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Andréa Máris Campos Guerra
A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA
BORROMEANA: criação e suplência
IP/UFRJ
Abril de 2007
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Andréa Máris Campos Guerra
A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA
BORROMEANA: criação e suplência
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria
Psicanalítica.
Área de concentração: Psicanálise
Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo
Rio de Janeiro
Abril/2007
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Ficha catalográfica
A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA BORROMEANA:
criação e suplência
Autora: Andréa Máris Campos Guerra
Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica,
Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por:
____________________________________________________
Presidente, Prof. Ana Cristina Costa de Figueiredo - Orientadora
____________________________________________________
Prof. Angélica Bastos Grimberg
____________________________________________________
Prof. Jeferson Machado Pinto
_____________________________________________________
Prof. Marcus André Vieira
_____________________________________________________
Prof. Nelisa de Araujo Guimarães
Rio de Janeiro
Abril/2007
iii
Para Gustavo e Noa
iv
AGRADECIMENTOS
À Ana Cristina Figueiredo pela acolhida generosa, pelo apoio constante, pelo vivo
entusiasmo, pelas entradas exatas na escrita da tese e pelo bom encontro na vida;
A Gustavo, pelo amor e pela parceria, sempre estimulantes e renovadores, e pela
lembrança constante de que posso sempre dar mais um passo;
Ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica por criar a condição dessa tese,
em especial às professoras Angélica Bastos Grimberg e Ana Beatriz Freire que
acompanharam de perto e pari passu sua construção;
Aos ex-alunos que seguiram comigo nas questões da tese ao longo dos últimos anos de
pesquisa, em especial Pollyana Vieira e Souza e Luciana Luiz Borçato;
Ao diálogo profícuo generosamente oferecido pelo prof. François Sauvagnat, que me
acolheu durante o ano de estudos aprofundados em Paris VII e Paris VIII;
A Sérgio Laia e Elisa Alvarenga pela aposta numa possibilidade de ir além;
Aos amigos do Collège Franco-Brésilien (Paris) pelo encontro, pela acolhida e pela
discussão com as idéias da tese, em especial Ligia Gorini, Ester Cristelli-Mailard e
Marie-Claude Sureau;
A M. Pierre Skriabine e colegas de cartel, em especial Michèle Berdah, pelo avanço
junto à empreitada custosa a que a topologia nos conduziu;
A M. Alain Vaisserman, que abriu com entusiasmo as portas de seu secteur para que eu
pudesse me aproximar da psicose e de seu tratamento na rede pública francesa;
Aos amigos da PUC que mudaram o rumo de minha história com suas amizades e
calorosos debates de boas idéias, em especial Jacqueline, Roberta e Vânia;
À minha família que dialoga na distância ou na curiosidade próxima com meu trabalho,
sempre me estimulando;
Aos amigos e companheiros que enriqueceram, cada qual na sua particularidade, a
trajetória dessa tese: Andréia Stenner, Cláudio Felício, Fernanda Otoni, Célio Garcia,
Vassiliki Gregoropoulou, Nicole Chardier, Marilsa Basso, Marcela Lima e Assia
Gouasmi;
À CAPES.
v
RESUMO
A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA BORROMEANA:
criação e suplência
Nome do Autor: Andréa Máris Campos Guerra
Orientador: Ana Cristina Costa de Figueiredo
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Investigamos a hipótese sobre a estabilização psicótica, via criação artística ou artesanal,
prescindir da escrita. Revisamos em Freud e em Lacan as estratégias de solução para as psicoses
e também precisamos as noções de escrita e de letra, a fim de articular o que se escreve numa
obra. Em Freud, percorremos sua discussão sobre a Verwerfung, bem como sobre a assertiva do
delírio como tentativa de cura. Em Lacan, identificamos ao menos três estratégias quanto à
estabilização na psicose: o ato, a metáfora delirante e a obra. A partir desta última, Lacan
empreende uma revisão da estrutura da linguagem para pensar o inconsciente face ao gozo
através, sobretudo, das noções de letra e de lalíngua. Com isso, chega à mostração do real
através da topologia borromeana, ampliando a discussão das estabilizações na psicose a partir
do conceito de suplência. Nessa perspectiva, a estabilização implica, enquanto suplência, a
maneira como o sujeito, psicótico ou não, se escreve como nó, usando a letra, enquanto litoral
entre simbólico e real, e fundando o campo pronto a acolher gozo. Letra e escrevem o
savoir-y-faire do sujeito. É o que mostramos com a aplicação da topologia borromeana
enquanto método de análise a dois casos de psicose. Deles extraímos que a criação, artística ou
artesanal, poderá (mas nem sempre) operar enquanto letra que escreve um sujeito, permitindo o
enlaçamento dos três registros. Mais do que a criação em si, é seu efeito de escrita que pode
funcionar como elemento na suplência psicótica. Nesse sentido, a criação seria também uma
forma de escrita.
Palavras-chave: estabilização psicótica; criação; suplência; topologia borromeana; letra.
Rio de Janeiro
Abril de 2007
vi
ABSTRACT
PSYCHOTIC STABILIZATION CONSIDERED FROM THE BORROMEAN VIEW:
creative process and supplementation
Nome do Autor: Andréa Máris Campos Guerra
Orientador: Ana Cristina Costa de Figueiredo
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,
Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
The aim of this thesis is to work on the hypothesis of psychotic stabilization being achieved through
artistic or handcraft creation, prescinding from written language. We have taken the work of Freud
and Lacan related to this subject in order to identify the strategies proposed by them for psychotic
stabilization, and also to settle a delimitation of the notion of written language and letter. In Freud,
we considered the discussion about the Verwerfung and the proposal that delusion could be an
attempt to accomplish cure. In Lacan we could identify at least three strategies for psychotic
stabilization: the act, the delusional metaphor and the written. When discussing the work produced in
the 70s decade, Lacan makes a full revision on the placement of language structure in it, this being
done it order to consider the unconscious facing joy, mainly through the notions of letter and
lalangue. By "reaching" the Real through Borromean topology, Lacan widens the discussion about
stabilization in psychosis deriving from the notion of supplementation. Cutting adrift from the
defective proposition of psychosis, he proposes the task of tying the three registers by means of
supplementing them. According to such view, stabilization, being achieved by means of
supplementation, implies how the subject writes himself as a Borromean knot; in this writing, the
letter becomes the central element, once it sets the receptive field to receive joy. Letter and knot
write the savoir-y-faire of the subject. This is what we intended to show when applying Borromean
topology, as an analysis method, to two cases of psychosis. We have concluded that both artist and
handcraft creation work as a means of "writing" the subject, and may allow the three registers to be
tied. The effect caused by "writing" the subject, more than the one produced by the creative process,
is the one which can work as an element in supplementation. The creative process itself is also
written language, and may be able to lead to tying effects on the three registers, being it through the
Borromean via or not.
Keywords: psychotic stabilization; creative process; Borromean topology; letter.
Rio de Janeiro
Abril de 2007
vii
LISTA DE FIGURAS
01 olímpico ........................................................................................................... 91
02 borromeano de três elementos .............................................................................. 91
03 – Triske com objeto a ............................................................................................... 91
04 Esquema dos gozos em Jacques Lacan ................................................................. 98
05 borromeano detalhado ................................................................................................ 100
06 – Representações da consistência, da ex-sistência e do buraco ........................................... 101
07 – Nó de trevo aberto ............................................................................................................ 108
08 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Simbólico (Σ) ............................... 110
09 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Real (Édipo) ................................. 131
10 – Erro e suplência em James Joyce no nó borromeano ....................................................... 131
11 – Duas modalidades da clínica diferencial .......................................................................... 132
12 – Nó borromeano de três elementos com duas retas e um círculo ...................................... 143
13 – Nó trivial (matemático) e nó do senso comum ................................................................. 148
14 – Apresentações distintas do mesmo trivial ................................................................... 150
15 Apresentações semelhantes de dois nós distintos .......................................................... 150
16 Desfazimento da torção de um falso de trevo ....................................................... 150
17 Equivalência entre dois nós de trevo com apresentações distintas ............................... 151
18 Os três movimentos dos nós............................................................................................ 152
19 Apresentação da cadeia borromeana com seis e com oito pontos de cruz ..................... 153
20 Exemplo de desanodamento do 5, subíndice 2, no ponto de cruz 4 ........ 154
21 Exemplo de desanodamento do 5, subíndice 2, com erro no ponto de cruz 2 ........ 155
22 Cadeia simples e Cadeia de Hopf ............................................................................... 156
23 Apresentação parcial da tabela dos nós ........................................................................... 157
24 – Esquema R ........................................................................................................................ 161
25 – Plano da perspectiva clássica ............................................................................................ 162
26 – Plano de projeção da perspectiva ..................................................................................... 162
27 Planos projetivos inseridos na esfera ............................................................................... 162
28 – Esquema I ......................................................................................................................... 164
29 Deslizamento do ponto a-a’ do Esquema I ...................................................................... 166
30 – Esfera armilar, esfera armilar com erro, esfera armilar borromeana ................................ 174
31 – Cadeia borromeana e nó de trevo ..................................................................................... 175
32 – Erro e suplência em James Joyce no nó de trevo ............................................................. 176
33 – Suplência borromeana pelo Édipo e suplência joyceana pelo ego ................................... 179
34 – Nó borromeano a quatro, com a costura do sinthoma com o real .....................................185
35 – Erro do nó do Profeta Gentileza ....................................................................................... 217
36 – Suplência do nó do Profeta Gentileza .............................................................................. 218
37 – Erro do nó de A.? .............................................................................................................. 239
38 – Foto 1 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG) ............................... 259
39 – Foto 2 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG) ............................... 260
40 – Fotos e imagens referentes ao Profeta Gentileza............................................................... 267
41 – Pintura 01 de A. ................................................................................................................ 268
42 – Pintura 02 de A. ................................................................................................................ 269
viii
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................................... 12
Capítulo 1 Estabilizações psicóticas: uma visitação preliminar ao tema ................................. 23
1.1 Introdução às psicoses e às estabilizações: Freud e Lacan ............................................. 24
1.2 A abordagem freudiana da psicose ................................................................................. 26
1.2.1 A defesa psicótica e o trabalho de reconstrução do mundo ..................................... 26
1.2.2 A topologia da negativa na psicose: Die Verwerfung ........................................... 30
1.2.3 Psicose e realidade: para além do dentro-fora ....................................................... 38
1.3 A abordagem lacaniana das soluções nas psicoses ........................................................... 39
1.3.1 O desencadeamento psicótico e suas conseqüências ............................................. 40
1.3.2 As estabilizações psicóticas no ensino de Lacan ................................................... 47
Capítulo 2 Quando a estrutura da linguagem aponta seu mais-além .......................................... 64
2.1 Discussão dos conceitos preliminares à compreensão da revisão lacaniana .................... 65
2.1.1 Percursos e percalços teórico-clínicos .................................................................. 65
2.1.2 As condições de possibilidade dos novos conceitos lacanianos ........................... 68
2.2 Lacan, a linguagem e a psicose ......................................................................................... 72
2.2.1 Linguagem e lalíngua ........................................................................................... 75
2.2.2 Letra e escrita ..................................................................................................... 79
2.2.3 Escrita e psicose ................................................................................................. 83
2.3 Gozo: da satisfação à topologia ...................................................................................... 92
2.3.1 Os seis paradigmas do gozo em Lacan ...................................................... 93
2.3.2 Um sétimo paradigma? O gozo topológico ou ex-sistente ........................ 97
2.4 Suplência e pai .............................................................................................................. 111
2.4.1 O pai e die Verwerfung .................................................................................... 113
2.4.2 A carência do pai de Hans e a ‘suplência’ metafórica na fobia ....................... 119
2.4.3 A demissão paterna de Joyce e a suplência borromeana na psicose .................. 121
2.5 Enfim ............................................................................................................................. 126
Capítulo 3 De nós e lapsos também se escreve um sujeito: a topologia dos nós e seus
desdobramentos clínicos ........................................................................................................... 136
3.1 Lacan e o borromeano .............................................................................................. 137
3.1.1 A disposição clínica de um objeto matemático ................................................ 143
3.1.2 Topologia dos nós: noções matemáticas fundamentais ................................... 147
ix
3.2 Topologia e psicose ................................................................................................ 159
3.2.1 Uma possível topologia lacaniana das psicoses na década de 50 ............. 159
3.2.2 Entre o plano hiperbólico e a topologia borromeana: o objeto a nos anos 60 .. 167
3.2.3 Sobre os nós, o real e a psicose no Lacan da década de 70 ......................... 169
3.2.4 Algumas conseqüências clínicas da topologia dos nós ....................... 181
Capítulo 4 Aplicação da topologia borromeana à leitura das estabilizações na clínica das
psicoses ..................................................................................................................................... 187
4.1 Discussão metodológica .................................................................................................. 188
4.1.1 O método de pesquisa orientado pela psicanálise ................................................ 188
4.1.2 A psicanálise e os procedimentos metodológicos ................................................ 191
4.2 Uma primeira solução singular: a escrita do Profeta Gentileza ....................................... 198
4.2.1 História de vida e história clínica ........................................................................ 198
4.2.2 Um estudo psicanalítico do caso ......................................................................... 208
4.2.3 Uma leitura borromeana do caso ......................................................................... 216
4.3 O segundo caso: A., de flagelo de Deus à “sedi di shacina”, e daí em diante ................ 218
4.3.1 História de vida e história clínica ........................................................................ 218
4.3.2 Um estudo psicanalítico do caso ......................................................................... 222
4.3.3 Uma leitura borromeana do caso ......................................................................... 239
4.4 Os dois casos, nossa hipótese e sua escrita ...................................................................... 240
Conclusão ................................................................................................................................. 243
Referências Bibliográficas ........................................................................................................ 247
Anexos ...................................................................................................................................... 258
x
“Quando se escreve podemos muito bem tocar o real,
mas não o verdadeiro.” (Jacques Lacan, 1975)
xi
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
INTRODUÇÃO
12
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
“Não pense que pessoa tem tanta força assim a ponto
de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma.
Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso -
nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso
edifício inteiro.” (Clarice Lispector, 1977)
“A morte, o destino, tudo, estavam fora do lugar. Eu
vivo para consertar.” (Geraldo Vandré/ Théo de
Barros)
A loucura sempre provocou inquietação, curiosidade, temor. De alguma forma, essa
alteridade que se revela como o outro de nós mesmos, instiga em nós aquilo que
desconhecemos (FOUCAULT, 1995). E muitas vezes nos coloca a trabalho. Se o
analista não deve ceder a essa ‘sedução’ subjetiva na clínica, também não deve recuar
diante da estranheza por ela provocada.
Foi no ato de coragem que caracterizou esse enfrentamento que J. Lacan, apoiado em
premissas freudianas, inaugurou a clínica da psicose com decisão no meio psicanalítico.
Psiquiatra de formação, encontrou na psicose um guia para suas questões clínicas
provocando um reviramento no interior de sua própria teoria a propósito dela. S. Freud
havia surpreendido o mundo ocidental, inicialmente europeu, com a teoria da
sexualidade infantil e marcou narcisicamente o homem moderno ao dizer a ele que não
era senhor em sua própria morada, dada a existência da determinação inconsciente
(FREUD, 1917/1976). Ele tomava a neurose como normalidade, rompendo com a longa
tradição que discutia o normal e o patológico em termos de média, anomalia ou desvio.
Lacan, contemporâneo do rompimento com a modernidade, alimentava-se das teorias
que marcavam essa cisão, cada vez mais explicitada. Embebedou-se do estruturalismo,
dialogou com a lingüística e com a antropologia que lhe deram origem, com a filosofia
e com as matemáticas, enfim, aplicou à leitura e à clínica psicanalíticas elementos
vizinhos para nutri-la de maior precisão e rigor. Não morreu, porém, sem enxergar as
aporias de sua própria teorização.
Fazendo a crítica de si mesmo, Lacan vai cada vez mais se aproximar de uma redução
minimal que lhe permitia transmitir o mais integralmente possível o acontecimento
freudiano da descoberta do inconsciente (LACAN, 1972-73/1982). Nesse ponto, em
torno da década de 70, encetou a discussão da psicose com a proposta do nó borromeu e
a tomou como uma referência de normalidade. A qualquer sujeito é impossível tudo
13
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
representar, tudo dizer. Esse elemento, foracluído
1
para todos, exige, de cada um, uma
solução única para atar os três registros, Real, Simbólico e Imaginário conformando sua
realidade para se escrever como singularidade radical.
Nesse sentido, o que antes aparecia, seja em Freud, seja em Lacan, como defeito, como
déficit em relação ao que podia ser tomado como normalidade, qual seja, a referência a
um ordenador simbólico da subjetividade (o Nome-do-Pai), que garantia a entrada do
sujeito na linguagem e sua subordinação à Lei (LACAN, 1955-56/1992), vai aparecer,
então, como invenção. Nem mesmo o Nome-do-Pai garante a possibilidade de tudo
significar. Ao contrário, já em sua proposição ele é índice da falta do Outro e do destino
que a ela cada sujeito confere. Ele resguarda ao sujeito uma via de acesso à linguagem,
uma solução ao embaraço colocado pelo desejo caprichoso do agente materno. Mas nem
ele próprio, porém, tem a resposta para o seu enigma. O encontro com o Outro é sempre
faltoso e, para isso, não remédio. Ao contrário, é desse encontro que nasce a
possibilidade de construção de uma resposta pelo sujeito.
Como essa resposta se articula? Quais as relações que o sujeito pode estabelecer com o
campo do Outro? O que a singulariza? Haveria alguma diferença entre a construção de
solução na psicose e na neurose? Debatendo-se com essas questões, Lacan abriu um
novo campo de investigação ao trazer a topologia dos nós para o interior da teoria
psicanalítica. Ainda que essa teoria no seu campo de origem (o matemático) estivesse
em sua pré-história naquele período, ao equivaler a amarração real do borromeu ao
sujeito do inconsciente, Lacan apresentou aos psicanalistas do futuro uma nova e
profícua ferramenta teórico-clínica, ou uma realidade operatória, como ele mesmo a
designa.
Na verdade, toda a discussão topológica de cortes, suturas, emendas e grampos, era
proposta por Lacan como o real da clínica. Diferentemente do uso que fez da topologia
da superfície com a Banda de Moebius, a garrafa de Klein ou com o cross-cap, com os
nós, especialmente com os nós borromeanos, Lacan afirmava mostrar o real. A
topologia borromeana não aparece como modelo, como explicação ou como analogia,
não aparece nem mesmo como suporte para se pensar a clínica. “Minha topologia não é
de uma substância que situe além do real aquilo que motiva uma prática. Não é teoria.”
(LACAN, 1972/2003, p. 479).
1
É possível, portanto, pensarmos em uma teoria restringida do sintoma, pertinente à neurose, e uma teoria
generalizada, que vale tanto para a neurose quanto para a psicose.
14
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
E, não por acaso, é através de um caso de psicose que ele pensa clinicamente esse uso
no Séminaire XXIII, Le sinthome, após desenvolver suas bases, no Séminaire XXII, RSI.
O que se destaca nesse estudo e que nos interessa é a recorrência à psicose para se
pensar a clínica psicanalítica. O insondável da loucura, ou o foracluído da psicose,
ganha novo nome à medida que a idéia de Nome-do-Pai vai perdendo seu vigor ou sua
potência simbólica ordenadora para ceder lugar à pluralidade de soluções que recorrem
a diferentes artifícios. Na época em que a mulher é sintoma do homem, quando este,
para se dizer homem, faz dela objeto causa de seu desejo; na época em que a relação
sexual o existe, quando se aponta para o irredutível de um processo analítico; na
época em que lalíngua funda uma outra ordem caótica anterior à Linguagem articulada
simbolicamente pelo significante; na época em que a letra, corolário do significante,
escreve o veio pelo qual escorre o sujeito; a psicose funciona antes como paradigma que
como déficit. Se, por um lado, Lacan não abandona a idéia de estrutura clínica
(LACAN, 1966/2003), por outro ele retoma o axioma mais fundamental da clínica
psicanalítica
2
e pergunta pelo que de mais singular em cada sujeito que recebe, na
medida em que a experiência com um sujeito de um mesmo tipo clínico não se
transmite sequer à experiência com outro de mesmo tipo.
Essa mesma experiência clínica, quando acontece com a psicose, revela a radicalidade
do que não se generaliza a partir do que se tornou generalizável para todos. Ilógico?
Absolutamente. A partir da constatação de que o Nome-do-Pai é um dentre os diferentes
modos de amarração possíveis para um sujeito, para todos os sujeitos se colocará a
exigência de buscar uma solução, ainda que cada um tecê-la com seus recursos e
com a singularidade que sua estrutura dispõe. Em outras palavras, é universal a
foraclusão (MILLER, 1998a) e singular sua solução. E é a escrita do nó, escrita com a
letra a, do objeto causa de desejo, que amarra, no real da clínica, essa solução.
Na experiência da clínica com a psicose que realizamos nos serviços substitutivos ao
hospital psiquiátrico, verificamos diferentes estratégias de estabilização empreendidas
pelos sujeitos que ali se tratavam. Especialmente quanto à criação artística ou artesanal,
deparamo-nos com diferentes usos dela estabelecidos pelos psicóticos. Fosse articulado
ao delírio, fomentando-o, fosse como elemento que fazia barra à atividade alucinatória,
fosse como estratégia de pacificação, talvez mesmo como suplência, encontramos, na
2
Segundo este axioma, a cada novo caso, uma nova psicanálise se inaugura e devemos tomar cada caso
que recebemos como se fosse o primeiro, como inaugural.
15
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
clínica da Saúde Mental, uma interrogação sobre a articulação criação-psicose no que
tange à estabilização.
O encontro entre a discussão empreendida por Lacan na década de 70 e a clínica
cotidiana da Saúde Mental exigia uma revisão da clínica com as psicoses, que não podia
mais se sustentar na aposta da metáfora delirante. A partir da elaboração de conceitos
como lalíngua e letra e da discussão do paradigmático caso de Joyce, a escrita do
como resposta exigia-nos avançar. Se Joyce se escreveu em sua obra, qual o estatuto da
escrita aí? Uma suplência sempre recorrerá a alguma forma de escrita? Escrever, não
está absolutamente estabelecido que com a psicanálise chegaremos a isso. Isso supõe
uma investigação propriamente falando do que isso significa, escrever (LACAN,
1975-76/2005, p. 146).
Foi a partir dessa constatação que iniciamos esta investigação articulando a escrita com
a criação. Em Joyce, é patente que a obra se escreve e nela é forjado um ego para o
autor. Mas essa articulação é sempre necessária? Ou foi a contingência do estilo
joyceano que o conduziu a criar esse artifício? Outros sujeitos poderiam prescindir da
escrita ao se valerem da obra, da criação, para operar efeitos de estabilização?
encontramo-nos com um segundo convite lacaniano, sob a forma de uma interrogação
feita sobre a arte, para seu seminário sobre Joyce: em que o artifício pode enfocar
expressamente o que se apresenta primeiro como sintoma. Em que a arte, o artesanato,
pode burlar, se podemos dizer, o que se impõe do sintoma? A saber, a verdade”
(LACAN, 1975-76/2005, p. 22).
Tomamos criação artística aqui no sentido mais genérico de produção artesanal
3
, que
implica na intervenção do sujeito sobre uma matéria bruta, cujo resultado, esteticamente
tomado como arte ou não, aparece, numa perspectiva, sob transformação da matéria
pelo sujeito e, noutra perspectiva, como transformação do sujeito pela matéria.
Definitivamente, em cada experiência alguns são mais afetados que outros, tanto
matéria quanto sujeito, podendo-se encontrar obras belíssimas e, por vezes, sujeitos que
encontram nesse processo uma via de estabilização. Os dois casos são raros, entretanto.
No cotidiano com a clínica da psicose nesses serviços complexos a regra são os
obstáculos encontrados, o embaraço, a surpresa, as dificuldades institucionais, as
3
Apoiamo-nos no argumento cartesiano, utilizado por Lacan (1974-75), de que se deve começar a prática
das artes mais complexas pelas mais simples, como o trabalho de trançar das mulheres artesãs ou dos
artesãos que fazem tapetes. Lacan evoca Descartes (1701/1953) exatamente ao introduzir os nós e as
tranças que lhes correspondem.
16
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
dificuldades de fazer um uso do espaço comum, público, as dificuldades de trato com o
corpo, as dificuldades com a convivência familiar, enfim, as dificuldades de toda
ordem.
Diante delas, nos perguntávamos, originalmente, como a criação artística poderia ser
útil no tratamento do psicótico, nos ensaios de estabilização que testemunhávamos.
Dessa maneira, colocamos como objetivo principal, quando da proposição do projeto de
pesquisa para esta tese, o de investigar a possibilidade de a obra na psicose apresentar-
se como solução nessa estrutura clínica a partir de um trabalho sobre o campo do real
que produza uma condensação de gozo realizada a partir da criação artística sobre
uma superfície material.
A obra, a entendíamos apenas no sentido do produto de uma criação artística, no sentido
genérico acima explicitado. E solução, à época, implicava, para nossos estudos, o
conjunto das diferentes possibilidades e estratégias de estabilização. Tínhamos em
mente o paradigma joyceano que exigiu a escrita como articuladora de sua solução. E
nos perguntávamos, então, se uma solução poderia prescindir dessa escrita. Para isso,
um dos desdobramentos necessários à elaboração da pesquisa e da escrita desta tese foi
o da discussão do conceito de letra em Lacan e suas conseqüências sobre a escrita
colocada em xeque por Joyce. Por outro lado, já tínhamos assentada a noção de objeto a
que, a nosso ver, seria o elemento possivelmente extraído no real da obra como
responsável pela condensação ou localização de um gozo fora do corpo do psicótico.
Restava verificar teórica e clinicamente, portanto, essa hipótese que extraímos do
trabalho com os usuários das oficinas em Saúde Mental.
Nessas esculturas
4
coloco os monstros da minha infância. São as fotografias que
ficaram congeladas na minha mente (relato de usuário). O., cujo corpo encontrava
amparo na mãe e na filha para se sustentar, possuía com a criação artística uma missão,
a de se oferecer como objeto para a pesquisa dos estudiosos dos problemas da mente.
Continuava objeto, portanto, da escrita científica. Sua militância política e seu ânimo
cederam diante do afastamento da filha, do adoecimento da mãe e da ausência das
oficinas de cerâmica (desativadas por um intervalo de tempo por falta de verba
municipal...). Era uma produção submetida a um esteio mais forte, o do corpo
4
Cf. no Anexo 1 fotos de algumas das trezentas obras que esse sujeito fez para mostrar aos estudiosos da
mente humana seus problemas através de seu testemunho. Como se verá, cada obra tem ao menos três
faces, o que faz de cem, trezentas peças.
17
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
sustentado entre duas mulheres, como suas obras testemunham. Suas esculturas
representam sempre três ou mais figuras que se transformam umas nas outras,
mescladas, em continuidade, sem ruptura. O horror aparece nos furos e buracos que
atravessam a argila e revelam uma atividade delirante que caminha silenciosa. Ensaiam
furar e extrair no real um quantum de gozo que lhe permita viver com menos
sofrimento. O que ele escreve em suas obras? Ou o que não escreve? De que forma suas
esculturas podem se articular ao trabalho de estabilização por ele ensaiado? Antes com
uma postura altiva e entusiasmada, O. hoje se apresenta taciturno, tímido, retraído.
Em nossa prática nas oficinas, verificamos a pluralidade de usos que o sujeito podia
fazer da criação, e que O., em sua peculiaridade, o atestava. Outros sujeitos que faziam
uso da criação artística não se estabilizavam, não se tornavam “artistas” ou nem mesmo
eram tocados por essa produção. Outras vezes, transformavam-se num espaço rico para
enfrentamento da psicose. Em nossa dissertação de mestrado, esta dimensão foi
ressaltada. De alguma maneira, as oficinas voltadas às atividades de criação artística
e/ou artesanal evidenciavam ser um espaço que favorecia o trabalho de estabilização
através dessa criação.
“Então a oficina também faz parte desse suporte, mas também por essa literalidade de você
... no fim tem uma coisa que foi feita. E que vão coisas a mais elaboradas, como eu
acho que isso é [aponta trabalhos de argila], pelo menos alguns, até coisas mais simples
como a oficina de bijouterias, né? E então eu acho que isso, assim, pra alguns pacientes tem
um efeito muito interessante. Que esse efeito interessante tem a ver com essa literalidade
dessa produção também não duvido, que ele tem a literalidade, no sentido de literalidade
assim, é uma coisa […].o é igual você fazer ... sentar pra fazer uma discussão de grupo
com eles, entendeu. O efeito não é o mesmo. (Relato de oficineiro)” (GUERRA, 2000, p.
221-222).
“A gente pensou que teria uma materialidade diferente mesmo a palavra escrita, uma
densidade simbólica. A gente chamou assim de uma certa densidade simbólica
diferenciada (Relato de oficineiro)” (GUERRA, 2000, p. 221).
“O que se disponibiliza basicamente para ele [paciente] é… uma… vamos dizer assim, uma
substancialidade diferente.[…] Faz sentido principalmente pro psicótico essa oferta dessa
possibilidade de uma substância de trabalho […] Porque a palavra escrita, ela tem uma
substância diferente da palavra falada e… Eu acho que nem faz muita diferença da palavra
escrita e com aqueles tipos de objeto que eles constroem muitas vezes […] Mas eles se
incluem num outro tipo de registro pra esse sujeito. […] Eu acredito que isso possa ser um
recurso é… precioso de trabalho com a psicose, esses recursos materiais assim, né?”
(Relato de oficineiro) (GUERRA, 2000, p. 221).
Literalidade, substancialidade, materialidade... Nas conclusões das pesquisas do
mestrado (GUERRA, 2000), consideramos que a materialidade do produto provocava,
18
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
em si mesma, algum tipo de efeito para o psicótico. Destacou-se em nossos achados o
trabalho do psicótico sobre uma materialidade concreta como servindo de suporte para
uma escrita outra também localizadora de gozo
5
, e não apenas produtora de
significações. O produto sendo Real e, ao mesmo tempo, recebendo um contorno
simbólico pela Linguagem e uma inscrição social (Imaginária) pela Cultura, se
inscreveria, de um lado, incluído no campo das trocas sócio-simbólicas, circulando
como um produto socialmente reconhecido. E, por outro lado, trabalhando o ponto de
real que o simbólico pode tocar, o produto operaria sobre a subjetividade do
participante, quando uma contingência permitisse essa operação. Nesse caso, ele
poderia funcionar como elemento na estabilização psicótica.
Ora, a idéia de materialidade e de substância em Lacan nasce de uma inspiração
cartesiana acerca do dualismo entre res cogitans e res extensa, entre substância e
matéria
6
, do qual Lacan faz um uso clínico. Ele associa a materialidade ao significante,
enquanto a substância aparece sempre ao lado do gozo. Se o significante é matéria que
faz existir o inconsciente estruturado como linguagem, o gozo, a substância gozosa, por
seu turno, desvela o que determina o sujeito para além da linguagem, sua forma de
satisfação e de dor, o ponto a que sua repetição o conduz, ou o impossível de dizer,
conforme se busque as referências lacanianas ao gozo no início de sua obra (anos 50),
ou no seu final (anos 70).
Assim, o encontro com a abordagem do final do ensino lacaniano favoreceu a
investigação da criação artística como possibilidade de solução na psicose, trazendo
para primeiro plano a dimensão da escrita e da letra e, com isso, permitindo um
refinamento em sua argumentação. Essas noções, bem como a mostração do real pelo
e sua aplicação ao estudo de um caso (James Joyce), tornaram possível detalhar
nossa hipótese e discuti-la com mais precisão. Se, ao iniciarmos nossa investigação,
5
A título de introdução podemos dizer que o gozo implica, diferentemente do prazer, nas diferentes
relações com a satisfação que um sujeito desejante e falante portanto, atravessado pela incompletude
que a linguagem instala – pode esperar e experimentar no uso de um objeto desejado (CHEMAMA, 1995,
p. 90).
6
R. Descartes afirma a existência de duas substâncias separadas, a alma, pensamento ativo e sem
extensão, e o corpo, extensão não pensante e passiva. Para ele, a mente é uma substância ou entidade,
caracterizada fundamentalmente pelo fato de ter consciência, de ser uma coisa que pensa, que percebe,
que sente (res cogitans). A realidade externa é material, e a matéria tem como característica básica o fato
de ser extensa (res extensa). Consciência e extensão são coisas claramente distintas, podendo cada uma
delas ser clara e distintamente concebida sem referência à outra. Os vários estados de consciência
(pensamento, sensação, sentimento) são totalmente distintos dos vários modos de determinação da
matéria. Por isso, nenhum estado de consciência pode ser essencialmente dependente de qualquer coisa
física. A mente, e tudo que ela possui, pode existir sem qualquer substância material.
19
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
esperávamos encontrar uma espécie de “categorização” do uso da criação artística no
trabalho de estabilização psicótica, foi o encontro com o final da obra lacaniana que
operou como um acontecimento, refazendo o destino da investigação ao tocar seu
problema central.
A problemática da estabilização psicótica apoiada na criação artística, ainda que
marcada pelo irredutível à generalização nos casos que estudamos, pôde ganhar forma e
verificar que: mais do que a criação em si mesma, é sua escrita como letra que permite
que uma suplência aconteça. Aqui não falamos mais de estabilização genericamente,
mas de suplência, que implica num passo a mais, como veremos ao longo deste
trabalho. Também falamos que não é a criação em si mesma que forja a invenção de
uma solução, mas claramente o que dela pode se fazer letra. Articulando a idéia
lacaniana de uma “escrita com o objeto a em Joyce à noção de letra, pudemos avançar
até o ponto em que localizamos a raiz do que abre a possibilidade de uma suplência
estabilizadora.
Esse é o ponto em torno do qual toda a argumentação desta investigação se articulou.
Seja pela via dos novos elementos conceituais que aparecem em Lacan na década de 70,
seja pela via da discussão da topologia borromeana, seja pela mostração dos estudos
clínicos, essas três vias nos conduziram, cada qual à sua maneira, ao ponto de
convergência deste trabalho. É, sim, do que o sujeito escreve que podemos falar em
suplência. Portanto, a rigor, após os anos de dedicação à pesquisa deste tema, tudo
indica que nossa hipótese não se verifica clinicamente. Supúnhamos que a escrita não
era necessária ao trabalho de estabilização, sendo-lhe contingente. Ao longo da
discussão teórica e dos estudos clínicos, pudemos ver que, quando a estabilização
acontece, e mais especificamente quando ela faz suplência, sempre a escrita do
em jogo. Como se vê, restava-nos saber qual o estatuto dessa escrita para pensarmos sua
função no território das estabilizações psicóticas.
Para chegarmos a este ponto da discussão, foi preciso empreender uma revisão acerca
da noção de estabilização (explicitada como tal ou não) em Freud e em Lacan. Assim,
no primeiro capítulo, de Freud, extraímos a noção de Verwerfung, destacando suas
conseqüências quanto ao desencadeamento, à reconstrução possível do mundo e a
topologia da realidade. Dessa maneira, escavamos em Freud as condições conceituais de
possibilidade da discussão das suplências em Lacan, como forma de pensar as
20
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
estabilizações nas psicoses. Com ele, retomamos a idéia da Verwerfung como
foraclusão de um significante estrutural até a liquefação dessa perspectiva pela noção de
escrita no estudo de Joyce. Localizamos os três paradigmas lacanianos quanto às
soluções na psicose, a saber, o ato, a metáfora delirante e a obra, a fim de extrair as
conseqüências desse percurso da obra lacaniana para a discussão das estabilizações na
psicose.
No segundo capítulo, centramo-nos na discussão dos aportes teóricos trazidos com o
final do ensino lacaniano quanto à linguagem e à estrutura, a fim de traçar o percurso
que o conduziu a pensar as soluções subjetivas a partir da topologia borromeana dos
nós. Para isso, estruturamos uma argumentação que seguiu três eixos: a linguagem (letra
e lalíngua), o gozo e o lugar do pai (de signficante à suplência). Com isso, pudemos
trilhar a lógica que provocou em Lacan, no encontro com o borromeu, a proposição
de uma nova consistência para pensar a localização do sujeito na estrutura. Dessa
maneira, a idéia de um suplemento aparece deslocalizada da psicose, mas pertinente a
qualquer estrutura clínica a partir do encontro com o real da linguagem.
Sobre este ponto, então, Lacan passa a desenvolver toda uma teoria clínica sustentada
na lógica borromeana. Acompanhamos essa discussão, no terceiro capítulo, dissecando
no campo da Matemática os elementos essenciais dos quais Lacan se apropriou em sua
construção. De posse dessas informações essenciais, retomamos as topologias possíveis
da psicose que podemos encontrar em Lacan, de forma a pensar a suplência em sua
relação com a clínica e a estabilização psicóticas.
Enfim, demonstramos e mostramos no último capítulo, através do estudo de dois casos,
nossa hipótese reformulada de que a letra é o que faz escrita do nó, e, portanto,
suplência quando ela acontece na psicose. Após uma explicação metodológica do
percurso da investigação que guiou os casos, evidenciamos, no primeiro deles, uma
situação em que o sujeito, na psicose, escreveu-se como suplência através de sua
criação. E, no segundo caso, deparamos-nos com um sujeito em que, apesar de sua farta
produção artística e artesanal, não uma escrita do nó, ficando, conseqüentemente, o
sujeito numa zona de infinitização da criação que não se faz letra que fixa o gozo.
Assim, convidamos nosso leitor a nos seguir na aventura clínico-conceitual deste
trabalho, no qual os caminhos conhecidos se revestem de particularidades a cada virada,
como num labirinto em que os sinais reencontrados vão se conformando em elementos
21
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
diferenciais do percurso, essenciais ao deciframento que conduz à sua saída, cifrando-a,
enfim. Acompanhemo-los.
22
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
CAPÍTULO 1
ESTABILIZAÇÕES PSICÓTICAS:
Uma Visitação Preliminar ao Tema
23
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
1.1 Introdução às Psicoses e às Estabilizações: Freud e Lacan
Apesar de, para Freud, a clínica com a psicose ter sido entendida como contra-indicada,
ele mesmo abre a possibilidade, caso se modifique o método psicanalítico (FREUD,
1940[1938]/1976), de que seu tratamento se torne possível
7
. A dificuldade encontrada
por Freud não se situava exatamente do lado do psicótico, mas do lado da transferência.
Sabemos que ele realizou extenso estudo sobre a psicose em 1911 a partir dos escritos
autobiográficos do Presidente Schreber do qual extraiu os principais aportes teóricos
sobre o assunto, tendo formulado o aforismo do delírio como a tentativa de cura, ou
de solução, na psicose. Ou seja, um movimento do psicótico em direção à
estabilização. Entretanto, a especificidade da transferência nessas “neuroses narcísicas”
(como ele tomava a psicose em oposição às neuroses transferenciais: histeria e neurose
obsessiva) inviabilizaria seu tratamento analítico.
“... aqui as catexias objetais são abandonadas, restabelecendo-se uma primitiva condição de
narcisismo de ausência de objeto. A incapacidade de transferência desses pacientes (até
onde o processo patológico se estende), sua conseqüente inacessibilidade aos esforços
terapêuticos, seu repúdio característico ao mundo externo, o surgimento de sinais de uma
hipercatexia do seu próprio ego, o resultado final de completa apatia todas essas
características clínicas parecem concordar plenamente com a suposição de que suas
catexias objetais foram abandonadas” (FREUD, 1915a/1976, p. 224-225).
Sabemos que essa indicação freudianao escapará a Lacan, que se dedicará a extrair a
particularidade da transferência na psicose pela via da erotomania. Ao mesmo tempo em
que avança teoricamente, não cede clinicamente da possibilidade de seu tratamento.
Freud, por seu turno, se dedicou a pensar a psicose (paranóia) enquanto uma das defesas
à castração, ao lado da histeria e da neurose obsessiva, em seus primeiros escritos e
rascunhos, como no “Rascunho H” (1895/1976) ou “Rascunho K” (1896a/1976), em
“As neuropsicoses de defesa (1894/1976) e “Observações adicionais sobre as
neuropsicoses de defesa” (1896c/1976). Não trabalhou nesse período as soluções
encontradas na psicose, mas antes seu mecanismo estruturante e fundador.
Somente nos estudos clínicos do Presidente Schreber é que Freud traçou a diferença
entre a enfermidade e as elaborações mediante as quais o sujeito responde aos
fenômenos dos quais padece. Após 1911, com o texto “Sobre o narcisismo: uma
7
Assim, descobrimos que temos de renunciar à idéia de experimentar nosso plano de cura com os
psicóticos renunciar a ele talvez para sempre ou talvez apenas por enquanto, até que tenhamos
encontrado um outro plano que se lhes adapte melhor.” (FREUD, 1940[1938]), p. 200)
24
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
introdução” (1914a/1976), avança na formulação do mecanismo de defesa na psicose,
permitindo a posteriori uma releitura do caso Schreber. Segue-se, então, o período de
produção sobre a metapsicologia, no qual encontramos referências teóricas importantes
sobre a representação da coisa e da palavra na esquizofrenia e sobre o recalque primevo,
além de considerações relevantes sobre o supereu e a melancolia. A partir de então, os
escritos nos quais mais se dedica ao tema das psicoses são os textos sobre “Neurose e
psicose” (1924[1923]/1976) e “A perda da realidade na neurose e na psicose”
(1924/1976), apontando o caminho de reconstrução da realidade nas duas estruturas
clínicas.
Foi somente com Lacan, psiquiatra de formação, que a clínica com a psicose avançou,
tendo ele vislumbrado e teorizado pelo menos três possibilidades diferentes de saída na
psicose: a passagem ao ato, a metáfora delirante e a escrita (obra). Apesar de essas
soluções aparecerem em experiências singulares, delas é possível extrair princípios
universais que podem facilitar, caso a caso, a leitura e a condução dessas soluções
encontradas na prática clínica e institucional com a psicose. Também sabemos que
muitas vezes esses caminhos traçados pelos psicóticos em suas saídas prescindem da
presença de um analista ou de um dispositivo institucional de cuidados, além de
envolverem diferentes mecanismos e trabalho psíquicos. Podem, entretanto, ser
elencados a título de sistematização teórica a partir da obra lacaniana.
Lacan dedicou-se ao tema em três momentos principais, a saber, em sua tese de
doutoramento em 1932; no Seminário, As psicoses, de 1955-1956, e no escrito daí
decorrente “De uma questão preliminar a todo tratamento possível na psicose” (1957-
58/1998); e, finalmente, no seminário sobre Joyce, le sinthome, de 1975-1976.
Na verdade, essa divisão é essencialmente didática na medida em que, tal qual Freud, o
avanço da teorização de Lacan se desdobra ao longo de seu ensino a partir de
circunvoluções em torno dos conceitos freudianos fundamentais da psicanálise, os quais
ele enriquece. Ainda que didática, entretanto, essa divisão nos interessa, pois permite
sistematizar as três soluções propostas por Lacan para as psicoses, essenciais ao nosso
estudo.
Especificamente nessa última discussão, Lacan aponta a escrita como aquilo que
permitiu a Joyce sustentar com seu ego “uma função inteiramente outra que sua função
simples(LACAN, 1975-76/2005, p. 147). A função, através de sua escritura, de situar-
25
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
se ali onde o Imaginário não fazia laço com o Real e o Simbólico, atados estes um ao
outro. Na construção da solução joyceana, Lacan retoma a função do Pai, enquanto
Ideal (amor) e enquanto Lei, destacando que em Joyce ela não opera, sendo-lhe
necessário construir uma nova versão do Pai como sinthoma com sua escrita. É através
desta que Joyce metaforiza sua relação com o corpo e sua imagem, formulando uma
inaugural maneira de se enodar à realidade. Por este artifício de escrita se restitui, eu
diria, o nó borromeano” (LACAN, 1975-76/2005, p. 152).
Assim, diante das possibilidades apontadas no texto freudiano e no lacaniano,
buscaremos precisar as diferentes estratégias de estabilização psicóticas estudadas por
esses autores neste capítulo. Percorreremos inicialmente as primeiras elaborações
freudianas sobre a psicose como forma de defesa estrutural a um conflito psíquico
insuportável. Vamos fazê-lo de forma a discutir posteriormente a construção delirante
de uma ficção que conduz o sujeito a um ponto de estabilização como a solução que
Freud aprende com o Presidente Schreber. Em seguida, nos deteremos no texto de
Lacan e seus comentadores acerca das soluções psicóticas apresentadas nos três tempos
de seu ensino.
Construiremos dessa forma o percurso que alimenta a discussão mais específica sobre
escrita, suplência e topologia borromeana no segundo capítulo, o que permitirá delimitar
com maior precisão teórica o que da escrita joyceana reflete no trabalho de estabilização
enquanto criação.
1.2 A Abordagem Freudiana da Psicose
1.2.1 A defesa psicótica e o trabalho de reconstrução do mundo
Sabemos que Freud não delimitou, com a clareza estrutural de Lacan, os modos de
defesa do aparelho psíquico (ou as estratégias do sujeito, na terminologia lacaniana) nos
termos que hoje os utilizamos. Neurose, psicose e perversão foram finamente sendo
isoladas como formas particulares de resposta do sujeito diante do impasse colocado
pela castração, entretanto, desde Freud, encontramos o traçado fundamental das
fissuras que as determinam.
em seu “Rascunho H” (1895/1976, p. 291), discutindo a paranóia, Freud a toma
como um modo patológico de defesa”, apresentando publicamente a proposta da
psicose como resultante de um mecanismo de defesa inconsciente no texto “As
26
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
neuropsicoses de defesa (1894/1976). Nele, essa hipótese central calcada na defesa
ganha dois contornos. De um lado, diante de uma representação incompatível com o
aparelho psíquico, este responde com uma defesa que opera retirando dessa
representação seu afeto, tornando-a fraca e, com isso, destituindo-a da catexia que a
tornava ameaçadora. Essa representação descatexizada é recalcada no inconsciente,
seguindo seu afeto correspondente caminhos diversos, conforme a defesa ocorra na
histeria, na neurose obsessiva ou na fobia. De outro lado, a representação e seu afeto
podem ser rejeitados conjuntamente, não restando um traço inscrito da experiência
hipercatexizada. Este é o caso das psicoses. Assim, apesar de ainda manter atreladas
neurose e psicose como se ambas resultassem do “recalque”
8
, Freud introduz uma
diferença fundamental na operação estrutural da qual resulta a psicose.
Observe:
“Em ambos os casos até aqui considerados [neurose histérica e neurose obsessiva], a defesa
contra a representação incompatível foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação
em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma
espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação
incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe
tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa
psicose [...] (FREUD, 1894/1976, p. 63-64 – grifos nossos).
Aqui Freud anuncia seu trabalho sobre a diferença entre neurose e psicose da década
de 20, localizando não na perda da realidade, mas no caminho para restaurá-la a
diferença entre as duas estruturas clínicas. A rejeição atinge a própria situação real, que
nunca precisou se tornar consciente. Trata-se de uma defesa tão eficaz, que nega a
realidade mesma da percepção ligada à representação incompatível. uma negação da
experiência traumática vinculada à castração, uma ausência de sua inscrição. Melhor
dizendo, a questão da castração sequer é colocada. a ausência de seu
8
É importante considerar que, nesses trabalhos sobre as neuropsicoses de defesa (1894/1976 e
1896c/1976), Freud trata indistintamente os termos “defesa” e “recalque”, conferindo-lhes o sentido
genérico de defesa estrutural. Ao longo de sua obra, entretanto, especificamente em “Inibições, sintomas
e ansiedade” (1926[1925]/1976), ele propõe que o termo “defesa” seja utilizado nessa acepção genérica,
designando todas as técnicas empregadas pelo Ego em conflitos que possam levar a uma estrutura
específica: neurose, psicose e perversão. E quanto ao termo recalque (traduzido erroneamente em
português por repressão), propõe que seu uso seja restrito ao mecanismo particular de separação entre
idéia e afeto, característico da estrutura neurótica. Cumpre também ressaltar que usaremos a partir daqui,
ao invés do termo “repressão”, que consta na tradução brasileira da obra, o de “recalque”. Isto porque
repressão se apresenta geralmente associada aos mecanismos defensivos e conscientes do ego. o
recalque é a terminologia utilizada para expor a operação inconsciente, responsável por desalojar
representações incompatíveis com o aparelho psíquico, destituindo-as de sua catexia, fundando o aparelho
psíquico dividido em Pcs-Cs e Ics e constituindo-se na defesa neurótica a qual fizemos referência. Para a
operação estrutural que funda a psicose, utilizaremos sempre o termo rejeição, acompanhando a
referência freudiana.
27
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
reconhecimento, de sua representação psíquica.
Dois anos mais tarde, Freud retoma a importância central da defesa na constituição do
sujeito: “Minhas observações sobre os dois últimos anos de trabalho fortaleceram-me a
tendência a considerar a defesa como o ponto nuclear no mecanismo psíquico das
neuroses em questão (FREUD, 1896c/1976, p. 154). Entretanto, ao tentar sistematizar
a operação de “recalque” [rejeição] peculiar à psicose
9
irá encontrar uma hiância que
avançaria, modificada, no estudo sobre Schreber. Aqui ainda afirma que a característica
da defesa na psicose é o “recalque” por projeção e que, a fim de ser aceita sem
contradição, a representação delirante exige uma atividade de pensamento do Ego que
termina por alterá-lo. Como essas idéias não são passíveis de alteração, é o Ego que a
elas precisa se adaptar, modificando-se.
No estudo sobre Schreber, de 1911, ele revê essa posição, localizando a projeção num
momento secundário ao “recalque” na psicose que ganha nesse texto sua formulação
final. Discute também, para além da etiologia da paranóia, sua possibilidade de cura,
como ele diz, ou de estabilização, como hoje podemos dizer. A originalidade de suas
propostas nesse texto provoca uma reversão inaugural e fundamental à leitura posterior
da psicose, lançando definitivamente princípios que orientam, até os dias de hoje, a
investigação psicanalítica acerca da psicose, principalmente após sua releitura
10
com o
texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (FREUD, 1914a/1976, p. 102-103). Dois
grandes enunciados se estabeleceram com esse texto:
(a) em relação ao mecanismo estrutural da psicose, Freud afirma que aquilo que foi
internamente abolido retorna desde fora (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 95),
permitindo a Lacan décadas depois afirmar que, na base da psicose, seu mecanismo
não se resume aum recalque por projeção”, mas antes a uma operação muito mais
radical que ele denomina foraclusão, como veremos;
(b) e, em oposição a uma interpretação fenomenológica da psicose, Freud subverte sua
leitura apontando que a formação delirante é uma tentativa de restabelecimento
9
A paranóia deve ter um método ou mecanismo especial de recalcamento que lhe é peculiar(FREUD,
1896c/1976, p. 164).
10
A diferença entre as afecções parafrênicas e as neuroses de transferência parece-me estar na
circunstância de que, nas primeiras, a libido liberada pela frustração não permanece ligada a objetos na
fantasia, mas se retira para o ego. A megalomania corresponderia, por conseguinte, ao domínio psíquico
dessa última quantidade de libido, e seria assim a contrapartida da introversão para as fantasias que é
encontrada nas neuroses de transferência (FREUD, 1914a/1976, p. 102). Aqui Freud formula nova
hipótese sobre a megalomania de Schreber que não nasceria da homossexualidade, mas de uma
complexificação introduzida pelo narcisismo no aparelho psíquico.
28
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
(FREUD, 1912[1911]/1976, p. 94), e não a enfermidade propriamente dita, como
era interpretada a então. Donde Lacan afirmar textualmente que não é de déficit
que se trata na psicose, mas de produção de resposta. “A liberdade que Freud se deu
foi simplesmente aquela [...] de introduzir o sujeito como tal, o que significa não
avaliar o louco em termos de déficit...” (LACAN, 1966/2003, p. 220).
Apesar de reafirmar que a projeção está na base da defesa psicótica
11
, Freud faz uma
correção em relação ao que escrevera nos Rascunhos e primeiras publicações de 1894 a
1896 comentadas. Lá, a projeção aparecia na etiologia da paranóia como provocando
uma projeção dos sentimentos de auto-acusação do paciente para fora, retornando sob a
forma de acusações exteriores. Aqui, Freud altera substancialmente a descrição do
processo ocorrido, o que permitiu a Lacan recolocar os termos do trabalho delirante.
Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o
exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi
internamente abolido retorna desde fora (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 95). Assim, se
nas primeiras formulações freudianas, a projeção era confundida com o próprio
mecanismo constitutivo da psicose, na segunda formulação, ela é, no máximo, um
momento secundário desse mecanismo.
Cabe ainda ressaltar que o mecanismo de retirada da catexia libidinal do mundo externo
coincide com o delírio do fim do mundo, como se em Schreber. A posterior
construção de seu mundo interno realizada através do trabalho delirante, que
presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de
restabelecimento, um processo de reconstrução (FREUD, 1912[1911], p. 94-95) -
nunca é completamente bem-sucedida. E esta, diferentemente do processo de
adoecimento, de retirada da catexia libidinal das pessoas e coisas, que acontece
silenciosamente, é ruidosa no momento de reinvestimento libidinal.
Daí Lacan (1957-58/1998) extrai que, mesmo para Freud, a projeção era insuficiente
para explicar o “recalque” na psicose. Quando Freud aponta que é desde fora que
retorna aquilo que foi internamente abolido, ele mesmo percebe que não se trata de um
mecanismo projetivo. Como projetar, lançar de dentro para fora, aquilo que não existe
dentro? Se o conteúdo foi internamente abolido, nós estamos falando de uma
11
A característica mais notável da formação de sintomas na paranóia é o processo que merece o nome
de projeção. Uma percepção interna é suprimida e, ao invés, seu conteúdo, após sofrer certo tipo de
deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa (FREUD, 1912[1911]/1976, p.
89).
29
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
representação primordial sobre o ser do sujeito psicótico que não encontra meios de
significar-se, representar-se. Essa significação não vem de parte alguma e não remete a
nada, posto não ter sido simbolizada. Será no caso do Homem dos Lobos, relatado em
“História de uma neurose infantil” (1918[1914]/1976), que Freud utilizará o termo
Verwerfung num fragmento clínico que o evidencia para nomear essa não inscrição de
uma representação fundamental, diferente da operação do recalque para a neurose. É
importante entendermos o que se opera como defesa nesse nível para que possamos
adiante discutir as diferentes maneiras que o sujeito pode inventar para tratar dos efeitos
particulares dessa operação constitutiva.
1.2.2 A topologia da negativa na psicose: die Verwerfung
No texto A negativa” (1925/1976), Freud diz que a negação ou denegação
12
constitui
um modo de tomar conhecimento do que está recalcado. Trata-se de uma suspensão do
recalque, mas nem por isso uma aceitação do recalcado, evidenciando que a função
intelectual está separada do processo afetivo. Para ele, negar ou afirmar o conteúdo de
pensamentos é tarefa da função do julgamento. Assim, um juízo negativo seria o
substituto intelectual do recalque, o seu ‘não’ é a marca distintiva da repressão
[recalque], um certificado de origem tal como, digamos, ‘Made in Germany’ (p.
297). A criação do símbolo da negativa possibilitaria um primeiro grau de
independência dos resultados do recalque.
Nesse texto, Freud estaria, segundo Hyppolite (1954/1998), apontando a origem da
inteligência. A partir do conceito de Aufhebung, familiar ao vocabulário hegeliano com
o qual o filósofo possuía grande intimidade, ele realiza a leitura do processo da
denegação. Ele situa neste conceito, que não é ainda uma aceitação do recalcado, o
nascimento do pensamento, afetado, primariamente, pela denegação. Além disso,
retoma a dialética do senhor e do escravo para destacar, nesse nascimento mítico, a ação
da pulsão de destruição. No entanto, a denegação realizaria sua função, não como
12
Segundo a intervenção de J. Hyppolite (1954/1998), filósofo francês hegeliano, sobre o texto freudiano
no seminário de Lacan sobre “Os escritos técnicos de Freud” (1953-54/1986), a tradução francesa mais
adequada ao termo alemão Verneinung seria denegação, sendo primordial para a compreensão do texto a
distinção entre a negação interna ao juízo e a atitude de negação. Vidal (1988, p. 16-17), em discussão do
mesmo texto, aponta que denegação, na língua portuguesa, seria um vocábulo pertinente ao campo
jurídico implicando num indeferimento, numa recusa a uma demanda, no sentido de não aceitar. Assim,
ele prefere adotar o termo negação, no sentido de dizer não’, que não é estritamente um conceito, mas
uma operação que age sempre sobre a frase, incluindo nesse registro lógico a negação de uma proposição
e também a negação gramatical.
30
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
tendência à destruição, nem como negação interna a um juízo, mas como atitude
fundamental da simbolicidade explicitada. Acompanhemos a construção freudiana.
Freud avança pela gênese da função do pensamento ao distinguir suas operações
fundamentais. A função do julgamento estaria relacionada com duas espécies de
decisões. Ele afirma ou desafirma a posse, em uma coisa, de um atributo particular, e
assevera ou discute que uma representação tenha uma existência na realidade
(FREUD, 1925/1976, p. 297). Enquanto a primeira dessas funções opera pelo princípio
do prazer, a segunda já é guiada pela prova (ou teste) de realidade.
O juízo de atribuição, o primeiro apresentado por Freud, implica em introjetar o que é
bom e ejetar o que é mau, instituindo um dentro e um fora, a partir dos respectivos
atributos, é bom, quero comê-lo, é mau, quero cuspi-lo. A segunda função do juízo, a do
juízo de existência, não mais diz respeito a algo percebido (uma coisa) que deva ou não
ser acolhido no eu, mas se refere ao fato de que algo existente no eu como representação
possa ser reencontrado também na percepção (realidade). O não-real, apenas
representado, subjetivo, está dentro, enquanto o outro, real, também existe no fora.
Neste ponto, foi deixada de lado a consideração pelo princípio do prazer, donde a
antecedência lógica do juízo de atribuição em relação à denegação. Freud lembra que as
representações provêm de percepções, são repetições destas. A oposição entre subjetivo
e objetivo o existe desde o início. O objetivo primeiro da prova de realidade, assim,
não seria encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas
reencontrar tal objeto, desde sempre perdido. É nesse intervalo, entre o objeto da
percepção, desde sempre perdido, e a representação, que o inconsciente se institui como
diferença.
A importância da função do julgar reside no fato de que ela é uma ação intelectual que
decide sobre a escolha da ação motora, pondo fim à protelação do pensamento. Ela
conduz do pensar ao agir. Além disso, oferece material para pensarmos o surgimento da
função intelectual a partir das moções pulsionais primárias, o que revela uma relação
entre significante e gozo. O julgar é uma continuação do processo original através do
qual o ego integra coisas a si ou as expele de si, de acordo com o princípio do prazer.
Enquanto a afirmação [Behajung] – como um substituto da união – pertence a Eros; a
negativa [Verneinung] o sucessor da expulsão [Ausstosung] – pertence ao instinto
pulsão] de destruição (FREUD, 1925/1976, p. 300). Trata-se de uma única função do
31
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
juízo que se realiza em dois tempos.
Atribuição e existência, em sentido estrito, correspondem às duas decisões do mesmo
juízo, cuja topologia seria um oito interior (VIDAL, 1988, p. 24). Aqui se destaca uma
topologia do sujeito que já rompe com a idéia de dentro e fora, ao mesmo tempo em que
a institui. O equivalente ao sujeito interior, sujeito da psicologia, diferente do mundo
externo, seria a esfera, superfície bilátera que divide o espaço em um interior e um
exterior. Há, entretanto, na apresentação freudiana a referência a uma topologia que
inclui o inconsciente. Negar implica em ‘liberar’ do recalque alguns significantes que
podem retornar à cadeia. Não ali dentro ou fora. Podemos dizer, com Lacan, que
Freud nos apresenta o inconsciente como estrutura moebiana
13
. Numa única borda o
significante precipita o laço social, seja como articulação, em cujo intervalo se situa o
sujeito, seja como materialidade significante e como barra, o que instaura uma
disjunção entre significante e significado. A Verneinung é da ordem do discurso, e
concerne ao que somos capazes de fazer vir à tona por uma via articulada (LACAN,
1955-56/1992, p. 101).
Na discussão do texto freudiano que empreende em seu seminário, Lacan reafirma a
dimensão fundadora da ordem simbólica na Bejahung. Para que um sujeito não queira
saber de algo no sentido do recalque, é preciso que esse algo tenha vindo à luz pela
simbolização primordial. E no mesmo movimento em que algo é introduzido no sujeito,
algo é expulso e resta fora. É que se constitui o real, na medida em que ele é o
domínio do que subsiste fora da simbolização (LACAN, 1954/1998, p. 390). A
Behajung, correlacionada a uma inclusão significante, não é outra coisa senão a
condição primordial para que, do real, algo venha a se oferecer à revelação do ser.
Comporta, portanto, uma Ausstosung, uma expulsão do eu, constitutiva do Real. Eis a
função primordial do juízo de atribuição.
“A segunda decisão, a da existência real de uma coisa representada, se funda sobre essa
partição entre simbólico e real. Como sucessão da Ausstosung primeira, se determina o real
como fora da simbolização. A negação die Verneinung sucessão da Ausstosung, se
estende no domínio do princípio da realidade” (VIDAL, 1988, p. 26).
São operações, ao mesmo tempo que sucessivas, necessárias umas às outras e, portanto,
13
A fita de Moebius pode ser ilustrada por uma tira que se fechou, depois de ter-lhe sido aplicada uma
semitorção. Essa curiosa superfície apresenta a propriedade de ter apenas um único lado e uma única
borda. Essa fita, na qual o lado direito se prende ao lado do avesso, representa a relação do
inconsciente com o discurso consciente. Isso significa que o inconsciente está do avesso, mas pode surgir
no consciente em qualquer ponto do discurso” (CHEMAMA, 1995, p. 212).
32
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
indissociáveis entre si. Podemos aventurar a hipótese de que seja nesse ponto que a
letra, enquanto fronteira entre Real e Simbólico como discutiremos mais à frente, se
escreva com a queda do significante primordial que identifica o ser do sujeito.
Enfim, a negação se estabelece sobre a possibilidade da Behajung, ou seja, sobre uma
frase afirmada que pode ser riscada. A elisão significante está, pois, na matriz da
Verneinung, e determina o lugar do sujeito no corte da cadeia significante, no lugar em
que uma coisa pode deixar de existir.
Qual a importância de toda essa discussão para a questão da suplência nas psicoses?
Ora, sabemos que Lacan articula o mecanismo fundante da psicose a uma operação
significante no primeiro tempo de seu ensino. Para ele, distinguir as relações do sujeito
com a estrutura, enquanto estrutura significante, implicou em ressignificar essa noção
de defesa. Em Freud, essa noção implicava num processo mais amplo que o do
recalque, como vimos, incluindo outras operações psíquicas que determinavam a
posição do sujeito em relação ao Édipo. Para Lacan, o efeito da defesa modifica o
sujeito. O modo original de elisão significante que aqui tentamos conceber como a
matriz da Verneinung afirma o sujeito sob o aspecto do negativo, instalando o vazio em
que ele encontra seu lugar (LACAN, 1960/1998, p. 672). É exatamente a estrutura
desse lugar que exige que o nada esteja no princípio da criação, impondo ao pensamento
psicanalítico ser criacionista, não se contentando com nenhuma referência
evolucionista.
Mas o que ocorre na psicose que não estamos a falar de recalque quando nos
referimos a ela? De que forma essa operação constitutiva se escreveria nessa estrutura
clínica? Como Freud e Lacan estabelecem essa discussão e o que dela podemos
depreender para pensar as soluções na psicose?
Freud diferencia a negação do negativismo de alguns psicóticos. O desejo geral de
negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve provavelmente ser
encarado como sinal de uma desfusão de instintos [pulsões]... (FREUD, 1925/1976, p.
300). A função do julgamento se torna possível a partir da criação do símbolo da
negativa, que dota o pensar de uma primeira medida de liberdade das conseqüências do
recalque e, com isso, da compulsão do princípio de prazer.
Há, portanto, na psicose, previamente a qualquer simbolização anterioridade lógica –,
uma etapa em que uma parte da simbolização não se faz. É essa a hipótese de Lacan
33
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
(1955-56/1992, p. 97) no seminário sobre as psicoses. Se na neurose se trata de uma
palavra que se articula, na medida em que o recalcado e o retorno do recalcado são a
mesma coisa, pode acontecer na psicose que alguma coisa de primordial quanto ao ser
do sujeito não entre na simbolização, mas seja rejeitado, foracluído. Na relação do
sujeito com o símbolo a possibilidade de uma Verwerfung primitiva. Algo que não
foi simbolizado vai se manifestar no Real.
Para Lacan, no interior da Behajung podem acontecer todas as espécies de acidente. Ele,
então, propõe que na psicose, ao nível da Behajung primitiva, estabelece-se uma
primeira dicotomia: o que teria sido submetido à Behajung, à simbolização primitiva,
terá diversos destinos, o que cai sob o golpe da Verwerfung primitiva terá um outro.
[...] portanto, na origem, Bejahung, isto é, afirmação do que é, ou Verwerfung
(LACAN, 1955-56/1992, p. 98). Em outras palavras, a Verwerfung se articula à
inoperância da Behajung, ou juízo de atribuição, precedente necessário a qualquer
aplicação possível da Verneinung, articulada por Freud ao juízo de existência e por
Lacan à confissão do próprio significante que ela anula (LACAN, 1957-58/1998, p.
564).
É também ao significante que se refere a Behajung primordial. Lacan lembra que ele é
expressamente isolado como termo de uma percepção original, sob o nome de signo,
Zeichen, na Carta 52
14
que Freud escreve a Fliess. Articulada, pois, ao significante, a
Verwerfung será tida por Lacan, como foraclusão do significante. No ponto em que,
veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um
puro e simples furo (LACAN, 1956-57/1998, p. 564). Trata-se de uma inscrição que
não se faz, ao contrário da Behajung, que implicaria exatamente na inscrição desse
significante primordial.
Lacan irá retomar a discussão do termo Verwerfung em seu primeiro seminário público
(LACAN, 1953-54/1986). Ali ele irá definir a Verwerfung como supressão
[retranchement], cujo efeito seria uma abolição simbólica, como Freud relata no caso do
Homem dos Lobos. Dois seminários depois, ao tratar das psicoses, acabamos de ver que
14
Nessa carta (FREUD, 1896b/1976, p. 325), grande figura da metapsicologia psicanalítica, é possível
localizar as negações constitutivas do sujeito evidenciadas por Freud, que culminam na passagem da
percepção à representação inconsciente e desta à consciência, como atesta o gráfico abaixo:
W - Wz - Ub - Vb - Bews
Wahrnehmungen Wahrnehmungszeichen Unbewusstsein Vorbewusstsein Bewusstsein
(percepções) (registro da percepção) (traços do inconsciente) (pré-consciência) (consciência)
primeiro registro segundo registro terceiro registro
34
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Lacan atrela a Verwerfung à não inscrição do significante do Nome-do-Pai, tomando
agora sua tradução francesa pelo termo jurídico foraclusão. No universo jurídico
francês, a foraclusão implica na perda do prazo para interpor uma ação, cujo interesse
existe de fato, porém não mais de direito. No Brasil, o termo mais exato seria preclusão.
Entretanto, o que está em jogo aqui é a versão apresentada, por Lacan, para o termo.
Uma operação não se inscreveu em tempo hábil, tornando caduca sua função. Os efeitos
dessa carência significante retornam como gozo no real.
Lacan (1953-54/1986) também realiza extensa discussão sobre essa operação a partir do
caso do Homem dos Lobos. Nesse caso, Freud (1918[1914]/1976, p. 109) fala em
Verwerfung no tocante à castração, rejeição que instiga a alucinação do dedo ferido.
Podemos presumir, portanto, que essa alucinação pertence ao período no qual [o
homem dos lobos] foi levado a reconhecer a realidade da castração e deve, talvez, ser
considerada como o acontecimento que marca verdadeiramente esse passo (FREUD,
1918[1914]/1976, p. 108). Como Lacan (1953-54/1986, p. 55) assinala, o sujeito
recusou, rejeitou – a palavra alemã é verwirft. E continuando nos equívocos da tradução
francesa do texto freudiano, ele se pergunta por que a frase Eine Verdrängung ist etwas
anderes als eine Verwerfung não foi simplesmente traduzida, como em português, por
uma repressão [um recalque] é algo muito diferente de uma rejeição (FREUD,
1918[1914]/1976, p. 102), por exemplo. Mas não, ele se questiona, a frase na versão
francesa surge como um recalque é outra coisa que um julgamento que rejeita e
escolhe. A tradução conduz o pensamento lacaniano à conclusão de que, na origem,
para que o recalque seja possível, é preciso que exista um para-além dele próprio, um
primeiro núcleo do recalcado. E nisso ele é absolutamente freudiano. A repressão
[recalque] não é um mecanismo defensivo que esteja presente desde o início; que ela só
pode surgir quando tiver ocorrido uma cisão marcante entre a atividade mental
consciente e a inconsciente (FREUD, 1915c/1976, p. 170). Com Freud, Lacan localiza
esse núcleo como a experiência original do trauma [...], o núcleo primitivo é de um
nível diferente dos avatares do recalque. É o fundo e o suporte deles (LACAN, 1953-
54/1986, p. 56). Não estaria ele articulando Behajung aqui?
A partir dela e da leitura da denegação, podemos pensar, com Lacan, que a foraclusão
ou a Verwerfung, ao implicar numa o-representação de uma marca perceptiva
inaugural, a modificaria estruturalmente, tornando-a real. Isso ocorre na medida em que
35
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
esse dentro inaugural é expulso, ou seja, na medida em que, apesar de a percepção
receber uma primeira indicação, um primeiro registro de percepção, ela não pode se
transformar em lembranças conceituais (FREUD, 1896b/1976, p. 325) por falta da
inscrição que amarraria a função da exceção do Pai, o traço unário inconsciente. Daí
termos como resultado um estado de percepção que não passa ao estado de
representado. O próprio significante sofre profundos remanejamentos (LACAN,
1955-56/1992, p. 104).
A Verwerfung atingiria o próprio ponto em que uma marca deveria apagar-se para
tornar-se significante, constituindo o sujeito psicótico pela exclusão de um dentro
primitivo. Na ausência da passagem do desejo para o significante que uma amarra
tornaria possível, os traços mnêmicos do percebido pré-histórico (visto, ouvido, sentido)
permanecem em estado de percebido real, pura percepção sem nenhum traço que a
represente. No sistema percepção-consciência, podem apenas ser experimentados, mas
não inscritos. Entre a inscrição das percepções e o pronunciamento das palavras
conscientes, habitaria uma vazio criado pela abolição das inscrições mnésicas no
inconsciente (RABINOVITCH, 2001). Ou seja, a operação alteraria a própria maneira
como as marcas se inscrevem, tornando-as reais e fazendo coincidir o real com o
inconsciente. Daí o psicótico recorrer a palavras em vez de coisas
15
, pois são elas que,
ainda que esvaziadas de sentido, encontram-se a sua disposição, como, por exemplo, na
construção delirante em que se a tentativa de lhes conferir uma significação
inventada e originalmente ausente.
Essa significação essencial ausente diz respeito ao sujeito na medida em que é o ponto
no qual o significante Nome-do-Pai, não tendo se inscrito, mas antes estando foracluído
no lugar do Outro, não permite ao sujeito nomear-se (LACAN, 1955-56/1992). O não
ausente do inconsciente é o não outrora significado pelo Pai como interdição. O Nome-
do-Pai seria o que enlaçaria as duas pulsões que se encontram desagalmadas na
psicose, como disse Freud.
15
Freud decompõe a representação consciente do objeto em representação da coisa hipercatexizada
através da ligação com a representação da palavra que lhe corresponde, articulando que no Inconsciente
permanece apenas a representação da coisa do objeto ponto foracluído na psicose. Daí extrai que a
catexia das representações de palavra é retida na psicose que ela não faz parte da operação de rejeição.
Ela representa, na verdade, a primeira das tentativas de restabelecimento, dirigidas à recuperação do
objeto perdido. E, pode ser que, para alcançar esse propósito, enveredem por um caminho que conduz
ao objeto através de sua parte verbal, contentando-se com palavras em vez de coisas (FREUD,
1915a/1976, p. 232).
36
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Nesse ponto faltoso, ponto de apresentação de uma questão impossível de o psicótico
formular sobre seu ser quem sou eu? –, articula-se uma resposta que provém do real,
“de fora”. É de resposta, portanto, e não de projeção, que se trata na psicose. A irrupção
da psicose, ou o desencadeamento do psicótico, ocorre justo quando acidentalmente
surge uma questão sobre o seu ser, ou seja, quando o Nome-do-Pai foracluído, isto é,
jamais advindo no lugar do Outro, é ali invocado em oposição simbólica ao sujeito,
numa posição terceira em uma relação que tenha por base a relação imaginária, dual e
especular (a-a’) (LACAN, 1956-57/1998). Para o Lacan da década de 50, o psicótico
estaria desprovido da possibilidade de fazer funcionar uma negação em relação ao
fenômeno que se desencadeia no real, incapaz de fazer dar certo a Verneinung com
relação ao acontecimento (LACAN, 1955-56/1992, p. 104). O que se produz, então, é
uma reação em cadeia ao nível do imaginário, uma cascata de remanejamentos
imaginários. Já no final da década de 60, como vimos, Lacan (1966/2003) irá apresentar
o livro de Schreber avaliando que Freud ali se deu a liberdade de introduzir o sujeito,
não avaliando o louco em termos de déficit ou de dissociação de funções.
Além disso, Lacan não reconhece como simples delírio o trabalho de estabilização, mas
antes como um processo que constitui o delírio como uma metáfora que faz às vezes da
metáfora paterna, que adiante discutiremos. Essa subversão freudiana, de localizar no
delírio a tentativa “ruidosa” de cura e não uma manifestação psicopatológica, permitiu a
Lacan formalizar, a partir da discussão sobre a operação simbólica da metáfora paterna,
uma das soluções psicóticas.
Assim, vemos que o retorno do foracluído marca a ausência da escrita e da
rememoração, materializando a exterioridade do Outro e da linguagem. Essa modulação
do retorno implica, para cada sujeito, uma maneira particular de lidar com o real,
exigindo do analista ou técnico de Saúde Mental a sustentação de uma posição de
aprendiz diante da psicose (LACAN, 1957-58/1998; QUINET, 1997; RABINOVITCH,
2001; LAURENT, 1995b; ZENONI, 2000) como orientação ao seu tratamento possível.
O que se passa nesse nível determina, portanto, as estratégias que o sujeito irá
desenvolver para lidar com sua psicose.
1.2.3 Psicose e realidade: para além do dentro-fora
Ora, Freud não altera teoricamente essa posição desenvolvida em 1911, apesar de em
37
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
“O inconsciente” (1915a/1976) avançar na discussão esboçada em seus primeiros
escritos pela perspectiva da representação de objeto como sendo resultado da
representação da coisa hipercatexizada pela representação da palavra, como vimos.
com “A perda da realidade na neurose e na psicose” (FREUD, 1924/1976) dá-se uma
interessante e original elaboração, complementar ao comentário sobre o
restabelecimento de Schreber. O problema da psicose não seria o da perda da realidade,
mas o expediente daquilo que vem a substituí-la (LACAN, 1957-58/1998, p. 549). Na
psicose, haveria uma particularidade na relação com a realidade, estabelecida a partir da
estrutura da relação com o Outro, na qual o psicótico não encontra um lugar para alojar-
se. Na verdade, para Freud (1924/1976, p. 231), tanto na neurose quanto na psicose,
perda da realidade, devido auma rebelião por parte do id contra o mundo externo, de
sua indisposição ou, caso preferirem, sua incapacidade a adaptar-se às exigências
da realidade”. Num primeiro momento, haveria um recalque das exigências pulsionais,
na neurose, enquanto na psicose ocorreria uma rejeição do fato desagradável da
realidade. Em qualquer dos casos, porém, haveria perda na relação com a realidade
externa.
A diferença entre essas estruturas diz respeito à maneira como cada uma delas irá, num
segundo momento, recompor essa relação. Na neurose, um fragmento da realidade é
evitado por uma espécie de fuga, mas o neurótico não repudia a realidade, apenas
ignora-a, recalcando o conteúdo aflitivo. Já na psicose, a realidade é remodelada, o
psicótico a repudia e tenta substituí-la, transformando-a a partir de precipitados
psíquicos de antigas relações com ela. Assim, na psicose o substituto tenta colocar-se no
lugar da realidade, enquanto na neurose liga-se a um fragmento dela, conferindo-lhe
uma importância especial e um significado secreto, simbólico porque substitutivo,
sintomático.
Enquanto Freud situa na psicose um remodelamento da realidade, veremos Lacan
apontar um ‘remodelamento’ de toda sua teoria a partir da psicose na década de 70.
Alguns anos antes de enveredar na discussão dos nós, ele introduz o conceito de objeto
a, que forja uma topologia singular de vizinhanças, continuidades e fronteiras que
rompem com a idéia de dentro e fora, articulando o eu e o mundo a partir da queda
desse objeto-causa do desejo ou de sua ausência. No comentário ao Esquema I no
segundo capítulo, teremos a oportunidade de vislumbrar a radicalidade da proposição
38
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
freudiana, bem como seus efeitos topológicos.
Podemos, enfim, quanto ao campo das estabilizações psicóticas, concluir que Freud
apresenta a solução psicótica pela via do trabalho delirante. Além disso, mesmo não
tendo desenvolvido um comentário acerca da criação na psicose, despertou um olhar
novo sobre questões relacionadas à arte stricto sensu. Tal é o caso da relação entre o
sentido e a obra, quando, por exemplo, se pergunta em “O Moisés de Michelângelo”
(FREUD, 1914b/1976, p. 254) por que a intenção do artista não poderia ser
comunicada e compreendida em palavras, como qualquer outro fato da vida mental?”.
Ele esboça que um insondável, um impossível de dizer, uma cifra, enfim, na
produção artística que a orienta por outra via que não a estritamente simbólica. Algo
escapa à produção artística que não pode ser toda-dita em palavras. E é desse real que
Lacan irá tratar ao estudar Joyce, como veremos, oferecendo-nos subsídios para pensar
a criação e a estabilização na psicose. Será, portanto, com Lacan que veremos surgir
novas proposições acerca das soluções construídas pelos psicóticos e sua relação com a
criação artística. Vamos a elas.
1.3 A Abordagem Lacaniana das Soluções na Psicose
Partindo inicialmente das proposições freudianas, Lacan passa a articular, contando com
os três registros – real, simbólico e imaginário –, o delírio como uma resposta à invasão
do real que, desarticulado do simbólico, provoca os fenômenos de remanejamento
imaginário na psicose. As tentativas de reconstrução delirante para Lacan ganham,
assim, o estatuto de um trabalho do simbólico. Mas, antes de se deter na análise do
delírio e sua função na psicose, trata, ainda em seu trabalho de doutoramento de 1932,
do ato como possibilidade de cura nos casos de paranóia de autopunição.
Ao definir o trabalho na psicose como o trabalho sobre o retorno no real daquilo que foi
foracluído no simbólico, Soler (1990) propõe, apoiada em Lacan, o ato, a obra e a
metáfora delirante como as diferentes saídas encontradas pelo psicótico. Ela também
inclui nesse rol a identificação imaginária (não como trabalho, mas como fenômeno que
pode favorecer uma forma precária de estabilização) e a sublimação criadora, que se
aproxima da estrutura da metáfora delirante, mas diferentemente dela faz pacto, laço,
sentido para o campo social, como no caso de Rousseau com sua obra filosófica.
Interessante destacar que, ao tratar da obra, Soler aproxima a escrita de Joyce das
39
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
pinturas de Van Gogh, por exemplo, tomadas como trabalho do real sobre o real através
da produção de uma obra inaugural, inédita. Abre, pois, um precedente para se pensar a
criação artística sobre uma superfície material como uma saída na psicose, aproximando
seus efeitos daqueles produzidos pela escrita, como em Joyce. Antes, porém, de
determo-nos na discussão das soluções (ato, metáfora delirante e obra) e da relação
específica entre criação e estabilização, é interessante discutirmos como Lacan
apresenta as noções de desencadeamento e a de enigma em sua obra. Elas nos serão
úteis para articular o campo das estabilizações na psicanálise.
1.3.1 O desencadeamento psicótico e suas conseqüências
A. O desencadeamento
Ainda que Lacan fale de comportamento desencadeado em seu estudo sobre o Homem
dos Lobos, em 1951-52, quando ainda ministrava seus seminários em sua própria casa,
o termo será elevado a conceito somente em meados da década de 50 no estudo que
empreende, então, sobre a psicose, a partir do estudo freudiano do caso Schreber. Ao
discutir a relação entre o moi e o instinto sexual, Lacan relembra, em relação ao Homem
dos Lobos, que ele possui uma vida sexual realizada. E sobre ela diz tratar-se de um
ciclo de comportamento que, uma vez desencadeado, vai até o fim, estando entre
parênteses em relação ao conjunto da personalidade do sujeito. Como se vê, o
desencadeamento aqui ainda não ganha ares de conceitualização, funcionando
simplesmente como adjetivo.
Diferente tratamento é dado ao termo no Seminário 3 (LACAN, 1955-56/1992) e no
texto “De uma questão preliminar...” (LACAN, 1957-58/1998). Nesses textos, Lacan
reúne as condições clínicas do desencadeamento, assentado na teoria estruturalista e no
registro da fala e da linguagem. Sobre a primeira condição, a estrutura psicótica em si
mesma, ele considera que
“é num acidente desse registro [da linguagem] e do que nele se realiza, a saber, a foraclusão
do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a
falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da
neurose” (LACAN, 1957-78/1998, p. 582).
A primeira condição para a ocorrência do desencadeamento no final dos anos cinqüenta
é a própria condição estrutural da foraclusão do Nome-do-Pai na psicose. Essa condição
Lacan a explicita ao dizer que é preciso admitir que o Nome-do-Pai reduplica no lugar
40
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
do Outro, o próprio significante do ternário simbólico, na medida em que ele constitui a
lei do significante.
Além disso, seja qual for a identificação pela qual o sujeito assumiu o desejo da mãe,
ela desencadeia, por ser abalada, a dissolução do tripé imaginário (LACAN, 1957-
58/1998, p. 572). Detalhe não menos importante na medida em que o desencadeamento
exigirá uma segunda condição que podemos aqui nomear de quebra da identificação.
Mas não se trata de uma identificação qualquer. É preciso que seja tocada exatamente
aquela através da qual o psicótico assumiu o desejo da mãe. Quando a via que determina
essa identificação na constituição subjetiva do sujeito psicótico é abalada, uma das
condições do desencadeamento se realiza.
A terceira condição implica na convocação do Nome-do-Pai foracluído em oposição
simbólica ao sujeito, como vimos. Mais uma vez é no detalhe que reside a sutileza dessa
terceira condição. A casualidade dos acontecimentos na vida do psicótico conduz a
um desencadeamento se toca o ponto no qual falta
“... nada menos que um pai real, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito, mas Um-
pai. É preciso ainda que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo
antes. Basta que esse Um-pai se situe na posição terceira em alguma relação que tenha por
base o par imaginário a-a’, isto é, eu-objeto ou ideal-realidade” (LACAN, 1957-58/1998, p.
584).
O encontro contingente dos fatos da vida com a determinação subjetiva da foraclusão,
somado ao conseqüente desarranjo identificatório, caracteriza a “conjuntura dramática”
que Lacan localiza no momento do desencadeamento. Podemos, assim, destacar,
respectivamente, as três condições para o desencadeamento na psicose:
(a) condição estrutural;
(b) quebra da identificação imaginária;
(c) condição específica.
B. O enigma na psicose
ao menos duas possibilidades de se pensar o enigma em Lacan
16
(LAURENT, 1993;
SOLER, 1993; NAVEAU, 2004a): indo em direção à significação e ao sentido ou
aparecendo como gozo enigmático.
16
Ainda que Laurent (1993) sustente a tese de três possibilidades: o enigma e o sentido, o enigma e a
significação e o enigma e o gozo, entendemos que sentido e significação encontram-se imersos no mesmo
universo teórico-clínico de supremacia do simbólico que organizava o pensamento de Lacan no início de
seu ensino. Em função disso, adotamos o critério de duas possibilidades.
41
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
No primeiro caso, as principais contribuições lacanianas encontram-se desde o texto
“Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (LACAN, 1953/1998) a O
Seminário, livro 3: as psicoses (LACAN, 1955-56/1992). Enquanto significação, o
enigma aparece sobretudo referido aos estudos freudianos do Presidente Schreber.
Como vimos, o desligamento libidinal do mundo é um processo silencioso que, em
Schreber, é lido nos seguintes termos:
“O paciente retirou das pessoas de seu ambiente, e do mundo externo em geral, a catexia
libidinal que a então havia dirigido para elas. Assim, tudo tornou-se indiferente e
irrelevante para ele, e tem de ser explicado através de uma racionalização secundária, como
‘miraculado, apressadamente improvisado’ ” (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 93).
Freud acrescenta que será pela via da formação delirante que o paranóico ensaiará uma
tentativa de restabelecimento, um processo de construção. , em Freud, a noção de
uma solução positivada na psicose. Esta experiência de destacamento em silêncio, Freud
coloca na série de fenômenos elementares: confusão, perplexidade, perda do
pensamento, e outros. É lá que se situa, para o paranóico, a experiência de um enigma,
que, para ele, o mundo inteiro torna-se um mundo de coisas obscuras, agenciadas de
uma forma que se perdeu, que vai precisar reconstruir para que elas designem enfim
alguma coisa (LAURENT, 1993).
Sabemos que, para Freud (1912[1911]/1976 e 1924/1976), a experiência da perda da
realidade e a da reconstrução de um substituto para ela são indissociáveis. Considera
ambas as experiências compreendidas no que ele chama a distribuição da libido, que
descreve inteiramente como sendo um fenômeno de sentido. Para Lacan, o sentido é
efeito da operação da linguagem. A Lei primordial, que ao reger a aliança e o
parentesco pela interdição do incesto superpõe o reino da cultura ao reino da natureza,
faz-se conhecer suficientemente como idêntica a uma ordem de linguagem (LACAN,
1953/1998, p. 279). A noção de função simbólica, introduzida no texto “Função e
campo...”, é o suporte da estrutura da linguagem. E, por sua vez, “é no nome do pai que
se deve reconhecer o suporte da função simbólica (LACAN, 1953/1998, p. 279). Há,
portanto, nesta articulação uma referência central ao nome do pai.
Nesse mesmo texto, Lacan reconhece na loucura, de um lado, a liberdade negativa de
uma fala que renunciou a se fazer reconhecer [...] e, de outro, a formação singular de
um delírio que [...] objetiva o sujeito em uma linguagem sem dialética (LACAN,
1953/1998, p. 281). Ele avança sobre o que seria essa linguagem sem dialética ao tratar
42
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
dos fenômenos de código e dos fenômenos de linguagem no texto “De uma questão
preliminar...” (LACAN, 1957-58/1998). Ali Schreber ensina a Lacan de que é composto
o significante novo que vem ao mundo para reconstruí-lo. Ao tratar dos fenômenos de
código, a saber, as vozes que proferem sobre a língua de fundo e que Schreber atribui
aos raios, Lacan faz, então, uma correção.
“...estamos na presença desses fenômenos erroneamente chamados de intuitivos, pelo fato
de o efeito de significação antecipar-se, neles, ao desenvolvimento desta. Trata-se, na
verdade, de um efeito do significante, na medida em que seu grau de certeza (segundo grau:
significação da significação) adquire um peso proporcional ao vazio enigmático que se
apresenta inicialmente no lugar da própria significação” (LACAN, 1957-58/1998, p. 544-
545).
A experiência enigmática encontra-se situada no nível de uma experiência de efeitos de
significação, enquanto converte uma negatividade em positividade. Acompanhemos: na
ausência de uma significação, surge o vazio enigmático, ao qual o psicótico responde
com a certeza delirante, significação da significação. Trata-se de um efeito significante
na medida em que é regido por suas leis, por operar uma substituição à ausência da
significação.
SIGNIFICAÇÃO DA SIGNIFICAÇÃO
. VAZIO ENIGMÁTICO .
SIGNIFICAÇÃO
Primeiro elisão e vazio, depois a certeza que curto-circuita toda avaliação de convicção
do sujeito.
“Ela [a certeza] o exclui o sentimento de perplexidade, longe disto, posto que a
significação da significação não designa nada mais que uma significação presente mas
indeterminada, o que é a definição mesma do enigma que os sujeitos psicóticos encontram
e... carregam. [...] o que nós poderíamos traduzir assim: menos isso significa e mais isso
significa” (SOLER, 1993, p. 55).
Ao mesmo tempo em que diz respeito a uma certeza de significação (no segundo grau),
revela uma experiência de não sentido (no primeiro grau).
O delírio se apresentará como ensaio de deciframento, como esforço de réplica que o
sujeito dará à produção destas significações novas. Para Lacan (1957-58/1998), ele não
é a explicação de uma experiência primitiva. Ele possui exatamente a mesma estrutura
dos fenômenos elementares, que, em contrapartida, já revelariam a estrutura do delírio.
No que tange à segunda possibilidade, que articula o enigma ao gozo, localizamos suas
43
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
considerações sobretudo no Seminário XXIII: Joyce, le sinthome. Ao retomar a noção
de enigma neste seminário, Lacan (1975-76/2005, p. 67) assim o define: um enigma é
uma enunciação tal que dela não se encontra o enunciado”. Se o enigma tende à
significação num primeiro tempo, nesse ponto ele se articula a um gozo excedente ao
sentido. Lacan o escreve como Ee. É uma arte que ele chama de entre as linhas, fazendo
alusão à corda do nó borromeu. Essa arte, artifício da escrita, incide sobre o impossível,
que Lacan trata como o Outro do Outro real, porquanto ele é um fazer que nos escapa e
que transborda o gozo que nós possamos ter dele. É o “gozo de Deus” enquanto alguma
coisa da qual não podemos gozar.
em Freud atestamos a experiência enigmática do gozo do Outro sobre o ser
apassivado de Schreber, pela via do suporte que ele lhe confere. E, dos estudos sobre a
psicose, Lacan decantará as modalidades de incidência desse gozo na esquizofrenia e na
paranóia. Partindo da polaridade sujeito do gozo e sujeito do significante, Lacan
(1966/2003), ao escrever a introdução à versão francesa do livro de Schreber, define a
paranóia identificando nela o gozo no lugar do Outro como tal. o gozo na
esquizofrenia, Lacan o abordará somente alguns anos mais tarde, em “O aturdido”
(1972/2003). Dialogando e retificando O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari (1972), trata
do gozo do esquizofrênico com o órgão em contraposição ao corpo sem órgãos com que
esses pensadores acreditaram encontrar mais liberdade em relação ao significante. O
que para seu corpo cria um órgão [...] é justamente por isso que ele [esquizofrênico]
fica reduzido a descobrir que seu corpo não é sem outros órgãos, e que a função de
cada um deles lhe cria problemas” (LACAN, 1972/2003, p. 475).
Lacan, então, redefine a noção de enigma, referindo-se de outra forma ao sentido. Ele
passa a fazer uma parceria diferente da significante-significado nesse período,
substituindo-a pelo par signo-sentido. Isso aparece em “Introdução à edição alemã dos
Escritos (LACAN, 1973/2003), quando ele localiza o significante como objeto da
lingüística, e não da psicanálise. Como se, seguindo-a, abstraíssemos o par significante-
significado para pensar os efeitos de significação, perdendo de vista a produção de gozo
na linguagem. É por conta da recuperação dessa dimensão do gozo, para além do
significante que, na década de 70, Lacan opera a substituição desses pares. Lacan
então restitui como primeiro uso do signo o gozo sexual e, como primeiro uso do
significante, o efeito de significado (MILLER, 2005, p. 333).
44
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Falar é gozar, o significante está a serviço do que faz signo para o sujeito. Agora é de
não-sentido que se trata, ou melhor, de j’ouis-sens, gozar enquanto escutar sentido. É
mais uma versão do gozo no nó borromeano, além do sexual e do gozo do sentido. Aqui
encontrar um sentido implica em saber qual é o nó, e de cosê-lo corretamente graças
a um artifício (LACAN, 1975-76/2005, p. 73), na medida em que a clínica passa a se
fazer de cortes e religamentos. Com isso, muda o estatuto do sentido, pois ele porta uma
dimensão de gozo inapreensível. O sentido do sentido, em minha prática, se capta
(Begriff) por escapar (LACAN, 1973/2003, p. 550). Por conta desse escape que
funciona como gozo, Lacan pôde dizer, então, que o cúmulo do sentido seria o enigma,
o que escapa à significação.
Naveau (2004a) destaca exatamente esse não-sentido no enigma de Joyce trabalhado
por Lacan no Seminário XXIII. Stephen Dedalus assim o apresenta no texto:
The cock crew
The sky was blue
The bells in heaven
Were striking eleven
T’is time for this poor soul
To go to heaven
17
Ainda que seja clara a referência a um enterro, é surpreendente a resposta do enigma:
“The fox burrying/His grandmother/under the bush” ou é a raposa enterrando sua avó
debaixo da moita. A entrada da raposa aponta o non-sense. Não é o sentido que conta
aqui, mas a enunciação.O que surpreende, é o que é dito, mas em relação a quem diz
[...] O acento colocado, não sobre o enunciado, mas sobre a enunciação (NAVEAU,
2004a, p. 28-29). A inversão operada por Lacan consiste em colocar o acento não mais
sobre o sentido, mas sobre a causa. Assim, o enigma a ser decifrado decorre da própria
relação de Joyce com a linguagem, estabelecida em termos dessa tensão entre enunciado
e enunciação (MANDIL, 2003, p. 183).
Podemos nos perguntar se, ao reapresentar aqui a noção de enigma, articulado ao gozo,
Lacan não responde a si mesmo no texto “Função e campo...” quando estabelecia
símbolo e linguagem como limites do campo psicanalítico. Quando na Páscoa de 60 o
17
“O galo gritou/O céu estava azul/Os sinos no céu/Badalavam onze tempo para essa pobre alma/Ir
para o céu”.
45
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
objeto a é apresentado formalmente no texto “Observação sobre o relatório de Daniel
Lagache” (LACAN, 1960/1998), uma reinterpretação da produção lacaniana é então
exigida numa leitura a posteriori. Seus desdobramentos são recolhidos especialmente
nos anos imediatamente posteriores, como nos seminários sobre a angústia e sobre os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise, datando o período de novas e férteis
questões, tais que: qual a relação entre significante e gozo, que não se trata mais de
uma exclusão; como o gozo condiciona o significante (e aqui uma reversão da
causalidade entre os termos se encontra esboçada); que tratamento conferir ao que
escapa ao simbólico enquanto estrutura da linguagem; como o sentido produz gozo se a
palavra mata a coisa? São questões que surgem paralelamente ao rompimento de Lacan
com sua escola, fundando também em seu ensino um novo período, como veremos.
A clínica passa a ser orientada pelo tratamento desse “resíduo irredutível” (LACAN,
1966/2003, p. 222) que queda da divisão que estrutura o sujeito. A ele, a noção de letra
enquanto auto-referente, enquanto escritura que funciona como referente fundamental,
idêntica a si mesma, se acrescentará mais tarde. O sintoma pode então ser concebido no
registro da escritura como a forma com a qual cada um goza do inconsciente na medida
em que o inconsciente o determina, seja na neurose, seja na psicose. Nesse contexto, o
enigma e uma possível resposta delirante (significação da significação) a ele ganham
nova consistência.
A introdução da letra, enquanto o que abole a referência ao símbolo, é o que Lacan
destaca de sua releitura ao caso de Schreber em 1966. A experiência enigmática central
de Schreber seria a de constatar que todo não-sentido se anula. É o não-sentido que
pode vir a se abolir na experiência de seu delírio. Construção que deve mais à escritura
e à letra que à fala e à linguagem e que se esforça em ser para si mesma sua própria
referência.
“O trabalho delirante se conceberia assim: construir a letra com a ajuda da letra até que ela
possa abolir o símbolo, e assim realmente elevá-lo a uma potência segunda. É isso que
tornará sua coexistência compatível com a ausência de suporte, não de um discurso
estabelecido, mas de nenhum Nome-do-Pai estabelecido” (LAURENT, 1993, p. 50).
1.3.2 As estabilizações psicóticas no ensino de Lacan
A. O ato
Lacan, ao trabalhar o ato como solução psicótica (LACAN, 1932/1987), o associa ao
mecanismo de autopunição, característico da paranóia que estuda. Apesar de ser
46
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
considerada a última grande obra nosológica da psiquiatria de nossos tempos
(BERCHERIE, 1989), Lacan insiste que o caso estudado, Aimée, é apenas um protótipo
que permite classificar outros quadros análogos em termos de fenômenos elementares,
evolução e prognóstico. A paciente estudada, por motivação delirante, desfecha um
golpe de faca contra uma famosa atriz parisiense que, defendendo-se, tem apenas dois
tendões seccionados. A posição de Aimée em relação à certeza do ato permanece a
mesma por vinte dias depois de presa, quando, então, cessa o delírio. Segundo Lacan
(1932/1987, p. 251), essa reação acontece somente após Aimée ser abandonada e
reprovada pelos seus e confundida com os delinqüentes com os quais esteve confinada,
enfim, quando realiza ela mesma em si seu castigo. Com o ato, atinge a si própria
paradoxalmente, sentindo alívio afetivo (choro) e a queda brusca do delírio.
“Pelo mesmo golpe que a torna culpada diante da lei, Aimée atinge a si mesma, e, quando
ela o compreende, sente então a satisfação do desejo realizado: o delírio, tornado inútil, se
desvanece. A natureza da cura demonstra, quer nos parecer, a natureza da doença”
(LACAN, 1932/1987, p. 254).
Nesse período, Lacan não havia estabelecido as diferentes vertentes do ato passagem
ao ato, acting-out e ato analítico –, e ainda ingressava na psicanálise. Sabemos que, em
Freud, essa distinção sequer é levantada. Para este, que trata apenas do acting-out na
neurose, seu aparecimento é a marca da emergência do recalcado, manifestando-se,
quando em análise, em relação à transferência e, mais especificamente, com a colocação
em ato daquilo que o sujeito não recorda do que recalcou (FREUD, 1914c/1976, p.
196).
Lacan, independentemente de considerações diagnósticas, vai estruturando ao longo de
seu ensino coordenadas lógicas que permitem diferenciar o acting-out da passagem ao
ato. É possível escandir em três tempos o desenvolvimento ulterior proposto por Lacan
para o tema: 1. no texto “A direção da cura e os princípios de seu poder” (1958/1998),
cujo traço central é a análise do acting-out como relativo à intervenção do analista, a
partir do caso paradigmático de Kris; 2. no seminário A angústia (1962-63/2004) em
que, apoiado no caso freudiano da jovem homossexual, estabelece uma clínica
diferencial entre acting-out e passagem ao ato, articulando-os com a angústia e o objeto;
3. e, quando, relacionado ao ato analítico, a distinção entre os dois é definitivamente
estabelecida.
No seminário sobre a angústia, Lacan concebe a dimensão do agir, independentemente
47
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
da estrutura clínica, em duas grandes vias, a do significante (ou do Outro), concernente
ao acting-out, e a do objeto, referida à passagem ao ato. Esta última, a que interessa à
nossa investigação diretamente, consistiria em separar a vida de sua tradução, de sua
transposição no Outro, momento em que não se faz possível nenhuma mediação, mas
que traz um caráter resolutivo. Apesar de haver uma causa posta em jogo, ela não pode
ser interpretada pois não se inscreve no campo do Outro. Sua causa conjuga-se com o
objeto, inassimilável pelo significante, concernente ao gozo e localizado no Outro em
exterioridade. Diz respeito ao objeto a. O sujeito sai de cena no momento do ato.
Na psicose, não se a extração do objeto a e, por conseguinte, a castração não opera
seus efeitos de organização simbólica a partir do significante primordial – o significante
do Nome-do-Pai –, nem traz a significação do falo significante da ausência como
testemunha da inscrição da castração, a partir da qual se constituiria a tela da fantasia.
A cena montada na fantasia não pode ser referida ao psicótico, posto que esta diz
respeito, na neurose, justamente à tela que o sujeito constrói diante do horror do objeto
que cai como o impossível de significar no complexo de castração. Tela que enquadra a
realidade, desdobrando-se na relação simbólica com o significante; véu sobre o qual
pinta-se a ausência. A cortina assume seu valor, seu ser e sua consistência justamente
por ser aquilo sobre o que se projeta e se imagina a ausência (LACAN, 1956-
57/1995, p. 157).
É o Nome do Pai que limita e esvazia o gozo do Outro, separando o gozo do corpo e
fundando o sujeito capaz de desejar. O psicótico, que foraclui o Nome do Pai, terá
sempre o Outro presentificado, invadindo suas relações. Na psicose, como efeito da
não inclusão da castração no Outro, tem-se o fato de ele falar, de estar do lado de
fora, presentificando-se nas alucinações” (QUINET, 1997, p. 108).
Sabemos que a castração implica no recorte de gozo que, localizado, separa o sujeito do
campo do Outro. Por conta da o extração do objeto a na psicose, o gozo, o
significantizado e contido, retorna como real em excesso. Assim, o psicótico permanece
identificado à posição de gozo do Outro, oferecendo-se ele próprio como objeto no
lugar da falta que não se inscreveu pela castração.
Podemos supor que é desse objeto que duplicado na relação imaginária com o outro e
estando como que em excesso o sujeito tenta se desvencilhar na passagem ao ato na
psicose. Realizam em ato, a título quase de suplência, o efeito capital do simbólico,
48
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
isto é, seu efeito de negativização do ser vivente [...] A mutilação real emerge em
proporção à falta de eficácia da castração (SOLER, 1990, p. 19). Quando o objeto
não é chamado a complementar a falta fálica, corolário imaginário da inscrição
simbólica do Nome-do-Pai, quando é unicamente o duplo especular do sujeito, torna-se
sinônimo de morte. Segundo Bechelany, como hipótese demonstrada em sua dissertação
de mestrado,
“A passagem ao ato na psicose pode ser vista como essa tentativa de realizar a castração
simbólica, à qual ele [psicótico] não teve acesso, pela via do real. Trata-se de obter a
extração desse objeto, desse ponto de gozo que invade e submete e, ao mesmo tempo, a
separação radical do Outro. Extrair esse objeto, que é ele mesmo, do campo do Outro,
representa para o psicótico a possibilidade de libertação do Outro, conjugado com uma
certeza que só poderia ser arrancada do próprio ato em si” (BECHELANY, 1999, p. 17).
Solução que longe de favorecer o laço social desfaz suas possibilidades, posto que auto
ou heteromutilador, o ato redunda em agressividade, violência e, algumas vezes, em
crime. Estratégia de estabilização, portanto, que não se deve encorajar na clínica com a
psicose. Podemos, no ximo, aprender com o ato na psicose o que, de sua essência,
pode nos auxiliar a pensar o campo das estabilizações. Há um excesso a ser subtraído na
economia psíquica do psicótico. Esse excesso que não caiu sob a forma de objeto a,
invade e exige a construção de uma barreira, sua extração real ou simbólica, ou ao
menos sua localização. Fiquemos por enquanto com essas indicações.
B. A metáfora delirante
Antes de terminar a formulação da noção de objeto a, Lacan trabalha o delírio como
solução psicótica enquanto metáfora delirante que funciona como suplência ao Nome-
do-Pai foracluído. A idéia da metáfora delirante é correlativa à operação da metáfora
paterna. A década de 50, período da formulação da metáfora paterna e da metáfora
delirante, é caracterizada no ensino de Lacan pela primazia do simbólico, do poder do
significante, sendo a estrutura da linguagem a base para sua formulação, ainda que se
evidencie o impossível de escrever como real em jogo em qualquer estrutura clínica.
Para Lacan, quando de seu nascimento, a criança é confrontada com o desejo do Outro
(materno) que significa suas experiências primárias. Ao grito da necessidade responde o
desejo desse Outro nomeando, para o infans, sua demanda (LACAN, 1956-57/1995).
Esse trabalho de simbolização primordial, que Freud (1920/1976) estabelece a partir do
automatismo da repetição da brincadeira do fort-da, implica na presença-ausência
49
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
materna que, aparecendo como Dom, permite à criança simbolizar, a partir de seu
desejo, a falta. Esta aparece na significação fálica, representação da ausência,
introduzida pela operação da metáfora paterna. Essa operação diz respeito à introdução
de uma Lei interditora fundamental que impede ao filho ser reintegrado à completude
com a mãe e àe fazer do filho seu falo. Sendo ser de linguagem, dividido, também a
mãe é submetida a essa lei, que transmite inconscientemente para o filho sob a forma da
interdição paterna. Assim o Nome-do-Pai elide o desejo da mãe, permitindo à criança
nomear-se a partir do enigma que funda sobre seu ser. Trata-se, como se vê, de uma
operação metafórica ao nível significante, que coloca esse Nome em substituição ao
lugar primeiramente simbolizado pela operação da ausência da mãe (LACAN, 1957-
58/1998, p. 563). O Nome-do-Pai reduplica-se no lugar do Outro na medida em que ele
constitui também a lei do significante.
Nome-do-Pai __ . _____Desejo da Mãe __ -> Nome-do-Pai A
Desejo da Mãe Significado para o sujeito Falo
Vimos que, quando ao apelo do Nome-do-Pai corresponde a carência do próprio
significante recalcado no campo do Outro, ocorre a foraclusão. O significante do Nome-
do-Pai é rejeitado simbolicamente e em seu lugar responde no Outro um simples furo
que, pela carência do efeito metafórico de recobrimento da falta instalada pelo desejo
materno, provoca um furo absoluto correspondente no lugar da significação fálica.
Ora, é justamente que o objeto aparece de maneira diferenciada na psicose, exigindo
trabalho pulsional. O sujeito advém, na psicose, no lugar do objeto para fazer sutura ao
real, ele próprio, como forma de se sustentar na vida, de estruturar sua realidade. Na
psicose, portanto, é o psicótico, com seu próprio corpo como aparato, que se localiza no
lugar da abertura que seria obtida pela extração do objeto a. Nesse sentido, torna-se
possível afirmar que “não existe uma possibilidade de estar fora da estrutura discursiva
a não ser pela psicose (PINTO, 1992, p. 314), ponto precípuo de sua segregação no
laço social. O que não equivale a dizer que o psicótico está fora da linguagem, mas que
se relaciona com ela de maneira particular pois ela lhe é exterior (GUERRA, 2000, p.
239). A saída, nessa elaboração lacaniana de 1957-58, constituída a partir do caso
paradigmático de Schreber, é a metáfora delirante, que se constrói numa tentativa de
suplenciar a metáfora inoperante do Nome-do-Pai. Trabalho que, segundo MALEVAL
50
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
(1996), baseando-se no ensino de Lacan desse período, pode ser pensado em quatro
tempos.
Lacan fala de um horror inicial de Schreber à idéia de ser mulher, o qual acaba
aceitando quando esta se torna um compromisso razoável (LACAN, 1957-58/1998, p.
570). Ao final assume o estatuto de uma decisão irreversível de uma assintótica
porque sempre apontada para o futuro cópula com Deus para que uma nova
humanidade fosse criada. As quatro lógicas que permitem essa elaboração seriam:
1. Deslocalização do gozo e da perplexidade angustiante quando se o
desencadeamento significante a partir de uma ruptura na cadeia provocando uma
autonomia do significante (automatismo mental, segundo Clérambault). A
perplexidade advém justamente do fato de o sujeito não se sentir autor de seus
próprios enunciados. A conseqüência dessa experiência de autonomia do
significante no real é a deslocalização do gozo, provocando fenômenos diversos
sobre o corpo do psicótico, sejam agradáveis ou penosos, voluptuosos ou
agonizantes, ou mesmo hipocondríacos. No caso Schreber, vemos sua manifestação
em sua primeira crise em 1893 ao apresentar um esgotamento nervoso, no qual
surgem queixas hipocondríacas. Somente em 1894 surgirá uma significação
enigmática em torno da idéia, aparecida em 1893, de que seria belo ser uma mulher
no momento da cópula.
2. A significação do gozo deslocalizado implica num trabalho de mobilização do
significante pelo psicótico na busca de uma explicação para os fenômenos que o
invadem. Em Schreber, essa primeira explicação aparece na acusação que formula
de um complô que estaria sendo tramado por seu médico, Dr. Flechsig. Essa
explicação não apazigua Schreber, ao contrário, deixa-o à mercê de um Outro todo-
poderoso. Daí a busca de uma nova explicação, encontrada no fato de que fora o
próprio Deus que assumira o papel de cúmplice, e mesmo de instigador, na
conspiração em que sua alma deveria ser assassinada e seu corpo usado como o de
uma rameira. surge um compromisso razoável, característica marcante dessa
segunda fase. É o sacrifício da morte do sujeito, tomado por Lacan (1957-58/1998)
como renúncia fálica, marcando a reversão da posição de indignação de Schreber,
que passa a aceitar a eviração porque servidora dos desígnios de Deus. E não, como
articula Freud (1912[1911]/1976), tratar-se-ia do complexo paterno que transfere de
51
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Flechsig para Deus a figura do pai de Schreber, com a qual ele se apaziguaria.
3. Identificação do gozo do Outro assentado num significante, “mulher de Deus”, o
gozo do Outro, a partir de então, se encontra identificado. Porém, a aceitação da
feminilização progressiva de Schreber não implicou no desaparecimento do
sentimento de que uma violência estava sendo-lhe infligida. A diferença é que
agora, no delírio, os perseguidores se encontrariam identificados.
4. Consentimento ao gozo do Outro, que implica no consentimento com a nova
realidade construída a partir da certeza de que um saber fundamental foi adquirido.
Em Schreber, esse saber aparece como advindo do Todo-Poderoso e é acompanhado
de construções fantásticas e temas megalomaníacos. Maleval (1996) localiza essa
última fase do delírio de Schreber em 1897 quando o drama do sujeito se torna o
motivo futuro de uma redenção interessante do universo e sua feminilização culmina
na eviração, seguida pela fecundação por meios divinos, com o objetivo de gerar
novos homens, de uma raça superior, feitos do espírito de Schreber. A convicção
desse tema fantástico aumenta na medida em que diminui o sentimento persecutório.
Assim, podemos dizer que são condições de possibilidade da metáfora delirante:
(a) a presença da atividade delirante;
(b) o trabalho de localização delirante do gozo do Outro, através de uma operação
de redução significante;
(c) o consentimento com a experiência de gozo aí nomeada.
Maleval (1996) também destaca que muito raramente se atinge esse nível de elaboração
delirante em termos de metáfora, acontecendo, no mais das vezes, uma tentativa
desordenada de construção delirante ou mesmo apenas uma defesa paranóide. Além
disso, como nos lembra Zenoni (2000), a conclusão de uma metáfora delirante, como
qualquer trabalho de elaboração simbólica, deixa um resto inassimilável que pode
aparecer sob a forma de um gozo suplementar. Com isso, instala-se o risco de uma
passagem ao ato ou de uma nova desestabilização. Dessa maneira, o cálculo clínico
quanto ao delírio na direção de um tratamento deve considerar esse risco. Muitas vezes,
também o delírio dificulta e faz obstáculo à construção de enlaçamentos sociais na
psicose.
Com tudo isso, podemos dizer, no tocante às estabilizações psicóticas, que a metáfora
delirante nos evidencia a possibilidade de um trabalho de simbolização, de trabalho
52
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
sobre o significante que, adquirindo valor de inscrição primária, funda uma referência
em torno da qual o sujeito se localiza no discurso do Outro. Com a metáfora falamos de
uma operação de linguagem, e não de uma extração real como no ato. O aspecto
criacionista aqui aparece na invenção de uma nova significação onde um uso comum
instalava antes o significante eleito para operar a metáfora sobre o ser do sujeito. Ainda
assim, fica para este período do ensino lacaniano a interrogação acerca do estatuto que
esse significante adquiriria de forma a poder operar como um referente. Avancemos
com essa questão.
C. A escrita enquanto obra
É somente quando se dedica a estudar a função da escrita para Joyce que Lacan trará a
perspectiva a partir da qual pode-se formular uma hipótese que traga novidade para
nossa investigação sobre a estabilização psicótica e a criação. Assim, antes de
discutirmos especialmente essa estudo lacaniano, partiremos da discussão, central em
nossa pesquisa, acerca do que seria essa materialidade sobre a qual repousa a
possibilidade de solução que aqui discutimos. Em seguida, destacaremos a posição de
autores contemporâneos acerca da mesma para, no capítulo seguinte, determo-nos na
elaboração conceitual com a qual Lacan avança teoricamente sobre os aportes clínicos
aqui abordados, alcançando a mostração que a topologia borromeana nos permite
realizar sobre o ponto da discussão das estabilizações que nos interessa.
Quando os oficineiros que trabalham diretamente com os psicóticos se referem a uma
“substância” de trabalho, a uma “materialidade” ou a uma “densidade simbólica
diferenciada”, identificam, sem justificar teoricamente, que um elemento importante,
ainda que não identificado por eles, no ensaio de estabilização que suas oficinas
oferecem aos seus participantes. Que elemento, porém, é este? De qual densidade se
trata no trabalho do psicótico quando ele faz sua criação sobre um material concreto? O
que, dessa criação, se extrai como essencial a uma possível estabilização?
Em Freud, a partir do texto do “Inconsciente” (1915a/1976), podemos afirmar que o
objeto se esboça enquanto materialidade simbólica, representação densa, porque
investida catexicamente, quantitativamente de libido, a partir da representação da coisa
hipercatexizada pela representação da palavra. Assim, o objeto, ao mesmo tempo
interior ao aparelho psíquico, lhe é exterior, como evidencia a estrutura topológica da
53
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Banda de Moebius, causando o estabelecimento do laço do sujeito com o mundo ao
provocar sua inscrição na linguagem através dos deslizamentos na cadeia significante.
Assim, ele se inscreve como desejante pela via da palavra.
Ora, essa operação não se faz na psicose. Daí Freud falar que os psicóticos se contentam
com palavras em vez de coisas, como vimos. É pela representação da palavra que ele
tenta aceder a uma representação do objeto que a representação da coisa não está
inscrita no inconsciente. Essa inscrição inconsciente ausente nos remete à idéia
lacaniana de um objeto-resto que não queda da linguagem. Com a ressalva de que esse
objeto não equivale à representação do objeto freudiano acima descrita, mas antes ao
objeto desde sempre perdido dessa teoria. Se não queda o objeto, se falta a falta, o gozo
se impõe como experiência incontornável e invasiva para o psicótico. Não é dessa
materialidade que nos parece tratar os oficineiros.
Como vimos na introdução desta tese, Lacan irá inicialmente atribuir a idéia de matéria
ao significante e a de substância ao gozo, a partir de uma referência cartesiana. Ora,
vimos na fala dos entrevistados que eles usam indistintamente as duas expressões, sem
levantar sequer uma distinção entre elas. E também sem associar os efeitos que
recolhem a uma ou outra via ou às duas. Por vezes, fica mesmo difícil localizar se eles
falam em materialidade referente à matéria bruta de suas oficinas ou referente a algo
além que faria operar ou favorecer a estabilização no processo criativo que os usuários
realizam ou no produto decorrente dessa criação.
Tornou-se consenso entre os psicanalistas que atuam na interface com a Saúde Mental
ler a criação artesanal como possibilidade de extração real do objeto do campo do Outro
não realizada pela castração –, com a conseqüente localização do gozo no produto ali
extraído. Assim, o psicótico localizaria o gozo fora do corpo, no caso da esquizofrenia,
ou fora do campo do Outro, no caso da paranóia. Nos dois casos, teríamos uma extração
e um produto que se endereçariam ao outro, favorecendo, pois, o laço social.
Pensando a questão a partir da proposta de Lacan na década de 70, podemos dizer, de
outra maneira, que a noção de densidade para a psicanálise ganha sentido entre o real e
o simbólico, ou melhor dizendo, naquilo que o simbólico tem de real, ponto limite de
inscrição da pulsão. Se a década de 50 trouxe a primazia do simbólico a partir da
articulação significante da metáfora delirante enquanto solução na psicose, deixa
entrever um excesso incontido como real, que Lacan desenvolverá na década de 60
54
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
enquanto objeto a. Esse desenvolvimento será essencial para o estabelecimento da idéia
de um gozo suplementar e da noção de letra.
Comecemos pelo objeto a. Vemos que o fato de a cadeia significante ser o que
consistência à existência do sujeito, não implica em que essa consistência seja concreta.
Ao contrário, ela é lógica e sustentada no campo do Outro pelo objeto a. Situar a
consistência lógica no campo do Outro é o fundamento de todo discurso, o princípio
mesmo do laço social (MILLER, 1996d, p. 197). Sendo lógica, essa consistência se
extrai do objeto a, que toma consistência quando se fala à medida que se o aniquila.
Portanto, é também um resto, no sentido de resto por dizer. É por isso que
“o objeto a como semblante tem seu lugar entre o simbólico e o real. É uma consistência
lógica que faz semblante de ser, e é o que é encontrado quando do simbólico se vai em
direção ao real. O objeto a é uma elaboração simbólica do real que, na fantasia, toma o
lugar do real, mas ela é apenas umu. Sua função específica é complementar a referência
negativa do sujeito. O objeto a, como consistência lógica, está apto a encarnar o que falta
ao sujeito. É o semblante de ser que a falta-a-ser subjetiva convoca. É por isso que o objeto
a como consistência lógica é próprio para dar seu lugar ao gozo interdito, ao objeto
perdido” (MILLER, 1996d, p. 196).
Assim, a extração do objeto a é apenas um outro nome para a castração. Na psicose, a
não incidência da castração seria a responsável pela consistência do objeto que se
manifestaria, por exemplo, nos olhares que se alucinam ou na multiplicação de vozes
que se escutam. O Outro na psicose sabe, tem existência real, e, por isso, persegue, ama,
modifica o corpo do psicótico, altera sua vontade, impõe-lhe pensamentos (GUERRA,
2000, p. 241).
Se o neurótico trabalha a partir das palavras, extraindo um gozo a mais na produção
analítica sob a consistente forma lógica do objeto a, que queda excedente ao final de
uma análise, poderíamos supor, com o aporte teórico da década de 60, que na psicose
seria preciso extrair do campo do Outro esse gozo excessivo que invade o psicótico.
Nesse sentido, a solução, enquanto trabalho de estabilização na psicose, poderia se valer
de diferentes expedientes, isolados ou conjugados, tais que ato, obra, metáfora delirante,
identificação, transferência.
No que toca a essa dimensão teórica, inúmeras questões surgiram daí a partir do final do
ensino lacaniano, problematizando para nossa pesquisa pontos fundamentais. Lacan não
está mais a falar em representação de um significante para outro significante, tendo o
sujeito como resultado, como na metáfora paterna neurótica da década de 50, na qual
vemos a primazia do simbólico. Ao mesmo tempo, a disjunção entre significante e
55
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
gozo, sujeito e objeto, começa a ganhar nova configuração. E, além disso, elementos
novos, como lalíngua, falasser e letra, surgem no contexto da “lingüística lacaniana”
revirando-a do avesso.
A maioria dos autores contemporâneos (LAURENT (1995b), MICHAUD (1999),
QUINET (1997), RABINOVITCH (2001), SOUZA (1999)), seguindo a trilha aberta
por Freud, localiza no trabalho sobre o delírio uma das soluções encontrada pelos
psicóticos para trabalhar essa delimitação do gozo do Outro. Todos destacam a
diferença, explicitada, entre delírio e metáfora delirante e, em sua totalidade,
perguntam pelo lugar do analista na condução de um tratamento com psicóticos, sendo
ora mais otimistas ora menos, quanto ao alcance dos resultados que se pode obter nessa
clínica possível. Localizam no ensino de Lacan da década de 50 – referido ao Nome-do-
Pai e à norma fálica os indicadores estruturais cujas ausências denunciariam a
estrutura clínica da psicose.
Em nossa investigação, entretanto, interessou-nos especialmente investigar a dimensão
teórico-clínica responsável pela análise dos efeitos que a criação artística ou artesanal
pode produzir em casos de psicose, para além somente da discussão em torno da
metáfora delirante e do lugar do analista no tratamento possível da psicose. Nesses
termos, alguns autores m se detido nessa via de elaboração inaugurada por Lacan,
apontando precedentes para nossa investigação.
Soler (1990) situa em dois registros diferentes as “sublimações criadoras” na psicose.
Num primeiro grupo, tomando como paradigma Rousseau (SOLER, 1998), ela situa o
trabalho de psicóticos de construírem um novo simbólico, o que cumpriria uma função
semelhante àquela do delírio para Schreber. E, num segundo grupo, ela apresenta uma
posição mais radical de soluções que não recorrem ao simbólico, destacando que elas
dizem respeito a uma operação real sobre o real do gozo não articulado pelas redes da
linguagem, aproximando-as do ato como solução ou trabalho na psicose.
“Assim sucede com a obra – pictórica, por exemplo – que não se serve do verbo, senão que
dá a luz, ex nihilo, a um objeto novo, sem precedentes – por isso a obra está sempre fechada
na qual se deposita um gozo que deste modo se transforma até tornar-se “estético”, como
se diz, enquanto o objeto produzido se impõe como real” (SOLER, 1990, p. 18).
Sobre esse segundo grupo, o paradigma para ela também é a escrita joyceana. A seu ver,
Joyce não retifica o Outro do sentido como Rousseau, mas antes o assassina. A
foraclusão do sentido é correlativa à passagem do texto, que deveria produzir sentido,
56
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
mas que aqui aparece como real. Assim, a foraclusão pode ser pensada como uma
letrificação do significante mediante a qual este se transforma em átomos de gozo real.
Aqui fica clara a não equivalência entre metáfora delirante e criação artística. Diferença
sutil que demarca um referencial de leitura sustentado pelas proposições de Lacan na
década de 70. Antonin Artaud, Van Gogh, Bispo ou mesmo Camille Claudel realizaram
de diferentes formas a tentativa de se escrever através de sua obra. Mas vemos, nesses
casos, outras conseqüências, que não o sinthoma
18
, se apresentarem.
Zenoni (2000), apoiado na segunda clínica de Lacan, entende que, para todo ser falante,
a linguagem introduz uma outra satisfação, um gozo para além do princípio do prazer e
que é da ordem da pulsão. Assim, introduz uma nova clínica no sentido de que são os
fenômenos da pulsão, e menos os da linguagem, ou seja, as modalidades de gozo e os
diferentes estatutos da pulsão, que determinam as saídas de cada sujeito. Estaríamos
diante de modalidades de retorno do gozo também no real do corpo e não somente, ou
principalmente, na linguagem. Quanto às soluções encontradas pelo psicótico, elas não
se resumiriam tão-somente a conseqüências negativas da falta do Nome-do-Pai, mas
seriam soluções positivas, invenções por parte do sujeito para lidar com esses retornos.
Nessa vertente, o significante tornado real encontra-se isolado, o reenvia a outro
significante, implicando um trabalho em outro plano da linguagem, qual seja, lalíngua.
Acompanhar o “autotratamento” do psicótico, seja para prolongá-lo, seja para desviá-lo,
convocaria o saber psicanalítico e o reformularia. Ele recorre à leitura lacaniana de
Joyce para justificar sua hipótese. “A idéia de Lacan é a de que a escrita de Joyce pode
dar-nos a idéia de um tratamento possível da linguagem [...] a escrita de Joyce pode
fornecer um modelo para práticas menos elaboradas que podem ser encorajadas com o
sujeito psicótico” (ZENONI, 2000, p. 54).
E ilustra essas possibilidades com casos atendidos em serviços de Saúde Mental. Tal é o
exemplo de uma jovem melancólica que se mutilava em tentativas de suicídio com
pedaços de vidro encontrados no lixo. A partir da idéia de colar esses pedaços de vidro
do lixo numa superfície e fazer disso uma espécie de espelho, criação que tomava uma
dimensão estética estabelecendo entre ela e o lixo uma certa distância, as passagens ao
ato cessaram. São essas intervenções, chamadas por Zenoni de construções em lugar
de interpretações –, que conectam, a seu ver, o real e o simbólico.
18
Cf. a discussão sobre estabilização, suplência e sinthoma na seção 3.2.3 desta tese.
57
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Essa lógica reaparece em Alvarenga (1999), que também recorre a Joyce. Segundo ela,
trata-se de caso paradigmático de psicose não desencadeada graças ao trabalho criativo
que, nele, toma a forma de sintoma, daquilo que amarra os três registros, vindo no lugar
do objeto fixador de gozo. Mas um sintoma que prima pela falta de sentido. Ela destaca
o endereçamento do material produzido como crucial à estabilização, seja para onde for
que ele se dirija. Para ela, é somente sobre um fundo de linguagem, onde a fala está
potencialmente presente, que mesmo que o sujeito nada tenha a dizer sobre o objeto
produzido, o fato de que ele é endereçado a alguém coloca-o em pauta numa relação
onde o que é criado pode ser lido (ALVARENGA, 1999, p. 120). Interessante
destacar, na posição de Alvarenga, a função do endereçamento na solução pela via da
criação artística que não prescindiria da linguagem.
Birman (1989), por seu turno, concebendo os objetos como objetos da pulsão, e não
objetos aprisionados pelo discurso racional sugere que, por isso mesmo, ao entrarem no
circuito pulsional, eles possibilitariam, através da metáfora delirante ou da arte,
estabilização. Na medida em que é reconhecido pelo Outro, ele entra no circuito
pulsional com os outros objetos, permitindo a estabilização na psicose.
Finalmente, Quinet (1997), ao discutir o caso de Arthur Bispo do Rosário, propõe a arte
como saída pela via do sintoma, implicando numa tentativa de barrar a Coisa. O
sintoma é uma modalidade criacionista de o sujeito lidar com a Coisa... (QUINET,
1997, p. 222). Para ele, tanto Bispo quanto Schreber são levados a realizar o impossível
do imperativo de gozo que é, ao mesmo tempo, um imperativo de significantizar o real,
coisificando a linguagem e literalizando as coisas. Em Bispo, haveria um trabalho entre
real e simbólico ao modo hegeliano: ao nomear o objeto, ele aprisiona a Coisa,
significantiza o real alinhavando-o ao simbólico. Esse sintoma, entretanto, não é
suficiente para provocar o laço social que é para Deus, e não para a civilização, que
Bispo endereça seu trabalho.
Especialmente nessa discussão, Quinet (1997, p. 220-238) pensa a arte na psicose no
sentido da criação, operando pelos registros real e simbólico. Afirma haver dois tempos
na constituição do delírio e da arte em Bispo. Um primeiro momento, no qual o delírio é
desencadeado a partir de uma alucinação; e um segundo em que ele emerge como o
criador do mundo com sua obra. Localiza também a obra de arte na psicose como
estando fora do âmbito do Nome-do-Pai, servindo de sintoma na tentativa de barrar o
58
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
gozo do Outro. Diz a respeito de Bispo que, apoiado em seu delírio, com sua obra ele
utiliza o simbólico a partir de seu sintoma para domesticar o gozo da Coisa e tentar
cavar um furo onde possa vir alojar seu ser (QUINET, 1997, p. 229), que sua
obra implicaria no tratamento da Coisa não esvaziada de gozo pela castração. Não seria,
então, um trabalho muito diferente do de Joyce, que Bispo buscava o sentido
enquanto Joyce operava pelo real, alinhavando a letra sem sentido na costura de um
nome próprio pela obra em si mesma? Pois se Joyce se nomeava, se dizia pela obra, ao
contrário Bispo queria que sua obra pudesse dizer algo ao Outro. E se o trabalho
artístico segue em par com o delírio, não seria a posição do sujeito como objeto de gozo
do Outro que se afirmaria, opondo-se e não facilitando o trabalho de estabilização? Se é
possível com a criação artística realizar uma escritura do gozo, fazer obra a partir de
outros suportes traria quais efeitos subjetivos? Prescindiriam eles do suporte conferido
pela escrita, via letra? Lacan nos fala, quanto à letra, em escrita e em suporte para o
pensamento, para o significante; ponto que tocado, desloca, e cria uma nova relação.
Não seria que se revelaria o ineditismo de algumas criações psicóticas
estabilizadoras?
Como se vê, parece-nos haver uma posição comum entre os autores mais
contemporâneos em situar os efeitos da criação artística na dobradiça real-simbólico, na
perspectiva pulsional de construção, de escrita de uma nova solução, gerando efeitos
sobre a posição de gozo do psicótico. E podemos detectar também a presença do
endereçamento do trabalho, seja à comunidade literária, seja a Deus, seja à sociedade,
trazendo conseqüências concretas diferentes conforme o campo para onde se dirija a
criação.
Qual a articulação no texto lacaniano que permitiu esses desdobramentos? Ao final de
sua obra, Lacan toma o caso de Joyce em estudo, afirmando que seu trabalho sobre o
real do gozo não implica numa “apropriação simbólica” ou numa “construção
significante” que faz borda ao impossível de dizer, como sugere a metáfora delirante.
Sua escrita estaria mais próxima do ponto limite entre real e simbólico, mais próxima da
noção de letra que da de significante. Na falta da queda do impossível de apreender na
forma de objeto a, Joyce cria, ele próprio, um campo de ausência como na neurose o
real instalaria. É porquanto o sinthoma faz um falso-furo com o simbólico que uma
práxis qualquer (LACAN, 1975-76/2005, p. 118). E essa práxis implica num trabalho
59
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
de transformação subjetiva pela via da escrita.
Esta é a novidade. Lacan não fala de complemento ao que não operou, mas de
suplemento ao que, para todos, falha. Esse suplemento pode fazer suplência pelo falso
furo que, enlaçando esses dois círculos (simbólico e sinthoma, aqui entendido como
real), não é furo nem de um, nem de outro. Somente se atravessado por uma reta infinita
ou terceiro rculo campo do Imaginário, do qual o Falo é o organizador –, ele está
verificado, ele é real. Entendendo-se que o real não é exatamente um terceiro círculo,
mas o resultado de uma maneira específica de enlaçá-los, de tal forma que partindo um,
todos se desentrelaçam.
O real é sempre um pedaço, um caroço em torno do qual o pensamento borda, mas ele,
como tal, não se liga a nada, é incorpóreo. A consistência, Lacan a localiza no corpo, a
partir da incidência do objeto a e do traçado que, sobre o gozo, ele realiza. E o que faz
laço com a consistência do corpo é o inconsciente. Nós não podemos atingir senão
pedaços do real. Se ele, porém, é atingido, um novo simbólico se forma, uma nova e
inédita forma de relacionar-se com o real se realiza, como através do sinthoma da
escrita em Joyce.
Ora, é justamente daí que se extrai a riqueza dessa transmissão lacaniana: quanto ao
sinthoma não nada a fazer para analisá-lo, decodificá-lo. Ele cifra o gozo, e não, ao
contrário, o nomeia e desvenda. Ele condensa pelo des-sentido. Faz ponto de amarração
onde um erro do não sustenta a articulação borromeana dos três registros – como faz
o Nome-do-Pai enquanto o sinthoma neurótico por excelência. Lacan chega mesmo a
falar na função da arte ou do artesanato, como vimos, abrindo o precedente que nos
instigou a esta pesquisa:
“Todo o problema está aqui - como uma arte pode visar de maneira divinatória a
substancializar o sinthoma na sua consistência, mas também na sua ex-sistência e em seu
furo? Esse quarto termo [...] essencial ao borromeano, como alguém pôde visar com sua
arte produzi-lo como tal, a ponto de aproximá-lo de tão perto quanto possível?” (LACAN,
1975-76/2005, p. 38).
Sabemos que foi, sobretudo, com o estudo de Joyce que Lacan formalizou a idéia de
uma nova forma de amarração dos três registros a partir da obra que, neste caso, ganha a
forma de escrita literária. O que podemos extrair dessa análise para pensarmos o
sinthoma e sua função na estabilização psicótica?
É sobre a lógica fundada no borromeano que Lacan fala de sinthoma em Joyce que
60
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
realiza, pela escrita, o nome próprio, sem o apoio ao Nome-do-Pai. “[Do Nome-do-Pai]
se pode também prescindir. Pode-se também prescindir dele com a condição de dele se
servir (LACAN, 1975-76/2005, p. 136). Pelo menos é o que ele nos propõe pensar em
sua discussão sobre Joyce. Lá, a hipótese da escrita como sinthoma surge e ganha
evidência. Fazer enigma, desejar um nome que seja lembrado, ser artífice que sabe fazer
sinthoma, fizeram de Joyce - a partir de um percurso particular no caminho encontrado
para lidar com a demissão paterna - paradigma de uma modalidade de solução na
psicose: a obra, pelo viés da escrita.
Seja a partir do de trevo, seja a partir do borromeu, iremos ver, Lacan irá propor,
em qualquer dos casos, que o sinthoma se faz enquanto um elemento suplementar. No
caso de Joyce, inventado por ele para se haver com a demissão paterna. Se apenas
Simbólico e Real se encontram atados (e entrelaçados), é preciso um novo movimento
do sujeito para que amarre o Imaginário que se encontra solto. O sinthoma é o efeito
desse movimento de escrita que se faz índice, cifra. Invenção suplementar sobre um
lapso do nó. E essa amarração se faz pela escrita da letra que permite uma outra
escritura do nó borromeu.
“Que se esteja deitado ou de pé, o efeito de cadeia [nó] que se obtém pela escrita não se
pensa facilmente [...] Considero que ter enunciado sob a forma de uma escrita o real em
questão, tem o valor daquilo que se chama geralmente um traumatismo. [...] Digamos que é
o forçamento de um novo tipo de idéia
19
” (LACAN, 1975-76/2005, p. 131).
Forçamento de um novo tipo de idéia que não floresce unicamente pelo fato daquilo que
faz sentido (imaginário), mas que, antes, suporta o sentido e a ele sustentação, com
um alcance simbólico. Trata-se, pois, de uma invenção, de uma nova forma de o sujeito
suportar a realidade sem o recurso ao Nome-do-Pai. Que seja preciso a escrita para dela
extrair o objeto a muda completamente o sentido da escrita, o sentido do que está em
jogo. A letra não faz senão testemunhar a intrusão de uma escrita enquanto outra
com, precisamente, um pequeno a. [...] A escrita em questão vem de uma outra parte
que não do significante (LACAN, 1975-76/2005, p. 145). Ela ganha autonomia em
Joyce. Ela é um fazer que dá suporte ao pensamento. É letra que codifica gozo.
O ego é o que surge como o que corrige (“corretor”) esse ponto da relação faltante do
que não se enoda borromeanamente àquilo que faz de Real e de Inconsciente, sendo
o artifício da escrita o que restitui o borromeu. É o texto de Joyce que se escreve
19
Aqui originalmente, nos textos estenografados, lia-se ‘escrita’, e não ‘novo tipo de idéia’.
61
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
borromeanamente. A consistência desse suporte diz respeito à letra, inscrita pelaoutra
forma” de escrita joyceana do sinthoma. Parece-nos que é a esse fenômeno que Lacan
se refere ao falar de arte ou artesanato. A partir de um quarto elemento, Joyce inventa
um nome assentado sobre sua obra.
A partir do comentário de Jacques Aubert sobre Joyce no Seminário XXIII, Lacan
(1975-76/2005) pôde nomear aquilo em que Joyce confiou, mais que em seu Pai, para
se sustentar: seus sintomas. As epifanias
20
“essas breves frases tiradas do contexto que
poderia dar-lhes significação, esses fragmentos de discursos nos quais o sem sentido
reluz” (SOLER, 1990, p. 18) traduziriam esse momento em que o gozo efetivamente
se adensa, passando Joyce a confiar nele. As epifanias funcionam de modo autônomo no
texto joyceano, isoladas de qualquer contexto ou, em termos lacanianos, como
significantes puros, isolados de toda significação, donde provém seu caráter
condensador e desprovido de qualquer sentido.
Pela escrita, Joyce consegue metaforizar sua relação com o corpo. Lacan destaca essa
dimensão no episódio de Finnegans Wake em que, apanhando de seus colegas, Joyce
sente seu corpo soltar-se como uma casca. E disso ele não extrai gozo. O interessante
mesmo não são as metáforas que ele emprega, mas que algo realmente cai, solta-se de
seu corpo como uma casca. É como alguém que coloca em parênteses, que expulsa, a
lembrança (LACAN, 1975-76/2005, p. 150), ou seja, que faz sintoma numa
dimensão que está para além do símbolo. Podemos dizer que, com a análise do caso de
Joyce, Lacan passa da obra como expressão de um sintoma à obra como sintoma sem
expressão, ou melhor, da obra como símbolo de um sintoma à obra como sintoma sem
símbolo” (MANDIL, 2003, p. 24).
Nessa terceira possibilidade de estabilização, parece-nos que Lacan um passo largo
ao incluir a letra e o que ela traz de irredutível, bem como ao evidenciar o vazio de
significação que habita a própria linguagem, exigindo do enigma que dela nasce a
20
O termo epifania, como nos explica Mandil (2003, p. 124-125), foi “retirado da tradição cristã; refere-
se a uma manifestação do Verbo no campo da percepção, em geral, e do visível, em particular”. Em
Joyce uma aproximação entre as epifanias e as claritas (radiância; alma ou essência do objeto
apreendido esteticamente), terceiro elemento da estética de inspiração tomista que, de certa forma, se
opõe à dimensão da aparência do objeto, correlacionada à integritas (percepção da imagem estética como
um todo) e à consonantia (manifestação da simetria e do ritmo na apreensão da obra). Coletadas em
cadernos, as epifanias joyceanas são pequenos fragmentos de texto, isolados de um contexto narrativo,
ocorrendo invariavelmente na terceira pessoa e transmitidas em tom impessoal, estático, o que permitirá
seu enxerto posterior ao longo das obras de Joyce (Id., ibdem). Sobre as epifanias, cf. também Joyce
avec Lacan (AUBERT, 1987, p. 87-95).
62
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
interposição de uma invenção como resposta. É sob essa perspectiva que o campo das
estabilizações pode se valer desses desenvolvimentos lacanianos. O que faz cifra opera
sobre o gozo. No próximo capítulo, desenvolveremos os aportes psicanalíticos que
permitem articular essas questões, mostrando pela topologia em que o real está
implicado nessa construção.
63
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
CAPÍTULO 2
QUANDO A ESTRUTURA DA LINGUAGEM APONTA SEU
MAIS-ALÉM
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
2.1 Discussão dos Conceitos Preliminares à Compreensão da Revisão Lacaniana
2.1.1 Percursos e percalços teórico-clínicos
No Seminário RSI, Lacan (1974-75) aponta a debilidade do humano ao tentar dar conta
do real pela linguagem, com a conseqüente fundação do inconsciente. Ele se esforça, no
período final de seu ensino, em reduzir ao mínimo matemizável suas formulações. E vai
além. O uso da topologia borromeana evidenciará a intenção de tratar o real pelo real,
mostrando, na transmissão e na clínica, o uso que podemos fazer desse irredutível.
Dessa forma, denotará, de um lado, um desejo de redução que garanta uma transmissão
possível da psicanálise e, de outro, um efeito recolhido por ele na clínica. Ao menos é o
que verificamos no empenho com que sustenta seu ensino. Os vinte e sete
21
seminários
que proferiu são a prova mais viva desse desejo. Esse empenho, entretanto, atende
também à exigência de se aproximar de uma transmissão o mais integral possível da
psicanálise com os matemas.
Ele apresenta o termo pela primeira vez em seu seminário Ou Pior...”, na aula de
04/11/1971. Ao contrário do que se poderia supor, o termo matema não tem origem na
matemática, mas lhe origem. Parece ter sido forjado a partir do termo estruturalista
de Lévi-Strauss, mitema
22
, além de fazer referência à palavra grega máthema
23
, que
significa conhecimento. Sua relação com o campo da matemática é deduzida por Lacan
da loucura de Cantor
24
. Se essa loucura, em essência, não é motivada por perseguições
objetivas, diz ele, está relacionada com a própria incompreensão matemática, isto é,
com a resistência provocada por um saber considerado incompreensível
(ROUDINESCO, 1988, p. 610). Ela se relaciona com a letra, a transmissão, a herança.
Veicula, assim, a questão sobre como transmitir um saber que parece não poder ser
21
Aqui incluo o Dissolution (1980) e não incluo os dois seminários que proferiu em sua residência sobre
o Homem dos Lobos (1951-52) e o Homem dos Ratos (1952-53), respectivamente.
22
Mitemas são as unidades estruturais de análise dos mitos nas quais Lévi-Strauss se apóia para
empreendê-la. Cf. vi-Strauss, Antropologia estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975. (Cap.
XI - A estrutura dos mitos, p. 237-266)
23
Máthema na raiz grega significa ciência, conhecimento, aprendizagem, donde, por conseqüência,
mathematikos significar apreciador do conhecimento. “Em grego, mathetés é aprendiz, aprendente,
pupilo, discípulo: o que aprende... Mathetría é a mesma coisa, que no feminino... Mathetêia ou
máthema é aquilo que se aprende... (De máthema vem matemática...)”. Consultado na Internet dia
10/03/2007: <http://www.mathetics.net/pages/mathein.htm>.
24
Georg Cantor (1845-1918) foi um matemático alemão de origem russa conhecido por ter criado a
moderna Teoria dos Conjuntos. Foi a partir desta teoria que chegou ao conceito de número transfinito,
incluindo as classes numéricas dos cardinais e ordinais, estabelecendo a diferença entre estes dois
conceitos (que colocam novos problemas quando se referem a conjuntos infinitos).
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
ensinado, seja o matemático, seja o psicanalítico. Entre 1972 e 1973, Lacan singulariza
e pluraliza o termo, articula os quatro discursos com o matema e o define como a escrita
do significante, do traço, da letra, ou seja, daquilo que não se diz, mas pode ser
transmitido, ainda que dele um resto lhe escape permanentemente. Assim, o matema
incluía o conjunto das fórmulas da álgebra lacaniana que permitiam um ensino. Lacan
fala desse desejo de matematização da psicanálise ao proferir suas conferências nos
EUA, em Novembro de 1975. Refere-se a uma espécie particular de simbólico, que liga
o real pela escrita, afirmando que:
“tudo o que foi produzido como ciência é não verbal. [...] As fórmulas científicas o
sempre expressas por meio de pequenas letras. [...] A ciência é tudo aquilo que se liga na
sua relação ao real graças ao uso de pequenas letras. [...] É certo que eu tento dar forma a
alguma coisa que agiria como núcleo da psicanálise, do mesmo modo que essas letrinhas”
(LACAN, 1975b, p. 30).
O isolamento desse mínimo matematizável é marcado pela introdução da concepção de
letra e sua relação ao real no ensino lacaniano, pois, para ele, “não é com palavras que
nós escrevemos o real, é com pequenas letras” (LACAN, 1975b, p. 30). A letra aqui é
tomada enquanto identidade de si para si, articulada ao trauma do nascimento do sujeito
para a linguagem.
Nessa direção, a invenção de uma resposta ao traumático conduz Lacan a uma discussão
sobre o tratamento que a Linguagem realiza sobre a ngua materna (ou lalíngua
25
). O
traumático é revelado pelo encontro com o sexual, com o indizível que coloca o sujeito
na busca de um sentido para essa experiência que ele tenta dominar com palavras. Em
função disto, o que de mais fundamental nas relações sexuais do ser humano com a
linguagem teria a ver com a língua materna (LACAN, 1975b, p. 20). A língua materna
ou a lalíngua seria feita desse gozar. A referência de Lacan é ao traumatismo que,
sempre significante, lalíngua e gozo produzem, o traumatismo que lalíngua produz em
um sujeito. Lacan chegou a fazer dele, em seu último ensino, o núcleo do inconsciente,
ou seja, esses significantes foram investidos e isso os traumatizou. Na medida em que
o que cria a estrutura é a maneira em que a linguagem emerge no início num ser
humano” (LACAN, 1975b, p. 12), seria o trauma da linguagem sobre o corpo que
operaria a inscrição do sujeito e, nesse sentido, seria a letra, enquanto não reenvia a
25
Optamos por manter a tradução de lalíngua para lalangue, apoiados no texto de CAMPOS (1998).
Segundo ele, o prefixo “a” em português tem um sentido privativo que o distancia do artigo francês
feminino “la”, podendo dar um sentido oposto ao que lalangue apresenta.
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
nada, que fixaria o que de mais singular na posição do sujeito. Ora, essa discussão
interessa-nos diretamente, pois, como nos adverte Miller (2003a, p. 12), é
precisamente o traumatismo do significante, do significante enigma, do significante
gozo, que obriga a uma invenção subjetiva”. Parece-nos haver, portanto, para o campo
das estabilizações psicóticas, das invenções psicóticas uma resposta que se articula no
nível da letra.
Ainda para Roudinesco (1994, p. 364), é “a leitura de Wittgenstein e a elaboração das
duas noções de matema e de lalíngua que levam Lacan, em 1971, a adotar uma nova
terminologia destinada a pensar o estatuto do discurso psicanalítico em relação a outras
formas de discursividade”. Para isso, era preciso passar do dizer ao mostrar. Ao mesmo
tempo, e numa segunda via, a introdução da topologia borromeana tenta responder à
insistência lacaniana em evidenciar o discurso analítico. Lacan está às voltas com o que
se apresenta de extremamente singular nos casos que atende. Do universal da
linguagem, ele retirou o particular do uso pessoal do significante. Extraída essa
particularidade, entretanto, resta, em cada caso, a singularidade de uma dimensão
irredutivelmente única, não formalizável genericamente e apenas extraída por cada
sujeito de sua experiência com o real.
Ao mesmo tempo, entretanto, em que uma singularidade absolutamente radical se revela
ao psicanalista diante de cada analisante que se dispõe a escutar, algo de um certo
‘mesmo’ se atualiza em cada psicanálise, conferindo-lhe sua consistência teórica e
estrutural. Freud nos advertia da importância em tomarmos cada caso como primeiro,
deixando-nos guiar por aquilo que não se soma na experiência clínica. Lacan, ainda em
1954, destacava essa posição freudiana notando que Freud
“preferiria renunciar ao equilíbrio inteiro de sua teoria do que desconhecer as mais ínfimas
particularidades de um caso que a contestasse. O que equivale a dizer que, se a soma da
experiência analítica permite destacar algumas formas gerais, uma análise progride do
particular para o particular” (LACAN, 1954/1998, p. 387).
Lacan desenvolve essa questão clínica na década de 70 até o ponto em que se encontra
com a topologia. Eis os termos com os quais ele coloca a questão (1973/2003, p. 554-
555). A partir do fato de que existem tipos de sintoma, existe uma clínica. Mesmo que
ela tenha sido anterior ao discurso analítico, com este ela se funda na vertente
determinada pela existência do inconsciente, enquanto um saber que se trata de decifrar
pelo trabalho significante, ao mesmo tempo em que ele próprio opera um ciframento de
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
gozo. Que os tipos clínicos
26
decorrem da estrutura, isso é certo, como também é certo
que o que decorre da mesma estrutura o tem forçosamente o mesmo sentido. É por
isso que só existe análise do particular. O que identifica os tipos clínicos é a estrutura, e
não o sentido. Os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para os outros do
mesmo tipo. O discurso de um obsessivo, por exemplo, pode não dar o menor sentido
ao discurso de outro obsessivo. É disso que resulta haver comunicação na análise
por uma via que transcende o sentido, aquela que provém da suposição de um sujeito
no saber inconsciente, ou seja, no ciframento (LACAN, 1973/2003, p. 555). Essa cifra
que localiza o que de particular em cada sujeito está para além de seu tipo clínico,
ganha a forma do objeto a e assenta-se sobre a materialidade da letra. É onde o núcleo
real de cada sujeito o singulariza.
Se há, qual seria a novidade para a clínica, no que Lacan concebe na década de 70 sob a
égide dos nós borromeus? Por que essa questão sobre o singular na clínica se encontra
com o desenvolvimento da topologia borromeana no ensino lacaniano? O que a
estrutura dos nós introduziria em relação à estrutura da linguagem? Quais suas
conseqüências clínicas para a psicose? A formalização do Real, do Simbólico e do
Imaginário num primeiro tempo, a invenção do objeto a noutro, e a introdução da
topologia, em especial a dos nós no período referido, são, em nosso entendimento,
elementos com os quais Lacan tentou responder às aporias que os avanços teóricos e sua
clínica lhe exigiam. Dessa forma, nessa segunda parte da tese, buscaremos elucidar
alguns termos por ele inaugurados ou retomados em torno da década de 70, buscando
entender como eles podem funcionar como abertura para pensarmos as estabilizações
psicóticas pelo viés da criação.
2.1.2 As condições de possibilidade da construção dos novos conceitos lacanianos
Para Miller (2003b), o final do ensino de Lacan estaria inacabado, apenas anunciado por
traços deixados em sua transmissão. Estes não teriam ganhado nesse caso uma última
versão. Esses restos escritos não existem para orientar as deduções que se podem extrair
desse ensino. Ele sugere tomarmos as placas indicadas como um verdadeiro caminho
de Roma” (no sentido de caminho certo) a ser seguido, a partir da última conferência
26
Entendemos que os tipos clínicos são decorrentes das três estruturas: neurose, psicose e perversão. Na
primeira, teríamos a histeria e seu dialeto, a neurose obsessiva; na psicose, a esquizofrenia, a paranóia e a
melancolia; enquanto na perversão, o fetichismo e os pares sadismo-masoquismo e exibicionismo-
voyerismo.
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
lá pronunciada, “La troisième” (LACAN, 1975a), e trabalhado ao longo dos seminários
que se seguiram ao RSI (LACAN, 1974-75).
A orientação é essencialmente lacaniana. O próprio Lacan nos lembra que seu trabalho
foi o de extrair da intuição e da teoria freudianas registros para formalização da
psicanálise.
“[...] que eu tenha começado pelo Imaginário e, em seguida, precisado um bocado mastigar
essa história de Simbólico com toda essa referência linguística sobre a qual efetivamente
não encontrei tudo aquilo que me teria facilitado. E depois, esse famoso Real, que acabei
por lhes apresentar sob a forma mesma do nó” (LACAN, 1974-75, aula de 14/01/1975).
O primeiro esforço de recuperação da clínica psicanalítica em Lacan (década de 50)
teria sido uma tradução de Freud, no sentido de produção de novas interpretações a
partir do texto original. Haveria, nesse período, pontuações do texto freudiano. No
retorno a Freud, Lacan teria traduzido rejeição por foraclusão, destacado o traço unário
e a castração, retomado a noção de eu como pivô da experiência analítica e a função da
fala como única operatória na prática analítica, suportada pelo campo da linguagem.
Porém, com essas retomadas, ele não teria feito mais que pontuações. Elas vão até
formalizações, é certo, mas não excedem o status de pontuação na tradução que
efetivam de Freud. Poderíamos mesmo dizer que se trata de um trabalho metódico de
crítica que tensiona as aporias freudianas, discutindo suas conseqüências. Dessa
maneira, a primeira clínica seria uma celebração do acontecimento-Freud e do
desenvolvimento de suas conseqüências, tomados enquanto novidade radical, corte em
relação ao que antecedeu Lacan e guia obrigatório de acesso ao inconsciente e de uma
direção que convém ao tratamento analítico (MILLER, 2003b, p. 08).
Lacan também teria apresentado a disjunção entre sujeito do inconsciente e sujeito da
consciência de si. Da autonomia da consciência, Lacan chegaria à autonomia do
simbólico, operando essa passagem ancorado no estruturalismo de Lévi-Strauss. Mas,
ainda assim, seriam pontuações, traduções de um sentido verdadeiro da obra freudiana,
desviada principalmente pelos pós-freudianos da Psicologia do Ego norte-americana.
No “Seminário sobre a carta roubada” (LACAN, 1957a/1998, p. 13-66), em especial,
Lacan cria o esquema de alfa, beta, gama e delta para ilustrar o automatismo do
simbólico, para conferir ao inconsciente enquanto memória o suporte simbólico. Ele
começa por evidenciar que o aleatório tal qual a cara e a coroa na lei das
probabilidades é impossível de ser previsto, organizado, calculado. Não se pode
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
prever qual será o resultado da próxima jogada, cara ou coroa, ainda que se possa
deduzir, após inúmeras jogadas, que a probabilidade de cada uma delas aparecer será de
50%. Nesse nível, ele trabalha com o que pode ser pensado como a matéria real, o que é
da ordem do dado da experiência, o que tem valor bruto. Num segundo momento, essa
casualidade pode ganhar um reagrupamento regido por reciprocidade, tal qual o
funcionamento imaginário, especular, pareado. Uma lógica começa a ser esboçada. E,
no terceiro nível, esses reagrupamentos por duplas ganham leis de organização,
combinatórias possíveis e outras agora impossíveis, uma verdadeira sintaxe, sendo os
agrupamentos do segundo nível reorganizados a partir dessas leis que introduzem
uma lógica simbólica. Há, como se pode deduzir, uma prevalência do simbólico que, a
posteriori, organiza a leitura das dimensões imaginária e real. Busca-se a construção de
um sentido para o real, o estabelecimento de regras para se interpretar o aleatório
(BASTOS, 1998).
Foi com base nessa perspectiva estruturalista que Lacan empreendeu sua releitura de
Freud nesse primeiro tempo de seu ensino. Nela, o sujeito, diferentemente da
abordagem fenomenológica, conhece os dados mediatizados pela estrutura, cuja
alteridade é dada pela noção de Outro. A percepção seria organizada previamente pela
estrutura. O perceptível faria sistemas e o simbólico dominaria o perceptível da
realidade. A dinâmica no estruturalismo é reduzida à permutação de elementos em
lugares invariáveis, quer dizer que uma estática dos lugares explorada por Lacan
(MILLER, 2003b, p. 21).
O avanço do ensino lacaniano implicará numa reinterpretação desse determinismo.
Lacan questionará o real da estrutura ao discutir sua dimensão de arbitrariedade. O que
a Antropologia Social estruturalista de Lévi-Strauss colocou em relevo foi o
relativismo, a perspectiva de que o real poderia ser estruturado de maneiras diversas, e,
então, ganhar uma estrutura irredutível. Donde se extrai que qualquer estrutura é,
antes de tudo, uma construção de leis que regem a realidade factual. Mas, para Lacan,
subjaz a esse sistema de leis um real de dados imediatos que não caberia buscar decifrar.
Aliás, que restaria como inacessível, indecifrável. Haveria uma espécie de matéria bruta
dos fatos, sem nenhuma estrutura lógica anterior a esse sistema de ordenação estrutural.
Sobre ela se construiria a elucubração do sentido, um saber. Isso teria conduzido Lacan
a uma nova fenomenologia, a ordenar um real fora do sentido, prévio àquele que a
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
estrutura confere e que, por isso mesmo, não pode ser definido.
Daí poder se extrair uma duplicidade de leituras acerca do inconsciente. Ora, ele pode
ser pensado como uma elucubração freudiana de saber, ora como real fora de sentido,
apreendido pelo equívoco, pelo engano. A base material do inconsciente como dados
imediatos é o tropeço, o escorregão, o deslizamento de palavra à palavra. Aqui
estamos no nível imediato a partir do qual se elucubra (MILLER, 2003b, p. 23).
Qualquer construção que se faça sobre esse tropeço, seria uma tentativa de apreendê-
lo, um semblante, seria uma debilidade do mental. Debilidade que aponta para a
dificuldade em se lidar com o corpo (o imaginário) e com o real. Nessa ótica, o
inconsciente seria uma doença mental (LACAN, 1974-75). Ao mesmo tempo, seria o
engano, o tropeço, aquilo que permitiria a produção no mental de sentidos diferentes, de
novas configurações como forma de resposta ao mal-estar produzido por essa
dificuldade. Interessante aqui ressaltar que a debilidade é do mental, do humano. O
déficit não está mais do lado da psicose, mas do lado de qualquer ser de linguagem. A
solução ao embaraço colocado pelo trauma da linguagem exige uma resposta singular
de cada um. Será nessa vertente que as estabilizações psicóticas passarão a ser
consideradas.
Esta seria uma novidade muito presente no final do ensino de Lacan que, como se vê,
põe em questão o sentido e o saber. Daí ele priorizar o saber-fazer (savoir-faire) mais
que o saber. A depreciação do saber como uma elucubração é correlata à discussão da
topologia do borromeano, na medida em que, sobre ele, Lacan se absteve de fazer
demonstrações e deduções lógicas. Seu esforço foi o de mostrar, a partir dos barbantes e
seu enodamento, a debilidade de toda tentativa de compreensão. O seria o efeito real
em si mesmo, e não um modelo para sua compreensão ou elucidação.
O inconsciente e o pensamento seriam tomados no nível dessa relação difícil entre o
corpo e o simbólico, que Lacan nomeia de mental no último ensino. O inconsciente
estaria no nível do mental, da debilidade que afeta esse mental enquanto necessidade de
saber, elucubração advinda do fato de ‘não se saber fazer com’. Ele aparece mais como
esse ‘não saber fazer com’, diante do qual as saídas subjetivas são sempre únicas,
singulares, irredutíveis a um padrão, que como ‘o saber que não se sabe’ freudiano
(FREUD, 1912a/1976). Dito de outra forma, essas saídas não seriam normativizadas
pelo Nome-do-Pai como um agenciador elementar e necessário, que alimentaria a
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
esperança de um saber complementar, mas, antes, seriam efeito de invenções, de
criações suplementares do sujeito diante do impossível veiculado pelo real. Já na década
de 60, Lacan começa a articular o Outro como campo do significante ao objeto a
como o que é próprio ao sujeito, singular, para, enfim, partir do que esse campo do
Outro não recobre e alcançar o que escapa como singularidade no final de seu ensino.
Na topologia dos nós, não se trata mais de falta, e sim de furo. Quando se fala de falta,
a referência a lugares, como acabamos de destacar na leitura que parte do
estruturalismo. A falta implica uma ausência que se inscreve num lugar. Pode-se faltar,
mas sempre termos que venham ali se substituir. Daí a falta ser coerente com a idéia
de combinatória e de permutação, de linearidade, de cadeia de significantes, de
metáfora. O furo, ao contrário, comporta o desaparecimento da ordem dos lugares, da
ordem da combinatória. Como no borromeano, o furo é posição própria ao resto, ao
que resta da forma como a amarração do pode se escrever. Todo esse percurso
evidencia um estatuto cada vez mais complexo da discussão das estruturas clínicas, da
psicose e das estabilizações.
2.2 Lacan, a Linguagem e a Psicose
Os reviramentos e as subversões operados por Lacan em relação à estrutura da
linguagem não implicam em avanços ou evoluções, mas antes em complexificações que
retornam umas sobre as outras ao longo da obra, sofisticando a teoria lacaniana. Ao
partir da realidade articulada pelos três registros, ele recorreu, na década de 50, à
lingüística estrutural, como vimos, para estabelecer uma estratégia de domesticação do
gozo, do vivo, pela linguagem, pelo significante. É a época dos aforismos do
‘inconsciente estruturado como linguagem’ (LACAN, 1957b/1998) e do ‘a palavra (ou
o símbolo) mata a coisa’ (LACAN, 1956-57/1995). Período em que Lacan luta contra os
desvios operados na psicanálise pela psicologia do ego e, por conseqüência, período em
que estabelece uma primazia do simbólico sobre o imaginário.
Daí a importância da metáfora, que tenta abrir, no campo lingüístico, o espaço a um
nível de experiência subjetiva para além do Imaginário. Ela seria a negação de uma
construção imaginária naturalizada pelo signo lingüístico. Simbolizar por metáforas
significa simbolizar por significantes puros (e não por signos) que são a negação do
empírico. Eles seriam a formalização da inadequação da linguagem às coisas sensíveis,
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
destacando o arbritário e a convenção em sua adoção (SAFATLE, 2006, p. 105-106).
Lacan trabalha os desvios imaginários que, na psicologia do ego, aparecem como um
desejo de adequação do sujeito à realidade, enquanto a psicanálise visaria ao desejo
articulado à Lei simbólica, como sua condição. Assim, desde que a intenção
imaginária que o analista descobre ali [no manejo clínico] não seja por ele
desvinculada da relação simbólica em que ela se exprime (LACAN, 1953/1998, p.
252), estamos pisando no território de uma clínica orientada pelos princípios freudianos
então recuperados. Nessa perspectiva, a interpretação visaria ao sentido, produzido pelo
deslizamento da cadeia significante. A clínica se orientaria pela produção significante
no que ela alcança o que, do inconsciente, pode ser tratado, decifrado. “A interpretação,
para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia
dos significantes que nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução
(LACAN, 1958/1998, p. 599) do que aparece como falta do Outro. Poderíamos
representá-la assim:
Linguagem -> Significante
Gozo
Com a introdução do conceito de objeto a em 1960 (LACAN, 1960/2003)
(desenvolvido nos seminários subseqüentes) veremos uma articulação mais fina sobre
esse ‘resto metonímico’ se delinear. A partir de então linguagem e gozo possuem uma
relação intrínseca, sem preponderância de uma dimensão sobre a outra. O que se
destaca, nesse período, é antes uma relação de sobredeterminação e limite entre os
termos. Esse a se apresenta justamente, no campo da mensagem da função narcísica
do desejo, como objeto indeglutível, se assim podemos dizer, que resta atravessado na
garganta do significante. É nesse ponto de falta que o sujeito tem que se reconhecer
(LACAN, 1964/1998, p. 255).
Lacan nesse período responde à crítica que sofre quanto ao estruturalismo lingüístico e
ao racionalismo pregnantes em sua obra. Ele busca retomar os conceitos fundamentais
da psicanálise, destacando a pulsão e o vivo no sujeito desejante e recolocando em
novos termos a dimensão significante. O Outro é então tomado como o lugar em que
se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do
sujeito” e também “o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer (LACAN,
73
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
1964/1998, p. 193-194). A falta do sujeito também aparece desdobrada numa dimensão
significante enquanto falta-a-ser, afânise, na medida que os significantes do sujeito se
encontram no campo do Outro, e falta real, referente ao fato de que o gozo é sempre
parcial, ele é o que o vivo perde. Se tudo ainda surge do significnate nesse período,
Lacan, porém, já aponta para a estrutura de corte que faz borda ao significante
instalando uma dimensão para além dele.
Nesse ponto, o sujeito, sob as operações de alienação-separação
27
, se instalará no campo
do Outro enquanto falta-a-ser, condição de sua posição como sujeito desejante. Lacan
destaca o irredutível na análise. E o tratamento clínico passa a visar justamente
reconhecer esse irredutível e atravessar seu recobrimento fantasístico. Ainda que
significante e gozo se localizem em dois pólos antinômicos, entre eles uma relação (ou
‘todas as relações possíveis’) se estabelece: ∃<>∀.
Linguagem <- - - -> Gozo -> objeto a
Parece-nos que Lacan recorre à topologia borromeana ao se deparar com o que, do
inconsciente, não se decifra, pois, para além do deciframento operado pelo significante,
o gozo e o que dele faz cifra. Para justificar o que encontra na clínica, Lacan passa a
trabalhar com a idéia de que o significante é signo
28
do sujeito (LACAN, 1972-73/1982,
p. 195). Diferentemente do significante que somente ao reenviar a outro significante
produz uma significação, o signo representa, de maneira fechada, algo. Lacan o define,
com Peirce, como o que pode substituir um outro signo. No Seminário 20, ao introduzir
a noção de lalíngua na definição do ser falante, propõe uma articulação nova entre
significante e signo. Na perspectiva saussuriana, o signo lingüístico compõe-se de
significante mais significado. Lacan propõe a prevalência do significante sobre o
significado, localizando o sujeito no intervalo entre dois significantes. Na década de 70,
por seu turno, sugere que o significante pode ser chamado a fazer sinal, a constituir
27
A alienação ao significante do Outro com o qual o sujeito se identifica, implica em seu desaparecimento
como sujeito do inconsciente no campo do sentido e como sujeito desejante no campo do ser. Enquanto
na alienação, surgida do recobrimento dessas duas faltas, o sujeito encontra no intervalo significante uma
via para retornar da alienação enquanto sujeito desejante (LACAN, 1964/1998, p. 191-217).
28
O signo, como conceito ampliado em Peirce, implica numa relação triádica. Ele é uma coisa que
representa uma outra coisa: seu objeto. Ele pode funcionar como signo se carregar esse poder de
representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Toda relação sígnica implica na relação entre o
signo em si mesmo, o objeto e o interpretante (relação que o signo mantém com o objeto). A partir dessa
relação introduz-se na mente interpretadora um outro signo que traduz o significado do primeiro, sendo
seu interpretante. Dessa maneira, o significado de um signo é sempre um outro signo.
74
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
signo. [...] O significante é signo de um sujeito” (LACAN, 1972-73/1982, p. 195).
Ora, o aforismo lacaniano de que ‘um significante representa o sujeito para outro
significante’ implica a introdução do valor diferencial do significante. Por outro lado, o
significante como signo do sujeito implica uma relação de identidade, trazendo uma
série de dificuldades para integração dessa idéia na teorização lacaniana. A solução nos
parece advir com o conceito retomado e ressignificado de letra, como veremos em
seguida. Por outro lado, o signo tem alcance por ter que ser decifrado (LACAN,
1973/2003, p. 550). Entretanto, a dimensão da fala, ou a dit-mension, não revela a
estrutura ao chegar ao término da seqüência a que conduz a decifração. A inscrição do
sexual resta como o que faz cifra e aponta o único real que não pode se escrever, a
relação sexual. Falamos do valor que tem o estalão do sentido. Chegar a ele não o
impede de fazer furo. Uma mensagem decifrada pode continuar a ser um enigma. [...]
O analista se define a partir dessa experiência (LACAN, 1973/2003, p. 550).
Deciframento e ciframento são operações que mantêm, portanto, seu relevo na clínica
uma ativa, outra sofrida. É no nível da lalíngua que o traumatismo deixa seu traço de
inscrição do real no mundo do ser falante (interessante verificar a inversão que Lacan
apresenta aqui: é o real que ao entrar faz trauma). A linguagem seria o esforço débil
para tentar dar conta desse encontro. Tudo os conduz, no entanto, à solidez do apoio
que eles [falantes] encontram no signo – não fosse pelo sintoma com que têm que lidar,
e que faz do signo um grande nó...” (LACAN, 1973/2003, p. 552).
Aqui teríamos representada essa nova versão:
. Letra .
. Lalíngua . -> Real
.Linguagem
A linguagem aqui aparece como efeito da incidência traumática da letra em lalíngua e
suas repercussões sobre a forma de organização do gozo. Implica uma concepção de
escrita, antes ausente da obra de Lacan e fundamental para nossa discussão.
Acompanhemos Lacan.
2.2.1 Linguagem e lalíngua
Lacan apresenta a invenção do termo lalíngua na aula do dia 04/11/1971 do seminário
“O saber do psicanalista” (LACAN, 1971-72b). Nesse ano, ele realiza seu ensino em
75
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
duas séries. Uma primeira acontece na Faculdade de Direito, no auditório da Praça do
Panthéon, intitulada “Ou pior...”, e uma segunda, intitulada “O saber do psicanalista”,
no Hospital Sainte-Anne. Na primeira, o locus efetivo do seminário, Lacan destaca cada
vez mais o real, o pior, o impossível; enquanto em Sainte-Anne, ele se atém ao saber do
psicanalista. De qualquer forma, como veremos, será no bojo desse trabalho de
transmissão que ele chegará ao matema e aos nós.
Lalíngua é inventada como uma brincadeira com o nome de Lalande, filósofo que
escreveu um vocabulário de filosofia muito utilizado na França. Ao tratar da diferença
entre saber e verdade, cuja fronteira sensível seria o discurso analítico, Lacan propõe o
termo lalíngua. Ele não tem nada a ver com o dicionário, sendo antes a lógica que lhe
interessa para pensá-lo. Lalíngua é extraída do jogo da matriz de Jakobson
29
. E diz
respeito especialmente ao fonema, ao som e ao fora-de-sentido que ele veicula
(enquanto a letra estaria referida ao grafema). Lalíngua não tem nada a ver com o
dicionário, qualquer que seja ele [o de filosofia ou o de psicanálise]. O dicionário tem
haver com a dicção, quer dizer, com a poesia e com a retórica, por exemplo(LACAN,
1971-72b, aula de 04/11/1971).
A linguagem é apenas o que o discurso científico elabora para dar conta de lalíngua, que
serve para coisas diferentes da comunicação. Ela é a fala antes de seu ordenamento
gramatical e lexicográfico. Introduz um uso da palavra, não como elemento da
comunicação, mas como veículo de gozo. O que Lacan chama de lalíngua é a palavra
enquanto disjunta da estrutura de linguagem, que aparece como derivada em relação a
este exercício primeiro e separado da comunicação (MILLER, 2000, p. 101). O
inconsciente é feito de lalíngua. Nesse sentido, lalíngua coloca em questão o conceito
mesmo de linguagem, que se torna derivado e não mais originário. O inconsciente não
deixa de ser estruturado como uma linguagem, mas sua matéria bruta é lalíngua, que
está como saber que vai bem além do que o ser que fala é capaz de enunciar. Se eu
disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estruturado, é mesmo
porque a linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber
concernentemente à função da lalíngua” (LACAN, 1972-73/1982, p. 189).
Nesse sentido, a disjunção ou não-relação, que aparece, veicula o questionamento do
próprio conceito de estrutura, como elemento transcendental, enquanto o que
29
Há um lingüista que tem insistido muito no fato de que o fonema, isso não faz jamais sentido. O chato
é que a palavra muito menos; não faz sentido, apesar do dicionário” (LACAN, 1974/1986, p. 31).
76
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
condicionaria a experiência. A estrutura o está mais protegida, isolada, ela é uma
resposta à desordem originária que a condiciona, sendo ela mesma um efeito, um
arranjo realizado sobre essa desordem.
Num primeiro tempo do ensino, Lacan estabeleceu o campo da linguagem apresentado
pela função da fala, como maneira de articular o sujeito do inconsciente. Nos seus
últimos escritos, ele privilegia o termo falasser, ao de sujeito, que todo sujeito do
inconsciente implica um ser que fala, sendo extraídos dessa fala os efeitos clínicos que
alcançamos. À medida, porém, que a fala se torna veículo de gozo, ela não se inscreve
mais sob a égide da comunicação, da busca de reconhecimento do Outro. Ela implica,
antes, num gozo disjunto do Outro, num modo de satisfação específico do corpo falante,
na medida em que o corpo é o lugar, por excelência, do gozo.
Na terceira conferência que Lacan profere em Roma, gozo e linguagem ganham nova
articulação a partir de lalíngua. Não é porque o inconsciente é estruturado como uma
linguagem, que lalíngua não tenha com o que jogar contra seu gozar, que ela é feita
desse mesmo gozar” (LACAN, 1974/1986, p. 28). Lalíngua é feita do gozar que o
inconsciente veicula como o que da linguagem o excede. O que isso significa? Se a
linguagem, ou mais precisamente o símbolo, veicula a morte da coisa, lalíngua, por seu
turno, testemunha a vida que a linguagem rejeita.
Lacan insere no lugar do fonema o objeto voz, uma das quatro roupagens do objeto a.
Recoloca a voz quanto à operação significante da metonímia, deslocando-a do aparelho
de fazer sentido, e tornando-a livre, livre de ser outra coisa que substância (LACAN,
1974/1986, p. 16).
Mas ele ainda pretende definir outra delineação. Lalíngua mata o signo, ou seja, aniquila
a possibilidade de um sentido fechado e libera o real, o non-sense, o indizível que
habitaria o intervalo entre a coisa em si, seu traço e sua representação. A falar
lalíngua, um inconsciente, e ele está perdido [...]; é isso que chamo um saber
impossível de se reajuntar para o sujeito (LACAN, 1974/1986, p. 17). O que habita
esse espaço, esse “depósito” é o gozo que poderia ser atado pela operação da linguagem.
Por isso, a radicalidade e a importância clínica central de lalíngua.
Tomemos como exemplo a operação primária da significação fálica. A introdução do
fora-corpo do gozo fálico na imagem do corpo marca uma operação absolutamente não
natural que será “codificada” por cada sujeito de uma maneira extremamente única, na
77
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
medida em que sua escrita decorre da via traumática com que ele experimentará na
língua mãe, lalíngua, a entrada do significante fálico. Lacan diz que isso fica retido, pois
não vem de dentro da tela (imaginária do corpo), mas de fora. Ele, o corpo, se introduz
na economia do gozo [...] pela imagem do corpo” (LACAN, 1974/1986, p. 29). Ou seja,
se a relação do homem com seu corpo é imaginária, como já apontado em “O estádio do
espelho” (1949/1998) pelo próprio Lacan, sua razão é real: a prematuração corporal,
associada à insuficiência do simbólico. Há uma trama excedente à linguagem.
Qual a questão clínica daí depreendida? Se não um ponto comum na linguagem para
todos, é preciso buscar, a cada caso, a lalíngua do sujeito. Se a palavra, apesar do
dicionário, ganhará uma conotação particular e um uso não transferível no discurso de
cada um, mais ainda indeterminado é o fonema articulado pelo significante. Isso não faz
jamais sentido. Então se se faz dizer com qualquer palavra qualquer sentido, onde se
vai parar na frase? Onde achar a unidade elemento?” (LACAN, 1974/1986, p. 31).
Perguntar pela unidade elemento essencial ao trabalho de interpretação faz Lacan
retomar a dimensão do sintoma como o que vem do real, revirando o sentido do avesso.
Ele considera, então, que a interpretação deve visar o essencial que no jogo de
palavras, e não ser aquela que provê o sintoma de sentido. Assenta seu tratamento, pois,
a partir do furo do saber. Eis o ponto em que ele se depara com a letra como suporte do
significante, este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da
linguagem(LACAN, 1957b/1998, p. 498) e que, sendo real, veicula o não-sentido. E a
letra não existe sem lalíngua (LACAN, 1974/1986, p. 33).
O que nos conduz à questão de como lalíngua pode se precipitar na letra. É exatamente
pelo trabalho de interpretação que, enquanto trabalho de deciframento, é à cifra que
retorna. O deciframento se resume ao que faz a cifra, ao que faz o sintoma, é algo que
antes de tudo não deixa de se escrever do real, e que ir cativá-lo até o ponto onde a
linguagem possa equivocar-se é ali por onde o terreno está ganho em meus pequenos
desenhos” (LACAN, 1974/1986, p. 33).
Essa afirmação lacaniana é muito sutil e fundamental para pensarmos o que ele trata
aqui em relação à clínica. Por uma via, ao trabalhar com o deciframento, poder-se-ia
supor que a interpretação psicanalítica chegaria ao sentido último pelo esgotamento das
possibilidades de significação. Mas isso é um engodo. Ali onde suporíamos o
esgotamento estaria aberta a fonte inesgotável que multiplica a produção de sentido,
78
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
pelo gozo do blá-blá-blá, instalado entre imaginário e simbólico. É numa outra via que
ele nos propõe trabalhar. Na medida em que decifra, se o sujeito desvela o que forja o
sentido para ele, algo se cifra no sentido de atingir lalíngua. Esse intervalo entre coisa,
traço e representação revela no falasser o modo com que acolhe o gozo. E essa operação
faz cifra, redução. Convidamos o analisante a falar livremente o que lhe ocorre
exatamente para colocar à prova essa liberdade de ficção de dizer qualquer coisa (o que
se confirma impossível), ao mesmo tempo em que se revela um atravessamento: o ponto
sintomático que o estrutura e comanda seu gozo.
Por que, enfim, Lacan nos diz que está em seus pequenos desenhos o terreno que se
ganha com esse equívoco da linguagem? O que aí se escreve?
2.2.2 Letra e escrita
Em Lituraterre (1971/1986), Lacan nos as indicações do que seria essa escrita. Logo
de saída brinca com a etimologia do título que inventa para seu texto a ser publicado
numa edição especial sobre Literatura e Psicanálise da revista Littérature. Desdobra os
termos de sua invenção ao dizer que ele está antes em associação com o termo latino
original Litura (em latim: risco, alteração, mancha e terra) que com Littera (referido à
letra e à palavra Literatura). O que, nos parece, indica o estatuto que irá conferir à letra
nesse texto. Para tratar do que faz escrita, Lacan busca avançar sobre o estatuto da letra.
Na década de 50, Lacan trazia em “A instância da letra” (1957b/1998, p. 498) que
designamos por letra esse suporte material que o discurso concreto toma emprestado
da linguagem”, ressaltando sua materialidade em relação à linguagem, ao significante.
Na verdade, Lacan utiliza o termo lettre
30
pela primeira vez em “O Seminário sobre ‘A
carta roubada” (1957a/1998), associando-o à expressão a letter, a litter, uma
carta/uma letra, um lixo. Desde já, a idéia de uma materialidade se apresenta ao lado da
idéia do que faz circular o discurso. Trata-se, no conto de Edgard Allan Poe comentado
por Lacan, de uma carta a ser recuperada pois colocava em risco a rainha. Ela,
entretanto, é ‘disfarçada’ numa carta velha, dejeto, que os policiais investigadores
pegam sem se darem conta de ser exatamente a que procuravam. Com isso, Lacan
evidencia uma dimensão outra, para além da mensageira, que reside na carta. O destino
30
Lettre ganha na língua francesa um jogo homofônico permitindo ser interpretada seja como carta, seja
como letra. E Lacan ainda lhe acrescenta a homofonia com litter, estendendo seu sentido a lixo, dejeto,
resíduo.
79
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
da carta extrapola sua função de levar uma mensagem. Isso aparece no conto, pois é
exatamente depois de cumprir seu destino que ela circula como objeto de mão em mão,
como materialidade passível de ser largada, pegada, rasgada, alterada. Mandil (2003, p.
28) nos relembra que é por não corresponder à descrição de que dispunham, poro se
encaixar na cadeia prévia de sentido que a carta passa despercebida em sua dimensão de
lixo, litter.
Daí se extrai sua dupla dimensão, qual seja, a de transmissão de uma mensagem, a
letter, e também de um destino concernente à sua materialidade, a litter.“E é por isso
que não podemos dizer da carta/letra roubada que, à semelhança de outros objetos, ela
deva estar ou não estar em algum lugar, mas sim que, diferentemente deles, ela estará e
não estará onde estiver, onde quer que vá” (LACAN, 1957a/1998, p. 27). Enquanto
símbolo de uma ausência, o significante também seria marcado por essa duplicidade,
determinando as funções da letra.
A materialidade acima apontada por Lacan em “A instância da letra” (1957b/1998) é
discutida sob a mesma determinação significante, mas recorrendo a outra argumentação.
Aqui o aspecto privilegiado será o da lettre como elemento tipográfico. Ao discutir que
a estrutura significante está em ele ser articulado, reduzir-se a elementos diferenciais
mínimos e comporem-se segundo leis de uma ordem fechada, recai o interesse de Lacan
sobre uma certa equivalência entre letra e estrutura fonemática. Enquanto sistema
sincrônico dos pareamentos diferenciais necessários ao discernimento dos vocábulos
em uma dada língua (LACAN, 1957b/1998, p. 504), os fonemas se aproximariam dos
caracteres móveis das caixas baixas utilizadas na tipografia. É o que permite distinguir,
no texto lacaniano, a ação do significante e a ação do significado (MANDIL, 2003, p.
30; MILLER, 1996c, p. 97). A combinação desses caracteres móveis é diferente das
possíveis significações a que, combinados, eles dão origem. Assim também é a
combinatória significante que produz como efeito o significado. Donde Miller (1996, p.
97) propor a lettre como o significante despojado de qualquer valor de significação e
localizado na materialidade que nos é presentificada pelo caractere de imprensa”.
Lacan retoma o termo na década de 70, revelando uma nova dimensão da linguagem
que tenta, então, destacar a partir da experiência clínica. A letra seria litoral entre saber
e gozo, posto que separa dois domínios que não têm absolutamente nada em comum,
nem mesmo uma relação recíproca. Não se trata de fazer fronteira entre os dois, nos
80
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
adverte ainda Lacan (1971/1986), pois a fronteira, ao separar dois territórios,
simbolizaria que eles são da mesma natureza. A letra escreve a radicalidade da diferença
de consistências entre saber, elucubração em torno da verdade, e gozo, desfrute do que
essa verdade tem de inacessível.
A borda do furo no saber, que a psicanálise designa justamente como de abordagem
da letra, não seria o que ela desenha? (LACAN, 1971/1986, p. 23). A letra seria uma
espécie de franja que avança entre as duas consistências de naturezas diversas,
desenhando ou escrevendo essa borda tão pouco precisa no ser falante. Lacan é
cuidadoso ao avançar e diz que tudo isso não impede o que ele disse do inconsciente
enquanto efeito de linguagem. A letra suporia sua estrutura como necessária e
suficiente. A questão é, antes, como o inconsciente comandaria esta função de letra.
Pensar, pois, a relação entre letra e inconsciente nos conduz inevitavelmente a discutir a
posição da letra em face do significante. E, quanto a esse aspecto, Lacan é enfático logo
de saída. A letra não se confunde com o significante. A escritura, a letra, estão no
real, o significante, no simbólico (LACAN, 1971/1986, p. 28). Além disso, não
podemos atribuir uma primariedade da letra em relação ao significante. Ela simbolizaria
efeitos de significantes, mas isso não exigiria que ela estivesse presente nesses mesmos
efeitos, nos quais o significante não serve senão de instrumento. Seria mais importante o
exame disto que a partir da linguagem chama do litoral ao literal (LACAN,
1971/1986, p. 23), disso que a letra, em síntese, escreve. E o que é esse literal senão a
letra enquanto redução mínima do sujeito, enquanto sua escrita?
Ora, escrita não é impressão. E letra o é significante ou Wahrnehmungszeichen, Wz,
traço inconsciente freudiano
31
, aqui considerado o que de mais próximo ao significante
poderíamos encontrar em Freud. Voando sobre a Sibéria, Lacan observa sulcamentos
(de significantes), e não o arbitrário do signo e do mapa, os códigos, as mensagens.
Exigido um desvio de rota de seu avião, ele observa o que faz sulco na paisagem. O
31
Como vimos, Wz (Wahrnehmungszeichen) são os traços mnêmicos que se associam por simultaneidade
e indicam uma primeira forma de registro. Unbewusstsein (Ub) é o segundo registro que sucede ao
primeiro, referente às percepções que se associam por simultaneidade. Os traços de Ub “talvez
correspondam a lembranças conceituais” (FREUD, 1896b/1976, p. 325) ainda inconscientes.
Correspondem ao que Freud posteriormente irá estabelecer como Vorstellungsrepräsentanz
(representante da representação). Segundo LIMA (1994), a questão do traço em Freud se apresenta a
partir de três possibilidades diferentes de tradução. Zeichen corresponde à idéia de insígnia, indicação, e
está ligada à percepção, a Vorstellung. Zug corresponde ao traço unário, primário, e sua conseqüência é a
Bejahung primordial. E, por fim, ligado à memória e à permanência teríamos a Spur, que aparece como
Ub.
81
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
escoar é o único traço que aparece a operar (LACAN, 1971/1986, p. 26). Toda a
elaboração de mapeamentos se faz como código sobre esses sulcos. A letra seria, então,
um remate daquilo que, no seminário sobre “A identificação” (1961-62), Lacan
distinguiu do traço primeiro e do que o apaga.
“Eu o disse a propósito do traço unário: é pelo apagamento do traço que se designa o
sujeito. Ele é marcado, pois, em dois tempos; eis o que distingue aquilo que é rasura, litura,
lituraterra. Rasura de nenhum traço que seja anterior, eis o que faz terra do litoral. Litura
pura é o literal. Produzir essa rasura é reproduzir esta metade de que subsiste o sujeito. [...]
Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há rasura que vira literal” (LACAN, 1971/1986,
p. 26-27).
Além da dimensão do sulco, Lacan também destaca a dimensão da rasura - rasura,
porém, de nenhum traço que lhe seja anterior. A idéia de rasura nos reporta ao ato de
reescrever, apagar para melhor escrever. Quando, entretanto, Lacan introduz a idéia de
uma rasura sobre o que não está , estira ao limite a noção de linguagem. É da
linguagem que o significante apanha “seja o que for” na rede de significantes e disso faz
escrita no exato momento em que esse elemento é promovido à função de referente
essencial. Donde podemos entender por que a letra não é primária, mas antes
conseqüência do advento significante, ao contrário do que se poderia supor. A letra se
destaca no exato momento em que cai como literalidade que vivifica o falasser.
“É isso que modifica o estatuto dos sujeitos. É por que ele se apóia num céu
constelado, e não apenas no traço unário, para sua identificação fundamental” (LACAN,
1971/1986, p. 31). O sulco produzido é receptáculo sempre pronto a acolher gozo. É
rota lavrada, por onde, a partir de então, o gozo escorre e pode se alojar. Enquanto fora
da cadeia significante, enquanto não reenvia à série significante e não produz
significação, a letra se faz referente do sistema significante de uma maneira singular
para cada ser vivente, escrevendo as vias de suas possibilidades de gozo. Na metáfora
naturalista de Lacan, a chuva da linguagem faz escrita de gozo, o que permite ler os
riachos está ligado a algo que vai além do efeito de chuva. O real, como dejeto, é aquilo
que é expulso do campo do simbólico, criando uma marca, um rastro, um sulco.
Eis o tripé que articula a noção de letra: litoral, sulco e rasura (MANDIL, 2003, p. 49).
Não repetível, não generalizável, a letra é um conceito que permite a Lacan sofisticar a
noção de real, sua importância para a clínica e o que ela tem de inaugural para cada
sujeito e para cada analista que a essa experiência se lançam. Fortalece a noção de que
uma língua particular para cada sujeito que fala, lalíngua afetada por uma
82
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
significação pessoal a níveis inimagináveis (MILLER, 2003c). E orienta o método
psicanalítico a buscar na singularidade dos sujeitos atendidos esses sulcos por eles
lavrados.
E no que toca a psicose? Sobremaneira, ao que diz respeito às estabilizações psicóticas,
de que forma essas suversões lacanianas interferem e determinam nossa discussão?
Como criação, letra e lalíngua podem se articular e nos auxiliar a pensar os casos que
atendemos?
2.2.3 Escrita e psicose
A escrita é correntemente considerada uma possibilidade de estabilização, um modo de
suplência aos casos de psicose, ainda que seja uma solução raramente encontrada na
clínica. O estudo de Lacan sobre Joyce estimulou essa associação. O que, entretanto, a
clínica com a psicose na verdade testemunha é uma variedade muito grande de relações
entre a escrita e as soluções psicóticas.
Essa noção atravessa vicissitudes conseqüentes ao próprio avanço da teoria lacaniana
em seu conjunto. Segundo Sauvagnat (1999), Lacan trabalha a questão da escrita em
toda sua obra, havendo ao menos três momentos em que uma nova proposição é por ele
apresentada. A primeira é elaborada na década de 30, com seus estudos sobre a
“esquizografia” como escrita inspirada. A segunda proposta aparece na década de 60,
com a escrita a partir do traço unário, que teria que dar conta da inscrição do Nome-do-
Pai. E, por fim, na década de 70, assistiríamos à escrita que faz nó entre Real, Simbólico
e Imaginário, bem como ao que resiste a se escrever, à escrita de um impossível
remetido à relação sexual. Sigamos essa trajetória.
A. Anos 30: A psicopatologia e o elogio da escrita
Lacan, na década de 30, hesita entre uma concepção estereotipada da escrita na psicose
e outra na qual a escrita é exaltada em sua potência criativa e reveladora dos conflitos
típicos de sua época. No texto Écrits inspirés: schizographie, de 1931
32
, publicado
originalmente nos Annales medico-psychologiques, tomo II, e posteriormente
incorporado à edição francesa de sua tese de doutoramento, Lacan (1932) comenta as
32
O texto foi originalmente escrito e apresentado em conjunto com J. Levi-Valensi e P. Migault, e se
encontra acessível pela Internet em diferentes endereços eletrônicos, como no site do Groupe de Travail
Lutecium <www.lutecium.org/Jacques_Lacan/transcription/schizographie.htm>. Ele não foi incluído na
edição brasileira da tese de doutoramento de Lacan.
83
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
práticas poéticas e epistolares de uma professora primária psicótica. Ele se inspira nos
trabalhos de lingüística pós-saussuriana de Pfersdorff e Henri Delacroix
33
sobre o
mesmo caso. A razão do exame desse caso é a reticência da doença da qual se supõe que
os transtornos elementares se exprimiriam mais facilmente pela escrita. O termo
esquizografia é forjado do termo esquizofasia, que designa a existência de uma
dissociação. Nesse caso, a maioria dos escritos da paciente era absurdamente incoerente,
contrastando com o caráter absolutamente normal de sua linguagem falada e a
integridade de suas funções intelectuais” (HULAK, 2006, p. 18).
A pesquisa de Lacan se apresenta muito seletiva. Ele não se pergunta simplesmente
se a paciente é louca, mas sobre quais fundamentos repousa seu delírio polimorfo,
acrescentando que talvez os escritos ajudarão a resolver a questão.
Na discussão dos elementos psicopatológicos, Lacan destaca que a doente afirma ser-lhe
imposto o que ela exprime, não de uma maneira irresistível nem mesmo rigorosa, mas
sob um modo formulado. É no sentido forte do termo uma inspiração, tanto mais
presente quanto mais ela esteja (LACAN, 1932/1975). Duas convicções
contraditórias são acrescentadas. De um lado, ela é acompanhada de um estado de
astenia no qual seus escritos experimentam “verdades de ordem superior”
imediatamente compreensíveis pelo destinatário de suas cartas. E, de outro lado, uma
convicção negativa, a de que ela experimenta, quanto a ela própria, nada compreender
disto. Tudo isso acompanhado do sentimento de fazer evoluir a língua.
O conjunto, avalia Lacan, é idêntico à estrutura de todo delírio. Ela associa a uma
astenia passional, colorindo os estados de influência e de interpretação, uma formulação
minimal, reticente, do delírio, e um fundo paranóico. O fenômeno elementar aqui
valendo como resumo da personalidade e a escrita, como sua manifestação
empobrecida. O fenômeno elementar da ‘inspiração’ parece se tratar de uma forma
vazia, cuja expressão limite é a estereotipia, aos moldes das palavras intercambiáveis
das estrofes de uma canção. Longe de motivar a melodia, é a estereotipia que as
sustenta, e legitima no caso seu não-sentido (LACAN, 1932/1975). Esta vacuidade
formalista aparece em primeiro plano, enquanto a astenia passional lhe confere um
assentimento, diz Lacan, donde o fenômeno da ‘inspiração’ apresentar uma dimensão
33
PFERSDORFF. La schizophasie, les catégories du langage. Travaux de la clinique psych. de
Strasbourg, 1927. Guilhem Teulié. La schizophasie. Ann. Médic. psych., février-mars 1931;
PFERSDORFF. Contribution à l'étude des catégories du langage. L'interprétation "philologique", 1929; e
DELACROIX. Le langage et la pensée, Alcan.
84
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
passional e outra intelectual simultaneamente.
Ainda que algumas fórmulas sejam felizes, o mais freqüente são as escórias da
consciência, as palavras silábicas, as sonoridades obsedantes, as “banalidades”, as
assonâncias, os “automatismos” diversos, enfim, o que Lacan sintetiza em uma palavra:
estereotipia. A idéia de déficit se destaca nessa leitura. É quando um pensamento é
curto e pobre que o fenômeno automático o suplencia. Ele é sentido como exterior
porque suplenciando um déficit do pensamento. Ele é julgado como válido porque
evocado por uma emoção astênica” (LACAN, 1932/1975, p. 375).
O interessante é que, num curtíssimo espaço de tempo, Lacan (1932/1987) parece
passar dessa posição deficitária para seu contrário, positivando a escrita psicótica, que
nada parecerá limitar. Assim, os escritos de Aimée estudados em seu doutoramento
não mostrariam nenhuma estereotipia. Eles também foram utilizados como meio de
realização do diagnóstico, mas colocavam em evidência a riqueza afetiva da paciente.
A escrita de certos psicóticos como criação autêntica parece, então, excluir o uso
bruto da repetição (estereotipia): é uma ‘nova sintaxe’ ” (SAUVAGNAT, 1999, p. 40).
Sua posição parece ficar ainda mais clara no ano seguinte, ao escrever O problema do
estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranóicas da experiência” (1933/1987)
34
.
Ali Lacan localiza os temas ideacionais e os atos significativos do delírio dos
paranóicos, bem como suas produções plásticas e poéticas sob três rubricas.
Primeiramente, destaca a significação eminentemente humana desses símbolos
(LACAN, 1933/1987, p. 379), utilizados pelos psicóticos, que seriam análogos às
criações míticas, assim como os sentimentos que os animam seriam análogos à
inspiração dos artistas. Sob um segundo aspecto estaria a repetição que, longe de
reenviar a uma forma vazia e deficitária, colocaria em jogo uma “identificação iterativa
do objeto”, caracterizando o delírio de uma fecundidade próxima à dos processos de
criação poética. Por fim, num terceiro ponto, ‘o mais notável’, destaca o valor de
realidade social desses delírios, situados,com muita freqüência, num ponto nevrálgico
das tensões sociais da atualidade histórica (LACAN, 1933/1987, p. 379). O conjunto
apresenta uma contribuição à civilização humana e ao problema do estilo, que este
resumiria de alguma maneira.
Um retorno ao contrário se apresenta aqui articulado na passagem da repetição do
34
O texto foi publicado originalmente no número 01 da revista surrealista Le Minotaure, em junho de
1933.
85
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
mesmo estigmatizada como estereotipia no primeiro caso para a amplitude criativa
do processo psicótico, presente no caso Aimée. Fato é que nesse período o centro do
processo de criação está situado, para Lacan, na escrita dos paranóicos. o percamos
esta assertiva de vista.
B. Anos 60: A escrita do Nome-do-Pai
Na década de 60, uma nova reversão se opera. É, ao contrário, o Nome-do-Pai que
resume sozinho o processo de escrita. A partir de seus trabalhos sobre a instância da
letra, Lacan tenta apreender o movimento do recalcamento originário. Ele coloca em
discussão a hipótese de W.M. Flinders Petrie, retomada por J. Février, a propósito da
escrita fenícia, pois considera que ela justifica sua, então, concepção de traço unário,
cuja falha deixaria o sujeito presa do significante no real. Como podemos ver na aula de
10/01/1962, do Seminário A Identificação (LACAN, 1961-62), a função da escrita aqui
converge sobre a função da nominação e se deixa identificar à aplicação do Nome-do-
Pai. Perguntando-se sobre o que é um nome, Lacan mostra que essa noção é mais
apropriada para designar o primordial do que é um sujeito que o termo identificação.
Também mostra que os nomes são heterônomos, na medida em que resultam de uma
nominação pelo Outro.
Ao discutir a contribuição de dois célebres pesquisadores britânicos ao tema, o filósofo
B. Russell e o egiptólogo Gardiner, Lacan critica a ambos. O primeiro, por ficar muito
focalizado no aspecto denotativo, e o secundo, por considerar os nomes puramente
fonéticos, ainda que localizasse no nome algo de não traduzível. Lacan assenta-se sobre
a teoria de Petrie e Février que demonstraram não poder o alfabeto fenício originário
simplesmente derivar de uma simplificação dos hieróglifos ou de um mecanismo
referencial, mas antes dever ter sido composto com a utilização de símbolos sem
nenhuma significação, utilizados inicialmente para classificar os objetos. As
significações seriam, então, apagadas para formar um conjunto de elementos
diferenciais.
Lacan considera, nessa lição, que o movimento originário da escrita consiste em impor
sobre a linguagem vocalizada uma bateria de traços de origem externa. Esta seria a
especificidade da escrita: a criação de um conjunto de elementos diferenciais impostos
sem nenhuma significação na linguagem humana, permitindo este ato, no retorno,
86
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
exprimir a estrutura fonética da linguagem. O fenômeno da escrita consistiria, nesse
caso, no apagamento do sentido e na aplicação de uma bateria de significantes o que
Lacan chama de traço unário. Seria como uma espécie de realização de uma castração
‘positiva’, permitindo ao sujeito adquirir uma certa identificação pelo abandono de uma
relação direta com o objeto originário.
Nós teríamos, então, um curioso movimento no qual um tema que estava no início
ligado à subjetividade psicótica, e notadamente em alguns de seus modos de repetição,
se torna uma característica da ‘castração simbólica’ do neurótico, enquanto realização
pela escrita da metáfora do Nome-do-Pai.
“O avanço teórico que ele provoca é o seguinte: o ‘Nome-do-Pai’ não é mais um
significante ideal que estabiliza o universo para o sujeito, mas um ato, uma enunciação
originária, uma Urverdrängung pela qual uma renúncia ao objeto alienante permite ao
sujeito existir como separado, tanto que tudo o que o sujeito pode manifestar
posteriormente não fará senão reenviar a esta Urverdrängung (SAUVAGNAT, 1999, p.
41).
O coração do sujeito, sua nominação primária, repousará assim sobre uma escrita que
não é para ser decifrada, em uma oposição notável ao inconsciente freudiano colocado
como sendo para ser decifrado. No texto “Posição do Inconsciente” (1964 [1960]/1998),
Lacan coloca a metáfora do Nome-do-Pai no princípio da separação, reenviando este
significante (Nome-do-Pai) ao que o promove, a saber, o objeto causa do desejo, o
objeto a. Ainda que fora do campo da psicose, a escrita comparece como cifra que faz
inscrição. E, mesmo que reenviando ao Nome-do-Pai, acena para o objeto a e aponta
para a operação subjetiva de separação do Outro. Forja, pois, para nós, elementos
cruciais à discussão da criação na psicose, no sentido daquilo que nela pode operar
enquanto escrita na estabilização.
C. Anos 70: A escrita como
A terceira consideração da escrita em Lacan responde, de alguma maneira, ao que se
apresenta como falha onde surgem os fenômenos elementares. É um tipo de solução
inversa à que, até então, se apresenta. As diferentes versões de enodamento possíveis
conduzem a considerar que nem um, o Nome-do-Pai, nem outro, o objeto causa do
desejo, são indispensáveis para colocar em jogo um nó que tenha consistência suficiente
para amarrar um sujeito, pois nem um nem outro dizem nada de tão sólido.
A partir de 1973, Lacan não se contenta mais em examinar a questão da escrita a partir
87
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
das “pequenas letras da ciência”. O próprio ideal de transmissão integral pelos matemas,
cuja escrita exige a língua para sua tradução, esbarra na ex-sistência, no que não se pode
dizer todo. O que é tomado como inconsistência do Outro Σ(%) conduz Lacan a
estabelecer as relações entre Imaginário (corpo), Real (pulsão) e Simbólico
(linguagem), orientadas pela discussão do que as amarra. É na aula de 15/05/73 do
Seminário 20, Mais, ainda (1972-73/1982), que ele explicará o uso do nó como escrita.
Ele tenta responder a uma questão colocada por Aristóteles, a de que o homem pensa
com sua alma, interrogando a relação entre a articulação da linguagem e o que faz
substância do pensamento, quer dizer, o gozo. A solução borromeana se assenta sobre
essa resposta: “eu te peço que recuses o que te ofereço, porque não é isso”. Não é isso
quer dizer que, no desejo de todo pedido, na senão a requerência do objeto a, do
objeto que viria satisfazer o gozo (LACAN, 1972-73/1982, p. 171). É o que mostra a
dobra na roda de barbante ao evidenciar a reciprocidade entre sujeito e objeto a.
Cada um dos quatro verbos em jogo na frase (já discutida desde o Seminário XIX Ou
pire) relaciona-se dois a dois, comportando em seu centro o “não é isso”, equivalente ao
objeto a. A frase comporta, assim, uma relação de amarração que evidencia a
estrutura borromeana, com a causa de desejo em seu ponto central. A escrita do
formaliza e bloqueia o mais-de-gozar, e não o objeto pulsional que na gramática binária
do sistema significante estava em jogo. Na passagem de dois para três, do sistema
binário para o borromeu, a perspectiva se desloca. A voz pulsional se encontra
encoberta. O se torna uma espécie descara que filtra a voz e oferece também um
olhar necessário para fazer barra à consistência do Outro (DE LOGIVIÈRE, 1987).
O objeto a comparece como aquilo que supõe de vazio um pedido e que pela
metonímia pode evidenciar o desejo, que nenhum ser suporta. Para o ser falante, a causa
do desejo é, quanto à estrutura, estritamente equivalente à divisão do sujeito. Lacan
hipotetiza que o sujeito representaria para si objetos inanimados em função da ausência
da relação sexual. Seria de maneira a-sexuada que o objeto e o Outro se apresentariam
para o sujeito. Seria enquanto substitutos do Outro que os objetos seriam reclamados e
se fariam causa do desejo. Um desejo sem outra substância que não a que se garante
pelos próprios nós” (LACAN, 1972-73/1982, p. 171).
O ponto central é o fato de a copulação ser excluída de seu espaço de representação.
Essa exclusão assumida vem realmente cobrir uma ausência central concernente ao
88
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Outro do gozo. O que está em jogo na escrita dos nós, para Lacan, é a tentativa de forjar
um substituto a este Outro faltoso, a partir dos nós que representam todos um. Será
que isto esclarece para vocês sobre o interesse que em se partir da rodinha de
barbante? A dita rodinha é certamente a mais eminente representação do Um, no
sentido em que ela encerra apenas um furo” (LACAN, 1972-73/1982, p. 172-73).
O furo coloca a questão do espaço e ensaia um novo estatuto para a escrita. Se o que
corta a linha é o ponto, e o ponto tem zero dimensão, a linha será definida como tendo
uma. Por seu turno, a linha corta a superfície, que se define de duas dimensões. E, como
a superfície corta o espaço, este terá três dimensões. Donde poderíamos extrair uma
primeira diferença da escrita, já que realizada no espaço tridimensional.
O espaço “lacaniano”, entretanto, rompe com o espaço euclidiano. Lacan busca as
relações de vizinhança, as continuidades, numa leitura do espaço que acolha a topologia
singular do sujeito do inconsciente. Ao cortar o espaço a linha faz um furo, separa um
interior de um exterior. Mas, em se tratando do sujeito do inconsciente, esse corte se
efetiva numa Banda de Moebius que instala uma relação de continuidade entre interior e
exterior. Daí podermos dizer que a linha será tomada como um toro, e será de toros que
se comporá, então, o nó, por mais simples que ele seja.
Assim, a escrita, definida como aquilo que deixa de traço a linguagem, tem a ver com o
borromeano. Lacan retoma sua definição da escrita como traço onde se um efeito
de linguagem, apresentada em Lituraterra”. Aqui, porém, a linha desse traço mergulha
no espaço dimensionado pelo inconsciente. O que isso implica, senão que algo que a
letra sozinha não alcança?
Avançando sobre as aporias internas a seu próprio discurso, Lacan se distancia cada vez
mais de um modelo explicativo característico das ciências para um modelo mostrativo,
típico da matemática
35
. Como ele mesmo afirma em “O aturdito” (LACAN, 1972/2003,
p. 479), Minha topologia não é de uma substância que situe além do real aquilo que
motiva uma prática. Não é teoria. Mas ela deve dar conta de que haja cortes do
discurso tais que modifiquem a estrutura que ele acolhe originalmente”.
Lacan chega à redução topológica pela clínica e é nela que pretende aplicar sua escrita.
Seja pela via do mal-estar entre os sexos, explorado no Seminário 20, seja pela via da
psicose. Ao oferecer um exemplo que mostre para que serve a fileira de nós dobrados,
35
Cf. discussão sobre mostração na seção 3.1. desta tese.
89
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
recorre ao caso Schreber, com suas frases interrompidas. Estas frases interrompidas,
que chamei mensagens de código, deixam em suspenso não sei que substância.
Percebe-se a exigência de uma frase, qualquer que ela seja, que seja tal que um de
seus elos, por faltar, libera todos os outros, ou seja, lhes retira o Um (LACAN, 1972-
73/1982, p. 173). O corte de uma das rodelas, que deixaria as outras duas livres,
evidenciaria o desencadeamento psicótico com seus fenômenos elementares. Não
subsiste o furo central do nó. A articulação dos gozos sustentada pelo se desfaz e
deixa o gozo inarticulado para o sujeito. A substância do gozo, aqui efeito da amarração
borromeana, perde-se.
Também no seminário seguinte Les non-dupes errent (1973-74), Lacan faz alusão ao nó
na neurose, a partir do caso do pequeno Hans. Na sessão de 11/12/1973, ele retoma o
caso, considerando-o como um precursor de suas elaborações sobre os nós na medida
em que os circuitos, os trajetos geográficos, que a fobia de Hans exige, implicam
diferentes tentativas de enodamento que ora privilegiam o imaginário, ora o simbólico,
ora o real
36
, ainda que se tratando de um enlace dos três em cada caso. Ele opõe o
olímpico, que não se desfaz se uma das rodelas é cortada, ao borromeano, cujo
princípio é o de se desfazer justamente nesse caso. Ele considerava, nessa lição, que os
neuróticos funcionavam no nó olímpico.
Fig. 01 - Nó olímpico
36
Trata-se de três trajetos: 1. os pequenos circuitos que realiza, seja de metrô, seja de carroça, com sua
mãe, na dependência de seu desejo, onde aparece a problemática fálica como fora do corpo, cujo
resultado é seu sintoma fóbico com os cavalos; 2. o grande circuito, que realiza com seu pai, para o
zoológico ou para a casa de sua avó, e que relança o desejo de Hans, estando centrado no simbólico; 3. o
circuito especial, que constitui uma escapada que religa de maneira nova o zoológico e a casa da avó.
Neste o pai é convocado como pai real, transgressor da lei, aparecendo a figura do bombeiro e o convite
de Hans para que seu pai despose sua própria mãe (a avó de Hans). Nesse circuito, Anna, sua irmã,
comparece como portadora do gozo feminino ou do gozo do Outro, cujo retorno atípico coloca em
questão a restauração da figura paterna pelo viés da identificação. Trata-se da père-version que Hans
constrói ao final de seu ‘tratamento’ e que, como bom neurótico, localiza o pai como exceção, na medida
em que sustenta uma mulher como causa de seu desejo, enquanto Anna estará “sempre lá”, além da mãe
em si mesma, encarnando o gozo suplementar feminino (SAUVAGNAT, 1999).
90
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 02 - Nó borromeano de três elementos
A escrita aqui é o que deve servir para fixar o objeto causa do desejo. Trata-se de cerzir
o objeto a. Na medida em que o sujeito se define em relação ao objeto, a questão que se
coloca é como ele vai fixar esse objeto que, no nó, se localiza no entrecruzamento dos
três registros.
Figura 03 – Triske com objeto a
Essa operação não somente permitirá o apagamento do objeto voz, interiorizado a partir
de então, como também vai fazer existir um sujeito a partir do bloqueio, da amarração
do objeto. Isso se faz a partir das três linhas (real, simbólico e imaginário) que
bloqueiam o objeto no nó. O sujeito é fundamentalmente algo que existe com o objeto
(mas não é o objeto total, nem permanente, é o objeto com que o sujeito vai se separar
do Outro). Esse objeto sustenta a o medida comum entre os sexos. O sujeito vai
existir a partir desse objeto que se separa do Outro. Aqui se trata de fabricar um objeto e
lhe conferir uma consistência. É o que Lacan aponta como erro em Joyce (LACAN,
1975-76/2005), e que discutiremos mais adiante. Ali, ao se entrecruzar Simbólico com
Real, o Imaginário resta solto e é o ego, ou a obra, de Joyce que virá fazer suplência ao
que se amarra mal no caso.
É a esse convite de Lacan para operarmos com essa escrita que, da substância do gozo,
91
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
faz amarração, faz nó, que respondemos com esta tese. Como pensar a escrita do nas
psicoses? Como fazer dela um uso clínico, retornando ao que lhe deu causa? Quando
Lacan apresenta o fenômeno das frases interrompidas em Schreber remetido à escrita do
nó, e não mais aos fenômenos de código e de mensagem, ele localiza ali o
desencadeamento provocado por uma desamarração, ou seja, pelo fato de que alguma
coisa, na escrita do sujeito, não será mais capaz de suplenciar a inexistência do gozo do
Outro. Quais as conseqüências que podemos extrair dessa escrita? Para avançarmos,
será necessária uma breve interpolação sobre a teoria dos gozos em Lacan a fim de que
possamos assinalar, nessa escrita, sua contribuição ao trabalho de estabilização
psicótico.
2.3 Gozo: da Satisfação à Topologia
Com Valas (2001, p. 07), lembramos que Lacan (1969-70/1992), no Seminário 17, O
Avesso da Psicanálise, desejava que o campo do gozo fosse chamado de campo
lacaniano. Lacan utilizou o termo, nos primeiros anos de seu ensino, tal qual Freud o
fazia com Lust, enquanto sinônimo de alegria, prazer, êxtase e volúpia. O caráter
excessivo do prazer, conotado ao júbilo mórbido ou ao horror, era tomado por Freud
pelo termo Genuss. Este não conceituou o gozo, ainda que tenha delimitado seu campo
pelo mais-além do princípio do prazer, regulador do aparelho psíquico.
Para Lacan, prazer e gozo se opõem. O gozo é um conceito que, com ele, ganhou
diferentes vicissitudes, assim como em Freud a teoria da pulsão e a libido. Alguns
autores formalizaram essa discussão no ensino lacaniano (MILLER, 2005; VALAS,
2001), que ganhou recentemente uma sistematização mais objetiva com J.-A. Miller
(2000). Para o autor, cujo esforço de tradução do texto lacaniano o conduz a uma
análise constante de sua obra, teríamos seis paradigmas do gozo em Lacan. Esses
paradigmas, longe de se sucederem cronologicamente, como numa espécie de evolução
teórico-conceitual, podem conviver, não sem conflitos, nos mesmos períodos de
transmissão.
Aqui nos interessa menos essa discussão do conceito ao longo da obra que acentuar as
relações entre topologia borromeana e gozo. Para esse fim, partiremos de uma
apresentação sucinta desses paradigmas, para nos concentrarmos na seguinte questão
clínica: como se apresenta, a partir da teoria borromeana, o tratamento do gozo? Lacan
92
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
teria introduzido alguma via de trabalho a partir daí? Como pensar essa via na clínica
com a psicose, a partir do trabalho de estabilização?
2.3.1 Os seis paradigmas do gozo em Lacan
37
Para discutir os paradigmas, elegemos três aspectos:
1. a relação do gozo com os três registros;
2. a relação do gozo com a satisfação (e, portanto, com a libido e a pulsão);
3. e as aporias de cada paradigma, ou seja, seus pontos de impasse.
O primeiro paradigma, o da imaginarização do gozo, acentua a disjunção entre
significante e gozo, localiza a satisfação na liberação do sentido e apresenta tanto a
libido quanto o gozo num estatuto imaginário, não procedendo da linguagem ou da
palavra. O eixo imaginário é apresentado por Lacan como fazendo barreira ao eixo
simbólico, como obstáculo à elaboração simbólica de tal forma que é quando a cadeia
simbólica se rompe que, a partir do imaginário, os objetos, os produtos, os efeitos de
gozo proliferam (MILLER, 2000, p. 89). O equívoco desse paradigma é lógico, na
medida em que o Imaginário é colocado ao mesmo tempo como fora e como dentro do
alcance simbólico.
No segundo paradigma, o da significantização do gozo, o simbólico sobrepõe-se ao
imaginário. Vemos a consistência e a articulação simbólica do que é imaginário
aparecer, quanto ao gozo, na identificação das pulsões estruturadas em termos de
linguagem. Elas aqui são capazes de metonímia, de substituição e de combinação. O
matema da pulsão permite localizar o desejo pela via da demanda do ou ao Outro (∃<>
D), o que fortalece sua dimensão simbólica. Além disso, encontraríamos no fantasma (
<>∀) o ponto em que libido e simbólico se articulariam, sendo ele o ponto de estofo
entre os registros imaginário e simbólico. O falo concentraria as articulações
importantes desse paradigma, demarcando que a própria libido é inscrita no significante.
Lacan não responde qual seria a satisfação da pulsão, dado que ela é reduzida a uma
cadeia significante, o que faz com que ela seja sempre dita em termos simbólicos. O
gozo está repartido entre o desejo e o fantasma. “O significante anula o gozo e o restitui
sob a forma de desejo significado (MILLER, 2000, p. 90). Seu impasse: o gozo seria
37
Nesse tópico, acompanhamos a lógica de Miller (2000) no artigo de mesmo título, recorrendo ao texto
lacaniano na medida da necessidade, dado que não buscamos uma exploração do conceito, mas antes uma
localização deste para alcançarmos sua proposição ao final do ensino lacaniano.
93
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
todo simbólico, quando, na verdade, o próprio objeto a veicula o que está fora da
possibilidade de representação.
No terceiro paradigma, teríamos uma ruptura em relação aos dois antecessores, que se
misturam na obra de Lacan. Seu ponto de virada teria sido o Seminário 7, A Ética da
Psicanálise (LACAN, 1959-60/1991), no qual encontramos o gozo como impossível. A
partir da discussão da Coisa freudiana que não se trata de um termo simbólico, nem
tão pouco de uma instância imaginária –, Lacan localizaria a satisfação pulsional, a
Befriedigung, na ordem do real. Na verdade essas duas instâncias, simbólicas e
imaginárias, seriam construídas contra o gozo real. Como a Coisa está situada como
equivalente à anulação que constitui a castração, o gozo se encontra reduzido a um lugar
vazio, podendo, assim, ser equivalido ao sujeito barrado. Ele estaria fora do sistema,
sendo alcançado apenas pela transgressão. A disjunção entre significante e gozo
reaparece aqui, com a diferença de que o gozo é real. A oposição prazer-gozo é central,
e advém do fato de que a libido, enquanto Coisa, está fora da ordem significante-
significado; de um lado, o bem e o engodo, de outro, o mal e o real. O impasse está
colocado na medida em que o inconsciente não inclui esse gozo como fora da
simbolização. Disso ele não pode falar. No nível do inconsciente o sujeito mente. E
essa mentira é sua maneira de dizer a verdade acerca disso (LACAN, 1959-60/1991,
p. 94). O sintoma, nessa lógica, se estabelece sobre a barreira que separa significante e
gozo, desvelando a desarmonia entre gozo e sujeito. A saída desse impasse é a
formulação do objeto a, na medida em que a Coisa, como gozo maciço, não permite
nenhum laço com o Outro.
No quarto paradigma, o do gozo normal ou do gozo fragmentado, o projeto intentado no
segundo paradigma é retomado, mas se conclui de maneira diferente a partir da
introdução do objeto a. Miller localiza no Seminário 11, Os Quatro Conceitos
Fundamentas da Psicanálise (LACAN, 1964/1998), essa retomada do projeto
‘simbólico’ para o gozo. O gozo não é mais maciço, abissal, acessado pela transgressão
como no Seminário 7. Encontramos objetos pequeno a que se situam, ao contrário, em
pequenas cavidades e cujo acesso, ‘normalizado’, se faz pelo mecanismo da separação
(em relação à alienação)
38
. Da clivagem do significante e do gozo, vemos nascer uma
38
Como vimos, alienação e separação são, para Lacan, duas operações fundamentais na constituição do
sujeito a partir do campo do Outro. A alienação diz respeito à primeira operação essencial em que se
funda o sujeito [...] Ela consiste nesse vel que [...] condena o sujeito a aparecer nessa divisão, [...] de
um lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise (LACAN,
94
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
aliança entre eles. O gozo, então, não é mais um suplemento, mas parte de um sistema
de funcionamento significante, sendo-lhe conexo. A separação comporta um
funcionamento ‘normal’ da pulsão, que responde ao vazio resultante da identificação e
do recalque. A estrutura do sujeito aparece sobreposta à do gozo. A libido aqui não é
mais desejo significado, nem das Ding, mas órgão, objeto perdido e matriz de todos os
objetos perdidos. Eis aqui também a aporia desse paradigma: o objeto perdido é uma
perda independente do significante, uma perda natural, dissociada do sujeito
significante porque associada ao corpo vivo, sexuado. O gozo, portanto, é distribuído
sob a figura do objeto a, ainda que articulado como parte do sistema significante. É esse
o ponto no qual o segundo paradigma é retomado. A significantização do gozo é
reintroduzida pelo objeto a, que substitui a noção de significante de gozo. Sobretudo no
Congresso de Bonneval
39
, cujo texto foi posteriormente retomado, Lacan se esforça por
manter o gozo no registro significante-significado, sobretudo com a distinção do falo
em menos phi (-φ = significação) e grande phi = significante)
40
, sem deixar de
apontar que o gozo falta no Outro. Essa formalização também serve a uma outra forma
de escrever o que resta como gozo impossível, fora da simbolização, quando a libido é
retranscrita em termos de desejo (morto). Esse resto aparece, então, sob a forma
significante grande phi.
No paradigma do gozo discursivo, o quinto, saber e gozo, ou significante e gozo,
passam a ter uma relação primária, originária. O Seminário 17, O Avesso da
Psicanálise, aparece fundando uma ruptura com o que o antecede, deslocando o
fantasma em prol da repetição do gozo e estabelecendo, contra a autonomia do
simbólico, uma relação de causa e efeito entre significante e gozo, este causa e resto
daquele. O ser prévio ao funcionamento do sistema significante é um ser de gozo, donde
Lacan localizar no gozo o ponto de inserção do aparelho significante: nada é mais
candente do que aquilo que, do discurso, faz referência ao gozo. O discurso toca nisso
sem cessar, posto que é dali que ele se origina (LACAN, 1969-70/1992, p. 66). O
1964/1998, p. 199). Enquanto a alienação aparece como operação de reunião entre os campos do sujeito e
do Outro, a separação se funda na interseção dos campos, que surge do recobrimento de duas faltas. A
primeira diz respeito ao fato de que o sujeito não pode ser inteiramente representado no Outro, e a
segunda, constituído o sujeito, refere-se ao que resta implicado tanto no sujeito quanto no Outro, sendo
neste ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito (LACAN, 1964/1998, p. 207).
39
Trata-se do texto Posição do Inconsciente” (LACAN, 1960[1964]/1998), apresentado em Bonneval
em 1960 e retomado por Lacan em 1964.
40
Sobre essa distinção, ver também Seminário 8, A transferência, Cap. XVII, p. 233-245 (LACAN, 1960-
61/1992).
95
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
significante é aparelho de gozo, seja como mortificação, perda de gozo
significantizada
41
(e não mais natural), seja como suplemento da perda de gozo, objeto a
como mais de gozar. Aqui não transgressão, mas repetição significante, que implica
repetição de gozo, condicionada pela defasagem entre a perda e seu suplemento. O
impasse se coloca em relação ao final da análise. Pensar a relação entre sujeito e gozo
orientação para o fim da análise em termos de repetição, é diferente de pensá-la em
termos de fantasia. Atravessar a tela da fantasia implica uma variação da transgressão,
na direção da destituição do sujeito e da assunção do ser de gozo, esperando-se um
efeito de verdade. Sob a insígnia da repetição, um dos nomes do sintoma e do gozo,
temos uma constante que se prolonga, vemos o desenvolvimento de uma relação
temporal do sintoma com o gozo. A questão se coloca para o fim da análse nos
seguintes termos: Trata-se de um basta na repetição ou de um novo uso dela?
(MILLER, 2000, p. 100).
O gozo como mais de gozar, diferente do gozo como das Ding ou como objeto a,
amplifica a lista dos objetos a. Com efeito, uma divisão cada vez mais presente entre
corpo e gozo produz um corte entre libido e natureza. A relação de causa e efeito entre
gozo e significante, presente no paradigma anterior, é substituída pela idéia de relação,
de circularidade entre os termos nesse paradigma. O que coloca os três registros em
relação.
Finalmente o sexto paradigma, localizado no Seminário 20, Mais, Ainda, leva a termo o
projeto iniciado no quinto e aponta uma revolução interna ao próprio pensamento
lacaniano. Trata-se de um paradigma orientado pela disjunção e, em sua radicalidade,
pela não-relação. Toma o gozo como fato e lalíngua como originária em relação à
linguagem. Sob a forma do gozo do blá-blá-blá, Lacan propõe uma aliança entre gozo,
palavra e lalíngua, oriunda da disjunção entre termos cruciais de sua teoria: significante
e significado, gozo e Outro, homem e mulher (a relação sexual não existe). O Outro, o
Nome-do-Pai e o falo, antes termos primordiais, tornam-se aqui conectores. Eles
passam a ter uma função de grampo de elementos disjuntos. A não-relação limita a idéia
de estrutura, assentada sobre a lógica da relação entre termos e lugares. Ao apontar essa
não-relação originária, até mesmo a estrutura aparece como suplemento, tentativa débil
de articular o inarticulável. Quanto ao gozo, ele aparece como gozo do corpo vivo,
41
O que Lacan chamou, recorrendo à termodinâmica, de entropia.
96
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
disjunto do Outro, por isso, gozo Uno. Ele aparece como gozo solitário do próprio
corpo, como gozo fálico e como gozo da palavra - feita para gozar e não exatamente
para comunicar.
Na medida em que implica um gozo disjunto do Outro, ele problematiza, pelo avesso, o
gozo do Outro, se é que ele exista... Enquanto o gozo do Um é real, o gozo do Outro
aparece como construção problemática, pois se trata do gozo sexual, do gozo de um
Outro corpo diferentemente sexuado. Em referência ao significante, o Outro é o Outro
do código, lugar do significante. Em relação ao gozo, o Outro é o Outro sexo. Se a
estrutura desnaturalizava o mundo, ela mesma era naturalizada, estava fora de questão.
Quando o Outro aparece como derivado, essa derivação recoloca o próprio
estruturalismo, pois inclui a fabricação da estrutura como problema. Eis a aporia deste
paradigma. Seu limite aparece, aqui, no gozo sexual do Outro como ser sexuado,
porque existe, aí, uma relação voltada para a contingência, o encontro, uma relação
subtraída da necessidade (MILLER, 2000, p. 104). Está, pois, aberto o lugar para a
invenção, para algo de novo que, se por um lado não nega a estrutura, por outro
examina as conseqüências de seus furos.
2.3.2 Um sétimo paradigma? O gozo topológico ou ex-sistente
Sabemos que Lacan irá dar continuidade a essa discussão sobre os gozos em seus
últimos seminários, avançando sobre a topologia borromeana. Posta a reviravolta
operada no Seminário 20, ele cada vez mais recorrerá aos nós para evidenciar a
determinação do real na clínica psicanalítica. O que teria feito com que Miller não
considerasse a inserção dos gozos na topologia borromeana como mais um paradigma?
Estaria esse paradigma submerso no sexto? No da não-relação? Não haveria mais
nenhum rompimento colocado para a teoria do gozos a partir do Seminário 20?
Nos diferentes verbetes de psicanálise (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 299-301;
CHEMAMA, 1995, p. 90-94; KAUFMANN, 1996, p. 221-224), encontramos sempre o
gozo discutido a partir da noção freudiana de pulsão, extraída de Freud. O trabalho de
Lacan daí decorrente é sempre apresentado em dois tempos, ancorados sobretudo no
Seminário 7 e no Seminário 20. Um primeiro tempo se organizaria pela via que articula
o gozo à idéia de transgressão e de prazer sexual no corpo, sendo ele um componente
estrutural do sujeito. E num segundo tempo, a ausência de um significante sexual,
97
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
expressa na fórmula ‘não relação sexual’, conduziria Lacan, a partir das fórmulas da
sexuação, a estabelecer um gozo disjunto do Outro e a propor o gozo fálico no campo
masculino e o gozo dividido em gozo suplementar (Outro gozo) e gozo fálico no campo
feminino. Valas (2001), por seu turno, escreve um livro sobre as dimensões do gozo,
reunindo de maneira esquemática o estado da teoria de Lacan até o Seminário 20 de
maneira bastante clara, explicitando cada um de seus elementos.
Figura 04 – Esquema dos gozos em Jacques Lacan (VALAS, 2001, p. 36)
Ele define, a partir de Lacan, o gozo do Outro como gozo originário, o que está na
Coisa, apresentado como gozo do pai freudiano da horda primeva. Esse gozo só teria
sentido pela ação retroativa do significante (S1) que barra seu acesso ao sujeito. O gozo
fálico, por seu turno, seria o gozo que resulta da sua codificação pelo significante e
assume a sua significação fálica no Édipo (VALAS, 2001, p. 36). O objeto a
implicaria no resto de gozo que escapa ao processo de significantização, sendo por ele
produzido como um excedente, mais de gozo. Por fim, o gozo feminino seria
enigmático por excelência, na medida em que não seria tomado na linguagem.
De qualquer maneira, esses textos apontam para a topologia, mas não desenvolvem a
teoria dos gozos a partir desse referencial. Até mesmo Valas (2001) explica
sucintamente a figura 05 na qual Lacan dispõe os três gozos, cujo ponto de bloqueio é o
objeto a, dizendo que com ele Lacan avança na elaboração dos gozos, dando um passo
novo ao falar da deriva do gozo. Aí, para Valas, Lacan nos conduz do mito da pulsão ao
real do gozo. Kaufmann também deduz que esse saber que não se sabe, que está no
98
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
real, pode, no entanto, resultar desse traço escrito e através disso ter acesso a uma
possibilidade de objetivação. Esse é o móbil que engaja Lacan na escrita topológica da
nodalidade(KAUFMANN, 1996, p. 224). Encontramos novamente associada a escrita
do traço à topologia.
Bom, de que forma Lacan um tratamento aos gozos pela topologia? Veremos que,
dois seminários depois do Seminário Mais, Ainda, Lacan (1974-75) estabelecerá os
gozos a partir de suas relações tópicas entre os registros Real, Simbólico e Imaginário.
Localiza os gozos na ex-sistência de um registro em relação ao outro, no que equivaleria
a uma espécie de intersecção por fora, exatamente no ponto em que a tensão entre cada
dois registros provoca um mal-estar ao avançar um sobre o outro. E desenvolverá em
seguida, no seminário sobre Joyce (1975-76/2005), o impasse apresentado no Seminário
20: há gozo do Outro?
Ora, qual o destino clínico dessa questão? O que a topologia trouxe para a teorização do
gozo? Como toda essa discussão pode contribuir com a questão da estabilização na
psicose pela via da criação?
No Seminário XXI, Les non-dupes errent (1973-74), na aula de 12/03/74, Lacan retoma
a definição do corpo como substância gozante, mas a articula ao Real que, no fim das
contas, diz ele, não é senão isso, a história dos nós. Ele começa tratando os nós como
nós metafóricos, diferente do que postulará no seminário seguinte ao dizer que o é
real, e não um modelo ou uma representação. Tanto que os únicos que gozam desse real
são os matemáticos, ainda que o gozo faça irrupção no real para todos. A redução real
ao aparece como escrita e é o próprio borromeano que materializa esta referência
à escrita, como se na aula de 21/05/74: O borromeano não é, na ocasião, senão
modo de escrita” (LACAN, 1973-74).
O como escrita incide sobre o gozo articulando uma maneira de conectar suas
diferentes manifestações no falasser. Como falamos, elementos cruciais para se
pensar as estruturas clínicas na década de 50, como o Nome-do-Pai e o falo, servirão, na
década de 70, para articular soluções singulares que fogem a uma possível regra geral
de domesticação do gozo. Para podermos destacar essa mudança de perspectiva, será
necessário percorrer a noção de ex-sistência, discutir o estatuto topológico do gozo do
Outro, e tomar com precisão a noção de escrita a fim de alcançarmos a novidade clínica
quanto ao gozo introduzida por Lacan com a topologia borromeana.
99
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Logo na primeira aula do Seminário RSI (1974-75, aula de 10/12/74), Lacan nos
apresenta o desenho do nó borromeu com os gozos (gozo fálico, gozo do sentido e gozo
do Outro), os registros (Real, Simbólico e Imaginário) e as manifestações clínicas que
embaraçam os sujeitos (inibição, angústia e sintoma). Como se pode observar na figura
abaixo, os gozos se situam nas “interseções externas” entre cada dois registros.
Figura 05 – Nó borromeano detalhado
Temos que pensar neste desenho sobre uma superfície tridimensional, pois aqui ele se
apresenta aplainado. É no ponto em que um registro “fura” o outro, criando uma espécie
de argola, que o gozo se inscreve. É interessante esse exercício visual, pois ele desloca a
idéia de interseção para a de ex-sistência de um espaço entre dois registros. Ex-sistência
seria o efeito que um registro, furando o outro, provocaria ao criar um espaço ao mesmo
tempo fora e interno ao primeiro. Os gozos estariam assim localizados:
(a) J.A (Jouissance de l’Autre) – Gozo do Outro – entre R e I;
(b) Sentido (Sens) – Gozo do sentido – entre I e S;
(c) Jφ (Jouissance phalique) – Gozo fálico – entre S e R.
Lacan propõe, na aula de 17/12/74, que a ex-sistência, como tal, define-se, suporta-se
disso que em cada um dos termos R.S.I. faz furo (LACAN, 1974-75). Ela seria o ponto
exterior ao mais central. O termo, Lacan o extrai da língua latina vulgar, língua-núcleo
de onde saíram por diferenciação as línguas românicas, problematizando-o a partir da
filosofia aristotélica e sua proposta de universalidade. Nesse sentido, a idéia de que o
que se diz de tudo pode igualmente se aplicar a qualquer um é criticada. Para Lacan, o
“ex” gira em torno da consistência, faz intervalo, permitindo maneiras singulares de se
atar o borromeano que não são generalizáveis. Com isso, a idéia de universalidade
100
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
encampa apenas a distribuição teórica dos gozos, que se fará efetivamente na
singularidade de cada amarração subjetiva.
Figura 06 – Representações da consistência, da ex-sistência e do buraco
Na figura 06 acima, vemos a consistência, o buraco ou furo e a ex-sistência na lógica
topológica que nos permite compreender não se tratar de uma interseção de conjuntos
com elementos em comum apenas. Essa lógica fica ainda mais clara quando Lacan
associa o Imaginário à consistência, ao que estofo, corpo, à experiência humana; o
Simbólico, ao furo, ao que faz furo pela linguagem; e o Real, à ex-sistência, ao que resta
fora da apreensão simbólica ainda que mantendo com ela uma relação de quase-
exclusão, como retratado na mesma figura, acima apresentada em três dimensões.
“É que se a ex-sistência se define por relação a uma certa consistência, se a ex-sistência não
é, no final das contas, senão esse fora que não é um não-dentro, se essa ex-sistência é, de
certa maneira, esse em volta do que se evapora uma substância [...] nem por isso a noção de
uma falha, a noção de um furo, mesmo em algo tão extenuado quanto a existência, deixa de
manter seu sentido. Pois se eu lhes disse haver do Simbólico um recalcado, também no
Real algo que faz furo, também no Imaginário, Freud se deu bem conta, e foi por isso
que burilou tudo que há de pulsões no corpo como estando centradas em torno da passagem
de um orifício a outro” (LACAN, 1974-75, aula de 14/01/75).
A ex-sistência, esse fora que não é um não-dentro, articula os três registros da
subjetividade humana pela via dos gozos. Lacan retoma, portanto, a pulsão freudiana e
suas zonas erógenas, e ensaia uma topologia do gozo que inclui o corpo, mas que o
perde de vista que também este se inscreve nos três registros, submetido à dialética da
pulsão de vida (Eros) e de morte (Tanatos). A vida seria o furo do real, a morte, o furo
do simbólico e o corpo, o furo do imaginário. Dialética aqui complexificada por não
propor nenhuma síntese... Assim, as passagens de um orifício ao outro implicam os
101
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
órgãos do corpo, mas também a linguagem como órgão e aquilo que não se alcança,
nem por um (corpo), nem pelo outro (significante). Ponto obscuro a que Lacan retornará
no seminário seguinte sobre Joyce.
Nesse sentido, uma primeira questão é colocada. Será que poderíamos falar de relação
entre os registros no caso da ex-sistência? Seria sobre o mesmo paradigma da não-
relação, inaugurada no Seminário 20, que estaríamos a caminhar? Qual a qualidade da
relação orientada pela ex-sistência?
Lacan nos propõe que o que é da ex-sistência é metaforizado pelo gozo fálico. E como
ele apresenta, então, o gozo fálico? Em sua proposição, o gozo fálico encontra um topos
no nó, entre Simbólico e Real, naquilo em que ele está em relação com o que no Real
ex-siste, ou seja, o falo. O gozo fálico implica, portanto, no furo operado pelo Simbólico
no campo do Real, donde ele metaforizar a ex-sistência.
Quanto ao gozo do sentido, gozo do blá-blá-blá, ele implica nesse mais além da função
significante. Mais do que para comunicar, a palavra faz gozar. Quando do Imaginário e
do Simbólico o cruzamento se produz, nesses dois pontos, o sentido, diz Lacan na
aula de 14/01/75. Ele distingue a falação da função de nomeação, que também é
produzida pelo uso da palavra. Quando a palração se ata a algo do Real, teríamos a
nomeação
42
. Nomear aqui não corresponde ao nominalismo que a filosofia platônica
poderia sugerir com o eidos, terceiro termo que Platão convoca para a nomeação das
coisas. Com a proposição lacaniana a idéia faz parte da consistência do real.
Por fim, e sempre enigmático, o gozo do Outro aqui se situa no ponto mais intrigante
que poderíamos conceber, entre Real e Imaginário. Ora, como pensar um gozo do corpo
do Outro, Outro sexo, se a relação sexual não existe? Esse gozo, não atravessado pelo
Simbólico, estaria completamente fora da linguagem? Mas o Outro é o simbólico por
excelência! Além disso, se o Outro é uma invenção, um anteparo estrutural que o sujeito
inventa para lidar com o indizível de seu mundo, gozar dele não implicaria também num
gozo solitário? Essa é a aporia do sexto paradigma, seu ponto de impasse, como vimos.
Os gozos são disjuntos do Outro, mas o gozo do Outro (sexo). Entretanto, o Outro é
o que criamos para garantir a própria estrutura que o põe em marcha. O Outro, a rigor,
não existe, assim como não existe Outro do Outro, garantia última que somente a
metalinguagem resguardaria. Assim, poderíamos dizer que o gozo do Outro não existe,
42
Cf. discussão sobre a nomeação na seção 2.4.1 desta tese.
102
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
senão enquanto gozo disjunto do próprio Outro... Confuso? Acompanhemos a lógica
lacaniana.
No Seminário RSI, Lacan, ao precisar a morte como furo do simbólico, enuncia o que
ela implica, a saber, que enquanto algo é Urverdrängt do simbólico, ou seja, enquanto
algo é primariamente recalcado, haverá sempre uma dimensão a que jamais daremos
sentido. Lacan brinca com essa dimensão dizendo que Édipo teria laiosado, caso tivesse
tido o tempo necessário para saber, ou seja, o tempo de fazer uma análise! Nesse
ínterim, no qual vagou pelas estradas fugindo do destino de matar seu pai
43
, se estivesse
em análise, poderia ter dado a ele uma outra versão e evitado o destino que cumpriu ao
tentar dele se afastar. O indizível ou o impossível consiste nessa verdade subjetiva
inacessível pela operação do recalque primordial que, na neurose, impulsiona o sujeito à
repetição em torno desse vazio. A análise, longe de tentar chegar a essa suposta
“verdade última”, visaria antes que o sujeito pudesse dar a ela uma nova versão,
desatando uma forma de amarração dos gozos, e reatando-a de outra maneira. É por isso
que Lacan brinca que Édipo, em análise, poderia laiosar, ou seja, encontrar um outro
destino para si com uma nova versão do pai.
Em termos topológicos, o sujeito pode fabricar, com cortes, suturas e remendos, novas
articulações entre os três registros, reescrevendo sua forma de gozo. Se o
borromeano não é senão modo de escrita, o que ele escreve é a articulação dos três
registros que instala modalidades de gozo para o falasser. A ex-sistência, essa posição
de fazer furo de dentro, instalando um fora, que não é não-dentro, fala das pregas que
orientam a repetição. letra que faz escrita e vivifica o corpo. Mas todo o trabalho
analítico se faz pela via da palavra, pela articulação que contempla o simbólico, no que
ele tem de real. O que escapa à simbolização, e como suplemento de gozo retorna no
campo do Outro, situa-se entre real e imaginário. Como escrever esse gozo? A escrita
do gozo do Outro quanto ao que nela ex-siste é o ponto de embaraço.
O Outro que Freud nos apresenta com o Édipo só existiria se dito. Toda essa Outra Cena
à qual Édipo se encontra remetido é fabricada no interior mesmo da trama que o
envolve em seu destino trágico. Ela não existe fora dele. Mas é absolutamente
43
Como se sabe, Édipo foge de Corinto, reino em que vivia como filho natural de Pôlibo e de Mérope, ao
saber, no oráculo de Delfos, da profecia de que mataria seu pai e casaria com sua mãe. O que ele não
sabia, entretanto, era que fora adotado pelo casal real infértil, e que seus verdadeiros pais eram Laio (que
mata na estrada) e Jocasta (com quem, de fato, se casa e tem filhos). Cf. o mito de Édipo na obra original
de Sófocles (2001).
103
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
impossível dizer inteiramente esse Todo-Outro. uma Urverdrängt, um inconsciente
irredutível [...] o que não se define como impossível, como introduz a categoria do
impossível”, nos diz Lacan (1974-75) na aula de 17/12/74. É pela linguagem que se
escreve essa relação de ex-sistência? Vimos que, com a noção de lalíngua, Lacan
apontou para uma dimensão real da linguagem que abre uma nova via de escrita. Será
que podemos pensar na articulação do gozo do Outro por essa perspectiva?
A radicalidade da inexistência do Outro do Outro é levada às últimas conseqüências por
Lacan. Desde o texto “Subversão do sujeito...” (1960/1998), Lacan assinalava o
significante de uma falta no Outro pelo matema S(%), quando o Outro, enquanto
tesouro dos significantes, é chamado a responder em termos de pulsão. Vejam: “a falta
de que se trata é, com efeito, aquilo que formulamos: que não Outro do Outro”.
Ele é pensado em termos significantes como aquele para o qual todos os outros
significantes representam o sujeito” (LACAN, 1960/1998, p. 833).
Tanto que, cerca de quinze anos depois, ele nos relembra que, se o Simbólico se
distingue do Imaginário (consistência) e do Real (ex-sistência) por ser furo, o
verdadeiro furo estaria na ex-sistência topologicamente posicionada em relação ao gozo
do Outro. No lugar do Outro do Outro não nenhuma ordem de existência
(LACAN, 1975-76/2005, p. 134).
Parece-nos ser pelo que excede a linguagem que encontramos a chave para explicar o
gozo do Outro enquanto Outro corpo, ‘o Outro do outro sexo’. Assim como o que
consistência ao corpo (imaginário) é o gozo fálico que lhe ex-siste, é precisamente o
fato de não haver Outro do Outro que confere consistência ao simbólico. A inexistência
do Outro do Outro, evidenciada ao longo do ensino do Lacan, coloca um impasse para o
campo do simbólico que Lacan responde com a introdução de lalíngua. Na figura 05,
acima apresentada, Lacan não escreve o Outro do Outro na ex-sistência do simbólico,
ele sabe que este não está lá para garantir esse registro. Este campo aparece vazio,
revejam a reprodução da figura. Será que poderíamos, então, conceber que ali estaria o
Outro do Outro? Ali onde, na figura 05, o espaço tracejado entre R e I está vazio?
Ao elencar os textos aos quais Lacan havia dado um estatuto topológico, Soury (1988b,
texte 100) localiza duas incompletudes que são mostradas nos quadros e desenhos do
psicanalista. Uma se refere exatamente a esse campo. Qual é o terceiro termo ex-sistente
ao nó, aquele que completaria o ternário dos quais os outros dois elementos são
104
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
“inconsciente” e “falo”? Perguntado de outra maneira: o falo é ex-sistente ao gozo
fálico; o inconsciente é ex-sistente ao gozo do sentido, o que desempenha o mesmo
papel em relação ao gozo do Outro? Seria o conjunto vazio que correponde ao Outro do
Outro?
Lacan irá avançar sobre esta questão somente um ano depois, no Seminário XXIII, sobre
Joyce, num ponto extremamente complexo e importante para nossa pesquisa. Podemos
talvez dizer que a radicalidade do aforismo “o Outro não existe conduz Lacan a um
impasse clínico fundamental resolvido apenas pela proposição do sinthome, pelo de
quatro. Qual seria esse impasse?
algo que a palavra o alcança. Ora, a palavra é, desde a origem da psicanálise, o
grande instrumento de trabalho do psicanalista, o veículo de acesso ao inconsciente.
Problematizar o alcance da palavra redunda, inevitavelmente, na problematização do
final da análise, dos alcances a que uma psicanálise pode conduzir. Freud já havia
esbarrado nesse mesmo impasse, como testemunha em 1937, também no final de sua
obra. Ele se pergunta, em Análise Terminável e Interminável”, se seria possível uma
análise avançar a tal ponto que: se o analista exerceu uma influência de tão grande
conseqüência sobre o paciente, não se pode esperar que nenhuma mudança ulterior se
realize neste, caso sua análise seja continuada (FREUD, 1937/1976, p. 251). Como se
fosse possível chegar a um nível de ‘normalidade psíquica absoluta’, de estabilidade,
como se se alcançasse êxito em solucionar todos os recalques do paciente e em
preencher todas as lacunas em sua lembrança.
Ora, sabemos que Freud irá concluir exatamente pelo contrário dessa assertiva
44
ao
apontar que uma dimensão irredutível na análise, o encontro com a castração. Como
ele mesmo revela, em nenhum ponto de nosso trabalho analítico se sofre mais da
sensação opressiva de que todos os nossos repetidos esforços foram em vão e da
suspeita de que estivemos ‘pregando ao vento’, do que quando estamos trabalhando
com o sujeito o encontro com a castração. Seja tentando persuadir a mulher a
abandonar seu desejo de um pênis
45
, com fundamento de que é irrealizável, ou quando
44
A resposta direta do texto freudiano ao que seria o final de análise é a de que a missão da análise é
garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do eu; com isso, ela se
desincumbiu de sua tarefa (FREUD, 1937/1976, p. 284). Ela aponta aqui para um certo ideal que
desconsidera a dimensão do impossível, que retornará no próprio texto sob a perspectiva da castração
colocada ao final de seu argumento.
45
O gozo peniano advém à vista do Imaginário, quer dizer do gozo do duplo, da imagem especular, do
gozo do corpo. Ele constitui propriamente os diferentes objetos que ocupam as hiâncias das quais o
corpo é o suporte imaginário. Por outro lado, o gozo fálico se situa na conjunção do Simbólico com o
105
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
estamos procurando convencer um homem de que uma atitude passiva para com outros
homens nem sempre significa castração (FREUD, 1976/1937, p. 286). Ora, aquilo que
ficou conhecido entre os psicanalistas como o encontro com o rochedo da castração diz
respeito exatamente ao que não se escreve da relação sexual, mais do que ao gozo
fálico. É da dimensão real de uma análise e de seu destino que Freud parece estar
falando. Parece-nos ser exatamente esse o impasse que conduz Lacan a uma resposta
topológica ao irredutível, ao real que, no Seminário 23, aparece como gozo do Outro.
Seja na neurose, seja na psicose, o tratamento desse irredutível é central. Podemos
pensar que na neurose, o enxugamento produzido pelo simbólico em relação ao
imaginário e ao real, deixará um resto de real intocado. Esse resto é o que podemos
equivaler ao que Lacan chamará de sinthoma, grafando de maneira diferente essa
dimensão do sintoma que resta como osso, esqueleto do falasser. Ao sinthoma, seja pelo
trabalho com o delírio, seja pela articulação com o fantasma, o sujeito deverá dar um
destino, responsabilizar-se por seu uso. Lacan conferiu a essa dimensão do falasser um
estatuto topológico estratégico, como veremos. É ele que amarra borromeanamente os
três registros que se encontram soltos entre si, sendo ele o quarto elemento do
borromeano de quatro. É um elemento estratégico pois não corresponde a uma ordem
prévia, como o Nome-do-Pai respondia ao simbólico. Ele se inventa do que, na
singularidade de cada sujeito, o constitui como radicalmente único. Poderíamos aqui
pensar na letra como suporte dessa escrita do sinthoma? Se o pensamos, uma dimensão
se esclarece para nossa pesquisa, qual seja, a do estatuto do que, na criação psicótica,
pode escrever uma estabilização. Nem toda solução que envolva a criação na psicose
conduzirá a uma estabilização, nem toda estabilização terá efeito de suplência, e nem
toda suplência operará como sinthoma, salvo pelo uso da letra que o psicótico fizer
escrever (ou não) um enodamento. Podemos apostar nesse desdobramento da hipótese
da tese? Veremos...
Freud via a permanência de um resto sintomático indecifrável pela psicanálise
constituir-se em obstáculo à cura o rochedo da castração. Lacan, por seu lado,
considera o sinthoma o sintoma em sua posição residual ao final da análise como a
marca do sujeito, seu traço próprio, sua singularidade, algo de inegociável, o que não
Real.[...] Tem o poder de reunir a palavra e o que nela é um certo gozo, aquele dito do falo, que é
experimentado como parasitário (LACAN, 1975-76/2005, p. 56). Ainda sobre pênis, falo e gozo fálico,
ver discussão no cap. XVII, do Seminário 8, A transferência (LACAN, 1960-61/1992), que atenta para a
diferença entre o φ (falo imaginário) e o Ф (significante fálico).
106
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
cessa de escrever-se. Algo em relação a que o sujeito se responsabiliza. A
irredutibilidade do sinthoma diria respeito a um ponto inabalável, impermeável à
interpretação, pois se situaria numa exterioridade em relação ao discurso por envolver
elementos retirados do corpo; permaneceria isolado da cadeia significante, ao mesmo
tempo em que estabelece com esta uma relação de exterioridade. É difícil não sustentar
a aproximação entre letra e sinthoma...
Na terceira lição do Séminaire Joyce, le sinthome, que ganhou o título “Do como
suporte do sujeito”, Lacan se pergunta pelo que sustenta o sujeito, propondo a
necessidade de um quarto elemento que ate o borromeano. É também em Freud que
Lacan se depara com a incidência desse quarto elemento. Freud o inventou como
‘realidade psíquica’ para explicar a relação do sujeito com a realidade. Lacan localiza
ali o uso do Complexo de Édipo pelo neurótico como ponto de ancoragem, de fixação
de uma forma de gozo. Parece com efeito que o mínimo que nós podemos esperar da
cadeia borromeana é esta relação de um [sinthoma] aos outros 3 [RSI] (LACAN,
1975-76/2005, p. 51). O de três elementos se mostra duro, de difícil manipulação,
posto que traz apenas uma possibilidade de enodamento. O de quatro, ao contrário,
ao deixar indefinida uma correspondência ao que seria o sinthoma para cada sujeito,
deixa aberta para cada um, no limite de sua história, a possibilidade de sua invenção de
um lado, e de um arranjo entre os três registros de outro.
Para mostrar a necessidade do quarto elemento como o que faz a costura no sujeito dos
registros, Lacan apresenta uma cadeia aberta do de três, justamente no ponto em que
o gozo do Outro incidiria. Os três suportes que Lacan chama de subjetivos tomarão
apoio no quarto, o sinthoma. Entendemos que ali ele intenta evidenciar que o tratamento
dado ao gozo do Outro implica na escrita do sujeito. O gozo do Outro está para todos
colocado como uma questão a ser trabalhada.
Figura 07 - Nó de trevo aberto
107
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
O gozo do Outro, ou melhor, do Outro do Outro, se não existe, não poder ser figurado.
Mesmo o gozo do Outro, ao ser representado entre real e imaginário, aponta para o que
se situaria fora da conjuntura simbólica, poderíamos assim entender. Assim, a
irrepresentatividade do gozo do Outro do Outro ganha uma localização problemática. E
é o próprio Lacan quem nos apresenta esse impasse, felizmente sem nos deixar sem
solução.
“Se nós pensamos que não Outro do Outro, ao menos gozo deste Outro do Outro, é bem
preciso que façamos em qualquer parte a sutura entre este simbólico que se estende ali e
este imaginário que está aqui. É uma emenda entre imaginário e saber inconsciente. Tudo
isso para obter um sentido, o que é o objeto da resposta do analista ao exposto, pelo
analisante, ao longo de seu sintoma. Quando nós fazemos esta emenda, nós ali fazemos, na
mesma tacada, uma outra, precisamente entre o que é simbólico e o real. Quer dizer que,
por algum lado, nós ensinamos ao analisante a emendar, a fazer emenda entre seu sinthoma
e o real parasita do gozo. O que é característico de nossa operação torna esse gozo possível.
É a mesma coisa que isto que eu escrevera j’ouïs sens
46
. É a mesma coisa que ouvir um
sentido” (LACAN, 1975-76/2005, p. 73).
A indicação é clara: apostar no trabalho entre real e simbólico, pois será por essa via
que, por efeito de retorno, imaginário e inconsciente poderão encontrar uma forma de se
enlaçarem, ficando os três registros, então, enodados pelo quarto elemento
sinthomático, criando a condição de um Outro gozo possível. A análise seria a via pela
qual, através de suturas e emendas, o sujeito encontraria esse j’ouïs sens (sentido-gozo),
que aqui implica saber qual é o e de bem o atar graças a um artifício (LACAN,
1975-76/2005, p. 73).
Se observarmos bem o borromeu, dois registros estão sempre superpostos um em
relação ao outro, ou seja, soltos. Somente a passagem de um terceiro por cima e por
baixo sucessivamente desses dois, fazendo neles furo, produz o efeito borromeano que
conhecemos como: desatando-se qualquer um deles, os outros também cairão livres. O
nó borromeu, para Lacan, é a melhor topologia para tratar do furo. Esta, de saída, indica
como aquilo que não está atado dois a dois pode fazer nó. Este só se suporta no seu furo
fundamental, constituído pelo simbólico e equivalente em Lacan à interdição do incesto
enquanto elemento estrutural.
“É no furo do simbólico que constitui o interdito. É preciso o simbólico para que apareça,
individualizado no nó, essa coisa que eu não chamo tanto de complexo de Édipo, não é tão
complexo assim, chamo isso de o Nome do Pai. O que quer dizer o pai enquanto Nome,
não quer dizer nada de início, não o pai como nome mas o pai como nomeador”
(LACAN, 1974-75, aula de 15/04/1975).
Para Lacan, o sentido vai tão longe no equívoco quanto se possa desejar para o discurso
46
Lacan aqui brinca com a homofonia entre “eu ouço sentido” e “gozo”, possível em francês.
108
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
analítico. E esse equívoco alcança a função de sentido-gozo operada pelo Pai enquanto
nomeador, permitindo ao sujeito fazer dele uma versão que oriente seu gozar. Nesse
sentido, o Pai opera aqui como esse elemento suplementar que nomeia uma forma de
gozo para cada sujeito, no ponto em que este faz do Pai sua versão. Quando Lacan diz o
Nome do Pai, isso quer dizer que pode haver aí, como no borromeano, um número
indefinido. É esse o ponto vivo. É que esses números indefinidos, estando atados, tudo
repousa sobre um, enquanto furo, ele comunica sua consistência a todos os outros”
(LACAN, 1974-75, aula de 15/04/1975). Se o ponto de partida para um é a não-
relação sexual como furo, já temos três, e não somente dois, elementos; e sendo três, seu
efeito real de amarração é um quarto. Em outras palavras, se dois a dois os registros
se encontram livres no basta observar a figura abaixo –, o fato de o terceiro fazer
nó desses dois já é um efeito real, mais-um, sobre os elementos originários. O efeito real
de amarração que se obtém é, em si mesmo, um quarto elemento. E ele é o Pai, ou a
versão de Pai, na perspectiva acima exposta.
Passar do de três para o de quatro foi apenas uma conseqüência necessária na
teorização lacaniana. Ele isolou esse efeito real, traçou-o na figura de maneira
borromeana como quarto elemento, e dispôs os três registros soltos e sobrepostos uns
em relação aos outros, evidenciando a função de amarração que o Pai pode ter enquanto
sinthoma. Observe a passagem realizada comparando as duas figuras abaixo.
Figura 02 – Nó borromeano de três elementos
Aqui os aros estão entrecruzados dois a dois, ficando soltos dois a dois. Esse efeito real
de amarração, Lacan isola como quarto elemento abaixo, deixando todos os aros livres
uns em relação aos outros.
109
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 08 borromeano de quatro elementos com reforço no Simbólico (Σ) (LACAN, 1975-76/2005,
p. 20)
No de três, dois dos registros não ultrapassam o furo e não formam cadeia. Da
mesma forma, com dois entrecruzados, o furo está entre os dois, não sendo também
ultrapassado por eles. E Lacan avança, não é o simbólico que tem o privilégio desses
Nomes-do-Pai, não está obrigatoriamente conjunta a nomeação no furo do Simbólico.
Afinal, no nó de quatro, o que faz o furo aparecer é o sinthoma...
Sinthoma, Nome do Pai, Pai enquanto nomeação, suplemento, quarto elemento, estamos
diante de toda uma teorização de Lacan que exige nos aproximarmos mais da topologia.
E, para entrar nesse universo complexo, o Pai, ou os Nomes-do-Pai, nos parece uma
porta essencial de ser atravessada. Qual o deslocamento operado no ensino e assinalado
por Lacan entre o pai como nome e o pai como nomeador? Se são vários os Nomes-do-
Pai, como fica a questão das soluções subjetivas que a ele recorrem, como na metáfora
paterna dos anos 50? Se aqui o pai é elemento mais-um, suplementar à amarração do nó,
ela poderia prescindir dele? De que forma pai e suplência, ou pai e estabilização,
aparecem no ensino lacaniano? Questões, enfim, que exigem seu atravessamento antes
de adentrarmos o real da topologia e sua incidência nas estabilizações psicóticas.
2.4 Suplência e Pai
Aqui entramos numa discussão fundamental desta pesquisa: o conceito de suplência.
Sabemos que Freud não o utiliza enquanto conceito que remete às soluções subjetivas,
como Lacan o faz. Ele estuda os modos de defesa ao impasse colocado pela castração na
neurose, a partir da operação do recalque e seu retorno, do qual o sujeito se defende com
a conversão, na histeria, ou com o deslocamento, na neurose obsessiva; na perversão, a
defesa implica em desmentir a castração materna, substituindo a ausência fálica pelo
objeto fetiche; e, na psicose, como vimos, a defesa é tão radical que exclui a própria
110
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
representação simbólica, como se a experiência jamais tivesse existido, o que torna o
significante real. Estas seriam as soluções freudianas. E as estabilizações, após
desencadeada uma psicose? Parece-nos que elas viriam suplenciar o que rateia nas
soluções subjetivas.
Na discussão do caso Schreber, Lacan aponta, com Freud, uma reparação metafórica
através do delírio na psicose, que faria às vezes da metáfora paterna que não se realizou,
favorecendo a construção de uma solução assintótica sob a insígnia do “ser a mulher de
Deus”, como vimos. Esta seria uma primeira versão de uma operação de reparação,
ainda que Lacan não a tenha tratado, em momento algum, como suplência. Ele fala de
uma operação que faria às vezes do processo metafórico operado pelo pai. A rigor, não
se trata de um complemento, nem de um suplemento, mas de um processo metafórico
substitutivo que sutura o que era, à época, tomado como déficit na psicose, a saber, a
foraclusão do Nome-do-Pai.
Lacan introduzirá a noção de suplência no campo da leitura das soluções subjetivas ao
se colocar como questão para o Seminário RSI, na aula de 11/02/1975, se, quanto ao
atamento do Imaginário, do Simbólico e do Real, seria preciso uma ação suplementar,
de um toro a mais, aquele cuja consistência seria de referir-se à função dita do Pai
(LACAN, 1974-75). Donde a suplência não poder ser pensada senão articulada a esse
outro operador, o pai. Acabamos de ver que ele se pergunta se a conjunção dos três
registros se manteria pelos Nomes do Pai. E também se a dissociação dos três
registros seria tal que o Nome-do-Pai faria o borromeano e manteria tudo atado
pelo simbólico. A função do Pai e a suplência são, portanto, associadas de maneira
íntima na topologia borromeana, na medida em que dizem da invenção de um quarto
termo que estabilidade e operacionaliza a relação com a realidade, o sinthoma. É
difícil não guardar um laço minimal entre sinthoma e Nome-do-Pai mas à condição de
destacar o Nome-do-Pai da função paterna para resguardar a ela somente a única
função de nomeação” (DEFFIEUX, 2005, p. 35).
Para Lacan, a invenção freudiana responsável pelo que sustenta a relação do sujeito com
a realidade é o complexo de Édipo ou aquilo que dele fala da realidade psíquica. Ora, o
complexo de Édipo em Freud, muitas vezes debatido por sua desatualização e
inadequação cultural, fala de uma estrutura que articula a subjetividade a partir do
inconsciente, fala de um dos nomes que se pode dar à defesa e à criação subjetivas na
111
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
neurose, enfim, fala da solução que alguns sujeitos criam a partir do encontro com o
traumático da linguagem. Estando remetido ao complexo de castração, diz de uma
defesa ao que do significante, do simbólico, não recobre o real, e também ao que de
gozo resta como excedente dessa experiência. Como resultado, conforma a fantasia que
enquadra a realidade, articulando o sujeito ao indizível que cai como objeto a e
instalando uma forma de gozo, de funcionamento subjetivo, na ficção que ali se escreve.
Trata-se, pois, de uma resposta que estrutura para o sujeito sua realidade. A realidade
psíquica seria esse quarto termo, suplementar aos três registros, que sustentaria a
amarração borromeana da realidade para Freud. O que ele chama de realidade
psíquica tem perfeitamente um nome, é o que se chama complexo de Édipo. Sem o
complexo de Édipo, nada da maneira como ele se atém à corda do Simbólico, do
Imaginário e do Real se sustenta” (LACAN, 1974-75, aula de 14/01/1975).
Se o Édipo é um dos nomes da solução subjetiva, específico da neurose, seu
atravessamento não é universal, mas antes singular à vivência de cada um. É o que
revela Lacan ao discutir a fobia do pequeno Hans, em seu quarto seminário público. Ali
ele fala em suplência pela primeira vez. Ela aparece associada ao pai, ainda que
remetida a uma espécie de compensação à carência paterna, do pai incapaz de
operacionalizar a castração. Indica uma operação que vem no lugar de algo que não se
realiza da forma como deveria. um certo ideal em torno da operacionalidade (ou
falha) do pai.
A suplência no sentido de algo a mais, de quarto termo a atar os registros, de invenção,
Lacan falará cerca de vinte anos depois no caso Joyce. Ali Lacan testemunha a
invenção de um nome próprio que revela a demissão paterna. O suplemento que Joyce
efetiva à demissão paterna forja um ego e faz sinthoma. Antes de entendermos essa
diferença, é preciso retomar a noção de Verwerfung freudiana que, a partir de 1975,
também com o caso de Joyce, ganha um desdobramento.
2.4.1 O Pai e die Verwerfung
Por que retomar a Verwerfung aqui? Ora, a noção de suplência não se faz de maneira
unívoca no ensino lacaniano e implica uma forma de resposta, no que toca à psicose, à
Verwerfung. Nesse sentido, poderia implicar em promover um elemento no lugar de
outro, como na operação metafórica ou, por outro lado, num acréscimo, num
112
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
suplemento. Suplência, enquanto ato de suprir, implicaria em completar, substituir,
fazer as vezes de, preencher a falta de. E aqui, sabemos, estamos referidos ao Nome-do-
Pai, que pode ou não operar, exigindo, nesse último caso, uma operação de reparação.
Suplência, porém, quando remetida a suplemento, implica no que se adiciona, no que,
somado, amplia o conjunto.
A Verwerfung, no primeiro tempo do ensino lacaniano, equivale à foraclusão do
significante do Nome-do-Pai, como vimos. No ponto em que é chamado o Nome-do-
Pai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do
efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica
(LACAN, 1957-58/1998, p. 564). Seria, pois, no acidente de registro em que se
constitui a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e no fracasso da metáfora
paterna que residiria a condição essencial da psicose nesse tempo do ensino de Lacan. É
em relação ao Nome-do-Pai como elemento inevitável de uma referência simbólica e
normativizadora que a psicose é pensada enquanto falta, enquanto falha no simbólico.
Quando o Nome-do-Pai é chamado em posição terceira em alguma relação que tenha
por base o par imaginário a-a´, ou seja, quando o sujeito é chamado a responder em
oposição simbólica ao Nome-do-Pai e este não comparece, dá-se o desencadeamento
psicótico.
É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, “pelo furo que abre no significado, início
à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do
imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se
estabilizam na metáfora delirante” (LACAN, 1957-58/1998, p. 584). Em 1955-56, a
foraclusão demarca um território subjetivo, uma estrutura clínica psicose –, uma
forma de composição do sujeito que carece do Nome-do-Pai como agente de
organização simbólica e de articulação dos três registros. Aqui o Nome-do-Pai tem
efeito significante e metafórico; e a foraclusão é a operação que delimita o campo das
psicoses. Lacan não fala em suplência.
Enquanto significante, o Nome-do-Pai não significa nada, salvo se remetido à cadeia
significante que, pelo valor diferencial do significante, produzirá uma significação. Ele
é o que sustenta o enquadre subjetivo, o que surge no ponto em que o traço unário,
primário de identificação, se apaga no inconsciente. Tem, portanto, um valor fundante e
estrutural, radicado na função de linguagem que veicula.
113
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Miller avança nessa questão. Se, em relação à castração freudiana, para qualquer sujeito
falta um significante último que nomeie o sexual (S(%)), se para todos sempre um
significante que não se inscreve na cadeia a partir do encontro com o traumático, a
foraclusão poderia ser pensada como pertinente a todas as estruturas, e não apenas como
referida a uma falta em relação ao Nome-do-Pai nas psicoses (MILLER, 1998). Tratar-
se-ia, antes, de um furo (trans)estrutural que de uma falta contingencial à psicose. A
resposta ou a solução a esse furo traçaria o que, de singular, cada sujeito constrói para
sobreviver ao encontro traumático com o real que faz inscrição no corpo.
Essa passagem aponta para uma instabilidade da noção de estrutura para a psicanálise,
tocando inevitavelmente em seu cerne, qual seja, na concepção de Pai. Exatamente, e
não por acaso, ao discutir a psicose, no que nela Lacan pressupõe a ausência do Nome-
do-Pai, que ele nos revelará a dimensão desse significante operatório. É enquanto pai
morto que Lacan trata do pai em “Subversão do sujeito...” (1960/1998, p. 827),
ratificando essa posição em “De uma questão preliminar...”.
“Com efeito, como não haveria Freud de reconhecê-la, quando a necessidade de sua
reflexão o levara a ligar o aparecimento do significante do Pai, como autor da Lei, à morte,
ou até mesmo ao assassinato do Pai? assim mostrando que, se esse assassinato é o
momento fecundo da dívida através da qual o sujeito se liga à vida e à Lei, o Pai simbólico,
como aquele que significa essa Lei, é realmente o Pai morto” (LACAN, 1957-58/1998, p.
563).
A foraclusão apontaria não para a ausência do pai real, mas antes para a carência do
próprio significante no lugar onde o pai, enquanto tal, deveria operar. O pai é, ao
mesmo tempo, a lei do significante e um dos significantes que, no ternário simbólico,
representa o Outro. É esse que não comparece na psicose. É da importância que a mãe
à autoridade do pai,do lugar que ela reserva ao Nome-do-Pai na promoção da lei
(Idem, p. 585), do pai em seu lugar ideal, que ele se escreve. É a falência do Nome-do-
Pai que, declarada, culmina no processo pelo qual o significante desatrela-se no real. O
pai real, Um-pai, que é chamado no momento do desencadeamento, não se encontra
reduplicado no lugar do Outro enquanto significante, dando início ao trabalho de
remanejamento significante. Donde podemos conceber o Nome-do-Pai, nesse período
do ensinamento lacaniano como o significante que, no Outro como lugar do
significante, é o significante do Outro como lugar da lei” (Idem, p. 590).
Há, como se pode observar, uma função estrutural depreendida da incidência do Nome-
do-Pai na linguagem ou no campo do Outro. Ele funda a condição de existência da
114
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
linguagem para um sujeito ao se instalar no lugar da lei no campo do Outro. O Nome-
do-Pai, apresentado no singular, tem aqui uma função estrutural de garantir a própria
estrutura.
Na clássica apresentação do pai, no Seminário 4, As Relações de Objeto, Lacan (1956-
57/1995, p. 362-380), ao se interrogar sobre o que é o pai, coloca a questão como
eternamente não resolvida para os analistas
47
. Ainda assim, nos convida a buscar nos
textos religiosos suas pistas, apresentando ele próprio uma proposição que articula o pai
nos três registros em relação ao complexo de Édipo. O pai simbólico é o Nome-do-Pai,
o elemento mediador essencial do mundo simbólico e de sua estruturação. Em última
instância, é o pai morto, como acabamos de ver. É através dele que a criança deixa a
onipotência materna e se introduz na articulação da linguagem humana.
O pai real, por seu turno, não se confunde com o da fecundidade. É preciso que ele
assuma verdadeiramente sua função de pai castrador, a função de pai sob sua forma
concreta, empírica, quase degenerada, como a do pai mítico da horda primeva freudiana,
para que o complexo de castração se instale e a função sexual viril tome seu destino.
E, finalmente, quanto ao pai imaginário,
“é na medida em que o pai, tal como existe, preenche sua função imaginária naquilo que
esta tem de empiricamente intolerável, e mesmo de revoltante quando ele faz sentir sua
incidência como castradora, e unicamente sob esse ângulo – que o complexo de castração é
vivido” (LACAN, 1956-57/1995, p. 374).
Há, pois, uma disjunção entre o pai real, que opera a castração, e o pai simbólico, o
Nome-do-Pai, que simbolicamente opera a entrada do sujeito na linguagem. Assim,
podemos dizer que é à medida que o pai real é investido como pai simbólico, pela
mediação do pai imaginário, que sua função opera seus efeitos de subjetivação na
metáfora paterna.
Com o avanço da teorização lacaniana e, sobretudo, com a construção da noção de que
algo escapa a esse enquadre significante, na figura do objeto a, Lacan vai pluralizar os
Nomes-do-Pai
48
. O seminário no qual trataria dos Nomes-do-Pai (LACAN, 1963/2005)
foi interrompido em função da perda de sua função de didata e de sua ex-comunhão da
47
Sobre o pai na Psicanálise, cf. Jöel Dor, O pai e sua função em Psicanálise, 1991; Revista da Letra
Freudiana, Do Pai: o limite em Psicanálise, nº. 21, 1997; Erik Porge, Os nomes do pai em Jacques
Lacan, 1998; e recentemente, em 2006, reuniu-se em congresso internacional a Associação Mundial de
Psicanálise para discussão sobre Le nom du père: s’en passer, s’en servir”, que deu origem a várias
compilações de textos sobre o tema, dentre as quais a Scilicet dos Nomes do Pai, 2006, e um CD-Rom.
48
Cf. MILLER, Jacques-Alain, Comentario del seminario inexistente, Buenos Aires, Manantial, 1992.
115
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Sociedade Francesa de Psicanálise. Essa pluralização acompanha a discussão sobre as
foraclusões que também ganham novas incidências
49
. Além da foraclusão clássica, do
significante, Lacan, em resposta a uma pergunta no seminário sobre Joyce, fala de
foraclusão do sentido pelo Real, apontando que também ela pode ser plurívoca. Além
disso, como veremos logo abaixo, fala de uma diferença crucial entre a Verwerfung de
fato em Joyce e a Verwerfung do Nome-do-Pai em Schreber que determina o estilo de
resposta que o sujeito construi como suplência a elas e, por conseqüência, o estilo da
estabilização construída pelo sujeito.
Lacan nunca mais retomará o tema da pluralização dos Nomes-do-Pai, recusando-se
mesmo a publicar a única lição desse seminário. Pela ironia, brinca com a idéia no título
de seu Séminaire XXI, Les non-dupes errent (1973-74), cuja homofonia aproxima o
título literal ‘os não tolos erram’ de ‘os nomes-do-pai’. Esse é o seminário que sucede o
corte operado pelo Seminário 20 com as fórmulas da sexuação e antecede o Seminário
RSI, no qual se dedica à topologia borromeana, afirmando que os verdadeiros nomes do
pai são o real, o simbólico e o imaginário, até transformá-lo em utensílio no minaire
XXIII, Joyce le sinthome.
A passagem que nos interessa localizar incide no Nome-do-Pai como significante da Lei
para as versões do pai como o que nomeia, na década de 70. Ela acompanha em Lacan o
aparecimento de lalíngua que, anterior à linguagem, é feita de gozo, estando disjunta da
articulação débil que a linguagem opera sobre o falasser. E, também a retomada da
noção de letra como litoral entre simbólico e real, marcando na carne o traumático
encontro com o real que a linguagem ensaia, sem sucesso, simbolizar. Essa passagem
corresponde a um deslocamento do simbólico para o que, de real, determina o sujeito, e
também uma passagem da estrutura enquanto ordem causal do sujeito para a estrutura
enquanto conjuntural ao que, do tratamento do real do gozo, resta como aparato,
ornamento, sempre precário, de linguagem.
Posta essa transição podemos nos perguntar: qual é a versão lacaniana do pai na década
de 70? O que se modifica, acrescenta ou cai, na medida em que a teoria avança?
Lacan introduz a questão do pai no bojo da discussão do sintoma como função de x:
f(x). Ele parte da premissa de que a ex-sistência do inconsciente é o suporte do sintoma.
49
Cf. esquema de Harari (2002, p. 270) acerca das seis foraclusões que teriam sido propostas por Lacan
ao longo de seu ensino: 1. da Linguagem; 2. do ser do sujeito do inconsciente pela ciência; 3. não
inscrição da relação sexual; 4. % Mulher (não existe A); 5. do sentido pelo Real; 6. do sim (no “maso
isso” sinthômico).
116
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Isso é visível na sua apresentação do borromeu na figura 05, na medida em que o
inconsciente se encontra no ponto oposto e externo ao que do simbólico avança sobre o
Real, compondo neste pólo oposto o avanço que localiza o sintoma, como vimos.
E o que seria esse x? “É o que, do inconsciente, pode se traduzir por uma letra na
medida em que, apenas na letra, a identidade de si a si está isolada de qualquer
qualidade”, nos diz Lacan (1974-75) na aula de 21/01/75. O que não cessa de se
escrever do sintoma vem daí. Em outras palavras, a repetição implicada no sintoma é
essa escrita de gozo.
E onde entra o pai nessa história? Um pai entra no circuito pela função de exceção que
opera. É preciso que qualquer um possa ser exceção para que a função da exceção se
torne modelo. Em outras palavras, é preciso que qualquer pai possa funcionar como
exceção para que a exceção de um pai seja a regra. Um pai opera por sua père-
version
50
. É preciso que o pai esteja re-vertidamente orientado que, portanto, tenha
feito de uma mulher objeto pequeno a que causa seu desejo, ainda que ela se ocupe de
outros objetos pequeno a, seus filhos, junto a quem o pai, então, intervém.
“No bom caso, para manter na repressão [...] a versão que lhe é própria de sua pai-versão.
Única garantia de sua função de pai; que é a função de sintoma [...]. Para isso, basta que
ele seja um modelo da função. Aí está o que deve ser um pai, na medida em que só pode ser
exceção. Ele pode ser modelo da função realizando o tipo” (LACAN, 1974-75, aula de
21/01/75).
Donde podemos concluir que, para operar como o quarto elemento que sustenta toda a
amarração borromeana, é preciso que o pai opere pai(re)-vertidamente orientado.
Enquanto no primeiro tempo do ensino lacaniano, o pai real era o operador da castração
abrindo a possibilidade da experiência edípica escrita simbolicamente com o Nome-do-
Pai na metáfora paterna, aqui o pai é a exceção que funda, para cada sujeito, uma forma
de gozo. Como o mais-gozar provém da pai-versão, a versão ap(ai)-eritiva do gozar
(LACAN, 1974-75, aula de 08/04/1975). O pai será tomado, então, pelo estatuto de
sintoma e se apresentará como o quarto elemento que sustenta a amarração dos três
registros. Nessa dimensão, o pai são as versões do pai que os sujeitos estabelecem para
escrever sua forma de gozo.
Como no Seminário RSI o sintoma se situa como função da letra a qual se define pela
identidade de si a si –, será a psicose que dará o modelo do núcleo real de todo sintoma.
50
Pére-version faz homofonia com perversion, na língua francesa, criando uma aproximação fonética
entre ‘versão do pai’ e ‘perversão’ do pai, o que aponta para o uso singular que o sujeito pode fazer desse
elemento conector.
117
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
A inovação ali será fazer do sintoma uma função da letra, fixando o gozo, sem o Outro.
“É mais a construção de uma teoria generalizada do sintoma. [...] Ela é válida para a
neurose e para a psicose, mas inclui a teoria da metáfora neurótica a título de teoria restrita,
mediante a associação daquilo que vale para um axioma suplementar, a saber, a função do
Nome-do-Pai. Esta, pensada antes como defeito na psicose, é de agora em diante situada
como um acréscimo, um suplemento na neurose” (SOLER, 1993, p. 52).
Trata-se do fato de que uma amarração sistemática pode prender-se sem o apoio do
Nome-do-Pai, valorizando a equivalência entre o sinthoma e o Nome-do-Pai: Σ = NP.
Esta fórmula é um princípio cardeal da clínica borromeana. Um sinthoma pode assumir
a função de Nome-do-Pai. Assim é que se obtém este esquema bem simples, segundo o
qual o ponto de capitonné, tem duas formas principais, o Nome-do-Pai e o sinthoma,
ficando entendido que o Nome-do-Pai, o próprio, não vale mais do que um sinthoma e é
um caso distinto do sinthoma (MILLER, 1999)
51
.
Essa discussão nos parece central para discutir a clínica lacaniana, pois o Nome-do-Pai
é o ponto de partida de Lacan para discutir a diferença estrutural entre
neurose/perversão e psicose na primeira clínica. Na segunda, com a idéia de capiton, de
pontos de amarração, o significante do Nome-do-Pai deixa de ter esse lugar central na
construção do diagnóstico. Miller (1999), entretanto, vai falar que isso não justifica a
idéia de continuísmo entre as estruturas, mas somente dentro da psicose. Daí a
importância em se avançar na pesquisa sobre o lugar que o pai passa a ter na topologia
borromeana e suas conseqüências sobre o diagnóstico e a clínica.
Posta essa nova versão do pai, vejamos suas conseqüências clínicas nos dois casos em
que Lacan articula o pai à suplência ao longo de seu ensino. A carência do pai é termo
51
Em seu Seminário de 2001, em Paris VIII, Miller retoma essa discussão realizada durante a
conversação de Arcachon (1999) acerca do último ensino de Lacan. Fazer do Nome-do-Pai mais um
sintoma é operar uma subversão em relação à formalização das estruturas clínicas, que vem sendo
chamada de clínica continuísta em oposição à clínica referida ao Nome-do-Pai. Nessa clínica continuísta,
as estruturas são pensadas em relação ao furo - que, se não nomeado, permanece invisível. E é dessa
maneira que podemos falar em real como ex-sistindo ao sentido. O manejo clínico, então, opera-se caso a
caso concretamente, como concretamente se manuseiam as argolas de barbante do borromeu,
extraindo dessa experiência soluções singulares a partir do savoir-y-faire do sujeito.
A primeira clínica seria regida por um ponto central, simbólico, organizador da cadeia significante e da
lógica do pensamento, inclusive do inconsciente. Esse ponto de capitonné, o Nome-do-Pai, seria utilizado
como balizador na formalização lacaniana das estruturas clínicas, numa topologia linear, de setas e traços,
funcionando como ponto de basta, como ponto final, como ponto de corte. Ele faria a amarração dos três
registros, regido por um fortalecimento do simbólico. Portanto, o Nome-do-Pai, no primeiro ensino de
Lacan, é o significante por excelência que produz um efeito de sentido real. É o nome do significante que
dá um sentido ao gozado. Sem o Nome-do-Pai não há lei, não há o corpo e o fora do corpo, operados pelo
falo e pela condensação de gozo que ele produz. Donde se percebe claramente a dominância do
simbólico. O enigma trazido pelo último ensino de Lacan trata da suspensão do Nome-do-Pai e suas
conseqüências para se pensar o real. O sentido aparece desenlaçado do real. E dessa abordagem se
extrairia a possibilidade de uma nova clínica.
118
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
comum tanto à discussão clínica do caso do pequeno Hans quanto à do caso de Joyce,
ainda que eles tenham posições, estruturas diferentes, denotando, de saída, uma
transversalidade entre os dois tempos do ensino lacaniano. Mas será que Lacan concebe
essa carência da mesma maneira?
Veremos também que o sintoma, em ambos os casos, aparece como o que repara um
erro. Sabemos, porém, que a concepção de sinthoma, introduzida no Séminaire XXIII,
altera radicalmente a noção de sintoma presente, até então, no texto lacaniano. Quais
seriam, assim, as aproximações e os distanciamentos que esses dois casos nos permitem
extrair quanto à noção de suplência?
2.4.2 A carência do pai de Hans e a ‘suplência’ metafórica na fobia
Todo o ‘tratamento’
52
de Hans acontece em torno da figura paterna e sua insuficiência
em operar a castração. Hans solicita o pai exatamente nesse ponto e ele não comparece.
Lacan pinça a carência paterna em Hans e no-la apresenta.
“Digamos que, naquele momento [fantasia com desaparafusamento], o pequeno Hans
explique a seu pai: - Enfie isso nela, de uma vez, ali onde é preciso. É isso mesmo que está
em questão na relação do pequeno Hans com seu pai. Temos, o tempo todo, a noção dessa
carência e do esforço feito pelo pequeno Hans para restituir, não digo uma situação normal
[...] – mas uma situação estruturada” (LACAN, 1956-57/1995, p. 371).
Qual a carência do pai aqui? O pai de Hans, enquanto pai imaginário, enquanto
revestido de horror, afasta a possibilidade da castração ao invés de fazê-la operar. Ele
quer parecer bom para o filho. Esse é o ponto que irá exigir da parte do menino uma
solução. Interessante notar que o pai simbólico, o Nome-do-Pai, opera na figura do
professor Freud que, como o bom Deus, tudo sabe. Isso lhe é muito útil, mas sem
suprir, de modo algum, a carência do pai imaginário, do pai realmente castrador. Todo
o problema reside aí. Trata-se de que o pequeno Hans encontre uma suplência para
este pai que se obstina em não querer castrá-lo” (LACAN, 1956-57/1995, p. 375).
O que se coloca como questão é como o pequeno Hans poderá suportar seu pênis real,
na medida em que este não é ameaçado. Este é o fundamento de sua angústia fóbica. O
desejo de que o pai seja ferido evoca uma circuncisão mítica, colocando em xeque a
confrontação do pai como homem com sua mãe, e também veicula a indagação sobre o
52
O pequeno Hans era filho de um adepto da teoria freudiana que levava suas anotações para o professor
Freud. Este, então, explicava o que se passava com Hans e seu pai fazia intervenções com o menino a
partir dessas explicações. Mas tudo se passava no nível da educação doméstica, mais do que num
contexto clínico.
119
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
próprio pai ter passado por essa iniciação com uma ferida (evocação da castração do
pai).
O que Hans busca é o encontro com esse pai castrador. Se, do lado da mãe, a fantasia de
ser engolido e devorado (que aparece na figura da mordida e da devoração do cavalo)
acena para castração materna, sabemos que daí o sujeito não sai, senão com a
substituição pela castração paterna. Esta é suscetível de desenvolvimento dialético,
enquanto a primeira não. Uma rivalidade com o pai é possível, um assassinato do pai
é possível, uma eviração do pai é possível. Por este lado, o complexo de castração é
fecundo no Édipo, no lugar em que não o é pelo lado da mãe” (LACAN, 1956-57/1995,
p. 377).
Uma vez que é impossível emascular a mãe, uma impossibilidade se coloca no
horizonte da solução ao impasse colocado por sua castração. É a castração paterna que
vem em seu auxílio. Como ela não se apresenta para Hans, exigirá dele um trabalho a
mais que a suplencie. Como Hans resolve o impasse? Como suplencia a pura ameaça de
devoração total pela mãe?
O começo da articulação se dá com a fantasia da banheira e da furadeira. Será assim que
a mãe será demolida e o pai convocado a desempenhar o papel de furador, substituído
pelas figuras do Schlosser, que começou a desaparafusar a banheira, e depois pelo
instalador que viria para trocar o traseiro de Hans. Diferentemente da suposição
freudiana de que, com isso, Hans ganharia outro pênis no traseiro, Lacan aponta que era
preciso que algo fosse desmontado e se modificasse em Hans no nível da estrutura e,
portanto, da estrutura da linguagem em seus efeitos sobre o corpo. Esse seria o esquema
fundamental do complexo de castração. A mordida materna, elemento instrumental e
substituto da intervenção castradora, deriva quanto a sua direção aparecendo deslocada
nessas fantasias. Isso é suficiente para uma primeira redução da fobia. uma
modificação em Hans.
Neste ponto, Anna, sua irmã caçula, entra em jogo como um elemento cuja queda é
possível e desejada, articulando o segundo aspecto da fobia de Hans, a queda do cavalo.
Como podemos lembrar, a fobia se instala sobre a figura do cavalo em relação ao temor
de sua mordida e de sua queda. Anna é, portanto, associada ao termo inassimilável da
situação, ao que pode cair. E aqui Lacan aponta a construção de uma solução imaginária
diante da dimensão real intolerável introduzida por ela. De um lado, Hans a faz montar
120
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
o cavalo de sua angústia fóbica, ponto a partir do qual poderá ele próprio depois,
dominando a situação, também montá-lo.
Por outro lado, Anna é reintroduzida de maneira fantasística, como objeto que sempre
esteve lá. E, mesmo que Lacan não o diga textualmente – posto que sua teoria ainda não
havia avançado até esse ponto –, o circuito da escapada de Hans do zoológico à casa da
avó coloca Anna como resposta no nível do gozo feminino
53
, na medida em que no nível
paterno e fálico Hans não encontrou uma saída (SAUVAGNAT, 1999). Ela aponta para
esse gozo suplementar, sendo incluída na construção da pai-versão de Hans enquanto
acena para a dimensão do gozo do Outro. É assim que, enquanto exceção, o pai opera.
A cada caso, a ele será dada uma versão que inclui um dimensionamento do gozo
conforme os recursos e instrumentos que o sujeito encontra à sua disposição.
2.4.3 A demissão paterna de Joyce e a suplência borromeana na psicose
Lacan também fala de pai carente em relação a Joyce, mas lhe acrescenta o adjetivo
indigno, não por acaso.
“É a seu pai que ele endereça esta oração
54
, seu pai que justamente se distingue por ser
bofe! – o que nós podemos chamar de um pai indigno, um pai carente, aquele que, em todo
o Ulisses, ele se coloca a procurar sob todos os tipos nos quais ele o o encontra em
nenhum nível” (LACAN, 1975-76/2005, p. 69).
Há, evidentemente, acrescenta Lacan, um pai em alguma parte, Bloom, que procura por
um filho. Mas a ele Joyce opõe um é muito pouco para mim. Com o pai que teve, ele se
diz escaldado, nada de pai. Como se vê, além da demissão paterna, o sujeito tem sua
parte na foraclusão, ainda que isso não nos conduza direta e ingenuamente à idéia de
que o sujeito escolhe a estrutura. Na realidade, como também lembra Lacan, salvo ter
enviado o filho aos Jesuítas, o pai de Joyce se demissiona de sua função.
Pierre Naveau (2004b, p. 208-209) localiza o ponto em que Joyce nos fala desse
episódio na narrativa de Um retrato do artista quando jovem (JOYCE, 1914/1992). Ele
tem seis anos quando entra no colégio. E, aos onze, seus pais são obrigados a se mudar
de Dublin, pois seu pai está arruinado financeiramente. Ele descreve cenas de Stephen,
seu personagem autobiográfico, acompanhando o monólogo entrecortado de suspiros
que o pai enceta sobre sua infância e sua vida na cidade natal. Mas Stephen não
53
Rever discussão na nota de rodapé 36 desta pesquisa.
54
Lacan se refere à frase do fim do livro “Um retrato do artista quando jovem”, de Joyce (1914/1992),
Old father, old artificer, stand me now and ever in good stead.
121
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
experimentava pelo pai nenhuma compaixão. Ele sabia que seus bens haviam sido
vendidos em leilão e que o pai estava implicado nessa ruína.
“Stephen seguia seu caminho ao lado de seu pai. Escutando histórias já ouvidas... Ele ouvia
a voz de seu pai: ‘Eu te falo como amigo, Stephen. Fazer gênero de pais rígidos, não é
comigo. Eu não creio que um filho deva temer seu pai. Não, eu te trato como teu avô me
tratava quando eu era menino. Nós éramos dois irmãos, mais que pai e filho. Eu não me
esquecerei jamais a primeira vez em que ele me surpreendeu fumando. Ele não disse uma
palavra...’” (JOYCE, 1914/1992, p. 141 – grifo nosso).
O pai de Stephen não faz caso da autoridade da palavra do pai. Ele, de fato, se
demissiona de sua função. Nesta referência, testemunhamos aquilo que Lacan chamará
de uma Verwerfung de fato, diferente da Verwerfung de direito que se realiza no caso de
Schreber. Enquanto a Verwerfung de direito estaria correlacionada à escrita do
significante do Nome-do-Pai no campo do Outro, a Verwerfung de fato diria respeito a
uma fala, a um ato do pai no qual este se ausenta de sua função. O pai falta
efetivamente, no sentido de que diz textualmente em um dado momento: eu me
demissiono, como atesta a passagem acima.
Ora, não pai real se um filho não teme seu pai. Entretanto, veja a fala de Bloom, o
pai, na narrativa: ‘Eu não creio que um filho deva temer seu pai’. Porém, no que se diz
também se aciona o que opera como significante, o que está em questão no Nome-do-
Pai, como ele se transmite ou não. E Bloom nessa passagem também é claro, o pai não
diz uma palavra sobre a interdição. Finalmente, pai e filho devem se relacionar como
irmãos...
Em Joyce, uma quebra entre o pai e o Nome-do-Pai. O Nome-do-Pai, no caso de
Joyce, mostra a Verwerfung de fato no dito do pai. Será sobre esse ponto que Joyce
desejará fazer-se um nome, é sobre esse ponto que a suplência será construída. O estilo
da estabilização, como dissemos, atesta sempre o estilo da foraclusão, sendo-lhe
decorrente.
“O nome que lhe é próprio, é aquele que Joyce valoriza a expensas/à custa do pai. É a este
nome que ele quis que fosse rendida a homenagem que ele mesmo recusou a quem quer que
fosse. É nisto que podemos dizer que o nome próprio faz tudo o que pode para se fazer
mais que S1” (LACAN, 1975-76/2005, p. 89).
Ele privilegia o nome em detrimento do pai. E nesse ponto sinthoma. “Joyce tem um
sintoma que parte disso que seu pai era carente, radicalmente carenteele só fala disso.
[...] que é de se desejar fazer um nome que Joyce fez a compensação da carência
paterna” (LACAN, 1975-76/2005, p. 94).
122
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Se em Hans essa operação de suplência aparece de maneira pejorativa, em Joyce, ela
acena para uma invenção inédita: repercussões da mudança de estatuto do pai na teoria
lacaniana. É assim que, em Hans, Lacan vai nos dizer que se a solução é apenas
suplência, é porque ele [Hans] é, de certa forma, impotente para fazer amadurecer [...]
o desenvolvimento dialético da situação (LACAN, 1956-57/1995, p. 378 grifo
nosso). Joyce, ao contrário, funda uma nova língua, subverte a literatura e se inventa um
nome. Um, o, dois! Que haja dois nomes que sejam próprios ao sujeito, está claro
que isto foi uma invenção (LACAN, 1975-76/2005, p. 89). Joyce se inventa um nome,
dois nomes, seja James, seja Joyce; seja Joyce, seja Dedalus. Seu desejo de ser escritor
responde, segundo Lacan, à demissão do pai. Não é somente do mesmo significante que
Joyce e o pai são feitos, mas da mesma matéria, testemunha Lacan na leitura de Ulisses,
no qual Stephen, à procura do pai, Bloom, culmina em um Blephen (e Stoom). Para
Lacan, Ulisses é o testemunho daquilo através do qual Joyce fica enraizado em seu pai,
ainda que o renegando. É isso seu sintoma, é essa sua pai-versão.
Lacan toma essa escrita do real como sua própria invenção. Ele trata essa invenção
como sua resposta sintomática à descoberta freudiana do inconsciente. Ao inconsciente
freudiano Lacan propõe o sinthoma como invenção subjetiva, como o que se escreve
como real, sob a forma do borromeano. Enunciar o real sob a forma dessa escrita
borromeana tem valor de traumatismo. Criamos uma língua a cada instante que lhe
damos um sentido, é a essa invenção que o sinthoma nos reporta. C’est le forçage
d’une nouvelle écriture (LACAN, 1975-76/2005, p. 131). E se o real não é a realidade,
ele é o órgão que enoda simbólico e imaginário. O real traz o elemento que pode mantê-
los juntos, a saber, o sinthoma.
Miller (2003a, p. 6) propõe ao termo invenção uma oposição em relação ao termo
criação, na medida em que nesta se enfatiza a criação ex nihilo, a partir do nada. A
invenção, por seu turno, é a criação a partir de materiais existentes. E as duas se opõem
à descoberta, na medida em que o que se descobre está lá, não precisa ser inventado.
Há, pois, em Joyce invenção de um nome, cuja matéria são os elementos dos quais
dispõe: um pai indigno de sê-lo, a referência jesuítica, o conhecimento profundo da
língua inglesa e sua história.
Inventar um nome conduz-nos a uma sutileza na análise da proposição lacaniana. Ter
um sintoma é diferente de ser um sinthoma. Quando Lacan fala de Joyce como
123
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
sinthoma, quando fala que Joyce é sinthoma, sua referência se modifica. Enquanto trata
do desejo de Joyce de ser um artista que ocuparia todo o mundo, o maior número de
pessoas possível em todo caso, fala da compensação do fato de ter um pai que jamais foi
para ele um pai (LACAN, 1975-76/2005, p. 88). Lacan se debruça exaustivamente
sobre essa discussão ao longo de seu seminário sobre Joyce.
Entretanto, numa apresentação que faz no V Simpósio Internacional James Joyce, em
Paris, antes de iniciar o seminário, que se tornou um texto intitulado Joyce o Sintoma
(LACAN, 1975/2005), ele diz em que Joyce é um sintoma. Se eu digo Joyce o
Sintoma, é que o sintoma, o mbolo, ele o aboliu, se eu posso continuar nessa veia.
Não é somente Joyce o Sintoma, é Joyce enquanto que, se eu posso dizer, desabonado
55
do inconsciente (LACAN, 1975/2005, p. 164). A arte de Joyce é, para Lacan, algo de
tão particular, que o termo sinthoma, comth”, é o que melhor lhe convém. Trata-se de
situar o que ela tem a ver com o real do inconsciente. Joyce não sabia que ele fazia o
sinthoma. Isso era inconsciente. E, por isso, ele era um artífice, um homem de savoir-
faire, um artista (LACAN, 1975-76/2005, p. 118). O sinthoma fala de algo que
responde à realidade mesma do inconsciente (Id. Ibdem, p. 139). É enquanto
desabonado do inconsciente, enquanto não subscrito ao inconsciente, que Lacan fala
sobre Joyce ser, e não ter, um sinthoma.
Trata-se aqui de um sintoma desabonado, não tributário do aparato semântico que é o
inconsciente, e esta é a maneira mais singular que tem o falasser de fazer com o real. Se
o abonnement compromete o sujeito a um pagamento adiantado pela recepção de um
bem (pelo qual aposta que vai obter de modo regular, periódico e recorrente uma
recuperação do gozo), o desabono ou a não-subscrição, por outro lado, marca uma
ruptura com tal aposta. Trata-se do sintoma em seu puro valor de uso, um uso que vai
mais além de seu valor significante e de verdade, quer dizer, um uso desprendido do
55
Segundo Laia (2001), psicanalista responsável pela versão brasileira do Seminário XXIII, o termo em
francês desabonné, que consta no texto original de Lacan, não corresponde, de fato, ao termo em
português desabonado, apesar de ele adotá-lo na versão oficial em via de edição no país. Ele estaria antes
referido à condição daquele que deixou de ser assinante, por exemplo, de uma revista e, no caso de
Joyce, do inconsciente, enquanto, em português, o termo desabonado se aproximaria de desacreditado,
depreciado. Ainda que estejamos num campo semântico diferente do francês, para ele, “esse outro campo
não deturpa o que Lacan visa com o termo desabonné e ainda nos permite aceder a um sentido
diretamente associado à loucura. Porque tanto Joyce em sua obra quanto os loucos em seus delírios
mantêm, de um modo muito evidente, uma posição de descrença, de descrédito, e mesmo de depreciação,
com relação à estabilidade de um sistema organizador do mundo da palavra e da realidade das coisas
(LAIA, 2001, p. 162). Assim, ele justifica a adoção do termo desabonado para a língua portuguesa, que
também adotaremos feita essa ressalva quanto à sua tradução.
124
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
fantasma, desprendido do gozo extraído da ficção que o sujeito construiu para fazer
existir um Outro do gozo fabricado à sua medida.
Joyce trabalha diretamente no real da letra. Extrai seu gozo de uma experiência queo
é abonada pelo (ou subscrita ao) inconsciente. Em outras palavras, deixa de gozar de seu
inconsciente, desamarrando-se, por meio da pulsão de morte, de uma montagem
significante que, através do S1, poderia tê-lo mantido subsumido a uma representação
que o representava. Deixa, assim, reinar a pura produção de um gozo no ciframento,
sendo impossível restituir-lhe o sujeito como efeito de articulação. Em outras
palavras, o sujeito é dividido pela linguagem, como em toda parte, mas um de seus
registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro, com a fala” (LACAN,
1971/1986, p. 24).
O neurótico faz amor com seu inconsciente, ou seja, é atraído por aquilo que pode lhe
revelar algo acerca de seu próprio inconsciente. Nada no texto final de Joyce é capaz
disso, e é isso que torna essa escrita tão ilegível para os neuróticos. A escrita é, para ele,
o seu sinthoma, isto é, sua forma privilegiada de gozo, de um gozo para além de
qualquer demanda ao Outro, um gozo da letra que se exercita não por meio de uma
recusa à não-existência da relação sexual, mas, ao contrário, por meio de seu
reconhecimento. Sua tarefa é a de bordejar este ponto de impossível, fazendo com isto
subsistir a falta, o furo real. algo que se joga a cada palavra no texto joyceano, ele
faz o texto falar
56
.
Donde podermos extrair o quadro abaixo:
Joyce tem um sintoma Carência do pai
Joyce é um sinthoma Desabonado do inconsciente
2.5 Enfim...
Toda essa reviravolta no ensino lacaniano irá abrir uma rie de possibilidades para se
pensar as suplências. O desdobramento mais direto é o deslocamento da discussão das
suplências de uma perspectiva na qual o objeto ou recurso que suplencia é o elemento
definidor do estilo de suplência, para outra na qual é o processo em jogo na foraclusão
que acarretará, por conseqüência, uma forma de amarração dos três registros, seja ela
borromeana ou não. Neste segundo caso, a suplência se infere do trabalho psíquico a ela
vinculado.
56
Cf. IORIO, A. L. (2007) Quando Eusebius e Florestan se desencontraram para sempre. Uma reflexão
sobre música e psicopatologia, disponível em <http://www.psicopatologiafundamental.org/>.
125
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Nesse sentido, a discussão emprendida por Rollier (2005) ilustraria a primeira dessas
duas abordagens das suplências. Ele retoma a discussão de Lacan na década de 50 e a
contrapõe à construção proposta na década de 70. Assim, no primeiro tempo de seu
ensino, Lacan isola a necessidade do sujeito psicótico de compensar, suplenciar a
foraclusão do Nome-do-Pai por suplências que são construções significantes, contando
com o Imaginário ou com o Simbólico, seja por identificações, seja pelo esforço de
significantização. Rollier observa também que Lacan estende desde o conceito de
suplência à neurose, na discussão do caso Hans, referindo-o a uma simples carência da
função paterna.
Em seu segundo ensino, marcado pelo abandono da primazia da função simbólica, o
conceito de suplência ganha outro valor. A partir do Seminário 20, Mais, Ainda...
(1972-73/1982), qualquer que seja a estrutura, Lacan evidencia que entre os sexos dos
sujeitos falantes a relação não se faz. Para além da ordem do simbólico, é o que faz
sentido na lalíngua que vai suplenciar o fato de que não com o parceiro sexual
nenhuma relação. Daí a proposição de um elemento suplementar, o sinthoma,
permitindo ao se atar. Lacan, então, não falaria mais de suplência, mas de sinthoma,
como o que permite ao simbólico, ao imaginário e ao real se atarem uns aos outros, ou
dito de outra forma, na medida em que sinthoma, não equivalência sexual, quer
dizer, há relação” (LACAN, 1975-76/2005, p. 101).
Com isso, Lacan postularia menos uma falta inerente ao simbólico em si mesmo que
uma falta estrutural. Essa seria uma outra maneira de dizer que não relação sexual.
Essa falta corresponde ao que Miller (1998a) vai chamar de foraclusão generalizada, ao
afirmar que para o sujeito, não somente na psicose mas em todos os casos, um
indizível. Daí a foraclusão do Nome-do-Pai passar a ser conhecida como a ruptura de
um nó, não mais a rejeição de um significante primordial.
A cadeia significante da primeira clínica seria substituída pela proposta dos três
registros enlaçados borromeanamente. Se o Outro é falível, não existindo nem como
garantia, é preciso um quarto elemento para que Real, Simbólico e Imaginário se
mantenham atados. Rollier (2005) também acredita que, de certa forma, no Seminário 3,
Lacan nos teria preparado para essa idéia com a metáfora do tamborete de quatro pernas
(LACAN, 1955-56/1992, p. 228).
Apesar dessa argumentação, ele nos apresenta quatro modalidades de suplência,
126
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
localizando no recurso do qual o sujeito se vale o índice para qualificar cada uma delas.
Assim, seriam modalidades clínicas de suplência para ele:
1. A suplência por um delírio Ele retoma em Freud (1915a) a idéia de que o
investimento da representação da palavra representa a primeira das tentativas de
restituição ou de cura. Nesse sentido, se o delírio realiza uma metáfora delirante, que
pode ser discreta, pode fazer nó. Como exemplo ele traz uma contrução delirante
que se apóia sobre um ponto de identificação com o salvador, o que permite
restaurar o laço social.
2. A suplência por um uso do significante que permite um modo de estabilização
com “capitonagem” sobre um significante singular Como exemplo, ele relata o
caso de um paciente que se reapropria do significante “associal”, introduzindo uma
ligeira defasagem através da invenção de um neologismo que o localiza como
fabricante de um fracasso pela palavra. Ele não seria “associal”, ele teria
“falabracado”. Trata-se de uma significação personalíssima dada ao significante
pelo uso da ironia.
3. A estabilização por um modo de gozo Ela aconteceria, seja por uma prática
perversa, seja pela inscrição corporal de um fenômeno psicossomático, no lugar
daquilo que faria um sintoma, ou pela toxicomania ou pelo alcoolismo. Interessante
que aqui Rollier fala em estabilização e não em suplência. Ele estaria a demarcar um
processo diferenciado pelo uso dos dois termos?
4. A suplência pela escrita – O gozo do Outro que persegue o psicótico, o real que o
invade, equivale a haver qualquer coisa escrita por ele, contra ele, mas não para
ele. A função da escrita em um psicótico seria justamente a de dominar o gozo pela
letra. O sintoma psicótico como Nome-do-Pai seria o que restitui o gozo
contabilizável, quer dizer, controlado, e seu exemplo seria o caso Joyce.
Ora, aqui estamos diante de uma leitura das suplências que se orienta pela perspectiva
de que um elemento material do qual o sujeito pode se valer para cumprir uma
função de estabilização. Rollier (2005) dispõe todos os recursos, os quais apresenta no
mesmo nível, conferindo-lhes ao mesmo tempo um tratamento pela primeira e pela
segunda clínica. Com isso, a idéia de tratamento do gozo ou de construção do sinthoma
se apresenta par a par com a idéia de significantização ou de identificação imaginária,
127
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
tornando difícil localizar qual seria o elemento suplementar em cada situação e qual
seria sua função em relação à amarração dos três registros.
Numa outra perspectiva, esta radicalidade do final do ensino lacaniano é evidenciada
por Skriabine (2006), que postulará uma clínica diferencial a partir da topologia dos
nós, diferente da clínica diferencial, apresentada no Seminário 3, As Psicoses. Partindo
da perspectiva de que a experiência humana se estrutura em referência às três categorias
isoladas por Lacan como Real, Simbólico e Imaginário, o sujeito teria que encontrar
uma maneira de manter esses três registros atados, conferindo-lhes uma medida comum.
O sujeito faria assim consistir uma “realidade” que não teria nenhuma existência
intrínseca, pois ela não seria senão um véu tecido do Imaginário e do Simbólico que
serve para recobrir a dimensão insuportável do Real.
Essa proteção, que permite a um discurso se desenvolver e fazer laço, implica em
contrapartida numa limitação de gozo, procedente da função do pai, operadora da
castração sobre o Outro materno. O Nome-do-Pai realiza assim, enquanto Bejahung, a
realidade da castração, o acesso do ser falante ao universo dos discursos e à proteção do
Real que permite a instauração do laço social. Assim, a função do Nome-do-Pai é de
manter juntos, para cada sujeito, um por um, Real, Simbólico e Imaginário, fazendo
consistir uma realidade sem existência, mas capaz de desenvolver o laço social no
campo dos discursos.
O Outro, por seu turno, é sempre falho. Não uma referência última e absoluta que o
sustente, pois o significante é diferencial, se realiza a partir de outro significante.
Assim, o significante que garantiria o Outro falta ao Outro. Não Nome-do-Pai senão
sob a condição de que cada sujeito o coloque em jogo, o faça operar por ser sujeito
faltoso.
Donde Skriabine (2006, p. 58) concluir que:
1. estruturalmente foraclusão do Nome-do-Pai no sentido de uma medida
comum “inata”, “normalidade” mítica, que ataria Real, Simbólico e Imaginário
reunidos graças a um borromeano bem sucedido. Nada os ligaria a priori. Todos
seriam débeis, dirá Lacan, para além da referência asseguradora do mito freudiano,
do pai inventado para dissimular a dissociação dos três registros.
2. A estrutura da experiência humana é para ser pensada fora de uma referência ao
Outro, ela é para ser pensada a partir das três únicas categorias da experiência, o
128
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Real, o Simbólico e o Imaginário. Lacan avança em seu ensino para mostrar que
essa estrutura se funda sobre uma falta original que é topológica. Ela seria a
estrutura mesma dos nós para além de uma metáfora. O real dessa estrutura é o real
topológico dos nós.
O Nome-do-Pai, para Lacan na década de 70, é o efeito real advindo da amarração
borromeana do de três. Como explicitamos, no de três sempre dois registros
disjuntos e sobrepostos, soltos um em relação ao outro. O terceiro ao enlaçá-los provoca
o efeito de amarração de tal sorte que, soltando-se um, todos os três se desatam. Esse
efeito a mais é real, equivale ao Nome-do-Pai ou ao sinthoma. Nesse sentido, o de
três, solução perfeita, figura a falta, figura o que não há. E isso seria o Nome-do-Pai, se
ele existisse.
“Há foraclusão do borromeano como Nome-do-Pai. É por isso que ele nos interessa. É
preciso três elementos, R, S e I, dois a dois disjuntos, topologicamente equivalentes, para
fazer o borromeano. Portanto, eles o quatro, porque o borromeano ele próprio.
Cada um dos três, R, S ou I, enoda os dois outros e faz consistir o nó: cada um, como
quarto implícito, porta a eficiência do borromeano. A ruptura de qualquer um desata o
conjunto” (SKRIABINE, 2006, p. 59).
Há várias maneiras do nó falhar, assim como há várias maneiras de suplenciar essa falha
para manter o conjunto atado. Há, portanto, vários nomes do pai. Para Skriabine (2006),
Lacan demonstra com a topologia a necessária pluralização do Nome-do-Pai, pois se o
Nome-do-Pai falha sempre, os nomes do pai para suplenciá-lo são numerosos. Aqui a
disjunção entre o significante do Nome-do-Pai e os nomes do pai como versões,
suplências, fica evidente.
No Seminário RSI, Lacan dispõe três suplências ao nó borromeano de quatro que seriam
os verdadeiros nomes do pai. Ele apresenta o sintoma como uma das modalidades desse
quarto elemento, neste caso acrescentado ao simbólico. O simbólico é então substituído
por um binário, desdobrado em (simbólico + sintoma), que Lacan designará no
seminário sobre Joyce como (inconsciente + sinthoma).
Revendo a figura 09, podemos nela localizar a cadeia significante no Simbólico,
enquanto inconsciente interpretável ou o que do sintoma se analisa, e o sinthoma
figurado como Σ, enquanto o inconsciente inanalisável, gozo opaco. Valendo-se desse
recurso, Skriabine (2006, p. 59) faz uma aproximação entre a função que a metáfora
delirante realizaria para o psicótico e o Nome-do-Pai para o neurótico redutível ao
final do trabalho analítico a esse resto inanalisável, puro nome, lugar no qual se refugia
129
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
o gozo que escapa ao significante. A metáfora na psicose condensaria o gozo para o
qual o Simbólico não faria mais barreira. Nesse sentido, a metáfora delirante seria um
Nome-do-Pai que, diferente da metáfora paterna, não é socialmente partilhada. Aqui o
quarto elemento aparece como simbólico em sua função primeira de nomeação.
À nomeação simbólica como sintoma se acrescenta a nomeação do imaginário como
inibição e a suplência do real como angústia. Eis finalmente os três nomes do pai
dispostos por Lacan no Seminário RSI. Lembrando que, na primeira lição deste
seminário, Lacan figura a suplência ao Real por sua nomeação, o Édipo.
Figura 09 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Real (Édipo) (SKRIABINE, 2006, p. 60)
No seminário sobre Joyce, Lacan (1975-76/2005) apresenta uma forma de erro e de
reparação do de quatro totalmente diferente, que nos permite realizar uma
aproximação do à clínica na experiência analítica. Ele nos mostra como o sinthoma
vem reparar um erro, um lapso do entre Real, Simbólico e Imaginário, no ponto
mesmo em que ele se produz. Lacan parte do relato de Joyce acerca de um episódio no
qual ele é surrado pelos colegas e tem o sentimento de que seu corpo se solta como uma
casca, sem ter experimentado nenhum sentimento de raiva ou revolta em relação ao
acontecido. Nesse deixar-se cair, Lacan nos convida a reconhecer um deslizamento do
Imaginário que não se ata devido a um erro no nó. Nesse ponto em que o erro se produz,
Lacan aponta o ego como sinthoma, como “raboutage correcteur”.
130
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 10 – Erro e suplência em James Joyce no nó borromeano (LACAN, 1975-76/2005)
57
Lacan identifica nas epifanias o efeito de uma escrita que sustenta o ego, o sinthoma
joyceano, o resto, o resíduo dessa operação de reparação (tal qual o sinthoma resta ao
final de uma análise na neurose). Assim o ego, a escrita, a obra de Joyce são o nome do
pai do qual ele se sustenta para existir e se fazer um nome.
“O ego designa aqui o que se constitui do artifício, da arte de Joyce, que produziu uma
escrita enigmática que desfaz a língua. Constituída a partir da pura materialidade do
significante enquanto ela porta e veicula um gozo inefável, o ego joyceano, sintoma puro,
fora de sentido, puro gozo, se revela como puro sinthoma” (SKRIABINE, 2006, p. 60-61).
Com base nessa argumentação, Skriabine nos propõe, a partir dessa revisão do Nome-
do-Pai no ensino de Lacan, uma nova clínica diferencial.
57
Cf. erro e reparação de James Joyce no CD-ROM.
131
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 11 – Duas modalidades da clínica diferencial (SKRIABINE, 2006, p. 61)
Como se na comparação dos dois desenhos, a Verwerfung, no primeiro caso, é o
divisor de águas para se pensar as estruturas clínicas e seu diagnóstico diferencial entre
neurose, psicose e perversão. Partindo dessa perspectiva, a idéia de suplência se assenta
sobre a presença ou ausência do significante do Nome-do-Pai, que agenciaria a entrada
do sujeito na linguagem, dividido como desejante. Nessa ótica, podemos pensar que o
psicótico se valerá de diferentes recursos para realizar uma mesma operação de
reparação, qual seja, a reparação da ausência do Nome-do-Pai.
Na segunda perspectiva, é a forma de amarração do que instala o campo diferencial
das suplências e, conseqüentemente, do diagnóstico e da estabilização. A falta estrutural
para todos do significante-índice no campo do Outro traz como efeito a pluralização dos
nomes do pai como estilos de suplência, de reparação, de solução. Nessa abordagem, o
recurso material utilizado pelo sujeito na construção de uma solução a essa falta
estrutural é secundário em relação à operação que a realiza. Interessa menos distinguir
ser a arte ou o delírio o recurso do qual o sujeito se vale nesse trabalho, que
precisarmos, na direção do tratamento, a via e o estilo de operação que inclui esses
recursos na construção de sua suplência.
Dessa maneira, nossa hipótese inicial ganha uma sobreposição, talvez mesmo um
deslocamento. Partimos da hipótese de que a obra na psicose poderia apresentar-se
como solução a partir de um trabalho sobre o campo do real que produzisse uma
condensação de gozo, realizada a partir da criação artística sobre uma superfície
132
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
material. Nosso foco era a materialidade dessa superfície da criação artística ou
artesanal que poderia oferecer-se como apoio para a construção de uma solução.
Perguntávamos, nessa hipótese, se o sujeito poderia prescindir da escrita para forjar um
sinthoma, dado que o caso paradigma era, então, a escrita joyceana.
A discussão empreendida até então neste capítulo nos conduz a um refinamento
necessário dessa discussão, a partir de dois aspectos ao menos. Primeiramente, com a
introdução das noções de letra e de lalíngua na década de 70, a escrita ganha, para a
psicanálise, uma nova materialidade, um novo suporte. Se antes o sujeito se escrevia
sobre um traço apagado, a partir da incidência do significante do Nome-do-Pai, com a
entrada da letra enquanto suporte do significante e litoral entre simbólico e real, a
escrita se faz sobre a ausência de um traço anterior, ela é inaugural em si mesma. A
letra, ao mesmo tempo em que escreve, faz resvalar um gozo a mais, disjunto do campo
do Outro, suplementar, que carece de tratamento.
Dessa forma, a superfície material de nossa hipótese não pode mais ser tomada somente
como a argila ou uma tela, mas antes como letra, que pode ou não se escrever. A base
dessa escrita é, ao mesmo tempo, material e substancial. E, suponhamos por hora, que
essa escrita, se não se faz, não amarração entre os registros. Na discussão dos casos,
poderemos avançar sobre a caligrafia e as conseqüências da letra quanto à suplência,
que se faz necessariamente a partir de uma escrita...
E, como segundo aspecto, deveremos operar um deslocamento de perspectiva, de
abordagem de nosso questionamento. A questão sobre a obra, sobre a criação
permanece. Entretanto, ela passa a exigir uma outra maneira de ser enfocada. Não é o
recurso “criação artística ou artesanal” que, presente ou ausente, realizará uma
suplência. Trata-se mais do uso, da operação, que o sujeito realiza através, sobre ou a
partir da criação do que dela em si mesma. A questão é, antes, a de localizar no estilo de
resposta que o sujeito constrói a forma de amarração que ele realiza e nesta, então,
pensar como a criação comparece. O que interessa à clínica é mais a habilidade no uso
operatório dessa “arte” de saber-fazer do que a arte como recurso em si mesma.
“É que se revela a arte, a habilidade de Joyce, e especialmente em Ulisses: capturar o
deslizamento incessante do pensamento à deriva, mobilizado no endereçamento ao outro,
retornando ao seu autismo; cerrar o o-sentido desse pensamento, revelar a
moterialidade
58
, como dirá Lacan, na qual se fixa o não-sentido destes pensamentos que se
emboscam e se captam nos significantes” (SKRIABINE, 2006, p. 61).
58
Lacan brinca com a idéia de que a palavra (mot) articula uma materialidade nela mesma, pela via da
letra. Daí falar em “moterialité” como sendo o que realiza a pega do inconsciente.
133
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Os significantes passam a jogar sozinhos, fora do significado; sintaxe e léxica se
desfazem com Joyce. No Seminário XXIII, Lacan (1974-75/2005) desenvolve um pouco
mais esta questão. Ao examinar a obra de Joyce e o uso que fazia da linguagem na
literatura, observa que sua obra, apesar de fazer uso da linguagem, representava um
sintoma impermeável à decifração. Joyce escrevia decompondo lalíngua e chegando até
aos fonemas, fazendo jogos lingüísticos em que articulava a escrita com a função de
fonação, levando o leitor ao ato de emitir a voz como suporte da palavra. Nesse sentido,
Joyce eleva lalíngua à potência da linguagem, de S2 a S1, apresentando-a carente de
todo sentido, opaca, puro gozo. De Paolli
59
coloca que, se a Lingüística busca um saber
acerca do significante a partir de lalíngua, Joyce, a partir desta, extrai um significante
que não é lingüístico – é translingüístico, na medida em que é uma mescla de línguas
e desdobra a linguagem até sua própria destruição”. Essa potência de linguagem é o
que supre sua carência de potência fálica. Lacan articula ironicamente que o ph de
phonation, Joyce o utiliza com valor do ph de phallus, em alusão ao gozo fálico que o
significante envolveria.
É pela via dessa operação real sobre lalíngua que começaremos, então, a tratar dos nós,
buscando, ao final do próximo capítulo, extrair a aplicação clínica desses nós para a
psicanálise e, especialmente, para pensar as estabilizações psicóticas. Comecemos,
porém, por situá-los no campo psicanalítico, retornando às suas características
matemáticas originais, para finalmente tomá-los como “objetos lacanianos” no uso
adotado por Lacan em relação a eles.
59
Cf. Cynthia de Paolli, “Tu és teu sinthome, na revista virtual da SPID, disponível em
<http://www.spid.com.br>.
134
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
CAPÍTULO 3
DE NÓS E LAPSOS TAMBÉM SE ESCREVE UM SUJEITO:
A Topologia dos Nós e seus Desdobramentos Clínicos
135
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
3.1 Lacan e o Nó Borromeano
Lacan fala pela primeira vez do nó borromeano na aula de 09/02/1972, no seminário Ou
pire..., a partir da frase eu te peço que me recuses o que te ofereço, porque não é isso”,
retomada depois para explicar o como escrita no Seminário 20. Ele se refere aos
seminários do matemático M. Guilbaud. Em RSI (LACAN, 1974-75), diz que tomou
conhecimento dos brasões da família borromeu nas anotações de uma pessoa que
freqüentava o seminário do matemático e com quem ele se encontrava vez ou outra.
Tratava-se da jovem matemática Valérie Marchand.
“Os brasões dessa dinastia milanesa eram constituídos de três círculos em forma de trevo,
simbolizando uma tríplice aliança. Se um dos anéis for retirado, os outros dois ficam livres,
e cada anel refere-se à potência de um dos três ramos da família. Carlos Borromeu, um de
seus mais ilustres representantes, foi um herói da Contra-Reforma. Sobrinho de Pio IV, ele
reformou, no século XVI, os costumes do clero no sentido de uma maior disciplina.
Durante a epidemia de peste de 1576, destacou-se por sua caridade e, ao morrer, o
protestantismo fora em parte afastado do Norte da Itália. Quanto às famosas ilhas
Borromeanas, situadas no lago Maggiore, foram conquistadas um século depois por um
conde Borromeu que lhes deu seu nome e fez delas uma das paisagens mais barrocas da
Itália” (ROUDINESCO, 1994, p. 364).
O representa, portanto, a indissolubilidade da relação entre os três ramos da família,
de tal sorte que, um deles se afastando desse laço, ele próprio se decompõe.
O encontro de Lacan com o borromeu se deu paralelo ao seu encontro com jovens
matemáticos de extrema esquerda. Foi com Pierre Soury, em particular, que Lacan
travou seu mais longo diálogo matemático nesses últimos anos. Físico de formação e
matemático, ele foi designado à direção de estudos de Bernard Jaulin e iniciou a
condução, no ano de 1973-1974 na Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais
(EHESS) em Paris, de um seminário que tinha por objetivo construir um modelo
matemático que permitisse estudar as preocupações lógicas e topológicas de Lacan
(ROUDINESCO, 1994, p. 367). O grupo de cerca de vinte pessoas reunidas em Paris
VII-Jussieu dialogava com Lacan e levava seus avanços até o seminário de Lacan no
Panthéon. Foram várias as entradas de Soury neste e em outros seminários, em geral
respondendo a alguma questão formulada por Lacan. Além disso, farta correspondência
(cerca de 200 cartas) e três volumes de uma edição francesa da obra de Soury
60
(feita
por Thomé e Léger, seus companheiros mais próximos de residência, método e idéias)
60
Cf. Pierre Soury, Chaines et Noeuds, edité par Michel Thomé et Christian Léger, Paris, 1988 (Premier,
Deuxième et Troisième Parties).
136
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
testemunham esse encontro
61
.
Ocupado cada vez mais em decifrar a presença ex-sistente do Real, Lacan encontra num
recurso matemático, mais uma vez, uma veia fértil de trabalho. Seu esforço de
transmissão da experiência analítica, enquanto operação real de redução do gozo (ou de
estreitamento, se falamos do nó), tem na topologia dos nós uma descoberta essencial e
diferente do uso que fazia do matema.
“... quando soube desses negócios, do nó borromeano [...] Uma coisa é certa, foi que eu tive
a certeza de ser aquilo algo precioso, precioso para mim, para o que tinha a explicar,
imediatamente relacionei esse borromeano com o que, desde então, se mostrava a mim
como rodelas de barbante, algo provido de uma consistência particular, que faltava ainda
ser sustentada, mas que era para mim reconhecível no que eu enunciara desde o início de
meu ensino” (LACAN, 1974-75, aula de 18/03/1975 – grifo nosso).
Enquanto os matemas escrevem o irredutível de um saber que pode ser transmissível,
ainda que não-todo, o mostra, no silêncio de seu desenho, o real que está
62
. Ele
associa as três rodelas do aos três registros com os quais trabalha desde suas
primeiras produções, Real, Simbólico e Imaginário. E, como dissemos, a relação
entre eles aqui ganha uma topologia singular
63
. Eles são tomados como equivalentes,
sendo o nó, enquanto resultado de uma amarração, o real em si mesmo. Daí a idéia de
que, mesmo num de três elementos, eles já seriam quatro, o que mostra a presença
ex-sistente do real.
Os matemáticos que se associaram ao empreendimento lacaniano muitas vezes
auxiliaram o mestre a construir sua teoria. Eles foram interlocutores importantes não
por se colocarem intensamente a trabalho a partir das proposições lacanianas, mas
também pelo fato de que, sendo matemáticos, introduziram um olhar e um diálogo
diferenciados com Lacan. Em diferentes ocasiões, eles desenharam e conseguiram
construir os objetos lacanianos
64
ou ensaiaram confirmar (ou refutar)
matematicamente as afirmações lacanianas. Soury chega mesmo a dedicar os últimos
61
Recentemente Junho de 2006 Michel Vappereau levou a leilão em Paris parte dos papéis com as
anotações que Lacan lhe dera referente à topologia dos nós e à matemática.
62
Mais ao final de seu ensino, Lacan (1981) irá dizer, num seminário realizado em Caracas, que o não
diz tudo (“mon noeud ne dit pas tout ”), pois que o existe pas tout seguramente no real que ele
aborda em sua prática.
63
Charraud (1992) identifica em Lacan ao menos três topologias: (1) topologia geral (as vizinhanças); (2)
topologia dita algébrica (as superfícies); (3) topologia do significante (a partir da significação do falo e
aludida, mas não desenvolvida, em relação à metáfora e à metonímia). Com a topologia dos nós, no item
(1), Lacan estaria deslocando a questão de como surgiu o sentido, apontada em “A instância da letra”
(1957b/1998), para a de como, de um nó de sentido, surgiu o objeto a.
64
Soury (1998b, texte 102, page 1) nomeava algumas figuras matemáticas, como o toro ou o
borromeano, de objetos lacanianos.
137
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
anos de seus seminários no Centre national de la recherche scientifique (CNRS) ao
estudo da “topologia lacaniana”.
Um dos interessantes diálogos que evidencia a natureza dessa relação acontece em
1975. Durante seu seminário Joyce, Le Sinthome (1975-76/2005), Lacan retoma a idéia,
bastante desenvolvida no RSI (1974-75), de que o borromeano não é um modelo.
Se o fosse seria da ordem do Imaginário, na medida em que todo modelo situa-se a
partir da substância suposta por este registro (LACAN, 1974-75, aula de 17/12/1974).
Diante desse fato, Lacan espera fazer, do aparente modelo que é o borromeano, uma
exceção. E o que significa isso?
Ele é claro: o que faz borromeano não é o Imaginário, nem a representação; ao
contrário, é o que escapa a uma representação. O não é o modelo, é o suporte. Ele
não é a realidade, é o Real. O que quer dizer que, se distinção entre o Real e a
realidade, é o nó, não como modelo (LACAN, 1974-75, aula de 15/04/1975). Para
Lacan, o borromeano é uma escrita que suporta o Real, ele é o suporte. O é
subjacente à linha. Não há consistência que não se suporte do nó. É nisto que, do nó, a
própria idéia do Real se impõe. O Real é caracterizado por se atar, mas é preciso fazer
esse nó” (LACAN, 1974-75, aula de 15/04/75).
A fim de demonstrar sua assertiva, Lacan, no seminário do ano seguinte, propõe a
hipótese de que não seria possível produzir um borromeano de quatro nós de trevo.
Provar sua não-existência e não sua ex-sistência permitiria que um Real fosse
assegurado. Trataria-se do Real constituído por isso: que não borromeano que se
constitua de quatro nós a três. Demonstrá-lo seria tocar um Real, uma dimensão não-
representável no campo dos nós (LACAN, 1975-76/2005, p. 43). Antes de conhecermos
a resposta dada a Lacan por seus parceiros matemáticos, avancemos um pouco sobre o
que é a demonstração e a mostração para a Matemática.
Em uma demonstração (SOURY, 1988b), o que se discute são as configurações parciais
e as configurações impossíveis, especialmente as configurações parciais impossíveis.
o que Lacan pretende aqui. Ele quer demonstrar uma parcialidade impossível para a
teoria dos nós, ou seja, um que o pode ser realizado.) Desenhar, ao contrário do
demonstrar, seria mostrar as configurações completas e possíveis. Demonstrar é
principalmente demonstrar as impossibilidades, enquanto mostrar é principalmente
mostrar as possibilidades.
138
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Os desenhos são suspeitos de falsear as demonstrações. E, num outro sentido, as
demonstrações induzem a desenhos ruins e a desenhos sem interesse. Uma vez que um
desenho ganha uma configuração completa, tornam-se problemáticas certas existências
e certas construções. Donde a demonstração operar pelas configurações parciais.
A preocupação com a generalidade conduz a mostrar somente contra-exemplos. Ela
produz desenhos especialmente desagradáveis: são desenhos que querem indicar uma
generalidade de desenhos possíveis. Ora, um desenho, uma apresentação de objeto, não
mostra senão uma coisa. E, para desenhar um caso particular, é preciso estar-se
sustentado pela existência de casos exemplares. efeitos ruins das demonstrações e
das generalidades sobre os desenhos.
Estas são modalidades de dificuldades diferentes daquelas próprias ao desenho, à
apresentação, à designação, como as dificuldades ligadas à apresentação plana, em duas
dimensões, de objetos do espaço tridimensional. Um exemplo dessa dificuldade é o
problema clássico de perspectiva em geometria. Os problemas de apresentação ou de
designação são fontes de desenhos errados e obscuros, o que é atestado por Lacan ao
longo de seus seminários topológicos ao errar inúmeras vezes o desenho de seus nós no
quadro negro.
Daí uma apresentação de objeto, sua representação, ser muito menos ambiciosa que uma
definição geral de um gênero de objeto. De saída porque uma apresentação é particular
enquanto uma definição é geral. Em seguida porque designar um objeto de três
dimensões por algo em duas dimensões é menos ambicioso que designar e definir um
objeto espacial pela linguagem somente.
Donde decorre uma outra dificuldade da apresentação, qual seja, a de produzir uma
simplificação pelo desenho particular que gera desconhecimento sobre as dificuldades
da definição geral do objeto. As dificuldades e problemas de designação (ou
apresentação) têm uma fecundidade muito diferente e são quase mesmo constitutivas
em topologia. Soury (1988b, texte 102, page 3) chega a dizer que a relação entre
demonstração e mostração pode induzir a proposições falsas e/ou a figurações incorretas
de objetos topológicos.
Apesar de os matemáticos trabalharem principalmente com a abstração da demonstração
e da definição, ou seja, do lado da demonstração, um enunciado exato tem
freqüentemente duas metades: uma demonstrativa e outra mostrativa. Demonstrar as
139
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
impossibilidades somente fica claro por referência a mostrar as possibilidades. Isto quer
dizer que uma demonstração não caminha sem uma mostração e que uma definição não
caminha sem uma designação. Podemos mesmo construir uma tabela na qual dispomos
a diferença, o objetivo e o alcance da demonstração e da mostração, nessa relação de
complementaridade que podem (e mesmo devem) adquirir.
DEMONSTRAÇÃO MOSTRAÇÃO
Definição Apresentação (ou designação)
Gênero de objeto Objeto
Generalidade Particularidade
Impossibilidade Possibilidade
Contra-exemplo Caso exemplar
Configuração parcial Configuração completa
Lacan mostra o para falar do discurso analítico enquanto operação sobre o real do
gozo. Se fui levado à mostração desse nó, enquanto o que buscava era uma
demonstração de um fazer, o fazer do discurso analítico, isso é bastante, diria eu,
mostrativo ou demonstrativo” (LACAN, 1974-75, aula de 11/03/75).
E seu exercício avança na discussão do Seminário XXIII sobre haver uma
impossibilidade em se fazer um borromeu de quatro nós de trevo. Com isso, ele
mostraria uma impossibilidade, afirmando sua assertiva original de que o é o Real.
Ele busca uma demonstração do Real pela apresentação de um contra-exemplo: a
impossibilidade da existência de um nó borromeano de quatro nós de trevo.
A dedicação dos matemáticos com quem dialoga aparece aqui no desenho trazido por
Thomé que apresenta exatamente o desenho desse nó... Apesar de Lacan dizer ter
passado os dois meses de férias quebrando a cabeça para desenhá-lo, como ele mesmo
nos diz, isso não foi suficiente para provar que essa apresentação não existisse. De fato,
na aula seguinte a que Lacan se coloca essa questão, Thomé e Soury trazem o desenho,
que se encontra no Seminário XXIII (LACAN, 2005/1975-76, p. 47). São três nós de
trevo livres uns em relação aos outros, amarrados borromeanamente por um quarto.
Como o próprio Lacan argumenta em seguida, isso simplesmente teria permitido
sustentar o que ele pretendia introduzir, a saber, a equivalência dos três registros, posta
desde o Seminário RSI. Ali, ele define as três consistências por sua equivalência e
também por seu estatuto no nó.
“Eles são constituídos por alguma coisa que se reproduz nos três. [...] é o resultado de uma
certa concentração, que seja no Imaginário que eu coloque o suporte do que é da
140
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
consistência, que, do mesmo modo, seja do furo que eu faça o essencial do que é do
Simbólico, e que eu suporte especialmente do Real o que eu chamo de ex-sistência”
(LACAN, 1974-75, aula de 18/03/1975).
É do fato de que dois sejam livres um do outro que se suporta a ex-sistência do terceiro,
especificamente a do Real em relação à liberdade do Simbólico e do Imaginário. A
partir do momento em que o Real é enodado borromeanamente aos dois, eles lhe
resistem. Isso quer dizer que o Real tem ex-sistência na medida em que encontra no
Simbólico e no Imaginário sua parada, seu limite. Daí Lacan afirmar e reafirmar
continuamente que o Real não é apenas uma rodela do borromeu, mas o efeito da
maneira como ele se amarra. O que nos importa aqui é essa operação real que, como
veremos, desloca e fixa o gozo. Trabalho permitido por uma renomeação do sujeito a
partir da versão do pai que estabelece.
Nesse diálogo, portanto, com a matemática e com os matemáticos, Lacan o faz nada
mais que, como sempre, orientar a clínica e reconduzi-la a sua radicalidade. Podemos
dizer que ele estabelece com a Matemática uma relação muito próxima da que
estabelece com a Filosofia
65
. Apesar de serem saberes disjuntos, Lacan coloca a
Matemática a serviço de seu trabalho teórico. Ele não a utiliza apenas como ilustração
lateral, mas dela extrai aportes que lhe permitem forjar seus conceitos clínicos.
Alguns anos após o suicídio de Soury em 1981 três meses antes da morte de Lacan –,
Thomé edita seu curso numa trilogia de cerca de seiscentas páginas
66
nas quais se
encontram desenvolvimentos teóricos, lógicos, geométricos e aritméticos da topologia
matemática, desenhos topológicos, rascunhos de idéias de sua aplicação à psicanálise,
diálogos com Lacan, e dados da história pessoal de Soury. Deles podemos extrair a
experiência viva da parceria dessa dupla de matemáticos com Lacan perscrutando os
arredores e as veias principais dos três livros. Em comunicação pessoal com Thomé, ele
diz que, com a edição do livro, tratava-se de fazer viver a genialidade de seu parceiro e
dar a ele o lugar destacado que merecia na posteridade.
3.1.1 A disposição clínica de um objeto matemático
A importância desse diálogo para a psicanálise reside, em nosso entender, na mostração
do Real, realizada através da presença da Matemática na elaboração lacaniana da clínica
65
Apoiamo-nos na proposta de BAAS (1992) acerca da relação Psicanálise-Filosofia para pensar a
relação Matemática-Filosofia.
66
SOURY, Pierre. Chaines e Noeuds. Paris, 1998. (Première, Deuxième et Troisième Parties).
141
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
psicanalítica. Algumas proposições de Lacan, como veremos, são inaceitáveis no campo
matemático. Ele subverte os conceitos matemáticos, como o fizera com os da
Lingüística e com os da Filosofia. Tal é a situação da representação plana de um
borromeu de três rodelas, desenhado com duas retas e um círculo (LACAN, 1975-
76/2005, p. 112). Lacan tenta assim evitar todo Imaginário do círculo que aprisiona,
fecha.
Figura 12 borromeano de três elementos com duas retas e um círculo (LACAN, 1975-76/2005, p.
32)
Essa forma de apresentação é simplesmente inconcebível para um matemático. Isso pela
simples razão de que as retas infinitas podem se cruzar de qualquer maneira no espaço,
e não somente daquela que resultará num borromeano. Donde a exigência, para
designação do nó, de que ele seja representado por três círculos.
Lacan remonta a equivalência do círculo com a reta infinita à perspectiva de
Desargues
67
, que teria percebido que toda reta infinita fecha, faz anel num ponto
infinito. Assim, para Lacan (1974-75, aula de 08/04/1975), está dada a equivalência da
reta ao círculo pelo fato de que os dois fazem nó. Sendo equivalentes na eficiência do
nó, entre eles não haverá diferença, salvo pela passagem de um a outro... E nesse
percurso, Lacan observa que o círculo está centrado no furo, enquanto a reta parte no
67
A geometria projetiva surge com as dificuldades dos artistas do Renascimento para dar aos quadros que
pintavam a forma real dos objetos inspirados, de modo que as pessoas ao olharem o identificassem sem
dificuldades. Isso levou os artistas a estudarem profundamente as leis que determinavam a construção
dessas projeções. Com esses estudos eles chegaram à teoria fundamental da perspectiva geométrica, que
se expandiu por um pequeno grupo de matemáticos franceses motivado por Gerard Desargues. Desargues
publicou um tratado original sobre sanções cônicas, aproveitando idéias de projeção. Esse trabalho,
porém, foi ignorado e esquecido pelos matemáticos da época e todas as suas publicações desapareceram.
O que os levou a essa falta de interesse sobre o trabalho foi a geometria analítica (introduzida dois anos
antes por René Descartes) e a termologia excêntrica adotada por Desargues. Mas o geômetra Michel
Chasles conseguiu ressuscitar o trabalho de Desargues ao escrever sobre a história da geometria, pois
encontrou uma cópia manuscrita de seu estudo feita por um de seus seguidores. Assim, o trabalho de
Desargues foi reconhecido como um dos clássicos no desenvolvimento da geometria projetiva, sendo hoje
referencial no campo. Disponível em Wikipedia <http://pt.wikipedia.org/wiki/Geometria_projetiva>.
142
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
errar até encontrar a consistência, ou seja, ex-siste, tem o furo em volta dela toda. O erro
central do nó, dado pela marca do recalcamento primário irredutível ao Simbólico,
instala um campo de falta e exige um suplemento a esta falta que cria. Esse erro,
portanto, é a chance de fixar o (LACAN, 1974-75, aula de 08/04/1975). Dessa
maneira, o nó borromeano constituído pela esfera e pela cruz torna-se, assim, necessário
para a proposição lacaniana de suplência, ao mesmo tempo em que se torna um
equívoco ou um desvio para a Matemática.
A subversão que acompanha a “topologia lacaniana” se apresenta num esforço
constante de Lacan em afirmar a incapacidade do plano de três dimensões em dar conta
do sujeito do inconsciente. Lacan definiu um projeto que poderíamos denominar
‘inversão da topologia algébrica’, quer dizer, de fundar o espaço a partir dos nós e não
os nós a partir do espaço” (SOURY, 1988b, texte 104, page 2). A introdução do toro ou
da garrafa de Klein no plano projetivo sugeria esse projeto. No Seminário RSI, Lacan
recorre às noções de vizinhança e de ponto de acumulação
68
para evidenciar quanto a
topologia encara o espaço de outra forma [...] Vê-se muito bem qual é a vertente, na
descontinuidade como tal, enquanto manifestamente uma resistência a que a
continuidade seja a vertente natural da imaginação (LACAN, 1974-75, aula de
08/04/1975).
Como passar do centro para o em torno continuamente implica em tentar responder
topologicamente ao fato de a linguagem se apresentar no texto inconsciente pelo
significante e manifestamente no ato da fala pela palavra, tal qual a Banda de Moebius o
explicita. Ou, tomada sob outra perspectiva, letra e significante dispõem-se com
estatutos topológicos diferentes mas, ao mesmo tempo, intrinsecamente articulados. É
nesse sentido que Lacan critica a geometria euclidiana como insuficiente com suas três
dimensões (ponto = dimensão zero, reta = dimensão dois, espaço ou volume = dimensão
três) para dar conta da experiência do inconsciente. É preciso um plano projetivo que
permita operações psicanalíticas, impossíveis para a geometria clássica.
E quanto à topologia dos nós? Na mesma direção, Lacan associa o uso do
borromeano a uma tentativa de evidenciar o discurso analítico que, por incluir o objeto
68
Esses são conceitos que surgem na Matemática dos números e dos planos complexos, acrescentando
aos números reais e ao plano cartesiano a possibilidade de continuidade antes inexistente. Podemos dizer
que foi através do uso e da compreensão dos números complexos que certos “defeitos” existentes no
conjunto dos números reais foram “consertados”, ampliando o campo do raciocínio matemático ao inserir
nele as continuidades. É sobre a analogia com o descontínuo e o contínuo que se apóia a perspectiva de
uma continuidade intrapsicose ou o esquema da clínica diferencial apoiada na topologia dos nós.
143
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
a, aponta para uma dimensão de escape da linguagem. “...se fui uma vez tomado pelo nó
borromeano, foi por esse tipo de acontecimento, ou de advento
69
, como quiserem, que
se chama discurso analítico... (LACAN, 1974-75, aula de 08/04/1975). O que ele
buscava ao encontrar nos nós esse acontecimento? É ele mesmo quem nos responde.
De um lado, e principalmente, tratava-se de pensar um deslocamento da Lingüística em
relação ao nó, ou da prevalência do Simbólico em relação à prevalência do Real. É
preciso que o Real sobreponha, se posso assim dizer, o Simbólico para que o
borromeano seja simbolizado [...] é muito precisamente do que se trata na análise
(LACAN, 1974-75, aula de 14/01/1975). Isso nada tem a ver com um sobrepor-se no
sentido imaginário de uma dominação, e sim que Real e Simbólico se atam de outra
forma. Essa outra forma é o que faz o essencial do complexo de Édipo e é no que opera
uma análise.
Ora, no mesmo seminário, RSI (1974-75), Lacan reforça a idéia de que a linguagem é
ornamento”, enquanto o importante é a referência à escrita”, como vimos. Ainda
que ele não perca de vista que é pela linguagem que somos afetados, também não perde
de vista a diferença entre língua e fala, e entre fala e nó. A fala, apoiada na língua,
produz cadeia pela associação significante. Entre os três registros do nó, entretanto, não
reciprocidade da passagem de uma das consistências no furo que o(a) outro(a) lhe
oferece. As consistências não se atam uma à outra, quer dizer, não formam cadeia. E é
nisso que se especificam as relações entre Real, Simbólico e Imaginário. Supunha-se
que eram as palavras que carregavam o efeito de sentido. Lacan coloca a questão de
saber se o efeito de sentido no seu Real se agüenta bem com o uso das palavras. E
avança dizendo que devemos nos fiar no fato de que o dizer faz nó, diferente da palavra
que desliza, pois o inconsciente por detrás do blá-blá-blá do sujeito. uma cifra de
gozo que o nó engancha.
Deciframento no campo do Simbólico, ciframento no campo do Real é outro aforismo
conseqüente dessa discussão que evidencia o que Lacan buscava encontrar ao se deparar
com o nó. Há, no que se diz, o que é afetado pela palavra, o que se goza com ela. A
interpretação implica totalmente numa báscula na envergadura desse efeito de sentido
(LACAN, 1974-75, aula de 11/02/1975). Ela carrega, afeta, de uma maneira que vai
bem mais longe que a palavra. um ponto de gozo que a linguagem realiza e que lhe
69
Aqui Lacan joga com as palavras “évènement” (acontecimento) e “avènement” (advento, aparecimento)
para tratar do encontro com a figura do nó borromeu.
144
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
escapa. Quando Lacan nos convida a entrar na fineza dos campos de ex-sistência, pois é
que uma análise opera, e localiza na ex-sistência a incidência do gozo em relação aos
dois registros que se lhe opõem, convida-nos por conseqüência ao estudo da topologia.
Apresenta-nos, nessa faceta, o que mais se encontra ao se deparar com os nós. Para ele,
o borromeu é a melhor topologia para tratar do furo, pois a ex-sistência permite
exatamente conceber o limite, a não-relação.
E, enfim, na mesma via aberta pela relação à lingüística e pela relação ao tratamento do
gozo, Lacan (1974-75, aula de 15/04/1975) nos fala do encontro, através da descoberta
do nó, com uma realidade operatória. A realidade psíquica, a estrutura do mundo,
consiste em se conseguir palavras, enquanto a realidade operatória trata disso que
foge
70
, do Real. O inconsciente apenas permite que se veja haver um saber não no Real,
mas suportado pelo Simbólico, concebível pelo limite, pelo furo. O Simbólico gira em
falso e consiste apenas no furo que faz. Foi preciso que se fosse ao Real, suposto, para
se ter um pressentimento do inconsciente no sentido do que dá corpo ao instinto.
Trata-se, como se vê, de uma questão clínica por princípio a do encontro de Lacan com
o borromeano. O deslocamento de perspectiva operada por Lacan nesse período de
seu ensino encontra na teoria matemática dos nós uma sustentação real, hors de la
langage, mas por ela amparada, que interessa à clínica de maneira geral, e à clínica da
psicose, em particular.
A formalização matemática é nosso fim, nosso ideal. Por quê? Porque ela é
matema, quer dizer, capaz de transmitir integralmente (LACAN, 1972-73/1982, p.
161). Mas se a formalização matemática é a escrita dessas pequenas letras em relação
umas às outras, ela subsiste à condição de que seja lida, falada, e, com isso, algo
está de saída perdido. Daí o matema apresentar-se, antes de tudo, como ideal
metalingüístico. E donde, por conseqüência, Lacan ir além e fazer consistir um saber na
medida em que ele se suporta na ex-sistência mostrada nos nós.
Podemos, enfim, dizer que a recorrência de Lacan aos nós se deveu ao seu desejo de
fazer valer uma clínica sustentada pelo Real no sentido de fazer operar o inconsciente
como savoir y faire do sujeito. Tratava-se, à época, de mostrar as condições de
possibilidade do discurso analítico, enquanto redução semântica, mas também redução
70
E é inclusive no que o mundo é mais fútil (futile), quero dizer, que foge (fuit)” (LACAN, 1974-1975,
aula de 15/04/1975). Lacan ironiza de novo com a homofonia para tratar do que, “fútil”, foge ao
simbólico e se apresenta, ao contrário, como determinação real.
145
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
do gozo a sua parte que resta como vivificadora, elemento pulsante que permite ao
desejo construir seus nomes e seus percursos. Caminhemos, então, pelos nós da
topologia...
3.1.2 Topologia dos nós: noções matemáticas fundamentais
Os principais estudos de Lacan acerca dos nós datam da década de 70. Nesse período,
os matemáticos que se dedicavam ao tema ainda não tinham realizado o avanço que data
da década de 80. A teoria dos nós nasce no final do século passado, sendo
contemporânea da invenção da psicanálise. Mas mesmo os egípcios já utilizavam os nós
para marcação de medidas dos campos após as cheias do Nilo. Trata-se da cadeia do
agrimensor que se encontra na origem da matemática egípcia (GRANON-LAFONT,
1996). Foi somente no final do século XX, entretanto, com o desenvolvimento da
informática e com o uso do computador para resolver as fórmulas teóricas do nó, que
um avanço mais consistente se deu. É com Vaughan Jones, inventor do “polinômio de
Jones” em 1984, que invariantes sofisticados para abordar os nós começam a ser
desenvolvidos (SOSSINSKY, 1995). A essa época, Lacan já havia morrido...
Dessa forma, acompanhando a discussão lacaniana, buscaremos, apoiados na topologia
dos nós, destrinchar sua teoria de base, no que ela concerne e serve ao saber e à clínica
da psicanálise. Como vimos, na medida em que Lacan avança em suas discussões
acerca de um certo impossível de apreender, mais ele se vale desse recurso para falar do
que se escreve como Real. Pensamos que o uso da topologia, nesse sentido, a
necessidade de pegar e fazer os nós com fios ou cordas concretamente, é imprescindível
e autentica uma forma de pensar a clínica como operação que parte do Real. Para além
de teorizar ou conceituar as questões do inconsciente e do sujeito ou, em outras
palavras, para além de produzir sentido, de operar com a elucubração do saber advindo
da debilidade do inconsciente, Lacan nos convida a operar com o Real em jogo em
qualquer forma de saber.
desde as fórmulas da sexuação, mas principalmente com Joyce, Lacan parece
desacreditar do poder do significante, da eficácia simbólica da palavra. A aridez
hermenêutica dos nós é consubstancial a este período do ensino lacaniano, demarcando
uma orientação para o analista que acirra os efeitos e o manejo do real do gozo. Discutir
as diferentes formas de amarração borromeanas, e mesmo não borromeanas, os erros ou
146
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
lapsos dos nós, suas costuras ou suplências, deixa assim de ser um mero exercício
acadêmico para se conformar numa árdua tarefa clínica. É pelo menos dessa maneira
que, entendemos, a teoria dos nós precisa ser enfrentada.
Afinal de contas, o que é um nó? Enquanto no uso comum, os nós podem ser amarrados
numa corda e suas pontas podem se encontrar livres, a teoria matemática dos nós
denomina um objeto deste tipo antes como uma trança que como um nó. Para um
matemático, um objeto é um somente se suas extremidades livres são unidas de
alguma maneira de modo a que a estrutura resultante consista em um único fio enlaçado
(looped strand)
71
.
Assim, os nós são curvas unidimensionais situadas no espaço tridimensional
ordinário, que começam e terminam num mesmo ponto (NEUWIRTH, 1979, p. 52
apud MAZZUCA et al, 2000, p. 30). uma relação de menos dois na composição de
um nó, ou seja, menos duas dimensões do espaço unidimensional em relação ao
tridimensional. O também pode ser abordado a partir somente da dimensão
tridimensional, como faz Lacan ao elaborar o toro com uma corda. Na psicanálise
lacaniana, trabalhamos sempre com o exemplo material do objeto matemático abstrato,
na medida em que utilizamos a mostração através dos fios ou das cordas em suas três
dimensões. O é, portanto, uma curva fechada, uma curva com os extremos unidos.
Inclusive o trivial, que é o mais simples, aos olhos do leigo não o seria, como o é
aos olhos do matemático.
Figura 13 - Nó trivial (matemático) à esquerda e nó do senso comum à direita
A propriedade de enodamento não é intrínseca ao nó, como curva de uma dimensão,
como se pode ver. Mas responde ao fato de que está e como está submergido no espaço
tridimensional. Por exemplo, se uma formiga segue pela circunferência, ela não percebe
o nó (NEUWIRTH 1979, p. 52 apud MAZZUCA et al, 2000, p. 32).
A fim de precisar com maior rigor a conceituação dos nós, agruparemos suas principais
71
Disponível em <http://mathworld.wolfram.com/Knot.html>.
147
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
características que, se o compreendidas, geram conclusões equivocadas e
deformações conceituais. Podemos dizer, de saída, que os problemas cruciais dos nós
são três:
(a) saber quando dois nós são equivalentes e quando não o são;
(b) determinar se um nó está realmente enodado;
(c) realizar uma classificação de todos os nós possíveis.
A discussão teórica que se segue nasce na tentativa de responder a essas três questões
centrais.
A. Equivalência entre os nós
Pela matemática, dois nós são equivalentes quando o modelo correspondente a um
deles pode deformar-se estirando-o, contraindo-o ou retorcendo-o até alcançar a
forma do outro, sem romper o tubo nem fazê-lo passar através de si mesmo
(NEUWIRTH, 1979, p. 52 apud MAZZUCA et al, 2000, p. 33). O tubo a que se refere a
citação pode ser compreendido como o toro pelo qual passa a curva unidimensional que
é o nó. Ele pode ser representado visualmente ou pensado, para fins de compreensão,
como um fio ou uma corda. Portanto, se você não corta as cordas ou fios (ou rompe o
tubo) ao deformar um e ele chega ao formato do outro, daí são equivalentes. Por
conseguinte, somente se se mexer nos fios dos nós, sem alterar seu enlaçamento, é que
eles serão equivalentes.
Assim, ainda que dois nós se apresentem visualmente de uma maneira diferente, eles
podem apresentar as mesmas propriedades e serem equivalentes. Nesse caso, dizemos
que são apresentações distintas do mesmo nó, que uma apresentação pode deformar-
se na outra, sem romper a corda. Veja o exemplo abaixo:
=
Figura 14 – Apresentações distintas do mesmo nó trivial (<http://knotplot.com/knot-theory/>)
E, ao contrário, dois nós podem se apresentar desenhados da mesma forma e não serem
equivalentes. Observe:
148
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 15 – Apresentações semelhantes de dois nós distintos (verdadeiro e falso nó de trevo)
No primeiro desenho da figura 15, temos um de trevo que pode ser definido como
uma linha que corta por cima, por baixo e por cima de novo a si mesma, fechando-se ao
final no ponto inicial de partida. É, pois, um nó, sendo classificado como o segundo
mais simples dentre os existentes e conhecidos. No segundo desenho da figura 15,
um falso de trevo pois ele passa, em todos seus três cruzamentos, por cima. Com
isso, basta torcê-lo uma vez para que se o transforme no nó trivial.
Figura 16 – Desfazimento da torção de um falso nó de trevo
Dessa maneira, podemos dizer que o primeiro e o segundo da figura 15 não são
equivalentes
72
, apesar de possuírem uma apresentação semelhante. Enquanto os nós da
figura 17 abaixo são, esses sim, equivalentes, apesar de terem apresentações distintas.
Neles três pontos de cruz (a corda passa por cima, por baixo e depois por cima de
novo). Ambos são nós de trevo, com três pontos de cruz.
Figura 17 – Equivalência entre dois nós de trevo com apresentações distintas
72
Cf. movimento no CD-ROM.
149
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
As diferenças de apresentação nos auxiliam a pensar, no campo da psicanálise, a
questão diagnóstica. Ainda que, enquanto forma ou conteúdo, um fenômeno ou um
sintoma apresente-se de maneira semelhante em dois sujeitos de estruturas clínicas
diferentes, ele se tornará índice para diagnóstico se reduzido a sua forma mínima,
qual seja, a partir de sua escrita no nó. Por exemplo, mesmo que dois fenômenos
aparentemente alucinatórios se assemelhem quanto à forma de sua apresentação, eles
poderão ser tomados como fenômenos elementares de uma psicose, conforme sua
incidência na amarração da linguagem e do gozo configurada pelo nó. Assim, sua
apresentação pode ser semelhante numa psicose e numa histeria e, no entanto, tratar-se
de sintomas de ordens diferentes, não equivalentes.
B. Movimentos dos nós
A fim de se passar de uma apresentação a outra de um nó, existem apenas três
movimentos básicos, denominados “movimentos de Reidemeister”, que constituem suas
manobras de mudança (MAZZUCA et al, 2000, p.34). Qualquer deformação que se faça
em um nó, necessariamente passará por um desses três movimentos, uma ou mais vezes,
ou pela combinação entre eles. Eles são nomeados pelo movimento que sugerem. Estão
enumerados e demonstrados abaixo.
1º - Torção-Desfazimento da torção 2º. Superposição-Retirada 3º. Deslizamento
Figura 18 – Os três movimentos dos nós (MAZZUCA et al, 2000, p. 34)
73
Com os movimentos de Reidemeister, evidencia-se a isotopia dos nós. Não podemos
afirmar que os nós sejam exatamente iguais entre si (A=B), mas, a partir desses
movimentos, podemos estabelecer sua homotopia, sua semelhança topológica
74
.
73
Cf. movimentos no CD-ROM.
74
um quarto movimento típico dos nós próprios. Além desses três movimentos clássicos que
acontecem em três dimensões, há um quarto movimento que atinge os nós próprios de apenas uma rodela.
Trata-se do movimento que provoca uma inversão no nó tal qual a inversão produzida a partir da imagem
especular do nó. Trata-se de um movimento que passa à quarta dimensão. É como se se atravessasse o
espelho e se visse o através dele. Pode-se atravessá-lo dessa forma e ele ainda é o mesmo nó. Mesmo
150
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Para a clínica psicanalítica, indicam movimentos de redução no discurso, necessários ao
enxugamento do Imaginário pelo Simbólico. Afastam o uso dos semblantes, recaindo
sobre o real da castração em jogo na amarração a que o sujeito acedeu.
C. Número de cruzamentos
Existem várias e sofisticadas invariantes na teoria dos nós. Como dissemos, elas se
sofisticaram, sobretudo, após a invenção em 1984, do “polinômio de Jones”. Aqui nos
deteremos em apresentar três, necessárias à compreensão básica da teoria dos nós no
que toca a sua apreensão pela psicanálise. A primeira delas diz respeito ao número de
pontos de cruz que um apresenta. Uma das maneiras de se caracterizar os nós é
examinar o número de pontos de cruz ou cruzamento que eles possuem. O ponto de
cruzamento é o ponto da cadeia ou do no qual se produz o encontro de duas
cordas, em que uma passa por cima e a outra por baixo (MAZZUCA et al, 2000,
p.39).
O número de cruzamentos, porém, é uma das invariantes mais simples da teoria dos nós.
Assim duas (ou mais) representações distintas de um podem corresponder ao mesmo
e, ainda assim, terem número de cruzamentos diferentes. O número de cruzamentos
não é, portanto, o que diferencia os nós, não é uma invariante muito poderosa para
distinguir nós. Para traçar uma equivalência entre os nós, a partir dos pontos de cruz, é
preciso reduzi-los ao número mínimo.
Tomemos como exemplo o mais simples, o trivial. Ele pode se apresentar com
três pontos de cruz, com um ponto de cruz ou com zero ponto (ver Figura 16). O
trivial é assim considerado por não possuir nenhum ponto de cruz, quando reduzida ao
mínimo a possibilidade de sua existência. O número de pontos de cruz permite
afirmarmos que não há nó com menos de três pontos de cruz, a exceção do nó trivial.
Esse princípio também se aplica às cadeias, que estudaremos logo a seguir. Assim, por
exemplo, a cadeia borromeana na forma tradicional de apresentação tem seis pontos de
cruz e na forma estirada tem oito:
que não pareça sê-lo, ele o é.
151
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 19 – Apresentação da cadeia borromeana com seis e com oito pontos de cruz
Interessante destacar aqui para a clinica psicanalítica, a necessidade de muitos ou
poucos cruzamentos para garantir uma amarração. Mesmo em um sujeito neurótico,
para o qual o NP aparecerá no Édipo como o quarto elemento na suplência, pode haver
a necessidade de reforços de cruzamentos diferenciados e particularizados para fixação
do gozo.
D. Número de desanodamentos (unknoting number)
Podemos entender o número de desanodamentos como o menor número de trocas nos
pontos de cruz do que é necessário efetuar para que o se desfaça [desanude],
quer dizer, para que se torne trivial (MAZZUCA et al, 2000, p. 45). Podemos
imaginar e realizar essa experiência com o de trevo. Com uma troca, ele se torna
trivial.
Também com o 5, subíndice dois, desenhado abaixo, basta uma troca no cruzamento
inferior do para que ele se torne trivial. Seu unknoting number é 1. Acompanhe o
movimento abaixo.
152
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 20 Exemplo de desanodamento do 5, subíndice 2, no ponto de cruz 4 (MAZZUCA et al,
2000, p. 46)
O desanodamento ocorre no cruzamento médio central do nó, identificado como quatro.
É interessante notar que se o desanodamento ocorresse em qualquer dos outros pontos
de cruz desse nó, seria necessário mais de uma troca para desfazer o nó. Assim, faz toda
a diferença localizar o ponto do cruzamento a ser desfeito para que o número mínimo de
trocas seja realizado até se chegar ao trivial. Dessa maneira, o poderá ser
classificado e diferenciado dos demais, apesar de sua forma poder ser semelhante à de
outro nó.
Introduzimos, portanto, artificialmente um erro no original. Interessante observar
que, conforme a incidência do ponto de erro no nó, o efeito provocado é diferente.
Pode-se obter um outro nó.
Figura 21 – Exemplo de desanodamento do nó 5, subíndice 2 com erro no ponto de cruz 2 (MAZZUCA et
al, 2000, p. 46)
A importância dessa invariante para a psicanálise se associa exatamente com as
153
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
discussões lacanianas acerca do lapso ou erro do e, conseqüentemente, de sua
reparação ou suplência. Como se pode deduzir, o ponto no qual o erro incide aponta
para o modo de reparação que lhe corresponderá. O modo de reparação não é, pois,
aleatório.
E. Grupo nodal
A noção de grupo nodal tem origem na tentativa de reduzir as questões topológicas a
questões de álgebra abstrata, associando aos espaços topológicos invariantes algébricos.
Neuwirth (1979, p. 54 apud MAZZUCA et al., 2000, p. 47) a define da seguinte forma:
Falando em termos gerais, o grupo nodal descreve as distintas formas nas quais é
possível cruzar o espaço tridimensional sem tropeçar-se com um nó imerso nele”.
Trata-se de uma forma de pensar o a partir de seu complemento, ou seja, a partir de
todo o espaço que resta além do nó, o espaço no qual ele está imerso. Sua fórmula é:
C = R3 – k. C é o complemento do nó, o grupo nodal.
R3 é o espaço restante menos o nó (k).
k é o nó.
Assim, o grupo nodal consiste em associar ao espaço em que es imerso o nó, a seu
complemento, um grupo algébrico. Ele é composto de todos os trajetos possíveis que
podem ser feitos em tono do no espaço associado a ele. As fórmulas algébricas
decorrem desses trajetos. Daí podermos afirmar que dois nós serão equivalentes se seus
grupos nodais também o forem.
O grupo nodal se constitui em noção importante para a psicanálise na medida em que se
associa à idéia de furo do nó, central na teorização da clínica lacaniana. Podemos tomar
o k como objeto resto, objeto a, que cai do real inscrevendo o sujeito desejante. O
sujeito, como C, implicará, então, numa perda num espaço real.
F. Nós e cadeias borromeanos
Define-se uma cadeia como sendo a que possui mais de um nó, mais de um
componente. Trata-se sempre de dois ou mais nós enlaçados ou encadeados. Na
verdade, a cadeia diz respeito a mais de um elemento, não necessariamente encadeados.
As mesmas propriedades vistas até agora e aplicadas aos nós também o serão em
154
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
relação às cadeias. Por exemplo, em termos de equivalência ocorre o mesmo, seja com
os nós, seja com as cadeias, isto é, duas cadeias são equivalentes quando podemos
deformar uma na outra sem cortá-las.
Por exemplo, a cadeia mais simples, a trivial, está assim disposta com os aros lado a
lado. Se os aros se interpenetram, teremos a seguinte, mais complexa. A segunda cadeia
é denominada de Cadeia de Hopf, sendo caracterizada pela interpenetração de seus
elementos.
Figura 22 – Cadeia simples e Cadeia de Hopf
Lacan se vale desse artifício das cadeias, no Seminário RSI, nas aulas de 15/04/75 e
13/05/75, para tratar do aforismo “a relação sexual não existe”. Se a relação sexual não
existe, não interpenetração possível entre os dois aros, homem e mulher, sendo
necessário um terceiro elemento que permita alguma relação entre eles. Daí o
borromeano. O borromeano, portanto, é uma cadeia, uma cadenó como Lacan às
vezes a aborda a partir deste seminário em que não interpenetração entre seus
elementos, assim como não relação sexual. Por isso, como vimos, é preciso três, por
isso não há equivalência entre homem e mulher. encadeamento sem interpenetração:
se enodam de não se enodarem.
G. Classificação dos nós
Vimos até agora as invariantes que permitem diferenciar e classificar os nós: os pontos
de cruz e sua redução minimal, o número de desanodamento e o grupo nodal. Além
deste, as outras invariantes também recebem um tratamento algébrico. Assim, o número
de cruzamentos mínimos (crossing number) de um determinado (knot) em sua
apresentação mais simples se escreve sob a fórmula: c(k).
Quanto ao número de desanodamento (unknotting number), vimos que este se refere à
troca de cruzamentos (ou cruzes), que pode ser entendida como fazer passar a corda que
155
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
estava acima para baixo e vice-versa, em determinado ponto de cruz. Sua fórmula se
apresenta como: u(k).
Enfim, a fórmula C = R3 k permite o cálculo algébrico do grupo nodal. Elemento
fundamental, como acabamos de ver, para diferenciação dos nós.
Estas invariantes permitem definir os tipos de existentes que são dispostos em uma
tabela com a apresentação, na forma mais simples, de todos os nós existentes.
Figura 23 – Apresentação parcial da tabela dos nós (<http://knotplot.com/knot-theory/>)
Para cada um destes nós foi criada uma representação matemática. Para esse fim, um
é nomeado da seguinte forma:
- um número de base, que representa a quantidade de cruzamentos mínima que
possui;
- um subíndice numérico, que indica a quantidade de nós existentes com esse
número de cruzamentos. O subíndice se representa num tamanho menor e vem
localizado abaixo à direita.
Tomemos como exemplo o trivial, o de trevo e a cadeia borromeana clássica da
qual Lacan se vale. O trivial se escreve: 0 seguido do número 1 abaixo à sua direita.
Indica que é zero o número de cruzamentos (c(k) = 0) e o número um indica que
somente um nó trivial: 01.
O de trevo se escreve: 31. Significa que três pontos de cruz e somente um de
trevo, ou seja, com três cruzamentos. Qualquer que seja a maneira como um de três
cruzamentos seja apresentado, deformando-o ele sempre será um de trevo. Somente a
partir de cinco cruzamentos é que os nós se tornam diferentes. Não que tenham
apresentações diferentes isso qualquer pode ter, mesmo o trivial –, são nós
diferentes.
156
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Na medida em que se aumenta o número de cruzes, o número de nós multiplica-se,
havendo, por exemplo, quarenta e nove tipos de com nove cruzamentos. E os nós
com treze cruzes são em número de 9988. Morwen Thistlethwaite foi o inglês
responsável pela elaboração de um programa de computador que, em 1981, estabeleceu
2176 nós de doze cruzamentos e, em 1982, o número dos de treze pontos de cruz. A
partir de catorze pontos de cruz, os matemáticos supõem que o número de nós crescerá
tanto que será incalculável – se é que ainda não se chegou a essa cifra suposta através da
evolução da informática...
As cadeias, por seu turno, se escrevem com três números, e não apenas dois: o da base,
um pequeno acima à direita (superíndice) e outro pequeno abaixo deste, mais à direita
também (subíndice). O número de base representa o número de pontos de cruz. O
superíndice indica o número de componentes da cadeia (o número de aros). E o
subíndice indica a qual versão essa cadeia corresponde não o número de suas
apresentações possíveis.
Por exemplo, a cadeia borromeana tal qual Lacan utiliza escreve-se: 6, seguido do
número 3 no superíndice (acima) e do número 2 no subíndice (abaixo). Isso indica que é
uma cadeia com seis pontos de cruz, três componentes ou três aros, sendo o segundo
tipo de cadeia de seis cruzamentos no caso, existem três versões. Com esse nó, vimos
que Lacan consegue mostrar o real de sua proposta teórica acerca dos registros, abrindo
a possibilidade de pensarmos que são inúmeras as formas de arranjo subjetivo para cada
um.
3.2 Topologia e Psicose
Na década de 50, Lacan não falava ainda de nós para operar a clínica possível das
psicoses, mas ensaiava uma certa topologia da estabilização ao propor o Esquema I.
Nesse período, era à hipérbole que ele se referia para pensar como a não operação da
metáfora paterna poderia ser suturada pela metáfora delirante. Já se tratava de uma certa
amarração, poderíamos nos arriscar a dizer, mas não ainda de um nó.
Apesar disso, juntamente com Benveniste e com Lévi-Strauss, começou a reunir-se
ainda em 1951 com o matemático Georges-Th. Guilbaud para trabalhar sobre as
estruturas e estabelecer pontes entre as ciências humanas e as matemáticas. Sua relação
com Guilbaud foi diferente de sua relação com Soury. Lacan manteve com Guilbaud
157
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
uma amizade de trinta anos, apesar de nunca ter ido a um seminário dele. Mesmo sem o
amigo, Lacan se lançava diariamente a exercícios matemáticos, recorrendo a ele para
discutir os obstáculos com os quais se deparava. Durante vinte anos, porém, a
topologia permanece como um elemento ilustrativo do ensino lacaniano, sem
desembocar numa reformulação fecunda da teoria” (ROUDINESCO, 1988, p. 608).
Na verdade, foi preciso que o conceito de pai atravessasse diferentes formulações para
que a idéia de suplência e de pluralização dos nomes do pai pudesse ser retomada na
década de 70, tornando-se operatória a partir de então na clínica, inclusive das psicoses,
com a teoria dos nós borromeus. O pai como metáfora, depois como função, faz ponto
de capiton, enquanto o Nome-do-Pai como suplência faz nó.
Assim, a fim de pensar a topologia borromeana aplicada à discussão da estabilização na
psicose e sua operacionabilidade clínica, começaremos por apresentar um ensaio sobre a
topologia da psicose no período da metáfora paterna, quando Lacan ainda falava de
hipérbole ao apresentar o Esquema I. Em seguida, entenderemos um pouco mais sobre
os nós, sua topologia e a suplência psicótica sob essa abordagem.
3.2.1 Uma possível topologia lacaniana das psicoses na década de 50
A primeira grande ruptura que Lacan empreende quanto à psicose diz respeito a sua
própria formação. Jovem psiquiatra, ele busca, em diferentes modelos epistemológicos e
estéticos de sua época, um diálogo acerca de seu saber e de sua prática com as psicoses.
Se sua tese de doutoramento, com o caso Aimée, denotava uma transição entre um
modelo psiquiátrico de personalidade e sua crítica, ainda não se sustentava pela
psicanálise. Ele não desconhecia o texto de Freud, mas a retomada dos princípios
psicanalíticos freudianos será empreendida anos depois, quando do início de seu ensino.
Seus dois primeiros seminários, não publicados, aconteceram em sua casa e foram
dedicados a dois dos cinco casos freudianos, a saber, o Homem dos Lobos e o Homem
dos Ratos. Mas foi sobretudo na década de 50, quando ele já oferecia seus seminários de
formação junto à Sociètè Française de Psychanalyse, não mais ligada à IPA
(Associação Internacional de Psicanálise), que sua interpretação estruturalista da
psicanálise se firmou.
“O Lacan barroco da maturidade com paixão o Curso de Lingüística Geral de Ferdinand
de Saussure, os textos filosóficos de Martin Heidegger e as Estruturas Elementares de
Parentesco, de Claude Lévi-Strauss. Começa a interrogar os textos freudianos a partir de
um sistema da língua, concebida como uma estrutura e composta de signos, estes definidos
158
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
segundo seu valor, através da relação simbólica de um significado com um significante. [...]
O Relatório de Roma e a conferência que o antecede [O simbólico, o imaginário e o real]
constituem um primeiro passo para a elaboração de uma teoria do tratamento, sua direção,
sua temporalidade e suas pontuações” (ROUDINESCO, 1988, p. 274).
A influência estruturalista também aparece no estudo das psicoses que Lacan
empreende em 1956: para que estejamos na psicose, é preciso haver distúrbios de
linguagem, e é essa, em todo o caso, a convenção que lhes proponho adotar
provisoriamente (LACAN, 1955-56/1992, p. 110). No escrito que decorre desse
seminário sobre as psicoses ele é ainda mais incisivo: Ao se reconhecer o drama da
loucura, põe-se a razão em pauta, sua res agitur, porque é na relação do homem com o
significante que se situa esse drama (LACAN, 1957-58/1998, p. 581). Para ele, é
fundamental a entrada de um terceiro elemento, o simbólico enquanto Nome do Pai,
como elemento que organiza a estrutura da linguagem, como existência que sustenta a
ordem que impede a colisão responsável pelo desencadeamento psicótico.
Nesse período de meados dos anos cinqüenta, Lacan se esforça por estruturar no grafo
do desejo as conexões internas do significante na medida em que estruturam o sujeito. E
também se esforça em formalizar, no texto “De uma questão preliminar...” (LACAN,
1957-58/1998), os aportes de sua leitura sobre a psicose e seu tratamento possível pela
psicanálise. É nesse texto que ele introduz, apoiado nos Esquemas L e R (característicos
da neurose), odéficit da psicose em relação à neurose diante da inoperância do Nome
do Pai. O Esquema I, da psicose, e mais especificamente da psicose schreberiana, é a
topologia na qual, então, a psicose é apresentada.
“Pois uma topologia totalmente distinta daquela que poderia levar a imaginar a
exigência de um paralelismo imediato entre a forma dos fenômenos e suas vias de
condução no neuro-eixo. Mas essa topologia, que está na linha inaugurada por Freud [...] é
justamente o que melhor pode preparar as perguntas com que se de interrogar a
superfície do córtex. Pois é somente após a análise lingüística do fenômeno da linguagem
que se pode legitimamente estabelecer a relação que ele constitui no sujeito” (LACAN,
1957-58/1998, p. 547).
É então que apresenta, nesse texto nascido do seminário sobre as psicoses, o Esquema I,
caracterizando a topologia da estabilização psicótica de Schreber pela hipérbole. Antes,
porém, de discutirmos esse esquema, é necessário trabalharmos o Esquema R, do qual
ele é uma decorrência e uma ‘deformação’.
159
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 24 – Esquema R (LACAN, 1957-58/1998, p. 559)
Cabe observar que, mesmo não se tratando da topologia dos nós, o Esquema R indica
a topologia do plano projetivo (ou cross-cap). Em nota de rodapé acrescentada em
1966, Lacan indica que, na representação aplainada do sujeito no esquema, uma Banda
de Moebius é isolada pelos termos miMI (faixa azul clara no desenho). Tal qual o real, a
Banda de Moebius se reduz ao corte, não havendo nada de mensurável a ser retido em
sua estrutura. Essa dobra, representada por uma faixa no interior do esquema, fala da
introdução do objeto a. Enquanto o campo da realidade barra o objeto a, a tela da
fantasia, ao obturar esse campo, se torna condição de possibilidade de sua existência.
Mas o que é um plano projetivo? O plano projetivo é constituído pelo conjunto das
retas do espaço passando pela origem 0, estando o conjunto dos pontos de cada reta,
exceto 0, submetido a uma relação de equivalência (DARMON, 1994, p. 111). Ele é o
ponto de fuga da perspectiva clássica.
Figura 25 – Plano da perspectiva clássica
Todo ponto situado sobre uma dessas retas é projetado sobre um mesmo ponto na
intersecção da reta e do quadro, se imaginamos um quadro antes do ponto 0. O plano
projetivo é exatamente a generalização de todas as retas paralelas ao quadro que não
podem interceptá-lo.
160
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 26 – Plano de projeção da perspectiva (DARMON, 1994, p. 111)
Essa linha imaginária é o que permite à própria superfície atravessar a si mesma sem
uma verdadeira intersecção. O que fica mais fácil de se conceber se representamos o
plano projetivo numa esfera, lembrando que o plano projetivo não possui avesso ou
direito, nem orientação, e que as bordas da esfera devem ser pensadas como pontos
infinitos.
Figura 27 – Planos projetivos inseridos na esfera (DARMON, 1994, p. 112)
Somente o corte revela a estrutura da superfície inteira, mostrando que o plano projetivo
é composto por uma Banda de Moebius e um disco. A Banda de Moebius delimita o
lugar-tenente da fantasia que articula dois elementos heterogêneos, a saber, sujeito
barrado (feito de linguagem) e objeto a (extrínseco à linguagem): $<>∀. O $, S
barrado da banda, a ser esperada aqui onde ela efetivamente surge, isto é, recobrindo
o campo R da realidade, e o a, que corresponde aos campos I e S (LACAN, 1957-
58/1998, p. 560, nota de rodapé). O sujeito barrado do desejo suporta o campo da
realidade na medida em que a extração do objeto a lhe fornece seu enquadre. Donde se
conclui que o esquema R é um plano projetivo (LACAN, 1957-58/1998, p. 559-560,
nota de rodapé) e articula os três registros numa primeira abordagem.
161
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
No que nos interessa depreender do Esquema R, eis o ponto central. É preciso a
extração de um objeto, enquanto efeito da castração, para que um sujeito se constitua e
sustente o campo da realidade, amparado simbolicamente em uma ponta pelo Outro (A),
em cuja oposição se situa o Nome-do-Pai (P), e, na outra ponta, no campo do
imaginário pelo significante fálico (φ), corolário do P que confere uma imagem
unificadora ao sujeito. O sujeito, por outro lado, entra no jogo como morto, mas é
como vivo que irá jogá-lo (LACAN, 1957-58/1998, p. 558). Ele o fará servindo-se de
um set de figuras imaginárias, numericamente reduzidas que superpostas ao ternário
simbólico (MIP). O i e o m representam, assim, os dois termos imaginários da relação
narcísica, ou seja, o eu e a imagem especular.
A relação pela qual a imagem especular se liga como unificadora ao chamado conjunto
de elementos imaginários do corpo despedaçado fornece o par homólogo à relação Mãe-
Criança. É, portanto, a relação mãe-criança que ao corpo sua forma de imagem
unificadora imagem fálica ou terceiro termo do ternário imaginário, no qual o sujeito
se identifica, em oposição, com seu ser de vivente. A prematuração do sujeito no estádio
do espelho abre uma hiância no imaginário sem a qual não se poderia produzir a
simbiose com o simbólico onde ele se constitui como sujeito para a morte.
No vértice simbólico, temos o I como Ideal de eu, o M como o significante do objeto
primordial e o P como a posição do Nome-do-Pai no Outro (A). Podemos apreender
como o aprisionamento homológico da significação do sujeito S sob o significante do
falo pode repercutir na sustentação do campo da realidade, delimitado pelo
quadrilátero MimI (LACAN, 1957-58/1998, p. 559). O significante fálico, como
recobrimento da falta instalada na faixa de Moebius, funciona como referente na
articulação da realidade. Interessante observar a necessidade de uma torção para que I e
i, e para que M e m, possam encontrar sua correspondência no quadrilátero que formam,
o que permite articular o P (Nome-do-Pai) ao seu corolário na metáfora paterna, o
significante fálico (φ).
Na faixa interna que compõe a Banda de Moebius, e que aqui corresponde ao campo do
real, Lacan situa de i a M, ou seja, em a, as figuras do outro imaginário nas relações de
agressão erótica em que elas se realizam; e de m a I, ou seja em a’, situa onde o eu se
identifica, desde sua Urbild especular até a identificação paterna do ideal do eu
(LACAN, 1957-58/1998, p. 559). Seja pela via do outro imaginário, seja pela via do
162
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Outro simbólico, em a e em a’ podemos localizar o campo das identificações, já em sua
relação ao real. Lacan irá, no Seminário RSI (1974-75, aula de 18/03/1975), articular as
três formas de identificação freudianas (FREUD, 1921/1976, p. 133-139) aos três
registros, nesse período já inseridos na topologia do nó borromeano.
O Esquema R não se assenta sobre uma topologia orientada pela geometria
euclidiana. E, também no Esquema I, veremos as hipérboles indicarem uma torção
complexa operada pela ausência dos significantes fundamentais do Nome-do-Pai e do
falo, compondo uma outra geometria. Na psicose, o campo da realidade se encontra
remanejado. É o que Lacan tenta demonstrar no Esquema I.
Figura 28 – Esquema I (LACAN, 1957-58/1998, p. 578)
A ausência do significante do Nome-do-Pai instala um sorvedouro tanto do lado do
Simbólico como do lado do Imaginário, pela conseqüente ausência da significação
fálica. Esses dois furos, correspondentes à P0 (ausência do NP) e à Ф0 (ausência do
significante fálico), curvam as linhas mi e MI, desfazendo a Banda de Moebius e, com
isso, instalando um achatamento na figura, correspondente à ausência da queda do
objeto a. Além disso, as ausências do NP e do faloreenviam para o infinito os quatro
parâmetros fundamentais do sujeito m, i, M e I, sendo que este último Criado I, acorre
ao lugar de P como que lançado pelo vazio (DARMON, 1994, p. 120). Nas pontas da
faixa moebiana interna ao quadrilátero do Esquema R, teríamos as articulações
identificatórias no campo do imaginário e do simbólico, e o que delas restam real. Aqui
163
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
elas estão hiperbolicamente abertas ao infinito, sem um ponto de basta.
Nesse sentido, a torção que testemunha a queda do objeto a e conforma a Banda de
Moebius não existe aqui. Temos um desdobramento ao infinito dos campos do
Simbólico e do Imaginário, dado que a Banda de Moebius (que no Esquema R
correspondia a um corte definido que criava apenas uma borda) foi transformada nas
linhas hiperbólicas cujos limites são assintóticos. O plano projetivo se transforma dessa
maneira num plano hiperbólico.
Como conseqüência, o campo do Real se torna precariamente estabelecido e muito
variável. O campo R representa as condições em que a realidade é restabelecida para o
sujeito, o que a torna habitável para ele, mas que também a distorce, ou seja, [os]
excêntricos remanejamentos do imaginário, I, e do simbólico, S, a reduzem ao campo
do descompasso entre ambos (LACAN, 1957-58/1998, p. 580). Interessante que, nessa
leitura da solução psicótica do caso Schreber, o que parece estar ‘desamarrado’, se
pensamos borromeanamente, é o Real, descompassado em relação ao Imaginário e ao
Simbólico, que apareceriam com uma amarração incomum, com um ‘erro’ no sentido
que Lacan lhe atribui. Difere, portanto, do ‘erro’ de Joyce entrecruzamento entre
simbólico e real –, no qual os fenômenos corporais testemunham um descolamento do
Imaginário, que resta livre no nó, exigindo um trabalho de suplência. Podemos, pois,
supor e desde hipotetizar que o estilo de solução que o sujeito encontra está
intrinsecamente ligado ao que, do nó, se amarrou ou não, ou seja, à maneira como R, S
e I se ataram.
Continuando na leitura do Esquema I, vemos que I e M continuam ambos do mesmo
lado no esquema, assim como m e i. A torção no Real
75
que articularia os registros
Simbólico e Imaginário não existe. Se, onde estaria o ponto 0 do plano projetivo,
localizarmos o a, basta desdobrá-lo entre a e a’ e separá-los deslizando na assíntota que
orienta como reta R para o infinito o esquema, para que tenhamos o desenho do
Esquema I. Uma das conseqüências desse desdobramento imaginário, a-a’, é que ele
assegura uma certa densidade ao Real, funcionando como seu arrimo.
75
Faixa azul claro da Figura 24.
164
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 29 – Deslizamento do ponto a-a’ do Esquema I (DARMON, 1994, p. 112)
Uma outra conseqüência presente no esquema, na medida em que se trata de um plano
hiperbólico, e não mais projetivo, é sua orientabilidade. Sendo orientável e, portanto,
reflexivo, o plano permite a apreensão do objeto a no espelho. Schreber nos atesta essa
presença do objeto em suas miragens no espelho, nas quais seu corpo se feminiza nos
seios femininos que crescem em seu peito, na medida da aproximação de Deus. É um
exemplo da aparição do objeto a que pode comparecer em diferentes manifestações
alucinatórias e fenômenos elementares na psicose. O objeto a não aparece como
complemento à referência negativa do sujeito, vindo a encarnar o que lhe falta. Ele é
assimilado ao sujeito, não falta. A passagem da topologia moebiana, projetiva, para uma
topologia plana, hiperbólica, recria a perspectiva de duas faces, cada qual em seu lado,
com o Real excluído, tal qual uma moeda. É o que testemunha a impossibilidade de se
fazer metáfora na psicose, bem como a não inscrição dos significantes que retornam no
Real. Na psicose, é o sujeito que se oferece como objeto que complementa o Outro.
Nessa topologia hiperbólica da solução schreberiana, temos uma indicação sobre a
estabilização na psicose. O eixo que articula ou sustenta minimamente os
remanejamentos imaginários que m em socorro à desarticulação no plano do
smbólico, é a assíntota R que se dirige ao infinito. Entre o deixar-se cair pelo Criador
(M) e o futuro da criatura (m), se escreve o projeto de ser a mulher de Deus para criação
de uma nova e superior raça de homens no texto schreberiano sobre o eixo R. Eis a
versão topológica da metáfora delirante como solução na psicose.
3.2.2 Entre o plano hiperbólico e a topologia borromeana: o objeto a nos anos 60
165
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
No texto “Observação sobre o Relatório de Daniel Lagache”, Lacan (1960/1998) esboça
a ruptura que estava sendo gestada no período e que aparecerá com a topologia do
objeto a
76
. Ele inicia uma série de retificações dentre as quais a que promove a
diferenciação entre estrutura e forma. E a questão é justamente abrir o pensamento
para uma topologia, exigida pela simples estrutura (LACAN, 1960/1998, p. 655),
entendida aqui enquanto estrutura de linguagem e seus efeitos combinatórios, mas
marcada pela presença do objeto a.
Apoiada no esquema óptico, essa topologia inclui uma dimensão inalcançável,
irrepresentável, fora do plano projetivo, que Lacan chama de a, objeto a ou objeto real.
No esquema óptico, oriundo do campo da Física, Lacan localiza a projeção invertida do
objeto irrepresentável fora dos planos. Se o espelho trata da imagem virtual de um
objeto real, o olho, por seu turno, trata da imagem real de uma imagem virtual,
desdobrando a função óptica reflexiva e excluindo o objeto real do campo de apreensão.
A imagem nasce como recobrimento desse objeto inapreensível, que, por isso também,
é causa do desejo
77
.
O objeto a, apresentado, aparecerá referido à psicose na série de textos que Lacan
escreve nesse período. No Seminário 11, em especial, Lacan (1964/1998) irá articular a
constituição do sujeito a partir da falta instalada no campo do Outro através das
operações de alienação (reunião) e separação (interseção). Essa operação permite situar
a queda do objeto a com a experiência da castração e a instalação da tela da fantasia
($<>a), como proteção ao Real que se revela, distinguindo dois termos heterônomos
($ e objeto a) que, nela, se relacionam, como já discutimos.
Nesse período, Lacan irá discutir a psicose de maneira pontual, sobretudo referida à
criança. Irá, então, articular a psicose infantil à fantasia da mãe, e não mais à
descontinuidade do significante. “A criança débil toma o lugar [...] desse S, em relação
a esse algo a que a mãe a reduz a não ser mais que o suporte de seu desejo num termo
obscuro, que se introduz na educação do débil a dimensão do psicótico (LACAN,
1964/1998, p. 225). Ou seja, quando a criança realiza a presença do objeto a na fantasia
materna fica numa psicose. Em outro escrito do período, duas cartas escritas a Jenny
76
Observem que toda a discussão acerca da Banda de Moebius e do objeto a no Esquema R e no
Esquema I decorre de uma nota de rodapé acrescentada em 1966 ao texto.
77
Além de utilizar o esquema óptico para tratar da topologia do objeto a, Lacan a discute, sobretudo, a
partir de figuras da topologia das superfícies. Porém, visto que aqui pretendemos apenas circunscrever o
surgimento do objeto a para tratar da psicose nos textos desse período, não entraremos na discussão dessa
topologia.
166
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Aubry
78
, Lacan registrou a possibilidade de a criança inscrever-se,o como fantasia
da mãe, mas também como sintoma da família, ampliando o arsenal de leitura das
psicoses infantis.
No que toca especificamente à topologia, Lacan irá se servir, sobretudo, da topologia
das superfícies (Banda de Moebius, toro, cross-cap, garrafa de Klein). Nesse período, a
topologia ainda aparece como um ensaio de redução teórica e, enquanto tal, como um
modelo. Lacan apresenta o horizonte epistemológico de sua obra: a constituição da
psicanálise como ciência, ciência do inconsciente, a começar pela noção de que o
inconsciente é estruturado como uma linguagem. Esse projeto, apresentado literalmente
no Seminário 11, é seguido pela dedução deuma topologia cuja finalidade é dar conta
da constituição do sujeito(LACAN, 1964/1998, p. 193). Ele se apóia nos matemas, no
uso das ‘letrinhas’ que condensam idéias. O artifício aparece aqui, mas ganhará
articulação como suplência somente no caso Joyce. Não topologia que não
demande suportar-se de algum artifício (LACAN, 1964/1998, p. 198). A topologia
ainda é tomada como uma representação que intenta alcançar o mínimo formalizável de
um saber, não é ainda mostração do real.
Como também atestamos, em 1966, Lacan irá articular pela primeira vez a oposição
entre sujeito do significante e sujeito do gozo, instalando uma disjunção entre os dois
termos essencial à clínica (LAURENT, 1995b, p. 117). De um lado, o sujeito do
significante funciona como base para uma clínica orientada pela produção do sentido,
pela busca de uma verdade, desde sempre perdida na experiência traumática. De outro,
o sujeito do gozo veicula um modo de satisfação e um circuito de repetição que estão
além da captura de sentido pelo significante. A introdução do objeto a no período marca
uma posição de destituição no trabalho clínico. A interpretação não visa tanto o
sentido quanto reduzir os significantes a seu não-senso, para que possamos
reencontrar os determinantes de toda a conduta do sujeito (LACAN, 1964/1998, p.
201). Com isso, exige uma clínica em ato que aposta, não apenas na redução operada
pelo trabalho significante, mas também no aprendizado de uma certa maneira de lidar
com esse gozo que resta inanalisável. É com esse resto opaco que o sujeito deverá
savoir y faire, como propõe Lacan na década de 70. Vimos que essa relação se
complexifica, pois ele irá falar que o significante veicula gozo, articulando de outra
78
Cf. “Nota sobre a criança” (1969/2003, p. 369-370).
167
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
maneira a clínica e a psicose. Caminhemos para essa proposição.
3.2.3 Sobre os nós, o real e a psicose no Lacan da década de 70
A. A materialidade e a topologia
O recurso ao é claramente adotado em Lacan como uma maneira de pensar a clínica
psicanalítica, bem como de decifrar aquilo de que se trata no real. Ele sugere diferentes
versões de nós para articular a idéia de inconsciente, de gozo, de sintoma, de psicose. Se
os perseguirmos – esses nós e as proposições lacanianas que eles sustentam e mostram –
, veremos que Lacan ensaia no final de seu ensino uma estética da clínica psicanalítica a
partir do real como vetor de orientação.
O que isso quer dizer? Para concebermos a dimensão do real da clínica em jogo nesse
período, vale a pena seguirmos o rastro, uma pista que Lacan nos oferece na lição de 11
de Janeiro de 1977. Nessa aula do Seminário XXIV, L’insu que sait de l’une bévue
s’aile à mourre, ele brinca com o sentido e a homofonia – já desde o título do seminário
–, nos mostrando, talvez, que o sentido desliza pela cadeia significante, mas também
cifra gozo com a palavra, já que nem o fonema é lógico ou tem razões estruturais. Resta
sempre algo intocável, cifrado. Reduzido o gozo, sua parte viva continua pulsante, mas
o trajeto de satisfação se altera. Algo desse indizível, desse intocável ganha uma
alteração real.
Lacan vai, então, retomar a idéia de que o saber para a psicanálise é sempre o saber
inconsciente. Mas, aqui, o inconsciente comparece como saber com o qual o sujeito,
em sua debilidade mental, não consegue operar. Para Lacan, é muito difícil extrair o
sentido que o inconsciente possuía em Freud. Ainda que Freud não tivesse, então,
senão uma pequena idéia do que era o inconsciente (LACAN, 1976-77, lição de
11/01/1977), Lacan pensa poder dizer que se tratava, nesse saber, daquilo que
poderíamos denominar efeitos significantes. A partir desses efeitos, esse saber seria
imposto ao homem, que não sabe muito bem o que fazer disso (“de cette affaire de
savoir”). Ele não fica à vontade com ele. Ele não sabe fazer com (“faire avec”) o saber.
É essa sua debilidade mental. Ele não sabe y faire”. Esse faire avec é o mesmo que
esse “y faire”, guardada a nuance fundamental do “y” na língua francesa
79
.
79
Savoir faire” é diferente de « savoir y faire ». A introdução do “y” “quer dizer se desembaraçar, mas
este ‘y faire’ indica que não pegamos verdadeiramente a coisa, em suma em conceito” (LACAN, 1976-
77, lição 11/01/1977). Há algo que escapa. E é para tentar dar conta disso que escapa que o discurso vem
em socorro. Tudo o que se diz a partir do inconsciente participa, portanto, do equívoco.
168
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Para ilustrar essa dificuldade do pensamento, Lacan recorre a um estilo de linguagem
escrita característico da Idade Média. Nele pouca gramática e muita lógica. É um
estilo que recorre a uma passagem da imagem à escrita, e também, sempre, ao equívoco
e ao convite a que o leitor participe da construção do texto. Ele pode ser lido e não
produzir sentido, ao mesmo tempo em que do texto se destaca um novo e outro sentido,
se lido pelas entrelinhas ou pelo que não faz linha, cadeia. Trata-se, enfim, do texto
Les Bigarrures de Seigneur des Accords”, de Étienne Tabourot
80
.
A questão que Lacan evoca, a partir desse texto, é a de como conseguir apreender esse
tipo de delicadeza que, em última instância, é um uso do inconsciente. E mais, como
precisar a maneira pela qual, nessa delicadeza, se especifica o inconsciente que é
sempre individual. Se a estrutura da linguagem é a mesma para todos, o uso de lalíngua
é sempre único para cada sujeito. A articulação que o inconsciente estabelece como
forma de gozo é sempre singular à maneira como o sujeito se articula na língua mãe.
O exemplo de fetichismo apresentado no artigo freudino de mesmo título é ilustrativo
da dimensão clínica desse uso. Ao discutir as circunstâncias acidentais que contribuem
para a escolha de um objeto fetiche, Freud trata da arbitrariedade do significante de um
lado, mas revela, de outro, a dimensão de gozo presente em lalíngua e capturada como
letra em seus efeitos sobre a linguagem e sobre o corpo. Trata-se de um jovem para
quem a pré-condição fetichista residia num certo tipo de ‘brilho no nariz’. A surpresa de
sua explicação reside no fato de que o paciente recorrera a sua língua mãe, o inglês, para
constituir o sintoma e a forma de gozo que lhe era correlata, enquanto correntemente
utilizava a língua alemã do país onde passara a viver depois de sua primeira infância.
80
Apresentamos em francês um verso do livro de Étienne Tauborot, referenciado por Lacan, destacando
com cores as colunas que podem ser lidas verticalmente também, além da leitura horizontal tradicional,
de sorte que a falta de sentido e o sentido que escapa podem ser revelados e apreendidos.
« Autrefois j’ai fait ces suivants en faveur d’une de mes idoles parlantes :
Ta beauté, ta vertu, ton esprit, ton maintien
Éblouit, et défait, assoupit et renflamme
Par ses rais, par penser, par crainte, pour un rien
Mes deux yeux, mon amour, mes desseins, et mon âme. »
(Étienne Tabourot, Les Bigarrures du Seigneur des Accords, Paris, Jean Richer, 1583, chapitre XIII,
«Des vers rapportés », ff.130 à 134. [Gallica, N0070346_PDF_282_290])
Outros versos no livro original podem ser visualizados através do site da Bibliothèque Nationale de
France (BNF) no seguinte endereço eletrônico: < http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k70346j>.
Podemos identificar «um tipo de cruzamento simétrico e gramatical», «frases de construção gramatical
aparentemente desarticuladas e recompostas», uma «invenção astuciosa» que «remontaria talvez ao fim
da Antiguidade grega», um «procedimento» que «da Idade Média latina [...] ganham as poesias francesa,
espanhola, inglesa e alemã dos séculos XVI e XVII», segundo Ernst Robert Curtius em La Littérature
européenne et le Moyen Âge latin, também disponível via acesso eletrônico no seguinte endereço:
<http://perso.orange.fr/preambule/formes/formerapp/formrapp.html>.
169
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
O ‘brilho do nariz’ [em alemão, Glanz auf der Nase’] era na realidade um vislumbre
(glance) do nariz (FREUD, 1927/1976, p. 179), que somente o jovem experimentava
como forma de satisfação sexual.
A linguagem não possui três dimensões, ela é sempre aplainada em duas. Daí Lacan ter
começado com a história dos nós de três rodelas, no qual o simbólico, passando por
cima, depois por baixo das rodelas dos outros registros, e assim sucessivamente, teria
por efeito, cortando-se um dos registros, liberar os outros dois. Há, pois, a necessidade
de três, no mínimo (ainda que eles sejam quatro, como vimos, pois o em si
mesmo como resultado).
Essa reflexão inspirou Lacan a querer identificar o real a esse terceiro elemento
articulado à matéria de uma maneira muito singular, através do l’âme-à-tiers (o
espírito à terceira). Interessante aqui ressaltar ao menos dois aspectos. Primeiramente,
ao tratar da matéria do real, Lacan a nomeia alma, espírito, mente que em francês
encontram em âme a mesma significação. de saída, portanto, a matéria do real é
inconsistente nela mesma.
Mas um segundo aspecto que articula o real e a linguagem e esse é o ponto central
que, entendemos, levou Lacan a teorizar os nós para explicar o real na clínica
psicanalítica. Não na linguagem uma relação binária, do tipo “X (relação) Y”.
Segundo Peirce, como dito, é preciso uma lógica ternária, signo, objeto e
interpretante no estabelecimento e na utilização do signo. A exigência desse terceiro
autoriza Lacan a falar em tiers”, em terceiro termo, mesmo em se tratando de uma
referência à linguagem. Trata-se de um terceiro termo determinante, diferenciado em
relação aos outros dois, signo e objeto, posto que ex-sistente a eles. Se não três
dimensões na linguagem, isso não quer dizer que dois elementos lhe sejam suficientes.
É preciso uma engrenagem, um terceiro elemento lógico, para que ela funcione como
tal. Esse terceiro elemento está lá, sem contar, mas sendo contado, considerado, e mais,
sendo essencial na estrutura do funcionamento da linguagem. Por isso, o real teria o
mesmo estatuto no nó. Foi o que Lacan nos mostrou ao longo do Seminário RSI.
O significante, é disso que se trata no inconsciente, em suma, que falamos, ainda que,
como falasser, falemos completamente sós. Em outras palavras, o isso, dialoga, e foi
isso que Lacan designou pelo nome de Grande Outro. Trata-se do fato de que
qualquer coisa de outra, o que ele denominou de l’âme-à-tiers”, que não é somente o
170
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
real, mas qualquer coisa com a qual, expressamente, não temos relação. Trata-se do
(%), o que quer dizer que isso não responde. É bem por isso que o eu (moi) pode se pôr
a falar e mesmo a delirar. Daí, entre loucura e debilidade mental não termos escolha. É,
pois, para tratar dessa materialidade intangível que os nós se colocam e nos colocam a
trabalho na psicanálise.
“Nós não cremos no objeto, mas nós constatamos o desejo, e desta constatação do desejo
nós induzimos a causa como objetivada. O desejo de conhecer encontra obstáculos. É por
encarnar este obstáculo que eu inventei o nó. E quanto ao é preciso ter desembaraço [se
rompre]. Eu quero dizer que é o sozinho que é o suporte concebível de uma relação
entre o que quer que seja e o que quer que seja. Se, de um lado, ele é abstrato, o deve,
entretanto, ser pensado e concebido como concreto” (LACAN, 1975-76/2005, p. 36-37).
A letra suporte ao que, dessa intangibilidade, pode se escrever entre real e simbólico
para um sujeito. Ela vivifica o gozo na escrita que singulariza a o-relação do sujeito.
Da língua mãe extrai o que orientará o texto do sujeito na repetição do contorno ao que
não cessa de não se escrever, ou seja, do impossível. Daí o sintoma, como resultado
necessário, insiste em se escrever sobre essa marca, atualizando-a
81
.
Como se vê, a superfície material que, no início de nossa pesquisa, dizia respeito a uma
materialidade do mundo empírico se modifica. Quando nos perguntávamos se era
possível a invenção de uma solução pela criação artística ou artesanal, prescindindo da
escrita, a materialidade à qual nos reportávamos era a argila ou a tela de um quadro, por
exemplo. Essa materialidade que, em Lacan, se opunha à substância, dizia respeito na
década de 50 ao significante, em oposição ao gozo. Na década de 70, entretanto, é a
letra que funciona como suporte ao significante, deslocando a materialidade da imagem
acústica para o campo litoral entre real e simbólico. E, finalmente, o que há de concreto,
o elemento articulador, deixa de ser o significante para aparecer sob a forma do nó,
como efeito real de enlaçamento. É ele agora o suporte concebível de uma relação entre
o que quer que seja e o que quer que seja. Letra e tornam-se elementos centrais em
nossa investigação dada a via de verificação da estabilização psicótica que permitem
conceber.
Assim, a fim de perseguir a arqueologia dessa proposta lacaniana, nos deteremos agora
no uso clínico que Lacan faz da teoria dos nós quanto à estabilização psicótica.
percorremos o modo como Lacan se apropriou desse território lógico e científico da
matemática para fazer operar uma transmissão em relação ao discurso analítico. Assim,
81
Lacan aqui recorre à lógica aristotélica (possível, impossível, contingente e necessário) para trabalhar o
sintoma e a contingência de sua solução diante do impossível de se escrever.
171
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
orientados por uma progressão não-linear, mas lógica, característica do ensino
lacaniano, esperamos agora alcançar as conseqüências clínicas extraídas desse aporte
teórico no que ele pode contribuir para a discussão das estabilizações.
B. Reparação e suplência na clínica borromeana das psicoses
Toda essa introdução se faz essencial para entendermos como Lacan se vale da teoria
dos nós para discutir as diferentes soluções a que qualquer sujeito pode chegar a fim de
se escrever enquanto falante. Sabemos que sua preocupação não era a de ser fiel aos
princípios e conceitos das ciências e teorias das quais se utilizava para compreender as
questões do sujeito para a psicanálise. De posse do conhecimento que lhe era útil,
imergia-o na teoria psicanalítica para dele fazer uma versão com a qual fazia a
psicanálise avançar.
Não foi diferente com a teoria dos nós. Lacan, como vimos, encontra na cadeia
borromeana o instrumento para discutir as relações possíveis entre R, S e I. A partir daí
o de trevo, de três e o de quatro serão objeto de seu interesse, sobremaneira nos
seminários RSI e Joyce, le sinthome
82
. Uma das noções que utiliza com freqüência
nesses dois seminários é a de lapso ou erro do nó. Em relação a esse lapso, Lacan fala
na possibilidade de uma reparação. É justamente essa reparação que vai ganhar, a partir
de seus estudos sobre Joyce, o estatuto de sinthoma, invenção do sujeito que suplencia o
erro apontado. As diferentes versões de erros e suplências mostrados por Lacan nos
auxiliam a pensar o diagnóstico e a clínica com a psicose. Vejamos como ele os
apresenta.
O primeiro erro que Lacan desenha e comenta é o erro do borromeu inserido na
esfera armilar. No desenho original da esfera, os três círculos estariam livres uns em
relação aos outros, enquanto, no desenho com o erro, dois aros estão entrecruzados e
apenas um resta livre. Essa será também a estrutura do erro encontrado em Joyce.
82
Também no SeminárioLe moment de conclure (1977-78), ele manipula os nós, ensaiando diferentes
versões para a clínica.
172
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 30 Esfera armilar, esfera armilar com erro, esfera armilar borromeana (LACAN, 1975-76/2005,
35-36)
Lacan utiliza esse recurso da mostração como método que evidencia a descrença no
objeto e na possibilidade dele ser apreendido por algum órgão. O órgão seria percebido
como uma ferramenta separada e, nesse sentido, seria conhecido como um objeto em si
mesmo. A análise operaria pela restituição do sujeito, dividido pela operação da
linguagem enquanto aparelho de gozo
83
. Enquanto ciência do real a psicanálise fez de
seu objeto sujeito, sujeito que é, de si mesmo, dividido. Donde Lacan buscar outra
materialidade com a topologia para pensar o falasser.
Ele aponta que o princípio do nó borromeano é o par de dois toros, dobrados um sobre o
outro e atravessados, no furo que se funda entre eles, por uma reta infinita. Essa reta
infinita faz desse furo um verdadeiro furo; mas ela está solta. E, se essa reta se solta,
uma reparação deverá ser feita para articulá-la aos outros dois toros novamente. Esse é o
artifício imposto pelos nós. Trata-se de um artifício de representação, de perspectiva,
pois é preciso que se faça uma suplência à continuidade aí imposta, no momento em que
a reta infinita é suposta sair do furo.
Acompanhando seu raciocínio, veremos Lacan chegar à formulação do de trevo
como sendo a geometria que subsiste da relação sexual, tal qual proposto no Seminário
RSI. É preciso entre dois, macho e fêmea, um terceiro para que ela seja possível. O
terceiro termo ao mesmo tempo em que torna o furo real, cria a condição para atar os
três registros. A única consistência aí, por conseguinte, é a da própria corda no que ela
faz círculo, aplainado, consistindo numa cadeia borromeana de uma corda, e não de
três elementos, como na figura original. Essa cadenó, ou falsa cadeia borromeana,
engendra o nó de trevo.
83
Aqui Lacan dialoga com e critica Chomsky em sua abordagem cognitivista da linguagem. Nas
conferências americanas, ele (LACAN, 1975b) evocara o lingüista e sua teoria ao afirmar que
Chomsky assimilava ao real o que era da ordem do sintoma, confundindo os dois elementos, como em
sua afirmação de que a linguagem é um órgão. A questão que ele tenta responder, Laurent localiza na
tentativa de fazer consistir o real no campo das pesquisas sobre inteligência artificial (2005, p. 58-61).
Chomsky introduz um modelo transformacional das capacidades cognitivas da mente conhecido como
tratamento de uma informação, e não como um cálculo lógico-matemático tal qual seus antecessores
tentaram empreender. Para além do órgão corporal em si mesmo, ele situa um campo de múltiplas
funções, novos órgãos alojados no corpo que operam como módulos de tratamento da linguagem do
pensamento. Ele tenta fundar uma gramática universal, regida por regras de transformação aplicadas às
gramáticas estruturais das línguas naturais. Caminha, portanto, na contramão da radical singularidade do
uso de lalíngua que Lacan propõe. Enquanto, de um lado, Chomsky nos conduz a um pulular de órgãos,
de outro, Lacan vai articular o corpo sem órgãos, o corpo como conjunto vazio, o corpo saco, com a
consistência das cordas da linguagem que o atravessam em torno de um furo (LAURENT, 2005, p. 60).
173
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 31 – Cadeia borromeana e nó de trevo (LACAN, 1975-76/2005, p. 87)
A materialidade do se situa na corda que o realiza exatamente por ser ela que
sustenta o que se ata e a maneira como se ata. Ode trevo, então, Lacan o generaliza:
por que não entender que cada uma dessas argolas continua na outra de uma maneira
estritamente não distinguível? Ao mesmo tempo, não é um privilégio do estar louco
(LACAN, 1975-76/2005, p. 87). Essa amarração, intrínseca ao falasser, trava no seu
miolo o objeto a, o que faz obstáculo à expansão do imaginário concêntrico e evidencia
a inexistência da relação sexual ao exigir um terceiro elemento ao par disjunto de dois.
Nesta discussão, ele aponta a suplência como invenção que se soma para reparar ou
remediar o lapso do nó. E ele exercita o uso da topologia como ferramenta clínica na
leitura do caso de Joyce. Ao se perguntar a partir de quando se é louco e, mais
exatamente nesse seminário, se Joyce era louco, ele avança na noção de erro do e de
sua operacionalidade (LACAN, 1975-76/2005, p. 81).
“Se aqui vocês mudam alguma coisa na passagem por debaixo dessa asa, resulta ali
imediatamente que o é abolido por inteiro. O que eu levanto como questão nessa
tagarelice, a saber, se, sim ou não, Joyce era louco, pode aqui ser localizada” (LACAN,
1975-76/2005, p. 87).
Lacan hipotetiza uma falha na amarração do de trevo em Joyce, que precisa suprir
esse desanodamento colocando uma argola onde o erro se apresenta. Graças a ela o
de trevo não se desmanchará. Como tivemos oportunidade de ver, no falso de
trevo um falso ponto de cruz. Originalmente o ponto de cruz 1 passa por cima, o 2 por
baixo e o 3 por cima. Ao criarmos artificialmente o erro no ponto de cruz 1, criamos
uma condição de falso trevo, na medida em que o se converteu em trivial, mantendo
apenas a apresentação gráfica semelhante à do de trevo. Há, pois, um lapso no ponto de
cruz 1. Aí Lacan introduz a argola que corrige o erro.
174
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 32 – Erro e suplência em Joyce no nó de trevo (LACAN, 1975-76/2005, p. 88)
Mas, para além da discussão pouco consensuada sobre ser Joyce um psicótico ou não,
interessa-nos tomá-lo como paradigma do efeito sinthoma no trabalho de suplência. E se
a foraclusão não é do Nome-do-Pai na psicose, também sua reparação não será
privilégio dessa estrutura clínica. Ao contrário, vemos Joyce na década de 70 ser
tomado como paradigma de como se pode construir uma solução ao impasse colocado
pela falta do significante no Outro. Na primeira clínica, o Nome-do-Pai imprimia à
constituição do sujeito neurótico ou perverso um organizador comum e, à falta dele,
encontraríamos a estrutura ‘defeituosa’ da psicose, como vimos. A proposta de tomar
Joyce como paradigma da suplência de maneira não igual para não todos, mas comum a
qualquer um, é clara em Lacan, na década de 70.
“O que eu proponho aqui é considerar o caso de Joyce como respondendo a uma maneira
de suplenciar um desanodamento do nó. [...] A isso podemos remediar colocando ali uma
argola, graças à qual o de trevo afirmado não se fará em flocos” (LACAN, 1975-
76/2005, p. 88).
Lacan já havia introduzido a noção de sinthoma em Joyce em sua conferência intitulada
“Joyce, o sintoma” (1975/2005). Mas aqui ele avança nessa discussão e propõe que seu
desejo de ser um artista que ocuparia o maior número possível de pessoas, seria
exatamente o compensatório do fato de que seu pai jamais fora para ele um pai. Não
operou a transmissão, enquanto pai real, do significante do Nome-do-Pai, como vimos.
A Verwerfung de fato da demissão paterna teria sido compensada pelo desejo de ser um
artista que ocuparia o maior número de pessoas possível. Aqui o significante do Nome-
do-Pai revela a disjunção entre a função de nomeação e a função paterna. A demissão
paterna provocou um trabalho de nomeação operado pelo próprio escritor. Assim,
podemos dizer que o lapso do em Joyce é justamente a demissão paterna de sua
função de nomeação. Enquanto, por seu turno, o sinthoma joyceano a saber, a
invenção de um nome próprio e o desejo de ser artista repara esse erro do nó,
compensando uma Verwerfung de fato.
175
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Na última aula do Seminário XXIII, Lacan vai tratar da escrita do ego de Joyce como
reparação de um erro da cadeia borromeana a três, que recebe um elemento a mais no
ponto em que o erro se insere. O quarto elemento introduzido, o sinthoma ou o ego de
Joyce, repara o erro, atando os três registros. Ego, bem entendido, não como uma versão
imaginária e narcísica do eu, pois, como nos disse Lacan (1975-76/2005, p. 147), o
ego cumpriu nele [Joyce] uma função da qual eu não posso dar conta senão através de
meu modo de escrita. [...]. A escrita é essencial a seu ego”.
Como vimos, Lacan localiza o erro num entrelaçamento entre o Simbólico (sintoma) e o
Real (inconsciente), que deveriam estar apenas superpostos, enquanto o Imaginário, reta
infinita, estaria solto. Se entrelaçamento, a condição borromeana dessa amarração se
perde.
Lacan evidencia este estatuto do Imaginário com a declaração de Joyce sobre seu corpo
soltar-se de si como uma casca, quando ele leva uma surra de seus amigos, como
discutido. Ele se pergunta por que não quer mal a esses amigos, por que não
experimenta nenhum sentimento por eles. Ele metaforiza sua relação com o corpo ao
tomá-lo como a casca que se solta. Desta vez, ele não gozou, mas teve uma reação de
repugnância. Essa idéia do deixar-se cair em relação ao próprio corpo é o que chama a
atenção de Lacan. É uma idéia de si como corpo que tem peso de ego para Joyce. Além
disso, a escrita joyceana, através das epifanias, testemunha a conseqüência que resulta
desse erro que ata o Inconsciente ao Real.
Sua reparação se fez exatamente no ponto em que o Simbólico entrecruza o Real. Para
isso, é preciso fazer a fabricação do nó. E fazê-lo se reduz a escrevê-lo. O nó é um apoio
ao pensamento: apensamento, como escreve Lacan para incluir o objeto a, além do
significante nessa operação
84
. É curioso que seja preciso escrever o nó para ver como ele
funciona. A escrita é o fazer que dá suporte ao pensamento. Mas o nó borromeano muda
o sentido da escrita, confere-lhe autonomia, mostra que o que se modula na voz não tem
nada a ver com a escrita. Mostra que algo a que se pode enganchar significantes. A
escrita muda o sentido do que está em jogo. Como? Na medida em que os nós sustentam
o objeto, o ossobjeto.
“É bem o que caracteriza a letra com que eu acompanho esse ossobjeto, a saber, a letra
84
Lacan continua no seu jogo com as homofonias. Aqui la pensée, o pensamento em protuguês, é escrito
appensée, pensamento com a’, objeto a, como ele explica logo em seguida (LACAN, 1975-76/2005, p.
144). Optamos por traduzir por apensamento para resguardar a referência à presença do objeto a como
suporte.
176
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
pequeno a. Se eu reduzo este ossobjeto a esse pequeno a, é precisamente para marcar que a
letra, neste caso, não faz senão testemunhar a intrusão de uma escrita como outra, com um
pequeno a. A escrita em questão vem de outra parte que não do significante” (LACAN,
1975-76/2005, p. 145).
É aqui que a letra e o se aproximam. O é a escrita com o objeto a, é preciso
escrevê-lo para saber como ele funciona, nos ensina Lacan. Escrita com objeto-letra que
vem de outra parte que não do significante. Ela provém da escrita do traço unário, ao
qual Lacan, com a reta infinita do borromeano, confere um outro suporte. Em um
círculo, um furo no meio, a reta infinita tem por virtude ter o furo em torno dela
toda. É o suporte, o mais simples, do furo (LACAN, 1975-76/2005, p. 145). Sulco,
rasura, a escrita é feita da sulcagem do que marca o corpo enquanto gozo, sem nenhuma
anterioridade. Letra. É o vazio escavado pela escrita que, como receptáculo, está sempre
pronto a acolher gozo (LACAN, 1971/1986, p. 31). É essa escrita que o conceito de
letra em Lacan inaugura. É a essa escrita que Lacan, com o borromeu, provê um
suporte.
O ego preencheu em Joyce a função de suplência pela escrita, aqui elemento essencial.
Como se vê, Lacan aproxima o nó à letra, no que tange à função de suporte que a escrita
realiza. Onde Lacan fala que é preciso escrever o nó, lemos que é através da função da
letra, entre Real e Simbólico, que uma resposta ao gozo do Outro pode ser cerzida,
enlaçando o Imaginário. Essa é a escrita do ego de Joyce, essa é, portanto, a escrita de
sua suplência, que, neste caso, opera como sinthoma, pois escreve uma resposta
possível à falta do significante referente no campo do Outro, enodando os três registros.
Sua escrita tem pelo menos quatro aspectos que a tornam reparadoras: (a) falta sentido
porquanto opera pelo Real; (b) inclui o objeto a, não sendo somente significante; (c) faz
função de letra e, portanto, de litoral entre real e simbólico; (d) e, enfim, é endereçada,
busca fazer laço social, sendo dirigida a um vasto público. É essa escrita que Lacan
equivale à escrita do borromeano. A ilegibilidade do texto de Joyce atesta a natureza
diferenciada de seu ego, corretor da relação faltante que não enoda borromeanamente
real e sintoma.
177
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 33 Suplência borromeana pelo Édipo (coluna esquerda) e suplência joyceana pelo ego (coluna
direita) (SKRIABINE, 2006, p. 60)
Lacan mostra matematicamente, como vimos, que o erro em outro ponto de cruz não
geraria o mesmo defeito, nem requereria a mesma reparação. Além disso, uma
reparação borromeana é diferente de uma reparação não borromeana. E também
verificamos que nem sempre se alcança o sinthoma num trabalho de estabilização na
psicose. Tudo isso é fundamental para discutirmos a questão da clínica da psicose, seu
manejo com o gozo, com a nomeação e com o savoir-y-faire, no estilo das soluções
singulares que orientam a direção do tratamento.
Ora, Lacan insiste sobre a importância desse quarto termo em Joyce, pois a maneira
como ele se escreve, o efeito real de amarração que provoca, suplanta (ou melhor
suplencia) um desarranjo na articulação dos três registros. Se, por algum motivo,
estrutural ou contingencial, essa amarração vacila, o quarto elemento pode suplenciar
esse ponto, inventando um outro caminho para o sujeito. É daí que nossos recursos
clínicos com a psicose podem ser favorecidos por este estudo.
Podemos, enfim, a título de sistematização dos termos que utilizamos a então para
tratar das estabilizações na psicose, buscar estabelecer um critério diferencial que, a
partir deste ponto, indique com maior precisão sua utilização. No texto freudiano, nem
estabilização, nem solução são termos utilizados para tratar das psicoses. Será com
178
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Lacan que, enquanto termo geral que define um conjunto de operações diferenciadas e
singulares, o termo solução ou estabilização indica o gênero do processo psíquico que
agregaria sob seu teto diferentes modalizações. A estabilização pode, por exemplo, ser
precária, como pelo viés da identificação imaginária que forja um eu para o psicótico.
Ou pode incluir um trabalho de construção simbólica, como proposto pela leitura
freudo-lacaniana da metáfora delirante do Presidente Schreber. Pode também ser o
efeito recolhido de uma passagem ao ato, por exemplo.
Entretanto, nem toda estabilização cria uma forma de amarração dos três registros,
podendo ela se desfazer diante de um embate qualquer. Para podermos dizer que
suplência ao que falha em um enodamento dos três registros, supomos a invenção de
uma nova forma de articulação entre eles, estejam eles em continuidade, como propõe
Lacan para o de trevo que caracterizaria a paranóia comum, ou não, como propõe na
cadeia de três para Joyce. O que poderia ser inventado aí seria uma estratégia a partir da
qual uma nova forma de gozo e de articulação entre Real, Simbólico e Imaginário se
produziria.
Então, poderíamos nos perguntar, toda suplência é uma invenção sinthomática? Miller
(2003a), ao trabalhar as invenções psicóticas, destaca na paranóia, na melancolia e na
esquizofrenia diferentes operações concernentes a essas invenções, das quais nem todas
forjam um sinthoma. O que caracterizaria, a nosso ver, a invenção sinthomática seria a
suplência em um ponto específico, seria a invenção de uma ferramenta singular que
operasse como borromeano, evitando o desencadeamento psicótico. Seria uma
escrita do com a letra-objeto a no nível de lalíngua que faria a sustentação dessa
nova articulação. E, nessa direção, ataria borromeanamente como quarto elemento os
três registros. Poderíamos representar assim a lógica de nossa terminologia, localizando,
de fora para dentro, as soluções, as suplências e, finalmente, o sinthoma.
1. Soluções (ou estabilizações);
179
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
2. Suplência (ou amarrações);
3. Sinthoma
Nós nos valemos da hipótese de que, a partir do trabalho de escrita, a saber, a partir de
sua arte ou de seu artifício, Joyce pôde inventar uma maneira de constituir um que
fixou a letra de gozo. Foi neste ponto que seu “ego” pôde se escrever.
Trabalhando agora com os termos mais precisos, podemos dizer que a hipótese inicial
de nossa investigação era a de que a suplência poderia se dar através da criação artística,
prescindindo da escrita. Ora, o que os casos com os quais nos deparamos em nossa
investigação e que apresentaremos no próximo capítulo nos ensinaram é que a
criação sozinha não é índice suficiente para analisar a questão da estabilização. Há algo,
além e aquém da obra, algo nela e através dela que pode forjar uma estabilização: trata-
se da letra com a qual o sujeito se escreve como nó. Essa é verdadeiramente a arte de
Joyce, escrever-se em sua obra. Se entendemos que a estabilização é o gênero, do qual a
suplência é uma das espécies (com uma subespécie particular que é o sinthoma),
começamos a destrinchar com mais acuidade a questão da estabilização e a operação
que a efetiva.
3.2.4 Algumas conseqüências clínicas da topologia dos nós
Será, sobretudo, em sua terceira conferência em Roma, “A terceira”, que Lacan
(1975/1986) irá tratar do que hoje está sendo conhecido como clínica borromeana. Ali
ele faz um uso da topologia de para explicitar o que está em jogo num tratamento
analítico.
Figura 05 – Nó borromeano detalhado
Ao retomar a localização dos gozos no borromeano, ele lembra que o gozo fálico
180
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
está em contraposição ao corpo (imaginário), possuindo um caráter fora-corpo. E, da
mesma maneira, o gozo do sentido es fora do real, enquanto o gozo do Outro, estaria
fora do simbólico
85
. É assim que, do alimentar o sintoma, o real, o sentido, não se faz
outra coisa que lhe dar continuidade de substância (LACAN, 1975/1986, p. 39). É no
equívoco, e no que ele comporta de abolição do sentido, que o que concerne ao gozo,
sobremaneira ao gozo fálico, pode se estreitar, restando mais destacado o objeto a.
Portanto, se o sentido avança, ele substância ao sintoma, porém se se joga com o
equívoco, as rodelas serão esticadas e haverá um estreitamento em todos os campos do
gozo, restando o objeto a mais definido. Assim também, podemos acrescentar, se
reduzirão o campo de avanço de um registro sobre o outro, trazendo como outra
conseqüência uma redução nos campos da inibição e da angústia.
A manipulação do nó evidencia, assim, as operações de redução a que Miller (1998b) se
refere em O osso de uma análise. Elas seriam três:
(a) a repetição (do significante);
(b) a convergência (dessa repetição a uma frase que escreve o sujeito, redução
gramatical do blá-blá-blá);
(c) e a evitação (do que escapa à frase e se escreve como gozo).
Com o borromeu, a articulação significante-gozo é mais direta: tocando-se em um, o
outro se desloca. Essa clínica traz o morto da palavra ao vivo do corpo que goza para o
mesmo plano.
Ainda em “A terceira”, Lacan define o sintoma como irrupção dessa anomalia que
consiste o gozo fálico, quanto mais se exiba, se desabroche essa falta fundamental que
qualifico de não-relação sexual (LACAN, 1975/1986, p. 40). Na medida em que a
interpretação incide sobre o significante, algo pode recuar do campo do sintoma. Mas o
significante, a linguagem, o simbólico são sustentados por lalíngua. O inconsciente se
elabora como saber inscrito de lalíngua. A operação analítica se dá, portanto, entre os
dois campos, real e simbólico. Ainda que reste algo desse saber inconsciente
(Urverdrängt) jamais reduzido, jamais interpretado.
“O essencial que no jogo de palavras, é que deve visar nossa interpretação para não
ser aquela que provê o sintoma de sentido[...] O deciframento se resume ao que faz a cifra,
ao que faz o sintoma, é algo que antes de tudo não deixa de se escrever do real, e que ir
cativá-lo até o ponto onde a linguagem possa equivocar-se é ali pelo qual o terreno está
ganho em meus pequenos desenhos, sem que o sintoma se reduza ao gozo fálico” (LACAN,
85
Basta observar o campo de interseção entre os registros, tomados dois a dois, em contraposição ao
terceiro que resta.
181
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
1975/1986, p. 32-33).
A sutileza da abordagem clínica aqui se localiza no fato de que a via para se fisgar o
Real é a letra. É a partir do momento em que se agarra o que há de mais vivo ou de mais
morto na linguagem a letra que se tem acesso ao Real. É o que permite aceder ao
gozo do Outro, pois este, estando fora da linguagem, separado da representação, não
existe senão enquanto acessado pela letra. O gozo do Outro, como vimos, implica na
impossibilidade de dois corpos fazerem um, e o falo é o que mascara a todo tempo essa
impossibilidade. Donde Lacan tratar de um estreitamento do gozo fálico e de um acesso
ao Real por mordiscadelas. Ele localiza na rodela do real a vida. Ela é esse inabordável,
esse insondável que a ciência busca incessantemente decodificar e explicar. Não é
porque o inconsciente é estruturado como uma linguagem, que ele, na mesma medida,
não dependa estreitamente de lalíngua, essa língua morta que continua em uso.
Outro ponto sutil que se fortalece nessa abordagem clínica é o fato de que esse resto
inanalisável, o que do inconsciente não se interpreta jamais, o sujeito tomará a seu
encargo para seu uso, responsavelmente.
Encontramos em Joyce uma arte de “saber fazer com” o inconsciente que nos fornece
uma via para articular a clínica borromeana. Com sua escrita, ele cria uma série de
solilóquios, o pensamento que flutua, que vai à deriva, que associa, que não cessa. O
sujeito pensa todo o tempo, é um monólogo interior. Ele pensa para ele, de um modo
solipsista, levado pelas sensações, pelas imagens, pelos sons. Ele divaga a seu bel-
prazer e, de tempos em tempos, isso eclode sobre o real [ça bute sur du réel]. Essa
mesma melodia se aproxima do que o analista escuta de seus pacientes, a melodia da
música do inconsciente. De um modo absolutamente particular, cada um fala da mesma
questão: a marca que porta do Real, do modo com o qual isso guarnece seu gozo, do
inconsciente que isso faz para ele. Misturando monólogo e endereçamento ao Outro,
palavra que escapa e construção laboriosa, pensamento solto e encontro com a vida
(SKRIABINE, 2006). Não é senão a partir do momento em que algo se desencapa que
se pode encontrar um princípio de identidade de si para si. E essa redução de sentido é
algo que se produz no nível da lógica, não do Outro, diz Lacan (1975/1986, p. 41).
A radicalidade desse último ensino lacaniano traz de fato uma novidade com a idéia do
fora do sentido. Mas trata-se de um fora-do-sentido que produz efeitos em relação ao
Simbólico, ao Imaginário e ao Real. O quarto que permite a amarração entre os três
182
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
registros evidencia uma saída singular, uma solução inventada por cada sujeito para se
haver com o impossível de enunciar. Parece-nos que, se a via dessa operação se na
relação entre Simbólico e Real – pelo menos em Joyce –, seus efeitos se dão em relação
a todos os três registros. Na verdade, em relação a sua maneira de atar-se uns aos outros,
trazendo como conseqüência experiências e inscrições subjetivas distintas.
No primeiro tempo do ensino, quando o borromeu é apresentado com três aros, os
três registros são equivalentes. É somente com a introdução do quarto elemento ao nó,
na década de 70, que os registros perdem essa equivalência. E, se alguma diferença
em relação ao simbólico, ela diz respeito ao fato de que ele será trançado com o quarto
elemento sinthomático quatro vezes, e não somente duas como os outros dois registros
(LACAN, 1975-76), conforme apresentado na Figura 9.
O que Lacan subverte é a idéia de uma solução para todos, normativizada pelo Nome-
do-Pai e seu corolário, o Falo. Nesse sentido, podemos compreender a pregnância do
Real. Cada sujeito, a partir do real em jogo com seu gozo, irá operar uma forma de
suplência ao impossível de nomear.
Essa solução, em Joyce, implicou numa amarração entre simbólico e sinthoma aqui
tomado como o real de forma a que o imaginário não se despregasse do nó. Para
Lacan, as epifanias, na escrita joyceana, estão sempre caracterizadas pela mesma
coisa, que é bem precisamente a conseqüência resultante do erro no nó, a saber, que o
inconsciente está atado ao real (LACAN, 1975-76/2005, p. 154). Erro, como vimos,
pois os três registros deveriam apenas se sobrepor para serem entrelaçados
borromeanamente pelo quarto elemento, enquanto, em Joyce, dois registros se
entrecruzam. A escrita de Joyce introduz, portanto, a solução singular de
borromeanamente atar os registros, evitando a dispersão do Imaginário ao suplenciar o
erro. Força, dessa maneira, o objeto a que se escreve no nó.
Assim, do que discutimos ao longo deste capítulo, podemos, quanto à clínica
borromeana, articular os seguintes aspectos:
(1) Não há Outro do Outro, pelo menos não há gozo desse Outro do Outro;
(2) É preciso, portanto, que se faça uma sutura, uma costura, a partir do ponto em
que essa ausência se escreveria no nó, ou seja, do campo de ex-sistência em
relação ao Simbólico e ao Imaginário, de acordo com a Figura 7;
(3) É preciso que, em algum ponto, haja um enlaçamento entre o nó do Imaginário e
183
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
o do saber inconsciente (Simbólico);
(4) Tudo isso para obter um sentido-gozo, que é o objeto da resposta do analista ao
exposto pelo analisante ao longo de seu sintoma;
(5) Quando fazemos esse movimento, esse enlaçamento, ao mesmo tempo fazemos
outro, entre o que é sinthoma (Σ) (rodela vermelha) e o real (rodela vermelha);
Figura 34 borromeano a quatro, evidenciando a costura do sinthoma com o real (LACAN,
1975-76/2005, p. 54)
(6) Nesse conjunto, podemos destacar duas duplas; os registros se atariam dois a
dois disjuntos, amarrados pela outra dupla que lhe é exterior, a partir do
enlaçamento central entre I e S;
(7) É enquanto que o sintoma se religa ao inconsciente e que o imaginário se liga
ao real que nós temos negócio com alguma coisa da qual surgiu o sinthoma”
(LACAN, 1975-76/2005, p. 55).
(8) O analista trabalha com o analisante como enlaçar seu sintoma e o real parasita
de gozo;
(9) Tornar esse gozo possível é a mesma coisa que ouvir um sentido/gozar do
sentido (j’öuis-sens);
(10)É, portanto, de cortes, suturas e enlaçamentos que se trata numa análise;
(11)E devemos considerar os registros separadamente; Real, Simbólico e Imaginário
não se confundem;
(12)Encontrar um sentido implica em saber qual é o e em cosê-lo corretamente
graças a um artifício.
Parece-nos, portanto, ser possível dizer que
86
:
1º) desfazer a referência unívoca ao Nome-do-Pai como elemento discriminatório
entre as estruturas foi um passo dado por Lacan em seu último ensino, pluralizando
86
Verificar no Anexo VI o quadro referente à discussão da clínica borromeana.
184
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
os Nomes-do-Pai e sofisticando a noção de sintoma com a introdução do sinthoma;
2º) é possível pressupor que não é somente pelo viés do simbólico ou de uma norma
edípica universal que se podem produzir soluções ao furo constituído pela ausência
do significante do gozo do Outro;
3º) é importante pôr em questão a relevância das construções singulares que podem
ser construídas pelos sujeitos, ainda que elas se dêem a partir das diferenças
estruturais entre neurose, psicose e perversão, que não apareceram destituídas de
valor ao longo do ensino lacaniano;
4º) e, enfim, é fundamental avançar no campo de investigação desse efeito do real,
como campo do fora-de-sentido, junto aos enodamentos que podem advir do
borromeano nas soluções subjetivas e na direção do tratamento junto à clínica
psicanalítica.
Apliquemos, então, essa lógica à discussão clínica da estabilização psicótica a partir de
casos em que, ora a suplência se escreve ora, apesar da escrita factual da caneta no
papel, a letra não faz escrita do gozo.
185
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
CAPÍTULO 4
APLICAÇÃO DA TOPOLOGIA BORROMEANA À LEITURA DAS
ESTABILIZAÇÕES NA CLÍNICA DAS PSICOSES
186
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
4.1 Discussão Metodológica
4.1.1 O método de pesquisa orientado pela psicanálise
Se a metodologia indica o caminho a seguir para se alcançar um objetivo, sabemos que,
no campo da psicanálise em sua inter-relação com a ciência, esse caminho não é
desprovido de dificuldades. Apesar do desejo freudiano de inserir a psicanálise no
campo científico, ela sempre teve uma relação de exterioridade com a ciência por
suportar e considerar os efeitos do real em sua elaboração e em sua clínica, a partir da
dimensão do inconsciente. Lacan trata dessa dificuldade ao falar que fazemos de nosso
objeto, sujeito, e sujeito dividido em si mesmo...
Discutindo o polêmico texto de Freud (1933/1976), “A questão de uma
Weltanschauung”, Figueiredo (2001, p. 07-10) traz apontamentos que nos orientam a
pensar a pesquisa em psicanálise e, portanto, estas dificuldades. Se a psicanálise é
incapaz de criar uma Weltanschauung
87
própria por um lado, por outro, sua
contribuição à ciência consiste justamente em ter estendido a pesquisa à área mental
(FREUD, 1933/1976, p. 194). No debate em relação à ciência, à religião, à arte e à
filosofia, a psicanálise aparece como uma parte da ciência e, portanto, aderida à
Weltanschauung científica, precisamente por essa contribuição específica quanto ao
mental.
“Entenda-se o mental seja como for: da alma (como no original alemão), do psíquico, na
raiz da palavra ‘psicanálise’ ou do próprio inconsciente como objeto construído. O que
interessa é que o método pode advir da pesquisa e não de outros recursos mais próprios
aos demais saberes em questão [religião, arte, filosofia]” (FIGUEIREDO, 2001, p. 8-9).
Se o comentário do texto extrapola aqui nossos objetivos, ao menos dele podemos
extrair o que é essencial à metodologia de pesquisa em psicanálise para nossos fins. Ao
modo da ciência, mas devido à incompletude de seus achados e por não pretender
estendê-la muito além o valor de suas construções lógicas, é possível ler no desejo de
Freud o compromisso da psicanálise com a realidade que investiga e com os conceitos
que formula então.
Específica, ainda que incompleta, a psicanálise parte em sua formulação do que a
orienta na clínica: a castração enquanto impossibilidade real de simbolização. É
exatamente nessa interseção da clínica com a ciência que a pesquisa deve caminhar. E
87
Freud (1933/1976, p. 193) define a Weltanschauung como uma construção intelectual que soluciona
todos os problemas de nossa existência de modo uniforme com base em uma hipótese superior que, por
sua vez, não deixa questão sem resposta, e onde tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo”.
187
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
nela se insere a problemática questão de tomar o sujeito do inconsciente como objeto de
investigação.
Como nos lembra a discussão de Lacan em “A ciência e a verdade” (1965/1998), a
psicanálise aparece como uma derivação da ciência, tendo sua condição de possibilidade
radicada no corte que inaugurou, com Descartes e Galileu, a ciência moderna no século
XVI. Com esse corte, porém, a ciência situa e, ao mesmo tempo, exclui o sujeito. É
neste ponto também acerca do sujeito que a psicanálise, ainda que derivada da
ciência, avança para além e diversamente dela, ao incluir o sujeito em seu campo. A
psicanálise constitui um saber inteiramente derivado porém não integrante do campo
científico, porquanto resulta de uma operação de ‘subversão’ desse campo pelo viés do
sujeito (ELIA, 2000, p. 21). Se o sujeito com o qual a psicanálise opera não é senão o
sujeito da ciência, como afirma Lacan (1965/1998), fato é que esse sujeito é tomado em
sua dimensão radical de sujeito do inconsciente, sujeito desejante e, porquanto, sujeito
que inclui uma articulação que considera o real em jogo na experiência da castração.
É desse saber não-todo constituído pelo inconsciente que a psicanálise parte, na clínica e
na pesquisa. Donde a exigência freudiana (FREUD, 1912b/1976, p. 152) de que, na
psicanálise, em sua execução, tratamento e investigação coincidam. Assim, toda e
qualquer pesquisa em psicanálise é, em sua essência, uma pesquisa clínica ou, como diz
Elia (2000, p. 23), na psicanálise, há, isto sim, um ‘campo de pesquisa’, que é o
inconsciente, e que inclui o sujeito. A um novo objeto, desenvolve-se um novo
método. É assim que a ciência caminha...
Nesse sentido, a modalidade de pesquisa clínica redundância do termo não implica
somente em constituir um saber sobre a psicanálise em seus fundamentos teóricos, mas
essencialmente a partir de sua clínica (FIGUEIREDO et al., 2001, p. 12). É no
exercício da clínica psicanlítica que os pressupostos teóricos que a fundamentam podem
ser postos à prova, articulando a teoria com a prática e fazendo ambas avançarem.
A psicanálise, porém, opera com a realidade sempre a partir de sua definição de
realidade psíquica. Na medida em que parte da constituição da realidade como efeito da
apreensão que o sujeito, determinado pelo inconsciente, faz dela, rompe com a
dualidade externo-interno e objetivo-subjetivo. Como conseqüência, nos adverte que o
acesso ao fenômeno estudado, ao fato empiricamente encontrado, se faz a partir dessa
mediação simbólica, introduzindo a interpretação do sujeito no fato. Nesse sentido, não
188
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
se demonstra, afirma ou refuta o fato do inconsciente em si mesmo, mas antes a
construção erigida em torno dele, como defendia Freud (1937b/1976). É sobre o
necessário, o que se escreve, e não sobre o contingente, o que se encontra, que se
processaria seu critério de validação.
Isto não implica numa desnecessidade transcendental dos fatos, senão cairíamos num
contra-senso lógico: é necessário partir da clínica, mas os fatos clínicos encontrados não
são os elementos que nos interessam, são secundários... A perspectiva imposta pela
proposta freudiana é a de considerar: (a) a apreensão subjetiva do fenômeno como
elemento necessário à investigação (o que limita a generalização das descobertas
realizadas); (b) a indissociabilidade entre o todo de tratamento e de investigação,
pois tanto na clínica quanto na investigação o saber emerge como efeito da colocação
em ato do método; (c) a aplicação transcendental de idéias na leitura do fato empírico, e
a extração das consequências do empírico sobre essa apropriação na discussão racional
do fato.
Como, então, proceder? Freud é claro em seu texto sobre “Os instintos
88
e suas
vicissitudes” (1915b, p. 137) quanto à articulação metodológica que procede da
epistemologia psicanalítica. Para ele, nenhuma ciência começa com conceitos básicos
claros e bem definidos, mas antes com a descrição dos fenômenos, procedendo-se
depois a seu agrupamento, classificação e correlação. Entretanto, mesmo durante essa
fase empírica, não é possível evitar a aplicação de idéias abstratas, advindas da teoria,
ao material encontrado.
Essas idéias se tornarão os conceitos básicos da ciência. E, apesar de apresentarem no
início certa indefinição necessária –, não apresentam dúvidas quanto a seu conteúdo e
a sua escolha, determinada pela relação necessária que estabelecem com o material
empírico. depois de uma investigação mais completa do campo de observação,
somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos com exatidão
progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes
numa vasta área (FREUD, 1915b, p. 137). Aí sim, se tornariam definições mais
exatas, porém ainda passíveis de alterações em seu conteúdo, à medida que as pesquisas
avançam e novas descobertas se fazem.
Ora, Freud aponta como método na construção do saber psicanalítico uma posição que
88
Leia-se, devido a equívoco da tradução para o português, “As pulsões e suas vicissitudes”.
189
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
se radica entre o empirismo e o racionalismo, deslocando a importância central ora do
fenômeno, ora das idéias, para uma relação na qual, sobre a massa de fenômenos
encontrados, sobreponham-se idéias que os organizam, consolidando um campo de
saber teórico a eles pertinente. Sabemos, porém, que a universalidade dos conceitos e
seus efeitos de verdade, orientadores do método de clínica e pesquisa em psicanálise,
podem ser recolhidos por cada um na singularidade de sua experiência.
Assim, respeitando a singularidade presente em cada caso e também a necessidade de
validação da hipótese desta pesquisa, optamos por realizar procedimentos que
obedecessem à lógica metodológica até aqui apresentada.
4.1.2 A psicanálise e os procedimentos metodológicos
Contemplando essa lógica do método nascida do estudo sobre o inconsciente em
psicanálise, a proposta deste trabalho se insere na perspectiva da psicanálise em
extensão (ou seja, aplicação da psicanálise a outros campos que não propriamente o
exercício clínico estrito e sua formação). Partindo da experiência de trabalho com
psicóticos nas oficinas em Saúde Mental, constatamos, em alguns casos, um
favorecimento do trabalho de estabilização através da criação artística ou artesanal.
Tomando a arte de Joyce, ou sua escrita, como paradigma, buscamos identificar casos
em que o trabalho realizado em oficinas artísticas, prescindindo da escrita, favorecia a
estabilização. Dessa forma, pudemos colocar à prova nossa hipótese, aplicando sobre o
material empírico a idéia, e extraindo dos fatos o avanço teórico possível de ser ali
produzido.
Sabemos que alguns casos de psicose podem apresentar um ensaio de estabilização
atravessado pela criação artística, como ocorreu com Arthur Bispo do Rosário ou Van
Gogh. O que operou e o que não operou nesses dois casos? Será que a obra, a criação da
obra, funcionou como ponto de basta? Como que a letra poderia ter escrito enquanto
esse Um inaugural idêntico a si mesmo e fundador de uma nova forma de enlaçamento
dos registros? Qual o uso singular que sujeitos psicóticos podem fazer desse recurso? A
diferença diagnóstica determina ou interfere nesse uso? Mais do que perguntar pela
função da obra nesses casos, como fizemos num primeiro momento, perguntamos como
o sujeito na psicose pode, através da criação ou da obra, fazer funcionar (ou não) esse
artifício como letra, como escrita que pode enlaçar os registros.
190
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
A fim de levar a cabo nossa investigação nos termos acima propostos, partimos dos
resultados da pesquisa realizada em nossa dissertação de mestrado, na qual constatamos
que as oficinas de criação podiam gerar efeitos de estabilização (mas não somente). Não
foi possível, à época, estabelecer o(s) elemento(s) envolvido(s) nesses efeitos
recolhidos, o que nos conduziu ao doutorado. Fomos, então, a campo buscando
identificar casos em que a obra tivesse produzido um efeito de estabilização para um
psicótico, a fim de discutir teoricamente em que consistia esse efeito e a função da
criação ou da obra nesses casos.
Ainda que Lacan tenha encontrado em Joyce o paradigma da estabilização pela obra
(escrita), como vimos, no mais das vezes, nos deparamos com sujeitos psicóticos que
criam obras, sem necessariamente produzir esse efeito de suplência (sinthoma) e sem,
nem ao menos, fundar uma via de estabilização a partir da criação. O que ocorre nessas
diferentes situações em que a criação atravessa o trabalho de estabilização foi o que
buscamos investigar.
O desenho de nossa pesquisa voltou-se, então, para a identificação de casos de
psicóticos que, não sendo artistas, realizavam criações artísticas ou artesanais que
apresentavam ou pareciam apresentar alguma contribuição em relação à estratégia de
estabilização que empreendiam. Ao visar a inter-relação criação-estabilização,
buscamos recolher os efeitos provocados nesse intervalo. Assim, realizamos nossa
pesquisa a partir dos seguintes procedimentos.
A. Circunscrição do campo da pesquisa
Nossa pesquisa se realizou junto à rede de assistência aberta e substitutiva de Betim que
conta com quatro CERSAM (Centro de Referência em Saúde Mental) para atendimento
complexo de urgências em regime de 12 ou 24 horas; aproximadamente cinco equipes
de Saúde Mental nos Postos de Saúde para acompanhamento ambulatorial prioritário de
casos de psicose estabilizados; um Centro de Convivência com vistas à inserção do
psicótico através de oficinas de arte e de produção; e um serviço residencial terapêutico
como parte do Programa de Desospitalização Psiquiátrica, que complementarmente
oferece bolsas-desospitalização para auxílio ao retorno sóciofamiliar de pacientes
internados de longa duração. A população do município é estimada em cerca de 407.000
habitantes, possuindo, portanto, uma rede substitutiva bem equipada.
191
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Optamos por tomar a rede do município de Betim como universo para esta pesquisa por
quatro principais motivos: 1) a facilidade física de acesso aos serviços; 2) a facilidade
política de acesso aos sujeitos da pesquisa dada a predisposição da coordenação
municipal de Saúde Mental em realizar pesquisas que favoreçam o avanço da clínica
da psicose e do campo da Saúde Mental; 3) a complexidade da rede que favorece a
especificidade do recorte de nossa pesquisa; 4) a presença da psicanálise como um dos
saberes que orientam a prática clínica nos serviços públicos de Saúde Mental.
B. Recorte para o estudo dos casos
Nossa pesquisa incidiu apenas sobre o Centro de Convivência dado que é nessa
modalidade de serviço que ocorrem as práticas das oficinas, em especial daquelas que
têm como objeto e finalidade a criação de obras artísticas e/ou objetos artesanais.
Nessas oficinas, que acontecem paralelamente às de produção onde a
profissionalização e a reabilitação são o mote central do trabalho –, o tratamento do
objeto como resto de uma operação subjetiva se faz mais presente. Especificamente
nesta pesquisa, nos limitamos ao Centro de Convivência do município que, segundo
consulta prévia feita à Prefeitura, possuía oficinas de arte e criação em seu cotidiano de
trabalho.
C. Desenvolvimento da pesquisa
Trabalhamos com categorias de sujeito e instrumentos diferenciadas para reunir o
material clínico e proceder à sua análise.
1
ª
. Num primeiro momento, fizemos um trabalho de levantamento de casos potenciais
para estudo, tentando identificar, através de relatos colhidos junto aos oficineiros do
Centro de Convivência e profissionais da rede, casos de psicóticos em que a criação
poderia estar associada a algum trabalho de estabilização. Em nossa dissertação de
mestrado, identificamos que esse efeito é contingente, acontece somente para alguns
poucos pacientes, não sendo possível a priori promovê-lo. Assim, buscamos os casos
em que, na perspectiva do oficineiro, seria possível depreender algum efeito de
estabilização que pudesse estar associado à criação. A orientação desse levantamento
inicial foi a de localizar os casos e identificar o porquê de sua indicação, ou seja, o que o
oficineiro tomava como efeito produzido pela criação.
192
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
2
ª
. Num segundo momento, abordamos os responsáveis pela condução clínica dos casos
reunidos na primeira fase. Nesse ponto, colhemos relatos que contribuíram para uma
análise preliminar da relação entre o sujeito psicótico, a criação e a estabilização. Dessa
análise, selecionamos alguns casos para observação e acompanhamento.
3
ª
. Em seguida, observamos as oficinas e os sujeitos, havendo um responsável por cada
sujeito para acompanhá-lo e entrevistá-lo livremente, buscando vislumbrar sua relação
com o trabalho de estabilização e com a obra.
4
ª
. Nessa fase, localizamos alguns sujeitos que: 1) apresentavam hipótese diagnóstica de
psicose; 2) possuíam como característica a criação artística como via de solução a ser
investigada; 3) apresentavam ou haviam apresentado situações delirantes, a fim de
articularmos o par delírio-criação no campo da estabilização. Procuramos apreender, a
partir das entrevistas clínicas com esses sujeitos, a função singular que a criação
apresentava para cada um deles na sua relação com a estabilização. Para isso, partimos
das categorias prévias dispostas no quadro abaixo.
História de vida e clínica Relação com a obra
Diagnóstico Início
Desencadeamento Relação estabelecida
Crises Mudanças na relação
Produção delirante Efeitos subjetivos recolhidos
Estratégias subjetivas (solução)
Tratamento
5
ª
. Entrevistamos também os responsáveis clínicos pela condução dos casos seguindo o
mesmo quadro, pois eles poderiam oferecer informações mais específicas e também
mais abrangentes sobre a inserção do trabalho de produção artística ou artesanal,
enriquecendo a posterior construção dos casos. Ao sustentarem o campo clínico e
transferencial no tratamento possível desses sujeitos, apresentavam uma visão mais
ampla e complexa deles, podendo situar com mais precisão a relação que
investigávamos. Assim, através de seus relatos pudemos recolher os fragmentos do
caso, seguir o estilo que era sugerido pela estrutura do sujeito psicótico, as estratégias
por ele construídas no decorrer do tratamento, as passagens subjetivas que contavam e a
conformação que as soluções por ele buscadas tomavam, em especial no que diziam
respeito à sua criação.
6
ª
. Esperávamos encontrar dois casos para comparação: um no qual o trabalho de
criação sustentasse a estabilização e outro que contradissesse essa possibilidade. Dessa
193
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
maneira, poderíamos sofisticar a discussão de nossa questão através da análise do que
era ou não operatório na estabilização de cada caso.
7
ª
. Paralela à investigação clínica corria a pesquisa teórica em torno do tema das
estabilizações nas psicoses a partir do referencial psicanalítico.
D. Contingências determinantes: tiquê e automaton na pesquisa em psicanálise
No desenvolvimento da pesquisa teórica, tivemos acesso a inúmeros casos de psicose
que estabeleceram alguma relação com a criação, em geral artística, na elaboração de
sua estabilização, tais como Arthur Bispo do Rosário, Van Gogh, Camille Claudel,
pacientes da Casa das Palmeiras (Rio de Janeiro). Chamou especial a atenção o caso do
Profeta Gentileza. Apesar de tratar-se de um caso relatado pelo viés de uma leitura
filosófica e estética, o material com o qual nos deparamos oferecia-se com uma riqueza
ímpar para nossos estudos. Tratava-se de livros e CD-ROMs sobre uma figura lendária
que viveu nas ruas do Rio de Janeiro, e nelas pregou a “gentileza”, pintando nos muros
do Viaduto do Caju mensagens que traduziam sua missão de ensinar o perdão e mostrar
o caminho da verdade e da moral aos homens. Dada sua notoriedade, a obra de
Gentileza tornou-se patrimônio cultural do Rio de Janeiro.
Gentileza era paradigmático para nossa investigação, pois trazia uma psicose
desencadeada, a criação, uma escrita com caligrafia absolutamente singular e um
trabalho de estabilização que explicitava a escrita da letra de uma forma única. Através
de um trabalho sistematizado de transmitir sua mensagem, fosse através da pregação, da
pintura de seus murais ou de sua própria indumentária, Gentileza criou uma saída que
nos colocou a trabalho enquanto aprendizes da clínica (ZENONI, 2000). Rompeu com a
repetição sistemática com que a pesquisa se desenvolvia, obedecendo à lógica
metodológica que a orientava, e se interpôs em seu percurso como contingência
necessária (!) a ser considerada.
Por outro lado, um outro encontro, ou uma nova contingência, nos retirou de nosso
caminho na vertente da pesquisa de campo. Sabendo de nossa investigação, um
psiquiatra da rede municipal nos procurou em um dia de entrevistas, interrompendo-nos
para dizer de um caso que não podíamos deixar de incluir neste trabalho. Tratava-se de
A., flagelo de Deus, jovem homem, esquizofrênico, que pintava e escrevia
incessantemente na tentativa de escrever-se um nó. Com a psicose desencadeada ainda
194
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
em sua adolescência, ele sofria com alucinações constantes e ensaios delirantes que
despejava no papel e nas telas de pintura.
O encontro com esses casos demarcou a irrupção do real da singularidade do uso da
letra tiquê que a repetição automaton dos casos levantados tentava encobrir. A
exigência de rigor científico aqui se deparou com a exigência clínica de tomar cada caso
como se fosse o primeiro e também com a impossibilidade de se transmitir o que é de
um tipo clínico para outro caso singular, dado que o que pode funcionar para um sujeito
não opera da mesma forma para outro. O traumático enquanto maneira singular que
deixa como rastro a entrada da linguagem e do real no corpo do sujeito, exigiu aqui um
contraponto ao exercício acadêmico de encontrar os casos, seriados, que evidenciariam
o que quer que se pretendesse demonstrar. Essa série significante, “científica”, que
poderia foracluir o sujeito, é interrompida e passa a obedecer ao princípio mais
freudiano para qualquer forma de investigação no território da psicanálise: que ela seja
clínica também, incluindo o sujeito do inconsciente e o real, como acrescenta Lacan.
Fora da série, fora do sentido, esses dois sujeitos, feito letra, exigiram uma outra escrita
metodológica para esta pesquisa: a escrita que inclui o real, que se suporta da letra no
banho de gozo com que lalíngua inunda o saber, débil para dar conta desse real. Esses
dois encontros modificaram definitivamente o desenvolvimento da pesquisa e a escrita
deste trabalho, pois exigiram, como previu Lacan, a inclusão do real e do sujeito em seu
texto.
Além disso, a perspectiva da comparação do que é singular apresentava uma
contradição lógica em si mesma. Como comparar o singular? Bom, tínhamos um ponto
do universal que atravessava os dois casos. E foi a partir dele que nos orientamos. A
falta é estrutural, para todos, e para ela o sujeito há que construir uma resposta, marcada
pela escrita da letra, campo de sulcagem do gozo, que se espraia de lalíngua, morta pelo
simbólico que ela sustenta, mas viva no uso do gozo que promove para o sujeito. Esta
era a escrita que faria a baliza na análise comparativa dos casos. situações em que
essa escrita parecia se fazer pela via da criação ou da obra, e outras em que, por mais
que o sujeito inventasse, criasse, ela não acontecia. Assim, com a escolha desses dois
casos exemplares, passamos a ter uma idéia tanto do que opera, como do que não opera
nessa convergência sobre a estabilização e a criação na psicose.
195
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
E. A construção e a análise dos casos
Trabalhamos com o estudo de caso seguindo a proposta aplicada por Freud à construção
dos casos que escreveu, buscando recolher no material encontrado elementos que
permitissem tecer considerações sobre nosso objeto de estudo. Freud, com seus casos
clássicos, nos ensinou que construir o caso é construir a teoria. E, com Lacan,
aprendemos que a topologia dos nós é uma realidade operatória. Assim, entendemos a
topologia como recurso e como mostração. Ela opera em nosso caso como um
localizador do sujeito, um instrumento de localização do sujeito. É um modelo de
construção diferente da construção do caso clínico proposto por Viganò (1999). Ela
também nos orienta na construção do caso, mas a partir do real em jogo para o sujeito.
Revela seu modo de escrita do gozo ou mesmo a falha ou o erro dessa escrita, indicando
o que pode repará-la. Assim, como método, ela serve como estratégia de construção do
caso a partir da articulação entre os três registros. A topologia é teoria e também
método.
A pergunta sobre o que opera numa estabilização a partir do uso da criação artística ou
artesanal, como discutimos, ganhou primeiro plano. Se Joyce, paradigma de uma
psicose que fez sinthoma, atestava a estabilização pela via da escrita, perguntávamos, ao
início de nossa investigação, se uma suplência dessa ordem poderia prescindir da escrita
e apoiar-se sobre outra materialidade. Como se vê, eram dois vértices da mesma
questão, a materialidade e a escrita no trabalho de estabilização psicótica. Dois vértices
que convergiram para o mesmo ponto, qual seja, a letra que escreve o nó.
Nesse sentido, a materialidade comparece como suporte, seja suporte da letra para o
significante, seja suporte do para o pensamento. E, em ambos os casos, trata-se de
uma escrita. Lacan é peremptório sobre esse aspecto. Foi a partir da genealogia da
discussão dessa materialidade que chegamos à idéia de suporte, e desta retornamos à
idéia de escrita, sob uma perspectiva diferente da original. Aqui a escrita é a escrita do
nó, escrita com a letra a, ou seja, escrita que inclui o real no trabalho de suplência, seja
ela de que ordem for. Os rasgos ou sulcos, que o avanço da investigação produziu sobre
a questão original deste trabalho, escreveram o novo roteiro sobre o real que o orienta.
Nossa pergunta, portanto, inclui necessariamente a escrita, mas não obrigatoriamente a
escrita literária. Parece-nos que a suplência, como modalidade de estabilização que
inclui um quarto elemento novo inventado para atar os três registros, exige a escrita pela
196
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
letra, de forma tal que ela mesma se suporte do real do nó. Enlaçamento que um
pode produzir entre os três registros, cernindo o gozo sob a forma do objeto a, extraído
dessa operação. Esse é um dos usos clínicos e, portanto, metodológico ou investigativo
que podemos fazer da topologia do nó enquanto realidade operatória.
Assim, ela foi tomada aqui como vetor de mostração dos casos, paralelamente à
discussão teórico-clínica destes, sem a pretensão de estabelecer um saber unívoco e
acabado, mas antes aprendendo com a psicose na construção de soluções pelo viés da
criação. Buscamos encontrar, em cada caso, a relação entre os três registros e a
modalização de sua escrita, pois, mais do que a determinação de quais os recursos
materiais que poderiam favorecer o trabalho de estabilização para um sujeito psicótico,
verificamos que é o uso que ele faz desses recursos, o artifício que ele inventa no uso
que estabelece com esses recursos que pode fazer operar a estabilização enquanto
suplência.
Em função da dimensão do singular na comparação dos casos, trabalharemos com uma
estrutura de apresentação que não se prenderá a um mesmo molde de exposição para os
dois casos, mas antes tratará de destacar essa escrita particularizada em cada um.
Portanto, percorreremos a história de vida e história clínica de nossos sujeitos num
primeiro momento, para, em seguida, empreendermos a análise teórico-clínica do caso.
Finalmente, vamos nos deter na mostração topológica para extrair as conseqüências
dessas análises na discussão de nossa hipótese de investigação.
4.2 Uma Primeira Solução Singular: A Escrita do Profeta Gentileza
4.2.1 História de vida e história clínica
89
Aqui apresentamos a trajetória de vida de Gentileza, construída a partir dos pontos de
movimentos subjetivos realizados por ele na construção de um novo nome e de uma
nova forma de se escrever, como trabalho na estabilização psicótica. Os dados e datas
abaixo ficarão mais claramente demarcados ao ganharem o contorno teórico-clínico que
organiza o caso em seguida. Mantivemos, no Anexo II, uma cronologia biográfica
resumida que demarca com mais concisão esses pontos de estofo no estudo do caso.
Abaixo, seguem os dados construídos de maneira historicizada, destacados sobretudo o
trabalho delirante e o de escrita da obra.
89
Em sua essência, os dados brutos aqui reunidos foram extraídos dos livros de GUELMAN (1997 e
2000) e das entrevistas realizadas com ele e com Maria Alice Datrino, filha de Gentileza, em 2003.
197
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
“José Datrino era empresário, dono de uma transportadora de cargas no Rio de Janeiro, que
se viu sacudido por um acontecimento de grande força trágica: a queima de um grande
circo na cidade de Niterói. Após seis dias, ele recebe um chamado divino para que deixe
tudo que possuía e venha viver uma missão na Terra, assumindo uma nova identidade”
(GUELMAN, 2000, p. 20).
Nascido em 11 de abril de 1917, em Cafelândia, interior de São Paulo, José Datrino era
o segundo filho dos onze de Paulo Datrino e Maria Pim. Viveu até os 20 anos naquela
região. Trabalhava puxando carroça para vender lenha nas cidades vizinhas e também
foi lavrador.
Quando adolescente começou a ter um comportamento diferente, seus pais o levaram a
um centro espírita, buscando fazer um trabalho com ele para que melhorasse. Desde os
doze anos de idade, José anunciava uma missão: achava que teria de ter uma
família, filhos, construir bens, mas que um dia teria de deixar tudo”. O comportamento
estranho do filho levou seus pais à suspeita de que fosse acometido de loucura.
Em 1937, já com 20 anos, deixa a cidade de Mirandópolis, sem avisar a família, rumo a
São Paulo. Seu destino final era o Rio de Janeiro. Ao se dar conta da partida do filho,
seus pais o seguiram aSão Paulo, mas não conseguiram interceptá-lo. Para a família,
o filho tinha sido levado por um guia espiritual.
José Datrino ficou quatro anos sem dar notícia a seus familiares de Mirandópolis.
Quando souberam de José, ele já estava estabelecido no Rio e pedia à mãe que lhe
enviasse seus documentos. Lá, casou-se e teve cinco filhos, três femininos e dois
masculinos”. O sustento de José Datrino e sua família provinha de fretes que ele passou
a fazer na cidade. Aos poucos fez crescer o negócio e, finalmente, estabeleceu-se com
uma transportadora de cargas na rua Sacadura Cabral, no centro da cidade. Cumpria-se
seu prenúncio de infância: José Datrino constituíra família e bens; era um empresário
possuidor de três caminhões, três terrenos e uma casa”. Faltava apenas deixar tudo
isso para cumprir sua missão na Terra...
Com a vida estabelecida no Rio de Janeiro, deu-se a grande mudança na vida de José.
Conta sua filha mais velha, Maria Alice Datrino, que numa noite viu seu pai
atormentado por uma visita de alguém que queria torna-se sócio de sua empresa. Logo
depois ele saiu de dentro da casa, abriu as portas dos passarinhos, passando lama no
corpo”. A estranheza do comportamento, entretanto, ainda não alterara seu cotidiano de
maneira mais contundente.
198
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
É sob o impacto de um acontecimento trágico que surge então o Profeta, no início dos
anos 60. Sua missão se anuncia dias após a queima de um circo, o Grand Circus Norte-
Americano, no dia 17 de dezembro de 1961, que vitimou cerca de 400 pessoas em
Niterói. José Datrino inicia a fundação de um novo nome e de uma nova forma de
inscrição na vida pública num cinzeiro humano”, num espaço de desolação. Seis dias
depois do incêndio, ele é tomado por uma revelação que, aqui, apesar da extensão, cabe
apresentar na íntegra com suas próprias palavras:
“No dia do incêndio, dia dezessete de dezembro do ano de 1961, eu tava aqui em Deodoro,
aqui em Guadalupe, na rua Barata, aqui na fundação, tava com minha família, eu senti
uma reação. Naquele dia dezessete de dezembro de 1961, depois de seis dias, eu tava
trabalhando com meu caminhão, de minha propriedade em Nova Iguaçu, entregando
mercadoria, de meio dia a uma hora. Foi quando eu recebi o aviso astral de Deus de que no
dia seguinte - três confirmações - eu tinha que deixar todos meus afazeres materiais do
mundo para cumprir o espiritual na Terra, que eu deveria vir com São José, representar
Jesus de Nazaré na Terra, perdoar toda a humanidade, ensinar a perdoar uns aos outros, e
mostrar o caminho da verdade que é nosso Pai, fazer o ensinamento de Jesus na Terra. E foi
o que eu fiz. No dia vinte e quatro de dezembro de sessenta e um, eu deixei tudo. fui
pregoar em Niterói. Levei meu caminhão de minha propriedade, comprei duas pipas de
vinho de cem litros em Nova Iguaçu para alegorar minha chegada em Niterói, na beira da
praia, ali na Rua Rio Branco, tem um terreno baldio. comprei copinho de papel, duas
pipas de vinho de cem litros, comprei gelo, fui distribuir vinho pegado à estação das
barcas em Niterói” (GUELMAN, 2000, p. 27).
Assim, no dia vinte e quatro, a partir de sua revelação”, deixa tudo e vai pregar em
Niterói, distribuindo vinho para ensinar as palavras por gentileza eagradecido”, em
oposição apor favor e obrigado”, ganhando uma nova identidade: Jozzé Agradecido
que, posteriormente, se tornará Profeta Gentileza.
O neologismo, criado nas palavras gentileza e agradecido, ganha sentido na produção
do próprio autor. Segundo o Profeta, obrigado vem de obrigação, é de carrasco. Deus
não quer que sejamos obrigados a nada. Deus quer a nossa liberdade, agradecido vem
de graça (apud GUELMAN,1997, p. 193). Em suas falas e nos escritos que se
tornaram pilastras, Gentileza escreve: Palavra que condena Por favor, obrigado é ser
escravo do capitalismo (Pilastra 54). Na pilastra 51, Palavra que liber(r)ta por
gentileza e por Jessuss Agradecido e o Espirito Santo que conduz (sem grifo no
original).
Como se vê, o anúncio de seu nome aparece em oposição ao favor ou à troca calcada no
interesse, assim como o agradecido se opõe a obrigado, na medida em que ninguém
deve ser obrigado a nada, pois é a Graça de Deus que tudo provê gratuitamente. Ainda
nas palavras de Gentileza, observa-se a importância central dessas duas palavras, em
199
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
torno das quais se organiza sua produção escrita e artística. Essas duas palavras, por
gentileza e agradecido, não tem dinheiro nenhum que pague. É a minha vida!
(GUELMAN, 1997, p. 70).
Sua construção se organiza como luta contra o capeta-capital que vem destruindo o
mundo, colocando-se a gentileza como princípio ético, como desafio para a atualidade.
Gentileza gera gentileza é sua máxima, e daí decorrem as outras virtudes como amor,
beleza, perfeição, bondade e natureza.
Sabemos, entretanto, que o campo social é pouco elástico a manifestações exóticas,
como a que empreendeu Gentileza, pasteurizando toda a diferença em nome da boa
norma social, regulada pela Medicina, pela Moral e pela Polícia. Não foi diferente com
Gentileza. Após ter distribuído quase todo o vinho que havia levado, ele foi notado por
policiais que o abordaram, conduzindo-o para um Batalhão da Polícia Militar. No
transcurso, Gentileza perguntou ao policial se o Batalhão ficava ao lado do circo que se
incendiara, o que foi confirmado. Após as averiguações, Gentileza instalou seu
caminhão no terreno do circo, e ali passou a residir. Transformou o lugar num grande
jardim circular, abriu poço, onde corria água limpinha, fez horta e cercou o terreno
denominando-o “Paraíso Gentileza”, onde permaneceu por quatro anos.
“Eu passei a morar no local do circo. Plantei flores, fiz jardim e cerquei o terreno. Na
entrada coloquei dois portões, um de entrada, outro de saída, onde estava escrito: “Bem-
vindo ao Paraíso do Gentileza. Entre, não fume, não diga palavras obscenas. Tornou-se um
campo santo” (GUELMAN, 1997, p. 160).
Ali assumiu sua missão ao se fazer de consolador de todos aqueles que perderam seus
entes queridos. Conta Gentileza queno dia 24, após ter deixado tudo, a minha própria
família, por não entender, me internou três vezes como ‘débil mental, como maluco’”.
Numa das três internações a que foi submetido, o "médico psiquiatra" disse a sua filha
que ele estava tomando choque à toa, pois não era maluco. No Hospital Psiquiátrico de
Jurujuba em Niterói, os enfermos ficavam todos à sua volta, ouvindo sua pregação.
Outra história que ele conta é a do médico que teria perguntado ao Profeta: "Gentileza,
você veio aqui para nós te curar ou para você nos curar?". Os prontuários de José
Datrino, que tentamos localizar, não foram encontrados no arquivo morto do hospital, o
que impediu maiores informações clínicas sobre suas internações.
Depois destas passagens, Gentileza ganhou novamente a rua. Sua figura singular passou
a atrair atenção. Aos que o apontavam na rua como maluco, ele dizia: "maluco para te
200
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
amar, louco pra te salvar [...] seja maluco mas seja como eu, maluco beleza, da
natureza, das coisas divinas”.
Numa missa campal que ocorreu no local um ano após o incêndio do circo, Gentileza
conta que um jornalista o fotografou e uma senhora contou ao repórter que ele tinha
perdido toda sua família no circo, por isso tinha ficado maluco, passando a residir no
local do circo queimado. Mas Gentileza ia à televisão, às dios, aos jornais, sempre
desmentindo essa história.
“Eu morava aqui em Deodoro, Guadalupe, bairro do Rio, né? Hoje em dia, desde 1952 até
hoje minha família mora em Guadalupe. Então os jornais publicou dizendo que eu tinha
perdido minha família, tudo calúnia. Colocaram em revista... . Então eu digo assim para
vocês: Meus filhos, vocês nunca podem chegar numa banca de jornal e ler um artigo e
afirmar que aquilo se sucedeu. O papel aceita tudo, a verdade e a mentira, e o jornalista
quer saber de propaganda para vender o jornal. Por isso o que aconteceu foi calúnia”
(GUELMAN,1997, p. 50-51).
Guelman nos relata numa entrevista a importância e a aceitação por parte das pessoas do
fato de o Profeta se estabelecer no local do circo:
“Socialmente eu acho que isso foi bem aceito, por que aí tá uma grande questão: ele figurou
como aquele que perdeu a família no circo, sem ter perdido a família no circo. E cumpria aí
um papel fundamental, e que... Para todas as pessoas que perderam a família no circo, pai,
mãe, irmão, oito pessoas, às vezes foram dez pessoas no circo, uma sobreviveu. Entendeu?
Então, ele não tinha ninguém no circo, ele não estava no circo, nada, mas ele cumpre o
papel daquele, daqueles que perderam toda família no circo. Então explicado por que
aquele senhor, aquele homem que estava no terreno do circo, que ele foi no circo com
toda família. E, por não aceitar a perda, ele passou a morar no local do circo, e a virar um
profeta. E ficou louco, ficou maluco. Essa é a lenda, o mito que surgiu, inaugural, do
personagem dele” (Relato de Guelman em entrevista).
Como ele pregava a Gentileza e se denominava o Profeta Gentileza, dizia que se
alguém perguntar quem é o Gentileza, vocês ensinam: é o nosso Pai, Criador Celestial.
Por que Deus é Gentileza? Porque é Beleza, Perfeição, Bondade, Riqueza, a Natureza,
nosso Pai Criador” (GUELMAN,1997, p. 45).
Ele criou várias modinhas, e numa delas destaca a relação do circo com o mundo: Diz
que o mundo ia se acabar, pois o mundo se acabou, a derrota de um circo queimado é
um mundo representado, porque o mundo é redondo e o circo é arredondado
(GUELMAN, 2000, p. 15). Guelman, em sua leitura filosófico-estética, também faz
uma relação do mundo com o incêndio do circo na medida em que um circo consumido
pelas chamas, derrotado em sua inocência, representa um mundo e seus valores sob
ameaça de um fim.
Em meados dos anos 60, Gentileza sai do local do circo e começa a deslocar-se entre
201
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Rio e Niterói, ficando conhecido como o “pregador da lancha”. Adquire
reconhecimento popular, cria provérbios e máximas para alcançar as pessoas, ensina a
gentileza e proclama novos costumes morais. Aqui, um de seus provérbios: Cuidado,
cabecinha da humanidade! Cuidado lingüinha! no cemitério tinha uma caveira...
Alguém foi no cemitério e perguntou: Caveira, quem te matou caveira? A caveira
respondeu: a língua ferina. É verdade!” (GUELMAN, 1997, p. 64).
Com um estandarte em punho, encimado por um punhado de flores que migraram do
“Paraíso Gentileza”, ele se apresenta como representante de Deus e anunciador de um
novo tempo. Seu estandarte funcionava como carteira de identidade mítica, repleto de
alegorias. Com as incrições do “PC” no estandarte, é convocado na década de 60 a
explicar às autoridades que o se tratava de Partido Comunista, e sim de Pai Criador.
No estandarte fica clara sua simbologia singular alimentada e inspirada pelo aspecto
religioso. Inclusive muitas de suas produções, máximas e modinhas trazem trechos
bíblicos ou passagens análogas às bíblicas em seu conteúdo, como vemos na
estruturação do estandarte abaixo relacionada.
(a) F/P/E/N Filho, Pai, Espírito Santo e Nossa Senhora. Esse é o diagrama de
uma síntese religiosa do mundo (universo), de modo que a parte superior representa
o céu, com as estrelas, e as iniciais F/P/E, o cume do mundo espiritual. Elas ficavam
dispostas em seu estandarte.
(b) O primeiro elemento é DEUS-PÃE-GENTILEZA-CR(R)IADORRR-DO-
UNIVVVERRSSO, primeira pessoa da Santíssima Trindade (1).
(c) O segundo elemento é o FILHO-JESSUSS-PORR-GENTILEZA-SÃNTO-
IRMÃO. Segunda pessoa da Santíssima Trindade, o (2) é a palavra que libe(rr)ta
(por gentileza), contrariamente à palavra que condena (por favor). O (2) se completa
no (3), assim como “agradecimento” completa o pedido de “gentileza”.
(d) Gentileza se identifica em sua obra como terceira pessoa da Santíssima
Trindade, 3 é o ESPÍRITO SANTO-JOZZE AGRADECIDO”, ele mesmo diz eu
vim como São JOZZE para representar Jesus de Nazaré na Terra
(e) A base do estandarte é o quarto termo (N), como expressão da materialidade no
mundo. Aqui entra o elemento feminino. Maria é a mãe de Deus, e a primeira filha
de Gentileza. Segundo o Profeta, “à mulher cabe AMORRR E HONRRA”.
“Se a trindade afirma a criação do universo em F/P/E, no desígnio de Deus Pai Gentileza, a
quaternidade afirma que o mundo não é só criação, mas também concreção e materialidade.
202
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
O 3 se amplia no 4, o bom uso da matéria é o afastamento do mal que constantemente cerca
o homem” (GUELMAN, 2000, p. 61).
Qualquer semelhança com a constância da estrutura quaternária e material de Lacan não
será mera coincidência...
Em fins dos anos 60, Gentileza inicia uma série de viagens que o tornarão conhecido no
interior do país. Retorna a Mirandopólis reapresentando-se como Profeta Gentileza. Em
1970, parte para o interior do Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), rumo a Campo
Grande e Aquidauana, para pregar a gentileza. Na cidade, ele sofre a primeira grande
adversidade como profeta: foi detido por policiais que o levaram à delegacia. Ficou
detido por uma noite, teve seu cabelo cortado e seu estandarte quebrado. O delito
cometido era o de estar pregando sem a Bíblia na mão. Diante disso o profeta cunhou
uma frase: Quem é mais importante, o livro ou a sabedoria?”, que mais tarde seria
reproduzida numa canção de Marisa Monte
90
. Retorna para o Rio e passa a utilizar a
cartola do Tio Sam, incorporando um novo visual, agora de profeta tropicalista,
Chacrinha da Calçada”.
Após o incidente em Aquidauana, passa a recolher depoimentos e declarações de figuras
públicas e autoridades dos lugares pelos quais passava, como carta de referência ou
atestado de idoneidade, que apresentava às rádios e aos jornais locais ao chegar em
cada cidade que visitava para pregar. Guelman nos relatou, em entrevista, que Gentileza
fazia todo um trabalho de divulgação de sua chegada e de sua missão. Ele chegava
numa cidade, a primeira coisa que ia era... ia ser num... na redação do jornal e na
rádio, para ser anunciado que ele tinha chegado. Então, quando ele andava pela
cidade, as pessoas sabiam pelo rádio ou pela TV que o Profeta Gentileza estava
(Relato de Guelman em entrevista).
Em meados de 70, cabelo refeito, terno e gravata, inicia o culto à brasilidade. Vai a
Minas Gerais, Ouro Preto, por ter forte admiração e respeito por Tiradentes, que assim
como Jesus, sofreu por seu povo”. Lá, os estudantes sugeriram o uso de uma bata.
Sugestão que é aceita pelo Profeta e anexada a outras alegorias, tais como bandeiras e
cata-ventos. Este último, dizia Gentileza, era para refrescar a mente da humanidade”.
Também em entrevista, Guelman relata que a partir de um determinado momento, ele
passou a ser uma figura folclórica no Rio, né? Já nos anos 70, ele já tinha construído a
90
Cf. no Anexo III a música completa. Por isso eu pergunto/ A vocês no mundo/ Se é mais inteligente/
O livro ou a sabedoria” (MONTE, 2000).
203
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
imagem dele como Profeta, né? Ele era moralizador, entendeu? Era a época da
minissaia, então ele corria atrás das mulheres com saia curta”.
Conhecido como o pregador da barca, ele fazia ensinamentos religiosos e também
morais. Dizia, por exemplo, se a saia sobe, a moral desce. E ainda, na pilastra 39,
gentileza contra o pecado capital não podem andarr maltrapilhos de calsas curtas
com o peito da camisa aberta descamisados para com jessuss e defuntos anbulantes
contaminando 95 por cento e pobres duentes cegos no pecado capital satana por
jessuss gentileza”.
Na década de 80, assume definitivamente a bata, a bandeira e os cata-ventos, conferindo
significação especial a cada detalhe de sua indumentária. Ele se escreve nas pilastras, na
bata, no seu estandarte, na sua caligrafia. O Profeta explica o que significa usar
problemas e pobreza no bolso, uma vez que no escrito está explícito NÃO-USEM-
PROBLEMAS-NÃO-USEM-POBREZA-USE-AMORRR-USE-GENTILEZA”. Por que
será que é exatamente sobre o bolso de sua bata que ele coloca este escrito? Bom, ele
diz que o uso material do bolso, o uso financista da riqueza, é o problema e, ao mesmo
tempo, a pobreza. Somente se não fizermos esse uso da riqueza, seremos conduzidos ao
uso do AMORRR (não material) e da gentileza. Assim, a maior expressão da riqueza é a
gratuidade que se relaciona às coisas materiais e implica diretamente a natureza, que é a
maior fonte de riqueza, pois nos tudo de graça sem cobrar nada. A-NATUREZA-
NÃO-VENDE-TERRAS-A-NATUREZA-NÃO-COBRA-PARA-NOS-DAR-
ALIMENTAÇÃO”.
Realiza grandes viagens pelo Brasil, num trajeto circular, pregando as palavras de
gentileza, sempre se movimentando de um município a outro. Além das viagens,
uma grande intervenção de Gentileza na paisagem do município do Rio de Janeiro.
Entre a Rodoviária Novo Rio e o Cemitério do Caju, numa extensão de 1,5km,
Gentileza realiza seus 55 escritos murais sobre as pilastras do Viaduto do Gasômetro. A
obra de Gentileza demarca um espaço e uma permanência para sua mensagem. A partir
de então, o Profeta não pinta mais sobre placas ou cartolinas, mas diretamente sobre a
superfície de concreto. A escrita inventada com sua singular caligrafia e seus símbolos,
presente em suas placas e em seu estandarte, se registra agora no texto da própria
cidade, transformando pilastras em tábuas de seus ensinamentos. Guelman nos relata
que Gentileza não escolheu por acaso o Viaduto do Caju.
204
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
“É uma cartilha, né, um livro, um local que ele escolheu para escrever um livro urbano, foi
aí. Por que ele escolheu aquele lugar, quer dizer, racionalmente, né? Eu acho que foi...
conjugou vários fatores. Um deles é que ali é a entrada do Rio de Janeiro, é o Km Zero da
Avenida do Brasil; como se fosse um portal (...) Andar no local, perceber o local como um
território, né? Como que um lugar desolado, sujo, né? É... Onde as pessoas não criam
vínculo com o local, porque não é um lugar acolhedor. Como aquele lugar passa a ser um
local de referência para ele, entendeu? Então ele morou, quer dizer, viveu, né, ali, anos e
anos da vida dele. Vamos dizer que ele foi pintando naquele local. Ao ponto dele ficar na
pilastra 1 como quem estivesse na varanda de casa dando tchau para as pessoas. É porque
aquele local para ele se consagrou como território, da mesma forma como o local do circo.
Da mesma forma como o local do circo é um local desolado, que as pessoas recusavam, um
local de perda, queimado... parará... Ali também ninguém vai querer ir. [...]. Mas um local
agressivo do ponto de vista urbano, entendeu? Inóspito. Alguém querendo humanizar ou
querendo transformar aquele lugar, entendeu?” (Relato de Guelman em entrevista).
Sua grafia era singular
91
, desenha cada letra, cada palavra. Signos como a gaivota, usada
como acento, simbolizam uma pomba divina. E se esse passarinho repousar numa
palavra, no que ele pousa, ele um acento divino, como em “senhõr” e “Pãe”, que é
pai, mãe, espírito. “Ele faz uma poética da questão da trindade, que é absolutamente
maravilhosa”, diz ainda Guelman em entrevista. A estrela aparece pontuando o início do
texto, como signo da iluminação do Profeta. Expressa também a força astral e cósmica
em sua mística, revelando, além disso, as pessoas da trindade e da quaternidade que
estabelece. O acréscimo de letras nas palavras é uma das grandes marcas da escrita de
Gentileza. E expressa a figura da Trindade Cristã, manifestadas em seu verbo, como na
palavra “AMORRR”, que traz o R do Pai, o R do Flho e o R do Espírito Santo.
Guelman nos apresenta pontualmente uma análise dessa escrita, extraindo dela sua
marca original. Ao tornar-se portador do anúncio da gentileza, o Profeta começa a
falar e a escrever por meio de uma linguagem revelada. [...] Sua escrita aparece como
um verbo sagrado, formalmente distinto da escrita corrente profana (GUELMAN,
2000, p. 72). Gentileza elabora uma grafia totalmente singular, tal qual o tipógrafo que
desenha a palavra letra a letra. Figura antiga evocada por Lacan, como vimos, para
tratar da materialidade da letra enquanto suporte do significante. O Profeta fazia
manuscritos de cartas e esboços de trabalho que ganhavam uma versão final apoiada
na sua grafia peculiar.
Ainda para Guelman (2000, p. 72), uma apreensão da caligrafia (do grego kalos- belo +
graphos – desenho, escrita) de Gentileza evidencia que ele conseguiu dar ao seu texto a
forma de uma escritura hierática. Efeito obtido tanto pelo aspecto formal das letras e
signos, como também pela estruturação que esses elementos definem.
91
Cf. a caligrafia e o simbolismo da escrita de Gentileza no Anexo IV.
205
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
As palavras se acomodam numa seqüência de pautas, como as notas musicais numa
partitura, sendo o movimento interno do texto assegurado por setas ou pássaros/aviões,
que religam as palavras, movimentando o texto internamente. Seja remetendo a leitura
para a linha seguinte, seja ligando uma palavra à outra, criam uma estética
absolutamente original em sua caligrafia. Interessante notar a brasilidade como aspecto
cultural absorvido por sua estética. Ele alterna, nas pautas de marcação de seu texto, as
cores verde e amarelo sobre um fundo branco, escrevendo suas palavras e signos em
azul, e pousando a bandeira nacional ao final da primeira linha de cada escrito do
Viaduto.
“Na composição de sua escrita e na expressão de sua simbólica, o profeta cria arranjos de
letras dentro de letras. Esse acréscimo ou ‘reforço’, como dizia, explicita ainda mais o
acento divino que ele confere ao texto. Algumas palavras criam uma arquitetura caligráfica,
cifrada somente para aqueles que desconhecem o teor de sua mensagem” (GUELMAN,
2000, p. 74).
se adivinha, em termos psicanalíticos, o que está em jogo: letras dentro de letras (ou
significantes suportados por letras); reforço ou acréscimo (do que pode fazer suplência);
arquitetura caligráfica que faz cifra (de gozo) ao decifrar o acento divino do texto...
Guelman não poderia ser mais lacaniano!
É, ao mesmo tempo, uma escrita que faz laço com a crise do mundo contemporâneo,
com a crítica à ética capitalista, evidenciando a tensão entre um mundo em crise e a
possibilidade de sua superação pela acolhida da gentileza. Possui, portanto, endereço
certo.
No início dos anos 90, finaliza sua obra no Viaduto e, com ela concluída, passa a se
assentar numa cadeira, geralmente ao lado da Pilastra 1, acenando para todos como se
estivesse na varanda de sua casa. Na ECO 92, realizada no Rio de Janeiro, conclama as
nações e os presidentes ao uso da gentileza. E de 1993 em diante, com a saúde
fragilizada após uma queda que lhe ocasionou uma fratura na perna, é acometido
também por problemas circulatórios, sentindo cada vez mais dificuldade em andar.
Retorna a Mirandópolis, sua cidade natal, em 1996 e morre em 29 de março com 79
anos, tendo dedicado os últimos 35 anos de sua vida à sua missão.
No dia 20 de Janeiro de 1999, é oficializado o projeto “Rio com Gentileza”,
recuperando a primeira das pilastras do Viaduto do Caju que, após serem pichadas,
haviam sido pintadas de cinza pela Prefeitura. Em outubro do mesmo ano, é realizado
206
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
no Rio de Janeiro a “Semana do Gentileza”. E em 06 de maio de 2000, depois de nove
meses de trabalhos exaustivos de restaurações, entregam-se, em cerimônia oficial, com
a presença de autoridades, artistas e público em geral, todas as pilastras restauradas de
Gentileza. E ainda nesse ano, a Universidade Federal Fluminense encaminha, ao
Departamento Geral do Patrimônio e ao Conselho Municipal de Patrimônio Cultural do
Município do Rio de Janeiro, um pedido de tombamento de toda a obra gráfica de
Gentileza no Viaduto do Caju. Em junho do mesmo ano, é oficializada a Praça Profeta
Gentileza em frente à Rodoviária Novo Rio. Em novembro, após estudos e análises dos
órgãos competentes, a obra é tombada. Também em 2000, o Instituto dos Arquitetos do
Brasil concedeu o Prêmio Urbanidade 2000 ao Projeto Rio com Gentileza.
Muitas pessoas se interessaram pelo Profeta. Cineastas, poetas, músicos e videomakers
trabalharam com a história e a obra de Gentileza, como Duda Amaral que, atualmente,
finaliza uma trilogia sobre o Profeta. Além disso, Gonzaguinha o homenageia no CD
“Cavaleiro Solitário”; o carnavalesco Joãozinho Trinta apresentou, no carnaval de 2001,
o enredo Gentileza X O Profeta do Fogo”; e Marisa Monte canta “Gentileza” no CD
“Memórias, Crônicas e Declarações de Amor”. O Profeta foi entrevistado na TV Globo
por Jô Soares. E hoje um número grande de admiradores seus via internet, em blogs
e em várias comunidades no Orkut, sendo todo esse ‘sucesso’ decorrente de seu
reconhecimento como profeta contemporâneo, e não como uma figura da loucura. Ele
fez enlaçamento à sua maneira, no seu estilo. Tentemos conhecer esse estilo mais de
perto.
4.2.2 Um estudo psicanalítico do caso
Como articulada na discussão teórica do primeiro capítulo, a irrupção da psicose, ou o
desencadeamento do psicótico, ocorre justo quando acidentalmente surge uma questão
sobre o seu ser, ou seja, o Um pai surge no real no momento em que algum personagem
da figura paterna se impõe em posição terceira em relação ao par imaginário a-a’. A
referência lacaniana para essa leitura é a da primazia do simbólico. E seus elementos
seriam: (a) causa específica, coincidindo com a ausência do Nome-do-Pai; (b) causa
acidental, concernente ao encontro com Um pai, elemento terceiro que provoca
desestabilização; (c) dissolução do elemento estabilizador ou quebra da identificação
imaginária.
207
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Vimos também que o retorno do foracluído marca a ausência da escrita e da
rememoração, materializando a exterioridade do Outro e da linguagem, sendo sua
modulação, para cada sujeito, uma maneira singular que encontra para lidar com o real.
O trabalho sobre esses pontos de retorno, de desligamento do sujeito se por
diferentes vias. No caso de Gentileza, sua história nos evidencia um trabalho delirante
que se escreve como letra de gozo através do reforço pelo acento divino que sua
caligrafia porta. Estivéssemos orientados pelo primeiro tempo do ensino lacaniano,
poderíamos mesmo arriscar a dizer que esse trabalho delirante culmina com a
estabilização via metáfora através dos significantes primordiais "gentileza" e
"agradecido", numa espécie de oposição binária a "favor" e "obrigado". Essa oposição
destaca o caráter diferencial e o vazio de significação que o significante possui. Com a
diferença de que aqui a oposição faz uma significação delirante que não desliza na
produção de sentido, mas antes cerne o gozo na repetição da afirmação de um mesmo e
original sentido, fundado ao tempo do incêndio do circo. Entretanto, uma invenção
em torno da “gentileza” que talvez nos indique uma letra inaugural se escrevendo.
Vimos que Lacan (1955-56/1992) identifica a metáfora delirante a um processo
complexo que constitui o delírio como uma metáfora, que faz às vezes da metáfora
paterna no trabalho ruidoso de cura. E também que Maleval (1996) destacou com
fineza, do texto freudiano e lacaniano, o desenvolvimento lógico dessa construção
delirante em quatro fases. Assim, aos moldes dos anos cinqüenta, mas sem perder de
vista o aporte dos anos setenta, investigaremos a solução psicótica encontrada pelo
Profeta Gentileza fazendo o exercício de destrinchar o que se escreve na construção da
metáfora delirante para além da articulação significante.
1. Deslocalização do gozo e da perplexidade angustiante. Refere-se ao
desencadeamento significante a partir de uma ruptura na cadeia provocando uma
autonomia do significante. Seu efeito é a perplexidade, advinda do fato do sujeito não se
sentir autor de seus próprios enunciados, e experiências corporais, em diferentes
manifestações. Acreditamos que no episódio da lama, quando Gentileza é convocado
simbolicamente para a criação de uma sociedade civil em sua empresa de fretes, o
desencadeamento se instala. Interessa aqui menos os elementos em jogo na estrutura do
desencadeamento que o ponto no qual os registros sofrem uma disjunção, uma
desamarração, evidenciando uma fragilidade do que os atava. A criação de uma
208
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
sociedade nos diz de uma ficção simbólica, um nome jurídico, fazendo com que aqueles
que a pretendam criar se façam representar não apenas como um corpo mas também
como um nome. Vimos que a função da nomeação é disjunta da função do significante
do Nome-do-Pai e pluralizada em Lacan. Se não é possível precisar com certeza o ponto
em que o pai não comparece na história de Gentileza, é possível, por outro lado,
recolher os efeitos de sua não-inscrição. Ao desnudar-se e libertar seus animais, parece-
nos que Gentileza busca no real desse ato um reforço simbólico que não se escreveu,
evidenciando o ponto em que a amarração de seu exigirá reparação. O que temos
como conseqüência é justamente a perplexidade do sujeito. É nesse sentido que, com
Gentileza, desatada a possibilidade de uma resposta a essa convocação, ele realiza em
ato o esforço débil de dar conta dessa experiência real, como nos relata sua filha, Maria
Alice, em entrevista: “Ele saiu de dentro da casa, abriu as portas dos passarinhos,
passando lama no corpo”.
Na história de José Datrino, habitualmente vem identificada a eclosão de sua loucura ao
episódio do incêndio no circo em Niterói, momento ruidoso que responderia pelo
esboço de uma tentativa de escrita de si mesmo, realizando o início de sua "missão na
terra". Entretanto, como vimos com Freud, o processo de ruptura que origem à
experiência psicótica é silencioso. Assim, a análise do caso permite aqui reconfigurar a
cena do desencadeamento a partir desse episódio da lama. Desde a adolescência, José
sabia de sua missão, que aos 12 anos prenuncia, e é levado pela família para ser
benzido. Entretanto, parece-nos que é diante da convocação para se tornar sócio de uma
pessoa jurídica, de uma firma, que se o desencadeamento, provocando uma situação
irreversível, um ponto subjetivo de não retorno.
2. Na segunda fase, referente à significação do gozo deslocalizado, dá-se um trabalho
de mobilização do significante pelo psicótico na busca de uma explicação para os
fenômenos que o invadem. Em Gentileza, o que encontramos como uma primeira
tentativa de significação do gozo deslocalizado é a ruptura com os afazeres materiais
do mundo para cumprir o espiritual na terra”. É essa a resposta que Gentileza encontra
quando da invasão alucinatória do aviso astral de Deus de que no dia seguinte três
confirmações eu tinha que deixar todos meus afazeres materiais do mundo para
cumprir o espiritual na Terra [...] e foi o que eu fiz” (GUELMAN, 2000, p. 24).
surge um compromisso razoável, característica marcante dessa segunda fase. É o
209
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
sacrifício da morte do sujeito, tomado por Lacan (1957-58/1998) como renúncia fálica,
que possibilitaria uma negativização do gozo na psicose, graças à qual uma nova
articulação significante se tornará possível. A partir daí, o sujeito psicótico não mais
terá uma atitude passiva em relação às mensagens que lhe chegam do real, podendo,
então, tornar-se organizador daquilo que o invade” (CASTRO, 2001, p. 8).
É nesse sentido que Gentileza atua como um mensageiro dos ensinamentos de Deus e
passa a “pregoar em Niterói”, agora não mais inquieto e perplexo diante do
desencadeamento de sua psicose. Verificamos um trabalho de mobilização para explicar
os fenômenos que o invadem, possuindo agora o sujeito um papel ativo de divinizar a
humanidade, levando a cabo o aviso astral que Deus lhe enviara. Ensinar a perdoar
uns aos outros, e mostrar o caminho da verdade que é nosso Pai, fazer o ensinamento
de Jesus na Terra”.
O episódio do circo, contemporâneo da ruptura com os afazeres materiais do mundo”,
parece surgir como um catalisador que possibilita a elaboração de uma resposta
simbólica no nível de uma metáfora delirante. Esse acontecimento possibilita a
Gentileza circ(o)inscrever os até então angustiantes fenômenos que lhe chegavam do
real sob a forma alucinatória. É dessa forma que nasce o Profeta, no início dos anos 60,
sob o impacto do acontecimento trágico da queima do circo. Uma escrita começa a se
forjar então.
Em torno desse episódio giraria a versão de que o Profeta Gentileza teria perdido toda
sua família no circo, tal como sucedeu com muitos na tragédia. Entretanto Gentileza ou
até então Jozze Datrino e seus parentes não se encontravam no local do circo, como
vimos. Ao contrário, ensaiando fazer da ex-sistência desse chamado alucinatório
enlaçamento, Gentileza se dirige ao local do incêndio e ali permanece durante quatro
anos, reescrevendo um mundo acabado e desolado pela tristeza para poder habitar nele
mais uma vez no texto do jardim Paraíso Gentileza. Podemos vislumbrar aqui o
início de um enodamento com a produção de sentido, articulando o gozo entre
Imaginário e Simbólico, como condição de tratamento do Outro gozo.
3. Na terceira fase, a da identificação do gozo do Outro, Maleval com Lacan diz que
este gozo se encontra identificado, quer dizer, assentado no significante, que dará ao
sujeito uma certa base para que ele se faça organizador do que lhe chega. Ainda que
subsista algo de um imperativo que lhe impõe o que ele deve fazer. Mas se costurarmos
210
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
o texto lacaniano da década de 50 com o da década de 70, veremos que o tratamento do
gozo do Outro é um dos pontos centrais de articulação da suplência como invenção de
um quarto termo que estabiliza os registros no nó. A inexistência do Outro do Outro
exige uma sutura entre imaginário e sintoma (simbólico) que implicaria como
conseqüência o enlaçamento do real e a invenção do sinthoma. Essa sutura resulta numa
escrita do pela letra. Donde devemos avançar em relação ao que sugere Maleval e
propor que a base” que surge da identificação do gozo do Outro se antes sobre a
letra que sobre o significante. É com essa escrita, que força a expulsão do objeto a, que
um delírio pode favorecer o nó.
A diferença de Schreber para Gentileza é que este, além de acatar os avisos divinos que
lhe chegam do real, nomeia o invasor, que no caso pode ser Deus, e que nada de mal
poderá lhe infligir. Ele faz uma nomeação pelo real, identificando-se à letra divina.
Assim, assentado nos significantes Jozze Agradecido e depois Profeta Gentileza, fará
valer sua pregação, não mais como um representante de Jesus de Nazaré, mas forjando-
se, dessa forma, um nome próprio.
Essa nomeação não é aleatória. Ela se utiliza do que não se escreveu primariamente
como traço-letra na história de José e incide exatamente sobre o ponto em que o não
faz amarração. No resgate de sua história da vida, percebemos a importância dada por
sua família à religiosidade, marca fundamental que permeia a vida desse sujeito desde
sua constituição. Não só ele é levado na infância a práticas religiosas e benzeções, como
também sua saída do interior para a capital é interpretada por sua família como a
anunciação de uma escolha divina por sua pessoa. Além disso, em seu nome uma
"escolha forçada" pela significação religiosa, advinda do campo do Outro. José Datrino,
assim como nos indica Guelman (2000, p. 23), certamente já sugere, em seu nome, a
possibilidade de sua missão [representar Jesus de Nazaré na Terra]. Datrino significa,
em italiano, de três, enviado pelo Trino (Trindade)”. Assim, quando do
desencadeamento que fez vacilar a identificação imaginária com o homem de bem,
possuidor de “três caminhões, três terrenos e uma casa”, Gentileza recorre à lama para
fazer-se, no real, um novo homem, invocando "o direito de reesculpir-se do barro; um
novo homem fazendo-se de um novo húmus” (GUELMAN, 2000, p. 23).
Assim, Gentileza provoca a escrita do real através dessa nomeação. Sua construção
delirante se estabiliza na metáfora sustentada pela relação binária forjada por esses dois
211
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
termos: gentileza e agradecido. Sabemos que o significante existe em relação a outro
significante, produzindo sentido pelo deslizamento na cadeia. A definição lacaniana
clássica de que o significante é o que representa o sujeito para outro significante implica
a inclusão do sujeito como sujeito do inconsciente e, ao mesmo tempo, evidencia a
estrutura de binariedade intrínseca à própria definição estrutural de significante. Para
Lacan (1957b/1998, p. 501), é uma ilusão acreditar que o significante "atende à função
de representar o significado". Ao contrário, tanto a coisa está ausente como um outro
significante está sempre referido pelo primeiro. O que demarca o significante é sua
função diferencial.
Parece-nos, portanto, que Gentileza elege um significante que, tal qual o significante-
mestre recalcado na neurose, o identifica a um traço. Assim, diferentemente do
neurótico que se localiza entre dois significantes posto a tradução não ser possível de
se completar Gentileza se revela e constrói no trabalho de isolamento do significante
que, extraído do enxame desordenado de S1 da psicose, faz Um, escreve a letra. É essa
escrita que civiliza o gozo, tornando-o suportável.
Porém, com Lacan ainda, vamos mais longe. Aprendemos que a letra é o suporte
material que o discurso toma emprestado da linguagem (LACAN, 1957b/1998, p. 498) e
que ela se manifestará no inconsciente pela homofonia (LACAN, 1957-58/1998, p.
576), pelo sulco que faz vibrar em lalíngua uma forma de gozo (LACAN, 1971/1986).
Assim, com Gentileza, parece-nos haver um trabalho do sujeito no sentido de se fazer
escrever por uma letra que, isolando esse par significante, pode cumprir uma função de
diferenciação, ali onde reinava na psicose uma solução de continuidade indiferenciada.
Nesses pares binários, gentileza-favor e agradecido-obrigado, situa-se a tentativa do
sujeito de fazer uma inscrição no intervalo que não houve, a escrita de um furo que pode
se tornar verdadeiro no nó suplenciado.
4. Passemos à quarta fase, a do consentimento ao gozo do Outro, em que Gentilezao
se mais obrigado a aceitar aquilo que lhe chega do Outro como gozador e consente
gentilmente com esse imperativo. Maleval (1996) nos diz que ao chegar nessa última
fase do delírio, o psicótico não sofrerá mais das inquietações que o atormentavam até o
período precedente. O sujeito não se sentirá mais perseguido, encontrando-se de pleno
acordo com a nova realidade por ele construída. Em Gentileza, o consentimento ao gozo
do Outro nos parece operar através das pregações religiosas que realiza ao longo do país
212
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
e, sobretudo, através da escrita de sua obra.
Como vimos, sua escrita comporta uma caligrafia peculiar, que inaugura um novo uso
da letra por ele forjada num abecedário único que civiliza lalíngua e um novo valor
ao texto-nó que ela escreve, carregado ou reforçado pela dimensão real do divino. Ele
faz redemoinho com os significantes, ordenados pela lógica singular que ele funda com
seus signos, pautas, estruturas gramaticais singularizadas e máximas. A obra, nesse
circuito, opera pela ausência de sentido, possibilitando a fixação do gozo. Gentileza
um destino estético ao excesso de gozo, transformando em obra singular o indizível do
real.
A. Destino social e clínico da escrita gentil do Profeta
O fato de Gentileza ser tomado como o anunciador de um novo tempo e de uma nova
estética para a dimensão citadina e contemporânea da atualidade, conferiu-lhe um lugar
de destaque na cultura, como atestamos. Guelman (1997; 2000), professor do
Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense, em sua dissertação de
mestrado na Filosofia, defendeu a tese de que Gentileza seria um mito moderno, pois,
anunciador de uma crise social a da chamada pós-modernidade. Além disso, ele
operaria, enquanto mito, como anunciador, fundador, de um discurso que aponta, pelo
princípio ético da "gentileza", uma saída aos impasses da economia capitalista e da
fragmentação moral e social pós-moderna, calcada no individualismo, no hedonismo e
no consumismo. Parece-nos que sua apropriação pela cultura (músicas, carnaval,
entrevistas, blogs) constituiu um campo de endereçamento que ampliou as fronteiras de
suportabilidade à diferença que a psicose coloca, reconfigurando as relações com
Gentileza. Ele é tomado como mito, sábio, principalmente em sua família, como
atestado pela entrevista realizada com sua filha. Nela, à suposição da loucura seguiu-se
uma admiração pela obra de Gentileza que permitiu a reordenação dos enlaçamentos
sociofamiliares.
Esta é realmente a novidade teórica a que este estudo de caso nos conduziu: a obra,
operando pelo real como continente ao excesso de gozo que resta da operação da
metáfora delirante, confere-lhe sustentação enquanto letra e favorece a estabilização e o
endereçamento social. Não é o fato de usar ou não a escrita que explica a estabilização
de Gentileza, mas o artifício que ele cria através dela, suportado por ela. Gentileza pode
213
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
mesmo funcionar como paradigma para os casos com os quais nos deparamos no
cotidiano da clínica e dos serviços substitutivos da Saúde Mental.
Assim, José Datrino formula uma solução pela escrita de um nome, “Profeta Gentileza”,
que faz as vezes do Nome-do-Pai, reduzido aqui a sua função de nomeação, a um ponto
de capitonné que fisga e amarra o real. Com Zenoni (2001) podemos dizer que uma
metáfora delirante acontece quando o delírio atinge a função de fazer suplência à
metáfora paterna. Suplência não somente como restabelecimento da relação entre o
significante e o significado, mas antes como invenção de um quarto termo que ata os
três registros, gerando efeitos não apenas no campo do simbólico, mas também nos
campos do real e do imaginário.
Assim, do excesso que restaria intraduzível sob a forma de gozo, Gentileza pregou e
transformou a paisagem urbana com uma obra de grandes proporções para a divulgação
de sua mensagem, os escritos do Viaduto. Ele deu vazão a esse excesso primeiramente
com a peregrinação, depois com a fixação da letra de gozo na caligrafia inventada nos
escritos depositados no Viaduto. observamos um deslocamento do sujeito como
objeto de gozo do Outro para o lugar de autor através da obra. Aprendizado essencial a
ser transposto para o campo do tratamento possível das psicoses.
Seu trabalho se aproxima do de Bispo do Rosário, com a ressalva de que Gentileza
consegue constituir um ponto de capitonagem, sendo a obra o resultado da escrita do
enlaçamento que o localiza. E, se tomamos Joyce como paradigma de uma psicose não
desencadeada graças ao artifício do sinthoma, podemos pensar que Gentileza diz
respeito a uma psicose desencadeada, cujo trabalho delirante se escreveu como
suplência no texto de sua obra, fixando um ponto de amarração que sustenta os três
registros de seu nó. Ele recolhe os restos da operação simbólica da metáfora delirante
em torno do significante gentileza”, conferindo um contorno real ao gozo pela escrita
da obra que remaneja os efeitos imaginários. Em lugar do risco da passagem ao ato no
momento da conclusão de uma metáfora delirante, do qual nos adverte Zenoni (2001), o
Profeta Gentileza encontra no destino estético do real da obra e, ao mesmo tempo, no
endereçamento imaginário, a amarração que o estabilizou na invenção de um quarto
termo em torno do real. Podemos falar em sinthoma, portanto? Em um quarto termo que
vem enodar-se aos três registros, conferindo-lhes, após o desencadeamento, nova
amarração?
214
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
4.2.3 Uma leitura borromeana do caso
‘Algo a compensar’ ou ‘solução a inventar’ seriam, resumidamente, os caminhos para
se pensar o tratamento na psicose, conforme o que Lacan nos ensina, respectivamente
nas décadas de 50 e de 70. No primeiro período de seu ensino, marcado, como vimos,
por uma preocupação estruturalista com o simbólico, é em torno do Nome-do-Pai como
significante que organiza a solução neurótica que o conceito de psicose se desenvolverá.
O sintoma neurótico, enquanto formação do inconsciente, é tomado como metáfora,
estruturada a partir desse significante primordial (NP). A foraclusão do NP implicaria
na estrutura psicótica, enquanto os fenômenos psicóticos seriam articulados ao
significante real, fora da cadeia, e produzidos pela carência do efeito metafórico. Daí a
solução psicótica nesse período, apoiada no modelo neurótico, ser pensada enquanto
compensação pela via da metáfora delirante que faz as vezes da metáfora paterna, na
qual o Nome-do-Pai é um operador simbólico essencial a sua trama.
Ao final de sua transmissão, Lacan se ocupará das diferentes e singulares maneiras de
amarração dos três registros em face da falha estrutural da linguagem [S(%)], que se
impõe para todos. Trata-se aqui de uma solução positiva em qualquer estrutura clínica e
não mais de um déficit da psicose em relação à neurose. A diferença entre as duas
estruturas clínicas consistiria no fato de que o neurótico responderia pela via da função
do Nome-do-Pai, enquanto o psicótico pelo ‘não’ ao Pai.
A conseqüência desse corte epistemológico é que, enquanto para a neurose pode-se
fazer uma teoria restringida ao Édipo para se pensar a solução subjetiva, para a psicose é
preciso verificar caso a caso como o sujeito produz sua solução modulando a relação
entre os três registros. Multiplicam-se, portanto, as possibilidades de estabilização que
funcionarão como direção no tratamento, devendo cada caso ser examinado em sua
singularidade. Assim, como vimos na discussão da proposta de Skriabine (2006),
apoiada na abertura e no convite feito por Miller (2003c), as soluções psicóticas em
Lacan ganham novo estatuto com a formulação topológica do nó borromeu.
É o que podemos verificar no caso do Profeta Gentileza. Pouco a pouco, ele
transformou seu nome próprio forjando uma nomeação a partir do trabalho de escrever a
letra como suporte de dois pares binários significantes: 1) favor-gentileza e 2) obrigado-
agradecido. Acreditamos que aqui uma primeira produção de sentido, concomitante a
215
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
um esboço de amarração do gozo, aconteceu. Da experiência com as palavras, José
Datrino passa a assinar seu nome com a grafia neológica Jozze Agradecido. Consegue
construir um ponto de estofo, de limite à significação delirante de cunho religioso,
conferindo-lhe uma inscrição em torno da qual toda sua existência passará a se
consolidar.
Podemos equivaler essa escrita ao que suplencia o traço unário minimal inscrito em
lalíngua, fazendo função de letra. Onde seu trabalho delirante se escreve como obra,
uma nova forma de gozo se organiza e um novo sujeito aparece da dobra na linguagem
por ele próprio inventada sob a forma de sua caligrafia. E será exatamente da
significação assentada sobre esses pares binários que ele destacará e fundará um nome-
próprio, escrevendo-se “Profeta Gentileza” em seu texto.
O que podemos dizer do que faz nomeação nesse caso? O Profeta pode se fazer um
novo nome exatamente ao identificar um elemento significante isolado, non-sense, que
ganha valor de S1. Sujeito de uma missão e inventor de uma nova ética, o Profeta é
forjado por letras tipográficas e símbolos que ganham uma especificidade em sua escrita
inédita e em sua prosa exata. Talvez possamos dizer que o Profeta nesta invenção
conseguiu circunscrever um gozo, do qual antes era parasitário.
Nesse corte, faz nascer uma nova possibilidade de articulação dos três registros. Se
supomos que, em seu caso, o Imaginário enlaçava o Simbólico e o Real, dependurados
precariamente sem nenhum entrelaçamento entre eles, no momento do
desencadeamento teria havido um corte que os teria liberado uns dos outros.
Figura 35 – Erro do nó do Profeta Gentileza
A identificação imaginária (missão de se casar, trabalhar e constituir família) que o
sustentava se rompe a partir do convite para compor uma sociedade civil no campo dos
negócios. Um novo enlaçamento se inicia quando ele recebe o aviso astral da nova
missão que, dessa vez, vem amparada pela construção significante que lhe segue
216
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
(imaginário e simbólico entrelaçados como erro de seu nó). Além disso, do que resta
real, sem significação, o Profeta faz escrita e invenção (real que é enlaçado com o outro
par I e S pelo quarto elemento corretor, correspondente a sua obra, e que se enlaça
fortalecendo o real), amarrando um gozo pelo nome-missão que a gentileza convoca.
Figura 36 – Suplência do nó do Profeta Gentileza
Como se vê, temos o Imaginário e o Simbólico entrelaçados, e o Real solto entre os
dois. A suplência se escreve como quarto corrigindo o ponto em que o erro figurou.
Não se trata, portanto, de um trabalho que teria se reduzido a uma metáfora delirante,
nem, por outro lado, uma obra que teria produzido uma amarração que impediria um
desencadeamento. desencadeada, a psicose encontrando-se declarada, um corte
tendo desembaraçado todos os registros, o sujeito, então, corta e os remenda num
trabalho de costura de um novo modo de ser.
4.3 O Segundo Caso: A., de Flagelo de Deus à “Sedi di Shacina”, e Daí em Diante...
“O menor ato de criação espontânea é um mundo mais
complexo e revelador que qualquer metafísica.” (A.)
4.3.1 História de vida e história clínica
92
Conhecemos A. quando ele estava com 41 anos, em 2005, quando realizamos a primeira
entrevista com ele. Nascido em dezembro de 1964, é o caçula da família de quatro
irmãos (dois homens e duas mulheres). Estudou até o segundo ano do segundo grau,
quando se deu o desencadeamento de sua psicose. Sempre morou com a mãe, e tem uma
92
Os dados aqui apresentados foram colhidos em entrevistas com A., sua mãe, o médico psiquiatra e a
analista que acompanha o caso entre 2005 e 2006.
217
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
irmã casada morando em terreno contíguo ao de sua casa atualmente. Ele praticamente
não a visita. Existe o projeto de que uma irmã solteira venha morar com ele quando se
aposentar daqui a alguns anos. Sobre a vida familiar pregressa, o pai se separou da mãe
quando ele tinha dez anos, voltou para casa e se separou de novo quando A. estava com
16/17 anos. Em 1992, perdeu o pai, contando à época 28 anos. Todos os irmãos são
vivos. A mãe relata que A. se mostra cada vez menos sociável, encontrando-se numa
situação de pobre contato afetivo. Praticamente não sai de casa mais sozinho, nem no
bairro rural no qual mora, e depende essencialmente dela para tudo. Abaixo seguem
seus dados de vida cronologicamente organizados.
A. cresce num ambiente familiar católico e artístico nos bairros de Encantado e Rio
Comprido na cidade do Rio de Janeiro. Com dez anos, em 1974, vivencia a primeira
separação de seus pais.
Aos 16 anos, inicia um curso de teatro, no qual se destaca, segundo ele, sendo o
preferido do professor dada sua habilidade para as artes cênicas. Na época, ele escreve
dez romances num estilo surrealista, como o Shanura Metamórfica”, Balaostro”,
Monomontanha ou o Shartaque”. Anda de moto e namora, é genial”, segundo ele
próprio. Nesse período ocorre a segunda separação de seus pais.
Em torno de 1983, aos 19 anos, encenava peças de teatro, escrevia e fazia uso abusivo
de droga (maconha). Com dificuldades para precisar os acontecimentos do período, fala
da morte de dois amigos em diferentes acidentes, um de moto e outro ao se defender de
um assalto. É nesse período também que localiza a irrupção de fenômenos elementares
sob a forma de alucinações e fenômenos corporais. Ele se fecha, ficando taciturno e
estranho aos olhos da família que busca auxílio psiquiátrico. São, então, orientados a
levá-lo para uma vida no campo, como forma de exercitar-se na praxiterapia,
modalidade corrente de terapêutica psiquiátrica na época. Ele é enviado para Japuré
(RJ), na fazenda de parentes, e depois para Carangola (RJ). Mas a estratégia não gera os
efeitos esperados pela psiquiatria. Ele não se apazigua.
Pouco depois da irrupção desses fenômenos, é acometido por uma alucinação verbal
que se torna ponto-chave para sua estratégia de estabilização. Trata-se da escuta da
frase: [não] sedi di shacina”. Ela orientará todo seu percurso de trabalho subjetivo
posterior. Após o desencadeamento da psicose, A. escreve mais de 30 pequenos livros
falando sobre a [não] sedi di shacina”. Muda-se, com a mãe, para Santa Tereza no
218
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Rio. Foi ali, segundo ele, que algo em torno de sua cura “se iniciou”.
Desde o desencadeamento sempre esteve submetido a tratamento psiquiátrico particular
e medicamentoso. Jamais foi submetido a uma internação psiquiátrica, apesar da
indicação clínica de internação. Sua mãe sempre se recusou a fazê-lo, preferindo cuidar
de A. em casa, sob seus próprios cuidados. Recebeu o diagnóstico de esquizofrenia.
Em 1984, com 20 anos, muda-se para Betim (MG), cidade na qual reside até hoje. Perde
o pai em 1992, mas continua se comunicando com ele através de uma modalidade
delirante de comunicação transcendental que inventa para conversar com as pessoas que
não estão à sua volta, estejam elas vivas ou mortas.
A partir de 1999, com cerca de 35 anos, começa a utilizar a pintura e a identificá-la
como um instrumento para representar os personagens de seus livros, na tentativa de
ajudar os outros e a si mesmo, e também como forma de canalizar suas energias.
Ele conversa com os personagens que pinta em suas telas, pois eles saem do quadro,
como nos explica. Sua pintura é compulsiva e desliza incessantemente na produção de
novos quadros. Ele já pintou uma centena deles. Sua função, na modalidade de
comunicação transcendental, é a de fazer o fenômeno acontecer. Assim, ela também
opera unindo as pessoas. O fenômeno é a possibilidade de diálogo telepático com
qualquer pessoa que tome contato com sua obra.
Ele em momento algum pára definitivamente de escrever, pintar, delirar, alucinar ou
recorrer ao texto de Artaud
93
e de outros autores de referência que utiliza como citação
em suas conversas. Sua fala é entrecortada a todo o tempo por essas citações, sendo
mesmo difícil precisar o que é dele e o que é do outro.
Seu tratamento, iniciado na década de 80, foi estritamente medicamentoso nos moldes
da psiquiatria clássica. Apesar de indicada a internação, sua mãe a recusou, criando,
com isso, a condição de trabalho subjetivo para A..
O tratamento de fato, o que gerou resultados, ocorreu fora do alcance da psiquiatria.
Deu-se através da pintura e da escrita, verdadeiros objetos de contenção de gozo criados
como estratégia por ele, a partir das insígnias legadas por sua história.
A presença de sua mãe como mediadora e destinatária operou (e opera) como elemento
93
Antonin Artaud (1896-1948), francês, foi poeta, ator, roteirista e diretor de teatro francês. Inventou o
Teatro da Crueldade, no qual não haveria nenhuma distância entre ator e platéia; todos fariam parte do
processo ao mesmo tempo. O seu trabalho ainda inclui ensaios e roteiros de cinema, pintura e literatura,
diversas peças de teatro, inclusive uma ópera, notas e manifestos polêmicos sobre teatro. Esteve internado
em hospitais psiquiátricos por diversos períodos ao longo de sua vida, tecendo duros manifestos também
contra o regime hospitalar.
219
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
central e cria um impasse ao se pensar que, idosa, pode em breve não estar mais
presente na vida de A.. Por outro lado, gera impasses quanto à dificuldade de conquista
de autonomia por parte do filho. Ela tem uma verdadeira adoração por A.. Foi essa
entrada, por vezes, intrusiva, que permitiu um mínimo de estrutura para que ele pudesse,
de um lado, dispor de recursos para inventar suas soluções mas, de outro, se acomodar
nessa relação de apoio.
Em 2003, um acontecimento contingencial marca uma reviravolta no caso. Em uma de
suas crises, é levado pela família para um CERSAM
94
. é recebido por uma
funcionária administrativa, B., com quem cria um vínculo banhado de real. Os olhos
azuis dela operam como objeto que sustenta um enlaçamento do real, a partir do qual
arrefecem suas crises. Decide, então, parar de fumar e de usar drogas. O tratamento
psiquiátrico passa a ser referenciado neste serviço.
O encontro com a sensibilidade clínica de seu psiquiatra, Dr. V. Tavares, orientada pela
psicanálise, favoreceu o respeito ao estilo de solução que A. já começara a construir. Ele
não freqüenta o serviço, sua mãe é quem vai às consultas e cuida de seu cotidiano.
Após o encontro com B. e com seu médico psiquiatra, A. presenteia os dois e o serviço
com seus quadros, deixando de comparecer às consultas que estava presentificado
objetivamente no serviço através de suas telas: ir não é importante, meu quadro
está lá”.
Mas, avisado, Dr. Tavares continua o tratamento recebendo a mãe de A. e indicando
uma psicanalista para realizar visita familiar, visando constituir um espaço analítico
para ele. O trabalho com ela inicia-se em março de 2006.
Dessa forma, ele intervém sobre a qualidade da relação de A. com o tratamento,
alterando sua medicação e sustentando um vínculo possível de trabalho, sem interferir
na produção subjetiva autoconstruída por ele, que garantia sua mínima estabilização.
A. deixa de lado o uso diário da maconha, cria um vínculo com o serviço sustentado à
distância através da mãe como mediadora, mantém o trabalho com a pintura e com a
escrita e, por hora, apresenta menos alucinações.
A analista toma como direção a produção de uma escansão entre A. e seu Outro,
94
O CERSAM é um dispositivo da rede de Saúde Pública e, neste caso, equivale ao CAPS 24 horas,
proposto em portaria pelo Ministério da Saúde. Visa atender às urgências subjetivas e psiquiátricas,
rompendo com o circuito de internação. Para isso, conta com equipe multiprofissional e diversidade de
modalidades de intervenção, tais como consultas, visitas domiciliares, oficinas terapêuticas, passeios e
trabalho com a família.
220
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
operando, a partir da produção delirante, pequenas entradas que visam instalar uma
barra nessa relação, recuperando o que há de singular e próprio nas criações de A.. É um
cálculo acertado que tem gerado como efeito uma nova repartição do gozo e algumas
pontuações no trabalho que deslizava sem cessar. Ela o atende quinzenalmente em sua
residência, com projeto de transferir esse atendimento para o consultório. Veremos
como os diferentes elementos clínicos introduzidos com sutileza nesse contexto têm
permitido novos endereços para localização do gozo, pacificando A..
4.3.2 Um estudo psicanalítico do caso
A. Primeiros recursos antes do desencadeamento
Até a adolescência, não encontramos nenhuma indicação de psicose em A. no relato dos
entrevistados. A relação dele com a arte nasce aos 16 anos, quando inicia um curso de
teatro. Nesse período, dos 16 aos 18, 19 anos, escreve dez livros com estórias no estilo
do realismo fantástico. Ele também fazia uso de drogas, como a maconha, que eram
utilizadas com os amigos, com quem depois formaria o grupo dos sete cavaleiros do
apocalipse que, delirantemente, ele lidera até hoje. Talvez a identificação com os
amigos tenha sido o elemento mais importante a sustentá-lo no eixo imaginário a-a’ até
o desencadeamento. A identificação com os irmãos artistas parece ser outro elemento de
estabilização, mas decididamente é secundário nesse processo.
A escrita e o teatro aparentam ter sido também recursos imprescindíveis nesse período,
configurando-se em via de escoamento pulsional e, por isso mesmo, de contenção de
um ato que comportasse maior risco. Podemos mesmo hipotetizar que, no período dos
16 aos 19 anos, esses recursos funcionaram paralelamente à identificação imaginária,
como via de contenção do desencadeamento. O uso da droga, já presente nesse período,
sempre se associou ao sofrimento, ao que intervinha sobre o corpo e dificultava a
relação com este.
B. Desencadeamento e sua relação lógica com uma possível suplência
A primeira “crise” de A. acontece, segundo seu relato e o da mãe, em torno dos 19 anos.
A psicanalista que o atende lembra que, ainda aos 16 anos, ele um clarão na sala de
aula que talvez fosse um prenúncio do momento do desencadeamento. Para A., tratava-
se da fagulha essencial”, que aparece associada ao encontro com o Outro sexo, na
221
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
medida em que esse feixe luminoso surge próximo à jovem de quem gostava. Ele, de
fato, o tem um encontro decisivo com nenhuma mulher, o que pode ter favorecido a
estabilização precária que organizou nessa fase, apesar da ocorrência aparente de alguns
fenômenos elementares.
“Eu fiz o primeiro científico três vezes. na terceira vez que eu passei. E quando eu fazia
o segundo científico, antes de eu repetir, eu chegava na prova e começava a escrever
poesia. uma vez eu tava fazendo uma prova lá, eu escrevi assim: Isso não adianta e
papapapa, isso não adianta e papapapa’. E o professor vem ditando: ‘Ô, A., isso não
adianta’. E como se eu tivesse adivinhado o pensamento que ele ia pensar, um pequeno
fenomenozinho ali” (Relato de A. em entrevista).
O acontecimento que caracteriza o desencadeamento em si ele o nomeia como
intoxicação e, às vezes, enfeitiçamento”. É dessa maneira que se refere à notícia da
morte de um dos seis amigos.
“Eu tinha recebido os primeiros micróbios de Deus pela macumba, quando recebi a
notícia do acidente deles [de moto, com Cezinha que morreu e Germano que estava na
garupa]. Foi um enfeitiçamento global [enfeitiçamento aqui tem a mesma significação que
intoxicação na primeira entrevista], como no caso de Baudelaire, Edgar Allan Poe,
Nietzsche e de Van Gogh” (Relato de A. em entrevista).
O enfeitiçamento relaciona-se às mortes de pessoas importantes e ganha uma conotação
fatalista. Nessa estratégia megalômana, os amigos se igualam a heróis que morrem para
salvar o mundo.
“O camarada, quando ele é um guerreiro, né, ‘Asa Cruz’... São como anjos. São superiores
ao ‘Asa Cruz’. o os mais elevados. São os mais importantes que existe [sic] em matéria
de cavalheiro, né? Aí, pra defender o importante eles morrem. Sempre que um importante
em perigo, eles dão a vida. Eles pedem ao céu que seja devolvida aquela importância e
não pode deixar de defender. Tem que salvar o importante. Então eles morreram e salvaram
o importante. [...] Morreram, mas salvaram o importante” (Relato de A. em entrevista).
O irredutível da experiência da morte não encontrou um artifício que fizesse frente ao
que não se pode nomear, convocando uma resposta onde não havia uma amarração feita
entre os registros que pudesse sustentá-la. O que quer que a houvesse sustentado até
então cai. O vácuo de significação parece fazer surgir de lalíngua o inusitado que a
ultrapassa.
A. morava ao lado de um centro de candomblé. Sua mãe conta que ele ficava indignado
com a morte de animais em sacrifício e gritava em revolta: seus covardes, ‘tão
matando animaizinhos!”. Após o desencadeamento, ficou taciturno e embotado. Diz a
mãe que dava a impressão de que ele tinha saído dali, do corpo dele. Vejam o relato do
episódio que o próprio A. demarca como corte:
222
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
“[Eu estava com] dezoito, dezenove, dezenove anos. E nesses centros [de candomblé] é o
seguinte: a gente fumava maconha e ficava ali. Eu ia de moto pra casa assistir Dom Artaud
[sic] ou ia pra piscina nadar. Isso aí. É... fumava um e saía de moto curtindo, né? Uma coisa
assim. Aí, nesse centro, eu falava, eu falei uma vez assim: ‘cabrito, olha teu corpo’. Aí
ficou aquela coisa, eu falei a voz do Artaud no Teatro de Sangue, né? Aí depois eu botei um
cobertor azul assim no chão, deitei do lado da minha moto assim, né? eu falei assim:
‘mostra teto’. uma voz de dentro, uma voz da macumba, falou assim: ‘Ah! É o
bicheiro!’ Uma coisa assim, né? Um apelido que botaram ali, naqueles micróbios ali. Isso
que você chama de micróbios é Deus, foi isso que aconteceu, ali entendeu?” (Relato de A.
em entrevista).
Tal qual discutido por Lacan em relação a uma apresentação de paciente
95
, a alucinação
retorna oferecendo um atributo que designa o sujeito, onde a hiância da indeterminação
significante se encontrava, onde um sentido não era possível ser produzido. É o
bicheiro” é a palavra rejeitada no Outro, que é produzida no lugar do sujeito.
“É assim que o discurso vem a realizar sua intenção de rejeição na alucinação. No lugar em
que o objeto indizível é rechaçado no real, uma palavra faz-se ouvir, porque, vinda no lugar
daquilo que não tem nome, ela não pode acompanhar a intenção do sujeito sem dele se
desligar pelo travessão da réplica” (LACAN, 1957-58/1998, p. 541).
Depois deste episódio, foi a intoxicação de A.
“Isso que chama de micróbio, bicheira, que falou: ‘ah, bicheira!’. Aquele nome, aquela
palavra que resume ou une todos aqueles processos espirituais de todas as coisas, é o
micróbio. E isso que você chama de micróbios é Deus [inaudível]. E dali, então, foi que
depois de tudo é que veio a intoxicação, a intoxicação...” (Relato de A. em entrevista).
Intoxicação, bicheira, micróbios, Deus, o deslize significante não faz cadeia, cade-nó,
mas enxame. São muitas vezes significantes do Outro que, não sendo subjetivados e
apropriados, colam-se como etiquetas de identificação sobre A. no lugar daquilo que
não tem nome. Revelam o que não se ata entre os três registros, a saber, o contorno que
o Simbólico realizaria no recobrimento do Real. Ali resvala para os fenômenos
imaginários do corpo o que a linguagem não sustenta no campo simbólico. Podemos
imaginar a rodela do Real, na qual Lacan localiza a vida, avançando sobre o campo do
simbólico, solto, sem um grampo. Esse prolongamento é a ex-sistência, em relação ao
95
Trata-se de uma paciente que tem uma alucinação verbal “porca”, à qual responde com “venho do
salsicheiro”. Trata-se de um delírio a dois entre mãe e filha, no qual esta produz a significação das
injúrias que ambas estariam sofrendo de seus vizinhos. Laurent (1995, p. 121-126) aponta a importância
decisiva da noção de shifter em Jakobson na releitura de Lacan deste caso. Para Jakobson, o shifter é o
único elemento do código que remete obrigatoriamente à mensagem. Colocando em jogo esse novo
operador, Lacan inclui o Outro no circuito a-a’, reintroduzindo-o como o próprio lugar do código, onde
um elemento que permite incluir o objeto visado na mensagem. Dessa maneira, primeiro a paciente
teria alucinado a palavra “porca” e, então, respondido venho do salsicheiro”. Como no caso de A., ele
provavelmente escutou primeiro a alucinação verbal e somente depois teria elaborado a frase mostra
teto”. Ao que surge como enigma, o sujeito tenta conferir uma significação, marcada pela certeza
psicótica.
223
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
imaginário, que Lacan chama de falo (Ф)
96
.
Se tomamos como fato de estrutura que a linguagem se articula sobre lalíngua, que
um caos originário diante do qual o sujeito se posiciona na estrutura, parece-nos que a
psicose evidencia a determinação e o transbordamento dessa dimensão caótica sobre a
linguagem através dos fenômenos elementares. Se na neurose a inscrição do sujeito faz
escrita de letra da incidência do significante sobre o gozo, organizando um campo
semântico que passa a constituir o conjunto das identificações referenciais do sujeito, na
psicose nos deparamos com outra solução.
É certo que a linguagem não conta desse excesso chamado, de uma maneira
preliminar, em Freud de pulsão e em Lacan de gozo –, veiculado por lalíngua. Mas, na
neurose, a linguagem enquanto estrutura funciona como elucubração de um saber
possível sobre essa verdade inacessível, causal. E na psicose? Na psicose, nos vemos
face a face com o horror desse caos. Os fenômenos elementares evidenciam, de outra
forma, o mesmo fracasso da linguagem como arranjo débil sobre lalíngua. O que
transborda nesses fenômenos fala do que não se pode domesticar pela linguagem no
humano, aponta o real como o impossível, ao mesmo tempo que indica que qualquer
ensaio de significação fracassará no mesmo ponto em que a linguagem se estruturará
com débil. É que o final do ensino de Lacan inaugura algo de novo. É da insistência
daquilo que Freud dizia aparecer como irredutível no final de uma análise que Lacan,
então, nos convidará a fazer dele um uso, a savoir-y-faire em relação a qualquer
estrutura clínica.
Nesse sentido, apostar na solução assintótica da metáfora delirante na psicose nos
aproxima da crença de que a linguagem pode produzir um sentido derradeiro sobre a
Coisa, uma aposta no que fracassa também na solução neurótica. Quando Lacan
introduz toda a gama de novos conceitos em seu ensino na década de 70, parece estar
nos advertindo desse risco clínico e nos convidando a repensar a direção de um
tratamento. Reverter o circuito pulsional e aprender a fazer do sintoma um uso implica
em pensar as diferentes formas de amarração que o sujeito pode inventar na articulação
dos três registros, Real, Simbólico e Imaginário. Nesse sentido, a invenção de uma
suplência é para todos e a debilidade do ‘normal’ se torna evidente.
“Oh! O meu problema foi iniciado num centro de candomblé. Um espírito de ‘prostigação’
96
Cf. Fig. 05, lembrando que, neste caso, o não se ata borromeanamente, havendo uma disjunção,
como veremos, entre os registros.
224
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
[sic] mesmo. Um mau espírito... ‘prostigação’ [sic] e aí, me atingiu... mas me atingiu
justamente pra... Há males que vêm pro bem, uma coisa assim, né? Aí eu... dessa macumba,
foi feito um trabalho pra mim, depois eu... [...] fiquei perdido um tempão, perdido. Mas
depois é que eu vi que... como foi importante acontecer isso porque, senão, como é que ia
ser? Eu ia sair... ia ter a vida comum? Eu ia lá pro meio da Rede Globo, ser ator de novela?
Que troço chato, né?” (Relato de A. em entrevista).
C. O começo de tudo: o início do trabalho de estabilização
Como vimos, as alucinações começaram na adolescência e a e de A. foi orientada a
levá-lo para o interior a fim de se exercitar um pouco através da praxiterapia no campo.
Eu tava no Japuré, isolado daquele mundo, porque eu tava com medo dos automóveis
e a roda que passava nas cabeças das crianças, aquela estorinha (Relato de A. em
entrevista). Retorna no real sob a forma de alucinação a experiência não simbolizada.
Aquilo que do acidente de moto resta o atormenta sob a forma de visões trágicas. É
quando, então, ele tem uma experiência enigmática. Numa fazenda de seu tio em
Carangola (RJ), ele ouviu a frase que passou a organizar toda a sua cura.
“E foi que surgiu essa frase. Eu tava chegando no portão com o tio Eusino, assim, aí:
não sedi di shacina’, uma coisa assim. [Entrevistador: Não sede?] É não seja de sha... uma
coisa assim. A mesma coisa não sede é não matarás, a estória dos bons, dos humildes,?
Mas habitualmente ela usa mais sedi di shacina pra [inaudível], pro Artaud. [...] E essa
frase, então, é que iniciou a minha cura toda. Exatamente, todo um poder que havia ali, né?
A preocupação de Jesus com Deus, de Artaud com Gênese, tudo isso” (Relato de A. em
entrevista).
Se ela tem inicialmente o estatuto de um fenômeno elementar, imediatamente ela
assume para A. a função de propulsora, de conectora, ainda que não de enlaçadora,
como veremos. A expressão sedi di shacinalança o sujeito ao trabalho delirante, mas
também aos ensaios de solução que engendra através da escrita e da pintura. “Sedi di
shacina estabelece o necessário para o comprimento [sic] da vida. E pede, no plano
onde tudo é bondade, que o equilíbrio seja restabelecido”, escreve A. em 2006. O
tratamento do real nasce da contingência dessa frase que ganha valor de enigma, de algo
que parece fazer cifra. O trabalho inicial sobre a expressão acontece tão logo ela se
apresenta para A..
“É, mas surgiu foi como um não. Falou: ‘não seja di shacina’. Aí, que eu lutava justamente
pela sede, contra a sedi di shacina’, né? E hoje a sedi di shacina’ minha é a favor dos que
ganham pão honestamente, dos pobres, dos oprimidos, de todos eles. Não é sedi di
shacina’ soberbo. [...] Aí eu falei “não sedi di shacina” porque, na mesma hora que surgiu a
sedi di shacina’, eu falei não. Pintou aquele não ali. Foi uma coisa assim, sabe? Eu não
aceitei sedi di shacina’, aquela coisa assim. Foi não sedi di shacina como aquele verbo
assim: não matar, não roubar, ? Amar a Deus sobre... aqueles mandamentos, né? Então
ela surgiu primeiramente como um mandamento de Deus, do que não matar, né?” (Relato
de A. em entrevista).
225
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Ao imperativo “matarás”, “farás uma chacina”, que veicula uma forma de gozo do
Outro sobre o sujeito-objeto, ele interpõe um não. Se Freud nos adverte que o símbolo
da negativa é condição da estruturação da linguagem, sendo precedido por uma
afirmação primordial (Bejahung) e por uma expulsão (Ausstossung) que instala um fora,
A. nos testemunha, com o “não” que precisou interpor à palavra de ordem a ele imposta,
uma inscrição que não se efetuou. Se A. fala e, portanto, participa de alguma maneira do
dispositivo da linguagem, fato é que ele faz um uso singular das palavras. Ele também é
falado no ponto em que uma letra não escreveu com o significante a condição do
inconsciente, do recalque. Em outros termos, a rejeição, ou foraclusão, assenta-se sobre
uma negação primordial que não se efetuou, deixando o sujeito entregue ao real e ao
uso que pode dele extrair
97
. o ponto a ser reparado no nó. Não estamos, portanto,
diante de um desabonado do inconsciente mas, antes, diante de um sujeito que está no
avesso do inconsciente, recebendo de fora (ou do real) seus significantes.
A riqueza desse caso consiste exatamente no trabalho que esse sujeito faz com as
palavras e com as imagens que tem à sua disposição, tanto no escrito quanto na pintura.
Na busca de constituir um corpo, seu esforço incessante o conduziu a criar obras
belíssimas
98
, nomeadas a partir de seus livros escritos. Além disso, no encontro com a
analista algumas escansões são forjadas no seu texto infinito, bordando pontos para
contenção de um gozo que entorna pelo corpo. Ele inicia uma série, relacionando os
livros que escreveu a partir do número 57. Número que inicia a série na qual o zero não
se escreveu sobre o nada que o precedia
99
. Mas nos parece que algo ainda não se
escreve mesmo assim. Será que podemos dizer que todo seu trabalho é uma tentativa no
sentido desse ciframento, desse enodamento? Decifrar cifrando, como diz Lacan?
Com o trabalho delirante, aliado à pintura, ele evita, podemos hipotetizar, uma
passagem ao ato, que cede lugar à escrita dedicada a cernir esse significante que retorna
97
O desejo geral de negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve provavelmente
ser encarado como sinal de uma desfusão [desamalgamar] de pulsões efetuada através de uma retirada
[subtração] dos componentes libidinais” (FREUD, 1925/1976, p. 300).
98
Cf. fotos no Anexo V.
99
Agora seus pequenos cadernos são escritos, entregues à analista, que os xeroca e os devolve para que
ele os assine. A idéia é a de que ele um nome ao que escreve, introduzindo um ponto de parada onde
antes havia puro deslize. Ele ia escrevendo e dando seus livros sem cessar. Agora ela tenta introduzir um
ponto de basta. O efeito, interessante, é o início da escrita de cartas, com destinatário. Ele não escreve
mais sob a submissão das idéias de um Outro, dirigindo seu produto para um Outro anônimo. A
numeração dos cadernos segue a mesma lógica. Hoje cada caderno recebe um nome e um número. Ele
marca a incerteza, mas não fica perdido nela.
226
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
no real sem significação. A grafia da expressão sedi di shacina” é por ele estabelecida
de uma maneira singular, incluindo retalhos da escrita indiana de autores que cita
para bordar possíveis pontos de estofo. A expressão parece-nos, assim, organizar uma
direção subjetiva em face do caos que se instalou em sua vida com o desencadeamento.
O trabalho consecutivo a ela testemunha o esforço delirante em se fazer um corpo capaz
de acolher o gozo que o transborda, amparado pela escrita, pela pintura e pelo teatro.
Ele trabalha incessantemente sobre essa frase, tendo escrito mais de sessenta livros,
pintado algo em torno de 100 quadros e articulado toda essa produção ao teatro da
crueldade, de Antonin Artaud. Se, aparentemente, parece haver uma deslizante busca de
sentido para a expressão, é possível depreender de seu esforço a tentativa de cifrar e
estacionar essa correnteza de gozo, ainda que ele se mantenha submerso à lógica de seus
Outros figuras de seu folclore pessoal de quem extrai as máximas sobre as quais
sustenta seus passos.
Ao lado de Artaud, Sevananda
100
e Krishnamurti
101
são autores cujas idéias dão corpo ao
discurso de A., muitas vezes pura citação deles. É de um misto de referências e citações
que A. se serve para escrever seu texto. Entretanto, essas intervenções do Outro não têm
o mesmo valor das epifanias no texto de Joyce.
“Eis o que ele queria fazer, acrescenta, era registrar essas cenas, essas pequenas comédias
realistas que dizem tanto. Temos, então, uma espécie de desdobramento da experiência
(digamos para simplificar um lado realista e um lado de alguma forma poético) e uma
espécie de liquidação, de censura” (AUBERT, 1976/2005, p. 181).
Joyce interpõe seu texto literal na literatura que escreve. Por seu turno, A. é escrito pelo
texto do Outro, cujas citações colam-se em seu discurso antes como semblante que
como fragmento de real. A. parece permanecer colado no Outro, feito um apêndice, não
conseguindo nele escrever seu lugar. Em outros termos, Simbólico e Imaginário
100
Sri Sevananda, o Conde francês Leo de Mascheville, é autor do livro O mestre Philippe de Lyon, pai
dos pobres. Morou na Argentina, no Uruguai e no Brasil, tornando-se instrutor espiritual desde 1924.
Ainda em Montevidéu, fundou a "Associação Mística Ocidental", sob a direção do Mestre Philippe,
escola que se tornou um centro de União de Correntes Espirituais: Essênios, Suddha Dharma Mandalam,
Rito Egípcio de Osíres, Ramakrishna Ashrama, Kriya Yoga, Yoga Ashrama, Comunidade Sufi,
Satyauraha Ashrama, Ordem Martinista, Maitreya Mahasangah, Ordem Cabalística Rosae Crucis,
Departamento do Verbo, Zen Boddhi Dharma, e Igreja Expectante, com contatos com os representantes
de quase todas essas correntes. Muda-se posteriormente para o Brasil, onde funda uma nova Ordem e
morre. Mais informações sobre sua vida no site: <http://igreja_expectante.tripod.com/sevananda.htm>
101
Jiddu Krishnamurti, nascido em 1895, na Índia, talhado para se tornar o ' Instrutor do Mundo ', segundo
os teosofistas, tornou-se chefe da Ordem Internacional da Estrela do Oriente em 1911, que abandonou em
1925 para se tornar um mestre autônomo. Escreveu mais de 60 livros, deu palestras por todo o mundo,
pregando o autoconhecimento, mas recusou a posição de guia espiritual. Mais informações sobre ele no
site: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jiddu_Krishnamurti>.
227
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
ensaiam coser do Real algumas nesgas, mas essa costura não se faz com facilidade.
Aqui temos a impressão de que a ex-sistência do inconsciente em relação à rodela do
Real, avanço do Simbólico sobre o Imaginário, não se escreve.
Assim, como vimos:
(a) O delírio se apresentará, no caso, como ensaio de deciframento, como esforço de
réplica que o sujeito dará à produção destas significações novas. Para Lacan (1957-
58/1998), o delírio não é a explicação de uma experiência primitiva. Ele possui
exatamente a mesma estrutura dos fenômenos elementares que, por seu turno,
teriam a estrutura do delírio.
(b) Além disso, encontrar um sentido implica em saber qual é o nó, e de cosê-lo
corretamente graças a um artifício (Lacan, 1975-76/2005, p. 73), na medida em
que a clínica passa a se fazer de cortes e religamentos.
Se o sinthoma pode ser concebido no registro da escrita como a forma com a qual cada
um goza do inconsciente na medida em que o inconsciente o determina, podemos dizer
que Joyce conseguiu construir a letra com a ajuda da letra até que ela pôde abolir o
símbolo, deslocado de qualquer significação. Aí, nesse ponto, pôde prescindir do S1, do
Nome-do-Pai estabelecido, e inventar uma suplência a seu modo e com seus recursos.
Construção que deve mais à escrita e à letra que à fala, construção que se esforça em ser
para si mesma sua própria referência.
Gentileza realiza, por seu turno, uma outra forma de suplência. Ele se forja na caligrafia
que inventa, provocando sulcos e rasuras no texto de gozo que se faz mensagem
endereçada ao Outro. O Real é enlaçado pelo quarto elemento ao par Imaginário-
Simbólico. Assim, há um reforço no Real, que corresponde à sua obra, corrigindo o erro
do par Imaginário-Simbólico, que se encontra entrelaçado, eo superposto, amarrando
um gozo pela missão que a gentileza convoca ao Profeta.
E com A., o que se passa? Se sua escrita remete a um possível entrelaçamento entre
Simbólico e Imaginário, gerando efeitos sobre o Real, desemaranhado da letra que não o
captura fazendo escrita, por outro lado, a pregnância de fenômenos corporais,
imaginários, parece indicar, ao contrário, um erro, um entrelaçamento entre simbólico e
real. Essa multiplicidade de perspectivas nos conduz à sensação de que Real, Simbólico
e Imaginário se apresentam para A. em continuidade, como se fossem traçados da
mesma substância num de trevo (Fig. 15), sem escansões ou cortes. A ausência de
228
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
descontinuidade neste caso ainda nos sugere uma topologia mais radical, talvez mesmo
um trivial ou falso de trevo (Fig. 15), no qual os três registros formariam um
círculo sem cortes ou interrupções nos quais um registro avançaria até tocar o outro na
composição do nó. Busquemos mais elementos...
D. Sobre a “sedi di shacina”
A. não esconde o uso que faz da escrita.
“Escrevo! Eu gosto muito de escrever. Escrevo bastante. Foi eu que criei essa frase, essa
frase resultante de tudo. Minha luta, minha arte, no teatro. É sedi di shacina que é a
frase que devolveu o poder, muito poder, muitas coisas assim, sabe como é? É a solução de
continuidade que antes não havia, não havia, né? Agora existe a solução” (Relato de A. em
entrevista).
A idéia da sedi di shacina parece tentar criar um marco, um ponto zero, conceitual,
início de laço. Com essa expressão, A. ensaia diferentes enlaçamentos. uma
atividade delirante que o ocupa bastante e que vem acompanhada muitas vezes de
alucinações. Essa atividade corre paralela a sua criação escrita e pictórica. Nem uma,
nem outra, porém, ganham exatamente uma direção. É um autotratamento disperso,
desorientado. Estamos falando de um sujeito que trabalha incessantemente e que possui
recursos ricos, entretanto, não parece fazer deles artifício de escrita. Conseguiu
contornar o encontro com o real do desencadeamento, talvez mesmo uma passagem ao
ato grave, e se mantém num liame tênue entre os três registros. A expressão sedi di
shacina parece contornar momentos de crise e no seu autotratamento tem sido um
recurso importante.
“Vem o A., que é eu, que dirige os assuntos da civilização no mundo, sabe como é? Como
o rei do mundo, né? O que que eu faço? que é me dado uma importância dessa, eu faço
jejum, eu faço oração e conquisto alguns poderes ali. No jejum, sabe? Quando não tem
mais nada, eu no jejum, penso a sedi di shacina. Ela vem livremente porque o
organismo, né? Não, o... limpo, né, não não... Como estava em jejum, a frase pode
adquirir forças novas, como se fosse um santo, sabe como é?” (Relato de A. em entrevista).
Ele recorre à expressão para fazer uma ligação artificial, quando o recurso delirante,
simbólico, falha em escrever o Real. Esta expressão encontra um ponto de amarração no
teatro. Vejamos. No momento do desencadeamento, A. cursava teatro e ensaiava uma
peça de Artaud. A força dessa experiência reverberou no nível de lalíngua, permitindo
uma captura que, por homofonia, fez do Artaud [artô] ator, sustentando uma posição
ancorada num nível elementar do gozo (e, portanto, capaz de outros desdobramentos e
229
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
soluções).
“Mas, como fui ator, Artaud fica importante para mim. O teatro é como se fosse a gênese, a
criação, ali que consegui preencher as línguas vazias, o sedi di shacina’. Quando grava
com força no seu cérebro, essa lei vivifica uma emoção arquivada, fica viva” (Relato de A.
em entrevista).
Lalíngua vivifica o corpo de gozo, confere à linguagem sua matéria-prima. Mas da
tentativa de escrever a letra, A. parece resvalar para o semblante, para o que faz
miragem fálica com o ‘ator’. Nada é mais distinto do vazio escavado pela escritura do
que o semblante (LACAN, 1971/2003, p. 24-25). Parece ser de outro lugar do discurso
que o significante captura a letra no seu caso. É aí, talvez, que a solução de A. desliza
vazia de significação para significação como semblante, sustentado pelas máximas que
retira de seu Outro-Artaud.
O falo, como corolário do Nome-do-Pai na década de 50 e como ex-sistência na década
de 70, apresenta-se em seus escritos como pau de plástico”, inconsistente. “SEDI DI
SHACINA CUJO O APOIO PODE SER UM PAU DE PLÁSTICO, ASINALA O
MARAVILHOSO MÉDICO QUE SALVA VIDAS.. DIS. PHA, PHITA, ES. ET,
KISROM. EL. COMO POETA.” Não há o pai ou um pai da exceção que amarre os três
registros. uma versão de pai a ser inventada. Será preciso fundar, em torno do sedi
di shacina”, uma nova ordem? A saída pelo semblante parece não se sustentar de sua
consistência. A sedi di shacina se ampara na inconsistência de um pau de plástico.
O significante fálico o opera sua função de fundar num fora-corpo, pelo significante,
uma via de gozo. Ele não cria a condição do gozo fálico. O pênis real, dessa maneira,
não adquire sua função simbólica, restando como pedaço de corpo.
Aí podemos verificar significante e gozo disjuntos num corpo que sofre os efeitos dessa
maneira singular de apresentação em lalíngua. Parece não haver uma letra que fixe uma
forma de gozo, ou seja, que suporte o significante, que entrelace o gozo ao corpo. A
letra enquanto traço sobre o qual repousa o significante, nesse caso, não se escreve
como suplência. O esforço do sujeito vaga nos destroços simbólicos originários que
aqui aparecem como pedaços de real que, não sendo contornados, fisgados, amarrados,
retornam enquanto alucinação do verbo sobre o corpo.
A articulação da frase com o teatro possui outra vertente. Em uma das entrevistas, ao
citar Artaud, A. faz o que seria um ato falho e localiza o sedi di shacina no lugar da
criação espontânea do teatro da crueldade, fazendo equivaler a criação de uma nova
230
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
estética teatral em Artaud com a criação do gozo-sentido extraído dessa expressão. O
menor átomo de ‘sedi di shacina’ (risos) criação espontânea que eu queria falar
(risos) é um mundo mais complexo e revelador do que qualquer metafísica. Destruir
com aplicação e maldade onde se impede o livre exercício do pensamento (Relato de
A. em entrevista).
A. explica que a expressão sedi di shacina deve ser usada livremente, fora de toda
capacidade conhecida do pensamento. Segundo ele, a sedi di shacina é o instrumento
que Artaud nunca conseguiu fabricar. Artaud assim diz: trinta anos que escrevo e
ainda não encontrei o instrumento que nunca deixei de forjar”. A. o encontrou, é o
sedi di shacina”. Ele, A., cumpre para Artaud a mesma função que Philippe Lyon, o
primeiro santo da Igreja Católica, segundo ele, cumpriu para Cristo: ser seu instrumento
na missão de propagar os princípios e a católica. A. o faria em relação ao teatro da
crueldade, materializando o instrumento impossível do gozo de Deus-Artaud. É, no
final das contas, ele mesmo quem se oferece como objeto desse gozo impossível.
Importante destacar aí a prevalência do semblante sobre o significante para tentar dar
corpo à letra que não se escreve como nó. A. se oferece como instrumento de Artaud e
seu teatro, alienando-se em seu texto, no qual é completamente absorvido. Talvez, por
isso, sua escrita não faça letra como artifício, não funcione como suporte ao
significante. É o significante real e impositivo advindo do campo do Outro que parece
falar nele.
“E a minha mensagem é o seguinte: eu conheço o camarada [Artaud]. Envia pra ele
atenção, que ele realmente proporciona algo corpóreo a quem assiste o teatro do
[inaudível]. Isso me faz me sentir muito bem porque um rei precisa de outro. Praticamente,
se não fosse o teatro da crueldade, como é que existia a sedi di shacina’? Não ia existir,
né? E o cara que criou o teatro da crueldade lá, criando teatro da crueldade” (Relato de
A. em entrevista).
Essa alienação que o delírio veicula aparece também na invenção do departamento
executivo da vontade do pai, um nível superior no qual se encontram os grandes
homens, como Artaud, Van Gogh, Glauber Rocha, Philippe de Lyon e seu próprio pai,
falecido. A. se comunica com todos. Ele associa a vontade executiva à sedi di
shacina”, enquanto vontade do pai. É o máximo da criação espontânea, do milagre
instantâneo do pai. Foi o departamento executivo que criou a sedi di shacina”. É a
criação máxima do milagre do pai. Ela veio depois de crucificado Jesus, mas foi por
isso que ele foi crucificado”.
231
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
uma versão do pai que a sedi di shacina ensaia escrever como reguladora de gozo
num nó. Ela, porém, não parece encontrar um ponto de amarração estável. Ao mesmo
tempo em que o departamento executivo teria forjado a expressão sedi di shacina,
A. se diz autor dessa criação espontânea”, como rei que é... Ele oscila entre posições,
sem a certeza paranóica de um eu imaginário, narcisicamente investido. Por
conseqüência, o gozo resvala para o corpo, superfície que não o contém pois não
encontra seus pontos de limite para se fazer continente e buraco (zonas erógenas).
“A sedi di shacina’, por exemplo, a frase que revolucionou a vida, revolucionou, né? O
verbo executivo da vontade do pai, ? O departamento executivo. [...] O executivo... É o
Departamento da vontade do pai. Pai, Deus, né? essa sedi de shacina’. [...] Por
exemplo, o Philippe Lyon era um objeto de reto do Departamento do... e o... Ele uma vez
furou a mandioca sem me tocar, quer dizer... E tinha o verbo. E o máximo que eu pude
fazer sobre o departamento executivo foi criar essa frase que é sedi de shacina’. Quer
dizer mata vaca, mata porco, mata franguinho pra comer. Quer dizer, isso tudo é a sedi di
shacina em ação. Então, isso é que é, a coisa pode se renovar através dessa frase, sabe
como é que é?” (Relato de A. em entrevista).
Pai e falo aparecem aqui disjuntos e negativizados em relação às suas funções quanto à
castração e à nomeação também. Ao pai mítico, capaz de fustigar e abusar do próprio
filho, A. interpõe o sedi di shacina”; foi o máximo que ele pôde fazer em relação ao
pai. Seria essa sua père-version?
E. Gozo e corpo
Seu corpo, na ausência da significação fálica, da extração que lhe conferiria uma
unidade narcísica e simbólica, encontra-se à mercê do gozo do Outro.
“Ele dizia que tava com uma dor no peito, uma dor no peito. Até levei ele, na ocasião, ao
cardiologista e tinha nada. diz o psiquiatra que é psicológico. Eu não sei. Mas ele sente
uma dor, ele sente mesmo. ele fala que Jesus fincando a cruz dentro do peito dele,
quer dizer que é uma dor forte, né? Que seja psicológico, mas é uma dor. Jesus fincando
a cruz nele, ali no peito dele, que ele não gosta do pai, que ele quer acabar com o pai, que é
ele. Mas tem muito tempo que ele não faz isso” (Relato da mãe de A. em entrevista).
O sobrenome paterno de A. é Cruz, A. Cruz. Sem uma significação orientada pelo
apagamento do traço unário ou pela escrita da letra, enquanto condição para a
identificação que funda o nome próprio, este aparece como pedaço real de nome,
retornando como gozo do corpo atormentado. O que não faz nó, articulando real,
simbólico e imaginário, distribuindo uma maneira de gozar, retorna como pedaço de
carne molestada, como cruz que se afunda na carne do corpo. Ali onde sua articulação
não se estabelece, nasce todo o sofrimento do corpo, potencializado pelo uso da droga.
232
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
O teatro, por seu turno, auxilia na sustentação desse corpo não escrito. “O teatro é onde
a gente se entrega com alegria, cultivando no corpo sua emoção. [...] Primeiro, a
pessoa tem idéia que é a droga, o coração, espantosa explosão de peste, mas o teatro é
que organiza. O cérebro é o pulmão é que são atingidos pela droga, né? O coração fica
intenso, barulhento, e a pessoa nem se percebe, o corpo já ficou cheio de bulbões”. Os
bulbões na terra equivalem a vulcões no corpo humano. Segundo ele, sua experiência
após o desencadeamento foi a de um inferno sem volta, um mergulho na dor, à medida
que foi se aprofundando, foi aumentando. Depois passou. Depois da intoxicação, do
encantamento, não tinha mais vida orgânica, só psíquica.
Ele relata uma crise muito intensa com seu ápice em 2003, período da ida ao CERSAM,
na qual houve uma dor muito forte. Depois dela e depois do encontro com B., a
funcionária, tudo ficou melhor. Ele realiza o que Artaud escreve no sentido de que é
preciso viver a dor mais intensa para que se possa encontrar uma saída. Artaud realizou
esse sofrimento junto aos índios Tutuguri, tomando peiote entre eles.
“Um teatro verdadeiro ele transtorna o repouso dos sentidos, libera o inconsciente
reprimido, sabe? Leva uma espécie de revolta virtual, proporciona a quem vem assistir e à
comunidade que permite, proporciona alguma coisa, assim, uma atitude heróica e difícil.
Sabe como é que é? E é preciso acabar com muita facilidade, né? A gente tem que fazer as
coisas difíceis, coisa fácil demais não...” (Relato de A. em entrevista).
O teatro corpo ao que aparece no real, sem representação, sem inscrição. A. parece
substantivar o gozo também no ato da interpretação teatral, assim como Artaud o fazia
no ato de criação.
Mas foi o encontro com os olhos azuis da funcionária B. do serviço público no qual
começou a se tratar em 2003, que operou nesse sofrimento do corpo um corte. A
localização do objeto olhar nos olhos da funcionária favoreceu uma condensação do
gozo fora do corpo, arrefecendo as dores que o tomavam. Ele deixa de fumar e usar
drogas e pacifica a relação com o corpo. Uma localização do objeto fora do corpo
parece ser o que opera nesta situação como apaziguamento. Parece-nos que, nesse
encontro, A. conseguiu operar o que as tentativas com o teatro, a escrita e a pintura
ajudaram a construir.
F. A pintura
A pintura surge como estratégia em torno de 1990. Uma tela nunca fatigou ninguém,
233
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
são as forças de um louco em repouso, não transtornado, relata A. citando Artaud. Ele
começa a pintar por estímulo da família e para presentear pessoas com suas telas. Com
isso, ficaria conhecido e faria o fenômeno acontecer. Através de suas telas, ele
estabeleceria uma forma de comunicação telepática com as pessoas, podendo conversar
com elas mesmo em sua ausência. Instalado o quadro na casa dos outros, produziria
felicidade para eles. Não é uma missão, como a de Gentileza, mas é um objetivo que ele
estabelece a partir do sedi di shacina”. A nossa amizade, nós não nos conhecíamos,
né, cara? Agora, olha o fenômeno. [...] Olha o fenômeno, o quadro que uniu a gente.
[...] A arte é que faz isso, a arte apresenta novas coisas, novas amizades, né?(Relato
de A. em entrevista). O fenômeno parece incidir no ponto em que a relação com o
Outro se mostra consistente por demais. A. parece precisar de um recurso de mediação
que talvez faça para ele a função que a linguagem faz para o neurótico.
Para ele, a pintura funciona também como uma espécie de canalizadora de energia, uma
via de investimento e transformação pulsional. Eu pintei os quadros até que as coisas
foram melhorando, né? Porquea própria sedi di shacina, como não é esse nome de
sangue, passou pro pincel e virou uma imagem, sabe como é?. Como vimos, o que
ganharia talvez uma solução pela passagem ao ato, é claramente orientado em um outro
sentido aqui. A pintura volatiza o impulso ao ato, articulando a pulsão de morte a um
contexto de criação ou à pulsão de vida. Parece-nos que o ato de pintar realiza, por si
mesmo, esse amálgama pulsional, conferindo a A. uma estratégia de amarração do gozo
disperso. A vontade de, por exemplo, canalizar as energias úteis, de ajudar uma outra
pessoa, de ajudar a mim mesmo em vez de ficar inerte lá. Quando você inerte, sua
mente funciona de um jeito, agora quando você trabalhando, ela funciona bem
melhor” (Relato de A. em entrevista).
A pintura nos parece produzir seu efeito em dois níveis pelo menos. De um lado, o
produto da criação pictórica, o quadro como objeto, se apresenta na dimensão de uma
tentativa de inscrição imaginária na relação com os outrinhos, na qual, feito objeto do
Outro, ele se apresenta no quadro como objeto ao outro. Ele também, nesse ato, faz um
endereçamento, dirige sua criação na busca de alguma forma de reconhecimento no laço
social. O ato de criação, por outro lado, estabelece uma saída num nível em que articula
os registros. Ela parece tentar se escrever entre os registros real e simbólico numa prega
através do imaginário. Todas as suas telas, é bom lembrar, representam figuras e
234
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
enredos dos dez livros escritos na adolescência. Não nos parece que ele faça essa
articulação somente no nível da linguagem, do simbólico, mas principalmente no nível
de lalíngua. uma operação cujo resultado não parece ser alcançado pelo significante,
senão a posteriori.
G. A escrita e a letra que (não) se escreve
A escrita também caminha acompanhando o percurso de seus Outros.
“Por exemplo, eu sou um Van Gogh. Mas um Van Gogh da escrita não é tão importante
quanto o da pintura. A minha escrita é uma escrita que transvalora a natureza, as
montanhas, as pedras, as fúrias, as almas das pessoas. Tudo, então, de repente, foi uma
mãozinha ali do Van Gogh, ali na minha escrita. eu me considero um Van Gogh da
escrita. Pode ser a escrita mais importante que exista a minha. Nunca foi publicada, quer
dizer, o mesmo processo de Van Gogh, sabe como é que é?”. (Relato de A. em entrevista).
Com a escrita, A. diz pretender fazer a pessoa despertar, sua escrita traz mais proveito
a quem do que a quem escreveu. Então, quer dizer, alcançou o objetivo, né?. Ele
começou a escrever contos fantásticos antes do desencadeamento, dez ao total, como
dissemos. E depois passa a tratar da sedi di shacina e suas conexões. Atribui a seus
escritos poderes sobrenaturais. Aquele meu livro chamado ‘Shanura Metamórfica’,
que é o primeiro deles, tem dado às pessoas uma... um poder místico mesmo”. A escrita
participa e testemunha o delírio, tal qual sua pintura.
Essa intrínseca articulação entre escrita e pintura é manifesta neste exemplo. A. deu um
quadro para seu psiquiatra e para a funcionária administrativa do CERSAM, escrevendo
para eles uma carta: E gerou fenômeno. Eu olhei pra essa palavra escrita e é como se
eu visse a celulose, a árvore, a formação de um novo papel pra todo mundo, ? Que
gosta do amor, das coisas boas, delicadas, sutil(Relato de A. em entrevista). Sua obra
cria um novo espaço vital, na verdade não-relacional, no qual ele se inscreve. Parece
fundar um laço que o opera com o outro, mas consigo mesmo auto-eroticamente
através da obra.
Ao mesmo tempo que os objetos criados com sua arte parecem operar como
condensadores de gozo, eles obturam a via de acesso ao Outro. Não funcionam como
artifício, ele parece o constituir com eles um savoir-y-faire”. A. se satisfaz numa
espécie de laço autista que inclui o parceiro, à medida que o exclui. Uma intervenção
precisa de sua analista provoca um deslocamento desse uso da criação. Ela se recusa a
‘conversar’ com ele através de seus quadros, convidando-o a falar com ela sempre
235
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
pessoalmente. Aceita o quadro, mas se recusa a conversar telepaticamente com A. E, ao
surpreendê-lo, funda uma nova possibilidade de enlaçamento pela palavra. É sobre essa
escrita que estamos a tratar...
Artaud é seu complemento na escrita factual, a que acontece sobre o papel. Efetiva uma
relação completa, esférica, que não deixa lugar para o furo ou para a torção do trabalho
inconsciente. Não tinha como apoiar o gênio escrevendo, eu não escrevia como ele
[Artaud], com essa crueldade. Escrevendo me sinto como ele, e ele se sente como eu”.
Artaud é um apoio para suas idéias. Poxa, não encontro uma palavra para dizer o que
penso, na palavra dele você... mágica! Você encontra mais revelação do que
pensou!”. Não é à toa que a sedi di shacina realiza a criação espontânea de Artaud e
socorre A.. Então, quer dizer, sempre que houver algum problema, você falou ‘sedi di
shacina’ e a ‘sedi di shacina’, então, venceu aquilo e te mostrou alguma coisa melhor e
te curou, e te melhorou, é uma coisa assim sabe?” (Relato de A. em entrevista). Como
se vê, Artaud funciona como complemento especular, sendo incluído nas criações de A..
A sedi di shacina parece poder se tornar um articulador suplementar de uma possível
resposta ao real que retorna desamarrado para A.. A expressão, que ele chama de frase –
ainda que sintagmática –, confere-lhe um lugar.
“Como eu dirijo os assuntos, eu sou o rei do mundo e, como rei do mundo, eu criei de
início essa frase, quer dizer, é uma frase de rei mesmo. Mas, pô, é um fenômeno, sedi di
shacina, como é que pode? Como é que pode? Uma porção de rei, o que aconteceu pra
existir isso? Quer dizer, é como um reinado mesmo”. (Relato de A. em entrevista).
Seu nome, escolhido pelo pai, será por ele adotado somente a posteriori. A. realiza todo
um trabalho de nomeação em torno de seu nome próprio. O início desse trabalho parece
se dar com o momento do desencadeamento. ele inaugura um esboço de nomeação,
de père-version: A., o rei persa, segundo seu pai que lhe cunhou o nome, aparece como
“rei do mundo, anjo e protetor”. A. introduz na versão paterna elementos antes ausentes.
Com isso, ele começa a forjar uma versão da versão do pai sobre seu nome.
“Só que em vez de rei persa, eu sou flagelo de Deus. Eu sou um amigo de Jesus. Essa é a
diferença. [...] Aquele processo de droga e motoqueiro tem tudo a ver com flagelo, né? E
agora como larguei aquele mundo, né? É como se fosse a volta do filho pródigo. Como
várias pessoas têm essa situação de usar drogas e parar e reingressar na vida, né?” (Relato
de A. em entrevista).
A idéia do flagelo, associada às mortes violentas do rei persa, ganha uma versão
pacifista e pacificadora. Ele desfaz a significação corrente do conhecido rei persa, que
236
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
lhe o nome, e recria em seu próprio nome o reinado do mundo. E, associando o
flagelo de Deus ao seu antigo estilo de vida, às drogas e às motos, ele rompe com o
nome forjado pelo pai, tentando recriar no delírio, na escrita e na pintura, um novo
enodamento que o enlaçaria sob a égide da “sedi di shacina”. Será, porém, que essa
escrita se efetiva?
A. parece deslizar entre os pontos que lhe servem de estofo (“sedi di shacina”,
Bicheira, Artaud, Van Gogh, Philippe de Lyon, cavaleiros do apocalipse, entre outros)
sem fazer deles rasura, sulco. É, porém, diferente do uso do delírio que o Profeta
Gentileza fez. Naquele caso, os significantes delirantes enviaram-no a uma missão que
ele traçou com uma ortografia nova. Foi nesse ponto de rompimento com o Outro que
ele ganhou autonomia e enodou os três registros, constituindo um novo nome
correspondente ao ‘nascimento’ de um novo sujeito.
A diferença diagnóstica aqui tem seu peso e evidencia entre a paranóia (do Profeta) e a
esquizofrenia (de A.), uma distância que vem marcada por uma estrutura e um uso da
linguagem constituídos de maneira diferenciada. Poderíamos, comparando os dois
casos, pensar que os recursos de A. são mais frágeis quanto à estabilização, ainda que
tão complexos quanto os do Profeta. É nesse ponto que a singularidade do caso se
destaca, evidenciando, como Lacan nos lembra, que o sentido do sintoma é único.
Mesmo se se tratasse de dois casos de paranóia ou de dois casos de esquizofrenia, os
recursos do sujeito e sua utilização destacariam sempre o singular e o intransmissível de
cada caso.
A complexidade com que A. dispõe de suas estratégias é evidentemente um esforço no
sentido da estabilização. Todo esse esforço, entretanto, tem caminhado sem um ponto
de amarração que possa estancar o gozo que jorra por seu corpo, ainda que ele tente
forjar ali um esteio. O Profeta, cuja estabilização se assenta em duas palavras e em sua
caligrafia que faz escrita de nó, parece conseguir, dada a unicidade da paranóia,
construir um ponto de partida e um desfecho para o enlaçamento de seu nó.
Para além de um prognóstico mais favorável à estabilização na paranóia, preferimos
apostar naquilo que, seja numa neurose, seja numa psicose, se oferece como estratégia
para solução. um possível de tratar e um impossível de contornar em qualquer que
seja a estrutura, o tipo clínico ou o sujeito. Com isso, o caminho para a estabilização na
psicose é sempre pertinente ao uso que o sujeito pode fazer dos recursos subjetivos que
237
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
disponibiliza. É nesse sentido que a lógica dos nós nos auxilia. uma certa
flexibilidade no manuseio dos nós que evidencia uma multiplicidade de formas de
estabilização. Se a estrutura o deixa de contar e de apontar para os elementos de
impossibilidade do discurso, a característica dos nós nos lembra o que desse impossível
que resta pode servir para o savoir-y-faire do sujeito no enlaçamento dos três registros.
É que no caso de A. nos parece ser importante a expressão “sedi di shacina”. É dessa
invenção que ele pode extrair um guia, um fio que faça laço.
4.3.3 Uma leitura borromeana do caso
Podemos hipotetizar que os ensaios de se fazer obra em A. apontam para uma
transmissão real para o Outro de uma inscrição atual e evanescente de si mesmo. Por
isso, ele refaz o trabalho de escrita a todo tempo. Parece-nos que ele, no Real, atualiza a
inscrição de uma nomeação que não se amarra borromeanamente. Como essa inscrição
não faz sulco, nem rasura, o gozo não estanca, não se fixa numa letra, num ponto de
amarração para além da matéria significante. Daí retornar sobre o corpo. Se não há furo,
se o imaginário não faz reta infinita, enodando os outros registros, resta sobre o corpo a
incidência do gozo. Daí também o deslize significante incessante que não faz cade-nó.
Em seus intervalos, as palavras alucinadas e os neologismos se instalam, ensaiando a
escrita de um sujeito. Entretanto, é pelo semblante oferecido pela citação do Outro que
ele fala. O enxame significante faz barulho, mas não faz furo, sulco, escrita. Por isso sua
criação não cessa de se escrever. Ele não faz ponto contingente de gozo. Ele não se
escreve nó. Seria esse o erro do nó em A.?
Figura 37 – Erro do nó de A.?
Difícil afirmar com certeza. As indicações que A. nos oferece são marcadas por ensaios
topológicos que seguem vias diferentes a cada tentativa, como vimos na discussão
teórico-clínica do caso. O a posteriori aqui crava seu valor. Sobre a suplência em
238
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Gentileza, já realizada, há o que dizer. Sobre o trabalho que ainda avança, como o de A.,
há o que pensar...
Entretanto, quando Lacan, no Seminário RSI (1974-75, aula de 17-12-1974), localiza a
vida no furo do Real e o corpo no furo do Imaginário, fortalece nossa hipótese para o
caso, na medida em que é no corpo que os efeitos de retorno do Real se manifestam
para A.. Do lado da morte se encontraria a função do simbólico, capaz de fazer frente e
limite, ponto de parada, ao enlaçamento entre Real e Imaginário. Mas ele resta livre,
deslocando-se a cada tentativa de A. de grampeá-lo. Quando Lacan, no Seminário 3
(1955-56/1992), nos fala da cascata de remanejamentos imaginários, decorrente do
desastre no simbólico, generaliza uma situação que, a cada caso, será vivida de uma
maneira singular.
Em A., ela se apresenta como desenlaçamento dessa dimensão que faria a mortificação,
pela linguagem, do Real indomado e desdobrado nos efeitos imaginários. Faria letra no
encontro com o Real. Sua criação parece situar-se entre Imaginário e Real. Ele ainda se
acha objetalizado no gozo do Outro. Seria um Outro gozo? Como ele poderia amarrá-lo
e torná-lo possível? Borromeanamente poderíamos pensar na hipótese topológica de um
gozo Outro, impossível, que não é costurado pelo simbólico de forma a fazer nó entre os
três registros. Mas a solução borromeana não é regra para todos, muito pelo contrário. A
topologia dos nós nos ensina, exatamente, a abrir mão do ideal fálico e paterno,
normativo, universalizante, para pensar, a cada caso, a posição do sujeito e seu estilo de
resposta.
Fato é que, em A., a costura que não acontece entre os três registros deixa o Real sem
uma amarração, uma costura, uma franja que avance sobre ele a partir do campo do
Simbólico, criando a condição para a sustentação significante pela materialidade da
letra. Daí ele precisar recorrer ao semblante, ao que o Imaginário lhe fornece de estofo.
Como ele não escreve uma letra, não faz litoral. Nesse ponto de escape, o Real parece
retornar incessantemente nos fenômenos alucinatórios que lhe invadem o corpo.
4.4 Os Dois Casos, Nossa Hipótese e Sua Escrita
Se A. faz um mix em seu texto com as citações de seu Outro, encarnado nas figuras que
admira, ele o faz para tentar tecer minimamente uma referência de si mesmo através
delas. Assim como Bispo se tecia nas obras que bordava e criava; assim como Joyce se
239
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
escrevia em sua obra, nominando-se; A. parece tentar, porém sem sucesso, se escrever.
Por que ele não tem sucesso nessa empreitada? Parece-nos que ele não faz de si letra,
permanecendo apoiado na consistência que o Outro lhe fornece. Assim como se deixa
conduzir por sua mãe no cotidiano, assim também segue apoiado no Outro para
trabalhar sua estabilização.
Não deixa de ser uma maneira de reinventar a linguagem, colando citações, fazendo
uma bricolagem. Mas é como se ele se escrevesse com o texto do Outro de uma forma
alienada a este. Não avança na invenção de uma suplência que a “sedi di shacina”
talvez poderia forjar –, não faz escrita de gozo. A loucura se apresenta nele como
ausência de obra (FOUCAULT, 1964/1994), no sentido de fazer-se preenchido, não
pelo vazio inaugural da criação ex nihilo, mas pelo texto do Outro que ocupa seu lugar
de agente, de sujeito. Sua escrita, entretanto, garante um escoadouro de gozo, ainda que
não amasse com a letra bordas para fazer desse escoadouro um espaço continente de
gozo.
Gentileza, por seu turno, despe-se e forja-se na caligrafia e na simbologia que inventa,
um novo homem. Nasce sujeito da experiência de ser despojado de seu próprio nome.
Tece com letra singular o bordado de seu texto. Rasura seu texto até chegar a um ponto
inaugural. Nele, faz sulco, escreve letra no litoral urbano que o invade com sua
imoralidade. Cria continência de gozo e se escreve nó, articulando os três registros
através da letra forjada para seu uso. E endereça-se ao Outro, já dele descolado.
Dessa maneira, vemos a nova versão de nossa hipótese avançar sobre o que, da letra
fazendo escrita de nó, favorece a suplência como modalidade de estabilização na
psicose. Neste caso, vemos o sujeito ensaiar outras estratégias de estabilização, que não
somente a suplência, vacilando entre uma modalidade e outra, mas sem necessariamente
se escrever numa obra. Joyce se escreveu; Bispo escreveu bordando uma obra para se
referenciar ao Outro; Profeta Gentileza inventou uma escrita, cuja caligrafia fazia letra
para advertir o Outro. E A.? A. ensaia escrever-se um nome que o afaste dos desígnios
do pai, ensaia fazer uma versão do pai para dela extrair-se sujeito, ainda que permaneça
encarnado no texto do Outro do qual não extrai letra-gozo...
Pensar a letra, portanto, implica de fato em se pensar numa forma de escrita do nó. Ela
pode se realizar através do papel, do texto, dos sons como na literatura joyceana; através
das linhas e agulhas que bordavam, na arte, letras (“eu preciso dessas palavras.
240
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
escrita”), como fazia Bispo; ou mesmo através da invenção de uma caligrafia original
pintada nos muros da cidade e que funda intervalos, inventando signos e letras para
ocupá-los, permitindo que o sujeito emerja, como com o Profeta Gentileza.
Ao contrário do que concebíamos no início deste trabalho, não é essa superfície
material, papel, caneta, tinta ou agulha que funciona como elemento que favorece a
estabilização, mas antes o que delas pode se fazer artifício, o que delas o sujeito pode
usar a seu favor, como savoir-y-faire com o gozo. O sujeito é causado por um objeto
que é notável por uma escritura, e é assim que um passo é dado na teoria. O
irredutível disto, que não é efeito da linguagem, [...] é a paixão do corpo (LACAN,
1974-75, aula de 21-01-1975).
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
CONCLUSÃO
242
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Apontado nos casos clínicos o que da criação se faz escrita de nó, podemos concluir que
a estabilização psicótica, quando faz suplência, se articula no nível do artifício que o
sujeito inventa para fazer dessa criação letra de gozo.
Descartes nos ensina a nos exercitarmos nas coisas mais simples como no trabalho
dos artesãos que fazem tapetes, no das mulheres que bordam ou fazem renda e nas
combinações de números pela aritmética –, porém com método, até chegar à sua
verdade íntima. Assim, podemos deduzir de princípios evidentes várias proposições que
parecem difíceis e complicadas.
Essa é a indicação a que Lacan se refere ao abrir seu seminário topológio, o Seminário
RSI, no qual nos introduz efetivamente na topologia dos nós, especialmente na
topologia borromeana. Para ele, não foi por acaso que Descartes aproximou a
aritmética, os tapetes, as tranças e os nós, ainda que ele não tenha se ocupado desses
últimos. Ele toma como orientação essa relação cartesiana para dela extrair suas
conseqüências clínicas.
As tranças do borromeu implicam na escrita característica dos três registros para o
falasser. A especificidade do falasser reside no fato de que os registros entre si estão
soltos dois a dois, sendo atados de uma maneira borromeana pelo terceiro. A o-
relação entre cada dois registros mostra a impossibilidade da relação sexual, exigindo a
presença de um terceiro elemento para atá-los. Esse é o efeito real do nó: os registros se
encontram sobrepostos dois a dois, sendo enodados por um terceiro de tal forma que,
rompendo-se um deles, os outros dois registros quedam desatados. É assim que ofaz
existir o furo.
Foi essa característica que levou Lacan a isolar em um quarto elemento, por ele
denominado sinthoma, o efeito real do nó. Com isso, evidencia a impossibilidade
original do ser falante de dar conta do real foraclusão generalizada –, havendo sempre
a necessidade de um quarto elemento para suplenciar a relação originalmente faltante do
sujeito com o Outro. Não existe Outro do Outro que garanta a escrita do sujeito como
ser de linguagem. A linguagem aparece, então, como ornamento, como elucubração do
sujeito sobre o campo de gozo que a língua materna (lalíngua) contém.
A entrada da linguagem no real do corpo é sempre traumática e será escrita pela letra,
enquanto litoral entre real e simbólico. É sobre esse suporte que se apóia o significante
243
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
para tentar debilmente dar conta do real. O significante sempre falha nesse intento e, por
conseqüência lógica, o Nome-do-Pai, como significante que garantiria uma função
estabilizadora central para o falasser, também rateia. Lacan, então, pluraliza os nomes
do pai, enquanto função de nomeação, discutindo as diferentes possibilidades de
suplência a essa falha do que eles poderiam reparar. A suplência ganha, então, a
coloração de uma invenção subjetiva para dar conta dessa falha que é estrutural para
todos, deslocando do campo das psicoses a idéia de um déficit originário a ser suprido
para a exigência do falasser em construir uma resposta à falha do Outro.
A pluralização dos nomes do pai aponta para a escrita possível de um suplemento a essa
falha – escrita do nó como pontua com exatidão o texto lacaniano. Assim, as três formas
de nomes do pai, as que nomeiam, são o imaginário, o simbólico e o real. Nesses nomes
é que está o nó. O simbólico pode, então, ser substituído pelo binário
(simbólico+sintoma) que o desdobra, numa amarração ou numa nomeação, operada por
um reforço desse registro. Lacan tratará esses dois termos por (inconsciente+sinthoma).
Esse binário se enoda borromeanamente aos outros dois registros, real e imaginário,
conformando a característica essencial do ser falante.
Vemos, portanto, que o quarto elemento aqui corresponde ao que suplencia a falência
do Outro. À nomeação do simbólico como sintoma, acrescenta-se a nomeação do real
como angústia e a do imaginário como inibição. Não foi à toa que Lacan introduziu o
desenho desse quarto termo, a partir da localização do Édipo como o que amarra a
realidade psíquica freudiana, como nomeação do real pela angústia da castração.
Nomeação, escrita ou amarração completamente diferente dessas é a que Lacan extrai
do texto de Joyce. Nele Lacan identifica um erro do nó no qual, ao invés de superpostos,
os registros do real e do simbólico apresentariam um “erro” ao se entrelaçarem, restando
somente o imaginário solto. Neste caso a escrita joyceana forja um ego-sinthoma que
repara o erro como suplência, através de um artifício suplementar, sua obra, que
prescinde do pai, foracluído de fato. O Outro do Outro real é a idéia que Lacan faz do
artifício enquanto um fazer que escapa, que transborda o gozo que se pode ter dele.
Joyce se escreve em sua obra com a letra a. Modifica o estatuto da escrita e faz dela
ego, não em sua dimensão narcísica, mas como escrita que porta, força o objeto a. É
como desabonado, não tributário do inconsciente, que ele extrai um gozo disjunto do
Outro com sua obra.
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Com essa leitura topológica de Joyce, Lacan inaugura uma possibilidade até então
inédita, a de se pensar as soluções encontradas pelo falasser diferentes das soluções
borromeanas. Avançaríamos para além do corte operado pela presença (neurose ou
perversão) ou foraclusão (psicose) da Bejahung fundamental para um território das
soluções que vão da ausência de suplência com o desanodamento do nó, passam por
enodamentos não borromeanos ou borromeanos, até chegar à continuidade entre os três
registros. Passa-se a contar, no campo das psicoses, com uma gama de soluções
graduadas.
Nesse ponto, nossa hipótese original pôde ser, então, rearticulada. A questão acerca da
incidência da criação artística ou artesanal no trabalho de estabilização psicótica recai
sobre a possibilidade dela provocar um enodamento, uma escrita de que enlace os
três registros. Está em questão menos a criação concreta em si mesma do que o artifício
que o sujeito pode inventar a partir dela. Nesse sentido, na clínica das psicoses,
aprendemos que o estilo sugerido pelo sujeito em tratamento é o elemento indicativo
para se pensar as vias de sua estratégia de estabilização. Oferecer aleatoriamente
variados recursos é diferente de seguir as pistas do erro do nó e pensar, então, o ponto a
partir do qual pode se escrever uma solução.
Os dois casos estudados evidenciaram essa diferença na medida em que, apesar de os
dois apresentarem farta criação e escrita, somente a presença destas não garantiu uma
via de construção de uma forma de estabilização. Foi preciso que Gentileza fizesse de
sua obra um artifício para lidar com o Outro e com o gozo através da escrita da letra em
sua caligrafia, para que acedesse a uma suplência. Quanto à A., apesar de sua farta
criação pictórica e escrita, permanece à mercê do Outro, imerso num gozo invasivo que
recai sobre seu corpo, circunscrito apenas contingencialmente pelo encontro com o
objeto olhar. São o artifício criado e seu uso, savoir-y-faire, que podem conduzir a uma
solução no campo das psicoses.
Sabemos, porém, que a psicanálise, ao passar por um certo número de enunciados, não
leva necessariamente todos à via de escrever. Se, porém, tomamos a escrita como escrita
do nó, ela sempre vai contar, pois ao nível da caligrafia do sujeito, é esta letra que faz o
em-jogo da aposta, amarrando e cifrando o gozo. É o que a psicose aqui pode ensinar à
psicanálise.
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
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256
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
ANEXOS
257
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
ANEXO I - FOTOS DE ESCULTURAS DO USUÁRIO DE UM CENTRO DE CONVIVÊNCIA
Figura 38 – Foto 1 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG)
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Figura 39 – Foto 2 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG)
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
ANEXO II – RESUMO DA CRONOLOGIA DE VIDA DE GENTILEZA
11 de Abril de 1917 – Nascimento de José Datrino (Cafelândia – SP). Era o segundo
de 11 filhos.
----- Trabalhava puxando carroça pra vender lenha nas cidades próximas e também
na terra e amansando burros. (Mais tarde diz que se tronou: Amansador dos burros
homens da cidade, que não tinha [sic] esclarecimento”). Viveu até 20 anos em
Cafelândia.
1929 Com 12 anos, prenunciava uma missão “ter uma família, ter filhos,
construir bens, mas que um dia teria que deixar tudo”. Seus pais acharam que
poderia estar louco e o levou a curadores espíritas.
1937 Deixa Mirandopólis sem avisar a família, rumo a São Paulo, depois ao Rio
de Janeiro. Para a família, teria sido levado por um guia espiritual. Ficou quatro
anos sem dar notícia, até que pediu à mãe para lhe mandar seus documentos.
1941 Casa e tem cinco filhos: três “femininos” e dois “masculinos”. Começou a
fazer fretes até estabelecer-se com uma empresa de três caminhões para transportar
cargas. Tinha também três terrenos e uma casa.
----- Segundo sua filha, após a visita de alguém que queria se tornar seu sócio,
sucedeu o episódio da lama.
1961 17/12 Incêndio no circo. 23/12 Recebe aviso astral de Deus: “deixar
todos os bens e vir como São José, representar Jesus de Nazaré. 24/12 Deixa tudo
e vai pregar em Niterói, distribuir vinho para ensinar as palavras “por gentileza” e
“agradecido” (já então falando como Jozzé Agradecido ou Gentileza). Foi levado
pela polícia e se instalou no lugar do circo incendiado, transformando-o em jardim
circular e denominando-o “Paraíso do Gentileza”, onde permaneceu por quatro
anos.
Meados dos anos 60 Sai do local do circo e começa a deslocar-se entre Rio e
Niterói, pregando. Adquire reconhecimento popular, cria provérbios e máximas.
Coloca “PC” (Pai Criador) no estandarte. Teve que explicar às autoridades que não
se tratava de Partido Comunista.
Fim dos anos 60 Inicia viagens que o tornarão conhecido no interior do país.
Retorna a Mirandopólis como um Profeta.
----- Realiza grandes viagens pelo Brasil num trajeto circular pelo país.
1970 Em Aquidauna, atual Mato Grosso do Sul, sofre sua primeira grande
adversidade: é preso por uma noite, tem o cabelo cortado e seu estandarte quebrado.
Retorna para o Rio e passa a utilizar a cartola do Tio Sam (“profeta tropicalista
260
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
Chacrinha da Calçada”). Após o incidente em Aquidauna, passa a recolher
depoimentos e declarações de figuras públicas e autoridades dos lugares pelos quais
passava, como “carta de referência”.
Meados de 70 Com o cabelo refeito, terno e gravata, inicia o culto à brasilidade.
Vai a Minas Gerais, Ouro Preto, por ter forte admiração e respeito por Tiradentes,
que, como Jesus, sofreu por seu povo. em Ouro Preto, os estudantes sugerem o
uso da bata.
Década de 80 Assume a bata, a bandeira e os cataventos. Entre Rodoviária Novo
Rio e Cemitério do Caju, numa extensão de 1,5km, Gentileza realiza seus 56
escritos murais sobre pilastras do Viaduto do Gasômetro.
Início dos anos 90 Finaliza sua obra no Viaduto e, com ela concluída, se postava
geralmente ao lado da pilastra 1, sentado numa cadeira, acenando para todos como
se estivesse na varanda de sua casa.
1992 ECO 92 Rio de Janeiro Conclama as nações e os presidentes ao uso da
Gentileza.
1993 em diante Tem a saúde fragilizada após uma queda, que lhe ocasiona fratura
na perna. Acometido também por problemas circulatórios, sente cada vez mais
dificuldade em andar.
Início de 1996 – Retorna a Mirandopólis, São Paulo.
29 de Março de 96 – Morte do Profeta Gentileza.
20 de Janeiro de 1999 É oficializado o “Projeto Rio com Gentileza”, que recupera
a Pilastra de n° 1.
Outubro de 1999 – Semana do Gentileza.
06 de Maio de 2000 Depois de 9 meses de trabalhos exaustivos de restaurações,
são entregues, em cerimônia oficial com a presença de autoridades, artistas e público
em geral, as obras de Gentileza.
Cineastas, poetas, músicos e videomakers trabalham com a história e a obra de
Gentileza. Gonzaguinha o homenageia no CD “Cavaleiro Solitário”.
2000 UFF encaminha, do Departamento Geral do Patrimônio para o Conselho
Municipal de Patrimônio Cultural do Município do Rio de Janeiro, pedido de
tombamento de toda a obra gráfica de Gentileza no Viaduto do Caju.
Junho de 2000 – Praça Profeta Gentileza é oficializada em frente à Rodoviária Novo
Rio.
Novembro de 2000 - Após estudos e análises dos órgãos competentes, a obra é
tombada.
É conferido o “Prêmio Urbanidade 2000” ao “Projeto Rio com Gentileza”.
261
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
ANEXO III – MÚSICA DE MARISA MONTE SOBRE GENTILEZA
GENTILEZA
(Marisa Monte, 2000)
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta
Nós que passamos
Apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras
E as palavras de Gentileza
Por isso eu pergunto
A vocês no mundo
Se é mais inteligente
O livro ou a sabedoria
O mundo é uma escola
A vida é um circo
Amor, palavra que liberta
Já dizia o Profeta.
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
ANEXO IV - FOTOS DO PROFETA GENTILEZA
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
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Figura 40 – Fotos e imagens referentes ao Profeta Gentileza
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
ANEXO V – PINTURAS DE A.
Figura 41 – Pintura 01 de A.
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Figura 42 – Pintura 02 de A.
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência
ANEXO VI – CLÍNICA BORROMEANA
A título de sistematização, propomos o quadro abaixo que reúne as principais dimensões da clínica
borromeana, discutidas ao longo deste trabalho. Ela se sobrepõe à clínica estruturalista, sendo mais um
desdobramento do que uma oposição àquela.
PRIMEIRA SEGUNDA
Clínica estruturalista. Clínica borromeana.
Sua essência é a distinção, a oposição, a
diferença.
Sua essência é que pode haver ou não
enodamento e, quando há, ele pode ser ou não
borromeano.
Sua modalidade é a da oposição. diferenciações, mas não oposições no sentido
estrutural de um sim ou um não.
A oposição, apesar de tripartite (neurose,
psicose, perversão), se funda numa bipartição:
Bejahung (neurose e perversão) e foraclusão
(psicose).
Generalização do conceito de foraclusão.
NP equivalente ao significante que opera a
metáfora paterna.
NP equivalente ao sinthoma, disjunta a função
paterna da função de nomeação.
Em relação ao pai, trata-se da aceitação
(neurose) ou rejeição (psicose) do sigte do NP.
A generalização do conceito de foraclusão
implica no NP pluralizado. Ele é substituído pela
idéia de ponto de capitonné (ponto de basta,
ponto de amarração) que é particularizado.
Clínica descontinuísta, categorial e que implica
numa classificação.
Clínica elástica, gradual e que não implica numa
classificação (para as psicoses).
Suplência como o que substitui a função do sigte
do NP ausente na metáfora paterna. Trata-se de
uma substituição significante primordial.
Suplência como suplemento, invenção, referida
ao quarto termo do nó, onde e a partir do modo
como a foraclusão se escreve.
Aqui a suplência se realiza em relação ao NP, à
metáfora paterna (ineficaz), como na fobia ou na
psicose.
Aqui suplência sempre ocorre na medida em que
falta o significante do sexual, da mulher para
todos (Σ(%))
1) Pluralização dos NP;
2) Generalização do conceito de foraclusão;
3) Equivalência entre as funções do NP e do sinthoma.
Nesta clínica, trata-se de verificar os modos distintos em que se enodam os diferentes registros.
Há casos em que esse ponto de capiton está dado pela presença do NP e, portanto, pela operação
da metáfora paterna (neurose); e casos em que o capitoneado se através de outro
elemento; e casos em que não se dá. Há, pois, casos de enodamento tradicional (NP na Metáfora
Paterna) num extremo, e outros em que não há enodamento, no outro extremo. Entre eles, reside
uma gama de possibilidades intermediárias. Daí preferir-se falar em clínica gradualista e não
descontinuísta, como evidenciou o esquema de Skriabine (2006).
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