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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Biopolítica e Psicanálise: uma análise histórico-genealógica das formas
de subjetivação na contemporaneidade
Diane Almeida Viana
2008
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U
FR
J
Biopolítica e Psicanálise: uma análise histórico-genealógica das formas
de subjetivação na contemporaneidade
Diane Almeida Viana
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Orientador: Joel Birman
Rio de Janeiro
Fevereiro / 2008
ii
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Biopolítica e Psicanálise: uma análise histórico-genealógica das formas de subjetivação
na contemporaneidade
Diane Almeida Viana
Orientador
Joel Birman
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por:
______________________________________
Presidente, Prof. Dr. Joel Birman
______________________________________
Prof. Dra. Regina Alice Neri
______________________________________
Prof. Dr. Paulo Roberto Gibaldi Vaz
______________________________________
Prof. Dra. Maria Isabel de Andrade Fortes
______________________________________
Prof. Dra. Regina Herzog de Oliveira
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2008
iii
FICHA CATALOGRÁFICA
Viana, Diane Almeida
Biopolítica e psicanálise: uma análise histórico-genealógica
das formas de subjetivação na contemporaneidade/ Diane
Almeida Viana. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2008.
x, 240f; 29,7cm.
Orientador: Joel Birman
Tese (doutorado) UFRJ/ Instituto de Psicologia/ Programa
de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 241-246.
1.Psicanálise.2.Biopolítica.3.Subjetividade.4.Contemporaneidade.
I.Birman, Joel. II.Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica. III. Biopolítica e psicanálise: uma análise histórico-
genealógica das formas de subjetivação na contemporaneidade
iv
RESUMO
Biopolítica e Psicanálise: uma análise histórico-genealógica das formas de subjetivação
na contemporaneidade
Diane Almeida Viana
Orientador: Joel Birman
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria
Psicanalítica.
A presente tese parte dos impasses da psicanálise diante de um processo de
transformação subjetiva em curso na atualidade. A fim de compreender essa
problemática, esta pesquisa visa investigar as condições de possibilidade da emergência
de novas formas de subjetivação na contemporaneidade. Para tanto, propõe-se a uma
análise histórico-genealógica dos processos de constituição subjetiva, considerando a
matriz biopolítica da modernidade, seus avanços e variações no contexto
contemporâneo. Procedemos, primeiramente, a um exame das linhas de continuidade e
descontinuidade do pensamento freudiano em relação ao projeto biopolítico moderno,
que marcou o solo histórico de surgimento da psicanálise. Em seguida, analisamos a
leitura da subjetividade empreendida por Freud, tendo em vista o horizonte biopolítico
da modernidade. Para finalizar, investigamos os desdobramentos contemporâneos da
biopolítica, as transformações no estatuto da soberania e suas repercussões para a
mudança da configuração subjetiva que se insinua na atualidade. Apontamos para a
condição de existência somática a que as subjetividades estão reduzidas e à experiência
de risco implicada nas formas de resistir hoje, diante da radicalização da incidência
direta do poder sobre a vida.
Palavras-chave: Psicanálise, Biopolítica, Subjetividade, Contemporaneidade.
Rio de Janeiro
Fevereiro/2008
v
RÉSUMÉ
Biopolitique et Psychanalyse: une analyse historique-généalogique des formes de
subjectivation dans la contemporanéité
Diane Almeida Viana
Directeur de thèse: Joel Birman
Résumé de la Thèse de Doctorat soumise au Programme de Master et Doctorat en
Théorie Psychanalytique, Institut de Psychologie de l’Université Fédérale de Rio de
Janeiro – UFRJ, dans le but de l’obtention du grade de Docteur en Théorie
Psychanalytique.
La présente thèse de doctorat s’appuie sur la constation des impassses de la
psychanalyse concernant un processus actuel de tranformation subjective. Afin de
comprendre cette problématique, cette recherche vise à étudier les potentialités
d’émergence de nouvelles formes de subjectivation dans la contemporanéité. Dans cet
objectif, nous nous proposons de réaliser une analyse historique et généalogique des
processus de constitution subjective, en considérant la matrice biopolitique de la
modernité avec ses évolutions et variations dans le contexte contemporain. Nous
procédons, tout d’abord, à un examen des lignes de continuité et de discontinuité de la
pensée freudienne en relation avec le projet biopolitique moderne, qui a marqué les
conditions historiques d’émergence de la psychanalyse. Dans un deuxième temps, nous
analysons la lecture de la subjectivité entreprise par Freud en ayant à l’esprit l’horizon
biopolitique de la modernité. Enfin, nous étudions les dédoublements contemporains de
la biopolitique, les transformations du statut de la souveraineté et leurs répercussions sur
le changement de configuration subjective qui s’insinue dans l’actualité. Nous montrons
alors la condition d’existence somatique et l’expérience du risque auxquels les
subjectivités sont réduites aujourd’hui, dans leurs formes de résistence devant la
radicalisation de l’incidence du pouvoir direct sur la vie.
Mot-clés: Psychanalyse, Biopolitique, Subjectivité, Contemporanéité
Rio de Janeiro, Février/2008
vi
AGRADECIMENTOS
À Joel Birman, pela orientação e contribuições a este trabalho; pela experiência de
pesquisa que me proporcionou e por ter apostado no meu desejo de realizá-la.
Ao Prof. Alain Vanier, por ter gentilmente me recebido em seu grupo de pesquisa
durante o meu Estágio de Doutorado na Universidade Paris 7 - Denis Diderot.
À Capes, pelas bolsas de doutorado e doutorado-sanduíche.
Ao grupo de pesquisa do Prof. Joel Birman, pelo convívio e pelas ricas discussões que
contribuíram em muito para a realização deste trabalho.
Ao grupo de pesquisa coordenado pela Prof. Teresa Pinheiro e por Julio Verztman, pelo
acolhimento e pela interlocução.
À vitalidade dos Pereira de Almeida e à valentia dos Leite Viana, de cuja filiação herdei
a determinação e a persistência para lutar pelos meus desejos e projetos de vida. A
realização desta tese não seria possível sem a intensidade dessa herança psíquica. A
meus pais, portanto, pelo que são e pelo que me tornaram. Pelo constante estímulo e
apoio, meu eterno agradecimento.
A meus irmãos, Debora e João Garibaldi, pela experiência calorosa do vínculo fraterno
e pelo exemplo de garra e sensibilidade.
À Bruno Vieira, que soube mais uma vez pacientemente respeitar e compreender as
ausências. Pelo estímulo constante que nunca me deixou desanimar, com todo o meu
amor, muito obrigada!
À Maria Luiza Khal, por ter me apresentado à Psicanálise e me lançado na experiência
clínica e de pesquisa. Pelas discussões deste trabalho e por sempre apostar em mim.
Às amigas Fabiana Lustosa, pela leitura atenta da tese e pelas preciosas sugestões,
Bianca Savietto e Fernanda Montes, por terem compartilhado comigo cada conquista e
cada tropeço dessa caminhada. À Ricardo Salztrager e Patrícia Saceanu pela ajuda e
apoio na preparação para o estágio em Paris.
À Cristiane Oliveira e Bruno Farah, parceiros incansáveis na leitura de Agamben.
Aos amigos que Paris me deu: Anne-Gaëlle Balavoine, Olivier Dionne, Márcia
Consolim, Daphne Fayad e Elisabeth Eglem, pela intensidade das experiências
compartilhadas e pelo constante incentivo à realização da tese.
Aos demais amigos, que perto ou distante souberam estar junto comigo nesse percurso.
vii
Dedico esta tese as minhas queridas avós Nilza Leite Viana, Iracy Pereira de
Almeida e Maria Leite, pelo exemplo de coragem e de afirmação da vida que me guiou
e inspirou neste percurso.
viii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................
01
CAPÍTULO I – Por uma cartografia do mal-estar contemporâneo..................
14
1.1. Das patologias narcísicas aos estados-limites: a analisabilidade em
questão....................................................................................................................... 17
1.2. O mal-estar e as marcas de seu tempo................................................................ 25
1.3. Proposta.............................................................................................................
32
CAPÍTULO II – Biopoder.....................................................................................
34
2.1. A genealogia e a história..................................................................................... 34
2.2. A concepção de poder, saber e subjetividade em Foucault................................ 37
2.3. O poder soberano................................................................................................ 39
2.4. A disciplina......................................................................................................... 44
2.5. Corpos dóceis...................................................................................................... 47
2.6. Biopolítica........................................................................................................... 49
2.7. Dispositivo da sexualidade e a organização nuclear da família moderna.......... 52
2.8. O nascimento da medicina moderna e sua função estratégica no projeto
biopolítico.................................................................................................................. 59
2.9. Foucault e a psicanálise...................................................................................... 66
CAPÍTULO III – Freud entre continuidades e descontinuidades .....................
72
3.1. Tempos inaugurais da psicanálise...................................................................... 72
3.2. Caleidoscópio freudiano: o embate com a medicina e a influência de outros
campos do saber......................................................................................................... 90
3.3. Pulsão e sexualidade: o fundamento vitalista..................................................... 94
3.4. Mediação psíquica e alteridade........................................................................... 105
3.5. A entrada da morte na cena psíquica.................................................................. 111
3.6. Pulsão e alteridade: o fundamento mortalista..................................................... 117
3.7. Pelas bordas da pulsão: o dualismo e o paradoxo freudiano.............................. 126
ix
CAPÍTULO IV – Biopolítica e subjetividade na modernidade...........................
129
4.1. Signos da modernidade....................................................................................... 130
4.2. Sob o jugo da medicalização: a família moderna............................................... 135
4.3. Freud, a subjetividade e a modernidade............................................................. 139
4.4. Nas tramas do social: doenças nervosas e mal-estar na modernidade................ 152
CAPÍTULO V – Desdobramentos contemporâneos da biopolítica e seus
efeitos sobre a subjetividade...................................................................................
168
PARTE I: Considerações acerca da biopolítica contemporânea............................... 168
5.1. A soberania do estado de exceção como regra................................................... 169
5.2. A vida nua do homo sacer.................................................................................. 177
5.3. Quando o poder sobre a vida é um poder sobre a morte.................................... 184
5.4. Entre soberania e subjetividade: o declínio soberano e o esfacelamento
subjetivo..................................................................................................................... 195
5.5. Da onipotência à fragilidade narcísica: transformações da família diante das
variações do dispositivo biopolítico.......................................................................... 203
PARTE II: Repercussões subjetivas.......................................................................... 209
5.6. O estatuto pulsional do corpo............................................................................. 211
5.7. Ressonâncias da biopolítica sobre a economia pulsional................................... 215
5.8. Corpo, subjetividade e os impasses da psicanálise na contemporaneidade........ 222
5.9. Resistir, ainda é possível?................................................................................... 225
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................
230
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................
241
x
INTRODUÇÃO
O tema geral das subjetividades contemporâneas e, mais especificamente, das
manifestações somáticas muitas vezes a elas associadas, constitui um assunto de
acentuado interesse de nossa pesquisa. Questões provenientes de uma experiência
clínica com pacientes somatizadores, que se referiam a si mesmo e a seus conflitos
somente a partir de uma história de sofrimento físico, e que dificilmente se entregavam
a uma atividade associativa, mobilizaram uma primeira investigação. Este esforço
inicial em abordar o tema resultou na dissertação de mestrado
1
, a qual voltou-se para
uma exploração da obra freudiana, sobretudo a partir do conceito de pulsão, a fim de
circunscrever uma concepção psicanalítica de corpo.
Concluída esta investigação, debruçamo-nos mais uma vez sobre as configurações
subjetivas da atualidade marcadas pela pregnância de manifestações somáticas, relativas
a um empobrecimento dos registros erótico e fantasmático. A presente pesquisa de tese
constitui-se, assim, num segundo esforço em analisar tal problemática, desta vez, sob
um novo ângulo.
Partimos da hipótese de um possível contraste entre o estatuto de corpo presente
no horizonte freudiano (final do século XIX - início do século XX), centrado
principalmente na concepção da histeria, e a particularidade do estatuto de corpo que se
configura na atualidade, que remete-nos a uma realidade muito mais orgânica do que
propriamente simbólica. Desta forma, a questão do corpo continua presente como um
fio condutor que perpassa as análises desta pesquisa e marca nossa leitura do texto
freudiano.
O campo psicanalítico clássico, pautado principalmente pelo paradigma das
psiconeuroses em Freud, vem sendo alargado por essas novas configurações psíquicas
que não mais se encaixam exatamente na nosografia distribuída entre neuroses, psicoses
e perversões.
1
VIANA, D. A. Figurações da corporeidade: por uma concepção psicanalítica de corpo pelas bordas da
pulsão. Orientador: Joel Birman. Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de Psicologia. Dissertação (Mestrado
em Teoria Psicanalítica), 2004.
Diante, então, desta vasta problemática envolvendo o corpo, as novas formas de
subjetivação e os impasses dela decorrentes para o campo da psicanálise, impôs-se a nós
a necessidade de circunscrever uma nova forma de análise que nos contemplasse com
um campo mais amplo de visibilidade de tal questão. Consideramos, então, pertinente
examinar o acontecimento de um processo de transformação subjetiva em curso na
contemporaneidade, e o solo histórico que determina as condições de possibilidade de
seu surgimento. Realizamos esse trabalho a partir de uma leitura histórico-genealógica
da constituição dos processos de subjetivação no nascimento da psicanálise, atentando
para as mudanças que configuram a especificidade com a qual estes se apresentam nos
dias de hoje.
Para empreendermos essa leitura, convém antes mapearmos brevemente, à título
de introdução, os signos atuais que contextualizam a questão e a forma como
conduziremos nossa análise.
A literatura psicanalítica atual refere-se recorrentemente ao campo das ditas novas
subjetividades, no que diz respeito às formas de mal-estar e sofrimento psíquico vividos
na atualidade. Essas novas configurações do plano subjetivo são amplamente descritas
em torno de categorias como: patologias da ação das mais diversas ordens, das
compulsões à violência, passando pelos transtornos de pânico e fobias sociais; e
patologias do corpo, frequentemente relacionadas aos transtornos psicossomáticos.
Diante destes novos quadros clínicos e da forma como as subjetividades vêm se
apresentando no contexto sócio-cultural de nossos dias, o campo da experiência
psicanalítica se depara com um impasse. O edifício teórico-clínico do dispositivo
psicanalítico parece não mais dar conta dos processos psíquicos da contemporaneidade,
o que vem mobilizando a comunidade analítica a se repensar e a produzir novos saberes
sobre o sujeito. Muitas são as propostas de leituras e releituras do arcabouço
psicanalítico, porém o que as aproxima é a constatação de que um significativo processo
de transformação subjetiva vem ocorrendo há algumas décadas.
Um dos traços marcantes desta transformação é o lugar de destaque que o corpo
assume no contexto contemporâneo. As manifestações subjetivas apresentam-se
estreitamente vinculadas à experiência corporal. Muitas são as insígnias da corporeidade
presentes nas expressões subjetivas da atualidade, o que faz do corpo parte significativa
do cenário contemporâneo.
2
Pelo viés da clínica, evidenciam-se as somatizações, os distúrbios alimentares e as
toxicomanias, para citar apenas alguns dos quadros mais recorrentes. Pelo viés do
contexto sócio-cultural, visualizamos a manipulação do corpo a qualquer custo para
atingir o ideal da perfeição (culto ao corpo) como a malhação, os medicamentos, as
cirurgias, os implantes protéticos. A preocupação com um cuidado excessivo com a
saúde é também bastante pregnante, que se reflete nas práticas de cuidado do corpo que
se tem hoje: ginásticas, terapias e técnicas corporais, incorporação de certas práticas
orientais, consumo de vitaminas, antioxidantes, entre outras.
Há ainda um outro viés, próximo do que poderíamos considerar uma “reinvenção
do corpo”, como as técnicas de body-art, onde o corpo é testado em seus limites,
assumindo novos contornos e marcações, muitas vezes para além do que define
propriamente o humano. Tatuagens e piercings são suas formas mais populares.
Algumas modalidades mais extremas e arriscadas são também praticadas em todo o
mundo, tais como scarifications (operação de marcar o corpo com cicatrizes através de
cortes que, no processo de cicatrização, alteram a textura da pele, deixando quelóides e
superfícies em relevo), branding (marcar à fogo uma imagem na pele), implantes
(colocar sob a pele objetos que moldem uma aparência particular), alterações cirúrgicas,
entre outros. Grande parte desses procedimentos implica uma atitude de resistência e
tolerância à dor.
É possível perceber a demarcação de dois pólos bem definidos: um lado de
negativização sintomática do corpo, que contempla uma gama de sintomatologias
menos simbolizadas se comparadas aos sintomas presentes no campo das neuroses; e
em contraposição, uma positivação do corpo atravessada por um processo de
medicalização calcado em um mito da juventude eternizada, em uma cultura da cirurgia
plástica e, até mesmo, em um imaginário da clonagem.
Isso sem falar nos últimos avanços da biotecnologia que, ligada também ao projeto
da engenharia genética, se propõe a remodelar os corpos intervindo diretamente no
substrato biológico da espécie humana. Este universo permeado por um paradigma da
tecnologia digital, da teleinformatização, da engenharia genética e da tecnociência pós-
industrial nos leva a pensar na emergência de outros tipos de corpos e subjetividades.
A possibilidade de reciclar e reprogramar o código genético, bem como a nova
geração de drogas psicotrópicas, estão no horizonte daquilo que configura a radical
3
atuação do biopoder sobre as subjetividades contemporâneas e sobre o lugar que o
corpo aí adquire.
Parece-nos indiscutível que diante de tal contexto a relação com o corpo tenha se
modificado no mundo contemporâneo. A emergência de configurações psíquicas
inusitadas, vinculadas na maioria das vezes a um registro somático, leva-nos a
considerá-las como um índice de uma problemática biopolítica amplamente difundida
nas sociedades capitalistas ocidentais nos últimos dois séculos. Estamos propondo, com
isso, pensar com especial ênfase a questão da relação entre mal-estar psíquico e mal-
estar social.
Freud pensou a subjetividade à luz da cultura de seu tempo, estando sempre atento
às transformações sócio-políticas de sua época e as suas conseqüentes implicações
subjetivas. Visualizamos tal empenho em seus inúmeros escritos sobre a cultura, dos
quais destacamos O mal-estar na civilização (1930 [1929]/1996), no qual Freud se
dedica a pensar minuciosamente no impacto da civilização sobre a subjetividade,
destacando o preço pago pela renúncia pulsional que o avanço da civilização implica.
Seu diagnóstico é de que sob a influência de premências culturais algumas civilizações -
senão a totalidade da humanidade - se tornaram neuróticas, em função do mal-estar, da
perda de felicidade, das insatisfações e do sentimento e culpa que as mesmas produzem
(FREUD, 1930 [1929]/1996).
Entendemos que nessa obra Freud realiza uma crítica à ideologia moderna de
felicidade, progresso e aperfeiçoamento. Dessa forma, visualizamos em Freud uma
consciência crítica da modernidade e dos ideais iluministas de seu tempo. Podemos
considerar que nem sempre foi assim. Em Moral sexual civilizada e a doença nervosa
moderna (1908/1996) observamos a crença freudiana de que a psicanálise pudesse se
constituir como um instrumento científico tecnológico para a cura do mal-estar, em
coerência ao ideário iluminista da sociedade moderna.
Entretanto, às vésperas da Segunda Grande Guerra Mundial Freud se vê às voltas
com a questão da agressividade humana e da pulsão de morte. A luta entre as duas
grandes forças, Eros e Thanatos, estava consagrada no pensamento freudiano. Os
destinos do impulso humano de agressão e destruição passam a dominar os esforços de
Freud em compreender a subjetividade humana. Mobilizado por um cenário sombrio
Freud (1915d, 1930 [1929], 1933[1932]/1996) dá mostras de seu ceticismo em relação
4
ao projeto iluminista, problematizando o imperativo da razão e apontando para a
história humana como marcada por uma oscilação entre guerra e paz, entre pulsões de
vida e pulsão de morte.
Consideramos esta uma virada significativa em seu pensamento, a partir da qual
um novo enquadre se abre diante de Freud, levando-o a repensar a economia pulsional a
partir dos novos e turbulentos acontecimentos de seu tempo. Pensamos ser esta uma
referência importante para a questão que queremos desenvolver, dado o avanço e
abertura de Freud para um novo contexto cultural.
O mal-estar moderno, final do século XIX, engendrava uma determinada
configuração subjetiva, perante a qual a psicanálise nasce e se engaja na construção de
um referencial teórico-clínico. O modelo interpretativo que a psicanálise constrói como
resposta ao mal-estar subjetivo moderno é o de uma subjetividade neurótica, calcada na
idéia de conflito psíquico.
Assim, se a partir de Freud pudemos pensar o adoecimento neurótico diretamente
ligado à especificidade da sociedade moderna, nossa questão se delimita da seguinte
forma: e hoje? Quais as características de nossa cultura atual? Que desdobramentos
tiveram os acontecimentos que marcaram as últimas produções de Freud - como as
questões da guerra e da morte - na contemporaneidade, e qual seu impacto sobre a
subjetividade?
O contexto atual nos remete para uma mudança, onde a construção subjetiva se
opera de uma forma diferente; o sujeito do mundo atual já não é mais o mesmo que
Freud descreveu nos primórdios da psicanálise. O mal-estar hoje se situa em um outro
registro, diferente de uma conflitiva predominantemente neurótica dos tempos
inaugurais da psicanálise. Desta forma, o mal-estar contemporâneo nos remete,
imperiosamente, a pensar sobre as possíveis transformações subjetivas operadas na
atualidade.
Apostando na estratégia freudiana de pensar a relação entre o social e o psíquico
torna-se necessário, hoje, refletir sobre o panorama contemporâneo em que as
subjetividades estão inseridas. Consideramos, portanto, de fundamental importância
pesquisar como esse contexto atual se produziu historicamente, quais foram as
condições de possibilidade da emergência de tal transformação subjetiva e que papel o
corpo atua nesta mudança.
5
Nesse sentido, compartilhamos com a posição de alguns psicanalistas atuais
(BIRMAN, 2004a; PEIXOTO-JUNIOR, 2004) de que a psicanálise precisa de uma
leitura crítica com outros campos de saber para que possa lidar com o que se
convencionou chamar de novas formas de expressão subjetiva. Consideramos o diálogo
com a nossa cultura a via possível de afirmação do saber psicanalítico no nosso tempo.
Para que a psicanálise possa ter um olhar crítico das transformações operadas no
plano subjetivo e repensar seus referenciais teórico-clínicos, é indispensável que atente
para o que se passa no plano sócio-cultural em que se constituem as subjetividades.
Neste intuito, faremos dialogar a psicanálise com um outro campo de reflexão,
qual seja: a filosofia de Michel Foucault e sua interlocução com o saber psicanalítico.
Este autor se dedicou a pensar sobre o projeto de constituição da tradição européia, a
partir da questão dos antigos versus os modernos. Há três momentos em sua obra que
versam sobre a mesma problemática, qual seja, a maneira pela qual ele concebe a
constituição da modernidade: primeiro, o eixo do saber (arqueologia), segundo, o eixo
do poder (genealogia) e terceiro, o eixo da ética (subjetivação).
Em sua genealogia do poder, Foucault (1976b/1988) se dedicou a pensar a
constituição da modernidade a partir da análise dos mecanismos de poder próprios deste
contexto histórico. Para o autor, as formas de subjetivação se produzem na estreita
relação com os jogos de poder e não podem ser pensadas na exterioridade deste campo
de embate. Conduziremos, então, nossas análises em Foucault por este eixo, por
considerarmos que nos fornece os subsídios necessários para pensarmos os dispositivos
de poder e saber que delimitam o conjunto de práticas aplicadas na sociedade atual, cujo
efeito é produtor de uma determinada concepção de corpo e subjetividade.
A hipótese foucaultiana é de que a emergência da modernidade é marcada por uma
matriz biopolítica, cujos dispositivos disciplinares do corpo e regulamentadores da
população exercem, através da norma e não mais da lei, um poder sobre a vida dos seres
humanos. Uma mudança no regime geral do poder, que passa do poder soberano para a
norma disciplinar, configura o contexto sócio-político característico da modernidade. A
razão dessa transformação nos mecanismos de poder está relacionada aos efeitos
econômicos e políticos da “acumulação dos homens” que, por sua vez, exigiu a
implantação de medidas de controle que deram origem à noção de população e sua
classificação de acordo com suas condições de saúde. A qualidade de vida da população
6
se transformou na fonte maior de riqueza dos Estados modernos, de onde a política ter
se voltado inteiramente sobre a vida, fazendo dela o objeto principal das estratégias de
poder. Desse modo, o lema do poder soberano do “fazer morrer, deixar viver” é
transformado no imperativo do “fazer viver, deixar morrer”, integrado a um projeto de
gestão da vida dos homens.
A norma passa a exercer um controle sobre as individualidades numa proporção
que vai desde o núcleo familiar até a normalização de todo o tecido social. A medicina é
o saber-poder que coordena todo esse processo normativo através de uma intensa
medicalização. Para Foucault, o dispositivo da sexualidade e sua correlativa ciência do
sexual foram os meios através dos quais a norma incidiu sobre os corpos, demarcando
uma forma de subjetivação característica desse contexto biopolítico moderno.
Desse modo, a fim de pensarmos sobre os processos subjetivos contemporâneos,
julgamos ser imprescindível uma leitura da modernidade, na qual se constituiu uma
determinada forma de subjetivação - sobre a qual a psicanálise forjou um modelo
interpretativo – para então analisar por quais transformações ela passa nos nossos dias.
Uma vez que consideramos que as marcas subjetivas são históricas, no sentido de
guardarem estreita relação com o contexto social e cultural em que são produzidas,
acreditamos na importância de uma análise do contexto sócio-político em que elas se
constituíram, na modernidade, e se constituem na contemporaneidade. Partimos então
da premissa de que pensar sobre as transformações subjetivas é inseparável de uma
análise da modernidade e dos desdobramentos desse momento histórico nos dias de
hoje.
Nos limites desta pesquisa, o que estamos aqui abordando em termos de
contemporaneidade
2
será compreendido como um ponto de chegada de uma série de
2
Estamos cientes de que é vasto o campo de discussões acerca dos significantes modernidade e
contemporaneidade, muitas são as definições, oriundas de diversas produções discursivas. Há pelo menos
duas formas de leitura sobre a atualidade: uma que concebe uma ruptura radical com os pressupostos da
modernidade, e outra que sustenta a permanência dos fundamentos da modernidade hoje, com a
particularidade de estarmos em uma nova etapa do projeto moderno. De acordo com cada uma dessas
tradições dissemina-se uma pluralidade de expressões, tais como: pós-modernidade, modernidade tardia,
supermodernidade, modernidade reflexiva, entre outras. Para os propósitos desse trabalho não
aprofundaremos essa problemática, contudo sinalizamos a existência desse debate e para um mapeamento
da questão remetemos o leitor à BIRMAN, J. (2000) “A psicanálise e a crítica da modernidade”. In: A
psicanálise e o pensamento moderno (org. HERZOG, R.). Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, p.109-
130. Remetemo-nos à contemporaneidade, sobretudo, como um momento marcado por transformações
nos processos subjetivos que desencadeiam impasses para o campo psicanalítico e que, por esse motivo,
nos instigam à presente pesquisa.
7
desdobramentos e variações da matriz biopolítica da modernidade, apontada por
Foucault, que conduziram à significativas mudanças no plano subjetivo. As atuais
condições do mal-estar, que imperam no registro da experiência psicanalítica, geram
impasses no que tange a um descompasso entre as novas modalidades de sofrimento e
os instrumentos de escuta e intervenção da psicanálise. Este é, para nossa pesquisa, o
traço significativo da contemporaneidade.
O recurso ao pensamento de Foucault nos cabe, então, como uma “chave de
leitura” para a historicização das configurações subjetivas da atualidade, tendo em vista
as formas de relação de poder tal como elas vêm se dando desde a modernidade.
O que está assim implicado nesta proposta é uma articulação entre transformações
nos mecanismos de poder vigentes em nossa sociedade e transformações subjetivas.
Nossa aposta consiste em pensar a organização psíquica e as formas de padecimento
através das modificações nas relações de poder. A análise dos dispositivos de poder nos
permitirá identificar o terreno histórico em que se constituem os processos psíquicos da
atualidade.
Consideramos esse percurso fundamental para que possamos retomar o discurso
psicanalítico à luz de tal conjuntura histórica, a fim de realizar uma leitura crítica do
discurso freudiano, mais especificamente.
Os impasses que as subjetividades atuais colocam à psicanálise ultrapassam a
dimensão epistemológica. Para bem entender as transformações ocorridas no plano
subjetivo julgamos necessária uma análise genealógica de como essas mudanças se
operaram e de como a psicanálise a elas respondeu. Nesse sentido, esta tese se propõe a
realizar uma leitura do pensamento freudiano e de sua metapsicologia enquanto abertos
a uma genealogia, tendo em vista o solo histórico a que o movimento do pensamento de
Freud pertence.
A proposta de uma genealogia da metapsicologia freudiana significa lê-la como
discurso e não como conceito, evitando concebê-la como uma invariante presa na
imobilidade do registro estritamente conceitual. Ao contrário, consideramos que Freud
realizou diferentes metapsicologias, variando no seu próprio tempo histórico. Freud se
apoiou em modelos que se diferenciaram ao longo de seu pensamento, e são essas
diferenças que acreditamos serem importantes para pensarmos no que o discurso
freudiano pode oferecer para uma leitura das subjetividades contemporâneas, e em que
8
medida ele acompanhou as transformações sócio-culturais ocorridas ao longo de sua
existência.
Enuncia-se, assim, a tese fundamental que atravessa este trabalho: o que se figura
hoje em termos subjetivos é indissociável do solo sócio-histórico que propiciou as
condições de emergência das ditas novas subjetividades. A forma como analisaremos
essa relação entre o social e o subjetivo é através de uma análise genealógica da
constituição da modernidade e de seus desdobramentos na atualidade, a partir das
relações de poder tal como se disseminam em nossa sociedade.
Deste modo, iniciaremos por cartografar em linhas gerais o campo do mal-estar na
atualidade, a fim de esboçarmos a problemática que constitui nosso ponto de partida.
Descreveremos esse campo a partir de um mapeamento de questões desenvolvidas por
autores que trabalham seja sobre a especificidade das dinâmicas psíquicas que vêm se
apresentando diferentemente do paradigma neurótico, seja sobre as mudanças culturais
que engendram uma nova constituição subjetiva. Neste capítulo primeiro visamos,
assim, esboçar o campo dos impasses que este contexto representa para a experiência
psicanalítica, dos quais partiremos para nossa leitura genealógica, que busca
contextualizar o surgimento desse enquadre subjetivo.
No segundo capítulo, nos voltaremos para o pensamento de Foucault, a fim de
delimitarmos as concepções que dele nos utilizaremos para empreendermos nossa
leitura genealógica do solo constitutivo da modernidade ocidental, que circunscreve o
advento da psicanálise. O fio condutor que rege nossa incursão pela obra foucaultiana é
sua discussão acerca do poder e as mudanças de seus mecanismos que resultaram, na
modernidade, em um exercício do poder sobre a vida: o biopoder. Uma política voltada
estrategicamente sobre a vida, portanto, biopolítica, é a marca fundamental de nossa
tradição ocidental. Veremos suas repercussões sociais e subjetivas através do
dispositivo da sexualidade e da ciência do sexual, pilares do projeto biopolítico, que
foram determinantes na conformação de um certo modelo de família e de certas formas
de subjetivação na modernidade. O papel desempenhado pela medicina nesse projeto de
normalização do social será evidenciado, uma vez que se configura como um
instrumento fundamental para o avanço das estratégias biopolíticas.
Na sua analítica do poder, Foucault aponta que Freud e a psicanálise fazem parte
desse contexto, emergem na esteira dessa matriz biopolítica moderna, inscrevendo-se
9
como mais uma prática normativa de regulação da sexualidade, à serviço do biopoder.
De modo que a emergência histórica da psicanálise estaria atrelada ao dispositivo de
poder característico das sociedades da virada do século XX. A partir dessa
contextualização da modernidade, pela via do poder em Foucault, analisaremos que
posição o pensamento freudiano assume diante de tal matriz biopolítica que marca o
tempo histórico do qual a psicanálise é herdeira.
O terceiro capítulo se dedicará a um percurso pelo o que chamamos de paradoxos
de Freud, no sentido de traçar suas linhas de continuidade e descontinuidade a essa
matriz biopolítica a partir da qual Foucault criticamente analisa a modernidade.
Examinaremos, sobretudo a partir da teoria pulsional, os momentos em que Freud se
insere nessa tradição e os momentos em que ele rompe com ela, fazendo da psicanálise
um lugar de resistência e contra-poder às estratégias biopolíticas.
Trata-se de analisar as implicações do biopoder sobre o movimento do
pensamento freudiano e o modo como Freud afrontou a realidade biopolítica de seu
tempo. Ao anunciar um corte com a tradição médico-positivista, remetendo-se a uma
outra cena (inconsciente) e um outro corpo (erógeno e pulsional) veremos que a
psicanálise nasce contrapondo-se aos avanços de uma política de medicalização da vida
e ao reducionismo da subjetividade a um corpo disciplinado e medicalizado.
Visualizaremos como os efeitos do projeto biopolítico sobre a produção subjetiva
constituíram, desse modo, a condição de possibilidade da emergência da psicanálise. E
como Freud, enquanto pensador moderno, oscilou entre reforço e resistência, filiação e
ruptura ao projeto de modernidade biológica descrito por Foucault.
Apontaremos, a partir da metapsicologia, o deslocamento freudiano do vitalismo
ao mortalismo e, com isso, as diferentes vicissitudes para pensar o psiquismo e a
posição da psicanálise diante do projeto biopolítico. Veremos como a metapsicologia
não é uma invariante histórica no pensamento freudiano, sendo antes um dos palcos de
seu enfrentamento frente às estratégias de atuação do poder sobre a vida, principalmente
na sua versão mortalista, que evidencia a sua mais radical descontinuidade em relação
ao processo de normalização das subjetividades instaurado na modernidade.
Após esse percurso pelo traçado das descontinuidades do discurso freudiano,
realizaremos, no quarto capítulo, uma análise das repercussões subjetivas da biopolítica
10
moderna e da leitura que Freud empreendeu sobre a subjetividade e seu mal-estar nesse
contexto.
Por representar o futuro de uma Nação, a criança foi uma das figuras mais
valorizadas pelo projeto de qualificação da população. A figura da mulher também
exerceu um papel central, já que na condição de mãe foi investida da tarefa de gerir o
espaço doméstico e prover as boas condições de saúde e educação das crianças,
sementes das futuras populações. A família tornou-se, assim, peça-chave no dispositivo
da sexualidade, convocada a tomar para si o objetivo da saúde, sendo inteiramente
atravessada pela medicalização. A organização nuclear que a família adquire na
modernidade responde ao investimento massivo do poder sobre o corpo e a sexualidade.
Esses personagens construídos no contexto biopolítico moderno receberam um lugar
fundamental na leitura freudiana do mal-estar na modernidade. A mulher histérica e a
condição soberana do narcisismo infantil são signos da inscrição subjetiva na matriz
histórica da biopolítica moderna. Freud construiu um modelo de subjetividade baseado
nesses personagens principais deste momento histórico: leitura da histeria, da “Sua
Majestade o Bebê”, da sexualidade e da família burguesa medicalizada do século XIX.
Essas e outras figuras da cena social e familiar dos séculos XVIII e XIX formam
os pilares de sustentação da atuação do biopoder. Analisaremos o estatuto de
subjetividade neurótica fundada por Freud, principalmente através da histeria, marca
maior da nervosidade moderna e da condição feminina nesse contexto. Veremos o
quanto o mal-estar moderno foi descrito por Freud nos termos das doenças nervosas,
preço pago pelas individualidades em relação à normalização do sexual imposta pelo
imperativo de saúde, sustentado pelas estratégias biopolíticas de regulação da vida.
Percorreremos dois textos culturais de Freud A moral sexual ‘civilizada’ e doença
nervosa moderna e O mal-estar na civilização onde ele sublinha sob os signos,
respectivamente das doenças nervosas e do desamparo, o mal-estar das subjetividades
inscritas nesse solo histórico da modernidade. Contrastaremos a leitura de Freud nesses
dois momentos de seu pensamento, tendo em vista a entrada da pulsão de morte em seu
pensamento e a diferença de seu posicionamento em relação à ideologia iluminista e
progressista da modernidade.
Deste contraste, analisaremos a possibilidade de encontrarmos dois modelos
subjetivos em Freud. O primeiro centrado no paradigma da histeria e da sexualidade,
11
correlativo de sua primeira teoria pulsional e referente à leitura do mal-estar enquanto
pautada no conflito entre pulsões sexuais e interditos morais. E outro, decorrente de sua
reformulação da teoria pulsional, onde a pulsão de morte se faz presente no psiquismo e
o masoquismo se insinua como figura fundamental na cena psíquica, fazendo-o se
reposicionar em relação a sua análise do mal-estar e da cultura, e inclusive no que se
refere à idéia de cura e experiência psicanalítica.
Finalmente, no último capítulo, analisaremos as proporções e desdobramentos que
o projeto biopolítico alcançou na atualidade e suas conseqüentes ressonâncias para o
campo subjetivo. Para um exame da biopolítica na contemporaneidade, recorreremos
também às contribuições de Agamben que tem produzido reflexões recentes sobre o
assunto, partindo das análises foucaultianas sobre o biopoder. A partir de suas
contribuições, refletiremos sobre a política atual e os destinos que tomaram a máxima
moderna do “fazer viver, deixar morrer” nos dias de hoje. Ressaltaremos a radicalização
das estratégias biopolíticas e ao mesmo tempo, paradoxalmente, o incremento de sua
face mortífera que levou aos totalitarismos do século XX e à política de exclusão da
atualidade. Agamben propõe o termo tanatopolítica para se referir a essa versão atual da
política sobre a vida, cujo paroxismo foi apontado por Foucault na sua discussão sobre o
nazismo, o racismo e o poder assassino do Estado, em pleno auge do projeto
democrático moderno.
Recorreremos também às discussões de Birman no que tange ao novo horizonte
biopolítico da atualidade e às transformações no estatuto da soberania em tempos de
globalização. Seguiremos as trilhas deste autor na sua articulação desta problemática
política com o registro subjetivo, sobretudo a partir das categorias de desamparo e
desalento por ele trabalhadas.
Analisaremos as transformações da família à luz das variações dos dispositivo
biopolítico, que propiciou novas formas de filiação e conjugalidade e, com isso, novas
relações familiares. Disso decorreremos uma mudança na forma de investimento
narcísico sobre os filhos, que marcará as novas condições de constituição psíquica da
atualidade.
O ponto de chegada desta pesquisa é uma reflexão sobre as repercussões destas
transformações da matriz biopolítica, da aurora da modernidade aos nossos dias, sobre
as formas de subjetivação. Atentaremos para as ressonâncias da biopolítica
12
contemporânea sobre a economia pulsional, discutindo seus efeitos sobre o trabalho
psíquico de mediação e ligação do excesso pulsional. Abordaremos algumas situações
já presentes na elaboração freudiana posterior à concepção da pulsão de morte, que
evidenciam a ruptura da rede simbólica e a exposição do aparelho psíquico ao excesso e
à desfusão pulsional, situações-limite em que novos e diferentes tipos de resistências
foram pensadas por Freud.
Encontraremos nessas indicações freudianas elementos para pensarmos nas
situações subjetivas em questão na atualidade, marcadas pela descarga de um excesso
pulsional que não foi mediado, devido a fragilidade dos processos de simbolização, em
função do contexto histórico em que estão inscritas. Nessas condições, as subjetividades
estariam reduzidas a uma existência somática, resultante da incidência direta do poder
sobre a vida e da corrosão que opera nos vínculos propiciadores de mediação. Nesse
momento, discutiremos como o corpo se tornou o palco privilegiado de expressão do
mal-estar, contudo, muito mais no seu registro somático e orgânico do que na sua
figuração erógena e fantasmática tal como pensada por Freud.
A partir dessa problematização da redução da subjetividade a uma singularidade
somática, demonstraremos as insígnias da condição de fragilidade e precariedade das
subjetividades no contexto biopolítico da atualidade.
A discussão que encerra este capítulo final dedica-se a pensar sobre as
possibilidades de resistência das subjetividades aos jogos de poder da atualidade,
enfatizando o lugar de risco hoje implicado na experiência de resistir à normalização.
Eis então o terreno sobre o qual nos debruçaremos ao longo deste percurso.
13
CAPÍTULO I
POR UMA CARTOGRAFIA DO MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO
Esse capítulo visa esboçar de uma forma geral o campo do mal-estar hoje,
difundido na literatura psicanalítica na discussão acerca das novas subjetividades, novas
formas de subjetivação, novos sintomas, novas modalidades de sofrimento psíquico e
inúmeras outras expressões que remetem a uma reflexão sobre a constituição subjetiva
na atualidade.
A comunidade analítica problematiza, muitas vezes, a existência ou não de novas
configurações psíquicas. Há pelo menos dois eixos de posicionamento. De um lado
acredita-se que estamos diante de novas roupagens das mesmas estruturas clínicas
descritas pela nosografia psicanalítica clássica. De outro, a posição de que estamos
diante de novas formas de padecimento psíquico. De todo modo, sem querermos aqui
entrar nos meandros dessa querela, consideramos que essa discussão perpassa a questão
da inequívoca existência de uma especificidade do campo subjetivo na
contemporaneidade, seja ela concebida como uma nova versão dos velhos sintomas,
seja ela efetivamente um novo modo de constituição psíquica. Pelas razões que
desenvolveremos ao longo do trabalho, nossa perspectiva é de que um processo de
transformação subjetiva está em curso.
Trata-se de analisar as condições de possibilidades da emergência de tal
especificidade, tendo em vista, para isso, uma interlocução com o campo histórico-
político constitutivo de nossa tradição ocidental. Nesta medida, esse primeiro passo de
nossa pesquisa pretende abrir o campo desta discussão, mapear os impasses, para então
partirmos em busca de novas ferramentas de leitura para o que se apresenta hoje em
termos subjetivos.
As manifestações sintomáticas atuais pouco se prestam à regra básica da livre
associação e à técnica da interpretação, dada a ausência de um colorido fantasmático
inconsciente e de um conflito psíquico. Uma linguagem empobrecida de recursos
metafóricos, reduzida muitas vezes a uma dimensão informacional; um corpo
poliqueixoso, mas destituído de uma “fala” simbólica sobre o sujeito; uma dimensão
14
fantasmática esvaziada, levam muitos analistas à perplexidade. Desconcertados por uma
realidade psíquica inusitada, os analistas dos tempos atuais são convocados a
remanejarem o referencial psicanalítico atentando para as novas dinâmicas subjetivas.
Não é tarefa fácil, porém sob pena de cair na esterilidade, é necessário ao discurso
e técnica psicanalítica reinventar-se. É na tentativa desse movimento que vemos
proliferarem os artigos, trabalhos e discussões teórico-clínicas sobre as novas formas de
subjetividade, muitos desses incluindo a questão do corpo. A comunidade analítica está
mobilizada nesse sentido. Muitas são as propostas.
O dispositivo clínico da interpretação foi construído por Freud como resposta ao
mal-estar subjetivo moderno, caracterizado pelo modelo da neurose. Esse modelo é
ainda pertinente para o contexto subjetivo contemporâneo? Estamos diante do mesmo
tipo de mal-estar dos tempos inaugurais de Freud? Ou será que se trata de um outro
registro do mal-estar, diferente da conflitiva neurótica clássica?
O panorama clínico atual voltado sobre as novas versões depressivas, a
drogadicção, os transtornos alimentares e da imagem como bulimia e anorexia, as
somatizações, os quadros de violência e delinqüência, as novas relações com a
sexualidade são correlatos de um aumento de modelos alternativos para pensar a
subjetivação hoje.
Se considerarmos esse contexto de uma perspectiva histórica, é bem verdade que a
emergência desses quadros clínicos vem se apresentando e se desenvolvendo desde o
surgimento da própria psicanálise. Hoje certamente eles são muitos mais abundantes de
forma a predominar no horizonte clínico e social da atualidade. Vale lembrar que
Ferenczi ficou imortalizado pelo célebre tratamento de casos difíceis, tendo acolhido e
se dedicado a esse contingente de sofredores um tanto quanto marginais, se comparados
às manifestações neuróticas que enchiam a clínica freudiana.
À margem da ruidosa e exuberante cena histérica para qual estavam voltados
todos os olhos de médicos, neurologistas e psiquiatras e, sobretudo, de Freud, no início
do século XX, emerge em torno de 1920 a insígnia da somatização - a presença dos
grandes somatizadores -, sob a pluma de Ferenzi
3
e Groddeck
4
, ainda que através de
enfoques diferentes. Estes autores, diabolizados, excluídos ou simplesmente esquecidos,
já se atinham à pesquisa de um novo estatuto psíquico e corporal e inovavam no plano
3
FERENCZI, S. (1873-1933/1990) Diário Clínico. São Paulo: Martins Fontes.
4
GRODDECK, G. (1997) O livro d’Isso. São Paulo: Perspectiva.
15
da técnica analítica, com uma escuta e uma intervenção diferentes daquelas que regiam
a cura-tipo.
A psicossomática, que hoje já consta como disciplina e especialidade em inúmeros
cursos na área médica e psi, surge desse campo das somatizações já entreaberto no
início do século XX pela psicanálise. Na década de 1950 a escola de psicossomática de
Chicago, liderada por Franz Alexander
5
, ampliava o campo da medicina com as fontes
provindas da prática psicanalítica. Nesta época também Pierre Marty
6
e colaboradores
partiam das concepções psicanalíticas para pensar algo da ordem de um funcionamento
psicossomático. Em 1972 fundaram o Instituto de Psicossomática de Paris que ainda
hoje desenvolve pesquisas teóricas e clínicas nessa área.
Membro da referida escola francesa de psicossomática Joyce McDougall
7
se
tornou conhecida por seus trabalhos com o que ela considera como pacientes difíceis
que, na diversidade patológica de seus sintomas, escapam à “norma” neurótica.
Dedicou-se ao estudo das manifestações psicossomáticas e de quadros clínicos
fronteiriços entre a neurose e a psicose. Através de uma escrita eminentemente clínica,
analisou os impasses de uma prática psicanalítica com pacientes somatizadores,
descrevendo a especificidade de sua realidade psíquica através de conceitos cunhados
pela referida escola como: pensamento operatório, alexitimia, depressão essencial,
relação branca e desafetação. A autora atentou para os entraves da relação transferencial
com esses pacientes que ela denominava de “normopatas”: pareciam não apresentar
sofrimento neurótico e exibiam a aparência de normalidade, mas se relacionavam de um
modo pragmático e desafetado com o meio, reagindo à angústia e aos afetos por meio de
explosões psicossomáticas.
Muitas das discussões atuais em torno dos transtornos psicossomáticos retomam e
recuperam as teorias de autores da psicanálise como Ferenczi e Winnicott, e também do
próprio Freud acerca das neuroses atuais.
5
Obra de referência: ALEXANDER, F. (1989) A medicina psicossomática. Porto Alegre: Artes Médicas.
6
Obras de referência: MARTY, P. (1993) A psicossomática do adulto. Porto Alegre: Artes Médicas;
____. (1980) L’ordre psychosomatique. Paris: Payot; MARTY, P., DE M’UZAN, M. e DAVID, C.
(1963) L’investigation psychosomatique. Paris : PUF; MARTY, P. E DE M’UZAN, M. (1963) “La
pensée opératoire”. In : Revue Française de Psychanalyse, 27, p.345-356.
7
Obras de referência: MCDOUGALL, J. (2000) Teatros do corpo. O psicossoma em psicanálise. São
Paulo: Marins Fontes; _____. (1991) Em defesa de uma certa anormalidade. Teoria e clínica
psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas.
16
1.1. Das patologias narcísicas aos estados-limites: a analisabilidade em
questão
Em 1974 a Nouvelle Revue de Psychanalyse (1970-1994), dirigida por J.-B
Pontalis, lançava seu décimo número inteiramente dedicado aos limites do analisável
(exatamente seu título: Aux limites de l’analysable). A problemática da analisabilidade
de casos difíceis já se colocava de maneira significativa aos analistas, que se
mobilizavam então na discussão do tema.
Khan (1974) comparece neste número da revista com um artigo intitulado “La
rancune de l’hystérique” (“O rancor do histérico”), realizando uma leitura particular da
histeria pelo viés do narcisismo. Sua hipótese se apóia nas premissas winnicottianas de
uma maternagem suficientemente boa como base da constituição psíquica. A questão
em jogo na histeria seria da ordem de uma defesa contra angústias primitivas, geradas
pela insuficiência de um meio ambiente de suporte adequado que possibilitasse a coesão
do eu nascente. Diante dessa falha, decorre a dissociação entre a experiência sexual e a
utilização criativa das capacidades do eu. A intensificação e a exploração dos aparelhos
sexuais do eu-corpo fazem face à excitação e à ansiedade de cuja proteção o sujeito
histérico foi privado muito precocemente. A solução sexual serve assim à facilitação de
um funcionamento inapropriado do eu. A linguagem simbólica do corpo denuncia a
expressão de necessidades primitivas de solicitude e de proteção.
Assim a sexualidade adulta do histérico é menos um veículo de gratificação
pulsional e mais uma espécie de idioma que comunica a privação, na esperança de que o
outro possa sanar a dissociação, reconhecendo as necessidades de seu eu. O sentimento
de ressentimento ou rancor provém da impossibilidade do objeto de amor de distinguir
entre os desejos do id e as necessidades do eu. Disfarçado sob um manto de
hipersexualidade reside uma demanda de satisfação das necessidades psíquicas mais
primitivas.
“Há bem um traumatismo real na etiologia da histeria. Só que ele não é de
natureza sexual. Ele está, sobretudo, em relação com a insuficiência da mãe
de prover as necessidades do eu da criança. A criança se cuida ela própria
desse traumatismo pela exploração sexual das experiências do eu-corpo,
estabelecendo o modelo de base que valerá por toda situação de stress e de
17
conflito que conhecerá posteriormente o histérico (KHAN, 1974, p.155,
grifo do autor)”
8
.
Khan (1974) comenta que as lembranças da primeira infância do indivíduo
histérico são principalmente lembranças somáticas dos cuidados maternos e que, desse
modo, não se prestam à elaboração psíquica ou à verbalização. A histeria é assim lida
por Khan como resultante de uma falha narcísica na relação mãe-bebê, que deixa um
branco (um vazio) do qual a sintomatologia histérica se defende através de uma
resposta sexual.
Anna Freud (1974) apresenta também nesse volume uma discussão sobre as
dificuldades que se colocam no caminho da psicanálise, retomando as dificuldades
enumeradas por Freud em Análise terminável e interminável, e acrescentando outras
advindas da sua clínica com crianças, tais como: fraca tolerância às frustrações de
desejos pulsionais, fraca tolerância à angústia, fracas capacidades de sublimação,
preponderância de tendências regressivas sobre tendências progressivas.
Entretanto, a autora critica a abordagem psicanalítica de muitos autores centrada
em estados primitivos, indiferenciados, arcaicos e pré-verbais, declarando-se cética em
relação aos efeitos terapêuticos que possam advir desse tipo de inovação teórica e
técnica. Ela considera as novas técnicas baseadas em experiências precoces uma
redução à exploração de raízes genéticas. Para dar conta das mudanças do tipo de
material psíquico que se submete à análise, a autora aposta na retomada dos pontos de
vista metapsicológicos vislumbrados por Freud – dinâmico, tópico, econômico. Os fatos
descobertos a propósito dos estados primitivos devem ser integrados no quadro mais
amplo da metapsicologia para que reencontremos a era criativa em psicanálise, na
visão de Anna Freud.
Controvérsias à parte, a constatação de transformações no plano das dinâmicas
psíquicas e dos impasses que elas trazem para o pensar e o fazer psicanalíticos
demonstra-se convergente.
A participação de Pontalis (1974) sobre esta discussão dos limites do analisável
explora duas metáforas do texto freudiano em relação à vida psíquica: a que predomina
8
Tradução nossa. No original: “Il y a bien un traumatisme réel dans l’étiologie de l’hystérie. Seulement,
il n’est pas de nature sexuelle. Il est plutôt en relation avec la défaillance de la mère à pourvoir aux besoin
du moi de l’enfant. L’enfant se soigne lui-même de ce traumatisme par l’exploitation sexuelle des
expériences du moi-corps, établissant le modèle de base qui vaudra pour toute situation de stress et de
conflit que connaîtra ultérieurement l’hystérique”.
18
na obra, e que diz respeito à rede associativa onde se encadeiam afetos e representações,
e aquela proposta em Além do princípio do prazer, a da vesícula viva que através da
construção de uma crosta se protege do trauma. A atuação do princípio do prazer e do
princípio de realidade seria posterior a esse primeiro momento de constituição do
psiquismo. A esse registro, o da construção do aparelho psíquico, estariam referidas as
concepções de Fairbairn (autor com quem Pontalis dialoga neste artigo) sobre o contato
com objetos, internalização de objetos, cisões, implicadas na esquizoidia. Essa ordem
mais além, ou mais aquém, do princípio do prazer, em que pesa a sobrevivência do
psiquismo, aponta para a problemática acerca das fronteiras psíquicas e das dificuldades
e limites da análise diante desse nível de constituição da vida psíquica.
A contribuição de Green (1974) neste debate refere-se à crise da psicanálise diante
das mudanças na prática e na experiência analíticas exigidas pelos casos-limites. Diante
desses quadros clínicos a revisão do modelo da neurose é proposta, em função dos
limites que eles oferecem à analisabilidade.
Os estudos de Green acerca dos estados-limites nos apontam desde os anos 70 que
a configuração subjetiva vem se transformando e se impondo como uma nova demanda
clínica. O aumento dos considerados casos difíceis, sobretudo as estruturas narcísicas e
os borderline, impõem à psicanálise uma revisão de seu dispositivo teórico-clínico a fim
de melhor se aproximar dos mecanismos psíquicos em questão nesses casos. O autor
aponta para os denominados pacientes fronteiriços, onde se destaca a instabilidade da
estruturação psíquica. A extensa problemática dos casos-limites – discutida entre
inúmeros autores na Inglaterra, na França e nos Estados unidos - remete, em última
instância, ao nível da sobrevivência do psiquismo.
Em Narcisismo de vida, narcisismo de morte o autor se propôs a uma análise de
uma sintomatologia narcísica decorrente de um desinvestimento libidinal erótico por
parte do objeto primário materno.
9
Posteriormente em A loucura privada (La Folie
privée) se dedicou aos casos limites, tratando da relação entre estes e as neuroses,
fundamento da psicanálise clássica, sob seu ponto de vista. Uma mudança psíquica
9
André Green recupera o conceito de narcisismo em psicanálise, interessando-se por essa questão desde
1963, na tentativa de articular a teoria do narcisismo com a última teoria das pulsões. Enquanto o
narcisismo é geralmente considerado por seus aspectos positivos, ligado às pulsões sexuais de vida, Green
mostra a necessidade de postular a existência de um narcisismo de morte, que ele denomina de narcisismo
negativo. Para um aprofundamento da questão, consultar: GREEN, A. (1983) Narcisisme de vie,
narcisisme de mort. Éditions de Minuit. Ver também: _____. (1993) Le travail du negatif. Éditions de
Minuit.
19
anunciada desde os anos de 1950, que coloca inúmeros problemas para a técnica
analítica, torna-se uma realidade cotidiana para os analistas. As bases para a
compreensão atual do problema repousam, para Green (1990), sobretudo nas
postulações de Balint e Winnicott. Uma correlata mudança de sensibilidade e percepção
dos analistas foi necessária para que o que até então era inaudível pudesse ser
reconhecido e pensado pela teoria e prática psicanalíticas.
O que o autor (GREEN, 1990) considera como estados-limites se refere a um
núcleo psicótico presente em uma neurose, a folie privée (loucura privada) do paciente.
A isso ele propõe o termo psicose branca, que remete ao núcleo psicótico sem psicose
aparente. O que caracteriza esses quadros clínicos fronteiriços é, portanto, a ausência de
estruturação e organização não somente em relação à neurose, como também à psicose.
Por isso mesmo representam estados-limites da analisabilidade.
Green (1990) ilustra alguns traços característicos dessa categoria de pacientes:
relaxamento associativo extremo, imprecisão do pensamento, manifestação somática
intempestiva sobre o divã, comunicação por um corpo à corpo com o analista, inibição
das funções de representação, dificuldades de estabelecer relações internas de
simbolização. Os mecanismos de defesa revelam algo da ordem de um curto-circuito
psíquico: exclusão somática (defesa pela somatização), expulsão pelo ato, clivagem,
desinvestimento radical que busca obter um estado de vazio (aspiração ao nada).
Diante dessas novas estruturas
10
Green (1990) propõe elevar a noção de limite ao
estatuto de conceito e a partir dele, reformulando e revisitando autores que se dedicaram
ao problema, constrói uma concepção própria da questão.
Um dos significativos interlocutores de Green, Pontalis, também se dedicou a
pensar na condição de precários espaços de simbolização e de elaboração psíquica a que
estão submetidas as subjetividades no contexto atual da psicanálise.
Em um ensaio intitulado Atualidade do mal-estar, presente em seu livro Perdre de
vue (Perder de vista), Pontalis (1988) realiza uma interessante análise do texto
freudiano O mal-estar na civilização, tendo em vista os signos contemporâneos de
nossa cultura. Num jogo de palavras entre mal-estar e crise Pontalis situa o que estava
em jogo para Freud, e ainda hoje, para nós. Em uma leitura sensível do texto freudiano
o autor sublinha o desconforto de Freud no seu Mal-estar e também o de seu leitor.
10
O autor também utiliza o termo organizações.
20
O que se evidencia na escrita de Pontalis é a sugestão de que o emprego do termo
mal-estar por Freud não foi por acaso. Freud escolhe mal-estar e não crise para falar do
sofrimento do homem na modernidade. Isso parece apontar para um sentido particular:
uma crise remete a algo transitório, passageiro, que tem num horizonte próximo ou
distante o seu ultrapassamento, a sua solução, seja ela fatal ou não. Já mal-estar é um
termo vago, que não se presta a um diagnóstico certeiro nem a um prognóstico
provável, de efeito desestabilizante para o saber que dele pretende tratar.
Diferença, então, entre uma situação de crise e um estado de mal-estar. Aquele
que vivencia uma fase crítica reconhece o objeto de sua angústia e pode enunciar o
apelo para livrar-se dela. O mal-estar, por sua vez, desconhece tal especificidade, e
muitas vezes é acompanhado de uma constatação, no pior dos casos desprovida de
queixa, que se enuncia de forma precária e impessoal. Pontalis nos fornece algumas
expressões paradigmáticas que indicam a ausência de sintomas localizáveis e a angústia
de seu sofredor diante da ignorância de seu conflito: “mal em minha própria pele”, “eu
não nada sinto”, “eu sou/estou vazio”. Para o autor “nada senão um mal-estar,
indefinível, indefinido, do qual nós apenas saímos produzindo sintomas, enfim dizíveis,
enfim falantes. Os sintomas: nossa cultura privada”
11
(PONTALIS, 1988, p.24). Com
isso ele sublinha, não há crise nem no título nem no texto freudiano, há, contudo, a
ênfase no Mal-estar na civilização.
O tempo do mal-estar continua para nós, assevera Pontalis (1988): “Após tantos
vãos esforços para vivê-lo e pensá-lo como uma fase de crise, nós nele estamos ainda
mais do que nunca”
12
(p.38). Tempo do desprezo do pensamento que agora duvida de
seus poderes de transformar o mundo pela “magia das palavras”
13
.
Pontalis continua na sua reflexão sobre o mal-estar, indo nas filigranas da obra
freudiana e encontrando este termo quase que unicamente no referido ensaio sobre a
civilização, com apenas duas ou três exceções, uma delas em seus textos sobre as
11
Tradução nossa. No original: “Rien qu’un malaise, indéfinissable, indéfini, dont il arrive qu’on ne sorte
qu’en produisant des symptômes, enfin dicibles, enfin, parlants. Les symptômes : notre culture privée”.
12
Tradução nossa. No original: “Après tant de vains efforts pour le vivre et le penser comme ne phase de
crise, nous y sommes même plus que jamais”.
13
Essa é uma expressão utilizada por Freud (1905[1890]/ 1996) para evocar a importância da linguagem
no tratamento psíquico, sustentando o solo linguageiro do psiquismo e da experiência analítica.
Trataremos desse assunto no capítulo III e o retomaremos no último capítulo à propósito do
empobrecimento da força da “magia das palavras”, tal como Freud a concebia.
21
neuroses atuais. Indicação preciosa, reconhece Pontalis, certamente porque nos remete
para o contexto cultural e subjetivo da atualidade.
Freud contrapôs as neuroses atuais ao campo das psiconeuroses por aquelas não
possuírem a mesma via de formação de sintomas do que estas. O adjetivo “atuais”
remete, como indica Pontalis (1988, p.38-39), às condições do presente que
desencadeiam a neurose e ao sentido da “atualização” através da expressão imediata e
direta em sintomas somáticos e angústias difusas. Conforme compreende Freud
(1895[1894]/1996), trata-se de um déficit de elaboração psíquica. Pontalis (1988)
reforça, “ausência de jogo de simbolização então e prevalência do registro ‘econômico’:
tensão mais que conflito, estase e descarga mais que crise, expressão mais que criação,
“agir” no corpo e no exterior mais que deslocamento”
14
(p.39).
Para este autor, pensar em mal-estar na cultura é se referir a uma vida coletiva que
não mais possibilita uma via de elaboração psíquica. Uma vez que a coletividade perde
sua capacidade de se refletir, de pensar os seus atores, mais do que ser o objeto do
pensamento destes, quando a confiança nesse processo (e não progresso) é abalada,
estamos no terreno do mal-estar. Nesse contexto, “a tarefa da elaboração, o movimento
de simbolização não são devolvidos ao ‘pensador’”
15
(PONTALIS, 1988, p.39).
É assim que Pontalis sublinha a constatação de Freud, presente desde Além do
princípio do prazer até Análise terminável e interminável, de que a magia das palavras
perdeu a sua operacionalidade. Isso o afasta radicalmente do modelo da talking cure. E
com as neuroses de destino é como se efetuasse um retorno ao campo das neuroses
atuais. As denominações em torno das neuroses de caráter ou estruturas narcísicas que
surgiram depois estão, para Pontalis, nesse mesmo campo de discussão. Os limites do
mal-estar se impõem ao poder da análise, que desde então precisa lidar com a reação
terapêutica negativa.
Na impossibilidade de compartilhar uma crença coletiva ou uma única certeza em
nossa civilização, ou na impotência de pensá-la, tudo leva a crer, para Pontalis (1988),
que a “neurose coletiva” da qual sofremos é uma neurose atual no sentido freudiano do
termo, ou seja, vazia de desejo, impotente de elaborar e transformar seus conflitos,
14
Tradução nossa. No original: “Pas de jeu de symbolisation donc et prévalence du régistre
‘économique’ : tension plutôt que conflit, stase et décharge plutôt que crise, expression plutôt que
création, ‘agir’ dans le corps et dans l’extérieur plutôt que déplacement”.
15
Tradução nossa. No original: “la tâche d’élaboration, le mouvement de symbolisation ne sont pas
dévolus au ‘penseur’”.
22
geradora apenas de tensões não simbolizadas. A violência cotidiana, a delinqüência
juvenil, a banalidade do mal, a dobra sobre si mesmo, a ignorância desse “si”, o declínio
da língua, são os signos para Pontalis (1988, p.43) do “quadro clínico de nossa apatia
febril”
16
.
Reafirmando o gesto freudiano de pensar o mal-estar contextualizado com as
marcas da cultura de seu tempo, ele encerra seu primoroso ensaio com uma contundente
questão: “mais nosso mundo se deixa conhecer nas suas determinações, menos ele se
deixa pensar no que ele vai se tornar e na sua finalidade. Esse paradoxo faria ele a
atualidade do mal-estar?”
17
(PONTALIS, 1988, p.46, grifos do autor).
A multiplicação de perturbações narcísicas e dos considerados estados-limites, que
reenviam à problemática da fronteira da elaboração e simbolização dos conflitos em
jogo nessa atualidade do mal-estar, coloca em questão o campo da psicanálise e da
nosografia psicanalítica. Para Pontalis (1988)
18
há um grande mal entendido implicado
nesse impasse. Ele questiona se a descrição dos sintomas que os psicanalistas fazem a
propósito de seus pacientes são mesmo sintomas por estes produzidos ou por aqueles
que produzem o saber, ou seja, sintoma da psicanálise.
Essa provocação visa demonstrar o quanto a semiologia psicanalítica está
construída e referida aos pressupostos do modelo médico. Na falta de sabermos em que
consiste o sintoma em psicanálise, nos debatemos diante da raridade das neuroses
sintomáticas e ficamos aturdidos com a disseminação das neuroses de caráter e das
neuroses narcísicas. Uma neurose não oferece sempre sintomas a seres vistos, mas
necessariamente a serem ouvidos, assevera Pontalis.
Ele sugere que o impasse para a psicanálise, sobretudo no que concerne a questão
da cura, emerge quando o princípio do prazer perde a sua soberania, e a questão da
pulsão de morte é introduzida na clínica, principalmente através da reação terapêutica
negativa. Para ele os pacientes que são submetidos ao trabalho da morte
19
são os que
mais solicitam o desejo de curar, que demanda do analista muitas outras formas de
conduzir seu trabalho: reparação, holding, construção de fantasias. Não querer ouvir
16
Tradução nossa. No original: “Le tableau clinique de notre apathie fiévreuse”.
17
Tradução nossa. No original: “Plus notre monde se laisse connaître dans ses déterminants, moins il se
laisse penser dans son devenir et sa finalité. Ce paradoxe ferait-il l’actualité du malaise?”
18
Essa discussão está presente no ensaio “Une idée incurable”, na mesma obra.
19
Remeto o leitor para: PONTALIS, J-B. (1977) “Le travail de la mort”. In: Entre le revê et la douleur.
Gallimard.
23
falar da pulsão de morte ou recusar o desejo de curar, que para Pontalis nunca está
ausente de um tratamento analítico, é ignorar essa realidade psíquica decorrente da
clivagem e da desintricação pulsional e se aferrar à crença de que as pulsões
permanecem sempre unidas.
Desse modo, contrariando as regras da psicanálise de que o analisa não deve nada
esperar, nada desejar (que seria em outros termos “desejo de nada”) e opondo-se à
crença na impossibilidade da tarefa do analista diante da reação terapêutica negativa,
Pontalis (1988, p.89) aposta no desejo de “querer curar” do analista como uma forma de
reagir ao “querer morrer”. Uma forma de reconhecer o trabalho da pulsão de morte e
suas vicissitudes psíquicas, em vez de se agarrar na supremacia do princípio do prazer e
permanecer surdo a suas manifestações. É tempo de reabilitar o sintoma nos diz
Pontalis, tendo em vista, entendemos, o alargamento do campo sintomático face ao
trabalho da morte no psiquismo.
O autor
20
nos lembra que os casos difíceis que resistem ao método analítico e
fazem bascular a interpretação vêm sendo recenseados na literatura psicanalítica desde
Karl Abraham. Receberam diversas denominações como neurose de caráter, falha
básica, falso self, sempre descritos em termos deficitários, como carência fantasmática,
falta de elaboração, etc. Cada vez se incrementa mais o número de casos que se
apresentam como refratários à análise, tendo sido descritos por Joyce McDougall como
“anti-analisantes”, por Nathalie Zaltzman como “intratáveis” e na versão de Micheline
Henríquez como os “analisandos-parasitas”, conforme remarca Pontalis (1988, p.102).
É nessa fronteira com o limite que ele aposta no efetivo trabalho de análise,
“Mas (...) não há análise efetiva, isto é, análise que engaje também o
inconsciente do analista, senão aquela que nos leva aos limites, em uma
prova de limites da análise e de nossos próprios limites? Assim também os
analistas devem estar disso convencidos já que somente seus ‘casos
difíceis’, seus ‘casos impossíveis’ lhes colocam à trabalhar, à teorizar, à
escrever (PONTALIS, 1988, p.103)”
21
.
20
Essa discussão está presente no ensaio “Non, deux fois non”, em Perdre de vue, onde Pontalis (1988)
analisa a questão da reação terapêutica negativa.
21
Tradução nossa. No original: “Mais (...) il n’y a d’analyse effective, c’est-à-dire d’analyse qui engage
aussi l’inconscient de l’analyste, que celle qui nous porte aux limites, dans une épreuve des limites de
l’analyse et de nos propres limites ? Aussi bien les analystes doivent-ils en être convaincus puisque seuls
leurs ‘cas difficiles’, leur ‘cas impossibles’ leur donnent à travailler, à théoriser, à écrire...”
24
1.2. O mal-estar e as marcas de seu tempo
Kristeva (2002) diante da constatação de uma redução da vida interior na
atualidade, questiona: “quem, hoje em dia ainda tem alma?” (p.13). A pressa, a
agitação, a gana por “ganhar e gastar”, “desfrutar e morrer” não deixam tempo nem
espaço para a constituição de uma alma, na visão da autora. O recrudescimento das
religiões, o poder da mídia e as ofertas da neuroquímica são recursos utilizados pelo
indivíduo para se contrapor a sua pobreza psíquica.
“Dificuldades relacionais e sexuais, sintomas somáticos, impossibilidade de
expressar-se e mal-estar generalizado pelo emprego de uma linguagem a
certa altura sentida como ‘artificial’, ‘vazia’ ou ‘robotizada’ levam novos
pacientes ao divã do analista. Muitas vezes, eles têm a aparência dos
analisandos ‘clássicos’. Mas, por trás das atitudes histéricas e obsessivas,
logo transparecem ‘doenças da alma’ que evocam, sem com elas se
confundirem, as impossibilidades dos psicóticos de simbolizarem traumas
insustentáveis. Os analistas são levados então a inventar novas nosografias
que dão conta dos ‘narcisismos’ feridos, das ‘falsas personalidades’, dos
‘estados-limite’, dos ‘psicossomáticos’. Em que pese às diferenças dessas
novas sintomatologias, há, unindo-as, um denominador comum: a
dificuldade de representar. Que tome a forma do mutismo psíquico, quer
experimente diversos sinais sentidos como ‘vazios’ ou ‘artificiais’, essa
carência da representação psíquica entrava a vida sensorial, sexual,
intelectual, e pode prejudicar o próprio funcionamento biológico. Pede-se
então ao psicanalista, sob formas disfarçadas, que restaure a vida psíquica
para permitir ao corpo falante uma vida melhor (KRISTEVA, 2002, p.15-
16)”.
Ao expor o fragmento da análise de um de seus pacientes, Kristeva (2002)
exemplifica o que ela denomina de novas doenças da alma, referindo-se, sobretudo, a
marcante característica da inibição fantasmática que acompanha esses quadros. O
desfecho de seu relato sobre esse caso aponta para o enxerto psíquico (imaginário e
simbólico) que o analista opera na experiência analítica com esses pacientes. Mais do
que uma demanda, um apelo que se dirige à psicanálise em busca de sentido para o
desastre interior solidário à sociedade da performance e do estresse.
Nesta medida, para a autora, a psicanálise está confrontada com o desafio de
transformar, conferir outros destinos para tal prisão da alma construída no Ocidente.
Nesse sentido, o desafio é não só terapêutico, como ético e político. Não obstante, há
dois grandes obstáculos que se interpõem a essa afirmação da psicanálise: a competição
25
com as neurociências – “o comprimido ou a palavra” (KRISTEVA, 2002, p.39) -, e o
desejo de não saber facilitado pelas ofertas farmacológicas.
Premida pelas neurociências, a psicanálise de hoje, e a de amanhã, é, segundo
Kristeva (2002), convidada a reatualizar a herança freudiana da pulsão, no que esse mito
nos evoca em termos de relação com o outro, com a linguagem, com o campo do
sentido; pulsões e seus destinos no embotamento afetivo, no desmentido do objeto e na
palavra desvitalizada do deprimido.
O desejo de se saber do qual depende a transferência é, para a autora, uma
disposição subjetiva historicamente determinada. Esta curiosidade psíquica, condição de
possibilidade da transformação subjetiva, teria encontrado oposição, com a crise
moderna dos valores, na satisfação narcísica da miséria que reina no horizonte subjetivo
da atualidade.
Assim Kristeva (2002) propõe não o fim da história, mas o fim “da possibilidade
de falar uma história” (p.53). Diante do retraimento narcísico e do declínio do desejo de
saber, a técnica analítica, propondo-se reconhecê-los e acompanhá-los, exemplifica o
“alargamento do campo analítico até as fronteiras onde ele encontra as maiores
resistências” (p.53). Apostando no ceticismo de Freud e na plasticidade do discurso
psíquico, a autora acredita que “amanhã a psicanálise poderia ser um dos raros lugares,
preservados, de mudança e de surpresa, isto é: de vida” (p.54).
Na visão de Birman
22
(2000a) é em torno do autocentramento e da exaltação do
indivíduo que se ordena uma cultura narcísica na atualidade, caracterizada por um
excesso de exterioridade. A inexistência da interiorização pelo sujeito juntamente com
as atuais demandas de espetáculo e de performance regulam uma estetização da
existência que se constituem como modalidades do sujeito existir na exterioridade.
Desse modo, a subjetividade que antes era marcada pela noção de interioridade hoje se
22
Este autor tem produzido inúmeros trabalhos sobre a questão das formas de subjetivação
contemporâneas, explorando o tema de diversos pontos de vista. Ao longo da tese trabalharemos com sua
leitura. Sobre o assunto ver : BIRMAN, J. (2006) “Corps et formes de subjectivation em psychanalyse”.
In : Les limites du corps, le corps comme limite. Monographies de clinique psychanalytique (Org.
MICHELS, A. et LANDMAN, P.), Paris: Érès; _________. (2006) “Subjetividades contemporâneas”. In:
Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; _________. (2000) Mal-
estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira; _________. (2004) “Excesso e ruptura de sentido na subjetividade hipermoderna”. In: Os
sentidos do corpo. Cadernos de Psicanálise, Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Ano 26, n.17.
26
volta para um autocentramento marcado pela exterioridade que passa a ser legitimado e
valorizado socialmente.
Nesse contexto, diante do esmaecimento das fronteiras e do esvaziamento das
trocas subjetivas, os destinos do desejo, como aponta Birman (2000a), assumem outra
direção, marcada pelo exibicionismo e pelo autocentramento do sujeito no eu. Diante
então dessa configuração subjetiva atual o mal-estar cada vez se expressa menos por
uma conflitiva psíquica neurótica e mais no plano do corpo, da ação e do
comportamento.
Analisando a subjetividade à luz desse contexto contemporâneo, Birman (2003a)
tece algumas coordenadas que explicitam o modo de padecer hoje. Atentando para as
depressões, síndrome do pânico e compulsões em geral, o autor sublinha o quanto esses
flagelos psíquicos da atualidade denotam o freqüente mal-estar corporal e as formas
perturbadas de ação que remetem o sujeito para uma situação de impotência para
regular seus impulsos.
“Acuado e paralisado, invadido que é pela fragmentação corporal, pela
incerteza e pela suspensão de si, o sujeito age de maneira atabalhoada para
encontrar alguma forma de tônus que funcione como um centramento e
vertebração de si mesmo” (BIRMAN, 2003a, p.27).
Nesse sentido, Birman (2003a) afirma que o mal-estar contemporâneo se
manifesta principalmente como dor e não como sofrimento. Tendo em vista uma quebra
da mediação no espaço social atual e a conseqüente fragilidade das possibilidades de
simbolização, a subjetividade se restringe aos murmúrios e lamentos de um corpo que
dói. Não há um apelo dirigido ao outro, diferentemente da experiência de sofrimento,
onde a dimensão alteritária como possibilidade de interlocução se faz presente para o
sujeito. Desse modo, Birman aponta para uma subjetividade atual que não consegue
mais transformar dor em sofrimento.
O viés da dor e da redução da relação com a alteridade é também evidenciado por
Fortes (2004) na sua leitura da mudança das formas de subjetivação em questão na
atualidade. Segundo a autora, o contexto atual caracterizado por uma cultura do
hedonismo, da incessante busca de felicidade e de gozo gera uma insistente negação do
sofrimento. Seguindo as análises de Lasch e Debord sobre, respectivamente, a “cultura
do narcisismo” e a “sociedade do espetáculo”, Fortes enfatiza o enaltecimento do
27
individualismo, numa era de incertezas e vulnerabilidade decorrente de transformações
sociais, políticas e históricas da sociedade ocidental.
O enfraquecimento do Estado como figura de proteção e assistência, e o
conseqüente empobrecimento da esfera pública e coletiva como lócus de gestão da vida,
ocasionou um movimento de privatização da mesma. Aliado a isso o declínio da razão
universal, dos valores da sociedade tradicional e da conseqüente perda da autoridade
patriarcal lançaram o sujeito no universo da desproteção e da fragilidade dos laços
sociais. Se por um lado, com isso, o sujeito se liberta das amarras de uma obediência à
regras rígidas, podendo supostamente exercer livremente suas decisões pessoais; por
outro se encontra diante de um enorme desamparo.
Diante desse contexto de instabilidade e insegurança em que o sujeito está à mercê
de si mesmo, a autora aponta para a impossibilidade de construção de um projeto de
futuro. Desse modo, não haveria mais motivos para adiar a satisfação e o imperativo do
gozo, que então se dissemina como forma de obter prazer e felicidade no aqui e agora.
É assim que, para Fortes, o individualismo e o hedonismo dominam a cultura
contemporânea, acarretando uma diminuição da relação com a alteridade em nome do
gozo solitário.
Face à obrigação de ser feliz o sofrimento é evitado a todo custo. As compulsões
associadas ao consumo revelam a busca frenética pelo êxtase hedonista e ao mesmo
tempo a ânsia por um preenchimento do vazio subjetivo, numa espécie de compensação
à vulnerabilidade. Com isso, Fortes (2004) demonstra que o imperativo do gozo e da
satisfação imediata não conduziu à diminuição do mal-estar, ao contrário, expressa um
outro tipo de mal-estar, não menos aflitivo.
O que estaria em pauta, então, para a autora, seria uma nova forma de se
relacionar com o sofrimento no mundo contemporâneo, marcada pela evitação e pela
negação da dor. Contudo, “as tentativas de mascarar a dor não impedem que ela
continue mostrando a sua cara” (FORTES, 2004, p.74). Uma cultura baseada no dever
de ser feliz implica a negação da dor, entretanto Fortes assinala que isso não significa
que haja menos dor, ao contrário, sua exclusão se torna a própria fonte de seu
incremento. A psicanálise, assim, estaria convocada a lidar com esse novo lugar do
sofrimento nas novas produções subjetivas.
28
“Assim como coube à psicanálise em seu nascimento escutar os sintomas
do sofrimento neurótico, é função privilegiada do psicanalista hoje acolher
o vazio do sofredor contemporâneo, que tem nas chamadas patologias do
ato, como as drogadicções e as compulsões, nas perturbações
psicossomáticas e nas depressões a comprovação de que a dor lhe aflige”
(FORTES, 2004, p.70).
No campo da sociologia, Ehrenberg se destaca na sua pesquisa sobre o indivíduo
contemporâneo. O autor abre a introdução de seu livro La fatigue d’être soi. Dépression
et société
23
(A fadiga de ser si mesmo. Depressão e sociedade) com a afirmação de que
“a depressão declina hoje as diferentes facetas da infelicidade íntima”
24
(EHRENBERG, 2000, p.9). A depressão teria se tornado o principal infortúnio da
atualidade, revelando as mutações da individualidade no fim do século XIX. Novos
dilemas estão em questão para o indivíduo contemporâneo e se expressam
privilegiadamente através da depressão, cuja incidência vertiginosa mobiliza a atenção
da psiquiatria e da psicopatologia.
O argumento explicativo de Ehrenberg (2000) para a pregnância da depressão
como forma privilegiada de expressão do mal-estar hoje repousa na constatação de uma
transformação profunda no campo normativo. O modelo da disciplina, centrado na
gestão das condutas a partir de regras de autoridade e de conformidade aos interditos,
teria cedido lugar às normas que incitam a iniciativa individual e ordenam o “tornar-se
si mesmo”. A emancipação dos indivíduos de uma forma de vida restringida pelos
imperativos disciplinares e pela severidade de leis morais os conduziu à “liberdade” de
construírem suas próprias referências. O que o autor chama de modernidade
democrática teria feito de nós “homens sem guias” que, num movimento permanente,
devem escolher sua vida e tornar-se si próprios.
O individualismo se transforma radicalmente nesse contexto onde a regulação da
interioridade se desloca da partilha entre o permitido e o proibido para o pólo do
possível e do impossível. Trata-se menos de uma obediência disciplinar e mais de uma
decisão que depende de iniciativas pessoais. Nesta medida, Ehrenberg (2000) comenta
que uma das mutações decisivas de nossa forma de vida reside no fato da medida do
23
Essa é a terceira publicação de sua pesquisa sobre o tema, precedida por: EHRENBERG, A. (1999)
L’individu incertain. Paris: Hachette Pluriel Reference, e _________. (1999) Le culte de la performance.
Paris: Hachette Pluriel Reference.
24
Tradução nossa. No original: “La dépression décline aujourd’hui les différents facettes du malheur
intime”.
29
indivíduo ideal repousar na norma da iniciativa, em contraste com a docilidade
característica das sociedades disciplinares. Para tanto, o sujeito conta unicamente com
sua competência e aptidões mentais. O homem é seu próprio soberano.
Está assim dada a condição para uma reviravolta no campo da interioridade que se
antes era marcada por uma noção de culpa, enquanto referida à obediência a uma ordem
disciplinar, agora se desloca para a noção de insuficiência. A depressão emerge assim
como a patologia de uma sociedade cuja norma não é mais fundada na culpabilidade e
na disciplina, mas na responsabilidade e na iniciativa. Os sentimentos de impotência,
tristeza, cansaço, inibição e vazio que caracterizam os deprimidos da
contemporaneidade são correlativos do constante imperativo de ter que se tornar si
próprio e ser responsável por sua “soberania”. Segundo Ehrenberg (2000), a
insegurança é o preço pago por essa “liberação”.
O autor mostra como então a partir de 1980 a problemática da depressão é muito
mais marcada pela apatia, inibição e astenia do que pela dor moral. A “paixão triste”
cede lugar para a “pane da ação”, em um horizonte onde a iniciativa torna-se a medida
de cada um. Num momento histórico em que a cultura normativa está calcada na
eficiência, na motivação e na comunicação e onde, no limite, tudo é possível, a noção de
conflito psíquico entra em declínio. O que as depressões da atualidade revelam é antes
uma tensão entre o campo ilimitado de possibilidades e o indominável, do que o conflito
entre o permitido e o proibido, que exigia do neurótico boa parcela de renúncia de suas
satisfações libidinais. O deprimido não precisa mais renunciar, depende somente dele o
tornar-se si próprio, mas é confrontado a suportar a ilusão de que tudo lhe é possível.
“Assim como a neurose espreitava o indivíduo dividido pelos seus
conflitos, pela partilha entre o que era permitido e o que era proibido, a
depressão ameaça um indivíduo aparentemente emancipado de interditos,
mas certamente dividido por uma partilha entre o possível e o impossível.
Se a neurose é um drama da culpabilidade, a depressão é uma tragédia da
insuficiência. Ela é a sombra familiar do homem sem guia, cansado do
empreendimento de tornar-se si próprio e tentado a se sustentar pela
compulsão por produtos ou comportamentos” (EHRENBERG, 2000,
p.19)
25
.
25
Tradução nossa. No original: “Comme la névrose guettait l’individu divisé par ses conflits, déchiré par
un partage entre ce qui est permit et ce qui est défendu, la dépresion menace un individu apparemment
émancipé des interdits, mais certainement émancipé par un partage entre le possible et l’impossible. Si la
névrose est un drame de la culpabilité, la dépression est une tragédie de l’insuffisance. Elle est l’ombre
30
A adição torna-se, desse modo, a outra face da depressão. São os dois lados da
mesma moeda: a adição preenche o vazio depressivo. A compulsão visa atenuar a
tensão que leva o sujeito à pane e, consequentemente, à implosão depressiva por não
poder agir num mundo regulado pela norma da ação. A explosão aditiva responde,
assim, ao vazio do deprimido através da busca incessante de sensações. Quando, apesar
da iniciativa de agir, o domínio do tudo é possível revela sua inacessibilidade, o
confronto com a insuficiência parece inevitável, conduzindo os indivíduos ao destino da
depressão e da adição.
“O deprimido dificilmente formula projetos, lhe faltam a energia e a
motivação mínimas para fazê-lo. Inibido, impulsivo ou compulsivo, ele se
comunica mal consigo mesmo e com os outros. Déficit de projeto, déficit
de motivação, déficit de comunicação, o deprimido é o inverso exato de
nossas normas de socialização (...) O homem deficitário e o homem
compulsivo são as duas faces desse Janus” (EHRENBER, 2000, p.294)
26
.
A precariedade interna do deprimido corresponde à subjetividade inscrita em um
campo normativo onde “o direito de escolher a vida que se quer” é a norma da relação
entre indivíduo e sociedade. Se a culpabilidade estava ligada ao conflito no modelo
disciplinar, o déficit relaciona-se sobretudo ao narcisismo. Em um contexto social de
liberação de preceitos restritivos, em que reina a iniciativa pessoal de cada um e o apoio
sobre si mesmo, a insegurança identitária e a impotência de agir se configuram como
contrapartida, definindo as novas figurações do indivíduo e de sua patologia na
contemporaneidade.
Se as mudanças no campo normativo engendram mudanças subjetivas e
patológicas, o que no princípio do século XIX era a loucura (delírio) e no início do
século XX era a culpa neurótica, agora, na aurora do século XXI a figura central da
patologia é a depressão do sujeito soberano e legislador de si próprio.
familière de l’homme sans guide, fatigué d’entreprendre de devenir seulement lui-même et tenté de se
soutenir jusqu’à la compulsion par des produit ou des comportements”.
26
Tradução nossa. No original: “Le déprimé formule difficilement des projets, il lui manque l’énergie et
la motivation minimales pour le faire. Inhibé, impulsif ou compulsif, il communique mal avec lui-même
et avec les autres. Défaut de projets, défaut de motivation, défaut de communication, le déprimé est
l’envers exact de nos normes de socialisation (...) L’homme déficitaire et l’homme compulsif sont les
deux faces de ce Janus”.
31
Ehrenberg (2000) assinala as repercussões para o campo da psicanálise desse
sujeito deprimido, cronicamente habitado por um vazio, incapaz de simbolizar suas
dores (“desabamento simbólico”), assim descrito por grande parte da literatura
psicanalítica francesa (nos termos dos estados-limites). Diante de uma demanda de bem-
estar, rapidamente atendida pela psiquiatria e psicofarmacologia, a psicanálise se depara
com um limite ou um impasse, uma vez que a experiência analítica implica, à princípio,
na desconstrução ou no abandono de uma imagem confortável de si. Daí todas as
propostas de reformulações da técnica analítica no tratamento com esses pacientes: “um
sujeito a reestruturar”, sobretudo.
Vale ressaltar que as análises de Ehrenberg (2000) são acompanhadas de uma
discussão sobre a psiquiatria e a psicofarmacologia. O autor aponta para a vertente
biológica da psiquiatria atual que responde massivamente à demanda de suporte
medicamentoso, incorrendo na tendência à rebiologização do transtorno mental. As
promessas inéditas de cura da indústria farmacêutica também são por ele consideradas
na sua leitura sobre a produção de uma nova condição da individualidade e de seu
sofrimento.
1.3. Proposta
Este é um breve recorte de um vasto campo de leitura sobre a subjetividade na
contemporaneidade. Pretendemos apenas que ele tenha ilustrado pelos menos duas
formas de se aproximar da densidade da problemática subjetiva em nosso tempo, seja
através da investigação de suas dinâmicas psíquicas e dos impasses que trazem para a
psicanálise, seja pela análise das mudanças culturais que engendram transformações no
plano da constituição subjetiva.
Que se trate de estados-limites ou de patologias narcísicas, de depressões,
compulsões, adições ou somatizações, de transtornos da ação ou da imagem, essas
múltiplas figurações do mal-estar contemporâneo, anunciadas de diversas formas pelas
mais variadas filiações teóricas, apontam invariavelmente para uma mudança na
economia psíquica. Carência narcísica, precariedade nos processos de simbolização,
instabilidade e vulnerabilidade da constituição psíquica, sentimento de vazio interior e
32
vacilo identitário se acenam como signos de uma condição de fragilidade psíquica
implicada nas atuais formas de subjetivação.
Este trabalho se propõe, então, à analisar quais foram as condições de
possibilidade para a emergência dessas transformações no campo subjetivo, que
conferem tal especificidade para a manifestação subjetiva na atualidade. Desse modo, a
tese atravessará essa problemática e seus impasses através de uma leitura alternativa de
como essa questão pode ser lida e encaminhada, qual seja: indagação do modelo
psicanalítico (discurso freudiano) e do contexto contemporâneo a partir de uma
perspectiva histórico-genealógica.
O fio condutor de nossa análise histórico-genealógica é a matriz biopolítica da
modernidade anunciada por Foucault, cujos desdobramentos marcaram a psicanálise e
os acontecimentos de nosso tempo e, portanto, estão em estreita ligação com a condição
subjetiva na contemporaneidade. As subjetividades hoje carregam as marcas históricas
de seu tempo, que teve no biopoder uma de suas matrizes constituintes. São nessas
marcas que estamos interessados pensar.
Passaremos então para uma discussão sobre a biopolítica, para depois
empreendermos as articulações com a psicanálise, a subjetividade e a
contemporaneidade.
33
CAPÍTULO II
BIOPODER
Esse capítulo se dedica a explorar a obra de Foucault no que tange a temática da
genealogia e do poder. É por esse viés que analisaremos a constituição da modernidade,
indo ao encontro do solo histórico que tornou possível o advento da psicanálise.
Interessa-nos propriamente o movimento genealógico do pensamento de Foucault que
traz à tona a emergência de um contexto sócio-histórico, pela via do poder, que
possibilitou o surgimento da racionalidade moderna, centrada em um saber sobre o
homem.
É no traçado de uma história que se configurou pelo “governo dos homens” que
pretendemos chegar à psicanálise e ao entendimento do solo e da matriz sobre os quais
se desenvolveu o que vivemos hoje na contemporaneidade em termos de subjetividade.
Antes de mais nada, é preciso realizar uma incursão na obra de Foucault,
principalmente no que diz respeito a sua analítica do poder, a fim de circunscrever as
problemáticas, os conceitos e as noções que serão necessários para nossa discussão.
Comecemos por nos aproximar da perspectiva genealógica, que inspira e orienta a
forma como conduziremos a presente pesquisa.
2.1. A genealogia e a história
A vertente tradicional da história que se refere à tradição da razão baseia sua
reflexão a partir de um momento de origem fundador, visando estabelecer a
legitimidade de uma determinada formação social. A busca de uma origem e de uma
essência remete a uma dimensão metafísica subjacente a essa concepção de história.
Estamos diante então de um modelo metafísico que desde Platão até os dias de hoje
encontra-se demasiadamente presente conferindo à história os cânones da temporalidade
34
linear, da teleologia, do utilitarismo, da homogeneidade, da busca da origem e da
verdade, esta por sua vez fortemente marcada pelos ideais de absoluto e de
universalidade (FOUCAULT, 1979a/2006).
O deslocamento metodológico operado por Nietzsche e resgatado por Foucault
(1979a/2006) emerge a partir de uma concepção crítica a esse modelo metafísico de
história já tão amplamente instituído pela tradição da razão. A ruptura com a metafísica
decorre de uma concepção de verdade desatrelada da idéia de essência. Os conceitos
passam a ser concebidos dentro de um confronto de forças – campo imanente de luta e
de conflito entre as mesmas. Foucault parte da atualidade e do acontecimento, lócus
onde o confronto se evidencia. Ele insiste na idéia de descontinuidade, lugar de
produção de um acontecimento e de irrupção de algo novo. O acontecimento nada mais
é do que a revelação da descontinuidade, um corte no continuum.
Essa categoria de acontecimento é central dentro de um projeto genealógico. A
genealogia parte de uma superfície como campo de forças, de um embate de
intensidades. Nesse sentido, a história efetiva que Foucault (1979a/2006) quer contrapor
à história tradicional é de cunho genealógico, que se produz a partir de uma
fragmentação da linearidade, destacando a singularidade do acontecimento, dimensão
que fica encoberta pela pretensão de absoluto da história oficial.
Uma pesquisa genealógica por excelência se define por uma pesquisa da
proveniência e da emergência. A primeira mostra o jogo das forças, a maneira como
elas lutam umas contra as outras, desvelando os acidentes, os desvios, as marcas sutis e
singulares que se entrecruzam. A segunda mostra o ponto de surgimento de um
determinado estado de coisas, é a colocação em cena das forças. Desse modo, a aposta
de Foucault é no devir, na proveniência e na emergência mais do que na origem,
introduzindo a inconstância nos movimentos da história. (FOUCAULT, 1979a/2006).
É nesse sentido que a genealogia se orienta em direção ao que Foucault
(1976a/1999) chama de insurreição dos saberes sujeitados, referindo-se tanto a
conteúdos históricos que ficaram subjugados no interior de sistemas globais, quanto a
saberes que foram desqualificados como não científicos, os saberes de baixo, o saber
das pessoas: singulares, como o do louco, do doente. É apostando nas reviravoltas do
saber, combatendo a centralização do poder no funcionamento de um discurso
científico, totalitário e englobador que se faz um trabalho genealógico.
35
“Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais,
descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica
unitária que pretendia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um
conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria
possuída por alguns. As genealogias não são, portanto, retornos positivistas
a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata. As genealogias são,
muito exatamente, anticiências”. (FOUCAULT, 1976a/1999, p.13-14).
Podemos entender então o trabalho do genealogista como voltado para a produção
de diferenças, para as contigencialidades, as construções e interpretações sempre
provisórias. Procura, enfim, trazer para o primeiro plano a dimensão do enfrentamento e
as configurações que daí emergem.
Foucault (1976a/1999) é bastante enfático quando cita a psicanálise como
exemplo de institucionalização do discurso científico – ao lado da universidade, do
aparelho pedagógico e do aparelho político -, tendo se tornado, em sua opinião, uma
rede teórico-comercial. E continua, defendendo que “é exatamente contra os efeitos de
poder próprios de um discurso considerado científico que a genealogia deve travar o
embate” (p.14)
Para este autor, fica claro que a psicanálise se constituiu como uma teoria
totalitária, envolvente e global, assim como o marxismo. E, para ele, a única
possibilidade de ela contribuir como um instrumento de crítica, como propiciadora de
“reviravoltas de saber”, é quando seu discurso se suspende e se distancia de uma
unidade teórica. A cada retomada de sua totalidade, um efeito de freada (FOUCAULT,
1976a/1999, p.10).
Para dialogarmos com Foucault nesse ponto seria preciso empreender uma análise
da história da psicanálise, para além-Freud, o que ultrapassa em muito os limites desta
tese. Propomos-nos aqui a uma análise circunscrita ao pensamento freudiano, de
inspiração histórico-genealógica - nesse sentido concebido por Nietzsche e Foucault,
cujo olhar é sempre perspectivo e não totalitário, que visa marcar os acidentes, as
descontinuidades, os tropeços, os embates.
Visamos com isso uma leitura da psicanálise freudiana no movimento de seu
discurso, considerando seus embates com o contexto sócio-histórico que a situa e
analisando as marcas de continuidade e ruptura em relação a esse paradigma totalitário a
que se refere Foucault. Sem negligenciar, é claro, os efeitos que essas matizações
36
exerceram na produção de saber sobre a subjetividade. Pretendemos, assim, enfatizar as
contradições e ambigüidades constitutivas do discurso freudiano, evitando concebê-lo
como um sistema de pensamento fechado a um conjunto de conceitos invariantes.
Freud sem sombra de dúvida não foge à regra de seu tempo. Dentro dos
parâmetros da modernidade não abriu mão da pretensão de fazer ciência. No entanto, a
originalidade de seu pensamento em muitos momentos extrapolou os estatutos
científicos levando-o a explorar domínios para além dos limites da cientificidade, na
busca de uma outra racionalidade para o saber psicanalítico. Certamente não foi sem
conflito que isso se deu pois, se lhe dedicamos uma leitura atenta observamos seus
avanços e recuos em direção à tradição moderna da razão, da ciência e da biopolítica.
Tendo então em vista o solo histórico em que se constituiu a emergência da
psicanálise, a partir da leitura foucaultiana da modernidade e de seu método
genealógico, procuraremos abordar o pensamento freudiano como um campo aberto de
discursividade, mais do que como uma teoria universal do sujeito. É apostando nas suas
descontinuidades que acreditamos poder encontrar caminhos para uma leitura da
produção subjetiva na contemporaneidade.
Seguiremos agora com nossa incursão no pensamento de Foucault, a fim de
contextualizar o advento da modernidade e da própria psicanálise.
2.2. A concepção de poder, saber e subjetividade em Foucault
O pensamento de Foucault é atravessado por uma concepção de poder inovadora.
Nele, não há uma teoria do poder. Ao contrário, é para romper com uma teorização
alicerçada nos cânones da justiça, do direito, do contrato e da soberania que este autor
propõe uma nova visada do poder.
A tradição jurídico-política da soberania que data da Idade Média marcou as
sociedades ocidentais com a elaboração de uma teoria do direito que visava, em última
instância, legitimar o poder do soberano. De acordo com a teoria jurídica clássica do
poder, praticada pelos filósofos do século XVIII, o poder era um direito que algumas
pessoas possuíam como um bem e que só poderia ser transferido mediante um contrato.
Essa concepção do poder foi constitutiva da idéia de soberania que instaurava múltiplas
37
formas de dominação, muitas vezes disfarçada, em nome dos direitos legítimos do
soberano e da obrigação legal da obediência. Nesse modelo, que serviu como parâmetro
para a construção das democracias parlamentares no momento da Revolução, o poder é
individualizado em um sujeito (figura do soberano), centralizado em uma unidade
(Estado) e regido pela lei (FOUCAULT, 1976a/1999).
Foucault opera um corte nessa montagem trazendo à tona o problema da
dominação e sujeição, praticados, ainda que disfarçados, pelo campo do direito. Seu
objetivo é justamente “curto-circuitar a linha geral da análise jurídica ou se desviar
dela” (FOUCAULT, 1976a/1999, p.32). O projeto em questão visa ressaltar as relações
de dominação que perpassam o poder, as táticas e os operadores de sujeição que
fabricam sujeitos. Há um deslocamento do poder como fonte da soberania (poder que
emana de um sujeito/aparelho de Estado) para uma análise do poder como relação
(relações de poder que constituem sujeitos).
É no intuito de dar conta dessa nova acepção do poder que Foucault recorre à
teoria da guerra como o princípio de análise das relações de poder, aludindo ao
enfrentamento de forças estabelecido em um embate bélico.
Para Foucault não há poder sem saber, os saberes integram poderes. Ele não
concebe o poder segundo a renúncia, sob modelo repressor, mas sim como produtor,
construindo e agenciando subjetividades. O homem exerce poder, mas não o tem, ou
seja, o poder é um exercício nunca uma propriedade, visto que Foucault localiza-o na
força e não no indivíduo ou numa instituição. É um exercício de forças não localizado,
que passa tanto por dominantes como por dominados. É constituinte, da ordem do afeto
e da produção. É difuso, atravessa toda a sociedade e se efetua em determinadas
instâncias como, por exemplo, na família, pelo pai e pela mãe; na escola, pelos
professores, enfim, nas diversas instituições que constituem o foco de Foucault em sua
análise genealógica do poder sobre as disciplinas, nosso próximo passo.
Nesse sentido, na concepção foucaultiana não existe um sujeito prévio,
responsável por suas ações e paixões, são estas que o constituem, através de um
processo. O saber e o poder, enquanto dispositivos, agenciam um conjunto de práticas -
onde no seu interior são produzidos afetos e estímulos -, cujo efeito é produtor de
subjetividade. Em outras palavras, os saberes enquanto prática produzem uma maneira
de falar e uma maneira de perceber, definindo assim uma determinada subjetividade. É
38
nesse sentido que não há sujeito prévio, este advém pela prática discursiva, se
constituindo como efeito de seus enunciados. Ele é efeito de poder ao mesmo tempo em
que o faz circular. O sujeito, então, é assujeitado ao saber e aos discursos de um
determinado contexto.
Desta maneira, o sujeito universal, absoluto da metafísica cartesiana é, no texto
foucaultiano, destituído por um sujeito imanente à linguagem. Não existe um sujeito,
mas a configuração de vários sujeitos, mais especificamente de diversas formas de
subjetivação (FOUCAULT, 1976b/1988) produzidas de acordo com os dispositivos de
saber e poder de uma sociedade.
Centraremos, então, nossa discussão em torno dos dispositivos de poder e saber da
modernidade que configuraram uma determinada concepção de corpo e subjetividade.
2.3. O poder soberano
Segundo Foucault (1976a/1999), a teoria clássica da soberania até o século XVII-
XVIII referia-se ao poder do soberano como um mecanismo de extorsão, dando-lhe
direito de apropriação em relação aos seus súditos, estabelecendo desta maneira o lema
de “fazer morrer e deixar viver”. O soberano era a figura que tinha o direito de “fazer
morrer”, tinha o poder de decidir sobre a vida e a morte de seus súditos, agindo sempre
em benefício próprio, de seus interesses exclusivos.
O discurso de sustentáculo desse mecanismo de poder era o do tipo filosófico-
jurídico, cuja função política se exercia em prol do fortalecimento da soberania e cuja
narrativa visava assegurar a ordem, enaltecendo e glorificando a figura central do poder:
o soberano.
Por volta do século XVII um período de revoltas, tanto aristocráticas quanto
populares, marcadamente na Inglaterra e na França, de contestação do poder régio,
introduziu uma fissura no referido discurso da ordem, da verdade e da lei. É nesse
ínterim que Foucault (1976a/1999) localiza o ponto de emergência de um novo
discurso, denominado histórico-político e, consequentemente, de descontinuidade
importante que marcará o advento da modernidade.
39
Trata-se de uma contra-história, que vai narrar a luta das raças, os embates, os
enfrentamentos, os jogos de triunfos e submissões, rompendo com uma consciência
histórica calcada na soberania e introduzindo outra marcada pela guerra permanente
como fundamento do poder e da política.
Disso decorre uma descentralização da universalidade jurídica, onde a concepção
de verdade é jogada para o plano das relações de força em combate, constituindo-se
como uma produção em permanente transformação.
É nesses termos que Foucault aborda o declínio do poder soberano e o
aparecimento de um discurso revolucionário que caracteriza os primórdios de uma
consciência histórica moderna. Esta foi marcada por um princípio de heterogeneidade,
uma vez que rompe com a identificação entre povo e soberano, elucidando uma
realidade de dominação, submissão e servidão no exercício da lei e do poder.
O discurso histórico-político permitiu, assim, pela primeira vez, analisar a tríplice
lei-soberania-poder em termos de relações de dominação de uns sobre os outros,
explicitando a guerra como uma característica marcante e permanente das relações
sociais. Juntamente a essa denúncia e crítica contundentes aos mecanismos de poder
soberanos assentados sobre um direito natural, assistiu-se a um movimento
revolucionário de descentralização do poder, deflagrado pela luta das raças contra o
assujeitamento. O momento era de insurreição e reivindicação pela inversão nas
relações de poder.
Dessa conjuntura acerca do poder, emergiu uma nova forma de fazer história
como um instrumento de luta, que se constituiu como um novo tipo de saber. E se
Foucault (1976a/1999) dedicou um curso inteiro (Em defesa da sociedade) a fazer o
elogio desse discurso é pelo potencial de descontinuidade e ruptura que ele reúne.
Segundo o autor, não poderíamos entender a política e a história dos dois últimos
séculos na ignorância do que foi a prática dessa contra-história. Compreendemos a
relevância dessa afirmação foucaultiana a partir dos desdobramentos desse
acontecimento em termos de mecanismos de poder na modernidade.
O que o autor nos aponta é que concomitantemente ao aparecimento desse novo
discurso seguiu-se, paradoxalmente, a estatização da guerra. O que significa que esta
deixou de perpassar inteiramente o corpo social para se concentrar como um poder de
40
Estado em nome da defesa da sociedade. Disso decorre, como bem pontua Foucault
(1976a/1999), o surgimento do exército como instituição.
As conseqüências imediatas foram a recentralização desse discurso em um poder
centralizador do Estado e a recodificação, no século XIX, da contra-história em torno de
uma luta da raça, desta vez no singular. Tornou-se evidente essa retomada do poder
pelo Estado como uma medida de contenção do que se manifestou enquanto apelo
revolucionário. O discurso plural da luta das raças se transformou progressivamente em
um racismo de Estado na virada dos séculos XIX-XX, assumindo uma perspectiva
francamente de cunho racista no sentido médico-biológico, sustentado pelas teorias pós-
evolucionistas.
Foucault aponta, assim, um deslocamento da guerra como instrumento de luta nas
relações de poder para uma noção de guerra como instrumento de defesa da sociedade
contra os perigos que emergem de seu próprio interior: a ameaça contra o patrimônio
biológico da nação. É através de um discurso da pureza da raça, em nome da luta pela
vida, que o Estado empreendeu a sua batalha pela retomada da soberania.
“(...) a soberania do Estado assumiu, tornou a levar em consideração,
reutilizou em sua estratégia própria o discurso da luta das raças. A
soberania do Estado transformou-o assim no imperativo de proteção da
raça, como uma alternativa e uma barragem para o apelo revolucionário,
que deriva, ele próprio, desse velho discurso das lutas, das decifrações, das
reivindicações e das promessas” (FOUCAULT, 1976a/1999, p.96).
Ao mesmo tempo em que se fez a emancipação de uma raça pura, de uma super-
raça versus uma sub-raça, como o trunfo maior para o exercício do poder, reimplantou-
se a ordem e a paz como fundamento da verdade, bem como princípio de
governabilidade soberana. A discursividade que operou a crítica do Estado foi
desmantelada, no século XVIII, pela assunção de um disciplinamento dos saberes num
campo que então emergiu como científico.
O progresso da razão deu margens para que os saberes polimorfos e heterogêneos
fossem homogeneizados por técnicas disciplinares que serviram para o silenciamento do
saber histórico, promovendo, no lugar deste, um saber de Estado, narrado, por sua vez,
pela já mencionada história oficial a qual Foucault problematiza em sua genealogia.
Os saberes foram organizados e hierarquizados em disciplinas, padronização
inexistente até o século XVIII. É desse policiamento disciplinar dos saberes que surgiu
41
a idéia de ciência, tão cara aos modernos, com a constituição de um estatuto e de uma
comunidade científica cercada de regras e normas, centralizada em um aparelho de
Estado.
Emerge um novo tipo de poder, diferente da forma tradicional da soberania, que se
configurou, segundo Foucault, como um instrumento essencial na implantação do
capitalismo industrial. Trata-se do poder disciplinar, que introduziu nas sociedades
ocidentais modernas uma nova mecânica do poder, voltada para a extração e produção
eficaz de força e de trabalho, tendo, por esse motivo, os corpos dos indivíduos como
meio de incidência e coerção. Essa nova configuração é claramente oposta a do poder
soberano que visava à exploração de bens e riquezas da terra, exercendo-se através da
figura física do soberano via tributos e obrigações.
Contudo, a teoria da soberania não desaparece do horizonte moderno, ela atua, ao
contrário, um papel fundamental na sociedade disciplinar, organizando os códigos
jurídicos da Europa do século XIX. O poder disciplinar encontra seu lastro num sistema
de direito público garantido por uma soberania de Estado, que permite mascarar as
técnicas de dominação disciplinares. A aliança entre soberania e disciplina levou ao que
Foucault nos aponta como um processo de democratização da soberania, associado a
uma disseminação do poder de dominação e coerção disciplinar.
“(...) uma vez que as coerções disciplinares deviam ao mesmo tempo
exercer-se como mecanismos de dominação e ser escondidas como
exercício efetivo do poder, era preciso que fosse apresentada no aparelho
jurídico e reativada, concluída, pelos códigos judiciários, a teoria da
soberania [...] Um direito de soberania e uma mecânica da disciplina: é
entre esses dois limites, creio eu, que se pratica o exercício do poder [...] O
poder se exerce, nas sociedades modernas, através, a partir e no próprio
jogo dessa heterogeneidade entre um direito público da soberania e uma
mecânica polimorfa da disciplina” (FOUCAULT, 1976a/1999, p.44-45).
Diante da inevitável fratura da soberania régia, representante máxima da soberania
divina e do direito natural, o dispositivo disciplinar é a nova face do exercício do poder
na modernidade.
O aparato disciplinar opera algumas transformações na economia do poder,
efetuando um deslizamento do campo do direito (lei) para o campo da norma, cuja
diretriz não é mais jurídica, mas biológica. A constituição de um aparelho de saber
científico possibilitou a construção de procedimentos de normalização e regulação
42
social. É na esteira desse processo de justaposição entre direito soberano e coerção
disciplinar que as ciências humanas encontram seu ponto de emergência. A medicina é
propriamente o saber que realizará tal articulação, resgatando a soberania de Estado
através de técnicas médico-normalizadoras. Avançaremos sobre esse ponto a seguir.
A queda do modelo soberano de governabilidade e a conseqüente mudança no
regime geral do poder é o que para Foucault demarca o nascimento da modernidade.
Neste ínterim, a vida torna-se a grande fonte de riqueza das nações, apontando para uma
transformação nos mecanismos de poder, os quais passam a empreender a gestão da
vida e sua multiplicação. A vida como fonte de riqueza dos Estados modernos, torna-se
um capital que será controlado pelos procedimentos de poder e saber sobre os corpos.
A vida e não mais a morte passa a ser o objeto do poder. Eis então o surgimento
do que Foucault chama de bio-poder, um poder sobre a vida, cujo lema se enuncia como
fazer viver e deixar morrer, contrapondo-se ao lema soberano fundado sobre a morte.
“Enquanto, no direito de soberania, a morte era o ponto em que mais
brilhava, da forma mais manifesta, o absoluto poder do soberano, agora a
morte vai ser, ao contrário, o momento em que o indivíduo escapa a
qualquer poder, volta a si mesmo e se ensimesma, de certo modo, em sua
parte mais privada. O poder já não conhece a morte” (FOUCAULT,
1976a/1999, p.296).
O contexto que gere essa mudança é marcado pelo ideal iluminista e progressista
característico de um momento histórico de tomada de poder do homem sobre a natureza,
assegurados pelas revoluções industrial e científica.
O poder assume a função de gerir a vida, e nesse sentido, abre-se a era de um bio-
poder. Esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir de duas formas principais,
denominadas de tecnologias do poder: anátomo-política do corpo humano e biopolítica
da população. A primeira relativa ao corpo humano enquanto máquina de produção e a
outra centrada sobre o corpo-espécie, servindo de suporte aos processos biológicos
(controle de natalidade, mortalidade, longevidade). A disciplina do corpo somada à
regulação da população, eis os pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização
do poder sobre a vida, o biopoder.
A tecnologia disciplinar, do final do século XVII ao decorrer do século XVIII, se
centrava no corpo individual se exercendo sob um sistema de vigilância e hierarquia.
43
Essa primeira tomada de poder se fez segundo um modo de individualização. Foucault
data a segunda metade do século XVIII como o aparecimento de algo novo, uma
segunda tomada de poder se configurou como massificante, orientando-se para uma
biopolítica da espécie humana.
Passaremos, então, para uma análise mais detalhada dessas duas tecnologias de
poder.
2.4. A disciplina
Foucault nos fala das sociedades disciplinares que caracterizaram os séculos
XVIII, XIX e atingiram seu apogeu no início do século XX, com a organização e o
funcionamento de grandes meios de encarceramento. No decorrer desses séculos as
disciplinas se tornaram fórmulas gerais de dominação. A Revolução Francesa e a
Revolução Industrial marcaram a passagem de um dispositivo de poder soberano para
um dispositivo de poder disciplinar, possibilitando que a modernidade se configurasse
através de uma nova forma de poder e governabilidade em oposição ao poder soberano
da Idade Clássica. Na sua leitura da tradição ocidental, Foucault demonstrou especial
interesse por esta descontinuidade histórica.
Para melhor contextualizar essa passagem vale ressaltar que a grande internação
foi uma criação institucional própria do século XVII, isto é, do poder soberano e da
época clássica, envolvendo uma medida econômica e uma precaução social. Os lugares
de internamento eram definidos pelos hospitais gerais, grandes asilos e casas de
detenção para onde eram relegados, junto aos condenados de direito, os vagabundos, os
miseráveis e os insanos. A tarefa da internação consistia em diminuir a ociosidade bem
como as fontes de todas as desordens, excluindo e banindo do convívio social aqueles
elementos considerados heterogêneos e nocivos ao grupo social.
É nesse momento que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da
incapacidade para o trabalho e da impossibilidade de integrar-se no grupo. A era
clássica apreendeu a loucura como desorganização da família, desordem social e perigo
para o Estado. O louco, por perturbar a ordem social terá seu lugar entre os muros do
hospital, ao lado dos demais excluídos sociais. O campo da alienação onde se baniu o
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louco foi então circunscrito pelo espaço do internamento. As casas de internação tinham
assim o intuito de ocultar a miséria e a loucura, retirando-as do campo social. Tudo o
que escapava à ordem soberana era excluído e submetido ao encarceramento, visto que
a ociosidade e a desrazão constituíam uma ameaça à verdade soberana.
A soberania caracterizou-se então por uma sociedade de banimento e exclusão,
tendo a lepra como doença modelo. O leproso foi visto dentro de uma prática de
rejeição, do exílio-cerca, formando uma massa que não tem muita importância
diferenciar, mas sim segregar. As novas casas que internaram os excluídos sociais se
estabeleceram dentro dos próprios muros dos antigos leprosários, segundo o mesmo
modelo de segregação social.
A disciplina, por sua vez, nasce do confinamento, mas substitui a exclusão que
visava à segregação pela prisão como meio de correção, vigilância e punição. Define-se
um poder disciplinar extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos
individuais.
Em Vigiar e punir Foucault (1975/1988) faz uma análise minuciosa do poder
disciplinar a partir do campo da criminalidade e das formas de punição, apontando para
a disciplina como dispositivo de poder e para a prisão como meio de efetuação desse
dispositivo. Foucault pensa a escola, o hospital, a família, a fábrica, todas as instituições
como prisão, meios de confinamento, que tem por meta ordenar, adestrar, organizar,
disciplinar os corpos de uma determinada sociedade. Assim se configura o papel das
instituições.
O traço característico da sociedade disciplinar é a produção em série de
indivíduos. A sociedade começa a se organizar em torno de pequenas células, que são os
próprios indivíduos, os quais são produzidos por um poder que lhes confere história,
identidade e memória.
A disciplina, segundo Foucault (1975/1988), é ortopédica, quer formar, ordenar no
tempo e no espaço, produzir indivíduos dóceis, que não oponham muita resistência. Por
esse motivo, a disciplina tem a prisão como modelo, pressupondo a correção, a
vigilância e a punição como meios estratégicos de poder. Nesse sentido, sua doença
modelo é a peste. Os indivíduos devem ter rosto, memória e identidade, devem ser
confinados em celas e vigiados. Como a peste pode atingir a qualquer pessoa, a
45
vigilância é constante. Esta é uma das características principais da disciplina e que se
difunde por todas as instituições.
Enquanto a lepra suscitou modelos de exclusão, segundo a forma geral da grande
internação, a peste suscitou esquemas disciplinares. Os pestilentos são diferenciados
individualmente de acordo com a intensificação e a ramificação de um poder que vigia e
controla. A lepra é marcada, a peste é analisada e repartida. Desse modo, o século XIX
aplica sobre o espaço de exclusão, onde o leproso era o habitante modelo, a técnica de
poder própria do quadriculamento disciplinar.
Portanto, o quadro que se estabelece na passagem do século XVIII para o século
XIX é de uma técnica de poder e de um processo de saber específicos. “Trata-se de
organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo, trata-se
de lhe impor uma ordem” (FOUCAULT, 1975/1988, p.135). O procedimento
disciplinar é, desse modo, tríplice: conhecer, dominar e utilizar. Para isso, vai se valer
do esquadrinhamento espaço-temporal, da vigilância e da normalização.
A disciplina organiza um espaço analítico, determina lugares para poder vigiar e
criar espaços úteis. Esse espaço disciplinar tende a individualizar os corpos, as doenças,
os sintomas, as vidas e as mortes (FOUCAULT, 1975/1988). O importante é distribuir
os indivíduos num espaço onde se possa isolá-los e localizá-los. Assim como o espaço o
tempo também sofre a ação disciplinar, é o que Foucault (1975/1988) chama de
quadriculamento cerrado do tempo, com vistas a constituir um tempo integralmente útil.
Depois de individualizar os corpos e colocá-los sob vigilância, é preciso impor-
lhes regras. Aparece, então, através das disciplinas o poder da norma. Segundo Foucault
(1975/1988), o normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, no corpo
médico, nos processos industriais. A regulamentação passa a ser um dos grandes
instrumentos do poder. São definidos graus de normalidade que têm o papel de
classificação, hierarquização e distribuição de lugares. Assim, a loucura também ganhou
um sentido disciplinar, sobre ela produziu-se um extenso saber e incidiu a norma,
caracterizando as doenças mentais.
46
O Panóptico de Bentham
27
é a figura arquitetural da composição desses
mecanismos disciplinares. Foucault (1975/1988) recorre a ele para demonstrar a
inscrição dos dispositivos disciplinares de saber e poder que anteriormente
descrevemos. Segundo o autor, o dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que
permitem ver sem ser visto e reconhecer imediatamente. O detento é visto, mas não vê,
é objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação, sendo esta a garantia da
ordem. O efeito mais importante do panóptico é induzir no detento um estado
consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do
poder.
O panoptismo reúne as principais características da disciplina: poder se exercendo
por confinamento, com as mais variadas funções (curar, tratar, educar,...), produzindo
indivíduos adestrados e corpos dóceis. A visibilidade constante inscreve uma forma de
vigilância permanente do poder sobre os corpos dos indivíduos.
Pode-se então falar de uma sociedade disciplinar que vai das disciplinas fechadas
(cidade pestilenta, por exemplo, que exigia uma espécie de “quarentena social”) até o
mecanismo generalizável do panoptismo.
Por fim, para Foucault (1975/1988),
“a disciplina não pode se identificar com uma instituição nem com um
aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que
comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos,
de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma ‘física’ ou uma ‘anatomia’ do
poder, uma tecnologia” (p.189).
Após a breve apresentação dessas técnicas e procedimentos, é preciso se debruçar
nesse corpo sobre o qual incide o peso da disciplina. Que corpo é esse?
2.5. Corpos dóceis
27
Para uma descrição completa do que é o Panóptico de Bentham remeto o leitor ao capítulo III de Vigiar
e Punir, onde Foucault (1975/1988) detalhadamente descreve tanto a arquitetura quanto o dispositivo
panóptico em geral. Apresento-o aqui apenas a título de exemplificação dos dispositivos disciplinares.
47
É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado, diz Foucault (1975/1988). Sob a ótica foucaultiana o
século XVIII teve grande interesse pelos esquemas de docilidade.
O corpo em qualquer sociedade é capturado por poderes que lhe impõem
limitações, proibições ou obrigações, porém Foucault aponta para algo novo na
sociedade disciplinar: o corpo é trabalhado detalhadamente, sobre ele se exerce uma
coerção sem folga, ininterrupta, constante. Nas suas palavras, “esses métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição
constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que
podemos chamar as disciplinas” (FOUCAULT, 1975/1988, p.126). Assim, a noção de
docilidade une ao corpo analisável o corpo manipulável.
A disciplina coloca como objetivo a eficácia da atividade do corpo, a sua utilidade
e, para tal, é necessário que ele seja dócil. A potência, que o dispositivo disciplinar
retira da capacidade e aptidão do corpo, é subjugada a uma relação de sujeição, ou seja,
a disciplina estabelece um elo de coerção e dominação sobre este.
“O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte
do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades,
nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação
que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil,
e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um
trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de
seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula, o recompõe (...) A
disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A
disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade)
e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)”
(FOUCAULT, 1975/1988, p.127).
Desse modo, o corpo é um campo de forças a ser explorado, a disciplina promove
a ortopedia desse corpo que se dá mesmo na sua concretude, na sua materialidade. Ela
impõe todas as suas técnicas e procedimentos sobre ele: esquadrinhamento do tempo e
do espaço, vigilância, norma, exame, e assim produz individualidades-célula e também
individualidades-organismo. Isso porque o poder disciplinar não tem por correlato
apenas uma individualidade analítica e celular, mas também natural e orgânica.
Joel Birman comenta sobre isso quando diz,
48
“A disciplina se realizaria sempre sobre a materialidade do corpo. Pode-se
mesmo afirmar que (...) o corpo seria efetivamente produzido pelas
disciplinas, sendo este o lugar e o espaço sobre o qual incide a gramática
capturante do olhar panóptico. O que estaria em questão, pois, seria o
corpo concebido como superfície e espacialidade, num posicionamento
constante de confronto com os outros corpos, em permanente
enfrentamento regulado sempre pela assimetria das forças em presença”
(BIRMAN, 2000b, p.63).
Desse modo, o corpo é o lugar por excelência para a dominação do poder. O
investimento político e detalhado do corpo se dá de forma minuciosa pela técnica
disciplinar, através de arranjos sutis de aparência inocente, mas de grande poder de
dominação. Observação minuciosa do detalhe para controle e utilização dos homens e
de seus corpos. Esse poder que incide nos corpos exerce-se como microfísica, de
maneira capilar, caracterizando a forma de poder disciplinar da modernidade.
2.6. Biopolítica
A problemática da biopolítica está presente no pensamento de Foucault desde sua
pesquisa sobre a medicina moderna que rendeu a publicação de O nascimento da
clínica, em 1963. Nesta obra o autor já esboça a idéia de biopoder ao tratar do projeto
de medicalização que produziu a modernização do social.
Contudo, foi no empreendimento de sua genealogia do poder que essa temática
retornou com maior densidade. A expressão biopoder aparece pela primeira vez em uma
conferência intitulada “O nascimento da medicina social” realizada no Instituto de
Medicina Social da UERJ, Rio de Janeiro, em outubro de 1974.
Desde então, essa questão foi sendo progressivamente trabalhada, especificamente
no último capítulo de A vontade de saber, “Direito de morte e poder sobre a vida”, em
1976, e como objeto de discussão nos cursos ministrados por Foucault no Collège de
France, tais como: Em defesa da sociedade (1976), Segurança, território e população
(1977-78), e Nascimento da biopolítica (1978-79).
Vimos que o surgimento da mecânica disciplinar se sobrepõe ao enfraquecimento
do poder de morte do soberano, o que para Foucault é o indício de uma profunda
transformação nos mecanismos de poder. O pano de fundo dessa mudança é o
49
aparecimento no século XVIII do fenômeno da população como problema econômico e
político, isto é, como fonte de riqueza das nações dos Estados modernos.
“O ajustamento da acumulação de homens à do capital, a articulação do
crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a
repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo
exercício do biopoder com suas formas e procedimentos múltiplos. O
investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de
suas forças foram indispensáveis naquele momento” (FOUCAULT,
1976b/1988, p.133).
O desenvolvimento do capitalismo esteve diretamente associado a uma estratégia
de gerenciamento do capital humano com fins econômicos. A produtividade econômica
depende direta e imediatamente da qualidade da população. Foi assim que a vida se
tornou o principal alvo das investidas do poder, constituindo-se como o potencial
máximo de riqueza a ser explorada. O poder se exerce, então, voltado para a
manutenção da existência biológica da população, com o encargo fundamental de geri-
la, multiplicá-la e protegê-la de perigos biológicos que porventura pudessem ameaçar
sua sobrevivência.
A biopolítica designa exatamente a entrada da vida nos cálculos do poder e a
produção de um dispositivo de poder-saber que regulamentará o controle e as
transformações da vida humana. É a essa manobra de uma política estrategicamente
voltada sobre a vida que Foucault (1976b/1988) se refere quando enuncia o limiar de
modernidade biológica de uma sociedade. “O homem, durante milênios, permaneceu o
que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o
homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”
(p.134).
Birman (2005a) ressalta que a biopolítica é há dois séculos um traço fundamental
da tradição social ocidental, constituindo-se como uma das marcas maiores da
contemporaneidade. Segundo ele, essa tecnologia de poder é a matriz epistêmica e
política que, através da medicalização, operou a modernização do Ocidente. Essa
tecnologia política sobre a vida teria aberto um novo campo de governabilidade, onde a
medicina assume uma posição estratégica na gestão dos corpos e dos seres vivos.
As condições de possibilidade de emergência dessa tecnologia política sobre a
vida se efetuaram com a constituição da população como valor de riqueza da nação.
50
Diante disso, as tecnologias de poder se voltaram para a normalização dos corpos, tendo
na biologia e na medicina os instrumentos necessários para o controle, o ordenamento e
a regulação do espaço social.
O lema do biopoder se enuncia como “fazer viver e deixar morrer”, contrapondo-
se ao lema “fazer morrer e deixar viver”, até então estabelecido pela soberania. O
biopoder chega para exercer um direito sobre a vida, com o imperativo máximo de
preservá-la e resguardá-la, em nome da população e de sua qualidade de vida. “A velha
potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora recoberta pela
administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (FOUCAULT, 1976b/1988,
p.131).
“Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no
político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só
emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai,
em parte, no campo de controle do saber e de intervenção do poder. Este
não estará mais somente a voltas com sujeitos de direito sobre os quais seu
último acesso é a morte, porém com seres vivos, e o império que poderá
exercer sobre eles deverá situar-se no nível da própria vida; é o fato do
poder encarregar-se da vida, mais do que da ameaça de morte, que lhe dá
acesso ao corpo. Se pudéssemos chamar ‘bio-história’ as pressões por meio
das quais os movimentos da vida e os processos da história interferem entre
si, deveríamos falar em ‘biopolítica’ para designar o que faz com que a vida
e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do
saber-poder um agente de transformação da vida humana” (FOUCAULT,
1976b/1988, p.134).
Essa segunda tomada de poder, que se sobrepõe à tecnologia disciplinar, se dirige
não ao homem-corpo, mas ao homem ser vivo, homem-espécie, configurando-se como
massificante, orientando-se para uma biopolítica da espécie humana. Nesse momento, a
atenção se volta para os fenômenos da população, tais como taxas de natalidade e
morbidade e para os efeitos do meio. A partir disso, a biopolítica vai extrair seu saber e
definir o campo de intervenção de seu poder. Tanto o mecanismo disciplinar de poder
(do corpo) quanto o mecanismo regulamentador (da população) são articulados entre si.
Atuam em níveis diferentes e por esse motivo não são excludentes.
A biopolítica estabelece mecanismos reguladores sobre a população, visando fixar
um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma homeostase entre seu crescimento e
as fontes de que dispõe. Trata-se, então, de levar em conta a vida, os processos
51
biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma
regulamentação.
O eixo central que vai produzir a articulação entre essas duas tecnologias de
poder, segundo Foucault, é a sexualidade, a qual se situa na encruzilhada entre corpo e
população. Ao mesmo tempo em que depende de um controle disciplinar,
individualizante, em forma de vigilância permanente; se insere em processos biológicos
amplos que se referem não mais ao corpo do indivíduo, mas à população. A sexualidade
depende, então, ao mesmo tempo da disciplina e da regulamentação.
É exatamente em torno da genealogia do dispositivo da sexualidade que Foucault
vai apontar, a partir do fim do século XVIII, para o surgimento dessa nova tecnologia
do poder que assume a função de gerir a vida, inaugurando a era de um biopoder. Este,
incumbindo-se a um só tempo do pólo do corpo e do pólo da população, tem por objeto
e objetivo a vida e se constitui como traço fundamental da tecnologia do poder do final
do século XIX até os dias atuais.
Trataremos agora da intersecção entre biopolítica e sexualidade que, através da
constituição de uma ciência do sexual no início do século XIX, implementou uma
política de melhoria da condição de vida da população.
2.7. Dispositivo da sexualidade e a organização nuclear da família moderna
A promoção da qualidade de vida da população, tão cara à biopolítica, passa
necessariamente pela regulação biológica da reprodução. Assim, o campo da
sexualidade torna-se o terreno fértil para a disseminação de estratégias de poder
voltadas para a produção de boas condições de saúde do patrimônio vivente.
Na sua história da sexualidade Foucault (1976b/1988), controversamente, nega a
hipótese de que nos três últimos séculos vivemos uma época de intensa repressão
sexual, da qual talvez ainda não estivéssemos completamente liberados na modernidade.
Ao contrário, sustenta a tese de que houve uma verdadeira explosão discursiva em torno
do sexo, acompanhada de uma multiplicação desse discurso no próprio campo do
exercício do poder. O capitalismo moderno teria inaugurado, segundo o autor, não um
período de libertação sexual, mas uma vontade de saber sobre a sexualidade que se
52
tornou uma das estratégias de controle dos indivíduos e da população, sendo esta a
novidade da sociedade moderna.
Segundo Foucault, essa vontade de saber relativa ao sexo desencadeou a partir do
século XIX, no ocidente moderno um projeto de discurso científico acerca de sua
verdade. Nesse ínterim, Foucault aponta que nossa sociedade constituiu uma scientia
sexualis, tentando ajustar o antigo procedimento da confissão (Ocidente cristão) às
regras do discurso científico. A sexualidade se constituiu como um campo a ser
explorado por tal projeto científico, visto que foi considerada como um domínio
penetrável por processos patológicos, solicitando intervenções terapêuticas e de
normalização, um campo de significações a decifrar, segundo o autor.
Como exemplo do nascimento dessa discursividade, Foucault (1976b/1988)
aponta para a evolução da pastoral católica e do sacramento da confissão. A Contra-
Reforma se dedicou, em todos os países católicos, a acelerar o ritmo da confissão anual.
A nova pastoral postula que o sexo não deve ser mencionado sem prudência, mas tudo
sobre ele deve ser dito. O sacramento da confissão tenta impor regras meticulosas de
exame sobre si e aponta para a importância da penitência a todas as insinuações da
carne: pensamentos, desejos, deleites. Até o final do século XVIII, a pastoral cristã e a
lei civil fixaram a linha divisória entre o lícito e o ilícito. O sexo dos cônjuges era
carregado de regras e recomendações. A relação matrimonial e o sexo estavam sob
estreita vigilância.
Ainda que permeadas pelo aspecto repressivo, essas práticas inauguraram um
discurso sobre o sexo. Para Foucault, a sexualidade moderna se forma em grande parte
com a pastoral cristã.
O século XVIII foi permeado pela necessidade de regular o sexo por meio de
discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição. É nesse momento que
Foucault data o surgimento da população como problema político e econômico, sendo
necessário analisar as taxas de natalidade, a idade do casamento, a freqüência das
relações sexuais, a maneira de torná-las fecundas ou estéreis, a incidência das práticas
contraceptivas. O Estado tinha a preocupação de saber o que se passava com o sexo dos
cidadãos e o uso que dele faziam. Difundiu-se, então, uma teia de discursos, saberes e
práticas que investiram o sexo e incitaram-no.
53
A partir daí, emergiram inúmeras discursividades: medicina, psiquiatria,
psicologia, pedagogia, que criaram dispositivos para ouvir, observar, registrar e
normalizar o sexo. Essa atenção em torno da sexualidade Foucault entende como se
ordenando em função de uma preocupação elementar: proporcionar uma sexualidade
economicamente útil e politicamente conservadora; em termos gerais, esta é a
preocupação do biopoder.
A função do poder exercido não é só o da interdição, mas o do adestramento (um
regime médico-sexual foi implantado sobre o espaço familiar) e o da regulamentação
(especificação de milhares de sexualidades aberrantes). O poder toma a seu cargo a
sexualidade e o corpo sexual, tornando o campo da sexualidade inscrito nos registros do
biopoder. O corpo foi intensificado e valorizado como objeto de saber e como elemento
das relações de poder.
Segundo Birman,
“A transformação da natureza e dos corpos, pela medicalização insistente e
pela higiene ativa do espaço social, se ordenou uma das estratégias
fundamentais do Estado moderno. Nesse contexto, a sexologia se
constituiu inscrevendo-se no fundamento desse projeto político da
modernidade. Enfim, nessa perspectiva, o biopoder e a bio-história foram
dispositivos meticulosamente produzidos no campo desse projeto político”
(BIRMAN, 2000b, p.66).
O domínio do sexo passa do registro da culpa e do pecado para um regime do
normal e do patológico, configurando-se como um campo de fragilidade, sobre o qual
incide a sexologia centrada em uma nosografia própria. A biopolítica faz do sexo um
negócio de Estado, operando, assim, um deslocamento da sexualidade do domínio da
religião para o domínio médico. Diz-nos Foucault (1976b/1988) que “...a tecnologia do
sexo, basicamente, vai se ordenar a partir desse momento, em torno da instituição
médica, da exigência de normalidade e, ao invés da questão da morte e do castigo
eterno, do problema da vida e da doença. A ‘carne’ é transferida para o organismo”
(p.111).
Assistiu-se, então, a essa multiplicação de discursos referindo-se às condutas, às
normas, às doenças, às perversões, o que levou Foucault à hipótese de que a sexualidade
era objeto de uma scientia sexualis, produzida, incitada e implantada nos corpos dos
indivíduos.
54
“Muito mais do que um mecanismo negativo de exclusão ou de rejeição,
trata-se da colocação em funcionamento de uma rede sutil de discursos,
saberes, prazeres e poderes; não se trata de um movimento obstinado em
afastar o sexo selvagem para alguma região obscura e inacessível mas, pelo
contrário, de processos que o disseminam na superfície das coisas e dos
corpos, que o excitam, manifestam-no, fazem-no falar, implantam-no no
real e lhe ordenam dizer a verdade” (FOUCAULT, 1976b/1988, p.70-71).
Essa ciência do sexo que se constituiu, em nome da biopolítica, no ocidente
moderno rompeu com a ars erotica característica das sociedades orientais. Nestas, a
verdade e o saber sobre o sexo residem no campo da experiência do prazer e do
erotismo. Mais do que uma ciência que dita as regras do sexo, trata-se, na tradição
oriental, de uma arte a ser transmitida através de uma prática de iniciação entre mestre e
discípulo.
Ao contrário dessa experiência da arte do erotismo, o discurso científico do sexo
definiu uma norma do desenvolvimento sexual e, ao fazer isso, nomeou o campo dos
desvios, das perversões e das sexualidades periféricas à norma. Instaurou-se o campo
da patologia e da anormalidade sobre o qual se exercia uma prática médica a fim de
controlar e regular as sexualidades desviantes ou improdutivas.
Nesse contexto de insistente e infindável exame sobre a sexualidade as crianças,
os loucos e os criminosos se tornaram as figuras centrais a serem interrogadas e a
fazerem a confissão de suas sexualidades polimorfas e marginais.
Esse processo de medicalização da sexualidade não se deu sem efeitos. Foucault
(1976b/1988) pontua transformações marcantes no campo da medicina que operaram a
separação de uma medicina específica do sexo da medicina geral do corpo. Aquela
tornou possível isolar o instinto sexual suscetível de apresentar anomalias constitutivas
e processos patológicos, inaugurando o grande domínio médico-psicológico das
perversões.
Foi nas trilhas de um projeto biopolítico, que visa à produção da qualidade da
população, que as atenções e os interesses políticos se voltaram para o sexo, já que este
seria o germe da produção da vida. A análise da hereditariedade ocupou um lugar
fundamental de rastreamento do potencial patológico da espécie contido no sexo. Foi
assim que o projeto médico-político se ocupou da gestão dos casamentos, nascimentos,
do sexo e sua fecundidade.
55
Nesse ideário higienista de limpeza e purificação do sexo, implementado por uma
medicina das perversões e pelas teorias da hereditariedade e degenerescência,
constituiu-se um programa de eugenia e um discurso sobre a raça. O nazismo
configurou-se como um ponto de chegada da ação da biopolítica voltada para o
extermínio da degenerescência e para a purificação da raça.
Foucault (1976b/1988) nos aponta que essas estratégias de poder-saber que se
desenvolveram sobre o sexo, e que possibilitaram na sua radicalidade a política nazista
que acabamos de mencionar, fizeram parte de um dispositivo histórico de produção da
sexualidade. Isto quer dizer que esta não foi concebida como um dado da natureza a ser
conhecido e dominado, mas como uma superfície de intensificação do corpo e dos
prazeres e de incitação ao discurso, manipulável por uma rede de dispositivos de saber
e de poder.
Foi assim que, segundo o autor, as sociedades ocidentais modernas inventaram o
dispositivo da sexualidade, articulando-o e sobrepondo-o ao antigo dispositivo da
aliança. Este regulava o corpo social por um conjunto de regras e leis (como, por
exemplo, o sistema do matrimônio, o sistema de transmissão de bens), que estabelecia o
licito e o ilícito na trama das relações. Neste caso, o papel econômico da circulação das
riquezas era garantido pelo direito.
O dispositivo da sexualidade exerce igualmente uma importante função
econômica, contudo, por outras vias, através de um controle global da população que
passa pelo investimento ostensivo do poder sobre o corpo e a sexualidade. Esse
dispositivo se instalou historicamente a partir do sistema da aliança e se exerce
apoiando-se nele, sem jamais substituí-lo.
No decorrer do século XIX, houve a generalização desse dispositivo de
sexualidade, dotando todo o corpo social de um corpo sexual. O ponto de eclosão desse
dispositivo se fez na família, que se tornou ao mesmo tempo lugar de afetos e
sentimentos - foco permanente de incitação à sexualidade - e instância de controle. A
família forma a base deste dispositivo, com o papel de fixar e construir o suporte da
sexualidade, tornando-se a peça-chave que sustenta a permuta com as leis da aliança.
Para tanto, foi preciso pôr em prática uma nova organização da família, na
passagem do século XVIII para o século XIX. Os laços entre os personagens da cena
familiar, como marido e mulher, pais e filhos se tornaram mais estreitos e se
56
intensificaram. Os pais se constituíram nos agentes do dispositivo da sexualidade e
foram apoiados por toda uma aparelhagem médica, pedagógica e psiquiátrica para
regular as relações de aliança. Desse modo, a família se abriu, segundo Foucault
(1976b/1988), desde a metade do século XIX, a um exame infinito. Em suas palavras,
“a família é o cristal no dispositivo da sexualidade: parece difundir uma sexualidade que
de fato reflete e difrata. Por sua penetrabilidade e sua repercussão voltada para o
exterior, ela é um dos elementos táticos mais preciosos para esse dispositivo” (p. 105).
Juntamente com essa eclosão da sexualidade na família, a interdição do incesto
torna-se regra indispensável. O incesto ocupa lugar central nessa configuração familiar,
aparecendo como altamente proibido. Diz-nos Foucault (1976b/1988) que o Ocidente
mostrou grande interesse na interdição do incesto, vendo nele um universal social e um
dos pontos de passagem obrigatório para a cultura, além de nele encontrar um meio de
se defender das implicações do dispositivo da sexualidade posto em ação. O limiar de
toda a cultura é o incesto interdito e a sexualidade está então sob o signo da lei e do
direito. Essa interdição vem justificar, nos parâmetros do autor, a extensão autoritária e
coercitiva do dispositivo da sexualidade.
Dessa forma, o projeto biopolítico de promoção de uma população saudável e
bem-educada repercutiu na ordem familiar, levando-a a constituição nuclear típica da
burguesia moderna organizada em torno dos pais e filhos, em contraste com a
organização extensa em que co-habitavam muitas gerações. Esse modelo de família
nuclear
28
e de prole reduzida possibilitou a implantação das estratégias do biopoder no
coração da produção social.
Duas das estratégias a partir das quais a política do sexo avançou compondo
técnicas disciplinares com procedimentos reguladores foram a sexualização da criança e
a histericização das mulheres (FOUCAULT, 1976b/1988). Uma vez que a criança
representava o potencial de riqueza da nação, o interesse pelo corpo infantil logo
ganhou destaque, já que se constituía como a matéria-prima ideal para a moldagem de
uma população bem qualificada.
Através de uma campanha pela saúde da raça, o corpo da criança foi objeto de
cuidados com a sexualidade precoce, para evitar o risco de comprometer a saúde dos
futuros adultos e, logo, da sociedade vindoura. A instituição pedagógica se ocupou de
28
Veremos, no quinto capítulo, que variações no discurso biopolítico incidiram sobre a forma de
organização da família, que começou a se transformar na segunda metade do século XX.
57
fazer as crianças e os adolescentes falarem sobre sexo, construindo dispositivos
institucionais e estratégias discursivas para alertar contra os perigos físicos e morais da
atividade sexual infantil. O que Foucault (1976b/1988) denominou de pedagogização
do sexo das crianças se refletiu na declarada guerra contra o onanismo, que por tanto
tempo aterrorizou a educação das crianças.
Às mulheres coube o exercício de uma tríplice função: a fecundidade, garantidora
da reprodutibilidade do espaço social; a gestão do espaço familiar; e a maternidade,
responsabilidade biológico-moral em relação à saúde de seus filhos. Ao cumprir com os
papéis de reprodutora, gestora e mãe, seu corpo foi saturado de sexualidade,
representando uma ameaça patológica que logo se tornou alvo de intensa medicalização.
Foi assim que surgiu a imagem da “mulher nervosa”, signo máximo de sua
histericização.
Birman (2007a, 2007b) nos lembra que a figura da mãe passou por transformações
nesse contexto biopolítico. Ela passou, de uma função meramente reprodutiva que tinha
na família extensa, a ocupar um lugar fundamental na família nuclear moderna, no que
se refere a um investimento nos filhos e na administração do espaço doméstico. Ela
recebeu a incumbência de gerir a vida privada, bem como a responsabilidade pelo
intermédio com as instâncias públicas como a medicina e a escola.
Com isso a mulher por um lado ganhou um poder na esfera social antes inexistente
e, por outro, vivenciou a perda de experimentar outras posições desejantes que não
fossem a da maternidade. Para este autor (BIRMAN, 2007a, 2007b, 2007c) foi esse
processo histórico construído sobre a figura da mulher que condicionou a sua marca de
nervosidade, cuja resultante maior foi a expressão histérica. Freud teria então se
debruçado sobre essa condição feminina na modernidade, seja pelo viés da histeria, seja
pelo viés da depressão e da melancolia.
Correlativamente a essa construção histórica da mulher-mãe, a figura da criança
ganhou uma especificidade inaugural, tornando-se o alvo dos cuidados da mãe, do
médico e do educador. Tudo isso porque as crianças passaram a representar “a
materialidade do capital simbólico dessa riqueza futura” (BIRMAN, 2007a)
29
. Os pais
se sacrificariam, então, em nome dessa promessa de futuro lançada sobre as crianças e
os jovens. Esse arranjo do social pautado por tal organização familiar seria “a única
29
Número de página ainda desconhecido, artigo inédito e no prelo.
58
garantia possível para a constituição do capital simbólico do Estado, para a produção da
boa qualidade da população, signo maior da riqueza da nação” (BIRMAN, 2007a)
30
.
Uma vez que a qualidade da vida dos adultos estava depositada na qualificação
das crianças e dos jovens, estabeleceu-se um modelo psicobiológico e
desenvolvimentista que especificou e hierarquizou as particularidades das fases da vida.
Foi assim que se delineou, na passagem do século XVIII para o século XIX, a
demarcação da infância e da adolescência, em contraste com a idade adulta e a velhice.
Birman (2007b) ressalta que o investimento social massivo sobre as duas primeiras
etapas da vida humana se deu, além da medicalização, pela universalização do ensino
obrigatório. O autor (BIRMAN, 2007c) enfatiza o avanço em larga escala desse
processo ao lembrar que estes são os pilares que avaliam o Índice de Desenvolvimento
Humano, o qual define a riqueza das nações, e que se formula como discurso político
internacional pela Organização das Nações Unidas.
Birman (2007b) enuncia ainda que essas modificações da família moderna - onde
a mulher foi reduzida à figura de mãe às custas de um sacrifício de seu erotismo e a
criança elevada à condição de soberana como símbolo do futuro e da riqueza da nação -
foram resultantes de um processo histórico e biopolítico em curso na modernidade.
Essas configurações da família e dos laços sociais, marcados que foram pela biopolítica,
foram cruciais na constituição de certas formas de subjetivação na modernidade.
É exatamente nesta intersecção entre o contexto biopolítico moderno e a
constituição da subjetividade que estamos interessados. Nos próximos capítulos
analisaremos as repercussões desse solo histórico no discurso freudiano e na abordagem
de Freud sobre a subjetividade inscrita neste contexto.
Antes disso, examinaremos ainda como a medicina se constituiu no instrumento
fundamental do dispositivo de saber-poder em questão, bem como as críticas de
Foucault à inserção da psicanálise no horizonte biopolítico moderno.
2.8. O nascimento da medicina moderna e sua função estratégica no projeto
biopolítico
30
Idem.
59
Nessa teia de discursos que se construiu em torno do sexo, por ele se situar no
centro do problema econômico e político da população, Foucault enumera distintos
campos do saber que colocaram em ação tal discursividade, como: a demografia, a
justiça penal, a pedagogia, a psiquiatria, a psicologia, a biologia, a medicina, entre
muitos outros aparelhos e instituições que multiplicaram a obstinação de conhecê-lo e
regulá-lo.
A medicina foi sem dúvidas, para Foucault (1976b/1988), o instrumento
fundamental da biopolítica, uma vez que foi pela medicalização da vida e do social que
as estratégias biopolíticas avançaram no ocidente moderno. O imperativo da higiene
encabeçado pela medicina, com a promessa de eliminação dos tarados e degenerados,
assegurava o vigor físico e a pureza moral do corpo social, caucionando assim a
urgência biológica e vital do projeto político então em vigor.
Sobre o nascimento da medicina moderna, Foucault (1979b/2006) defende a tese
de que, ao contrário do que se poderia supor, o capitalismo não conferiu a ela um caráter
individualista, centrado em uma relação entre médico-doente. O desenvolvimento do
capitalismo, no final do século XVIII e início do XIX, implantou um controle sobre a
sociedade baseado na socialização do corpo como força de produção e de trabalho.
Controle corporal mais do que ideológico. O autor enuncia claramente que “foi no
biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista.
O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política”
(FOUCAULT, 1979b/2006, p.80).
Contudo, Foucault (1979b/2006) salienta que o corpo como força de produção não
foi o primeiro alvo do poder médico, a preocupação com a promoção da saúde e do
nível de força de trabalho útil dos indivíduos se deu posteriormente, já na segunda
metade do século XIX. A formação da medicina moderna no Ocidente se constituiu
primeiramente em âmbito social e teve seu primeiro desdobramento como medicina de
Estado, na Alemanha, início do século XVIII. Isso se deu pela necessidade de
fortalecimento e aperfeiçoamento da força estatal. Antes do desenvolvimento da
medicina clínica e científica do século XIX, a medicina moderna se iniciou com o
máximo de estatização e socialização, justamente para atender às demandas do Estado e
da qualidade de seu corpo social.
60
Logo em seguida, a medicina social teve outros desdobramentos nos demais países
europeus. Na França, final do século XVIII, esteve ligada à urbanização, processo que
suscitou inquietações políticas quanto à saúde da população à medida que o
desenvolvimento urbano crescia. A preocupação com a higiene pública, com as
condições de vida e dos meios de existência levou à constituição da medicina urbana.
Esta tinha como objetivo o controle da circulação dos elementos essenciais para manter
o bom estado de saúde dos indivíduos, como o ar e a água. A organização da cidade,
inclusive da sua arquitetura, ocorreu a partir de um sistema médico-político de
vigilância e esquadrinhamento do espaço social, que definia a distribuição da população
de acordo com as condições higiênicas apropriadas. A noção de salubridade é
correlativa a esse contexto.
O que Foucault (1979b/2006) nos chama a atenção com essas análises sobre o
nascimento da medicina moderna é de que, efetivamente, o desenvolvimento científico
do saber médico não é decorrente de uma medicina privada centrada no olhar particular
do médico para o doente, mas sim do desenvolvimento da medicina coletiva, social e
urbana. A análise do organismo individual é conseqüência de um olhar primeiro sobre
as condições e os efeitos do meio-ambiente sobre o organismo. A partir disso, o autor
extraiu a importância da medicina urbana no século XVIII para a medicina científica
que nasceu no século XIX.
Com o exemplo inglês, Foucault (1979b/2006) demonstra que a medicina dos
pobres e operários, ou seja, a medicina da força de trabalho foi o último alvo da
medicina social. Primeiro a medicalização do Estado, em seguida da cidade, para então
dos trabalhadores. Com o desenvolvimento industrial foi necessário um controle médico
das classes pobres para evitar a transmissão de doenças e perigos biológicos às classes
mais ricas, e também para torná-los mais aptos e úteis ao trabalho. O sistema inglês
criado no século XIX foi original ao ligar uma medicina assistencial dos pobres a uma
medicina administrativa de saúde pública e, ainda, a uma medicina privada para os que
podiam pagá-la. Esse foi o modelo que permitiu a complexificação do
esquadrinhamento médico entre os séculos XIX e XX.
Junto a isso, Foucault (1979c/2006) analisa que a relação entre hospital e medicina
só se deu em meados do século XVIII quando aquele foi medicalizado. Antes disso, o
hospital era um local de assistência aos pobres e moribundos. Para que ele se tornasse
61
um lugar de prática médica foi preciso que fosse objeto de mecanismos disciplinares
que dessem conta da desordem e dos focos nocivos de doenças que ali se proliferavam.
Além disso, se o hospital médico esteve condicionado a uma disciplinarização de seu
espaço, a intervenção médica também se transformou, aplicando-se não só à doença,
mas ao meio em que ela se desenvolve.
A origem do hospital médico se dá a partir do ajuste desses dois processos. A
transformação do hospital se opera, assim, de um instrumento de assistência para um
instrumento de cura. A partir dessa comunhão entre o hospital e o exercício da atividade
médica, aquele passou a ser além de um espaço terapêutico, um lugar de formação de
saber. O saber do médico é transferido dos livros para a prática hospitalar. Nisso reside
o nascimento da idéia de clínica, de onde advém a possibilidade de isolar o indivíduo
como o alvo do saber e da prática médica, dentro do espaço disciplinado do hospital.
Porém, nesse mesmo espaço, foi possível tratar simultaneamente de uma grande
quantidade de indivíduos, permitindo a constatação de fenômenos patológicos comuns a
toda a população. Segundo Foucault (1979c/2006), foi graças à tecnologia hospitalar
que tanto o indivíduo quanto a população puderam ser contemplados com a produção de
saber e a intervenção médicas.
Portanto, a governabilidade dos vivos propiciada pelas novas técnicas
disciplinares de poder da aurora da modernidade foi a condição de possibilidade do
início da medicina moderna. Esta se deu, com efeito, em um duplo registro de inserção:
coletivo, como medicina do social através da regulação do espaço com vistas a
promover condições de reprodução; e individual, como medicina clínica. Esse processo
de medicalização que se disseminou em grande escala operou o deslocamento da idéia
de saúde para a idéia de cura. O exemplo do hospital revela bem esse deslizamento do
assistencialismo à maquina de curar, do ideário da salvação religiosa para o ideário da
cura médica.
A medicina é o saber-poder que exercerá os mecanismos disciplinares e
regulamentadores, produzindo seus respectivos efeitos, visto que incide tanto sobre o
corpo (organismo) quanto sobre os eventos aleatórios da multiplicidade biológica
populacional.
A intersecção entre a política de higiene pública posta em prática pela medicina
social e a medicina clínica sobre o corpo forjou, na conjunção desses registros, as
62
categorias de normal, anormal e patológico. E foi a partir dessas categorias que todo o
tecido social foi esquadrinhado e qualificado, numa constante perseguição aos
classificados como anormais, para que não recaíssem no pólo da patologia.
O efeito dessa tecnologia do poder centrada na vida é uma sociedade
normalizadora. Foucault (1976b/1988) aponta que, com o desenvolvimento do
biopoder, a lei passa a se exercer cada vez mais como norma, e o sistema jurídico passa
a funcionar integrado a aparelhos reguladores. Quando se visa encarregar-se da vida não
se trata mais de ameaçá-la com a morte, mas de construir mecanismos de regulação,
controle, correção, e avaliação. A norma cumpre essa função fundamental de regulação
a partir de uma série de aparelhos normativos.
A partir do fim do século XVIII, a racionalidade científica passou a dominar o
universo tecnológico, sob a insígnia de uma ciência da vida. A medicina é uma das
racionalidades modernas que ofereceu um saber sobre a vida, produzindo um arsenal
normativo sobre o qual nasceram e se referiram posteriormente as demais ciências
humanas. De modo que a medicina moderna se constituiu na matriz antropológica das
ciências humanas. Estas se orientaram pelas categorias de normal, anormal e patológico,
então construídas pelo dispositivo de normalização médica (FOUCAULT, 1963/1980;
BIRMAN, 2002, 2005).
Além disso, a medicina moderna instaurou, através da noção de clínica, a primeira
forma de saber sobre o particular no ocidente. A técnica do exame constituiu-se como
instrumento fundamental do exercício da clínica sobre o particular. Foi na esteira desse
processo disciplinar e normalizador dos corpos e da sociedade, caucionado pela
medicina, que as ciências humanas produziram seu saber, sempre referido à idéia
médica de clínica e de exame.
Birman (2005a) pontua para duas perspectivas opostas no horizonte da prática
médica: uma vitalista e outra mortalista. O nascimento de uma ciência da vida se
constituiu progressivamente a partir da dinâmica dos corpos de Leibniz, fundada na
idéia de excitabilidade, irritabilidade e força vital do organismo. As pesquisas em
fisiologia de Claude Bernard, que marcaram a medicina experimental do século XIX, se
apoiaram nesta visão vitalista do ser humano. A noção de organismo era uma categorial
fundamental nesse paradigma. A hipótese clínica era de que normas vitais
homeostáticas regulavam a relação do organismo com o seu meio-ambiente. Em última
63
instância, o organismo era produtor de uma normatividade intrínseca a sua condição de
vida, que o fazia se adequar às condições variáveis do meio. Neste modelo vitalista, a
vida seria uma afirmação prévia do ser. A vida é dada e se impõe como força vital
(CANGUILHEM, 2002).
Podemos considerar que a noção de instinto se situa na esteira desse contexto,
sendo a instintividade a expressão máxima da afirmação da vida. Essa concepção
marcou indelevelmente o campo da biologia e da psicologia. Foucault (1974-
1975/2001) nos mostra bem que a psiquiatria se tornou uma clínica a partir da idéia de
um instinto criminal.
Em uma outra perspectiva, Bichat com suas pesquisas no campo da anátomo-
patologia e da histologia enunciou que “a vida é o conjunto de forças que lutam contra a
morte” (FOUCAULT, 1963/1980). Com este enunciado ele destronou o privilégio da
categoria de vida e de auto-regulação do organismo. A morte seria a tendência
primordial do organismo, contra a qual a vida deveria lutar. A partir dessa visão
mortalista da medicina Foucault, ao contrário de Canguilhem, demonstrou que não
existe uma norma inerente à vida que regule internamente o organismo. A norma é
sempre uma produção social para disciplinar e regular os corpos. Nesse sentido, ela é
produto da tecnologia disciplinar de poder característica da modernidade. Para Foucault,
então, a medicina moderna participa neste dispositivo como um instrumento de
normalização dos corpos e da população.
Birman (2005a) salienta essa diferença entre uma concepção vitalista da
normatividade ontológica do vivo e outra de cunho mortalista, onde a vida não seria a
resultante de uma tendência originária do organismo, mas uma construção contínua
pautada pela normalização disciplinar. Veremos posteriormente as conseqüências
dessas duas vertentes para a concepção da subjetividade.
A medicina desempenha, como vimos, um papel estratégico no projeto
biopolítico, e isso se deu pelo estatuto científico que adquiriu na modernidade. Nas
sociedades modernas, onde o capital humano é a fonte maior de riqueza dos Estados,
não é de se admirar que ela tenha alçado tamanha importância, já que opera diretamente
na promoção da saúde, no incremento e na melhoria do gênero humano.
Entretanto, todo esse processo de normalização e de regulação de normalidades
posto em prática pelo saber médico, no âmago de um projeto progressista de
64
gerenciamento e aperfeiçoamento humano, conduziu a desdobramentos desastrosos para
a história da humanidade. Estamos considerando o acontecimento do nazismo e do
discurso eugênico e racista que assolou o ocidente no século XX.
Foucault (1976a/1999) introduz uma questão capital no que tange a esse paradoxo.
Ele se pergunta como um poder que visa fazer viver pode deixar morrer, em outros
termos, como um sistema político centrado no biopoder exerce a função da morte. Para
ele, o racismo é a chave de inteligibilidade dessa contradição,
“Em outras palavras, tirar a vida, o imperativo da morte, só é admissível, no
sistema do biopoder, se tende não à vitória sobre os adversários políticos,
mas à eliminação do perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente
ligado a essa eliminação, da própria espécie ou da raça. A raça, o racismo, é
a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de
normalização” (FOUCAULT, 1976a/1999, p.306).
O racismo, apoiado nas teorias biológicas do século XIX (evolucionismo,
hereditariedade, degenerescência), cumpriu simultaneamente duas funções na
biopolítica: qualificar as raças biologicamente boas que devem viver e as inferiores que
devem morrer; e disseminar uma guerra biológica onde o que vale é “se você quer viver,
é preciso que o outro morra”, sendo essa a garantia de uma vida mais sadia e pura. O
direito de matar é assegurado pelo racismo, e assim o antigo direito soberano de morte
se atualiza em pleno biopoder.
Foucault (1976a/1999) indica, com perspicácia, que a eliminação da vida não se
deu apenas pelo assassinato, mas também indiretamente pela exposição ao risco de
morte, senão pela morte política, pela rejeição e expulsão, aludindo provavelmente à
eliminação social. Agamben (2002a) retoma de Foucault essa versão mortífera da
biopolítica ao propor o termo tanatopolítica, e ao tratar do registro da vida nua ao qual
fomos reduzidos em uma política de estado de exceção
31
.
A sociedade nazista foi o exemplo mais espetacular dos novos mecanismos de
poder que emergiram no século XVIII. Para Foucault (1976a/1999), ela foi sustentada
pelo poder disciplinar e pelo biopoder, levando o desenvolvimento destes ao paroxismo:
“mas, ao mesmo tempo que se tinha essa sociedade universalmente previdenciária,
universalmente seguradora, universalmente reguladora e disciplinar, através dessa
31
Retomaremos essa questão mais adiante, no quinto capítulo da tese.
65
sociedade, desencadeamento mais completo do poder assassino, ou seja, do velho poder
soberano de matar” (p.310).
Contudo, Foucault (1976a/1999) adverte que esse jogo entre os mecanismos do
biopoder e o direito soberano de matar está efetivamente inscrito no funcionamento de
todos os Estados e, portanto, o problema continua sendo o mesmo em nosso tempo. Não
é difícil reconhecer que o atual discurso da genética se acopla com assustadora
semelhança à política eugênica de combate à degeneração em nome da melhoria da
“condição humana”.
Birman (2005a) salienta que o campo da biopolítica hoje assume novas direções,
como a do genoma, das novas tecnologias reprodutivas como a clonagem terapêutica e
reprodutiva, o tratamento de doenças degenerativas do sistema nervoso e de anomalias
genéticas. O discurso eugênico adquire novos contornos, fundado sobre novos saberes
sobre o vivente, principalmente pela genética, que abre um campo de possibilidades
nunca antes visto. Para o autor, essas práticas se situam numa perspectiva preventiva
que adquiriu um desdobramento espetacular na contemporaneidade, mas que se inscreve
na mesma matriz biopolítica do século XIX, com a finalidade de produzir uma
população mais sadia como fonte de riqueza das nações.
Suas análises apontam para uma decorrente transformação nas formas de filiação e
familiarismo e para a abertura de um novo horizonte biopolítico, que passa a se
preocupar com a gestão dos novos laços sociais que vão se produzir.
Nessa direção, interessa-nos pensar nas conseqüências que o avanço dessa matriz
biopolítica produz no campo da subjetividade contemporânea. Voltaremos a essa
questão posteriormente.
Faz-se necessário agora procedermos à interlocução desse contexto sócio-político
da modernidade, que descrevemos a partir de Foucault, com a psicanálise.
2.9. Foucault e a psicanálise
A partir dessa analítica do poder, Foucault assinala uma dupla inserção da
psicanálise. Primeiramente ela assume uma posição singular no final do século XIX,
operando uma ruptura em relação ao sistema perversão-hereditariedade-degenerescência
66
em pleno vigor. Ainda que inserida em uma tecnologia médica do instinto sexual, ela
teria rompido em sua abordagem o vínculo do sexo com a hereditariedade e,
consequentemente, com o racismo e a eugenia, decorrentes diretos de tal vinculação.
Foucault (1976b/1988) afirma e reconhece que “na grande família das tecnologias do
sexo a psicanálise foi, até os anos 40, a única que se opôs, rigorosamente, aos efeitos
políticos e institucionais do sistema perversão-hereditariedade-degenerescência”
(p.113).
Além disso, a psicanálise tratava de percorrer a sexualidade dos indivíduos fora do
controle familiar e do modelo neurológico, colocando em questão as relações familiares
na análise da sexualidade. Numa época em que o incesto é perseguido, a psicanálise
empenha-se em revelá-lo como desejo, assumindo a tarefa de eliminar os efeitos que a
interdição induziu, permitindo articular em discurso o desejo incestuoso. Assim, a
psicanálise provocou uma revolução do sexo, uma luta anti-repressiva; porém, e aí
incide a crítica de Foucault (1976b/1988), a possibilidade de seu sucesso se dava no
próprio dispositivo da sexualidade e não fora ou contra ele. Por dois motivos: a
psicanálise se inscreve no dispositivo da confissão (colocação do sexo em discurso),
assim como reinscreve a sexualidade no sistema da lei, conferindo à sexualidade e ao
desejo a lei como princípio (lei da aliança, da consangüinidade interdita, do Pai-
Soberano).
A psicanálise está totalmente integrada ao projeto de vincular a técnica da
confissão ao discurso científico, visando à produção de uma verdade sobre o sexo e, em
última instância, sobre o sujeito. A incorporação da confissão se deu através da prática
constante e insistente do exame de si mesmo, da narrativa de si. A referência à
psicanálise a esse respeito é explícita no texto foucaultiano (FOUCAULT, 1976b/1988):
“...confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos, confessam-se
passado e sonhos, confessa-se a infância” (p.59).
Nesse sentido, os métodos psicanalíticos da hipnose e da associação livre teriam
contribuído amplamente a esse imperativo clínico de “fazer falar”. Sobrepondo-se à
revelação da confissão, a decifração do que ela enuncia é indispensável na tarefa de
obter a verdade. Mais uma vez a psicanálise corrobora com o método da interpretação,
colocando do lado do intérprete-analista o portador da verdade daquele que fala-
67
confessa, inserindo-se, assim, nessa matriz confessional de produção da verdade sobre o
sexo.
Nesta medida, para Foucault, Freud não teria contribuído para uma nova
racionalidade sobre o sexo, mas pertenceria à mesma linha de racionalidade de incitação
da sexualidade, sob a injunção de dizer a verdade sobre a mesma.
Foucault (1976b/1988) critica Freud apontando seu reforço a uma ciência do sexo,
denunciando seu conformismo e as funções de normalização que a psicanálise exerceu
em decorrência disso. Considera ilusório o fato de que falar sobre o sexo, suspendendo
suas interdições através da palavra, teria algum efeito libertador. O efeito é, ao
contrário, de reforço e lucro sobre essa sexualidade “ilegítima”. Em tom ácido enuncia:
“... no mais seguro e mais discreto espaço entre divã e discurso: ainda um murmúrio
lucrativo em cima de um leito” (FOUCAULT, 1976b/1988, p.11).
A psicanálise aparece, por todas essas filiações ao dispositivo da sexualidade,
vinculada ao projeto de se fazer uma ciência do sujeito, alojando-se nesse espaço de
manobra.
“(...) o projeto de uma ciência do sujeito começou a gravitar em torno da
questão do sexo. A causalidade no sujeito, o inconsciente do sujeito, a
verdade do sujeito no outro que sabe, o saber, nele, daquilo que ele próprio
ignora, tudo isso foi possível desenrolar-se no discurso do sexo. Contudo,
não devido a alguma propriedade natural inerente ao próprio sexo, mas em
função das táticas de poder que são imanentes a tal discurso”
(FOUCAULT, 1976b/1988, p.68-69).
O nascimento da psicanálise debruçado sobre a histeria seria um dos pontos
reveladores de sua matriz histórica vinculada a tais tecnologias do poder. A saturação
sexual do corpo da mulher, sua histericização, foi campo fértil para a entrega de seu
corpo às praticas médicas de normalização. E a psicanálise mesmo deslocando essa
problemática do campo neurológico, encerra-a por outro lado sob o domínio do desejo e
da lei da interdição do incesto, propondo uma técnica para eliminar os efeitos
patogênicos de tal interdição.
A critica foucaultiana questiona o modelo psicanalítico de constituição psíquica
centrada na lei da interdição (Complexo de Édipo e castração) e na renúncia, fundantes
da hipótese repressiva. Assim sendo, a psicanálise é vista por Foucault (1976b/1988)
como mais uma das práticas normativas de regulação da sexualidade, e, nesse sentido, à
68
serviço do biopoder. Desse modo, a psicanálise em sua emergência histórica não
poderia se dissociar da generalização do dispositivo da sexualidade e do poder
característicos das sociedades da virada do século XX.
Conforme Birman (2006a), a psicanálise é presença constante nas obras de
Foucault. Porém, diferentemente da forma teórica e conceitual com que a psicanálise se
apresenta em Derrida e Deleuze, em Foucault esta se insere sempre de modo indireto,
como uma problemática que atravessa os diversos temas de investigação sobre os quais
este autor se debruçou.
Birman (2006a) realiza uma cartografia da presença da psicanálise na obra de
Foucault, pontuando em cada uma das grandes questões por este pesquisadas a
problematização crítica daquela. Assim, ele nos remete à inscrição crítica da psicanálise
na arqueologia da loucura (1961), na arqueologia do Nascimento da clínica (1963), na
problemática da linguagem e do discurso (1966, 1969), na da punição e criminalidade
(1974) e na da sexualidade (1976), enfim, em todas as temáticas de investigação de
Foucault.
O projeto filosófico de Foucault foi pautado pela crítica à categoria de sujeito
como fundamento, que embasou a tradição filosófica da modernidade centrada nas
categorias de sujeito e verdade. Ele enfrentou essa problemática em todos os grandes
temas de sua pesquisa, os quais giraram sempre em torno de questões da atualidade.
Nesse sentido, a noção de descentramento do sujeito foi de fundamental importância
para que Foucault operasse uma descontinuidade em relação à referida tradição. Foi
assim que ele relativizou a idéia de verdade desde então inscrita na pretensão de
absoluto dos conceitos da filosofia, forjando a noção de jogos de verdade tecidos no
embate de forças de toda produção social (BIRMAN, 2002a).
Descentrar a subjetividade dos registros do eu e da consciência seria deslocar o
sujeito como fundamento e considerá-lo como produção. Esse é o movimento disruptivo
que a obra foucaultiana opera, apontando que a tradição da razão, centrada no sujeito e
na verdade absoluta e universal, é apenas um dentre muitos jogos de verdade produzidos
em nossa sociedade.
O insistente diálogo com a psicanálise se insere nesse contexto crítico. Ela se
tornou um foco permanente de interesse para Foucault na medida em que operou uma
ruptura com o discurso filosófico do sujeito ao enunciar o célebre descentramento do
69
“eu que não é o senhor de sua própria casa”. Foucault (1979d/2006) pôde fazer o elogio
à psicanálise como descentramento do sujeito, através do conceito de inconsciente e do
lugar conferido à linguagem no processo de produção da verdade. A psicanálise seria,
então, uma modalidade discursiva, um acontecimento discursivo que operou um corte
importante na história do pensamento, e não uma ciência.
Para Foucault, essa força disruptiva da psicanálise reside na lógica do inconsciente
que ela formula. Em uma aquecida entrevista com psicanalistas, Foucault (1979d/2006)
insiste que o importante não são os Três ensaios sobre a sexualidade, mas a
Interpretação dos sonhos.
“...a grande originalidade de Freud não foi descobrir a sexualidade sob a
neurose. A sexualidade já estava lá, Charcot já falara dela. Sua
originalidade foi tomar isso ao pé de letra e edificar a partir daí a
Traumdeutung, que é algo diferente da etiologia sexual das neuroses”
(FOUCAULT, 1979d/2006
, p.266).
Quando indagado por Jacques-Alain Miller se a história da sexualidade culmina
com a psicanálise Foucault (1979d/2006) responde que certamente sim, identificando na
psicanálise um ponto culminante da relação entre sexo e verdade.
Quando a psicanálise se volta para o discurso da sexualidade como constitutiva da
verdade do sujeito ela se aproxima, na leitura de Foucault, da tradão da filosofia do
sujeito que este sistematicamente criticou. Dessa forma, o autor realizou diferentes
leituras da psicanálise, nas quais se confrontou com os enunciados da mesma, conforme
o modo com que eles se aproximavam ou se distanciavam de seu projeto filosófico.
Foucault mostra que Freud teve seu lugar em um dispositivo geral de poder que se
instalou, por razões econômicas e históricas, no decorrer do século XVIII. Estabelece,
assim, a inscrição da psicanálise na matriz biopolítica e disciplinar da modernidade.
Consideramos que essa análise foucaultiana da modernidade nos oferece
elementos estratégicos para uma leitura do discurso freudiano e da constituição dos
processos de subjetivação na atualidade, tendo em vista os desdobramentos históricos
de tal matriz biopolítica. Esse percurso por sua genealogia nos permite um olhar em
perspectiva da psicanálise freudiana, o que nos possibilita uma leitura desta enquanto
discursividade marcada historicamente pelos acontecimentos de seu tempo.
70
A pesquisa a que nos propomos se refere, assim, ao pensamento de Freud como
discurso perpassado por cortes disruptivos e transgressivos. A própria emergência
histórica da psicanálise ocorreu a partir do reconhecimento de que o sujeito é cindido
por uma divisão fundamental, que instaura o campo da conflitualidade, constitutivo do
psiquismo. O fundamento da existência psíquica, dos diferentes registros que compõem
dinâmica, econômica e topicamente o aparelho psíquico, reside na divisão e na
diferença que os fundam.
Veremos a seguir, no próximo capítulo, outros pontos inovadores de ruptura e
descontinuidade freudiana além desta concepção inaugural do inconsciente, que marcou
indelevelmente a história do pensamento moderno.
71
CAPÍTULO III
FREUD ENTRE CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES
Diante desse panorama moderno apresentado por Foucault e de sua crítica à
inserção da psicanálise nesse contexto, trata-se nesta pesquisa de considerá-los como
ponto de partida para uma leitura histórico-genealógica da psicanálise, mais
particularmente da metapsicologia freudiana. Isso significa tomá-la como um discurso,
traçando os pontos de conjunção e disjunção em relação aos operadores da biopolítica.
A psicanálise nasce no seio de uma problemática do poder específica do contexto
moderno e capitalista, que por sua vez conferiu condição de possibilidade à emergência
de seu saber. E se ela nasce como uma tentativa de resposta ao mal-estar subjetivo
moderno, decorrente de uma sociedade marcada pela incidência das estratégias
biopolíticas, vimos a partir de Foucault que em alguns momentos ela se compromete
com o reforço da implantação de uma racionalidade científica à serviço do biopoder.
Neste sentido, estamos interessados em refletir exatamente nestes momentos de
continuidade e descontinuidade, de filiação e de ruptura a esse projeto de modernidade
biológica descrito por Foucault. Freud enquanto pensador moderno oscilava entre o
reforço e a resistência. É justamente nessa posição de embate, de enfrentamento,
posição paradoxal por excelência, que pensamos residir a riqueza do pensamento
freudiano.
3.1. Tempos inaugurais da psicanálise
72
A formação médica de Freud foi marcada de forma especial pela influência de
Brücke, fisiologista renomado, que coordenava o laboratório de fisiologia da
Universidade de Viena na qual Freud estudava. Seu trabalho fazia parte do abrangente
movimento científico mais conhecido como a Escola de Medicina de Helmholtz, que
reunia o pensamento dos principais fisiologistas e professores de medicina alemães e da
qual Brücke era um dos integrantes.
O aspecto dinâmico da fisiologia de Brücke cativou Freud, de modo que em pouco
tempo Freud foi aceito por ele como pesquisador de seu instituto. Atrás do microscópio
Freud executava um trabalho eminentemente ligado à histologia das células nervosas.
Assim, influenciado pelo trabalho de Brücke e centrado no estudo do corpo anatômico,
rapidamente sua pesquisa neurológica aderiu à anatomia e à histologia.
Ainda durante o curso de medicina, Freud encontrou outro foco de interesse: as
aulas de psiquiatria de Meynert – considerado o maior anatomista do cérebro da sua
época -, campo novo para ele, já que se dedicava quase que exclusivamente às pesquisas
de laboratório. Assim se constituíram suas principais influências na sua formação como
médico.
Freud se formou e iniciou sua carreira no campo da neurologia porém, ligado ao
instituto de Brücke e à pesquisa histológica de laboratório, em detrimento da prática
clínica. Segundo Jones (1975), Freud tinha aversão à prática médica, não alimentava
entusiasmo em tratar os doentes nas enfermarias ou em estudar as doenças deles.
Somente a partir de um conselho do próprio mestre Brücke, abandonou a carreira
teórica no campo da fisiologia para se dedicar à prática clínica, em função de sua
precária situação econômica.
Freud decidiu, então, levar a vida como clínico e ingressou no Hospital Geral de
Viena. Durantes os três anos que viveu e trabalhou no hospital passou um longo período
pelo departamento de doenças nervosas. Com suas publicações histológicas e clínicas
Freud se afirmou como neuropatologista, sempre implicado com pesquisas para
descobrir novos métodos para o exame do tecido nervoso.
No período entre 1885-1886 Freud realizou um curso com Charcot, na Salpetrière
em Paris. Charcot era considerado um mestre que como nenhum outro dominava o
mundo da neurologia. Esse encontro possibilitou a aproximação de Freud com o campo
73
da histeria inaugurando um período em que seu interesse centrou-se definitivamente na
neuropatologia deslocando-se, em seguida, para a psicopatologia. Fascinado pela
psicopatologia ministrada por Charcot, abandonou de vez o microscópio para tornar-se
um clínico.
As inovações desse período se davam principalmente no campo anátomo-clínico,
cujo referencial permitia provar a alteração patológica e estabelecer sua localização.
Esse era o pano de fundo a partir do qual a neuropatologia procurava dar conta das
manifestações neuróticas e histéricas.
A teorização científica acerca da histeria, no século XIX, apostava em uma
etiologia de fundo nervoso, ou seja, a histeria seria a resultante de uma alteração do
sistema nervoso, de caráter degenerativo, que teria na hereditariedade o seu fundamento.
O traumatismo de base neuropatológica era estreitamente vinculado às formações
sintomáticas histéricas numa relação de causa e efeito. Embora as alterações nervosas
permanecessem desconhecidas ao meio médico da época, acreditava-se que seu
esclarecimento se daria através dos avanços nas futuras pesquisas.
Ao estudar com Charcot e começar a se interessar pela histeria, Freud fez a sua
entrada por esse viés da neuroanatomia e, já em 1888
32
, cogitou também explicações
neurofisilógicas, dando as primeiras pistas de que provavelmente o modelo
neuroanatômico fosse insuficiente para dar conta da patologia histérica.
Com seus estudos sobre as afasias, Freud (1891/1987) definitivamente revelou que
sua preocupação não residia na localização anatômica, visto que o corpo anatômico era
incapaz de elucidar os problemas psíquicos. Ao deslocar a nosologia da afasia da
anatomia para a psicologia, confirmou a falência do modelo neuroanatômico para suas
investigações, partindo então em busca de uma anatomia psíquica.
Os estudos freudianos sobre a histeria não fogem a essa regra, ao contrário, fazem
parte desse mesmo contexto de questionamento dos modelos existentes. Freud volta-se
então para o domínio dos processos psíquicos, localizando aí a matriz da problemática
dos histéricos e afásicos. Embora tivesse se tornado um competente neurologista, nunca
se dedicou à clínica neurológica, interessando-se especialmente pelo campo da
psicopatologia clínica.
32
“Histeria” (FREUD, 1888/1996). Texto escrito por Freud para a enciclopédia Villaret.
74
Emerge, então, o período de constituição da psicanálise, onde a relação entre o
psíquico e o anátomo-fisiológico começa a ser elucidada. A relação entre corpo e
psiquismo é inerente ao nascimento da psicanálise. Freud vai explorar os domínios
psíquicos, inserindo o psiquismo dentro de um campo de representações com o qual o
corpo mantém estreita relação.
Para constituir o campo específico da psicanálise, Freud começa a questionar
certos estatutos de corpo e psiquismo já estabelecidos pelo saber científico.
Progressivamente, põe-se a operar rupturas com esses modelos que o conduzirão a
concepções propriamente psicanalíticas de corpo e subjetividade. Isso se dá de forma
bastante complexa e gradual na obra freudiana.
A grande contribuição de Charcot ao campo de estudos da histeria foi ter
postulado que a lesão histérica era dinâmica e funcional e não propriamente anatômica
como se acreditava. Além da possibilidade de ser hereditária, introduziu a possibilidade
da lesão histérica ser decorrente de acidentes mecânicos, configurando assim um tipo
especial de histeria traumática ao lado das hereditariamente adquiridas.
Freud volta desse aprendizado com o mestre Charcot profundamente mobilizado
pela questão da histeria e estabelece uma clínica de doenças nervosas em Viena. Seu
contato com Charcot o leva a escrever o artigo Algumas considerações para um estudo
comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas (FREUD, 1893a/1996), o
qual revela-se como um marco entre os escritos neurológicos e psicológicos freudianos.
Nesse artigo, Freud desvincula os sintomas histéricos de lesões neurológicas e
aproxima-os de uma etiologia psíquica, sem qualquer relação com lesões do sistema
nervoso. Sua hipótese é de que a alteração implicada nos fenômenos histéricos não se
refere a uma lesão no sistema nervoso adquirida hereditariamente ou por um trauma
mecânico, e sim à abolição associativa de determinadas representações. Desse modo,
desloca a problemática histérica da lógica da anatomia e da fisiologia para a lógica da
representação. Freud (1893a/1996) salienta que “a histeria se comporta como se
anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta” (p.212). A
anatomia, então, não é a causa das manifestações histéricas, mas está à disposição para a
emergência de seus sintomas conversivos.
“A histeria ignora a distribuição dos nervos. (...) Ela toma os órgãos pelo sentido
comum, popular, dos nomes que eles têm: a perna é a perna até sua inserção no quadril,
75
o braço é o membro superior tal como aparece visível sobre a roupa” (FREUD,
1893a/1996, p.212). Essa concepção popular do corpo é regida pelas percepções (táteis,
visuais) que as pessoas têm e a partir das quais vão conceber uma imagem (uma
representação) de seus corpos, o que independe de um conhecimento aprofundado de
anatomia. Assim, a alteração implicada na histeria
33
vem respeitar essa concepção
popular, denotando a determinação psíquica, e não orgânica, do sintoma histérico.
Sendo assim, o corpo da histérica colocava em xeque o saber médico-científico da
época, revelando-se ser mais do que uma organização anátomo-fisiológica, mostrando-
se num “dar-se a ver” insistente que não se calava diante das intervenções médicas
clássicas.
Este foi o terreno sobre o qual Freud se debruçou, apontando para uma dimensão
que não se reduzia ao organismo nem a sua manipulação. Nasce, então, a concepção de
um outro corpo, que vai sendo significado à medida que vai possuindo uma história. É a
assunção da noção de corpo representado. Ao escutar os sintomas histéricos e detectar a
partir deles a presença de uma outra cena, de um outro corpo, Freud rompe com os
pressupostos do campo médico-científico vigente e lança-se na construção da
especificidade do saber psicanalítico.
Estabelece-se, então, a primeira ruptura freudiana com a escola de Charcot ao
substituir a etiologia nervosa da histeria por uma etiologia psíquica, retirando o corpo
histérico do plano exclusivamente biológico e conferindo-lhe um novo estatuto de corpo
representado (FREUD, 1893a/1996). Há um distanciamento de Freud do modelo
anátomopatológico e um movimento em direção a uma concepção propriamente
psicanalítica dos sintomas histéricos. Assim, o momento inaugural da formulação
freudiana é marcado por reformulações que configuram outros destinos à histeria.
O deslocamento de Freud da neuropatologia para o campo das representações e da
linguagem dos processos psíquicos revela uma descontinuidade fundamental da
psicanálise com a medicina. Dizer que a realidade psíquica não estava inscrita na
materialidade anatômica e neurológica foi o passo magistral de Freud que, há um só
tempo, rompeu com o discurso médico sobre a subjetividade e inaugurou um novo
33
A representação da parte do corpo afetada na histeria – vinculada ao trauma - perde a acessibilidade
associativa com as outras representações que constituem o eu, tornando-se inacessível à cadeia psíquica
associativa, mesmo que seu substrato orgânico esteja intacto.
76
campo de saber sobre a mesma. Desse modo, o nascimento da psicanálise foi
necessariamente marcado por uma crítica à medicalização.
Esse posicionamento crítico de Freud em relação aos postulados médico-
psicológicos de seu tempo é visível nos seus primeiros escritos, ainda pré-psicanalíticos
como seu estudo sobre as afasias, onde subverte completamente a forma de abordar e
compreender o funcionamento psíquico.
A psicologia empirista do século XIX sustentava a afirmativa de que os processos
psíquicos e os processos corporais transcorriam independentemente, de um modo
paralelo, mas sem recíprocas influências. Essa é a tese do paralelismo psicofísico,
doutrina evidentemente dualista, cujo objetivo principal é a negação da ação recíproca
entre corpo e alma (DORSCH, 1976).
Essa oposição foi introduzida na filosofia por Descartes, que caracterizava a alma
como uma substância, cujo atributo era o pensamento, e o corpo como uma substância
de natureza totalmente distinta, cujo atributo seria a extensão que ele ocupa no espaço.
As propriedades de extensão e de pensamento são caracterizadas como mutuamente
incompatíveis no pensamento de Descartes: uma coisa extensa é uma coisa não-
pensante e uma coisa pensante é uma coisa não-extensa. Daí advém o caráter incorpóreo
da mente na doutrina cartesiana (COTTINGHAM, 1995). Essa concepção marcou toda
a história da psicologia e tornou particularmente delicada a questão da união da alma e
do corpo.
Assim, a hipótese do paralelismo psicofísico se constituiu como um
desdobramento contemporâneo ao problema da dualidade da alma e do corpo instaurado
por Descartes. A idéia de uma correspondência não recíproca entre fenômeno psíquico e
fenômeno fisiológico levou a uma concepção restritiva de um epifenomenismo, isto é, a
consciência (equivalente, nesse modelo, aos processos psíquicos) como um fenômeno
acessório, ou melhor, como um epifenômeno dos processos nervosos, já que apenas
esses eram acessíveis à observação.
Essa concepção marcou também o campo da neuropatologia do século XIX, o que
podemos observar através dos estudos neurológicos sobre as afasias, centrados numa
concepção localizacionista de linguagem e de psiquismo (FREUD, 1891/1987). No
intuito de dar conta das modalidades clínicas de afasia a neuropatologia, através de
representantes como Broca, Wernicke e Meynert, definiu uma teoria localizacionista das
77
funções mentais, onde estas eram reduzidas à estrutura anatômica do cérebro. As
funções da linguagem eram concebidas como localizadas em centros cerebrais motores
e sensoriais. Uma lesão em uma determinada parte do cérebro ocasionava um
determinado tipo de afasia, de acordo com a função da linguagem comprometida.
Em linhas gerais, essa era uma concepção elementarista da linguagem, onde esta
se constituiria pela associação de unidades elementares (palavras). Estas eram
incorporadas pelo pólo sensorial do sistema nervoso (a partir dos órgãos do sentido
como audição e visão) aos centros cerebrais sensorial e motor da linguagem,
responsáveis, respectivamente, pela sonoridade das palavras e pela articulação motora
da linguagem. A dimensão mais complexa da linguagem, como o enunciado de
conceitos e a associação de idéias, era resultante da associação de tais unidades
elementares. Desse modo, a linguagem se constituiria como cópia do mundo das coisas,
a partir do registro de suas qualidades elementares nos diferentes centros cerebrais.
A relação entre corpo e psiquismo à luz dessa concepção elementarista da
linguagem fica clara com a teoria de Meynert, segundo a qual o corpo é projetado no
córtex cerebral através de uma projeção ponto a ponto, de modo que no cérebro existiria
uma cópia fiel da periferia do corpo.
Dentro dessa perspectiva, o processo psicológico da constituição de uma
representação é conseqüência (epifenômeno) do processo fisiológico de percepção,
fundando numa relação de causalidade – os eventos fisiológicos do sistema nervoso têm
como efeito os eventos mentais.
Diante de tal conjuntura, Freud (1891/1987) lança um estudo crítico das
concepções vigentes acerca da afasia, questionando seus pressupostos a fim de construir
uma nova leitura acerca da mesma. Para isso propõe, como conceito central, a noção de
aparelho de linguagem, ponto de onde parte para pensar uma nova teoria das afasias,
destituindo as bases teóricas da neuropatologia.
A crítica freudiana reside sobre tal concepção localizacionista das afasias e da
linguagem. Freud contrapõe uma concepção mais funcionalista dos distúrbios afásicos,
conciliando perturbação funcional com lesão localizada e, desse modo, transpondo a
hegemonia anátomo-topográfica da concepção neuropatológica. Supõe a
interdependência dos centros de linguagem, onde a função da linguagem encontra-se
fundada em complexos processos de associação que demandam a recíproca articulação
78
dos diferentes centros da linguagem, ou seja, o córtex cerebral seria capaz de abrigar
processos funcionais da linguagem.
Desse modo, Freud recusa a hipótese de uma projeção topográfica do corpo no
cérebro, substituindo-a por uma hipótese que considera a representação funcional. A
representação não seria uma cópia idêntica da sensação, mas sim o produto de um
processo dinâmico.
Para repensar a concepção de linguagem, Freud propõe a idéia de uma área de
linguagem que só poderia ser pensada em sua indivisibilidade. Apesar de ser definida
por centros corticais – sensório-auditivo, visual e motor – a função da linguagem exige
a concepção do território em sua integralidade. Assim, o aparelho de linguagem ganha o
estatuto de conjunto de trama de representações em associações, ao contrário da tese
elementarista que diferenciava representação e associação fundada na pretensa distinção
dos lugares nos quais elas se processariam.
De acordo com Birman (1991a):
“A concepção freudiana aponta para uma leitura combinatória da
linguagem, superando pois a concepção elementarista e criticando qualquer
realismo no campo da significação. Desta maneira, se formula também no
discurso freudiano uma nova modalidade de relação entre os registros do
corpo e o do psiquismo, que se realizaria sob a forma da representação.
Vale dizer, o psiquismo não é um simples epifenômeno mecânico do corpo,
como era concebido no modelo localizacionista da linguagem, nem é
constituído pela reunião dispersa de imagens das coisas, mas representa o
corpo e o universo das coisas segundo uma lógica específica” (p.105).
Nesse ensaio sobre as afasias, Freud construiu uma teoria da linguagem
atribuindo-lhe uma relevância que trouxe implicações para a concepção de psiquismo,
tanto que posteriormente, com a constituição do saber psicanalítico, o aparelho de
linguagem se reconfigura como aparelho psíquico (FREUD, 1895a/1996). Pensar o
psiquismo como aparelho de linguagem foi a primeira grande subversão freudiana em
relação ao instituído campo médico-científico.
Pelo viés da questão da linguagem, já nos primórdios de seu discurso, Freud
concebe uma forma própria e diferenciada de articulação entre corpo e psiquismo,
subvertendo, dessa forma, o dualismo cartesiano e seus derivados contemporâneos.
79
Psiquismo não é um epifenômeno do corpo, não se reduz ao somático, já que é fundado
pela linguagem como modelo da representação por excelência (BIRMAN, 1991a).
Essas novas concepções que Freud desenvolve sobre as afasias exerceram grande
influência na sua compreensão sobre os fenômenos histéricos (GABBI JR, 1991) e,
principalmente, sobre a concepção de corpo aí envolvida. É no estudo comparativo entre
paralisias motoras orgânicas e paralisias histéricas (FREUD, 1893a/1996), em que o
modelo pensado sobre as afasias é caracterizado pela representação mais do que pela
projeção, que Freud vai entender as paralisias histéricas. A natureza da “lesão” na
paralisia histérica reside em uma alteração de tipo funcional entre as representações e
não em uma alteração anatômica. Assim, a compreensão do fenômeno histérico se dá
pelas lesões dinâmicas, cujas perturbações são fixadas pela linguagem. Nesse sentido,
Freud “troca a anatomia pela linguagem enquanto universal para a sua teoria sobre a
histeria” (GABBI JR, 1991, p.197).
Desse modo, para entender afasia e histeria é preciso passar para o terreno dos
processos psíquicos – campo das representações e da linguagem. Podemos considerar
que nessa perspectiva o corpo não é mais um dado natural, um amontoado anatômico e
fisiológico que é projetado no córtex cerebral. Corpo e psiquismo são constituídos pelo
atravessamento da linguagem. Desde os estudos neurológicos, a problemática da
articulação corpo-alma já estava presente na obra freudiana e, desde então, Freud
conferiu encaminhamentos inovadores para essa questão, o que se tornou fundamental
para a constituição da psicanálise.
Em Tratamento psíquico Freud (1905[1890]/1996) igualmente trata da
importância da linguagem e da relação recíproca entre corpo e alma. Este artigo foi
datado de 1905 porém, em 1966 descobriu-se que Freud o escrevera em 1890, o que o
torna contemporâneo ao ensaio sobre as afasias e ao grupo de textos sobre hipnotismo e
sugestão. Este é um contexto importante, uma vez que visualizamos o esforço freudiano
em se distanciar de um modelo exclusivamente somático do psíquico, em franca
contraposição a uma concepção positivista sobre a enfermidade e o seu tratamento.
Freud (1905[1890]/1996) abre o artigo desfazendo um possível erro de leitura da
expressão tratamento psíquico como “tratamento dos fenômenos patológicos da vida
anímica” (p.271). Ele nos deixa bem claro que não é esse o sentido que pretende para
essas palavras. Esclarece que tratamento psíquico significa “tratamento que parte da
80
alma, tratamento – seja de perturbações anímicas ou físicas – por meios que atuam, em
primeiro lugar e de maneira direta, sobre o que é anímico no ser humano” (FREUD,
1905[1890]/1996, p.271, grifo nosso).
Freud reitera ao longo do texto que a origem desse tratamento reside em um
esforço em mobilizar as forças anímicas do paciente, promovendo condições psíquicas
propícias à cura do mesmo. Com isso diz estar remontando historicamente ao mais
antigo tipo de tratamento médico, pois os povos da antiguidade não tinham outro
recurso terapêutico senão por via psíquica. A magia, os banhos, a invocação de sonhos,
as poções eram terapias apoiadas no decorrente efeito anímico de tais práticas, cuja
eficácia estava diretamente relacionada à figura do médico, representante direto do
poder divino.
Freud se propõe, então, a resgatar o antigo poder mágico das palavras, afirmando
que estas são um dos meios através dos quais se pode atuar sobre a dimensão psíquica
do ser humano, elas são a “ferramenta essencial do tratamento anímico” (FREUD,
1905[1890]/1996, p. 271).
“Agora começamos também a compreender a “magia” das palavras. É que
as palavras são o mediador mais importante da influência que um homem
pretende exercer sobre o outro; as palavras são um bom meio de provocar
modificações anímicas naquele a quem são dirigidas, e por isso já não soa
enigmático afirmar que a magia das palavras pode eliminar os sintomas
patológicos que se baseiam justamente nos estados psíquicos” (FREUD,
(1905[1890]/1996), p.279, grifo nosso).
Com essa proposição, Freud enuncia uma série de deslocamentos. Primeiramente,
tese fundamental deste ensaio, o tratamento psíquico é inscrito no plano da linguagem.
O que cura é a palavra, esta tem o valor de instrumento curativo. O que quer dizer, em
última instância, que o psíquico seria permeado pela linguagem. Em linha de
continuidade com suas considerações sobre as afasias, o psiquismo aparece aqui como
um aparelho de linguagem, cujo tratamento deve se dar nesse mesmo registro.
Freud continua e nos apresenta em detalhes sua concepção de uma incontestável
interação recíproca entre corpo e alma. Sobre essa reciprocidade, comenta a influência
da vida psíquica, ou seja, da linguagem sobre o corpo. Nesse sentido, ao contrário da
tradição cartesiana, Freud nos diz que o psíquico tem efeitos sobre o corpo e vice-versa.
81
Segundo o autor, a medicina moderna reconhecia esse vínculo, mas depositava
todo o acento no registro físico, o qual era determinante das produções anímicas. Desse
modo, o psíquico era dependente do somático e determinado por ele. Freud denuncia
que o outro sentido dessa relação, isto é, o efeito do psíquico sobre o somático teria sido
negligenciado pela medicina, pelo temor que tal abordagem representava para a
manutenção do estatuto da cientificidade. Assim sendo, a medicina teria ficado com
uma visão unilateral do ser humano que se restringia ao aspecto físico.
A insustentabilidade de tal reducionismo evidenciou-se diante de determinados
doentes cujo padecimento não possuía signos patológicos palpáveis ao diagnóstico
médico, não obstante os inegáveis avanços da medicina científica moderna. Tratava-se
evidentemente dos neuróticos, aqueles que desafiavam o alcance da habilidade e do
savoir-faire da medicina clínica. Nesse ínterim, a neurose foi imediatamente
medicalizada e classificada como doença dos nervos, portadora de uma alteração
funcional do sistema nervoso.
Freud anuncia, então, aquilo que escapava inteiramente ao olhar médico, a
influência da vida psíquica sobre o corpo e o impacto das emoções sobre o
funcionamento do organismo humano. Freud não somente inverte a estratégia de
investigação como insiste no fator afetivo dos estados psíquicos, até então amplamente
negligenciado por uma abordagem estritamente física do psiquismo. Visualizamos aqui
a ruptura magistral de Freud com a perspectiva reducionista e medicalizante da
biopolítica sobre a subjetividade.
Ao longo do ensaio, Freud (1905[1890]/1996) surpreende o leitor com exemplos
cabais da influência psíquica sobre o corpo e, por outro lado, atenta para a participação
do corpo na expressão de estados afetivos. Assim aponta para a exteriorização dos
estados psíquicos na corporeidade, através de modificações físicas decorrentes de
experiências afetivas significativas. A contração ou o relaxamento muscular, o
enrubecimento, a variação do tom da voz, a mudança da postura corporal, a gestualidade
das mãos, a modificação do batimento cardíaco são exemplos de mudanças corporais
diante de emoções como medo, cólera, depressão, bem como satisfação sexual, alegria,
felicidade.
Freud analisa as conseqüências corporais de estados depressivos, os quais,
segundo, ele podem ser responsáveis na produção de doenças do sistema nervoso, bem
82
como de alterações anatômicas em outros órgãos. Já nessa época previa que “os grandes
afetos têm muito a ver com a capacidade de resistência às doenças infecciosas”
(FREUD, 1905[1890]/1996, p.275).
Junto a essas considerações, encontramos uma de surpreendente antecipação ao
que somente no final de sua obra atingirá máxima expressão: a tendência mortalista de
que a vida não é uma afirmação vital do organismo humano, mas sim uma condição
estreitamente ligada aos vínculos afetivos, de modo que uma violenta humilhação,
assim como uma grande alegria, podem ser decisivas para pôr fim a continuidade da
vida.
Desse modo, o texto freudiano não deixa dúvidas quanto a inextrincável
vinculação entre os afetos e os processos físicos. Freud avança ainda mais e postula que
“(...) todos os estados anímicos, inclusive aqueles que estamos acostumados
a considerar como ‘processos de pensamento’ são ‘afetivos’ numa certa
medida, e nenhum deles carece de manifestações físicas e da capacidade de
modificar os processos corporais. Mesmo enquanto se está tranquilamente
pensando por meio de ‘representações’, correspondem ao conteúdo dessas
representações várias excitações constantes (...)” (FREUD,
(1905[1890]/1996), p.275).
É preciso atentarmos para a importância dessa consideração freudiana.
Visualizamos aqui um passo fundamental de Freud em direção a uma descontinuidade
radical em relação à matriz biopolítica. Representação e afeto andam juntos, o ato de
pensar não depende exclusivamente do substrato físico, mas encontra-se em estreita
relação com o registro afetivo. E ainda, o pensamento não está desligado do corpo e sim
em continua interação com o mesmo. Com isso, Freud decisivamente se afasta da
tradição médica e cartesiana da modernidade para inaugurar uma outra forma de
conceber a subjetividade.
Este precioso ensaio oferece-nos ainda a possibilidade de encontrarmos outro
ponto de ruptura, e mais do que isso, aquilo que consideramos como uma análise
freudiana das conseqüências do processo de intensa medicalização em curso na
modernidade. Freud se volta para as margens do campo científico e se atém por um
momento na compreensão dos fenômenos de curas milagrosas – de doenças tanto
psíquicas quanto orgânicas - sem qualquer auxílio médico. A explicação que ele
encontra para o sucesso de tais curas reside no poder psíquico empregado pelo doente
83
que anseia pelo restabelecimento de sua saúde. A fé religiosa ocupa para o autor um
lugar importante na mobilização das forças psíquicas, assim como a influência da
multidão produz o mesmo efeito. Ele nos fala, com impressionante tom de atualidade,
do fascínio exercido pelos tratamentos e médicos da moda, cujo sucesso reside muito
mais no prestígio por estes alcançado do que propriamente na habilidade do médico.
Freud está aqui nos chamando atenção para o fator que mobiliza as forças
pulsionais do doente em direção à cura e que atua na produção de uma expectativa
confiante, que segundo ele, é uma variável determinante no desfecho do tratamento.
Para Freud, a conduta anímica do doente nunca deve ser desprezada pela intervenção
médica, e para que ela seja positiva, é preciso que o paciente estabeleça para com o
médico uma relação de respeito e confiança, “depende ainda do poder que ele atribui à
pessoa do médico, e até mesmo da simpatia puramente humana que este desperta nele”
(FREUD, 1905[1890]/1996, p.279).
Entendemos que Freud, embora não utilize esse termo neste contexto – é preciso
lembrar que estamos em 1890 -, está apontando para importância do fator transferência
na relação médico-doente. Tendo em vista o reconhecimento da dimensão psíquica
implicada na busca pela cura e da dimensão transferencial que permeia o tratamento,
Freud considera que os médicos não podem mais ignorar a necessidade de lidar com as
forças psíquicas em presença em cada paciente.
“A compreensível insatisfação com a ajuda amiúde insuficiente da arte
medicinal, e talvez também a rebeldia interna contra o rigor do pensamento
científico, que reflete para os homens a inexorabilidade da natureza,
criaram em todas as épocas, e novamente em nossos dias, uma curiosa
condição para o poder curativo das pessoas e dos procedimentos. A
expectativa confiante só se produz quando aquele que presta assistência não
é médico e pode vangloriar-se de não entender nada da fundamentação
científica da terapêutica, e quando o procedimento não foi comprovado por
um teste rigoroso, mas é recomendado por alguma referência popular. Daí a
profusão de terapias naturais e terapeutas naturais que ainda hoje fazem
concorrência aos médicos no exercício de sua profissão, e dos quais
podemos ao menos dizer, com alguma certeza, que com muito mais
freqüência trazem prejuízos do que benefícios aos que buscam a cura”
(FREUD,
(1905[1890]/1996), p.278).
Escolhemos reproduzir esse trecho do referido ensaio freudiano por considerarmos
que retrata com muita clareza as conseqüências do que Freud (1905[1890]/1996)
chamou de “orientação unilateral da medicina para o aspecto físico” (p.272). Parece que
84
as terapias alternativas já naquela época recebiam as demandas que teriam ficado
inatendidas pelo reducionismo medicalizante da medicina científica. Consideramos que
neste texto Freud responde e se posiciona criticamente ao intenso processo de
medicalização em vigor, alertando para a negligência das forças psíquicas.
Birman (2007d) concebe que esses dois ensaios freudianos, o referente às afasias e
o Tratamento psíquico, como complementares. Enquanto o primeiro mapeia a
problemática da linguagem na concepção do psiquismo, o segundo se atém sobre os
desdobramentos clínicos dessa questão. O autor comenta que essa construção teórica e
clínica realizada por Freud aponta para a efetividade terapêutica da linguagem, que teria
sido esquecida e silenciada pela então recente tradição do positivismo e do cientificismo
médicos.
É curioso notar como esse contexto se desdobrou atualmente na polarização entre,
de um lado um recrudescimento do processo de medicalização tanto a nível social
quanto individual e, de outro, da disseminação de inúmeras modalidades de terapias
naturais e alternativas. Como pudemos observar, vivemos hoje em um ponto de chegada
de uma série de desdobramentos da estratégia biopolitica cujo impacto subjetivo não
passou despercebidamente à escuta de Freud.
Este ensaio revela a indiscutível atualidade do discurso freudiano e as marcas de
uma ferrenha resistência contra os avanços de uma política de medicalização da vida.
Junto a isso, Freud esforçou-se em realizar uma leitura eminentemente psicossomática
da subjetividade, lançando luzes sobre a delicada questão da relação entre corpo e alma.
Nesse terreno espinhoso sobre o qual Freud se debruça ele demarca a especificidade do
estatuto da psicanálise. O psiquismo não se reduz ao somático, mas também não é
indissociado deste.
Antes de prosseguirmos com nossas análises, vale dizer que por todos esses
desdobramentos que as proposições freudianas nos permitem realizar, consideramos
esse ensaio de um valor capital para as atuais questões com as quais a psicanálise tem se
deparado. Frequentemente esquecido, possui um teor quase que profético do contexto
contemporâneo no qual a psicanálise se insere, oferecendo-nos diretrizes importantes
para nos orientarmos tanto clínica quanto teoricamente.
A experiência psicanalítica foi então marcada nesse contexto inaugural pela
prática clínica da hipnose e da sugestão, sob forte influência dos métodos terapêuticos
85
de Charcot e Bernheim. Logo em seguida, Freud formula a concepção catártica das
neuroses, principalmente da histeria, centrada na cura pela palavra. O artigo de 1893
Sobre os mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos: Comunicação Preliminar,
escrito em colaboração com Breuer, estabelece as bases do tratamento assentado sobre a
linguagem.
Nesse estudo, evidencia-se que a lesão em questão na histeria se passa no campo
das representações psíquicas e não no campo somático, conforme acreditava Charcot.
Freud desde então postula a origem psíquica dos sintomas histéricos, apontando para
um trauma psíquico como o fator desencadeador da neurose. Nesse ínterim, emerge a
hipótese traumática das psiconeuroses e as primeiras publicações freudianas que se
seguem sobre a histeria e as neuroses em geral conferem um enfoque bastante
econômico, centrado na preocupação do trânsito das intensidades. A teoria do trauma,
como um excesso de excitação circulando pelo registro psíquico, é conseqüência dessa
perspectiva econômica, que entre outras coisas, traz a necessidade teórica de uma
proposição dinâmica e tópica.
É em As neuropsicoses de defesa (1894/1996) que Freud lança-se sozinho na
descoberta dos mecanismos das neuroses, articulando conceitos como defesa e divisão
psíquica para dar conta da economia psíquica dos neuróticos. O registro do inconsciente
como uma outra cena, além da consciência, começa a se esboçar nesse contexto, bem
como a noção de conflito.
Em 1895, Freud escreve A Psicoterapia da histeria, aprofundando-se na idéia de
catarse como uma forma de descarga e purgação, através da linguagem, de afetos
contidos e estrangulados. A eficácia terapêutica da linguagem ratifica para Freud sua
concepção linguageira do psíquico. A partir dessa configuração inicial em torno da
catarse, Freud explorou a técnica de intervenção pela palavra até chegar à associação
livre e ao progressivo abandono da hipnose.
A pressuposição da existência dos registros dinâmico e econômico conduziu Freud
ao desdobramento do então aparelho de linguagem em um aparelho psíquico, cujo
primeiro esforço de conceitualização vemos descrito no Projeto para uma psicologia
científica. Sobre esse ponto nos deteremos mais detalhadamente a seguir.
Trinta anos mais tarde Freud (1926/1996) volta a insistir no valor da palavra e no
quanto ela se constitui como um “instrumento poderoso” através do qual expressamos
86
aos outros os nossos sentimentos. Nesse sentido, as palavras podem tanto fazer o bem,
quanto “causar terríveis feridas”.
Neste contexto, Freud (1926/1996) aproxima mais uma vez o tratamento analítico
da magia das palavras, insistindo no poder da linguagem e na tessitura linguageira do
psiquismo. É curioso como Freud parece estar respondendo nesse texto às futuras
críticas de Foucault. Ele mesmo, através de um hipotético interlocutor, questiona se esse
não seria o próprio princípio católico da confissão. E responde que inicialmente a
confissão tem sim um papel na experiência analítica, mas de modo algum constitui a sua
essência. Sua analogia é elucidativa: “Na confissão o pecador conta o que sabe; na
análise o neurótico tem mais a dizer” (FREUD, 1926/1996, p.184). Esse “mais a dizer”
é evidentemente a dimensão inconsciente que inscreve a psicanálise para mais além do
dispositivo da confissão.
E para sustentar essa nova forma de conceber o psiquismo Freud (1926/1996)
lança-se na construção de uma nova psicologia, com uma “estrutura teórica completa”
em contato permanente com a observação clínica. Faz questão de diferenciar a sua
psicologia da psicologia acadêmica, a qual estaria restrita ao campo da “fisiologia dos
órgãos dos sentidos”. Esse tipo de abordagem centrada nas descobertas da fisiologia
mental, segundo ele, era insuficiente para dar conta de nossa vida mental. E Freud pede
para que não desprezemos a palavra, justamente para defender um não reducionismo
fisiologista da subjetividade. Além disso, deixa claro que o material de que é constituído
o aparelho mental não é assunto de interesse da psicologia: “A psicologia pode ser tão
indiferente a ele como, por exemplo, a óptica pode ser para a questão de se as paredes
de um telescópio são feitas de metal ou de papelão. Deixaremos inteiramente de lado a
linha material de abordagem, mas não a espacial...” (FREUD, 1926/1996, p.189, grifos
do autor). Refere-se, assim, à abordagem tópica das instâncias psíquicas, assumindo
explicitamente o valor de ficção de suas hipóteses o que, segundo ele, não as tornam
menos científicas.
Freud não abre mão do estatuto científico da psicanálise, entretanto, relativiza a
concepção de ciência e enuncia que “na psicanálise, contudo, gostamos de nos manter
em contato com o modo popular de pensar e preferimos tornar seus conceitos
cientificamente úteis de preferência a rejeitá-los” (FREUD, 1926/1996, p.190).
87
Freud (1926/1996) critica a psicologia por ter barrado o acesso ao inconsciente ao
postular que todos os atos mentais são conscientes. Rompe definitivamente com a
psicologia clássica que identificava o psiquismo com a consciência, onde o critério de
normalidade residia na faculdade de ser consciente. Segundo ele, para essa tradição,
todos os processos cerebrais não-conscientes não mereciam a denominação de atos
mentais e eram excluídos do campo de interesse da psicologia. Nesse modelo de uma
psicologia racionalista, a cognição era a faculdade mental mais valorizada. É justamente
sobre esse “resto” que Freud edificou um novo saber sobre o psíquico, dando ênfase à
capacidade de imaginação, de onde deriva a idéia de inconsciente, lugar de produção de
fantasias.
A constituição da psicanálise implicou em uma positivação da imaginação com o
estatuto das fantasias. Sonhos, sintomas, atos falhos, lapsos, humor: manifestações
positivas da imaginação que, apesar de serem anti-pragmáticas, são enunciadoras da
cena do inconsciente.
Ao contrário do paralelismo psicofísico, encontramos em Freud a idéia do
psiquismo incidindo sobre o corpo e vice-versa, havendo já aí uma linguagem
envolvida. São esses “ruídos” que Freud introduz na relação entre corpo e psiquismo
que o permitirão chegar ao campo da fantasia, do inconsciente e da pulsão.
Podemos notar, assim, que o corpo adquire uma especificidade própria na
perspectiva freudiana. Ele não é apenas o organismo ou o somático. Adquire um
recobrimento simbólico no decorrer da história do sujeito e de suas conformações
subjetivas. Os desdobramentos dessa questão apontam certamente para uma postura
anti-cartesiana da psicanálise, já que desde cedo, mesmo ainda sob um véu dualista,
Freud se dedica a uma desconstrução da oposição entre os registros do corpo e do
espírito. Mais do que um dualismo, Freud concebe uma relação entre ambos.
O desenvolvimento de uma prática teórica e clínica para a psicanálise implicou na
distinção entre a realidade fisiológica e a realidade psicológica, e no conseqüente
ultrapassamento da linguagem fisiológica para abordar os fenômenos psíquicos. Desse
modo, a relação entre o psíquico e o somático se fez muito presente exatamente porque
Freud precisava delimitar seu campo de investigação e diferenciá-lo do objeto de estudo
das ciências médicas e naturais.
88
A visão freudiana da relação psico-somática foi inovadora. A idéia de que haveria
uma porosidade implicada nessa relação foi o que permitiu com que conceitos como
fantasia inconsciente e sexualidade infantil emergissem no discurso psicanalítico.
Mesmo pressupondo dois tipos de realidade diferentes, o modo de articulação que Freud
propunha entre elas já demonstrava sua não-filiação aos pressupostos do paralelismo
psicofísico.
No entanto, por ser formado pela tradição médica clássica, Freud guardou muitos
de seus modelos como fundamento e não abandona tão facilmente sua relação com a
anatomia e a fisiologia. Freud desloca o estudo dos processos psicológicos do domínio
da neuropatologia, mas em muitos momentos se refere a este modelo para explicá-los,
ainda que ao mesmo tempo opere rupturas importantes. Sem dúvida, os modelos
médicos estão presentes em Freud, não para endossá-los, mas para a partir deles
promover subversões. Segundo Bastos (1998), não há em Freud abandono repentino dos
modelos epistemológicos, porém rupturas gradativas advindas da insuficiência dos
mesmos.
Apontamos então, mais uma vez, para o paradoxo presente no pensamento
freudiano, característica que optamos por positivar, na medida em que acreditamos que
é no embate de Freud entre a continuidade e a descontinuidade em relação ao saber
científico de sua época que se consolidaram os conceitos fundamentais do saber
psicanalítico. No contexto que escolhemos nos debruçar aqui, não fica difícil visualizar
um Freud que ora subverte o campo científico, ora se atrela a ele, instaurando um jogo
de forças cuja tensão o levou à constituição de um novo saber.
Todo esse remanejamento de paradigmas e conceitos que o discurso psicanalítico
opera se dá inicialmente no campo da histeria. Foi ao suspender o olhar sobre o corpo
histérico, passando a escutá-lo através do discurso da histérica que Freud chegou ao
conflito sexual, aos impasses do prazer e às fantasias inconscientes implicadas na
dinâmica psíquica da histeria. É por esse viés que a sexualidade alcança um estatuto
primordial para a psicanálise e que a cena do inconsciente se desvela, fazendo nascer
um lugar inaugural no campo do saber.
Nessa articulação entre histeria e nascimento da psicanálise, o corpo se faz
presente mais do que nunca na obra freudiana. O corpo histérico despertou em Freud a
aventura psicanalítica exatamente por ele ter sido o único a escutá-lo, mais do que olhá-
89
lo e apalpá-lo. Freud pôde então visualizar o quanto esse corpo é tecido, tramado,
construído pela linguagem, pelo desejo, pela sexualidade, arrancado-o das amarras
biológicas que encerravam a sua verdade nos confins da anatomia e da fisiologia.
É bem verdade que a partir da histérica, Freud fez da psicanálise um instrumento
para que o sexo se fizesse linguagem, criou um método a partir do qual a sexualidade
pudesse se transformar em discurso e nessa operação não escapou de uma práxis
normativa. Por mais que reconheçamos a polimorfia sexual, a parcialidade das pulsões e
a erogeneicidade dos órgãos, o percurso da sexualidade deve encontrar, enfim, o
primado da genitalidade, e se aí não encontrar a satisfação e sobrevier o recalque eis a
conversão histérica e a confissão de um corpo saturado de sexualidade. A psicanálise
parece sim, nesse sentido, se inscrever como uma das técnicas de colocação do sexo em
discurso, como denunciou Foucault.
Por outro lado, é bem verdade também, e este é o passo inaugural da psicanálise,
que Freud reconheceu uma verdade na histeria, mais do que isso, reconheceu uma
denúncia histérica em relação ao saber médico-psiquiátrico, sua resistência às
pretensões científicas de redução da subjetividade a um sistema anátomo-patológico. A
psicanálise surge para demonstrar o protesto histérico à racionalidade científica,
lançando sobre ela um outro olhar, reconhecendo a existência de um outro corpo. E
neste gesto, nesta escuta, Freud rompe com as estratégias de controle e assujeitamento
das subjetividades, conferindo-lhes um espaço privilegiado de escuta. A capacidade da
histérica de resistir é positivada como uma capacidade de desejar.
Freud opera o importante deslocamento do registro biológico para o registro
psíquico. A histérica seria dotada de um saber inapreensível pelas ambições do
dispositivo biopolítico. Seu corpo ultrapassava em muito a sua materialidade biológica.
Sob esse ângulo, entendemos que a psicanálise e a histeria se constituem como
resistência ao biopoder e à medicalização.
3.2. Caleidoscópio freudiano – o embate com a medicina e a influência de
outros campos do saber
90
Em Uma neurose demoníaca do século XVII Freud (1923 [1922]/1996) aproxima
o terreno da neurose ao das possessões demoníacas dos tempos antigos, sugerindo que
estas eram possivelmente a expressão daquelas em dada época. O que na Idade Média
era projetado para o mundo externo sob a forma do demônio, com Freud, na
modernidade, passa a fazer parte da vida psíquica do indivíduo, a saber: o campo das
pulsões e dos desejos recalcados. Neste ensaio Freud analisa um caso de possessão
demoníaca do século XVII, a pedido do diretor de uma biblioteca na qual se encontrava
um manuscrito com uma descrição da redenção miraculosa de um pacto com o demônio
feito por um pintor. Freud analisa o material tal como se fosse o caso clínico de um
neurótico, explicitando através das metáforas diabólicas as motivações do adoecimento
do sujeito em questão.
Freud (1923 [1922]/1996) comenta que “não precisamos ficar surpresos em
descobrir que, ao passo que as neuroses de nossos pouco psicológicos dias de hoje
assumem um aspecto hipocondríaco e aparecem disfarçadas como enfermidades
orgânicas, as neuroses daqueles antigos tempos surgem em trajes demoníacos” (p.87). E
logo em seguida continua afirmando que “a teoria demonológica daquelas épocas
sombrias levou a melhor, ao final, sobre todas as visões somáticas do período da ciência
‘exata’” (p.87).
O que queremos sinalizar com essas passagens de Freud é o seu interesse pela
demonologia e a conseqüente aproximação dos fenômenos psíquicos a estados de
possessão, o que o distancia do modelo médico que em outros contextos serviu de
paradigma para sua concepção de psiquismo. Desde seus estudos com Charcot, Freud
mantém um interesse particular por fenômenos digamos que ocultos ou extra-científicos
como feitiçaria, bruxaria, demonologia que o instigaram na sua pesquisa psicanalítica.
Este ensaio sobre a neurose demoníaca escrito após a reformulação metapsicológica dos
anos 20 nos revela seu movimento em direção a um outro estatuto para a psicanálise,
onde se insere nas entrelinhas a sua crítica à medicalização.
Já em A questão da análise leiga Freud (1926/1996) estabelece um diálogo direto
com a classe médica ao defender com veemência a viabilidade de uma análise praticada
por um profissional não-médico. O contexto que o levou a redação deste ensaio foi uma
polêmica gerada por uma acusação contra Theodor Reik de ter tratado analiticamente de
pacientes sem, contudo, possuir o título de médico. Reik era, de fato, um membro não-
91
médico da Sociedade Psicanalítica de Viena. Isso ocorreu porque na Áustria havia uma
lei contra charlatanismo que proibia que uma pessoa que não possuísse o grau de
médico tratasse de pacientes. Freud imediatamente manifestou-se em defesa de Reik e
mobilizou-se na escrita de um tratado a favor de uma análise leiga, ou seja, não-
médica
34
.
Freud lança mão do artifício de construir ele próprio hipoteticamente um
interlocutor leigo
35
que o coloca questões das mais sagazes, forçando-o fundamentar
sua argumentação em relação à não exclusividade do imperativo médico para o
exercício da experiência psicanalítica. E Freud desconstrói ao longo de todo texto a
exigência de que tal experiência seja marcada pelos cânones da medicina, indo mais
além ao enunciar – não sem se aventurar, como ele próprio reconhece – que “os
médicos formam um contingente preponderante de charlatões na análise. Eles com
grande freqüência praticam o tratamento analítico sem o terem aprendido e sem
compreendê-lo” (FREUD, 1926/1996, p.222).
Após uma série de debates suscitados pelo referido ensaio, Freud (1927a/1996)
escreve um pós-escrito onde esclarece que o sentido dessa asserção diz respeito ao fato
de que o diploma de medicina não garante que o analista tenha recebido o devido
preparo para a prática da psicanálise, a qual não reside na formação médica
universitária. É nesse momento que ele estabelece a necessidade de criação de uma
formação para analistas – já em andamento, segundo ele, nos institutos de psicanálise da
época -, que inclua elementos da psicologia, da história, da mitologia, da literatura e do
estudo da evolução. Freud (1927a/1996) insiste que “a psicanálise não é um ramo
especializado da medicina” e continua categoricamente “não vejo como é possível
discutir isso” (p.242).
Na continuidade dessa discussão Freud vai direto ao ponto de nosso interesse, o
argumento histórico. Comenta o fato da psicanálise ter sido descoberta por um médico,
34
É curioso que nos dias de hoje estejamos presenciando o mesmo tipo de embate, haja vista os projetos
de lei na França, e também no Brasil, que visam a submissão das práticas psis a uma regulamentação
médica, à despeito da clareza com que Freud se posicionou contrariamente a essa decisão. Torna-se
visível o recrudescimento do intenso processo de medicalização que se instaurou no Ocidente moderno há
mais de dois séculos, cuja genealogia expusemos no capítulo II a partir de Foucault.
35
Pessoa Imparcial, tal como Freud o denomina, cuja inspiração proveio de um alto funcionário do
Ministério da Saúde de Viena, um fisiologista, que solicitou a Freud, em função do caso Reik, um parecer
sobre a análise leiga. Freud (1926/1996, p. 241) comenta que por saber não tê-lo convencido de sua
posição sobre o assunto, manteve em seu ensaio um diálogo em aberto com a Pessoa Imparcial da qual
aquele serviu de modelo.
92
aludindo exatamente a essa matriz médica da psicanálise que Foucault privilegiou em
sua análise histórico-genealógica da modernidade. Freud (1927/1996) argumenta que
esse elemento histórico é uma “faca de dois gumes”, uma vez que a medicina sempre
tratou a psicanálise inamistosamente e por isso não pode reivindicar o que quer que seja
com relação ao exercício da mesma.
Freud se detém ainda mais um pouco sobre tal argumento histórico ao explorar as
suas credenciais pessoais. Diz que apesar de muitos anos de atividade médica nunca foi
realmente um médico no sentido adequado. Confessa textualmente que jamais teve
qualquer interesse pela medicina. Mais do que uma disposição para a medicina revelou
sempre ter tido uma ânsia em desvendar os enigmas do mundo. Ele remonta ao seu
percurso pela fisiologia com Brücke, marcando a grande influência desse mestre para
seu deslocamento em direção à clínica, que posteriormente o conduziu ao campo das
neuroses. Com isso, Freud (1927a/1996) se declara “um partidário do valor inerente da
psicanálise e da independência de sua aplicação em relação à medicina” (p.244)
Paralelamente a isso, Freud atribui um valor importante à mitologia para a
psicanálise, servindo-se dos mitos para suas construções teóricas. Esse texto é repleto de
referências não só à mitologia, como também às lendas, à história da civilização, à
cosmologia, tudo para dizer o quanto o saber psicanalítico extrapola o domínio da
medicina.
Um conhecimento profundo do organismo bem como a grande massa de
informações adquiridas nas escolas de medicina não oferece ao analista qualquer
utilidade, ao contrário, é o oposto do que se deseja para o preparo de um analista.
Segundo Freud (1926/1996, p.237) “(...) a experiência de um analista está em outro
mundo, com outros fenômenos e outras leis”. O que Freud esclarece com essas
formulações é que a experiência de análise não se situa em um registro objetivo de
verificação anatômica, física ou química, mas se inscreve no registro da transferência,
ou seja, em uma “atitude emocional especial” entre o paciente e a figura do analista,
prerrogativa máxima para o tratamento.
Nesse sentido, a exigência fundamental para um analista é, muito mais do que um
título de médico, que ele tenha se submetido, ele próprio, a uma análise. Entretanto, é
interessante notar que Freud recomenda como uma regra técnica que o analista, em caso
de dúvida diante de sintomas físicos apresentados por seu paciente, deve pedir auxílio a
93
um “médico consultor”, mesmo se o próprio analista for médico, a fim de afastar
qualquer possibilidade de ocorrência de uma doença orgânica.
Nessa linha de argumentação, Freud nos indica um rompimento com a medicina
que foi constitutivo do nascimento da psicanálise. A medicina moderna foi, como nos
indicou Foucault, a matriz e o paradigma das diferentes ciências humanas, e não foi
diferente com a psicanálise. Contudo, a partir dessas formulações, Freud destrona a
racionalidade médica como norteadora dos cânones psicanalíticos, e de uma vez por
todas opera uma descontinuidade fundamental com a matriz biopolítica da
modernidade.
3.3. Pulsão e sexualidade: o fundamento vitalista
Prosseguiremos nossa leitura sobre o traçado das descontinuidades através da
teoria das pulsões, que consideramos como um elemento-chave para o distanciamento
da psicanálise da tecnologia disciplinar e biopolítica de poder. Ao longo da teoria
pulsional Freud se desloca de uma lógica racional-científica para o domínio da
especulação.
Comecemos pelo Projeto para uma psicologia científica, obra que consideramos
constituinte de uma primeira metapsicologia freudiana. Conforme mencionamos acima,
nesta obra Freud, através da introdução de aspectos dinâmicos e econômicos no
psiquismo, opera uma transformação do aparelho de linguagem em aparelho psíquico.
Nesse texto Freud (1895a/1996) realiza uma abordagem do aparelho psíquico a
partir de um ponto de vista energético, lidando com duas hipóteses básicas: a
quantidade de energia (fundamento econômico) e o neurônio (fundamento tópico). O
Projeto para uma psicologia científica contém um modelo de aparelho psíquico, ainda
que muito referenciado a um modelo neurológico. O objetivo de Freud era explicar o
funcionamento psíquico através de processos energéticos quantitativamente
determinados, articulando pulsão e representação.
Freud parte do princípio de que a função primária do sistema nervoso seria a
descarga regida pelo princípio da inércia neuronal, onde os neurônios tendem a se livrar
da quantidade de excitação recebida. Toda quantidade de energia recebida pelos
94
neurônios estaria destinada a ser descarregada pelos mecanismos musculares de fuga do
estímulo.
No entanto, Freud observou que em organismos mais complexos o sistema
nervoso receberia estímulos do próprio elemento somático, ou seja, estímulos
endógenos, que precisavam também ser descarregados como os estímulos externos. Tais
estímulos endógenos se originariam das células do corpo e seriam responsáveis pelas
grandes necessidades como respiração e sexualidade. Encontramos, assim, nessa idéia
de estímulos endógenos os precursores das pulsões, ainda que numa formulação
eminentemente biológica, intrínseca ao pensamento freudiano desse momento.
Ao contrário do que acontece com os estímulos externos, o organismo não pode
esquivar-se dos estímulos internos, podendo estes somente cessarem sob certas
condições realizadas no mundo externo, por meio de uma ação específica. O ser
humano não é capaz de uma ação específica automática, ou seja, de um aparelho reflexo
que dê conta desse montante de excitação interna. É preciso, então, que algo mude no
mundo externo para que seja possível uma ação específica. Assim, diante de tal
“exigência da vida” (FREUD, 1895a/1996, p.349) o sistema nervoso é obrigado a
abandonar a tendência original à inércia, visto que precisa tolerar e manter certo
acúmulo de excitação suficiente para satisfazer as exigências de uma ação específica.
Diante desse imperativo vital representado pelos estímulos endógenos a ordem
psíquica se constitui para dar conta de tais excitações, articulando-as a objetos de
satisfação. Desse modo, Freud (1895a/1996) retifica o que havia proposto em termos de
princípio de inércia e se apóia na idéia de um princípio de constância, que consiste em
manter a energia no nível mais baixo possível, mantê-la constante dentro do aparelho
psíquico, uma vez que sua descarga total impossibilitaria a preservação da vida e a
constituição do psiquismo.
O aparelho psíquico, então, assumiria a função de capturar e ordenar os estímulos
pulsionais, que constantemente demandam por um destino. A instância psíquica torna-
se responsável por articular um campo de objetos onde os estímulos pulsionais possam
encontrar satisfação, atenuando as fontes corpóreas de excitação, que de outro modo
constituiriam uma fonte permanente de desprazer. As excitações se inscreveriam então
no registro das representações onde encontrariam um campo de objetos disponíveis para
sua satisfação. A pulsão, assim, acaba por ser representada, ou melhor, a intensidade
95
pulsional adquire imediatamente uma inscrição psíquica e passa a ser regulada pelo
princípio do prazer, correlato do princípio de constância, que estaria na origem da
regulação desse processo.
Nessa primeira abordagem freudiana do funcionamento psíquico, o psiquismo
humano remete a um aparelho de prazer-desprazer que visa à obtenção de uma
satisfação, onde o prazer é equivalente de uma descarga energética. Face ao excesso
energético disruptivo, o psiquismo buscaria um equilíbrio homeostático através do
funcionamento do princípio do prazer, que regularia essas intensidades. O prazer é
definido como diminuição da excitação pela descarga e o desprazer como aumento de
excitação, que provoca uma tensão desprazerosa a ser eliminada. Desse modo, o
organismo buscaria na autoconservação e na representação uma maneira de se proteger
do excesso pulsional.
Para Birman (1999a), essa primeira metapsicologia freudiana está ligada a um
modelo vitalista a qual Freud se filiava, no qual a vida seria uma afirmação prévia do
ser. A vida é dada e se impõe como força vital. Tal imperativo aparece claramente no
texto freudiano em termos como “urgência da vida” ou “exigência da vida” (FREUD,
1895a/1996), representados pelos estímulos endógenos. A pulsão sexual seria a
manifestação imediata de tal força vital, o que leva a identificar nesse momento a
sexualidade com a ordem natural da vida, nos moldes do instinto.
Para que o organismo pudesse subsistir, Freud precisou nomear o princípio de
constância – também entendido em termos de princípio do prazer – destinado a articular
o circuito pulsional de maneira originária, apoiando a constituição do psíquico no
organismo. Surge a noção de um apoio interno, o psíquico emana das exigências do
organismo, cujos estímulos internos demandam por um aparelho psíquico que os regule.
Essa idéia de Freud levaria a uma identificação entre corpo e organismo.
Neste primeiro momento da construção da teoria pulsional e da metapsicologia,
encontramos um Freud ainda bastante influenciado pela tradição vitalista francesa da
fisiologia. Conforme pontuamos no segundo capítulo desta tese, o ponto de partida da
concepção vitalista é a noção de força vital como a ordem da afirmação da vida.
Constatamos, assim, um movimento de filiação de Freud à tradição médica, apoiada no
fundamento biológico, derivando o psíquico das exigências do organismo.
Quanto a isso Birman conclui que,
96
“A afirmação da vida não poderia então ser absolutamente colocada em
questão, orientado que estava o discurso freudiano pelos pressupostos da
biologia vitalista. O que se afirmava, enfim, era a fundação da ordem vital
no registro da sexualidade, regulada aquela pelo primado do princípio do
prazer” (BIRMAN, 2007d, p.543).
Desse modo, é possível perceber o quanto Freud estava inscrito na tradição médica
de uma biologia vitalista que marcou sua concepção de clínica e de subjetividade.
Assim como Canguilhem (2002) fundamentou sua clínica pelo paradigma da
normatividade vital, Freud considerou a existência de uma normatividade do sexual
(BIRMAN, 2007d).
Nesse sentido, encontramos nesse primeiro esboço de modelo psíquico em Freud
as marcas de um vínculo arraigado com a racionalidade médica dominante do ideário
moderno e biopolítico. Vejamos a seqüência de suas formulações.
O conceito de pulsão ganha sua primeira sistematização no contexto de 1905, em
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde é precisamente definida como pulsão
sexual, porém, como vimos, a idéia de pulsão já estava presente desde o Projeto para
uma psicologia científica em 1895.
Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, a pulsão ganha uma nova
abordagem, com a introdução da idéia de pulsões sexuais e de componentes da pulsão
como a fonte, o objeto e o alvo. O ponto de vista energético é mantido por Freud na
medida em que a pulsão sexual precisa atingir a meta de supressão da excitação nascida
numa parte do corpo (a fonte da pulsão), através de um objeto. Contudo, a perspectiva
aqui abordada juntamente com aquela realizada no capítulo VII da Interpretação dos
sonhos (1900) indica que a questão do excesso tão presente no Projeto para uma
psicologia científica (1895) vai cedendo lugar para uma supremacia do registro tópico,
onde o que vai ser priorizado é o representante psíquico da pulsão – a representação – e
não a força pulsional.
A fonte da pulsão residiria primordialmente em algum processo endógeno, como a
excitação das zonas erógenas. Fonte calcada no somático, sem origem psíquica. O alvo
remeteria à redução da tensão - provocada pela fonte da pulsão - através da satisfação
conquistada pela descarga. E o objeto seria o meio pelo qual atingir a satisfação. A
97
peculiaridade que Freud acrescenta a esse aspecto é que o objeto é caracterizado pelo
que há de mais variado na pulsão. Segundo Birman (1997), “a concepção polimorfa da
sexualidade fundaria o arcabouço libidinal do psíquico, indicando assim a relatividade
dos objetos para a promoção da experiência de satisfação” (p.62).
Bastos (1998) comenta que nesse contexto de 1905 “Freud buscava resolver a
relação entre o corpo – como fonte dos estímulos endógenos – e o psiquismo. A pulsão
não era mais apenas um estímulo endógeno. Ela não estava no corpo somático; ela
nascia dele, mas não podia, a ele, ser reduzida” (p.103). A atividade paradigmática do
chupar evidencia a pulsão sexual apoiada numa função vital, num corpo biológico que
confere um suporte para a emergência da pulsão, mas cuja materialidade não abarca a
totalidade da dimensão pulsional.
Desse modo, a sexualidade não é mais uma manifestação imediata do organismo
conforme aparecia no Projeto para uma psicologia científica nos moldes do instinto;
nasce apoiada numa função vital, de acordo com o modelo da pulsão. Nesse sentido, o
corpo se demarca do organismo como uma produção a partir da incidência da pulsão
sexual. A fonte no somático seria apenas um aspecto da pulsão, a qual teria também
desdobramentos psíquicos através de seus representantes. A pulsão ganha então novas
dimensões, não se confundindo com sua fonte.
Assim, definem-se dois registros diferentes, inaugurando a primeira dualidade
pulsional entre sexualidade e autoconservação. As pulsões sexuais se apóiam nas
pulsões de autoconservação para se constituir, mas posteriormente se opõem a elas.
Cinco anos mais tarde, em 1910, essa oposição ganha um novo incremento: as pulsões
de autoconservação recebem a denominação de pulsões do eu e passam a se equivaler.
Esse novo desdobramento surge na investigação freudiana acerca dos fenômenos da
cegueira histérica, onde vemos explicitar-se a oposição entre “as pulsões que favorecem
a sexualidade, a consecução da satisfação sexual, e as demais pulsões que têm por
objetivo a autopreservação do indivíduo – as pulsões do ego”
11
(FREUD, 1910/1996,
p.223).
Freud (1910/1996) parte da pressuposição dessa oposição para explicar o conflito
psíquico neurótico que residiria na luta entre as exigências do eu – nesse momento
dessexualizado – e as da sexualidade. O sintoma, por exemplo, a cegueira histérica,
36
Em todas as citações que aparece a palavra instinto substituímos por pulsão, por considerarmos ser esta
a tradução mais adequada para o termo Trieb no original.
98
resultaria do fato do mesmo órgão ou parte do corpo poder ser objeto de investimento
de ambas as pulsões. Os mesmos órgãos servem tanto às pulsões sexuais quanto às
egóicas. Se a satisfação da pulsão sexual prevalece, o eu opera no sentido do recalque,
castigando o órgão através da perda de sua funcionalidade.
Em 1911, no texto Formulação sobre os dois princípios do funcionamento mental
Freud evidencia melhor a natureza do conflito entre as pulsões sexuais e as pulsões do
eu ou de autoconservação. Enquanto a pulsão sexual é regida pelo princípio do prazer
buscando a satisfação em um objeto fantasmático, as pulsões do eu são regidas pelo
princípio de realidade, necessitando, portanto, de um objeto real para sua satisfação.
Esse primeiro dualismo circunscreve então a oposição entre o sexual – sexualidade
infantil perverso-polimorfa, centrada no registro do inconsciente – e o não sexual –
ordem da vida e da autoconservação, centrada no registro da consciência e do eu.
A oposição que Freud faz entre as pulsões do eu ou de autoconservação e as
pulsões sexuais é considerada uma distinção embaraçosa. Partindo do princípio de que
são pulsões de naturezas diferentes, conforme vimos acima, como Freud pôde empregar
o termo pulsão para designar ambos os tipos de processo?
Freud tinha a necessidade de manter esse dualismo pulsional, pois era nesse
aspecto que se fundamentava o conflito psíquico que ele pressupunha na origem dos
sintomas neuróticos. Tudo leva a crer que apenas as pulsões sexuais poderiam
legitimamente ser denominadas de “pulsões”, mantendo as pulsões de autoconservação
um caráter muito mais instintivo do que propriamente pulsional.
Freud pressupõe, então, nesse momento, a existência de um organismo atrelado à
lógica da autoconservação, onde a vida se impõe como um interesse básico e primário
que se autopreserva. Separadamente, o registro da sexualidade se constitui através do
modelo de apoio, sobrepondo-se à autoconservação da vida.
A noção de apoio surge para estabelecer a relação entre um corpo somático, fonte
das excitações, e um corpo erógeno, produzido pela ação das pulsões sexuais.
Observamos nesse contexto uma crença de Freud na existência de um organismo que se
sustenta pela força da vida, ao mesmo tempo em que um corpo vai sendo produzido
pelas tramas pulsionais. O corpo erógeno aparece na estrita dependência do somático,
pois tem nele a sua fonte, ou seja, a sua condição de possibilidade para se constituir.
99
Para Bastos (1998) “a dificuldade está em compatibilizar um corpo somático com
um corpo sexual. A psicanálise não pode prescindir do corpo somático, mas não é dele
que ela, efetivamente, se ocupa” (p.112). Nesse contexto que estamos analisando, Freud
apesar de estar delimitando uma outra dimensão para o corpo e a sexualidade ainda se
prende muito às relações do sexual com o somático, visto que se referia a uma lógica da
autoconservação centrada inteiramente no registro biológico. A noção de apoio foi
fundamental para que ele pudesse configurar a ordem do sexual e do corpo pulsional,
mas se tornou problemática por assentar essa nova realidade no registro da
autopreservação, sendo esta a responsável pela manutenção do organismo.
Haveria, então, uma ordem biológica vinculada à existência e manutenção da vida.
O corpo biológico, somático, conferia a viabilidade de um corpo sexual, pulsional.
Mesmo com a grande inovação no campo da sexualidade e com a delimitação do corpo
sexual como o objeto da psicanálise, Freud permanecia atrelado a duas ordens de
realidade: o somático e o psíquico, o corpo biológico e o corpo pulsional.
Essas relações ganham um novo destino com a conceitualização da pulsão em
1915. O conceito de pulsão vai configurar-se como um ponto de chegada dos
desdobramentos da relação somático-psíquico que Freud vinha abordando.
Em 1914 esse dualismo ainda se mantém, mas a questão se torna mais embaraçosa
com a introdução do conceito de narcisismo. Nesse contexto, Freud (1914/1996) admite
que o próprio eu se constituiria como objeto da pulsão sexual, sendo também
libidinizado. A libido se dividiria em libido objetal, referente aos objetos do mundo
externo e libido do eu ou narcísica, cujo objeto é o próprio eu. Desse modo, nesse
momento do pensamento freudiano tudo é sexual, o conflito psíquico se desloca para a
oposição entre libido do eu e libido objetal, mas a conflitualidade é toda centrada na
sexualidade.
Assim, com o narcisismo o eu não é mais neutro, é investido como objeto de
satisfação, constituindo-se como instância sexual unificadora das pulsões auto-eróticas
fragmentadas. O estado originário de multiplicidade, parcialidade e fragmentação que
caracteriza o corpo auto-erótico dá lugar ao corpo narcísico (unificado) através do
investimento narcísico das figuras parentais no corpo do infante, possibilitando a
configuração de uma auto-imagem totalizante e, conseqüentemente, a assunção do eu.
100
O eu enquanto uma unidade não existe no indivíduo desde o princípio assim como
existem as pulsões auto-eróticas, ele precisa ser desenvolvido. É então que uma nova
ação psíquica é adicionada ao auto-erotismo a fim de provocar o narcisismo (FREUD,
1914/1996, p.84). Podemos entender essa nova ação psíquica como esse investimento
do outro sobre o infante que lhe confere condição de adquirir uma imagem corporal
unificada e de se apropriar dela.
A presença dessa alteridade, que é constitutiva do eu na medida em que investe
libidinalmente a imagem do corpo do infante, produz subversão na teoria pulsional
colocando a libido na base da constituição egóica, retirando com isso o eu do pólo
estrito da autoconservação de si. Até mesmo a energia destinada a garantir a
sobrevivência do indivíduo tem sua origem na sexualidade, fato esse que desloca o
conflito entre duas pulsões de natureza diferentes para a tensão entre libido do eu e
libido objetal. Esse impasse na teoria pulsional, ameaçada pelo monismo, só obterá
solução com a introdução do conceito de pulsão de morte, onde o dualismo se
restabelece definitivamente: as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação (agora
também concebida como sexual) são unificadas sob o nome de pulsões de vida e são
contrapostas à pulsão de morte. Desenvolveremos esse ponto a seguir.
Por volta de 1915, Freud se dedica à constituição de seus escritos
metapsicológicos, onde a pulsão ganha um lugar fundamental. Por metapsicologia
Freud designa o conjunto de proposições e modelos conceituais que dariam
fundamentação ao saber psicanalítico. Através da metapsicologia Freud pôde pensar o
psiquismo como processo a partir de suas relações dinâmica, tópica e econômica.
O termo metapsicologia foi então criado por Freud para qualificar o conjunto de
sua concepção teórica e distingui-la da psicologia. O prefixo meta indica justamente o
objetivo de Freud de pensar a psicanálise como algo que está além da psicologia.
A psicologia clássica, decorrente da tradição cartesiana, voltava-se para a
elucidação dos processos cognitivos. A subjetividade era concebida como centrada no
conhecimento, identificando-se com a consciência e o eu.
Freud então se lança na construção da metapsicologia para se demarcar desse
território, visto que para ele a subjetividade não se restringia ao campo da consciência e
do eu, indo além dessas instâncias. Como vimos, o aspecto econômico era muito
marcante em Freud, o que o fez trazer para o campo da psicologia a intensidade e os
101
afetos, afastando-se da tradição cartesiana centrada no aspecto intelectual e cognitivo da
subjetividade.
Entretanto, os conceitos metapsicológicos não eram passíveis de verificação
empírica, condição postulada pela ciência positivista da época como indispensável para
a validação de qualquer enunciado científico. O estatuto da metapsicologia freudiana
definitivamente não se enquadrava nos cânones científicos, sendo pautado muito mais
pela especulação do que pela preocupação com os métodos de verificação científicos.
Freud desde o início de seus estudos se aproxima da filosofia, campo que o
despertava mais interesse do que a prática médica. Contudo, sua formação de base
residiu no campo da anatomia e da fisiologia do sistema nervoso. Posteriormente,
deslocou-se para o campo da neurologia enquanto prática clínica e terapêutica. Com a
metapsicologia, pôde sair da clínica neurológica como exigência de cura se
reaproximando da filosofia como ciência básica. Freud mergulhou então no campo da
especulação, estatuto fundamental da metapsicologia freudiana.
Nesse contexto visualizamos mais uma vez as rupturas de Freud com o campo
médico-científico. A metapsicologia, ao contrário dos sistemas filosóficos e dos
modelos médicos, volta-se para os acontecimentos singulares, circunscrevendo a
experiência psicanalítica no registro da fantasia – nível de realidade distante do
empirismo científico.
Para fundamentar esse novo estatuto conferido ao saber psicanalítico nascem os
ensaios metapsicológicos conhecidos como: Pulsões e suas vicissitudes (1915),
Recalque (1915), Inconsciente, Luto e melancolia (1917[1915]) e Suplemento
metapsicológico à teoria dos sonhos (1917[1915]).
37
A pulsão ganha lugar de destaque nesse novo cenário, remanejando as principais
problemáticas com as quais Freud vinha lidando até então. Não por acaso, o texto que
inaugura a metapsicologia é Pulsões e suas vicissitudes, no qual Freud se debruça sobre
o conceito de pulsão, conferindo-lhe o estatuto de conceito fundamental.
Até esse momento os registros quantitativo e qualitativo da pulsão eram
considerados por Freud, mas a ênfase se detinha nesse último, onde a pulsão era
37
Ainda que não nomeados como metapsicológicos, por serem anteriores a essa definição freudiana,
trabalhos como o Projeto para uma psicologia científica (1895) e Interpretação dos sonhos (1900)
podem ser considerados como uma reflexão metapsicológica por tratarem, sobretudo, da articulação de
um aparelho psíquico.
102
cognoscível através de sua inscrição no campo da representação. A partir do capítulo
VII da Interpretação dos sonhos e dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade fica
claro que Freud concebe o aparelho psíquico sob um ponto de vista tópico e dinâmico,
ou seja, em função da relação de forças já atuantes no psiquismo e de como essas forças
se inscreviam nas diversas modalidades de registros psíquicos – Inconsciente, Pré-
consciente e Consciente. No referido ensaio inaugural da metapsicologia, Freud
acrescenta um quarto elemento essencial à pulsão: a força (Drang), rompendo com tal
ênfase sobre o aspecto qualitativo ao definir a pulsão eminentemente pelo aspecto
quantitativo de força.
A pulsão como força – pressão constante – começa a adquirir certa autonomia em
relação à representação, retomando a importância da economia das intensidades e dos
afetos.
38
Tendo em vista esse aspecto, Freud confere à pulsão uma definição bastante
condensada, mas de suma importância, que precisaremos analisar ponto a ponto.
A primeira derivação da introdução dessa dimensão de força à pulsão é que esta
passa a ser definida como “uma medida de exigência feita à mente no sentido de
trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo” (FREUD,
1915a/1996, p.127).
O que podemos depreender dessa asserção freudiana é que a pulsão como força (pura
energia pulsional, ainda destituída de inscrição psíquica) demanda um trabalho
incessante de ligação, transformação e interpretação no que tange a sua inscrição no
universo psíquico da representação. O aparelho psíquico se constitui então como
aparelho de domínio das excitações corporais que, através da mediação de um outro,
opera esse processo de simbolização da força pulsional, articulando-a num circuito onde
possa encontrar satisfação. O psiquismo configura-se como da ordem da representação –
lugar onde se realiza a inscrição da pulsão como força no campo da representação.
Podemos considerar que aqui Freud introduz um intervalo entre força pulsional e
representação da pulsão no psiquismo. Essa consideração traz algumas implicações. Em
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud confere um estatuto psíquico à
pulsão, sendo a própria o representante psíquico do corporal. Em suas palavras: “Por
‘pulsão’ podemos entender, a princípio, apenas o representante psíquico de uma fonte
endossomática de estimulação que flui continuamente, para diferenciá-la do ‘estímulo’
38
Essa formulação alcançará um desdobramento maior com a postulação da pulsão de morte, onde Freud
aponta para a existência de uma pulsão sem representação. Voltaremos em breve a esse ponto.
103
que é produzido por excitações isoladas vindas de fora” (FREUD, 1905/1996, p.159).
Até então não havia diferença entre a pulsão e seu representante psíquico.
Somente nos artigos sobre metapsicologia a questão se esclarece. Em seu artigo
sobre o inconsciente, Freud (1915b/1996) pondera que “uma pulsão nunca pode tornar-
se objeto da consciência – só a idéia que o representa pode. Além disso, mesmo no
inconsciente, uma pulsão não pode ser representada de outra forma a não ser por uma
idéia” (p.182).
No seu ensaio sobre o recalque, Freud (1915c/1996) esclarece que a pulsão se faz
representar no plano psíquico por seus representantes que são de duas ordens:
representante-representação e representante afetivo. A pulsão não é psíquica em si
mesma, somente seus representantes alcançam representação no psiquismo.
Desse modo, cai por terra a idéia inicial da pulsão como representante psíquico do
corporal. A pulsão não é nem psíquica nem corporal, constituindo-se na fronteira entre
ambos os registros. Decorre daí uma segunda definição de pulsão - conceito limite entre
o psíquico e o somático. É exatamente essa definição que vai circunscrever de forma
original a problemática da relação entre os registros somático e psíquico.
Com a ficção desse conceito de pulsão pela metapsicologia, Freud rompe com um
discurso biológico que ele mesmo ainda mantinha e que pudemos notar e problematizar
quando tratamos dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e da questão do apoio.
Ao postular a pulsão como limítrofe entre o psíquico e o somático Freud (1915a/1996)
delimita um novo campo epistêmico, sem precisar mais prestar contas à biologia.
A originalidade epistêmica do conceito de pulsão reside no fato de Freud reunir no
ser da pulsão as relações até então biunívocas entre o somático e o psíquico. A oposição
que caracterizava a relação entre esses registros se dissolve na idéia de pulsão proposta
por Freud, que incorpora o psíquico e o somático, não se reduzindo nem ao espaço
psíquico nem às fontes somáticas.
Birman (1993) faz uma leitura interessante desse aspecto crucial da pulsão,
entendendo-a como um ser de passagem e mediação que marca a transição entre o
somático e o psíquico. Segundo ele, “Freud configura a existência de dois campos
clínicos distintos, fundados em registros teóricos diferentes, mas que estabelecem
relações entre si, pois a ordem do corpo e a ordem da representação estão em
permanente interação, sendo a pulsão o mediador fundamental dessa passagem” (p.126).
104
Esse conceito de pulsão surge, então, como um desdobramento da questão da
relação entre o psíquico e o somático. Freud se dedica a essa problemática desde o
estudo sobre as afasias, atravessando sua investigação sobre as neuroses – que se
presentificou na oposição entre neuroses atuais e psiconeuroses – e se intensificando na
concepção de conversão – transposição da excitação da esfera psíquica para a esfera
somática. O conceito de pulsão é o ponto de chegada de todo esse desenvolvimento, que
emerge para circunscrever um novo campo para essas relações. Através dessa visada
original sobre a pulsão Freud vislumbra uma possibilidade de articulação inextricável
entre os dois registros, inaugurando definitivamente um novo objeto de saber, diferente
daquele da medicina e da psicologia.
Corpo e subjetividade ganham, com a perspectiva freudiana de pulsão, novos
contornos e uma especificidade em relação ao corpo para a medicina e a subjetividade
para a psicologia.
Percebemos nesse momento do discurso freudiano um primeiro deslocamento em
relação ao estatuto vitalista pregnante na sua primeira concepção de psiquismo, onde os
estímulos pulsionais eram imediatamente inscritos no aparelho psíquico enquanto
representantes do imperativo vital da sexualidade.
O intervalo que Freud agora pressupõe entra a força e a representação da pulsão
implica que um trabalho seja realizado para que a intensidade pulsional possa se
inscrever na cadeia psíquica das representações. Isto que dizer que não há uma
imanência vital que orgânica e homeostaticamente regule a inscrição dessa intensidade.
A idéia de trabalho revela bem a necessidade de uma mediação para que tal operação
seja possível. Consideraremos então agora a importância da alteridade nesse processo de
ligação e inscrição psíquica da excitação pulsional.
3.4. Mediação psíquica e alteridade
Já no Projeto para uma psicologia científica Freud (1895a/1996) indica a
importância de um outro ser humano para a constituição do aparelho psíquico, visto que
o organismo humano por si só seria incapaz de fazer frente às “exigências da vida”. É a
105
eliminação da tensão decorrente dos estímulos endógenos, através de uma outra pessoa
que vem executar uma ação específica, que dá lugar à experiência de satisfação.
Nas palavras de Freud:
“O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação
específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa
experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de
alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima
função da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte
primordial de todos os motivos morais” (
FREUD, 1895a/1996, p.370,
grifos de Freud).
Esse outro que proporciona a ação específica e a conseqüente experiência de
satisfação proporciona, junto com isso, a produção de imagens mnêmicas, ou seja,
representações, a partir das excitações sensoriais provenientes da descarga reflexa à
ação específica.
Sendo assim, o psiquismo vai se organizando a partir desse investimento do outro,
dessa relação com o exterior. O corpo está aí implicado: seus movimentos, suas
sensações provenientes da experiência de satisfação vão sendo representados.
Ainda no Projeto para uma psicologia científica, Freud nos aponta que é em
relação a seu semelhante que o ser humano aprende a conhecer, a discernir entre um
traço constante e um traço variável no outro, no objeto. Freud (1895a/1996, p.384)
denominou essa relação de “complexo do próximo” onde a partir da expressividade e da
corporeidade do outro (primeiro objeto de satisfação) o infans dá sentido a sua própria
corporeidade. Os traços do objeto percebido despertam a lembrança dos próprios traços
do sujeito e de suas experiências.
A partir do seu corpo e do corpo do outro, o infans aprende então a representar.
Freud (1895a/1996) coloca que a base do juízo é a presença de experiências corporais,
sensações e imagens motoras de si próprio. Nenhuma experiência sexual, por exemplo,
produz efeito enquanto o sujeito ignora qualquer sensação sexual. O juízo é a associação
entre catexias que chegam do exterior e catexias oriundas do próprio corpo. Assim, o
psíquico não se funda sem o corpo. As capacidades psíquicas estão no seu fundamento
ligadas à corporeidade, e o corpo vai sendo representado nesse psiquismo.
Em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade vemos novamente surgir
no texto freudiano essa referência ao papel do outro na constituição do corpo e do
106
psiquismo. Dessa vez o outro é representado pela figura materna, que com seu
investimento libidinal sobre o infans, permite a sexualização do corpo infantil e a
constituição do corpo erógeno. O olhar, o toque, o desejo materno dirigido à criança
“perverte” seu corpo, conduzindo-o à sexualidade infantil.
Desse encontro com a mãe aflora uma sexualidade transbordante que se pulveriza
numa pluralidade de zonas erógenas espalhadas pelo corpo. O corpo é fragmentado em
tantas quantas forem as possibilidades de gozo e satisfação pulsional. Desse modo, as
zonas erógenas demarcam um campo de intersecção entre o eu e o outro e, de acordo
com Birman (1999b), indicam a “porosidade” corporal e a descontinuidade da ordem do
corpo. Como nos lembra esse autor, a continuidade corporal seria uma ilusão biológica
e anatômica, desconstruída pela sexualidade.
O infans encontra-se em condição de grande desorganização e impotência,
inundado por intensa tensão pulsional. Diante de tamanho desamparo são as
experiências de satisfação, geralmente propiciadas pelo cuidado materno, que vão
garantir alento e orientação ao caos pulsional do pequeno ser. A mãe é a verdadeira
referência para a criança, faz um trabalho de mediadora entre o bebê e o meio externo e
sua presença propicia que experiências de satisfação das necessidades mais básicas se
realizem. A criança, através da rememoração dessas experiências de satisfação obtidas
com a mãe, inaugura um mundo de sonhos, fantasias, alucinações, enfim, ingressa na
dimensão da elaboração psíquica. Essas atividades fantasísticas são de fundamental
importância para que a criança elabore o acúmulo de tensão em seu aparelho.
Desse modo, a função materna exerce um papel indispensável no sentido de
conduzir o bebê a construir atividades de fantasia e representação. O bebê, por sua vez,
balizado nessas aquisições e na descoberta de ser desejante passa a estabelecer suas
relações com o outro e a constituir sua subjetividade.
Esse processo todo que se dá na relação entre a mãe e o bebê nada mais é do que a
inserção do corpo biológico da criança na dimensão da linguagem. A mãe vai aos
poucos conferindo sentido às sensações do bebê, transformando-as num dizer. A
linguagem dá sentido e forma às experiências corporais, de modo que não há existência
para o ser humano num âmbito exterior a ela. Assim, o corpo biológico vai sendo tecido
e colocado em uma posição inscrita pelo desejo de um outro.
A incompletude e descontinuidade do corpo são, então, o que coloca o sujeito na
dependência de um outro para realizar a experiência de satisfação. O corpo como uma
unidade não é originário, ao contrário, é uma conquista a partir de um imagem corporal
107
prefigurada e antecipada por um outro, representado pelas figuras parentais com o
advento do narcisismo.
A construção do eu e do corpo totalizado é resultante da idealização das figuras
parentais sobre o infans. Pode-se falar em um projeto narcísico dos pais em relação à
criança: esse corpo que adquire uma unidade já era falado pelos pais, já estava engajado
em uma história, em um mito familiar. O narcisismo infantil é, assim, fruto do
narcisismo dos pais, uma idéia de completude por eles perdida e reeditada na criança,
que vive então seu momento de onipotência – “Sua Majestade o Bebê” - estado original
do eu inteiramente investido pela libido, é o que Freud (1914/1996, p.98) delimita como
narcisismo primário marcado por um eu ideal onipotente. É o narcisismo se constituindo
como barreira contra o desamparo e a precariedade característicos do humano.
É somente através de um outro que a criança vai se perceber diferente e ser capaz
de construir uma representação mental de uma imagem unificada de si, e o narcisismo é
essa operação psíquica que faz com que o sujeito assuma a imagem de seu corpo como
sua e se identifique com ela.
39
O outro, através da linguagem e comunicação que detém, liga ao sujeito os
fundamentos de uma história na qual se inscrevem um passado e um futuro. O processo
de constituição do sujeito se origina, então, nesse investimento pulsional do outro
associado aos elementos da linguagem.
Podemos concluir que a intersubjetividade, pautada pela linguagem, é a condição
de viabilidade da produção singular de um corpo e de um sujeito do inconsciente. É
dessa relação intersubjetiva, baseada na primazia do sentido, que o enunciado freudiano
39
Lacan (1949/1998) denomina de estádio do espelho esse momento inaugural da constituição do eu que
Freud estabelece a partir do narcisismo, no qual o infans prefigura uma totalidade corporal a partir de sua
própria imagem no espelho, através do apoio (suporte) e do assentimento de um outro. Isso ocorre ainda
em uma fase anterior à aquisição da linguagem. Na verdade, há uma antecipação da imagem do eu diante
de uma prematuridade biológica (tanto do aspecto neurológico quanto do aspecto motor) do pequeno ser.
A criança, mergulhada ainda em uma grande impotência motora, se precipita na direção do que Lacan
chama de uma forma ortopédica, representada por uma Gestalt da totalidade do corpo. A constituição de
uma imagem unificadora do corpo se dá pela visão de um semelhante e pela visão de seu próprio corpo
através de sua imagem refletida no espelho. O sujeito apanhado na identificação espacial elabora
ilusoriamente a passagem de uma sensação despedaçada de seu corpo até uma imagem de sua totalidade,
de um corpo próprio. A criança descobre no espelho a unidade imaginária de um corpo que na verdade
são apenas sensações múltiplas e dispersas. Para Lacan (1949/1998), a imagem totalizada de si tem sua
origem no campo do outro, constituindo-se na dependência de uma relação intersubjetiva que demarca
dois eixos: o do sujeito e seu corpo e o do outro. O eu ganha consistência a partir da relação com o outro;
a percepção de seu corpo como inteiro se dá através de um outro que lhe sustenta e lhe dirige o olhar.
108
está tratando. O sujeito só se constitui através de um outro que sirva de suporte para a
transformação, interpretação e inscrição da força pulsional no campo da representação.
Esse é um aspecto importante a ser considerado, visto que a pulsão não é mais
imediatamente representada, é preciso o investimento alteritário para que a força
pulsional se ligue aos objetos e que o psiquismo se constitua. Na leitura de Birman
(2000a, p.136), a pulsão como força e medida de exigência de trabalho seria um
primeiro momento da formulação da hipótese da pulsão de morte, na medida em que
sem a intervenção do outro para mediar a inscrição psíquica o movimento seria para a
morte.
Contudo, esse aspecto ainda não é elucidado por Freud nessa primeira etapa do
pensamento freudiano, centrada na primeira tópica – Inconsciente, Pré-consciente,
Consciente – e eminentemente no campo da representação. Mesmo com a introdução do
elemento força à pulsão em 1915, que entendemos como um importante precursor da
introdução da pulsão de morte, a pulsão acaba por ser representada pela mediação do
outro, pois não havia ainda a idéia de uma pulsão sem representação, que somente surge
em 1920 com Além do princípio do prazer. Há, então, uma demanda de inscrição
necessária da pulsão no campo da representação.
Retomando Freud em A Interpretação dos Sonhos - capítulo VII – , quando
propõe o aparelho psíquico como um aparelho de memória, é de um trabalho de
representação e articulação de vias simbólico-associativas que ele está tratando. As
impressões referentes às primeiras vivências infantis, vivências de um corpo auto-
erótico, repleto de zonas erógenas são a expressão de pura intensidade. Essas
impressões, segundo esse primeiro modelo de tópica freudiano, seriam inscritas no
sistema de memória, transformando-se em traços mnêmicos, os quais por sua vez, em
conjunto, formariam um registro de associações, uma trama associativa.
O traço mnêmico, resultado de uma inscrição da impressão, é constitutivo de uma
zona erógena sendo, portanto, imediatamente corporal. Vê-se, assim, que a memória
psíquica é, antes de tudo, corporal. Esse conjunto de traços inscritos que forma o
aparelho psíquico é ao mesmo tempo psíquico e corporal.
109
Quando a impressão não se inscreve, ou seja, não vira traço e, portanto, não é
mediatizada pela lembrança, ela adquire o estatuto de marca
40
. As marcas estariam,
então, para além do domínio do princípio do prazer, apontando para uma outra ordem
que não a da representação. Freud se deteve no domínio dos traços porque nesse
momento estava preocupado com o sistema associativo-representativo.
A partir dessa breve retomada da constituição do aparelho psíquico por Freud em
A Interpretação dos Sonhos, podemos ver não só a fronteira entre o psíquico e o
corporal na base da concepção freudiana da constituição da subjetividade, como
também a fronteira entre o campo da representação (com a idéia de traço e inscrição) e o
campo da não representação (com a idéia de impressão e marca). Esses dois âmbitos
coexistem no psiquismo e se Freud priorizou o limite do representável na primeira parte
de sua teoria foi para dar conta das psicopatologias de sua época, ou seja, as chamadas
psiconeuroses de defesa, caracterizadas por um sintoma neurótico cuja via de formação
é simbólica.
Até este momento Freud concebia a força pulsional como inscrita no campo das
representações, ligada aos objetos através da experiência de satisfação, sendo a pulsão
representada como sexual e regulada pelo princípio do prazer. Esse fato nos convoca a
delimitar a concepção de corpo que Freud nos aponta nesse momento. Parece-nos viável
conceber o corpo nos limites da representação, da inscrição pulsional no aparelho
psíquico. O domínio da força pulsional, ou ainda, o amansamento das intensidades
pulsionais ficaria destinado à criação de vias simbólico-associativas.
Visualizamos, desse modo, a hegemonia representacional dessa primeira
metapsicologia freudiana, onde corpo e psiquismo se constituem centrados no campo da
representação. Da mesma maneira, podemos entender também a escuta psicanalítica
voltada para o deciframento das inscrições, delimitando a sua metodologia no campo da
interpretação. O analista é, em última instância, o intérprete dos representantes da
pulsão.
Nesse contexto, tornar consciente o inconsciente era o objetivo de uma análise. O
trabalho analítico se direcionava para a busca de significações recalcadas. O
entendimento do sintoma e do psiquismo se enquadrava dentro dessa perspectiva
40
Garcia-Roza (1991) aponta que não há uma distinção clara em Freud entre os termos impressão e traço,
mas sinaliza que a impressão, referente à idéia de eindrücke em Freud, indica para o que ele chama de
marca (prägung), ou seja, algo que não recebeu inscrição e que permanece como pura intensidade.
110
representacionista, onde as intensidades pulsionais se inscreviam no campo das
representações, numa relação dinâmica entre os diferentes sistemas ou instâncias
psíquicas (Ics, Pcs-Cs). Desse modo, num primeiro momento, a psicanálise só poderia
examinar os sintomas que se inscreveriam no universo da representação, tanto que, as
neuroses atuais - onde a excitação não alcançava representação psíquica - ficaram de
fora dos domínios do analisável.
A emergência, no horizonte freudiano, de sintomas como a repetição, o apego à
doença, o sentimento de culpa, a necessidade de punição e os fenômenos do
masoquismo vão colocar em xeque o princípio do prazer, atestando que os eventos
mentais não são exclusivamente governados por ele e indicando a presença de uma nova
categoria pulsional que Freud vai denominar de pulsão de morte. Nesse segundo
momento, o limite do irrepresentável vai se fazer presente tanto em sua demanda clínica
quanto na sua obra. Freud só veio a se deter nesse domínio do irrepresentável com a
introdução do conceito de pulsão de morte. Nesse contexto, a dimensão intensiva da
pulsão vai ganhar destaque, constituindo-se como um divisor de águas no pensamento
freudiano.
3.5. A entrada da morte na cena psíquica
A ênfase no aspecto de força da pulsão introduzido por Freud em 1915, no artigo
Pulsões e suas vicissitudes, atinge maiores proporções com a conceituação da pulsão de
morte, onde a força pulsional se autonomiza do campo da representação, denotando a
existência de uma modalidade de pulsão sem representação.
Como vimos, até 1915 Freud vinha trabalhando com a questão da força pulsional
já atuante no conflito psíquico, ou seja, com a força já inscrita no registro da
representação. Com a conceituação pulsional de 1915 Freud pressupõe que a força
precisa ser trabalhada para que ingresse no campo psíquico da representação, haja vista
a idéia que mencionamos de um intervalo entre força e representação. Aparece nesse
contexto a formulação de uma pura energia que precisa passar por um processo de
inscrição no domínio psíquico.
111
Esse conceito de pulsão limítrofe entre força e representação e como medida de
exigência de trabalho estabelece as bases energéticas para o funcionamento do
psiquismo. Desse modo, o conceito de pulsão de 1915 abriu um novo horizonte para
Freud, ainda que centrado eminentemente no campo da representação. Entretanto, essa
hegemonia representacional começa a ser relativizada com a questão da força da pulsão,
sendo a partir de 1920 então contraposta com a emergência de uma pulsão sem
representação - a pulsão de morte. A pulsão atinge, assim, maior radicalidade conceitual
com as postulações da segunda teoria pulsional.
A teoria das pulsões sofre uma mudança radical a partir de 1920. A pulsão passa a
ser pensada autonomamente como tendo uma existência fora da configuração
representativa do aparelho. O conceito de pulsão de morte vem para abarcar exatamente
essa dimensão da pulsão que até então não tinha sido suficientemente explorada. Freud
se deteve por um bom tempo atrelado ao deciframento das representações. No entanto, o
que tinha sido deixado de lado retorna: a intensidade do afeto é retomada nos escritos de
1915-20.
O campo psicanalítico até então constituído pela ordem abre espaço para o caos,
para o acaso, transformando assim a própria prática psicanalítica. O primeiro dualismo
pulsional que teria ficado fragilizado com a introdução do narcisismo é mantido até esse
período de 1920 quando Freud então sustenta um novo dualismo: pulsões de vida (que
passam a englobar as pulsões sexuais e as pulsões do eu ou de autoconservação) e a
pulsão de morte.
A situação que fez Freud promover a chamada virada da teoria pulsional pode ser
assim situada: Freud (1920/1996) começava a se deparar com o fenômeno de compulsão
à repetição, evidenciado principalmente nos sonhos das neuroses traumáticas e na
neurose de transferência. O desprazer se evidenciava nessa modalidade de repetição,
colocando em xeque o princípio do prazer e trazendo a exigência de uma remodelação
teórica.
Nos sonhos das neuroses traumáticas, o paciente revivia repetidamente a situação
traumática por ele vivenciada, com toda a carga de terror e angústia a ela referida. Na
relação analítica das chamadas neuroses de transferência, o paciente repetia
compulsivamente todas as suas dores e fracassos. Em ambos os casos, Freud
(1920/1996) observava que a repetição não visava nenhuma satisfação pulsional, como
112
rege o princípio do prazer, mas antes a dominação de um excesso de excitação ainda
não tramitado pelas vias associativas.
Nesse contexto, o aparato simbólico não dava conta integralmente do pulsional, de
onde a repetição, a atualização e a desorganização. O que se repete é o que não se
consegue simbolizar, há sempre um resto não simbolizável referente a uma pulsão que
desagrega ao mesmo tempo em que confere movimento ao sistema. Nas palavras de
Freud:
“Se tomarmos em consideração o quadro total formado pelos fenômenos de
masoquismo imanentes em tantas pessoas, a reação terapêutica negativa e o
sentimento de culpa encontrados em tantos neuróticos, não mais poderemos
aderir à crença de que os eventos mentais são governados exclusivamente
pelo desejo de prazer. Estes fenômenos constituem indicações inequívocas
da presença de um poder na vida mental que chamamos de pulsão de
agressividade ou de destruição, segundo seus objetivos, e que remontamos
a pulsão de morte original da matéria viva” (
FREUD, 1937a/1996,
p.259).
Assim, a pulsão de morte é o que está “para além do princípio do prazer”, para
além da ordem e do próprio aparato psíquico. Almeja sua própria extinção, atuando na
busca de um retorno ao estado mais primitivo, inorgânico. Enquanto as pulsões de vida
são numerosas e ruidosas e trabalham em prol da eliminação das diferenças, exercendo
uma função conservadora e de resistência à anulação, a pulsão de morte é invisível e
silenciosa e trabalha no sentido da dissolução, da destruição. No entanto, Freud
(1920/1996) as concebe sempre misturadas, nunca em estado puro. Por existirem juntas
o movimento pulsional não se extingue, ao contrário, está em permanente movimento.
Desse modo, com a virada de 1920, Freud (1920/1996) estabelece a autonomia da
força pulsional e aponta para o conceito de pulsão de morte como pulsão sem
representação.
Como há uma autonomia da força pulsional, que agora tende à quietude absoluta
possibilitada pela descarga total, é preciso primeiro um domínio dessa força e sua
inscrição psíquica para que, então, passe a reger o princípio do prazer. Nesse sentido, há
um além, ou melhor dizendo, um aquém do princípio do prazer que é a pulsão de morte,
assim nomeada por almejar a extinção (FREUD, 1920/1996).
113
Desse modo, a compulsão à repetição é “mais primitiva, mais elementar, mais
pulsional que o princípio do prazer que ela domina” (FREUD, 1920/1996, p.34). A
função repetitiva é anterior ao princípio do prazer, refere-se ao tempo de inscrição das
impressões no psiquismo. O reinado do princípio do prazer é contrariado por tendências
mais originárias de inércia da vida (descarga total da excitação). A função da compulsão
à repetição é a de dominar ou ligar a excitação para que então possa se estabelecer o
primado do princípio do prazer, tendência então secundária ao movimento para a
descarga.
A pulsão de morte remete para o excesso pulsional, como força fora do campo da
representação, que irrompe dentro do aparelho psíquico e que, por esse motivo, se
configura como traumático. Diante dessa invasão da pura força pulsional o psiquismo
terá uma tarefa prévia ao acionamento do princípio do prazer, que consiste na primeira
ligação dessa quantidade de energia para que, então, possa se dar a descarga.
No modelo de aparelho psíquico do Projeto para uma psicologia científica (1895)
e do capítulo VII da Interpretação dos sonhos (1900) a ligação pertencia ao registro do
processo secundário do funcionamento psíquico, onde a energia livre que tendia a
descarga total do processo primário se convertia em energia ligada à representação
através da regulação do princípio de prazer, cujo imperativo de manter constante a
energia no aparelho impedia tanto um excesso de energia acumulada quanto a descarga
total da mesma.
A idéia de ligação presente em Além do princípio do prazer, ao contrário, está
referida ao registro do processo primário, a partir da qual se tornará possível a
instalação do processo secundário regido pelo princípio do prazer. Essa primeira ligação
é que vai permitir a posterior captura pela representação e a descarga do estímulo.
Desse modo, a pulsão de morte que tende a um retorno à quietude e ao inanimado
é regida pelo princípio de nirvana que busca alcançar um ponto zero de tensão através
da descarga total, apontando para uma dimensão conservadora da pulsão (FREUD,
1920/1996).
Diante de um contexto subjetivo marcado por experiências de sofrimento e
desprazer que desbancavam o governo do princípio do prazer, Freud (1924/1996) foi
levado a corrigir a hipótese do primado de tal princípio na vida mental. Foi a partir de
uma análise do masoquismo que Freud revisa, a partir da pulsão de morte, o que
114
anteriormente, mais propriamente em Projeto para uma psicologia científica, teria
estabelecido como a exigência de uma constância energética no aparelho psíquico.
Freud então retoma a idéia inicial do Projeto, de um princípio de inércia voltado
para a descarga total das excitações num movimento em direção à morte, dando a este o
nome de princípio de nirvana. Somente num segundo momento tal princípio
experimentaria, pela ação das pulsões de vida, uma modificação que acarretaria na
assunção do princípio do prazer na regulação da vida. Freud (1924/1996) esclarece da
seguinte maneira o domínio dos diferentes princípios que atuam no psiquismo: “o
princípio de Nirvana expressa a tendência da pulsão de morte; o princípio de prazer
representa as exigências da libido, e a modificação do último princípio, o princípio de
realidade, representa a influência do mundo externo” (p.178, grifos de Freud).
Sendo assim, Freud enuncia uma dupla definição da pulsão de morte. A primeira
relacionada à pulsão como excesso, vinculada ao trauma por sua dimensão intensiva que
pressiona constantemente o psiquismo à inscrição da força pulsional e à reordenação das
representações já inscritas no aparelho. A segunda relacionada à tendência primeira do
organismo à descarga total que se associa ao princípio de nirvana na busca de um
escoamento total da tensão e do retorno ao inanimado.
Ao aniquilamento referente à pulsão de morte Freud (1920/1996) contrapõe a
força de Eros que se refere às pulsões de vida, as quais propiciam ligação para o excesso
disruptivo da pulsão de morte. Se a concepção do dualismo pulsional tão crucial para
Freud havia sido abalada com a introdução do narcisismo, ela se restabelece sob a
oposição entre pulsão de morte e pulsões de vida. Podemos observar textualmente a
satisfação de Freud em poder recuperar e então consolidar, com a segunda teoria
pulsional, sua perspectiva dualista: “Nossas concepções, desde o início, foram dualistas
e são hoje ainda mais definitivamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a
oposição como se dando, não entre pulsões do ego e pulsões sexuais, mas entre pulsões
de vida e pulsões de morte” (FREUD, 1920/1996, p.63).
Novamente a conflitualidade se demarca entre o sexual (aglutinação da pulsão
sexual com a pulsão do eu – agora também concebida como sexual - sob a rubrica de
pulsões de vida) e o não sexual (pulsão de morte). Se no primeiro dualismo o sexual
detinha uma dimensão diabólica de perturbador da ordem que precisava ser censurado
pelas pulsões do eu não-sexuais, nesse segundo dualismo a sexualidade é a condição da
115
vida na medida em que propicia as ligações necessárias para fazer frente à tendência
originária à morte. Se antes a pulsão do eu ou de autoconservação visava preservar a
vida diante da pulsão sexual, agora é Eros que exerce essa função diante da pulsão de
morte.
Com a concepção da pulsão de morte, Freud teve que se abrir para uma nova
perspectiva de psiquismo
41
. Já que a pulsão não é só representação, e Freud aponta para
isso com o próprio conceito de pulsão de morte, ele precisou pensar um pólo de
intensidade, um espaço para além da representação no psiquismo. Com isso, logo após a
segunda teoria pulsional, Freud (1923/1996) elabora um segundo modelo de tópica.
A primeira tópica (FREUD, 1900/1996) se constituía por diferentes sistemas de
representação – Inconsciente, Pré-consciente, Consciente – sendo o Inconsciente
equivalente ao material recalcado (ou seja, a sexualidade perverso polimorfa) pelo Eu
consciente à serviço da autoconservação. A instância do Eu estaria protegida do
Inconsciente e da sexualidade pela ação do recalque.
A segunda tópica passa a abarcar um pólo no psiquismo puramente pulsional,
desvinculado ainda de qualquer representação – o Isso, que abrange o lugar da não
inscrição pulsional e da energia não ligada referente à pulsão de morte. Desse modo, o
Isso é maior que o inconsciente recalcado (composto pelas representações da força
pulsional), pois além deste comporta a existência das pulsões sem representação: todo
recalcado é inconsciente, mas nem todo inconsciente é recalcado (FREUD, 1923/1996,
p.31).
O Isso é considerado o reservatório da energia psíquica, de onde advirá o Eu e o
Supereu, as outras duas instâncias que junto com o Isso compõem a segunda tópica
freudiana. Tanto o Eu como o Supereu possuem uma parte ligada ao Isso. Desse modo,
Freud (1923/1996) aponta que o Eu possui uma parte que é inconsciente, sendo também
agido por forças incontroláveis: “O ego está sujeito também à influência das pulsões, tal
como o id” (p.53).
Assim, ao autonomizar o conceito de pulsão do registro da representação,
posicionando-o entre força e representação, Freud vai além do campo das
41
Visamos somente apontar, de modo geral, para os principais desdobramentos para a concepção de
psiquismo da entrada da pulsão de morte no pensamento freudiano, visto que a mesma se constitui como
o fio condutor que perpassa o presente capítulo. Não pretendemos, nos limites desse trabalho, dar conta
de tais implicações que sabemos terem repercussões maiores na obra de Freud, mas apenas indicar que a
pulsão de morte se fará presente também no aparelho psíquico.
116
representações priorizado na primeira tópica, concebendo na segunda tópica um lugar
para a pulsão de morte no psiquismo.
Consideraremos, então, a seguir, as implicações dessa virada da teoria pulsional
no pensamento freudiano.
3.6. Pulsão e alteridade: o fundamento mortalista
Freud realiza então uma outra leitura do humano e da constituição psíquica e
subjetiva, pautando-se num fundamento mortalista (BIRMAN, 1999b). A vida não se
afirma por si só como havia pensado. A existência da pulsão de morte indica que o
movimento básico do organismo é para a morte (FREUD, 1920/1996). Nesse sentido,
Freud se inscreve numa tradição iniciada por Bichat, cujo postulado é de que a “vida é o
conjunto de forças que lutam contra a morte” (BICHAT
apud BIRMAN, 1999b, p.158).
A vida, então, é o resultado de um esforço contínuo para dominar essa tendência
originária à morte. Segundo Birman (1999b, p.158), nessa perspectiva, a vida seria uma
construção contínua e um vir-a-ser permanente, não sendo uma tendência originária do
organismo humano.
Visualizamos, com isso, uma mudança em relação ao modelo vitalista presente no
discurso freudiano até esse rompimento de 1920. Conforme apresentamos acima, desde
o Projeto para uma psicologia científica, Freud postula uma “exigência da vida” que
faz o organismo funcionar e o psiquismo se constituir. Nos Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade, ao postular o primeiro quadro da teoria das pulsões – opondo pulsões de
autoconservação e pulsões sexuais – Freud reserva um papel de suporte biológico à
conservação da vida, a partir do qual a sexualidade se constituiria.
Na seqüência desse pensamento, em 1910, pulsões do eu e pulsões de
autoconservação tornam-se equivalentes e, assim, o eu aparece como estrutura psíquica
fundada na autoconservação do indivíduo. O eu seria a instância que poderia manter os
interesses vitais do mesmo.
Vimos que esse quadro começa a se reverter com a introdução do narcisismo, em
1914, onde o eu passa a ser sexualizado, objeto de investimento libidinal. No entanto,
Freud ainda se referia ao interesse no que diz respeito à natureza das pulsões do eu, para
manter o dualismo em relação às pulsões sexuais, tornando esse ponto obscuro.
117
No entanto, é somente com a virada para a segunda teoria pulsional que Freud
consolida a sua mudança de posição de um modelo vitalista para um modelo mortalista,
questionando definitivamente o peso que conferira à autoconservação biológica da vida.
Podemos constatar isso nas suas próprias palavras:
“A hipótese de pulsões de autoconservação, tais como as atribuímos a todos
os seres vivos, alteia-se em acentuada oposição à idéia de que a vida
pulsional, como um todo, sirva para ocasionar a morte. Vista sob essa luz, a
importância teórica das pulsões de autoconservação, auto-afirmação e
domínio diminui grandemente [...] Não temos mais de levar em conta a
enigmática determinação do organismo (tão difícil de encaixar em qualquer
contexto) de manter sua própria existência frente a qualquer obstáculo. O
que nos resta é o fato de que o organismo deseja morrer apenas do seu
próprio modo” (FREUD,
1920/1996, p.50).
Com isso, Freud contrasta sua visão prévia de que a pulsão era um fator impelidor
no sentido da mudança e do desenvolvimento com sua mais nova concepção, na direção
oposta, de que a pulsão é a expressão da natureza conservadora do ser vivo. Assim,
Freud destrona o fundamento vitalista da pulsão e condiciona o desenvolvimento e a
manutenção da sobrevivência às influências externas decisivas, as quais “obrigam a
substância ainda sobrevivente a divergir mais amplamente de seu original curso de vida
e a efetuar détours mais complicados antes de atingir seu objetivo de morte” (FREUD,
1920/1996, p.49).
Isso remete para uma outra lógica no pensamento freudiano. A existência
subjetiva passa a estar inevitavelmente atrelada à externalidade, ao investimento do
outro. Essa nova abordagem será sustentada nessa virada pulsional, com o enunciado de
que o organismo tende para a morte. O aparelho psíquico, o corpo e o sujeito só se
constituem e se mantêm pelo investimento do outro que vai conferir viabilidade para a
vida erógena e psíquica e, desse modo, oferecer uma ligação à força pulsional.
Podemos demarcar não mais um apoio interno do psiquismo no orgânico – como
aparece nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade -, mas um apoio externo,
lançado na relação do organismo com o outro. Nesse sentido, o organismo só sobrevive
com a possibilidade de constituição psíquica, dito de outra forma, o psiquismo é a
condição de viabilidade do organismo.
118
No Projeto para uma psicologia científica e nos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, o outro desde já assume um papel importante, seja de promover a ação
específica, seja de sexualizar o corpo do infante, mas o outro ainda não tem o estatuto
de condição de possibilidade de existência, pois há a crença de Freud na
autopreservação de si referida ao plano da natureza e da biologia.
Com a introdução do narcisismo que sexualiza até mesmo a autoconservação e
com a ênfase na força pulsional a partir de 1915, Freud se encaminha para a virada na
teoria pulsional, vislumbrando o mortalismo. O outro passa a ser condição de existência
e viabilidade de constituição psíquica (BIRMAN, 1999a), plano esse antes referido a
uma ordem da vida que se impunha.
O que fica explícito desde o contexto da introdução do narcisismo (FREUD,
1914/1996) é que o eu não é originário, não existe inicialmente a unidade denominada
eu, mas apenas a dispersão das pulsões auto-eróticas. Se o eu não é originário ele se
constitui a partir do outro, assim como o corpo pulsional e a subjetividade.
Em O Ego e o Id Freud (1923/1996, p.39) vai indicar que “o ego é, primeiro e
acima de tudo, um ego corporal”, isto é, ele “não é simplesmente uma entidade de
superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície”, retomando assim, à luz da
segunda teoria pulsional, o que ele já tinha formulado em 1914 quando pensou o
narcisismo. O que podemos depreender dessa asserção freudiana é que o corpo confere
um estatuto de unidade ao eu. Freud nos aponta para a constituição egóica através de
uma representação corporal só tornada possível pelo assentimento de um outro. A
possibilidade de representar o corpo próprio lançada na alteridade nos aponta, mais uma
vez, para a importância do outro para a existência subjetiva.
A emergência da pulsão de morte e a sua decorrente ênfase no aspecto econômico
do aparelho psíquico implicarão em uma desconstrução do espaço analítico até então
fundando sobre o domínio da representação. A pulsão de morte enquanto uma
intensidade que precisa ser trabalhada e dominada psiquicamente desorganiza o campo
instituído dos processos normativos representacionais. Freud anuncia uma mudança de
paradigma quando postula que a vida não se afirma por si só como ele havia pensado. A
existência da pulsão de morte indica que o movimento básico do organismo é para a
morte. A vida, então, é o resultado de um esforço contínuo para dominar essa tendência
originária à morte.
119
Para Birman (2007d, p.545) a presença da morte no fundamento da vida anuncia
uma nova biologia freudiana que reverte o estatuto vitalista inicial do discurso
freudiano. O autor deriva dessa reversão, que traz à tona a questão da finitude do
sujeito, importantes conseqüências para o conjunto teórico-clínico da psicanálise.
“Isso implica dizer que, em tal contexto, a cura passa pelo domínio e
ligação constante da pulsão de morte pela pulsão de vida, de modo que o
movimento mortalista do vivente em direção ao inorgânico poderia ser
revertido na afirmação desejante da vida. O ideário da normatividade
sexual, presente na primeira metapsicologia freudiana, desaparece aqui
definitivamente, diante do reconhecimento eloqüente do primado do
movimento em direção à morte, presente agora no psiquismo” (BIRMAN,
2007, p.545).
A tradição mortalista aproxima Freud de uma concepção trágica da existência,
deslocando-o de uma racionalidade médico-científica em direção ao campo da
especulação. A entrada da pulsão de morte desarrumou a técnica racional da
interpretação, contrapondo-se como aquilo que resiste à captura pela representação. Em
Análise terminável e interminável Freud (1937a/1996) rompe com o ideário de
protocolo de cura, assumindo a resistência como constitutiva da experiência
psicanalítica, ao passo em que afirmava a impossibilidade de sanção do conflito.
Freud abre esse ensaio referindo-se à pressa e à impaciência da ciência médica não
só em relação aos “danos invisíveis” da neurose, mas também com o tempo necessário
para tratá-la. Diante disso aborda a questão da extensão de tempo necessária para um
tratamento analítico, examinando as tentativas de encurtá-lo e exemplificando uma de
suas estratégias, como a fixação de uma data para o término de uma análise.
Perante o que ele denomina de discussão sobre o problema técnico de como
acelerar o lento progresso de uma análise, Freud acrescenta a questão, muito mais
importante nesse contexto, de saber se existe a possibilidade do término de uma análise.
Para dar conta de tal indagação, Freud (1937a/1996, p.236) adverte que os analistas
estavam no caminho errado ao se perguntarem de que modo se dá a cura pela análise,
questão para ele já elucidada. A pergunta certa seria muito mais investigar quais os
obstáculos que se colocam no caminho da cura.
Freud especifica então três fatores decisivos que podem operar para o sucesso ou o
fracasso da eficácia do tratamento analítico: a influência dos traumas, a força das
120
pulsões e as alterações do eu. Interessa-o particularmente aprofundar o fator força das
pulsões, em um movimento explicitamente confesso de retomada do aspecto econômico
da teoria pulsional.
O questionamento se desenrola no sentido de investigar a possibilidade de
amansamento de uma exigência pulsional,que sua definitiva extinção é impossível.
Freud sustenta a idéia da necessidade de um trabalho no sentido de amansar a pulsão,
colocando-a em harmonia com o eu e, desse modo, impedindo que a mesma rume em
direção à satisfação. Fica clara a sustentação freudiana da indestrutibilidade do conflito
psíquico, é preciso, contudo, saber amansá-lo.
O viés que Freud escolhe para propor os meios que nos levarão a tal fim é
declaradamente especulativo. Parafrasiando Goethe, diz-nos ele: “‘Temos de chamar a
Feiticeira em nosso auxílio, afinal de contas!’ – a Metapsicologia da Feiticeira. Sem
especulação a teorização metapsicológica – quase disse ‘fantasiar’ -, não daremos outro
passo à frente” (FREUD, 1937a/1996, p.241). Diante da irrevogável força das pulsões,
Freud invoca a metapsicologia como seu ponto de apoio para a análise da relação entre
forças (da pulsão e do eu) que se estabelece no psiquismo.
O desequilíbrio dessa relação pode vir tanto do enfraquecimento egóico quanto de
um incremento quantitativo da pulsão. No primeiro caso, é interessante notar o quanto
Freud recupera a importância de fatores não específicos na etiologia da neurose, que
teriam sido relegados inicialmente na sua teoria. Tais fatores como doenças, exaustão,
trabalho excessivo poderiam acarretar a diminuição da força do eu e a subseqüente
perda de sua capacidade de manter sob controle as exigências pulsionais. No segundo
caso, Freud pressupõe a existência de reforços fisiológicos da pulsão (como a puberdade
e a menopausa nas mulheres) bem como aqueles ocasionados por novos traumas e
frustrações, resultando em uma acentuação do fator quantitativo na causação da doença.
Tendo em vista essa relação Freud especifica sua concepção de saúde, a qual o
inscreve em uma tradição bem distante daquela definida pelos cânones da medicina
científica: “É impossível definir saúde, exceto em termos metapsicológicos, isto é, por
referência às relações dinâmicas entre as instâncias do aparelho psíquico que foram
identificadas – (ou se se preferir) inferidas ou conjecturadas – por nós” (FREUD,
1937a/1996, terceira nota de rodapé, p.241).
121
Dentro desse contexto de reformulação teórico-clínica em função do
estabelecimento da pulsão de morte, Freud insiste na relação dinâmica entre as forças,
repetindo inúmeras vezes ao longo do texto a importância da linha quantitativa e/ou
econômica de abordagem, num esforço de correção por tê-la negligenciado
42
.
Todo o peso do sucesso terapêutico da análise recai nesse momento sobre o
domínio do fator quantitativo da força pulsional, o qual representa agora um limite à
eficácia do trabalho analítico. Freud é incisivo ao dizer que a missão a que a análise se
propõe na teoria de controlar a pulsão nem sempre se confirma na prática. Diante de um
excesso pulsional, mesmo um ego apoiado pela análise pode fracassar em sua tarefa de
amansar a força da pulsão. Freud (1937a/1996) reconhece a limitação e a restrição das
ferramentas de que a análise dispõe, declarando que “o resultado final depende sempre
da força relativa dos agentes psíquicos que estão lutando entre si” (p.245).
O tema da resistência mobiliza o pensamento freudiano, visto que se evidencia de
múltiplas formas na cena analítica, assim como a questão da transferência negativa
levantada por Ferenczi. Freud (1937a/1996) visualiza não só a resistência, mas a
resistência contra a revelação das resistências; não apenas o resistir a tornar consciente o
inconsciente, mas também o resistir à análise e ao restabelecimento. Um golpe se abateu
sobre a garantia de uma “lealdade inabalável ao trabalho de análise” (p.255-256),
conduzindo Freud justamente a refletir sobre a eficácia de seu dispositivo.
Nesse contexto marcadamente mortalista é em termos de luta e embate bélico que
Freud circunscreve as condições de desfecho de uma cura analítica:
“É fácil, portanto, aceitar o fato, demonstrado pela experiência cotidiana, de
que o resultado de um tratamento analítico depende essencialmente da força
e da profundidade da raiz dessas resistências que ocasionam uma alteração
do ego. Mais uma vez nos confrontamos com a importância do fator
quantitativo e mais uma vez somos lembrados de que a análise só pode
valer-se de quantidades de energia definidas e limitadas que têm de ser
42
São notáveis as seguintes passagens: “(...) nossos conceitos teóricos negligenciaram dar à linha
econômica de abordagem a mesma importância que concederam às linhas dinâmica e topográfica. Minha
desculpa, portanto, é a de que estou chamando a atenção para essa negligência” (FREUD, 1937a/1996,
p.242); “(...) tivemos a ocasião de reconhecer a importância suprema do fator quantitativo e de acentuar a
reivindicação da linha de abordagem metapsicológica a ser levada em consideração em qualquer tentativa
de explicação” (FREUD, 1937a/1996, p.251); “Mais uma vez nos confrontamos com a importância do
fator quantitativo e mais uma vez somos lembrados de que a análise só pode valer-se de quantidades de
energias definidas e limitadas que têm de ser medidas contra as forças hostis” (FREUD, 1937a/1996,
p.256).
122
medidas contra as forças hostis. E aparece como se a vitória, de fato, via de
regra esteja do lado dos grandes batalhões” (FREUD, 1937a/1996, p.256).
Num discurso permeado pela retórica da guerra não há garantias de que a análise
vença as resistências, ou em outros termos, de que a pulsão de vida domine a pulsão de
morte, de que o princípio do amor vença o da discórdia: quem tiver mais força vence a
batalha. A pulsão de morte se configura definitivamente como um impasse tanto na
experiência clínica quanto na teórica, o que conduziu a uma fria atitude de Freud com
relação às ambições terapêuticas da psicanálise.
Nesse momento, Freud está inteiramente envolvido pela complexa relação entre
pulsões de vida e pulsão de morte, e poderíamos dizer, intrigado pelos destinos que a
fusão ou desfusão dessas pulsões possam tomar:
“Como parte dessas duas classes de pulsões se combinam para
desempenhar as diversas funções vitais, sob que condições tais
combinações se afrouxam ou se rompem, a que distúrbios essas mudanças
correspondem e com que sensações a escala perceptual do princípio do
prazer a elas responde – são problemas cuja elucidação seria a façanha mais
gratificante da pesquisa psicológica. No momento, temos de nos curvar à
superioridade das forças contra as quais vemos nossos esforços redundar
em nada” (FREUD, 1937a/1996, p.260).
A introdução de uma quota de agressividade livre na vida psíquica leva Freud
(1937a/1996, p.261) a sugerir que até mesmo a noção de conflito psíquico seja revista a
partir da expressão da pulsão destrutiva ou agressiva.
Todos esses esforços de Freud diante de uma nova cena psíquica agora
emoldurada pelo conflito entre dois gigantes, a vida e a morte, acenam para a condição
da finitude humana e, consequentemente, para o limite da analisabilidade e da cura.
Birman (2007d) contrasta as ambições terapêuticas e curativas dos primórdios da
psicanálise, contemporâneas do momento vitalista do pensamento freudiano, a esse
projeto quase infinito de cura que aparece nos últimos ensaios de Freud. Referindo-se à
Análise terminável e interminável o autor comenta: “Seria, portanto, o trabalho
silencioso da pulsão de morte o que faria uma oposição constante, no psiquismo, ao
trabalho psicanalítico, delineando agora o esboço da análise sem fim” (p.546).
Para Birman (2007d), esse remanejamento freudiano permite um deslocamento do
sentido médico da idéia de cura para o sentido de uma experiência de cura onde a pulsão
123
de vida deve, num trabalho incessante e permanente, se contrapor à força da pulsão de
morte, uma vez que o psiquismo não é mais regulado pela homeostase e normatividade
do sexual.
É pelo reconhecimento dessa necessidade de um embate contínuo contra as forças
que tendem para o apaziguamento da morte que Freud postula, então, no fim de sua
obra, que a análise não só do paciente, mas também do próprio analista, se transforma
em uma tarefa interminável. Contudo, ele adverte que isso não quer dizer que considere
a análise um assunto sem fim, ao contrário, seu término é uma questão prática. O caráter
interminável reside, muito provavelmente, na luta infindável entre as pulsões de vida e a
pulsão de morte que permeia o aparelho psíquico.
Sendo assim, Freud encerra o referido ensaio alertando que o objetivo da análise
não reside na busca de uma normalidade – o que para ele faz parte do campo de uma
ficção ideal – e/ou de uma imunidade contra a intensidade dos afetos e conflitos. Mais
do que isso, entendemos que a análise para Freud, nesse momento de seu pensamento, é
uma ferramenta que nos possibilita reforçar a munição para o inevitável e incessante
confronto contra as forças da pulsão de morte.
“Nosso objetivo não será dissipar todas as peculiaridades do caráter
humano em beneficio de uma ‘normalidade’ esquemática, nem tampouco
exigir que a pessoa que foi ‘completamente analisada’ não sinta paixões
nem desenvolva conflitos internos. A missão da análise é garantir as
melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego; com
isso, ela se desincumbiu de sua tarefa” (FREUD, 1937a/1996, p.267).
A partir dessas considerações em torno da teoria pulsional, é preciso retomarmos
agora a oposição apontada no capítulo anterior
43
entre as categorias de normatividade e
de normalização. Se os primórdios vitalista da teoria das pulsões indicavam para uma
normatividade biológica intrínseca ao funcionamento do aparelho psíquico, aqui, ao
cabo do empreendimento de reformulação de tal teorização, o fundamento mortalista
acena para o incansável trabalho que o psiquismo deve empreender para mediar e ligar a
pulsão de morte.
43
Vide capítulo II, p.64.
124
Na ausência de uma base normativa para a subjetividade, o campo fica aberto à
incidência de um processo de normalização, isto é, de produção de normas que
atenuem, regulem e disciplinem o ruidoso e permanente embate da cena psíquica.
O mortalismo que caracteriza a segunda metapsicologia freudiana e a retórica da
guerra que retrata a experiência analítica desse contexto são, para Birman (2007d), o
anúncio de que,
“(...) a normalização se coloca para o analista como uma tentação sempre
possível, para que possa assim suspender a conflagração em curso [do
confronto indecisivo entre as pulsões fundamentais]. Poder suportar agora a
presença efetiva da guerra, sem cair na sedução fácil da normalização
constitui, enfim, o desafio maior da aventura psicanalítica, e alguns
certamente sucumbem nas bordas trágicas desse fio da navalha” (p.546).
Freud certamente no final de seu pensamento foi um ferrenho defensor da
“guerra” pulsional, já que o término desse confronto representaria sem dúvidas uma
desfusão catastrófica para a manutenção da vida psíquica. O psiquismo é nesse contexto
uma produção de tal embate, muito mais do que uma evidência de alguma regularidade
normativa do organismo humano.
E exatamente por isso, em um tom aparentemente pessimista, Freud sustentou esse
espaço de luta como a condição essencial de uma experiência analítica. Se a vida é um
conjunto de forças que lutam contra a morte, e não há garantias de quem serão os
vencidos e os vencedores, a análise deve ser um lugar de investimento da potência das
forças em presença. O silenciamento ou é a morte ou é o engessamento normalizante
das mesmas.
Consideramos, assim, que todo o empreendimento de reformulação
metapsicológica operado por Freud denota um deslizamento de uma abordagem
centrada em uma busca de uma normatividade científica em direção a uma aproximação
da psicanálise com a bruxaria e a demonologia, ou seja, voltada para o campo da
especulação.
Consideramos que justamente nessa virada, nessa mudança do discurso freudiano,
reside a possibilidade da psicanálise se colocar como pólo de resistência às tecnologias
de poder descritas por Foucault. Pensar em sistemas de normalização psíquica, mas
também em potências de desconstrução dos mesmos é o que a psicanálise pode fazer
num mundo normalizado e engessado pelos mecanismos de poder.
125
Nessa perspectiva, a análise se constitui como um importante instrumento anti-
normalizador. Se em seus primeiros passos a psicanálise se prestou, como nos apontou
Foucault (1976b/1988), a servir de reforço ao dispositivo disciplinar e normalizante da
sexualidade, ao longo de sua construção operou rupturas fundamentais com a matriz
disciplinarizante da modernidade.
Eis então um momento de descontinuidade radical da psicanálise freudiana em
relação aos avatares biopolíticos da modernidade.
3.7. Pelas bordas da pulsão: o dualismo e o paradoxo freudiano
Dada a nossa leitura das descontinuidades pelas bordas da pulsão, é chegada a
hora de retomarmos um posicionamento que assumimos em relação ao pensamento
freudiano e que apontamos desde o início de nosso percurso, qual seja: a pesquisa
freudiana se realiza num solo configurado por um campo de embate de forças que se
afirma por uma constante tensão. Podemos visualizar isso naquilo que constantemente
assinalamos no trajeto de Freud: sua concepção dualista, a qual ele sempre lutou por
manter em seu pensamento.
Vimos que esse dualismo assumiu roupagens diferentes na obra de Freud de
acordo com os diferentes momentos da teoria pulsional, seja num primeiro momento
centrado dentro do campo da representação, seja num segundo momento centrado entre
o campo da representação e o da não representação, entre força pulsional e
representação da pulsão.
Portanto, Freud continuou se mantendo no dualismo até o final de sua obra. O
conceito de pulsão definido como limite entre o psíquico e o somático foi o que lhe deu
condição de possibilidade de sustentar tal concepção dualista sem cair em
reducionismos, pois a idéia de limite é exatamente o que faz a pulsão tocar ambos os
registros sem se reduzir a nenhum deles.
Consideramos que Freud nos dá indícios de pensar a pulsão como um limite tênue,
uma fronteira móvel que permeia os espaços psíquicos
44
, conferindo mobilidade ao
aparelho e uma dinâmica de constante reconstrução corporal e subjetiva.
44
Ao tratar da segunda tópica Freud (1933[1932]/1996) chega a seguinte constatação: “Ao pensar nessa
divisão da personalidade em um ego, um superego e um id, naturalmente, os senhores não terão
imaginado fronteiras nítidas como as fronteiras artificiais delineadas na geografia política. Não podemos
126
É nesse sentido que consideramos que Freud inaugura um novo campo de saber a
partir de tal concepção de pulsão, apostando num jogo de forças que solapa as bases do
cartesianismo, já que produz ruídos na separação corpo-mente ao apontar para uma
permeabilidade entre esses registros.
A marca do texto freudiano está no dualismo enquanto permanente jogo de
oposições e de forças. Tal concepção provoca uma desestabilização nos modelos
científicos fortemente influenciados pela divisão cartesiana, fazendo emergir uma nova
forma de pensar o humano. Essa posição freudiana vem exatamente desbancar a
ontologização referida ao corpo e ao psiquismo. Freud os retira de um lugar de
entidades separadas e os lança num jogo de intensidades que se permeiam e se
constituem em permanente relação.
A tarefa que nos propomos nos impeliu a demarcar os acidentes, os desvios e as
alternâncias presentes nesse percurso freudiano. Por esse motivo consideramos, para
retomarmos a afirmação inicial de nosso trabalho, que a psicanálise freudiana se
encontra num lugar de paradoxo, um paradoxo que exclui o princípio da contradição e
que se mantém na tensão, no enfrentamento de linhas de forças diversas e é exatamente
nisso que pensamos residir a riqueza de seu pensamento. Mesmo partindo do modelo
médico-científico Freud ousou um olhar para fora, lançou-se no desconhecido e assim
pôde promover um embate com os saberes constituídos, trazendo a dimensão do novo e
da incerteza para dentro de um campo fechado sobre si mesmo.
Derrida (2001) lança mão da interessante metáfora de Freud como a dupla figura
de porta e porteiro: ele ao mesmo tempo encerra uma época e abre outra, é o guardião
das chaves do ontem e o porteiro do hoje. Este autor discute o lugar da psicanálise no
projeto foucaultiano, entendendo-o como um balancim ou o fort/da de um pêndulo, ou
seja, Freud ora ao lado de Nietzsche e associado a uma linhagem trágica, ora oposto a
essa vertente e filiado a uma tradição da razão.
Consideramos, contudo, que é nesse contínuo embate de forças que o discurso
freudiano adquiriu sua originalidade, pois seus enunciados por mais contrastantes que
possam aparecer não se anulam, ao contrário, se potencializam, multiplicando nossas
possibilidades de manejar o referencial psicanalítico.
fazer justiça às características da mente por esquemas lineares como os de um desenho ou de uma pintura
primitiva, mas de preferência por meio de áreas coloridas fundindo-se umas com as outras, segundo as
apresentam os artistas modernos” (p.83-84).
127
Desse modo, vimos que Freud inicialmente apegou-se a suas raízes científicas
balizando suas proposições por uma racionalidade orgânica e vitalista. No entanto, no
decorrer de seu pensamento, ao operar rupturas epistemológicas com o saber da ciência,
trouxe à tona uma concepção de corpo e subjetividade que se distanciava do organismo
- objeto do olhar da medicina -, mesmo que ainda estabelecendo uma relação de apoio a
uma ordem somática. Finalmente, esse desvio se radicaliza quando Freud, ao visualizar
a dimensão da morte e da finitude originária, subverte a suposta ordem imperativa da
vida, colocando a dimensão do corpo e da subjetividade como condição de possibilidade
para a existência biológica.
A partir desses pontos levantados visualizamos o quanto a psicanálise foi
historicamente integrada na maquinaria biopolítica; ela sempre esteve dentro do circuito
saber-poder, não podemos considerar que esteve fora disso.
Entretanto, essa leitura nos mostra o quanto Freud se apoiou em diferentes
modelos que se diversificaram no seu próprio tempo histórico, realizando assim
diferentes metapsicologias. Isso nos leva a considerar que, no movimento do discurso
freudiano, a metapsicologia não se constituiu como uma invariante histórica, mas foi
um dos palcos de enfrentamento freudiano frente às estratégias biopolíticas.
Feito esse percurso pelo traçado das descontinuidades, passaremos agora a uma
análise das repercussões subjetivas da biopolítica moderna e da leitura que Freud
empreendeu sobre a subjetividade na modernidade, a partir do que aqui apresentamos de
seus modelos metapsicológicos.
128
CAPÍTULO IV
BIOPOLÍTICA E SUBJETIVIDADE NA MODERNIDADE
Diante do panorama subjetivo contemporâneo e dos impasses que este representa
para o campo psicanalítico, consideramos importante a realização de uma leitura
histórico-genealógica das condições que possibilitaram a emergência de uma mudança
na configuração subjetiva. Para isso, foi preciso pensar o contexto em que a
subjetividade moderna se constituiu e no qual a psicanálise então emergiu como uma
tentativa de resposta ao mal-estar subjetivo da modernidade, no intuito de circunscrever
o solo histórico em que as questões da atualidade se inscrevem.
O recorte escolhido para dar conta desta questão foi o pensamento de Foucault,
mais especificamente a partir de sua genealogia do poder. Como vimos, sua hipótese é
de que a emergência da modernidade é marcada por uma matriz biopolítica, cujos
dispositivos disciplinares do corpo e regulamentadores da população exercem, através
da norma e não mais da lei, um poder sobre a vida dos seres humanos. Uma mudança no
regime geral do poder, que passa do poder soberano para a norma disciplinar, configura
o contexto sócio-político característico da modernidade.
A norma passa a exercer um controle sobre as individualidades numa proporção
que vai desde o núcleo familiar até a normalização de todo o tecido social. A medicina é
o saber-poder que coordena todo esse processo normativo através de uma intensa
medicalização. Para Foucault, o dispositivo da sexualidade foi o meio através do qual
essa norma incidiu sobre os corpos, demarcando uma configuração subjetiva (“forma de
subjetivação”) característica desse contexto biopolítico moderno.
129
A questão que acabamos de analisar foi a de pensar qual lugar a psicanálise
assume nesse campo que Foucault descreve como biopolítico. Vimos até que ponto
Freud nele se inscreve em linha de continuidade e onde seu pensamento rompe com a
matriz moderna do biopoder, promovendo descontinuidades radicais que buscaram
conferir uma outra racionalidade à psicanálise. As duas posições estão presentes em
Freud, marcando o quanto ele foi um homem de seu tempo e, ao mesmo tempo, um
pensador transgressivo e visionário. Consideramos que esse paradoxo nos oferece uma
riqueza de possibilidades para pensar a subjetividade.
Uma vez dado esse passo, é chegada a hora de nos debruçarmos mais
particularmente sobre o campo subjetivo e retomarmos a intersecção que nos interessa
trabalhar entre o contexto biopolítico moderno, a constituição da subjetividade nele
implicada e a abordagem que Freud desta realizou.
4.1. Signos da modernidade
As revoluções científicas dos séculos XVII e XVIII, que marcaram os tempos
modernos, questionaram a concepção de natureza da antiguidade fundada na idéia de
imutabilidade e circularidade da ordem natural regulada por Deus. A racionalidade dos
discursos científicos operou essa ruptura fundamental com a visão antiga de mundo ao
contestar a dimensão sagrada que revestia o estatuto de natureza, desafiando a
referência divina com o anúncio da superioridade da razão – logos. Estava em questão
nesse contexto histórico a construção da figura do homem à imagem de Deus, contudo
deste emancipado pela assunção do discurso da ciência, que lhe possibilitava um poder
de domínio sobre o mundo e a natureza. Na seqüência desse processo, a Revolução
Industrial emerge no século XIX aliando a ciência à técnica, fornecendo assim novos
recursos para a produção de riquezas (BIRMAN, 2005a, 2007d).
A racionalidade científica, acompanhada da Revolução Industrial, se estabeleceu
na modernidade como as formas significativas de dominação do homem sobre a
natureza. A ruptura do homem com o plano divino conduziu-o ao ideal do progresso,
sustentado pela razão científica. A nova discursividade científica que se instala, a partir
dessa fratura da onipotência divina, teve sua base atrelada ao discurso filosófico dessa
130
época (tendo em Descartes um de seus principais representantes), pautado na articulação
entre saber e poder. A aquisição de um saber sobre a natureza estava diretamente ligada
à possibilidade do homem deter e exercer um poder sobre a mesma, o que
posteriormente se evidenciou na prática com a união entre ciência e técnica, saber e
poder, proporcionados pela revolução industrial (BIRMAN, 2005, 2007d).
Essa constituição histórica da modernidade é então marcada pelo discurso
metafísico da filosofia de Descartes, que por sua vez positivou o registro do eu e da
consciência como fundamentos da razão soberana do sujeito. Esse projeto moderno
permeado pelo cartesianismo, pelo discurso da ciência e do progresso é, segundo
Birman (2000c), um projeto antropológico e antropocêntrico, uma vez que tem no
indivíduo sua categoria fundamental, “justamente porque o homem na qualidade de
indivíduo foi alçado à condição primordial de medida de todas as coisas” (p.114).
Se na antiguidade o indivíduo estava integrado em uma comunhão holística com o
mundo, sendo impossível pensar sua existência dissociada do Cosmos, a modernidade
subverte essa relação, inserindo o homem em seu estatuto individual no centro de seu
projeto. A construção da idéia de individualidade foi construída no seio da
modernidade, tendo no campo da política e da economia o liberalismo como doutrina
fundamental.
“Em tudo isso é o discurso da ciência que passa a ocupar a posição
estratégica de produção e de agenciamento da verdade, substituindo
progressivamente os discursos filosófico e teológico. A razão científica
torna-se a marca distintiva do homem, o que lhe confere soberania e
autonomia não apenas diante da natureza, como também face ao mundo
divino. Portanto, é apenas a racionalidade científica que pode argüir sobre a
veracidade dos enunciados e dos juízos. Em decorrência disso, a tecnologia
se transforma no instrumento por excelência do exercício da soberania
humana, uma vez que a técnica verifica na prática a verdade formulada pela
razão cientifica, isto é, por seu impacto e pelas transformações que
possibilita na natureza e na sociedade” (BIRMAN, 2000c, p.116, grifos do
autor).
Desta forma, se na pré-modernidade a sociedade era natural, referida ao mundo
divino transcendente, e as Leis inscritas na natureza por Deus, as sociedades modernas
revolucionaram essa concepção, operando uma quebra na relação com a ordem do
Cosmos e da Natureza. Não há mais uma ordem natural capaz de normativizar a vida, os
sujeitos não estão mais alicerçados por um princípio transcendental divino, mas estão
131
eles próprios fadados a construir as leis que regem os laços sociais, ou seja, o campo da
norma. Sem a referência hierárquica da soberania divina, as sociedades forjam sua auto-
gestão, através de uma ordem normalizadora propiciada pela aliança entre ciência e
técnica, saberes que se voltam para a gestão soberana dos cidadãos.
Quanto a isso, para Foucault (1976a/1999), a constituição da modernidade é
marcada pelo declínio do poder soberano (Deus, ou seu representante régio) que regia a
máxima “fazer morrer, deixar viver”. O modo como o poder era exercido na Idade
Média, até o século XVI-XVII se evidenciava na relação soberano-súdito. A insurreição
popular levou à contestação do poder régio e a sua conseqüente descentralização. Eis o
momento histórico de descontinuidade moderna atrelado à emergência de um novo
discurso, revolucionário e contestador da condição de dominação e de assujeitamento
deflagrada pelo poder soberano (FOUCAULT, 1976a/1999).
A despeito da força da agitação popular, o apelo revolucionário foi silenciado por
uma retomada do poder e da soberania pelo Estado, através de um discurso da pureza da
raça, em nome da luta pela vida dos cidadãos e da sociedade. A soberania que havia
sido descentralizada é restituída pelo Estado através de uma mudança no regime geral
do poder. O ocidente moderno desloca a soberania do poder divino para uma de caráter
popular, centrada da idéia de povo (BIRMAN, 2006b). A soberania moderna se
relativiza, perdendo o caráter absoluto que mantinha enquanto centrada na onipotência
de Deus. A figura do Estado-nação, enquanto representante da soberania do povo,
exercerá um papel central na modernidade.
As sociedades ocidentais modernas vivenciaram o surgimento de uma nova
mecânica do poder, centrada na disciplina e voltada para o controle dos indivíduos,
utilizando-se para isso de seus corpos como meio de coerção. A soberania
democratizou-se às custas de um processo de dominação disciplinar
45
.
De acordo com Foucault, a disciplina, através da mediação das normas, funda o
campo da individualidade e institui uma forma de regulação dos indivíduos. Nesse
mesmo movimento, o dispositivo disciplinar produz o campo das anomalias e
45
Lembramos aqui que, apesar da mudança no modo de exercício do poder, a teoria da soberania não
desaparece do horizonte moderno, Foucault (1976a/1999) aponta para a aliança estabelecida entre um
direito de soberania e uma mecânica da disciplina (que evidenciamos no capítulo II, p.42). O exercício do
antigo poder soberano de morte é complementar àquele que se volta sobre a vida e o indivíduo
(disciplinar e biopolítico), como veremos no próximo capítulo.
132
anormalidades, justificando assim a necessidade de pôr em ação um projeto de
normalização do social, modo através do qual a sociedade moderna se configura em
torno do poder da disciplina.
O mecanismo do poder volta-se inteiramente para a produção dessas
individualidades e para a gestão da vida dos homens, através dos mecanismos que vão
desde a vigilância panóptica de sua produção e comportamento até a regulação de sua
existência biológica. Nesse sentido, Foucault demonstrou que o homem na sua forma
individualizada é uma produção, um efeito do poder disciplinar, e também um objeto de
saber, de onde o nascimento histórico do campo das ciências humanas. O controle
disciplinar do social não passa somente pela instância da polícia, mas também, e talvez
de forma mais incisiva, através das diversas modalidades de exame realizadas pelas
ciências humanas.
É nesse ínterim que situamos, a partir de Foucault, as transformações nos
mecanismos de poder que, na modernidade, voltaram-se para a vida do indivíduo,
invertendo a máxima soberana do “fazer morrer, deixar viver” em direção ao sentido de
“fazer viver, deixar morrer”. Uma vez que a qualidade de vida da população se
transformou na fonte maior da riqueza da Nação, a política se voltou inteiramente sobre
a vida, fazendo dela o objeto das estratégias de poder.
O discurso iluminista da soberania da razão e do progresso se desdobrou no
projeto de melhoria do gênero humano, alavancado pelas revoluções científica e
industrial. Tal melhoria se deu no plano de um incremento biológico da humanidade,
produzido e regulado pelas normas enunciadas pela racionalidade científica para o
processo de medicalização do social.
“Portanto se os discursos científicos enunciavam as normas para que se
empreendesse o processo de medicalização do social, a certeza na melhoria
do gênero humano era a sua contrapartida no registro dos valores. Com
isso, a sociedade seria passível de se transformar pela razão iluminista, que
engendraria então o progresso social pela normalização dos anormais”
(BIRMAN, 2007d, p.535-536).
A construção de um dispositivo da sexualidade e de uma correlativa ciência do
sexual centraram-se não só na disciplina dos indivíduos, mas também na regulação da
qualidade biológica da reprodução, com vistas a produção de uma população saudável.
Foucault (1979e/2006) nos diz que no auge da modernidade o poder assume uma nova
133
função, diferente das já tradicionais relativas à manutenção da ordem e organização do
enriquecimento, qual seja: “a disposição da sociedade como meio de bem-estar físico,
saúde perfeita e longevidade” (p.197).
A razão dessa transformação no regime geral do poder está relacionada, para o
autor, aos efeitos econômicos e políticos da acumulação dos homens. A explosão
demográfica no Ocidente europeu do século XVIII levou à necessidade de medidas de
controle que deram origem à noção de “população” e, com isso, a sua classificação de
acordo com suas condições de saúde. Constituiu-se, assim, uma “tecnologia da
população” voltada para estudos científicos no campo da demografia e da
epidemiologia.
A problemática do corpo reaparece, agora não só como objeto de uma docilização
disciplinar para a extração de sua utilidade, mas também como a matéria-prima
biológica fundamental da riqueza da Nação. Foucault (1979e/2006) comenta:
“Neste conjunto de problemas, o ‘corpo’ – corpo dos indivíduos e corpo das
populações – surge como portador de novas variáveis: não mais
simplesmente raros ou numerosos, submissos ou renitentes, ricos ou pobres,
válidos ou inválidos, vigorosos ou fracos e sim mais ou menos utilizáveis,
mais ou menos suscetíveis de investimentos rentáveis, tendo maior ou
menos chance de sobrevivência, de morte ou de doença, sendo mais ou
menos capazes de aprendizagem eficaz. Os traços biológicos de uma
população se tornam elementos pertinentes para uma gestão econômica e é
necessário organizar em volta deles um dispositivo que assegure não
apenas sua sujeição mas o aumento constante de sua utilidade” (p.198,
grifo nosso).
A colocação em prática de tal função de manutenção da saúde se transformou em
um objetivo político, juntamente com a garantia da ordem e da economia. Foucault já
tinha demonstrado que a forma do exercício do poder na sociedade disciplinar não se
dava através de um único aparelho, e sim por uma rede de instituições e regulamentos
denominados de “polícia”. E nesse sentido não somente a instituição policial, mas o
conjunto dos mecanismos destinados a assegurar a ordem, a organização das riquezas e,
agora, a saúde. À função de regulação do estado de saúde da população, Foucault
(1979e/2006) corresponde uma “polícia” do corpo social e a emergência de uma
“polícia” geral da saúde, de onde ele deriva o ponto de origem da grande importância
que a medicina recebeu no século XVIII. A essa política voltada para uma “polícia
134
médica” do corpo da população em nome de sua saúde, Foucault (1979e/2006) intitula
“noso-política” (p.197).
O campo de aplicabilidade dessa política sobre o vivo exigiu a configuração de
algumas condições de possibilidades no âmbito social, tais como a medicalização e
transformação da família, a importância e privilégio conferidos à infância, bem como a
histericização da mulher, questões que abordamos no capítulo II
46
à respeito do
dispositivo da sexualidade. Consideramos importante retomar essa problemática para
que possamos melhor caracterizar o contexto social da modernidade sobre o qual atuam
os dispositivos biopolíticos. Desta forma, estaremos estabelecendo o solo histórico em
que se constituíram os processos de subjetivação que deram margem à construção da
psicanálise como uma leitura e interpretação do mal-estar presente nos tempos
modernos.
4.2. Sob o jugo da medicalização: a família moderna
A criança foi uma das figuras mais valorizadas pela biopolítica, uma vez que
representa o futuro de uma Nação. Cuidar, proteger, garantir seu desenvolvimento e
suas condições de saúde são preocupações intrínsecas à estratégia de poder que revoga
para si a tarefa de gerir a vida e multiplicá-la, preservando o potencial de riqueza que
ela significa. Foucault (1979e/2006) pontua uma nuance: não é só o problema da criança
que está em questão, no sentido de seu coeficiente de natalidade e morbidade, mas
principalmente a infância, ou seja, a gestão desse período da vida que condicionará seu
desempenho na idade adulta. “Não se trata, apenas, de produzir um melhor número de
crianças, mas de gerir convenientemente esta época da vida” (FOUCAULT,
1979e/2006, p.199). Para isso estão voltados todos os olhares: familiar, pedagógico,
psicológico, médico, político.
Birman (2007b) salienta que foi justamente em torno dessa preocupação
biopolítica que se operou a discriminação das idades da vida em infância, adolescência,
idade adulta e velhice, para que bem se pudesse estabelecer sobre elas especificidades
biológicas, intelectuais, afetivas e morais. O modelo psicobiológico da vida, de caráter
46
Vide capítulo II, p.57-58.
135
evolutivo e desenvolvimentista, serviu de base para a estruturação do processo escolar e
pedagógico.
O autor aponta que essas especificações foram cruciais dentro de um projeto que
visava investir na saúde e na educação, em busca de uma boa qualidade de vida da
população. Foi nesse horizonte biopolítico que as categorias de infância e adolescência
foram inventadas
47
e que a Pediatria e a Puericultura emergiram como especialidades
médicas.
Diante dessa construção em torno da criança e do infantil, a família se reorganiza a
partir de novas regras de relação entre pais e filhos. Os imperativos que regem as
obrigações do núcleo familiar são de ordem física (como os cuidados básicos com a
higiene e a limpeza), a amamentação das crianças pela mãe, atenção com o vestuário, a
prática de exercícios físicos para proporcionar o bom desenvolvimento do organismo e
o contato permanente, mas coercitivo, entre adultos e crianças.
Como abordamos anteriormente, a família se nucleariza em torno do eixo pais e
filhos e abandona a organização extensa que possuía no Antigo Regime. Ela se volta
inteiramente para a educação da criança, a fim de proporcionar-lhe meios ótimos de
crescimento e uma matriz segura para o desenvolvimento do indivíduo. O que Foucault
(1979e/2006) denomina de “nova conjugalidade” não está mais primordialmente
referido à união de duas ascendências ou pela preocupação de dar continuidade a sua
linhagem pela produção de descendentes. O foco principal é produzir o amadurecimento
do indivíduo dentro das melhores condições possíveis. Nesse contexto, o laço conjugal
é baseado na congregação e na aproximação entre pais e filhos.
“A família não deve ser mais apenas uma teia de relações que se inscreve
em um estatuto social, em um sistema de parentesco, em um mecanismo de
transmissão de bens. Deve-se tornar um meio físico denso, saturado,
permanente, contínuo que envolva, mantenha e favoreça o corpo da
criança” (FOUCAULT, 1979e/2006, p.199).
A família é convocada a tomar para si o objetivo da saúde, principalmente a das
crianças, e é por essa via que ela é permeada pela medicalização, tornando-se o seu
47
O autor se utiliza dos estudos de Áries, Ph. (1973) L’énfant et l avie familiale dans l’Ancien regime.
Paris, Seuil.
136
agente principal. Tendo em vista o seu lugar matricial de constituição da criança e de
sua infância a família precisou ser, a partir da segunda metade do século XVIII, o alvo
de um processo de aculturação médica, para estar suficientemente munida das
informações e cuidados necessários para a criação de sua prole.
O papel principal desempenhado pela família foi, assim, a medicalização dos
indivíduos, contudo, para isso, ela própria precisou ser medicalizada. Dupla face de uma
mesma moeda. A ela coube a tarefa de articular a higienização pública já em curso do
corpo social à necessidade privada então criada para dar conta da boa saúde dos pais e
filhos, exercendo simultaneamente um controle privado e coletivo da higiene, sob o
respaldo permanente dos profissionais da medicina. Disso decorre a expressão
foucaultiana da “família medicalizada-medicalizante” que se formou no século XVIII e
se tornou um elemento central da política de saúde do século XIX (FOUCAULT,
1979e/2006).
Desse modo, a organização da família na modernidade só fez sentido a partir do
investimento biopolítico sobre o corpo e a sexualidade. Ela precisou adquirir uma
configuração nuclear para bem gerenciar os corpos e não perder de vista a “criança
como semente das populações futuras” (FOUCAULT, 1979f/2006, p.232). Em nome do
desafio que se constituiu a tarefa de fabricar uma boa infância e, conseqüentemente, um
futuro adulto saudável, a família se viu obrigada a estar em constante relação com as
instituições educativas e aquelas de higiene pública. Tudo isso se construiu através da
sexualização da criança, meio pelo qual se tornou possível a assunção de uma rede de
poder sobre a infância. “Na encruzilhada do corpo e da alma, da saúde e da moral, da
educação e do adestramento, o sexo das crianças tornou-se ao mesmo tempo um alvo e
um instrumento de poder” (FOUCAULT, 1979f/2006, p.232).
A figura da mãe atua um papel central nessa configuração familiar. É a gestora por
excelência não só do espaço doméstico como das relações intrafamiliares e da família
com as diversas instituições de cuidado. Recai sobre ela a responsabilidade materna de
se ocupar de seus filhos, amamentá-los, vesti-los, higienizá-los, educá-los. Para tanto, o
corpo da mulher tornou-se alvo de intensa medicalização, cuja decorrência maior foi,
segundo Foucault (1979f/2006), um movimento de patologização da mulher.
Sobre isso Birman (2007b) comenta que, em função desse ideal de promoção da
saúde, se construiu a figura da “mulher-mãe saudável” e da “mãe-higiência”, em torno
137
das quais se estabeleceram os exames pré-nupciais, o controle das enfermidades genitais
femininas, da gestação e do parto. Esse autor sublinha que foi nesse contexto histórico
que se constituíram as especificidades médicas da Ginecologia e da Obstetrícia.
As incumbências da fecundidade/procriação, maternidade e gestão do espaço
familiar restringiram praticamente a mulher à figura de mãe, restando a sua dimensão
erótica em segundo plano, senão completamente renunciada, em nome do papel
principal que lhe foi outorgado pelas estratégias biopolíticas. A histericização das
mulheres (FOUCAULT, 1976b/1988) e a sua marca de nervosidade são a contrapartida
desse processo de medicalização que reconfigurou a organização da família e de seus
laços sociais. Não apenas isso, como também o “sentimento” de amor maternal,
considerados como uma marca “natural” e ahistórica da condição feminina, consistem,
na realidade, no ponto de chegada desse processo histórico (BIRMAN, 2007a).
Enquanto a mulher exercia a função materna dos cuidados com os filhos e de
gestão do espaço doméstico, o homem, em contrapartida, se inscrevia muito mais no
espaço público, onde inclusive encontrava possibilidades de experiências eróticas e de
satisfação libidinal. Por conta disso, a medicina instituiu um controle ostensivo da
prostituição para impedir os efeitos das doenças venéreas e, dessa forma, garantir o bom
estado de saúde do pai de uma prole que se desejava saudável (BIRMAN, 2007a,
2007b).
Visualizamos, assim, que o contexto histórico da modernidade ocidental -
marcado pelo biopoder - delineou uma organização particular de família na passagem
do século XVIII para o século XIX. A família pré-moderna era considerada como
extensa pelas diversas gerações que co-habitavam, pela prole numerosa, sem contar os
agregados que se somavam como filhos. O ambiente era de promiscuidade, uma vez que
as noções de privacidade e intimidade só vieram a se constituir com a nuclearização da
família moderna. A mulher exercia um papel meramente reprodutivo e o poder era todo
centrado na absoluta autoridade paterna, representante que era do poder soberano
(BIRMAN, 2007b).
A quebra da referência soberana conduziu à ruptura desse modelo familiar. Para
dar conta dos agenciamentos biopolíticos modernos, a família adquiriu contornos mais
definidos, ganhando um espaço de privacidade que permitia o controle da sexualidade.
Além disso, a prole se reduziu, uma vez instaurada a exigência de cuidados específicos
138
para com os filhos. Nesse ínterim, o poder paterno foi relativizado ao passo que a
mulher ganhou um espaço maior na cena familiar e social devido às obrigações morais e
sociais que assumiu, não obstante a renúncia erótica e libidinal que esse acréscimo de
poder implicou. No entanto, mesmo que relativizada, a assimetria ainda se manteve no
que tange ao poder do pai sobre o restante da família (BIRMAN, 2007b).
A constituição da família moderna esteve, dessa forma, atrelada ao horizonte
histórico e político do biopoder. A especificidade do modelo que ela adquire nesse
contexto é inseparável da incidência dos dispositivos biopolíticos que caracterizaram de
forma marcante a modernidade.
Esses são os signos que delineiam o solo sócio-histórico no qual se configuraram
determinadas formas de subjetivação. Consideramos que as marcas subjetivas são
históricas, no sentido de guardarem estreita relação com o contexto social, político e
cultural em que são produzidas. Dessa forma, pensar sobre a configuração subjetiva e o
seu mal-estar na modernidade, implica analisá-los de forma indissociada de todo essa
rede de saber-poder que marcou o Ocidente moderno.
As figuras que aqui destacamos da cena social e familiar dos séculos XVIII e XIX
formam os pilares sobre os quais se apoiaram as principais formulações da biopolítica,
tendo sido determinantes da formação de certos processos subjetivos na modernidade.
Vejamos a seguir quais foram os efeitos desse processo sobre a subjetividade e de
que modo Freud interpretou no campo psíquico os signos de seu tempo.
4.3. Freud, a subjetividade e a modernidade
Sabemos que a psicanálise emerge na virada do século XIX para o século XX,
exatamente no ponto de incidência máxima do controle disciplinar e biopolítico sobre
os corpos e a sexualidade. Dentro dos limites e fronteiras bem definidas pelo
mecanismo disciplinar, sem sombra de dúvida, a neurose se erige como modo de
subjetivação corrente nesse contexto. Os sintomas neuróticos são os sintomas por
excelência da vida moderna, como bem nos mostrou Freud em Moral sexual ‘civilizada’
e doença nervosa moderna (1908/1996) e O mal-estar na civilização (1930
[1929]/1996).
139
Percorreremos agora a noção de neurose, sobretudo a partir da histeria, a fim de
circunscrevermos o estatuto de subjetividade neurótica fundada por Freud, elucidando
seus pilares constituintes. Posteriormente, prosseguirmos com nossa análise do contexto
sócio-histórico em que esse modelo subjetivo se fundou, articulada à leitura freudiana
do mal-estar na modernidade.
A histeria foi a porta de entrada de Freud no universo da neurose. Foi através de
seu encontro com as mulheres histéricas que ele se deparou com a problemática
moderna da sexualidade e da condição feminina. Desde o princípio de sua trajetória,
Freud já se deparava com o sofrimento psíquico decorrente dos impasses do sujeito
diante dos imperativos morais, sociais e sexuais deflagrados pela biopolítica.
As mulheres tinham sido reduzidas à condição de mãe, sua libido canalizada para
a criação dos filhos e a manutenção da ordem familiar. O ganho de poder social que
disso resultou correspondeu, em contrapartida, a inúmeras perdas, já que ficaram
impossibilitadas de satisfazer outros desejos que não o da maternidade. As mulheres
vivenciaram uma experiência sacrificial (BIRMAN, 2007a, 2007b), tendo sido privadas
de outras aspirações sociais e eróticas, em nome do investimento nos filhos e na família.
O discurso psiquiátrico – não podemos esquecer aqui de Charcot - já tinha se
ocupado de concedê-las o estatuto de mulher nervosa e histérica. Não por acaso as
histéricas foram o ponto de emergência da psicanálise. A partir dessa figura
emblemática do mal-estar subjetivo moderno, Freud empreendeu sua primeira leitura da
subjetividade – paradigmática por excelência do campo das neuroses -, se distanciando
do aporte médico ao realizar uma interpretação de cunho libidinal e pulsional.
Freud reconheceu a insatisfação feminina e a importância do fator sexual na
causalidade de tal perturbação psíquica. A partir desse encontro com a condição da
mulher forjada pelas estratégias disciplinares e biopolíticas desse contexto, o então
ousado neurologista revolucionou o campo científico com o gesto inaugural da
psicanálise: escutar os lamentos subjetivos. A histeria tornou-se, então, o paradigma das
doenças nervosas, tendo sido seguida como modelo para a análise das perturbações
obsessivas e fóbicas.
A condição feminina na modernidade e seu sofrimento fazem parte do nascimento
do discurso psicanalítico. Esta temática perpassa toda a obra freudiana, tendo
desdobramentos posteriormente na leitura em torno do masoquismo feminino,
140
adquirindo uma tonalidade melancólica. Com isso, evidencia-se a interpretação de
Freud com relação ao sacrifício e à renúncia libidinal de que comentamos acima, a
respeito da inscrição da mulher no contexto moderno
48
.
Freud juntamente com Breuer abrem, em 1893, os estudos sobre a histeria com o
trabalho designado Sobre os mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos:
comunicação preliminar. Nesse estudo, evidencia-se que a lesão em questão na histeria
se passa no campo das representações psíquicas e não no campo somático, conforme
acreditava Charcot. Freud desde então postulava a origem psíquica dos sintomas
histéricos, apontando para um trauma psíquico como o fator desencadeador da neurose.
O caráter traumático de um acontecimento era entendido, nesse momento, como
uma ofensa no campo do eu que não pôde ser respondida, acarretando uma postura
passiva do sujeito. O psiquismo então se dividiria na tentativa de expulsar a certeza da
ofensa, sobrevindo assim uma conseqüente divisão da consciência entre um pólo oficial
e outro latente, no qual resguardava-se a reminiscência do acontecimento traumático.
Diante disso, instaura-se um conflito psíquico entre grupos de representações distintas.
O sintoma surge como uma formação de compromisso entre os dois grupos,
constituindo-se como fonte de dor e estranheza para o sujeito e, desse modo, como
demanda de tratamento.
A célebre frase “os histéricos sofrem de reminiscências” (FREUD, 1893b/1996,
p.3) advém desse mecanismo de expulsão da ofensa do campo da consciência,
configurando-se como uma lembrança inesquecível da humilhação e da vergonha
causada para o sujeito. O sintoma nada mais é do que o signo dessa reminiscência, o
retorno da cena da ofensa. O tratamento consistia, através do método hipnótico, em
fazer retornar o trauma que foi expulso da primeira consciência e que estaria
representado no núcleo do sintoma. O procedimento psicoterápico teria como objetivo
promover um efeito catártico, onde o afeto referente à representação expulsa da
consciência pudesse ser ab-reagido através da fala do paciente.
48
Não nos deteremos no aprofundamento dessa questão. Interessa-nos, contudo, sublinhar que essa
problemática teve desdobramentos importantes no pensamento freudiano. Remetemos o leitor à: FREUD,
S. (1996) Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago. _____ (1925)
“Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, v. XIX; _____ (1931)
“Sexualidade feminina”, v. XXI; ____ (1933[1932]) Conferência XXXIII: “Feminilidade”, v. XXII.
141
Há, nesse momento, uma causação direta entre trauma psíquico (que se mantém
como corpo estranho) e sintoma histérico, tanto que ao cessar a causa, cessaria o efeito.
No momento em que o analista desvenda a ocasião da primeira ocorrência do sintoma e
a razão de seu aparecimento, o sintoma de desfaz (FREUD, 1893b/1996).
Podemos considerar, a partir dessa primeira teorização acerca da histeria, que
Freud ao lidar com representações e marcas psíquicas se desloca do campo somático
para o campo do trauma psíquico. Esboça-se, nesse contexto, uma teoria do trauma, no
entanto, o corpo representado ainda não tem uma relação direta com o sexual.
Podemos notar nessas primeiras publicações freudianas sobre a histeria e as
neuroses em geral um enfoque bastante econômico, centrado na preocupação do trânsito
das intensidades. A teoria do trauma como um excesso de excitação circulando pelo
registro psíquico é conseqüência dessa perspectiva econômica, que entre outras coisas,
traz a necessidade teórica de uma proposição tópica.
É em As neuropsicoses de defesa que Freud (1894/1996) lança-se sozinho na
descoberta dos mecanismos das neuroses, articulando conceitos como defesa e
conversão para dar conta da economia psíquica dos neuróticos. Surge nesse texto a
proposta de um mecanismo de defesa básico para as psiconeuroses. Estabelece-se um
“caminho” da defesa psíquica, a saber:
- diante de uma idéia incompatível, o Eu procura tratá-la como inexistente.
Explica Freud: “... o ego foi confrontado com uma experiência, uma idéia ou um
sentimento que suscitavam um afeto tão aflitivo que o sujeito decidia esquecê-
lo, porque não confiava em sua possibilidade de resolver a contradição entre a
idéia incompatível e seu ego por meio da atividade de pensamento” (FREUD,
1894/1996, p.55).
- Essa tarefa que o Eu se impõe não pode ser realizada, pois tanto a representação
(traço mnêmico) como o afeto (soma de excitação) ligado a ela estão inscritos no
psiquismo definitivamente.
- Então, o Eu transforma a representação poderosa em representação fraca,
retirando-lhe o afeto. A representação fraca não tem nenhuma exigência
praticamente a fazer ao trabalho de associação. Porém, a soma de excitação
(afeto) desvinculada dela precisa ser utilizada de alguma maneira. O destino
142
desse afeto é que vai caracterizar os diferentes quadros neuróticos. Nas fobias e
obsessões o afeto tornado livre liga-se a outra representação não incompatível.
Na histeria, a representação é tornada inócua porque a soma de excitação é
transformada em somática.
O termo conversão aparece pela primeira vez na obra freudiana exatamente para
designar essa passagem, ou ainda, essa transformação do afeto, que ficou isolado de sua
respectiva representação, para o somático, sob a forma de um sintoma físico. Freud diz
ainda que a inervação motora ou sensória resultante da conversão está relacionada, em
maior ou menor grau, com a experiência traumática que desencadeou todo esse processo
de defesa.
Através dessa separação entre o afeto e a representação operada pela defesa, o eu
liberta-se do confronto com a idéia incompatível, porém, irá sobrecarregar-se com um
símbolo mnêmico de tal idéia que se fixa na consciência e pede pela conversão. Desse
modo, Freud conclui que o traço de memória da idéia recalcada não se dissolve,
permanecendo como o núcleo de um segundo grupo psíquico.
A divisão histérica da consciência, proposta por Freud, relaciona-se com essa
noção de conversão e de defesa psíquica, no sentido de jogar para fora da consciência a
idéia incompatível com o eu, formando grupos psíquicos cindidos. Essa seria a
concepção freudiana de histeria de defesa, porém nesse momento Freud ainda concebe a
existência da histeria hipnóide – referida à tese de Breuer – e da histeria de retenção,
caracterizada pela falta de reação a estímulos traumáticos, não havendo divisão da
consciência. Posteriormente
49
, quando a noção de defesa adquirir expressão mais
significativa no pensamento freudiano, essas outras duas formas tornar-se-ão redutíveis
à histeria de defesa, não mais se originando de mecanismos diferentes.
Em termos mais gerais, o fator característico da histeria nesse momento não se
centra na divisão da consciência, mas na capacidade de conversão, que consiste no
mecanismo de formação de sintomas histéricos, onde um conflito psíquico é transposto
para a esfera somática. O afeto, ao se desligar da representação é transformado em
energia de inervação. Os sintomas físicos provenientes da conversão podem ser
49
FREUD, S. (1996) Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago. ____
(1895) “A psicoterapia da histeria”, v.II; _______ (1896) “Observações adicionais sobre as neuropsicoses
de defesa”, v.III.
143
motores, como as paralisias, e sensitivos, como as anestesias e dores localizadas. A
predisposição para a histeria residiria nessa aptidão psicofísica para transpor enormes
somas de excitação para a inervação somática (FREUD, 1894/1996, p.57).
Dessa forma, a idéia de trauma psíquico está ligada à quantidade de excitação que
a representação carrega consigo, que acaba sendo convertida em sintoma. O ponto de
vista econômico, a partir do qual Freud está entendendo o mecanismo histérico, justifica
tal acepção da conversão centrada na idéia de transposição de excitações e o caráter
traumático da etiologia histérica.
Diante da divergência em relação às concepções vigentes acerca da histeria, cuja
causa era colocada em lesões neuroanatômicas ou na hereditariedade, Freud empreende
uma anamnese minuciosa da história de seus pacientes e se depara com o fator sexual
como presença constante no relato dos mesmos.
A representação incompatível se refere ao campo da experiência e das sensações
sexuais. O afeto aflitivo, capaz de ocasionar traumas psíquicos, é proveniente da vida
sexual, ou melhor, da relação de impasse e de renúncia que as pacientes histéricas
mantinham com o prazer e o sexo, em função da incompatibilidade moral que a
sexualidade representava em suas vidas. Desse modo, a dimensão sexual se constituía
como âmbito de conflito.
Sob essa perspectiva serão analisados os casos clínicos que sucedem à
Comunicação preliminar (FREUD, 1893b/1996). Freud identifica a presença do sexual,
mas ainda não assevera a universalidade da etiologia sexual da histeria, pois significaria
um rompimento imediato com Breuer, com quem Freud ainda mantinha uma parceria
nos estudos sobre a histeria.
Freud observava que o fator sexual se apresentava de diversas formas na vida dos
pacientes, tanto relacionado aos traumas infantis quanto às queixas da vida sexual atual.
Nesse ínterim, Freud sentiu a necessidade de realizar a primeira separação no
campo das neuroses, visto que patologias semelhantes à histeria, como a neurastenia e a
neurose de angústia, surgiam no horizonte freudiano. Freud estabelece diferenciações de
acordo com o modo de organização da excitação sexual.
Haja vista a separação de dois grupos no campo das neuroses estar pautada pela
economia sexual, consideramos por bem começar pela concepção de Freud do processo
sexual.
144
Ele nos fala que a excitação sexual somática é produzida de forma contínua no
organismo tornando-se um estímulo para a psique. Decorre então a transformação da
excitação somática em psíquica suprindo os grupos de representações psíquicas de
energia até promover uma tensão libidinal que anseia por descarga. Uma ação
específica, passível de eliminar a totalidade da excitação, é que tornará possível a
descarga psíquica. É pela passagem da excitação sexual do plano somático para o plano
da representação psíquica que o organismo e a sexualidade humana adquirem sua
singularidade e especificidade. A satisfação sexual no organismo humano não se dá de
forma direta e imediata como um simples reflexo que responde ao aumento da tensão
somática. É necessária uma operação de elaboração psíquica da excitação somática para
que a satisfação seja possível.
A partir do entendimento de tal processo, Freud (1895[1894]/1996) faz uma
diferenciação no quadro das neuroses, de acordo com o trajeto percorrido pela excitação
sexual. Quando a tensão física não consegue penetrar no âmbito psíquico
permanecendo, portanto, no trajeto somático, configura-se uma sintomatologia que
Freud refere ao grupo das neuroses atuais. Sob o nome de psiconeuroses, Freud reúne
um segundo grupo, onde a excitação somática adquire uma representação psíquica,
porém toma um caminho equivocado, voltando-se em direção ao domínio somático por
meio de uma conversão.
O grupo das neuroses atuais compreende duas novas formas de manifestações
neuróticas conhecidas como neurastenia e neurose de angústia. Tanto na primeira
quanto na segunda, a descarga adequada da excitação sexual somática é substituída por
uma menos adequada. Na neurastenia, a causa precipitante é a atividade da
masturbação, que levaria ao empobrecimento da excitação. Na neurose de angústia, o
principal exemplo de causa precipitante é o coito interrompido. Esta prática levaria a um
acúmulo de excitação sexual somática que, por não encontrar vias de ser psiquicamente
transformada, despende-se em reações inadequadas na esfera do somático. A angústia
resultante desse processo corresponde à tensão sexual que foi desviada do campo
psíquico, deixando-se de se transformar em libido. Desse modo, as neuroses atuais
referem-se àquelas patologias onde a excitação sexual não alcança caminho psíquico,
permanecendo no corpo como disfunção sexual somática. Nesse caso, o sofrimento não
145
advém por recordação de um acontecimento passado e sim por uma disfunção sexual
atual, ou seja, de ordem somática, atuando sobre um corpo somático.
A histeria, a fobia e a neurose obsessiva compreendem o grupo das psiconeuroses.
Estas, ao contrário das neuroses atuais, se definem pela excitação sexual alcançando a
esfera psíquica e transformando-se em libido pela ligação que estabelece com grupos de
representações. Exatamente por ganharem um caminho psíquico, foram denominadas
por Freud de psiconeuroses. O corpo em questão não é nem o anatômico nem o
somático, mas o corpo representado. Essa primeira delimitação já aponta para um
diferencial do corpo histérico. Freud deixa de lado o campo das neuroses atuais,
dedicando-se às psiconeuroses, cuja etiologia psíquica mais o interessava.
Essa classificação dentro do campo das neuroses levou Freud a postular etiologias
específicas para cada tipo de manifestação neurótica. Como já vimos, a causa específica
das neuroses atuais residia em perturbações sexuais somáticas de caráter contemporâneo
na vida do indivíduo, enquanto a causa específica das psiconeuroses residia em um
conflito psíquico situado no plano da representação.
Embora fizesse essa distinção, Freud concebia que as neuroses se apresentavam
freqüentemente de forma mista, onde mais de uma etiologia específica se misturava. A
noção de equação etiológica surge dessa pressuposição de que diferentes espécies de
causas estão envolvidas na geração de uma neurose. A causa específica é aquela que
determina o efeito neurótico, mas está necessariamente em inter-relação com as
precondições e, na maioria das vezes, com as causas banais e o fator desencadeante. As
neuroses atuais atuam freqüentemente como causas precipitantes das psiconeuroses, ao
passo que uma forma de psiconeurose pode se constituir como base subjacente para uma
sintomatologia sexual atual.
Nesse sentido, esses estudos iniciais de Freud acerca da histeria e das neuroses em
geral revelam-nos uma particularidade interessante no tocante a uma concepção
psicanalítica de corpo. Há um eixo fundamental que perpassa a teoria das neuroses que é
a oposição entre um corpo biológico, sempre referido às neuroses atuais e um corpo
representado, referido às psiconeuroses. Há uma significativa diferenciação entre um
corpo somático, do qual provém a excitação sexual somática e um corpo psiquicamente
representado, por onde circula a excitação sexual psíquica denominada libido. A
146
teorização freudiana atravessa esses dois grupos sexuais distintos, realizando uma inter-
relação entre o psíquico e o somático através do registro do sexual.
Há inegavelmente a idéia de uma fronteira somático-psíquico onde esses dois
registros são concebidos independentemente um do outro e cuja articulação se dá
através da transposição da excitação sexual de uma esfera para a outra, definindo assim
diferentes estatutos para a concepção de corpo, quais sejam: corpo biológico, que
permanece na esfera do somático e corpo representado, que acede à representação
psíquica.
Bastos (1998) faz uma interpretação interessante quanto a esse aspecto. Na sua
compreensão, mesmo opondo neuroses atuais e psiconeuroses, Freud não teria deixado
de estabelecer correlações entre o corpo somático e o corpo representado. Ela nos diz
que “esse imbricamento do corpo somático com o corpo representado não confunde, no
entanto, a delimitação fundamental que o conceito de neurose atual traz. Há, no sujeito,
um corpo somático e um corpo representado coexistindo, mas abordados distintamente”
(BASTOS, 1998, p.43).
Para Birman (1991b, p.145), essa é uma oposição estrutural entre duas ordens
diversas de realidade que funciona como critério para estabelecer os limites
epistemológicos do campo psicanalítico e suas fronteiras com o campo médico-
psiquiátrico. Há uma ruptura com a ordem médica no sentido de que a psicanálise não
se ocupa do corpo anátomo-fisiológico e sim do corpo representado, cujos mecanismos
psíquicos que se inscrevem no campo da representação são passíveis de elucidação pelo
método psicanalítico.
Entendemos, então, a partir da visão desses autores, que essa oposição tão presente
nos textos freudianos iniciais corresponde a uma estratégia de delimitação do saber
propriamente psicanalítico. É somente a partir dessa separação que a psicanálise
constrói um objeto específico de saber.
Além disso, com a diferenciação dos sintomas neuróticos por conta do caminho
percorrido pela excitação sexual, ficou definitivamente estabelecido por Freud que a
etiologia das neuroses residiria na sexualidade. Segundo Bastos (1998), “a etiologia
sexual das neuroses continuou presente e determinante não mais apenas como prática
sexual – corpo do sexo -, mas como sexualidade que se organiza em torno da teoria da
libido” (p.44).
147
A partir dessa definição da etiologia sexual para as psiconeuroses, o conceito de
defesa ganha centralidade no entendimento de Freud acerca dos mecanismos de
formação dos sintomas psiconeuróticos. A conseqüência maior disso é que toda a
histeria passa a ser considerada de defesa (FREUD, 1896a/1996), permitindo, então,
Freud abandonar as outras modalidades de histeria – como a hipnóide e a de retenção -
que ele há muito tempo já suspeitava não se sustentarem.
Segundo Birman (1991b), com tal afirmação do conceito de defesa se consolida
definitivamente o campo da representação como algo que é universal e não particular a
certas patologias. Disso decorre uma série de rupturas fundamentais que Freud acaba
por operar. Uma delas é a ruptura com Breuer e com sua concepção de um estado inicial
anômalo de consciência que determinaria a patologia histérica. E uma ruptura ainda
mais fundamental se configura em relação ao lugar de destaque que a hereditariedade e
a degenerescência ocupavam no campo médico-psiquiátrico. Com a constituição do
conceito de defesa, Freud se desloca desse lugar da degeneração em direção à
autonomia do campo psíquico para entender as psiconeuroses.
Com a assunção das causas específicas, a hereditariedade perde seu papel de
etiologia primordial das neuroses dentro do pensamento freudiano, sendo relegada à
função de precondição. A hereditariedade nervosa é incapaz de produzir qualquer tipo
de neurose se a etiologia específica estiver ausente. Segundo Birman (1991b), “a
temática fundamental passa a ser a constituição do sujeito no percurso de sua história.
[...] A noção de adquirido se desloca para o primeiro plano na teoria das neuroses,
substituindo a noção de inato que ocupava posição primordial” (p.154).
Essas rupturas foram cruciais para a constituição do saber psicanalítico na medida
em que significaram o distanciamento de Freud da racionalidade médica e de seu
respectivo objeto de saber circunscrito pelo corpo anátomo-patológico e biológico. Ao
descrever a problemática neurótica em função do conflito psíquico e da defesa no plano
da representação, Freud conquista um campo de saber específico para a psicanálise,
situando fora de seus domínios a abordagem da anátomo-clínica.
Até esse momento, Freud está lidando com a histeria sob o viés da teoria do
trauma, onde qualquer fator que determinasse um excesso no psiquismo era considerado
como traumático, desencadeando assim a formação do sintoma histérico.
148
Como pudemos notar, as vivências sexuais foram progressivamente se tornando de
grande importância para a etiologia das psiconeuroses e é nesse contexto que a etiologia
sexual na histeria se afirmou. Através do método catártico, “rastreava-se” os traumas
psíquicos que originavam os sintomas histéricos e, a partir disso, encontrava-se sempre
as vivências infantis relacionadas à vida sexual. Mesmo quando o sintoma era
ocasionado por uma emoção dita banal (de natureza não sexual) havia uma causa sexual
presente.
Freud (1896b/1996) concebe então a etiologia específica da histeria como uma
experiência sexual passiva ocorrida antes da puberdade e que se inscreve psiquicamente
como uma lembrança inconsciente. Na puberdade, com o despertar da sexualidade, esse
traço que permaneceu inconsciente é despertado. Os eventos que são subseqüentes à
puberdade só têm influência no desenvolvimento da histeria como agentes
provocadores, no sentido de despertarem o traço psíquico inconsciente do evento
infantil.
Aqui se está considerando a teoria da sedução elaborada por Freud entre os anos
de 1895 e 1897, onde ele atribui o papel determinante da etiologia das neuroses às
lembranças de cenas reais de sedução. O trauma sexual advém de uma cena real em que
a criança sofre passivamente da parte de um outro (geralmente um adulto) uma
manipulação sexual, uma sedução. O sujeito nesse momento ainda não tem condições
de dar um sentido a essa experiência e a essa cena de sedução que só retroativamente
será ligada a uma cadeia associativa. Quando ocorre um fato novo a posteriori (por
ocasião da puberdade), essas experiências se reorganizam, adquirem uma significação
inconsciente de modo retroativo. Através das associações atuais o que estava sem
sentido passa a adquirir uma significação, traumática por excelência, que então sofrerá a
ação do recalque.
É a noção de a posteriori que está em jogo; a cena anterior (cena da sedução) é
permanentemente reinterpretada pelas possibilidades que um momento posterior
oferece (por exemplo, o despertar da sexualidade na puberdade).
O excesso traumático conferido a uma ofensa ou a uma representação intolerável
aos poucos vai se delineando como sexual, levando Freud a asseverar a universalidade
da etiologia sexual da histérica. A teoria do trauma adquire novos contornos, elaborada
agora em termos da teoria da sedução.
149
Pode-se considerar, então, que Freud até esse momento estabelece uma primeira
formulação a respeito da histeria, enfocando o conflito psíquico, a defesa e a formação
do sintoma por via da conversão, enfatizando também a etiologia sexual nela envolvida.
Nesse contexto ele está ainda muito voltado para a busca do conflito psíquico
intolerável, atentando para sua passagem à inervação somática, distante ainda de
privilegiar os processos inconscientes que estão por trás das mobilizações do corpo
durante a revivescência de uma cena intolerável.
Numa célebre carta a seu amigo Fliess, datada de 1897, Freud (1987/1996) revela
não acreditar mais na sua neurótica, colocando em dúvida a teoria da etiologia sexual
traumática das neuroses. Entre os motivos que o levaram a tal afirmação estava a
debandada das pessoas cujos casos ele parecia estar dominando com segurança e a
necessidade de ter sempre que apontar um adulto como pervertido.
Entretanto, mesmo questionando a validade de sua teoria da sedução, esse fato só
vai ser revelado publicamente com o anúncio da sexualidade infantil em 1905. Isso
porque os subsídios para uma nova teorização ainda estavam sendo elaborados por
Freud, que preparava o terreno para a virada radical em Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, com a emergência do conceito de pulsão e do campo das fantasias e
desejos inconscientes.
Com isso, Freud começa a reformular sua concepção sobre a neurose histérica. Ele
abandona o entendimento da cena da sedução e passa a entendê-la como um produto de
reconstruções fantasísticas do sujeito. Coloca-se em evidência a noção de fantasia
inconsciente.
A representação concebida como intolerável, foco da primeira teoria, deixa de ser
oriunda de um ato de sedução sexual praticado por um adulto. O desenvolvimento do
corpo pulsional, as experiências vividas no nível das diferentes zonas erógenas (boca,
ânus, pele, olhos, etc) adquirem o valor de trauma.
Há, na verdade, uma reformulação do conceito de trauma, o qual deixa de se
referir a um acontecimento real e externo, aproximando-se mais da idéia de um evento
psíquico carregado de afeto, que mantém estreita ligação com alguma região erógena do
corpo. Disso se constitui a ficção de uma cena traumática. Essa ficção é o que se
denomina por fantasia, sendo ou não construída a partir de um evento real e datável. A
150
realidade psíquica e não mais a realidade material se apresenta como fator determinante
da sedução.
Por trás dessas fantasias encontra-se a vida sexual da criança, que é fundada, por
exemplo, nos primeiros cuidados maternos. Esse investimento libidinal que a mãe
provoca no bebê, ao mantê-lo sob seus cuidados, erotizando-o, é a fonte do despertar
das zonas erógenas e da sexualidade infantil do mesmo.
O próprio eu infantil, no decorrer de seu processo de maturação sexual, constitui-
se como sede natural do despertar de uma tensão excessiva. A sexualidade infantil é
essencialmente exacerbada, extremada. Ela é foco inconsciente de sofrimento, é
desproporcional aos meios físicos e psíquicos da criança. A tensão libidinal é intensa
demais para o eu infantil, a criança é ainda muito prematura e despreparada para
suportar e elaborar essa tensão que aflora em seu corpo. A sexualidade infantil é, assim,
traumática por excelência, devido a esse seu caráter excessivo.
Desse modo, o evento psíquico traumático não provém mais do exterior, mas é
produzido pelo próprio corpo erógeno da criança. Esse corpo é tomado por essa
sexualidade transbordante que, diante da impossibilidade de satisfação completa, leva o
sujeito a fantasiar. As fantasias vêm para dar conta do excesso pulsional original do
sujeito, despertado pela erotização através do toque de quem cuida o bebê.
O sintoma dos histéricos é, assim, oriundo de traumatismos fictícios, as cenas de
sedução são fantasiadas com o intuito de dar um encaminhamento psíquico para as
atividades auto-eróticas infantis.
Um novo cenário se constitui com essa virada no pensamento freudiano. A entrada
em cena da sexualidade infantil (FREUD, 1905/1996) traz consigo desdobramentos
absolutamente fundamentais para a idéia de conflito psíquico, agora centrado nos
termos da dimensão pulsional. A oposição entre as pulsões sexuais e as pulsões de auto-
conservação revelam os dois pólos da conflitiva neurótica. Enquanto o pólo da
sexualidade insiste na obtenção de prazer e na realização do desejo, o pólo da auto-
conservação exerce os imperativos civilizatórios da normalização sexual. O
recalcamento atua no sentido de impedir a expressão e manifestação direta da
sexualidade pervero-polimorfa, resultando na produção de sintomas e de perturbações
psíquicas. Eis o retorno do recalcado que visa à restauração do prazer e da satisfação.
151
O registro do erotismo é fundado e constituído na experiência da polimorfia
sexual. A sexualidade adulta exige que esse registro originário seja colocado à serviço
da reprodução, de onde advém o processo de normalização das pulsões perverso-
polimorfas sexuais. Essa submissão do erotismo às exigências de normas de certa moral
sexual, pautada na ordem familiar monogâmica, representa custos altos à subjetividade,
a qual então sucumbe à neurose. Está dada, assim, a condição de possibilidade do mal-
estar subjetivo na modernidade.
4.4. Nas tramas do social: doenças nervosas e mal-estar na modernidade
A produção sintomática que gera o quadro geral das doenças nervosas aparece, no
enunciado freudiano, diretamente relacionada aos impasses do sujeito diante do embate
entre os imperativos das pulsões sexuais e os interditos morais e sociais que se opõem à
satisfação das mesmas. É nesses termos que Freud (1908/1996) empreende sua leitura
inicial do mal-estar na modernidade em A moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa
moderna.
50
Antes de mais nada, pensamos ser necessário fazer uma ressalva quanto à palavra
civilização que aparece nos dois textos culturais de Freud aqui trabalhados: A moral
sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna e O mal-estar na civilização.
Primeiramente lembramos o declarado desprezo de Freud em distinguir entre os termos
cultura e civilização (FREUD, 1927b/1996, p.15), o que nos desobriga a entrar no
mérito de tal questão. Em segundo lugar, gostaríamos de esclarecer que estamos aqui
assumindo uma interpretação do discurso freudiano que considera que nestas obras
Freud realiza uma leitura da civilidade moderna.
Compartilhamos, com isso, da visão de Birman (2002b, 2007a) sobre o
pensamento freudiano, segundo a qual este estaria pautado em uma análise do mal-estar
na modernidade. Isso significa, como bem nos aponta o autor, nos distanciarmos de uma
acepção do sentido lato do termo civilização, o que infalivelmente nos conduziria a uma
50
Veremos, ao longo desse capítulo, o quanto essa primeira leitura do mal-estar em termos de pulsão
sexual, civilização e doenças nervosas difere substancialmente daquela realizada em O mal-estar na
civilização, em 1929. A entrada da pulsão de morte no pensamento freudiano levou-o não só a uma
reformulação metapiscológica, mas também a uma releitura do processo de civilização e do sofrimento a
ele relacionado. Trabalharemos esse contraste a seguir.
152
leitura evolutiva ou estruturalista, baseada em uma oposição atemporal entre natureza
(pulsões sexuais) e cultura (interditos) ou, em outros termos, entre barbárie e
civilização. A proposta do autor é a de realizar uma leitura histórica e não estrutural do
mal-estar, a qual revela que o próprio significante “civilização” foi constituído no
contexto da modernidade. Desta forma, estamos lidando com a modernidade
civilizatória do Ocidente, contexto em que a subjetividade aqui em questão foi
constituída.
O que Freud descreve em termos da moral sexual civilizada baseia-se nas
transformações históricas que levaram à constituição da família monogâmica, cuja
organização representou uma série de imperativos e imposições que custaram às
subjetividades o preço da doença nervosa. Freud reconheceu e enunciou o sofrimento
decorrente da mudança cultural naquilo que constitui a experiência do sujeito com seu
corpo e com o prazer, agora cerceado pelo dispositivo da normalização sexual.
Neste ensaio, Freud (1908/1996) considera a inserção da subjetividade no contexto
civilizatório do Ocidente moderno, sublinhando os efeitos drásticos do imperativo da
moral sexual monogâmica sobre os indivíduos, o que acarretava na impossibilidade do
livre exercício da sexualidade perverso-polimorfa. A rápida e larga difusão da doença
nervosa nos tempos modernos foi assim entendida como a decorrência imediata de tal
impedimento no campo do erotismo e a fonte maior do mal-estar.
É interessante notar o esforço freudiano em contextualizar o sofrimento psíquico
alastrado no campo social. Ele convida seu leitor a buscar a etiologia das doenças
nervosas, alertando que para isso seria preciso inseri-la num contexto mais amplo, a fim
de tematizar o incremento dessa problemática (FREUD, 1908/1996, p.173). Nesse
intuito, parte para uma análise da civilização moderna, indicando que esta tem seu pilar
de sustentação na exigência de renúncia de grande parte da satisfação pulsional, em
nome de aquisições culturais.
Para Freud (1908/1996) a civilização moderna se encontra em um terceiro estágio
em relação à evolução da pulsão sexual, no qual a única meta sexual considerada
legítima é aquela que visa à reprodução, marca característica da dita moral sexual
‘civilizada’, ao lado da invariabilidade do objeto da satisfação, restrita que está a
atividade sexual ao âmbito matrimonial. Nessa moral, a sexualidade normal é aquela
153
considerada útil à civilização, ou seja, que atende aos ideais da reprodução. Os desvios
são perversões da meta e, portanto, nocivos.
No âmago dessa discussão com o horizonte sócio-cultural de seu tempo, Freud
retoma suas teses da sexualidade infantil, justamente porque nelas sustentou a hipótese
de que as neuroses são o negativo das perversões (FREUD, 1905/1999). O indivíduo
que paga com sua neurose o preço da exigência civilizatória estaria mais perto do
perverso do que se poderia imaginar, apresentando a mesma tendência à perversão,
mantendo-a, contudo, recalcada. O enunciado crucial inerente a essa discussão freudiana
é o de que a sexualidade não visa à reprodução, mas essencialmente a obtenção de
prazer, que se configura originariamente de forma perverso-polimorfa, nas trilhas do
auto-erotismo.
A colocação da sexualidade à serviço da reprodução ocorre às custas de um
processo de normalização do sexual, e uma conseqüente restrição do exercício da
perversidade polimorfa constitutiva do erotismo. Já no âmbito dos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade Freud empreendia a crítica do que em 1908 enuncia como moral
sexual civilizada, ao desatrelar a sexualidade do registro biológico e inscrevê-la no
pulsional e na fantasia.
A dita moral sexual civilizada nos remete às normas estabelecidas pela ciência do
sexo imbuídas do controle e da regulação da sexualidade, das relações sexuais, de seus
desvios, tendo em vista o objetivo biopolítico moderno de constituição de uma
descendência biologicamente saudável e a produção de uma população bem qualificada
(FOUCAULT, 1976b/1988).
Dentro desse projeto, como vimos, o prazer deve ser submetido a essa exigência
social da boa reprodução da população. O casal parental passou a ser alvo das
estratégias biopolíticas, uma vez considerado o núcleo formador do modelo de família
que atenderia aos seus objetivos. Nesse intuito, o então emergente saber sobre o sexual
enfatizou os preceitos morais da longa tradição do Cristianismo (BIRMAN, 2007a),
submetendo o exercício da sexualidade ao imperativo do matrimônio e da monogamia.
E foi exatamente a esse contexto sócio-histórico que Freud (1908/1996) respondeu
ao apontar os efeitos catastróficos dessa moral sobre a subjetividade. O discurso
freudiano rompeu com a sexologia, conferindo um outro estatuto para o prazer e a
154
sexualidade, e realizando a crítica contundente da incidência desta moral sexual sobre o
psiquismo.
No que tange as figuras do casal parental, Freud sublinhou a diferença do preço
pago pelas mulheres à renúncia pulsional, em nome das pressões morais disseminadas
na modernidade.
“Mas a experiência também mostra que as mulheres, em sua qualidade de
verdadeiro instrumento dos interesses sexuais da humanidade, só possuem
em pequeno grau o dom de sublimar suas pulsões, e que, embora possam
encontrar um substituto adequado do objeto sexual no filho que
amamentam, mas não das crianças maiores - a experiência mostra, insisto,
que as mulheres ao sofrerem as desilusões do casamento contraem graves
neuroses que lançam sombras duradouras sobre suas vidas” (FREUD,
1908/1996, p. 180, grifos nossos).
Freud reconheceu com isso o peso infinitamente maior que recaiu sobre elas, haja
vista a dupla moral sexual válida para os homens, que os permitia maior liberdade no
trânsito de sua sexualidade. Ironicamente, Freud (1908/1996) revela que essa “é a
melhor confissão de que a própria sociedade não acredita que seus preceitos possam ser
obedecidos” (p.180). Às mulheres restava, como recompensa de sua docilidade, a
escolha entre o desejo insatisfeito, a infidelidade ou uma neurose (FREUD, 1908/1996,
p.182).
O imperativo da higiene também foi sublinhado por Freud neste ensaio, bem como
a caça aos desvios e anormalidades. Vejamos:
“Como o coito normal tem sido tão implacavelmente perseguido pela moral
e também pela higiene devido as possibilidades de infecção, as práticas
sexuais chamadas pervertidas, nas quais outras partes do corpo assumem o
papel de genitais, aumentaram sem dúvida sua importância social.
Entretanto, essas atividades não podem ser consideradas tão inofensivas
como outras extensões análogas [da meta sexual] nas relações amorosas.
São condenáveis do ponto de vista ético, pois degradam as relações
amorosas de dois seres humanos, rebaixando-as de uma questão
fundamental a um jogo cômodo, livre de riscos e sem nenhuma participação
espiritual” (FREUD, 1908/1996, p.184).
Freud (1908/1996) assevera que os ditames da moral sexual civilizada centrado no
casamento como “o único herdeiro das impulsões sexuais” (p.184) gera efeitos
desastrosos como a redução da capacidade erótica dos indivíduos, estreitamento da vida
155
conjugal a limites reduzidos da experiência sexual e, consequentemente, o malogro do
próprio casamento e a disseminação da doença nervosa.
Essa resultante não pode ser colocada na conta da hereditariedade, sendo na
verdade a conseqüência imediata da influência da civilização moderna sobre a
constituição subjetiva. Tal constatação freudiana revela a descontinuidade da psicanálise
com o processo instituído de normalização do sexual, ao desconstruir com os conceitos
de hereditariedade e degenerescência, deslocando a problemática desse campo de
discussão. Ao fazer isso, Freud demonstra que as marcas subjetivas não são hereditárias,
mas historicamente produzidas, de acordo com o ideário de seu tempo.
O tempo histórico é, contudo, também marcado pelas produções subjetivas. Se a
modernidade forjou as condições de possibilidade da neurose, a subjetividade neurótica
resistiu ao império de sua moral sexual, enunciando em seu sintoma uma forma, ainda
que indireta, de existência e satisfação erótica. Freud pontua, na conclusão de seu
ensaio, esse embate de forças:
“(...) devo insistir em meu ponto de vista de que as neuroses, quaisquer que
sejam sua extensão e sua vítima, sempre conseguem frustrar os objetivos da
civilização, efetuando assim a obra das forças mentais suprimidas que são
hostis a civilização. Dessa forma, se uma sociedade paga pela obediência a
suas normas severas com um incremento de doenças nervosas, essa
sociedade não pode vangloriar-se de ter obtido lucros a custa de sacrifícios;
e nem ao menos pode falar em lucros” (FREUD,
1908/1996, p.185-186).
Para Birman (2007a, p.8) o que Freud descreve em termos da moral sexual
civilizada revela a “condição de possibilidade concreta e histórica das doenças nervosas
dos tempos modernos”, tendo o discurso freudiano o mérito de destacar a “incidência do
processo civilizatório sobre a economia do gozo”. Este autor considera que, nesta obra,
Freud realiza uma genealogia da civilidade ocidental na modernidade, com vistas a
pensar nos efeitos desta sobre o psiquismo.
Essa consideração vai ao encontro de nossa leitura sobre o mal-estar subjetivo
moderno em Freud, como estando atrelada à inscrição da subjetividade na matriz
biopolítica. As concepções freudianas de conflito, divisão e perturbações psíquicas
decorrentes da renúncia pulsional são os signos do embate subjetivo em relação ao
imperativo de normalização social operado pelas tramas do sexual. As restrições à
satisfação pulsional, advindas do confronto entre a dimensão desejante do inconsciente
156
e o registro egóico consciente e recalcador, são a expressão máxima no discurso
freudiano do mal-estar frente ao contexto normalizador implacável da modernidade.
Nessa construção que Freud empreende da subjetividade há um outro aspecto
bastante atrelado aos ideários biopolíticos da medicalização da família e da
normalização sexual. Como vimos, novos “personagens” foram construídos a partir
desse contexto. A figura da mulher histérica foi um deles, recebendo um lugar
fundamental na emergência do discurso psicanalítico. Uma outra marca crucial para a
construção subjetiva no enunciado freudiano é o narcisismo (FREUD, 1914/1996). A
partir desse conceito, Freud realiza uma leitura da condição soberana adquirida pela
criança no horizonte da modernidade, revelando sua versão interpretativa ao imenso
investimento que se construiu em torno dessa figura e o que isso representou em termos
de constituição psíquica.
Nesse modelo de família nuclear, o casal parental se sacrifica em nome de seus
filhos e do que eles representam em termos de promessa de futuro, valorizados que são
como capital simbólico da Nação. A criança é o receptáculo do investimento narcísico
dos pais, recebendo no discurso freudiano a alcunha de “Sua Majestade o Bebê”,
onipotência primordial constitutiva da subjetividade. A figura da criança é assim alçada
à condição de soberana, reinando majestosamente a partir da idealização dos pais
(BIRMAN, 2007a, 2007b). Estes, por sua vez, projetam no filho a possibilidade de
realizar tudo aquilo que eles próprios não realizaram ao longo de suas existências,
reeditando dessa forma o seu próprio narcisismo (FREUD, 1914/1996).
No modelo subjetivo forjado por Freud na sua primeira metapsicologia, o
narcisismo é fundante da subjetividade, em uma referência cabal às insígnias sócio-
culturais por onde circulava o investimento. O projeto narcísico garante, de uma só vez,
a soberania do infantil e a restituição às figuras parentais de seu narcisismo perdido, em
função da experiência sacrificial inerente à conjuntura familiar da aurora da
modernidade.
Ao lado das figuras da mulher/mãe e da criança soberana não podemos esquecer
da relativização sofrida pelo poder paterno com a transformação da estrutura familiar. O
horizonte moderno marcado pela morte da figura de Deus
51
resultou na perda do
51
Referimo-nos aqui à fratura operada na modernidade com a referência divina transcendental enquanto
soberania absoluta que regulava a existência humana no mundo da natureza. Transição histórica que
comentamos no início deste capítulo.
157
fundamento simbólico do poder do pai. A reestruturação da família extensa em um
modelo nuclear significou a restrição do poder paterno, ainda que este tenha mantido
sua autoridade em relação ao poder materno. A figura do pai, mesmo que enfraquecida
em relação ao estatuto soberano de outrora, manteve-se marcada como o agente
principal da punição, do castigo e da castração, funções reconhecidas pelo discurso
psicanalítico.
A sociedade moderna assistiu, com as Revoluções Francesa e Inglesa, a queda do
poder absoluto e monárquico e a substituição da soberania absolutista pela soberania do
povo. Em Totem e tabu, Freud (1912-1913/1996) enunciou em termos psicanalíticos a
fratura fundamental da modernidade enunciada com a derrocada do poder soberano. O
mito da morte do pai da horda primitiva, assassinado pelos seus filhos, seria a versão
psicanalítica de Freud à morte de Deus que fundamenta a modernidade. Uma sociedade
fundada em laços fraternos substituiria a anterior fundada na figura una do soberano.
(BIRMAN, 2004a).
Contudo, a ausência da figura protetora do pai teria lançado a subjetividade em
uma condição psíquica de desamparo e culpa pelo assassinato, signo inconfundível da
constituição do sujeito e de seu mal-estar na história moderna.
Através dessa ficção do assassinato do pai, Freud introduziu a questão da morte no
discurso psicanalítico, a qual teve desdobramentos importantes em suas formulações
metapsicológicas. Apenas posteriormente é que a figura da morte se apresentou sob a
forma do conceito de pulsão de morte (FREUD, 1920/1996), revelando a condição
traumática de desamparo do sujeito face à perda da proteção paterna (BIRMAN, 2004a).
Dessa forma, foi pelo viés do desamparo que Freud deu seguimento a sua leitura
crítica da subjetividade na modernidade, anunciando a condição trágica e desamparada a
que essa fica submetida neste contexto histórico.
No capítulo anterior visualizamos as repercussões na teoria pulsional da entrada da
questão da morte no pensamento freudiano, que se evidenciou, como sublinhamos, no
deslocamento de um modelo vitalista para a referência mortalista pregnante na
reformulação metapsicológica empreendida por Freud a partir dos anos de 1920.
Agora estamos voltados para a relação entre o social e o pulsional. Desde 1908,
Freud já descrevera as doenças nervosas como conseqüência da renúncia da satisfação
da pulsão sexual exigida pelos tempos modernos. Em 1930, com O Mal-estar na
158
civilização Freud volta a insistir no antagonismo entre pulsão e civilização como fonte
do mal-estar subjetivo, dessa vez imerso em um horizonte marcadamente mortalista.
Nesse momento, Freud se refere às aquisições culturais do homem moderno para
fazer frente a sua condição de desamparo no mundo, apontando para o progresso
humano no campo da ciência e da técnica com vistas a estabelecer um controle sobre a
natureza. Uma vez que o ideal de onipotência corporificado na sua relação com o plano
divino se esfacelou na modernidade, Freud (1930 [1929]/1996) assevera que o homem
se aproximou desse ideal transformando-se ele próprio em um deus: “O homem, por
assim dizer, tornou-se numa espécie de ‘Deus de prótese’” (p.98).
Mesmo assemelhando-se cada vez mais à imagem de Deus, com todos os avanços
e recursos tecnológicos que inventa e dispõe na civilização, subjugando as forças da
natureza, o homem não se tornou mais livre e feliz, atesta Freud. Pelo contrário, as
reivindicações culturais restringem a liberdade e a felicidade do homem em sociedade,
acarretando frustrações que marcam os relacionamentos sociais, causando um
sentimento hostil para com a civilização.
Nesse sentido, Freud (1930[1929]/1996, p.109) volta a falar da condição das
mulheres na civilização que, se por um lado, “representam os interesses da família e da
vida sexual”, por outro, “a mulher se descobre relegada a segundo plano pelas
exigências da civilização e adota uma atitude hostil para com ela”. Aqui Freud faz uma
referência direta à energia psíquica empregada pelas mulheres na família, enquanto a
libido masculina é distribuída de forma mais conveniente: “Aquilo que [o homem]
emprega para finalidades culturais, em grande parte o extrai das mulheres e da vida
sexual. Sua constante associação com outros homens e a dependência de seus
relacionamentos com eles o alienam inclusive de seus deveres de marido e pai”
(FREUD, 1930[1929]/1996, p.109).
Freud (1930[1929]/1996) também remarca que nem as crianças foram poupadas
de terem sua vida sexual proscrita pela civilização ocidental moderna, “pois não haveria
perspectiva de submeter os apetites sexuais dos adultos, se os fundamentos para isso
não tivessem sido lançados na infância” (p.109).
O estabelecimento de um único tipo de vida sexual baseado na escolha objetal
restrita ao sexo oposto e na satisfação genital (amor genital heterossexual) ainda exige o
vínculo do matrimônio e da monogamia. Para Freud, tal cerceamento do gozo sexual
159
pela civilização prejudicou gravemente a vida do homem moderno e a sua expectativa
de extrair da sexualidade a fonte de sua felicidade. Assim também os imperativos de
ordem e limpeza restringiram a disposição pulsional dos indivíduos, levando Freud
(1930 [1929]/1996) a estabelecer a intrínseca relação entre “os processos civilizatórios e
o desenvolvimento libidinal do indivíduo” (p.103). Isto é, o modo como os seres
humanos se constituem libidinalmente está condicionado ao solo sócio-histórico em que
estão inseridos.
Desse modo, Freud demonstrou bem a relação entre modernidade, sexualidade e
neurose. Contudo, na quinta parte de O mal-estar na civilização ele introduz um novo
elemento de análise, afirmando que “a civilização, porém, exige outros sacrifícios, além
do da satisfação sexual” (1930 [1929]/1996), p.113). Eis que o fator agressividade entra
em cena, revelando a tendência primordial do homem para a agressão e destruição, tal
como Freud já tinha enunciado com a pulsão de morte e o princípio de nirvana.
Mais do que a restrição da sexualidade, o domínio sobre a agressividade consiste
na tarefa maior da civilização. “Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não
apenas à sexualidade do homem, mas também a sua agressividade, podemos
compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização” (FREUD, 1930
[1929]/1996), p.119).
Freud se impressiona por ter desprezado a agressividade e a destrutividade não
eróticas e reconhece ter falhado ao não conceder a devida importância a essas
manifestações na sua interpretação da vida. Elas seriam como uma “disposição
pulsional original e auto-subsistente” e representam o maior obstáculo à civilização
(FREUD, 1930 [1929]/1996, p.125). Sabemos, e Freud declara textualmente, que foi a
partir do reconhecimento da tendência humana para a agressão que a teoria psicanalítica
das pulsões sofreu uma significativa transformação. Logo após a concretização dessa
empreitada teórica, foi possível então para Freud a releitura do mal-estar a partir desses
novos elementos trazidos à tona com o advento da pulsão de morte na cena psíquica.
O processo de civilização passou a ser lido, desse modo, pelas lentes da batalha
entre Eros e Morte. A fim de regular a hostilidade constitucional dos seres humanos, a
civilização “constitui um processo a serviço de Eros”, dada a sua incumbência de gerir
os laços sociais pela libido.
160
A análise entre o social e o psíquico empreendida por Freud nesse contexto de O
mal-estar na civilização difere substancialmente daquela realizada no âmbito de A
moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa moderna. Nesta Freud ainda estava imerso
em uma ideologia iluminista centrada na crença do progresso da ciência como a fonte
maior da felicidade humana. O ideal da cura pela razão científica era um traço
pregnante do projeto moderno, o qual vemos repercutido em Freud na sua pretensão
inicial de que a psicanálise se tornasse efetivamente um discurso científico. Desse
modo, a psicanálise poderia operar como o instrumento capaz de realizar a cura das
perturbações psíquicas, bem como a regulação da relação conflituosa entre pulsão e
civilização.
Esse conflito causador das doenças nervosas na modernidade teria, assim, uma
solução possível pela mediação da psicanálise, proposta freudiana baseada na crença de
que o sujeito pudesse alcançar uma relação equilibrada entre exigência pulsional e
exigência da civilização. O sujeito poderia amansar seu mal-estar pelo domínio de suas
pulsões sexuais, tendo na sublimação um destino possível para a transformação de seu
imperativo sexual em uma meta não sexual.
Essa assertiva freudiana da possibilidade de uma “negociação” harmônica entre
pulsão e civilização é correlata da perspectiva empreendida na suas primeiras
considerações metapsicológicas, onde, como vimos no capítulo anterior, a força
pulsional é indissociada de sua representação. A pulsão é inteiramente pensada
enquanto inscrita no registro representacional, através de seus representantes, os quais
regulam o impacto de sua intensidade. Essa abordagem do aparelho psíquico centrada
em um ideal homeostático, que confere imanência à relação entre força pulsional e seus
representantes, corresponde à hipótese vitalista sobre a qual estava assentada as
formulações freudianas iniciais.
Nesse contexto em que a pulsão é, por excelência, pulsão sexual haveria sempre a
possibilidade de ser regulada por seus representantes. Sobre isso Birman comenta:
“Dessa maneira, o discurso psicanalítico seria algo da ordem da
interpretação e da representação, pela mediação das quais poder-se-ia
dominar a força da pulsão. Por esse viés, o sujeito poderia dominar o
impacto da pulsão. Pode-se depreender, enfim, que não existiria uma
mudança de essência entre o registro da força pulsional e o registro da
civilização, na medida em que esta seria o suporte dos objetos de gozo e
dos representantes” (BIRMAN, 2005b, p.212).
161
Consideramos que esses pressupostos teóricos baseados nas primeiras
considerações metapsicológicas já presentes desde Projeto para uma psicologia
científica, no primeiro dualismo pulsional evidenciado por Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade, e na primeira leitura sobre o mal-estar subjetivo realizado em Moral
sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna, configuram um primeiro modelo clínico
em Freud.
Essa primeira leitura teórico-clínica da subjetividade no discurso freudiano
encontra seu pilar de sustentação na sexualidade e no modelo da representação-
interpretação. Se a psicanálise vai dar valor primeiramente à sexualidade e ao infantil é
porque está inserida no projeto biopolítico onde a criança é valorizada no lugar do
soberano que garantirá o futuro da nação. A sexualidade é também o alvo fundamental
dado seu estatuto de veículo da constituição de uma população bem qualificada.
Freud construiu um modelo de subjetividade baseado nesses personagens
principais deste momento histórico: leitura da histeria, da “Sua Majestade o Bebê”, da
sexualidade e da família burguesa medicalizada do século XIX. Isso porque o discurso
freudiano se inscreve nesse processo histórico marcado pela biopolítica, que por sua vez
configurou a constituição de determinadas formas de subjetividade na modernidade.
A mãe dividida entre a sexualidade e a maternidade e a experiência sacrificial dos
pais em nome de seus filhos marcaram o imaginário infantil e o registro da fantasia, que
fazem parte dessa estrutura biopolítica criada nesse momento da modernidade. Também
não podemos desconsiderar os efeitos biopolíticos sobre as mulheres, de onde Freud
partiu em sua análise da neurose histérica.
Nessa discussão que estamos empreendendo aqui da subjetividade moderna
engendrada pela biopolítica, consideramos que o paradigma da histeria é representativo
de um primeiro modelo subjetivo em Freud, relativo aos impasses do erotismo diante
dos imperativos do dispositivo da sexualidade.
Essa leitura que propomos através dos atravessamentos da biopolítica revela que a
maneira pela qual a subjetividade foi constituída na modernidade foi um processo
produzido historicamente. Nesse sentido, o solo histórico da modernidade foi a
condição de possibilidade do nascimento da psicanálise, uma vez que a noção de
inconsciente foi construída nesse contexto.
162
De certo modo, a psicanálise nasce para se contrapor à medicalização do vivo e do
corpo, ao reducionismo da subjetividade a um corpo disciplinado e medicalizado. A
psicanálise anuncia um corte e fala de um outro corpo, de uma outra cena (ics). Nessa
direção, entendemos que a psicanálise nasce para responder ao mal-estar moderno
engendrado pelos dispositivos de poder característicos desse contexto, ainda que essa
resposta obtenha destinos diferentes na obra de Freud.
As transformações subjetivas estão em relação com o processo de medicalização
do ocidente e com os avanços das estratégias biopolíticas. A subjetividade não é uma
invariante, ao contrário, é permanentemente afetada por valores produzidos ao longo da
história, e é dessa relação que nos interessa tratar.
Se a subjetividade moderna é produto de uma sociedade de normalização,
característica de um processo construído historicamente na modernidade, interessa-nos
pensar se esse modelo sexual-histérico ainda é pertinente para pensar as marcas
subjetivas da contemporaneidade.
Entendemos que o discurso psicanalítico centrado na histeria do corpo não pode
ser separado de uma análise da modernidade, a qual tentamos realizar até o presente
momento desta pesquisa. A psicanálise só pôde nascer no momento em que a
subjetividade moderna foi forjada pela disciplina, no contexto da emergência da norma
e das ciências humanas.
Indagamo-nos até onde essa configuração subjetiva e o correlato discurso
psicanalítico pautado na sexualidade e na histeria ainda são pertinentes para pensar a
subjetividade nos tempos atuais. Hoje poderíamos dizer o mesmo a respeito das
subjetividades sofrentes? As relações de poder e os modos de controles atuais são os
mesmos? Que tipo de subjetividades eles estão a produzir? Atualmente uma outra
nuance na configuração subjetiva é forjada pelo refinamento do biopoder. Que tipo de
relação de poder fabrica os novos sujeitos?
Essa é a discussão que nos encaminha para o próximo capítulo onde discutiremos
sobre os avanços da biopolítica na contemporaneidade e seus efeitos sobre a
subjetividade.
Antes disso, porém, cabe-nos também indagar, no âmbito do discurso freudiano,
se as bases dessa primeira construção subjetiva continuou sendo a referência norteadora
do pensamento psicanalítico em torno das produções psíquicas. Nesta pesquisa que se
163
propõe mapear algumas continuidades e descontinuidades é preciso perguntar-se se
Freud mantém ao longo de sua obra o modelo da infância e da sexualidade, que são os
pilares da biopolítica.
Retomando o fio da análise do mal-estar, a diferença da leitura de 1908 para a de
1929 nos indica alguns caminhos para pensar sobre os desdobramentos que essas
primeiras construções freudianas em torno do sexual obtiveram ao longo da obra. O
mal-estar na civilização é representante de um outro posicionamento de Freud em
relação à análise dos impasses do sujeito entre pulsão e civilização, correlativo também
de uma outra visada sobre a metapsicologia da pulsão.
Em 1915, Freud redige Reflexões para os tempos de guerra e de morte
externalizando a sua perplexidade diante do ponto em que as potências mundiais haviam
chegado na luta pelo poder, a despeito da corrida na busca pela razão e pelo progresso.
Foi justamente esse ideal que desmoronou, levando Freud a constatar os desastres
decorrentes daquilo que comportava a promessa de liberdade e felicidade. Freud
começou assim a desconstruir a ilusão do progresso sustentada em Moral sexual
‘civilizada’ e doença nervosa moderna, empreendendo uma crítica aguda ao processo
civilizatório do Ocidente moderno, que culminou na sua análise de O Mal-estar na
civilização.
Nesta obra, Freud (1930 [1929]/1996, p.95) refere-se “à tão desprezada era dos
progressos científicos e técnicos”, empreendendo uma leitura crítica dos avanços da
modernidade e de seus conseqüentes impasses sobre o social e o psíquico. Revela a
mudança de seu posicionamento com relação ao ideário moderno, especialmente na
terceira parte da referida obra, onde analisa o progresso no campo das ciências. A
constatação freudiana é a de que essa conquista frustrou o ideal de felicidade que nela se
depositou, apontando, contrariamente, para o grau de desconforto, infelicidade e
sofrimento em que se vive na civilização moderna.
Freud (1930 [1929]/1996) expressa, por diversas vezes, uma posição como a que
se segue: “Esforcei-me por resguardar-me contra o preconceito entusiástico que sustenta
ser a nossa civilização a coisa mais preciosa que possuímos ou poderíamos adquirir, e
que seu caminho necessariamente conduzirá a ápices de perfeição inimaginada” (p.147).
Neste momento histórico de franca ruptura com a soberania divina, onde o homem
passa a ser a medida de todas as coisas, através da conquista de seu poder sobre a
164
natureza, Freud pontua que apesar de seu grande potencial cultural e científico “não
esqueceremos que atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de semelhante a
Deus” (FREUD 1930 [1929]/1996, p.98).
O cenário sombrio da guerra, que evidenciava a hostilidade e a agressividade entre
os homens, colocou Freud (1920/1996) diante de manifestações psíquicas inusitadas, a
partir das quais ele reformulou sua teoria pulsional, admitindo a emergência da pulsão
de morte. Esta apontava para um intervalo entre a força pulsional e a sua representação,
já que seria da ordem de uma energia não ligada e não inscrita no circuito
representacional, regida pelo principio de nirvana, cuja tendência primordial visa a
descarga.
Nesta concepção mortalista a vida é um destino, assim como as inscrições
psíquicas da intensidade pulsional, que depende permanentemente da intervenção
alteritária. A referência homeostática desaparece ao passo que agora o que está em jogo
é a regulação constante da atividade pulsional, tarefa principal de Eros, para que o
movimento em direção à descarga seja contornado. A necessidade da mediação do outro
para a sobrevivência e constituição psíquica aponta para uma condição originária
insuperável de desamparo, que lança o sujeito em uma eterna dependência do
investimento alteritário.
Não há para Freud nesse momento nenhuma ilusão de que a razão científica possa
levar ao progresso do espírito humano e aplacar o seu desamparo. Este é constitutivo da
condição humana e demanda permanentemente por trabalho e regulação psíquica. Desse
modo, o conflito entre pulsão e civilização seria irreconciliável, estando a subjetividade
fadada a regulá-lo por intermédio dos laços sociais.
“Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não mais nos é
obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre a pulsão de
vida e a pulsão de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana.
Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da
civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana
pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas babás tentam apaziguar
com sua cantiga de ninar sobre o Céu” (FREUD 1930 [1929]/1996, p.126).
Fica evidente o tom trágico que o discurso freudiano adquire nessa leitura do mal-
estar, a qual colocou em cheque as promessas de progresso que marcaram o projeto de
modernização do social no Ocidente (BIRMAN, 2005b; HERZOG, 2000). A
165
tragicidade do pensamento freudiano é perpassada pela assunção do interminável
enfrentamento entre a vida e a morte na cena psíquica. A subjetividade é assim acossada
no seu desamparo por esse infindável conflito.
Nessa última leitura sobre o mal-estar Freud abala a soberania da razão, apontando
para a insuficiência desta em restituir a soberania de Deus ou do Pai, ambos estão
definitivamente mortos na modernidade, e a subjetividade está destinada a lidar com
essa dimensão trágica de sua existência desamparada. Assim, a construção da
modernidade calcada na falência do poder paterno teria sido responsável pela produção
do desamparo no registro subjetivo, símbolo do mal-estar enunciado pelo discurso
freudiano.
Diante dessa condição irrevogável o sujeito apela para a proteção do pai, através
da construção da figura de um pai ideal, cuja autoridade é internalizada sob a forma do
supereu, representante paterno no psiquismo. O medo da perda de amor e proteção,
decorrente da relação de dependência ao outro em função do desamparo, levou à
renúncia das satisfações pulsionais e à internalização do sentimento de culpa e punição.
Para se defender do desamparo, o sujeito se submete à severidade da autoridade paterna,
dessa vez representada internamente pela instância superegóica.
O masoquismo emerge, assim, como a figura fundamental na cena psíquica neste
momento do discurso freudiano. A agressividade, a violência, o sadismo e o
masoquismo começam a aparecer de forma pregnante na experiência analítica,
anunciando um segundo modelo clínico em Freud. O ensaio sobre Luto e Melancolia
(FREUD, 1917[1915]) já prefigurava o horizonte melancólico e o modelo da perda
presentes na configuração subjetiva. A segunda teoria pulsional centrada no vocabulário
do combate e do mortalismo rearranjou metapsicologicamente aquilo que se
evidenciava como um segundo modelo subjetivo em Freud, em que o sujeito é uma
produção, um destino do embate entre as pulsões de vida e a pulsão de morte.
A própria idéia de cura é definitivamente abandonada nesse contexto sendo
substituída pelo reconhecimento da necessidade de gerir o constante embate entre Eros e
pulsão de morte (FREUD 1937a/1996).
Se em 1908, com todas as críticas aos imperativos sociais de regulação do sexual,
Freud ainda se manteve de certa forma preso a uma prática normativa ao supor a
psicanálise como uma via de solução para o conflito entre pulsão sexual e civilização,
166
em 1929 ele a destituiu de tal pretensão. E justamente por esse motivo, no fim de seu
percurso, Freud foi o mais radicalmente possível anti-normativo, lançando no
indeterminismo os destinos do conflito e da subjetividade.
A conclusão de O mal-estar na civilização não deixa dúvidas quanto a isso:
“Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que,
com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros,
até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua
atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta
esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’, o eterno Eros, desdobre
suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário.
Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?” (
FREUD
1930 [1929]/1996,
p.147-148).
Vale ressaltar que o editor comenta em nota que essa última frase foi acrescentada
em 1931, quando a ameaça de Hitler já começava a se evidenciar. O contexto sócio-
histórico desse momento se aproximava do ápice radical das estratégias biopolíticas que
viraram do avesso o lema do “fazer viver, deixar morrer”, ao submeter um gigantesco
contingente populacional ao holocausto, em nome da pureza da vida, da raça, da
qualidade da população.
Freud foi sensível às transformações sócio-políticas do seu tempo mantendo-se
sempre atento aos impasses que estas representaram para o plano subjetivo,
respondendo desta forma às estratégias biopolíticas em ação na modernidade.
O próprio modelo biopolítico sofreu variações ao longo da história da
modernidade, produzindo ecos na produção da subjetividade e do discurso psicanalítico.
No capítulo seguinte, trataremos dos remanejamentos da problemática da biopolítica na
atualidade, pensando na transição que essas questões passaram para o modo como
vivemos e subjetivamos hoje.
167
CAPÍTULO V
DESDOBRAMENTOS CONTEMPORÂNEOS DA BIOPOLÍTICA E
SEUS EFEITOS SOBRE A SUBJETIVIDADE
PARTE I: Considerações acerca da biopolítica contemporânea
O paradoxo apontado por Foucault (1976a/1999) a respeito do biopoder
52
, o qual
por um lado concentra-se no “fazer viver” e por outro exerce a função da morte,
apresenta-se em franca atualidade. A essa face mortífera da biopolítica Agamben
(2002a) denomina de tanatopolítica. Contudo, com isso não faz mais do que lançar as
luzes sobre a dupla face dessa tecnologia do poder já indicada pelas análises
foucaultianas. A contribuição de Agamben nos permite observar que o “deixar morrer”
muito provavelmente se sobreponha hoje ao imperativo do “fazer viver”, reservando às
subjetividades um destino marcado pelas figuras do abandono e da morte.
Conforme apontam esses dois autores, os regimes totalitários do século XX
marcaram um momento histórico em que a biopolítica atingiu o ápice de seu
desenvolvimento e de suas repercussões no campo social e subjetivo. Foucault aponta
para o paroxismo a que chegou os mecanismos de poder que respondiam ao mesmo
tempo pela segurança e disciplina da sociedade e, em nomes destas, pela autorização de
matar. Agamben, seguindo a trilha aberta por Foucault, confronta os acontecimentos de
nossa realidade sócio-política atual com as fendas abertas pela marca biopolítica de
nossa história. Para esse autor, os laboratórios eugênicos produzidos pelo nazismo são a
referência máxima da radicalidade que as estratégias biopolíticas atingiram e que
continuam ainda hoje, em seus desdobramentos, definindo o campo biopolítico da
atualidade.
Do nascimento da biopolítica na aurora da modernidade ao dias de nosso tempo,
não podemos considerar que o biopoder atue da mesma forma. As proporções que o
projeto biopolítico alcançou na atualidade são de outra envergadura e merecem ser aqui
evidenciadas para que possamos pensar em seus efeitos subjetivos. Além disso, os
52
Apontamos essa questão no capítulo II, p.64-65. Neste capítulo ampliaremos essa discussão.
168
mecanismos de poder estão em constante relação de embate e mobilidade. As
sociedades disciplinares se transformaram e o modelo da disciplina, baseado na captura
e no poder individualizante, abriu espaço para outros e novos tipos de controle.
A globalização e o progressivo esfacelamento das instituições disciplinares
conduziram ao estabelecimento de uma nova organização do poder. Entretanto, os
desdobramentos contemporâneos da história do biopoder se inscrevem na mesma matriz
biopolítica que se constituiu na virada do século XVIII para o XIX, e é essa referência
que não podemos perder de vista, se bem quisermos estar em dia com nosso propósito
de pensar a subjetividade hoje.
Prosseguiremos com nossas análises do campo da biopolítica hoje, através das
considerações de Agamben e Birman, para posteriormente pensarmos nas condições de
possibilidade da constituição subjetiva nesse contexto.
5.1. A soberania do estado de exceção como regra
Giorgio Agamben - filósofo italiano e pensador de destaque no pensamento
filosófico-político da atualidade - realiza uma análise crítica das categorias políticas que
governam as sociedades ocidentais. No cerne de suas investigações ele retoma de
Foucault o tema da biopolítica, analisando detalhadamente seus desdobramentos na
contemporaneidade
53
.
Diferente de Foucault que pensa a biopolítica como uma descontinuidade
específica da modernidade, Agamben concebe como originária a relação entre vida e
53
É importante salientar que Agamben baseia sua leitura em hipóteses eminentemente foucaultianas, às
quais expusemos no segundo capítulo desta tese. Contudo, convém observar que o projeto agambeniano
se diferencia daquele de Foucault por estar ligado a uma tradição jurídico-política pré-foucaultiana, com a
qual o próprio Foucault estabeleceu linhas de ruptura. Agamben parte de uma concepção clássica de
política que tem na soberania de Estado o seu fundamento, o que o torna engajado em um projeto
fundacional em que o poder é desde sempre, e na sua origem, soberano. Agamben pensa o sentido da
biopolítica pelo viés do “estado de exceção como regra”, o que significa pensá-lo a partir do direito
(sistema jurídico) que inclui em si o ser vivente por meio de sua suspensão. Agamben realiza uma crítica
ao Estado - crítica ao direito, uma vez que este é o domínio a partir do qual o poder se exerce. Já Foucault
constrói uma analítica do poder que não toma o direito como modelo e código. Foucault rejeita o caráter
negativo e opressor do poder estatal sustentado por um código jurídico, preferindo analisá-lo pela
perspectiva de uma microfísica do poder, que significa examiná-lo pelas malhas do social. Guardadas
essas diferenças prosseguiremos com as análises de Agamben naquilo que este autor nos oferece para
pensar o contexto biopolítico contemporâneo.
169
política. Esta relação não seria uma característica do moderno, mas um traço
fundamental que marca a concepção de política desde a Grécia antiga.
“Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a
contribuição original do poder soberano. A biopolítica é, nesse sentido, pelo
menos tão antiga quanto a exceção soberana. Colocando a vida biológica no
centro dos seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto, do que
reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua, reatando
assim (...) com o mais imemorial dos arcana imperii” (AGAMBEN, 2002a,
p.14)
Segundo Agamben (2002a), os gregos possuíam dois termos para definir a vida:
zoé, que exprime o simples fato de viver, a vida natural comum a todos os seres vivos; e
bíos, que exprime a forma de viver própria de um indivíduo ou de um grupo, a vida
qualificada. Havia no mundo grego uma clara distinção e discernibilidade entre ser
vivente e ser político, entre zoé e bíos, vida nua e vida qualificada. A dimensão política
não é inerente à condição do vivente, mas um suplemento adquirido através da entrada
da vida natural no âmbito da pólis, esfera essencialmente política.
Assim, Agamben diverge de Foucault ao conceber a articulação entre vida e
política como já dada desde a antiguidade grega, discordando que esta relação seja uma
marca de descontinuidade moderna. A especificidade do moderno, neste ponto de vista,
consistiria no apagamento dos limiares que demarcavam, para além da captura do
político, uma zona distinta onde repousava a esfera do simples fato de viver.
“A tese foucaultiana deverá, então, ser corrigida ou, pelo menos, integrada,
no sentido de que aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a
inclusão da zoé na pólis, em si antiguíssima, nem simplesmente o fato de
que a vida como tal venha a ser um objeto eminente dos cálculos e das
previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado
com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o
espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento,
vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e
inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de
irredutível indistinção” (AGAMBEN, 2002a, p.16).
Para entender o que se desdobra no cenário político contemporâneo, Agamben
aposta em uma análise genealógica que leve em consideração o ponto de intersecção
170
entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder, o que teria
justamente ficado de fora das análises de Foucault
54
.
Para tanto, Agamben recorre a uma análise do que define a idéia de soberania e
estado de exceção, com vistas a elucidar as bases de nossa concepção de democracia e
de Estado de direito. E é por esse viés que este autor se dedica a pensar em como ao
longo do tempo vem se concretizando o exercício da biopolítica.
O direito romano previa a possibilidade de declarar via Senado um estado de
emergência diante de situações que oferecessem perigo à integralidade da República.
Decretada tal situação seguia-se a proclamação de um iustitium que implicava em uma
interrupção e suspensão do direito e da ordem jurídica. Este instituto provocava a
produção de um vazio jurídico que instaurava uma zona de anomia. Nenhum cidadão
romano possuía, nesse contexto, poderes ou deveres. Nesse sentido, o estado de exceção
estaria desligado da ordem do direito. Agamben considera esse instituto romano como o
arquétipo do que hoje vigora em termos de paradigma do estado de exceção moderno.
Para empreender essa genealogia e situar as bases modernas do estado de exceção
Agamben recorre à obra de Carl Schmitt
55
, jurista nazista que se dedicou com afinco na
construção de uma teoria do estado de exceção, estabelecendo uma relação de
contigüidade entre este e a concepção de soberania. Segundo Agamben (2004), Schmitt
descreve a partir dessa relação uma “forma de governo” pautada pela lógica da exceção
que não só permanece atual como se tornou o paradigma de governo das democracias
modernas e contemporâneas.
A análise agambeniana nos mostra que Schmitt inscreveu, através de uma
estrutura de suspensão, o estado de exceção em um contexto jurídico, o que era
impensável no direito romano, uma vez que a característica da exceção já demarcava
54
Este é o ponto que mostra exatamente os diferentes caminhos percorridos pelos dois autores em torno
do tema do poder e da soberania, que apontamos na nota anterior. A análise jurídico-política ficou fora
das discussões de Foucault exatamente porque este escolheu um nível diferente de leitura para tratar a
questão, que acabou rendendo ao autor uma concepção singular sobre o poder, marca inconfundível de
seu pensamento. Ele assume expressamente, e por várias vezes faz questão de insistir, que “o nível que eu
gostaria de seguir a transformação [no campo do poder soberano] não é o nível da teoria política, mas,
antes, o nível dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder” (FOUCAULT, 1976a/1999,
p.288). Agamben, ao contrário, faz confluir a genealogia do poder de inspiração foucaultiana com a teoria
do direito. Não se trata aqui de discutir amplamente as implicações disso, não obstante consideramos
necessária a observação. Para que possamos alcançar a discussão agambeniana sobre a biopolítica hoje -
tópico que nos interessa sobremaneira - percorreremos brevemente a construção de sua leitura.
55
Agamben centra sua análise em duas principais obras de Schmitt: Die Diktatur (1921) e Politische
Theologie (1922). Para uma compreensão mais aprofundada sobre o assunto remeto o leitor ao livro de
Agamben, G. (2004) Estado de exceção. São Paulo: Boitempo.
171
uma zona de anomia exterior ao direito. Contudo, o esforço schmittiano consistia
justamente em poder atrelar o estado de exceção à ordem jurídica.
Essa operação só foi possível a partir da separação entre a norma e a decisão. Ao
suspender e anular a norma entra em cena a decisão soberana. O soberano é aquele que
decide sobre o estado de exceção, suspendendo o ordenamento jurídico e
permanecendo, portanto, fora dele, mas paradoxalmente, pertence a ele, pois é o
responsável por anunciar a possibilidade de suspender a constituição.
O soberano é, assim, aquele que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da ordem
jurídica, constituindo-se como a figura que garante a relação com o direito. Disso
decorre a necessidade de relacionar a teoria do estado de exceção com tal concepção de
soberania. O estado de exceção passa, então, a ser “juridicizado”.
As implicações da leitura de Schmitt referem-se a uma definição de soberania
demarcada por uma estrutura originária de exceção, “forma extrema de relação que
inclui alguma coisa unicamente através de sua exclusão” (AGAMBEN, 2002a, p.26).
Sob essa perspectiva introduzida por Schmitt, Agamben (2002a) conclui que “...ela
(soberania) é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si
através da própria suspensão” (p.35). Nesse sentido, o estado de exceção configura a
estrutura política fundamental, cujo significado biopolítico lhe é inerente.
A estrutura da soberania e do poder soberano é a estrutura da exceção, que
promove uma zona de indiscernibilidade entre violência e direito, exterior e interior,
lícito e ilícito. Disso decorre a constituição de um espaço como o da vida nua que, ao
ser incluída somente através de uma exclusão, torna-se presa à política sob a forma de
exceção. A política seria então fundada sobre a exceção da vida nua. Nesse ínterim,
Agamben (2002a) aponta que essa concepção do poder está na base da constituição dos
governos democráticos, isto é, a estrutura de exceção como consubstancial à política
ocidental.
Essa forma de governar baseada em um estado de exceção abre margens para que
o poder executivo se confunda com o legislativo e decrete medidas com força de lei. O
que significa, em última instância, uma distinção moderna entre eficácia da lei e força
de lei, permitindo que atos que não tenham o estatuto de lei possam alcançar a sua força.
Nas palavras de Agamben (2004) “o estado de exceção é um espaço anômico onde o
que está em jogo é uma força de lei sem lei...” (p.61).
172
O Estado nazista foi o fenômeno mais espetacular e exemplar do estado de
exceção. O Decreto para a proteção do povo e do Estado, promulgado por Hitler assim
que ele tomou o poder, levou à suspensão do direito à liberdade individual; decreto esse
que se estendeu sem revogação por 12 anos.
Agamben deriva desse acontecimento o recurso a essa condição de emergência
cada vez mais permanente como uma prática habitual dos Estados contemporâneos.
Uma medida concebida como provisória transforma-se, progressivamente, em técnica
de governo. Nesse sentido, o autor denuncia que “o estado de exceção tende cada vez
mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política
contemporânea” (AGAMBEN, 2004, p.13) e ainda que o mesmo “apresenta-se, nessa
perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”
(p.13).
Em sua análise, o autor nos mostra que essa mesma configuração de estado de
exceção presente na doutrina alemã se faz presente nas doutrinas italiana, francesa e
anglo-saxônica, respectivamente como decretos de urgência, estado de sítio e lei
marcial, o que atesta sua presença nas origens da constituição dos Estados democráticos.
Vejamos o caso da primeira assembléia constituinte francesa (1789-1791), que
instituiu a partir de um decreto de 8 de julho de 1791 o estado de sítio, inaugurando o
estado de exceção moderno na ocasião da Revolução. Este decreto sancionava, através
da declaração de um estado de sítio, a suspensão provisória da lei, ou seja, da ordem
jurídica e, consequentemente, dos direitos individuais dos cidadãos, em nome e em
defesa, paradoxalmente, da democracia e da cidadania.
O estado de sítio foi assim concebido como uma medida de salvaguarda
temporária dos Estados democráticos para ser aplicada diante de uma situação de
emergência, porém ao longo da história desvinculou-se de situações de guerra,
difundindo-se como medida extraordinária diante das mais diversas desordens internas.
Este recurso previsto no âmbito da lei, mas que opera para a sua suspensão,
revela-se como extremamente antidemocrático e é para essa contradição que Agamben
nos chama a atenção, questionando como ideais democráticos puderam se coadunar com
um princípio de soberania fundando na lógica da exceção, por excelência
antidemocrática.
173
Desta forma, Agamben denuncia o paradigma do estado de exceção inserido no
cerne da democracia, e vai mais além localizando neste ponto o germe do totalitarismo
como imanente à própria constituição dos Estados democráticos modernos.
Nesse sentido, o estado de exceção não só é uma medida contingente de que o
Estado lança mão em momentos excepcionais de crise (como uma forma de restabelecer
a normalidade), como, mais do que isso, faz parte do fundamento próprio da idéia de
soberania e constitui, portanto, a matriz política das democracias que se expressa de
forma radical no contexto contemporâneo. Diz-noz ele: “(...) Conforme uma tendência
em ato em todas as democracias ocidentais, a declaração do estado de exceção é
progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da
segurança como técnica normal de governo” (AGAMBEN, 2004, p.27-28).
Em linha de continuidade com essa genealogia, Agamben retoma e afirma a
atualidade do diagnóstico de Benjamin para pensar o cenário político contemporâneo:
“a tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção no qual nós vivemos é a
regra”
56
. Com isso, Benjamin explicita seu desacordo em relação à Schmitt,
desarmando o argumento schmittiano do estado de exceção quando indica que este se
torna a regra, ou seja, deixa de ser um “estado” e transforma-se em situação normal.
O que acontece na atualidade é que este estado de exceção tornar-se de fato a
regra, como já asseverava Benjamin. Assistimos constantemente a medidas
excepcionais tomadas em nome da segurança da população, as quais têm se constituído
como técnicas normais e regulares de governo. Assim, o estado de exceção deixa de ser
uma situação extraordinária estabelecida em um momento de urgência e emerge ao
primeiro plano, como uma técnica de governo que se aplica normalmente à
administração da vida.
O exemplo que leva esse princípio a sua radicalidade é o campo de concentração
dos regimes totalitários como o nazismo, que se mostrou como o absoluto espaço de
exceção. Sobre isso, Agamben comenta:
“A questão correta sobre os horrores cometidos não é, portanto, aquela que
pergunta hipocritamente como foi possível cometer delitos tão atrozes para
com os seres humanos; mais honesto e, sobretudo, mais útil seria indagar
atentamente quais procedimentos jurídicos e quais dispositivos políticos
56
BENJAMIN (1942 apud AGAMBEN, 2002b, p.16).
174
permitiram que seres humanos fossem tão integramente privados de seus
direitos e de suas prerrogativas, até o ponto em que cometer contra eles
qualquer ato não mais se apresentava como delito” (AGAMBEN, 2002a,
p.178).
Nesse sentido, a pesquisa agambeniana traça o estado de exceção como a estrutura
jurídico-política específica que tornou possível o campo de concentração.
“O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a
tornar-se a regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente uma
suspensão temporal do ordenamento com base numa situação factícia de
perigo, ora adquire uma disposição espacial permanente que, como tal,
permanece, porém, estavelmente fora do ordenamento normal”
(AGAMBEN, 2002a, p.175-176).
O nazismo se configura, portanto, como o modelo fiel ao paradigma do “estado de
exceção como regra”, grande paradoxo da modernidade.
Entendemos que Agamben realiza uma crítica à tentativa de Schmitt de associar
estado de exceção à ordem jurídica, denunciando que foi esse tipo de ficção que tornou
possível a ditadura soberana. Essa ficção insere a prerrogativa do estado de exceção no
âmbito da lei, dando margens a uma ditadura constitucional. O estado de exceção é por
excelência um espaço vazio de direito, vinculá-lo a este é uma manobra para torná-lo
paradigma de governo, cujas conseqüências marcaram à ferro e à fogo o século XX e
ainda o nosso tempo (AGAMBEN, 2004).
Hoje essa tese continua cada vez mais atual, o que indica que vivemos sob um
estado de exceção constante, porém não declarado, atuando de forma encoberta na
condução dos governos democráticos. Agamben (2004) situa na esteira dessa
configuração biopolítica do estado de exceção os decretos promulgados pelo presidente
dos EUA após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 naquele país. Os atos
promulgados dizem respeito à detenção de cidadãos suspeitos de participação em
atividades terroristas, bem como a prisão e posterior expulsão de estrangeiros suspeitos
de ligação com atividades que coloquem em risco a segurança nacional dos Estados
Unidos.
A particularidade de tais mandatos reside no caráter inconstitucional da detenção,
onde os prisioneiros capturados não contam com a condição de prisioneiros de guerra
175
acordada pela Convenção de Genebra, nem mesmo com os direitos de acusados previsto
na lei norte-americana, situação evidenciada nos detentos de Guantánamo. Isso os
subjuga a uma condição de indeterminação e pura dominação. Agamben (2004, p.14) os
compara aos judeus nos campos de concentração nazistas: “juntamente com a cidadania,
haviam perdido toda a identidade jurídica, mas conservavam pelo menos a identidade de
judeus”.
É a partir desses exemplos de uma das grandes potências da política mundial atual
que Agamben (2004) nos aponta para uma referência imediata ao estado de exceção,
onde visualizamos a reivindicação dos poderes soberanos por parte de um chefe de
Estado que visa que a produção de um estado de emergência se torne a regra.
A Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 teve uma função
histórica para a configuração da soberania nacional e para a constituição do Estado
Moderno: “As declarações dos direitos representam aquela figura original da inscrição
da vida natural na ordem jurídico-política do Estado-nação” (AGAMBEN, 2002a,
p.134).
A referida declaração, na leitura de Agamben, atrela o fato do nascimento à
aquisição de direitos políticos. Assim, o simples fato de nascer já faz do homem um
sujeito de direitos. O que ele denomina como a vida nua natural (zoé), que no Antigo
Regime “era politicamente indiferente e pertencia, como fruto da criação, a Deus, e no
mundo clássico era claramente distinta como zoé da vida política (bíos), entra agora em
primeiro plano na estrutura do Estado e torna-se aliás o fundamento terreno de sua
legitimidade e da sua soberania” (AGAMBEN, 2002a, p.134). Se na Soberania Régia
do Antigo Regime a vida nua (súditos) se diferenciava da vida política (sujeitos de
direitos), com o advento da Soberania Nacional da sociedade moderna todo e qualquer
homem é um cidadão.
Desse modo, Agamben sustenta a tese de uma politização da vida, processo que se
inicia com a declaração dos direitos humanos e que inaugura a nova biopolítica e a nova
soberania nacional. A característica essencial da operação biopolítica da modernidade
reside na integração entre medicina e política e na decorrente indiscernibilidade entre
vida nua e vida política qualificada, entre corpo biológico e corpo político.
Nesse solo em que se desenvolveu o totalitarismo do século XX, o “patrimônio
vivente” passa a ser o alvo das investidas de uma nova política. Se para Foucault
176
(1975/1988) o Panóptico de Bentham se erigiu como o diagrama da sociedade
disciplinar, para Agamben (2002a) o campo de concentração e a política dos Estados
totalitários se erigem como o paradigma da biopolítica moderna.
“Dos campos não há retorno em relação à política clássica; neles, a cidade e
a casa tornaram-se indiscerníveis, e a possibilidade de distinguir entre o
nosso corpo biológico e o nosso corpo político, entre o que é incomunicável
e mudo e o que é comunicável e dizível, nos foi tolhida de uma vez por
todas” (AGAMBEN, 2002a, p.193).
O campo constituiu-se na própria materialização do estado de exceção que se
tornou a regra, marcando indelevelmente o espaço político da modernidade.
5.2. A vida nua do homo sacer
A vida que está em jogo nessa configuração política do estado de exceção como
regra, espacialmente delimitada pelo modelo do campo, é aquela do homo sacer.
Agamben (2002a) recorre a essa figura do direito romano arcaico cuja especificidade
reside na impunidade da sua morte e no veto de seu sacrifício, ou seja, uma vida
matável e insacrificável. Homo sacer é aquele que podia ser morto sem que sua morte
configurasse um homicídio, nem mesmo estivesse à serviço da celebração de um
sacrifício. Nessas condições, uma pessoa estaria fora da jurisdição humana, dada a
licitude de sua matança, sem alcançar a divina, uma vez posta a exclusão do sacrifício.
O termo sacer indica justamente essa vida absolutamente matável, objeto de uma
violência que excede tanto a esfera do direito quanto a do sacrifício. A sacralidade da
vida que se poderia pensar como um direito humano fundamental contra o poder
soberano exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um
poder de morte.
Essa dupla exceção presente na condição de homo sacer Agamben faz aludir à
figura da exceção soberana, de onde supõe uma reciprocidade entre as estruturas da
soberania e da sacratio.
“Restituído ao seu lugar próprio, além tanto do direito penal quanto do
sacrifício, o homo sacer apresentaria a figura originária da vida presa no
bando soberano e conservaria a memória da exclusão originária através da
177
qual se constituiu a dimensão política. O espaço político da soberania ter-
se-ia constituído, portanto, através de uma dupla exceção (...) que configura
uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio. Soberana é a esfera
na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar sacrifício, e
sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nessa
esfera” (AGAMBEN, 2002a, p.90-91, grifo do autor).
O homo sacer é, portanto, o espelho do soberano. Enquanto este, na altura da
soberania de sua decisão suspende a lei no estado de exceção, aquele é imediatamente
implicado enquanto vida sacra exposta a um poder de morte. Essa constante exposição
da vida humana a uma matabilidade incondicionada é que caracteriza a forma como a
vida é incluída na ordem política, tendo em vista essa relação originária da exceção.
Evidencia-se, desse modo, a nudez de uma vida diante do poder de morte do
soberano. A politização da vida custa a destituição de sua própria existência política, “a
vida humana se politiza somente através do abandono a um poder incondicionado de
morte” (AGAMBEN, 2002a, p.98). O homo sacer, reduzido à vida nua, não tem
existência política, mas tem função política. Vida despolitizada para ser usada
politicamente. Para Schmitt os meios justificam os fins.
Com o termo forma-de-vida Agamben (2002b) remete a uma vida que não pode
ser jamais separada de sua forma, sendo impossível isolar um registro de vida nua. A
vida humana não é feita apenas de fatos, mas de possibilidades de vida, antes ainda, de
potências. A forma do viver humano não se encerra em uma determinação biológica ou
em algo da ordem de uma necessidade, carrega, mais do que isso, a marca de uma
possibilidade, um ser de potência, que pode escolher. A forma-de-vida caracteriza,
assim, segundo Agamben, uma vida política.
Na contramão de tal concepção de vida, o poder político opera separando das
formas de vida uma esfera da vida nua. A origem desta separação remonta à expressão
presente no direito romano vitae necisque potestas, que significa o poder de vida e de
morte do pater sobre seus filhos. Diante de uma concepção de poder que ameaça com a
morte, a vida resta como o corolário deste poder de matar: vida nua, exposta ao poder de
morte. Agamben (2002b) assinala que esse modelo de poder do pater é o núcleo
original do poder soberano. No contexto da soberania, a vida política é, portanto, essa
mesma vida “exposta a uma ameaça que repousa desde então unicamente nas mãos do
soberano” (p.15).
178
A decorrência de tal conformação do poder é a fundação do poder do Estado, não
em uma vontade política como se poderia esperar, mas sobre a vida nua submetida ao
direito de vida e de morte do soberano, ou da lei, acrescenta Agamben (2002b). No
estado de exceção, considerado pelo autor como o fundamento último do poder político,
a decisão soberana recai precisamente sobre a vida nua, cindindo-a das múltiplas formas
de vida sociais às quais permaneceria ligada em situações normais.
“A vida nua, que constituía o fundamento oculto da soberania, se tornou em
todos os lugares a forma de vida dominante. A vida em um estado de
exceção que se tornou normal é a vida nua que separa em todos os
domínios as formas de vida de sua coesão em uma forma-de-vida”
(AGAMBEN, 2002b, p.17)
57
.
Desse modo, as formas de vida reais se transformam em formas de sobrevivência
constantemente ameaçadas de violência. Não por acaso, quando Agamben (2002b)
aproxima a vida nua de uma esfera da sobrevivência, a vida biológica aparece como
“uma forma secularizada da vida nua” (p.19). E é nesse contexto que a ciência médica
atua de forma decisiva no sistema de poder com fins de controle político, operando, no
lugar do soberano, a mesma redução das formas de vida em vida nua, só que agora a
partir de “representações pseudo-científicas do corpo, da doença e da saúde” (p.18).
Ao trazer de novo à cena a questão da medicalização da vida, Agamben não faz
mais do que atualizar a hipótese foucaultiana
58
que colocava o saber médico como um
dos mais firmes pilares sobre o qual está assentada a estratégia biopolítica, e de onde ela
se exerce no tecido social. É justo ratificar a presença do dispositivo médico-científico
como uma engrenagem indispensável à maquinaria biopolítica, hoje cada vez mais
acentuada pelo progressivo avanço tecnológico, que leva a uma manipulação da vida a
uma esfera antes impensada. Basta conectar-se minimamente aos meios de
comunicação e seremos bombardeados com os últimos gritos lançados pela ciência, da
genética aos tratamentos com células-tronco, a impenetrabilidade da vida humana aflora
agora como terreno de livre acesso às explorações científicas.
57
Tradução nossa. No original: “...la vie nue, qui constituait le fondement caché de la souveraineté, est
devenue partout la forme de vie dominante. La vie dans un état d’exception devenu normal est la vie nue
qui sépare dans tous les domaines les formes de vie de leur cohésion en une forme-de-vie”.
58
FOUCAULT (1976b/1988).
179
Retomando a metáfora do campo, se os hebreus sob o regime nazista foram
exterminados como vida nua encarnando o legítimo papel de homo sacer, hoje
Agamben (2002a) anuncia que somos todos virtualmente homines sacri. Com esse
argumento ele nos mostra que a vida nua não está mais predeterminada em torno de
uma categoria específica, “mas habita o corpo biológico de cada ser vivente” (p.146).
Sobre a relação entre o paradigma do campo e a condição da vida nua nele
implicada, a seguinte passagem é esclarecedora:
“Na medida em que os seus habitantes foram despojados de todo estatuto
político e reduzidos integralmente a vida nua, o campo é também o mais
absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o
poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação. Por
isso o campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a
política torna-se biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o
cidadão” (AGAMBEN, 2002a, p.178).
Assistimos em nosso tempo a uma pulverização do poder soberano e,
consequentemente, do registro da vida nua do homo sacer, conduzindo a um
esgarçamento do limiar que define a “vida que não merece viver”. É nesse sentido que
Agamben (2002a) assinala o “ponto em que a biopolítica converte-se necessariamente
em tanatopolítica” (p.149).
Revisitando o lema da biopolítica moderna tão bem exposto por Foucault, em que
vigora o “fazer viver e deixar morrer”, e tendo em vista os últimos desdobramentos da
história do biopoder na contemporaneidade, parece-nos que o acento recai inteiramente
na segunda parte da proposição, visto que fazer viver depende imperiosamente do
deixar morrer.
Disso decorre uma série de implicações como a produção de um registro de
existência fadado a uma mortificação em vida, onde vemos proliferar seres humanos
que sobrevivem agarrados a uma condição de mortos-vivos.
Agamben (2002a) recupera aquele que considera ter sido o primeiro registro da
vida nua como novo sujeito político: implícito no documento que é colocado à base da
democracia moderna: Habeas corpus de 1679 – fórmula que garante a presença física
do imputado diante de uma corte de justiça. O que está em questão para Agamben é a
presença do puro e simples corpus.
180
“Nada melhor do que esta fórmula nos permite mensurar a diferença entre
as liberdades antiga e medieval e aquela que se encontra na base da
democracia moderna: não o homem livre, com suas prerrogativas e os seus
estatutos, e nem ao menos simplesmente homo, mas corpus é o novo sujeito
da política, e a democracia moderna nasce propriamente como
reivindicação e exposição deste “corpo”: hábeas corpus ad subjiciendum,
deverás ter um corpo para mostrar” (AGAMBEN, 2002a, p.129/130, grifos
nossos).
Isso nos leva a pensar que a condição de vida nua passa a coincidir com a
dimensão da existência biológica. Desse modo, existir é equivalente a ter um corpo para
mostrar (e manipular). Resta indagar o destino subjetivo num mundo onde o registro da
existência foi jogado para o plano do corpo, ou mais concretamente, do organismo.
Guardemos essa indagação por um instante
59
.
Agamben (2002a) assinala a integração entre medicina e política no horizonte
biopolítico moderno. A história não nos furta os exemplos. Os detentos dos campos de
concentração, os condenados à morte pela justiça norte-americana, populações inteiras
no continente africano, todos cobaias humanas de experimentos conduzidos por
médicos e pesquisadores.
Isso porque os novos dispositivos biopolíticos não se referem a sujeitos de direito,
mas a corpos vivos
60
. O que está em jogo não é mais o direito à vida ou à saúde, e sim o
“corpo-espécie” (FOUCAULT, 1976b/1988), ou ainda, a vida nua (AGAMBEN,
2002a). As cobaias humanas submetidas à procedimentos científicos não são tratadas
como sujeitos de direitos, mas como corpos de cuja vitalidade se extrairá seu valor
político. Legítima condição de homo sacer reduzido à vida nua sobre a qual o soberano
decide. “O médico e o soberano parecem trocar de papéis”, comenta Agamben (2002a,
p.150), e ainda “o médico e o cientista movem-se naquela terra de ninguém onde,
outrora, somente o soberano podia penetrar” (p.166).
59
Voltaremos a essa discussão na segunda parte deste capítulo.
60
Interessante notar o paradoxo: Na pólis grega os direitos não eram universais, nem todos eram
considerados cidadãos, direito esse que precisava ser conquistado. A modernidade reconheceu a
universalidade do direito adquirida desde o momento do nascimento. A pessoa já nasce portadora de
direitos, o que assegura sua cidadania e seu direito à vida. É curioso que observemos hoje justamente o
contrário, um processo de esvaziamento e destituição do sujeito de seus direitos. Este é um fenômeno
característico do século XX em diante, que coloca em questão justamente a prerrogativa máxima dos
Estados modernos democráticos.
181
Toda a discussão sobre a redefinição da morte também aponta para esse limiar
biopolítico contemporâneo, onde as concepções sobre a vida e a morte deixam de
concernir apenas ao âmbito científico, adquirindo um significado político. As salas de
reanimação, onde novas técnicas garantem a sobrevivência mantida unicamente de
modo artificial, nos revelam a fronteira móvel que nos obriga a construir novos critérios
para definir onde começa a vida e até onde ela vai. Atualmente vivemos uma querela
que se insere no bojo de tais discussões biopolíticas, zona de enfrentamento entre
cientistas, religiosos e políticos que alcançou os tribunais de justiça.
Agamben (2004) esclarece a ficção sobre a qual está fixada essa conformação
política pautada pela soberania e pela exceção que foi, segundo ele, “contaminada pelo
direito”. O vínculo que tornou indiscernível a relação entre vida, violência e direito foi
artificialmente construído. Repensar a política hoje seria, para este autor, desfazer essa
ficção e cortar o nexo entre violência e direito.
A conseqüência mais cabal de tal fictícia articulação decorreu na
indiscernibilidade entre vida política e vida biológica, na indistinção entre o público e o
privado. O corpo biológico tornou-se um campo de batalha política e o paradigma do
campo mostra bem a condição de seus habitantes que não podem mais encontrar refúgio
nem mesmo na sua intimidade, que se tornou de uma vez por todas, pública.
Não podemos mais fazer como os gregos uma distinção entre nossa vida íntima e
biológica e nossa vida política na cidade, entre “o que é incomunicável e mudo e o que é
comunicável e dizível” (AGAMBEN, 2002a, p.193). Num mundo em que o estado de
exceção virou a regra, não podemos mais distinguir nosso corpo biológico de nosso
corpo político. O que quer dizer, em última instância, que nosso corpo biológico virou a
materialidade sobre a qual se autorizam uma série de práticas de poder.
Sobre isso vale ressaltar alguns acontecimentos a título de exemplificação. Em um
manifesto especial para o jornal francês Le Monde, intitulado “Não à tatuagem
biopolítica”, Agamben torna público o motivo que o fez cancelar os cursos que deveria
lecionar em março de 2004 na Universidade de Nova Iorque, referente a sua recusa em
se submeter ao fichamento eletrônico de suas impressões digitais para entrar no país,
novo decreto que regula a entrada nesta nação. Agamben denuncia o ultrapassamento de
certos limiares no que diz respeito ao controle e manipulação dos corpos, apontando
182
para uma nova era biopolítica, onde a permissividade desse tipo de prática se torna
“normal” na relação entre cidadãos e Estado.
O filósofo nos convida a pensar no estatuto jurídico-político, ou simplesmente
biopolítico, como sugere, dos cidadãos nos Estados ditos democráticos da
contemporaneidade, que permite o “fichamento do elemento mais privado e
incomunicável da subjetividade: falo da vida biológica dos corpos”
61
. Assim como a
tatuagem foi para Auschwitz a forma de inscrever e registrar os deportados nos campos
de concentração, tais práticas de controle biológicas impostas pelos EUA constituem a
tatuagem biopolítica que num futuro próximo consistirá na forma de inscrição normal
do cidadão no Estado.
Recentemente assistimos a uma proposição desse tipo, desta fez feita pelo governo
francês
62
. Quatro meses após a eleição, o presidente Nicolas Sarkozy toma medidas
para barrar o fluxo de imigração na França, propondo o que ele defende como
“imigração escolhida”, de forma a favorecer a economia do país. Uma das exigências
desse projeto de lei, aprovado pela Assembléia Nacional e à espera de aprovação pelo
Senado, é a realização do teste de DNA para estrangeiros que desejam morar com seus
familiares na França. O teste genético garantiria que o imigrante faz realmente parte da
família do estrangeiro legalizado na França. O projeto gerou polêmica, mas será adotado
em caráter experimental até 2010, sendo inédito em outros países da Europa.
Esse contexto está muito longe daquilo que Agamben denomina como uma vida
política, onde é impossível isolar no campo de experiências do humano marcado pela
“pura potência do pensar”, uma forma-de-vida reduzida à vida nua. O pensamento é,
para o autor, a experiência de uma potência comum, índice de uma comunidade e de
uma comunicabilidade, o que permite que o sujeito esteja imerso sempre em
multiplicidade e possibilidades.
“A intelectualidade, o pensamento (...) são a potência unitária que constitui
em forma-de-vida as múltiplas formas de vida. Face à soberania do Estado,
que pode se afirmar somente separando em cada domínio a vida nua de sua
forma, eles são a potência que incessantemente reúnem a vida a sua forma
61
AGAMBEN, G. “Não à tatuagem biopolítica”. Le Monde, Paris, 18 de janeiro de 2004. Disponível em:
http://www.imediata.com/imediartivismo/txt_ref/archives/000079.html. Acesso em 2 de maio de 2007.
62
Notícia veiculada pelo Jornal O Globo, na seção O Mundo, p.37, sexta-feira, 21 de setembro de 2007,
intitulada: “Sarkozy defende teste de DNA para imigrantes”, redigida pela correspondente Deborah
Berlinck.
183
ou impedem que ela desta se dissocie” (AGAMBEN, 2002b, p.22, grifos do
autor)
63
.
Sob seu ponto de vista, para reverter a cisão instaurada pela soberania, que
possibilitou esse espaço de redução da existência humana a um constante poder de
morte, é preciso pensar em uma política que vem
64
centrada no pensamento como
forma-de-vida, para assim se contrapor à eliminação perpetrada pela condição de nudez
que restou à vida diante de uma configuração política pautada pela lógica da exceção
soberana. Seria necessário, então, para este autor, repensar uma concepção de política
para além do seu marco fundacional calcado na exceptio da vida.
Para tanto, segundo ele, seria preciso ultrapassar a falsa alternativa entre meios e
fins que permeia a política. Agamben (2002b) propõe romper com a idéia de política
como um fim mais elevado, pensando-a como uma medialidade pura. “Não é a esfera de
um fim em si, nem de meios subordinados a um fim, mas aquela de uma medialidade
pura e sem fim como campo da ação e do pensamento humano”
65
(p.129)
66
.
5.3. Quando o poder sobre a vida é um poder sobre a morte
Nessa política que se propõe voltada para a produção da qualidade e proteção da
vida e cidadania da população, é curioso notar sua outra face, que autoriza a
manipulação biológica como condição de existência política, a exclusão e a eliminação
social, quando não mesmo a matança. Atualmente, esse parece ser o lado da moeda em
evidência. O trocadilho é pertinente em tempos onde os frangalhos da soberania dos
Estados são regidos pela lógica da economia de mercado, tentando insistentemente
63
Tradução nossa. No original: “L’intellectualité, la pensée (...) sont la puissance qui constitue en forme-
de-vie les multiples formes de vie. Face à la souveraineté de l’État, qui peut s’affirmer seulement en
séparant dans chaque domaine la vie nue de sa forme, elles sont la puissance qui incessamment réunit la
vie à sa forme ou empêche qu’elle s’en dissocie”.
64
Agamben (2002b, p.19) alude à possibilidade de se pensar em uma política não estatal.
65
Tradução nossa. No original: “Ce n’est pas la sphère d’une fin en soi, ni des moyens subordonnés à une
fin, mais celle d’une médialité pure et sans fin comme champ de l’action et de la pensée humaine”.
66
Aqui Agamben se aproxima de Benjamin, o qual discute a questão entre meios e fins em relação à
violência. Para um aprofundamento sobre essa discussão ver AGAMBEN (2004), especialmente o
capítulo VII intitulado “Luta de gigantes acerca de um vazio”. Remetemos também à tese de FARAH, B.
(2007) que, no primeiro capítulo da terceira parte, trata minuciosamente desta questão.
184
subsistir às custas de uma redução das subjetividades à condição de nudez de suas vidas.
O “fazer viver, deixar morrer” por vezes parece transformar-se em “fazer morrer, deixar
viver”.
Este último é o lema do clássico poder soberano que detinha como marca
fundamental de sua soberania a legitimidade do poder de matar, colocando seus súditos
diante da ameaça de morte (FOUCAULT, 1976a/1999), em outros termos, o exercício
do pater poder (AGAMBEN, 2002a).
Foucault, na abertura do último capítulo de A vontade de saber intitulado “Direito
de morte e poder sobre a vida”, recupera a raiz do poder soberano contida na patria
potestas do direito romano, para mostrar a forma antiga e absoluta do direito concedido
ao pai de dispor da vida de seus filhos e escravos. Ele deriva a teoria clássica do direito
como uma fórmula atenuada (relativa e limitada) desse poder soberano. Contudo, o
autor sublinha que em ambas trata-se de um direito assimétrico de causar a morte ou
deixar viver
67
.
Agamben (2002a) também retoma em sua pesquisa a expressão vitae necisque
potestas contida no direito romano, que significava o “direito de vida e de morte” do
poder do pai sobre seus filhos homens, conferindo-lhes assim o lastro de cidadãos. Isto
é, a vida exposta à morte (vida nua) define a condição da existência política (vida
qualificada). Para este autor, esse foi o mito genealógico de constituição do poder
soberano. Este se funda no poder de morte do pater, definindo assim o modelo do poder
político em geral. O imperium do magistrado, para os romanos, nada mais era do que a
vitae necisque potestas do pai estendida a todos os cidadãos. Desse modo, “o
fundamento primeiro do poder político é uma vida absolutamente matável, que se
politiza através de sua própria matabilidade” (AGAMBEN, 2002a, p.96). Nessas
condições, o cidadão deve “pagar a sua participação na vida política com uma
incondicional sujeição a um poder de morte” (AGAMBEN, 2002a, p.98).
Em contrapartida, os cidadãos contavam com a referência da presença absoluta da
figura do pai soberano sobre suas existências, que se por um lado os assujeitava a um
67
Esse tema da dissimetria do poder soberano é também tratado por Foucault em Em defesa da
sociedade: “O direito de vida e de morte só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre do lado da
morte. O efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento em que o soberano pode
matar. Em última análise, o direito de matar é que detém efetivamente em si a própria essência desse
direito de vida e de morte: é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida”
(1976a/1999, p.286-287).
185
poder de morte, por outro os qualificava politicamente sob a forma da cidadania que
lhes conferia direitos na vida da pólis.
A modernidade, por sua vez, marcou um momento de descontinuidade histórica ao
retratar um período de contestação, declínio e perda de tal poder soberano. Deus foi
morto, na versão nietzschiana sobre o fundamento da modernidade (NIETZSCHE,
2001), o pai foi assassinado por seus filhos, na versão freudiana (FREUD, 1912-
1913/1996), retratando um processo de decadência da figura paterna.
A problemática dos modernos em relação aos antigos centrou-se, assim, na perda
fundamental da referência soberana divina, figura central na organização do poder na
antiguidade. Em detrimento desta, se estabeleceu na modernidade ocidental uma
soberania de base popular, onde o povo e não mais Deus se constituiu no centro do
exercício de poder soberano, que se fazia representar pelo Estado, sob as modalidades
políticas da república e da democracia.
Conforme apontamos, especialmente nos capítulos II e IV, essa descontinuidade
na forma do exercício da soberania gerou um descentramento de poder que logo se
reordenou em torno de um Estado representativo da soberania de um povo. O poder
disciplinar exerceu nesse contexto de soberania de Estado um importante papel de
regulação da população. Com a passagem do campo jurídico da lei para o campo
biológico da norma, o exercício do poder se pratica na aliança entre um direito de
soberania e uma mecânica da coerção disciplinar (FOUCAULT, 1976a/1999).
O poder soberano foi assim reiterado pela figura do Estado-nação, fundado na
soberania popular. O reordenamento de um eixo de centralidade no registro da
soberania, ainda que agora relativo, garantiu a sustentação de um pólo de poder
organizador da sociedade e da subjetividade.
A promoção da vida e a constituição dos direitos universais dos cidadãos fizeram
parte desse remanejamento do poder soberano na modernidade - que passou das mãos
de Deus para as do povo - configurando-se como estratégia maior da biopolítica na
gestão de uma população economicamente útil e, para tanto, de boa saúde e educação.
Contudo, esta soberania de Estado que agora representa o povo não pode mais
matar impunemente como outrora o fazia o representante divino. Foucault (1976b/1988)
pontua justamente que os mecanismos de poder se transformaram no Ocidente a partir
da época clássica. Se nesta o poder se exercia como mecanismo de subtração e
186
apropriação, na modernidade ele passa a estar destinado à produção, multiplicação e
ordenação de forças.
A função do soberano passa a ser “fazer viver”, mais do que “fazer morrer”. A
rede disciplinar se ocupou da administração das vidas através, como já sabemos, da
medicalização do social e da hierarquização dos indivíduos a partir de normas
biológicas. Nessa forma de organização do poder (anatomo-política do corpo e
biopolítica da espécie humana), característica do apogeu da modernidade, o soberano
existe como virtualidade nas redes sustentadas pelo disciplinamento e pela biologização
da vida e das subjetividades (BIRMAN, 2006b).
O mal-estar na modernidade foi correlato a essa perda de proteção garantida pela
figura do soberano, vivenciada no registro psíquico como a perda do poder do pai sobre
seus filhos, que se alastrou sob a forma da condição de desamparo. Com a neurose, as
subjetividades sofreram a nostalgia da quebra da proteção e do amor incondicional do
pai. O estabelecimento da instância psíquica do supereu, marcada pelos traços da tirania
e da ferocidade, internalizou a autoridade paterna enfraquecida.
A criação do Estado-nação como mantenedor do bem estar-social e regulador da
soberania de seu povo, garantiu um vértice de poder soberano em torno do qual as
subjetividades, ainda que desamparadas, puderam se referir e se sustentar na
modernidade. Para Birman (2006b), enquanto existia a crença na proteção soberana, o
psiquismo evitava o desamparo através de um pacto masoquista. A servidão garantia em
troca a segurança prometida pelo discurso disciplinar e biopolítico da qualidade de vida
e de bem-estar da população.
A questão flagrante na atualidade é justamente um progressivo processo de
esfacelamento das fronteiras bem delimitadas dos Estados-nação, bem como de seus
projetos de promoção/manutenção do bem-estar social. A globalização é uma marca
incontestável da contemporaneidade onde o poder perdeu qualquer centralidade,
multiplicando-se em diferentes pólos e registros.
A soberania do Estado-nação foi assim frontalmente atingida, uma vez que agora o
poder não está mais restrito a sua organização política, disseminando-se pelo espaço
social. Os movimentos sociais como as mobilizações gay e feminista tiveram neste
contexto seu destaque, conferindo um incremento de poder à sociedade civil (BIRMAN,
2006b).
187
No âmbito da economia, os Estados não permaneceram incólumes ao fluxo
constante da entrada de capitais internacionais, que passou a influenciar e a regular a
economia de cada nação. De modo que a soberania de Estado fragilizou-se face a uma
política econômica de escala mundial. As decisões referentes a um Estado “soberano”
não podem ser tomadas sem considerar os interesses políticos e econômicos da
comunidade internacional.
Birman (2006b) salienta que diante dessa descentralização do poder e da soberania
posta em causa pela perspectiva internacionalista da globalização, os Estados-nação
foram obrigados a constituírem relações em rede, seja sob a forma do registro
econômico, seja através da unificação política, a fim de se defenderem do abalo que a
nova política mundial internacional representa para suas soberanias.
Desse modo, a economia de fluxo de mercado internacional que marca o atual
processo de globalização fragilizou a soberania dos Estados, repercutindo em um
declínio mais acentuado do poder soberano. Na presença de um Estado de previdência
voltado para a manutenção do bem-estar social, o confronto com a vida nua foi evitado
pelas promessas de melhores condições de saúde e educação. Contudo, é justamente
esse projeto que entra em crise na contemporaneidade, onde a proteção prometida pelo
Estado torna-se praticamente inexistente. Sob o imperativo da lucratividade econômica,
a previdência estatal dirigida aos cidadãos se desmantela.
Diante de um contexto social desestabilizado pelas progressivas perdas de direitos
e de posições sociais, a rede disciplinar, por sua vez, não garante mais a efetividade da
regulação e gestão da população. A cena atual marcada pelo exercício da violência, da
criminalidade e da delinqüência revela a resultante desse processo de radical derrocada
da referência soberana e de esgarçamento do aparelho disciplinar.
Nesse sentido, Birman (2006b) sublinha que a promessa de gestão da vida nua e o
projeto da qualidade de vida se esvaziam com a globalização, retirando das
subjetividades a proteção soberana, lançando o desamparo “a céu aberto”, sem nenhuma
possibilidade de mediação.
O autor aponta para a quebra da mediação nos registros político e social, de forma
que as subjetividades vivenciam uma experiência de vazio num mundo que perdeu o
sentido, tornando-se incapazes de criar mediações.
188
A idéia de um desamparo a céu aberto nos remete à vida nua permanentemente
exposta a um poder de morte, sem nenhuma mediação que possibilite o acesso ao
registro do sentido e da qualificação.
Entendemos, nesse contexto, que a política do estado de exceção como regra seria
uma forma de tentar restaurar a centralidade e a verticalidade do poder soberano
pulverizado na atualidade. O “paradigma da segurança como técnica normal de
governo” seria a forma atual de governabilidade na tentativa de manter ou restabelecer
um eixo soberano para o Estado-nação. Com isso, reconduz os indivíduos à condição de
vida nua, privando-os de uma existência qualificada.
Os filhos sobre o pater poder tinham a garantia de sua cidadania, de sua inserção
na vida pública e política da pólis, ainda que sob a condição de uma matabilidade. Hoje
podemos considerar que esse “ganho” não existe ou é francamente precário. O que nos
evoca o retorno brutal da estratégia de medicalização – que atinge limites espetaculares
na sociedade contemporânea - como forma de “qualificar” essas vidas, cuja resultante
maior é a redução a “ter um corpo para mostrar”.
A legalização/juridicização do estado de exceção no seio da constituição
democrática levou à destituição dos sujeitos de seus direitos mais essenciais. Nesse
contexto, o Estado não protege mais o cidadão, ao contrário, lança-o a sua própria sorte
num mundo onde tudo é possível. Se por um lado a soberania é restaurada às custas de
um estado de exceção, como uma forma de manter o poder do Estado centralizado e
verticalizado, por outro, ela não confere a sua contrapartida em termos de proteção aos
cidadãos. Paradoxalmente, é em nome da segurança da cidadania que essa política se
justifica, atuando, entretanto, na eliminação de seus direitos fundamentais. A condição
de possibilidade do estado de exceção é justamente essa redução das individualidades à
vida nua.
Dessa forma, a eliminação pela vida nua sob a forma do “deixar sobreviver”, ou
mesmo, “deixar eliminar”, está colocada no interior de um projeto político que se pauta
no “fazer viver”. Não podemos esquecer que o biopoder implica também no “deixar
morrer”. Mas o que acontece com essa tecnologia de poder que em seus
desdobramentos, como esses apontados por Agamben, vêm colocando o “deixar
morrer” como condição de possibilidade do “fazer viver”? O acento sobre o “deixar
morrer” estaria hoje sobreposto ao “fazer viver”? Deveríamos então inverter a máxima
189
para “deixar morrer, fazer viver”? Ou, ainda, será que vivemos um assustador
recrudescimento do poder soberano absoluto nos antigos termos à base do “fazer
morrer, deixar viver”?
Foucault nos dá uma pista importante para avançarmos nesse ponto. Se ele nos
aponta para uma passagem moderna do poder soberano ao poder disciplinar, ele
sublinha, ao mesmo tempo, uma relação de complementaridade entre este poder
soberano e o biopoder disciplinar regulamentador. Para o autor, as transformações no
direito político do século XIX levaram a completar o velho direito da soberania “com
outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassá-lo,
modificá-lo (...) um poder exatamente inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’
morrer” (FOUCAULT, 1976a/1999, p.287).
O exercício do modelo da soberania clássica estaria de certa forma presente no
interior da biopolítica. Consideramos, a partir disso, a existência de um núcleo de poder
soberano (“direito de vida e de morte”) no cerne do discurso biopolítico. Esta
justaposição revela bem de que forma o biopoder absorve a dimensão do poder
soberano, voltando-o para um “fazer viver”. Sendo assim, o modo deste se exercer a
partir da modernidade é, de fato, uma descontinuidade, tal como pontua Foucault.
Porém ele não foi extinto - permanecendo como uma relíquia do passado histórico -,
continua sendo visado na forma através da qual o biopoder se exerce. Isto é, o direito de
morte se desloca, apoiando-se nas exigências de um poder que gere a vida.
“Essa morte, que se fundamentava no direito do soberano se defender ou
pedir que o defendessem, vai aparecer como o simples reverso do direito do
corpo social de garantir sua própria vida, mantê-la ou desenvolvê-la.
Contudo jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século
XIX e nunca, guardadas as proporções, os regimes haviam, até então,
praticado tais holocaustos em suas próprias populações. Mas esse
formidável poder de morte – (...) – apresenta-se agora como o
complemento de um poder que se exerce, positivamente, sobre a vida, que
empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre
ela, de controles precisos e regulações de conjunto. As guerras já não se
travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da
existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em
nome da necessidade de viver” (FOUCAULT,
1976b/1988, p.128-129,
grifos nossos).
Nesse ponto, as contribuições de Foucault permanecem bastante atuais para
pensarmos a variação do discurso biopolítico hoje. Essa intersecção do poder de morte
190
com o “fazer viver” confere a face mais contemporânea do exercício do biopoder,
depois de ter revelado seu ápice com o regime nazista, tal como pontuam Foucault e
Agamben. O que ambos apontam é que assistimos ao longo do século XX, e ainda hoje,
a uma atuação fenomenal do poder soberano no âmago dos regimes democráticos,
mesmo após o colossal genocídio que isso implicou.
É dessa forma que a expressão tanatopolítica de Agamben retoma uma discussão
já presente em Foucault, que se refere ao paroxismo por este sublinhado de um sistema
político centrado no biopoder que exerce, ao mesmo tempo, a função da morte. O
paradoxo presente no limite do exercício do biopoder (ou seja, matar no interior de uma
tecnologia de poder que revoga para si o direito de fazer viver) que foi amplamente
visualizada nos regimes totalitários, continua presente hoje nos Estados regidos pela
democracia. A face mortífera do biopoder toma relevo na atualidade. Nesse sentido, o
“fazer viver” exige cada vez mais a prerrogativa do “deixar morrer”, que nada mais é do
que o modo contemporâneo do exercício do direito de morte soberano.
Sobre essa face mortífera da biopolítica, Foucault (1976a/1999) introduz uma série
de questionamentos no sentido de como um poder que se dirige para a vida pode
autorizar a matança. A explicação vem pelo racismo: “Se o poder de normalização quer
exercer o velho direito soberano de matar, ele tem que passar pelo racismo” (p.306).
Na concepção de Foucault (1976a/1999), o poder assassino do Estado só é
possível através do racismo. É este que confere condição de possibilidade para o
exercício do direito de matar, tendo sido então inserido pelo biopoder nos mecanismos
dos Estados modernos. O racismo vai exercer funções importantes, sendo a primeira
delas produzir uma cesura de tipo biológico: distingue, hierarquiza e qualifica o grupo
de boa qualidade biológica e os inferiores. A fim de manter a qualidade da população,
através dessa cesura biológica proporcionada pelo racismo, autoriza-se a matança dos
considerados inferiores e dos anormais (ou seja, todos aqueles que fogem à norma da
boa cepa biológica).
“Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é
obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da raça
para exercer seu poder soberano. A justaposição, ou melhor, o
funcionamento, através do biopoder, do velho poder soberano do direito de
morte implica o funcionamento, a introdução e a ativação do racismo. E é
aí, creio eu, que efetivamente ele se enraíza” (FOUCAULT,
1976a/1999,
p.309, grifo nosso).
191
Desta forma, o racismo implicado na economia do biopoder é bem diferente
daquele conhecido pelo ódio das raças umas pelas outras. Foucault (1976a/1999) faz,
nesse sentido, uma diferença entre o racismo étnico e o de tipo evolucionista e
biológico. Este último serviria como ponto de apoio para o direito de matar no interior
do biopoder.
Essa relação de tipo biológico marca também o que Foucault (1976a/1999)
considera a segunda função do racismo nesse contexto, qual seja, fazer atuar uma
relação de combate: “quanto mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo você
viverá”, “se você quer viver, é preciso que você faça matar, é preciso que você possa
matar” (p.305). Contudo, a característica guerreira de enfrentamento se perde em face
de uma relação biológica de exclusão, onde a sobrevivência da raça sadia está atrelada à
eliminação da raça biologicamente ruim e inferior.
A inserção do racismo no interior do dispositivo biopolítico foi, desse modo,
justamente a manobra que possibilitou uma estranha complementaridade entre o poder
soberano e o biopoder disciplinar regulamentador.
E desta vez a função da morte é exercida não só sobre os inimigos e adversários
externos, mas sobre a própria população que se quer proteger e qualificar. Foucault
explicita bem essa nuance a partir do nazismo:
“Tem-se, pois, na sociedade nazista, esta coisa, apesar de tudo
extraordinária: é uma sociedade que generalizou absolutamente o biopoder,
mas que generalizou, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar. Os
dois mecanismos, o clássico, arcaico, que dava ao Estado direito de vida e
de morte sobre seus cidadãos, e o novo mecanismo organizado em torno da
disciplina, da regulamentação, em suma, o novo mecanismo do biopoder,
vêm, exatamente, a coincidir. De sorte que se pode dizer isto: o Estado
nazista tornou absolutamente co-extensivos o campo de uma vida que ele
organiza, protege, garante, cultiva biologicamente, e, ao mesmo tempo, o
direito soberano de matar quem quer que seja – não só os outros, mas os
seus próprios” (FOUCAULT, 1976a/1999,
p.311).
A biopolítica instaura, via racismo - na verdade esse é o paradoxo - a possibilidade
de matar seu próprio cidadão, uma vez que o inimigo não é unicamente externo, é
também e principalmente interno à própria sociedade, tal como os perigos biológicos
relativos à manutenção da qualidade de vida da população.
192
Foucault (1976a/1999) se utiliza do exemplo nazista, pois para ele este foi a
expressão máxima do jogo entre o poder soberano de matar e os mecanismos do
biopoder. Contudo, ele assevera: “Mas tal jogo está efetivamente inscrito no
funcionamento de todos os Estados” (p.312).
Sob nosso ponto de vista, é nessa esteira de pensamento que Agamben se refere
quando considera o modelo do campo de concentração como o paradigma da biopolítica
contemporânea. Com isso, exprime a radicalidade do desdobramento desse projeto na
política das sociedades atuais, propondo assim a expressão tanatopolítica, justamente
para aludir a esse poder sobre a vida que é, no final das contas, um poder sobre a morte.
O paradigma do estado de exceção que se torna a regra, discutido por Agamben, é
justamente a configuração política na qual essa manobra toma corpo, disseminando-se
nas sociedades ocidentais. Estratégia de um poder político que se volta para o resgate da
soberania dos Estados-nação, que se encontra em condição de fragilidade em tempos de
globalização. Nesse contexto, a sombra do poder soberano paira à luz do biopoder.
Esse acoplamento do poder soberano à biopolítica tem sua expressão cada vez
mais fortalecida no horizonte político de nosso tempo. Essa parece ser a especificidade
que marca tanto as estratégias quanto o discurso do projeto biopolítico hoje.
Birman (2006b) apesar de ter afirmado o esvaziamento do projeto de qualificação
da vida na atualidade em função da globalização, em outro ensaio, assevera que “a
finalidade de produção de uma população mais saudável, como fonte maior que é de
riqueza da nação, permanece incólume” (BIRMAN, 2006c, p.272).
A aparente contradição tem um sentido bem específico se considerarmos algumas
pontuações do autor em relação a certas mudanças das estratégias e preocupações da
biopolítica em questão hoje. As novas tecnologias reprodutivas que engendraram novas
formas de familiarismo, de filiação e de conjugalidade asseguram a reprodução
biológica, e portanto, social. O temor do desaparecimento vivido por muito tempo pelas
sociedades ocidentais levou-as a uma preocupação com a relação das taxas de
mortalidade e de natalidade. Em função disso, um investimento massivo no controle da
natalidade e da reprodução biológica foi realizado, como forma de garantir a existência
e a qualidade de vida da população. Se esse projeto se esvazia é justamente no sentido
da preocupação com a garantia da reprodutibilidade social, que agora está de uma vez
por todas assegurada pelas novas tecnologias reprodutivas.
193
O que se descortina nesse novo horizonte biopolítico no campo da reprodução são
múltiplas possibilidades de filiação até então impensáveis, como a dos casais estéreis,
dos casais homossexuais e até mesmo das mulheres que desejam uma “produção
independente”. Isso mostra que a tradição ocidental resolveu a questão da reprodução
biológica, não precisando mais fazer desta um imperativo político e social, e com isso,
possibilitou novas formas de conjugalidade (BIRMAN, 2006c).
Por outro lado, a finalidade de produção de uma população mais saudável
permanece incólume no projeto biopolitico da atualidade, haja vista as novas facetas da
eugenia e o investimento massivo da ciência sobre as novas tecnologias de manipulação
do patrimônio vivente, projeto genoma, clonagem, exploração genética, estratégias
preventivas, etc. O “fazer viver” está definitivamente assegurado por tal sofisticação
tecnológica. As preocupações, no entanto, são outras, principalmente no sentido de
como gerir os novos laços sociais perpassados pelo novo horizonte biopolítico.
Quanto a isso, Birman (2006c) enuncia a questão que se impõe à biopolítica hoje:
“Como se constituirão as novas filiações e as novas genealogias, capazes de aumentar o
capital populacional e simbólico das nações e possibilitar ainda a sua riqueza efetiva?”
(p.274). Para o autor, devemos dirigir nossa atenção às novas formas de governabilidade
que se constituem e se constituirão baseadas nessa preocupação.
Temos nesse caso uma aparente variação sutil dessa matriz moderna na atualidade,
mas cujos efeitos sociais e subjetivos beiram a catástrofe, haja vista o contingente
populacional “mortificado” na sua condição de existência política e mesmo humana,
bem como as expressões panicadas das subjetividades. Testemunhas da redução à vida
nua a que somos submetidos diante de tal configuração biopolítica, destituídos de
qualquer possibilidade de qualificação que não seja pela medicalização e biologização
da vida.
Os modos de gerir a massa “desalentada” da atualidade são guiados por tal
incremento e sofisticação das estratégias medicalizantes. A era dos psicofármacos
controla as subjetividades pela regulação de seus humores, dominando a variação
comportamental. A psiquiatrização neurocientífica da infância parece ser o novo foco de
investimento da estratégia biopolítica, para citar aqui apenas um exemplo. A explosão
do campo da neurociência – onde verificamos também sua versão psicanalítica – parece
194
constituir a solução biopolítica para, a um só tempo, abarcar o sofrimento que engendra
e administrar os novos tipos de laços sociais.
De todo modo, o que está em jogo é a perda de uma vida qualificada, para usar a
expressão que Agamben retoma dos gregos, que está permanentemente lançada diante
da radical disseminação da condição de vida nua. Esta, por sua vez, nesse contexto
regido por uma brutal estratégia medicalizante, é destituída de qualquer possibilidade de
existência simbólica. A configuração subjetiva da atualidade está intimamente ligada a
essa condição histórico-política. A subjetividade hoje carrega em sua constituição essas
marcas históricas.
5.4. Entre soberania e subjetividade: o declínio soberano e o esfacelamento
subjetivo
Para Birman (2006b, p.207), essas transformações no estatuto da soberania
geraram efeitos no plano subjetivo, conduzindo a uma “mudança antropológica crucial
na forma de ser da subjetividade”. Para tratar das novas formas de subjetivação em
pauta na pós-modernidade, o autor remete-se à categoria de desalento em contraste à
noção de desamparo característica da modernidade: “A perda e a descrença na soberania
indicam que estamos confrontados, hoje, com algo inédito na nossa tradição, pois
aquela nos oferecia a proteção ilusória em face ao desamparo, e que na ausência disso o
desalento se dissemina” (BIRMAN, 2006b, p.221).
A condição de desalento refere-se, nesta medida, à perda de um vértice de
referência no campo da soberania engendrando, consequentemente, o declínio de um
pólo de poder que conferia suporte e organização às subjetividades. Birman (2006b,
p.209) questiona “como é possível para a individualidade ordenar-se psiquicamente sem
contar com a presença e a referência de um pólo único e central de poder?” Com essa
problematização, o autor quer enfatizar a conseqüência imediata que essas
transformações no campo da soberania tiveram na produção de falhas no processo
alteritário, que por sua vez é condição de possibilidade da constituição subjetiva.
A quebra e o descentramento do poder soberano verticalizado em uma posição de
centralidade aponta para o total desprestígio da figura do pai na atualidade. Se antes esta
195
era uma referência crucial para a organização psíquica, hoje sua falência radical, dada a
derrocada de seu estatuto soberano, provocou um “desmapeamento ostensivo”
(BIRMAN, 2006b) das subjetividades. A disseminação da angústia e do pânico frente à
desproteção perpetrada pelo desaparecimento de um registro central de poder é a
contrapartida psíquica desse processo de mudança do registro da soberania.
Para empreender sua leitura do mal-estar na atualidade, Birman (2006b) relaciona
então a quebra da soberania centralizada à conseqüente desproteção subjetiva. Esta é
também considerada pelo autor como uma experiência de despossessão de si mesmo,
atrelada a um enfraquecimento ou até mesmo a uma ausência de trabalho de
simbolização.
Segue-se a isso a ruptura dos laços sociais e a quebra da sensação de
pertencimento, levando as subjetividades a uma constante luta pela sobrevivência,
marcada pela iminência da morte e da eliminação do espaço social. As figuras do
desalento para Birman (2006b) nesse contexto são o pânico, a melancolia, os laços
sadomasoquistas, que evidenciam a condição de risco da vida na contemporaneidade,
vivida psiquicamente sob a forma do transbordamento de um excesso pulsional que não
encontra meios de simbolização, fazendo-se descarregar nas diversas formas de
compulsão, violência e somatização. Para evitar a dor da existência confrontada
radicalmente com um desamparo a céu aberto, as subjetividades se colam avidamente a
moral do ter como forma de aplacar o risco de despossessão subjetiva vivenciado nos
registros do corpo, da ação e do sentimento.
Desta forma, este autor trabalha no que ele denomina de uma “genealogia do mal-
estar” (BIRMAN, 2006d), sempre buscando as diferenças entre a modernidade e a
contemporaneidade, no que tange as formas de subjetivação. Esse percurso é marcado
pela articulação entre mal-estar no campo social e mal-estar no campo subjetivo.
O ponto de base para este contraponto são as formas de operação de expulsão da
pulsão de morte no registro psíquico, sem perder de vista as condições possibilitadas
pelo registro social para tal operação.
Assim, o autor relaciona o Estado moderno do bem-estar social – que provia os
cidadãos de políticas sociais voltadas para a garantia de seus direitos – à possibilidade,
no campo psíquico, de efetuar a expulsão da pulsão de morte, a partir da qual o sujeito
se constitui. Nesse contexto, o sujeito poderia fazer face a seu desamparo pela produção
196
sintomática, que receberia um destino interpretativo no campo da linguagem e do
discurso.
Já na contemporaneidade, o autor sublinha um evidente desequilíbrio entre os
territórios social e psíquico, referindo-se aos efeitos da globalização sobre o registro
político. Este se fragilizou, uma vez que as relações entre os indivíduos e o Estado
passaram a ser reguladas pelo registro econômico, sobretudo. Nesta medida, com a
quebra da proteção política e soberana do Estado sobre seus cidadãos, as subjetividades
se viram expostas a uma condição de precariedade, vivenciada tanto no âmbito social
como no registro psíquico.
A vida nua, nesse sentido, seria justamente a expressão dessa precariedade que
caracteriza o horizonte subjetivo da contemporaneidade, o qual se encontra privado,
pela intensiva atuação medicalizante do biopoder, de uma forma de vida qualificada.
Na tradição psicanalítica, a figura do pai representa a atuação do poder soberano
sobre o psiquismo, como uma potência simbólica importante na constituição subjetiva,
uma vez que através desse capital simbólico são proporcionados os meios de regulação
da intensidade pulsional. Dado o progressivo processo de desmantelamento de tal
instância simbólica, que alcança seu ápice no contexto mundializado da atualidade, este
ponto de apoio e de ancoragem psíquica se esfacela.
Desse modo, a possibilidade de mediação psíquica da pulsão de morte pelas trilhas
eróticas e simbólicas das pulsões de vida se enfraquece. A instância do poder – que o
autor relaciona tanto no nível social quanto no nível psíquico - se torna incapaz de
promover o ato de expulsão do excesso pulsional.
Tal ausência de mediação da pulsão de morte coloca a subjetividade à mercê da
irrupção de seu excesso que, diante da fragilização dos processos de simbolização, se
materializam em diferentes modalidades de sofrimento psíquico. Essa é a marca maior
do desalento e da despossessão de si apontados por Birman.
“Com isso, a pulsão de vida não consegue mais regular a pulsão de morte
que, enquanto excesso, permanece no corpo e não pode mais ser dirigida
em direção ao campo do outro. A resultante primordial disso é a produção
de uma forma de subjetividade marcada pela passividade, impedida de
realizar processos de subjetivação que sejam efetivos. De fato, sem a
expulsão parcial da pulsão de morte, o psiquismo permanece passivo e
submerso pelo excesso, destituído de instrumentos que lhe permitam
transformar o excesso em sintoma, podendo então circular no campo da fala
197
e da linguagem. O desamparo (désarroi) perde sua potência de vir-a-ser
(devenir), dado que ele não pode mais contar com o outro para sua
atividade, e acaba por se transformar em desalento” (découragement)
(BIRMAN, 2006d, p.471, grifos do autor)
68
.
Nessa conjuntura, o corpo é considerado como um “lugar de risco para a
existência do indivíduo contemporâneo” (BIRMAN, 2006d, p.471). Isso porque o
excesso pulsional que não alcançou um destino no psiquismo se descarrega brutalmente
sobre o corpo, sob a forma da passagem ao ato. Outras figuras dessa descarga são
evidenciadas na cena subjetiva contemporânea como a hiperatividade, o incremento da
violência e de novas formas de crueldade evidenciadas pela delinqüência atual, bem
como as diversas formas de compulsão.
Ao lado do corpo e da ação, o registro do afeto é também uma das categorias em
causa nas novas formas de subjetivação. As novas modalidades de depressão, que se
configuram em torno de um sentimento de vazio, demonstram a tonalidade afetiva dos
deprimidos da atualidade.
Nesse contexto de fragilidade dos processos de simbolização e do imperativo da
passagem ao ato, Birman (2006d) pontua também a freqüente negativização da
linguagem e do pensamento, que se empobrecem vertiginosamente.
Consideramos que esses elementos oferecidos por Birman para uma leitura dos
processos de subjetivação na atualidade, vão ao encontro do que estamos propondo em
termos de uma leitura histórico-genealógica da subjetividade. Para pensar a
especificidade desta nos dias atuais o autor faz confluir metapsicologia e análise sócio-
política do contexto contemporâneo, no qual a produção subjetiva se constitui.
Agamben, por sua vez, apesar de não discutir diretamente sobre a subjetividade,
nos fornece elementos importantes para pensarmos a inscrição desta no campo
biopolítico da atualidade.
Ambos os autores tratam da questão da mediação, apontando para sua ausência no
campo sócio-político da contemporaneidade. Agamben (2002b, p.51) refere-se ao
68
Traduçao nossa. No original: “Avec cela, la pulsion de vie ne parvient plus à régler la pulsion de mort
qui, en tant qu’excès, reste dans le corps et ne peut plus être dirigée vers le champ de l’autre. La résultante
primordiale de ceci est la production d’une forme de subjectivité marquée par la passivité, empêchée de
réaliser des processus de subjectivation qui soient effectifs. De fait, sans l’expulsion partielle de la pulsion
de mort, le psychisme demeure passif et sumergé par l’excès, destitué d’instruments qui lui permettent de
transformer l’excès en symptôme, pouvant alors circuler dans le champ de la parole et du langage. Le
désarroi perd sa puissance de devenir, étant donné qu’il ne peut plus compter sur l’autre pour son activité,
et finit par se transformer en découragement”.
198
campo como aquele espaço biopolítico absoluto onde a vida biológica é colocada em
face ao poder sem nenhum tipo de mediação. Sendo este o paradigma atual de governo,
os cidadãos ficam expostos a um poder político que se autoriza a passar por cima de
seus direitos como um “meio” para atingir um fim mais elevado. A vida nua é a
expressão máxima da ausência de mediação da atuação desse poder sobre a vida.
Em Birman (2006b; 2006d) essa ausência de mediação no registro político está
associada, correlativamente, a uma perda da mediação psíquica, que engendra então a
descarga bruta do excesso pulsional não mediado.
O descentramento radical do poder soberano e, ao mesmo tempo, seu
recrudescimento como “poder de vida e de morte” no coração do dispositivo
biopolítico, perpetrou uma exposição constante dos indivíduos a uma ameaça de
destituição subjetiva. Em um horizonte político de redução à vida nua, onde os pólos de
sustentação de si são permanentemente devastados, a iminência da desfusão pulsional
torna-se uma realidade concreta, quando não mesmo a impossibilidade de realização da
ligação fusional entre pulsões de vida e pulsão de morte.
O incremento da violência e da agressividade não mediadas e externalizadas no
âmbito social são os rastros deixados pela livre descarga a que a intensidade pulsional
está destinada em um contexto de desertificação psíquica. Por onde andará a força de
Eros para se contrapor a essa obstinada corrida em direção à morte?
Em um primeiro momento, a referência de uma autoridade soberana era muito
presente no pensamento de Freud, sobretudo em seu período inicial bastante vitalista da
crença em uma normatividade vital. A ordem da vida, dado natural imediato, se
impunha como lei. A mediação da força pulsional era intrínseca e imediatamente dada
pelo registro da representação. A importância da alteridade era relativizada diante do
vínculo automático entre força e representação da pulsão, garantido soberanamente por
um ordenamento interno inerente à vida. Nesta primeira construção freudiana, o campo
da representação era indiscutivelmente soberano.
O giro operado pela entrada da pulsão de morte reside no fato dessa mediação
passar a ser considerada por Freud como uma construção, uma produção do encontro
permanente com o outro. Esse giro é fundamental na medida em que mediação é uma
vicissitude, é um destino, que pode ou não se concretizar. A condição é de que um
trabalho psíquico seja realizado, o qual depende inteiramente do suporte alteritário. Eros
199
é o grande responsável por fazer face à força destrutiva da pulsão de morte,
promovendo as ligações. Essa injeção de Eros está lançada no campo dos laços sociais,
que precisam agora ser tecidos na trama incerta e indeterminada da luta entre a vida e a
morte.
Os impasses que conduziram a tal virada mortalista no pensamento freudiano são
o signo da modernidade, no que tange à quebra do paradigma soberano. Em um
primeiro momento Freud realizou uma “operação de salvação da figura do pai”
(BIRMAN, 2004a, p.22), desmontando a teoria traumática da sedução, que acarretava
na perversidade da figura paterna, remetendo-a a uma realidade psíquica do imaginário
infantil. Desta forma, a figura paterna permaneceria preservada no registro da realidade
material, constituindo-se como uma importante referência de proteção.
Já em 1920, em Além do princípio do prazer, a potência da figura soberana do pai
como um princípio de verticalidade no discurso freudiano se desvanece. Freud retoma a
teoria traumática sob novo ângulo, considerando agora a perda da autoridade paterna e a
conseqüente falha na sua operação de proteção subjetiva. É assim que Freud começa a
descrever o declínio do poder soberano e simbólico da figura do pai na modernidade e
suas conseqüências subjetivas. Diante da falha e da falta de tal suporte, as
subjetividades encontram-se expostas à experiência traumática, sem nenhuma proteção
que garantisse qualquer possibilidade de antecipação. A compulsão à repetição emerge
então como uma tentativa de fazer face ao excesso pulsional traumático, em uma busca
ativa para reverter a ameaça da morte.
O mal-estar então enunciado por Freud, nesse momento de pleno reconhecimento
do esfacelamento da referência soberana paterna sobre a constituição subjetiva,
relaciona-se à indeterminação do destino pulsional. Este se torna agora marcado pela
incerteza da ligação no campo representacional, antes articulada pela presença absoluta
do poder do pai.
O embate de forças para vencer a tendência à destruição e à morte está lançado na
indecidibilidade entre Eros e Thanatos. Não há vestígios de uma normatividade
soberana que regule internamente a força pulsional. Seu destino está entregue à
normalização pelas pulsões de vida, que precisarão se remanejar sem cessar, num
esforço constante para regular a insistência da pulsão de morte. O lugar que a alteridade
200
adquire nessa configuração é crucial, uma vez que possibilita ações em direção à
mediação da pulsão de morte.
Nesta medida, evidenciamos que em Freud não há mais uma busca por um pólo
vertical de soberania, expresso na até então hegemonia do campo representacional.
Podemos observar essa descontinuidade do discurso freudiano tanto nos textos
metapsicológicos quanto em seus ensaios sobre a cultura. Nestes Freud descreveu a
constituição da modernidade na tradição ocidental, em que a sociedade passa a ser
fundada pelos laços fraternos e não mais pela figura absoluta e unitária do soberano.
A descrença freudiana na modernidade progressista, na salvação pelo progresso e
pela razão enuncia igualmente o reconhecimento da falência da proteção paterna,
inicialmente suposta como fundamento da civilização e da organização psíquica.
Dada a impossibilidade de restauração do pai soberano e protetor, um outro
paradigma de relação social emerge no pensamento freudiano. A partir da necessidade
de mediar a articulação do intervalo entre força pulsional e representação, os laços
sociais se constituem horizontal e fraternalmente diante da nostálgica ausência da figura
paterna. A mediação tem de ser construída e mantida incessantemente pelos laços
sociais.
É através dessas torções realizadas por Freud que se evidencia a versão
psicanalítica da Morte de Deus que marcou a modernidade. O mito da morte do pai
primordial e as conseqüências em termos de nostalgia e desamparo enunciam na
psicanálise a crise moderna da autoridade soberana. É por esse viés de uma leitura
crítica do pensamento freudiano, tendo em vista a perspectiva histórico-genealógica que
aqui priorizamos a partir de Foucault, que podemos empreender uma análise da
subjetividade na atualidade.
Visualizamos nessas reformulações operadas pelo discurso freudiano os signos de
uma modernidade avançada em sua escritura. A atualidade revela a intensificação desse
contexto político, social e psíquico já presentes na alcunha de Freud. Veremos, na
segunda parte desse capítulo, o que isso significou em termos de uma outra condição
teórica e clínica para o saber psicanalítico.
Por hora, voltemos ao plano da biopolítica, onde a possibilidade de mediação, tão
indispensável para a vida psíquica, é deteriorada, senão mesmo corroída e destruída
através desse poder sobre a vida que é um poder sobre a morte. A exposição da vida nua
201
a um poder de morte sem nenhuma possibilidade de mediação (AGAMBEN, 2002a), o
desalento, a perda da sensação de pertencimento, retratam a referida fragilidade da
mediação psíquica diante desse contexto biopolítico. O poder sobre a vida empobrece,
paradoxalmente, a potência de Eros sobre a violência de Thanatos.
Para Agamben, apostar na medialidade da política é apostar em um novo
paradigma político, desatrelado do esquema da soberania ligada à exceção. Apesar de se
basear em uma concepção estruturalista e fundacionista de soberania, pela teoria do
Estado, o autor desconstrói criticamente essa concepção, mostrando até onde isso
chegou com os totalitarismos da história recente da tradição Ocidental.
Foucault (1976a/1999), no campo das tecnologias do poder, a fim de fazer face ao
poder disciplinar, já afirmava a necessidade de se deslocar do registro da soberania,
mais especificamente do antigo direito da soberania, em direção a um direito novo
antidisciplinar.
A aposta de Birman (2006b) é de que passemos do eixo da soberania, no singular,
para o das soberanias, no plural. No lugar da insistência em retomar a verticalidade
soberana num contexto histórico de franco desmoronamento de tal centralidade,
devemos dirigir-nos em direção às relações horizontais de poder, sob a ética da amizade
e da fraternidade como outra possibilidade de destino para nosso desamparo.
A reversão do cenário subjetivo aterrorizante da atualidade estaria lançada na
afirmação positiva do desamparo através da constituição de soberanias, fundadas na
afirmação da potência e da soberania de cada um e de todos (BIRMAN, 2006b, p.227).
Nessa proposta, também está implicada uma reinvenção do campo da política, desde
que fora do registro estrito da soberania, onde novos laços sociais devem ser tecidos em
um nível horizontal e não mais vertical como se dava anteriormente. Para o autor, é
nesse remanejamento que se encontra a condição de possibilidade para o
estabelecimento de um outro poder constituinte (BIRMAN, 2006d).
Em suma, é pelo viés da problematização da soberania, guardados os estatutos
diferentes que conferem a ela, que esses autores refletem sobre a biopolítica e seus
efeitos sociais e subjetivos. Suas propostas se encaminham para um remanejamento
desse campo.
202
5.5. Da onipotência à fragilidade narcísica: transformações da família diante
das variações do dispositivo biopolítico
Analisaremos agora os efeitos desses desdobramentos do biopoder na
contemporaneidade sobre a organização da família. Vimos nos capítulos II e IV o
quanto determinadas figuras foram investidas pelo poder, de forma a proporcionar o
funcionamento do dispositivo da sexualidade nas malhas do social.
Visualizamos, também, a leitura que Freud realizou desses personagens que se
tornaram as peças fundamentais da engrenagem biopolítica e que caracterizaram a
configuração subjetiva da modernidade.
As nuances da história do biopoder nos permitem agora fazer um contraste entre a
organização nuclear da família moderna e o modo como as relações familiares se
constituem hoje, a partir de um novo horizonte biopolítico.
No século XIX, a família nuclear moderna foi estruturada sobre o imperativo da
qualificação da população. Neste contexto, a figura da mulher se destacava na sua
função de mãe e de gestora do espaço familiar. Sua possibilidade desejante residia no
exercício da maternidade, assegurando biologicamente a reprodução social.
Responsabilidade esta que lhe custou o sacrifício de sua existência erótica.
A criança, como também vimos, pela semente de futuro que a infância representa,
foi alçada a uma condição soberana, reconhecida no discurso freudiano como “Sua
Majestade o Bebê” (FREUD, 1914/1996). Pelo investimento massivo que recebia - da
mãe, da família, da sociedade, de todos os aparelhos disciplinares - foi alvo
incontestável de uma onipotência narcísica, que não por acaso se transformou em um
marco imprescindível do processo de constituição subjetiva.
Não obstante, o projeto biopolítico variou em seu tempo histórico. Um dos pontos
de chegada mais marcantes dessa matriz moderna foi a criação de possibilidades
concretas de reprodução social através de novas tecnologias reprodutivas,
desvinculando-se, portanto, da imperativa necessidade da reprodução biológica. Como
já comentamos acima, esse avanço tecnológico na área da reprodução proporcionou a
emergência de novas formas de filiação e conjugalidade.
Mesmo antes dessas inovações, o surgimento de anticoncepcionais seguros
permitiu uma reprodução social controlada. Além disso, possibilitou a separação entre o
203
registro do desejo e o da reprodução biológica. A experiência do erotismo no campo da
sexualidade desvinculou-se, desse modo, da geração de uma prole. Conforme Birman
(2007b), “isso provocou uma importante revolução dos nossos costumes, provocando o
exercício amplo, geral e irrestrito do desejo na nossa tradição”
69
.
Nesse ínterim, Birman (2007b) sublinha que a condição da mulher na sociedade
foi transformada, já que os avanços das estratégias biopolíticas revolucionaram o campo
reprodutivo, proporcionando um espaço de maior liberdade feminina, onde os papéis de
mãe e mulher podem ser exercidos ao mesmo tempo.
Para esse autor, o movimento feminista se insere no bojo dessas questões, pois
representou a demanda feminina de igualdade de condições em relação aos homens,
sobretudo na busca de outra posição social, de inserção no mercado de trabalho e de
reconhecimento simbólico.
Esses fatores foram desencadeadores de um processo de subversão, a partir dos
anos de 1950/60, da estrutura nuclear da família moderna. Diante dessas novas
possibilidades de existência, principalmente da figura da mulher, assistimos a um
remanejamento das relações familiares e uma transformação dos lugares e papéis
ocupados pelos “personagens” que caracterizaram uma determinada forma de
organização familiar e subjetiva na modernidade.
O ideal de constituição da família e da prole, pregnante no século XIX até meados
do século XX, passou a ficar em segundo plano em relação às conquistas no campo
profissional. Além disso, a condição de constituição e manutenção do laço conjugal
passou a ser regulado unicamente pelo registro do desejo, e não mais pela obrigação
social. Nesta medida, o aumento significativo de rompimentos dos laços conjugais é
signo dessa mudança na ordem familiar. Os filhos assistem, muitas vezes, a novas
alianças conjugais que se sucedem à separação de seus pais. Assim, a estrutura familiar
se alarga comportando figuras como padrasto, madrasta e “meios-irmãos”.
Com o deslocamento da mulher de um lugar reservado unicamente à maternidade,
em direção à busca de um projeto identitário, observa-se também que a extensão da
prole diminuiu significativamente.
Birman (2007b) sublinha que os homens não compensaram a ausência materna
deixada pelo novo lugar desejante da mulher, a qual voltou seu investimento para um
69
Número de página ainda desconhecido, artigo inédito e no prelo.
204
leque de possibilidades além do cuidado com o lar e os filhos. Nesse sentido, o autor
realiza uma interessante análise da relação entre família e escola, que também se
modifica na esteira desse processo de transformações. Para suprir a ausência das figuras
parentais, agora imbuídas na luta por suas realizações também em outros campos além
da filiação e da conjugalidade, recorreu-se à escolarização precoce das crianças.
Instituiu-se, a partir disso, uma crise entre a família e a escola, onde aquela
demanda que esta realize não somente o ensino, como também se ocupe da socialização
primária das crianças. A família que antes se ocupava desse primeiro nível de
socialização agora pede à escola (creches e maternais, sobretudo) que a substitua nesse
nível primário de formação dos primeiros anos de vida. Referimo-nos à crise justamente
porque as escolas alegam não possuírem estrutura para dar conta dessa nova função.
Birman (2007b) aponta que um novo pacto social será futuramente selado entre a
família e a escola, resultado desse conjunto de transformações. É fato que já
visualizamos - para as classes sociais mais abastadas - o surgimento de escolas que se
especializam na escolarização primária, recebendo as crianças desde muito pequenas,
encaminhando-as bem precocemente ao processo de alfabetização e lhes
proporcionando o ensino até o nível médio, quando não mesmo o superior.
A partir desses elementos que indicam mudanças na ordem familiar da atualidade,
nos deteremos agora nos efeitos desse novo cenário social sobre os processos de
subjetivação. Essa nova cartografia dos laços sociais que se estabelece na atualidade
causou, sem dúvidas, um impacto sobre as subjetividades.
Consideraremos o impacto que essa subversão dos papéis dos agentes familiares e
também das novas formas de socialização ocasionou nas crianças e nos jovens. O
investimento sobre elas se faz de modo diferente. Se antes o investimento materno era
amplamente dirigido à criança, hoje ele se difrata diante do alargamento da inserção
feminina no social.
Segundo Birman (2007b), essa nova organização familiar que possibilitou um
novo estatuto da mulher acarretou em um contexto de “desnarcisação”, derivado de um
processo de esvaziamento da função materna. O autor se refere a um problema no
investimento do corpo infantil, que ficou de certa forma à mercê da ausência das figuras
parentais e do anonimato dos cuidados das babás, creches e escolas maternais.
205
A constituição narcísica ficou, assim, abalada, o que exerceu um impacto sobre a
capacidade de fantasmatização e a potencialidade de simbolização e de articulação
linguageira das crianças.
Essas transformações na economia do narcisismo das crianças e dos adolescentes
incidiram no plano subjetivo, levando à emergência de novas modalidades de
subjetivação e transtornos psíquicos. Tal negatividade do investimento narcísico infantil
se reflete principalmente no incremento de casos de autismo nas crianças de nossos dias.
Para Birman (2007b), o desinvestimento narcísico por parte dos pais é a condição de
possibilidade desta modalidade de perturbação psíquica.
O autor também se refere aos estados limites e à predominância da passagem ao
ato que se evidenciam nas compulsões, como signos da pobreza dos processos de
simbolização associada à perda do investimento narcísico. As depressões
contemporâneas e as perturbações psicossomáticas também são consideradas pelo autor
como expressão dessa negatividade narcísica, dada a marca de uma experiência de vazio
que estas carregam. Todas essas expressões subjetivas remeteriam, no seu ponto de
vista, a um domínio da pulsão de morte sobre a pulsão de vida no aparelho psíquico.
Junto a isso, Birman remarca um esfumaçamento das fronteiras psíquicas entre a
adolescência, a idade adulta e a velhice.
“Se todos podem ser desejantes ao mesmo tempo e isso perdurar por toda a
vida, a diferença entre a condição da adolescência e a que se faz presente
no adulto e na velhice deixa de existir. Com efeito, as fronteiras psíquicas
entre a adolescência e os demais momentos da existência tendem cada vez
mais a se esfumaçar e até mesmo se apagar” (BIRMAN, 2007b, grifo do
autor)
70
.
Se num primeiro momento as especificações das idades da vida se inseriram no
bojo das preocupações biopolíticas com a qualidade de vida da população – conforme
comentamos no capítulo anterior – agora essas discriminações se tornam menos
definidas, em função dessas nuances do biopoder na atualidade. Desse modo, a
separação das idades da vida pode ser vista como uma construção biopolítica da
modernidade que tende a se transformar na atualidade.
70
Número de página ainda desconhecido, artigo inédito e no prelo.
206
Quanto a isso, Birman (2007b) propõe a idéia de uma “expansão do estilo
adolescente de existência”, em que os pais se encontram em condições similares às dos
filhos. Esse apagamento da diferenciação entre as gerações conduziu a uma perda da
autoridade das figuras parentais aos olhos dos filhos.
Diante da assunção, agora concretizada para homens e mulheres, da possibilidade
desejante de existir, emerge um fato novo que é muitas vezes o não-desejo de ter filhos,
de modo a não cercear tal condição do desejo a duras penas conquistado, sobretudo
pelas mulheres. Birman (2007b) nomeia esse panorama de “nosso projeto de civilidade
pós-moderna”, que está em estreita relação com as transformações ocorridas em face da
infância hoje.
Observamos, então, que a criança deixa de ser o signo por excelência do futuro –
pedestal que ocupava no primeiro momento da construção biopolítica na modernidade –
passando a ficar em segundo plano, de acordo com as novas formas de organização da
família e do próprio projeto biopolítico. Nessa conjuntura, a criança não só perdeu seu
estatuto soberano como se transformou em objeto de gozo imediato dos adultos como se
observa no caso da pedofilia, conforme alerta Birman (2007b).
Constatamos, nessa medida, um deslocamento da onipotência à fragilidade
narcísica e o analisamos como um índice de um problema biopolítico das
transformações subjetivas. Este talvez seja o primeiro efeito importante do esquema
biopolítico na contemporaneidade.
O declínio do investimento positivo do narcisismo indicado pelas novas
modalidades de perturbações psíquicas causam, para Birman (2007c), efeitos na
imagem corporal. A ausência do olhar nas novas condições sociais de existência das
figuras parentais gera uma escassez de investimento narcísico sobre o infante e,
portanto, uma precariedade na constituição de sua imagem de corpo próprio,
desencadeando uma fragmentação da experiência corporal.
Tal precariedade dos processos simbólicos de reconhecimento provoca uma busca
deste no registro do imaginário. A retórica da escrituração corporal seria, nesse sentido,
correlativa do deserto discursivo do mundo pós-moderno. As esculturações e
pictografias da superfície corporal amplamente difundida entre os jovens representam,
na visão deste autor (BIRMAN, 2007c), uma busca do olhar do outro para serem
reconhecidos nas suas singularidades.
207
Assim, diante da instabilidade da imagem do corpo próprio decorrente da
fragilização dos processos de simbolização, os piercings buscam consistência para a
imagem corporal que se fragmenta e se despedaça. Seriam como próteses e parafusos
que visam estabilizar e sustentar a imagem corporal que não se mantém estruturada. A
tatuagem remete a uma tentativa de inscrição em outros sistemas de filiação e de
pertencimento, através de um processo de tribalização. Esse seria o signo do
ressentimento dos jovens para com seus pais, os quais pelo desinvestimento narcísico
atrelado à condição pós-moderna e ao conseqüente esgarçamento da família nuclear,
teriam operado falhas no sistema parental de filiação (BIRMAN, 2007c).
208
PARTE II: Repercussões subjetivas
A partir desses elementos históricos, sociais, políticos e familiares acima
examinados a partir do biopoder, os consideraremos agora para uma discussão acerca da
subjetividade na contemporaneidade. Como vimos, esse contexto biopolítico
contemporâneo produz ressonâncias no plano subjetivo e é a esse eixo de intersecção
que nos dedicaremos nesse momento, como o ponto de chegada de nossa pesquisa.
Estamos constantemente convocados, seja na nossa clínica, seja em nossas
pesquisas, a assumirmos uma posição diante de um esfacelamento de fronteiras que, se
vivenciamos no nível político, social e econômico, certamente vivenciamos também nos
modos de viver e padecer hoje.
Dada a configuração atual da sociedade, não podemos mais pensá-la como
marcada por códigos simbólicos e laços sociais centrados na idéia de soberania e
disciplina. Hoje a desorganização do Estado, promovida pela expansão absoluta do
mercado, nos leva a outras configurações subjetivas. O mal-estar da atualidade reflete a
forma de organização das relações de poder na qual estamos imersos.
As dialéticas interno/externo, dentro/fora, características das disciplinas e da
modernidade, constituem os elementos da produção do sujeito do inconsciente. Para a
psicanálise o sujeito se funda sobre um investimento alteritário, na tensão conflitiva
entre pólos bem demarcados do psiquismo. A dimensão desejante, por sua vez, só é
possível nessa tensão, nessa dimensão de conflito. O mal-estar moderno se configura
através desse conflito psíquico interno, caracterizado pelo modelo neurótico. O
apagamento das fronteiras traz, conseqüentemente, implicações para a constituição do
sujeito e das formas de sofrimento. Os territórios e os limites entre o sujeito e o outro
perdem sua definição; a noção de sujeito demarcado pela interioridade se desvanece
nessa perda de fronteiras.
O contexto da biopolítica mundial em que o “estado de exceção virou regra” e
onde a biopolítica se exerce cada vez mais como tanatopolítica, traz implicações
relevantes para a condição da configuração subjetiva contemporânea.
Se, por esta condição política atual descrita por Agamben estamos todos
submetidos à esfera da vida nua, se somos todos homines sacri, a existência humana
passa a ser definida por uma vida sem significação, que se esgota no próprio fato da
209
sobrevivência, no fato de “ser vivo”. O registro biológico adquire relevo no plano da
corporeidade, restando a subjetividade muitas vezes reduzida a uma existência somática.
Consideramos ser este o efeito mais contundente do exercício da biopolítica
contemporânea sobre o campo subjetivo.
O corpo que se revela como principal via de expressão hoje no contexto dos novos
processos de subjetivação – somatizações, distúrbios alimentares, compulsões,
passagem ao ato, entre outros - é índice dessa condição de vida nua na qual estamos
vivendo. Esse é o contraponto subjetivo de nossa condição humana hoje, e dos
dispositivos que a engendram.
A passagem a que alude Agamben (2002a), dos sujeitos de direitos à corpos vivos,
nos remete a uma subjetividade que foi expropriada de sua “qualificação”, isto é, de sua
capacidade de simbolização e de mediação psíquica e, portanto, já que destituída de tais
recursos, encontra-se exposta à nudez de sua existência. As insígnias da fragilidade, da
precariedade e do desalento anunciadas por Birman (2006b, 2006d) caracterizam a
condição psíquica da atualidade.
Desse modo, a incidência da pulsão de morte não encontra possibilidade de
ligação psíquica, descarregando-se incessantemente no corpo. A conflitualidade, tão
cara ao pensamento freudiano, adquire uma nova tonalidade, sendo jogada para o limite
da desubjetivação, quando a pulsão de morte se sobrepõe à força mediadora de Eros, e
vence a batalha. Aproximamo-nos aqui do segundo modelo metapsicológico construído
por Freud, onde a noção de conflito precisou ser por ele repensada após a entrada da
pulsão de morte na cena psíquica.
O limiar da desubjetivação já estava, desse modo, presente na leitura freudiana
quando esta passou a considerar a conflitualidade psíquica sob novas bases, situada
entre os pólos da representação e da não representação. Freud já se deparava com uma
transformação da cartografia subjetiva e com os novos rumos que a biopolítica
começava a tomar. Consideramos, a partir disso, a atualidade do discurso freudiano,
sobretudo a partir dos anos 20, para as discussões das subjetividades contemporâneas.
Dada a perda de camadas simbólicas qualificadas diante da redução à vida nua
atual, e o conseqüente cenário psíquico marcado pelo domínio da pulsão de morte, o
corpo aparece hoje como o lugar de mais alto risco, expressão de máxima fragilidade da
subjetividade. Em uma cultura do somático, engendrada pelo avassalador avanço da
210
medicalização biopolítica, o corpo parece ter restado como única forma de laço com a
vida. É assim que pelo viés do corpo e da pulsão retornaremos à Freud para avançarmos
na discussão da condição subjetiva da atualidade.
5.6. O estatuto pulsional do corpo
Em uma das formulações mais trágicas de seu pensamento Freud anuncia que,
acossado pela excitabilidade, o movimento do organismo tende para a morte. O
princípio de nirvana expressa a tendência originária para a descarga total das excitações,
em uma busca incessante ao retorno à quietude e ao inanimado. O organismo deseja
morrer, diz Freud explicitamente (1920/1996). Não há mais no discurso freudiano
nenhuma crença em um determinismo orgânico e biológico que sustente a existência e a
autoconservação de si.
Como vimos detalhadamente no capítulo III, esse viés mortalista inverte as bases
vitalistas sobre as quais Freud havia assentado a constituição psíquica desde o Projeto
para uma psicologia científica.
A alteridade adquire um estatuto radical no contexto desta virada pulsional. É na
relação erógena e libidinal com o outro que o caminho em direção à morte pode ser
contornado, a partir de um trabalho de ligação da força pulsional que esse encontro
possibilita. Destronado o imperativo da ordem vital, o destino da vida fica lançado no
encontro com o outro, que por sua mediação oferece condição de existência e
viabilidade psíquica. A afirmação da vida precisa ser permanentemente realizada pelo
trabalho de Eros sobre a força da pulsão de morte, já que não existe mais a referência da
normatividade sexual como reguladora dos processos psíquicos.
A virada pulsional estabelecida em 1920 radicaliza, com a introdução da pulsão de
morte como uma modalidade de pulsão sem representação, essa noção de um intervalo
entre força e representação no campo pulsional. Um lugar reservado no pensamento
freudiano a uma irrupção da pura intensidade pulsional nos remete a uma possível
leitura da pulsão como ação, indicação essa que encontramos esboçada no próprio Freud
em 1915 quando ele nos diz que “toda a pulsão é uma parcela de atividade” (FREUD,
1915b/1996, p.127).
211
Desse modo, a pulsão se constitui como demanda permanente de trabalho ao
psiquismo fazendo-o remanejar constantemente as tramas de representações, assim
como operar novas simbolizações. Nesse aspecto intensivo de força e de ação a pulsão
adquire uma dimensão de imprevisível. É somente num segundo momento que a pulsão
se constitui nas suas derivações representativas, adquirindo qualidades e sentidos. A
partir dessa concepção, é possível desconstruir a idéia (ou ilusão) de essência ou
entidade originária e permanente do ser. Corpo, eu e sujeito serão permanentemente
construídos em função do imperativo pulsional da ação, constituindo-se como destinos
desses desdobramentos da ação pulsional no psiquismo.
Ainda que a pulsão de morte não seja completamente capturada, restando
virtualmente enquanto espaço potencial de livre escoamento de intensidade, aquilo que
dela se manifesta exige uma ligação para que não seja descarregada de forma bruta. A
ação pulsional encontra então destinos em continentes narcísicos e erógenos, espaços de
investimento, de mediação da intensidade pulsional.
No entanto, essa montagem pressupõe a constituição de corpo e psiquismo
atravessados pelo investimento alteritário. Nesse sentido, com o relevo que essa
dimensão econômica adquire no pensamento freudiano, o outro enquanto externalidade
ganha, como vimos, função importante para a constituição psíquica. Se num primeiro
momento Freud concebe o corpo pulsional a partir da concretude orgânica, o corpo se
constituindo a partir do registro somático, como fica claro nas teses dos Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade, num segundo momento, segunda teoria pulsional, um
outro registro - o da alteridade - é enfatizado para pensarmos a constituição do corpo.
Nesse sentido, reiteramos a formulação fundamental de Birman de que corpo não
é organismo e que não podemos confundir esses dois registros. O organismo é de ordem
estritamente biológica, ao passo que o corpo é de ordem sexual e pulsional (BIRMAN,
2000a, p.58). Na visão desse autor, o corpo se constitui pela transformação da ordem do
organismo através dos diferentes destinos das forças pulsionais que o territorializam. O
corpo é concebido como um “território ocupado do organismo, isto é, como um
conjunto de marcas impressas sobre e no organismo pela inflexão promovida pelo
Outro” (BIRMAN,
2000a, p.62). Nessa linha de pensamento o corpo é uma produção
pulsional, é antes de mais nada destino.
212
Essa concepção é decorrente, sobretudo, desses desdobramentos que apresentamos
em relação à teoria pulsional, principalmente da entrada da pulsão de morte, que
deflagra a necessidade da mediação do outro para a sobrevivência e constituição
psíquica. Isso aponta para uma condição originária insuperável de desamparo, que lança
o sujeito em uma eterna dependência do investimento alteritário. O erotismo e a
sublimação são, para o último Freud, as formas de constituir destinos ao desamparo e
reverter o efeito mortífero da pulsão de morte.
O que fica claro sob esse ponto de vista mortalista em Freud é que o organismo
humano é incompetente para sobreviver sem o aporte libidinal do outro que o ofereça
meios de conferir destinos ao impacto da força pulsional. Por si só o organismo é
incompleto, irrepresentável e incapaz do ponto de vista vital. Sua possibilidade de
representação está na constituição de um corpo via investimento. E isso implica
considerar uma constituição psíquica e libidinal.
O registro do somático e do organismo sempre esteve presente no horizonte
freudiano e não é à toa que ao postular a sexualidade infantil Freud ancora a pulsão
sexual no somático, comprometendo-se com uma noção de apoio que partia do princípio
de uma separação entre pulsões de autoconservação e pulsões sexuais. Nesse momento,
Freud ainda lida com uma dimensão de autopreservação da espécie intocada pela
dimensão sexual. A partir da sexualidade infantil e desse primeiro dualismo pulsional
Freud circunscreve um novo estatuto de corpo – o corpo é sexual, é produzido,
“colonizado” pela pulsão. Porém, ainda se mantém preso a uma ordem somática vital,
sob a qual se apoiaria o corpo da sexualidade.
Esse quadro se reverte quando Freud insere a libido também no âmbito da
autopreservação. Nesse sentido, até mesmo a autoconservação torna-se dependente de
um investimento libidinal, o que provoca uma mudança no pensamento freudiano – em
última instância podemos dizer que Freud passa a conceber que a existência biológica
não é possível sem o investimento libidinal. A vida biológica não se sustentaria sem um
investimento erógeno, estando na estrita dependência do auto-erotismo e do
investimento alteritário. O corpo tem que ser permanentemente investido para que a
autoconservação seja possível.
Assim sendo, podemos indicar uma contraposição no que tange à concepção do
corpo no primeiro modelo freudiano e no segundo. Se naquele o corpo erógeno aparece
213
na dependência do somático, tendo nele a sua condição de possibilidade de se constituir
via apoio, neste o corpo erógeno da sexualidade é que se configura como a condição de
possibilidade para a sobrevivência via investimento libidinal, que propicia contenção da
demanda pulsional, evitando a descarga total que levaria à morte.
Dentro dessa perspectiva anti-vitalista e anti-normativa, a concepção de corpo para
a psicanálise não se identifica ao somático ou ao organismo. O corpo é mais do que
isso, é um território sexual e erótico resultante de um investimento sexual e libidinal
sobre o organismo. O corpo, diferente do organismo solipsista, se constitui na estreita
dependência da relação com um outro que o possa investir libidinalmente. A
corporeidade, assim, requer um processo permanente de produção e manutenção, sem
nunca prescindir do investimento erógeno e libidinal.
O conceito de pulsão definido como limítrofe entre o psíquico e o somático
(FREUD, 1915a/1996) vem exatamente conferir um estatuto original de corpo
pulsional, lugar intermediário entre natureza e cultura, força e representação, somático e
psíquico. O corpo não é um dado natural a priori, ele é produzido e tecido pela dinâmica
pulsional.
Para a psicanálise, o corpo deixa de pertencer apenas ao registro da natureza
enquanto organismo, adquirindo uma dimensão construída pelo investimento libidinal,
fundado no campo da linguagem e da fantasia. Quando Freud inverte as bases do
vitalismo para o mortalismo e a vida biológica se torna então dependente da vida
psíquica, qualquer tipo de determinismo biológico que pudesse estar presente no
pensamento freudiano se esmaece.
O princípio constituinte do corpo para Freud está na abordagem que ele faz de um
corpo auto-erótico. O auto-erotismo inaugura o corpo como objeto da pulsão, porém vai
ser com a introdução do narcisismo que esse corpo adquire unificação através de uma
imagem totalizada de si, constituindo a imagem do eu. O corpo tem seu estatuto
marcado pela pulsão e pela constituição do eu. Do ponto de vista psicanalítico o corpo
é, assim, a sede de conflitos pulsionais. Portanto, considerar uma abordagem
psicanalítica do corpo é referir-se a uma escuta que reconhece sua “anatomia” enquanto
construída a partir de investimentos libidinais.
214
5.7. Ressonâncias da biopolítica sobre a economia pulsional
Como antecipamos brevemente na primeira parte desse capítulo, é justamente
sobre essa potência mediadora das subjetividades que a biopolítica causa seus maiores
efeitos.
Foucault ressaltou, à respeito do biopoder, o imperativo do “fazer viver”. Hoje
talvez estejamos em um outro momento da história dessa tecnologia de poder, em que a
preocupação com a vida e o vigor da população já foram superados. Uma vez que
tecnicamente a reprodução biológica pode ser realizada em série nos sofisticados
laboratórios genéticos da atualidade, a descartabilidade da vida se insinua de diversas
formas na cena contemporânea. O acento do projeto biopolítico atual sobre o “deixar
morrer”, revela bem que não é mais só de “fazer viver” que consiste a preocupação do
poder, mas muitas vezes no “fazer morrer” ou, quando muito no deixar sobreviver.
Passou-se a uma eliminação pela vida nua que acarreta, no limite, uma situação de
destituição subjetiva e de redução a uma existência somática.
A transição histórica apontada por Foucault do regime da soberania centrada na lei
– em última instância divina - para o regime da disciplina, em que o poder passa a ser
exercido pela norma, evidencia a crise da idéia de lei simbólica.
A idéia de lei é sustentada pela idéia de Deus. No decorrer da passagem dos
séculos XVIII e XIX tal sustentabilidade da lei divina desabou. A modernidade foi
marcada, portanto, por um abalo na soberania. A crise dessa autoridade simbólica
caracterizou a especificidade da descontinuidade moderna.
Na ausência do sistema normativo transcendental os indivíduos estão entregues a
eles próprios. O discurso da norma passou a regular a existência, impondo limites à
disseminação da transgressão diante da anunciada morte de Deus. Sabemos que essa
norma, desde os tempos inaugurais da modernidade, foi sobretudo uma norma médica.
A manutenção da centralidade soberana no campo político foi garantida pela
organização do Estado em nome da soberania popular, possibilitando uma ilusão no
poder soberano que poderia a qualquer momento ser evocado (BIRMAN, 2006b).
Nesta medida, a soberania ainda ocupava uma posição central no imaginário da
modernidade. A nostalgia do pai vivida pelo mal-estar moderno, evidenciado por Freud
sob a rubrica do desamparo, remetia ainda a essa figura como instância simbólica
215
crucial para a constituição psíquica, mesmo que sua soberania tivesse sofrido um forte
abalo na modernidade.
Essa crise da autoridade simbólica e soberana que inaugurou os tempos modernos
se radicaliza na contemporaneidade, com a perda completa de qualquer substituto desse
pólo vertical de poder e soberania.
A desorganização do Estado diante do contexto globalizado da atualidade, a
transformação das sociedades disciplinares e o avanço agressivo das estratégias
biopolíticas romperam definitivamente com a sustentação de um eixo soberano
verticalizado. A desconstrução de um pólo de poder centrado na soberania levou a um
total desprestígio da figura do pai na atualidade.
Este perdeu no espaço social o poder e a hierarquia que possuía ainda na
organização familiar nuclear da modernidade. Agora disputa com a mulher numa
relação mais igualitária sua inserção no campo social, político e no mercado de trabalho.
Na família, partilha o poder com a figura da mãe. A corrida de cada um pela realização
de seus desejos e de seus projetos identitários deixou um vazio significativo na
constituição familiar e no investimento narcísico sobre os filhos.
É assim que os processos alteritários se encontram na atualidade cada vez mais
fragilizados e desinvestidos. O atordoamento das subjetividades diante desse
descentramento, que atinge não só o registro político como também o registro psíquico,
revela o radical desamparo que marca o mal-estar na atualidade.
Diante de tal contexto contemporâneo marcado pelas perdas dos referenciais
soberanos de proteção, onde os investimentos do outro se encontram esvaziados numa
cultura do individualismo, da eficiência e da performance, o sujeito se encontra imerso
em espaços precários de mediação.
O descentramento do registro da soberania retirou das subjetividades qualquer tipo
de proteção e mediação simbólica. Desse modo, a relação do sujeito contemporâneo
com o campo da norma é distinta da forma como o sujeito moderno se confrontava com
as práticas normalizantes. Este ainda contava, no plano sócio-político, com uma
organização de poder que sustentava sua condição de cidadania e, no plano psíquico,
com maiores possibilidades de simbolização. A quebra da sustentação política e
soberana do Estado repercute na ausência de mediação entre a vida e o poder da norma,
216
restando ao sujeito contemporâneo escassos recursos simbólicos para fazer face tanto à
violência do poder quanto aquela da intensidade pulsional.
Nesta medida, o biopoder atua incidindo diretamentente naquilo que Agamben
denomina de vida nua, ou seja, em nossa compreensão, territorializando politicamente
aquilo que é mais íntimo e privado do homem, levando progressivamente a uma perda
da vida qualificada. Em termos psicanalíticos, entendemos como uma perda progressiva
do recobrimento erógeno e do capital libidinal que viabilizam a mediação do excesso
pulsional. Assim, visualizamos a configuração de um corpo cada vez mais reduzido a
sua dimensão somática, deserogeneizado e empobrecido de recursos simbólicos.
Há uma decorrente perda das possibilidades de vínculos propiciadores de ligação e
expulsão da pulsão de morte. Sob o viés clínico, podemos pensar em sujeitos
submetidos a um excesso não simbolizado, onde o corpo resta como último reduto
possível para algum tipo de organização e sustentação de si. Vale ressaltar que o corpo
aí implicado, diferentemente do corpo sexual e erógeno que podemos pensar a partir de
Freud, aponta mais para a ordem de um extravasamento da dimensão somática.
Esse contexto biopolítico atual de mediações corroídas e de precários espaços de
investimento intersubjetivo se reflete na economia pulsional. A pulsão de morte domina
a pulsão de vida no psiquismo, denotando a fragilização atual dos recursos destinados
ao incessante trabalho psíquico que propicia a ligação da força pulsional ao campo da
representação. As subjetividades ficam à mercê da incidência bruta da pulsão de morte,
o que se evidencia hoje no incremento das experiências subjetivas próximas do limite
do irrepresentável.
Esse panorama subjetivo remete-nos a um alargamento da situação dos anos
1930/40 em que se evidenciava a ruptura da rede simbólica e a exposição do aparelho
psíquico ao limite de seu funcionamento.
A partir de 1920, com Além do princípio do prazer Freud mapeia uma série de
experiências psíquicas que não se enquadram na lógica do princípio do prazer,
assinalando a presença da pulsão de morte e, com isso, apontando para manifestações
mais próximas de uma experiência sem representação. Disso decorre a formulação da
idéia de compulsão à repetição para caracterizar a insistência do que era não apenas
desagradável, mas doloroso. Desse modo, emerge em Freud (1920/1996) uma
217
abordagem do traumático pela via do excesso pulsional, cuja vivência de horror e terror
diante do irrepresentável se repete como compulsão.
Em Inibições, sintomas e ansiedades Freud (1926[1925]/1996) retoma essa
mesma problemática ao tratar da angústia do real, uma espécie de angústia traumática
que, ao contrário da angústia sinal que produz uma experiência de antecipação do
trauma com uma função protetora e defensiva, se caracteriza como uma angústia que
presentifica a pulsão de morte. Nesse caso, não há condições de antecipação de um
acontecimento que coloca em risco a integridade psíquica do indivíduo.
Essas são apenas algumas indicações que ilustram uma mudança de rumo nas
formulações freudianas desde o contexto de 1920 até o fim de sua obra. É possível que
Freud já visualizasse que mudanças significativas estavam ocorrendo e outras ainda
mais impactantes para a humanidade, como a iminência da segunda grande guerra
mundial, estariam ainda por vir no decorrer do século XX.
Não é à toa que a conceituação da pulsão de morte emerge nesse momento do
pensamento freudiano, dando margem tanto para uma transformação teórica do discurso
psicanalítico, quanto para uma transformação do discurso clínico.
Textos mais tardios como Análise terminável e interminável (1937a/1996) e
Construções em análise (1937b/1996) revelam certa inquietação de Freud com o
modelo neurótico e com a efetividade do dispositivo analítico até então construído, além
de manifestar seu esforço para pensar nos destinos da economia pulsional.
As questões da morte, da agressividade e da destruição evocadas pela guerra
demonstram um Freud sensível às mudanças sócio-culturais e suas conseqüências sobre
o psiquismo. A crítica freudiana da modernidade associa-se a sua constatação de que as
fronteiras da neurose já não são mais tão definidas, as manifestações sintomáticas
parecem aproximar-se de uma experiência sem representação e a metapsicologia ganha,
assim, ênfase em seu aspecto econômico. Disso decorrem novos questionamentos e
encaminhamentos em relação ao procedimento de análise. A abordagem do traumático
via excesso pulsional provoca mudanças de rumo nas formulações freudianas e a
conseqüente transformação de seu discurso clínico. Nesse sentido, Freud parece ter sido
atento a um processo de transformação subjetiva que já estava em curso.
Gostaríamos de salientar a passagem da primeira para a segunda metapsicologia
freudiana: o paradigma não é mais a histeria, houve um esvaziamento de seu poder de
218
resistência a partir dos anos de 1910. A destruição e a violência psíquica passaram a
dominar o campo das resistências.
Freud (1937a/1996) impactado pelas transformações subjetivas as quais assistia de
perto, detectou diferentes tipos de resistência.
“Se avançarmos um passo adiante em nossa experiência psicanalítica, nos
depararemos com resistências de outro tipo, que não mais podemos
localizar e que parecem depender de condições fundamentais do aparelho
mental. Só posso fornecer alguns exemplos desse tipo de resistência; todo o
campo de investigação ainda é desconcertantemente estranho e
insuficientemente explorado” (FREUD, 1937a/1996, p.257-258).
É notável o esforço freudiano em se aproximar do que poderia ser uma nova
realidade psíquica. Ele mencionou algumas características das resistências atuais que
traziam inúmeros impasses para a técnica analítica. A primeira delas, a adesividade da
libido, uma espécie de lealdade catexial que impossibilitava o desligamento de catexias
libidinais de determinado objeto. No sentido oposto, Freud (1937a/1996) observava
uma mobilidade da libido, onde as catexias trocam de objeto rapidamente, gerando
resultados insatisfatórios e impermanentes da análise.
Vale ressaltar a comparação que Freud realiza entre o trabalho do analista com
esses tipos de resistência e o trabalho de um escultor: seria como trabalhar na pedra dura
ou no gesso macio. No segundo caso, o da mobilidade libidinal, Freud (1937a/1996)
expressa a impressão de “não ter trabalhado em gesso, mas de ter escrito na água. Como
diz o provérbio: ‘como vêm, assim vão’” (p.258).
Por fim, Freud relata uma situação que ele denomina de inércia psíquica, para se
remeter a um esgotamento da plasticidade da capacidade de modificação e
desenvolvimento posterior do aparelho psíquico. A resultante seriam processos mentais
imutáveis, fixos e rígidos. Mesmo tendo o trabalho de análise possibilitado novos
caminhos para a pulsão, este destino não se concretiza sem forte hesitação. Freud
(1937a/1996) aproxima essa situação psíquica do que ocorre com pessoas muito idosas,
em função da força do hábito ou da exaustão da receptividade. Contudo, ele sublinha
de que nesses casos trata-se de pessoas jovens, o que lhe dificulta encontrar explicações
teóricas satisfatórias.
219
Freud (1937a/1996) então relaciona esse conjunto de novas formas de resistência
na cena subjetiva à características temporais: “certas alterações de um ritmo de
desenvolvimento na vida psíquica que ainda não apreciamos” (p.259). O que nos indica
mais uma vez sua perspicácia em contextualizar a produção psíquica aos signos de seu
tempo.
Neste referido ensaio Freud, no final de sua experiência clínica, previa que a
economia pulsional tomava novos rumos. A partir de diversas metáforas - luta,
batalhões, guerra, princípio da discórdia – o discurso freudiano alude à mistura e à solda
das primevas pulsões de vida e de morte, mas também à possibilidade da desfusão de
seus componentes libidinais. A falha de Eros em dominar a fúria de Thanatos já se
constituía para Freud em uma possibilidade concreta. Consideramos que as
configurações subjetivas da atualidade se inscrevem na mesma esteira de
transformações já iniciada e reconhecida nos últimos escritos freudianos.
Nos tempos atuais em que a eficácia simbólica perdeu a sua força, por todos os
motivos acima explicitados, a fenda que aparta Thanatos do que deveria ser seu
inseparável Eros ameaça ser insuperável. As falhas do componente libidinal
diagnosticadas por Freud se intensificam hoje em proporções significativas.
O campo das depressões, compulsões, somatizações, enfim, das figuras
contemporâneas do mal-estar cartografadas no primeiro capítulo, parece estar mais
próximo daquilo que Freud denominou de inibição e inércia psíquica do que dos
mecanismos de defesa e de resistência da neurose que explicitamos, sobretudo a partir
da histeria, no quarto capítulo.
As situações limite em que o aparelho psíquico acena sua paralisia diante do
excesso pulsional, que então se descarrega em diversas modalidades de passagem ao
ato, seja sob a forma da violência, da delinqüência, das compulsões e das somatizações,
nos remetem para uma outra ordem sintomática que tão frequentemente provocam a
perplexidade dos analistas. As descrições freudianas acima mencionadas, também
acompanhadas de surpresa para o próprio Freud, representam muitas vezes os entraves
atuais da psicanálise diante de tamanha resistência dos processos psíquicos, seja na
imobilidade, seja na mobilidade frenética de suas catexias, de seguir o destino do
circuito pulsional.
220
A fresta aberta por Freud para pensar a desfusão pulsional e a descarga da pulsão
de morte revela-nos elementos que são de extrema atualidade e riqueza conceitual para
analisarmos outras configurações subjetivas como essas que visualizamos hoje,
marcadas pela descarga de um excesso pulsional que não foi mediado, devido a
fragilização dos processos de simbolização, em função do contexto sócio-histórico em
que estão inscritas.
Nessas condições, é notável a impotência do dispositivo da interpretação diante
desses casos que apontam para uma outra configuração psíquica. A esterilidade do
efeito do ato interpretativo é hoje anunciada e reconhecida por muitos psicanalistas
diante das formas de subjetivação em questão nesta discussão.
A reflexão freudiana em torno das Construções em análise indica a relativização
da cura-tipo pela interpretação e a sugestão de que a tarefa do analista se constitua em
um trabalho preliminar de construção e reconstrução, junto ao analisando, de sua
história psíquica. Ao lado da interpretação, as construções são mais uma ferramenta
lançada por Freud para o trabalho de análise.
Pinheiro e Herzog (2003) ressaltam a necessidade de uma outra escuta para
modalidades de padecimento psíquico que não se encaixam no modelo da histeria. As
autoras enfatizam que a invenção da psicanálise foi marcada pela invenção de uma nova
subjetividade, a da histeria, e apontam que hoje se trata de criar condições para a
invenção de novas modalidades de subjetivação, a partir dos elementos que o arcabouço
teórico freudiano nos oferece.
Uma escuta presa ao modelo do deciframento aprisiona analista e analisando em
uma situação de estagnação e morte. Segundo Birman (2000a), o analisando espera do
analista sua presença viva como única possibilidade para ele se sentir vibrátil e
existente. O analista enquanto presença viva se dirigiria no sentido de acolher as forças
pulsionais do analisando, permitindo seu remanejamento.
Apostamos, assim, na possibilidade de uma escuta analítica que proporcione ao
sujeito criar recursos para lidar com o excesso pulsional. Que a análise seja um espaço
de invenção de si para o sujeito, onde ele possa se deslocar de um aprisionamento
mortífero no somático e que o analista possa, enquanto testemunha dessa criação,
possibilitar tais remanejamentos.
221
5.8. Corpo, subjetividade e os impasses da psicanálise na contemporaneidade
Os avatares da biopolítica contemporânea engendram vicissitudes subjetivas onde
o corpo é o palco privilegiado de expressão do mal-estar, registro no qual o sofrimento é
vivenciado. Visualizamos, entretanto, a especificidade de uma configuração de corpo
cada vez mais reduzida a sua dimensão somática, deserogeneizado, empobrecido de
recursos simbólicos. Mais do que um corpo erógeno fantasmático parece tratar-se do
organismo em detrimento do recobrimento libidinal do corpo.
A redução a uma existência somática, resultante da incidência direta do poder
sobre a vida, remete-nos à expressão de um processo de desubjetivação, isto é, da perda
de vínculos propiciadores de ligação pulsional que então se descarrega, não mais sobre
o corpo, tal como o entendemos a partir de sua concepção psicanalítica, mas sobre a
materialidade orgânica.
Ao mesmo tempo esse corpo que resta, na sua versão muito mais somática e
orgânica do que propriamente erógena e fantasmática, parece constituir-se como a via
possível para um processo de subjetivação. O corpo é assim constantemente convocado
como o último, senão o único, terreno de experimentação de si. Uma história de si
muitas vezes só é possível ser construída a partir de uma história de seu corpo, seja
pelas doenças que o afligem, seja pelas marcas, próteses e esculturas que sobre eles se
implantam em busca de uma singularidade.
Consideramos que o recurso à corporeidade como forma de expressão e
experimentação de si, como uma espécie de “apalpar o corpo” em sua realidade
concreta é, em certa medida, o que possibilita uma busca de limites e de contornos para
uma realidade psíquica fragilizada. Essa tentativa, porém, parece malograr uma vez que
é regida por uma estratégia biopolítica de reduzir a existência a uma maquinaria
biológica útil às estratégias científicas, publicitárias e políticas. Nessas circunstâncias, o
sujeito se encontra reduzido a uma existência somática, fronteiriça à desubjetivação.
Nessas condições, a relação enfatizada por Foucault (1976b/1988) entre sexo e
verdade sofre um deslizamento. A verdade não está mais no plano da experiência íntima
do erotismo corpóreo, mas desliza para o plano da imagem. As tentativas e investidas
atuais do poder de normalização pela imagem revelam a face contemporânea da norma
biopolítica das sociedades ocidentais do consumo, da performance e do espetáculo.
222
Conforme nos adverte Agamben (2002a), o corpo é o novo sujeito da política, portanto,
“deverás ter um corpo para mostrar” (p.130).
Da conversão histérica que mobilizou neurologistas, psiquiatras e psicanalistas nos
séculos XIX e XX às somatizações que se manifestam de forma pregnante na
atualidade, há uma historicidade do corpo a ser levada em consideração. A história da
psicanálise remonta a um estatuto erógeno, simbólico e libidinal do corpo associado às
psiconeuroses e, sobretudo, à estridente corporeidade das histéricas. O discurso
psicanalítico enquanto centrado na histeria do corpo não pode ser separado de uma
análise da modernidade, onde as condições de possibilidade da elaboração psíquica da
excitação somática se concretizavam efetivamente.
O sintoma corporal da histérica, evidenciado pelas conversões, é inequivocamente
simbólico, sobredeterminado e regido pelas fantasias que, por sua vez, são geradas pelos
desejos sexuais infantis inconscientes. Essa construção freudiana está imersa em uma
lógica do conflito psíquico inteiramente assentado no plano da representação, entre os
pólos da sexualidade e da auto-conservação.
Contudo, como vimos no capítulo anterior, Freud considerou uma outra ordem
sintomática, também referida ao campo da neurose, porém destituída de um acesso ao
registro psíquico das representações que, por esse motivo, recebeu a denominação de
neuroses atuais. Diferentemente das conversões histéricas que mantinham intactas a
materialidade orgânica, aquelas se caracterizavam por uma disfunção somática. Não
remetiam a nenhum vínculo simbólico com traumatismo inconsciente, ao contrário,
decorriam da inacessibilidade a uma elaboração psíquica para a excitação a qual,
acumulada, ocasionava perturbações somáticas atuais que acometiam a integralidade do
funcionamento orgânico.
Aproximadamente 100 anos após tal descrição freudiana, abandonada por Freud
em função da preponderância das psiconeuroses em sua realidade clínica e social, o
campo da neurose se estende cada vez mais em direção a esse tipo de manifestação
sintomática, em que o corpo é cada vez mais somático e a resolução do conflito é cada
vez mais desubjetivante.
Tendo em vista o pensamento freudiano, aquilo que Freud cunhou como neuroses
atuais torna-se, mais do que nunca, literalmente atual no que tange à perda do
223
revestimento erógeno e libidinal da corporeidade e à condição de precariedade das
subjetividades no contexto biopolítico da contemporaneidade.
As novas manifestações do mal-estar, diferentemente da problemática clássica no
campo da histeria sobre a sexualidade, nos revelam muitas vezes um problema no
investimento narcísico do corpo. Mais do que a questão da diferença sexual, a densidade
da questão parece outra: “o que vale meu corpo?”.
Nesse sentido, concordamos com Birman (2004) quando ele diz que o corpo é
indicado como sendo um lugar de risco para a existência do indivíduo contemporâneo.
Segundo ele, quando o psiquismo não consegue mais dominar o excesso pulsional, este
é então descarregado diretamente sobre o corpo sob a forma de passagem ao ato, como
conseqüência da fragilidade dos processos de simbolização.
No limite disso que estamos tentando pensar, o corpo seria reduzido a uma
dimensão orgânica. Aprisionado nesse registro mortífero, o risco de perder a vida é
iminente.
O analista do hoje, enquanto testemunha dessa mostração somática que se
apresenta, mais do que se representa, é defrontado frequentemente com a tarefa hercúlea
de, apostando em uma experiência analítica, possibilitar mediações diante das
incessantes materializações da pulsão de morte e assim, talvez, propiciar a criação de
novas formas de qualificação para uma vida exposta ao poder de morte.
Em tempos de glorificação da magia das drogas psicofarmacológicas, que regulam
e apaziguam quimicamente o mal-estar vivido no registro da experiência corpórea, de
disseminação das terapias e tratamentos corporais e das academias de ginástica que se
tornaram templos seculares da atualidade (BIRMAN, 2004b), o que efetividade ainda
resta à terapêutica da linguagem? O que foi feito da “magia das palavras”, tão evocada
por Freud?
Como vimos no capítulo III, a propósito das descontinuidades do discurso
freudiano em relação à matriz biopolítica da modernidade, Freud foi um ferrenho
defensor do tratamento psíquico pela linguagem, em oposição frontal às estratégias
medicalizantes. O desbravador do inconsciente resgatou o antigo poder mágico das
palavras como uma ferramenta de transformação dos processos psíquicos. A resistência
freudiana contra a medicalização da vida se deu na aposta do valor da palavra, tendo em
vista seu reconhecimento da tecitura linguageira do aparelho psíquico. Freud desafiou o
224
silenciamento da efetividade terapêutica da linguagem operada pela tradição positivista
e cientificista da medicina de seu tempo.
Hoje a psicanálise enfrenta novamente o desafio de sustentar um tratamento
psíquico pelo único e mesmo instrumento freudiano da “magia da palavra”, diante de
tantas promessas imortalizantes que se sustentam pela genética médica, pela psiquiatria
biológica e por uma psicofarmacologia cada vez mais aberta ao consumo. Essa
realidade atual é a versão mais avançada do processo de medicalização que desde o
século XIX se disseminava no Ocidente e inquietava o espírito freudiano.
A crise da psicanálise é evidente, já que não pode responder na mesma medida a
demanda por tranquilização de tamanha excitabilidade, evidenciada pelo desalento
contemporâneo. Face à perda da eficácia dos mecanismos de proteção simbólica, as
subjetividades se entregam às ofertas imediatas de salvação alardeadas pelos
fundamentalismos religioso e científico.
Tal crise se cronifica na medida em que a psicanálise francamente desiste de
resisitir à medicalização do sofrimento diante dos patamares atingidos atualmente pela
biopolítica, num movimento de silenciamento da subversão freudiana que rompeu a
duras penas com a normalização biologizante. A potência anti-normativa do
pensamento freudiano é assim muitas vezes deixada de lado pelo recrudescimento da
medicalização como resposta aos apelos do mal-estar.
5.9. Resistir, ainda é possível?
Segundo Foucault (1976b/1988, p.91-92), lá onde há poder há resistência. Não
existem relações de poder sem pontos de resistências, estas lhe são constitutivas. E não
somente como seu subproduto negativo, mas como seu “interlocutor irredutível”. Assim
como as relações de poder não são fixadas em uma instituição ou estrutura, mas se
disseminam num constante jogo de forças, as resistências são da mesma forma
distribuídas irregularmente no corpo social.
“(...) pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na
sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam
reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os
225
remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis”
(FOUCAULT, 1976b/1988, p.92).
Tendo em vista essa concepção, indagamos: a subjetividade ainda encontra espaço
de resistência nesse contexto biopolítico da atualidade? A condição de vida nua/homo
sacer pode se contrapor como resistência aos jogos de poder?
À primeira vista, a subjetividade parece se manter mais no registro da
sobrevivência do que propriamente no da resistência, que implicaria um movimento de
contra-poder. O que se evidencia claramente é um esvaziamento do poder de resistência
das subjetividades, dada sua colagem ao dispositivo biopolítico.
Contudo, assim como as subjetividades são produzidas pelos dispositivos de poder
as resistências também emergem nesse movimento. Nesse sentido, no âmbito do auge
da sociedade disciplinar, da normalização sexual e docilização dos corpos, a histeria,
mais especificamente o corpo histérico, desejante, se apresentava como um foco de
resistência importante, como que questionando um “direito ao corpo”, como um modo
de subversão à moral e à disciplina vigentes na época.
Face ao poder psiquiátrico e à disciplina asilar que revogavam deter a verdade da
loucura, Foucault (2003) analisa a insurreição simuladora das histéricas. Fazendo
bascular seu sintoma entre verdade e mentira, realidade e simulação, a histeria teve uma
importância histórica de enfrentamento contra o poder médico-psiquiátrico do século
XIX. Nesse sentido, para Foucault, a histeria teria se constituído menos como um
fenômeno patológico do que como um fenômeno de luta no interior do sistema asilar e
psiquiátrico, denunciando a simulação desse pretenso saber sobre a realidade da
loucura.
“O histérico possui magníficos sintomas mas, ao mesmo tempo, ele esquiva a
realidade de sua doença; ele está na contra-corrente do jogo asilar, e, nessa medida,
saudemos os histéricos como os verdadeiros militantes da antipsiquiatria”
71
(FOUCAULT, 2003, p.253). Diante da insidiosa simulação de um saber que se propõe
dizer a verdade sobre a doença, a histeria fabrica seu direito de réplica e, pela mesma
estratégia da simulação, desestabiliza o poder psiquiátrico, pregando-lhe uma peça sobre
71
Tradução nossa. No original: “L’hystérique a de magnifiques symptômes mais, em même temps, il
esquive la réalité de sa maladie ; il est à contre-courant du jeu asilaire, et, dans cette mesure-là, saluons
les hystériques comme les vrais militants de l’antipsychiatrie”.
226
a qual este tropeça
72
. Nesse sentido a histeria, e seu inerente poder de resistência, está
historicamente inscrita no contexto da constituição psiquiátrica do século XIX.
Para onde se deslocou esse lugar da reivindicação, de contra-poder, tão
emblematicamente representado pela capacidade simbólica e erótica da histeria? O que
esperar da atualidade, onde se impõe o esfacelamento da referência simbólica e
soberana e se evidencia o esgarçamento da possibilidade de contenção da rede
disciplinar? Na esteira desses acontecimentos a biopolítica na sua escalada
medicalizante reduz as subjetividades à condição de vida nua, perpetrando sua
eliminação do espaço social e político. Quem são os resistentes dessa realidade atual?
Onde residem os focos de resistências?
Para Agamben (2002b), a democracia espetacular que domina o cenário político
mundial consiste na pior tirania da história da humanidade, diante da qual a resistência e
a oposição se tornaram difíceis. Em uma alusão explícita à sociedade do espetáculo
anunciada por Debord, Agamben (2002b) refere-se a uma grande transformação que
esvaziou o sentido dos termos democracia, direito, nação, povo e soberania,
desembocando na política contemporânea de um Estado-espetáculo. Essa forma de
organização democrático-espetacular do Estado anula e esvazia o conteúdo de toda
identidade real, engendrando a produção de singularidades sem condições de identidade
social e pertencimento: singularidades quaisquer, sem laço social. A difícil tarefa da
oposição hoje estaria lançada, para o autor, na gestão da sobrevivência da humanidade.
Ainda assim, a fim de pensar e apostar na relação foucaultiana intrínseca entre
poder e resistência, para não cedermos facilmente a uma relação de pura dominação,
analisamos algumas possibilidades de resistir que se insinuam na atualidade. Vamos a
elas.
Querer sobreviver num mundo que oferece precárias possibilidades de proteção e
qualificação, regido por um biopoder que reduz a potencialidade da existência a uma
corporeidade medicalizada e excluída de participação política e social, é uma forma de
afirmação da vida. Podemos considerar que é uma forma empobrecida e precária de
72
O argumento foucaultiano é de que o saber psiquiátrico era da ordem da simulação, no sentido de que
se assentava sobre um tratamento moral destituído inclusive de um saber médico etiológico e nosográfico
(o qual provinha do campo da neurologia) que fundamentasse e justificasse as práticas asilares. O que está
em jogo na sobrerealidade imposta à realidade da loucura é a afirmação do poder psiquiátrico, sustentada
por um protocolo administrativo e institucional, constituindo-se, portanto, como um mimetismo, uma
pantomima de saber. Para aprofundar o tema, consultar FOUCAULT (2003).
227
resistência, no entanto é, apesar de tudo, um modo de afirmar o desejo de viver e
continuar lutando contra a morte, seja ela real, social, política ou psíquica.
A recusa da medicalização, bem como a transformação do excesso pulsional na
externalização das diversas formas de violência que permeiam a cena contemporânea,
também podem ser consideradas formas de se contrapor às investidas do poder e de
devolver para o social a violência experimentada nas condições de existência da
atualidade.
As novas modalidades de padecimento psíquico, centradas muitas vezes em
corporeidades sofrentes, em sintomas corporais que colocam a vida em risco, parecem
estar resistindo ao parâmetro de vida e saúde que nos é imposto
73
.
Assim como a incidência do biopoder pode ter como efeito o assujeitamento da
subjetividade a uma singularidade somática, no pólo oposto essa mesma forma de
subjetivação pode se constituir como resistência, como contra-poder, enfim, como pólo
de enfrentamento ao dispositivo biopolítico.
Nesse sentido, o pólo da resistência estaria jogado para um lugar de risco, para o
limite da morte e da desubjetivação. O confronto com a morte implicado em muitas
experiências de risco a que se submetem as subjetividades atuais nos remetem a formas
extremadas de resistir ao poder sobre a vida.
Se o erotismo era transgressivo na modernidade, como bem ergueram as histéricas
a bandeira de um direito ao corpo, ao prazer e à sexualidade, hoje suspeitamos que a
resistência resida em outro registro. Ela se volta para o confronto na linha tênue entre a
vida e a morte. Diante dos progressivos processos de desimbolização operados na
atualidade restou ao sujeito seu corpo, mais propriamente, sua carne. É sobre essa
materialidade que assistimos as tentativas de inscrição e de afirmação de uma história
de si.
73
Há uma passagem no texto foucaultiano que alude a algo próximo disso que estamos tentando pensar: a
vida como o registro por onde se exerce a resistência, num jogo de forças contra um poder que a tem
como alvo e objetivo. Vale conferir: “E contra esse poder ainda novo no século XIX, as forças que
resistem se apoiaram exatamente naquilo sobre que ele investe – isto é, na vida e no homem enquanto ser
vivo (...) o que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida como as necessidades fundamentais,
a essência concreta do homem, a realização de suas virtualidades, a plenitude do possível (...) a vida como
objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava controlá-
la. Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas (...) O ‘direito’ à
vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o ‘direito’, acima de todas as
opressões ou ‘alienações’, de encontrar o que se é e tudo que se pode ser...” (FOUCAULT, 1976b/1988,
p.136).
228
Se pudermos pensar nesse lugar de risco como também um lugar de resistência,
estaremos apostando em uma via de afirmação de si, ainda que jogada para o limite da
morte. Fica em aberto a indagação de se essas não seriam formas impotentes de resistir.
Quanto à psicanálise, se quiser reafirmar o gesto freudiano inaugural de uma outra
racionalidade para o saber psicanalítico, precisa inventar novas formas de resistir aos
desígnios da biopolítica. Se pretende se sustentar hoje como uma experiência de
reinvenção subjetiva, a psicanálise tem que se desatrelar dessa matriz de normalização
medicalizante contra a qual o próprio Freud, em seu discurso crítico sobre a
modernidade, empreendeu numerosos esforços.
Manter tal posicionamento crítico exige uma leitura sempre atenta às marcas
históricas da psicanálise e das subjetividades. A despeito da luta freudiana e de vários
de seus seguidores, a história da psicanálise não nos furta exemplos de restauração da
matriz normalizante no interior do dispositivo psicanalítico, perpetuando práticas de
normalização social e subjetiva.
Isso se dá seja pela tentativa insistente de resgate e salvação da soberania do pai,
fomentando articulações teórico-clínicas adeptas de fundamentalismos que tentam
reeditar a proteção simbólica perdida; seja pela associação à estratégias de ponta no
ramo biológico e neurocientífico. Ambas recusam veementemente a tragicidade
anunciada pelo último Freud, para o qual a resistência é constitutiva da psicanálise, uma
vez que o destino da luta entre Eros e Thanatos está lançado no campo da
indeterminação e da indecidibilidade. Freud afirmou a impossibilidade de sanção desse
conflito e sustentou esse campo de embate no âmago da experiência psicanalítica. Resta
indagar se esta continua sendo a direção teórico-clínica da psicanálise pós-freudiana.
Podemos seguir apostando na incerta e desconcertante trilha deixada por Freud,
onde as relações de força pulsional se imantam e se confrontam simultânea e
horizontalmente, e nesse registro produzir efetivamente alguma possibilidade de
experiência analítica. Ou, mais confortavelmente, podemos insistir em um pacto com as
estratégias biopolíticas de normalização, silenciando as subjetividades e/ou
ensurdecendo nossa escuta diante do inquietante desalento da contemporaneidade.
Nisso, nos parece, está em jogo o futuro da psicanálise.
229
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ponto de partida desta pesquisa circunscreveu-se em torno da problemática das
formas de subjetivação da contemporaneidade, naquilo que elas se diferenciam do
paradigma clássico do campo da neurose, gerando impasses ao dispositivo psicanalítico.
Sublinhamos especialmente a questão do corpo implicada nos processos subjetivos da
atualidade, frequentemente associado a manifestações somáticas que revelam um
processo de empobrecimento erótico, simbólico e fantasmático.
Vimos como o mal-estar atual - centrado em torno de perturbações narcísicas, dos
estados-limites, da depressão, das adições e compulsões, das afecções psicossomáticas –
evidencia, sobretudo, um sofrimento corporal, formas perturbadas de ação e um grande
e impotente sentimento de vazio interior. Esses casos, de grande incidência hoje na
clínica psicanalítica, remetem à precários espaços de simbolização e de elaboração
psíquica, signos da condição de fragilidade e vulnerabilidade das atuais formas de
subjetivação.
Tendo em vista este contexto, nossa pesquisa se debruçou no exame das condições
de possibilidade que marcaram a emergência dessas transformações no campo subjetivo
e a especificidade com que se manifestam na atualidade. Desse modo, a tese atravessou
esta problemática através de uma indagação do modelo psicanalítico (discurso
freudiano) e do contexto contemporâneo, a partir de uma perspectiva histórico-
genealógica das relações de poder.
Consideramos que as marcas do contexto subjetivo atual foram historicamente
determinadas pela matriz biopolítica da modernidade, que nos últimos dois séculos vem
sendo amplamente difundida nas sociedades capitalistas ocidentais. O modo de
subjetivação da atualidade é o ponto de chegada de uma série de desdobramentos da
história do biopoder em nossa tradição.
Recorremos ao pensamento de Foucault, com sua análise dos dispositivos de
poder, para mapearmos o pano de fundo em que acontecem as transformações
subjetivas em nossa sociedade. Pretendemos, assim, contextualizar a modernidade, em
que nasceu a psicanálise, e os desdobramentos de suas relações de poder na
contemporaneidade. Este foi um passo fundamental que nos permitiu voltar o olhar
230
sobre as subjetividades atuais e também sobre a obra freudiana. Nosso propósito com
todo esse détour pelo pensamento de Foucault foi, então, demarcar o solo histórico-
genealógico que propiciou o surgimento das novas formas de subjetivação.
Na leitura foucaultiana, a modernidade foi marcada por uma mudança no regime
geral de poder, que passou das mãos do soberano para a disciplina. A perda do poder
soberano centrado no “fazer morrer, deixar viver” abriu espaço para a implantação de
uma mecânica disciplinar que, a partir da norma, se voltou para a regulação das
individualidades. Os efeitos econômicos e políticos da “acumulação dos homens”
exigiram a implantação de medidas de controle que deram origem à noção de população
e sua classificação de acordo com suas condições de saúde. A qualidade de vida da
população se transformou na fonte maior de riqueza dos Estados modernos, de onde a
política ter se voltado inteiramente sobre a vida, fazendo dela o objeto principal das
estratégias de poder. O “fazer viver, deixar morrer” tornou-se, desse modo, o imperativo
das tecnologias de poder da modernidade, integrado a um projeto de gestão da vida dos
homens.
O exercício do poder sobre a vida se desenvolveu a partir de duas modalidades:
anatomo-política do corpo humano, voltada para o corpo individual através de um
sistema de vigilância e hierarquia; e biopolítica da espécie humana, encarregada da
manutenção da existência biológica da população e sua regulação no espaço social.
Administração dos corpos e gestão calculista da vida, eis as funções do biopoder que se
disseminaram nas sociedades modernas ocidentais até os dias atuais.
A sexualidade foi o eixo central em torno do qual se operou a articulação dessas
duas tecnologias de poder. Sobre ela se produziu um dispositivo e uma ciência do
sexual, que a saturou de uma multiplicidade discursiva a fim de controlá-la e normalizá-
la. Assim se constitui um infindável exame sobre a sexualidade, numa caça insistente à
patologia e à anormalidade. A família ocupou um papel fundamental nessa vontade de
saber sobre o sexo, tornando-se o elemento precioso para a implantação do dispositivo
da sexualidade e para a disseminação de suas estratégias de controle. Adquiriu para esse
fim uma organização nuclear que possibilitou o gerenciamento dos corpos e a geração
de uma prole de boa saúde e educação, fundamental para a riqueza da nação. Foi,
portanto, medicalizada e medicalizante.
231
Desse investimento biopolítico sobre o corpo e a sexualidade, passando pela
família, algumas figuras foram especialmente investidas e “valorizadas”, como a criança
soberana e a mulher nervosa, tendo sido atravessadas por uma rede disciplinar e
regulamentadora.
A medicina se constituiu no instrumento fundamental de normalização do projeto
biopolítico. Foi pela medicalização da vida e do social que suas estratégias avançaram
no ocidente moderno. O discurso científico da medicina moderna produziu um saber
sobre a vida. Através da noção de clínica e da técnica do exame construiu a primeira
forma de saber sobre o particular no Ocidente. Desta forma, constituiu-se na “matriz
antropológica” das demais ciências humanas. O campo da medicina e das ciências
humana é o lócus onde as normas são pensadas e produzidas e de onde elas emanam
para sua disseminação no social. Diante do declínio do poder soberano, uma prática
normativa passou a regular a existência, impondo limites à transgressão, dada a crise da
referencia simbólica e soberana e a ausência de leis transcendentais.
Para Foucault, a psicanálise teve seu ponto de emergência na esteira desse
processo de transformações, inscrevendo-se no projeto biopolítico das ciências
humanas, assentado em um saber normalizante sobre o indivíduo. Nesta medida, teria
reproduzido um reforço à ciência do sexual, como mais uma técnica de produção da
verdade sobre o sexo, filiada ao dispositivo da sexualidade. Exerceria assim uma prática
normativa à serviço do biopoder, inscrita na matriz disciplinar e biopolítica da
modernidade.
Entretanto, Foucault reconheceu a potência disruptiva da psicanálise com a
injunção científica em torno da verdade do sujeito, sobretudo a partir do descentramento
operado pelo conceito de inconsciente que ela enuncia. Além disso, fez o elogio à Freud
por este ter rompido com o sistema hereditariedade-degenerescência, opondo-se ao
racismo e eugenismo dele decorrentes.
A psicanálise se viu interrogada por Foucault: teoria universal do sujeito ou
produção discursiva histórica? Ciência do sexual ou arte erótica? Uma das questões
fundamentais que se colocou para esta pesquisa foi a de analisar como a psicanálise se
inscreve ou não no campo que Foucault delineou como biopolítico. Até que ponto ela
fica presa ou não a essa matriz. O movimento que percorremos, no sentido de realizar
232
uma leitura a partir de uma perspectiva histórica do discurso freudiano, nos permitiu
considerar a existência de filiações, mas sobretudo de descontinuidades.
O solo histórico do advento do pensamento freudiano foi marcado pelo auge da
sociedade disciplinar e do exercício do poder sobre a vida. Vimos como a psicanálise
nasceu no seio desse contexto biopolítico e construiu um modelo de interpretação da
subjetividade inscrita nessas malhas do poder. As leituras da histeria, da sexualidade, do
narcisismo infantil, das doenças nervosas evidenciam uma forma de subjetivação
marcada pelas insígnias da atuação do biopoder.
Em muitos momentos Freud manteve-se também filiado à tradição médica, em
linha de continuidade com a fisiologia vitalista. Esta filiação lhe rendeu uma primeira
abordagem do aparelho psíquico, baseado na crença de uma normatividade vital que o
regia homeostaticamente, como um princípio soberano regulador da ordem da vida. Ao
mesmo tempo em que identificamos esses traços de continuidade à racionalidade
médico-científica, verificamos também, desde o princípio, o discurso freudiano
operando rupturas significativas com esse paradigma.
Os embates de Freud com os cânones científicos de seu tempo são constantes em
seu pensamento e foram progressivamente o conduzindo à busca de uma outra
racionalidade para a psicanálise. Seu enfrentamento em relação às estratégias
medicalizantes se evidencia de diversas formas: no seu modo de conceber o psiquismo
como um aparelho de linguagem, de propor um tratamento baseado na palavra, de
buscar modelos alternativos, especulativos e ficcionais para a construção de um
arcabouço teórico e clínico de investigação da vida psíquica. E claro, principalmente, a
partir do radical descentramento operado com as postulaçãos do inconsciente, do desejo,
da pulsão, da sexualidade perverso-polimorfa.
O empreendimento metapsicológico concretiza o distanciamento de Freud do
horizonte cartesiano e positivista da modernidade. A “bruxa feiticeira” da
metapsicologia varre o fantasma do cientificismo e assenta a psicanálise em outras
bases. Sem especular e fantasiar não daríamos um passo à frente, nos adverte Freud. A
pulsão, como conceito fundamental da metapsicologia, traz para o centro da reflexão
freudiana – e do aparelho psíquico - o registro da economia das intensidades, que
literalmente ganhou cada vez mais força em suas formulações.
233
Ao percorrermos a teoria das pulsões visualizamos os deslocamentos de Freud do
vitalismo ao mortalismo e, com isso, a relativização do campo hegemônico da
representação e a supremacia do fator econômico. Assim Freud desbancou o princípio
soberano da intrínseca afirmação da vida (normatividade vital, auto-conservação) e
introduziu o princípio da morte no fundamento do aparato psíquico. A vida é um destino
do constante embate contra a morte, lançado na exigência permanente de um trabalho
psíquico sobre a força da pulsão, que deverá ser então mediada pelo suporte alteritário.
O intervalo entre força pulsional e o campo da representação demanda uma articulação
mediadora só tornada possível pelo encontro com o outro. Na constante luta entre a vida
e a morte, Eros é responsável pela promoção das ligações que impedem a tendência
nirvânica à descarga. O embate deverá ser gerido, então, no campo alteritário dos laços
sociais, onde a soberania deverá ser horizontalmente afirmada num trabalho incessante
de regulação da pulsão de morte.
O que estava em jogo nessa transformação do discurso freudiano era, sem dúvida,
uma leitura sobre a cultura. A entrada da morte no pensamento de Freud é tributária do
reconhecimento da crise da autoridade soberana, evidenciada pelo declínio do poder
simbólico da figura do pai na modernidade. O desamparo se configurou assim, para
Freud, como a figura emblemática do mal-estar na modernidade, enunciando a condição
desamparada das subjetividades diante da perda da proteção da autoridade paterna. Cada
um tem que outorgar a si uma parcela de autoridade para conduzir sua existência.
Diante da nostalgia do pai, os laços sociais se constituem fraternalmente e as
subjetividades estão fadadas a regular, nesse campo, o constante embate entre as pulsões
de vida e a pulsão de morte, onde esta deve encontrar meios de ser regulada.
Esse momento mortalista do pensamento freudiano revela sua potência disruptiva
e descontínua em relação à biopolítica. Ao conceber a impossibilidade de resolução do
conflito pulsional e do antagonismo entre pulsão e civilização, Freud resiste às
estratégias de normalização. Quando a pulsão se abre para o horizonte da morte, a força
pulsional tem que ser constantemente gerida, mediada, inscrita. O destino do psiquismo
reside nesse constante embate, jogo de forças, em que nunca se sabe qual vai ser o
batalhão vencedor dessa “guerra”. Nesse modelo de irredutibilidade conflitual, a
resistência é constitutiva da experiência psicanalítica e a “medialidade” um processo
sem fim.
234
Essa vertente trágica do pensamento freudiano se opõe às estratégias biopolíticas
de normalização do indivíduo, visto que a luta entre Eros e Thanatos é constitutiva do
psiquismo. Nesta medida, Freud não reserva à psicanálise nenhum papel normalizador à
serviço da resolução desse conflito, ao contrário, isso se dá permanentemente como uma
luta pela vida. A psicanálise, nesse sentido, não se constitui mais como um instrumento
de cura desse mal-estar, tal como se insinuava em Moral sexual ‘civilizada’ e doença
nervosa moderna. Em Análise terminável e interminável a perspectiva é de afirmação
do conflito e a missão da análise, mais do que resolvê-lo é de reforçar a munição para o
incessante confronto contra as forças da morte, “garantir as melhores condições
possíveis para as funções do ego”. Desta forma, ao formular a morte, e não mais a vida
como princípio e ao apostar nessa relação de forças, Freud rompe com o projeto
biopolítico de normalização da vida.
Freud foi um pensador de seu tempo, e além dele. Desejou que sua Psicanálise
fosse reconhecida como uma disciplina pelo rigor da academia científica, ao passo que
construiu suas bases na ficção e na fantasia metapsicológicas. Golpeou as certezas da
razão e destituiu o sujeito da soberania de sua consciência, mas ofertou-lhe um método
que pudesse acessar e desbravar o inconsciente. Ousou escutar o mal-estar, mais do que
dissecá-lo e apalpá-lo. E assim deu voz ao inaudível. Decifrou, interpretou.
Entusiasmou-se com o poder da palavra e o poder de tocar o intocável. Foi golpeado,
contudo. O indominável apresentou as contas. A experiência limite da psicanálise com o
irrepresentável rendeu à Freud um passo além de seu tempo. O imperativo é da morte, e
não mais da vida. Inútil procurar garantias, pai protetor, representação soberana, ou algo
que o valha. O destino está lançado no eterno embate entre as forças psíquicas em
presença, Eros e Thanatos. Não há cura porque não há resolução de conflito, este é a
condição de existência psíquica. A guerra pulsional está, desde então, implacavelmente
plantada nos confins de nossa existência. Não há salvação normativa, estamos fadados
ao enfrentamento. E a psicanálise também.
Analisamos a partir de Agamben e Birman alguns desdobramentos e variações do
projeto biopolítico na contemporaneidade, bem como as transformações no estatuto da
soberania, tendo em vista o processo de globalização e a conseqüente perda de poder
dos Estados-nação.
235
A modernidade manteve um eixo de centralidade no registro da soberania, a partir
da constituição dos Estados-nação. Estes supostamente ofereciam políticas públicas de
bem-estar social, reservando às subjetividades uma existência política, atrelada à
aquisição de direitos a todo e qualquer cidadão. As instituições disciplinares exerceram,
nesse contexto, a importante função de regulação e normalização da população. O
exercício do biopoder pautado no “fazer viver, deixar morrer” ocupava-se da gestão da
saúde e da educação, uma vez que nisso residia a fonte de riqueza dos Estados
modernos.
Tal soberania do Estado-nação foi atingida e fragilizada pelo processo de
globalização, gerando a descentralização e a pulverização do poder soberano, o qual se
multiplicou em diferentes pólos. Se o poder soberano já havia sido abalado na
modernidade, seu declínio se radicaliza na contemporaneidade com o enfraquecimento
do poder de Estado face a uma economia mundializada. Consequentemente, o projeto de
promoção e manutenção do bem-estar social entra em crise, desestabilizando o contexto
social, que foi então abalado por progressivas perdas de direitos e de posições sociais. A
rede disciplinar se esgarça, não mais garantindo com efetividade a gestão da população.
A proteção soberana é assim retirada do horizonte das subjetividades, que restam então
desamparadas ou, mais propriamente desalentadas, porque desprovidas de qualquer eixo
de sustentação.
Quando o Estado enquanto figura que oferecia proteção e bem-estar social quebra,
decorre uma radicalização efetiva do mal-estar: os indivíduos ficam à deriva, sem contar
com um mínimo de segurança; ameaçados biológica e psiquicamente, aumenta a
possibilidade de morrer a qualquer momento, não havendo mais garantia de
sobrevivência. O nível de dor a que estamos expostos nesse contexto é muito maior e as
novas formas de mal-estar são testemunhas disso.
A política do estado de exceção como paradigma de governo na atualidade reflete
as tentativas dos Estados-nação em restaurar sua soberania fragilizada. A lógica da
exceção, em que essa soberania é fundada e restaurada, aponta para o brutal
recrudescimento do poder soberano de morte no interior do projeto biopolítico do “fazer
viver”.
O campo de concentração torna-se o paradigma da conjuntura política do estado
de exceção, o qual se torna a regra nos regimes democráticos da atualidade. Nele as
236
subjetividades são despojadas de seus direitos mais fundamentais, sendo reduzidas à
condição de vida nua, sem qualquer mediação diante do poder. De sujeitos de direito
passam à corpos vivos, dada a espetacular atuação e sofisticação que as estratégias
medicalizantes adquirem nesse contexto, como forma de “qualificar” a vida pelo viés da
biologização. Sob a injunção de proteger e assegurar a cidadania essa política se volta,
paradoxalmente, para a eliminação do estatuto político e jurídico dos cidadãos,
destituindo-os e desprotegendo-os subjetivamente. É assim que a justaposição do poder
de morte do soberano com o imperativo biopolítico do “fazer viver” confere a face mais
contemporânea do exercício do biopoder.
A decorrência imediata desse processo foi a perda da mediação entre o poder e a
vida. Esta é colocada em face ao poder sem nenhum tipo de mediação, vida nua exposta
ao poder de morte. As possibilidades de mediação foram deterioradas nos registros
político e social, engendrando espaços precários de mediação psíquica.
Nesse sentido, analisamos as ressonâncias desse contexto biopolítico sobre a
economia pulsional. A quebra da sustentação política e soberana do Estado repercutiu
na ausência de mediação entre a vida e o poder, restando ao sujeito contemporâneo
escassos recursos simbólicos para fazer face tanto à violência do poder quanto aquela da
intensidade pulsional. Desta forma, a subjetividade é expropriada de sua capacidade de
simbolização e elaboração psíquica, que dependem inteiramente de uma relação de
“medialidade” para que a pulsão de morte seja inscrita. Esta não encontrando
possibilidade de ligação psíquica, descarrega-se e materializa-se no corpo. De onde o
cenário psíquico da atualidade marcado pelo domínio da pulsão de morte. Destituída
desse recurso de mediação que propicia a ligação da força pulsional ao campo da
representação, a subjetividade é confrontada com a nudez de sua existência. A
fragilidade e a precariedade que caracterizam o desalento como signo do mal-estar da
atualidade têm, nesse contexto de transformação no estatuto da soberania e de
radicalização das estratégias biopolíticas, as condições de possibilidade de sua
emergência.
Refletimos sobre as implicações desses desdobramentos nos registros da soberania
e da política para a configuração subjetiva contemporânea. Consideramos que o efeito
mais drástico do exercício da biopolítica na contemporaneidade é a redução da
subjetividade a uma existência somática. O corpo em relevo nas formas de subjetivação
237
hoje, sobretudo nos processos de somatização e de passagem ao ato, é o índice da
condição de vida nua perpetrada pelo biopoder. O corpo é o registro privilegiado de
expressão do mal-estar. Contudo, a especificidade com que ele se apresenta nas formas
de subjetivação da atualidade remete a uma dimensão muito mais somática do que
erógena e fantasmática, expressão máxima da fragilidade subjetiva.
Se o corpo histérico era palco de enfrentamento às estratégias de normalização
sexual, a preponderância do registro somático hoje nas atuais formas de subjetivação é
correlativa da brutal incidência direta do poder sobre a vida, que a destitui de uma
existência simbólica. A perda do revestimento erógeno e libidinal da corporeidade é a
evidência concreta da condição de precariedade das subjetividades no contexto
biopolítico atual.
A partir dessa redução a uma singularidade somática, consideramos necessário
pensar nas possibilidades de resistência da subjetividade ao biopoder. Assinalamos o
registro da sobrevivência como uma forma que nos parece predominante de existir no
contexto biopolítico da atualidade. Contudo, apostamos em algumas formas de resistir
que podem se configurar pelo fato de simplesmente querer sobreviver, como uma forma
de afirmação da vida diante de uma política de eliminação pela vida nua. Cogitamos
ainda a recusa da medicalização; a externalização do excesso pulsional em diversas
formas de violência, como modo de “devolução” ao social da violência experimentada
pela condição de vida nua; e novas formas de sofrimento marcadas por sintomas
corporais que colocam a vida em risco. Consideramos que essas formas de resistir às
investidas do poder sobre a vida estão lançadas no limite da morte e da desubjetivação,
experiência de risco, portanto.
As novas formas de subjetivação são, desta forma, o ponto de chegada dos
desdobramentos da história da biopolítica. A subjetividade responde a esse investimento
massivo do poder sobre a vida num jogo entre produção (se produzem e se acoplam às
exigências do poder) e resistência (são como contra-poderes à dominação do poder).
Experiências subjetivas que beiram o limite do irrepresentável, experiências corpóreas
cujos limites do corpo precisam ser organicamente – e não mais eroticamente –
apalpados, apontam para um risco de morte iminente. Essa é a marca histórica dos
processos de subjetivação da contemporaneidade e aqui alcançamos o ponto de chegada
de nossa pesquisa.
238
A fragilidade narcísica e/ou dos processos de simbolização que marcam a forma
como a subjetividade vem se constituindo nos últimos tempos, apontada de diversas
formas pelos autores que privilegiamos no primeiro capítulo, encontram as condições de
possibilidade de seu surgimento nessas marcas históricas da atuação do poder sobre a
vida. A ordem sintomática em questão na atualidade, referente a uma ameaça de
desmoronamento e de desmapeamento da subjetividade, está em estreita relação com a
condição de vida nua em que estamos vivendo hoje, a qual chegamos a partir de uma
analise histórico-genealógica das relações de poder da modernidade aos nossos dias.
Consideramos esse percurso fundamental para estarmos atentos ao contexto sócio-
político em que as subjetividades se constituem e se inscrevem. E nesse sentido
entendemos que as manifestações subjetivas tem uma história, relativa a sua inserção na
cultura de seu tempo. Acreditamos que essa contextualização e historicização dos
processos subjetivos são indispensáveis para que possamos atualizar nosso arcabouço
teórico e nosso dispositivo clínico. E também para estar em dia com o firme propósito
freudiano de pensar o mal-estar psíquico à luz da cultura, que nos legou não só um
modelo interpretativo para a prática da psicanálise, como também uma análise crítica
daquilo que somos, na cultura em que estamos.
Para a psicanálise estar atenta à escuta de seu tempo, entendemos que ela precisa
considerar as marcas históricas da subjetividade, tais como essas que apontamos acerca
da contemporaneidade. Isso nos convoca a não ceder às tentativas de fazer da
psicanálise um sistema totalitário, mas reafirmá-la como uma discursividade aberta às
infinitas possibilidades de produção subjetiva, potência singular nos legada por Freud.
Freud variou no seu discurso e nos modelos que construiu para pensar a
subjetividade e seu mal-estar, de acordo com as transformações culturais de seu tempo e
com o distanciamento crítico que pôde operar. Desse modo, a leitura do discurso
freudiano, marcada pelas descontinuidades fundamentais aqui enunciadas, se afasta de
uma concepção de seu pensamento como um sistema totalitário. O pensamento
freudiano é, antes, o resultado de um saber histórico sobre a subjetividade, testemunha
das transformações culturais que engendraram mudanças nas formas de mal-estar.
Resta saber se continuamos realizando uma leitura do mal-estar a partir de uma
concepção crítica da cultura de nosso tempo ou se nos aferramos facilmente às soluções
biopolíticas difundidas de forma espetacular na atualidade. Neste caso, a
239
descontinuidade de Freud em relação ao biopoder não estaria sendo sustentada pelos
psicanalistas, acarretando uma conseqüente perda de resistência da psicanálise frente às
estratégias biopolíticas. Resgate, portanto, da filiação histórica da psicanálise com a
com o projeto biopolítico da modernidade, à serviço da normalização, como apontou
Foucault. Mas isso nos exigiria um novo empreendimento de pesquisa sobre a história
da psicanálise pós-freudiana, o que fica aqui como uma indagação e um campo aberto a
ser explorado.
Conforme apresentamos na introdução, consideramos esta tese como uma segunda
leitura em torno da questão da subjetividade na atualidade. O caminho certamente
continua aberto a novos esforços de pesquisa. A partir do que aqui desenvolvemos do
pensamento freudiano, através das “lentes” da analítica do poder, acreditamos que agora
esta pesquisa se abre para novas possibilidades. Aquela que visualizamos mais
prontamente é a de um aprofundamento de como os modos de subjetivação
contemporâneos podem ser analisados metapsicologicamente a partir da segunda
metapsicologia freudiana, onde o horizonte da pulsão de morte se faz presente,
oferecendo-nos uma nova cartografia psíquica que pode nos orientar para pensar as
marcas subjetivas de nosso tempo.
240
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