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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO EM TEORIA PSICANALÍTICA
ASPECTOS NARCÍSICOS DA CLÍNICA DA OBESIDADE
Simone Magalhães Lugão
Rio de Janeiro
2008
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ii
Simone Magalhães Lugão
ASPECTOS NARCÍSICOS DA CLÍNICA DA OBESIDADE
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como requisito parcial para a obtenção
do grau de Mestre em Teoria
Psicanalítica.
Professora Orientadora: Teresa Pinheiro
Rio de Janeiro
2008
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iii
Simone Magalhães Lugão
ASPECTOS NARCÍSICOS DA CLÍNICA DA OBESIDADE
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como requisito parcial para a obtenção
do grau de Mestre em Teoria
Psicanalítica.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Professora Dra. Teresa Pinheiro, UFRJ.
_________________________________________________
Professora Dra. Regina Herzog, UFRJ
_________________________________________________
Professora Dra. Jô Gondar, Uni-Rio
Rio de Janeiro
2008
iv
FICHA CATALOGRÁFICA:
Lugão, Simone Magalhães.
Aspectos narcísicos da clínica da obesidade / Simone Magalhães
Lugão. - Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGTP, 2008.
x, 77 f; 31 cm.
Orientador: Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Dissertação (Mestrado) UFRJ/ Instituto de Psicologia/
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 73-77.
1. Psicologia. 2. Teoria Psicanalítica. I. Pinheiro, Teresa. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia,
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. III.
Aspectos narcísicos da clínica da obesidade.
v
Aos pacientes que pude acompanhar,
sem os quais este trabalho não seria
possível.
vi
“Quando as pessoas passaram a poder
examinar os próprios rostos, a expressão de suas
emoções e seus corpos por um período contínuo de
tempo, puderam também começar a pensar em quem
eram e no que eram diferentes ou iguais aos outros.”
Hanif Kureishi,
“O Corpo”.
vii
AGRADECIMENTOS
À minha família, pelo incentivo incondicional.
À Teresa Pinheiro, pela orientação e apoio e ao grupo de pesquisa do NEPECC, pelas valiosas
e sempre ricas discussões.
A toda equipe de Saúde Mental do Hospital Municipal de Piedade, em especial à equipe de
acompanhamento do Programa de Cirurgia Bariátrica, na figura do Dr. Antônio Cláudio
Jamel.
À querida Eliana Schueler Reis, pelas sugestões, críticas e disponibilidade em discutir.
Aos amigos e colegas de trabalho, pela força e compreensão, em especial à Carla Cavalcante e
Denise Sarmento, que tornaram possível este trabalho.
Às queridas Luciana Massad Fonseca e Ana Maria Scherer, pela especial e inesquecível ajuda
na correria final.
Aos amigos de várias épocas e diferentes lugares, mas amigos de sempre.
E ao querido Rob, por tudo.
viii
RESUMO
Esta pesquisa trabalhou o fenômeno da hiperfagia (o “comer em excesso”), a partir da
experiência de atendimento a pacientes obesos que desejavam submeter-se à cirurgia
bariátrica em um hospital geral do Rio de Janeiro. Observamos que a temática do narcisismo,
envolvendo questões relativas à imagem de si, a constituição do eu e da auto-imagem corporal
tem um lugar de destaque nesta clínica, independentemente da organização subjetiva em
jogo (histeria, neurose obsessiva etc.).
Tais organizações subjetivas podem ser situadas no contexto das chamadas “patologias
da contemporaneidade”, por seu caráter compulsivo, pelas questões que se apresentam no
campo da simbolização. O atendimento desses pacientes aponta para grandes dificuldades
técnicas quanto ao seu manejo clínico. Neste trabalho, propomo-nos a pensar tais
organizações destacando os aspectos narcísicos acima descritos. Para isto, utilizamos o corpo
teórico de autores como S. Ferenczi e M. Balint, autores com uma produção teórica
importante sobre os pacientes considerados “difíceis” ou “intratáveis” pela técnica analítica
clássica. Procuramos destacar a importância das primeiras relações do self com o entorno
para a constituição deste “ego corporal” (Freud) e, através de alguns fragmentos clínicos,
tentamos relacionar a peculiar constituição do corpo obeso à área da Falha Básica (Balint), o
que parece ter, para a clínica, conseqüências importantes quanto ao tratamento destes
pacientes.
Palavras-chave: dissertação de mestrado, psicanálise, transtorno alimentar, obesidade,
narcisismo, imagem corporal, falha básica.
ix
RÉSUMÉ
Cette recherche a travaillé le phénomène de l’hyperphagie (le “manger en excès”) à
partir de l’accueil des patients obèses qui désiraient se soumettre à la chirurgie bariatrique
dans un hôpital général de Rio de Janeiro. Nous avons remarqué que la thématique du
narcisisme, enveloppant des questions relatives à l’image de soi, à la constitution du moi et de
l’auto-image corporelle, prend du relief dans cette clinique, indépendamment de
l’organisation subjective qui est en jeu (hystérie, neurose obsessive, etc).
Ces organisations subjectives peuvent être situées dans le contexte des dites
“pathologies de la contemporaineté” par son caractère compulsif, par les questions qui se
présentent dans le champ de la symbolisation. L’accueil de ces patients montre de grandes
difficultés techniques quant à leur maniement clinique. Dans ce travail, nous nous proposons
de penser ces organisations détachant les aspects narcisiques décrits ci-dessus. Pour cela, nous
utiliserons les corpus théoriques de S. Ferenczi et M. Balint, auteurs avec une production
théorique importante sur les patients considérés comme “difficiles” ou “intraitables” par la
technique analytique classique. Nous cherchons à mettre en évidence l’importance des
premières relations du self avec l’entourage pour la constitution de ce “moi corporel” (Freud)
et, nous avons fait appel à quelques fragments cliniques, pour essayer établir une relation
entre la constitution particulière du corps de l’obèse sous le regard du concept de défaut
fondamental (Balint), ce qui semble avoir, pour la clinique, des conséquences importantes
quant au maniement dans le cadre d’ une cûre avec ces patients.
Mots clés: dissertation , psychanalyse, trouble alimentaire, obesité, narcisisme, image
corporelle, défaut fondamental.
x
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO:
Abrindo questões... ......................................................................... 1
1. A SURPRESA DA CLÍNICA
6
Obesidade e Transtornos Alimentares ...................................................................... 6
A hiperfagia como adicção........................................................................................ 9
Hiperfagia e narcisismo: um corpo um eu e um outro..............................................
12
2. BALINT E AS RELAÇÕES PRIMÁRIAS COM O ENTORNO
21
2.1. Balint e a alteridade ........................................................................................... 21
A crítica ao narcisismo primário ....................................................................... 21
Amor Primário ................................................................................................... 25
A Falha Básica e as três áreas da mente ............................................................ 29
Sexualidade e Amor .......................................................................................... 33
2.2. A noção de objeto em Balint, ocnofilia e filobatismo ....................................... 37
Uma observação sobre uma possível leitura alteritária o objeto em Freud ....... 38
A noção de objeto em Balint e dois modos especiais de relação com os
objetos: ocnofilia e filobatismo .........................................................................
40
3. A CLINICA DA OBESIDADE
47
O enquadre ............................................................................................................... 47
A propósito da fome ................................................................................................. 51
A mãe como objeto primário e o conceito de introjeção em Ferenczi ..................... 55
O corpo obeso como defesa contra a alteridade ....................................................... 61
Um corpo sem sexo? ................................................................................................ 62
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Da Falha Básica à Área da Criação ........................... 67
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 73
1
Introdução:
Abrindo questões...
A idéia desta pesquisa nasceu de minha prática em um Hospital Geral no município do
Rio de Janeiro onde trabalhei fazendo parte da equipe multidisciplinar de acompanhamento
dos pacientes obesos e obesos mórbidos inscritos no Programa de Cirurgia Bariátrica (cirurgia
de redução de estômago). Meu trabalho consistia no acompanhamento destes pacientes em
pequenos grupos, em suas fases pré e pós-operatórias, além de entrevistas individuais e com
familiares, sob demanda ou mediante alguma indicação clínica.
O trabalho com esses pacientes foi, desde o início, marcado pela surpresa e por
freqüentes indagações. Em primeiro lugar, a surpresa do convite e a quase impossibilidade da
recusa afinal, outras profissionais haviam se recusado a trabalhar com o recém criado
Programa de Cirurgia Bariátrica do Hospital e eu não poderia, como funcionária, me recusar a
participar, salvo por alguma razão de força maior. Aqui e ali, o comentário geral era a
“loucura” que seria a realização da cirurgia no âmbito do hospital, cirurgia esta sobre a qual
ainda se sabia muito pouco, mas que parecia a todos um projeto “Frankstein” - como intervir
nos corpos de maneira tão drástica, modificando tanto sua anatomia? O espanto, na verdade,
parecia esconder a questão - como querer brincar de Deus assim, impunemente?
Embora tomada dessas mesmas indagações, instigava-me a pergunta: que pessoas são
estas que se dispõem a passar por uma intervenção tão radical? Afinal, não são todos os
obesos que estão dispostos a passar por uma intervenção cirúrgica. O que as move? Que
sofrimento é este de viver em um corpo obeso, que as faz imaginar que passar por esta
intervenção e ter, para o resto da vida, a necessidade de um acompanhamento médico é
melhor? Que substituição seria esta que se estabeleceria, da comida em excesso para a eterna
dependência (também excessiva?) de uma equipe de cuidados interdisciplinar, à qual os
pacientes estariam sempre referidos?
2
Impulsionou-me a idéia de que não adiantava recuar diante do novo. A Cirurgia
Bariátrica é um procedimento cada vez mais difundido (inclusive pela mídia)- sem a devida
precaução com relação a suas indicações e conseqüências - como solução de grande
resolutividade para um problema, hoje, de grande proporção mundial, que é a obesidade. Tal
procedimento faz parte do Programa das Políticas de Saúde Pública de nosso país. O
Governo paga por este procedimento – de eficácia ainda desconhecida a longo prazo –
querendo dizer que esta é a melhor maneira de um obeso eliminar / curar o seu problema.
Embora não seja nossa questão principal, precisamos
desnaturalizar o entendimento destas
ações de Políticas Públicas de Saúde, contextualizadas segundo determinadas articulações
entre o Saber e o Poder (FOUCAULT,1979) e que têm efeitos importantes na
produção das
subjetividades contemporâneas. Neste sentido, talvez nos caiba pensar em que momento a
obesidade se tornou objeto de uma intervenção médica (cirúrgica e localizada), em detrimento
do seu entendimento como questão subjetiva. Sobre que corpo se espera esta intervenção? O
corpo idealizado e elevado à categoria de fetiche de nossa contemporaneidade imediatista e
imagética da Sociedade do Espetáculo (DEBORD, 1997) ou o “corpo vivo” que pulsa, sangra,
cicatriza e que está à mercê da passagem do tempo e de seus inevitáveis efeitos?
A Cirurgia é, pois, uma realidade que, assim como todas as inovações tecnológicas de
nossa época, não representa nenhum Bem ou Mal em si. Ela não traz consigo nenhuma
implicação ética. Seu uso é que terá implicações distintas.
Assim, tendo em mente a hipótese de que talvez a Psicanálise, como ferramenta
teórica, pudesse contribuir em algum grau para esta discussão, parecia-me mais interessante
estar por perto do que recuar. Paul Rabinow, em Antropologia da Razão (1999), assim se
refere ao falar sobre o Projeto Genoma:
Minha postura inicial em relação ao Projeto Genoma e às instituições e práticas a ele
associadas é muito tradicionalmente etnográfica: nem completamente comprometido
nem me opondo, estou procurando descrever o que está acontecendo. (...) Minha
questão etnográfica é: como irão mudar nossas práticas e éticas sociais à medida que
este projeto avance? (RABINOW;P., 1999, p.137)
Parodiando um pouco sua fala, posso dizer que minha postura inicial em relação à
Cirurgia não era contra nem a favor, mas gostaria de poder estar ali para investigar e pensar
3
o impacto desta tecnologia sobre as subjetividades, segundo o referencial teórico da
Psicanálise.
Interessava-me, então, pensar que pessoas eram essas que nos buscavam, através do
chamariz da Cirurgia e, dessa minha posição ao contrário da postura etnográfica, nem de
toda desimplicada, pois estava ali em uma relação transferencial, investigar as
peculiaridades desse sofrimento relacionado à alimentação o comer em excesso, a
hiperfagia, perguntando-me, muitas vezes ceticamente, até que ponto a cirurgia seria capaz
de modificar este quadro.
Em pesquisa recente realizada pela USP
1
, com pacientes operados 5 ou mais anos,
vemos que 64% dos pacientes voltam a ser obesos (com IMC superior a 40) e 13% voltam a
apresentar obesidade mórbida. Somente 7,84% mantiveram o peso esperado. Muitos passaram
a desenvolver algum outro tipo de comportamento “compulsivo”, como, por exemplo, o uso
de álcool (18%). Quais seriam, então, os processos psíquicos em jogo nos casos de sucesso e
fracasso da manutenção destes resultados? Mais e mais perguntas.
Algumas condições se tornavam importantes para a realização deste trabalho. E a
primeira delas era a necessidade de um tempo de acompanhamento destes pacientes antes da
cirurgia – um convite a um “falar sobre o problema da obesidade”, que não deveria se
confundir com uma avaliação. A nosso favor tínhamos, ironicamente, a ineficiência do
Sistema de Saúde Público, pois, por conta de todas as dificuldades em termos de suprimentos
e infra-estrutura, não as cirurgias eram realizadas com uma freqüência bastante reduzida
(cerca de uma cirurgia por mês), como também chegamos a ficar alguns meses sem a sua
realização, por falta de suprimento adequado. Desta forma, pudemos, então, ter um tempo
razoável de acompanhamento desses pacientes, antes que se submetessem à cirurgia, o que
também pôde garantir a realização de um trabalho minimamente “terapêutico”
2
.
À medida que o trabalho com estes pacientes foi se delineando, meu interesse foi se
deslocando dos efeitos da cirurgia para a própria questão da obesidade em si. Até porque, para
1
Publicado na Folha de São Paulo, em 17/07/2005.
2
Considero este ponto importante porque, na lógica de trabalho de um Hospital Geral,
muitas vezes o profissional da Psicologia é acionado para “apagar incêndios”, como se
fosse capaz de solucionar, com resolutividade e rapidez, situações que envolvem não o
paciente, como também a equipe médica, demandando importantes intervenções junto aos
demais profissionais.
4
entender os efeitos e impacto desse procedimento, era preciso, em primeiro lugar,
compreender a dinâmica psíquica em jogo e a peculiar relação com a alimentação que eles
pareciam estabelecer. Ao longo do trabalho, pude perceber que este funcionamento dizia
respeito não apenas à comida, mas às suas relações objetais como um todo, sendo a
alimentação apenas a “ponta” do iceberg, como todo sintoma...
E o que foi possível observar? Primeiro, que algumas características se apresentavam
com uma certa regularidade. Por exemplo, os grupos eram, em geral, constituídos por
mulheres, bastante dependentes em suas relações afetivas, com história de uma figura materna
preponderante em suas narrativas pessoais. Observávamos ainda um discurso sobre si bastante
empobrecido, mas com a recorrência do tema do “vazio” - como se este “vazio” se instalasse
quase que concretamente no interior destes corpos “preenchidos” por um excesso de gordura e
pele. Dificilmente conseguíamos que estes sintomas fossem associados à sua história pessoal:
eram como “corpos estranhos” em uma narrativa linear, monótona, sem ritmo, nem
interrupções significativas. Por isto mesmo, passamos a utilizar o dispositivo grupal, visto que
as tentativas iniciais de inclusão em entrevistas individualizadas não foram bem sucedidas.
Até o fim de meu trabalho no hospital, a permanência e a criação destes laços, mesmo
no grupo, pareciam estar sempre “por um fio”, dependendo (muito!) de nosso próprio
investimento no trabalho terapêutico. Sobretudo, era a natureza dos vínculos estabelecidos
por estas pacientes o que mais nos despertava interesse, pois, se por um lado pareciam
extremamente vinculadas, “coladas” a alguns objetos (como no caso da acentuada
dependência materna), por outro, havia um movimento de intenso afastamento, como, por
exemplo, pela grande dificuldade de adesão ao tratamento, quer fosse em relação ao
acompanhamento psicológico, como também, às consultas da nutrição, clínica médica,
endocrinologia).
Assim, mais do que problematizar os resultados da cirurgia, eram as especificidades
desta clínica que passaram a nos interessar. Desta maneira, nosso objetivo nesta pesquisa é
pensar, teoricamente, algumas das questões suscitadas durante o processo de
acompanhamento destes pacientes: as surpresas e dificuldades que a clínica da obesidade nos
reserva.
5
No primeiro capítulo, iremos abordar brevemente algumas das concepções atualmente
estudadas em relação à hiperfagia para, então, justificar, com Balint e Ferenczi, nossa escolha
teórica de pensar esse comportamento menos pelo viés da compulsão e mais com relação aos
aspectos narcísicos, que parecem aí sobressair, especialmente evidenciados pela qualidade das
relações objetais estabelecidas por pacientes. Consideramos esta uma questão relevante na
medida em que tais peculiaridades trazem consigo importantes implicações clínicas,
especialmente com relação ao manejo e à própria possibilidade de tratamento destes quadros,
que podem ser considerados como fazendo parte das chamadas “patologias da
contemporaneidade”, trazendo dilemas e impasses à clínica atual.
6
Capítulo 1: A Surpresa da Clínica
Obesidade e Transtornos Alimentares
Na Classificação Internacional das Doenças (CID-10) a obesidade é considerada uma
entidade nosológica clínica, não psiquiátrica. certo consenso sobre sua causalidade
multifatorial, embora existam estudos sobre possíveis causas orgânicas e genéticas para tal
condição (FANDIÑO; BENCHIMOL; COUTINHO; APPOLINÁRIO, 2004). estudos que
indicam que a prevalência de transtornos mentais na população obesa não difere da população
normal. Entretanto, entre os pacientes obesos que procuram tratamento psiquiátrico, a
depressão parece ser o transtorno mais comum, seguida de transtornos de ansiedade e outros
transtornos alimentares (como a bulimia) (DOBROW; KAMENETZ; DEVLIN, 2002). E
entre os obesos, de forma geral, são os pacientes considerados gravemente obesos (obesidade
grau III
3
) que apresentam um maior índice de comorbidade psiquiátrica, como transtornos de
humor e transtornos do comportamento alimentar (FANDIÑO; BENCHIMOL; COUTINHO;
APPOLINÁRIO, 2004).
Alguns estudos investigam a hipótese de uma parcela da população obesa possuir um
padrão “anormal” de alimentação (o que significa que não comem mais, apenas
proporcionalmente à sua massa corporal aumentada), como o Transtorno do Comer
Compulsivo e a Síndrome do Comer Noturno duas categorias ainda em estudo para serem
incluídas nos manuais de Psiquiatria. Importante notar que os transtornos alimentares figuram
nos manuais psiquiátricos como “síndromes comportamentais”, descritas como
comportamentos isolados, sem nenhuma relação com outras “sintomatologias”, de acordo
com a lógica classificatória, que se pretende unicamente “descritiva” e isenta de qualquer
3
A obesidade é classificada, de acordo com padrões internacionais, segundo o Índice
de Massa Corporal (IMC) do paciente. Tal índice é obtido dividindo-se o peso (em Kg) pela
altura ao quadrado (em m). A obesidade grau I é considerada em indivíduos com IMC entre
30,0 - 34,9; a obesidade grau II para IMC entre 35 39,9kg e a obesidade grau III para
indivíduos com IMC maior que 40kg. (Fonte: ABESO)
7
pressuposto teórico que está presente no DSM-IV.
4
O Transtorno do Comer Compulsivo se
caracterizaria por episódios de um consumo descontrolado de comida, em grandes
quantidades, não seguido de comportamento compensatório, mas acompanhados de
sentimentos de angústia subjetiva, vergonha e/ou nojo. (DOBROW IJ et ali, 2002). a
Síndrome do Comer Noturno é caracterizada por “anorexia matutina, hiperfagia vespertina ou
noturna e insônia” (DOBROW IJ et ali, 2002), também associada à baixa auto-estima e
depressão. Desta maneira, na contramão do esforço dos manuais de psiquiatria em separar,
dividir e classificar, podemos pensar que é a
hiperfagia o comer em excesso,
descontroladamente que aproxima ambas as categorias. Tal sintoma também está presente
na bulimia, que é caracterizada como “acessos repetidos de hiperfagia e uma preocupação
excessiva com relação ao controle do peso corporal, conduzindo a uma alternância de
hiperfagia e vômitos ou uso de purgativos” (CID X), distinguindo-se dos quadros
anteriormente apresentados pela ausência dos chamados “comportamentos compensatórios”,
utilizados como meio de livrar-se do excesso ingerido.
A cirurgia bariátrica, por sua vez, é um procedimento clinicamente indicado para
pacientes com IMC (índice de massa corporal) acima de 40 kg/m
2
ou com IMC maior que 35
kg/m
2
associado a comorbidades (hipertensão, diabetes tipo 2, apnéia do sono etc.). Além
disto, é necessário, pelo menos, 5 anos de histórico de obesidade e de ausência de respostas
“positivas” aos tratamentos ditos “convencionais”. Assim, é para a população de obesos grau
II (com a presença de comorbidades) e III que tal procedimento é indicado. ainda poucos
estudos sobre os aspectos psiquiátricos e psicológicos relativos a esta população. autores
que afirmam que as comorbidades psiquiátricas não são contra-indicações a priori para a
cirurgia (SEGAL, 2002), uma vez que qualquer perda de peso parece ser benéfica para o
organismo como um todo, especialmente diante das altas taxas de mortalidade desses
4
Para isto, cito Pereira: “O que o DSM busca como objetivo maior é a fidedignidade da
categoria diagnóstica: diante de uma mesma configuração sintomatológica, clínicos e
pesquisadores oriundos de diferentes orientações teóricas e de ambientes culturais diversos
devem poder chegar ao mesmo diagnóstico. Para tanto, um sistema ideal de classificação
deveria fornecer critérios explícitos, operacionalmente definidos, diretamente verificáveis e
que reduzissem ao mínimo o uso de inferências teóricas não-diretamente observáveis para a
definição de cada quadro mental. O DSM aspira, dessa maneira, constituir uma forma
pragmática de superação dos impasses colocados pela "confusão de línguas" no campo da
psicopatologia.
Explicitamente, o DSM renuncia a ser uma psicopatologia. Ele busca ser apenas um sistema
classificatório fidedigno dos padecimentos psíquicos.” (PEREIRA, 2000)
8
pacientes, em razão de seus graves comprometimentos clínicos a longo prazo. Outros
destacam que, embora a contra-indicação psiquiátrica não seja absoluta, é fundamental uma
avaliação cuidadosa, ressaltando ainda o possível aparecimento de transtornos psiquiátricos
após o procedimento cirúrgico, especialmente o abuso de álcool e o suicídio (FANDIÑO;
BENCHIMOL; COUTINHO; APPOLINÁRIO, 2004).
Desse modo, a “Medicina Baseada em Evidências”, em seu esforço de legitimar as
práticas clínicas a partir de achados e critérios estatísticos, cada vez mais cinde, separa e isola
do corpo, comportamentos e órgãos, contribuindo para os “especialismos” e para uma visão
fragmentada do corpo e do adoecer.Manuais classificatórios, como o DSM-IV, são reflexos
desta orientação, na medida em que os comportamentos são agrupados e descritos sob a forma
de síndromes, desconstruindo a psicopatologia das entidades psiquiátricas. Como
conseqüência, eximimos o sujeito de sua implicação com o seu próprio sofrimento, reduzindo,
também, na mesma operação, o papel do clínico neste processo.
5
Em última instância, o
elemento humano, com todas as suas nuances, ambigüidades e dúvidas, parece ser
considerado apenas como um elemento de erro, devendo, assim, ser minimizado ao máximo
no processo diagnóstico. Como exemplo, em nosso caso, podemos citar o Índice de Massa
Corporal (IMC), fruto apenas de uma equação matemática, de função normativa, que não
considera o biótipo de cada paciente. A intervenção cirúrgica pode ser vista como o corolário
desta intencionalidade: trata-se de uma medida que parece excluir o sujeito de sua
responsabilidade com o seu próprio sintoma (ANTUNES; SANTOS, 2006).
5
“A MBE [Medicina Baseada em Evidências] tende a substituir a clínica pela
epidemiologia, decretando, de certa forma, um horizonte da morte do clínico, do terapeuta e
do artesão que se dedica à arte de curar.” (PEREIRA, 2000). Entretanto, neste mesmo texto,
o autor chama a atenção para a necessidade de se superar as dicotomias simplistas ou
críticas que somente indicam que tais classificações “excluem o sujeito” sem propor outras
orientações que não o mero antagonismo. Propõe então que se “revitalize” a noção de
psicopatologia: “Torna-se, pois, urgente, para a constituição de uma Psicopatologia apta a
responder aos problemas contemporâneos, que possam ser criados novos e inusitados
objetos de pesquisa e que surjam, conforme propõe Pierre Fédida, novas curiosidades
capazes de revitalizar o debate psicopatológico. (...) Dessa perspectiva, o chamado "objeto
psicopatológico" pode - e deve - ser definido de forma ampla, referindo-se à noção
intuitiva das diferentes formas do padecer humano, deixando-se a delimitação formal ao
cargo de cada uma das disciplinas que dele se ocupa. O que constitui, nesse mesmo
movimento, a psicopatologia como campo de tensão de modelos, de diálogo intercrítico e
de constante exigência de reengendramento epistemológico.” (PEREIRA,2000)
9
No campo da psicologia, por sua vez, não há consenso sobre o trabalho com pacientes
obesos, especialmente com relação a pacientes candidatos ou que se submeteram à cirurgia
bariátrica. Em geral, a literatura destaca a importância da equipe multidisciplinar e do “apoio
psicológico”, em razão das grandes modificações corporais que têm lugar após a realização da
cirurgia. Apontam ainda a necessidade de uma avaliação psicológica cuidadosa, no sentido de
investigar o quanto o indivíduo está ou não emocionalmente apto a submeter-se à cirurgia
(OLIVEIRA; LINARDI; AZEVEDO, 2004). Contudo, embora esta dimensão da avaliação
muitas vezes ocupe o primeiro plano, os critérios utilizados parecem ainda não muito claros,
até pelo fato de tratar-se de um procedimento cirúrgico bastante recente.
A psicanálise, assim, parece ocupar um lugar muito pouco confortável neste campo,
em sua vocação de dar voz a este
sujeito e a seu corpo em sua singularidade, para além das
normas estéticas e culturais vigentes com relação aos ideais de “perfeição” e de “saúde” que
este corpo deve alcançar. Pois, se por um lado, trata-se de um corpo bem diferente do corpo
biológico - esquadrinhado e dividido sob a rubrica das distintas “especialidades médicas,” -
por outro, trata-se de um corpo não submetido apenas à volição consciente, como usualmente
compreendido no campo da psicologia. Desta forma, em nossa clínica, embora estivéssemos
todo o tempo diante de corpos biológicos, muitas vezes comprometidos clinicamente em
função da obesidade, não poderíamos deixar de nos perguntar, antes de tudo, qual a função
desta obesidade na dinâmica psíquica destas pacientes (ANTUNES; SANTOS; 2006). Neste
sentido, o corpo que a todo o tempo parecia convocar nossa escuta – para além de nosso olhar
– era um corpo atravessado por outros elementos: a linguagem, a sexualidade, o desejo.
Assim, partindo do sintoma da hiperfagia, que nos remete ao campo das compulsões e
das patologias do ato, utilizaremos a importante e reiterada referência ao corpo no discurso
destas pacientes para tecer algumas considerações. Desta maneira, usando o referencial
teórico da psicanálise, pretendemos delimitar, nesta pesquisa, nosso objeto de estudo.
A Hiperfagia como Adicção
Gondar, em seu artigo Sobre as compulsões e o dispositivo psicanalítico
(GONDAR, 2001), distingue duas acepções do termo compulsão, em Freud. Na primeira,
10
quando este se refere ao movimento compulsivo em jogo na neurose obsessiva, no qual a
compulsão se remete a um “conflito psíquico de luta subjetiva entre duas injunções opostas,
estando o sujeito impossibilitado de escolher qualquer uma delas” (GONDAR, 2001, p28). O
ato compulsivo, neste caso, é uma compensação à dúvida e à hesitação paralisante do
obsessivo. Gondar enfatiza aqui a questão do conflito psíquico, a questão subjetiva que se faz
representar neste “ato” percebido pelo sujeito como um “corpo estranho” mas que, ainda
assim, pode ser lido à maneira de um sintoma, na medida em que se remete a este conflito.
Por outro lado, na segunda acepção do termo, temos a compulsão em seu movimento
insistente da
compulsão à repetição. Aqui, não estamos no registro do conflito, mas sim, do
movimento pulsional por excelência, anterior a qualquer recobrimento de sentido e, por esta
razão, experienciado pelo sujeito como algo de uma exterioridade própria.
Birman (1992) destaca que, embora a Neurose Obsessiva tenha sido caracterizada pelo
próprio Freud como
neurose compulsiva (zwangneurose), enfatizando o caráter impositivo
deste funcionamento, também podemos distinguir, em uma leitura que priorize a dimensão
econômica em detrimento da representacional, uma distinção entre as dimensões compulsiva
e obsessiva por ele apontadas (FREUD, 1909/1972). Segundo Birman, “A compulsão é
logicamente anterior e primordial, enquanto que a obsessão é uma derivação e um
desdobramento da compulsão no registro do pensamento” (BIRMAN, 1992, p.76) Desta
maneira, é como se o pensamento obsessivo exigisse um trabalho um pouco mais elaborado
do que o simples movimento compulsivo.
É também nesse segundo sentido que Gondar (idem) entende as chamadas patologias
da contemporaneidade, em sua grande maioria, patologias do ato, de caráter compulsivo
(drogadicção, transtornos alimentares, etc.) e imediatista. Interessa-nos aqui o fator tempo no
qual Gondar tenta localizar essa diferença:
...é justamente este elemento de hesitação, fazendo obstáculo à obediência do
mandamento, que se encontra ausente nas compulsões contemporâneas. É como se
fosse eliminado o intervalo de tempo que a dúvida impõe a este processo,
produzindo-se então a compulsão por um caminho mais curto: à injunção impossível
se segue, diretamente, em resposta, a passagem ao ato. (GONDAR, 2001, p.29)
Desta maneira parece que, sem o tempo de suspensão necessária, em vez da montagem
obsessiva, temos que nos haver pura e simplesmente com as intensidades da pulsão
11
intensidades estas vividas e experienciadas no registro do corpo; corpo este que parece ser a
sede privilegiada de uma subjetividade desprovida de uma historicidade e de um fazer no
mundo, como destaca Freire Costa (2004), ao enfatizar a hipervalorização do corpo em nossa
cultura
6
.
Uma das abordagens possíveis do comportamento hiperfágico do obeso situa-o como
uma conduta adicta, em que estão presentes os elementos que o aproximam deste quadro
clínico, como a avidez e a necessidade do objeto-droga (neste caso, a comida). Pois se trata de
pessoas que utilizam, freqüentemente em suas vidas, esta fórmula do “colocar para dentro”,
sem controle, como modo privilegiado de agir, lidando com o excesso de excitação pela via
mais rápida e fácil, ou seja, a da descarga no ato, no corpo, como forma de apaziguamento
(como parece acontecer no “comer compulsivo”). Tal forma de sofrimento poderia, então, se
aproximar do modelo de neurose atual descrito por Freud (1898/1972), e também do que
Joyce McDougall descreve como ato-sintoma:
Essa explosão no corpo, que não é uma comunicação (neurótica) nem uma
restituição (psicótica), tem uma função de ato, de descarga, que provoca um curto
circuito no trabalho psíquico.(...) Descobrimos nesses casos uma carência na
elaboração psíquica e uma falha na simbolização, as quais são compensadas por um
agir de caráter compulsivo, procurando desta forma reduzir a intensidade da dor
psíquica pelo caminho mais curto. (McDOUGALL, 1983, p.134)
De acordo com essa abordagem, estaríamos diante de uma dificuldade de pôr em
marcha o próprio movimento do Desejo, em referência à experiência de satisfação (FREUD,
1895/1972), em seus deslocamentos sucessivos e necessários, que permanece, aqui, quase
paralisado.
Tais quadros de Transtornos Alimentares, assim como outros quadros de
toxicomanias, são considerados por alguns autores como casos-limite, nos quais o que parece
estar em jogo é a própria problemática dos limites e das fronteiras da vida psíquica
(CARDOSO, 2005): a delimitação entre o eu e o outro, o dentro e o fora, incluindo aí também
os limites da própria simbolização que parece, nestes casos, ser sempre precária. Figueiredo
enfatiza, ao descrever a dinâmica psíquica destes pacientes, as grandes oscilações e flutuações
6
“...o substrato do sujeito deixou de ser sua ’alma’, seus sentimentos, seus
pensamentos ou seus atos públicos para ser seu corpo esmiuçado, respeitado, adulado e bem
tratado” (COSTA, 2004, p.95)
12
extremas no campo afetivo e pulsional na organização do self (FIGUEIREDO, 2004), e
Cardoso destaca o modo particular de relação com o objeto (caracterizada pelo que chamou
de
servidão) como se o sujeito permanecesse escravizado a este, que passa a ter o estatuto
de objeto-único (CARDOSO, 2005).
Do ponto de vista da descrição psicopatológica, os elementos acima descritos parecem
fazer todo sentido, encontrando seu correlato na clínica. Entretanto, é a dimensão de
déficit,
implicada na concepção de ausência / carência de simbolização, que parece não ajudar a
compreensão da dinâmica particular desses casos, erigida segundo características bem
singulares. Tal noção de precariedade simbólica faz referência, em Freud, à experiência do
Fort Da e dos sonhos traumáticos (FREUD, 1920/1972), tentativas de inscrição de
experiências consideradas “excessivas”, que, pela impossibilidade de simbolização,
retornariam como simples repetição sob a forma de uma compulsão. Desta forma, é a
dimensão compulsiva, de atuação dos comportamentos – sem dúvida, disruptivos e excessivos
que parece figurar em primeiro plano nessas leituras, sem talvez a devida atenção ao
colorido afetivo ou às qualidades aí em jogo.
Neste sentido, invoco a fala de uma paciente, depois de operada, durante uma sessão:
Antes eu não sabia o que era fome. Sentia dor no estômago e achava que era fome. Não
conseguia distinguir a sensação de estar saciada da sensação de estar cheia, pesada. Antes
era tudo a mesma coisa.” Vazio, fome, dor... Sensações que se misturavam, a princípio sob o
mesmo nome, tendo como resposta o mesmo objeto (a comida), mas que o tempo de cuidado
e espera, que a cirurgia impõe, parece fazer com que sejam distintas e nomeadas, uma a uma,
cada uma a seu tempo, espaço e lugar. Baseado em relatos como estes, em nossa experiência
de acompanhamento desses pacientes, era então o colorido sensorial e afetivo, que
acompanhava as relações que estabeleciam com o mundo dos objetos - que pareciam também
falar do modo como se percebiam, no mundo, sua auto-imagem narcísica o que mais nos
chamava a atenção, muito mais que o caráter compulsivo dos comportamentos.
Hiperfagia e narcisismo: um corpo, um Eu e um Outro:
13
O Ego é, antes e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade
de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície. (FREUD, 1923/1972,
p. 40)
“Não me reconheço no espelho, com este corpo, com esta gordura toda. Quando me olho,
parece que não sou eu.”
“Tenho uma sensação estranha no estômago... Não sei se é fome.”
“Não consigo ver, nem tocar todo o meu corpo. Não consigo nem calçar meu próprio sapato,
pois não consigo ver meus pés.”
A citação de Freud afirma, de saída, a importância da função do corpo como limite,
borda e delimitação ao caos pulsional, especialmente por ser uma
superfície capaz de
perceber sensações
, as quais parecem contribuir decisivamente para a constituição do Eu. Na
nota de rodapé, o texto segue:
... isto é, o ego, em última análise, deriva das sensações corporais, principalmente
das que se originam da superfície do corpo. Ele pode assim ser encarado como uma
projeção mental da superfície do corpo, além de, como vimos, representar as
superfícies do aparelho mental. (idem, p. 40)
Entretanto, as falas das pacientes obesas, como as citadas acima, apontam um grande
estranhamento em relação a este corpo: suas sensações nem sempre conseguem ser nomeadas;
sua imagem parece inadequada; há um corpo impossível de ser visto por inteiro, portando, em
si mesmo, partes “estrangeiras”, inatingíveis.
Esta estranheza em relação ao próprio corpo não é privilégio dos obesos. Qualquer um,
e não necessariamente apenas os psicóticos, experimentou, em algum momento da vida,
este fenômeno. Entretanto, com relação a estas pacientes, mais do que fenômenos pontuais,
efêmeros, a sensação de “desencaixe” entre a imagem de si e o eu parece retornar a todo o
tempo: é como se “habitassem” um corpo (im)próprio seja no sentido de “não eu”, quanto
de inapropriado, não adequado. Paradoxalmente, é como se este corpo, por outro lado, falasse
por si e, muitas vezes, no lugar do Eu. E a descrição do “vazio subjetivo” muitas vezes
parecia falar disso: não era preciso falar dos conflitos, dos problemas. Eles eram visíveis ao
14
olhar, sob a forma desta gordura inapropriada, uma superfície excessiva que parecia então
“falar por si só”, nesta imagem externa sem “interioridade”.
Não podemos deixar de lembrar que o corpo traz, em si, a marca desta estranheza
radical ou do real - como diriam os lacanianos - na medida em que é a sede do pulsional.
Apesar disto, nos ditos “neuróticos”, a sensação de unidade e permanência do Eu, dada pelo
narcisismo, é capaz de manter a necessária ilusão de que este corpo é “meu” e “faz parte de
mim.” Afinal, é o eu “plural” do narcisismo que, através do deslocamento simbólico e das
instâncias ideais, poderá localizar o sujeito na castração e fazê-lo abrir mão de um tempo
passado (o tempo da Sua Majestade o Bebê, o Eu Ideal onipotente) para projetá-lo então em
um futuro promissor e possível (Ideal do Eu) (PINHEIRO, 1995). Mas o que esta clínica nos
faz lembrar é o quanto esta unidade egóica é fictícia, devendo-se, unicamente, à montagem
narcísica, não sendo óbvia, ou dada a priori. Mais ainda, o que vemos é que, em alguns casos,
tal montagem parece ocorrer de modo muito diferente dos já “conhecidos” arranjos neuróticos
ou psicóticos, evidenciando relações entre o Eu, a imagem de si e o corpo que nos fazem
questionar a própria clínica (PINHEIRO, VERTZMANN & MONTES, 2004).
Ferenczi é um dos autores que, no campo da psicanálise, irá propor uma outra forma
de se fazer referência aos fenômenos corporais, tornando-se, por esta razão, um autor
interessante para nossa pesquisa. Até então, a referência ao corpo que a psicanálise possuía
dizia respeito à histeria, sob a forma dos chamados sintomas conversivos. Ferenczi inova ao
se ocupar menos do “significado” de tais sintomas (a via interpretativa usual no campo da
histeria), pensando, antes, em como tais fenômenos são possíveis (REIS, 2004).
Em seu artigo sobre os tiques, Ferenczi traz noções interessantes sobre a relação do
corpo com o narcisismo
7
. Afirma que os tiques são exemplos de automatismos corporais,
estereotipias motoras realizadas de modo automático, involuntário, bem distinto dos sintomas
conversivos encontrados na histeria. Aproxima este quadro de outros mais complexos,
observados em psicoses (neuroses narcísicas), como é o caso dos fenômenos de catatonia, ao
ver neles, como semelhança, o fato de serem situações em que partes (no caso dos tiques) ou
todo o corpo (como no caso da catatonia) passa a ser percebido como algo “estranho”,
realizando movimentos involuntários. Como exemplo, temos o quadro descrito pela
7
Sobre o tema, ver PINHEIRO,T. (2002). “Psicanálise, corpo e a dança contemporânea”.
In: Giovanna Bartucci. (Org.). Psicanálise, arte e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro:
Imago,, p. 237-252.
15
psiquiatria como flexibilidade cérea, em que o corpo parece ser totalmente independente do
eu, tomando a posição “modelada” por qualquer um que se proponha a fazê-lo. Ferenczi
compara este mecanismo ao da
autotomia, possível de ser observado em alguns animais que
têm como defesa separar-se de uma parte do corpo quando esta lhe provoca desprazer. Desta
forma, mesmo o nosso simples reflexo de coçar parece ser uma manifestação deste desejo de
eliminar a parte da epiderme submetida à excitação (FERENCZI, 1921, p 170, 171). Assim,
observa em todos estes exemplos o recurso a um mecanismo bastante primitivo no
desenvolvimento humano, que consiste na sua capacidade de realizar modificações em si
mesmo no sentido de evitar um desprazer, ainda que para isto seja necessário sacrificar partes
de si mesmo.
Ferenczi destaca ainda algumas características comumente encontradas nos portadores
de tiques: em geral, são pessoas “narcisistas”, “infantilizadas”, que vivem “sob o domínio do
princípio do prazer”, não suportando restrições ou contrariedades. Traz o exemplo de um
homem que precisa a todo o tempo tocar o próprio corpo e se arrumar, sendo impossível
deixar de ter a si como foco de atenção, mesmo em lugares públicos. Ferenczi supõe que tais
pessoas parecem não conseguir suportar uma excitação em alguma parte do corpo sem uma
reação imediata de defesa (p.158). Desta forma, conclui ele, “é a hipersensibilidade narcísica
do portador de tique a causa da sua incapacidade a se dominar no plano motor e psíquico”
(FERENCZI, 1921, p. 164). E conclui que uma das funções dos tiques e das estereotipias, se
não a principal, é permitir ao sujeito sentir e se observar através das sensações originárias de
determinadas partes do corpo (idem, p.165).
Neste sentido, a gênese de tais sintomas obedeceria a uma lógica muito anterior à da
formação dos sintomas conversivos, por exemplo. Tais mecanismos primitivos dizem respeito
ao estágio autoplástico, quando o bebê realiza modificações em si mesmo, por estar ainda
impossibilitado de realizar modificações em seu ambiente, para fugir às situações de
desprazer. Além disto, Ferenczi afirma que, através do recurso a esta plasticidade corporal, o
corpo parece ser capaz de simbolizar, possuindo um sistema mnésico específico, denominado
por ele de “sistema mnésico do ego”, responsável por gravar todos os processos psíquicos e
somáticos do sujeito.
E que relação essas noções podem ter com nosso tema? Em primeiro lugar, ao ver no
tique um caso de “automatismo”, não podemos deixar de nos lembrar dos quadros
compulsivos, cuja descrição se refere precisamente à sua característica disruptiva e
16
independente da vontade do sujeito. A explicação de Ferenczi, de tratar-se de pessoas
incapazes de suportar uma excitação, nos remete à proposta de Gondar, destacada acima,
quando caracteriza as compulsões contemporâneas pela ausência do tempo de hesitação.
Neste sentido, a capacidade de simbolização parece ser o que faz a mediação entre o
desprazer e o ato automático, sendo responsável pela inclusão de uma suspensão e de uma
temporalidade possível, para além do simples instante presentificado.
Outro ponto que merece destaque é a questão da localização do eu. Tal noção está
estreitamente ligada à idéia freudiana, presente no texto “Luto e melancolia”, de que tanto na
hipocondria quanto na doença orgânica, o órgão afetado parece concentrar em si todo o Eu do
sujeito (FREUD, 1917/1972). Ferenczi amplia o uso desta noção de plasticidade egóica, ao
propor, como uma das funções dos tiques e das estereotipias, a auto-observação por parte do
sujeito, que, no momento do tique, fica concentrado no órgão responsável pelo movimento
automático. Em nosso caso, pensamos até que ponto a obesidade e a importância concedida à
experiência da alimentação não parecem ter relação com esta questão. Pois, ao lidar com esses
pacientes, às vezes, temos a impressão de que lidamos com sujeitos com um Eu localizado no
estômago. São as sensações de “estar cheio” ou de “estar vazio”, sentir-se saciado ou não, que
fornecem os índices de um diferencial, talvez anterior ao do prazer/desprazer, que tem como
função uma auto-observação que os faça se perceberem como “existentes”.
Finalmente, a partir destas colocações, vemos que Ferenczi, através de suas
observações clínicas bastante sutis a respeito dos movimentos corporais de seus pacientes,
parece radicalizar, em certo sentido, a concepção freudiana de que o corpo não faz parte do
Eu desde o início. Este corpo precisará também de ações específicas para que seja,
progressivamente, habitado por um eu, inclusive capaz de comportar em si mesmo um sistema
mnésico específico (FERENCZI, 1921, p.167) e de reter impressões em um registro distinto
daquele passível de ser expresso em palavras, a partir de marcadores sensoriais.
Em o “O Ego e o Id”, ao se referir à constituição deste “Eu corporal”, Freud toma a
experiência da dor como um destes importantes marcadores na definição da auto-imagem
corporal, especialmente devido à intensidade desta experiência (noção desenvolvida no
texto do “Projeto” e retomada nos “Três Ensaios”), pela sua capacidade de ser experimentada
enquanto uma “percepção interna”. Nas suas palavras,
A psicofisiologia examinou plenamente a maneira pela qual o próprio corpo de uma
pessoa chega à sua posição especial entre outros objetos no mundo da percepção.
Também a dor parece desempenhar um papel no processo, e a maneira pela qual
17
obtemos novo conhecimento de nossos órgãos durante as doenças dolorosas constitui
talvez um modelo da maneira pela qual em geral chegamos à idéia de nosso corpo.
(FREUD, 1923/1972, p. 40)
No texto sobre “A pulsão e seus destinos” (1915), Freud havia feito referência à
experiência da dor.
...temos todos os motivos para acreditar que as sensações de dor, assim como outras
sensações desagradáveis, beiram a excitação sexual e produzem uma condição
agradável, em nome da qual o sujeito, inclusive, experimentará de boa vontade o
desprazer da dor. (FREUD, 1915/1972, p. 149)
Assim, embora a dor fale de uma experiência de uma intensidade excessiva, parece
não ser capaz de oferecer, por si só, nenhuma garantia quanto à natureza de sua dimensão
qualitativa. Segundo a citação acima, os limites entre as sensações desagradáveis e as
agradáveis (como a excitação sexual, por exemplo) não são claros, podendo, inclusive, se
confundir. Parece ser necessária “uma nova ação psíquica” para que este corpo deixe de ter
apenas uma dimensão intensiva, ganhando então uma modulação de qualidades (prazer /
desprazer, agradável / desagradável etc.). Tal experiência pode ser realizada através da
interferência de um outro, pela erogeneização desse corpo, em geral realizado pela mãe ou
quem a substitua. Só assim parece ser possível que este corpo seja então banhado pela
linguagem, adquirindo o estatuto de um corpo erógeno e não apenas um organismo
biologicamente funcional. Será através das experiências sensoriais das mais diversas e suas
subseqüentes nomeações, em um “jogo” entre o bebê e a mãe, que esse corpo irá delimitando
contornos e limites, organizando as pulsões parciais e dispersas, rumo a uma unificação. A
oralidade, através da experiência da amamentação, tem um lugar fundamental neste processo,
embora não seja a única:
O prazer da mãe em amamentar se une ao prazer do bebê de ser amamentado,
registrado pela reciprocidade contemplativa que é como uma sina entre quaisquer
amantes. Se o instinto cria seu próprio objeto mental (o seio) e é guiado pela urgente
demanda da fonte (a fome), a paixão erótica da mãe encontra a pulsão do bebê de ser
amamentado (...) e ambos são transformados. A pulsão busca somente a extinção da
excitação, mas ela é alterada para sempre pelo erotismo materno que vincula a
pulsão ao desejo do outro, a partir do qual um novo objeto é construído. (...) Bebê e
mãe estão saciados pela amamentação como uma experiência somática, erótica e
emocional. (...)
[Mas] Não é somente por meio da amamentação que a mãe passa seu erotismo. Ela
banha o bebê em imagens sonoras sedutoras, murmurando, arrulhando, gemendo,
18
atraindo o ser do bebê de seu encrave autista ao desejo por esta voz. Enquanto a mãe
nomeia os gestos do bebê por “uis” e “ais” onomatopoéticos, ela estende o corpo do
bebê por esta imagem sonora que é a parole materna. (...) A fala materna vincula a
linguagem ao desejo muito antes de as palavras-por si-mesmas serem utilizadas pela
criança a fim de expressar desejo. Ao “vocalizar” o corpo da criança, a mãe toca seu
bebê com dedos acústicos, anteriores a todas as conversões da palavra em corpo e,
da mesma forma, alcançando o inverso, que o corpo é colocado agora em
palavras. (BOLLAS, 2000, pp 67-68)
Vemos, então, que uma das condições fundamentais para a constituição deste Eu a
partir do corpo é o investimento materno, sua possibilidade de olhar para o bebê de modo a
atribuir sentido à sua existência, a começar pelo seu corpo e sua progressiva libidinização.
Assim, a possibilidade de constituição de um Eu, inicialmente a partir de um corpo, é
atravessada pela necessária existência de um outro humano, em especial, de uma mãe capaz
de realizar este investimento.
Retomando as falas das pacientes, destacadas no início desta seção, talvez possamos
pensar que a relação de estranhamento entre o Eu e o corpo presente indique uma
problemática no modo como este corpo foi investido por estes adultos, particularmente, pelo
olhar desta mãe. Lambotte, ao se referir ao seu modelo metapsicológico da melancolia, fala
de sua proposição da “moldura vazia” (LAMBOTTE, 1997) – como se o olhar da mãe
atravessasse o bebê, fixando-se mais adiante. Não se trata de negar a existência do bebê, mas
é como se seu interesse estivesse simplesmente em outro lugar. Em alguns casos das
chamadas “patologias da contemporaneidade,” parece que tal descrição faz todo o sentido,
embora guarde suas especificidades. E é no contexto da pesquisa, desenvolvida no NEPECC,
que nossa investigação tem lugar
8
.
Entretanto, para além dessa dimensão do olhar, queremos aqui dar especial atenção à
experiência de modulação das sensações corporais realizadas por essa mãe, através da
nomeação, principalmente pelas experiências referidas à oralidade o primeiro “buraco” no
8
Sobre este tema, ver PINHEIRO, T.; VERZTMAN, J. S.; BARBOSA, M. T. Notas
sobre a transferência no contexto de uma pesquisa clínica. Cadernos de Psicanálise
(Sociedade de Psicanálise/RJ), v. 22, p. 291-313, 2006; PINHEIRO, T.; VERZTMAN, J.
S.; VENTURI, C.; VIANA, D. A.; CANOSA, L.; CARAVELLI, S. A. L. Patologias
narcísicas e doenças auto-imunes: algumas considerações sobre o corpo na clínica.
Psicologia Clínica, v. 18.1, p. 193-206, 2006; PINHEIRO, T.; VERZTMAN, J. S.;
SACEANU, P.; VIANA, D. A. Patologias narcísicas e doenças auto-imunes: discussão da
metodologia de pesquisa. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, v. IX,
p. 647-667, 2006; PINHEIRO,T. Depressão na contemporaneidade. Pulsional revista de
psicanálise, São Paulo, n. 182, p. 101-109, 2005.
19
corpo, que se abre em direção a uma exterioridade e a importância que esta experiência
parece ter para a própria constituição daquilo que Freud então irá chamar, em “O Ego e o Id”,
de “Ego corporal”. Assim, será neste “jogo” de sons e sentidos entre a mãe e o bebê que esta
superfície corporal será marcada por estas primeiras impressões, que passarão do campo das
sensações ao dos sentidos. Queremos destacar a importância do ambiente deste primeiro
adulto (em geral a mãe), capaz de olhar, tocar, investir e brincar com este bebê. Enfim, um
adulto capaz de, a partir do primeiro e necessário encontro, inventá-lo, tornando possível a
ficção deste Eu (PINHEIRO, 1995).
Winnicott
, por exemplo, é um autor que explorou bastante esta idéia da importância do
ambiente para que a noção de
continuidade do ser se desenvolva adequadamente
(WINNICOTT, 1962, 1963, 1945). Assim como ele, outros autores da chamada escola de
relações objetais também se ocuparam em estudar estas relações precoces entre o bebê e seu
entorno. Balint é um deles, tendo produzido um vasto e original material sobre o tema. É
considerado um pensador independente, assim como Ferenczi, seu mestre e um dos nomes
mais importantes da chamada Escola de Budapeste. Ambos têm como marca uma experiência
com “casos difíceis”, fronteiriços, sempre privilegiando a clínica, sem dogmatismos ou
hipocrisia, tendo o narcisismo como um dos eixos principais de suas proposições teóricas.
Balint, em especial, é um autor muito preocupado em descrever a qualidade dessas primeiras
relações e as reações do Eu à experiência de surgimento dos objetos. Neste sentido, pensamos
ser um autor interessante para nossa pesquisa, na medida em que se propõe a pensar o modo
como este Eu precoce se relaciona - sua organização e função. Embora seja difícil escapar a
uma compreensão deficitária dos quadros das ditas “patologias da contemporaneidade”
(parecendo que estamos apenas trocando a idéia de déficit simbólico pela idéia de
insuficiência do olhar ou do cuidado materno), pensamos que, ao estudar e pensar o modo
como tais subjetividades se organizam e suas funções, deslocaremos um pouco nosso olhar,
de forma a positivar estes modos de subjetivação.
Concluindo, no sentido de ampliar nossa compreensão do fenômeno da hiperfagia,
pretendemos, nesta pesquisa, abordar a questão para além da dimensão do déficit simbólico e
de seu aspecto econômico. Acreditamos que aspectos como a imagem de si, o olhar do outro,
identidade e permanência de si ganham um importante relevo nesta clínica,
independentemente da organização subjetiva em jogo (histeria, neurose obsessiva etc.).
Queremos, assim, pensar algumas particularidades do discurso sobre si produzido por estes
20
sujeitos. Especialmente, gostaríamos de enfatizar as peculiares qualidades dos vínculos
objetais estabelecidos por estes pacientes e, para isto, utilizaremos como principal referencial
teórico M. Balint. Por ser um autor pouco conhecido, no segundo capítulo, ocuparemo-nos de
apresentar uma breve revisão de sua teoria a respeito das relações objetais precoces. No
terceiro capítulo, com Balint e retomando Ferenczi e seu conceito de introjeção, tentaremos
analisar, através de alguns fragmentos clínicos, as possíveis funções deste corpo obeso e sua
constituição. Concluímos então nossa pesquisa pensando em algumas conseqüências, para o
manejo clínico, deste estudo.
21
Capítulo 2 – Balint e as relações primárias como entorno:
2.1 – Balint e a Alteridade
Neste capítulo, pretendemos expor os principais pontos do pensamento de Balint e sua
contribuição à teoria psicanalítica, uma vez que este é um autor muito pouco estudado entre
nós. Seus trabalhos, sobre grupos e a respeito da articulação entre psicanálise e medicina,
visando a uma concepção menos reducionista do adoecimento físico, são um pouco mais
conhecidos, especialmente na área de “psiquiatria de ligação”. Neste sentido, pensamos que
este é também um autor interessante, já que o trabalho com estas pacientes se desenvolveu no
contexto de uma instituição hospitalar, lugar, por excelência, da primazia do saber médico
sobre a questão do adoecimento. Porém, o que queremos destacar neste capítulo é a
importância concedida à dimensão da alteridade, suposta como originária no desenvolvimento
do psiquismo, assim como sua descrição dos estados mais primitivos de relacionamento do
self com o entorno, destacando algumas noções que utilizaremos no capítulo seguinte, ao
discorrer sobre a clínica da obesidade.
A Crítica ao Narcisismo Primário
Michel Balint se inscreve na tradição psicanalítica da teoria da relação de objeto. É
húngaro e, testamenteiro de Ferenczi, chega à Inglaterra incumbido da publicação das obras
deste último, considerando-se um defensor de seu legado. Ambos têm em comum uma clínica
com pacientes graves psicóticos, borderlines, - o que os leva a desenvolver teorizações que
falam dos impasses que esta clínica lhes impõe, abordando problemas bem distintos dos
desenvolvidos por Freud. Entretanto, ao longo de sua obra, embora parta de pressupostos
ferenczianos, Balint acaba por desenvolver contribuições bastante originais.
22
Balint formula a idéia de Amor Primário, por oposição e crítica ao conceito de
narcisismo primário em Freud. Sua inscrição na teoria das relações de objeto se
precisamente por esta via, uma vez que Balint irá partir do pressuposto que o sujeito nasce
nesta estreita, íntima e dependente relação com o meio que o cerca (o entorno), concepção
radicalmente distinta da suposição freudiana do sujeito auto-erótico do narcisismo primário.
Assim, supor o amor como primário e original é supor que a constituição subjetiva se dá,
fundamentalmente, em uma relação alteritária, sendo o narcisismo, então, um processo
essencialmente defensivo, uma vez que implica em uma cisão do Ego. Sua argumentação
crítica a respeito do narcisismo primário, a favor da suposição da relação objetal precoce, é
bastante minuciosa.
Balint afirma que o narcisismo primário é uma hipótese teórica que carece de
observações clínicas que a comprovem, por oposição ao narcisismo secundário, o qual é rico
em exemplos clínicos. Aponta contradições importantes a respeito do tema em Freud,
afirmando que este mantinha, a respeito do assunto, três pontos de vista, distintos e
contraditórios entre si, mas com uma datação simultânea. Segundo a leitura de Balint, Freud
aponta a relação objetal primária, o auto-erotismo primário e o narcisismo primário, todos
eles, como sendo o modo primeiro de relação do bebê com o entorno; expressões estas que,
segundo sua leitura crítica, não podem ser consideradas como equivalentes. Vamos à sua
argumentação.
Retomando o texto freudiano dos
Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade
(FREUD, 1905/1972), Balint irá destacar a passagem que considera a mais antiga das
concepções freudianas sobre as relações objetais (ou o seu primeiro ponto de vista). Lá
encontramos a idéia de que, inicialmente, a pulsão sexual tem um objeto fora do corpo da
criança, tornando-se auto-erótica somente em um momento posterior, o que leva Freud a
concluir, em uma bela formulação, que qualquer encontro com o objeto é, na verdade, um
reencontro. Balint aponta que, apenas em 1915, esta passagem ganhará uma nota de rodapé,
na qual Freud acrescenta a descoberta de mais uma modalidade de satisfação, a saber, a
narcísica. A partir destas observações, Balint irá sustentar, a favor de sua própria teoria, que,
mesmo após a teoria do narcisismo (1914), Freud ainda parece manter a tese da existência de
uma relação objetal precoce, apesar da noção de narcisismo primário já haver sido formulada.
Prosseguindo em sua argumentação, o segundo ponto destacado na obra freudiana
sobre a relação mais primitiva do indivíduo com o entorno pode ser encontrada no texto de
23
1914 - Sobre o Narcisismo, uma Introdução. Lá, Freud faz referência ao narcisismo como
uma fase intermediária entre o auto-erotismo e o amor objetal, a qual só poderá existir se uma
nova ação psíquica
for acrescentada ao auto-erotismo inicial, das pulsões auto-eróticas, onde
ainda não existe uma unidade como o Ego. Assim, de acordo com este ponto de vista, a
primeira relação do indivíduo com o entorno é definida como sendo o auto-erotismo, daí em
direção ao narcisismo e, posteriormente, às relações objetais. Balint destaca então que este
“percurso” libidinal deveria ser considerado como paralelo ou alternativo ao antes sustentado
nos “Três Ensaios” (destacado acima), na qual haveria, como hipótese, uma relação objetal
precoce do indivíduo com o entorno (sendo, por isto, o encontro com um objeto um
reencontro). Pois, pensando nestes termos, é possível compreender melhor os dois tipos de
escolha de objeto apontados por Freud, a saber: o tipo anaclítico, que implicaria uma relação
objetal precoce com o entorno; enquanto seria no tipo narcisista que haveria, então, a presença
do narcisismo como esta fase intermediária entre o auto-erotismo e o amor objetal.
Com essa observação, o que Balint quer destacar, apoiado em algumas passagens
freudianas, é a afirmação do narcisismo como um processo secundário e, a seu ver (como
desenvolveremos melhor a seguir), essencialmente defensivo. Ainda a favor dessa leitura,
destaca sua surpresa com o fato do narcisismo primário ter se tornado “a teoria padrão sobre a
relação mais primitiva do indivíduo com seu entorno” (BALINT, 1993, p.34), apesar de Freud
não haver desenvolvido satisfatoriamente a noção de narcisismo primário no texto de 1914
(
Para introduzir o narcisismo). Talvez por isso, por ter sido esta sua última referência sobre o
tema, ao apontar o ego como o grande reservatório de libido inicial, no narcisismo primário,
possamos entender porque tenha se tornado a “concepção vitoriosa” no campo psicanalítico.
Balint tenta então recolocar o problema, ao dizer que, se Freud sustentou os três
pontos de vista distintos sobre esta relação primitiva do indivíduo com o seu entorno
(narcisismo primário, amor objetal primário e auto-erotismo) é porque não as considerava
contraditórias. E segue apontando as contradições em relação ao modelo topográfico, de se
definir com mais precisão, que parte do aparelho psíquico seria investida pelo hipotético
narcisismo primário – se o Id ou o próprio Ego. As contradições permanecem, e a questão que
parece ficar aparentemente sem resposta, é “Existiria um narcisismo primário no ego?” E,
como conseqüência, “Onde é então o lugar e qual o papel do narcisismo primário?”
(BALINT, 1993, p.38)
24
Outros autores e comentadores de Freud parecem ter tentando resolver esta questão,
primeiramente apontando que ele talvez tenha utilizado o termo “grande reservatório de
libido” em dois sentidos distintos como fonte de suprimento e como local de armazenagem
da libido. Mas, de toda forma, Balint vai dizer que tal observação continua sem resolver o
problema, que não esclarece a questão sobre o que é, de fato, investido pelo narcisismo
primário. Outra possível saída deste impasse teórico, apontada por autores como Hartmann,
Kris e Lowenstein, é a consideração sobre o uso indiscriminado que Freud parece fazer do
termo Ego – tanto se referindo ao “si próprio” quanto ao sistema egóico. Propõem então o uso
do termo
self – o si mesmo – para resolver o impasse freudiano.
Balint, por sua vez, critica esta tentativa de “emendar” a teoria freudiana, apontando
que, com isto, não resolvemos a contradição; e volta a afirmar o cuidado de Freud com as
observações clínicas sobre as quais baseava suas formulações teóricas, vendo nisto uma
espécie de justificativa para a manutenção destes pontos de vistas contraditórios. E é
finalmente sobre a clínica que Balint irá se debruçar, apresentando como argumentação
decisiva que, se Freud manteve, até o fim, a hipótese do narcisismo apontando para um
investimento do ego, era porque isto era o que se poderia observar na clínica. Entretanto, o
que Balint irá sustentar, é que os exemplos clínicos utilizados por Freud falam, em verdade, a
favor do narcisismo secundário e não do narcisismo primário, como no caso das doenças
orgânicas, da hipocondria, da homossexualidade e da vida erótica sexual.
Balint destacará, então, dois dos demais exemplos utilizados por Freud a favor da
condição narcísica o exemplo do sono e os pacientes que sofrem de “neuroses narcísicas”
(psicóticos) – apontando que parecem ser, de fato, os únicos que não fazem alusão ao
narcisismo secundário. Mas faz uma releitura destas condições, não apenas contra o
narcisismo primário, mas já enunciando, pouco a pouco, sua própria hipótese acerca da
relação precoce do self com o entorno. Dirá ele que, com relação ao exemplo do sono, sendo
uma situação de regressão, que se questionar até que “ponto de fixação” tal regressão visa
alcançar:
Aparentemente, o orgasmo do coito e o fato de adormecer podem ser atingidos se
for possível estabelecer, entre o indivíduo e seu entorno, um estado de ‘harmonia’
ou, pelo menos, de paz. Uma das condições para esse estado de paz é que o entorno
aceite o papel de proteger o indivíduo de qualquer estimulação perturbadora externa,
não lhe infligindo nenhum tipo de estímulo excitante ou perturbador. (...) Assim, o
ponto ao qual tenta chegar a pessoa adormecida, em sua regressão, talvez seja, não o
do narcisismo primário, mas o de uma espécie de estado primitivo de paz com o
entorno, no qual (...) o entorno ‘sustenta’ o indivíduo. (BALINT, 1993, p.45)
25
com relação aos pacientes que sofrem de desordem narcísicas, ou pacientes
regredidos em situação de análise, Balint enfatiza a extrema sensibilidade destes a qualquer
modificação em seu entorno, incluindo modificações em relação ao setting e aos humores
do analista e aqui reconhecemos claramente a influência de Ferenczi e sua sensibilidade
clínica afiada em relação ao lugar e à técnica do analista diante dos chamados “pacientes
difíceis”. Nas palavras de Balint,
Parece então que a bem fundamentada observação clínica da retirada esquizofrênica
não pode ser utilizada como prova de um estado narcísico primário. De fato, seria
mais correto dizer que o esquizofrênico possui um laço mais íntimo e é muito mais
dependente de seu entorno do que o ‘normal’ ou o ‘neurótico’. (ibidem, p.49)
E estende seu exemplo a todas as pessoas chamadas de “narcisistas”:
Assim, chegamos à conclusão de que o homem ou mulher realmente narcísico é, na
verdade, apenas um fingido. São desesperadamente dependentes de seu entorno e
seu narcisismo pode ser preservado se o entorno quiser ou for forçado a cuidar
deles. Em geral, isso é verdade, desde o maior ditador até o mais humilde catatônico
(ibidem, p.50)
Assim, com estes exemplos, Balint destaca que esta retirada libidinal em direção ao
ego, que aparece tanto no sono quanto nos pacientes regredidos, é secundária em relação a um
momento inicial de relação com o entorno, em que este tem a função fundamental de cuidar,
proteger, sustentar e garantir a sensação de existência do indivíduo. Trata-se, pois, de uma
relação com uma qualidade de vinculação muito particular. Retomando as palavras utilizadas
por Balint nas citações acima, fala-se aqui de um laço “íntimo”, “dependente”, um “estado de
paz” e “harmonia”.
Amor Primário
A crítica ao conceito de narcisismo primário não é nenhum ineditismo de Balint. A
maior parte dos pós-freudianos o considera um ponto na teoria psicanalítica, no mínimo,
bastante controverso. Mas, mais do que tudo, o que Balint parece querer enfatizar com sua
crítica minuciosa é o despreparo do bebê humano frente à vida, e sua necessidade imperiosa
26
de um outro também humano que o ampare neste momento inicial - daí sua afirmação de que
o narcisismo só pode ser pensado como um processo defensivo e secundário em relação a uma
etapa primordial onde deve haver uma relação objetal precoce com um entorno que o sustente
e proteja.
Esta etapa primordial na vida humana é o que Balint denomina de “Amor Primário”.
Dirá ele que, inicialmente, não podemos distinguir o que é o feto e o que é o entorno que o
sustenta (o líquido amniótico), uma vez que se trata de uma “mescla harmoniosa
interpenetrante” (ibidem, p.60), onde não há objetos, só “substâncias ou expansões sem
limites” (ibidem, p.61). Balint compara esta relação à do peixe e a água, em que também é
impossível dizer se a água em suas guelras e boca pertence ao peixe ou ao meio que o cerca.
Outro exemplo é a relação que temos com o ar que respiramos e que está em nossos pulmões:
não podemos dizer a quem este ar pertence. Trata-se de um estado onde não lugar para
reivindicações sobre estas posições ou lugares (pois sequer cabe a pergunta sobre a quem
pertence este ar), sendo esta mistura interpenetrante, precisamente, o que caracteriza a
interdependência entre a criança e a mãe. As coisas necessitam estar aí, dessa maneira, e
nos damos conta que nos falta ar, por exemplo, se estivermos em uma situação deficitária em
relação a este suprimento. Caso contrário, simplesmente não nos damos conta que ele existe.
Nas palavras do autor:
Esse tipo de entorno simplesmente deve estar ali, e enquanto estiver (...) damos
como certa sua existência, não o considerando como um objeto, isto é, separado de
nós; simplesmente o utilizamos. (ibidem, p.60)
Balint irá caracterizar esta relação como uma interdependência baseado em fatos
biológicos, do intenso investimento do entorno em relação ao feto e da necessidade de uma
certa “acomodação recíproca” entre estes dois elementos. Mas o que vai enfatizar é que,
embora haja a interdependência, estamos lidando, desde o início, com dois elementos
distintos. Pois, ainda que Balint use a expressão mistura “harmoniosa”, parece que não se trata
nem de uma idéia de unidade, nem de ausência de movimento ou “perfeição”. Por isto
preferimos a expressão, também utilizada pelo autor, “mistura interpenetrante”, na qual
comparece a idéia de uma mescla de elementos heterogêneos, de conteúdos e texturas
distintas, sendo possível pensar em acomodações e encaixes em um curso fluido de
acontecimentos ao contrário de um “tempo parado” de um estado de suposta “harmonia”.
Como no exemplo do narcisista, o entorno precisa desempenhar ativamente o seu papel de
27
contrapartida ou “duplo”, tanto para que o ditador seja tirânico (com uma multidão submissa),
quanto para que o catatônico sobreviva (tendo um entorno que o assegure). Nas palavras de
Balint, podemos ver o quanto ele também enfatiza a dimensão de
atividade e de resposta da
criança em relação ao entorno:
Julgamos que seria muito mais simples aceitar a idéia [contrária ao narcisismo
primário] de que, desde o começo, existe a relação com o entorno de uma forma
primitiva e que
a criança pode dar-se conta e responder a qualquer mudança
considerável nele.
(ibidem, p.57) (grifo nosso)
São, então, nessas acomodações e reacomodações recíprocas, nas respostas da criança
ao entorno e vice-versa - que pressupõem uma intensa
sintonia entre o bebê e o meio - que o
self irá se constituir, a partir da “abertura” precoce para esta modalidade de relação de
qualidades e atributos bem particulares, o amor primário. Uma das características dessa
relação é que, aparentemente, um dos parceiros conta, enquanto cabe ao outro permanecer
nesse lugar de sustentação, diante da qual se fará notar se faltar em sua função de provisão
primeira assim como no exemplo do ar em nossos pulmões. Assim, a função primordial
desse entorno é cuidar e proteger sem se fazer notar, não existindo ainda como uma percepção
de objeto separado. Será então a mãe o objeto primário que portará estas características, após
a experiência do nascimento. Outras qualidades que podemos destacar aqui são a confiança, a
intimidade e o forte vínculo afetivo, sincrônico todos afetos que dizem respeito à esfera
mais primitiva do Amor Primário.
Todo esforço de Balint vai no sentido de defender a existência dessa relação primitiva
entre a criança e o entorno, que vai da mistura interpenetrante à progressiva emergência de
objetos a partir deste “‘oceano’ não estruturado”
9
(ibidem, p.55). E é, precisamente porque
para ele, desde a etapa mais primordial, trata-se de uma relação, que se torna impossível
imaginar esse estado primeiro, original, do indivíduo como a mônada auto-erótica do
narcisismo primário. O bebê existe na sua relação com o entorno, como também dirá
Winnicott.
Por outro lado, seu esforço chega às raias de uma obstinação, pois, segundo algumas
leituras, poderíamos estar diante de um certo impasse lógico. Afinal, como caracterizar como
relação algo em que o sujeito ainda não comparece? Ou podemos inferir que ali, nesta
9
A metáfora do “oceano” é utilizada aqui por Balint em uma clara referência a
Ferenczi, para quem o termo tem grande importância. (FERENCZI, 1924/1993)
28
“mistura interpenetrante”, existe um Sujeito? Souza comenta acerca deste problema em um
artigo sobre a história do movimento psicanalítico; se por um lado, valoriza a noção de
sintonia em Balint, por outro lado, aponta para esta contradição:
Balint, contudo, ao insistir na idéia de uma relação primária amorosa de objeto, no
sentido de uma sintonia entre sujeito e objeto, não pôde se livrar de certa concepção
de sujeito já dada, anterior ao relacionamento com o objeto. (SOUZA, 2000, p.227)
Entretanto, talvez esse seja um falso problema. Em primeiro lugar, Balint utiliza
poucas vezes o termo Sujeito também não utilizado por Freud, mas sim por autores pós-
freudianos, que irão apontar o Sujeito como referido, essencialmente, à questão da castração e
à travessia do Édipo. Prefere usar termos como
indivíduo, self, porque, a nosso ver, suas
questões teóricas são outras. Balint está preocupado em definir e descrever processos bastante
precoces do desenvolvimento do
self que ocorrem antes mesmo que este possa se reconhecer
como “sujeito” – o que não significa que tais experiências não sejam capazes de deixar
marcas e cicatrizes - ou “falhas” - profundas.
Salem (2003) aponta, como uma contribuição interessante a este debate, o uso da
noção de “substância” em Balint. Quando usa o exemplo do ar, ao falar sobre o amor
primário, Balint ressalta o fato de tratar-se aí de uma “substância” e não de um objeto
(BALINT, 1972), o que lhe confere a propriedade de ter contornos indefinidos, podendo,
então, se apresentar como esta “mistura interpenetrante”. Salem justifica:
Ao invés da mônada narcísica freudiana, Balint afirma a presença imediata da
relação com o outro. Freud não teria dado suficiente atenção a essa relação pelo fato
dela não assumir a forma de relação do sujeito com a ‘representação’ idéica ou
imagética do objeto. Todavia, se o bebê, de fato, não possui o equipamento mental
para representar o outro relacional, isso não impede que a relação com a alteridade
exista.
O conceito de substância vem, justamente, remediar essa lacuna na teoria freudiana.
Com ele é possível sustentar, de modo coerente, a idéia de uma alteridade
primordial, que é percebida, embora não ‘representada,’ como imagem ou idéia de
um objeto distinto do sujeito. (SALEM, 2003, p.38) (grifo nosso)
Esta idéia de substância nos parece interessante na medida em que vai nos falar da
presença de um outro que é, antes de tudo, percebida ao nível sensorial, portando uma
dimensão de espacialidade, incluído sua forma e peso, antes mesmo de sua possibilidade
de representação. Assim, mesmo sem estar ainda dotado de um “aparelho para representar”, o
29
self, enquanto totalidade (como no conceito de psicossoma winnicottiano
10
), é capaz de
perceber modulações e qualidades mínimas do ambiente em termos de sensações e percepções
extremamente acuradas.
Mais adiante, ao falar sobre a idéia de objeto em Balint, retomaremos esta noção que é
cara à nossa pesquisa. Por ora, “sintonia”, “substância”, ambos são constructos teóricos que
parecem fazer todo o sentido, especialmente diante da clínica com pacientes graves ou em
situações de “regressão”. Balint as denomina assim, porque, quando estas relações primitivas
não se passam a contento, as conseqüências são catastróficas. Vemos sujeitos que
permanecem voltados intensamente para o objeto e que, no dizer de Peixoto Jr., “nunca vão
além do nível do pré-prazer, no sentido freudiano do termo”. (PEIXOTO JUNIOR, 2003, p.
23). São os traumatizados de Ferenczi, os falsos-selves de Winnicott. Para Balint, pacientes
comprometidos no nível da Falha Básica. Vamos a eles.
A Falha Básica e as Três Áreas da Mente
Ao enfatizar a importância da dimensão da alteridade em Balint, não podemos deixar
de mencionar que este é um traço característico de sua herança ferencziana e da chamada
Escola de Budapeste (Ferenczi, Hermann, Torok, Abraham etc.). Historicamente, podemos
situar em Ferenczi, com sua retomada da teoria do trauma - muito depois da superação da
teoria da sedução em Freud, - essa valorização do impacto das qualidades do meio sobre o
psiquismo, em contraposição às concepções kleinianas vigentes na época de Balint, de caráter
essencialmente internalista e intrapsíquico a partir de uma supervalorização do conceito de
fantasia (SOUZA, 2000). Como ilustração, observamos o uso bastante original que faz do
termo “introjeção”, que em Freud aparece como um termo instável, sem grande precisão
teórica, mas que Ferenczi utiliza como um conceito-chave para sua leitura do processo de
subjetivação.
Balint pensa o processo de subjetivação como sucessivos cortes, rupturas, da mistura
interpenetrante do amor primário - sendo o nascimento a primeira grande e importante ruptura
- até o surgimento dos objetos – resistências e “durezas” que irão emergir das “expansões sem
10
Para isto, ver “A Mente e Sua Relação com o Psicossoma” (WINNICOTT, 1949).
30
limites” da mescla harmoniosa. Assim, enquanto Ferenczi fala dos traumas e das catástrofes
11
,
Balint vai discorrer sobre as falhas. Nas suas palavras:
O termo ‘falha’ tem sido utilizado em algumas ciências exatas para indicar
condições que lembram o que estamos discutindo. Assim, por exemplo, em geologia
e cristalografia, a palavra ‘falha’ é utilizada para descrever uma súbita irregularidade
na estrutura total, uma irregularidade que, em circunstâncias normais, estaria
escondida, mas, se houver pressões ou forças, pode levar a uma ruptura, alterando
profundamente a estrutura total. (BALINT, 1993, p.19)
São as pressões e forças circunstanciais que podem fazer irromper a falha que, por sua
vez, também é resultante de pressões e forças excessivas ocorridas em um momento no qual o
aparelho psíquico parece não ter sido capaz de se proteger adequadamente. É a força do meio,
do exterior, a irrupção do traumático, colocando o aparelho psíquico em movimento, mas,
algumas vezes, também em risco.
A imagem é preciosa. E Balint utiliza esta metáfora da “falha” ao se referir aos
“pacientes difíceis” aqueles que não respondem “adequadamente” à técnica analítica
clássica, embora não se apresentem, aparentemente, como psicóticos ou com quadros de uma
neurose narcísica clara (contra-indicações evidentes ao tratamento psicanalítico tradicional).
Balint se pergunta então, seguindo a trilha ferencziana
12
, se o problema está de fato do lado do
paciente ou se estamos diante de uma inadequação da técnica utilizada.
Embasado no trabalho clínico, Balint vai falar da existência de dois níveis de trabalho
analítico, edípico e pré-edípico, de manejo e técnicas distintas, em função da área da mente
que está em trabalho e da conseqüente capacidade do paciente vivenciar as interpretações do
analista como interpretações (e não como ataque, confusão, ou mesmo indiferença do
analista).
Para que o paciente seja capaz de reconhecer uma interpretação, tanto ele quanto o
analista precisam estar “falando a mesma língua”, ou seja, precisam estar no mesmo registro
ou sintonizados nos processos mentais referentes à mesma área, cabendo ao analista ser
11
Para isto, ver Thalassa ensaio sobre uma teoria da genitalidade (FERENCZI,
1924/1993).
12
Ferenczi era um grande crítico das defesas institucionais dos analistas, tendo como
tema de alguns de seus mais importantes artigos, esta questão da hipocrisia dos analistas.
Sua posição foi sempre de moldar a técnica para que esta pudesse “servir” aos mais
distintos pacientes, sendo capaz de inovações técnicas importantes, como a técnica ativa e a
neo-catarse. (FERENCZI, 1921, 1926, 1928, 1930).
31
suficientemente sensível às mudanças no uso da linguagem por parte do paciente
13
. Balint dirá
que os pacientes são considerados difíceis não porque “intratáveis à psicanálise”, mas sim
porque os analistas não são capazes de perceber a mudança de registro ou de linguagem
efetuada por seus pacientes. Eles continuam a lançar mão das interpretações, sem que estas
possam causar, de fato, algum efeito no paciente, ao menos enquanto este estiver vivenciando
processos referentes à área mais “primitiva” da mente. Balint não quer dizer que os analistas
ignorem os fenômenos pré-edípicos, mas afirma que eles parecem trabalhar este material
utilizando a linguagem adulta (interpretações), inadequada aos processos referentes a esta
área.
Mas que áreas seriam essas? Balint vai entender o self - ou a “estrutura total” - como
podendo ser esquematicamente subdividida em três áreas distintas, cada uma representada por
um número, a saber: a área da criação (número 1), a área da falha básica (2) e a área do
complexo de Édipo (3). Cada uma delas tem características bem distintas, especialmente em
relação à tonalidade dos movimentos transferenciais e contra-transferenciais, observados na
clínica, e aos afetos aí em jogo.
O nível edípico é o mais conhecido e estudado pela teoria psicanalítica. A primeira
característica é que estamos aqui em uma relação a três, uma triangulação na qual
comparecem, além do sujeito, ao menos dois outros objetos (duas pessoas, no caso da situação
edípica, ou dois objetos paralelos). Balint considera ainda como relação triangular as fases
oral e anal. A segunda característica é a natureza da
relação entre estes três elementos, que,
dada a sua complexidade, é sempre da ordem do conflito, uma vez que estão em jogo a
ambivalência em relação a estes objetos, a interdição e todos os seus derivados. A terceira e
última característica diz respeito ao fato de que, no nível edípico, a linguagem adulta é um
meio adequado e confiável de comunicação.
A área da falha básica é a esfera do amor primário e de todas as suas tonalidades
afetivas. É uma relação necessariamente bipessoal (número 2), cuja natureza das forças é
bastante diferente do conflito do nível edípico, e onde a linguagem adulta não é capaz de
descrever seus eventos, uma vez que as palavras aqui podem ter um significado bem distinto
do convencional. Não estamos no registro do desejo, nem da satisfação pulsional, mas no
13
Este também é um problema que Balint retoma a partir de Ferenczi, discutido
fundamentalmente em seu artigo “Confusão de língua entre os adultos e as crianças.
(FERENCZI, 1933).
32
ordenamento de um espaço e tempo os dois operadores lógicos imprescindíveis para se
existir a partir da existência de um outro (a mãe ou quem a substitua), que interessa na
medida em que é capaz de gratificar as necessidades e desejos deste novo ser em formação – é
a noção de amor passivo de objeto, que retomaremos mais adiante.
A falha básica é uma denominação que Balint utiliza a partir do relato de seus próprios
pacientes ao falarem sobre si como portadores desta profunda cicatriz. Não se trata de um
conflito ou uma situação. É algo “defeituoso,” a partir da percepção de que algo no ambiente
falhou, que
alguém falhou ou descuidou-se dele(ibidem, p.19). O entorno não foi capaz
de adaptar-se às exigências da criança em formação, apresentando-se incapaz de gratificá-la
em suas exigências mais fundamentais. E é “básica” porque afeta tanto a mente quanto o
corpo do indivíduo, portanto, toda sua estrutura psicobiológica, envolvendo desde distúrbios
psíquicos (neuroses, psicoses) até quadros psicossomáticos.
Na clínica, tais pacientes exibem características bastante singulares, como sensações
de vazio, futilidade e morte, e, às vezes, um “talento misterioso” para compreender o que se
passa com o outro, uma sensibilidade exacerbada com relação ao seu entorno, quase uma
“clarividência”. Paradoxalmente, há ao mesmo tempo:
... uma forte determinação sincera e calma de ver através das coisas. Essa estranha
mistura de sofrimento profundo, falta da menor vontade de luta e uma inabalável
determinação de avançar torna tais pacientes realmente atraentes um importante
sinal diagnóstico de que o trabalho atingiu o nível da falha básica. (ibidem, pp.17-
18)
A falha básica irá, assim, caracterizar tanto os pacientes especialmente comprometidos
com relação a esta dimensão quanto o trabalho analítico com pacientes que,
independentemente de seu diagnóstico, sofram uma regressão, em análise, a esta etapa
primitiva da mente. É possível perceber essa regressão na medida em que, nesta esfera,
importante mudança da função da linguagem, uma vez que as interpretações não são efetivas
e a atmosfera analítica se transforma profundamente. A regra da abstinência, crucial na área
edípica, perde todo o seu valor, pois se trata de poder oferecer ao paciente um ambiente ou
uma qualidade de relação que ele não pôde experienciar precocemente. Em certo sentido e
com toda a polêmica que tal posição possa causar, Balint recomenda que, nestes casos, o
trabalho analítico caminhe na direção da reparação desta falha, através da ausência de
33
interpretações e de uma compreensão empática da situação, oferecendo, quando necessário, a
devida gratificação.
Finalmente, temos então a área da criação. Sua principal característica é o fato de que
aqui o sujeito está por sua própria conta, sem a presença de um objeto externo, sem que esteja,
entretanto, totalmente sozinho. O estado é semelhante ao de uma gestação, na qual estamos na
presença de embriões, ou centelhas de algo a ser gerado - seja uma idéia, obra de arte, ou
mesmo uma doença todas estas consideradas pelo autor como produções do indivíduo.
Balint afirma que esta é uma área pouco estudada, especialmente pelo fato de prescindir de
uma relação transferencial (daí o uso do número 1), dizendo respeito a uma relação do sujeito
consigo mesmo e com estes “pré-objetos”
14
. O trabalho de criação é exatamente a
transformação destes pré-objetos em objetos, o que ocorre de modo completamente
imprevisível. Atribui ainda diversos momentos de silêncio do analisando a este estado,
dizendo que, nestas situações, cabe ao analista somente observar de fora o que acontece com
seu paciente, visto ser a criação um trabalho eminentemente solitário. Balint, assim,
problematiza a concepção de silêncio como resistência, apontando outros sentidos possíveis.
Sexualidade e Amor
15
Balint insiste que a área do amor primário envolve questões que não têm na
Sexualidade o seu leitmotiv. Pois as gratificações operadas neste nível envolvem afetos
distintos dos evocados no nível da satisfação pulsional. A satisfação de uma necessidade no
nível do amor primário, por exemplo, provoca um estado de bem-estar no infante, sensações
de calma e de suavidade, que dizem respeito à “boa adaptação” do objeto ao sujeito (ou seja,
demandas que o entorno pode satisfazer, nunca indo além do nível do pré-prazer). Por
outro lado, quando tal necessidade não é atendida e o objeto não é capaz de se adaptar ao
bebê, os sintomas provocados são extremamente ruidosos, intensos e tumultuosos.
(STEWART, 1996, p.24 – a tradução é nossa)
14
Bion é a referência de Balint para utilizar esta denominação.
15
O conteúdo deste item está baseado principalmente na leitura do texto “Balint e o
Amor.” (COSTA, 1998)
34
É importante ressaltar que a concepção de amor como fenômeno primário, em uma
relação necessariamente bipessoal, é uma formulação radicalmente distinta da concepção de
amor da teoria psicanalítica clássica, na qual este é entendido, basicamente, como uma
sublimação pulsional. Por isto mesmo, Balint utiliza a expressão “amor primário”, pois quer
enfatizar que o amor não é entendido aqui como derivação ou subproduto de uma operação
pulsional. Entretanto, apesar de distinta, sua afirmação não é menos freudiana que a
tradicional. A questão é que Balint parece privilegiar a leitura freudiana do amor presente em
seu texto de 1912, no qual Freud considera a ternura, em relação à sensualidade, como a
corrente mais antiga do amor, ligada aos cuidados parentais, antes de fazer menção ao
sentimento terno como derivado da pulsão sexual inibida quanto ao alvo (FREUD,
1921/1972). Lejarraga assim observa:
Freud oscila entre uma concepção de ternura como pulsão inibida, na descrição da
vida sexual adulta, e uma idéia de ternura infantil, cuja origem não poderia ser
teorizada como inibição. Como explicar que a ternura seja uma pulsão de alvo
inibido – o que pressupõe uma restrição do alvo direto, e, portanto, alguma forma de
interdição e a existência da ternura na infância, desde as origens? (LEJARRAGA,
2005, p.93)
Para sair deste impasse, sem negar a importância da sexualidade e do pulsional, ao
mesmo tempo afirmando a existência da ternura “desde as origens”, Balint vai supor duas
linhas de desenvolvimento distintas e independentes: uma que diz respeito ao
desenvolvimento das pulsões e outra,
relacional, que diz respeito às relações de objeto que
terão então, na ternura, seu suporte energético correspondente (COSTA, 1998). Insistirá na
diferença qualitativa entre o erotismo da sensualidade adulta o e erotismo terno do amor
primário, afirmando que a reunião dos dois, sob a rubrica de amor genital adulto, em Freud,
não passa de um artefato culturalmente fabricado, a partir de uma civilização pautada nos
mecanismos da interdição, frustração e repressão. (BALINT, 1972)
Como se caracteriza então o erotismo do amor primário? Balint aponta como uma das
principais características seu caráter lúdico, implicando um modo de satisfação que não
corresponde a um término definido (diferente da experiência orgástica), podendo concluir-se
por saturação. Está presente do nascimento até o fim da vida, independentemente da
existência de vida sexual ativa (como no caso dos idosos). Trata-se de uma sexualidade não
sensual que corresponde à posição subjetiva do amor primário, que é o amor passivo de
objeto. Nesta posição, que Balint insiste em dizer que é a primeira na história do
35
desenvolvimento libidinal, está presente o desejo de ser amado de forma plena e ilimitada,
sem que haja nenhum tipo de esforço por parte do indivíduo. Além disto, o objeto aqui é tido
como certo, a despeito de qualquer reação, mesmo (e especialmente) as mais agressivas, sem
necessidade de teste ou conquista. Para Balint, este é o objetivo de toda aspiração erótica.
Entretanto, as restrições do meio impõem que a criança faça uso de outras estratégias diante
da impossibilidade de acesso a este tipo de gratificação do amor passivo. Nas palavras de
Balint:
Se a criança recebe muito pouco, investe toda sua libido no auto-erotismo que tinha
praticado até então de maneira lúdica e torna-se narcísico, agressivo ou os dois, ao
mesmo tempo. Se recebe alguma coisa é, por assim dizer,
modelada pela
gratificação recebida.
Os estágios sucessivos de desenvolvimento que encontramos
tão freqüente e regularmente – relações de objeto sádico-anais, fálicas e, enfim,
genitais não possuem uma base biológica, mas uma base cultural. (BALINT apud
COSTA, 1998, grifo nosso)
Desta maneira, Balint subverte a lógica psicanalítica tradicional, que supõe as formas
pré-genitais de organização libidinal como originárias, uma vez que elas só aparecerão caso o
erotismo lúdico esta sim, a forma mais espontânea de manifestação libidinal não seja
devidamente sustentado pelo ambiente. Neste sentido é que vai dizer que tais organizações
pré-genitais existem por conta do modo como nossa civilização educou ou “modelou”
essas formas de gratificação, uma vez que sua forma “espontânea” é a do erotismo lúdico do
amor primário.
16
Para que as organizações pré-genitais entrem em cena, enquanto reações de
retraimento narcísico, algo no entorno deve haver falhado. Mais uma vez, vemos sua posição
de considerar o narcisismo, e todas as formas de satisfação que dizem respeito a um
funcionamento auto-erótico, como fazendo parte de uma reação de clivagem egóica diante de
uma experiência traumática (FERENCZI, 1933/s.d.), reafirmando sua consideração como um
fenômeno secundário. Estamos novamente no terreno da falha básica, uma vez que o adulto
responsável pela função de mediação, confiança e cuidado da criança parece ter fornecido
uma provisão inadequada. Costa (1998) assim afirma:
Narcisismo, para Balint, é uma reação psíquica secundária que existe quando o
outro furta-se ao pedido que lhe é feito, levando o sujeito à “cisão narcísica do self”,
16
“As fases do desenvolvimento libidinal e seus correlatos afetivos, descritos, desde
Freud, como ‘naturais’, trans-históricos ou transculturais, são reduzidos a movimentos
defensivos da cultura ou do sujeito diante do ‘amor passivo terno’ e a reelaborações
defensivas da ‘prática lúdica’ do auto-erotismo.” (COSTA, 1998. P.44)
36
na qual uma parte do eu ocupa-se da outra, simulando uma doação que não existiu.
(COSTA, 1998)
Ora, podemos argumentar que, desta maneira, segundo sua lógica, o aparelho psíquico
parece manter a todo o tempo somente a direção regressiva de funcionamento, visando
sempre ao retorno à posição do amor passivo do objeto, o que implica em uma ausência de
movimento e quase inércia do indivíduo. Teríamos uma noção de passividade e de fusão
que nos faz lembrar a tendência de redução de tensão à zero próxima ao funcionamento da
pulsão de morte. Seria, então, esta experiência fusional radical que Balint considera como o
ideal amoroso a ser alcançado?
Contra este argumento, temos, em primeiro lugar, o fato de que, como mostramos
anteriormente, Balint fala do desenvolvimento amoroso como distinto e autônomo em relação
ao desenvolvimento pulsional, principalmente em termos da qualidade do suporte energético
em jogo. Assim, se a pulsão visa à descarga e à redução de tensão sendo então a pulsão de
morte a pulsão por excelência, - o amor, por outro lado, busca um complemento, a
reciprocidade. Neste sentido, a concepção de Balint aproxima-se muito mais da idéia de
libido e de pulsão de vida, - no sentido de uma pulsão “de ligação” -, em uma perspectiva
essencialmente relacional. Em segundo lugar, por mais que façamos aproximações, como
aponta Costa (idem), os pressupostos balintianos e freudianos parecem ser radicalmente
distintos. Mas Balint não deixa de ser freudiano pois afirma que o ideal amoroso é o desejo de
ser amado como fomos inicialmente. A diferença é que esta plenitude narcísica freudiana, na
grande maioria das leituras, não inclui a presença do outro, como exige a formulação de
Balint, segundo a qual este “inicialmente” implica necessariamente em um outro que ame
incondicionalmente, sem fazer exigências ao self em formação, exigências essas que seriam
certamente percebidas como excessivas ou traumáticas. Nas palavras de Costa, no modelo
freudiano
... trata-se de imaginar o psiquismo como teatro de embates entre paixão e razão; o
sensível e o inteligível; caos e ordem (...) Eros e Tanatos; enfim, teatro em que
Iluminismo e Romantismo, Drama e Tragédia, travam uma luta de vida e morte.
Onde um está, o outro não pode advir e o resultado é sempre o mesmo: sofrimento
da miséria banal ou sofrimento da miséria neurótica.
Em Balint, o modelo é o do otimismo burguês, segundo o prosaico pragmatismo
utilitarista. O amor primário não precisa ser recalcado, denegado ou foracluído (...).
Desde o início, o um e o outro estão atados pelo pacto insuperável do desejo de
ternura. O primeiro desejo é desejo de ser amado por quem também aspira ao
mesmo modo de satisfação. (COSTA, 1998)
37
E será justamente o fato da mãe também desejar ser amada passivamente que fará com
que a criança abandone a posição inicial do amor objetal passivo para o amor objetal ativo.
Assim, é a exigência exterior ao aparelho psíquico que colocará o psiquismo em movimento,
provocando alterações e exigindo trabalho. Posteriormente, os objetos de um modo geral
passarão a exigir da criança, agora adulta pois assim é capaz de retribuir ativamente o
amor recebido, um
trabalho de conquista, para que se torne um parceiro cooperativo, no
sentido da permanente tentativa de restabelecimento da mescla interpenetrante do amor
primário a qual, como ressaltamos de início, parece apontar também para uma mescla de
conteúdos heterogêneos e não uma “fusão” de elementos idênticos.
Com esta distinção entre os dois caminhos do desenvolvimento, da sexualidade e do
amor, Balint, assim como Winnicott, enfatiza a importância de uma dimensão não pulsional
na experiência inicial do recém-nascido, solo sobre a qual toda a travessia edípica irá se
desenrolar e na qual são os afetos “ternos”- despertados a partir das experiências de calma e
tranqüilidade do recém-nascido – que terão importância vital para a estruturação deste
self em
formação, mais do que as questões que envolvem a satisfação/frustração das necessidades
pulsionais.
2.2 - A noção de objeto em Balint, ocnofilia e filobatismo
Na seção anterior, vimos a importância da alteridade no sentido de impelir o
psiquismo ao trabalho. A mãe (ou quem a substitua), como representante desta primeira
exterioridade, sendo o primeiro objeto da relação primária, torna-se o elemento fundamental,
em função do qual o bebê poderá vivenciar esta etapa de variadas maneiras. Será no sentido
de examinar um pouco mais detidamente as vicissitudes deste objeto privilegiado que iremos
discutir aqui a questão do objeto. Faremos brevemente uma observação sobre a questão do
objeto em Freud para depois podermos pensar nas “novidades” que a abordagem de Balint
traz em relação a este conceito.
38
Uma observação sobre uma possível leitura alteritária do objeto na obra freudiana:
Em Freud, o conceito de objeto está necessariamente ligado ao conceito de pulsão.
Falamos deste objeto como aquilo que de mais variável na pulsão, por não estar ligado a
ela por nenhuma função direta, sendo contingencial e inevitavelmente marcado pela história
dos investimentos objetais do sujeito. Assim, como ressalta Pinheiro, “o objeto da pulsão não
pode ser confundido com o objeto da necessidade, que se trata de um objeto construído
através da linguagem.” (PINHEIRO, 1998, p. 119)
Entretanto, no artigo de Metapsicologia sobre a Pulsão e seus Destinos (FREUD,
1915a /1972), ao mesmo tempo em que nos apresenta o conceito de objeto como o que de
mais variável com relação à pulsão, ainda no mesmo parágrafo, Freud faz questão de citar o
processo por ele denominado “fixação”, que define como “uma relação particularmente
estreita da pulsão com seu objeto,” que ocorreria em uma fase precoce do “desenvolvimento”
do sujeito:
O objeto [Objekt] de um instinto é a coisa em relação à qual ou através da qual o
instinto é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável num instinto e,
originalmente, não está ligado a ele, lhe sendo destinado por ser peculiarmente
adequado a tornar possível a satisfação. O objeto não é necessariamente algo
estranho: poderá igualmente ser uma parte do próprio corpo do indivíduo. Pode ser
modificado quantas vezes for necessário no decorrer das vicissitudes que o instinto
sofre durante sua existência, sendo que esse deslocamento do instinto desempenha
papéis altamente importantes. (...) Uma ligação particularmente estreita do instinto
com seu objeto se distingue pelo termo ‘fixação’. Isso freqüentemente ocorre em
períodos muito iniciais do desenvolvimento de um instinto, pondo fim à sua
modalidade por meio de sua intensa oposição ao desligamento. (FREUD, 1915
a/1972, p.143)
É também este mesmo termo fixação que Freud usa ao se referir ao recalque
originário no artigo sobre o Recalque (FREUD, 1915b/1972), ao falar da necessária ligação
(fixação) entre pulsão e seu representante psíquico. Ainda neste mesmo artigo, lemos em uma
nota de rodapé (ibidem, p.172) a observação de que esta teoria sobre os dois momentos do
recalque (recalque original e recalque propriamente dito) havia sido esboçada alguns anos,
no texto sobre Schreber (1911), assim como em uma carta a Ferenczi, datada de 6 de
dezembro de 1910 (JONES, 1955 p.455 apud FREUD). Podemos pensar que são as questões
suscitadas pelo narcisismo, envolvendo o processo de constituição deste Eu, que “não está
desde o início”, que levam Freud a pensar esses dois modos de relação entre a pulsão e seu
39
objeto. Como nos diz Pinheiro, “a noção de objeto em psicanálise encontra-se
necessariamente ligada à questão da constituição do ego” (idem, p.120), assim, Eu e Objeto se
constituem no mesmo processo.
Pela via do Ego, temos a idéia de que ele é, antes de tudo, “corporal” - o que nos
remete ao campo pulsional, - e, por outro lado, a sede do investimento narcísico dos pais
(PINHEIRO, 1995), o que, por si só, demonstra sua dupla inscrição: no campo econômico,
pulsional, e no representacional, alteritário, pela premente necessidade de invenção desta nova
subjetividade por um adulto incluído na linguagem. pela via do objeto, retomando o que
dissemos anteriormente, temos, em Freud, duas idéias distintas. De um lado, parece ficar
claro, através desta referência ao processo de fixação no recalque original, que, antes de
imaginar esse objeto como algo inteiramente móvel e contingente à pulsão, Freud se
impelido a postular – como em todo mito de origem – uma fundação ligada a um momento de
fixação, de inscrição desta primeira marca ou ancoragem subjetiva. Não à toa, os termos todos
parecem se referir a esta idéia de “fixar-se a” alguma coisa âncora, sustentação,
agarramento. Por outro lado, temos a idéia do objeto como contingencial e indefinido a priori.
Assim, temos duas vicissitudes distintas envolvendo o conceito de objeto uma que fala da
sua mobilidade e variabilidade e outra que fala da sua necessária ancoragem ou sustentação
em algum substrato, em um momento bastante precoce da história do sujeito, ligado a uma
origem quase mítica.
Retomaremos neste ponto, em Freud, a experiência de satisfação, uma vez que nela
aparece uma importante referência a este momento de constituição inicial do psiquismo:
... o estímulo só é passível de ser abolido por meio de uma intervenção que suspenda
provisoriamente a descarga de Q no interior do corpo; e uma intervenção dessa
ordem requer a alteração no mundo externo (fornecimento de víveres, aproximação
do objeto sexual), que, como ação específica, pode ser promovida de
determinadas maneiras.
O organismo humano é, a princípio, incapaz de
promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção
de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga
através da via de alteração interna.
Essa via de descarga adquire, assim, a
importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres
humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais.
Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da ação específica no mundo
externo para o desamparado, este último fica em posição, por meio de
dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior de seu corpo a
atividade necessária para remover o estímulo endógeno.
A totalidade do evento
constitui então a experiência de satisfação, que tem as conseqüências mais radicais
no desenvolvimento das funções do indivíduo. (FREUD, 1950 (1895)/1972 (grifo
nosso)
40
Na segunda parte grifada, parece que, mais do que um momento mítico, é necessária,
para a experiência de satisfação, a existência real de um momento em que haja uma “sintonia”
ou um “encaixe” entre estes dois processos, um externo e outro interno. Externamente, deve
haver uma “pessoa que ajude” ou alguém eminentemente disponível e experiente capaz de
executar a ação específica por ser suficientemente sensível ao estado de desamparo do bebê.
desta maneira é que este poderá, internamente, executar as atividades necessárias para
remoção do estímulo endógeno. Será apenas pela repetição desta experiência real de
satisfação que o bebê poderá, então, após a experiência de perda, aluciná-la, para depois se
colocar em movimento e em trabalho na direção desta ação específica, uma vez que a
experiência alucinatória não se mostrará suficiente.
Balint e os demais autores das teorias da relação de objeto, uma vez que partem de um
ponto de vista relacional, de observadores da relação mãe-bebê, irão privilegiar a leitura de
que o primeiro objeto não está perdido desde o início, pelo contrário, neste momento inicial,
ele precisa estar aí, de modo concreto, sensorialmente percebido pelo bebê em todas as suas
qualidades. Só dessa maneira é que parece ser possível a primeira inscrição subjetiva, a
fixação pulsional original. Não estamos aqui questionando a posição sobre o movimento
desejante como falta – privilégio de uma determinada leitura da obra freudiana (especialmente
em sua leitura da psicanálise francesa, após Lacan). Mas sim indicando que também podemos
ver, em Freud, na experiência de satisfação, uma concepção da necessidade imperiosa da
alteridade na origem da experiência psíquica.
A noção de objeto em Balint e dois modos especiais de relação com o objeto: ocnofilia e
filobatismo
O nascimento é um trauma que altera o equilíbrio, pela mudança radical do entorno,
forçando sob uma verdadeira ameaça de morte a uma nova forma de adaptação,
o que início, ou pelo menos aceita consideravelmente, a separação entre o
indivíduo e o entorno. Os objetos possuem em contraste com as substâncias mais
amistosas contornos nítidos e limites claros, que desde então devem ser
reconhecidos e respeitados. (BALINT, 1993, p.61)
41
Da mistura interpenetrante do amor primário - a interdependência entre mãe e feto -,
temos a experiência do nascimento como o trauma necessário que impõe a separação e um
subseqüente trabalho do indivíduo em direção à sua independência - embora esta seja, a todo
o tempo, movida pelo desejo de restabelecimento da relação harmoniosa com o entorno, o
paradigma de toda relação amorosa. Os objetos começam a surgir, aparecendo então como
descontinuidades, resistências e oposições à substância primordial e aos espaços-amigos do
amor primário. Diante da experiência de separação, é o modo como o bebê irá administrar a
distância, os espaços e vazios que se abrem e se desdobram a partir da experiência de
distanciamento do corpo materno, que irá atrair a atenção de Balint.
Em seu livro Les Voies de la Régression (1972), ao retomar a etimologia da palavra
objeto, Balint identifica dois sentidos distintos para este conceito: um com a conotação de
alvo (que parece se prestar à idéia de sua necessária mobilidade e variabilidade, utilizado por
Freud ao se referir ao alvo da pulsão) e, no segundo sentido, como sendo aquilo que faz
obstáculo a uma ação, que faz resistência. Para ele, nossas primeiras percepções acerca dos
objetos seriam algo como: “qualquer coisa de sólido contra a qual podemos exercer nossa
força, com ou sem sucesso” (BALINT, 1972, p.75 - a tradução é nossa). E segue então
dizendo que este sentido do objeto, como referido a algo sólido e claramente delimitado e
resistente, é resultado de uma projeção vemos os objetos desta maneira a partir do modo
como nos percebemos: sólidos, imutáveis, indestrutíveis. Afirma que, por se tratar de um
processo bastante primitivo, o sentido de objeto como “resistência” parece, assim, anterior ao
de “alvo”. Finalmente, irá distinguir, em relação ao mundo externo, duas classes de objetos:
os que podem ser considerados como sólidos e resistentes, para os quais a palavra “objeto”
parece designar tanto a “resistência oposta aos nossos desejos” quanto “o objetivo de nossos
esforços.” e um segundo tipo, não sólido, de contornos indefinidos, capaz de adquirir
contornos dos mais variáveis e para os quais, em vez de empregar o termo objeto (que traz
consigo um sentido agressivo), utilizamos termos como substância (“o que se mantém ou que
está abaixo”), substrato (“aquilo que se estende sob algo”) ou mesmo matéria (com destaque
para a raiz indo-germânica da palavra que significa “mãe”) (ibidem, pp.75-77).
Interessante notar a idéia recorrente em Balint dos objetos duros e sólidos como
essencialmente frustrantes ou mesmo indiferentes. O mundo é amargo e exige, na maior parte
das vezes, uma submissão por parte do indivíduo. Por outro lado, os objetos primários as
substâncias e espaços amigos precisam, em alguma medida, funcionar como fontes de
42
gratificação (como na noção de amor passivo de objeto), invertendo os termos desta relação,
submetendo-se então aos caprichos e vontades do self em formação. Balint destaca que a mãe
é o primeiro destes objetos e que o analista, muitas vezes, deve ser capaz de assumir as
qualidades deste objeto primário, especialmente nos momentos regressivos dos pacientes.
A partir destas observações, Balint afirma mais uma vez sua tese, do amor primário e
da mescla harmoniosa entre o entorno na figura da mãe, a “matéria” primordial e o self
como estágio original, apontando para a natureza secundária dos objetos. Para isto, invoca o
desenvolvimento dos sentidos no recém-nascido e sua importância no modo como o bebê
iniciará seu relacionamento com o entorno.
É, creio, geralmente admitido que na ontogênese os objetos claramente delimitados
emergem apenas progressivamente de uma matriz uma palavra primitiva ainda
suspeita que deriva de “mãe”. (...) Os dois sentidos principais que fornecem as
percepções para a base da descoberta dos objetos são a visão e o toque. (...) Além
disto, a visão, assim como o toque e a audição, são sentidos projetivos. Sentimos,
situamos ou construímos o objeto fora do corpo, quer à distância (vista e ouvido),
quer à sua superfície (toque).
A situação difere totalmente no que concerne aos dois sentidos inferiores que
funcionam bem, senão completamente, desde o nascimento. Seu funcionamento não
implica praticamente em nenhuma projeção: nós experienciamos o odor e o sabor no
interior de nossos corpos: dentro de nossa boca ou nosso nariz. (...) Se
considerarmos um observador distante (imparcial), constata-se que essa mistura está
baseada em uma interação entre indivíduo e mundo externo; pode-se dizer que o
mundo “fez intrusão” ou penetrou na boca e no nariz do sujeito ou, (tout aussi bien),
que o sujeito inclui partes do mundo externo que penetraram nele.
17
(BALINT, 1972
p.78)
Deste modo, paladar e olfato parecem ser os sentidos ligados ao processo de inclusão
do mundo externo, ligados à esfera do amor primário e da mescla interpenetrante, que, é
importante lembrar, implica não uma relação fusional, mas sim, uma mistura de elementos
17
No original: “Il est, je crois, generalement admis que dans l´ontogenese les objets
nettement delimites n´émergent que progressivement d´une matrice encore um mot
primitif suspect dérivant de “mére”. (...) Les deux sens principax que fournissent les
perceptions à la base de la découverte dês “objets” s ont la vue e toucher. (...) Par
aillerus, la vue comme toucher, ainsi que lóuie, sont des sens projectifs; nous sentons,
situons ou construisons l´objet à l´extérieur du corps, soit à distance (vue et ouie), soit à as
surface (toucher).
La situation différe totalement em ce qui concerne les deux sens inférieurs qui fonctionnent
bien, sinon parfaitement, dès la naissance. Leur fonctionnement n´implique pratiquement
aucune projection; nous ressentons lódeur et la saveur à l`intérieur de notre corps: dans
notre bouche ou dans notre nez. (...) Si on considere em observateur détaché, on constate
que ce mélange se fonde sur une interaction entre l´individu et monde externe; on peut
dire que lê monde a fait intrusioin ou a penetre dans la bouche ou dna lê nez du sujet et, tout
aussi bien, que sujet a inclus dês parties du monde extérieur qu´il a pénétré em lui”.
(BALINT, 1972 p.78)
43
heterogêneos, visto tratar-se de uma relação. É como se estas marcações sensoriais e
corporais, que emergem como descontinuidades na vivência de continuidade do ser, fossem
os precursores de um sentido de diferenciação entre o interior e exterior através das sucessivas
apropriações das qualidades e dos sentidos deste mundo. Por outro lado, visão e tato estariam
ligados à projeção (também primitiva). Por serem sentidos que se desenvolvem um pouco
mais tardiamente à experiência do nascimento, guardam relação com a progressiva
emergência dos objetos a partir das substâncias primárias o que implica um maior
reconhecimento de suas fronteiras, limites, resistências e, especialmente, de uma possível
distância ou afastamento que se possa ter deles. Se com relação ao paladar e ao olfato o objeto
se apresenta como substância, em uma mescla em contato direto com o interior do corpo do
indivíduo para poder nele penetrar, no caso da visão e do tato lidamos com um objeto que
precisa se apresentar minimamente como exterior ao indivíduo, tendo limites claros para
poder ser então visto ou tocado, percebido. Balint identifica ainda uma forma “intermediária”
entre os dois grupos de sentidos, os superiores (projetivos) e inferiores (mescla): aqueles que
dizem respeito à sensibilidade térmica. Neste caso, estaríamos diante de forma intermediária,
pelo fato das sensações de calor e frio serem percebidas como provenientes tanto do exterior
quanto do interior de nosso próprio corpo.
Os dois sentidos projetivos de relação com os objetos, visão e tato, dão origem a duas
posições ou dois modos de relação primitiva com os objetos que Balint irá denominar,
respectivamente,
filobatismo e ocnofilia. Ambos dizem respeito a estratégias desenvolvidas
pelo indivíduo para lidar com a sensação de insegurança que a emergência dos objetos
provoca, a partir da ruptura da relação do amor primário, de separação e distanciamento do
corpo materno.
Será através da análise das emoções e
frissons provocados nos parques de diversão
local onde impera, de forma permitida pela cultura, um modo de funcionamento psíquico
regressivo
18
- que Balint irá chamar a atenção para um grupo específico de diversões cujo
18
Balint considera os parques de diversões como lugares regressivos, em função do
rebaixamento da censura e da permissão cultural necessária à sua existência, como espaços
de “escape”. Enfatiza que a regressão aqui diria respeito ao campo do amor primário, pelo
fato dos brinquedos funcionarem em uma lógica distinta da do princípio de realidade. A
maior parte dos brinquedos e diversões dos parques parece incentivar os comportamentos
agressivos do indivíduo em relação aos objetos, premiando ou recompensando-o em função
desta agressividade. Trata-se, pois, de um entorno que suporta e acolhe o movimento
agressivo do indivíduo sem revidar, como no caso das substâncias primárias. Por outro
44
prazer está ligado às sensações de tontura e vertigem. estaríamos diante de uma forma
particular de ansiedade despertada pelo medo da perda de equilíbrio e do firme contato com a
terra. Dirá ele que tal prazer parece ter relação com o fato de o indivíduo dispor-se a passar
por uma situação de perigo de forma voluntária, sendo capaz de tolerar medo e ansiedade,
para, finalmente, poder retornar à zona de segurança conhecida. Não vários brinquedos
nos parques de diversão têm esta estrutura, como também diversas brincadeiras infantis (como
“meus pintinhos venham cá”.). Em todas elas é possível brincar e desafiar o perigo do
afastamento dos objetos, para depois retornar para uma zona firme e segura. Balint enfatiza
que é a mistura das sensações de medo, prazer e confiança diante do perigo que são os
elementos constituintes do frisson provocado.
Balint vai observar que existem dois tipos de reações possíveis a este frisson. De um
lado, os que gostam e apreciam este tipo de emoção provocada pelo distanciamento dos
objetos. O exemplo aqui é o do acrobata, que significa, literalmente, “aquele que caminha
sobre as extremidades,” ou seja, que caminha ereto e reto, longe da terra firme, distanciando-
se cada vez mais do chão. Inspirado nesta palavra, inventa o termo “filobata”, para designar
aquele que tem prazer neste tipo de emoção. A outra reação possível é a de não conseguir
suportar balanços ou rodopios, preferindo então “enganchar-se (s´accrocher) a qualquer coisa
de sólido a cada vez que a sensação de segurança esteja ameaçada”. Para estes, cunha o termo
“ocnofílico”, a partir do radical grego okneo que significa esquivar-se, hesitar, aferrar-se a
alguma coisa. (ibidem, p.28)
Cronologicamente, a ocnofilia pode parecer como a posição mais primitiva. O
primeiro argumento a este favor, decorrente da observação de bebê e teorizado por alguns
psicanalistas
19
, é o fato do recém-nascido ter, inicialmente, o impulso quase reflexo de agarrar
lado, para Balint, no mundo dos objetos delimitados o mundo do princípio da realidade -,
é o indivíduo que deve submeter-se à agressividade dos objetos.
19
Podemos citar aqui John Bowlby e Imre Hermann. Destacamos este último, em
especial, por ter sido um importante psicanalista húngaro também pouco conhecido entre
nós, da mesma linhagem de Balint. Hermann apontava que o desejo de agarrar-se
(l’agrippement) parecia ser o precursor de toda a relação objetal, sendo algo observável não
na espécie humana como também em espécies animais. Nemes (2008) observa, a
propósito da “teoria do agarramento” de Hermann, que praticamente um consenso entre
os analistas sobre a importância da oralidade e do seio para o recém nascido. Mas Hermann
irá demonstrar que a mão do bebê, que se “engata” tão facilmente aos objetos, tem também
uma enorme e definitiva importância sobre o futuro desenvolvimento das relações de
objeto, para além das questões relacionadas à oralidade e à busca do seio. Para ele, o
objetivo deste “agarramento”, mais do que qualquer utilidade biológica (uma vez que trata-
se de um movimento reflexo), parece ser o restabelecimento da unidade dual. A satisfação
45
a mãe para depois afastar-se dela. Em segundo lugar, parece que, mesmo nos símbolos
filobáticos mais paradigmáticos como o acrobata ou o domador de circo, sempre a
presença de objetos aos quais se agarram de forma bastante intensa. Tais objetos parecem
“garantias” para o desafio ao perigo e afastamento da zona de segurança, como é o caso do
chicote do domador e a vara de equilíbrio do acrobata, que seriam, neste caso, símbolos
ocnofílicos que entrariam em cena como estratégias regressivas (ibidem, p.32).
Mas, embora o filobatismo pareça, inicialmente, uma posição mais “avançada” ou
“evoluída” em relação aos objetos, não é disto que se trata, uma vez que nenhuma delas se
apresenta de forma isolada. Além disto, tanto na ocnofilia quanto no filobatismo, estamos
diante de indivíduos cujas relações iniciais com o entorno e, conseqüentemente, com os
primeiros objetos foram mal-sucedidas. Tanto o desejo de agarrar-se (ocnofilia) quanto o
desafio do afastamento, a ilusão de onipotência e de auto-suficiência (filobatismo), parecem
falar de um entorno que, inicialmente, não foi capaz de segurar, agarrar, sustentar
adequadamente o self em formação. Estamos, portanto, diante de duas formas essencialmente
defensivas de relacionamento com os objetos, consideradas por Balint como instâncias da
falha básica. Por outro lado, é exatamente por estarmos no registro da falha básica que
podemos pensar que ambos são processos inerentes ao funcionamento de todo o psiquismo,
que, durante o processo analítico, encontra-se em estado de regressão. Segundo Balint,
Se nossa teoria estiver correta, poderemos esperar atravessar todos estes três tipos de
relações objetais
o da mistura interpenetrante harmoniosa mais primitiva, o
da crispação ocnofílica e o da preferência filobática pelas expansões sem objeto
em todo o tratamento analítico no qual foi permitido regredir além de um certo
ponto. (BALINT, 1993. p. 64) (grifo do autor)
A cada uma dessas duas formas corresponde um modo de relação com os objetos que
desperta angústias distintas. Na ocnofilia, os objetos emergentes parecem ser percebidos como
seguros e tranqüilizadores, enquanto os espaços e vazios entre eles são percebidos como
extremamente perigosos e ameaçadores. A ilusão do ocnofílico é de que quanto mais próximo
dos objetos, quanto maior o contato, menor o perigo. Isto faz com que o mundo ocnofílico se
desdobre de objeto em objeto, de modo a reduzir da menor forma possível a distância entre
eles, sem permitir a emergência dos temidos “vazios”. Balint destaca que esta é uma relação
auto-erótica passa a ser então considerada, essencialmente, como uma substituição deste
movimento de “agarrar-se” à mãe. (NEMES, 2008, p. 75)
46
de objeto parcial
20
, sob a exigência de um regime de amor primário: é uma demanda absoluta
em relação ao objeto, como se este devesse se portar como os objetos primários sem
independência ou vida própria. Entretanto, esta é uma demanda fadada, desde início, ao
insucesso – não só porque os objetos são parciais, mas porque a própria demanda de agarrar e
segurar o objeto é, por si só, humilhante. Para Balint, na relação primitiva, o que importa é
ser agarrado, estar seguro, e não agarrar. Neste sentido é que a ocnofilia é pensada como uma
reação defensiva que conduz, necessariamente, à frustração e ambivalência.
O mundo do filobata, por outro lado, é o mundo das “extensões tranqüilas”, das
distâncias e dos espaços onde emergem, aqui e ali, objetos perigosos e imprevisíveis. A defesa
do filobata é a evitação e o controle, à distância, dos objetos. Se na ocnofilia estamos sob o
primado do toque e do contato físico com os objetos que trazem segurança, no filobatismo
temos a necessidade do controle visual dos objetos, em uma falsa sensação de auto-
suficiência.
Assim, se os objetos são tão perigosos e ameaçadores, resta ao filobata a ilusão de
poder contar única e exclusivamente consigo mesmo e com seus próprios recursos, enquanto,
diante dos vazios e dos espaços amplos e abertos, resta ao ocnofílico agarrar-se aos objetos.
Neste sentido é que, mais do que fases subseqüentes, podemos pensar ambas as posições
como modos complementares de lidar, de forma primitiva, com as angústias referentes à
separação e emergência dos objetos a partir do amor primário. São tentativas desesperadas de
se controlar e se defender do mundo, de suas diferenças e imprevisibilidade. Em última
instância, defesas contra a alteridade.
E será precisamente nesta direção que iremos tentar articular, no próximo capítulo,
algumas das contribuições teóricas de Balint com algumas situações de nossa experiência com
a clínica da obesidade, entendendo-se que temos aí organizações subjetivas com importantes e
relevantes questões acerca deste tema.
20
Balint utiliza o termo objeto parcial ao se referir à relação estabelecida na ocnofilia e
filobatismo em contraposição à relação primitiva com os objetos primários. Nas suas
palavras, podemos então caracterizar os modos de relação objetal primitiva segundo estes
três modos principais: “a) a mais primitiva, que chamamos de amor primário ou relação
primária, uma espécie de mistura interpenetrante harmoniosa entre o indivíduo em
desenvolvimento e suas substâncias primárias ou objetos primários; b) e c), a ocnofilia e
filobatismo, que constituem entre si uma espécie de contrapartida, pressupondo a
descoberta de objetos parciais e/ou totais bastante estáveis”. (BALINT, 1993, p.152)
47
Capítulo 3 - A Clínica da obesidade
O Enquadre
Balint dedica à toxicomania e, em especial, ao alcoolismo alguns poucos parágrafos
em seu livro “A Falha Básica”. Enfatiza então o quanto as relações dos alcoolistas com seus
objetos são intensas, porém, extremamente instáveis, especialmente quando estes o
contrariam, o que costuma provocar um intenso retraimento: é quando habitualmente
recorrem ao uso do álcool, cujo objetivo principal parece ser o de restabelecer a sensação de
harmonia com o entorno. Segundo ele,
Em nossa experiência, o anseio por essa sensação de “harmonia” é a causa mais
importante de alcoolismo ou de qualquer forma de toxicomania. (...) O aspecto mais
importante desse estado de harmonia é que não pessoas ou objetos de amor ou de
ódio, em especial, nem pessoas ou objetos exigentes. A harmonia só é mantida
enquanto o bebedor conseguir manter-se livre de tudo e de todos aqueles que possam
exigir algo dele; (...) as pessoas são toleradas enquanto forem simpáticas e
amistosas; a mais leve crítica ou choque de interesses irá provocar reações violentas
de sua parte, devido à sua desesperada necessidade de conservar a harmonia com o
mundo criado pelo álcool. (BALINT, 1993, p.50)
Desta forma, Balint situa os quadros de adicção como patologias da esfera das
relações mais primitivas com o entorno. A relação com os objetos é marcada por atributos
como a dependência excessiva, instabilidade, labilidade emocional, reações ruidosas e
violentas diante de qualquer frustração.
Na clínica com pacientes obesos, estamos diante de relações objetais com um padrão
bastante semelhante. A dependência que estabelecem em suas relações afetivas é, na maioria
das vezes, um traço marcante, especialmente em relação à figura materna. O discurso sobre si
é bastante empobrecido como se não houvesse histórias a contar, ou como se o corpo,
grande e espaçoso, já falasse por si , em seu excesso e na ocupação de um espaço para além
do “permitido”. Na entrevistas individuais, diante da pergunta eu gostaria que você falasse
um pouco sobre você, era comum ouvir como resposta algo como eu sou isso que você está
48
vendo, ou eu sou... gorda, ! A sensação era de não haver um espaço de interioridade ou
velamento possível. Como se a identidade fosse dada e visível apenas a um olhar.
Somente quando indagávamos sobre o início do problema da obesidade era que
alguma narrativa se esboçava, ainda que de maneira bastante tímida a partir desta
importante referência corporal. “Comecei a engordar desde que...” e aí um relato começava a
se historicizar, muitas vezes de forma extremamente lacônica ou outras, ao contrário, como
histórias pesadas e difíceis que pareciam simplesmente “vomitadas”, freqüentemente com
certa desafetação. Minha sensação mais freqüente era de uma enorme fragilidade subjetiva,
acompanhada de atos impulsivos e um intenso movimento de aproximação e afastamento, de
igual intensidade. Os objetos apareciam assim, ou como extremamente atraentes e chamativos
ou simplesmente aterrorizantes, provocando reações de dependência ou afastamento como
nas posições da ocnofilia e do filobatismo. A todo o tempo, minha percepção era de que o
primeiro trabalho que se fazia necessário era possibilitar a criação de um laço, um vínculo que
pudesse se perpetuar no tempo e no espaço - um espaço de tranqüilidade e calma, sem as
bruscas oscilações de intensidade e instabilidade que tais pacientes pareciam experimentar.
A possibilidade de atendimento em grupo foi a estratégia utilizada no sentido de tornar
possível esta escuta, e se mostrou bastante eficaz. Até então, a oferta de um espaço de escuta
individual teve muito baixa adesão. Somente no grupo foi possível a criação de um espaço de
acolhimento para estes corpos e suas histórias – enfatizo o termo corpo porque me parece ter
sido somente a partir deste olhar sobre ele (por parte de toda a equipe de acompanhamento
multidisciplinar) que foi possível a abertura para a produção de novos discursos sobre si.
Neste trabalho com os grupos, surpreendemo-nos com todo um universo de
dificuldades e restrições que acompanham o ser obeso. E talvez não nos damos conta da
proporção do problema da obesidade no Brasil por uma razão muito simples: a maioria destas
pessoas não sai de casa e vive de forma bastante restrita, em geral na dependência de
familiares. dificuldade para pegar um ônibus - por conta do tamanho da roleta e do medo
de “entalar” ou "ficar presa e ter que todo mundo descer do ônibus por sua causa”;
dificuldade de circulação em uma cidade que é feita para gente magra” poltronas de
cinemas, cadeiras de restaurantes, assento de avião; dificuldade de caminhar por conta das
dores freqüentes nas articulações e comprometimentos clínicos dos mais diversos, derivados
da obesidade, como hipertensão, diabetes etc. Em suma, o mundo não é feito para gordos -
era a frase recorrente nos grupos. O grupo se tornava o lugar onde era possível dar-se conta da
49
existência de outras pessoas com problemas semelhantes, trocando experiências e expondo
queixas, mediante a assunção de uma certa “identidade coletiva”, sob a qual todos pareciam
se reconhecer nos exemplos trazidos. Criava-se assim laços de afinidade, em um espaço
protegido, através deste reconhecimento narcísico das semelhanças.
Ao longo dos encontros e de minhas intervenções junto ao grupo, as histórias
individuais iam fazendo sua entrada na cena coletiva. Parecia que iam tomando forma e corpo
um corpo mais definido, de melhores contornos para além de toda a pasteurização e
mescla que o grupo oferecia, criando uma brecha para o aparecimento das diferenças e
singularidades, literalmente, de peso. Lanço mão do trocadilho para enfatizar o quanto a
circulação destas pessoas no espaço do Hospital era algo que chamava a atenção, atraindo
olhares e comentários – seja dos outros pacientes, seja de funcionários da instituição.
Esta questão do
olhar de um estranho, e a subseqüente vergonha que ele provocava,
muitas vezes percebido como insuportável quando tais pacientes se encontravam sozinhas,
parecia abrandar-se consideravelmente quando estavam em companhia uma das outras.
Podemos pensar que este olhar, em um espaço para um atendimento individual, também
poderia se tornar, em um primeiro momento, excessivamente invasivo e ameaçador; e penso
que este pode ter sido um dos motivos do fracasso do convite para as entrevistas individuais.
Assim, a utilização do dispositivo grupal parecia ser uma etapa fundamental para que as
histórias individuais pudessem aparecer em um ambiente menos persecutório e mais
acolhedor.
E que surpresa tais histórias reservavam? Talvez a mais importante fosse a constatação
de que não se podia falar de obesidade como sinônimo de uma constelação subjetiva única e
determinada. No grupo, o que se notava era uma pluralidade de narrativas, nas quais, em
algum momento, entrava em cena o grande incômodo diante de um comportamento
disruptivo, compulsivo e incontrolável com relação à comida. O alimento parecia se elevar
quase à categoria de um objeto de necessidade, ao mesmo tempo em que os corpos se faziam
notar, cada vez mais, por este excesso, pelo descontrole. Mas a obesidade não era um “vírus”
que, uma vez contraído, conduzia a uma determinada “história natural da doença”: ela estava
inserida em uma história de vida, sempre singular, aparecendo muito mais como um sintoma
do que como índice de uma dada estrutura subjetiva específica. Desta forma, podemos pensar
que há diferentes obesidades, ocupando funções das mais diversas, em diferentes constelações
subjetivas.
50
Ao menos nesta população específica que acompanhamos, de mulheres obesas que
desejavam submeter-se voluntariamente, embora com indicação clínica, à Cirurgia Bariátrica,
um ponto se apresentava com relativa freqüência, inclusive por esta particular dificuldade na
constituição deste espaço para falar sobre si: a fragilidade do recobrimento narcísico,
traduzido por relações objetais intensas e instáveis, além do empobrecimento do discurso
sobre si e o precário recurso de simbolização. Tudo isto nos faz pensar em uma “falha” no
investimento materno primordial, que se traduz em uma grande dificuldade em separar-se ou
perceber-se enquanto indivíduo separado, detentora de uma subjetividade própria e,
conseqüentemente, com uma grande dificuldade no reconhecimento da alteridade, da
distinção e percepção das diferenças entre o eu e o outro. Neste sentido, a descrição de Balint
do comportamento ocnofílico parece fazer todo o sentido: o recurso à comida e a adesividade
a alguns objetos privilegiados (como a mãe) parecem surgir como uma tentativa de se
agarrarem aos objetos, permanecendo em uma posição de extrema dependência afetiva, uma
vez que os espaços vazios, as extensões e distâncias, são percebidos como grave ameaça
narcísica, já que expressam a distinção entre o Eu e o outro.
É também nesta direção que podemos compreender o recurso ao grupo como uma
estratégia interessante para os casos de comprometimento narcísico. Como mostramos com
Balint, é a sensação de mescla, de sintonia, próxima ao amor primário, que parece ser
necessária, mostrando-se menos ameaçadora do que a percepção dos objetos independentes e
definidos. Além disto, no grupo, a própria figura do terapeuta se torna também mais diluída,
menos “resistente”, ou menos “dura” mais próxima, enfim, de uma substância que de um
objeto completamente separado. “Diluído” no grupo, o analista se tornar um objeto menos
ameaçador, menos distante e mais próximo, disponível ao contato e à adesividade ocnofílica –
o modo de funcionamento mais freqüente nestas pacientes.
Assim, respeitando-se a pluralidade de constelações observadas, tentaremos destacar
alguns elementos comuns que se referem, especialmente, a estes aspectos narcísicos. E Balint,
bebendo na fonte ferencziana, pode trazer contribuições interessantes no sentido de
ampliarmos a compreensão destes fenômenos. Dada a complexidade da clínica, não
pretendemos nos “colar” à sua teoria – ao contrário, tentaremos propor novos sentidos,
desenhando um panorama das questões mais freqüentemente observadas nesta clínica, a partir
do referencial psicanalítico freudiano, acrescido de algumas destas contribuições da chamada
Escola de Budapeste.
51
A propósito da fome
“Se eu não como, sinto um vazio tão grande aqui dentro... Tenho que “encher logo o
pote” para que isto passe. É uma sensação horrível”
Curiosamente, o “aqui dentro” a que a paciente se refere e aponta, no próprio corpo, é
o peito, não o estômago. O
vazio não é no estômago: o incômodo parece, assim, ter outra
origem. E é somente através de uma saturação, de um “sentir-se cheio e pleno,” que tal
perturbação parece cessar.
Isabela é outra paciente atendida por uma das integrantes de nosso grupo de pesquisa.
É uma mulher de meia idade, divorciada. Procurou atendimento porque se sentia muito
deprimida e tentou o suicídio duas vezes. foi modelo, segundo ela, porque a mãe assim o
desejava. Mas tornou-se obesa e, há cerca de alguns meses, submeteu-se à cirurgia de redução
de estômago. Em um dos atendimentos, depois de um ano e meio de tratamento, ainda antes
da cirurgia, Isabela relata estar com úlcera e com dores muito fortes no estômago, nunca antes
mencionadas. Sua analista a interroga sobre o início de tais sintomas. Ela então relata nunca
ter sentido nada, apenas uma dor de dente que a fez procurar um dentista. Este profissional,
então, percebe que o problema poderia ser gástrico e a encaminha para a devida avaliação.
Após exames, foi constatada a existência de uma úlcera, que faz Isabela ir para a emergência
no mesmo dia, dada a gravidade do quadro. Assim, é somente após este incidente que Isabela
consegue dizer que sentia dores no estômago. Ao ser interrogada sobre isto, ela relata: “É
estranho. Eu deveria ter sentido dor antes... Mas eu só sentia dor de dente.”
Quadros como gastrite e úlcera são bastante comuns em pacientes obesos. Outra
paciente, Isadora, relata: depois que descobri que tinha gastrite e tratei, acho que estou
comendo menos. O médico me disse que, por causa da gastrite, eu devia sentir um
desconforto no estômago e pensar que era fome, mas não era: devia ser o bichinho comendo
52
o meu estômago
21
! Hoje que a gastrite está tratada, tenho uma sensação diferente – acho que
agora é que começo a saber o que é fome de verdade.
Nestes exemplos, fica evidente a importância da nomeação destas sensações corporais
por um outro (por exemplo, pelo saber médico) para que tais sensações tenham, então, algum
sentido. É preciso que este corpo seja tocado, preenchido por histórias e narrativas,
imaginarizado - como na suposição do bichinho comendo o estômago, imagem quase infantil
- para que a nomeação faça algum sentido. Antes disto, trata-se apenas de um incômodo, um
desconforto, uma perturbação da ordem da
estranheza.
Este é um dos aspectos que gostaríamos de tentar destacar neste trabalho: a idéia da
fome como uma das primeiras perturbações que remetem o bebê, necessariamente, a uma
exterioridade, pela necessidade de recorrer a um outro que o alimente. Assim, será que
poderíamos pensar na fome como um primeiro “empuxo” à alteridade?
E por que esta sensação de
estranheza, ou de dificuldade de nomeação destas
sensações corporais no caso da obesidade? De que sensação se trata? Já ouvimos referências a
esta “fome” como sendo um vazio, uma dor, ansiedade, uma “coisa” no estômago, um frisson
talvez... Lembramos-nos, a respeito deste termo, de uma interessante observação do tradutor
de Balint a respeito da palavra “frisson”, como tradução de thrill – termo originalmente
utilizado por Balint na língua inglesa e que consta no título de um de seus livros
22
. Ele
observa que thrill é uma palavra intraduzível para o francês, embora o termo escolhido
frisson tenha o mérito de referir-se a uma sensação corporal que fala tanto do prazer
quanto do medo.
Mas assinala, o que nos parece uma observação interessante, que a tradução
de thrill remete à mesma ordem de dificuldade que o termo unheimliche utilizado por Freud
(1919/1972). E acrescenta que isto talvez não seja só uma coincidência.
No texto freudiano (“O Estranho” "Das Unheimlich", 1919/1972), sabemos que o
sentimento de estranheza ocorre no confronto com experiências que foram, em algum
momento, extremamente usuais, mas que se tornam, após o recalque, pretensamente
“distantes” e “não familiares”. Freud enfatiza, especialmente, as experiências ligadas ao
pensamento animista e mágico, necessário em determinada etapa do desenvolvimento infantil,
e que toma, mais tardiamente, formas disfarçadas e sintomáticas. A nosso ver, a descrição de
21
Referência à bactéria H. Pylori, responsável por boa parte das gastrites e úlceras nos
seres humanos.
22
Thrills and Regression, em inglês, no original, traduzido para o francês como Les
voies de la regresión.
53
Balint sobre as posições da ocnofilia e do filobatismo guardam estreita relação com este tema:
são angústias específicas ligadas à descrição freudiana da experiência de separação materna e
de confronto com a questão da alteridade, desenvolvida brilhantemente em "Das Unheimlich".
Neste sentido, não conseguir nomear a fome parece também ser uma impossibilidade de se
reconhecer como um ser separado, com necessidades próprias, mas que necessita recorrer a
um outro, através da linguagem, para se satisfazer. Na clínica com estas pacientes, é como se
a todo o tempo precisássemos de um outro que, em uma justa sintonia, como no registro do
Amor Primário, quase adivinhasse suas sensações, sem que houvesse necessidade de
nomeação. A explicação do médico, ao dizer que Isadora confundia fome com o desconforto
da gastrite, não podia ser sequer questionada: tal afirmação adquiria valor de verdade, via
sugestão, pois ele, como médico, tudo sabe sobre ela e sobre o seu corpo.
Assim, para dizer “tenho fome” é preciso, em primeiro lugar, poder dizer “Eu”, através
da mediação de um outro disponível a construir sentidos, em uma experiência de interação
sempre singular, de forma a possibilitar que as sensações - puras e simples - ganhem palavras.
Esta também é a lição que a gramática chinesa nos ensina: o ideograma que representa a
palavra fome contém, nele mesmo, o ideograma que designa o Eu. Sendo um país com uma
história de muita pobreza e fome, em decorrência de guerras, o comer se torna uma referência
fundamental, o parâmetro em torno do qual a sensação de bem-estar se organiza. O “como
vai você?” em chinês, usado coloquialmente, traduzido ao da letra para nosso idioma,
significa algo como:
você já se alimentou hoje? E a resposta, “tudo bem”, seria algo como “já
me alimentei, obrigado!” Cogitamos se, no caso dos obesos, tal diferencial - prazer/desprazer
- também se inscreveria desta forma.
Retomando a experiência de satisfação, citada no capítulo 2, vemos que, caso o adulto
- “a pessoa experiente”, nas palavras de Freud - não esteja disponível, a iminência de morte
física parece suficientemente capaz de produzir uma marcação corporal bastante intensa, pela
experiência
real da fome. Assim, é como se uma das primeiras e mais importantes marcas da
necessidade deste outro este “empuxo à alteridade” fosse experienciada, antes de tudo, ao
nível corporal, com toda a gama de sensações físicas de desconforto e inquietação despertadas
ante a experiência de sentir fome. Freud, no início de Inibição, Sintoma e Angústia, refere-se à
compulsão de comer e a atribui ao medo de morrer de fome (FREUD, 1926/1972 p.109).
Entretanto, sabemos também o quanto este medo da morte está ligado ao medo da morte
psíquica, do desamparo, uma vez que guarda relação com o medo da perda do amor,
54
colocando em risco a própria possibilidade de humanização do sujeito. (PINHEIRO, 1997)
Remetemo-nos aqui a uma fala bastante comum no discurso destas pacientes: Se eu vejo a
comida, tenho que comer até acabar! Não posso deixar resto!
E lembramos também de outra
expressão, bastante comum em nossa língua, de que
comemos com os olhos uma iguaria
apetitosa. O necessário controle visual da mãe, também comentado por Freud (1926/1972,
p.195), nos remete à descrição do filobata e ao seu necessário controle dos objetos, à
distância. A voracidade que se expressa nesses quadros, assim como o medo de que o
alimento acabe e que se morra de inanição, parece falar, em verdade, deste temor frente ao
temido desamparo diante do afastamento materno.
Posto isto, comer a comida até o final, sem deixar resto, parece o mesmo que poder
sugar a presença da mãe até trazê-la para dentro de si, carregando-a de modo permanente. A
estranheza reside na concretude com que esta noção parece ser tomada no caso da hiperfagia.
O que podemos observar é que diante de situações difíceis, há o acometimento desta sensação
de incômodo e perturbação - uma mescla de dor, vazio e angústia - que tem como resposta a
comida.
Freud, ao descrever a experiência da criança frente a um estranho, aponta que ali
estariam reunidas sensações que, depois, seriam separadas, a saber, a dor (física) e a angústia
(psíquica) (FREUD, 1926/1972, p.195). Balint, por sua vez, irá denominar de ocnofilia e
filobatismo dois modos especiais de reação às angústias despertadas pela experiência de
separação e afastamento dos objetos. No caso destas pacientes, diante de situações difíceis
as quais podemos talvez inferir que sejam situações em que o que se exige é precisamente o
confronto com a alteridade, ou seja, situações em que se coloque a problemática do ser por si
só, colocando-se como indivíduo separado, distanciado do outro – a resposta parece vir como
uma resposta de apaziguamento ao desamparo, em que se torna impossível distinguir a dor
física do medo de sucumbir psiquicamente a uma situação considerada como excessiva.
Talvez, porque algo do ambiente parece ter falhado nesta função de uma maternagem
primordial, responsável pela nomeação das experiências mais precoces do recém-nascido.
55
A mãe como objeto primário e o conceito de Introjeção em Ferenczi
Aprender a preencher com palavras o vazio da boca é um primeiro paradigma da
introjeção. (TOROK, ABRAHAM, 1995 p.246)
Mostramos, com Balint, o quanto a experiência do Amor Primário, de sintonia entre a
mãe e o bebê, é importante para que a subseqüente e necessária separação e emergência dos
objetos possa ocorrer sem a mobilização excessiva das posições ocnofílicas e filobatas de
dependência extrema ou distanciamento defensivo dos objetos. Entretanto, do lado materno, a
nomeação e a inferência de sentido às experiências do bebê, assim como sua capacidade de
investir imaginariamente seu corpo, transformando-o em um corpo erógeno, são também
elementos fundamentais, embora Balint não teorize sobre isto. Em sua descrição do Amor
Primário, este autor parece, a todo o tempo, tomar o ponto de vista do bebê – sua necessidade
de percepção das sensações de mescla harmoniosa, segurança, tranqüilidade e bem-estar
provocadas pelo contato com a mãe. É Ferenczi o autor que, a nosso ver, através do conceito
de introjeção, destaca a importância desta dimensão de atribuição de sentido às experiências
precoces do bebê junto à mãe.
23
O artigo “Transferência e Introjeção”, de 1909, é onde Ferenczi define o conceito de
introjeção (FERENCZI, 1909/s.d.), termo que será fundamental para toda a sua teorização,
uma vez que, para ele, trata-se do próprio modo de funcionamento do aparelho psíquico.
Ferenczi parece ter, como ponto de partida, a idéia de que o sujeito é um processo cujo modo
de funcionamento é a introjeção das qualidades do mundo ao seu redor (REIS, 2004). Como
nos diz Costa, Introjeção é a palavra que descreve como se institui e como funciona o
aparelho psíquico. (...) Sujeito é aquilo que introjeta e aquilo que é introjetado.” (COSTA,
1995, p.13). Assim, será através das sucessivas introjeções que teremos os primeiros traços
que permitem a formação de um Eu. Na verdade, o ponto mais importante a se destacar é que
será através da introjeção que o registro prazer / desprazer, fundante do aparelho psíquico, irá
se constituir, sendo este diferencial modulado pelo adulto que dará sentido às primeiras
23
Em nossa opinião, Balint faz uma opção teórica ao descrever as relações primitivas do
bebê a partir do ponto de vista deste último o que não significa que negue a importância
do investimento materno. Até porque, enquanto “seguidor” das referências teóricas de
Ferenczi, Balint parece compartilhar estes mesmos pressupostos teóricos, incluído aí o
conceito ferencziano de introjeção.
56
experiências do recém-nascido (PINHEIRO, 1994).
No início de sua relação com o mundo externo, temos um bebê ocupado tanto em fazer
seus primeiros investimentos no mundo externo quanto a se diferenciar dele. Neste processo,
o bebê passa a introjetar as qualidades dos objetos, os quais, na verdade, apenas servem de
“suporte” para os sentidos que serão apropriados. E este sentido é dado pela mãe, que é quem
permite a primeira introjeção, tornando-se assim o primeiro termômetro do caos.
No artigo de 1909 Ferenczi se refere à gênese da introjeção da seguinte forma:
Entretanto, uma maior ou menor parte do mundo exterior não se deixa tão
facilmente expulsar do ego, mas persiste se impondo, como que por desafio: ama-me
ou odeia-me, “combate-me ou meu amigo!”. E o ego cede a este desafio,
reabsorve uma parte do mundo exterior e nele estende o seu interesse: assim se
constitui a primeira introjeção, “a introjeção primitiva”. O primeiro amor, o primeiro
ódio, se realizam graças à transferência: uma parte das sensações de prazer ou de
desprazer, auto-eróticas na origem, se desloca para os objetos que as suscitaram. No
início, a criança ama apenas a saciedade, pois ela acalma a fome que a tortura
depois começa a amar também a mãe, este objeto que lhe traz a saciedade. O
primeiro amor objetal, o primeiro ódio objetal, é pois a raiz, o modelo para toda
transferência ulterior, que não é então uma característica da neurose, mas a
exageração de um processo mental normal. (FERENCZI, 1909/s.d., p.37)
Fica claro neste trecho o quanto Ferenczi considera este processo como sendo não o
mais fundamental para a organização do sujeito, como o próprio modo do psiquismo
funcionar. É a partir deste movimento de ampliação dos sentidos e apropriação das qualidades
dos objetos que é criada a primeira matriz simbólica onde todas as identificações futuras se
apoiarão. Em escritos posteriores (FERENCZI, 1912/ s.d.), Ferenczi ainda mais
consistência ao conceito de introjeção, falando deste mecanismo de se ligar, ampliar, dar
sentido, se fundir, que podemos associar a Eros e, como ressalta Pinheiro, concebendo “a
construção narcísica como trama exclusiva da libido” (PINHEIRO, 1995, p.50). Pensamos
assim em um Eu que pode se constituir nesta ampliação e apropriação dos sentidos, num
movimento constante de “alargamento” da sua esfera de interesses, incluída outra função
fundamental da introjeção: ela é a responsável pela atividade fantasmática, produtora de
fantasias.
Um dos aspectos mais interessantes é que, com este conceito, Ferenczi consegue driblar
o problema que sempre se ofereceu a Freud, que era determinar como se dava a inscrição do
diferencial prazer/desprazer. Para dar conta disto, Freud recorreu ao conceito de “apoio”,
relacionando este registro com a satisfação proveniente das necessidades biológicas. Com
57
isto, dava um caráter “naturalista” aos processos pulsionais. Na medida em que Ferenczi
atrela a constituição do diferencial prazer/desprazer a uma experiência de dar sentido,
vinculada fundamentalmente à necessária presença de um outro humano, ele rompe
totalmente com este “mundo natural”, recolocando a questão da cultura e do universo
simbólico em primeiro plano, como destacado por Pinheiro (1994). Aqui, estamos lidando
com algo que diz respeito à linguagem, à sua ambigüidade fundamental, à qual a criança
tem acesso mediante um adulto que lhe forneça os instrumentos capazes de fazê-la dar sentido
às suas experiências. O lugar deste adulto, como um primeiro objeto privilegiado e
instaurador/fundador desta subjetividade, parece-nos bastante evidente, como nos diz Costa:
“Vê-se, aqui, como a postulação de um objeto, situação ou relação inicial, enquanto primeiro
motor do funcionamento psíquico, anuncia as futuras teorias de Balint ou Winnicott”
(COSTA, 1995, p.10). Deste modo, vemos o quanto Balint parece apoiar-se no conceito
ferencziano de introjeção como uma matriz importante para todo o seu desenvolvimento
teórico, evidenciado pela importância que confere à questão da alteridade na fundação da
subjetividade.
Podemos observar, assim, o quanto este primeiro objeto externo – o adulto – ocupa uma
posição privilegiada. Mas nem sempre este adulto é capaz de se ocupar da criança da melhor
forma. Muitas vezes é a sua imprevisibilidade, a sua falta de tato e cuidado, a sua
impossibilidade de fornecer os códigos fundamentais para a criança que tornarão a introjeção
algo impossível. E, se não introjeção, haverá a
incorporação e a clivagem, a cisão e a
estagnação dos sentidos, o que produz danos graves e desestruturantes no Eu. Vemos então
que o conceito de Falha Básica, em Balint, tem em Ferenczi seu modelo – a idéia de clivagem
como funcionamento defensivo, a partir da introjeção impossível.
É Maria Torok que irá propor o uso do termo incorporação, fazendo distinção com
relação à introjeção, para falar desta introjeção impossível (TOROK, 1995). Retomando o que
dissemos anteriormente, o que se introjeta, precocemente, através da introjeção primitiva, é o
diferencial prazer/desprazer, cabendo ao bebê introjetar as qualidades do objeto mediante a
interpretação de um outro sujeito portador de linguagem – a mãe que se torna o termômetro
para o caos pulsional no qual a criança está imersa (PINHEIRO, 1995). Através da
transferência, a criança passa a ampliar e deslocar o seu amor à saciedade, por exemplo, para
o objeto que a suscitou. Assim, passamos da coisa, da sensação, para o objeto que a despertou.
Entretanto, este passo pode ser dado através da nomeação efetuada por um adulto (uma
58
mãe) imerso na linguagem, que será responsável pela “iniciação” do bebê nesta mesma
comunidade falante.
Torok ressalta que, no caso da introjeção, é fundamental
a experiência da boca vazia,
conforme ressaltamos na citação que abre esta seção. Transcrevemos aqui sua descrição do
processo, que, embora um pouco longo, me parece importante para nossa discussão:
O início da introjeção se deu graças a experiências do vazio da boca, duplicadas por
uma presença materna. Esse vazio é inicialmente vivenciado como gritos e choros,
preenchimento adiado, depois como ocasião de apelo, meio de fazer surgir a
linguagem. Depois ainda, como autopreenchimento fonatório, pela exploração
linguo-palato-glossal do vazio, em eco a sonoridades percebidas desde o exterior e,
finalmente, como substituição progressiva parcial das satisfações da boca, cheia do
objeto materno, pelas da boca vazia do mesmo objeto, mas cheia de palavras
endereçadas ao sujeito. A passagem da boca cheia de seio à boca cheia de palavras
se efetua por meio de experiências de boca vazia. (...) Compreende-se que ela
pode se operar com a assistência constante de uma mãe que possua a linguagem. (...)
Assim, o vazio oral original terá encontrado remédio para todas as suas faltas por
sua conversão em relação de linguagem com a comunidade falante. (TOROK, 1995,
p. 246)
É neste exercício paradoxal de presença-ausência ausência do objeto-materno (o
seio), mas presença de palavras maternas que a introjeção vai se processando, incluindo
qualidades, povoando de sentidos a subjetividade do recém-nascido. Torok é ainda mais
radical em sua leitura de Ferenczi ao dizer que o que se introjeta, na verdade, é o próprio
Inconsciente. Segundo ela, a introjeção é a “inclusão do Inconsciente no Ego” (ibidem,
p.222). Ao se introjetar as qualidades da pulsão, é da própria instauração do registro da
Sexualidade da linguagem e da alteridade no aparelho psíquico que se trata, cabendo ao
objeto a função de “mediador para o Inconsciente”(ibidem, p.222).
Entretanto, para que isto aconteça algumas condições são necessárias, como
observamos na citação acima: em primeiro lugar, é preciso que ocorra a experiência de “vazio
da boca”; em segundo lugar, há que se ter uma mãe (ou adulto) que possua a linguagem e que
efetue essa nomeação. Para que a criança brinque ou ouse explorar a cavidade orofaríngea, em
relação aos sons percebidos pelo ambiente, até chegar às palavras, é fundamental que algo,
como uma presença materna, esteja minimamente assegurada, até para que a brincadeira “em
eco” possa acontecer. Torok também é clara em dizer que, para introjetar, o objeto precisa
estar aí, sendo a perda um “obstáculo intransponível para a introjeção” (ibidem, p.222). Logo,
59
para que se tenha um “parceiro falante” e para que estes jogos de sentido tenham lugar é
indispensável uma presença.
Ora, o que vemos em nossa clínica? Com grande freqüência, histórias de longas
amamentações, até idades consideradas tardias, uma voracidade “desmedida” por parte das
crianças e uma impossibilidade das mães em suportar os gritos e os apelos de seus bebês,
vindo sempre com uma resposta rápida no sentido de “tamponar” os gritos destas crianças.
Esta “resposta rápida”, em vez de ser uma palavra que faça a mediação, vem sob a
forma
concreta de alimento - comida para tampar qualquer incômodo, qualquer falta,
qualquer perturbação. É a mamadeira que vem na longa fila de espera para a consulta ao
pediatra, o biscoito em momentos de choro, engolido junto com as lágrimas que são, assim,
forçosamente interrompidas sem nenhum esforço de atribuição de sentido. Desta forma,
come-se sempre e muito, pasteurizando-se sensações e qualidades, tornando tudo uma mesma
coisa, indefinida, uma massa indiferenciada que se “põe pra dentro” em busca de um
apaziguamento. E a inscrição deste diferencial prazer/desprazer parece então se organizar
apenas em torno das sensações “estar cheio ou vazio”, sem possibilidade de outros
desdobramentos de sentido – seu deslizamento metafórico ou metonímico.
Devemos ressaltar que, do lado destas mães, é como se a linguagem também não
recobrisse suficientemente a experiência de se ver diante de uma criança que lhe demanda
cuidados, interrogando-lhe em seu próprio desamparo. Sabemos o quanto o advento de uma
criança marca uma revivescência do narcisismo dos pais. No entanto, parece que, para estas
mães, o recobrimento narcísico se esgarça no encontro com sua própria criança interna, que a
experiência da maternagem a faz, então, confrontar.O caso a seguir parece bastante ilustrativo
com relação a estes aspectos.
M. é uma menina de seis anos. Chega ao consultório trazida pela mãe, chupando dedo.
Esta diz que não agüenta mais vê-la desta forma e que fica muito incomodada quando é
criticada por outras mães e vizinhos sobre este comportamento da filha.
Sinto como se eu
estivesse falhando! Diz que M. chupava dedo desde a sua barriga, pois assim havia visto na
ultra-sonografia. Pergunto sobre sua alimentação, amamentação, e a mãe diz que ela mamou
até o ano anterior (5 anos), tendo parado porque ela (mãe) havia ficado doente (uma
pneumonia complicada) e estava muito enfraquecida, além de ter sido proibida pelo médico
de continuar a amamentar. Disse ter sido um momento muito difícil, pois esteve muito mal e
pensou que talvez fosse morrer e não ver a filha crescer. M. havia chorado bastante
60
inicialmente, mas, segundo a mãe, reagiu melhor que ela esperava à retirada do peito.
Segundo ela, “parecia que ela percebia que era melhor não me incomodar, pois eu estava
muito fraca e triste por não poder amamentá-la”.
Pergunto sobre o pai, que até então não
havia aparecido em seu relato, e ela diz que ele se incomoda um pouco com o fato de M.
dormir na mesma cama com eles por causa do espaço pequeno e da falta de conforto. E diz
que as tentativas de fazer a filha dormir sozinha fazem M. gritar e chorar ferozmente, durante
horas. O pai, então,
“em vez de ajudar, fica com pena” e não consegue, também, deixar a
menina dormir sozinha. Pergunto se ela se incomoda com isto e ela me diz que não, pois
“é
bom dormir assim, todo mundo junto, quentinho,” embora tenha escutado que isto não é
bom para a criança
.”
Trago este fragmento para ilustrar o uso da oralidade e do comportamento ocnofílico
de agarrar-se aos objetos como uma resposta primitiva da criança a este momento deflagrador
de angústia, que é a separação da mãe. O maior complicador aqui é que esta angústia
acompanha não a criança, mas também a mãe, de forma bastante intensa, que em sua
fragilidade parece ter, na experiência da maternidade, um recurso de recobrimento narcísico e
de uma certa onipotência. Neste sentido, a tentativa é de prolongar esta experiência de contato
com a criança o maior tempo possível, buscando o restabelecimento da experiência de Amor
Primário. Por parte da mãe, qualquer distância percebida, ao menor sinal de angústia da
criança, não pode ser tolerada e a resposta mais freqüente é o apaziguamento imediato. Do
lado da criança, se a mãe se vai, toma-se então o dedo substituto do seio e, portanto, da
própria mãe como tentativa de apaziguamento. Desta forma, como a descrição de Balint a
respeito da ocnofilia, é como se toda e qualquer distância, percebida entre si mesmo e o
objeto, provocasse reações de angústia bastante intensas, contra a qual a defesa possível é a
adesividade exacerbada em relação aos objetos.
Neste exemplo vemos que, diante da fragilidade da dupla (mãe e filha), ao “encarar” o
terror do escuro do quarto solitário a grande expressão da existência individual da criança,
enquanto ser separado, enquanto cabe à mãe um olhar para outro objeto, o pai - nada melhor
do que se manter a sensação de fusão de corpos, de duplicação, onde se espanta o desamparo,
a solidão e a sexualidade a diferença por excelência. Dormindo todos juntos, mesclamos as
diferenças e tentamos restabelecer a harmoniosa sensação de Amor Primário.
61
O corpo obeso como defesa contra alteridade
Retomando brevemente nosso percurso, procuramos mostrar, no primeiro capítulo,
que o “ego corporal” não está dado desde o início. É preciso que o corpo do bebê seja
investido e erogeneizado por um adulto por uma presença - para que possa então se tornar
uma das primeiras e mais importantes referências egóicas. Quando isto não acontece ou
acontece de forma precária - para além dos conhecidos quadros psicóticos, assistimos a um
modo de funcionamento no qual a prevalência dos aspectos narcísicos. Recorremos então
a Balint, por ser um autor que se ocupou em teorizar sobre essas relações objetais precoces e
procuramos, com ele, destacar alguns conceitos que parecem encontrar ressonância em nosso
trabalho clínico com pacientes obesos. Em especial, as noções de Amor Primário, objeto
substância, ocnofilia e filobatismo falam de modos de relação objetal que, em sua dinâmica e
qualidades singulares, aproximam-se muito dos quadros observados.
Deste modo, através da escuta destas pacientes, de histórias de uma oralidade
excessivamente estimulada, assim como a correspondente dificuldade de muitas mães em
deixar de amamentar seus filhos, utilizando o referencial balintiano, pensamos na importância
deste recurso de ser dois como uma tentativa de restabelecer a condição do amor primário,
defendendo-se do desamparo. E aqui nos remetemos à questão do duplo (FREUD,
1919/1972), que faz parte do registro do pensamento animista e, portanto, narcísico,
referindo-se às sensações de identidade compartilhada e extensão do Eu e fazendo parte do
arsenal de proteção contra a sensação de desamparo. Podemos então pensar, como hipótese,
no quanto a obesidade - a questão do corpo acima do peso e que, por muitas vezes,
concretamente, é como se tratasse de duas pessoas em uma só - parece ter esta função de fazer
frente ao desamparo, tentando restabelecer a sensação de mescla do Amor Primário, como
medida de proteção contra a angústia.
O corpo obeso parece assim, em si mesmo, tentar prover aquilo que o entorno falhou
mecanismo já descrito como fazendo parte do registro da clivagem e da falha básica,
remetendo-se ao campo da relação dual. O próprio corpo toma um formato capaz de recobrir a
si mesmo, proteger-se, através da excessiva camada de gordura também uma substância
evitando a percepção das singularidades, pontas e descontinuidades. Lembro-me da fala de
uma paciente que se queixava, após a cirurgia e do subseqüente emagrecimento, da sensação
62
de sentir os próprios ossos, as pontas e singularizações do corpo quando, por exemplo,
sentava-se em uma cadeira. Quando pergunto como ela se sentia antes de operar, ela me diz:
antes eu não conseguia me perceber direito, sentia a pele, não percebia o tamanho das
coisas. Sentava na cadeira e percebia que era fria, mas não sabia direito o tamanho que ela
tinha
.” Assim como não percebia os contornos dos objetos, também não conseguia perceber
os contornos de si mesma - era somente uma grande massa não diferenciada, onde não havia
reentrâncias nem sexo. Sem pontas, sem diferenças. Tudo uma grande massa pasteurizada,
narcisicamente.
Lembremos aqui também da distinção feita por Balint entre os sentidos primários
(paladar e olfato) e os secundários - tato e visão, - que se referem, respectivamente, às
posições da ocnofilia e filobatismo. Com relação ao olhar, pontuamos no início do capítulo a
questão da vergonha, sempre tão presente no discurso destas pacientes, o medo do olhar do
outro – a evitação de sair de casa, o medo de ser visto. Pensamos, aqui, na descrição de Balint
sobre a ocnofilia, quando este diz que, na posição ocnofílica, não é possível olhar e nem ser
olhado, que se está próximo demais dos objetos, buscados então através do tato e do
paladar. É como se fosse possível simplesmente “fechar os olhos e virar a cabeça quando um
perigo o ameaça” (BALINT, 1972, p.158), sem que seja necessário o uso de outro recurso,
como se afastar ou correr, distanciando-se visivelmente dos objetos. Pois o ver e o ser visto
são defesas e formas de controle do filobatismo o que supõem alguma distância deste
objeto, uma vez que a visão é um sentido “projetivo”. Pensamos então no quanto esta
vergonha quando se é apontado ou olhado como “gordo” (e muitas vezes usado como
“ponto de referência” visual, no dizer das próprias pacientes) - pode guardar alguma relação
com isto: ser olhado é a primeira evidência de ser um corpo separado, distinto do corpo
materno. Assim, o enrubescer-se quando olhado parece ser quase como ser pego em flagrante,
surpreendido na impossibilidade de permanecer na ilusão de ser uma continuidade, um
prolongamento materno, na sensação de preenchimento de espaço e de inexistência de vazios
que o corpo obeso e seu correspondente comportamento ocnofílico parecem oferecer.
Um corpo sem sexo?
63
Como um último aspecto, gostaríamos apenas de ressaltar, a título de futuras
investigações, em maior profundidade, o quanto estas experiências de dependência excessiva
da dupla mãe-filha envolvem aspectos relativos, necessariamente, à questão do Feminino.
Pensamos no quanto este corpo obeso, pretensamente “assexuado” e que impede, na maioria
das vezes, inclusive a visão dos próprios genitais, não pode ser pensado em seu viés
narcísico, para além de sua possível função defensiva diante da sexualidade. É comum na
história de pacientes obesos a ausência de vida sexual ativa, por longos períodos, na maior
parte das vezes atribuída à questão do “preconceito” por parte dos parceiros. Entretanto, até
que ponto habitar este corpo não é uma forma de manter à distância, como no filobatismo,
todo o encontro mais íntimo e próximo do objeto? (E aqui vemos claramente no quanto
ocnofilia e filobatismo são termos complementares, nunca exclusivos)
Observamos ainda, em muitos casos, como tais mulheres são belas. E em seu discurso
é bastante freqüente ouvirmos algo como eu era muito bonita, tinha um corpo lindo... até
engravidar! Isabela, citada no início do capítulo, havia sido modelo e até hoje é uma mulher
de feições muito bonitas. Diz que sua mãe sempre quis que Isabela fosse modelo. Ela, então,
assim o fez. Entretanto, em determinado momento, começa a engordar e precisa interromper a
carreira. Casa-se por pouco tempo e tem um filho, mas não consegue cuidar dele, que
permanece com o pai. Podemos pensar se talvez tenha sido insuportável se transformar em
uma bela mulher e, mais ainda, mãe, sendo a gordura uma forma defensiva de permanecer
pretensamente no mundo do “sexo dos anjos” – sem a diferença sexual e todas as suas
questões.
Trazemos, enfim, um último caso que penso que condensa todos estes pontos
ressaltados nesta pesquisa (as relações objetais instáveis, a precariedade narcísica), embora
seja a questão do feminino mortífero o que mais nos chama a atenção.
Roberta tem 36 anos. Está bastante deprimida e, segundo ela, “sem vontade nem forças
para fazer nada”. Licenciada do trabalho (cobradora de ônibus), pede-me ajuda para
conseguir emagrecer (vem encaminhada pela Nutricionista do Serviço, muito preocupada com
seu estado depressivo). “Não consigo me olhar, tenho raiva deste corpo, é uma barreira que
coloco pra não chegar perto de nada, principalmente do meu marido. Não consigo fazer
amor com ele, não consigo me aproximar. Tenho vergonha de sair na rua, troco de roupa
com a luz apagada, nem me olho no espelho. Mas também não consigo deixar de comer, é o
meu único prazer” Vive quatro anos com este companheiro, segundo ela, “ex-
64
homossexual” (sic) e batalha, na justiça, pela oficialização de um processo de adoção de uma
menina de 2 anos, que está com ela e o companheiro desde poucos meses de idade, em um
difícil exercício de maternidade.
“Não consigo dizer não para ela, ela manda na casa, não
me deixa ficar um minuto sozinha com meu marido. Às vezes tenho ciúmes dela com ele, fico
com raiva.”
Localiza um evento importante que a fez engordar muito, apesar de ter sido
sempre obesa: a perda de uma prima, com menos de 30 anos de idade, repentinamente, por
conta de um enfarte fulminante. “Ela era minha bonequinha, como uma filha, muito
companheira. Eu dava conselhos pra ela, ela me ouvia, contava com ela pra tudo”.
Tem uma
relação extremamente difícil com a mãe e este é um dos temas que mais a faz sentir-se
deprimida.
“Eu adoro ela, não consigo sair de perto dela, mas ela me maltrata muito, muito,
sempre foi assim... Sempre me joga na cara que eu fui um peso na vida dela, pois ficou
com o meu padrasto, que ela não gostava, por minha causa”. na segunda entrevista, ao
falar desta mágoa da mãe, revela que esta, quando Roberta tinha 9 anos de idade e “brincava
de médico com meninos”, “coisa de criança”, a mãe, ao descobrir, queimou sua vagina com
uma colher (sic). “Do lado de fora, até hoje não nasce cabelo. Foi uma vizinha que então
cuidou de mim, colocava uma pomada amarela e eu fiquei quase boa. Quase, porque a
marca ficou, né? Mas ainda assim, não consigo ter raiva dela. Quero ficar perto dela o
tempo todo, não consigo ficar longe. Às vezes, passo dias na casa dela, não consigo voltar
pra casa pra ficar com meu marido. E ela reclama que eu vou pra pra comer a comida
dela e dar prejuízo.”
Roberta vem à primeira entrevista, “vomita” todo este conteúdo e passa algumas
semanas sem vir às sessões. Fico bastante preocupada, entro em contato, e ela me diz que não
pôde comparecer porque estava sem dinheiro. Retorna e temos a sessão em que conta o
episódio da queimadura. Novas ausências. Entro em contato, por telefone, e ela relata que a
filha estava gripada. Vem a mais duas sessões, quando então fala bastante sobre a qualidade
desta relação com a mãe. ”Não consigo me separar da minha mãe, por mais que ela me trate
mal. Parece que estou dentro dela, que eu sou um bebê. Queria poder estar num barco e
sumir, me afastar, sair correndo pra longe”.
A sensação de Roberta é de que é um peso para a mãe. Podemos talvez supor que, para
sua mãe, ter sido mãe de uma menina e poder olhar para a filha como tal não foi algo possível,
embora tenhamos muito poucos elementos para poder fazer suposições. Mas, de algum modo,
Roberta parece repetir alguma coisa desta dificuldade: ao adotar uma criança, não consegue
65
deixar de sentir-se dominada por seus caprichos e desejos, fazendo ressaltar, sem dúvida, este
seu importante elemento de submissão – seja ao cruel tratamento materno, seja às vontades da
filha, que Roberta também facilmente transforma em uma
tirana. Sem dúvida, estas são
questões que nos fazem pensar no masoquismo feminino.
Uma outra paciente, Maria, parece mostrar o outro lado desta moeda. É obesa, tem
uma filha de 3 anos e ainda a amamenta. Sua grande preocupação é que, ao realizar a cirurgia
bariátrica, terá que interromper a amamentação da filha que sabe ter
passado da hora,
mas diz ainda ser
muito difícil deixar de fazer, porque é muito bom! Tem um filho de 6 anos,
que também amamentou até uma idade um pouco mais avançada, mas depois para minha
decepção, ele mesmo deixou o peito. Passei meses ainda usando sutiã de amamentação e
todos rindo da minha cara!
E completa: afinal, foi tudo diferente, pois ser mãe de menina é
completamente diferente de ser mãe de menino. Diz adorar tratar a filha como um
brinquedinho - o que, no caso do menino, não acontecia. Segundo ela, não é feio para uma
menina a mãe dar banho até os 10 anos de idade. Para o menino é... Em relação à sua própria
mãe, Maria se queixa muito de não ter sido olhada e cuidada o suficiente.
Assim, a fantasia de Maria, ao pensar na filha como um brinquedo, que pode ser
manipulado segundo seus caprichos, parece falar da contrapartida de Roberta, neste par
dominação-submissão. Certamente, são as questões da sexualidade feminina que parecem
entrar em cena, em sua transmissão ao longo das gerações, mas que, não sendo nosso tema e
exigindo, sem dúvida, maiores desdobramentos, nos limitaremos a simplesmente destacá-lo
para futuras pesquisas.
Retomando ainda o caso de Roberta, com relação à qualidade dos vínculos
estabelecidos, vemos o quanto o movimento de aproximação e afastamento dos objetos
também ocorreu em seu espaço de escuta. Roberta chega muito mobilizada, “despeja” seus
conteúdos e se vai, distanciando-se. Os objetos, as relações, parecem ser, sempre, muito
perigosos: não uma distância segura o suficiente. Ou está dentro da mãe, completamente
submetida a seus caprichos, ou quer sumir diante de suas vistas, se afastando, em seu barco
imaginário (uma reação filobata). Ela então me diz: preciso muito de uma psicóloga! Não
sabia o quanto isto era importante! Entretanto, passa um novo período sem comparecer e,
neste meio tempo, sou transferida do local onde trabalho. Faço um último contato,
informando o ocorrido e sugerindo o nome de outra profissional que poderia acompanhá-la,
visto que trabalharia em uma unidade especializada no atendimento a pacientes psicóticos. Ela
66
lamenta, desculpa-se muito pelas ausências e agradece a oferta de um horário com outra
profissional, diz que irá, mas que vai precisar de um tempo, afinal, já estava acostumada com
você...
Nada respondo.
Ao terminar a ligação, acho muito curioso este seu último comentário sobre sua
percepção do tempo, afinal, tivemos apenas quatro sessões. Embora eu mesma tenha ficado
bastante preocupada com os efeitos desta “ruptura”, uma vez que para mim ficou claro sua
dificuldade em enunciar e manter um discurso sobre si, um espaço de interioridade, fui
surpreendida por sua lucidez sobre a intensidade do que foi dito e sua necessidade de
continuar o tratamento, com outra profissional e até uma certa gratidão por isto. Penso,
então, na delicadeza que o manejo de tais pacientes exige. Pois a todo o tempo, a sensação é
de que
quem sustenta o espaço é o analista – é o seu desejo, seu investimento, ao contrário da
posição usual. Assim, são os limites e impasses da própria técnica analítica que tais pacientes
nos fazem confrontar.
Vemos nestes fragmentos clínicos uma série de questões que envolvem, para além da
temática do feminino, esta particular forma de relação com os objetos, que parecem muitas
vezes “aderidos” ao Eu (como nos exemplos relacionados à experiência da amamentação), e
que nos fazem pensar na posição ocnofílica. Ainda que tais relatos indiquem dificuldades
importantes, com relação ao lugar de “mãe” e de “mulher,” que tais pacientes parecem ter, são
as questões mais primárias, relacionadas à própria possibilidade de uso deste corpo, enquanto
confirmação da própria
sensação de existência, que ocupa o primeiro plano. (Lembremos aqui
que ocnofilia e filobatismo são modos específicos de angústia ligados à experiência de
separação dos objetos). Desta forma, este “corpo sem sexo”, para além de seu uso enquanto
recurso defensivo frente a um modo de organização sexual genital, remete à
anterioridade das
questões aqui em jogo, referidas à própria possibilidade de constituição deste “ego corporal”
(Freud). Pois, paradoxalmente, temos aí um corpo sem sexo mas com buracos – apenas
“vazios” a partir dos quais, em vez de um “empuxo à alteridade”, promotor da introjeção
das qualidades do ambiente através da mediação de um outro, vemos operar um mecanismo
capaz de funcionar apenas segundo uma lógica binária (vazio/cheio; leve/pesado), incapaz de
modular sentidos.
67
Conclusão:
Da Falha Básica à Área da Criação
Balint, em sua época, assim como Ferenczi, foi um dos importantes teóricos a
questionar os critérios de analisabilidade propostos por Freud. Em verdade, todos os seus
questionamentos clínicos e seus avanços teóricos se originam desta abertura e possibilidade
de inovações técnicas a partir de uma clínica diferenciada. Atualmente, trabalhar com casos
como os de drogadicção, compulsão alimentar, depressões e todos os quadros que entendemos
como as chamadas “novas subjetividades” ou “patologias da contemporaneidade”, também
nos fazem questionar os limites da técnica analítica atual. E é precisamente neste sentido que
consideramos a atualidade de seu pensamento. Pois, se hoje, pensamos uma clínica
psicanalítica preocupada em atender casos que parecem não se “encaixar” nos modelos
teóricos pré-estabelecidos, talvez seja interessante buscarmos os referenciais teóricos de
pensadores que também problematizaram os limites e possibilidades da técnica analítica
clássica. E parece que eles têm bastante a nos ensinar...
Tentamos mostrar, ao longo deste trabalho, o quanto a clínica da obesidade, para além
da questão da compulsão alimentar, traz em seu bojo questões que colocam em xeque, a todo
o tempo, aspectos relativos ao narcisismo e à dificuldade nas relações alteritárias. A partir
desta evidência clínica, supomos que estamos lidando com pacientes que apresentam questões
relativas à área da falha básica: algo no ambiente parece ter falhado em seu suprimento básico
em termos de investimento e possibilidade de nomeação deste corpo e suas sensações. No
segundo capítulo, tentamos expor brevemente a teorização de Balint sobre esta questão e
sobre os processos mais “primitivos”,das relações objetais precoces. No terceiro capítulo,
tentamos ilustrar, com nossa experiência clínica, as questões observadas.
Neste momento, como conclusão do trabalho – que em nenhum momento tem a
pretensão de responder a toda complexidade que a clínica nos traz – gostaríamos de ressaltar o
quanto a constatação da existência de uma fragilidade narcísica relacionada à falha básica tem
efeitos importantes sobre nossa prática, principalmente com relação ao
manejo destes
68
pacientes. Especialmente, vemos o quanto o valor de nossa intervenção passa, em primeiro
lugar, pela possibilidade da própria constituição de um espaço de tratamento. Assim, nosso
primeiro grande desafio é criar um
setting capaz de acolher estas questões mais regressivas, as
quais, segundo Balint, não passam pelo registro da interpretação, uma vez que, aqui, as
palavras não são totalmente confiáveis pois neste registro elas se tornam esvaziadas,
repetitivas, estereotipadas e monótonas. Assim, para estes pacientes, para os quais o ato tem
maior privilégio que as palavras, nossa intervenção também precisa ser repensada e, talvez,
reinventada.
Mas talvez a grande questão que esta clínica, e com ela, Balint, nos coloca é: se a falha
básica é uma questão ambiental, como entender o trabalho analítico? É só
reparação, cabendo
ao analista a função desta maternagem reparadora? Quais os limites e possibilidades deste
trabalho?
Balint é claro ao dizer que não cabe ao analista “compensar as privações precoces do
paciente” (BALINT, 1993, p.165). Cabe, antes, oferecer-se como um objeto primário,
conduzindo o paciente a um “novo começo” (new beginning), onde é a construção e invenção
de novos sentidos e caminhos que devem estar presente. Em verdade, penso que esta é uma de
suas grandes contribuições: conceber o trabalho analítico, especialmente com estes pacientes,
como sendo da ordem de uma invenção. E Balint nos dá algumas pistas sobre este processo.
O que está em jogo é o poder cicatrizante da relação (ibidem, p.147), uma vez que, no
caso dos pacientes em regressão, é, sobretudo, a relação bipessoal (a transferência)
o agente
capaz de promover mudanças
, novas direções, novos fluxos de vida, muito mais que qualquer
interpretação. Uma vez que a falha não pode ser corrigida, através da relação bipessoal,
estabelecida via transferência, ela poderá ser, talvez, cicatrizada:
Como a falha básica, enquanto estiver ativa, determina as formas de relação objetal
disponíveis, em cada indivíduo, uma das tarefas necessárias no tratamento é inativar
a falha básica, criando condições nas quais ela possa cicatrizar. Para obtê-lo, o
paciente deve poder regredir até a situação, isto é, até a forma particular de relação
objetal que provocou o estado de deficiência original, ou mesmo a um estágio
anterior. Esta é uma pré-condição que deve ser preenchida antes que o paciente
possa desistir, inicialmente de maneira um tanto experimental, de seu padrão
compulsivo. Somente depois é que o paciente ‘irá recomeçar’, isto é, desenvolver
novos padrões de relação objetal, em substituição aos anteriores, oferecendo a ele
maiores possibilidades de adaptação à realidade, com menor tensão e fricção do que
anteriormente (BALINT, 1993, p.152)
69
A primeira condição para que esta criação possa ocorrer é que o analista permita a
regressão do paciente e a entenda como um procedimento terapêutico. A partir daí, é
necessário poder se oferecer como um
objeto primário, nos moldes da relação de amor
primário original. E o que significa isto? Não se trata de dizer que o analista irá amar
incondicionalmente, ou ter uma atenção especial para seu paciente em regressão. Pois uma
importante diferença, entre “oferecer amor primário” e “oferecer a si mesmo para ser
investido pelo amor primário” (BALINT, 1993, p.165).Oferecer-se como
objeto de uso para o
paciente significa, principalmente, ter um
tempo livre de qualquer outro tipo de estímulo
externo para oferecer-se verdadeiramente como suporte e testemunha para este profundo
contato do paciente regressivo consigo mesmo.
Nestes momentos, de extrema delicadeza e cuidado no manejo do
setting, é, sobretudo
a atmosfera, o humor e os menores detalhes do ambiente que podem ser percebidos e sentidos,
possuindo um genuíno efeito terapêutico. Assim, é a sensação experienciada no setting, mais
do que qualquer possibilidade de insight, que importa, sensação esta que, por se referir ao
tato, pertence à esfera das reações ocnofílicas (ibidem, p.153). É preciso, então, que o analista
permita, sem se sentir ameaçado, que o paciente tenha esta sensação de “existir com” o
analista, permitindo seu uso por parte do paciente. O analista deve agir:
... como a água suporta o nadador, ou a terra, o caminhante, isto é, estar presente
para que o paciente o utilize sem muita resistência a ser usado. (...). Além e acima de
tudo isso, deve estar presente, deve sempre estar presente e deve ser indestrutível
como o são a água e a terra. (ibidem, p.153, 154)
Oferecendo-se como um objeto primário, o analista deve ter como direção de trabalho
a sustentação de uma atmosfera, um setting, que permita ao analisando a criação de novos
caminhos, novas trajetórias, novos percursos uma vez que esta falha não poderá nunca ser
totalmente corrigida. E será muitas vezes no
silêncio que estas novas produções serão
geradas, como novas criações, sempre de forma solitária e quieta dos pré-objetos aos
objetos
24
- em um dado tempo que não pode ser determinado de fora, a partir de uma
intervenção descuidada por parte do analista. Mas o “paradoxo” interessante é que, apesar da
criação ser uma atividade solitária, parece ser fundamental que, no caso do “novo começo”,
24
Vide capítulo 2.
70
ela não ocorra na solidão
25
. Assim, cicatrizar a falha básica implica, necessariamente, em
uma relação bipessoal que a suporte:
Todos os novos começos acontecem na transferência, isto é, em uma relação objetal,
levando a uma relação modificada com os objetos de amor e ódio do paciente e, em
conseqüência, a uma considerável diminuição da angústia. (...) Novo começo
significa: a) voltar a algo “primitivo”, a um ponto anterior ao início do
desenvolvimento defeituoso, o que poderia ser descrito como uma regressão e, b) ao
mesmo tempo, a descoberta de um novo meio, mais adequado, que leva a uma
progressão. (...) chamamos a soma total desses dois fenômenos básicos de regressão
em favor da progressão. (ibidem, p.123)
Assim, Balint parece tentar “reabilitar” toda a força que o conceito de transferência
traz, em uma época em que a corrente teórica dominante, apoiada nas concepções kleinianas,
propunha como técnica a interpretação da transferência, enfatizando seu entendimento como
um processo eminentemente centrado na repetição, na reedição das imagos parentais. Balint é
bastante crítico com relação a este tipo de manejo, destacando, sobretudo, o quanto tal
procedimento técnico parece deixar o paciente em uma situação cada vez mais infantilizada e
dependente, às custas de uma certa hipocrisia do analista, que permanece em uma posição
onipotente e onisciente, essencialmente defensiva. Para Balint, em relação aos pacientes
regredidos em análise, este é um dos maiores “erros técnicos” que se pode cometer. Pois,
nestes casos, a orientação é, precisamente, tentar diminuir ao máximo a desigualdade, a
distância entre analista e paciente
26
, criando uma atmosfera favorável à regressão - e daí toda
a importância da noção do analista como substância primária. Assim, insistir em sua posição
de um objeto separado, distinto e independente é tudo que o analista deve evitar.
Desta forma, mais do que repetição, Balint enfatiza a concepção de transferência como
sendo, essencialmente, da ordem de uma criação. Pois é no ato presente da transferência, sua
25
A referência a Winnicott e seu texto sobre a capacidade de estar é inevitável. Nele,
Winnicott discute sobre o quanto o estar é um sinal de maturidade emocional que é
possível acontecer na medida em que a criança tenha experienciado uma situação
fundamental - e a princípio paradoxal - de estar na presença de alguém. E é interessante
a sua descrição desta situação, na qual o mais importante é a qualidade da relação e da
atmosfera estabelecida. Trata-se, assim, de uma situação onde é possível ao bebê estar só,
mas com a mãe ou quem a substitua “confiantemente presente, ainda que representada, por
um momento, por um berço ou um carrinho de bebê, ou pela atmosfera geral do ambiente
próximo” (WINNICOT, 1958/1990, p.33).
26
Referência a Ferenczi e suas experimentações de inovações na técnica analítica, em
especial seu conceito de tato, também utilizado por Balint, que se refere a uma
compreensão empática da situação analítica, por parte do analista, que só pode advir
mediante sua própria análise pessoal, não devendo ser confundida com algo “místico”
(FERENCZI, 1928) .
71
encarnação na pessoa do analista (PONTALIS, 1991) – incluído aí seus menores movimentos,
oscilações de humor, sua efetiva disponibilidade interna de estar ali que parece residir toda
sua força de transformação possível, inerente ao processo analítico. Assim, é no seu imenso
potencial de novidade e criação que devemos apostar, com especial ênfase às qualidades e aos
pequenos gestos e modificações ocorridas no espaço analítico.
Neste ponto, gostaríamos apenas de sugerir, a título de futuras investigações, o quanto
a experiência de submeter-se à cirurgia bariátrica, no caso de alguns pacientes obesos, poderia
ter este sentido de um ‘novo começo’. Pois, a partir de todos os procedimentos de
investigação, exames e “esquadrinhamento” deste corpo - em tudo excessivo e sem limites -
um novo olhar, assim como a possibilidade de construção de novos sentidos, novas
demarcações e contornos, parece acontecer. O lugar deste paciente na família, assim como
toda a gama de cuidados e atenção médica que ele passa então a necessitar para o resto da
vida parecem ter um impacto bastante importante sobre a sua dinâmica psíquica, trazendo
consigo a possibilidade de um investimento narcísico talvez nunca antes experienciado ou
por uma falha ambiental ou por uma voracidade desmedida por parte deste bebê. Ou, talvez,
pelo encontro fortuito entre estes dois eventos imprevisíveis.
O que mais chama a atenção é o quanto parece ser preciso a existência de uma cicatriz
real, uma marca indelével, para que, então, algum discurso sobre si e um novo mapeamento
deste corpo possam ser inventados – sempre e, no mínimo, a dois. A cicatriz marca de uma
perda irreparável - precisa ser visível, tocada e olhada para que algo possa ganhar palavra.
Balint vai dizer que a experiência de confrontar-se com a falha básica traz consigo,
necessariamente, a vivência de um
luto ou tristeza pela perda original, causadora da falha. Sua
cicatrização implica na possibilidade de vivenciar, na relação analítica, estes momentos
dolorosos. A clínica nos demonstra o quanto as vivências depressivas são difíceis para os
pacientes compulsivos, uma vez que a resposta a qualquer vivência desta espécie parece ser o
recurso ao ato, em um movimento de expulsão. Assim, a criação de um espaço transferencial
de acolhimento, onde seja possível suportar a dor e a tristeza, a separação necessária à
experiência de constituição de si e do outro, de forma não solitária, parece fazer toda a
diferença. O analista, em sua função de suporte, de testemunha destas vivências, parece ser
importantíssimo para a posterior construção de jogos de sentido e de nomeação para todas
estas “novas” sensações experienciadas.
72
A tristeza ou luto que temos em mente é a respeito do fato inalterável de um defeito
ou falha em si mesma que, de fato, lançou sua sombra em toda a sua vida, cujos
desafortunados efeitos nunca poderão ser corrigidos completamente. Embora essa
falha possa cicatrizar, sua cicatriz permanecerá para sempre, isto é, alguns de seus
efeitos sempre serão demonstráveis. (p.168) Deve ser permitido que o período de
luto siga seu curso, o que, em alguns pacientes, pode ser exasperantemente longo.
Embora esse processo possa ser acelerado, é muito importante que seja
testemunhado. (BALINT, 1993, p.168)
Não queremos, com estas observações, fazer apologia à cirurgia bariátrica. Mas
pensamos se, em alguns casos e com o devido acompanhamento, ela não traz consigo
modificações tão importantes no entorno que são capazes de provocar, por sua vez,
interessantes efeitos na dinâmica psíquica destes pacientes mais comprometidos ao nível do
narcisismo e da falha básica. Entretanto, certamente, tal hipótese necessita de maiores
investigações.
Enfim, a título de conclusão, gostaríamos apenas de trazer a figura do “analista não
importuno” (ibidem) – uma expressão que parece sintetizar este delicado manejo, tão decisivo
e necessário nestes “casos difíceis”, que trazem grandes impasses à técnica convencional. E o
que esta figura tem de tão especial? Talvez precisamente o fato de ser comum, discreto, e,
paradoxalmente, nada especial. Fazendo, entretanto, com isto, uma enorme diferença, pois é
aquele que tem a sensibilidade de respeitar os momentos de silêncio, fornecendo ao
analisando um ambiente calmo, acolhedor e terno; é aquele capaz de oferecer-se ao uso,
sendo, contudo, indestrutível, com a resistência apenas necessária para que o movimento
possa acontecer.
Pensamos se, no caso dos pacientes compulsivos, esta não é uma indicação técnica
importante no que diz respeito à criação de um espaço de tratamento possível, tendo em vista
a grande dificuldade de adesão ao tratamento e as conhecidas questões sobre as dificuldades
de “associação” e simbolização por parte destes pacientes.A criação de um espaço e uma
atmosfera analítica onde os aspectos não verbais, das atuações e atos impulsivos, possam ser
acolhidos sem que sejam passíveis de “interpretações selvagens” (verbais) uma forma de
comunicação talvez ainda sem sentido parece fazer toda a diferença. assim, o analista
não importuno, estando presente a uma distância e tempo adequados, poderá conduzir seu
paciente à possibilidade de criar novos começos, novos caminhos, para além da sua falha
básica.
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