadas
pelas mudanças no cenário nacional, devido ao processo de democratização e modernização no
País. Na década de 70 do século passado, a Educação de Adultos foi incluída na LDB (Lei de
Diretrizes e Bases), que regulamenta o sistema educacional brasileiro. Aprovada em 11 de agosto
de 1971, a Lei de Diretrizes e Bases 5.692/71
7
regulamentou o ensino de Primeiro e Segundo
Graus. Além disso, ampliou a obrigatoriedade escolar de quatro para oito anos, agrupou o antigo
7
Disponível em: (<www.pedagogiaemfoco.com.br>). Acesso em: 05/06/2007.
54
Primário com o Ginasial e eliminou o exame de admissão. Criou a escola única profissionalizante
e veio a ser a primeira legislação a abranger a educação de adultos no País. O capítulo IV dessa
lei aborda a educação de adultos, que passou a ser denominada Ensino Supletivo. Dentre os
artigos e parágrafos desse capítulo, destacamos o artigo 24, que fala dos objetivos:
(a) suprir a escolarização regular para os adolescentes e adultos que não a
tenham seguido ou concluídos na idade própria;
(b) proporcionar, mediante repetida volta à escola, estudos de aperfeiçoamento
ou atualização para os que tenham seguido o ensino regular no todo ou em
parte.
Parágrafo único – O ensino supletivo abrangerá cursos e exames a serem
organizados nos vários sistemas de acordo com as normas baixadas pelos
respectivos Conselhos de Educação.
De acordo com essa Lei
8
, a idade mínima para freqüentar os cursos supletivos obedece
aos seguintes critérios: 14 anos para o ensino do Primeiro Grau equivalente atualmente ao Ensino
Fundamental) e de 18 a 21 anos para o ensino do Segundo Grau (atualmente Ensino Médio).
Artigo 25: O ensino supletivo abrangerá, conforme as necessidades a atender,
desde a iniciação no ensino de ler, escrever e contar e a formação profissional
definida em lei específica, até o estudo intensivo de disciplinas do ensino
regular e a atualização de conhecimentos;
§ - Os cursos supletivos terão estruturas, duração e regime escolar que se
ajustem às suas finalidades próprias e ao tipo especial de aluno a que se
destinam.
§ - Os cursos supletivos serão ministrados em classes ou mediante a
utilização de rádio, televisão, correspondência e outros meios de comunicação
que permitam alcançar o maior número de alunos.
Artigo26: Os exames supletivos compreenderão a parte do currículo resultante
do núcleo-comum, fixado pelo Conselho Federal de Educação, habilitando ao
prosseguimento de estudos em caráter regular, e poderão, quando realizados
para o exclusivo efeito de habilitação profissional de 2º Grau, abranger somente
o mínimo estabelecido pelo mesmo Conselho.
§ - Os exames a que se refere este artigo deverão realizar-se: Ao nível de
conclusão do ensino de Grau, para os maiores de 18 anos; - ao nível de
conclusão do ensino de 2º Grau, para os maiores de 21 anos;
§ - Os exames supletivos ficarão a cargo de estabelecimentos oficiais ou
reconhecidos, indicados nos vários sistemas, anualmente, pelos respectivos
Conselhos de Educação.
§ 3º - Os exames supletivos poderão ser unificados na jurisdição de todo um
sistema de ensino, ou parte deste, de acordo com normas especiais baixadas
8
Lei de Diretrizes e Bases 5.692/71
55
pelo respectivo Conselho de Educação.
Artigo. 27: Desenvolver-se-ão, ao nível de uma ou mais das quatro últimas
séries do ensino de 1º grau, cursos de aprendizagem, ministrados a alunos de 14
a 18 anos, em complementação da escolarização regular, e, a esse nível ou ao
de 2º grau, cursos intensivos de qualificação profissional.
Parágrafo único. Os cursos de aprendizagem e os de qualificação darão direito a
prosseguimento de estudos quando incluírem disciplinas, áreas de estudo e
atividades que os tornem equivalentes ao ensino regular, conforme estabeleçam
as normas dos vários sistemas.
Artigo 28. Os certificados de aprovação em exames supletivos e os relativos à
conclusão de cursos de aprendizagem e qualificação serão expedidos pelas
instituições que os mantenham.
Outro aspecto importante da Lei 5.692/71 refere-se à autonomia dos Conselhos
Estaduais de Educação para regulamentar o tipo de oferta de cursos supletivos nos respectivos
Estados. Nesse sentido, a maior flexibilidade permite ao ensino supletivo ajustar-se de acordo
com a realidade escolar e também adequar-se às transformações nos aspectos sociais e
econômicos que ocorriam no Brasil e no mundo. Vale ressaltar ainda que o capítulo V dessa Lei
trata dos professores e especialistas e o artigo 32 trata da formação específica do professor para o
Ensino Supletivo: “Artigo 32: O pessoal docente do ensino supletivo terá preparo adequado às
características especiais desse tipo de ensino, de acordo com as normas estabelecidas pelos
Conselhos de Educação”.
É importante destacar, também, que em 1972 o Ministério da Educação e Cultura, através
do parecer 699/72, instituiu um grupo de trabalho para definir a política do ensino supletivo, de
forma para adequar a realidade escolar às transformações sociais e econômicas que o País
enfrentava. Desse modo, o ensino supletivo passou a ser organizado de forma centralizada pelos
governos estaduais e regulamentado pelos respectivos Conselhos de Educação. A LDB de 1971
permitiu maior flexibilidade e autonomia aos Conselhos Estaduais de Educação para ajustarem o
tipo de oferta de cursos supletivos nos respectivos Estados à realidade e às necessidades da
clientela escolar, o que significou um grande avanço para a educação brasileira.
Nas décadas de 80 e 90 do século passado, segundo Paiva (2004), o Brasil assumiu
acordos firmados em conferências internacionais. Desse modo, a partir da Constituição de 1988 e
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96), ocorreram várias mudanças
no âmbito educacional, com o objetivo de atender às exigências das novas construções da
realidade brasileira.
56
O autor destaca, no cenário internacional, a Declaração de Educação Básica para Todos
crianças, jovens e adultos, de Jomtien, na Tailândia, em 1990, a qual representa o primeiro
marco, seguido da V Conferência de Educação de Jovens e Adultos (V Confintea), em 1997, na
Alemanha, firmando a Declaração de Hamburgo e a Agenda para o Futuro. Diante disso, foram
reconhecidos dois aspectos importantes, principalmente para os países mais pobres, no qual Paiva
(2004) aponta:
“a maciça existência de jovens na modalidade de educação de adultos, o que
se fazia com que fosse designada como educação de jovens e adultos nesses
países; e o reconhecimento de que essa educação atuava/podia atuar alterando
as construções sociais e a esfera dos direitos das populações, se pensada pelo
sentido de aprender por toda a vida”.(p.30)
Para o autor, esses dois aspectos, após a Conferência de Hamburgo, passaram a configurar a
Educação de Jovens e Adultos. Desse modo, o primeiro aspecto assegura a todas as pessoas,
independentemente da idade, o direito à educação, pois esta passa a ser vista como um direito
humano fundamental. O segundo aspecto discute a educação continuada, estendendo o direito das
pessoas a aprender por toda a vida, independentemente da educação formal do sujeito, na qual
são incluídas ações educativas de gênero, de etnia, de profissionalização; artes; questões
ambientais, entre outros aspectos. Essa educação também se estende à formação continuada de
educadores e de jovens e adultos em processo de aprendizagem. Neste último aspecto reside o
verdadeiro sentido da EJA, pois acreditamos que a aprendizagem deve ocorrer ao longo da vida.
De acordo com o Parecer CEB/CNE
9
11/2000, são explicitadas três funções para a
Educação de Jovens e Adultos:
1- a função reparadora, devolvendo a escolarização não conseguida quando criança;
2- a função equalizadora, que se preocupa em cuidar de pensar politicamente a necessidade de
oferta maior para quem é mais desigual do ponto de vista da escolarização;
3- a função qualificadora, que representa o verdadeiro sentido da EJA, por possibilitar o aprender
por toda a vida, em processos de educação continuada.
Enquanto a função reparadora da EJA garante ao indivíduo o resgate da sua escolaridade, a
função equalizadora tem como objetivo resgatar a dignidade e minimizar o problema da exclusão
9
CEB(Câmara de Educação Básica)
CNE(Conselho Nacional de Educação)
57
social, pois o indivíduo, ao abandonar os estudos, torna-se um excluído da sociedade. A função
qualificadora defende uma educação permanente, que deve se estender ao longo da vida e estar
presente em todos os momentos da nossa existência.
No entanto, o Brasil, apesar de concordar com a concepção para EJA através de assinatura
de acordos internacionais, com princípios e metas traçados pelas decisões da Conferência, não
inseriu na Educação de Jovens e Adultos o processo de educação continuada. Dessa forma, a EJA
está amparada por lei, de acordo com a LDB 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996, em sua seção
V, artigos 37 e 38, para reafirmar a obrigatoriedade e a gratuidade da oferta da educação para
todos que não tiveram acesso a ela na idade própria. Nesse sentido, esses artigos garantem:
Artigo 37 - A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não
tiveram acesso ou continuidade de estudos no Ensino Fundamental e Médio na
idade própria.
§ - Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos
adultos, que não puderem efetuar os estudos na idade regular, oportunidades
educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus
interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames.
§ - O poder público viabilizará e estimulará o acesso e a permanência
do trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si.
Artigo 38 - Os sistemas de ensino manterão cursos e exames supletivos,
que compreenderão a base nacional do currículo, habilitando ao prosseguimento
de estudos em caráter regular.
§ 1º - Os exames a que se refere este artigo realizar-se-ão:
I - no nível de conclusão do Ensino Fundamental, para os maiores de quinze
anos;
II - no nível de conclusão de Ensino Médio, para os maiores de dezoito anos;
§ - Os conhecimentos e habilidades adquiridos pelos educandos por
meios informais serão aferidos e reconhecidos mediante exames.
De acordo com a lei vigente atual, podemos ver que o termo “educação continuada”, em
nenhum momento é citado. A finalidade da Educação de Jovens e Adultos no Brasil tem apenas
como objetivos: garantir a conclusão dos estudos daqueles que não puderam cursar a escola
quando crianças; proporcionar condições para que essa parte da população construa sua cidadania
e possa ter acesso à qualificação profissional; aumentar as taxas de escolarização. Desse modo, a
lei garante ao educando freqüentar cursos presenciais nas escolas públicas e também realizar
exames supletivos de nível fundamental e médio, coordenados e fiscalizados pelas secretarias da
educação dos Estados.
58
Segundo Paiva (2004), o descontentamento de muitos educadores com relação à lei que
ampara a Educação de Jovens e Adultos no País, por não garantir de forma satisfatória o direito à
educação, provocou uma cobrança por parte da sociedade civil. Diante disso, o MEC decidiu,
junto com as entidades comprometidas com a hegemonia do pensamento educacional brasileiro
nos últimos anos, lançar projetos e programas educacionais de alfabetização. Dentre estes, o autor
destaca as parcerias entre sociedade civil e Estado, como, por exemplo, os programas: a
Alfabetização Solidária, o Movimento de Alfabetização para Jovens e Adultos (MOVA), o
Telecurso 2000, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) e também a
criação de uma rede de cooperação, no Nordeste do País, chamada de Apoio à Ação
Alfabetizadora no Brasil (RAAAB).
Dentre os programas citados, o autor destaca o programa de rede de cooperação, uma vez
que este representa as aspirações e os sonhos de educadores e de instituições.
Whitaker (1993) comenta:
Uma estrutura de rede – que é uma alternativa à estrutura piramidal- corresponde
também ao que seu próprio nome indica: seus integrantes se ligam
horizontalmente a todos os demais, diretamente ou através dos que os cercam. O
conjunto resultante é como uma rede de múltiplos fios, que se pode espalhar
indefinidamente para todos os lados, sem que nenhum de seus nós possa ser
considerado principal ou central, nem representante dos demais.
[...] Na estrutura organizacional em rede horizontal – todos têm o mesmo
poder de decisão, porque decidem sobre sua própria ação e não sobre os
outros. Não dirigentes nem dirigidos, ou os que mandam mais e que mandam
menos. Todos m o mesmo nível de responsabilidade que se transforma em
co-responsabilidade - pela realização dos objetivos de rede (WHITAKER, 1993,
apud PAIVA, 2004, p.35).
De acordo com Paiva (2004), a rede está estruturada de forma democrática, e os
participantes têm autonomia para tomar as suas decisões, uma vez que os membros não possuem
dirigentes. Nesse sentido, para os autores Najmanovich e Dabas (1995), as redes criam vínculos
entre os integrantes, permitindo um contínuo processo de aprendizagem, o que garante a
articulação e a produção de novos conhecimentos.
Para Alves (1999,apud PAIVA, 2004), a noção de rede está alicerçada nas teorias de Morin,
Boaventura de Sousa Santos, Prigogine, entre outros autores contemporâneos. Dessa forma,
segundo Paiva (2004), a forma de estrutura da rede permite a ela manter-se viva e atuante ao
59
longo do tempo, sem perder a sua essência, embora se modifique, conforme os atores
participantes da educação de jovens e adultos, uma vez que atende os anseios dos destes e os
respeita como forças presentes da sociedade.
De acordo com a bibliografia consultada, desde 1990, diante da realidade e das
dificuldades que a EJA vinha enfrentando, diversos educadores, de diferentes instituições
governamentais e não-governamentais do Rio de Janeiro, preocupados com essas questões,
reuniram-se para discutir e assumir o desafio de construir novas relações, com o objetivo de
questionar e propor políticas educacionais de cunho administrativo, pedagógico e financeiro,
entre outros. Desse modo, em junho de 1996 aconteceu o primeiro Fórum de Educação de Jovens
e Adultos no Rio de Janeiro.
Segundo Paiva (2004), a estratégia de trabalho desse Fórum era defender o estabelecimento
de relações mais igualitárias, possibilitando a democratização da educação nos diversos aspectos
que a circunscrevem. Ao mesmo tempo, representava um grupo de força, em defesa dos
interesses da Educação de Jovens e Adultos. Atualmente existem dezoito fóruns de EJA, sendo
dezesseis estaduais e dois regionais, espalhados em todo o Brasil, nos seguintes Estados: Rio de
Janeiro, Paraíba, Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo, Tocantins, Santa Catarina, Paraná, Rio
Grande do Sul, Mato Grosso, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Goiás, Alagoas, Distrito
Federal, além das regionais do Nordeste Paulista e de Ipatinga.
O caráter desses fóruns, segundo o autor, é informal, não institucionalizado, apesar de
apresentarem coordenações mais ou menos estruturadas. A participação de membros de
secretarias municipais de educação e de outros órgãos do governo, educadores de universidades,
movimentos sociais, instituições privadas e não governamentais, fortalece ainda mais o caráter
político desses fóruns e, conseqüentemente, a sua luta para atender aos anseios da EJA.
Além do mais, segundo Paiva (2004), os espaços criados pelo fórum permitem a circulação
de informações e mantêm atualizados os participantes, advindos dos diversos segmentos da
sociedade e conectados às questões educacionais, possibilitando, assim, em igualdade de
condições, a oferta de cursos, de ações e parcerias, entre outros.
Para esse autor, as conquistas que os fóruns fizeram ainda não lhes permitiram ocupar um
espaço de poder, mas representam um grande avanço, e o seu trabalho vem contribuindo para a
melhoria da educação de jovens e adultos. Ele também destaca as lições da experiência da
60
sociedade civil, com as alianças entre ONGs, movimentos sociais e instâncias públicas a favor da
alfabetização no País.
Consideramos que, assim como a sociedade brasileira e todos os educadores anseiam por
uma educação de qualidade, essa educação deve não apenas permitir o acesso à leitura e à escrita,
mas também garantir a construção da cidadania, possibilitando aos jovens e adultos condições
para trabalhar e fazer suas escolhas. Mas quem são esses jovens? É o que pretendemos discutir a
seguir. .
3.3 A questão do jovem na Educação de Jovens e Adultos
Inicialmente, ao discutir sobre o jovem da EJA, definiremos o que é ser jovem. Segundo a
Organização Mundial da Saúde, adolescente é o indivíduo que se encontra entre os dez e vinte
anos de idade. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece outra faixa etária:
dos doze aos dezoito anos.
Podemos, também, pensar a adolescência como uma etapa do desenvolvimento, que
ocorre desde a puberdade à idade adulta, ou seja, uma fase em que as alterações psicobiológicas
iniciam a maturação até a idade em que um sistema de valores e crenças se enquadra numa
identidade estabelecida. Atualmente, o conceito mais aceito é o de que não existe adolescência, e
sim adolescências, em função do político, do social, do momento e do contexto em que está
inserido o adolescente. A adolescência guarda ainda especificidades, em termos de gênero, classe
e etnia.
No contexto da EJA, os jovens, na sua grande maioria, são alunos advindos do ensino
regular que, após sucessivas reprovações, abandonam os estudos e matriculam-se na EJA.
Pertencem às classes sociais mais baixas da sociedade e, por fatores de ordem social e
econômica, deixam os estudos para inserir-se no mercado de trabalho, ou ainda esperam nele
ingressar. Nesse sentido, desejam concluir os seus estudos para conseguir um bom emprego e até
cursar o ensino superior. Da mesma forma que os adultos, os jovens desde cedo são
marginalizados pelo sistema de ensino, que não aceita e não respeita as suas diferenças de ordem
social, econômica e cultural. Esses jovens, ao retornarem à EJA, estão desmotivados e marcados
61
pelas sucessivas repetências no ensino regular. Muitas vezes, mostram-se rebeldes e
indisciplinados, pois já foram discriminados e rejeitados anteriormente pelo sistema escolar
regular.
Falar do jovem na EJA constitui um tema muito amplo e polêmico, pois devemos, em
primeiro lugar, pensar: Por que o jovem passou a freqüentar a EJA?
A cada ano, percebemos que o número de jovens nas salas da EJA vem aumentando. Como
mencionei na introdução, desde o início da minha carreira no Magistério, leciono na Suplência
(atual EJA), como professora do Grau (atual Ensino Médio). Em 1989, a classe era composta
somente por adultos - a maioria com mais de 30 anos. lecionei para alunos de todas as faixas
etárias, até para uma senhora de 70 anos, com quem aprendi muito e de quem guardo muitas
lembranças. Naquela época, os jovens próximos de 18 anos representavam apenas 10% da sala de
aula, mas atualmente esse número vem aumentando ano a ano. Por quê?
Esse aumento pode ser comprovado através do Censo Escolar, realizado em 1999, 2002 e
2006 pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, pelo
MEC (Ministério da Cultura e Educação) e SEEC (Secretaria do Estado de Cultura). Os dados
abaixo foram extraídos das Sinopses Estatísticas da Educação Básica
10
do Censo Escolar dos
referidos anos, no que se refere ao número de matrículas no Ensino Médio da Educação de
Jovens e Adultos por faixa etária, no Brasil e na Região Sudeste. A tabela
11
abaixo refere-se ao
Censo Escolar de 1999.
10
Disponível na: www.inep.gov.br/basica/censo/escolar/sinopse/asp>., acesso em: 10/06/2007.
11
Os dados da tabela foram retirados das Sinopses Estatísticas da Educação Básica do Censo Escolar apenas os que
se referem aos alunos matriculados no Estado de São Paulo, na Região Sudeste e na União.
62
1 – MATRÍCULAS
Educação de Jovens e Adultos
1.78 - Número de Alunos Matriculados, em 31/03/99, nos Cursos Presenciais, com Avaliação
no Processo,
no Ensino Médio, por Faixa Etária – 1999
Matrícula por Faixa Etária nos Cursos Presenciais
com Avaliação no Processo
Unidade da
Federação
Total
Menos
de 15
anos
De 15 a
19 anos
De 20 a
24 anos
De 25 a
29 anos
De 30 a
34 anos
De 35 a
39 anos
Mais de
40 anos
Brasil
656.572
778
109.362
203.442
125.915
97.071
60.489
59.515
Sudeste
369.052
5
55.027
112.601
73.814
53.751
37.918
35
.936
São Paulo
280.298
4
36.967
86.502
57.497
41.501
28.896
28.931
Nota: A idade foi obtida a partir do ano de nascimento informado no Censo Escolar, isto é, foi
considerada a idade que o aluno completou em 1999.
Os dados dessa tabela apontam que a maioria dos matriculados no Ensino Médio da EJA
em 1999, no Brasil, na Região Sudeste e no Estado de São Paulo, estava na faixa etária dos 20 a
24 anos, o que representa em média 31%; em seguida, os matriculados, na faixa etária de 25 a 29
anos, representavam em média 20% e os matriculados, na faixa etária de 15 a 19 anos,
correspondiam, em média, a 15%. Desse modo, os matriculados com menos de 30 anos eram, em
média, 66%. A tabela do Censo Escolar da EJA feita pela pesquisa do INEP/MEC/SEEC em 2002
apresenta os seguintes dados:
63
1 – MATRÍCULAS
Educação de Jovens e Adultos (Ensino Supletivo)
1.74 - Número de Matrículas nos Cursos Presenciais com Avaliação no Processo, por Faixa Etária,
segundo a Região Geográfica e a Unidade da Federação, em 27/3/2002
Matrículas nos Cursos Presenciais com Avaliação no Processo
Unidade da
Federação
Total
De 0 a 14
anos
De 15 a
17 anos
De 18 a
24 anos
De 25 a
29 anos
De 30 a
34 anos
De 35 a
39 anos
Mais de
39 anos
Brasil
3.779.593
71.563
532.151
1.259.513
587.997
452.631
358.124
517.614
Sudeste
1.150.501
8.339
129.348
410.273
190.921
142.628
109.653
159.339
São Paulo
738.116
3.261
64.547
261.412
128.434
97.645
75.570
107.247
Nota: A idade foi obtida a partir do ano de nascimento informado no
Censo Escolar.
Os dados dessa tabela indicam que, em 2002, a maioria dos matriculados no Ensino Médio da
EJA , no Brasil, na Região Sudeste e no Estado de São Paulo tinha idade entre 18 e 24 anos —
em média, 35%. Já os matriculados, na faixa etária de 25 a 29 anos, representavam em média
16% e os matriculados com idade de 15 a 17 anos equivaliam em 62%.
Veja a seguir, os dados da tabela do Censo Escolar em 2006:
64
Em 2006, os dados do Censo Escolar apontam que a maioria dos matriculados no Ensino
Médio da EJA, no Brasil, na Região Sudeste e no Estado de São Paulo tinha menos de 30 anos e
representava 66% do número total de matriculados.
De acordo com os dados da tabela, os alunos na faixa etária dos 15 a 17 anos matriculados
na EJA representavam em média 11%. Já aqueles com idade de 18 a 24 anos matriculados na EJA
correspondiam a 35% e os da faixa etária de 25 a 29 anos matriculados na EJA equivaliam a 17%,
em média. Desse modo, os matriculados com menos de 30 anos representavam em média 63%.
Percebemos, portanto, que a maioria dos educandos da EJA tem menos de 30 anos. Este
fato pode ser explicado por vários fatores; um deles é a profunda desigualdade social que vem
excluindo os jovens do ensino regular – em geral marcados pelo fracasso nas avaliações e
também pelo ingresso precoce no mercado de trabalho.
Publicada pela “Folha de São Paulo” em 07/01/2007,uma recente pesquisa do INEP
(Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) mostra a falta de motivação como um
dos fatores responsáveis pela evasão do jovem na escola. De acordo com a reportagem, em um
estudo com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE três conclusões se
sobressaem:
1-MATRÍCULAS
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (ENSINO SUPLETIVO)
1.83 - Número de Matrículas na Educação de Jovens e Adultos nos Cursos Presenciais com
Avaliação no Processo no Ensino Médio, por Faixa Etária, segundo a Região Geográfica e a
Unidade da Federação, em 29/3/2006
Matrículas na Educação de Jovens e Adultos nos Cursos Presenciais com Avaliação
de Processo
Faixa Etária
Unidade da
Federação
Total
De 0 a 14
anos
De 15 a
17 anos
De 18 a
24 anos
De 25 a
29 anos
De 30 a
34 anos
De 35 a
39 anos
Mais de
39 anos
Brasil 1.345.165
- 53.432 602.302 237.578
174.474
131.437 145.942
Sudeste 587.305 - 35.666 261.037 94.505 72.990 56.061 67.046
São Paulo 401.838 - 29.810 172.763 63.053 50.236 38.562 47.414
65
1) três a cada quatro desses jovens (75%) não completaram o Ensino Fundamental, mas a
maioria (68%) ao menos chegou até 5ª série;
2) ter tido filho diminuiu a probabilidade de a jovem estudar. Entre as que freqüentam a
escola, as mães são apenas 1,6% , percentual que sobe para 28,8% entre as que estão fora;
3) mais do que falta de vagas, de transporte ou mesmo a necessidade de estudar, é a falta de
vontade de estudar que os empurra para fora do sistema de ensino. Essa razão foi identificada em
40,4% dos casos, entre os que não estão na sala de aula. A necessidade de trabalhar vem depois
(17,1%).
De acordo com a reportagem, muitos estudiosos ligados à educação indicam diversos
fatores responsáveis pela desmotivação do jovem e pela evasão escolar, como por exemplo: as
disciplinas desconectadas do cotidiano dos educandos, escolas sem a participação dos alunos nas
decisões do dia-a-dia, professores desestimulados pelos baixos salários. Para a pesquisadora
Benigna Villas Boas, da Universidade de Brasília, o jovem desinteressa-se pela escola quando é
excluído das decisões. E ela ainda questiona: “Por que a escola tem de funcionar como funciona
há décadas? Por que não dar ao aluno a oportunidade de progredir conforme seu aprendizado?”.
“A escola não tem nada a ver com a vida dos jovens da periferia, por exemplo. Eles acabam
não tendo prazer em aprender”, diz o educador Rubens Alves nessa reportagem. Ele ressalta que a
escola é chata, porque não faz sentido para a vida do jovem.
Além dessa questão da vontade, o aspecto econômico mostra-se como um fator também
relevante. De acordo com os estudos do IBGE-PNAD/2001
12
e pela Síntese de Indicadores
Sociais/2002, a desigualdade social é marcada, principalmente, pela situação de renda, pela cor,
pelo trabalho e pela escolaridade.
Quanto à escolaridade, dos cerca de 15 milhões de analfabetos, observa-se a existência de
5% de jovens analfabetos na faixa de 15 a 19 anos; 6,7%, na de 20 a 24 anos e 8%, na de 25 a 29
anos (dados do IBGE/2000).
Entre outros dados sobre a expressão das desigualdades sociais, destaca-se que mais da
metade dos jovens sem acesso à leitura e à escrita é negra. Outro fator demonstrado pelo IBGE, é
que, à medida que se eleva a idade, as taxas de analfabetismo, assim como os diferenciais por cor,
tendem a aumentar progressivamente.
12
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
PNDA (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).
66
Outro dado do IBGE, em relação à “adequação idade-série”, em 2001, constatou que mais
da metade (4,4 milhões) dos jovens de 15, 16 e 17 anos, que deveriam freqüentar o Ensino
Médio, ainda se encontravam no Ensino Fundamental. Além disso, quase 60% dos jovens de 18 e
19 anos e mais de 1/3 da população de 20 a 29 anos ainda freqüentavam o Ensino Médio. Outro
fato apontado mostra o elevado percentual de adultos de 20 anos ou mais no Ensino
Fundamental, indicando o retorno destes às escolas, no período noturno.
Segundo o IBGE (2002):
a crescente permanência dos jovens na escola não é somente uma escolha destes
ou uma maior conscientização dos pais quanto à importância da educação para o
desenvolvimento humano. Nos últimos anos, a crise do desemprego que
perpassa a sociedade e atinge mais fortemente a força de trabalho jovem reforça
essa necessidade de qualificação (educação), principalmente para os grupos mais
jovens em busca de uma colocação no mercado de trabalho (IBGE, 2002, p.322,
apud PAIVA, 2004, p.46).
Os dados dessa pesquisa apontam a ineficiência do sistema educacional brasileiro, uma vez
que este não consegue atingir as metas de alfabetização e escolarização de forma satisfatória e
atender toda demanda. Esse fato é comprovado pelos dados citados acima, que mostram o grande
número de analfabetos e o elevado número de jovens entre 15 e 17 anos que não concluíram o
Ensino Fundamental.
O grande número de adultos com mais de 20 anos que retornam aos bancos escolares para
concluir os estudos, conforme aponta o IBGE, demonstra a exigência do mercado de trabalho
quanto à escolarização. Diante disso, podemos estabelecer três aspectos importantes.
Primeiro: a desigualdade social é um dos grandes responsáveis pelos problemas
educacionais do País. O jovem não conclui os seus estudos, pois precisa trabalhar para ajudar no
sustento da família, ou seja, a realidade socioeconômica está impedindo esse jovem de estudar.
Conforme os dados da Unesco/UniRio
13
, o jovem da EJA, marcado pela pobreza, devido a sua
condição social, não conseguiu completar os seus estudos durante a idade escolar, ou seja, dos 7
aos 14 anos para o Ensino Fundamental e dos 15 aos 17 anos para o Ensino Médio. De uma
maneira geral, segundo os dados dessa pesquisa, esses jovens vivem em favelas, vilas e bairros da
13
UNESCO( Organização da Nações Unidas para a educação).
UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).
67
periferia das grandes cidades e na sua maioria são negros. Durante a sua idade escolar circulam
pela escola, inúmeras vezes, com entradas e saídas. Esse fato incomoda o ambiente escolar, mas
esses jovens retornam ao convívio escolar, em geral, sabendo das suas dificuldades e dos limites
que lhes são impostos.
O segundo aspecto está relacionado à exclusão escolar causada pela reprodução da
desigualdade social. Mas, como a escola reproduz essa desigualdade? Vários determinantes são
apontados por diversos estudiosos da educação e indicam que a estrutura do sistema escolar, o
currículo e seus programas, as práticas escolares e a própria organização da escola contribuem
para o fracasso escolar do aluno. Entendemos que a própria estrutura escolar não oferece espaço
para o jovem participar do projeto pedagógico-educacional e a prática escolar não reconhece o
conhecimento não-escolar do aluno, ou seja, o saber adquirido pelo educando a partir das suas
práticas cotidianas. Nesse sentido, o saber escolar está desconectado da realidade do aluno e,
dessa forma, não estimula o educando a estudar.
O terceiro aspecto que explicaria os dados apontados acima diz respeito às políticas
públicas educacionais, que não conseguem resolver os problemas da educação brasileira,
principalmente no que se refere à Educação de Jovens e Adultos no Brasil.
Para Guedes (1997, apud ANDRADE, 2004), o jovem retorna à escola por vontade própria,
e não por imposição dos pais. Segundo o autor, em uma pesquisa realizada com operários no
município de São Gonçalo (RJ), a escola é vista pelos pais como indispensável para os filhos até
os quinze anos de idade. A partir dessa idade, os pais acham que estão isentos da obrigação e da
manutenção da educação dos filhos, ou seja, os pais acreditam que não precisam mais orientar e
ajudar os seus filhos no que se refere às questões relacionadas à educação.
Além disso, segundo essa pesquisa, os pais consideram a escola em três aspectos: primeiro,
a escola tem apenas a obrigação de ensinar os filhos a ler e escrever e de transmitir alguns
conhecimentos de matemática; segundo: a escola tem uma função disciplinadora na formação de
valores morais, ou seja, a escola deve educar os seus filhos no sentido de impor limites e de fazê-
los comportados. E, por último, para os pais, o saber teórico é desvinculado do saber fazer, do
ponto de vista prático; dessa forma, desejam que a escola seja profissionalizante e que o jovem,
ao concluir os seus estudos, tenha uma profissão, para que possa ser inserido no mercado de
trabalho.
68
Diante disso, o retorno do jovem à escola deve-se muito mais ao seu próprio esforço do que
ao incentivo dos pais. Para o autor, a volta ao contexto escolar representa um retorno composto
por barreiras e obstáculos impostos pelas normas e regras escolares, pela inadequação do
currículo à realidade do aluno, entre outros fatores responsáveis pela exclusão.
Na escola em que a pesquisadora leciona e que foi a base para esta pesquisa, o jovem
procura a EJA, especialmente, por duas razões: porque se vê obrigado a retornar aos estudos
devido à exigência do mercado de trabalho, o qual pede maior escolarização e, posteriormente,
uma profissionalização; e também por causa das sucessivas reprovações no ensino regular.
Um outro fator a ser destacado é o caso de alunos jovens tidos como indisciplinados que,
por não se envolver com as atividades pedagógicas da escola regular, são reprovados
sucessivamente e encaminhados à EJA pela própria escola regular.
A inclusão do jovem na EJA ainda é recente; no entanto, tenho percebido alguns aspectos
positivos na sua inserção: tenho observado o contato de jovens e adultos na sala de aula e venho
notando uma relação harmoniosa entre esses educandos. Nesse sentido, pude perceber a troca de
experiências entre ambos os segmentos discentes e considero isso relevante para o processo de
aprendizagem da EJA. Tive muitas experiências que revelam que o jovem na EJA da minha
escola acaba se socializando com o adulto. Desse modo, é muito comum encontrar o jovem
ensinando e estudando junto com o adulto, nas diversas atividades propostas na sala de aula. Por
outro lado, as diferenças de interesses, algumas vezes, dificultam o trabalho coletivo e, neste
caso, a evasão tende a ser mais dos adultos do que dos adolescentes. Tal fato não ocorre na escola
pesquisada, pelo fato de a maioria ser de alunos mais velhos – adultos
14
.
Podemos observar esse fato a partir das falas das entrevistadas Teresa, Ana, Ariane
15
. Eis o
que elas pensam sobre o relacionamento entre o jovem e o adulto na sala de aula:
Teresa: Mas a melhor época de escola foi na FEG, foi na EJA, porque, a
Neila era uma amigona, a Ana que também cozinhava, a Edmara, a Mara,
nossa era uma turma, muito chic, mesmo a Roseli, sala dez mesmo, não que nós
éramos aluno dez, mas era uma sala que parecia que tinha uma lista pronta, o
nome de cada um, parecia que todos foram escolhidos a dedo. Era tudo unido,
até a molecada que o gostava de estudar, entrava no meio da turma. Fazia
as festinhas, aquelas festinhas da hora, bolo, doces, salgados, era muito bom
mesmo, chic, nossa maravilha.
14
A relação entre adultos e adolescentes nas salas em que tenho trabalhado é de cerca de cinco jovens para trinta
adultos.
15
Os nomes das entrevistadas são fictícios, escolhidos por elas próprias.
69
Ana: Foi bom, para mim valeu a pena em tudo, novos amigos, professores
bons, foi uma turma boa, sabe pudemos aproveitar tudo, que tinha as
moçadinhas, mas nada que atrapalhasse, o pessoal era unido, todo mundo
queria aprender, e me ajudou muito porque eu conheci novas pessoas, fiz novas
amizades, eu aprendi o que eu não sabia, em português, um excelente
professor, matemática, foi muito bom.
Ariane: ...mas eu sinto falta da escola, das amizades, das pessoas que a gente
via todo dia, principalmente das pessoas mais velhas, e as pessoas mais velhas
de são superlegal. Tinha alguns que não sabiam a matéria e a gente que era
mais novo entendia sempre e aí ajudava um, um ajudava o outro
.
A partir das falas das entrevistadas, percebemos o entrosamento entre o jovem e o adulto
na turma desses alunos da escola pesquisada, mas esse fato não é uma regra.
Atualmente a pesquisadora trabalha em uma sala em que, apesar de o número de adultos
ser maior do que o número de jovens, não existe uma relação harmoniosa entre o jovem e o
adulto, o que pode ser explicado pelo fato de alguns dos adultos da sala possuírem uma liderança
e não admitirem o jeito irreverente do jovem. Desse modo, é visível, entre os alunos dessa sala
da EJA, a existência de grupos compostos de adultos que não aceitam o jovem, além de um grupo
formado por jovens e adultos e um grupo de adultos que aceitam os jovens. Desse modo,
percebemos que a sala é formada por grupos entre os quais existe uma certa rivalidade.
Acreditamos que uma sala composta na sua maioria por adultos pode contribuir para
amenizar os conflitos das gerações, uma vez que o adulto respeita o professor e as normas
escolares e cobra essa postura dos jovens. Nesse sentido, o jovem da EJA acaba aceitando as
regras do convívio escolar e muitas vezes, influenciado pelos adultos, melhora a sua conduta na
escola. O contato e o relacionamento com pessoas mais maduras podem ajudar esse jovem a
superar as suas dificuldades, como comprovam alguns fatos, ocorridos na sala de aula, que pude
vivenciar.
Diante desse cenário, faz-se necessário refletir sobre a situação do jovem da EJA: muitas
vezes excluído do ensino regular por diversas razões, insere-se na EJA e pode construir uma
experiência positiva, mas também pode sentir-se novamente excluído e evadir ou, ao contrário, se
os jovens constituírem a maioria, os adultos é que tendem a evadir-se. Assim, a junção de Jovens
e Adultos é mais um entre tantos desafios a serem superados pela EJA.
70
Segundo Soares (2002, apud PAIVA, 2004), existimos pela legitimação do olhar do outro;
dessa forma, quando a escola olha para o jovem com respeito, esvalorizando-o socialmente.
Nesse sentido, necessitamos tanto de uma política pública para a escola regular que atenda e
inclua o jovem, quanto de uma redefinição da Educação de Adultos e da Educação de Jovens e
Adultos. A inclusão do jovem na Educação de Adultos é uma questão complexa e fundamental a
ser discutida, porém, por não ser o foco desse trabalho, não nos cabe aqui aprofundá-la.
3.4 O adulto na Educação de Jovens e Adultos
Quem é o adulto da EJA? Como sabemos, os adultos que se matriculam na EJA são
pessoas que buscam concluir os seus estudos que, em algum momento de suas vidas, foi
interrompido. De uma maneira geral, vêem na Educação de Jovens e Adultos uma oportunidade
de completar a sua escolaridade, não para melhorar a sua condição social e financeira na
sociedade, mas também para serem respeitados no meio em que vivem.
A sua volta significa um recomeço difícil, um caminho a ser trilhado com grandes
dificuldades e medos. As dificuldades apresentam-se com a dura jornada de trabalho, pois a
grande maioria desses educandos pertence às classes menos favorecidas, e suas profissões, muitas
vezes, exigem grande esforço físico e tensão. Observamos na sala de aula que esses alunos têm
uma aparência cansada e sonolenta. A grande maioria que escreve possui caligrafia de difícil
compreensão, pois suas mãos, calejadas pelo trabalho duro do dia-a-dia, têm dificuldade no
manuseio do lápis e da caneta e, portanto, carecem de coordenação motora fina.
Além disso, geralmente convivem com orçamento doméstico apertado, devido aos
baixos salários ou por não possuírem uma renda fixa. Eles atuam nos diversos setores da
economia: muitos trabalham no comércio, na indústria, na agricultura e estão sempre
preocupados com a questão do desemprego; outros, porém, vivem do trabalho informal sem a
garantia dos direitos trabalhistas; outros, ainda, ainda estão desempregados, algumas vezes pela
falta de escolaridade e de qualificação profissional.
71
Esses homens e mulheres lutam para conseguir um espaço na sociedade e conquistar a sua
cidadania. São homens solteiros e casados, pais de família, ou mulheres solteiras – algumas delas,
convivendo com a experiência da maternidade, lutam para criar os seus filhos sozinhas e
também mães e esposas que trabalham em casa e fora e, muitas vezes, são arrimo de família.
Como pais e mães, possuem muitas preocupações. Para estudar, alguns deixam seus filhos
sozinhos ou com vizinhos e, em algumas situações, chegam a deixá-los doentes, em casa. É
comum, na sala de aula, uma mãe ligar para casa para saber se o seu filho está bem, se baixou a
febre, se comeu ou se passou a dor. No entanto, acreditam que esse esforço será recompensado,
pois esperam conseguir um emprego com um salário maior, uma melhor colocação no trabalho;
cursar uma faculdade; conseguir aprovação em um concurso público. Nesse sentido, a conclusão
dos estudos poderá permitir um futuro melhor para sua família.
Além das preocupações do dia-a-dia em casa ou no trabalho, esses educandos da escola
pesquisada são comprometidos com o contexto escolar. Para eles, o saber escolar tem grande
importância, embora muitas vezes apresentem grande dificuldade na aprendizagem, o que lhes
acarreta sentimentos de medo: o receio de não aprender e não conseguir um bom rendimento
escolar.
O medo de fazer as avaliações, para muitos, representa uma “tortura”, pois, esses adultos,
especialmente os que têm filhos, buscam dar a estes um bom exemplo e querem mostrar que não
são derrotados nem fracassados na escola.
Diante de todas as dificuldades e desafios enfrentados, consideramos que esses adultos
são heróis anônimos, desconhecidos pela mídia e marginalizados pela sociedade.
Na escola em que a pesquisadora leciona, os adultos do EJA, de uma maneira geral, m
uma visão de que o professor é um verdadeiro mestre, um sábio que possui muito conhecimento e
demonstram grande admiração pelo profissional da educação. O professor é uma pessoa
respeitada na sociedade e que merece toda consideração. Em relação à escola, possuem uma
visão de uma instituição tradicional e rígida, que deve ter regras e normas que devem ser
obedecidas pelos alunos.
Com relação aos educandos da EJA, Oliveira (1999a,p.2-3) argumenta:
Refletir sobre como esses jovens e adultos pensam e aprendem envolve,
portanto, transitar pelo menos por três campos que contribuem para a definição
72
de seu lugar social: a condição de “não-crianças”, a condição de excluídos da
escola e a condição de membros de determinados grupos culturais.
De modo geral, a escola possui práticas escolares e um currículo indicados para educar
apenas crianças e adolescentes. É muito comum os professores, pelo fato de trabalharem com
crianças ou adolescentes, utilizarem para o trabalho com adultos a mesma didática e os mesmos
materiais didáticos destinados a uma clientela mais jovem. Nesse sentido, arriscamos dizer que
nós, professores da EJA, conhecemos muito pouco sobre a psicologia do adulto
Nesta mesma perspectiva, Norbeck (1978, apud GUSMÃO e MARQUES) aponta que
uma das causas do fracasso em educação de adultos é que os educadores tratam os adultos como
crianças. Ele também defende a idéia de que os professores, mesmo sabendo que essa não é a
forma adequada para tratar os adultos, muitas vezes têm dificuldades para adaptar suas estratégias
e seus materiais para a clientela adulta. Também Oliveira (1999) considera que, na área da
psicologia, os estudos relativos à aprendizagem dos adultos são bastante limitados. Nesse
sentido, argumenta:
as teorias do desenvolvimento referem-se, historicamente, de modo
predominante à criança e ao adolescente, não tendo estabelecido, na verdade,
uma boa psicologia do adulto. Os processos de construção do conhecimento e
de aprendizagem dos adultos são, assim, muito menos explorados na literatura
psicológica do que aqueles referentes às crianças e adolescentes. (p.60)
Fundamentada em Palácios, Oliveira (1999) comenta como a idade adulta é considerada
tradicionalmente um período de estabilidade e de ausência de mudanças e enfatiza que esse
período de vida representa uma etapa substantiva do desenvolvimento. Apesar de ser a idade
adulta, no campo da psicologia, um período estável, devemos considerar que o adulto é um
indivíduo que possui uma longa história de vida recheada de experiências, frustrações, desafios e
conhecimentos adquiridos ao longo da sua existência. Outro aspecto relevante é que esse adulto
possui valores culturais não reconhecidos pelo contexto escolar. O não-reconhecimento e a não-
valorização dos saberes não escolares e da cultura do educando levam ao fracasso escolar,
empurrando o aluno para fora do contexto escolar.
73
Nessa perspectiva, Oliveira considera a escola uma instituição que possui regras e práticas
estabelecidas e uma linguagem própria que deve ser conhecida pelos atores envolvidos no seu
contexto:
O desenvolvimento das atividades escolares está baseado em mbolos e regras
que não são partes do conhecimento do senso comum. Isto é, o modo de se
fazer as coisas na escola é específico da própria escola e aprendido no seu
interior. As mais óbvias dessas regras, que configuram o “modelo escolar”,
constituem um estereótipo bastante generalizado em nossa sociedade letrada,
mesmo entre indivíduos que nunca estiveram na escola (e mesmo quando esse
estereótipo não corresponde exatamente a escolas reais em funcionamento)
praticamente todo mundo sabe que na escola um professor que ensina e
estabelece regras para um grupo de alunos que deve aprender e obedecer; há um
quadro negro e carteiras e as pessoas trabalham com cadernos, lápis e borracha.
Em nível mais sutil, entretanto, dominar a mecânica da escola e manipular sua
linguagem são capacidades aprendidas no interior da escola e, ao mesmo
tempo, cruciais para o desempenho do indivíduo nas várias tarefas escolares.
Muitas vezes a linguagem escolar mostrou ser maior obstáculo à aprendizagem
do que o próprio conteúdo. Alunos que nunca haviam estado na escola tinham
grande dificuldade de trabalhar com a linguagem escolar, enquanto que aqueles
que já haviam tido certo treino escolar demonstraram dominar a mecânica geral
da escola e considerar os diversos tipos de atividades como aceitáveis no
interior do mundo escolar, mesmo quando desconhecidas como atividades
específicas. Entretanto, ainda que esses alunos mais treinados soubessem
bastante a respeito da verossimilhança das atividades desenvolvidas em classe,
a apresentação formal das tarefas escolares continuou sendo um obstáculo ao
seu bom desempenho. Compreensão de instruções, particularmente quando por
escrito, também constituía, ainda, grande parte do problema a ser resolvido.
(OLIVEIRA, 1987, p.19-29)
A partir das considerações da autora, podemos ponderar que a maioria dos alunos da EJA
apresenta grande dificuldade em adaptar-se à linguagem escolar, pois esta e o conhecimento
escolar não estão em sintonia com a linguagem e com o saber do educando, dificultando o seu
aprendizado. Desse modo, o retorno escolar representa um grande obstáculo para os alunos,
que, de um modo geral, sentem-se derrotados por não terem concluído os estudos, ou ainda por
não terem freqüentado a escola quando crianças.
Nesse sentido, para Oliveira (1999), a exclusão escolar, em razão dos aspectos emocionais
que envolve, coloca os alunos em situação de desconforto pessoal e pode influenciar no seu
aprendizado futuro. Os alunos da EJA têm vergonha de freqüentar a escola depois de adultos e
sentem-se humilhados e inseguros, o que compromete a sua capacidade de aprender. O não-
74
reconhecimento pela escola da diversidade cultural dos educandos da EJA põe em risco o
rendimento escolar desses sujeitos.
Norbeck (1978) considera que não conhecemos esses adultos, ou seja, não conhecemos as
suas idades, as suas atividades profissionais, as suas experiências, as condições físicas, as
condições socioeconômicas, além de outros aspectos. Tal desconhecimento, segundo o autor,
leva-nos a considerar o adulto como criança, o que, aliado ao fato de a escola não o conhecer
como um indivíduo que apresenta uma experiência de vida, habilidades e conhecimentos
adquiridos a partir das suas práticas diárias, pode, certamente, explicar a dificuldade para manter
a motivação desses educandos.
Com relação à motivação dos adultos da EJA, outro aspecto apontado por Norbeck (1978)
é que ele se sente desmotivado também por acreditar que aprende menos que os jovens. Além do
mais, a participação dos adultos em um programa de educação é, muitas vezes, desestimulada por
familiares e amigos, pois estes julgam a escola um espaço destinado apenas para crianças. A
todas essas causas da desmotivação, Norbeck acrescenta o sentimento de inferioridade social: se
o aluno adulto sentir, dentro do meio escolar, que pertence a uma camada social inferior e possui
uma linguagem mais pobre em relação aos demais, ele tenderá a desistir de estudar.
A partir das abordagens feitas neste capítulo, devemos refletir sobre a questão da clientela
escolar da EJA. De um lado, temos os jovens, excluídos do sistema regular de ensino e, na grande
maioria, alunos rebeldes, indisciplinados, desmotivados dentro do contexto escolar. Por outro
lado, numa sala da EJA em que o jovem representa a maioria, ocorre a evasão do adulto cujo
perfil é de um educando responsável, com vontade de aprender, pois acredita que a escola possa
resgatar a sua cidadania e oferecer possibilidade de ascensão social —, que não aceita a postura
do jovem no ambiente escolar.
Nesse sentido, devemos considerar que o educador da EJA precisa conhecer a clientela
heterogênea com a qual trabalha: uma clientela na qual existe uma significativa variação em
relação à idade, uma grande diversidade cultural, de conhecimentos e de habilidades entre os
educandos. Esses aspectos constituem, para o educador, um grande desafio: é preciso uma nova
postura frente ao educando e uma prática pedagógica que incorpore e respeite a cultura e os
saberes não escolares dos educandos. Com relação à escola, ela deve ser um espaço aberto e
democrático, que permita ao educando ser um sujeito atuante dentro do processo de
aprendizagem e poder participar intensamente das práticas escolares.
75
Considerando este perfil do jovem e do adulto da EJA, no próximo capítulo vamos
discutir, dentro das práticas escolares, a prática social da culinária.
76
4 – PRÁTICA SOCIAL DA CULINÁRIA
Encontramos nas culinárias os vestígios das trocas culturais entre os povos. As
cozinhas são produtos de miscigenação cultural.
Ariovaldo Franco
Pretendemos, neste capítulo, fazer uma discussão sobre o conceito de prática social da
culinária. Inicialmente, porém, a partir de alguns autores, analisaremos o conceito de pratica
social, para, posteriormente, abordar a prática social da culinária.
4.1 – Prática social
Discutir o conceito de prática social dentro da vivência humana representa uma questão
importante nas diversas áreas do conhecimento, como a Sociologia da Educação, a Antropologia
e a Psicologia, enfim, todas as que se estudam o comportamento humano.
Para fazer essa discussão, utilizaremos a apresentação de excertos do material coletado a
partir das entrevistas, que representam o fio condutor deste trabalho de pesquisa, juntamente com
os comentários fundamentados em nossos referenciais teóricos. Utilizaremos como arcabouço
teórico o pensamento dos estudiosos: Jean Lave, Michel de Certeau, Etiene Wenger e Antonio
Miguel.
Lave (1996) realizou trabalhos em que valoriza o conhecimento matemático produzido
nas diversas práticas dos indivíduos no seu dia-a-dia. No entanto, considera que o saber
matemático dos alunos não é valorizado dentro do contexto escolar. Nesse sentido, em relação ao
ambiente escolar, Lave (1996), afirma que:
A escola complica incomensuravelmente a história que temos para contar. É
difícil debruçarmo-nos sobre o que seja um pensamento, um conhecimento e
uma aprendizagem apontados como bons e corretos, sem analisarmos as
práticas escolares julgadas capazes de produzir tais resultados. Uma das coisas
77
mais interessantes a notar acerca da ciência cognitiva é que, pelo menos de
um século para cá, a escola tem sido mediadora em que as relações entre a
teorização que a ciências sociais fazem do cotidiano, a própria vivência do
cotidiano e a prática cientifica se acham imbricadas umas nas outras. E isso
porque a escola é uma forma institucional de primeira importância, em que se
confirmam e inculcam postulados cognitivos acerca da prática científica e do
cotidiano. A escola é ela própria, freqüentemente contraposta à vida cotidiana
(LAVE, 1996, p.111).
A afirmação dessa autora leva-nos a pensar que a escola, com sua prática escolar, não abre
espaço para o conhecimento matemático do cotidiano, ou seja, a prática da matemática escolar
tenta aproximar-se da matemática acadêmica e afastar-se de procedimentos que a diferenciam
desta. Embora muitos livros didáticos proponham situações didáticas que fazem referência a
situações do cotidiano, tais problemas requerem soluções que envolvem procedimentos próprios
da matemática escolar. Além disso, muitas vezes as situações cotidianas citadas nos exercícios
dos livros de matemática são situações muito artificiais e, geralmente, desconectadas da realidade
do aluno.
Os trabalhos de Lave, realizados na Califórnia sobre as práticas matemáticas do cotidiano,
envolvem situações ocorridas em supermercados e em cozinhas particulares: observou-se o modo
como as pessoas compravam os produtos e como cozinhavam as suas refeições. Também foram
feitas pesquisas com membros do grupo “Wheight Watchers” (“Vigilantes do Peso”), nas quais
analisou-se como essas pessoas lidavam com a relação das quantidades calóricas dos alimentos e
com o orçamento doméstico.
Para de Certeau (1996), cozinhar representa uma atividade tanto mental quanto manual, na
qual são utilizados todos os recursos da inteligência e da memória. Na cozinha é preciso
organizar, decidir e prever. Desse modo, ao cozinhar precisamos memorizar, adaptar, modificar,
inventar, combinar. Além disso, temos que calcular o tempo de preparo da refeição, verificar se o
custo não vai ultrapassar o orçamento doméstico, calcular a quantidade de comida necessária para
as pessoas que participarão da refeição. Nesse sentido, de Certeau (1996) ainda acrescenta:
“cozinhar envolve um volume complexo de circunstâncias e de dados objetivos, onde se
confrontam necessidades, liberdades, uma confusa mistura que muda constantemente e através da
qual se inventam as táticas, se projetam trajetórias, se individualizam maneiras de fazer” (p.271).
78
Pesquisas realizadas por esse autor, no final do século passado, com mulheres francesas que
falam sobre as práticas culinárias femininas, levaram-no a argumentar que o ato de cozinhar
envolve diversas ações, exigindo do cozinheiro uma organização que se inicia com a escolha do
cardápio para uma refeição; nesse caso, o cozinheiro deve pensar em um cardápio que agrade a
todos e ao mesmo tempo seja saudável. Outro aspecto refere-se à montagem do cardápio, à
combinação dos pratos a serem servidos. É comum o cozinheiro pensar no prato de entrada, nos
acompanhamentos, no prato principal e na sobremesa, pois os segredos de uma boa refeição
envolvem três aspectos: a harmonia entre os pratos, ou seja, a combinação entre eles; o caráter
saudável da refeição; e, principalmente, a satisfação de todos os comensais.
Nesse sentido, para o preparo de uma refeição, o cozinheiro precisa seguir os diversos
passos: listar os ingredientes necessários para o preparo dos pratos; selecionar os ingredientes, o
que implica diversas etapas: verificar a quantidade necessária, de acordo com o número de
pessoas; separar os ingredientes, determinando quais serão lavados, cortados, ralados, cozidos,
assados, conforme o prato que será servido. Além disso, na cozinha exige-se também muita
criatividade ao preparar o prato, ao decorá-lo, enfim, há diversas situações corriqueiras as quais
exigem também uma série de cálculos mentais, que ocorrem no ato de cozinhar.
Com relação às pesquisas de Lave realizadas no supermercado, os estudos demonstram que
o ato de fazer compras exige, além do conhecimento matemático, outros procedimentos, como,
por exemplo: analisar a marca do produto, o prazo de validade; ponderar a vantagem ou não da
embalagem econômica em relação a outra embalagem de menor peso; calcular se a quantidade do
produto é suficiente para o consumo. Os dados apontados por essa pesquisa demonstram que os
entrevistados tiveram um bom índice de acertos nos cálculos geralmente realizados com o uso
de aproximações e cálculos mentais. — realizados durante as compras no supermercado.
Gonçalves
16
, em sua entrevista, relata a necessidade dos cálculos matemáticos durante as
compras do supermercado:
[...] Outra coisa também que eu faço é a compra, eu vou todo dia ao mercado
para fazer as compras, eu tenho que olhar as verduras, o custo, e sempre tem
que fazer as continhas, o que é viável, o que não compensa. As carnes é a
mesma coisa, você vai servir costelinha, como hoje eu servi costelinha, amanhã
eu vou servir bisteca, então você tem que sempre fazer conta, ver o que é mais
16
Nome fictício de um dos entrevistados dessa pesquisa. Nesse período, Gonçalves era proprietário de um
restaurante self-service.
79
viável, o que agrada o cliente, também, né? Talvez nem sempre o que é barato
agrada o cliente, mas às vezes o que é barato agrada o cliente, tem tudo isso.
Então tem que ver no supermercado o que vai comprar ou não vai comprar,
então tem tudo isso também. Eu costumo ir em três a quatro supermercados na
semana, sempre procurando o que está em conta ou não está. Ás vezes tem uma
mandioquinha, um abacaxi mais em conta, e tudo isso faz uma grande
diferença.
[...] Você precisa estar atento à concorrência, atrás das promoções, da
qualidade, também, quem oferece qualidade ou quem oferece preço, tem
tudo isso. E a gente tem que ver a consistência da mercadoria que
comprando, quando você compra uma caixa de cenoura, você tem que ver se
ela está consistente ou não tá, e para ver se vai ter perda ou não.
Tem
mercadoria que você não perde nada, quando você compra ela, você sabe
que não vai ter perda e mesmo assim compensa.
A partir da fala do entrevistado, percebemos a preocupação de agradar o cliente, mas
sempre procurando produtos com preços mais baixos para não ter prejuízo e poder aumentar a
sua margem de lucro. Ao realizar a sua compra no mercado, Gonçalves está atento às promoções,
para escolher os ingredientes do cardápio do dia, além da preocupação com a qualidade dos
produtos. Além disso, também se preocupa em servir bem e atender o gosto da clientela do
restaurante.
Enfocando a questão das compras no supermercado, Teresa
17
, outra entrevistada, relata o
uso da matemática na cozinha e no supermercado. Acerca desta questão ela fala:
[...] Não sei se é que a gente, eu não sei é a vivência da gente, a gente
vai convivendo com número, para cozinhar, para ir no mercado, em tudo lugar
a gente usa matemática, eu acho que é até por isso, que fica mais fácil as
coisas, ajuda muito. Então você vai no mercado, um preço uma coisa, a
outra tá outro preço, e aí tem que ver se o dinheiro dá. Então eu acho que é por
isso né, e até coisinha corriqueira, do dia-a-dia, dá para gente ver que pra tudo
a gente usa a matemática.
Teresa indica em seu relato que a matemática está presente em diversas situações que
exerce no cotidiano. Entretanto, cabe aqui ressaltar que ela faz referência à presença de uma
matemática escolar; tal referência pode ser justificada pelo fato de saber que a pesquisadora é
professora de matemática. Mas, independentemente disso, ela também nos fornece exemplos de
situações que a fazem de fato conviver com números e cálculos fora do ambiente escolar.
17
Nome fictício de uma das entrevistadas dessa pesquisa. Teresa faz bolos, doces e salgados para festas e também
vende trufas, bombons e ovos de chocolate.
80
A entrevistada refere-se à matemática utilizada ao cozinhar, ao fazer compras no
supermercado e destaca a preocupação com o custo das compras, ou seja, questiona se elas se
enquadram em seu orçamento. Assim, ao escolher um produto no supermercado, ela percebe a
necessidade de realizar diversos cálculos, observando as diferentes marcas dos produtos, seus
pesos e também a qualidade de cada um deles, antes de tomar a decisão pela compra.
Além das preocupações indicadas por Tereza, vale ressaltar outras situações comuns no
contexto de compras no supermercado: a compra não planejada de produtos que nos chamam
atenção por sua organização na prateleira do mercado ou ainda a compra motivada pelas
promoções. Tais atitudes, ao final da compra, podem gerar um carrinho cheio de produtos e,
desse modo, encarecer a compra, podendo inclusive ultrapassar o valor planejado. Assim, é
comum pessoas irem às compras munidos de calculadora, justamente para verificar se o dinheiro
será suficiente.
Os estudos de Lave com o grupo dos “Vigilantes do Peso” constataram que esse grupo
utiliza uma quantidade enorme de cálculos e medições para verificar os valores calóricos dos
alimentos e também concluíram que, com o passar do tempo, ocorreu uma diminuição desses
cálculos e medições. A partir do momento em que começam a perder peso, o hábito de fazer
cálculos e medir as porções de alimentos torna-se uma prática cotidiana. Outra questão
importante abordada por esses estudos refere-se ao conflito que essas pessoas vivem diante das
regras das dietas e da necessidade de controlar o desejo de comer.
Nesse sentido, Gonçalves comenta que o hábito de comer alimentos menos calóricos
representa um perfil de uma parte da clientela do seu restaurante. Assim como o grupo dos
“Vigilantes do peso” dos estudos de Lave, parte das pessoas que freqüentam o seu restaurante
tem preocupação com a questão do peso e da alimentação saudável. Eis seu depoimento:
[...] O pessoal da meia idade, ele se preocupa mais com a saúde, prefere
uma carninha mais na chapa, mais salada, mais legumes, é um cliente que
prefere salada, um bifinho grelhado, um franguinho grelhado, uma coisa
assada, já não prefere batata, já tem uma preocupação. Já a pessoa mais
velha, a partir dos 60 anos prefere uma comida mais leve, uma alface, um
bifinho grelhado, se não tiver o cliente vai embora mesmo. Ele prefere um filé,
um franguinho na chapa.
81
Na fala desse sujeito percebemos que a clientela se preocupa com a alimentação saudável.
Segundo ele, muitos clientes chegam ao restaurante, procuram alimentos de baixa caloria e
consomem muita salada, legumes e carnes grelhadas. Assim como o grupo dos “Vigilantes do
peso”, citados por Lave, esses clientes, ao se defrontarem com um prato, calculam mentalmente
as possíveis calorias contidas naquela refeição, demonstrando a preocupação de não ultrapassar o
número de calorias que devem ser ingeridas diariamente.
Os estudos de Lave nos indicam que boa parte de nossas práticas cotidianas exige a
utilização de saberes matemáticos que são construídos pelos indivíduos ao longo de suas vidas.
Wenger (2001) discute o conceito de prática social, para a qual utiliza o termo
“comunidade de prática”. Mas o que é uma comunidade de prática?
Segundo Wenger (2001), é um tipo de comunidade criada por um determinado tempo, a
qual tem como objetivo realizar uma ação compartilhada. As realizações das práticas pelos
membros da comunidade resultam numa aprendizagem coletiva, que se reflete no sucesso das
ações e das relações sociais da comunidade. Nesse sentido, numa comunidade de prática todos os
participantes aprendem.
Para esse autor, prática significa fazer algo dentro de um contexto histórico e social e
possui uma estrutura e um significado próprios. Os membros de uma família, um grupo de
alunos, um grupo de professores e também um grupo de pessoas praticando um hobby ou uma
atividade de lazer podem ser considerados comunidades de prática.
Wenger (2001), ao discutir o conceito de prática, apresenta uma teoria de aprendizagem
que define a prática social dentro da sociedade, de uma forma abrangente e significativa para os
indivíduos que fazem parte de um grupo social. Esse autor utiliza alguns conceitos que
contribuem para o entendimento do conceito de prática social, demonstrando a amplitude e a
complexidade das práticas dos sujeitos dentro do contexto social.
Inicialmente, Wenger (2001) fala da aprendizagem como fenômeno que faz parte da nossa
natureza humana e que contribui para a nossa sobrevivência dentro do meio social. Segundo esse
autor, para muitas pessoas o conceito de aprendizagem está intimamente ligado a atores e a
situações do contexto escolar, como professores, livros de texto, aulas expositivas, deveres
escolares, provas e exames. Nesse sentido, a teoria social da aprendizagem não é exclusivamente
acadêmica, mas está presente em todos os segmentos da sociedade, ou seja, em todas as
82
comunidades de prática. Portanto, a aprendizagem representa um fenômeno presente e constante
na nossa vida cotidiana.
A valorização da aprendizagem como participação social representa o ponto central dessa
teoria social. Nesse sentido, a participação social também pode ser considerada um processo de
aprender e conhecer. Em consonância com as idéias de Wenger, o sujeito da pesquisa Gonçalves
fala da aprendizagem no ato de cozinhar:
[...] Com o tempo eu comecei a interar na cozinha, e aprendi a fazer coxinha,
fazer carne, fatiar calabresa, fazer massa de pastel e aí fomos dando seqüência
da vida. E estava fazendo pastel, tava servindo cliente, tava
aprendendo, e é mais uma aprendizagem, no começo é só aprendendo.[...] E
fui trabalhando no mesmo ramo, lanchonete também e sempre na cozinha,
fazendo massa, churrasquinho, depois começando a fazer arroz, também,
macarrão, a gente vai aprendendo no dia-a-dia, um dia você faz salgado, outro
dia faz outra coisa, é uma aprendizagem, e durante vinte e cinco anos eu
trabalhei com isso daí.
[...] Na cozinha você aprende, você vai aprender com as pessoas, no dia-a-dia,
então funciona assim. Todo dia eu vou para cozinha, a minha esposa, agora
mesmo eu estava fazendo um filé de frango, vendo o feijão, o arroz, a ponta de
alcatra, o molho madeira, a gente vai aprendendo. Depois de um ano para
eu comecei a aprender essas coisas, também, é cupim, as carnes, tudo é uma
aprendizagem.
[...] A gente tem que aprender a ouvir muito e falar menos, e tá sempre
aprendendo, e na cozinha você aprende todo o dia. Você aprende com a pessoa
mais humilde que for você vai aprender tá sempre aprendendo.
Na fala de Gonçalves, o verbo “aprender” e o termo “aprendizagem” aparecem várias
vezes, demonstrando que, na prática da culinária, a aprendizagem é um processo contínuo. Na
vida profissional, Gonçalves iniciou o seu trabalho como ajudante de cozinha, lavando pratos,
selecionando, lavando e picando os ingredientes, cortando frios, pois quem fazia as massas e os
recheios dos salgados era o senhor Nito
18
.
Com o passar do tempo, Gonçalves começou a fazer os salgados. Mais tarde, aprendeu a
fazer lanches e churrasquinhos, quando montou o seu próprio negócio. E atualmente, com o
restaurante, começa a realizar um outro trabalho na cozinha, que é de ajudar a preparar o almoço,
fazer massas, preparar carnes e outros pratos. Nesse sentido, Gonçalves argumenta que, na
18
Nome fictício da pessoa que ensinou Gonçalves a cozinhar.
83
cozinha, ele aprende a cada dia, mas o que nos chama atenção em sua fala é a afirmação de que,
na cozinha, não só se aprende cozinhando, mas aprende-se com as pessoas à volta. Nesse sentido,
entendemos que em toda prática da culinária a aprendizagem é um processo contínuo. Quanto
mais cozinhamos, mais aprendemos a lidar com os segredos que envolvem a culinária.
Devemos considerar, portanto, que a aprendizagem não é uma atividade separada de nossa
vida e é um processo que nos acompanha durante toda a nossa existência. Como parte da nossa
vida, esse processo intensifica-se a cada dia. A aprendizagem ocorre em todos os momentos de
nossas vidas, desde a nossa a infância até o fim da nossa existência.
Miguel (2003) define prática social como:
atividades e ações físico-afetivo-intelectuais que se caracterizam por ser: (1)
conscientemente orientadas por certas finalidades; (2) espácio-temporalmente
configuradas; (3) realizadas sobre o mundo natural e/ou cultural por grupos
sociais cujos membros estabelecem entre si relações interpessoais que se
caracterizam por serem relações institucionais de trabalho organizado; (4)
produtoras de conhecimentos, saberes, tecnologias,discursos,artefatos culturais
ou, em uma palavra, de um conjunto de formas simbólicas.(p.165)
E ainda, em relação a essa noção, esse autor esclarece:
- certas práticas sociais podem ser ou mais ou menos valorizadas em
determinados momentos e contextos do que em outros; nem todas as práticas
sociais realizadas num certo contexto e momento são igualmente valorizadas;
- não existem práticas sociais completamente desvalorizadas; para que uma
prática social tenha existência social ela precisa ser valorizada, ainda que por um
único grupo social;
- nem sempre os grupos sociais que valorizam ou promovem uma prática social
são os que efetivamente a realizam ou dela participam;
- práticas sociais podem ser efetivamente realizadas ou promovidas por
segmentos que as desvalorizam;
- práticas sociais não-legitimadas ou mesmo socialmente reprimidas por
determinados grupos sociais não são práticas desvalorizadas;
-todas as práticas sociais produzem conhecimento e/ ou ressignificam saberes e
conhecimentos apropriados de outras práticas que lhe são contemporâneas ou
não, que participam do mesmo contexto ou não.(p.166)
A partir da citação desse autor, entendemos que prática social representa ações de um grupo
de pessoas que possuem os mesmos objetivos e, nesse sentido, compartilham crenças, valores,
84
envolvem-se e organizam-se para a concretização dessas práticas, em algum espaço, por um
determinado tempo.
Assim como Lave e Wenger, Miguel também considera que em toda prática social existe
a produção de conhecimento, saberes, técnicas, ou seja, a produção de um bem simbólico. No
entanto, esse autor ressalta que existem práticas mais valorizadas que outras dentro do contexto
social e, também, que nem todas as práticas sociais valorizadas por um determinado grupo
representam o grupo que as realiza.
A partir das considerações desses autores, entendemos que a realização de uma prática
social pode gerar a aprendizagem e a produção de saberes e conhecimentos. Compreendemos
também que essas práticas envolvem um comprometimento do individuo com a realização das
mesmas e a utilização da mente e da cognição. Com relação à aprendizagem, Wenger aponta que
existe um novo marco referencial de que a aprendizagem não está presente apenas no campo
acadêmico ou nos setores envolvidos com este segmento da sociedade, mas ocorre em todo o
contexto social em que se produzem práticas sociais.
Em relação à prática social da culinária em questão, a partir de Lave e Certeau existe a
idéia de uma produção de conhecimento matemático na cozinha, pois, para o preparo de uma
refeição, são realizados diversos cálculos mentais, que se iniciam com a compra dos ingredientes
no supermercado e vão até a execução do prato. Nesse sentido, fazem-se necessárias algumas
considerações sobre a culinária e a gastronomia.
4.2 Algumas considerações sobre a prática social da culinária
Neste momento, pretendemos abordar o tema da culinária. É muito comum as pessoas
entenderem que a palavra “culinária” tem o mesmo significado que “gastronomia”. Apesar de
ambas estarem ligadas à questão da alimentação, possuem significados diferentes. Inicialmente,
discutiremos o significado da palavra “gastronomia” e, posteriormente, faremos uma análise da
prática social da culinária.
85
A palavra “gastronomia”
19
tem origem grega (gastronomia) e representa o conhecimento
de tudo o que se refere à cozinha, à arte de comer e beber, isto é, de apreciar os prazeres da mesa
e saboreá-los com paladar requintado. Por outro lado, esse termo possui também um significado
mais amplo, conforme nos revelam as considerações seguintes.
Segundo Franco (2004), a Grécia clássica teve um número considerável de escritores que
se dedicaram à gastronomia: Arkhestratus, poeta e viajante nascido na Sicília no século IV a.C.,
relatou as suas experiências e descobertas culinárias, das mais notáveis, e foi considerado o
fundador da gastronomia grega. Sua obra, denominada Hedypatheia, é um tratado de prazeres. E
seu trabalho foi denominado gastronomia, vocábulo composto de gaste, que significa estomâgo;
nomo, que significa lei; e do sufixo ia, que forma o substantivo. Desse modo, gastronomia
significa, etimologicamente, estudo ou observância das leis do estômago.
Na França, de acordo com Carneiro (2003), o termo “gastronomia” foi usado pela
primeira vez na tradução francesa do Banquete dos sofistas, de Ateneu, em 1623, para referir-se
ao título de uma obra perdida de Arquestrato, o neto de Péricles. E, em 1801, esse termo foi
popularizado, num longo poema de Joseph Berchoux, passando a designar a “boa mesa”.
na perspectiva de Savarin (1995), a gastronomia é o conhecimento de tudo o que se
refere ao homem, na medida em que se alimenta. Seu objetivo é zelar pela conservação dos
homens, por meio da melhor alimentação possível. Nesse sentido, a gastronomia abrange um
espaço amplo, envolvendo os diversos setores da economia, como, por exemplo, os lavradores, os
vinhateiros, os pescadores, os fazendeiros e também uma numerosa família de cozinheiros,
independentemente do grau de titulação ou da qualificação sob a qual têm como tarefa preparar
os alimentos.
Segundo este último autor, a gastronomia está relacionada a diversos campos do
conhecimento como, por exemplo:
- a história natural, pela classificação que faz das substâncias alimentares;
- a física, pelo exame de seus componentes e de suas qualidades;
- a química, pelas diversas análises e decomposições a que submete tais substâncias;
- a culinária, pela arte de preparar as iguarias e torná-las agradáveis ao gosto;
- o comércio, pela pesquisa dos meios de adquirir pelo menor preço possível o que consome e de
oferecer o mais vantajosamente possível o que vende;
19
Laurosse Cultural, 1995, volume onze, p.2.662.
86
- a economia política, pelas fontes de renda que apresenta à tributação e pelos meios de troca que
estabelece entre as nações.
Nesse sentido, de acordo com o autor, a gastronomia governa a vida inteira do homem
desde o seu nascimento até o fim de sua vida, pois a alimentação é fundamental para a nossa
existência.
Enfim, a gastronomia refere-se a tudo o que pode ser comido; seu objetivo é a
conservação dos indivíduos e seus meios de execução abrangem a cultura que produz; o comércio
que troca; a indústria que prepara; e a experiência que inventa os meios de dispor tudo para o
melhor uso.
A partir das considerações desse autor, entendemos que a gastronomia possui um
significado mais amplo e a culinária representa uma das partes da gastronomia, a que se refere ao
ato de cozinhar. A origem da palavra “culinária”
20
vem do latim culinaris, de cozinha, e significa
a arte de cozinhar.
Não pretendemos neste trabalho discutir o conceito de culinária de forma ampla e
detalhada, pois, por representar uma prática presente em todos os povos ou grupos sociais do
mundo inteiro, a culinária é um assunto rico e extenso que envolve inúmeras questões.
Por sua vez, esses grupos possuem diferentes gostos, utilizam uma variedade de produtos
agrícolas, peixes e tipos de carne para cozinhar e possuem formas de cozinhar que obedecem a
rituais, valores, crenças, conhecimentos, entre outros.
Desse modo, nossa intenção é discutir a prática da culinária ligada a alunos da Educação
de Jovens e Adultos que exercem essa atividade profissionalmente e, diante da extensa
bibliografia que envolve a culinária, faremos apenas um recorte desse assunto.
Devemos considerar que a culinária implica questões culturais e tradições que a
diferenciam de uma região para outra. Além disso, a culinária regional depende de uma série de
fatores que podem ser de ordem econômica, geográfica, climática, religiosa, enfim, fatores que
interferem e contribuem para a particularidade da culinária de um grupo social ou povo. Nesse
sentido, de Certeau (1996) argumenta:
Em cada cozinha regional, se houve invenção de um “modo de fazer” particular,
cujo significado ou cujas razões foram depois esquecidos, isso via de regra foi
para responder a uma necessidade ou a uma lei local. Os viajantes estrangeiros
20
fonte:Larousse Cultural, 1995, volume sete, p.1.728.
87
admiravam outrora a sutilidade do Sul da China, cuja cozinha é baseada no arroz
integral, na pimenta, nos legumes verdes, soja e peixes, mas os elementos desta
composição lhe foram impostos pelos fatos: eram estes produtos ao mesmo
tempo os mais baratos e mais nutritivos da região. Muitas vezes o sabor de um
prato está na natureza própria de um produto do solo: preparada com batatas da
Califórnia, a torta Tatin perde o extremo equilíbrio do acidulado (atribuído às
maçãs-rainetas) e do açúcar caramelizado que faz todo o seu charme, e o pollo
negro do México seria irrealizável sem pó de cacau (sem açúcar
). (p.242)
A partir das considerações desse autor entendemos que a prática da culinária dos diversos
grupos sociais obedece a diversos fatores sociais, econômicos, físicos e climáticos do local que
habitam Desse modo, o plantio de cereais, legumes, verduras e frutas depende do tipo de solo e
do clima da região.
Entretanto, não podemos nos esquecer de que atualmente, com a modernização nos meios
de produção e a tecnologia, é possível, com a utilização da irrigação, cultivar produtos agrícolas
em regiões áridas e desérticas, no passado consideradas improdutivas. Por outro lado, também
entendemos que, no mundo inteiro, ainda existem grupos sociais que dependem da água da chuva
para irrigação, produzem somente alimentos próprios ao clima da sua região e muitos deles
sofrem com a escassez de alimentos, o que dificulta a realização da prática culinária.
Segundo di Certeau (1996), atualmente é possível transportar coisas e pessoas
deslocarem-se de um lugar para o outro, de um continente para o outro. Desse modo, podem-se
saborear pratos de cozinhas exóticas, experimentar novos sabores e diferentes gostos e preparar
receitas culinárias das regiões mais distantes do local onde habitamos.
Nesse sentido, as condições locais não impedem a escolha do prato, a obtenção dos
ingredientes para o seu preparo. Hoje é possível encontrar no comércio local, importados fora de
estação, diversos temperos, legumes, frutas, cuja maturação pode ser retardada por vários
processos.
Dessa forma, segundo esse autor, a cozinha regional perde a sua coerência interna, aquele
espírito de economia cuja engenhosidade inventiva e cujo rigor constituíam toda a sua força.
Nesse sentido, o que temos são supostas cozinhas nas quais se fabricam diversos pratos e
exóticos que foram adaptados aos nossos hábitos, gostos e às leis de mercado.
Além disso, o preparo de alguns pratos regionais depende de uma cozinha rústica,
exigindo um cozimento regular, lento e longo, muitas vezes com a utilização do fogão a lenha,
cenário difícil de reproduzir na vida urbana. Desse modo, nem o tempo que se pode dedicar e
88
nem os modernos aparelhos culinários disponíveis são capazes de reproduzir um prato regional
com o mesmo sabor.
Para di Certeau (1996), na cozinha existe um dicionário próprio, ou seja, a língua usada
para falar de cozinha abrange quatro domínios distintos de objetos ou de ações: os ingredientes,
que são a matéria-prima; os utensílios e recipientes e os objetos utilizados na cozinha; as
operações, verbos de ações e descrições do hábil movimento das mãos; os produtos finais e a
nomeação dos pratos obtidos. Segundo o autor, esses quatro registros são essenciais para a
elaboração de um prato culinário.
Com relação ao primeiro registro, destacamos que os ingredientes são essenciais para o
preparo de uma refeição e, em algumas situações, a falta de um deles impede esse preparo. No
entanto, em alguns casos é possível a substituição por outro, o que, dependendo da criatividade
do cozinheiro, pode gerar a criação de um novo prato.
O segundo registro refere-se aos utensílios da cozinha, dentre os quais destacamos
recipientes como tigelas, travessas, bacias, talheres e também os aparelhos elétricos, como, por
exemplo: a batedeira, o liquidificador, a centrífuga, o processador, que vieram facilitar e reduzir o
tempo de preparo das refeições, o que hoje exige um menor esforço físico para aqueles que
cozinham.
Com relação aos gestos e às ações na cozinha, destacamos todos os movimentos com as
mãos durante o preparo do prato. Essas ações ocorrem quando separamos e lavamos os legumes
ou verduras; quando cortamos, ralamos, peneiramos, descascamos, coamos os ingredientes;
enfim, todos os modos de fazer de um prato. E, por fim, o último gesto, que representa a
elaboração do prato, ou seja, a fase final da obra-prima.
Ao falar de línguas na cozinha, faz-se necessário destacar a linguagem dos livros de
receitas. Mas, antes disso, podemos perguntar: Quando surgiram os livros de receitas culinárias?
Segundo Franco (2004), no século IV a.C., em Atenas, na Antiga Grécia, havia vários
livros de cozinha. Muitos deles faziam parte da coleção de Athenaeus que, por volta do ano 200
a.C., publicou a obra intitulada Deipnophistai. Esse manuscrito reúne observações compiladas de
inúmeros autores sobre as maneiras e os costumes antigos, os alimentos, as bebidas e a arte de
cozinhar.
Segundo Strong (2004), na Idade Média, os primeiros livros de receitas de culinária
surgiram por volta do final do século XIII, o que pressupõe uma classe consciente do que comia.
89
Para um cozinheiro da era medieval, provavelmente analfabeto, as receitas eram desnecessárias,
pois a sua arte se transmitia oralmente. Confeccionar um manuscrito nessa época tinha um custo
muito alto, e certamente tais registros não pertenceriam aos cozinheiros profissionais, mas
àqueles para quem eles trabalhavam.
Para esse autor, os especialistas em culinária medieval argumentam que as receitas desses
livros destacam uma preocupação com a dieta e colocam-nos mais no campo da medicina que da
culinária. Dentre as cem coleções mais conhecidas nessa época, destaca-se Viandier de
Taillevent, cujo autor, Guillaume de Tirel, foi cozinheiro de Carlos V e Carlos VI na França.
Strong (2004) destaca que as receitas culinárias medievais se baseavam em teorias antigas
sobre dieta saudável. Além disso, as receitas revelam três sabores fundamentais para o paladar
medieval: forte, o que dependia do uso de condimentos; doce, refletindo o uso crescente do
açúcar; e acre, uma queda pelo picante e azedo na comida. Desse modo, a existência de livros de
receitas por si reflete o fato de que cozinhar estava ficando tão sofisticado que exigia uma
transmissão escrita.
Com relação à língua das receitas de cozinha, di Certeau (1996) afirma que a receita
compõe uma espécie de texto mínimo, com uma linguagem própria, na qual aparecem termos
técnicos, como: escaldar, refogar, untar, queimar, o que, segundo o autor, exige um conhecimento
prévio. Para as mulheres, nos modestos livros de receitas que usam para cozinhar no dia-a-dia, a
linguagem é simples, pois esses livros utilizam um vocabulário técnico antigo que permaneceu
estável por quase três séculos, porque as receitas descrevem as artes de fazer, que pouco
mudaram.
A grande revolução nesse domínio, segundo esse autor, foi com a modernização, em
meados do século passado, quando ocorreu a inovação industrial no trabalho doméstico. A
entrada dos eletrodomésticos, como geladeira e freezer, na cozinha das mulheres causou um
impacto que exigiu uma nova maneira de agir, de relacionar-se com as coisas, modificando os
modos de organização no espaço da cozinha.
Modificaram-se os processos de preparação, de cozimento e de conservação dos pratos,
interferindo assim na linguagem das receitas. A modernização da cozinha e a utilização dos
eletrodomésticos também provocaram a introdução de novas receitas no cardápio do dia-a-dia e
uma mudança nos gostos. Desse modo, também caíram no esquecimento aquelas receitas que
90
eram passadas de geração em geração, de mãe para filha. Nesse sentido, de Certeau (1996)
destaca:
Uma generalização de uma transmissão escrita em vez de uma comunicação oral
envolve um profundo remanejamento do saber culinário, um distanciamento em
relação à tradição, tão importantes quanto foi a passagem do caldeirão
pendurado na lareira (cremalheira) ao fogão de lenha e depois do fogão a gás.
(p.294)
Nesse sentido, entendemos que os hábitos culinários distanciam-se cada vez mais dos
costumes, dos valores e das tradições.
Numa outra perspectiva, Savarin (1995) argumenta que existem três espécies de culinária:
a-) A primeira ocupa-se do preparo dos alimentos e conservou o nome primitivo.
b-) A segunda detém-se em analisá-los e em verificar seus elementos: convencionou-se chamá-la
química.
c-) A terceira, considerada culinária de reparação, é mais conhecida pelo nome de farmácia.
Apesar de terem objetivos diferentes, todas têm em comum o uso do fogo, de fornos e
dos mesmos recipientes. Assim, o mesmo pedaço de carne bovina que o cozinheiro converte em
sopa e caldo de carne, o químico utiliza para saber quantos tipos de substâncias o compõem e o
farmacêutico o faz sair violentamente de nosso corpo se eventualmente causar indigestão.
Para esse autor, a culinária, além de nutrir e garantir a sobrevivência humana, é
comparada com a química, que os alimentos possuem propriedades químicas. a terceira a
culinária pode ser também considerada uma farmácia, pois, através do consumo de alimentos
saudáveis, podemos curar e prevenir-nos das doenças.
Como vimos, essa prática envolve questões relevantes que apontaremos a seguir:
-A culinária permite estreitar as relações sociais entre as pessoas. Ao redor da mesa, Devemos
considerar que a mecanização dos trabalhos na cozinha refletir-se-ia numa mudança significativa
dos hábitos alimentares e também na estrutura da vida familiar e social. De acordo com Franco
(2004), a modernização permitiu o aumento da produção das indústrias de alimentos e contribuiu
de maneira decisiva para o maior intercâmbio de padrões de alimentos, de forma que as cozinhas
e os alimentos usados assemelham-se mais e mais. Desse modo, a interação global da cozinha
91
intensifica é possível um relacionamento amigável entre elas, pois, através da partilha do
alimento, estreitam-se os laços de amizade. Desse modo, a culinária faz parte de uma prática
relevante dentro do contexto de qualquer grupo social.
- A arte de cozinhar exige um saber-fazer que envolve atividades tanto mentais como manuais.
As primeiras referem-se à memória, aos cálculos matemáticos e à organização. as atividades
manuais dizem respeito aos gestos na realização das atividades culinárias, como cortar, ralar,
peneirar, entre outros fazeres da arte culinária.
Ao referir-se às práticas culinárias, de Certeau afirma (1996):
Mas o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir
matéria e memória, vida e ternura, instante, presente e passado que já foi,
invenção e necessidade, imaginação e tradição-gosto, cheiros, cores, sabores,
formas, consistências, atos, gestos, movimentos coisas e pessoas, calores,
especiarias e condimentos.(p.296)
Por fim, entendemos que o ato de cozinhar representa uma prática que envolve técnicas,
as quais permeiam vários campos de conhecimento em diversas áreas, como: a nutrição, a
história da alimentação, literatura, a história, a sociologia, a agricultura, a química, a física, além
de carregar consigo marcas indeléveis da cultura de um povo de uma região ou país.
Os aspectos aqui abordados estão fortemente integrados ao conteúdo das entrevistas
realizadas com os sujeitos da pesquisa, as quais serão analisadas no próximo capítulo.
92
5- ANÁLISE DAS ENTREVISTAS
Tem coisas que a gente faz na culinária faz a olho, como temperos,
molhos ou alguma outra coisa mais simples, mas na minha culinária tem
que usar as medidas certas, pois senão a massa fica crua, a massa fica
dura demais.
Ana, uma das entrevistadas.
No presente capítulo pretendemos discutir o trabalho de campo, a coleta de dados e a
análise das entrevistas dos sujeitos desta pesquisa. Essa análise permitiu-nos escolher para
discussão dois temas — denominados eixos temáticos — recorrentes na fala dos entrevistados. À
guisa de conclusão, faremos algumas considerações sobre o estudo das medidas na matemática
no contexto escolar da Educação de Jovens e Adultos.
5.1- Coleta de dados, organização e análise das entrevistas.
De acordo com Bogdan e Biklen (1994), “trabalho de campo” numa pesquisa qualitativa é
uma expressão utilizada para identificar o lugar que o pesquisador convive com os sujeitos na sua
pesquisa, ou seja, pode envolver uma escola, a residência ou ainda o local de trabalho do sujeito
da pesquisa.
Nesta pesquisa, o trabalho de campo ocorreu em diversos locais, a saber: na escola em que
a pesquisadora leciona e os entrevistados estudavam, nas residências e nos locais de trabalhos
destes. As entrevistas foram feitas na casa de duas entrevistadas, Ariane e Ana; no caso de
Gonçalves, no seu restaurante; e a de Teresa ocorreu no seu local de trabalho. Cabe destacar que
as entrevistas ocorreram mais de uma vez, para que a pesquisadora pudesse obter maior número
de dados sobre os sujeitos da pesquisa e foram complementadas pelas conversas que ocorriam no
convívio escolar e nas visitas às residências de Ana, Teresa e Ariane.
De acordo com Erickson (1989), um dos recursos utilizados pelo pesquisador qualitativo é
o diário de campo, que reúne o registro de todas as observações e entrevistas do pesquisador
93
durante o trabalho de campo. Nesta pesquisa, durante esse trabalho, a pesquisadora esteve atenta
às falas diárias com os entrevistados, as quais foram anotadas no diário de campo.
As entrevistas abaixo relatadas possuem uma estrutura aberta, o que, segundo Goldenberg
(1992), permite ao sujeito da pesquisa falar livremente sobre o assunto proposto pelo
pesquisador.
O encontro com Ariane aconteceu no mês de maio, num sábado à tarde, em sua casa.
Ariane é uma jovem alegre, falante, uma pessoa divertida e bem tranqüila. Durante toda a
entrevista demonstrou firmeza, parecia tranqüila e solta. Atendeu prontamente ao pedido para que
fizesse um relato de toda a sua vida e falasse sobre a sua infância, o seu trabalho, a escola, enfim,
para que contasse tudo o que tivesse vontade de falar. A história de Ariane é muito interessante e
a sua vida é de uma pessoa que batalha para conquistar os seus sonhos.
A entrevista com Gonçalves ocorreu em seu restaurante, no sábado à tarde. Ao saber que a
entrevista seria gravada e precisaria de um local quieto, que havia pessoas almoçando no
restaurante, ele sugeriu uma outra sala do restaurante, reservada para festas. Foi orientado a falar
tudo sobre sua vida, seu trabalho, as atividades do restaurante, o gosto dos clientes, o cardápio, a
escola e, em especial, a revelar, também, se existe a matemática da cozinha e, em caso
afirmativo, explicar de que forma.
A entrevista com a doceira Ana ocorreu em sua casa no dia nove de maio, um dos dias
mais frios do ano. Enquanto ela preparava um chocolate quente, uma conversa tranqüila precedeu
a entrevista, ali mesmo realizada. Seus pais, na sala, assistiam à televisão. Ela preparou uma
mesa para todos e, logo após o chocolate quente com um delicioso bolo de fubá junto com a sua
filha, teve início a entrevista, que durou cerca de trinta e cinco minutos.
A realização da entrevista com Teresa foi marcada por vários desencontros: vários
telefonemas para sua casa, uma tentativa infrutífera de encontrá-la em seu local de trabalho
tinha ido ao correio. Mais tarde, por sugestão da secretária da escola, nova tentativa de encontrá-
la, por telefone, novamente sem sucesso. Somente no dia seguinte foi possível agendar o encontro
com Teresa.
Às quatorze horas do dia dez de maio de 2007, Teresa receptiva e efusiva , após a
intermediação dos funcionários da secretaria da escola, foi entrevistada em uma das salas da
escola em que trabalha. Após a realização das entrevistas, a pesquisadora realizou as transcrições
e iniciou a análise de dados da entrevista. Segundo Bogdan e Biklen (1994), esta última tarefa
94
representa um processo pelo qual o pesquisador organiza todos os dados coletados durante o
trabalho de campo como, por exemplo, os questionários, as anotações do diário de campo e a
transcrição das entrevistas. Além disso, de acordo com esses autores, a análise envolve um
trabalho com esses dados — sua organização, a sua divisão, a procura de padrões e a síntese.
No caso das entrevistas, inicialmente foi realizada sua transcrição. Após ouvir e
transcrever cada entrevista, a pesquisadora separou trechos e os organizou em temas que foram
denominados eixos temáticos e definidos da seguinte forma:
Época em que começou a cozinhar- Os sujeitos da pesquisa relatam o seu
primeiro contato com a prática da culinária.
Impressões sobre a escola e sobre o pessoal da EJA- Falam da vida escolar e da
sua experiência na Educação de Jovens e a Adultos.
Motivos que levaram ao abandono dos estudos- Os entrevistados contam por
que desistiram de estudar.
Criação de receitas - Os entrevistados contam se costumam inventar receitas.
Matemática escolar O sujeitos falam sobre a relação da matemática escolar
com a culinária.
A Matemática na cozinha – Falam da matemática utilizada no ato de cozinhar.
O uso da medida na culinária – Relatam sobre o uso da medida na cozinha.
Opiniões sobre o gosto – Os entrevistados falam da questão do gosto.
Opiniões sobre o bom cozinheiro Os sujeitos falam sobre quais são as
qualidades necessárias para ser um bom cozinheiro.
Alguns eixos temáticos foram citados individualmente:
Prazer em cozinhar sozinha (entrevista com Ariane, p. 3)
Compras no supermercado (entrevista com Gonçalves, p. 9).
Aprendizagem na cozinha (entrevista com Gonçalves, p. 9).
O jovem da EJA (entrevista com Ana, p. 22 e 23).
Logo após essa análise, a pesquisadora selecionou cinco eixos temáticos relevantes nesta
pesquisa, definidos da seguinte forma:
1-) Época em que começou a cozinhar. Neste tema os entrevistados contam um pouco
da sua história e revelam quando e como a culinária passou a fazer parte de sua vida.
95
2-) A matemática escolar. Este eixo refere-se ao contexto escolar e aborda a questão da
matemática e como os sujeitos da pesquisa lidavam com a matemática escolar.
3-) A matemática da cozinha. Este assunto revela se existe matemática na cozinha e se
existe alguma relação com a matemática escolar.
4-) Opiniões sobre o gosto. Esse tema aborda a questão do gosto na culinária, das
preferências dos clientes do restaurante.
5-) O uso da medida na culinária. A abordagem desse eixo refere-se ao uso das medidas
de peso e capacidade utilizadas na prática da culinária.
Veja a seguir a tabela construída a partir dos eixos temáticos:
Eixo
Temático
Sujeito
da
pesquisa
Época em
que
começou
a cozinhar
A matemática
escolar
A matemática
na cozinha
Impressões
sobre
o gosto
Uso da
medida
na
culinária
Ariane
Com oito anos
eu comecei a
fazer bolo,
minha mãe me
ensinou a
fazer,(p. 1)
Quando eu estava no
“Padre Armani“, eu
detestava matemática.
Eu não sei se era a
matemática ou o
professor era muito
chato. Quando ele
tomava a tabuada,
então eu tinha horror
de estudar tabuada. Até
hoje eu não sei
tabuada, eu detesto
tabuada, para mim tem
calculadora e celular,
tabuada nem pensar.
Ele tomava tabuada, e
arrancava ponto se a
gente não acertava.
Quantas vezes eu ficava
com mão para trás
contando no dedo se eu
conseguia acertar.
Nossa aí eu comecei a
ter ódio de
matemática...(p. 4)
E medida é matemática.
Então tudo se resume na
matemática, na
cozinha,na vida. E agora
eu estava pensando numa
matemática, dos tipos de
matemática que se usa no
dia-a-dia, principalmente
na cozinha da minha casa
é uma matemática assim,
colheres, litro, copo, é
mais simples e eu não
tenho tanta
responsabilidade, eu sei
se eu errar não vai ter
nenhum problema.
A matemática lá no
pesqueiro, é complicado,
todo mundo tá esperando
você para comer. (p.4 e
5)
A balança é só
para enfeite,
pra mim é tudo
no olho.
Eu não uso
medida, eu não
sigo receita, eu
não sigo nada,
tudo na base
vamo joga pra
ver o que dá.
Então era tudo
bem assim.
(p.3)
96
Gonçalves
Na pastelaria
tinha um
senhor
conhecido
como
Nito que fazia
o pastel, pois o
meu pai nunca
cozinhou na
vida. Como
não tinha
ajudante eu
comecei a
trabalhar com
ele e aprendi a
fazer as
massas, a
carne, e eu fui
pegando o
gosto de
cozinhar.(p.8)
Eu sempre gostava de
estudar, eu ia todo dia e
não faltava muito
pouco, eu não tinha
tempo, mas sempre
gostei. Eu ia muito bem
em matemática, é
gostoso matemática.
(p.10)
A cozinha e a matemática
têm tudo a ver, a
matemática tá em tudo, tá
na cozinha, no caixa, tá
em todo o lugar. No
restaurante, eu uso a
matemática é na hora de
o cliente pedir o
marmitex, você tem que
usar a matemática, o
custo, o quanto custa isso
ou aquilo. Agora há
pouco eu estava usando a
matemática...(p.10)
Eu sirvo para
clientes que gostam
de comida
balanceada e para
clientes que não se
preocupam com o
que engorda ou não.
Eu diria que 50% se
preocupa e 50% não
se preocupa com
isso, come por gosto
mesmo. Tem gente
que vem aqui para
comer aqui por
causa do torresmo,
da carne suína,
outros vem por causa
da salada, das frutas.
(p.11)
Aqui a gente não
trabalha com
a balança, mas já
usamos às
vezes para pesar
os pratos, a
gente faz um
prato e usa ter
uma noção do
que ta sendo
servido. Nos
marmitex, a
gente usa para
fazer os
cálculos, sempre
tá usando
matemática.
(p.10)
Ana
Eu comecei a
me interessar
pela cozinha
ainda muito
nova, eu só
fazia para
casa. Quando
eu tinha mais
ou menos
uns nove anos
tinha uma
senhora que
morava perto
de casa, e ela
tinha
sofrido
derrame. Então
era difícil ela
fazer comida,
então eu
acabava
fazendo para
ela.Eu aprendi
muito fazendo
para ela , a
gente fazia
arroz, a coisa
mais fácil, pois
eu não sabia
cozinhar, eu
não tinha
experiência na
cozinha, então
o que dava
para fazer um
arroz, esse
arroz na janta
virava uma
sopa de arroz,
às vezes levava
comida de
casa, a minha
mãe também
fazia, e eu
sempre ficava
prestando
O que eu aprendi em
matemática eu não uso
na culinária, pois são
coisas diferentes o que
a regra de três, a
porcentagem, medidas,
e na escola eu aprendi
matriz, funções, a gente
não usa na culinária,
mas mesmo assim foi
maravilhoso, eu aprendi
outras coisas, então na
escola foi muito bom,
tivemos um turma boa,
fiz novos amigos, a
matemática não é a
matemática que eu uso
na culinária, mas a
gente usa outra
matemática. (p.16)
A gente usa a matemática
de pesos, medidas,
porcentagem, medidas em
massa: um quarto, meio,
200 gramas. No meu
caso, eu tenho que usar
as medidas tudo certinho,
pois se você colocar um
pouco mais de farinha, a
massa fica dura, se
coloca mais leite fica
mole,
Influencia, né. Na minha
culinária que eu faço, eu
tenho que usar a medida
para fazer a massa do
salgado.(p. 18)
Se o sabor é
amarguinho, tem que
continuar
amarguinho se for
doce, tem que
continuar, porque às
vezes uma pequena
coisinha que muda, o
freguês percebe e ele
diz: “Não é assim
que eu gosto, não
assim que ela fazia.”
Quem está
acostumado
percebe. Por isso que
eu procuro, sempre,
utilizar as mesmas
marcas para manter
a qualidade (p.17)
Na minha
culinária tem que
usar
as medidas
certas, pois senão
a massa fica
crua, a massa
fica dura demais
(p.17)
97
atenção como a
minha mãe
fazia. (p.14)
Teresa
Então, eu não
tinha catorze
anos, a mulher
que eu
trabalhava
criava pato,
galinha, essas
coisas e ela
matava e eu ia
ajudar, a
matar, limpar,
preparar
porque ela
vendia. E foi
daí que eu
comecei a
cozinhar, né,
eu gosto
demais de
cozinhar. Eu
fazia frango,
peixe, e
macarronada,
lasanha,
nhoque, massas
eu adoro,
carne assada e
doces também.
(p.19)
E aí depois, nós fomos
para o primeiro e o
segundo ano, e aí ficou
mais difícil, aquele
cone, pirâmide, muito
difícil, cilindro, muito
difícil de entra na
cabeça da gente.
Depois entender os
cálculos que foram
feitos, a matemática é
muito difícil, é uma
matéria que não dá
para entender. Eu não
sei como tem gente que
tem a vocação e sabe o
que fazer é muito difícil
e só no finalzinho que
eu comecei entender,
mas eu precisava mais
uns dias de aula.(p.22)
Eu uso, mas às vezes eu
nem percebo que uso, a
gente nem percebe que
usa, porque meia colher
disso, meia xícara
daquilo, um quilo
daquilo, meio quilo, é
gramas, mas a gente nem
nota que usa, né. Eu uso
matemática também
quando eu faço uma
encomenda e eu vou
vender você tem que
comprar a mercadoria,
ver quanto você gastou,
para depois você colocar
o preço por cima daquilo
que você comprou, para
cobrir o seu trabalho, e
isso é o seu lucro. (p.23)
Eu faço assim, eu
coloco a mão, se
der para enrolar,
eu vejo a textura.
Como a massa de
coxinha, eu
ponho um tanto
de água na
panela, caldo de
galinha, e aí eu
ponho a farinha
de trigo, e vou
mexendo, vejo se
está mole, e vejo
se não está
colando na mão,
se ficar mole é
que a farinha que
não é boa, e aí eu
vejo que não deu
certo. (p.20)
Dentre os eixos temáticos abordados a partir da análise das entrevistas, optamos por
discutir apenas dois: impressões sobre o gosto e o uso da medida na culinária.
5.2 – Eixo temático: O gosto
O gosto representa um dos eixos temáticos que abordaremos na análise das entrevistas.
Esse eixo foi escolhido por percebemos, pelas entrevistas, que existe uma preocupação dos
cozinheiros entrevistados com essa questão. Essa preocupação é justificada pelo fato de que os
entrevistados cozinham visando sempre atender o gosto das pessoas para quem cozinham, sejam
elas clientes, amigos ou familiares. Mas o que é o gosto?
98
Segundo Savarin (1995), numa perspectiva biológica, o gosto é um de nossos sentidos que
nos permite entrar em contato com os corpos sápidos
21
através da sensação que causam no órgão
destinado a apreciá-los. Nesse sentido, esse autor argumenta:
O gosto tem por excitadores o apetite, a fome e a sede e parece possuir dois
usos principais. O primeiro é que ele nos convida ao prazer em nos alimentar e
com isso nos leva a repor as perdas contínuas decorrentes das ações de nossa
vida diária. E o segundo é que nos ajuda a escolher, entre as diversas substâncias
que a natureza nos oferece, as que o próprias a nos servir como alimentos.
(p.41-42)
Quanto à mecânica do gosto, Savarin (1995) afirma que a língua é o órgão que desempenha
papel fundamental no mecanismo da degustação, pois serve para amassar, revirar, espremer e
ingerir os alimentos. Através de suas papilas, auxiliada pelas bochechas, pelo palato e as fossas
nasais, ela se impregna das partículas sápidas e solúveis do alimento com os quais está em
contato. As bochechas fornecem a saliva necessária para mastigação e formação do bolo
alimentar; assim como as gengivas, o palato também participa e, sem a olfação que se opera na
parte posterior da boca, a sensação do gosto seria obtusa e completamente imperfeita.
Segundo Savarin (1995), a sensação do gosto é uma operação química que se faz por via
úmida, ou seja, é preciso que as moléculas sápidas sejam dissolvidas num fluido qualquer, para
poderem a seguir ser absorvidas pelas terminações nervosas, papilas ou sugadores, que forram o
interior do aparelho gustativo. A sensação do gosto reside principalmente nas papilas da língua.
Segundo a anatomia humana, nem todas as línguas possuem a mesma quantidade de papilas, ou
seja, algumas pessoas têm mais e outras têm menos. Esse fato confirma-se quando duas pessoas
que participam de um banquete e uma demonstra prazer em comer, enquanto a outra parece
comer forçada, pois possui uma pequena quantidade de papilas na língua.
Quando ingerimos água pura, não temos nenhuma sensação de gosto, pois a água não tem
nenhuma partícula sápida, mas, se ali dissolvermos sal, açúcar ou outra substância, certamente a
sensação do gosto ocorrerá. as outras bebidas possuem soluções carregadas de partículas
apreciáveis.
Com relação aos corpos sólidos, ao serem ingeridos são divididos pelos dentes, embebidos
por saliva e também por outros fluidos degustadores. a língua deve pressioná-los contra o
21
É todo corpo solúvel e capaz de ser absorvido pelo órgão do gosto.
99
palato até extrair um suco que, suficientemente carregado, possa ser apreciado pelas papilas
gustativas e, assim, o corpo sólido pode ser transportado para o estômago.
Savarin (1995) considera que o olfato e o gosto formam um único sentido, do qual a boca é
o laboratório, o nariz é a chaminé, de forma que um serve para degustação dos corpos táteis e o
outro para a degustação dos gases. Através do olfato é possível avaliar os alimentos antes de
prová-los e mesmo de vê-los. Podemos sentir o cheiro da boa comida e abrir o nosso apetite ou
também, a partir de odores repulsivos, sentir náuseas. Nesse sentido, através da percepção
olfativa podemos identificar se um alimento é saboroso ou não. Mas, afinal, o que é sabor?
O número de sabores é infinito, pois todo corpo solúvel tem um sabor especial que não se
parece inteiramente com nenhum outro. Além disso, os sabores modificam-se por sua agregação
simples, dupla, múltipla: de modo que é impossível classificá-lo, do mais atraente ao mais
insuportável. Os sabores dos alimentos podem ser modificados por um número indefinido de
combinações entre eles.
Para Savarin (1995), ahoje não se apresentou nenhuma circunstância em que o sabor
pudesse ser apreciado com rigorosa exatidão, temos que nos contentar em defini-lo por meio de
expressões gerais, tais como: doce, açucarado, ácido, amargo, entre outras, assim como agradável
e desagradável ao gosto. Nesse sentido, essas expressões nos permitem entender a propriedade
gustativa do corpo sápido em questão.
Ao ingerirmos um alimento, temos a sensação do gosto, que nos propicia três ordens
diferentes de sensações, a saber: a direta, a completa e a refletida. A sensação direta é aquela
primeira impressão que nasce do trabalho imediato dos órgãos da boca, ou seja, quando o
alimento está na parte anterior da língua. A completa é a que se compõe a partir dessa primeira
impressão, quando o alimento abandona sua primeira posição, passa para o fundo da boca,
impregnando todo o órgão com seu gosto e seu perfume. Enfim, a sensação refletida é o
julgamento feito pela alma sobre as impressões que o órgão lhe transmite.
Por exemplo, ao ingerirmos um pêssego, somos primeiramente afetados
agradavelmente pelo odor que dele emana; colocando-o na boca, temos a sensação de frescor e
acidez que nos incita a continuar; mas é somente quando engolimos e o bocado passa sob o
orifício nasal que o perfume nos é revelado, completando a sensação que deve causar o pêssego.
Enfim, depois de termos engolido, e julgando o que acabamos de sentir, que dizemos a nós
mesmos: “Esse está delicioso!”. E sentimos prazer ao ingerir.
100
O gosto é, assim, um dos nossos sentidos que nos proporciona prazer e a esse respeito
Savarin (1995) argumenta que o prazer de comer, praticado com moderação, é o único que não se
acompanha de fadiga; é um prazer de todos os tempos, de todas as idades; retorna
necessariamente ao menos uma vez por dia, podendo ser repetido, sem inconveniente, duas ou
três vezes nesse espaço de tempo; enfim, ao comermos, experimentamos certo bem-estar
indefinível e particular, que vem da consciência instintiva; isto porque reparamos nossas perdas e
prolongamos a nossa existência.
Ao discutirmos o prazer de comer, devemos também considerar o local no qual nos
alimentamos. Esse local e a forma de sua organização são aspectos que variam com a cultura e
com o tempo e podem proporcionar prazer, provocado pelo conjunto de várias circunstâncias
como: o lugar, os objetos, os personagens que acompanham a refeição, o tipo do alimento, a
forma com que estes se apresentam, entre outros aspectos. Na nossa sociedade podemos associar
esse prazer com o objeto mesa.
Desse modo, entendemos que o gosto é capaz de nos proporcionar prazer. Mas, como
uma pessoa desenvolve o gosto? Por que algumas pessoas preferem alimentos doces e outras
preferem os salgados? Por que certas pessoas não comem carne vermelha e somente apreciam os
peixes? Será que o gosto é construído socialmente? Essas questões serão abordadas a seguir.
5.2.1 - A formação social do gosto
O que nos faz comer alguns alimentos e rejeitar outros? Como formamos o gosto?
O gosto é algo subjetivo, e pessoal. É um dos aspectos que nos tornam diferentes uns dos outros.
Ademais, ao longo de suas vidas, as pessoas podem modificar suas preferências alimentares.
Para Savarin (1995), conhecido como Chef K, o gosto está sujeito à mudança. À
medida que o indivíduo envelhece, novos gostos são adquiridos e outros são rejeitados, enquanto
outros se tornam raros e muitos desejados. Quanto mais raro se torna o gosto, mais procurado e
precioso ele se torna, tornando-se, até, extremamente desejado. O gosto deve ser cuidadosamente
cultivado, enriquecido e encorajado.
Inicialmente, antes de abordar a formação do gosto, faz-se necessário considerar alguns
aspectos relevantes em relação à história da humanidade. Franco (2004) relata que, quando o
homem começou cozinhar os alimentos, surgiu uma profunda diferença entre ele e os outros
101
animais. Ao cozinhar, o homem descobriu não apenas que podia restaurar o calor natural da caça,
tornando-a mais saborosa, mas também que a carne, em contato com temperaturas elevadas,
conserva-se por mais tempo e, além disso, torna-se mais macia.
A invenção dos utensílios de barro e pedra para o cozimento dos alimentos permitiu uma
maior variedade na dieta do homem que, ao longo da história, tem utilizado quase todo
organismo animal e vegetal ao seu alcance para saciar a fome.
Com o tempo, o homem ampliou sua capacidade de coletar os seus alimentos, aprendeu a
criar animais para o seu consumo, desenvolveu a agricultura para dela obter os grãos para o
preparo do seu alimento. A fabricação de ferramentas cortantes e de utensílios de cerâmica e
fornos implicava o estabelecimento da vida em grupos e pequenas aldeias. O cultivo da terra e as
colheitas permitiram o armazenamento de víveres. Desse modo, o início das civilizações está
ligado à procura de alimentos, com os rituais e costumes de seu cultivo e preparação e com o
prazer de comer.
Em função desse prazer, o homem inventou o ritual social básico que é a refeição e, mais
adiante, as festas e rituais freqüentemente realizados para adoração aos deuses. Provavelmente, a
refeição começou a existir depois que a espécie humana deixou de nutrir-se de raízes e de frutas.
A preparação e a partilha das carnes exigiam uma reunião do grupo ou da família. A refeição
tornou-se rica em símbolos e também oportunidade para comemorar datas festivas ou
simplesmente reunir grupos ou familiares. Em alguns grupos sociais a refeição em família é um
ritual propício à transmissão de valores. A aprendizagem nos momentos de refeição em família
desenha para as crianças os contornos do mundo ao qual ela pertence, a formação do gosto e
algumas das atitudes que são ou não aprovadas pelo seu grupo social.
Segundo Franco (2004), os hábitos culinários de uma nação não surgiram de um mero
instinto de sobrevivência e da necessidade do homem de se alimentar. Esses hábitos dependem de
alguns fatores relacionados à história, à geografia, ao clima, à organização social e às crenças
religiosas. Desse modo, as formas que condicionam o gosto ou a repulsa por determinados
alimentos diferem de uma sociedade para outra. Nesse sentido, o gosto, que muitos acreditam ser
próprio, possui uma complexidade na qual entra em jogo, além da identidade, também o sexo, a
idade, a nacionalidade, a religião, o grau de instrução, o nível de renda,a classe e a origem social.
De acordo com Franco (1994) e Seymour (2005), o gosto é moldado culturalmente e
socialmente controlado. O homem nasce e necessita de um longo aprendizado, antes de se
102
integrar à sociedade, num processo que compreende a formação do gosto e dos hábitos
alimentares. Desse modo, os alimentos habituais tornam-se objeto de predileção, ou seja, passam
a ser os mais saboreados.
Franco (1994) afirma que o gosto das pessoas obedece certos padrões culturais adquiridos
ao longo da sua vida:
A humanidade é mais conservadora em matéria de cozinha do que em qualquer
outro campo da cultura. Assim, a exaltação de alguns pratos da culinária
materna, ou de um país de origem, mesmo quando medíocres pode durar a vida
toda e a sua degustação gera às vezes associações mentais surpreendentes. Os
hábitos alimentares têm raízes profundas na identidade social dos indivíduos.
São, por isso, os hábitos mais persistentes no processo da aculturação dos
imigrantes. (p. 24)
Assim, segundo o autor, podemos dizer que os homens comem como a sociedade os
ensinou e que esses hábitos decorrem da sua infância. Nesse sentido, as preferências e aversões
pelos alimentos fazem parte do patrimônio social e cultural das pessoas desde os primeiros anos
de vida.
Então, podemos perguntar: De que forma o gosto é construído socialmente?
Segundo Bourdieu (1999, apud SEYMOUR, 2005), o nosso gosto e o nosso
comportamento de consumo expressam a classe social. Para Bourdieu, as classes sociais podem
ser identificadas a partir da forma como expressam seus gostos na música, na arte, na vestimenta
e, obviamente, na comida, porém não dependem simplesmente de critérios econômicos ou
materiais. Para entender a formação social do gosto nessa perspectiva, faz-se necessário entender
o que é habitus. O termo habitus, segundo Bourdieu, representa:
sistema de posições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar
como estruturas estruturantes, quer dizer , enquanto princípio de geração e de
estruturação de práticas e de representações que podem ser objetivamente
“reguladas e “regulares”, sem que, por isso seja o produto da obediência a
regras, objetivamente adaptadas a seu objetivo sem supor a visada consciente
dos fins do domínio expresso das operações necessárias para atingi-las e, por
serem tudo isso, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação
combinada de um maestro (BOURDIEU, apud AZEVEDO)
22
.
22
AZEVEDO, Mauro Luiz Neves de. Espaço Social, Habitus e Conceito de Classe Social. Espaço Acadêmico. ano
III, nº 24, maio de 2003. Disponível em: <
www.espaçoacademico.com.br>. Acesso em: 13/05/2007.
103
Desse modo o habitus está relacionado com nossas escolhas, com as práticas sociais e
com as ações do nosso cotidiano, que por sua vez está ligado à classe social e à posição que o
indivíduo ocupa na sociedade. Para esse autor o habitus não determina nossas práticas, mas
aumenta a possibilidade de adotarmos determinadas práticas em vez de outras; portanto, o
habitus predispõe os indivíduos a determinadas escolhas. No entanto, essas predisposições
adquiridas pelo habitus são maneiras de fazer as coisas que as pessoas de mesma posição social
consideram naturais, óbvias e sensatas.
Nesse sentido, os gostos são formados socialmente, ou seja, indivíduos que compartilham
de determinado habitus reagem de maneiras semelhantes, fazem escolhas semelhantes e possuem
opiniões semelhantes em relação a gostos. O habitus está relacionado, entre outros aspectos, com
o estilo de vida do indivíduo e também com a sua posição social na classe da qual faz parte.
Nesse sentido, podemos dizer que existem habitus diferentes, de acordo com a classe social e
com a posição ocupada nessa classe. Para compreender a idéia de habitus, na perspectiva do
pensamento bourdieusiano, faz-se necessário discutir dois conceitos importantes: o campo e
capital.
De acordo com Nogueira (2004), Bourdieu utiliza o conceito de campo para referir-se a
certos espaços de posições sociais em que determinados tipos de bem o produzidos,
consumidos e classificados (BOURDIEU, 1983c, apud NOGUEIRA, p.36). À medida que a
sociedade se torna mais complexa, certos domínios de atividade tornam-se relativamente
autônomos. Desse modo, os indivíduos que fazem parte desses campos lutam pelo controle de
produção e pelo direito de legitimamente classificarem e hierarquizarem os bens produzidos.
Desse modo existem diversos campos, como o econômico e o cultural, entre outros. Se tomarmos
o campo literário como exemplo, é possível analisar como os editores, escritores, críticos e
pesquisadores das áreas de língua e literatura disputam espaço e reconhecimento para si mesmos
e para suas produções.
Na perspectiva de Bourdieu (1979, 1997, apud NOGUEIRA, 2004, p.40), na sociedade
existem hierarquias culturais que produzem divisões sociais e classificam os indivíduos segundo
o tipo de bem que eles produzem, consomem e apreciam. A posse dos bens culturais,
denominados capital, permite aos indivíduos adquirir poder e prestígio no interior do campo em
que atuam. Nesse sentido, o autor considera que a classe social é determinada pela posse de
104
quantidades distintas de diferentes formas de capital, como, por exemplo, o capital econômico e o
cultural.
O capital econômico, por sua vez, está relacionado com os produtos da economia, como
bens materiais e dinheiro. o capital cultural decorre da posse de um tipo de conhecimento,
como, por exemplo,o domínio da língua culta.
Segundo Seymour (2005), a obra La distinction de Bourdieu (1979) compara as condições
de existência das classes populares e das classes dominantes. Segundo ele, as primeiras seriam
constrangidas pela dificuldade e escassez de recursos para sobreviver; por outro lado, as classes
dominantes possuem boas condições financeiras, o que lhes garante uma vida de conforto e luxo
e lhes permite não se preocupar com o seu futuro. Essas diferenças nas suas condições de vida
refletem-se na linguagem, nos costumes, nos valores, nas práticas e nos gostos de cada uma delas.
Dessa forma, os membros das classes mais pobres valorizam os bens materiais vistos
como úteis, práticos ou funcionais e rejeitam o que consideram supérfluos. Por outro lado, as
classes mais ricas valorizam os bens supérfluos, sem utilidade prática. Um bom exemplo refere-
se às diferenças em relação às preferências culinárias. Enquanto as classes mais pobres preferem
a comida pesada, farta, que pode ser servida de maneira fácil e prática, as classes dominantes
valorizam os pratos leves e sofisticados.
Nesse sentido, existem: “gostos influenciados pelo luxo (ou liberdade) e gostos
influenciados pelas necessidades” (BOURDIEU 1979, apud SEYMOUR, 2005, p.11). A
diferença entre os gostos refere-se às necessidades. Nas classes ricas, os gostos são influenciados
pelo luxo e os seus habitus estão distantes das necessidades. as classes menos favorecidas
possuem gostos influenciados pela necessidade de produzir energia para o trabalho mais pesado e
com baixo custo, por isso dão preferência a alimentos pesados e calóricos.
Bourdieu (1979) mapeia os padrões de gosto em três tipos de estruturas de consumo:
alimentos, cultura e apresentação (roupas, cuidados com a beleza, etc.), a partir de três segmentos
das classes dominantes; empregadores da indústria e comércio, professores e membros de outras
profissões e toma como exemplo de distinção entre esses segmentos de classes a preferência
alimentar, conforme indica o quadro abaixo:
105
Tipo de capital e gostos
característicos
Consumo relativamente
alto
Consumo relativamente
baixo
Empregadores: capital
econômico elevado, mas
capital cultural
relativamente baixo.
Gosto por: alimentos de
alto custo e calóricos,
pesados; as refeições têm
vários pratos, com
ingredientes raros e caros.
Preparo da refeição: pratos
complicados e que
consomem tempo.
Oposição a grupos
subordinados expressa em
termos de ausência de
restrições econômicas, e
não de mudança de gostos.
Bolos e massas, vinho e
aperitivo, carnes em
conserva (por exemplo,
foie gras), carne de caça.
Carne fresca, frutas e
vegetais, refeições de
cantinas e restaurantes.
Professores: capital
cultural elevado, mas
capital econômico baixo.
Gosto por: consumo
comedido e originalidade,
cozinha exótica:
restaurantes
étnicos/populismo
culinário, pratos
“tradicionais” do interior.
Preparo da refeição: pratos
simples, de preparo rápido
e fácil, com uso de
ingredientes pré-
preparados.
Oposição expressa pela
busca da originalidade ao
menor custo e reprovação
aos hábitos de consumir
alimentos condimentados e
pesados das classes mais
elevadas e mais baixas.
Pão, laticínios, açúcar,
frutas em conserva,
bebidas sem álcool,
refeições de cantinas,
refeições de restaurantes
étnicos.
Vinho e bebidas alcoólicas,
cortes de carnes
especialmente caras, frutas
e vegetais frescos, café,
chá.
No quadro acima, Bourdieu mostra as maneiras como esses segmentos de classe se
distinguem nos gostos. Nesse quadro, o autor mostra as diferenças dos gostos entre os
empregadores e professores.
106
Veja, os quadros abaixo, nos quais esse autor mostra as diferenças marcantes na questão do
gosto entre os profissionais liberais e a classe trabalhadora que apresenta um capital econômico e
cultural baixo:
Tipo de capital e gostos
característicos
Consumo relativamente
alto
Consumo relativamente
baixo
Profissionais liberais:
capital econômico e
cultural médio.
Gosto por: comida leve,
refinada e delicada,
cozinha tradicional, rica
em produtos raros e caros.
Preparo da refeição:
caracterizado por alimentos
de baixo teor calórico,
leves e com baixo teor de
gordura; pratos que
requerem pouco tempo.
Oposição a grupos
subordinados expressa por
distinções no gosto: as
restrições econômicas
desaparecem, mas são
substituídas por
cerceamentos sociais que
proíbem a silhueta
grosseira e obesidade;
admiração pela silhueta
esbelta.
Tipos de cortes de carnes
especialmente caras (por
exemplo, carneiro, vitela),
frutas e vegetais frescos,
peixe, frutos do mar,
aperitivos, refeições de
restaurantes.
Carnes em conserva, bolos
e massas, açúcar, bebidas
não alcoólicas, refeições de
cantinas.
Adaptado de Bourdieu (1979, p. 206).
107
Tipo de capital e gostos
característicos
Consumo relativamente
alto
Consumo relativamente
baixo
Capital econômico e
cultural baixo.
Gosto por: alimentos
pesados, com alto teor
calórico, ricos em gordura
e baratos (por exemplo,
ensopados substanciosos).
Preparo das refeições:
pratos de preparo
demorado (por exemplo,
cassoulet e ouillette).
Oposição às classes
dominantes expressa por
valores sobre bem viver:
comer bem, beber bem,
apreciar fartura e franca
hospitalidade.
Pães, carnes cozidas, leite,
queijo, cortes baratos de
carnes, especialmente
suína.
Frutas e vegetais frescos,
refeições de cantinas e
restaurantes, peixe, frutos
do mar.
Adaptado de Bourdieu (1979, p. 206-9).
Posteriormente, Bourdieu elaborou um mapa do espaço alimentar, que prevê os tipos de
gosto dos diferentes segmentos de classe, em função das combinações particulares de capital
econômico e cultural. Veja a seguir o mapa espacial alimentar:
108
Delicada
Magra
Mal passada
Refinada
Exótica
Saudável
Açúcar natural
Iogurte
Refinada
Leve
Condimento
Forte – Gorduroso - Salgado
Temperos
Vinhos - bebidas alcoólicas
Suco de fruta
Geléia
Congelado
Aperitivos
Confeitos
Adaptado de Bourdieu (1984 p. 186).
A partir desse mapa, Bourdieu observou que os alimentos com quantidades elevadas de sal
e gordura e considerados fortes e condimentados são consumidos pelos indivíduos que possuem
Carne bovina
Peixe
Frutas
Capital cultural +
Capital econômico -
Divisão de tempo -
Status +
Consumo alimentar -
Consumo cultural
+
Capital cultural -
Capital econômico +
Divisão de tempo
±
Status +
Consumo alimentar +
Consumo cultural
-
Embutidos
Carne suína
Pout au feu
Pão
Salgado-Gorduroso-Pesado-Forte-Cozido-Barato-Substancioso
Capital cultural -
Capital econômico -
Divisão de tempo
±
Status -
109
capital econômico elevado e baixo capital cultural. Já aqueles que possuem capital cultural
elevado e baixo capital econômico preferem os alimentos mais saudáveis, naturais e exóticos. Por
outro lado, o gosto dos que têm baixo capital econômico e cultural é por alimentos baratos,
salgados, fortes, cozidos e calóricos. A preferência por pratos específicos está inexplicavelmente
ligada aos estilos de vida de determinados habitus, uma vez que se vincula à divisão específica da
economia e do trabalho doméstico. O gosto por pratos sofisticados, por exemplo, que exigem
investimento e tempo, está ligado à concepção tradicional do papel da mulher e à disponibilidade
de empregados domésticos.
Entretanto, cabe ressaltar que essa pesquisa de Bourdieu sobre o gosto refere-se apenas aos
povos do Ocidente, o que exclui, as demais civilizações do nosso planeta, que possuem outro tipo
de alimentação e práticas culinárias distintas.
Segundo Seymour (2005), outros estudiosos consideram também que o gosto está
relacionado com a noção de padronização e com o conceito de massificação. Esse conceito
deriva de uma crítica da cultura de massa, em que a distinção de gosto e de cultura é influenciada
pelas indústrias de produtos alimentícios e de serviços padronizados, que utilizam estratégias de
marketing para atrair consumidores. Ritzer (1996) como exemplo a cadeia de lanchonetes
McDonald’s como metáfora para a crescente padronização e racionalização da sociedade
contemporânea. Para Wood (1998), essa padronização produz faixas simplificadas de produtos,
enfatiza a quantidade e não a qualidade dos alimentos. Assim, o gosto é socialmente formado
pela influência de fornecedores de produtos alimentícios e serviços padronizados. Nessa
perpectiva, Ritzer afirma: “podemos esperar que o habitus da maioria das pessoas seja dotado de
uma forte propensão aos ambientes macdonalizados” (2001, p.68).
Poulain(2002, apud SLOAN, 2005) identifica uma dimensão tripla da globalização. A
primeira refere-se ao desaparecimento de algumas singularidades alimentares, ou seja, a extinção
de alguns hábitos alimentares contribuiu para a perda da identidade culinária e do paladar.
Segundo, o surgimento de novas formas de combinação de alimentos e o fácil acesso a novos
alimentos no mercado permitiram a criação de novos pratos culinários. Terceiro, a difusão
transcultural de determinados produtos e práticas alimentares contribuiu para a inserção de novos
paladares entre os já existentes. Desse modo, o processo de globalização possibilitou a integração
de uma gama de novos sabores e a formação de diversos gostos gastronômicos para os diversos
povos.
110
O gosto também está associado à questão da saúde. Segundo Fouilé (2005, apud SLOAN,
2005), nos últimos trinta anos, tem ocorrido uma preocupação crescente com a saúde por parte da
população. Muitos indivíduos procuram alimentar-se de forma adequada, com uma dieta
balanceada composta em sua maioria por verduras, legumes, carne branca, enfim, alimentos com
baixo teor de gordura e de baixas calorias. A conscientização de que o consumo de alimentos
calóricos e gordurosos pode provocar doenças como a obesidade, doenças cardiovasculares e
alguns tipos de câncer levou muitos indivíduos a uma mudança nos hábitos alimentares, o que
determinou o surgimento do gosto por alimentos mais saudáveis.
Segundo Ford (2000, apud FOUILÉ, 2005), nos últimos trinta anos nos países ocidentais
desenvolvidos, a preocupação com a perda de peso, associada a uma alimentação saudável, levou
à incorporação da alimentação de origem asiática, como sambal, nasi goreng, sushi e curry, na
dieta alimentar desses povos.
Diante do exposto, entendemos que o gosto gastronômico está interligado com a forma de
vida dos indivíduos e a sua posição social. Não podemos negar que as mudanças na sociedade,
geradas pela globalização e pelo aumento significativo não apenas das indústrias que produzem
alimentos prontos e congelados, mas também de locais e espaços para comer fora, além do
crescimento das redes de lanchonetes fast-food no mundo, nas últimas décadas modificaram a
forma de vida dos indivíduos e exerceram um importante impacto nas definições do gosto
gastronômico.
Esse crescimento na produção de alimentos prontos está associado a mudanças do papel
social da mulher, que cada vez mais tem deixado suas funções domésticas para assumir outras
funções profissionais fora de casa. Nesse sentido, entendemos que ocorre uma padronização do
gosto gerada pelo consumo da comida pronta, por sua vez determinado por mudanças do modo
de vida das famílias e motivado pelas indústrias alimentícias.
Podemos encontrar nas grandes redes de supermercado uma infinidade de produtos e
alimentos consumidos por diversos povos. Desse modo, torna-se mais fácil a inserção de
alimentos diversificados na nossa mesa, levando à formação de um novo gosto gastronômico e
também provocando rupturas com as tradições da culinária regional. Um outro aspecto relevante
no processo de formação do gosto alimentar em nossa sociedade globalizada refere-se ao discurso
em prol de uma alimentação menos calórica, entendida como mais saudável.
111
Portanto, como vimos, o gosto é moldado culturalmente e socialmente controlado.
Nesse
sentido, Freire (1997) argumenta que as preferências do paladar das pessoas estão condicionadas
por expressões e valores culturais determinados pela sociedade da qual fazem parte e pelo local
em que vivem.
5.3 Eixo temático: o uso das medidas na culinária.
Pretendemos neste item abordar o tema medidas. Inicialmente faremos uma discussão
sobre o conceito de medidas e grandezas, para, posteriormente, discutir o uso de medidas na
culinária.
5. 3 .1. Algumas considerações sobre grandeza e medida
O que é medida? Segundo Catelli (1999), medida é uma representação do universo da
grandeza sobre um substrato numérico. E também argumenta:
A medida se inscreve fundamentalmente num contexto cosmológico que era
necessário reavivar, já que ela é uma característica da ciência moderna...Teve
então razão em dizer que a ciência moderna ultrapassa a dos antigos por se
referir às grandezas, e propor-se, antes de tudo a medi-las. (p.55)
A partir das considerações desse autor, entendemos que existe uma relação entre grandeza
e medida. Nesse sentido, para definir a idéia de medida faz-se necessário pensar no conceito de
112
grandeza. Para a definição do conceito de grandeza, porém, recorremos à Física
23
, na segundo a
qual grandeza física representa algo suscetível de ser comparado e medido, ou seja, consiste em
tudo aquilo que tem possibilidade de ser medido, associando um valor numérico a uma unidade.
Desse modo, podemos pensar em diversas grandezas, como o tempo, o volume, a área, o
comprimento, a capacidade, a velocidade.
Medir uma grandeza física significa compará-la com outra grandeza de mesma espécie
tomada como padrão. Esse padrão é a unidade de medida. Tomemos como exemplo um pacote de
arroz de 5 kg, que tem massa igual ao quíntuplo da massa de um padrão ou unidade (1 kg).
Os métodos de medida podem ser diretos ou indiretos. A medida direta representa o
confronto direto entre a grandeza a ser medida e a grandeza-padrão, enquanto que a indireta
representa a utilização de medidas realizadas em outras grandezas e depende da grandeza a ser
medida. Assim, para medir o comprimento, faz-se a confrontação direta com réguas, enquanto
que para medir a velocidade são utilizadas as medidas de comprimento e tempo.
Catelli (1999) destaca algumas definições sobre o conceito de medida a partir de outros
autores, entre eles Legendre (1974), que afirma: “medida: operação pelo qual números são
atribuídos, segundo um conjunto determinado de regras, a coisas e acontecimentos”. Um outro
autor, Bachelard (1981), para mostrar a importância da medida no estudo do conhecimento
científico, argumenta: “Medir e pesar, eis os dois grandes segredos da Física e a Química”. E
ainda acrescenta: “A Física é a ciência não das coisas, mas das medidas”.
A partir das considerações desses autores, entendemos que as medidas estão presentes no
estudo das ciências, dentre as quais destacamos a Física, ciência que estuda os fenômenos da
Natureza e, para estudar determinados fenômenos no Universo, utiliza o denominado método
experimental, que abrange: a observação dos fenômenos, a utilização das medidas de suas
grandezas e, por fim, a indução ou conclusão de leis ou princípios que regem os fenômenos.
Cabe também destacar que o estudo das medidas representa um conteúdo importante no
campo da matemática escolar, pois elas estão presentes nas diversas práticas cotidianas, dentre
elas a culinária, assunto que será abordado posteriormente. Cabe agora abordar as medidas dentro
do contexto histórico da nossa civilização.
23
KAZUHITO, FUKE, CARLOS. Os alicerces da Física, São Paulo, Editora Saraiva, 1998.
113
5.3.2. Um pouco da história das medidas
Não pretendemos aqui fazer uma discussão histórica sobre o estudo das medidas, mas
apenas algumas considerações sobre as medidas ao longo da história, desde a Antiguidade ao
século passado.
Segundo Paraná (1995) em 1948 o Comitê Internacional de Pesos e Medidas começou a
estudar uma regulamentação completa, trabalho concluído seis anos depois. Em 1969 foi criado o
Sistema Internacional de Unidades (SI), cujas unidades de comprimento, massa e tempo estão
apresentadas na tabela abaixo:
Grandeza Unidade Símbolo
comprimento
metro m
tempo segundo s
massa quilograma
kg
Antes da criação do Sistema Internacional de Unidades, muitos padrões de medidas de
grandezas foram criados por diversos povos em diferentes épocas, dentre os quais destacamos as
medidas de grandezas que se referem ao comprimento, ao tempo e à massa.
Com relação às medidas de comprimento, esse autor argumenta que, para chegar aos
modernos padrões de medidas de distância, o homem precisou recorrer a diversas formas como,
por exemplo, o pé, que foi bastante usado como padrão de comprimento na Inglaterra.
Questões relacionadas com a agricultura e a construção, principalmente no Egito e na
Babilônia, levaram cada reino da Antiguidade à utilização de uma unidade própria de
comprimento. Os egípcios usavam a distância chamada cúbito, que ia do cotovelo à ponta do
dedo médio. Mas o resultado era confuso, porque essa medida variava de uma pessoa para outra.
Desse modo, passaram a utilizar cordas que continham nós com intervalos correspondentes ao
cúbito. Assim, a fita métrica que conhecemos tem sua origem nesse instrumento egípcio.
114
Mais tarde, com a Revolução Francesa, em 1789, o metro
24
passou a ser a unidade-padrão
de comprimento. A definição de metro teve várias mudanças; a definição adotada atualmente
corresponde a _____1_____ da distância percorrida pela luz no vácuo em 1s
25
.
299 792 458
Com relação às medidas de tempo, na Antiguidade, os egípcios foram os primeiros a
construir o relógio do sol, um instrumento constituído por uma vareta que projeta a sua sombra
num anteparo dividido em doze partes iguais; à medida que o Sol caminha no céu, a vareta vai
projetando sucessivamente uma linha de sombra nos espaços divididos, indicando a hora do dia.
Além do relógio do sol, podemos destacar outros instrumentos utilizados na história da
civilização para medir o tempo: a ampulheta ou relógio de areia, que se tornou o marcador de
tempo na Antiguidade; e o aparelho usado pelos assírios, clepsidra ou relógio de água, de cujo
aperfeiçoamento surgiu o relógio atual.
Hoje sabemos que o segundo, o minuto, a hora, o dia, a semana, o mês, o século, são as
unidades de tempo utilizadas no dia-a-dia. No Sistema Internacional de Unidades (SI), a
unidade-padrão é o segundo. Em 1967, o segundo foi redefinido em termos do período de
vibração dos elétrons nos átomos de césio 133 (exatamente 9.192.631.770 desses períodos).
As medidas de massa, segundo Paraná (1995), na Antiguidade, eram inicialmente
empregadas para medir quantidades de ouro em pó. Por volta de 2500 a.C., os sumérios já as
empregavam no comércio, tendo como unidade básica o correspondente a 129 grãos, que hoje
equivale a 8,36 (gramas). Atualmente, o padrão internacional de grandeza massa é um cilindro de
um quilograma, que se encontra no Museu Internacional de pesos e medidas, na cidade Sèvres,
próxima a Paris.
Com relação às medidas de massa, podemos considerar o grama usado para medir massa
26
de corpos pequenos, que representa a milésima parte do quilograma. Para medir massas muito
grandes, usamos outra unidade de medida: a tonelada
27
. Mas existem também outras medidas de
massa, dentre elas aquelas que fazem parte do universo da culinária. É o que veremos a seguir.
24
Do grego metron, que significa medir.
25
Um segundo.
26
Massa de um corpo é a medida da matéria que ele contém.
27
Uma tonelada tem mil quilogramas.
115
5.3.3. A medidas na culinária
O uso das medidas dentro do campo da culinária representa um dos eixos temáticos
escolhidos pela pesquisadora, diante da relevância desse tema dentro desta pesquisa. A fim de
ilustrar essa importância, destacaremos aqui alguns trechos dos depoimentos dos entrevistados.
Inicialmente, devemos considerar que a matemática está presente na prática da culinária.
No entanto, a matemática que mencionamos não é a matemática escolar, mas uma matemática
própria dessa prática.
As falas dos entrevistados revelam seu modo de pensar a respeito desse assunto. Ariane28
revela: A matemática sempre, agora tem matemática na cozinha, também, porque sem
matemática não tem como cozinhar... Quem vai conseguir cozinhar, sem matemática?
Ana
29
, ao falar do uso da matemática na sua cozinha, argumenta:
A gente usa a matemática de pesos, medidas, porcentagem, para eu
cobrar das pessoas, eu ponho no papel o que eu gastei, se for dez reais, o
que vai ser a minha mão-de-obra, é o meu lucro, eu coloco a minha
porcentagem, em cima daquilo, o tempo que eu gasto, eu coloco uma
porcentagem em cima, vamos supor que fique em catorze reais ou quinze
reais, quinze reais é o meu lucro.
Gonçalves
30
afirma que a matemática está presente no dia-a-dia do seu restaurante. Eis o
que ele diz:
A cozinha e a matemática têm tudo a ver, a matemática em tudo, na
cozinha, no caixa, tá em todo o lugar. No restaurante, eu uso a matemática é na
hora de o cliente pedir o marmitex, você tem que usar a matemática, o custo, o
quanto custa isso ou aquilo. No cozinhar você também tem a perda, quando
você vai cozinhar dez quilos de carne, quando você cozinha essa carne você
perde 30%, é matemática.
28
Nome fictício de uma das entrevistadas. Ariane é cozinheira de um pesqueiro e trabalha como voluntária numa
clínica na recuperação de dependentes químicos.
29
Nome fictício de uma das entrevistadas. Ana é doceira e faz doce, salgados e bolos para festas em geral.
30
Nome fictício de um dos entrevistados. Gonçalves é proprietário de um restaurante self-service.
116
E ainda acrescenta: Aqui a gente não trabalha com a balança, mas usamos às vezes
para pesar os pratos, a gente faz um prato e usa ter uma noção do que ta sendo servido. Nos
marmitex, a gente usa para fazer os cálculos, sempre tá usando matemática.
Teresa
31
, ao responder à pesquisadora sobre o uso da matemática na cozinha, disse: Eu
uso matemática também quando eu faço uma encomenda e eu vou vender você tem que comprar
a mercadoria, ver quanto você gastou, para depois você colocar o preço por cima
daquilo que você comprou, para cobrir o seu trabalho, e isso é o seu lucro.
A partir das falas dos entrevistados, entendemos que a matemática está presente no ato de
cozinhar. Porém a matemática utilizada neste contexto não é a matemática ensinada na escola. Na
verdade, no ato de cozinhar utilizamos uma série de cálculos matemáticos no preparo dos
diversos pratos da culinária. Além desses cálculos, temos também o uso das medidas nesse
universo, tema citado pelos entrevistados desta pesquisa.
Os entrevistados revelam o uso que fazem das medidas na cozinha. Ariane, por exemplo,
fala das diferentes matemáticas e medidas utilizadas no seu cotidiano:
Agora eu estava pensando numa matemática, dos tipos de matemática que se
usa no dia-a-dia, principalmente na cozinha da minha casa é uma matemática
assim, colheres, litro, copo, é mais simples e eu não tenho tanta
responsabilidade, eu sei se eu errar não vai ter nenhum problema. E ninguém
vai morrer de fome, então eu digo que t
em coisas que a gente faz na
culinária faz a olho, como temperos, molhos ou alguma outra coisa mais
simples, mas na minha culinária tem que usar as medidas certas, pois
senão a massa fica crua, a massa fica dura demais.
Já a entrevistada Ana, argumenta:
Na minha casa é mais relaxada. Agora, a matemática lá no pesqueiro, é
complicado, todo mundo esperando você para comer, um erro seu, a pessoa
fica sem comer e eu que escuto o xingo, pois a minha responsabilidade é
muito grande. Tanto que se eu errar no sal, uma colher a mais ou a menos, vai
dar diferença, até no óleo se eu errar na quantidade. Eu uso 28 litros de óleo se
eu usar 29, não vai caber a quantidade de água que vai colocar e sal grosso,
também não pode errar que são 400 gramas, passou disso, fica salgado o óleo
31
Nome fictício de uma das entrevistadas. Ela faz bolos, doces, salgados para festas e vende trufas, bombons e ovos
de chocolate.
117
e o peixe no óleo , tem tudo isso. também tem a balança, eu não sou de
balança, eu não gosto de medida, mas eu tenho que usar a balança no peixe,
porque todo mundo tem que comer, eu não posso fazer uma porção maior pra
um e outra porção menor para outro. Então a gente usa as gramas, lá no
pesqueiro é a grama, nós colocamos tudo na bandeja o peixe cru, tempera e
frita, e aí na hora que você frita ele pelo choque térmico que se dá, se ele estiver
meio gelado, ele vai crescer muito mais do que se ele estivesse morno, pois o
certo do peixe é fritar ele gelado. Então no pesqueiro a matemática é mais
grama, às vezes colher, os molhos você usa tantos quilos de sal para tanto de
litros de óleo, alho e água. Lá a matemática é mais primeira série, soma,
dividir. aqui em casa é mais dividir, o bolo tem que dividir a metade para
um, uma pessoa quer um tanto, outra quer outra, tem que dividir. Na clínica,
quando eu to fazendo comida, é xícara, é uma xícara grande, a gente faz dez
xícaras por almoço e por janta, eu acho, que 3 a 4 quilos de arroz para
um dia e ainda olha lá, geralmente vai 4 quilos para o almoço, então é mais
quilo, também é mais dividir, pois lá os meninos têm que comer igual, você não
pode fazer um tanto a mais para um e menos para o outro, tem que ser igual,
senão dá briga, se você fizer um pedaço de bolo maior para um o outro vai falar
porque o do outro ta maior que o dele, então você tem que dividir certinho,
cortar certinho senão vai dar errado. eles são muito carentes, então eles fica
nessa, o que você fizer pra um tem que fazer para outro. O que mais eu posso
falar da matemática, ah, é o suco, eu detesto fazer o suco daquela clínica, eles
sempre pedem para mim fazer o suco, é horrível, porque tem que colocar 3
litros de água e um pozinho que tem que colocar as colheres, eu detesto usar
aquelas colheres. Eu nunca uso as colheres, então os outros fica bravo comigo:
“Você fazendo o suco errado, Ariane, tem que medir.” . Mas eu não gosto de
usar, pois a colher é muito pequena, e o tanto de suco que eu tenho que fazer, eu
tenho que usar umas 50 colheres de suco, então eu não tenho paciência, eu jogo
direto na água. Eu gosto muito das coisas rápidas, eu não gosto de enrolação,
então a matemática é assim, em casa é a matemática mais simples, porque se a
gente errar não tem responsabilidade. no pesqueiro, a responsabilidade é
grande, e na clínica também é grande. Só que eu acho que no pesqueiro é maior
do que na clínica, porque tem muitas pessoas querendo uma coisa só. Pois
é o peixe, a especialidade é o peixe, tem que fazer bem feito, não posso fazer
errado, senão eu perco o freguês, é mais complicado. Agora na clínica não, se a
gente erra eles entendem, você ta todo dia e se você errar é normal. Como eu
disse do pão que eu errei, eu coloquei o fermento tava estragado. Então foi um
erro e eles não falaram nada, ninguém reclama. Eles entendem que ninguém é
perfeito, no pesqueiro, tem que ser do jeito certo e acabou. Então a
matemática é relacionada a tudo isso. Para mim eu acho que é assim.
Ana fala da importância do uso das medidas na sua cozinha e argumenta: na minha
culinária tem que usar as medidas certas, pois senão a massa fica crua, a massa fica dura demais.
A respeito dos instrumentos de medidas e de algumas medidas que utiliza no seu dia-a-dia
para cozinhar, Teresa diz: Eu uso, mas às vezes eu nem percebo que uso, a gente nem percebe que
usa, porque meia colher disso, meia xícara daquilo, um quilo daquilo, meio quilo, é gramas, mas
a gente nem nota que usa, né?...
118
A partir das falas dos entrevistados, entendemos que na prática da culinária a matemática
está presente a partir de diversos cálculos mentais utilizados no ato de cozinhar. Além disso,
dentro desse universo culinário existe a utilização das medidas no preparo das refeições.
Devemos destacar que os utensílios utilizados na cozinha são os próprios instrumentos da
medida. Além da balança, temos a xícara, a colher de chá, de sopa, o prato, o copo americano, o
cálice, entre outros, e também a pitada
32
, como por exemplo, uma pitada de sal.
Essas medidas estão inseridas no mundo da culinária, são conhecidas por todas as pessoas
que cozinham ou que apenas rodeiam a cozinha e também fazem parte da linguagem das receitas
culinárias: estão presentes em livros de receitas, em revistas especializadas em gastronomia, nos
programas de TV e sites da Internet que abordam o tema da culinária.
Devemos considerar que a utilização de medidas no ato de cozinhar é atividade
corriqueira. Entretanto, existem cozinheiros e cozinheiras que não as utilizam. Nesta pesquisa
temos duas entrevistadas que abordam essa questão. Ariane diz, a respeito desse assunto: A
balança é para enfeite, pra mim é tudo no olho. Eu não uso medida, eu não sigo receita, eu
não sigo nada, tudo na base vamo joga pra ver o que dá. Então era tudo bem assim.
Nesta mesma perspectiva, outra entrevistada, Teresa, quando a pesquisadora lhe
perguntou: Você não se preocupa com medida? respondeu:
Eu faço assim, eu coloco a mão, se der para enrolar, eu vejo a textura. Como a
massa de coxinha, eu ponho um tanto de água na panela, caldo de galinha, e
eu ponho a farinha de trigo, e vou mexendo, vejo se está mole, e vejo se não está
colando na mão, se ficar mole é que a farinha que não é boa, e eu vejo que
não deu certo.
No entanto, como resposta a essa mesma questão, Ana, outra entrevistada, afirmou: Tem
coisas que a gente faz na culinária, faz a olho, como temperos, molhos ou alguma outra coisa
mais simples, mas na minha culinária tem que usar as medidas certas, pois senão a massa fica
crua, a massa fica dura demais.
A esse respeito, de Certeau (1996) argumenta:
32
Pequena porção reduzida a pó que se toma entre o polegar e o indicador.
119
Cozinhar envolve um volume complexo de circunstâncias e de dados objetivos,
onde se confrontam necessidades de liberdade, uma confusa mistura que muda
constantemente e através da qual se inventam as táticas, se projetam trajetórias,
se individualizam maneiras de fazer. Cada cozinheira tem seu repertório, suas
grandes árias de ópera para as circunstâncias extraordinárias e suas canções
simples para o público familiar, seus preconceitos e seus limites, suas
preferências e sua rotina, seus sonhos e suas fobias. À medida que se adquire
experiência, o estilo se afirma, o gosto se apura, a imaginação se liberta e a
receita perde a sua importância para tornar-se apenas ocasião de uma invenção
livre por analogia ou associação de idéias, através de um jogo sutil de
substituições, abandonos, de acréscimos ou de empréstimos. Seguindo
cuidadosamente a mesma receita, duas cozinheiras experientes obterão
resultados diferentes, pois na preparação intervêm o toque pessoal, o
conhecimento ou a ignorância de certos segredos culinários (por exemplo,
enfarinhar a forma de torta depois de untá-la, para que o fundo da massa seque
bem durante o cozimento), toda uma relação com as coisas que a receita não traz
e quase não especifica e cuja maneira difere de um a outro indivíduo, pois
muitas vezes está arraigada a tradição oral, familiar e regional
.(p. 271)
De acordo com as idéias desse autor, a utilização de receitas e medidas no ato de cozinhar
é uma prática comum entre aqueles que cozinham. No entanto, com o passar do tempo, para a
realização de um prato culinário não se utiliza mais a receita. Talvez seja pelo fato de que, com a
repetição da realização do mesmo prato, ocorre a memorização das quantidades dos ingredientes.
Além disso, conforme o autor menciona, cada cozinheiro tem uma particularidade própria,
utiliza a sua criatividade para realçar o prato e acrescenta outros ingredientes para torná-lo mais
saboroso.
Nesse sentido, segundo ele, cada cozinheiro tem o seu repertório próprio. Desse modo,
entendemos por que algumas pessoas que cozinham preferem fazer doces, outras gostam de
preparar receitas salgadas, outras gostam de fazer massas e outras apreciam preparar diversos
tipos de carne. Porém, também existem cozinheiros que sabem preparar qualquer tipo de prato
culinário, mas mesmo assim têm suas preferências.
Por fim, além da utilização das medidas no ato de cozinhar, entendemos que para cozinhar
é preciso usar um outro ingrediente na medida certa. A ele Tereza faz referência: eu faço com
muito amor e carinho, mas para fazer as coisas a gente tem que ter dedicação, carinho, e fazer
as coisas com muito amor. E isso é o grande segredo da culinária, fazer as coisas com amor, que
dá certo.
120
Após abordamos as medidas na culinária, discutiremos as medidas na matemática
Educação de Jovens e Adultos.
5.4 As medidas na matemática da Educação de Jovens e Adultos
Pretendemos neste momento discutir o trabalho com as medidas no ensino da matemática
da EJA, iniciando por uma breve análise dos documentos da rede oficial de ensino, representados
pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do Ensino Fundamental e Médio e pela
proposta curricular da EJA na perspectiva da Etnomatemática.
5.4.1 Algumas considerações sobre as reformas curriculares no ensino da
matemática no Estado de São Paulo a partir de 1980
Inicialmente faremos um breve recorte histórico sobre as reformas curriculares no ensino
da matemática no Brasil ocorridas a partir da década de 80, propostas por Secretarias Estaduais e
Municipais de Educação. Dentre aquelas, ressaltamos a proposta da Secretaria de Estado da
Educação de São Paulo, em alguns pontos. De acordo com Pires (2000), em 1985 iniciou-se na
rede pública estadual de São Paulo o processo de elaboração das chamadas Propostas
Curriculares para o ensino de 1º e 2 º Graus
33
.
Segundo Pires (2000), na apresentação desse documento destacam-se os principais
problemas diagnosticados no que se refere ao ensino da matemática na rede pública:
- uma preocupação excessiva com o treino de habilidades, a mecanização de algoritmos, com a
memorização de regras, esquemas de resolução de problemas com repetição e a imitação;
- a priorização do ensino da Álgebra e a redução do ensino de tópicos que envolvem o ensino da
Geometria;
- a tentativa de se exigir do aluno uma formalização precoce e um nível de abstração em
desacordo com seu amadurecimento.
33
Os termos 1º e 2 º Graus referem-se ao que atualmente denominamos, respectivamente, Ensino Fundamental e
Ensino Médio.
121
O conteúdo dessa proposta está fundamentado em três grandes temas:
Números - indica-se como fio condutor à história da matemática, em lugar das propriedades
estruturais.
Geometria - explora-se a manipulação dos objetos, o reconhecimento das formas, as suas
características e propriedades, até chegar a uma sistematização.
Medidas – aponta-se este tema como o fio que tece a junção entre números e geometria.
Ainda de acordo com Pires (2000), apesar de não haver críticas por parte dos professores,
o processo de implantação dessa proposta encontrou obstáculos e a incorporação da prática não
ocorreu de forma satisfatória.
A partir de 1995, a Secretaria da Educação do Ensino Fundamental do Ministério da
Educação e do Desporto e os educadores que atuavam em diferentes níveis de ensino educativo
reuniram-se para discutir e indicar novas diretrizes curriculares comuns para o Ensino
Fundamental no Brasil, surgindo assim os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).
De acordo com os PCNs (1998) de 5ª a 8ª séries para a área de matemática, esse
documento representa um referencial para a construção de uma prática que favoreça o acesso ao
conhecimento matemático e possibilite de fato a inserção dos alunos como cidadãos no mundo
do trabalho, das relações sociais e da cultura.
Os PCNs reconhecem que a matemática está presente na vida de todas as pessoas, em
situações do cotidiano em que é preciso quantificar, calcular, localizar um objeto no espaço, ler,
interpretar gráficos e mapas, fazer previsões. Desse modo, entendem que é necessário superar a
aprendizagem vinculada aos procedimentos mecânicos e indicam a resolução de problemas como
ponto de partida da atividade a ser desenvolvida em sala de aula.
Os conteúdos para o Ensino Fundamental organizam-se em quatro ciclos, a saber: o
ciclo refere-se à primeira e à segunda séries; o ciclo abrange a terceira e a quarta séries; o
ciclo compreende a quinta e a sexta séries e, por fim, o ciclo engloba a sétima e a oitava
séries.
A seleção dos conteúdos de matemática para o Ensino Fundamental dos PCNs (2001) está
feita da seguinte forma: o estudo dos números e das operações, no campo da Aritmética e da
Álgebra; o estudo do espaço e das formas, no campo da Geometria; e o estudo das grandezas e
medidas, que permite interligações entre os campos da Aritmética e da Geometria.
Assim se referem os PCNs (1998) ao estudo das grandezas e medidas:
122
Este bloco caracteriza-se por sua forte relevância social, com evidente caráter
prático e utilitário. Na vida em sociedade, as grandezas e as medidas estão
presentes em quase todas as atividades realizadas. Desse modo, desempenham
papel importante no currículo, pois mostram claramente ao aluno a utilidade do
conhecimento matemático no cotidiano. As atividades em que as noções de
grandezas e medidas são exploradas e as formas são contextos muitos ricos para
o trabalho com significados dos números e das operações, da idéia de
proporcionalidade e escala e um campo fértil para uma abordagem histórica.
(p.56)
A partir dessas considerações, entendemos que o tema grandezas e medidas englobam
conteúdos matemáticos considerados relevantes no contexto do documento e, portanto, da prática
escolar cotidiana.
Após fazermos um recorte sobre os PCNs, entendemos, sem vida, que essa proposta
parece representar um avanço em relação às propostas curriculares anteriores para o ensino da
matemática, possibilitando maior autonomia para a equipe escolar organizar e discutir o
currículo escolar. Entretanto, tal autonomia é retirada quando, junto com os PCNs, são
organizadas provas como Saresp, ENEM, entre outras, que são unificadas e desconsideram as
diferenças sociais e culturais deste país. Além disso, são comuns os discursos em prol de
valorizar as escolas que tenham melhor rendimento nessas provas. Essas ações têm direcionado
pelo menos em parte a organização curricular das escolas, contradizendo os princípios básicos
dos PCNs.
5.4.2 Um olhar para a proposta curricular de matemática da EJA
Pretendemos neste item discutir a Proposta Curricular para o Segundo Segmento do
Ensino Fundamental da Educação de Jovens e Adultos - EJA —, correspondente à etapa de a
série. Elaborado pela Coordenação de Educação de Jovens e Adultos(COEJA) da Secretaria
de Educação Fundamental do Ministério da Educação, esse documento
34
e tem como finalidade
34
Disponível em : <www.mec.gov.br>. Acesso em: 15/06/2007.
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subsidiar o processo de reorientação curricular nas secretarias estaduais municipais, bem como
nas instituições e escolas que atendem ao público de EJA.
A COEJA preparou essa proposta atendendo aos objetivos dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs) do Ensino Fundamental, mas ao mesmo tempo pretende considerar as
especificidades de alunos jovens e adultos, além das características desses cursos. Esse
documento está organizado em três volumes:
Volume 1: apresenta temas que devem ser analisados e discutidos pelas equipes escolares, pois
trazem fundamentos comuns às diversas áreas para a reflexão curricular.
Volume 2: Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, História e Geografia.
Volume 3: Matemática, Ciências Naturais, Arte e Educação Física.
Os conteúdos matemáticos dessa proposta estão divididos em blocos e devem visar o
desenvolvimento de conceitos e procedimentos relativos ao pensamento numérico, geométrico e
algébrico; à competência métrica; ao raciocínio que envolva proporcionalidade, assim como o
raciocínio combinatório, estatístico e probabilístico.
De acordo com essa proposta, o ensino de medidas está inserido em dois blocos:
competência métrica e raciocínio que envolve proporcionalidade. No bloco que se refere à
competência métrica, explora situações de aprendizagem que permitam ao aluno:
ampliar e construir noções de medida pelo estudo de diferentes grandezas, a
partir de sua utilização no contexto social e da análise de alguns dos problemas
históricos que motivaram a construção de tais noções;
resolver problemas que envolvam diferentes grandezas, selecionando unidades
de medida e instrumentos adequados à precisão requerida;
obter e utilizar fórmulas para cálculo da área de superfícies planas e para
cálculo de volumes de sólidos geométricos (prismas retos e composições desses
prismas). (
proposta curricular da EJA do Segundo Segmento do Ensino
Fundamental p.21)
O bloco que inclui raciocínio envolvendo proporcionalidade explora situações de
aprendizagem que permitam ao aluno “observar a variação entre grandezas, estabelecendo
relações entre elas, e construir estratégias (não-convencionais e convencionais, como a regra de
três) para resolver situações que envolvam a variação de grandezas direta ou inversamente
proporcionais”.
124
Com relação aos conteúdos do ensino de Matemática, essa proposta curricular da EJA do
Segundo Segmento do Ensino Fundamental (2002) aponta que:
Na definição de objetivos apresentada nesta proposta, tanto os conteúdos de
natureza conceitual como os de natureza procedimental estão explicitados de
forma bem ampla. A partir deles, entretanto, ainda há um longo processo para a
tomada de decisões sobre a seleção e a organização dos conteúdos, considerados
como meios para o ensino de Matemática – um processo que envolve discussões
sobre o que enfatizar e em que aprofundar cada um dos grandes temas. O
processo de indicação de conteúdos matemáticos conceituais e procedimentais
envolve um desafio: identificar, em cada um dos campos matemáticos, aqueles
que, de um lado, são socialmente relevantes para a educação de jovens e adultos
e, de outro, em que medida contribuem para o desenvolvimento intelectual do
jovem e do adulto. Infelizmente, ainda existem poucas reflexões específicas
sobre a seleção de conteúdos para o ensino de Matemática na educação de
jovens e adultos (particularmente em relação ao Segundo Segmento). Também
são raras as contribuições da literatura sobre os processos cognitivos do adulto.
Da mesma forma, as atividades de diagnóstico para a identificação das
demandas e das expectativas dos alunos em relação ao ensino da Matemática
ainda não foram suficientemente exploradas. Mesmo assim cabem algumas
observações relativamente ao processo de seleção de conteúdos para EJA. (p.22)
A partir dessa idéia, entendemos que selecionar os conteúdos matemáticos da EJA
representa uma tarefa difícil, uma vez que nós, educadores, temos um tempo reduzido para
trabalhar com os conteúdos matemáticos dessa proposta e também conhecemos muito pouco o
jovem e o adulto, tanto no aspecto social como no psicológico. Diante disso, muitas vezes, devido
ao tempo o educador deve fazer escolhas quanto ao conteúdo a ser trabalhado com o aluno, de
modo que algumas vezes o conteúdo é suprimido ou excessivamente reduzido, o que tornando
mais um desafio para o educador da EJA.
Desse modo, os conteúdos referentes a grandezas e medidas também costumam ser pouco
trabalhados. No entanto, além de sua relevância para a resolução de problemas cotidianos, esses
conteúdos contribuem para que os alunos mobilizem suas concepções e seus procedimentos em
relação a números, a operações, ao conceito de proporcionalidade e ao estudo da geometria.
Dentre os objetivos do ensino da matemática na EJA, essa proposta aponta a construção
da cidadania e a constituição do educando como sujeito da aprendizagem e compartilha os
mesmos objetivos gerais do Ensino Fundamental. Desse modo, de acordo com essa proposta
125
curricular da EJA do Segundo Segmento do Ensino Fundamental (2002), o trabalho com
matemática deve buscar:
Identificar os conhecimentos matemáticos como meios para
compreender e transformar o mundo à sua volta e perceber o caráter de
jogo intelectual, característico da Matemática, como aspecto que
estimula o interesse, a curiosidade, o espírito de investigação e o
desenvolvimento da capacidade para resolver problemas.(p.17)
E considera que:
Os alunos da EJA devem perceber que a Matemática tem um caráter
prático, pois permite às pessoas resolver problemas do cotidiano,
ajudando-as a não serem enganadas, a exercerem sua cidadania. No
entanto, o ensino e a aprendizagem da Matemática devem também
contribuir para o desenvolvimento do raciocínio, da gica, da coerência
– o que transcende os aspectos práticos.(p.17)
Nesse sentido, entendemos que os objetivos do Ensino Fundamental do ensino regular
são os mesmos para o ensino da Educação de Jovens e Adultos. Com relação à citação feita
acima, compreendemos que o ensino da matemática da EJA tem como foco o exercício da
cidadania. Entretanto, devemos ressaltar que não podemos considerar os mesmos objetivos para o
Ensino Fundamental e para o ensino da EJA. Vale lembrar que, ao definirmos tais objetivos,
devemos considerar dois aspectos relevantes:
Primeiro, a clientela do Ensino Fundamental é diferente da clientela da EJA, em relação à
idade e a características de ordem social e psicológica que devem ser levadas em consideração. O
segundo aspecto refere-se ao fato de que o número de dias letivos do curso da EJA representa a
metade em relação ao do Ensino Fundamental, o que dificulta o cumprimento dos conteúdos
curriculares propostos. Dessa forma, faz-se necessário repensar a proposta curricular para o
ensino da matemática na Educação de Jovens e Adultos.
Uma proposta que venha atender as especificidades da EJA, do nosso ponto de vista,
requer uma política educacional que passe a entender a EJA como uma modalidade educacional,
e não apenas um segmento do Ensino Fundamental ou Médio. No próximo item pretendemos
abordar os PCNs do Ensino Médio.
126
5.4.3 Os PCNs do ensino médio na matemática
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) veio conferir uma nova
identidade ao Ensino Médio, ao estabelecer a divisão do conhecimento escolar em três áreas, a
saber: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e suas
Tecnologias; e Ciências Humanas e suas Tecnologias.
A área Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias considera que a Matemática
é uma linguagem que busca dar conta de aspectos do real e também representa um instrumento
formal de expressão e comunicação para diversas ciências como a Física , a Química e a
Biologia.
De acordo com os PCNs (1999), as finalidades do ensino de Matemática no nível médio
indicam como objetivos levar o aluno a:
compreender os conceitos, procedimentos e estratégias matemáticas que
permitam a ele desenvolver estudos posteriores e adquirir uma formação
científica geral;
aplicar seus conhecimentos matemáticos a situações diversas, utilizando-os na
interpretação da ciência, na atividade tecnológica e nas atividades cotidianas;
analisar e valorizar informações provenientes de diferentes fontes, utilizando
ferramentas matemáticas para formar uma opinião própria que lhe permita
expressar-se criticamente sobre problemas da Matemática, das outras áreas do
conhecimento e da atualidade;
desenvolver as capacidades de raciocínio e resolução de problemas, de
comunicação, bem como o espírito crítico e criativo;
utilizar com confiança procedimentos de resolução de problemas para
desenvolver a compreensão dos conceitos matemáticos;
expressar-se oral, escrita e graficamente em situações matemáticas e valorizar
a precisão da linguagem e as demonstrações em Matemática;
estabelecer conexões entre diferentes temas matemáticos e entre esses temas e
o conhecimento de outras áreas do currículo;
reconhecer representações equivalentes de um mesmo conceito, relacionando
procedimentos associados às diferentes representações;
promover a realização pessoal mediante o sentimento de segurança em relação
às suas capacidades matemáticas, o desenvolvimento de atitudes de autonomia e
cooperação. (p.42)
127
A partir dessas finalidades, entendemos que a Matemática representa um instrumento
capaz de desenvolver o raciocínio e habilidades de analisar e interpretar informações
provenientes de outras áreas do conhecimento.
Os PCNs (1999) também destacam as seguintes competências e habilidades em
Matemática:
Representação e comunicação
• Ler e interpretar textos de Matemática.
• Ler, interpretar e utilizar representações matemáticas (tabelas, gráficos,
expressões etc).
• Transcrever mensagens matemáticas da linguagem corrente para linguagem
simbólica (equações, gráficos, diagramas, fórmulas, tabelas etc.) e vice-versa.
• Exprimir-se com correção e clareza, tanto na língua materna, como na
linguagem matemática, usando a terminologia correta.
• Produzir textos matemáticos adequados.
• Utilizar adequadamente os recursos tecnológicos como instrumentos de
produção e de comunicação.
• Utilizar corretamente instrumentos de medição e de desenho.
Investigação e compreensão
• Identificar o problema (compreender enunciados, formular questões etc).
• Procurar, selecionar e interpretar informações relativas ao problema.
• Formular hipóteses e prever resultados.
• Selecionar estratégias de resolução de problemas.
• Interpretar e criticar resultados numa situação concreta.
• Distinguir e utilizar raciocínios dedutivos e indutivos.
• Fazer e validar conjecturas, experimentando, recorrendo a modelos, esboços,
fatos conhecidos, relações e propriedades.
• Discutir idéias e produzir argumentos convincentes.
Contextualização sócio-cultural
• Desenvolver a capacidade de utilizar a Matemática na interpretação e
intervenção no real.
• Aplicar conhecimentos e métodos matemáticos em situações reais, em especial
em outras áreas do conhecimento.
• Relacionar etapas da história da Matemática com a evolução da humanidade.
• Utilizar adequadamente calculadoras e computador, reconhecendo suas
limitações e potencialidades.(p.46)
A partir dessas competências e habilidades, entendemos que a Matemática representa um
instrumento capaz de resolver problemas, interpretar gráficos e tabelas, entre outras tarefas, de
modo a resolver situações do dia-a-dia. Nesse sentido, os PCNs propõem que, através da
matemática escolar, o educando possa solucionar as questões do cotidiano. No entanto,
entendemos que essa proposta parece não reconhecer o conhecimento adquirido pelo aluno a
128
partir de suas práticas diárias e da sua cultura, ou seja, ao contrário do que propõe a
Etnomatemática, os PCNs sobrepõem o conhecimento escolar ao conhecimento trazido pelo
aluno e desconsideram a cultura deste.
Como mencionamos no capítulo 1 trabalho, a matemática representa uma das
disciplinas que mais reprovam na EJA. Desse modo, entendemos que a matemática escolar
precisa ser repensada no que se refere aos conteúdos programáticos e às práticas pedagógicas,
para que não seja um componente curricular responsável pela exclusão escolar, mas permita a
construção da cidadania do educando.
Uma proposta curricular para o ensino da Matemática na EJA faz-se necessária diante das
dificuldades encontradas pelos educandos na aprendizagem dessa disciplina. Por outro lado,
devemos destacar que o professor também enfrenta obstáculos para trabalhar com a EJA. O
primeiro deles refere-se, muitas vezes, aos conflitos entre os jovens e adultos numa sala de aula,
gerados pelas suas diferenças. O segundo é que o docente encontra dificuldades não apenas para
adequar os conteúdos da Matemática do Ensino Médio ao reduzido número de dias letivos, mas
também para adaptar tais conteúdos à realidade dessa clientela.
Desse modo, no próximo capítulo faremos uma breve discussão sobre a Matemática para
a EJA, seguida de algumas sugestões para a utilização dos conhecimentos matemáticos da prática
social da culinária na construção de uma proposta curricular da Matemática para a Educação de
Jovens e Adultos.
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve como objetivo investigar a prática social da culinária de um grupo de
alunos matriculados no ensino na EJA de uma escola pública municipal e busca contribuir para
uma discussão curricular da matemática na Educação de Jovens e Adultos.
Nesse sentido, ao finalizarmos este trabalho voltamo-nos para a proposta curricular da
EJA, no que se refere ao estudo de medidas, com o intuito de refletir sobre ela a partir da prática
social da culinária.
As mudanças socioeconômicas ocorridas nas últimas décadas, motivadas pelo processo de
globalização, e os avanços tecnológicos resultaram no aumento do desemprego, agravando os
problemas de desigualdade e exclusão social que, segundo Bourdieu (1998), perpassam o
contexto escolar. Para esse autor, a instituição escolar legitima o saber reconhecido socialmente
como culto pela elite dominante. Dessa forma, desconsidera saberes construídos a partir das
práticas sociais e culturais presentes no cotidiano de grande parte dos alunos, especialmente
alunos da EJA, o que, como conseqüência, promove altos índices de evasão escolar e repetência.
Nesse sentido, a escola reproduz as desigualdades sociais e culturais.
Esse processo de exclusão é uma das conseqüências da crise escolar que se manifesta,
sobretudo, tanto pelo fracasso escolar com relação aos índices de evasão e repetência como
pela qualidade do ensino.
Essa situação vem sendo debatida dentro do meio acadêmico em várias áreas e
especialmente no campo das pesquisas curriculares. Sacristan (2000) comenta que toda a prática
pedagógica gravita em torno do currículo. Desse modo, o currículo escolar representa um
articulador que determina quais conteúdos e quais práticas escolares devem ser trabalhados
dentro da escola.
Apesar de todas as reformas educacionais ocorridas nas últimas décadas, entendemos que,
na perspectiva da Etnomatemática, a prática escolar está desconectada dos saberes produzidos nas
práticas cotidianas do aluno. Nesse sentido, D`Ambrosio(2001) argumenta que a proposta
pedagógica da Etnomatemática tem por objetivo promover a matemática como algo vivo, em
construção, que se manifesta por meio de questionamentos sobre o aqui e o agora, mas
130
impregnados pelas raízes culturais esse olhar para o mundo imbuído pelas raízes culturais é
fundamental para a promoção de ações críticas e transformadoras.
Desse modo, a partir das considerações desse autor, entendemos que na prática
pedagógica da escola faz-se necessário buscar conexões entre os saberes escolares e os saberes
cotidianos, principalmente no campo da Educação de Jovens e Adultos.
Nesse sentido, entendemos que a proposta dos PCNs não atende de forma satisfatória as
questões que se referem à EJA, a começar pela ausência do Ensino Médio da EJA nesse
documento, ou seja, existem os PCNs da EJA relativos ao Ensino Fundamental, os quais, no
entanto, apresentam os mesmos objetivos e propostas de conteúdos dos PCNs do ensino regular.
Tal fato nos faz questionar sobre os princípios da organização curricular da EJA, ou seja:
quais princípios guiam as opções dos professores? Como as características próprias dos alunos da
EJA são atendidas nas diferentes propostas? Como as diferenças sociais e culturais entre essas
clientelas EJA e Ensino Regular são consideradas nas propostas curriculares das escolas?
Estariam os professores atentos a essas diferenças, quando o próprio documento oficial não as
considera em sua plenitude?
Ao longo deste trabalho, buscamos indicar algumas características dos jovens e adultos
que freqüentam a EJA e cabe, agora, destacar algumas delas, como: o jovem e o adulto da EJA
são educandos que foram excluídos do ensino regular; as diferenças de idade entre o grupo de
jovens e o de adultos revelam-se muitas vezes pelo grau de responsabilidade que cada um assume
em cada momento de sua vida, pois eles possuem papéis distintos dentro do meio em que vivem.
Todas essas diferenças exigem atenção e geram tensão entre os docentes, que precisam buscar
caminhos que respeitem as diferenças, mas que ao mesmo tempo contemplem as expectativas e
as visões de mundo tanto dos jovens como dos adultos. Esse é mais um dos aspectos relevantes a
serem debatidos no contexto curricular da EJA.
Pesquisas realizadas pelo INEP
35
, juntamente com MEC, sobre o número de matriculados
da EJA nos anos de 2000, 2002 e 2006 mostram que mais de 60% dos matriculados estão na
faixa dos 30 anos. Estar nessa faixa, num país em que a expectativa de vida vem aumentando e as
pessoas têm saído da casa dos pais e assumido uma vida independente muito mais tarde, leva-nos
a considerar que a maioria dos educandos da EJA é representada por uma clientela composta por
35
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
131
jovens e por adultos com menos de 30 anos, a qual arriscamos dizer que representa um jovem
adulto.
No entanto, entendemos que os jovens da EJA são alunos excluídos do ensino regular e
encaminhados para a EJA pela própria escola, na busca de conclusão de seus estudos.
As mesmas pesquisas acima citadas revelam que os jovens da EJA são na sua maioria
alunos de classe baixa e vivem em bairros da periferia e em favelas das grandes cidades.
Encaminhados à EJA, em geral, estão desmotivados e alguns deles são rebeldes. Nesse
sentido vale destacar que em muitos casos, reprovar alunos indisciplinados para encaminhar à
EJA parece ser uma das estratégias utilizadas por escolas para amenizar conflitos. Desse modo,
nem todos se adaptam à EJA, faltam muito às aulas e acabam sendo reprovados pelo excesso de
faltas. No caso da escola em que esta pesquisa foi realizada, é crescente o número de jovens que
procuram a EJA e matriculam-se, mas desistem no meio do bimestre ou são reprovados pelo
excesso de faltas.
Outro aspecto apontado pela pesquisa nesta escola é que em algumas classes da EJA,
especialmente em salas em que o número de adultos é maior que o número de jovens, é comum
existir um bom entrosamento entre os jovens e os adultos. No entanto, essa situação pode
inverter-se, quando o número de jovens excede o número de adultos. Neste caso, passam a
ocorrer conflitos e um aumento da desistência dos adultos. O adulto da EJA é um aluno
responsável, que quer aprender, respeita o professor e não aceita a rebeldia dos jovens.
Desse modo, entendemos que atuar em salas de aula constituídas por jovens e adultos
representa um grande desafio para o educador, especialmente quando esse se depara com turmas
conflituosas.
Nesse sentido, são muitos os desafios a serem superados na EJA, além dessa nova
configuração em que jovens e adultos compartilham da mesma sala de aula: faz-se necessário
buscar caminhos que possibilitem aproximar o saber escolar dos saberes cotidianos, para, com
isso, valorizar os saberes produzidos por esses alunos em outras práticas e também proporcionar
mais significado ao seu processo de aprendizagem. Nesse sentido, nesta pesquisa optamos por
analisar uma prática social – a culinária.
Entendemos que a culinária representa uma prática valorizada dentro do meio social. Sua
relevância justifica-se, pois envolve valores culturais, sociais e costumes alimentares. Desse
132
modo, Carneiro (2003) argumenta que a alimentação, além de uma necessidade biológica,
representa um sistema simbólico de significados sociais, religiosos, éticos, estéticos, entre outros.
Lave (1996), de Certeau (1996) e Wenger (2001) consideraram que a prática social da
culinária envolve, no ato de cozinhar, ações e gestos concomitantes com atividades mentais que
requerem lculos e memória. Nesse sentido, a partir de Wenger, entendemos que o ato de
cozinhar é um processo de aprendizagem.
As pessoas que participaram desta pesquisa, em suas entrevistas, ressaltam que, além das
atividades manuais e mentais utilizadas durante o preparo das refeições, o ato de cozinhar
envolve ações de medidas, com o uso de unidades e utensílios que podem diferir dos utilizados
no contexto escolar. Além disso, elas destacam a importância da experiência do uso do olhar e do
tato como fatores decisivos para adicionar ou não ingredientes durante o preparo dos alimentos.
As entrevistas que realizamos permitia a análise por meio de diversos eixos, devido à
complexidade de ações presentes no ato de cozinhar. Entretanto, considerando-se o tempo que
tínhamos para a conclusão desse trabalho, nós optamos por dois eixos: o primeiro deles refere-se
à questão do gosto. Esse assunto aparece, quando os entrevistados indicam sua preocupação com
as pessoas para quem cozinham.
Gonçalves, um dos entrevistados, relata em sua fala a preocupação com a montagem de
um cardápio variado, que ofereça pratos mais leves, para atender aos que fazem dieta, como
também um cardápio mais calórico, que atenda aos que preferem esse tipo de alimento.
O mesmo ocorre com Ariane, uma outra entrevistada, que procura criar molhos para
peixes como uma forma de cativar os fregueses, além de inserir outras novidades no cardápio,
como é o caso do camarão e da casquinha de siri. Desse modo, ambos procuram atender o gosto
de seus clientes.
O segundo eixo envolve o uso das medidas na cozinha. Durante as falas das entrevistadas
e do entrevistado, percebemos o quanto é freqüente o uso de unidades e utensílios de medidas na
cozinha. No entanto, na culinária, as medidas envolvem diferentes unidades, muitas vezes
diversas daquelas presentes no cotidiano escolar, mas que no nosso cotidiano são aceitas e
conhecidas por pessoas que cozinham, como também por outros que, apesar de não cozinharem,
estão atentos às práticas culinárias.
133
Ana, outra das entrevistadas, em sua fala relata que o uso da medida é relevante para o
preparo dos bolos e salgados, mas ressalta que em algumas receitas ela não faz uso de medidas
precisas, orienta-se mais pelo olhar, pela forma com que a massa se apresenta, por exemplo.
O estudo das medidas dentro do ensino da matemática um tema relevante, relacionado
aos estudos dos meros e da geometria aparece em diversas situações no Ensino
Fundamental, em problemas que envolvem, por exemplo, as medidas de massa, área, perímetro e
volume.
No Ensino Médio, a partir da última reforma curricular, o estudo da matemática está
dentro da área Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e representa uma ferramenta
das disciplinas de física, química e a biologia. O estudo das medidas, por sua vez, ali aparece no
campo da Geometria Espacial, quando se relacionam volume, capacidade e área da superfície de
figuras espaciais, como o cubo, o cilindro, o bloco retangular.
Na Física, na qual a matemática aparece em diversos cálculos utilizados nas fórmulas, o
uso de medidas é fundamental e relaciona-se às grandezas físicas dos diversos campos dessa
disciplina, entre eles: Mecânica, Óptica, Termologia. Existe uma variedade de grandezas que
envolvem os diversos campos da Física, como: distância, tempo, velocidade, aceleração, entre
outros — as quais estão relacionadas com suas referidas unidades de medidas.
A Química, especificamente no ramo da físico-química e dos cálculos estequiométricos,
também envolve diversas medidas de grandezas, como: volume, densidade, massa, o mol, o
número de Avogadro das substâncias químicas.
Diante da relevância que envolve o uso das medidas dentro do nosso cotidiano e, de modo
particular, na culinária e na prática escolar, propomos, a partir da perspectiva da Etnomatemática,
que o uso da prática social da culinária venha a ser discutido e talvez incorporado em proposta de
ensino da matemática, especialmente no Ensino Fundamental e no Ensino Médio da Educação de
Jovens e Adultos.
No primeiro deles, entendemos que o uso de medidas na culinária pode ser utilizado no
estudo de massas e de capacidade, ampliando as discussões realizadas no contexto escolar.
Acreditamos que, desse modo, o educando poderá significar melhor seu aprendizado e também se
sentir mais valorizado quando, é claro, se essa prática fizer parte de seu cotidiano.
No Ensino Médio da EJA, o estudo das medidas, como comentamos acima, aparece no
campo das figuras espaciais. No entanto, esse conteúdo é trabalhado, na maioria das vezes, de
134
forma desvinculada do cotidiano dos alunos. Nesse sentido, entendemos que, dentro da
perspectiva etnomatemática, o uso das medidas na culinária pode também estabelecer relações
entre as medidas de volume e capacidade no estudo dos sólidos geométricos, como, por exemplo:
o bloco retangular e o cilindro.
Encontramos, por exemplo, muitas medidas, inseridas nas receitas culinárias mencionadas
nas embalagens, que usam como unidade a própria embalagem, por exemplo: uma lata de molho
de tomate refogado, uma embalagem de creme de leite. Neste caso, essas embalagens possuem
tanto formas cilíndricas como formas de blocos retangulares, que podem ser exploradas em
atividades pelos professores.
Dentro do universo da cozinha, encontramos, ainda, vários utensílios que possuem formas
espaciais e se aproximam das formas discutidas na escola, dentre eles: o copo, as formas de
alumínio, as panelas, as forminhas de gelo, os potes de plásticos para congelamento e
armazenamento de produtos alimentícios; enfim, esses são alguns exemplos de caminhos que
podemos usar para aproximar e relacionar a prática da culinária da prática escolar, porém,
entendemos que não cabe aqui um detalhamento de atividades pedagógicas a partir da culinária,
pois esse tipo de proposta deve emergir da reflexão conjunta entre educandos e educadores, no
que se refere tanto ao tema quanto à forma de abordá-lo.
Nossa intenção aqui foi apenas problematizar questões relacionadas ao ensino de
matemática de jovens e adultos, focando a necessidade de organização de propostas curriculares
que considerem diferentes práticas sociais e culturais e ampliem o universo escolar, ou seja,
acreditamos que o espaço escolar deva ser como indica Candau (2000) - reinventado e
reorganizado.
Na perspectiva da Etnomatemática e considerando as idéias do pensamento freireano,
entendemos que a aprendizagem, especialmente a dos educandos da EJA, torna-se mais crítica e
transformadora quando a organização curricular considera diferentes práticas sociais.
135
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141
QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA
JUSTFICATIVA
Este questionário faz parte de uma pesquisa desenvolvida pela Profª Claudinéia Passarelli
Cherini e baseia-se em problematizar a prática da culinária no que se refere /aos saberes
matemáticos produzidos no interior da mesma, visando contribuir para a discussão curricular do
curso da EJA. A pesquisa tem como objetivo discutir a matemática presente na prática culinária,
a partir disso fazer uma pesquisa com os alunos desta instituição escolar.
1-) Responda:
a-) Qual é a sua idade ?______________
b-) Sexo: ( ) Masculino ( ) Feminino
2-)Você realiza algum trabalho remunerado ? __________________
3-) Onde ?______________________________________________________
4-) O que você faz nesse trabalho ?
______________________________________________________________________________
____________________________________________________________________
5-) O que te levou a voltar a estudar ?
( ) por exigência do trabalho
( ) porque sempre gostou de estudar
( ) porque precisa estudar para ter um emprego melhor
( ) porque pretende prestar um concurso público
( ) porque um amigo(a) fez um convite para retornar aos estudos
( ) outros motivos________________________________________________________
_________________________________________________________________________
6-) O que você mais gosta de estudar ?
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
7) A matemática que você usa vida diária se parece com a matemática que estuda na
escola?
( ) sim ( )não
8- Se você respondeu não, você acha que deveria se parecer?
142
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
__________________________________________________________
9-) Explique uma situação em que a matemática é importante para você ?
______________________________________________________________________________
____________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
____________________________________________________________________
10-) Você sabe cozinhar ? ( ) sim ( ) não
Caso sua resposta seja afirmativa, responda a questões 10, 11, 12, 13, 14 e 15.
11-) Você gosta de cozinhar ?
( )sim ( )um pouco ( )não, cozinho por obrigação ( ) de vez em quando
12-) Assinale as alternativas dos pratos que sabe ou gosta de preparar :
( ) bolos ( )sobremesas ( ) salgados ( ) pães ( ) carnes ( ) batidas
( ) chocolate ( ) massas em geral ( ) doces caseiros ( ) peixes
( ) salgadinhos ( ) docinhos de aniversário ( ) saladas
13-) Quais os pratos que você mais gosta de preparar ?
______________________________________________________________________________
____________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
14-) Que tipo de coisas(conhecimentos) um bom cozinheiro deve saber ?
______________________________________________________________________________
____________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
____________________________________________________________________
15-) Você costuma alterar as receitas e criar novas receitas?De que forma?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________
_________________________________________________________________________
143
Entrevista com a jovem cozinheira do pesqueiro cujo nome fictício é Ariane,
aluna da EJA que concluiu o ensino médio em 2006.
O encontro com Ariane aconteceu no mês de maio, numa segunda à tarde, em sua casa.
Ariane é uma jovem alegre, falante, uma pessoa divertida e bem tranqüila. Durante toda a
entrevista demonstrou firmeza, parecia tranqüila e solta. Atendeu prontamente ao pedido para que
fizesse um relato de toda a sua vida e falasse sobre a sua infância, o seu trabalho, a escola, enfim,
para que contasse tudo o que tivesse vontade de falar. A história de Ariane é muito interessante e
a sua vida é de uma pessoa que batalha para conquistar os seus sonhos. Veja o seu relato abaixo:
Meu nome é Ariane, tenho 18 anos e vou fazer dezenove em outubro, eu estudei na escola
“Padre Armani”, sai e fui para a escola “Caminhar”, e acabei terminando na FEG, terminei o EJA
lá. Eu trabalho num pesqueiro, de fim de semana, faço porções, ajudo no bar, na portaria, e o que
meus tio precisam de mim, eu ajudo eles, mas o que mais eu mexo é na cozinha. Lá no pesqueiro,
a gente gente de todo o tipo, conversa com muita gente e acaba aprendendo bastante. Eu lá
seis anos, desde os 12 anos, eu entrarei por brincadeira ajudando os meus tios no fim de
semana e acabei ficando ahoje, e tamo todo final de semana. agora, de dia de semana, de
segunda a sexta eu trabalho numa clínica. É uma clínica terapêutica para tratamento de drogas. Lá
clínica eu dou conselho para os meninos, converso, participo de reunião, faço comida, atendo
telefone, eu faço de tudo um pouco, converso com as mães dos meninos. Os meninos ficam
durante quatro meses para tratamento, onde eles não podem sair, eles ficam lá. A gente conversa
com eles, pois, eles estão passando por um momento difícil da vida para tentar ajudar.
Eu estudava no “Padre Armani”, e eu cansei de estudar, levantar cedo, e eu perdi a
paciência. E eu parei de estudar e fiquei seis meses sem estudar, depois eu voltei e eu fui
para a EJA no “Caminhar”, e aí eu fiz o primeiro colegial lá e onde eu conheci o meu namorado e
depois eu fui para a FEG e eu terminei o segundo e o terceiro. Agora esse ano eu não
estudando, mas o ano que vem eu pretendo fazer Faculdade de Nutrição.
Quando eu era criança, eu gostava de fazer bolinho de terra, fazer bolinho de areia, com
folhinha e matinho, tudo pra brincar de comidinha. Eu fazia bolinho de fubá, essas coisas que
criança gosta de fazer. Quando eu comecei a estudar com seis anos no prezinho, eu sempre me
dei bem na escola, nunca tive problema na escola, gostava da professora. Com oito anos eu
144
comecei a fazer bolo, minha mãe me ensinou a fazer. E eu fazia toda semana para levar para a
professora, pois eu ficava encanada que eu tinha que levar bolo para a professora, pois eu sabia
fazer o bolo. E ela sempre o mesmo bolo que eu fazia. Eu fazia bolo de chocolate, e eu
fazia o mesmo bolo. Isso foi com oito anos e depois fazer comida, comida de fogo eu não
fazia, eu fazia coisas mais simples. E depois, eu aprendi a fazer bolinho de chuva com a minha
vó, e depois era bolinho de chuva, quando eu aprendia alguma coisa, todo mundo tinha que
comer o que eu fazia, tinha que comer e se não comesse. Eu infernizava a vida de todo o
mundo, come, come, e todo mundo tinha que comer. E depois eu aprendi a fazer arroz, o
primeiro arroz ficou um grude, coloquei água demais.
Depois eu fui para o pesqueiro, e eu atendia a mesa, eu era estabanada, eu acabava
derrubando as coisas na mesa, era uma bagunça. Eu fiz esse serviço durante um três meses, e
depois eu parei de trabalhar. E eu voltei em janeiro, e eu fui ajudar a Vanda na cozinha, e
acabei aprendendo tudo, tudo o ela sabe eu aprendi. Antes de eu continuar a falar do pesqueiro,
eu lembrei de um fato na minha infância, quando eu tinha oito anos. Era o aniversário da minha
professora da Ione da série, e foi quando eu estava fazendo o bolo. E eu tava preparando a
festa surpresa para ela, e fiquei de fazer o bolo. Eu queria fazer o bolo, e o bolo era de chocolate
para variar, eu tinha que fazer recheado, pois todo mundo queria recheado. Eu fiz o bolo, mas
depois eu amanheci doente, com febre. E eu tive que ir para o hospital, e mãe levou o bolo na
escola, eu não fiquei na festa e não comi o bolo. Eu acho que esse dia eu nunca mais vou
esquecer, eu fiz o bolo e todo mundo comeu o bolo, eu que não podia nem sentar, pois tomei
duas injeções na bunda, fiquei doente não podia.
Mas agora, falando do pesqueiro, assim que a Vanda saiu, eu peguei o lugar dela, com
treze anos. No começo achei que era muita responsabilidade, e daí sempre alguém mais velha
para me ajudar. Os molhos do pesqueiro fui eu que inventei, eu fazia de cabeça. E foi na
experiência, joga isso e saí aquilo, e aí sai o molho. Lá tinha um molho comum e era sempre esse,
e aí eu joguei um negócio no meio e o molho ficou verde e todo mundo gostou do molho verde. E
foi que eu mudei e eu fui lá e descobri que se eu colocasse mais outra coisa dava um outro
molho. E foi que eu fui descobrindo o sabor dos molhos.
Agora para temperar peixe, eu descobri que se eu colocar cebola o peixe fica amargo. Isso
acontece porque o peixe tem uma acidez que reage com a cebola e ele fica amargo. E descobri
que cebola não pode, limão também não pode, isso por que encharca, eu fui descobrindo na
145
experiência. Ás vezes, eu tava com pressa, eu jogava e ficava uma porcaria. Não alguma coisa eu
errei, efazia com menos que eu tinha feito, eeu fui descobrindo que os segredos do peixe, o
jeito que tava frito, o tempo que deve fritar, quando tava crocante, quando não tava, o jeito da
farinha. E lá a gente trabalha muito com balança, mas eu nunca gostei da balança. A balança é
para enfeite, pra mim é tudo no olho. Eu não uso medida, eu não sigo receita, eu não sigo nada,
tudo na base vamo joga pra ver o que dá. Então era tudo bem assim. E depois de um tempo, acho
que no ano passado, o meu tio começou a trabalhar com camarão. Eu achava a coisa mais chata
fazer camarão, porque tem que ter o tempo certo para congelar, se não ao fritar ele encharca. Para
descongelar tem que usar água com gelo. E eu fui aprendendo, e todo mundo ia para
comer o meu camarão. Eu pequei prática, e depois um tempo veio à casquinha de siri. E
negocinho chato de mexer, mais eu aprendi e comecei a fazer.
Teve uma vez no meu aniversário, de 16 ou 17 anos, foi lá no pesqueiro, eu tava doente, e
eu fui fazer peixe assado para eles. E foi que descobri mais um jeito de fazer peixe assado.
Que tem que ir no alumínio, o tempo que ele demora para assar, quanto limão você põe, mais
rápido ele cozinha. São vários tipos de fazer, que se você explicar para uma pessoa que não sabe
cozinhar nunca vai entender, pois ela não sabe do que você tá falando. E igual quando uma
pessoa que tá olhando e que aqui para te ajudar, ela vai ficar te olhando e vai te atrapalhar. Por
isso, eu gosto de trabalhar sozinha, por que se for para trabalhar com uma pessoa que não vai
entender o que eu tô falando, eu prefiro ficar sozinha. Pelo menos eu sei o que eu tenho que fazer,
e não acaba me enrolando com outra pessoa. Por isso mesmo o que eu gosto de cozinhar sozinha.
Então, quando eu comentei, que quando eu comecei cozinhar eu ficava em cima da minha
mãe, que eu queria aprender a fazer bolo, até eu aprender. Teve uma vez, que eu quis aprender a
fazer nhoque e a água quente caiu na minha barriga. Queimou tudo eu, toda a minha barriga.
Porque eu fui fuçar e minha mãe disse para não mexer na panela de nhoque, era aquela nhoqueira
que colocava em cima de panela, e ela virou as costas e eu mexi , pronto tombou a panela em
mim. E vai eu para o hospital, a mulher fazendo curativo e puxando as pelinhas, da água que
tinha queimado. E foi e essas coisa eu não esqueço, e erros também, os erros do bolo, sempre
acontece. Então, outro diz eu fui fazer pão na clínica, e eu bati tanto no pão, e não vi que o
fermento tava estragado, o pão não crescia. E todo mundo ficou tirando sarro de mim: Oh!
Cozinheira o pão não cresce. Esses erros também sempre acontece. Farinha demais, água de
menos, isso aí sempre acontece comigo. Às vezes eu não presto atenção no que estou fazendo e aí
146
pronto, vira uma anarquia. Eu fui fazer bolo na minha casa para o meu namorado. O bolo que ele
gosta é o de chocolate com recheio, pronto fui fazer o bolo , fui colocar a farinha e ela estava
estragada e eu nem percebi, e fui jogando e o bolo ficou um negócio duro. Então eu fui no BIG e
comprei uma massa para bolo de caixinha, mas eu não falei para, e ia ficou bom.
Agora estou lembrando um pouco sobre a matemática. Quando eu estava no “Padre
Armani “, eu detestava matemática. Eu não sei se era a matemática ou o professor era muito
chato. Quando ele tomava a tabuada, então eu tinha horror de estudar tabuada. Até hoje eu não
sei tabuada, eu detesto tabuada, para mim tem calculadora e celular, tabuada nem pensar. Ele
tomava tabuada, e rancava ponto se a gente não acertava. Quantas vezes eu ficava com mão para
trás contando no dedo se eu conseguia acertar. Nossa aí eu comecei a ter ódio de matemática. E aí
depois eu fui para o Caminhar, e tinha um professor meio louco, aquele era meio louco. Ele
explicava as coisas de matemática e ele fazia uma bagunça para explicar que eu me matava de rir.
E eu comecei a gostar de matemática, e eu comecei a aprender e comecei a ensinar todo
mundo. E aí quando eu fui para a FEG, a professora explicava eu entendia tudo. Então sempre me
dei bem em matemática, adorava fazer matemática, fazia prova rapidinho, para ir logo embora na
época da EXPOGUAÇU. E a matemática sempre, agora tem matemática na cozinha, também,
porque sem matemática não tem como cozinhar.
Quem vai conseguir cozinhar, sem matemática? Por mais que você faça de cabeça, tem
que saber medida. E medida é matemática. Então tudo se resume na matemática, na cozinha, na
vida. E agora eu estava pensando numa matemática, dos tipos de matemática que se usa no dia a
dia, principalmente na cozinha da minha casa é uma matemática assim, colheres, litro, copo, é
mais simples e eu não tenho tanta responsabilidade, eu sei se eu errar não vai ter nenhum
problema. E ninguém vai morrer de fome, então eu digo que a matemática na minha casa é mais
relaxada. Agora, a matemática lá no pesqueiro, é complicado, todo mundo tá esperando você para
comer, um erro seu, a pessoa fica sem comer e eu que escuto o xingo, pois a minha
responsabilidade lá é muito grande. Tanto que se eu errar no sal, uma colher a mais ou a menos,
vai dar diferença, até no óleo se eu errar na quantidade. Eu uso 28 litros de óleo se eu usar 29,
não vai caber. Também a quantidade de água que vai colocar e aí junto com o sal grosso, também
não pode errar que são 400 gramas, passou disso, fica salgado o óleo e o peixe no óleo, tem tudo
isso.
147
também tem a balança, eu não sou de balança, eu não gosto de medida, mas eu
tenho que usar a balança no peixe, porque todo mundo tem que comer, eu não posso fazer uma
porção maior pra um e outra porção menor para outro. Então a gente usa as gramas, no
pesqueiro é a grama, nós colocamos tudo na bandeja o peixe cru, tempera e frita, e aí na hora que
você frita ele pelo choque térmico que se dá, se ele estiver meio gelado, ele vai crescer muito
mais do que se ele estivesse morno, pois o certo do peixe é fritar ele gelado. Então no
pesqueiro a matemática, é mais grama, às vezes colher, os molhos você usa tantos quilos de sal
para tanto de litros de óleo, alho e água. Lá a matemática é mais da primeira série, soma, dividir.
aqui em casa é mais dividir, o bolo tem que dividir a metade para um, uma pessoa quer
um tanto outra quer outra, tem que dividir. Na clínica, quando eu to fazendo comida, é xícara, é
uma xícara grande, a gente faz dez xícaras por almoço e por janta, eu acho, que dá 3 a 4 quilos de
arroz para um dia e ainda olha lá, geralmente vai 4 quilos para o almoço, então é mais
quilo, também é mais dividir, pois os meninos tem que comer igual, você não pode fazer um
tanto a mais para um e menos para o outro, tem que ser igual, senão briga, se você fizer um
pedaço de bolo maior para um o outro vai falar porque o do outro ta maior que o dele, então você
tem que dividir certinho, cortar certinho senão vai dar errado. eles são muito carentes, então
eles fica nessa, o que você fizer pra um tem que fazer para outro, se você comer perto de um,
você tem que dar para todos, eles são pior que criança. Por que eles estão em processo de
tratamento.
O que mais eu posso falar da matemática, a é o suco eu detesto fazer o suco daquela
clínica, eles sempre pedem para mim fazer o suco, é horrível, porque tem que colocar 3 litros de
água e um pozinho que tem que colocar as colheres, eu detesto usar aquelas colheres. Eu nunca
uso as colheres, então os outros fica bravo comigo; “Você fazendo o suco errado, Ariane tem
que medir.” . Mas eu não gosto de usar pois, colher é muito pequena, e o tanto de suco que eu
tenho que fazer, eu tenho que usar umas 50 colheres de suco, então eu não tenho paciência, eu
jogo direto na água. Eu gosto muito das coisas rápidas, eu não gosto de enrolação, então a
matemática é assim, em casa é a matemática mais simples, porque se a gente errar não tem
responsabilidade.
no pesqueiro, a responsabilidade é grande, e na clínica também é grande. que eu
acho que no pesqueiro é maior do que na clínica, porque tem muitas pessoas querendo uma
coisa só. Pois é o peixe, a especialidade é o peixe, tem que fazer bem feito, não posso fazer
148
errado, senão eu perco o freguês , é mais complicado. Agora na clínica não, se a gente erra eles
entendem, você ta todo dia e se você errar é normal. Como eu disse do pão que eu errei, eu
coloquei o fermento tava estragado. Então foi um erro e eles não falaram nada, ninguém reclama.
Eles entendem que ninguém é perfeito, no pesqueiro, tem que ser do jeito certo e acabou.
Então a matemática é relacionada a tudo isso. Para mim eu acho que é assim.
Bom! Eu vou falar um pouco da minha vida, eu falei que acabei a escola, e o ano que
vem, eu pretendo fazer faculdade de nutrição. Como eu adoro cozinha, ser nutricionista é um
emprego que tem muita vaga no mercado. Não é qualquer pessoa que vai fazer e enfrenta, é
demorado, é complicado, tem muito o que estudar. Eu sei , eu gostaria de fazer isso, mesmo
que eu vou mexer com matemática, e imagina o tanto de medida que eu tenho que fazer, mas
eu não tô ligando, porque eu gosto e é isso.
E falando de escola também, esse ano eu sem fazer nada eu com um trabalho novo,
uma experiência nova que eu tô fazendo. Trabalhar com meninos, pessoas que tão em tratamento,
é complicado para mim, tá sendo novo, aprendendo bastante coisa, talvez agora em agosto eu vou
fazer um curso de capacitação profissional em Campinas, um curso terapêutico, sobre esse
tratamento, tudo para mim se especializar mais. Por que quando chegar as famílias eu vou
poder ajudar, explicar, e ajudar o meu namorado pois a clínica é dele, ele que cuidando de
tudo.
A minha sogra e o meu sogro ajudam, o mais gostoso de trabalhar é que o meu namorado
é o meu patrão. E mais gostoso se eu to sentando ele não vai falar nada. Eu acho o mais gostoso
que trabalhar com os meus tios, mas também como os meus tios é gostoso, eles são superlegal e
divertido, sempre na brincadeira, nem parecia que eu tava tendo tanta responsabilidade no
serviço. Porque assim você pensar que não tem tanta responsabilidade no serviço, você fica mais
solta, uma porque é o seu tio ou o seu namorado. Eu acho que isso influencia bastante. no
pesqueiro é divertido, é brincadeira, é riso, gente que ri daqui, gente que ri dali, é freguês que
grita e chama eu pelo apelido: Vem aqui, Linoca, a minha porção! È gente que chega lá, o
carinho que eles têm com a gente, pelo tempo que a gente trabalha lá, que conhece. Eu lembro
que no ano passado, no meu aniversário, eu ganhei presente do freguês, pelo carinho, pelo tempo
que me conhece.
Agora, para mim está sendo uma experiência nova, a clínica, não que o que eu fazendo
eu não saiba, o curso que eu faço, a capacitação profissional ajudando bastante, tamo
149
investindo, para ter um futuro melhor. Eu comprei uma moto, tirei carta de moto, tudo o que eu
queria, conseguindo tudo o que eu queria, sendo muito bom para mim, tendo vários
presentes no dia a dia. E o ano que vem se Deus quiser, eu pretendo fazer nutrição e estudar mais
um pouco.
Eu tenho saudade da escola, principalmente, quando eu estudava na FEG. Eu não ia
muito para a escola muito não, mas quando eu ia e eu gostava. Era divertido, o ano passa
rapidinho, vo tem o que fazer um trabalho, você sempre ocupando a cabeça. Eu
trabalhando de dia de semana, e a noite eu fico com a meu namorado, mas são duas coisas
diferentes eu ficar o dia inteiro e a noite com ele.
Mas eu sinto falta da escola, das amizades, das pessoas que a gente via todo dia,
principalmente das pessoas mais velhas, e as pessoas mais velhas de são superlegal. Tinha
alguns que não sabiam a matéria e a gente que era mais novo entendia sempre e aí ajudava um,
um ajudava o outro.
Agora, lá na escola eu nunca vou esquecer da Grazi, aquela lá eu nunca mais vou
esquecer. Eu falo que ela era meio perua, mas eu gostava muito dela, e converso com ela até hoje.
Nossa nós duas juntas sempre ajudava uma a outra, sempre juntas fazendo trabalho. Na prova de
Física que nós não sabíamos, s colava junto, na prova de Português, quando s fomos fazer
uma dissertação, e eu não sabia. Ela passava para mim e eu passava para ela, nós sempre tava
assim, que não cola não sai da escola, tem que dar um jeito, mas eu não preciso muito disso não,
também eu não estudo, eu chego na prova, vamo vê , se por xizinho que fico mais feliz ainda, e
a gente brinca de cara ou coroa. Eu tenho saudade da escola, das pessoas que eu conheci lá. Hoje
eu vejo na rua as pessoas que eu estudei junto. Outro dia, um cara me viu na rua e disse que tinha
estudado comigo, mas eu não lembrei, depois ele fui falando, e aí eu lembrei. Nossa era divertido.
Eu vou sentir bastante falta, então por isso que o ano que vem eu quero voltar a estudar, se eu não
fizer faculdade eu vou fazer outro curso para vestibular e sem não ser no outro ano ainda. Mas eu
vou estudar, sim porque é muito bom estudar.
Para finalizar disse a ela: Obrigada, Ariane pela entrevista.
150
Entrevista realizada no mês de maio com o ex-aluno da EJA. O nome fictício
desse entrevistado é Gonçalves e é proprietário de um restaurante self-service.
A entrevista com Gonçalves ocorreu em seu restaurante, no sábado à tarde. Ao saber que a
entrevista seria gravada e precisaria de um local quieto, que havia pessoas almoçando no
restaurante, ele sugeriu uma outra sala do restaurante, reservada para festas. Foi orientado a falar
tudo sobre sua vida, seu trabalho, as atividades do restaurante, o gosto dos clientes, o cardápio, a
escola e, em especial, a revelar, também, se existe a matemática da cozinha e, em caso
afirmativo, explicar de que forma. Veja a sua entrevista:
Meu nome é Gonçalves, tenho 44 anos, comecei a minha vida trabalhando na roça, depois
eu vim embora para a cidade. meu pai colocou uma pastelaria e comecei a trabalhar, eu, meu
irmão. Na pastelaria tinha um senhor conhecido como Nito que fazia o pastel, pois o meu pai
nunca cozinhou na vida. Como não tinha ajudante eu comecei a trabalhar com ele e aprendi a
fazer as massas, a carne, e eu fui pegando o gosto de cozinhar. Na minha família também eu
tenho uma irmã que também trabalhou em uma pastelaria e também mais dois irmãos também
trabalharam na pastelaria, mas só eu fiquei trabalhando nesse ramo.
Com o tempo eu comecei a interar na cozinha, e aprendi a fazer coxinha, fazer carne,
fatiar calabresa, fazer massa de pastel e fomos dando seqüência da vida. E estava fazendo
pastel, tava servindo cliente, já tava aprendendo, e é mais uma aprendizagem, no começo é
aprendendo. E aí eu trabalhei dois anos com o meu pai. E depois eu fui para outro bar, aqui
em Mogi Guaçu, e eu fui para cozinhar mesmo: pastel, coxinha esfirra, a massa de pizza,
me interava tudo isso aí, eu estava fazendo tudo isso aí. Nessa época eu estava na série, e
eu tive que parar, com 17, 18 anos eu tive que parar de estudar, para começar a trabalhar até as
oito, nove horas da noite na cozinha.
Naquela época, o bar vendia muito e eu ficava o dia inteiro, desde às 5 horas da manhã até
a noite, era todo dia, massa de pizza, churrasquinho, bife na chapa e vai se pegando gosto pela
cozinha. E ai eu trabalhei cinco anos nesse bar, fazendo isso aí. E depois, eu montei a minha
lanchonete em sociedade com uma outra pessoa, e aí você tinha que por a mão na massa, eu sabia
fazer tudo, então eu tinha que...(pausa) E ai foi trabalhando no mesmo ramo, lanchonete também
e sempre na cozinha, fazendo massa, churrasquinho, depois começando a fazer arroz, também,
151
macarrão, a gente vai aprendendo no dia a dia, um dia você faz salgado, outro dia faz outra coisa,
é uma aprendizagem, e durante vinte e cinco anos eu trabalhei com isso daí, e todo esse tempo eu
parei de estudar e não voltei mais.
E aí eu fui terminar a série agora uns dois anos atrás e eu fiz a oitava e depois o
primeiro e parei de novo, quando eu comprei o restaurante. Agora eu trabalho de segunda a
segunda, não tem descanso, praticamente nada né. Na cozinha você aprende você vai aprender
com as pessoas, no dia a dia, então funciona assim. Todo dia eu vou para cozinha, a minha
esposa, agora mesmo eu estava fazendo um filé de frango, vendo o feijão, o arroz, a ponta de
alcatra, o molho madeira, a gente vai aprendendo. Depois de um ano para eu comecei a
aprender essas coisas, também, é cupim, as carnes tudo é uma aprendizagem. A gente cada dia
aprendendo mais, massas também.
Outra coisa também que eu faço é a compra, eu vou todo dia ao mercado para fazer as
compras, eu tenho que olhar as verduras, o custo, e sempre tem que fazer as continhas, o que é
viável, o que não compensa. As carnes é a mesma coisa, você vai servir costelinha, como hoje eu
servi costelinha, amanhã eu vou servir bisteca, então você tem que sempre fazer conta, ver o que
é mais viável, o que agrada o cliente, também né, Talvez nem sempre o que é barato agrada o
cliente, mas às vezes o que é barato agrada o cliente, tem tudo isso. Então tem que ver no
supermercado o que vai comprar ou não vai comprar, então tem tudo isso também. Eu costumo ir
em 3 a 4 supermercados na semana, sempre procurando o que está em conta ou não está. Ás
vezes tem uma mandioquinha, um abacaxi mais em conta, e tudo isso faz uma grande diferença.
Você precisa estar atento à concorrência, atrás das promoções, da qualidade, também,
quem oferece qualidade ou quem oferece preço, tem tudo isso. E a gente tem que ver a
consistência da mercadoria que ta comprando, quando vocompra uma caixa de cenoura, vo
tem que ver se ela está consistente ou não tá, e para ver se vai ter perda ou não. Tem
mercadoria que você não perde nada, quando você compra ela vosabe que não vai ter perda
e mesmo assim compensa.
Na cozinha também tem perda, tem muito coisa que você faz e não sai e você perde, tem
perda também, na cozinha é imprevisível também. Um restaurante de porta aberta, na avenida, às
vezes você faz uma quantia e falta ou sobra, tem perda.
Eu parei de estudar porque, quando chega 6 horas da tarde a gente muito cansado e não
dá para estudar, mas eu fiz um esforço e fiz um ano na escola, talvez eu pretenda terminar vamos
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ver. Eu sempre gostava de estudar, eu ia todo dia e não faltava muito pouco, eu não tinha tempo,
mas sempre gostei. Eu ia muito bem em matemática, é gostoso matemática.
A cozinha e a matemática tem tudo a ver, a matemática em tudo, na cozinha, no
caixa, em todo o lugar. No restaurante, eu uso a matemática é na hora de o cliente pedir o
marmitex, você tem que usar a matemática, o custo, o quanto custa isso ou aquilo. Agora a pouco
eu estava usando a matemática, eu falei para a menina: Põe mais isso, menos aquilo, porque fica
mais em conta para nós, isso aqui é mais caro e não é tão saudável, o que fica mais barato é mais
saudável, o que é mais caro que você colocando é menos saudável e também fica mais caro
para gente. Isso é matemática, certo, você pensando em números. E os números é
matemática. Aqui a gente não trabalha com a balança, mas já usamos às vezes para pesar os
pratos, a gente faz um prato e usa ter uma noção do que ta sendo servido. Nos marmitex, a gente
usa para fazer os cálculos, sempre usando matemática. No cozinhar você também tem a perda,
quando você vai cozinhar dez quilos de carne, quando você cozinha essa carne você perde 30% ,
é matemática. O frango também tem perda em torno de 40% a 45% , para fazer um filé de frango,
o frango você põe na balança, dá, por exemplo, 15 quilos de frango, você e em uma chapa, a
perda é de 40%, é matemática. Mesmo assim compensa, o frango é uma coisa que vende bem, o
cliente gosta muito, e o frango é o que o pessoal mais gosta, carne branca, eles gostam muito de
carne branca. o peixe tem uma perda de 40% , mas a gente serve pouco, por uma questão de
gosto, não é todo mundo que gosta.
A principal coisa que o pessoal gosta é o frango, se você não tiver frango, não vende, o
frango realmente gosta, frango grelhado, frango assado, frango no molho, isso é um dos
principais pratos. Outra coisa é o torresmo, o tutu de feijão, o ovo frito, uma couve, realmente
gosta. O arroz e o feijão é muito importante, bem quentinho, o pessoal gosta, o arroz e o feijão
tem que ser de primeira qualidade, isso vonão pode fazer conta, correr atrás de preço, tem
que ter qualidade, não tem nem dúvida. Você tendo um arroz e um feijão bom, tiver um frango,
todo dia tem que ter frango seja frito, assado, ao molho, movimento. o torrresmo, o tutu de
feijão com ovo eu faço uma duas vezes por semana.
Eu também sirvo marmitex para as firmas, todo dia tem que ter frango, normalmente eu
vendo 100 a 150 marmitex ao dia e tem que ter frango. o peixe não é todo mundo que gosta, é
uma minoria. O peixe é um prato que tem que ser servido muito fresco, eu também faço camarão
na moranga, mas a aceitação é pouca. Sempre tem um pessoal mais reservado, e muita gente tem
153
receio de comer peixe estragado. É um produto que tem que prestar muita atenção quanto a
qualidade e a conservação do produto, pois estraga facilmente, tem que ficar atento a sua
consistência, trem tudo isso. Verificar se já vem congeladinho, guardar no freezer, tem que tomar
muito cuidado, preparando ele antes tem tudo isso. Na cozinha você tem que ter muita dedicação,
senão não dá nada certo, tem que ter uma dedicação total.
Também na cozinha você sempre tem que inventar, para variar o cardápio, você sempre
tem o básico, mas tem que variar, uma cenoura com abobrinha, uma vagem com cenoura, uma
berinjela a parmegiana, a gente faz sempre também, a minha mulher faz também, a lasanha de
berinjela, a gente sempre inventando. Eu também uso frutas também quando eu faço o tender
eu uso o abacaxi natural, o pêssego e o figo em caldas, isso sai muito. O pessoal também gosta de
salada de frutas, a gente faz o abacaxi com pêssego, maçã, sai bem também. As sobremesas que
eu sirvo são: a gelatina, o pudim de coco que é muito fácil de fazer, às vezes eu sirvo de 3 a 4 por
dia.
Então, a pesquisadora perguntou: E a clientela do que gosta?
Eu sirvo para clientes que gostam de comida balanceada e para clientes que não se
preocupam com o que engorda ou não. Eu diria que 50% se preocupa e 50% não se preocupa com
isso, come por gosto mesmo. Tem gente que vem aqui para comer aqui por causa do torresmo, da
carne suína, outros vêm por causa da salada, das frutas. Alguns vêm para comer a comida do dia
a dia, o arroz com o feijão.
No restaurante eu tenho duas cozinheiras e a minha esposa também ajuda, a mãe dela foi
cozinheira e ela entende muito, ela faz um bacalhau muito bom, eu também ajudo mais com as
massas, mas eu faço também um arroz, feijão. Durante os 40 dias da quaresma nós fizemos o
bacalhau, quase todo dia tinha bacalhau. O bacalhau é muito aceito pelo cliente, é o peixe mais
aceito pela clientela. O pessoal em Mogi Guaçu gosta muito de bacalhau. Eu sirvo duas vezes por
semana, eu só não sirvo mais dias na semana porque ele é caro. E aí eu teria que subir o preço do
cardápio. Outra coisa que eu sirvo são as massas e que tem boa saída: a lasanha, o macarrão, o
nhoque. O macarrão é uma coisa tradicional, todo dia tem que ter macarrão, porque o macarrão e
o frango combinam, a lasanha também, são coisas combinadas. Aqui se no final de semana você
não tiver lasanha e frango, não é restaurante, pelo menos aqui é assim. O pessoal gosta de comer
macarrão e frango, o pessoal adora massas, em todas as idades, desde criança até o mais velho.
154
A criança vem para o restaurante, a mãe vem junto e já põe para ela macarrão, o macarrão
é tradicional, a criança sempre ta comendo macarrão, a batatinha frita, e um bifinho ou uma
carninha, uma batata cozida, criança come isso . Agora o jovem, o pessoal da escola, vem
comer aqui vem durante a semana 30 alunos, o que eles comem batata frita, massa, bife, salada
muito pouco, o jovem come pouca salada, eles gostam de bife, frango, lasanha, esses tipos de
coisa, o arroz e feijão ele come pouco. O pessoal da meia idade, ele se preocupa mais com a
saúde, prefere uma carninha mais na chapa, mais salada, mais legumes, é um cliente que
prefere salada, um bifinho grelhado, um franguinho grelhado, uma coisa assada, não prefere
batata, tem uma preocupação. a pessoa mais velha, a partir dos sessenta anos prefere uma
comida mais leve, uma alface, um bifinho grelhado, se não tiver o cliente vai embora mesmo. Ele
prefere um filé, um franguinho na chapa.
Depois, a pesquisadora perguntou: O que precisa para ser um bom cozinheiro?
Ele respondeu: Para ser um bom cozinheiro, precisa todo dia aprendendo, a vida é
assim, é uma aprendizagem, todo dia você ta aprendendo alguma coisa, seja na cozinha, na rua,
na sua casa, seja na escola, seja onde for. A gente tem que aprender a ouvir muito, e falar menos,
e sempre aprendendo, e na cozinha você aprende todo o dia. Você aprende com a pessoa mais
humilde que for você vai aprender tá sempre aprendendo. Para cozinhar você tem que ter
vontade, o dom ajuda também, mas se a pessoa não tiver vontade também não adianta, tem que
gostar, toda profissão tem que gostar do que faz, senão gostar não sai nada bom, porque é
trabalhoso. Às vezes eu vou para casa 3 horas da tarde, descanso um pouco e quando é cinco e
meia, 6 horas da tarde eu volto, para preparar o cardápio do outro dia. Tem que tirar as carnes
para fora do freezer, alguma coisa tem que deixar temperado para o outro dia. Cozinha é assim, a
gente não sossega, toda hora você mexendo, toda profissão precisa de uma dedicação total.
Você vai para casa, mas já está pensando no que vai fazer no outro dia, nas compras do mercado,
pensar nas verduras e legumes que vai servir. Você tem que montar o cardápio do outro dia e
você usa a matemática de novo, você vai servir couve amanhã, mas a couve cara, então não, o
brócolis está mais em conta, então eu vou servir.Então sempre tem usar matemática. E daí o
cozinheiro tem a matemática dele, mas a experiência conta muito, todo o dia aprendendo, você
tem a experiência do que você fez hoje, do que vai fazer amanhã. Tem também a cozinheira
que ajuda a gente e a gente ajuda ela, ela dá sugestões, isso ta mais barato, o pessoal gosta. E a
experiência conta muito, eu tenho trinta anos de dentro de uma cozinha, isso conta muito, a
155
minha mulher também tem bastante tempo, sempre foi cozinheira, desde os quantorze anos, ela já
ajudava a mãe na cozinha, para lavar prato, trabalhava já. E eu também desde moleque, eu
trabalhava na cozinha, com 12 anos, eu já fazia alguma coisa.
Em seguida a pesquisadora perguntou para ele: E os seus filhos entram na cozinha?
Eu tenho três filhos, uma tem quatorze anos e ela já é cozinheira, ela faz pudim, se deixar
ela faz tudo na cozinha, mas ela não tem tempo por que tem de estudar, mas quando dá tempo ela
faz a janta e até a sobremesa para o restaurante. Agora a outra que tem dezessete anos nem passa
perto da cozinha, não sabe nem fritar ovos, não sabe e não gosta, ela nunca quis aprender. Eu
acho também que é o dom, a pessoa nasce com aquilo e vai pegando prática. O menino tem
nove anos, e eu acho que não quer saber de cozinha e ainda não despertou. A profissão é boa,
mas é muito trabalhoso, exige muita dedicação, muita perseverança, se não deu certo tem que
fazer de novo, a cozinha é uma coisa trabalhosa e tem que gostar.
Então para finalizar a pesquisadora disse; Muito obrigada pela entrevista.
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Entrevista com a doceira Ana aconteceu no mês de maio. Ana conclui o ensino
médio da EJA em julho de 2005.
A entrevista com a doceira Ana ocorreu em sua casa no dia nove de maio, um dos dias
mais frios do ano. Enquanto ela preparava um chocolate quente, uma conversa tranqüila precedeu
a entrevista, ali mesmo realizada. Seus pais, na sala, assistiam à televisão. Ela preparou uma
mesa para todos e, logo após o chocolate quente com um delicioso bolo de fubá junto com a sua
filha, teve início a entrevista, que durou cerca de trinta e cinco minutos. E então ela começou a
falar:
Meu nome é Ana, tenho 37 anos, trabalho com doces e salgados faz uns sete anos que
eu trabalho com isso. Eu trabalho com salgados para festas, coxinhas, tudo que é de festas, faço
doces, bolos, trabalho com roscas, pães, e ultimamente o que eu mais faço é bolo e salgados é o
que sai mais para festas. Eu comecei a me interessar pela cozinha ainda muito nova, eu fazia
para casa. Na minha infância, eu via na casa da avó, antigamente tinha aquela dispensa, em que
chegava na casa da avó tinha bolo, bolachinha, e era cinco minutos na rua e 10 minutos na
dispensa para comer. E a gente via que a vó fazia aquilo com carinho, gostoso, tudo que fazia era
uma delícia e a gente chegava e abria a geladeira e tinha pudim, e eu acho que eu tomei gosto por
isso. Eu lembro da casa da minha avó, a primeira coisa que vem na cabeça é a dispensa e todas as
coisas que ela fazia e esperando a gente chegar. È uma coisa que marca na vida da gente, e acho
que foi por isso ou não que eu sempre lembro disso. Então eu gosto também de cozinhar, gosto
quando vem gente em casa para fazer alguma coisa, quando dá tempo faz mais coisas.
E foi passando os anos e quando eu tinha mais ou menos um s nove anos tinha uma
senhora que morava perto de casa, e ela tinha sofrido derrame. Então era difícil ela fazer comida,
então eu acabava fazendo para ela. Eu aprendi muito fazendo para ela, a gente fazia arroz, a coisa
mais fácil, pois eu não sabia cozinhar, eu não tinha experiência na cozinha, então o que dava para
fazer um arroz, esse arroz na janta virava uma sopa de arroz, às vezes levava comida de casa, a
minha mãe também fazia, e eu sempre ficava prestando atenção como a minha mãe fazia. Na
escola eu sempre levava as coisas, não o que fazia, mas o que a minha mãe fazia. A minha mãe
fazia bolo de aniversário para a irmã levar no trabalho. A minha mãe cozinha bem, todo mundo
gosta. E a gente vai pegando gosto, deu fui ficando maior, e eu com 18 anos comecei a
trabalhar no banco. No banco eu comecei a levar o bolo, quando eu fazia aniversário eu levava o
157
bolo que eu fazia. Quando chegava no meu aniversario o pessoal cobrava. Com o tempo, o
pessoal começou a pedir para eu fazer o bolo. E aí pensava como eu ia cobrar, eu não tinha noção
de preço. Até que eu comecei, então comprava as coisas do bolo, colocava uma porcentagem em
cima que era a minha mão de obra e vendia, e todo mundo adorava. Eu fazia torta de chocolate, o
pessoal ia tomar café em casa e eu ia fazendo os bolos. E depois do banco, e foi que eu
comecei a trabalhar com salgado.
Eu trabalhava numa firma, fui dispensada dessa firma, e eu estava grávida da minha filha
e eu pensava como que vai ser agora. Depois que eu tive a minha filha, eu comecei a trabalhar
numa pastelaria. Na verdade, eu fui ajudar essa pessoa que não sabia fazer salgado assado, ela
sabia fazer salgado frito. E eu tinha receitas, que eu via na televisão, eu sempre anotava receitas e
tinha uma receita de esfirra, mistão e fui fazer para ela e foi com a minha receita que ela começou
a fazer o meu salgado assado. Eu trabalhei uns três dias até ela pegar o jeito. E aí depois de algum
tempo ela me chamou para trabalhar com ela, pois eu estava sem emprego. E aí eu fui e aprendi a
massa da coxinha, e ai foi uma troca. que aí, eu vi uma outra receita de massa de coxinha na
televisão melhor, mais macia e aí eu fiz para o aniversário da milha filha. E aí todo mundo gostou
e falaram para eu fazer para vender que seria uma renda, e eu comecei a fazer salgado para
fora. E aí eu pensei o bolo eu já sabia fazer, recheio eu pego com as receitas, e ai comecei a fazer
salgado e bolo.
E uma vez eu fui para a casa da minha avó em Santa Rosa do Viterbo, e uma prima
minha tinha feito beliscão, aquelas bolachinhas com goiabada. Ah! Vou pegar a receita, foi aonde
também um dos que mais saem também é o beliscão. É um produto que sai bem, tem uma boa
aceitação todo mundo gosta. E é diferente daquele que a gente compra, é caseiro é uma coisa
mais gostosa, é mais macio e mais gostoso. Então eu introduzi também o beliscão. Então se um
dia não tem encomenda de bolo ou salgado, tem de beliscão, se não tem nenhum dos dois tem de
bolo, tem que ter novidade tem que ter variedade, se o pessoal não quer uma coisa tem outra. A
gente tem que tá sempre se aperfeiçoando.
Eu fiz um curso de panificação, aprendi receitas de pães, de roscas e até fiz também, mas
eu fazia e alguém vendia ou eu tinha que fazer e vende depois, mas se a gente faz de manhã, tem
aquele processo, da massa crescer, como a gente não trabalha em grande produção, então é mais
difícil né, a gente tem que ter um forno grande, e faz bastante, então você perdi mais
tempo e aí pra sair e vender depois é mais complicado, pois você perde muito tempo, você perde
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a metade do dia para fazer e o resto do dia para vender. Então eu parei de fazer, mas para casa eu
faço ou se alguém pedir eu faço, mas para sair para vender não mais. E agora eu to aí, eu
voltei a estudar, porque eu tinha parado de estudar, na escola eu levei o beliscão para o pessoal
experimentar, belisquei bastante todo mundo e todo mundo gostou e eu levava para vender a
noite, e fazia os saquinhos para vender.
Na escola, eu também levava o bolo para vender, e na escola o pessoal conheceu o meu
trabalho, pessoas começaram a encomendar, e daqui pra frente vamo vê como vai ser. Eu
pretendo ter o meu próprio negócio, abri um comércio para mim, onde eu possa vender os bolos,
os salgados, mas eu acho que vai demorar um pouco ainda, devagar a gente chega.
Então a pesquisadora perguntou a Ana: Como foi o retorno à escola?
Depois que eu sai da escola, eu fiquei doze anos sem estudar, e eu voltei estudar em 2005.
Foi bom, para mim valeu a pena em tudo, novos amigos, professores bons, foi uma turma boa,
sabe pudemos aproveitar tudo, que tinha as moçadinhas, mas nada que atrapalhasse, o pessoal era
unido, todo queria aprender, e me ajudou muito porque eu conheci novas pessoas, fiz novas
amizades, eu aprendi o que eu não sabia, em português, um excelente professor, matemática, foi
muito bom.
E depois perguntou: E a matemática na escola?
O que eu aprendi em matemática eu não uso na culinária, pois são coisas diferentes o que
a regra de três, a porcentagem, medidas. Na escola da EJA eu aprendi matriz, funções, a gente
não usa na culinária, mas mesmo assim foi maravilhoso, eu aprendi outras coisas, então na escola
foi muito bom, tivemos um turma boa, fiz novos amigo, a matemática não é a matemática que eu
uso na culinária, mas a gente usa outra matemática. A gente usa a matemática de pesos, medidas,
porcentagem, medidas em massa: um quarto, meio, 200 gramas. No meu caso, eu tenho que usar
as medidas tudo certinho, pois se você colocar um pouco mais de farinha, a massa fica dura, se
coloca mais leite fica mole, influencia né. Na minha culinária que eu faço, eu tenho que usar a
medida para fazer a massa do salgado. Por que se eu coloco mais ou menos farinha eu perco a
massa, então tem que usar a medida certinha. Tem coisas que a gente faz na culinária faz a olho,
como temperos, molhos ou alguma outra coisa mais simples, mas na minha culinária tem que
usar as medidas certas, pois senão a massa fica crua, a massa fica dura demais. Eu costumo
anotar tudo o que faço, quando eu vejo alguma coisa que deu diferença, no sabor ou alguma coisa
159
eu anote o que eu coloquei, para que se gostam eu faço de novo, senão não gosto eu não
acrescento mais.
Outra coisa também é qualidade dos produtos. A farinha, por exemplo, tem farinha que
deixa a massa..., eu não sei o que eles colocam na farinha, algum componente que eles colocam
na farinha, que tem massa que você faz com a mesma quantidade de líquido e farinha, mas de
outra marca, às vezes que não certo. Eu já fiz isso e eu perdi a massa e não comprei essa
farinha, porque não dava certo. Por isso a qualidade do ingrediente é importante, eu procuro usar
sempre os mesmos produtos. Às vezes eu compro um produto novo e testo em casa, se der
resultado, e que o preço for mais em conta, eu até compro, para fazer par fora. Eu procuro fazer
as coisas com bons produtos, marcas que eu tenho experiência, que faz tempo que eu trabalho,
para não perder tempo, porque se comprar uma marca que não vai dar certo, é dinheiro jogado
fora e tempo perdido, tem que fazer tudo de novo, porque nunca vai ficar igual e vai perder o
freguês, né. Se o sabor é amarguinho, tem que continuar amarguinho se for doce, tem que
continuar, porque às vezes uma pequena coisinha que muda, o freguês percebe e ele diz: “Não é
assim que eu gosto, não assim que ela fazia.”. Quem está acostumado percebe. Por isso que eu
procuro, sempre utilizar as mesmas marcas para manter a qualidade. A clientela já sabe e conhece
o meu produto e graças a eles vêm outros atrás.
Após uma pausa a pesquisadora perguntou: Como você calcula o preço da encomenda?
Para eu cobrar, das pessoas, eu ponho papel, o que eu gastei, se for dez reais, o que vai ser
a minha mão de obra, é o meu lucro, eu coloco a minha porcentagem, em cima daquilo, o tempo
que eu gasto, eu coloco uma porcentagem em cima, vamos supor que fique em catorze reais ou
quinze reais, quinze reais é o meu lucro. Como eu calculo o meu ganho é assim, eu coloco o eu
gasto, mas às vezes o que eu gasto é muito barato, mas o tempo para fazer é muito grande, é
trabalhoso, é mais complicado fazer, como a coxinha a massa não fica tão caro, o recheio não fica
tão caro, mas o trabalho que se tem que fazer é maior, então tem que cobrar pelo trabalho da
gente, tem que colocar um lucro maior, pois eu gasto mais tempo fazendo para fazer o salgado,
ainda mais manualmente. Hoje existem máquinas que fazem, mas quem trabalha como eu,
manual, é um artesanato isso, é uma arte, então gasta muito mais tempo. E aí aonde acaba ficando
mais caro. E o lucro tem que ser maior, por causa do trabalho que dá.
E é assim que eu uso a matemática, as porcentagens, as medidas e ter que gostar do que
faz. E gostar do que eu uso na minha culinária, gostar daquilo que faz, tem que dar sempre
160
renovando, tem que sempre fazendo curso, tem que saber aproveitar os ingredientes, reaproveitar,
porque hoje em dia tudo é muito caro e se sobra uma coisinha, para aproveitar, e não pode
ficar, jogando nada fora, não pode desperdiçar, a gente tem saber aproveitar tudo, é lógico tudo
sendo limpinho, tudo organizadinho e tem mesmo que gostar mesmo de cozinhar, não é fácil,
enfrentar uma cozinha, fogão, matutando o que fazer, testando.
E para finalizar a pesquisadora interrogou: O que precisa ser para se tornar um bom
cozinheiro?
Tem que gostar, para ser um bom culinarista, tem que fazer curso, se aperfeiçoar cada vez
mais, usar bons produtos pode até ter marcas diferentes, não tão conhecidas, e que dão bons
resultados, mas sempre pesquisar, testar antes para ver se vai dar certo, senão vai dar diferença e
mãos à obra.
Então a pesquisadora disse: Valeu, Ana!
161
Entrevista com a Teresa, doceira que trabalha com trufas, bombons e ovos de
chocolate. Ela Ana conclui o ensino médio da EJA em julho de 2005.
A realização da entrevista com Teresa foi marcada por vários desencontros: vários
telefonemas para sua casa, uma tentativa infrutífera de encontrá-la em seu local de trabalho
tinha ido ao correio. Mais tarde, por sugestão da secretária da escola, nova tentativa de encontrá-
la, por telefone, novamente sem sucesso. Somente no dia seguinte foi possível agendar o encontro
com Teresa.
Às quatorze horas do dia dez de maio de 2007, Teresa receptiva e efusiva , após a
intermediação dos funcionários da secretaria da escola, foi entrevistada em uma das salas da
escola em que trabalha. A realização da entrevista com Teresa foi marcada por vários
desencontros: vários telefonemas para sua casa, uma tentativa infrutífera de encontrá-la em seu
local de trabalho tinha ido ao correio. Mais tarde, por sugestão da secretária da escola, nova
tentativa de encontrá-la, por telefone, novamente sem sucesso. Somente no dia seguinte foi
possível agendar o encontro com Teresa. Então, ela me levou para a sala de vídeo da escola e
iniciamos a entrevista:
Meu nome é Teresa, tenho quarenta e nove anos, foi fazer cinqüenta no dia doze de
agosto. Tive uma infância bem sofrida, tenho três filhos o Leandro com trinta anos, a Adriana
com vinte e sete anos e o Guilherme com quinze anos, falando nisso o Guilherme está dando um
trabalho.
Então, quando eu era criança, eu tinha nove anos, a minha mãe foi para o hospital para ter
a minha irmãzinha, e eu e a minha irmã ficamos responsáveis pela casa, a minha irmã mais velha
tomava conta casa e da comida e eu lavava roupa, lavava a louça, essas coisas. E depois com
nove anos e meio e quase dez anos, eu fui trabalhar, trabalhava de empregada, fazia todo o
serviço da casa, lavava, passava, e limpava a casa, todo o serviço.
Depois com treze anos, a minha mãe morreu eu fiquei sozinha, cuidava dos meus três
irmãos menores, e a minha irmã mais velha tinha casado. E a irmã mais velha ia em casa não para
ajudar, ia para bater nos mais pequenos e eu ficava louca da vida. E eu cuidava dos meus irmãos,
trabalhava em casa cuidando deles, depois meu pai casou de novo e eu tive que trabalhar, pois eu
não combinava com ela. Então, eu não tinha catorze anos, a mulher que eu trabalhava criava pato,
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galinha, essas coisas e ela matava e eu ia ajudar ela, a matar, limpar, preparar porque ela vendia.
E foi daí que eu comecei a cozinhar, né, eu gosto demais de cozinhar. Eu fazia frango, peixe, e
macarronada, lasanha, nhoque, massas eu adoro, carne assada e doces também. Agora
ultimamente, eu mexendo com chocolate, eu faço trufa, bombom, ovo de páscoa, e trufa tem
um que eu faço que muita gente pergunta, como que eu consigo, o creminho que é o sensação,
que eu chamo de trufa sensação. Eu faço assim:
Para fazer, eu faço a trufa, o chocolate derretido, passo na forminha, depois eu faço o
trufado que é chocolate ao leite, o amargo, o creme de leite, o rum, mel, e depois eu passo o
trufado. E daí eu faço o sensação que é assim: E pego o chocolate branco derretido, e aí eu ponho
uma caixinha de creme de leite, ponho essência de morango e anilina para dar cor, e depois eu
pico bastante morango, misturo bem e fica uma sensação, e ai eu ponho no meio cubro e pra
comer é muito gostoso.
Então a pesquisadora perguntou: Foi você que inventou?
Ela respondeu: Fui eu que inventei, eu tinha muita curiosidade de saber como que faz a
trufa sensação, e eu experimentei aquela calda de morango, não deu certo, ficava líquido e
quando colocava o chocolate o líquido escorria e não tinha jeito. Eu tentei de várias maneiras e
nunca deu certo e assim deu certo, todo mundo gostou e é o que vale. E eu faço chocolate de
final de semana, de segunda a sexta eu trabalho aqui, e na sexta feira eu saio mais cedo, compro o
chocolate e os recheios e no sábado de manhã eu peço de manhã para a minha sobrinha me
ajudar. Ela vai fazer o serviço de casa, e eu fico nos chocolate, e pra ter chocolate para trazer
depois para vender. Eu vendo na escola, vendo para as meninas da escola, a minha filha ta
estudando e leva na escola para vender onde estuda.
Mais uma vez a pesquisadora perguntou: Você faz outras coisas também para vender?
Eu faço outras coisas somente quando tem encomenda. Eu faço bolo, bala de coco. Eu
faço bala de coco com a fruta do coco. O leite de coco de garrafinha queima muito a mão da
gente, faz bolha nos dedos. Nossa eu fico com a mão inteira queimada, o leite de coco com
fruta não fica tão quente. Eu descasco o coco, tira casquinha marrom dele, bato no liquidificador
com água quente, e passo no guardanapo para separar o líquido, que é o leite de coco e põe o
açúcar ferve e faz a bala para puxar.
Então foi perguntado a ela: “Você gosta de inventar receitas?”
163
Eu gosto de inventar. O Guilherme falou para mim: “Mãe, como que faz esse doce”, que
agora não lembro o nome. Então eu disse a ele: Sei Guilherme, inventa, senão deu certo joga
fora e faz de novo. Senão deu certo que não deu para enfeitar uma mesa se come daquele jeito
mesmo, não ficou bonito, mas ficou gostoso. Agora, as vezes você faz uma coisa e não para
comer, você joga fora e você faz de novo. Eu fiz isso e ficou assim, e se eu misturar dois
ingredientes e colocar isso e menos isto, pode dar certo.
Novamente a pesquisadora perguntou a Teresa: Você não se preocupa com medida?
Eu faço assim, eu coloco a mão, se der para enrolar, eu vejo a textura. Como a massa de
coxinha, eu ponho um tanto de água na panela, caldo de galinha, e aí eu ponho a farinha de trigo,
e vou mexendo, vejo se está mole, e vejo se não está colando na mão, se ficar mole é que a
farinha que não é boa, e aí eu vejo que não deu certo.
E mais uma vez a pesquisadora interrompeu e pediu para que ela contasse algum fato
curioso sobre a sua infância e também fale do tempo em que você estudava. Então ela começou a
contar:
Quando eu tinha sete ou oito anos, o meu pai era casado, mas somente na igreja e não era
casado no civil. Eu e minha irmã não tínhamos registro, e meu pai foi trabalhar na Cerâmica
Chiarellli, e tinha que registrar a gente para ganhar o salário família. E ele foi casar no civil. E
quando ele foi casa, eu e minha irmã quase morremos de tanto chorar, porque eles iam para a Lua
de Mel. Eu morria de medo de saber que a minha mãe ia para a Lua e como nós íamos ficar sem
mãe. Foi uma choradeira, que a minha tia que morava do outro lado da rua, veio correndo para
saber o que estava acontecendo, os vizinhos vieram ver, e era porque meu pai tinha casado. E nós
achava que eles não iam voltar. Quando eu me lembro, eu acho muito engraçado, mas na época
foi muito triste.
Eu fui para a escola com nove anos porque eu não tinha registro. Eu fiz a primeiro e o
segundo ano aqui nessa escola e depois eu terminei o terceiro no “Padre Armani” e fiz o quarto
ano e não voltei a estudar mais, fiquei parada trinta e dois anos.
E aí quando eu fui para a FEG com a minha irmã para ver se tinha uma vaga para a minha
sobrinha para voltar a estudar na sétima série. E ela fez a matrícula na sétima e eu dei o meu
nome e fiquei aguardando vaga. E surgiu uma vaga e eu fui e ela foi também, mas ela foi um
dia só, não foi estudar porque ela não ia estudar na mesma sala que a minha.
164
No primeiro dia de aula, na apresentação eu fiquei com vergonha, porque na minha idade
tinha eu e o José Geraldo, mas ele é homem, e eu mulher lá, nossa eu fiquei com muita
vergonha, mas mesmo assim eu tenho vontade e eu vou conseguir. E aí eu fui e aí eu estudei fiz a
quinta até a oitava série, e fui bem Graças a Deus, tinha os professores maravilhosos, muito bom
mesmo. Depois eu fiz o primeiro, o segundo e o terceiro, foi muito bom. E aí eu fiz três meses de
Magistério e aí eu parei, mas eu me arrependo tanto de ter parado.
Nesse momento ela começou a chorar. Nesse momento o gravador foi desligado por
alguns minutos até que Teresa novamente continuou a falar:
Mas a melhor época de escola foi na FEG, foi na EJA, porque, A Neila era uma
amigona, a Ana que também cozinhava, a Edmara, a Mara, a Roseli. A nossa turma era muito
legal. Era tudo unido, até a molecada que não gostava de estudar, entrava no meio da turma.
Fazia as festinhas, aquelas festinhas da hora, bolo, doces, salgados, era muito bom mesmo, chic,
nossa maravilha. Teve uma vez que nós fizemos uma festinha, eu não se você foi, sei que o
professor Jorge tava dando aula na outra sala, nós tavamos na sétima eu acho, nós fomos chamar
ele, mas ele estava na outra sala também tinha festinha. E ele foi comeu, bebeu, brincou,
divertiu, e falou: “Olha, essa sala aqui vai deixar saudade, o ano que vem”.
E aí depois, você também participou, das festas, quanta coisa boa para comer: bolo
salgado, salgadinho frito e assado, bolo, a Edmara levou aquele lanche frio. A confraternização
no meio e no final do ano. O churrasco da formatura no dia do jogo do Brasil na Copa do
Mundo, todo mundo de verde e amarelo, foi muito bom. É uma coisa assim, que não para
esquecer. Eu sempre encontro com o pessoal da sala e a gente sempre lembra dos bons
momentos. Eu sempre encontro com a Neila, ela chamava a gente de fia. Um dia na aula de
matemática com o Jorge, a Neila falou assim para ele: “O professor, onde o Senhor arrumou
esses números aí”.Ele respondeu: “É da Matemática”. Então ela disse: “Deus me livre, apague
estes números, começa de novo que eu não entendi nada”. E aí o professor apagou tudo e
começou de novo, explicou de novo e o pessoal entendeu.
E depois, nós fomos para o primeiro e o segundo ano, e ficou mais difícil, aquele
cone, pirâmide, muito difícil, cilindro, muito difícil de entra na cabeça da gente. Depois entender
os cálculos que foram feitos, a matemática é muito difícil, é uma matéria que não dá para
entender. Eu não sei como tem gente que tem a vocação e sabe o que fazer é muito difícil e só no
finalzinho que eu comecei entender, mas eu precisava mais uns dias de aula.
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A Física também tinha umas contas, a Física não tem condição, não tem porque um
barquinho desceu dois metros, quantos metros falta para ele subir, quantos segundos, é muito
difícil, não tem. O professor ficava de cabelo em pé comigo, eu falava para ele: “Professor, eu
não entendi nada”. E ele dizia: “Espera eu vou explicar para você”. Ele explicava e todo
mundo ficava quieto, não tem jeito de falar é muito difícil. Uma matéria que eu gostei, foi
Química, não se é a professora, ela falava alto, claro, assim num tom que deu para entender bem,
agora Física e Matemática ficou complicado. Ficou difícil, mas assim mesmo, deu para entender,
porque Graças a Deus que é não sou assim uma velha, mas com a idade que eu tenho até que foi
bom, porque eu tirei proveito, em vista da idade que a gente tem.
Hoje a criança, jovem tem cabeça fresca para pensar, e não faz, não consegui fazer, não
entra na cabeça dele, e ele faz, escreve, apaga e faz de novo e não faz certo, não entendi, e a
gente entendi. Não sei se é que a gente, eu não sei é a vivência da gente, a gente vai convivendo
com número, para cozinhar, para ir no mercado, em tudo lugar a gente usa matemática, eu acho
que é até por isso, que fica mais fácil as coisas, ajuda muito. Então vovai no mercado, um
preço uma coisa, a outra tá outro preço, e aí tem que ver se o dinheiro dá. Então eu acho que é por
isso né, e até coisinha corriqueira, do dia a dia, para gente ver que pra tudo a gente usa a
matemática.
E aí a pesquisadora perguntou: E como é a matemática na sua cozinha?
Eu uso, mas às vezes eu nem percebo que uso, a gente nem percebi, que usa, porque meia
colher disso, meia xícara daquilo, um quilo daquilo, meio quilo, é gramas, mas a gente nem nota
que usa . Eu uso matemática também quando eu faço uma encomenda e eu vou vender você
tem que comprar a mercadoria, ver quanto vogastou, para depois vocolocar o preço por
cima daquilo que você comprou, para cobrir o seu trabalho, e isso é o seu lucro. Qualquer coisa
que você vai fazer você tem que por pelo menos cem por cento em cima daquilo que você gastou,
porque dependendo da coisa, é muito difícil, muito trabalhoso, e gasta muito tempo, e suja muito,
faz muita bagunça, faz sujeira, e perdi muito tempo para limpar, lavar as vasilhas, fazer e esperar.
No caso da bala de coco, tem que fazer três dias antes para ficar boa, para você colocar na
boca e ela derreter. Não é fazer e comer, pois ela é dura e você pode quebrar o dente se vo
comer na hora. Você tem que por no freezer, esperar ela congelar, depois você tirar do freezer,
espera ela descongelar e colocar na geladeira, e ela tem todo um processo de fazer, e tem que
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colocar o preço em cima disso tudo. Senão não lucro e você troca seis por meia dúzia, não
compensa.
E para finalizar a pesquisadora fez a seguinte pergunta: “O que precisa ter para ser um
bom cozinheiro”?
Olha Claudineía, eu acho que me primeiro lugar é o amor. Você tem que ter muito amor
naquilo que você faz. Tudo o que você fizer tem que ter amor. Você vai fazer uma comida, vo
tem que ter amor desde o momento que você vai escolher o feijão, tem porque por ali amor, na
hora de escolher, se põe de molho, se e para cozinhar tem que por amor, com carinho, com
vontade de fazer e vontade que der certo, se você fizer com amor e carinho certo, seja difícil
como for. Tem uma moça que trabalha aqui e sempre diz:” Eu não sei fazer nada, mal sei fazer
uma comida, e a minha comida todo mundo reclama”. Então eu falo para ela fazer as coisas com
amor, e eu acho que ela não põe amor suficiente. Se você tem o dom de cozinhar não sei, tem
gente que é assim, põe de qualquer jeito, faz e fica uma beleza, e tem gente que não, tem
gente que faz as coisas com uma delicadeza, com carinho, e dá certo.
Eu sou meia bruta para fazer as coisas, mas eu faço com muito amor e carinho, mas para
fazer as coisas a gente tem que ter dedicação, carinho, e fazer as coisas com muito amor. E isso é
o grande segredo da culinária, fazer as coisas com amor, que certo. A minha mãe era uma
pessoa, que não sabia ler, não sabia escrever, mas a minha mãe era muito inteligente, com coisa
de cozinha era impressionante. Uma vez, a gente tava assistindo televisão na casa de um vizinho
e passou uma festa de aniversário do filho do Tonico e Tinoco, então ela viu o bolo de andar e
ela ficou admirada, e ficou pensando como eles tinham feito aquilo, mas em casa não tinha
fogão a gás, ó fogão a lenha, mas tinha forninho. Ela fez o meu pai fazer uma forma quadrada de
bolo para ela, e fez o bolo de andar. Ela fez o bolo para o aniversário da minha irmã com recheio
de goiabada, e fez cobertura com glacê real, com claras em neve, açúcar e suco de limão. Ela
conseguiu fazer o bolo, ficou meio duro porque ela não sabia que tinha que molhar o bolo, mas
ela conseguiu.
A mãe era uma cozinheira muito especial, ela ia em casamento e fazia almoço, saladas,
massas, assados, tudo, a minha mãe cozinhava muito bem e eu aprendi muito com ela, pois eu ia
junto com ela e ficava vendo, e se tinha que ajudar eu ajudava, mesmo pequenininha, pegava uma
panela, alguma vasilha para servir, e eu acho que é isso que me deu essa vontade de saber e
aprender, a trabalhar na cozinha, encaminhei, gostei e infelizmente a minha mãe morreu com
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trinta e oito anos, nova de tudo, na época eu não sabia que ela era tão nova. E eu acho que se ela
estivesse viva hoje ela teria procurado uma escola, porque ela era muito sábia, ela era uma pessoa
que tinha vontade de fazer as coisas, e eu acho que foi dela que eu herdei isso tudo e tive essa
vontade de estudar, e eu estou pensando em voltar a estudar de novo ou fazer curso e tocar a vida,
porque ela continua e a hora que Deus quiser que para, a gente para.
E par finalizar a pesquisadora disse: “Obrigada pela sua entrevista”.
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