Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
O trabalho do delírio na estabilização da psicose
Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
O trabalho do delírio na estabilização da psicose
Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.
Orientadora: Professora Drª. Ana Beatriz Freire
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2009
ads:
3
O TRABALHO DO DELÍRIO NA ESTABILIZAÇÃO DA PSICOSE
Autora: Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto
Orientadora: Ana Beatriz Freire
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria
Psicanalítica.
Aprovada por:
_____________________________________
Presidente, Profª. Drª. Ana Beatriz Freire - Orientadora.
_____________________________________
Profª. Drª. Ana Cristina Costa de Figueiredo.
_____________________________________
Drª Maria Silvia Garcia Fernández Hanna.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2009
4
FICHA CATALOGRÁFICA
JACINTO, Regina Cibele Serra dos Santos.
O trabalho do delírio na estabilização da psicose. / Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto.
Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2008.
ix, 125 f ; 30 cm.
Orientadora: Prof. Drª. Ana Beatriz Freire
Dissertação (Mestrado) -
Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 120 - 125.
1. psicose . 2. psicanálise . 3. delírio . 4. metáfora . 5. estabilização.
I. Freire, Ana Beatriz. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia,
Programa de Pós
-
graduação em Teoria Psicanalítica. III.
5
AGRADECIMENTOS
A Ana Beatriz Freire, por seu acolhimento e orientação, pelos espaços que me abriu no
Programa e, acima de tudo, pela aposta em meu nome.
A Ana Cristina Figueiredo, por todo carinho e incentivo que tenho recebido desde
minha chegada ao Rio de Janeiro.
A todos os mestres a quem devo minha formação, aqui representados pelo professor
Agostinho Ramalho Marques Neto que, em sua aula inaugural do Curso de Direito, em
meados de 1998, alterou o rumo de minha história, ao dizer “coisas que, quando ditas,
fazem com que as coisas nunca mais sejam as mesmas”.
A professora Angélica Bastos Grimberg, por suas valiosas contribuições ao longo de
todo meu trabalho de dissertação.
Aos meus colegas e amigos do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, em
especial a Alessandra Tavares, André Félix e Miguel Machado.
Aos pacientes que tenho tido a oportunidade de atender no Instituto de Psiquiatria da
UFRJ e no Ambulatório de Saúde Mental de Nova Iguaçu-RJ, a quem devo parte
essencial de minha formação.
Aos tios Rômulo e Vera, pela casa, pela acolhida e por nossa feliz convivência ao longo
destes dois anos.
Aos amigos queridos, aqui representados por Taisa Leonardo, que fez marca em minha
vida por sua presença verdadeira, profunda e cotidiana.
A Fernanda Costa-Moura, pela escuta, por me ajudar a “voltar” pra casa.
A meus pais José Maria e Dora, por tudo, pela transmissão que esteve lá, desde o início,
pelo amor e incentivo constantes.
6
Ao CNPQ, pela bolsa de estudos.
7
“Pode-se perguntar se, e até onde, eu próprio
me acho convencido da verdade das hipóteses
que foram formuladas nestas páginas. Minha
resposta seria que eu próprio não me acho
convencido e que não procuro persuadir outras
pessoas a nelas acreditar ou, mais precisamente,
que não sei a onde nelas acredito. Não há
razão, segundo me parece, para que o fator
emocional da convicção tenha de algum modo de
entrar nessa questão. É certamente possível que
nos lancemos por uma linha de pensamento e
que a sigamos aonde quer que ela leve, por
simples curiosidade científica, ou se o leitor
preferir, como um advocatus diaboli, que não se
acha, por esta razão, vendido ao demônio”.
Sigmund Freud
“(...) teria sido na falta de uma palavra-
ausência, uma palavra-buraco, escavada em seu
centro para um buraco, para esse buraco onde
todas as outras palavras teriam sido enterradas.
Não seria possível pronunciá-la, mas teria sido
possível fazê-la ressoar (...) teria nomeado o
futuro e o instante. Faltando, essa palavra
estraga todas as outras, contaminando-as, é
também um cão morto na praia em pleno meio-
dia, esse buraco de carne”.
Marguerite Duras
“Sancho, para te desenganares da verdade,
monta o teu asno, segue-os de longe, e verás
como, em se afastando um pouco daqui, tornam
ao seu primeiro ser, deixam de ser carneiros e se
fazem homens”.
Miguel de Cervantes
8
RESUMO
O trabalho de delírio na estabilização da psicose
Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto
Orientadora: Ana Beatriz Freire
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-
graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Teoria Psicanalítica.
Esta dissertação aborda o tema da estabilização na psicose pela via do
trabalho delirante. Para tanto, a partir das leituras de Freud e Lacan, desenvolve
elementos teórico-clínicos que permitem articular uma possibilidade de estabilização
por esta via, nas psicoses onde o desencadeamento é mais disruptivo. O tema é
abordado inicialmente na obra freudiana, com destaque para sua contribuição em torno
da função do delírio. Posteriormente é discutida a noção de metáfora, com ênfase à
subversão que a leitura lacaniana promove na acepção deste termo. Segue-se um estudo
sobre a dimensão metafórica do pai, e sobre a função do ponto de basta. A partir daí,
desenvolve-se uma discussão sobre o desencadeamento psicótico na perspectiva clássica
e sobre a concepção de estabilização que fundamenta este estudo. De posse desta
concepção, discute-se em que medidas o delírio pode veicular uma estabilização.
Palavras-chave: psicose, psicanálise, metáfora, delírio, estabilização.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2009
9
ABSTRACT
The work of delirium in the stabilization of psychosis
Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto
Orientadora: Ana Beatriz Freire
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-
graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Teoria Psicanalítica.
This dissertation broaches the subject of stabilization of psychosis through delirium's
work. To do so, based on Freud and Lacan's vision, it develops theoretical and clinical
elements which allow articulating a possibility of stabilization through this way, in
psychosis where the break-out is more disruptive. The theme is broached initially in
Freudian's work, with an emphasis on the function of delirium. Next, the notion of
metaphor is discussed, with an emphasis on the subversion that lacanian vision promots
on the acceptation of this term. Following, there is a study about the
metaphoric dimension of the father, and about the function of the point de capiton.
Then, there is a discussion about the psychotic outbreak in the classical perspective and
about the concept of stabilization in which this study is based upon. Having this
conception in mind, it is discussed in which measures delirium can provide
stabilization.
Key-words: psychosis, psychoanalysis, metaphor, delirium, stabilization
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2009
10
LISTA DE FIGURAS
01 – Esquema L...............................................................................................................53
02 – Esquema Z...............................................................................................................56
03 – Esquema R...............................................................................................................67
04 – Grafo do desejo........................................................................................................69
05 – Esquema I................................................................................................................88
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................13
Capítulo 1 – A PSICOSE NA OBRA FREUDIANA..............................................18
1.1 Psicose e defesa: as primeiras incursões..........................................................21
1.2 Psicose e narcisismo: os anos 10.......................................................................29
1.3 Psicose e perda da realidade.............................................................................40
Capítulo 2 – CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIMENSÃO METAFÓRICA..........45
2.1 Das relações de compreensão à lógica do significante..........................................46
2.1.1 O esquema L...........................................................................................................52
2.2 - A metáfora e a dimensão metafórica do Pai.......................................................57
2.2.1 - O Ponto de basta...................................................................................................68
Capítulo 3 – DELÍRIO E ESTABILIZAÇÃO NA PSICOSE...............................72
3.1 A foraclusão do Nome-do-Pai ................................................................................72
3.2 O desencadeamento na psicose...............................................................................77
3.3 A estabilização na psicose.......................................................................................79
3.3 O delírio como solução elegante.............................................................................83
Capítulo 4 SOBRE AS “LINHAS FORTES”: CONSIDERAÇÕES SOBRE UM
CASO DE PSICOSE......................................................................................................98
4.1 Nota preliminar........................................................................................................98
4.2 O caso clínico..........................................................................................................100
4.2.1 Demanda Inicial.................................................................................................100
12
4.2.2 História do Caso.................................................................................................102
4.2.3 Do desencadeamento.........................................................................................104
4.2.4 O delírio e seus efeitos.......................................................................................106
CONCLUSÃO..............................................................................................................115
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................120
13
INTRODUÇÃO
Sabemos que Freud voltou sua atenção ao tema das psicoses desde os seus
primeiros textos, ora de modo mais pontual, como um certo pano de fundo de sua
interlocução com a neurose, ora de forma mais pungente, como em seu estudo sobre o
presidente Schreber. Sua entrada neste tema teve um verdadeiro poder de corte, abrindo
todo um campo de investigação teórico-clínica.
Podemos também afirmar que o interesse de Lacan pelas psicoses é sempre
renovado em sua obra, em trabalhos que vão desde a sua tese sobre a psicose paranóica,
ainda em 1932, até seminários mais tardios, como O Sinthoma (1975-76).
Haja vista, portanto, a extensão do campo, precisamos especificar nosso
recorte. Discutiremos neste trabalho a questão do delírio na psicose do tipo paranóica.
Com esse intuito, propomos o balizamento teórico desta entidade clínica nas obras de
Sigmund Freud e Jacques Lacan para, a partir daí, localizar as vias indicadas, nestas
mesmas obras, de se pensar numa estabilização possível para a psicose paranóica pela
via do trabalho delirante.
Optamos por cernir nossa discussão sobre o tema do delírio na paranóia na
medida em que, mesmo não sendo exclusivo deste tipo de psicose, nela o delírio é mais
comum, o que justifica o recorte de seu estudo nesta modalidade clínica. Embora Freud
também situe as alucinações como tentativas de cura, a esquizofrenia praticamente não
constrói sistemas, embora o delírio compareça de forma menos sistematizada.
A referência deste trabalho, portanto, será a do estudo de psicoses que
apresentam uma descontinuidade em seu curso, podendo ser pensadas à luz da teoria do
desencadeamento clássico formulada por Lacan no Seminário 3 (1955-56) e na Questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a). A partir daí, poderemos
precisar este tipo singular de estabilização através do trabalho do delírio.
Nestes dois trabalhos, Lacan demarca uma posição descontinuísta em
relação ao desencadeamento da psicose. Na perspectiva destes textos, o
desencadeamento psicótico é índice de uma ruptura, de uma descontinuidade, daí Lacan
dizer que na psicose não há pré-história.
14
Embora possamos localizar casos de psicose onde o desencadeamento,
quando ocorre, é mais sutil, esta perspectiva descontinuísta nos é suficiente para
pensarmos o tema de nosso trabalho, na medida em que a eclosão do fenômeno
delirante é índice de uma certa descontinuidade.
Recortaremos a metáfora delirante por nos interessarmos em cernir essa
lógica que a metáfora promove na estrutura do psiquismo, como construção significante
que é. Estamos atentos, no entanto, à observação de Maleval (2002), quando este nos
alerta para o fato de que não é sempre que o delírio adquire um ponto de elaboração tal
que se articule em termos de metáfora.
Schreber interessa especialmente a este trabalho, no que permite
visualizarmos a complexa formação delirante que ele desenvolve após sua segunda
internação e como esta construção opera um certo deslocamento de sua posição. É
evidenciada no caso uma espécie de “virada” entre dois momentos: o de uma formação
delirante sem nenhuma sistematização para um delírio bem sistematizado. Observamos
em Schreber uma série de efeitos nessa passagem, que procuraremos examinar.
Em nossa passagem pelo ambulatório do Instituto de Psiquiatria da UFRJ,
tivemos a oportunidade de atender casos de psicose que nos foram bastante formadores.
Destacamos um em especial, onde a eclosão de fenômenos psicóticos é ruidosa e a
sintomatologia psicótica é abundante, contendo desde distúrbios de linguagem e
alterações do pensamento a fenômenos de corpo e uma intensa produção delirante.
Esse paciente, no entanto, apesar da ruptura, da descontinuidade provocada
pelo desencadeamento e irrupção de sua psicose, nunca precisou ser internado,
encontrando um modo peculiar de estar no mundo, de se haver com o matrimônio, a
paternidade e o corpo. Por uma escolha metodológica, o caso será apresentado em nosso
último capítulo, muito embora as questões que nos suscitou estejam na origem deste
trabalho de pesquisa, num certo vai-e-vem, numa circularidade entre a teoria e a clínica.
Tentaremos pensar qual o estatuto do delírio nas psicoses em que ocorre um
desencadeamento, e como pode um delírio estar na base de uma estabilização. A clínica
mostra que delírios que permitem uma organização do mundo, como nos ensina
Schreber. Por outro lado, também a clínica mostra que casos em que, apesar da
15
intensa produção delirante, o delírio parece comparecer mais em sua face de invasão
que de apaziguamento. Nestes casos, é preciso pensar num possível manejo de modo a
tentar conter tamanha invasão.
Nesse sentido, esse trabalho se propõe a fazer um recorte teórico preciso,
perseguindo a via de trabalho proposta por Freud e Lacan, por considerar que a paranóia
ainda suscita questões clínicas atuais, para além do seu lugar paradigmático na teoria
psicanalítica.
Dividiremos nosso trabalho em quatro capítulos. No primeiro, retornaremos
à letra de Freud, numa revisão em torno de sua contribuição fundadora ao estudo das
psicoses. O objetivo central deste capítulo é precisar o modo como a questão do delírio
é abordada por Freud, qual sua função e efeitos.
Para tanto, centraremos nossa discussão em torno das noções de defesa, de
narcisismo e de perda da realidade, tomando como eixo a discussão em torno do delírio,
o modo com a temática do delírio comparece na elaboração freudiana concernente às
psicoses. Destacaremos ainda a noção de Verwerfung, que iremos retornar, no terceiro
capítulo, a partir de Lacan.
No segundo capítulo, após uma breve discussão em torno da passagem de
uma lógica da compreensão para a gica do significante, analisaremos o esquema L,
que nos servirá de suporte para discutirmos os esquemas da realidade e da estabilização
schreberiana.
Recortaremos em seguida a noção de metáfora, por considerá-la central para
que possamos precisar a noção de metáfora delirante. Procuraremos balizar esta noção
nos textos da década de 50, destacando a subversão que Lacan opera a partir de sua
leitura da lingüística.
Analisaremos ainda a rmula da metáfora, a partir da qual abordaremos a
dimensão metafórica do pai e a noção de ponto de basta. Esta última noção nos é
considerada central não apenas para a clínica da neurose, mas também para pensar o que
pode vir a fazer ponto de basta lá onde o Nome-do-Pai não opera.
Com estes elementos, abordaremos, no capítulo 3, a noção de foraclusão do
Nome-do-Pai, seguida de uma discussão acerca do desencadeamento e da estabilização
na psicose. Procuraremos cernir a noção de estabilização, tomando como referências a
noção de estabilização utilizada por Lacan em De uma questão preliminar a todo
16
tratamento possível da psicose (1957-58a), bem como a idéia de localização de gozo,
que precisaremos a partir do esquema de Schreber, através do gozo transexualista.
De posse dessa noção de estabilização, nos centraremos no estudo do delírio
como via possível (e não privilegiada) de estabilização na psicose. Procuraremos
matizar as aproximações e diferenças entre o delírio e a metáfora delirante, retornando,
para este fim, ao esquema I, onde é possível pensar na idéia de localização de gozo
através do gozo transexualista de Schreber.
Trataremos ainda da noção de delírio parcial, advinda da psiquiatria e
evocada por Lacan em algumas passagens. Investigaremos as aproximações e
distanciamentos entre esta noção e a metáfora delirante. Em seguida, procuraremos
localizar o delírio e a metáfora delirante na lógica quaternária de ordenação do delírio,
que Maleval desenvolve a partir de sua leitura de Lacan.
Em nosso último capítulo, apresentaremos um caso de nossa clínica.
Procuraremos, a partir dos elementos teóricos apresentados, precisar o trabalho deste
paciente, no sentido de uma estabilização, com o intuito de localizar em que medidas
estas vias passam pelo delírio, e se ou não uma metáfora delirante participando de
sua estabilização.
Convém mais uma vez ressaltar que este trabalho não se sustenta em uma
aposta na metáfora delirante como saída privilegiada. Não se trata de fazer apologia a
este tipo específico de resposta, mas de recortar, para os fins deste estudo, as tentativas
de construção delirantes, pensadas em seu estatuto de trabalho simbólico.
Acreditamos que uma diferença crucial, no que tange à posição do
analista, entre, a partir das coordenadas do caso, apostar no delírio como uma via
possível de estabilização, e apostar no delírio como solução privilegiada. É o paciente
quem escolhe ou não esta via, e se ele a escolhe, não é possível ao analista desprezá-la.
Neste caso, o analista precisa se colocar como instrumento dessa estrutura na formação
de uma estabilização.
Obviamente as discussões de Freud e Lacan sobre as psicoses não se
restringem à temática do delírio, exigindo outros desdobramentos nas respectivas obras.
Um exemplo é a longa abordagem que encontramos, ainda no Seminário 3 (1955-56), à
17
propósito da compensação imaginária, onde o psicótico se prende a uma relação
especular que lhe dá alguma sustentação.
Ressaltamos ainda a importância dos estudos e debates em torno de casos,
bastante freqüentes, onde a eclosão dos fenômenos psicóticos é menos ruidosa, e onde
fenômenos delirantes ou alucinatórios podem nem sequer ser encontrados. A chamada
Conversação de Arcachon, realizada pelo Campo Freudiano em 1999, marca o debate
em torno destes casos ditos inclassificáveis ou de difícil classificação, que parecem
requerer, segundo os organizadores do debate, elementos para além dos referentes mais
clássicos.
Enfatizamos ainda que os estudos sobre as psicoses posteriores à década de
70 têm sido enriquecidos a partir das discussões sobre o borromeu, em que Lacan
radicaliza a idéia de que nem mesmo o Nome-do-Pai, que tem função de ordenador
simbólico, garante a possibilidade de tudo representar, exigindo de cada um uma
resposta particular.
Nessa perspectiva, podemos pluralizar a discussão em torno das diferentes
saídas possíveis na psicose para além do trabalho do delírio. Colette Soler (2007), por
exemplo, destaca o ato, a obra, a identificação imaginária e a sublimação criadora.
Não nos propomos, no entanto, a entrar nestes debates. Reconhecemos a
existência e importância de outros modos de organização psicótica, cujas soluções
podem passar por vias que muitas vezes prescindem do delírio. Mas a delimitação aqui
proposta é relativa tanto à impossibilidade de abranger todas as soluções na psicose no
tempo deste trabalho, quanto às interrogações suscitadas pelo caso clínico a ser
discutido.
Consideramos que, mesmo em época de tantas modificações na clínica da
psicose relativas ao avanço dos neurolépticos e da chamada Psiquiatria Biológica, com
sua tendência neurologizante, as chamadas “psicoses delirantes”, mesmo excluídas dos
atuais manuais internacionais de classificação diagnóstica, ainda têm algo a nos ensinar,
de modo a nos interrogar, para além de uma “psicogênese” ou de uma “neurogênese”,
sobre esse lugar específico no registro da linguagem, sobre sua problemática e seu lugar
na clínica.
18
Capítulo 1 - A PARANÓIA NA OBRA FREUDIANA
“Época houve em que ‘fora’, ‘estranho’ e
‘hostil’ eram conceitos idênticos.”
S. Freud
Muito embora a historiografia psicanalítica tradicional situe as origens da
psicanálise do contato de Freud com as histéricas, as interrogações em torno das
psicoses encontram-se presentes desde o início da obra freudiana, acompanhando
diferentes momentos de sua teorização, de modo que se pode afirmar sua importância
tanto histórica quanto teórica na constituição da psicanálise. Interessa-nos perpassar por
estes momentos para que possamos mapear o modo como a questão do delírio vai se
colocando para Freud.
Sobre este ponto, Dias (2000: 18) ressalta que a amizade e colaboração
intensas de Wilhelm Fliess permitiram a Freud “atravessar a paranóia”, no sentido de
afastar-se da pretensa universalidade das explicações (“caráter sistêmico”) que marca
com muita força as elaborações de Fliess, como no suposto contato entre homem e
cosmos, micro e macrocosmo, ou na matematizão ou ciclicidade das manifestações
humanas, presente na possibilidade de interferência do ciclo lunar, por exemplo.
Fliess foi um grande interlocutor de Freud, e acreditamos que não foi sem a
interlocução com esse paranóico que era Fliess, que Freud pode ir constituindo a
psicanálise como um saber produzido através do que ensina a clínica de cada caso, para
além de grandes explicações sistêmicas.
Apesar desta interlocução fundamental para a construção da teoria
psicanalítica, não se pode desconsiderar a manifesta descrença de Freud quanto à
possibilidade de atendimento analítico com psicóticos, justificando tal dificuldade, e até
inacessibilidade mesmo, em virtude dos obstáculos que segundo ele seriam encontrados
para o estabelecimento de uma relação transferencial. É, portanto, de natureza mais
propriamente teórica sua significativa contribuição no campo das psicoses, ao contrário
de sua contribuição no campo das neuroses, que se constitui a partir de sua prática
clínica.
19
Um dos pontos em que nos ancoramos para apostar num trabalho analítico
com as psicoses, no entanto, é que o próprio Freud oscila quanto a esta impossibilidade,
e suas objeções não parecem muito conclusivas, abrindo espaço para posteriores
avanços.
Acompanhar o percurso de Freud no que diz respeito às psicoses é resgatar o
momento de constituição de uma teoria em seus diferentes momentos, no sentido
mesmo de elaboração da teorização, e perceber como tais momentos geram impactos
que fazem incidir no pensamento freudiano com relação às psicoses.
1
Assim é que serão aqui discutidos três momentos relativos à concepção
freudiana das psicoses: o das cartas a Fliess e do ensaio sobre As Neuropsicoses de
Defesa (1894), onde se tem um primeiro conceito de conflito psíquico amparado na
noção de defesa; o momento relativo aos anos 10, com o caso Schreber (1911), onde
Freud conta com o conceito de narcisismo, que neste caso ele articula à dinâmica
libidinal; e, por fim, o momento relativo à teorização sobre a segunda tópica freudiana,
no que ela permite uma leitura sobre as psicoses.
Partimos do pressuposto de que a teorização freudiana concernente às
psicoses não é passível de uma leitura evolutiva, ordenada a partir de uma disposição
cronológica. A escolha por este modo de apresentação das questões segue uma
orientação metodológica, qual seja, a de localizar os impasses na medida em que eles
aparecem, dentro de uma lógica muito própria a Freud. Não se trata da apresentação de
uma teoria acabada, mas do surgimento de hipóteses por vezes contraditórias que vão
sendo elaboradas ao longo de toda a obra.
Considere-se ainda que tal pensamento, e este aspecto é de saída ressaltado
por Lacan em seu seminário sobre as psicoses, volta-se bem mais para a pesquisa da
paranóia, que para as investigações sobre a esquizofrenia, ao contrário da tendência
psiquiátrica da época, cujo enlevo estava nesta última:
Naturalmente, Freud não ignorava a esquizofrenia. O movimento de
elaboração desse conceito era-lhe contemporâneo. Mas se realmente
reconheceu, admirou e mesmo encorajou os trabalhos da escola de Zurique,
1
Convém desde já apontar que suas primeiras elaborações sobre o tema encontram-se no âmbito de uma
concepção sobre as neuroses (campo da Verdrängung), ainda que na busca de especificidades.
20
e pôs a teoria analítica em relação com o que se edificava em torno de
Bleuler, ele, no entanto, se manteve suficientemente afastado. Ele se
interessou primeiro e essencialmente pela paranóia. E para indicar-lhes
imediatamente um ponto de referência ao qual vocês poderão se reportar,
lembro-lhes que no fim da observação do caso Schreber, que é o texto de
maior doutrina concernente às psicoses, Freud traça uma linha divisora de
águas, se assim posso me exprimir, entre paranóia, de um lado, e, de outro,
tudo o que gostaria, diz ele, que fosse chamado de parafrenia, e que
corresponde exatamente às esquizofrenias. (Lacan 1955-56: 12)
Sobre este ponto, cumpre colocar que Freud, de início, utiliza o termo
parafrenia referindo-se à demência precoce ou esquizofrenia, sob o argumento de que
tal termo dizia respeito tanto à paranóia quanto a hebefrenia (demência precoce),
embora em obras posteriores utilize-se com freqüência do termo esquizofrenia proposto
por Bleuler. O uso do termo parafrenia englobando tanto a psicose paranóica quanto a
esquizofrênica parece também apontar para a importância, na obra de Freud, de se
estabelecer um mecanismo único que pudesse distinguir o campo das neuroses e o
campo das psicoses, como será discutido adiante.
Especialmente nos textos anteriores ao caso Schreber, encontramos uma
certa dificuldade em cernir aquilo que, na obra de Freud, diz respeito exclusivamente ao
campo da paranóia. Nos textos iniciais, incluindo a paranóia dentro do campo das
neuropsicoses, Freud, por vezes, fala em confusão alucinatória e outras vezes em
paranóia, não nos parecendo que já haja, naquele momento, uma delimitação mais
formalizada entre estas categorias, embora em alguns momentos ele proponha uma
distinção.
Dentro do campo das neuropsicoses, vemos como a confusão alucinatória
vai progressivamente cedendo lugar à paranóia, e este é um aspecto relevante. Podemos
citar, dentre os inúmeros termos que fomos encontrando ao longo de nossa leitura:
neuroses narcísicas, psicoses alucinatórias, parafrenia, demência precoce, dementia
paranóide, paranóia e esquizofrenia.
Neste capítulo, haja vista essa dificuldade de delimitação do campo
exclusivo da paranóia na letra freudiana, faremos uma leitura das psicoses seguindo as
terminologias utilizada pelo próprio Freud, de modo que aparecerão termos distintos
21
para falar do que atualmente entendemos como paranóia. Entendemos que não seria
rigoroso restringirmo-nos aos textos em que Freud fala especificamente sobre a
paranóia, pois as idéias que ele vai tecendo sobre a paranóia encontram-se muitas vezes
pulverizadas em textos onde ele faz uso de outras terminologias.
1.4 PSICOSE E DEFESA: as primeiras incursões
São antigas as primeiras incursões de Freud sobre a paranóia. O esforço
inicial reside essencialmente na determinação de sua etiologia, seu mecanismo
fundador, e não nas soluções possíveis, na tentativa de cura”. São, no entanto,
contribuições essencialmente valiosas a nosso tema de estudo, no que permitem
descrições muito finas do funcionamento paranóico.
No âmbito das elaborações freudianas anteriores a 1900, a categoria
conceitual das neuropsicoses
2
adquire um lugar privilegiado. Neste momento, Freud se
ocupa em articular uma teoria da defesa que, tal como cunhada neste momento,
abrangeria todo o campo das neuropsicoses, cada qual com seu modo específico de lidar
com as representações incompatíveis com o eu.
Ainda que trabalhando dentro de uma mesma categoria conceitual, as
neuropsicoses, percebemos aqui, desde o início da elaboração da teoria psicanalítica,
um movimento que será constante em Freud, qual seja, a tentativa de encontrar
especificidades, delinear as entidades clínicas, estabelecer distinções entre neuroses e
psicoses enquanto modalidades psicopatológicas.
Neste momento, tal empreendimento será feito atribuindo-se a cada uma
destas modalidades o seu mecanismo de defesa específico. Percebemos que a noção de
defesa curiosamente permite tanto agrupar as entidades clínicas num mesmo campo, o
das neuropsicoses de defesa, quanto diferenciá-las, pois os mecanismos defensivos são
distintos.
2
A categoria das neuropsicoses abrangia, num mesmo campo, neuroses e psicoses. Sua formulação já é
índice de uma especificidade da psicanálise para com a psiquiatria da época.
22
O termo defesa comparece inicialmente em 1894, no trabalho intitulado As
Neuropsicoses de Defesa. Neste trabalho, Freud apresenta sua teoria da defesa
3
, através
da qual procura explicar o surgimento dos sintomas na histeria, fobia, obsessão e
psicoses alucinatórias. É neste importante trabalho que surge também a noção de
Verwerfung
4
, a partir da qual Freud vai tentar dar conta de uma possível distinção entre
neurose e psicose.
Pensando as categorias clínicas como neuropsicoses de defesa, Freud
distingue, neste trabalho, três modos de o eu se defender de representações
incompatíveis, um característico da histeria, outro da neurose obsessiva e um terceiro
característico das psicoses, todos eles partindo da pressuposição lógica da divisão da
consciência.
Já encontramos neste texto a possibilidade de distinção entre aquilo que seria
o campo das representações e o campo dos afetos. Falar de afeto é falar de quantidade,
energia, “soma de excitação”, segundo Freud (1894: 66). Quando uma representação é
recalcada, a energia que a ela estava ligada, catexizada, fica então livre, circulando pelo
aparelho. Este, portanto, é invadido por uma energia que o sujeito precisa ligar a algo.
(...) nas funções mentais, deve existir algo uma carga de afeto ou soma de
excitação que possui todas as características de uma quantidade (embora
não tenhamos meios de medi-la) passível de aumento, diminuição,
deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os traços mnêmicos das
representações como uma carga elétrica espalhada pela superfície de um
corpo. (Freud 1894: 66)
Aqui entra novamente a idéia de defesa. Para defender-se, o sujeito liga essa
energia a outra representação. A representação substitutiva precisa ao mesmo tempo
assemelhar-se a primeira e diferenciar-se dela de modo a mascará-la. Esse trabalho de
ligação psíquica (bindung), de vinculação, é o de ligar afetos a representações.
3
Os termos defesa e recalque parecem, nesse texto, ser tratados como sinônimos, embora ao longo da
obra freudiana sua distinção adquira maior precisão.
4
Noção a ser retomada por Lacan, como discutiremos. Em Freud, o termo será retomado em 1918, a
propósito do episódio do dedo cortado do Homem dos Lobos.
23
O ponto a destacar é que na histeria, na neurose obsessiva e nas fobias a
representação inconciliável deixa no eu um símbolo mnêmico
5
. Diante do fracasso da
defesa em obter o esquecimento da representação incompatível, diversas respostas vão
se dar. Na histeria, Freud coloca que uma conversão somática desse afeto (afeto
convertido em inervações motoras), ao passo que na neurose obsessiva o afeto é
deslocado, substituído para uma representação inofensiva, que mantenha com a
representação recalcada algum elo.
Tal não é o que ocorre na paranóia. Em As Neuropsicoses de Defesa (1894),
Freud defende a idéia de que nas psicoses alucinatórias, sendo a defesa bem mais
enérgica, a representação incompatível é rechaçada pelo eu e ligada a um fragmento da
realidade (psíquica). de se ressaltar a radicalidade deste tipo de defesa, onde, diante
de uma representação inassimilável, a representação e o afeto que lhe corresponde são
rejeitados (verwerfen), acarretando uma perda da realidade. O termo rejeição é aqui
utilizado particularmente para o modo de defesa na psicose:
Em ambos os casos aqui considerados [neurose histérica e neurose
obsessiva], a defesa contra a representação incompatível foi efetuada
separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência,
ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa
muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação
incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a
representação incompatível jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do
momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que pode
ser qualificada como “confusão alucinatória”. (Freud 1894: 64, grifos
nossos)
Freud então denomina este processo de fuga para a psicose, onde o afeto
projetado torna-se irreconhecível para o eu do sujeito e não constitui símbolo mnêmico.
No lugar da representação rechaçada, fica um rombo, um buraco, uma não-inscrição.
Tão radical é este tipo de defesa, que é como se a representação rejeitada jamais tivesse
ocorrido:
(...) é justificável dizer que o eu rechaçou a representação incompatível
através de uma fuga para a psicose (...) O eu rompe com a representação
incompatível; esta, porém, fica inseparavelmente ligada a um fragmento da
5
Segundo Laplanche & Pontalis (1995: 486), símbolo mnêmico é uma expressão utilizada por Freud em
escritos iniciais para qualificar o sintoma histérico. Símbolos mnêmicos seriam resíduos de experiências
fantasmáticas do passado, ligados, portanto, à história do sujeito e vividas de fato ou na fantasia.
24
realidade, de modo que, á medida que o eu obtém esse resultado, também ele
se desliga, total ou parcialmente da realidade. (Freud 1894: 65)
As idéias de rejeição e de perda da realidade aqui indicadas serão retomadas
tanto por Freud (anos 20) quanto por Lacan (no que se refere ao mecanismo da
foraclusão), o que nos mostra como o texto das Neuropsicoses de Defesa é
absolutamente precursor quanto a estas duas noções. A psicose é situada como uma
resposta, entre outras, a um conflito psíquico.
Mesmo que Freud atrele neuroses e psicoses ao mecanismo do recalque, a
partir da noção de defesa, uma distinção estrutural entre ambos pode ser nuançada a
partir da noção de rejeição, na medida em que falar de rejeição não é a mesma coisa que
falar em recalque.
Assim, embora Freud fale de recalque a propósito das psicoses alucinatórias,
ele já observa que este recalque é bastante diferente daquele que ocorre nas neuroses.
aqui podemos pensar no delírio como uma tentativa, num depois, de religar a cadeia
representacional, embora Freud, neste texto, não dê este acabamento à questão.
Apenas um ano depois, já surge na obra de Freud outra referência importante
ao nosso tema de estudo. Trata-se de um anexo a uma carta enviada a Fliess em 24 de
janeiro de 1895, que ficou conhecida como Rascunho H, e que trata fundamentalmente
sobre a paranóia. Algumas das idéias aqui expostas serão retomadas por Freud no caso
Schreber (1911).
Neste escrito (1895: 254), Freud defende a tese de que a paranóia é um
“modo patológico de defesa”, oriundo de uma perturbação afetiva (e não intelectual,
como a proposta psiquiátrica da época), cujo mecanismo principal é a projeção, que
seria comum a todos os casos de psicose
6
.
Freud aponta uma certa proximidade entre a idéia delirante e a idéia
obsessiva, e tal semelhança é utilizada por ele como um argumento para situar a
paranóia no campo das neuroses de defesa.
6
A noção de defesa aplicada à paranóia persistirá em trabalhos posteriores, como o caso Schreber, por
exemplo.
25
Um ponto fundamental trazido por Freud neste escrito diz respeito ao
estatuto da projeção, de ser um mecanismo, segundo ele, comum na vida normal, sendo
que, na paranóia, haveria um abuso deste mecanismo para fins de defesa. Mas
exatamente por não ser exclusivo das psicoses, o conceito de projeção ainda não será
suficiente para garantir à psicose o seu mecanismo específico
7
.
Note-se que não se trata aqui de uma distinção entre um suposto normal e
um patológico de ordem qualitativa, de modo que isso que Freud denomina de abuso é
também o índice de uma marca em sua teorização, e de um modo específico de pensar o
funcionamento do aparelho em sua dimensão econômica, pensar estrutural desde o
início.
Neste sentido, ressalte-se ainda o movimento de Freud no sentido de se
afastar, ainda que com elas dialogando, das concepções ligadas à psiquiatria de sua
época, onde a loucura era vista sob o prisma de uma ruptura radical com a realidade.
É no Rascunho H (1895: 256), segundo nota do editor inglês, que Freud
utiliza-se pela primeira vez do termo projeção, bem como de seu conceito: “[...] o
propósito da paranóia é rechaçar uma idéia que é incompatível com o ego, projetando
seu conteúdo no mundo externo.”
Ainda neste trabalho, Freud coloca que tanto a representação da idéia
inconciliável quanto o afeto a ela relacionado permanecem idênticos a si mesmos
8
, ou
seja, não sofrem alterações de conteúdo. Serão, todavia, projetados no mundo exterior,
de modo que o sujeito percebe como vinda de fora uma auto-recriminação. Por esta via,
a auto-recriminação não é reconhecida pelo sujeito como sendo sua, sendo imputada ao
outro:
(...) passou a ouvir essa mesma censura, agora proveniente de fora. Assim, o
tema permanecia inalterado; o que mudava era a localização da coisa.
Antes, tratava-se de uma autocensura interna; agora, era uma recriminação
vinda de fora. (Freud 1895: 255)
7
Veremos mais adiante como Freud retoma este conceito no caso Schreber.
8
Por permanecerem idênticos não chegam a constituir um símbolo mnêmico, o que é um ponto
importante de demarcação de uma especificidade para com as neuroses, onde os sintomas são símbolos
mnêmicos.
26
Percebemos como a projeção altera fronteira entre o eu e o mundo. Esta
“fronteira”, que mesmo na neurose nunca é absolutamente clara, é bastante modificada
em uma psicose, e tal modificação é situada por Freud neste momento como decorrência
deste modo particular de defesa, a projeção.
Percebemos, por esta passagem, que dois momentos entram em jogo na
produção de uma psicose: inicialmente o sujeito se defende da representação
incompatível através de sua projeção para o mundo externo. Uma vez que esta
representação retorna como vinda de fora, o sujeito pode rejeitá-la.
Diante de um conflito, de uma representação incompatível com o eu, por que
um sujeito responde com uma psicose? Neste ponto, Freud fala numa predisposição
9
psíquica peculiar: “As pessoas tornam-se paranóicas diante de coisas que não
conseguem tolerar, desde que para isso tenham a predisposição psíquica característica”
(Freud 1895: 254). , portanto, a idéia de que para que uma psicose se produza, são
necessários dois elementos: o encontro com algo intolerável e uma predisposição
psíquica (e não orgânica ou hereditária).
Um ponto importante a destacar neste texto, especialmente para nosso tema
de estudo, é o modo como Freud trata a questão da idéia delirante: “Em todos os casos a
idéia delirante é sustentada com a mesma energia com que uma outra idéia,
intoleravelmente penosa, é rechaçada do ego. Assim, essas pessoas amam seus delírios
como amam a si mesmas. É esse o segredo.” (Freud 1895: 257)
Cabe ressaltar que Freud não coloca no mesmo plano os delírios de
perseguição e de grandeza. Embora a auto-referência seja um ponto comum a ambos, o
delírio de perseguição retorna com o mesmo conteúdo da idéia rechaçada, ao passo que
o delírio de grandeza é uma espécie de oposto do que foi rejeitado. Ambos, portanto,
incidem de modo diferente sobre o eu: o delírio de grandeza alarga o eu, ao passo que o
delírio de perseguição o retrai.
Em 1896, Freud escreve dois trabalhos importantes para nosso tema de
estudo, ainda trabalhando com a categoria conceitual das neuropsicoses de defesa: o
9
Podemos notar que a idéia freudiana de predisposição psíquica particular antecipa o que Lacan articula
em termos de estrutura.
27
Manuscrito K (1896a), anexado à carta 39, endereçada a Fliess, e as Observações
Adicionais sobre as Neuropsicoses de Defesa (1896b). Ambos são trabalhos bastante
próximos em suas formulações, embora, no Manuscrito K, Freud se mostre mais
enfático quanto à afirmação de que a paranóia é uma neurose de defesa.
Interessa-nos particularmente neste manuscrito as elaborações de Freud em
torno dos delírios e das alucinações na paranóia, ambos em relação estreita com o
conceito de defesa. Aqui, Freud fala das alucinações táteis, visuais ou auditivas e dos
delírios de observação e perseguição como índices do retorno do recalcado.
Diante das modificações sofridas pelo eu, dois tipos de conseqüência podem
ser observadas: ou um empobrecimento do eu (melancolia), ou uma expansão
exagerada deste (delírio de grandeza/megalomania). O delírio de grandeza presentifica
aqui um certo esforço do eu para manter sua unidade abalada diante do retorno do
recalcado, prenunciando as formulações em torno do delírio como tentativa de cura.
Em Observações adicionais sobre as Neuropsicoses de Defesa (1896b), após
a análise de um caso de paranóia, Freud procura caracterizar a diferença entre paranóia
e obsessão a partir do que ele chama de recriminações, de modo que na primeira as
auto-recriminações seriam projetadas no exterior, ressurgindo intactas, ao passo que na
segunda, pelo reconhecimento da intervenção de um terceiro, as recriminações mantêm-
se dentro do sujeito, e ainda assim deslocadas de seu conteúdo original:
Na neurose obsessiva, a auto-acusação inicial é recalcada pela formação do
sintoma primário da defesa: a autodesconfiança. Com isso, a auto-acusação
é reconhecida como justificável; [...] Na paranóia, a auto-acusação é
recalcada por um processo que se pode descrever como projeção. É
recalcada pela formação do sintoma defensivo de desconfiança nas outras
pessoas. Dessa maneira, o sujeito deixa de reconhecer a auto-acusação; e,
como que para compensar isso, fica privado de proteção contra as auto-
acusações que retornam em suas representações delirantes. (Freud 1896b:
182, grifos do autor)
Na Carta 125, endereçada a Fliess e datada de dezembro de 1899, Freud, no
que tenta responder à questão de por que uma pessoa se torna histérica e não paranóica,
sugere que a paranóia acarreta um retorno a um auto-erotismo primitivo, ou seja,
haveria um ponto de fixação nesta etapa do desenvolvimento libidinal, no sentido de
28
um retorno onde as identificações com as pessoas amadas da infância seriam desfeitas e
o ego cindido no que ele chama de figuras externas: “cheguei a considerar a paranóia
como uma irrupção da corrente auto-erótica, como um retorno à posição então
prevalente.” (: 331).
Estas primeiras caracterizações acerca das psicoses mostram como em
Freud desde o início de sua elaboração teórica uma preocupação em delinear as
categorias clínicas, de modo que suas elaborações sobre as psicoses permeiam a
construção de todo arcabouço conceitual psicanalítico.
Como a concepção de sintoma sofre sucessivas elaborações ao longo da
teorização freudiana, é pertinente destacar que, nestas primeiras articulações, Freud
ainda trabalha a partir dos laços entre o que ele chama de cena patogênica (traumática) e
os resíduos desta cena, quais sejam, os sintomas. Está ainda, portanto, no âmbito da
teoria da sedução, onde a cena traumática teria realmente ocorrido, sendo recalcada e
retornando como sintoma.
Este é um ponto ressaltado por Freud em nota de rodapé acrescentada em
1924 às Observações Adicionais sobre as Neuropsicoses de Defesa (1896b) como
correção à afirmação feita neste trabalho de que a defesa se põe contra uma experiência
sexual de caráter traumático ocorrida na infância. Apenas posteriormente
10
ocorre em
Freud o salto da teoria da sedução para a teoria da fantasia, salto este repleto de
conseqüências teórico-clínicas fundamentais, conseqüências estas que se fazem incidir
no que se refere à sexualidade infantil e ao complexo de Édipo.
11
Na teoria da fantasia, Freud não abre mão da noção de cena traumática, mas
aqui o “patogênico” não é algo da ordem do acontecimento. Introduz-se, portanto, o
conceito de realidade psíquica e de elaboração psíquica, que podem ou não estar
relacionadas com um fato na realidade vivido pelo sujeito, mas que para ele diz de uma
ordem própria de realidade, absolutamente ligada à fantasia.
10
Relatado em Carta a Fliess em 1897 e reconhecido publicamente em 1906.
11
Não se trata de um simples abandono da articulação teórica referente à teoria da sedução, de modo que
ainda na teoria da fantasia algo dela é conservado, como por exemplo, a libidinização do bebê através dos
cuidados corporais.
29
A partir deste conceito, não cabe mais ao analista procurar distinguir, na fala
do sujeito, o que diz ou o respeito a uma realidade material vivida por ele, tendo,
pois, a noção de desejo inconsciente como diretriz de sua escuta clínica. Veremos
adiante como o conceito de realidade psíquica importa para o campo das psicoses.
1.2 PSICOSE E NARCISISMO: os anos 10
Poucas referências à paranóia são encontradas na obra de Freud entre os anos
de 1899 e 1911. Este intervalo de tempo, em que são publicados trabalhos de
importância central no estudo das leis do inconsciente
12
, precede aquela que seria a
maior incursão freudiana no campo da paranóia, qual seja, as Notas Psicanalíticas sobre
um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (1911), também conhecido como o
caso Schreber. A importância deste caso, entretanto, conforme nota do editor inglês
(Freud 1911), não se restringe às teorizações de Freud acerca da paranóia, mas também
ao fato de que precede os artigos metapsicológicos aos quais Freud virá a se deter, além
de uma primeira menção aos totens.
Para nosso trabalho, o exame do caso Schreber é central, na medida em que
Schreber consegue operar, pelo delírio, uma certa passagem que lhe permite situar-se na
existência através da construção de uma nova realidade. Tanto Freud quanto Lacan
acentuam este aspecto no delírio de Schreber. Trata-se de um caso bastante rico e que
nos possibilita observar o ponto de eclosão desta psicose, bem como o mecanismo do
delírio, de sua construção e seus efeitos de estabilização. Schreber constrói, pelo delírio,
uma significação que organiza seu mundo novamente.
Inúmeros são os comentadores deste caso, largamente discutido na literatura
psicanalítica. Freud recomenda enfaticamente a leitura dos escritos de Schreber e Lacan
12
Apenas para citar alguns, datam deste período A Interpretação dos Sonhos (1900), os Três ensaios
sobre a Teoria da Sexualidade (1905a) e alguns estudos sobre linguagem e inconsciente, como
Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) e Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente (1905b), além
de importantes estudos clínicos.
30
insiste nesse ponto em vários momentos. Priorizaremos, neste trabalho, as suas
memórias, a partir de sua leitura por Freud e Lacan.
Neste primeiro capítulo, iremos nos deter à leitura freudiana do caso
Schreber, para, no terceiro capítulo, retornarmos a ele a partir de algumas elaborações
de Lacan em torno do mesmo. Não pretendemos fazer uma leitura estanque das
considerações freudianas, mas, por uma questão de método, optamos por inicialmente
localizar os pontos abordados por Freud em torno do caso, em sua conexão íntima com
o conceito de narcisismo. O fio condutor da leitura será a busca por localizar o
mecanismo do delírio, e o que ele permite articular em termos de constituição da
realidade e seus efeitos de organização subjetiva.
Como se sabe, Freud nunca viera a conhecer Daniel Paul Schreber, doutor
em Direito e presidente da corte de apelação de Saxe, homem de notável saber tanto no
que se refere ao campo do Direito quanto às artes em geral, e que descreve a si próprio
como ‘homem de dotes mentais superiores e contemplado com agudeza fora do comum,
tanto de intelecto quanto de observação’ (Schreber 1903 apud Freud 1911: 24). A ele,
Freud teve acesso primordialmente através de suas memórias, texto autobiográfico
publicado em 1903 e lido por Freud em 1909, bem como através dos relatórios dos
médicos que o acompanharam durante suas internações.
Logo no início do caso Schreber (1911: 28), Freud estabelece uma
diferenciação muito nítida entre a abordagem psicanalítica e psiquiátrica no que se
refere ao modo de considerar o delírio. Para ele, o interesse da psiquiatria para com as
formações delirantes se esgota muito rapidamente, tão logo se constata o caráter do
delírio e suas influências sobre a vida do paciente – “em seu caso, maravilhar-se não é o
início da compreensão”, ao passo que para a psicanálise, “mesmo estruturas de
pensamento tão extraordinárias como estas, e tão afastadas de nossas modalidades
comuns de pensar, derivam, todavia, dos mais gerais e compreensíveis impulsos da vida
humana”, daí a importância de seu conteúdo relacionado à da história do sujeito. Este,
aliás, é um ponto de novidade que a psicanálise traz para com a experiência da loucura,
qual seja, a relação entre delírio e verdade, entendida aqui como verdade singular e
reafirmada por Freud ao longo de toda a sua obra, que coloca em outro plano a
dicotomia razão/desrazão, base de sustentação do saber psiquiátrico de seu tempo.
31
Sem a pretensão de detalhar o caso, serão traçados a seguir alguns pontos
necessários à compreensão dos avanços teóricos que comparecem no mesmo, em
especial no que se refere à tentativa de explicar a problemática da psicose através da
teoria da libido, fazendo, para tanto, uso da noção de narcisismo.
Daniel Paul Schreber é internado três vezes, aos 42, 51 e 65 anos de idade.
Era casado com Ottlin Sabine Behr e não teve filhos (Ottlin teve ao todo seis abortos
espontâneos). Seu irmão mais velho, Daniel Gustav Schreber, suicidou-se aos 38 anos
de idade, após sua nomeação para o cargo de conselheiro de um tribunal.
Sobre seu pai, Daniel Gottlieb Moritz Schreber (1808-1861), sabe-se que era
médico-ortopedista e pedagogo, fundador de uma ginástica-terapêutica, baseada em
suas teorias sobre educação das crianças, que deu origem a inúmeras Associações
Schreber, além de cerca de vinte livros, um dos quais denominado ‘Ginástica Médica de
Salão’, que alcançou grande tiragem na Alemanha de seu tempo.
Segundo os métodos educacionais do pai de Schreber, a contenção
emocional (e sexual) seria importante para a retidão do espírito. Assim, o método
educacional do pai de Schreber incluía, desde regras rígidas de alimentação, até uma
aparelhagem de ferro e couro com a finalidade de garantir uma correta postura corporal,
além de impedir o auto-toque. Schreber (1903: 11) assim fala da educação que recebera
de seu pai: “Poucas pessoas cresceram com princípios morais tão rigorosos como eu e
poucas [...] se impuseram ao longo de toda a sua vida tanta contenção de acordo com
esses princípios principalmente no que se refere à vida sexual.”
Em sua primeira internação, que dura seis meses, Schreber é acompanhado
pelo Dr. Flechsig numa clínica de Leipzig, com o diagnóstico de crise grave de
hipocondria
13
. Sua segunda internação é bem mais longa (nove anos), e a ela Schreber
atribui como causa uma sobrecarga de trabalho quando de sua nomeação para o cargo
de Senatspräsident (Juiz-Presidente) da Corte de Apelação de Dresden, cargo vitalício e
de nomeação determinada pelo rei, sem direito a recusas, portanto. Este era o cargo
mais elevado a que Schreber poderia alçar na carreira jurídica.
13
Pesquisas de Baumeyer apontam que o quadro de Schreber durante esta primeira internação era mais
grave do que Freud pode sabê-lo, incluindo manifestações delirantes (idéias de emagrecimento) e duas
tentativas de suicídio. (Schreber 1903)
32
É interessante observar que, embora Schreber atribua esta segunda crise a
uma sobrecarga de trabalho, o desencadeamento delirante se dá logo após sua nomeação
para o novo cargo. Schreber assume a presidência em outubro de 1893, e ainda neste
ano é acometido por uma crise delirante que o leva à internação.
Sua última internação se dá num asilo em Leipzig-Dösen, após uma doença
de sua esposa, onde passa os últimos anos de sua vida. Freud não teve acesso a
informações sobre a última internação de Schreber, que vai de 1907 a 1911, ano de sua
morte e, coincidentemente, da publicação do estudo freudiano.
A segunda internação de Schreber, no ano de 1893, é precedida por alguns
sonhos de que o antigo distúrbio (hipocondria) retornara e por um pensamento, entre o
sono e a vigília, em que lhe ocorre: afinal de contas, deve realmente ser muito bom ser
mulher e submeter-se ao ato de cópula.’ (Schreber 1903 apud Freud 1911: 24).
Flechsig, seu primeiro médico, a quem sua mulher atribuíra a restituição do marido
quando de sua primeira internação, é aqui considerado perseguidor, assassino de almas.
Freud então discrimina a transformação de uma transferência amorosa em uma
transferência persecutória de Schreber para com Flechsig.
A partir deste ponto, Freud localiza o que para ele seria distintivo da
paranóia: um conflito oriundo de uma fantasia de desejo homossexual. Schreber repudia
esta fantasia, e toda a sua rede delirante se constrói no sentido de integrá-la, como
veremos adiante. Freud generaliza esta observação a todos os casos de paranóia
estudados por ele e seus discípulos, acrescentando que, em decorrência da
homossexualidade, nos delírios de perseguição o perseguidor é sempre do mesmo sexo.
É ao longo da segunda internação de Schreber que considerações sobre
‘Deus’ e a ‘Ordem do Mundo’ passam a integrar o corpo de seu delírio. A resignação
com sua transformação em mulher, no entanto, só ocorre em 1895. Um tempo de
trabalho do delírio foi necessário até que este se organizasse em torno da idéia de
transformação em mulher.
Freud destaca a sintomatologia desta segunda crise: inicialmente, Schreber é
acometido de insônia acompanhada de idéias hipocondríacas, que incluem a crença de
que seu cérebro está amolecendo, além de idéias de perseguição e hipersensibilidade à
33
luz e ao calor. Quando da mudança da clínica de Flechsig (onde passara alguns meses
no início da segunda crise) para a clínica de Sonnenstein, surgem as alucinações
auditivas e verbais acompanhando as idéias de perseguição. Schreber acreditava-se
morto, em estado de putrefação, ter partes de seu corpo dilaceradas, como estômago,
pulmão, intestino, bexiga, entre outros, além de estar sendo submetido a tratamentos e
manipulações de origem sagrada (Freud 1911: 24).
Localizamos um delírio não-sistematizado, que comparece em sua face de
pura invasão e horror. Schreber cai num quadro de estupor alucinatório, segundo dr.
Weber, aos quais se seguem tentativas de suicídio. Em seguida ao quadro de estupor,
começam as insultas a Flechsig, ao sol e a Deus. Podemos considerar que Schreber aqui
começa a se deslocar de uma posição em que é objeto desse Outro que o invade e o
manipula, a uma posição em que o Outro é colocado em questão, ainda que sob a forma
de insultos. Após esta fase, bastante longa, o delírio de Schreber adquire um
acabamento cujo conteúdo é o da transformação de seu corpo em um corpo feminino
para, a partir daí, num tempo futuro, poder procriar, a partir da intervenção divina, uma
nova geração de homens que redimam a humanidade e devolvam a bem-aventurança
perdida.
Deve-se observar, e este é um ponto enfatizado por Freud (1911), que a
transformação em mulher não se coloca para Schreber como fruto de seu desejo, mas de
um dever, de uma exigência divina com a qual Schreber se reconcilia. A finalização do
processo de transformação em mulher é lançada para um futuro além de seus
contemporâneos – futuro assintótico.
Segundo Freud (1911: 27), a essência do sistema delirante de Schreber foi
bem resumida na decisão judicial que lhe devolvera a liberdade: “Acreditava que tinha a
missão de redimir o mundo e restituir-lhe o estado perdido de beatitude. Isso, entretanto,
só poderia realizar se primeiro se transformasse de homem em mulher.”
Assim, Schreber acreditava que tinha a missão especial de redimir a
humanidade, tendo para isso que ser transformado em mulher e, nessa condição, gerar
uma nova raça de homens. Neste ponto, Freud estabelece uma distinção no que o
psiquiatra recolhe como pontos basilares no delírio de Schreber, quais sejam, o delírio
34
de redentor da humanidade e o delírio de emasculação, sendo este secundário àquele.
Para Freud, pelo contrário, a questão fundamental é sexual. A transformação em mulher
não é apenas um meio de desempenhar o papel de Redentor, mas o ponto inicial a partir
do qual vem a se constituir um delírio de perseguição em que figuravam seu psiquiatra
Flechsig e, posteriormente, Deus, que o fecundaria através de raios divinos.
Para Freud (1911: 67), caracteristicamente paranóico na doença foi o fato
de o paciente, para repelir uma fantasia de desejo homossexual, ter reagido
precisamente com delírios de perseguição desta espécie”
14
. A fantasia de Redentor
viria, portanto, como um modo de reconciliar-se com a idéia de transformar-se em
mulher.
A partir deste acabamento assumido pelo sistema delirante, é possível a
Schreber escrever suas memórias, que anexa ao processo onde postula em juízo, em
nome próprio, pela restituição de sua liberdade e de seus direitos civis. Dr. Weber, seu
médico durante esta segunda internação, se colocara de modo contrário a tais intenções
(Freud 1911: 25), embora venha a admitir, após nove meses em que diariamente
Schreber freqüentava sua casa para o almoço, que era possível a Schreber discorrer
sobre os mais diversos temas, tanto das artes em geral quanto da política de seu tempo e
de questões jurídico-legais:
Aconteceu que, por um lado, ele havia desenvolvido uma engenhosa estrutura
delirante, na qual temos toda razão em estarmos interessados, ao passo que,
por outro, sua personalidade fora reconstruída e agora se mostrava, exceto
por alguns distúrbios isolados, capaz de satisfazer as exigências da vida
cotidiana. (Freud 1911: 25)
Freud observa então, e esta é uma visada impressionante, que tal
“restituição” só é possível a Schreber em decorrência do modo como seu sistema
delirante foi organizado a partir de um certo núcleo, a idéia de transformação em
mulher. A partir daí, grande parte das idéias hipocondríacas anteriormente descritas dão
lugar a esta nova organização do delírio.
14
Freud acredita que em uma paranóia o perseguidor é sempre do mesmo sexo. Tal observação, segundo
ele, está em consonância com a hipótese de que a paranóia é uma tentativa de defesa contra um impulso
homossexual.
35
A idéia de ser transformado em mulher foi a característica saliente e o germe
mais primitivo de seu sistema delirante. Mostrou também ser a única parte
deste que persistiu após a cura e a única que pôde permanecer em sua
conduta na vida real, após haver-se restabelecido. (Freud 1911: 31)
A loucura de Schreber, observa Freud, tem uma lógica, segue um “método”.
Uma rede complexa gira ao redor deste ponto de acabamento. Schreber acredita ter
acesso a revelações divinas e formula todo um sistema explicativo em torno dos nervos,
da hierarquia divina, das qualidades de Deus e da bem-aventurança.
Não são poucos os efeitos que o delírio de Schreber permite-lhe articular.
Podemos especialmente enfatizar que a assunção de uma posição feminina junto a Deus
(processo assintótico de emasculação) promove uma certa reconciliação com o Deus-
pai, além da possibilidade de responder pela procriação e de retomar o interesse pelas
coisas do mundo.
Freud novamente surpreende ao afirmar que aquilo que comparece como o
âmago do delírio de Schreber, qual seja, seu dever (missão) de ser transformado em
mulher para, nessa condição, conceber filhos de Deus, é exatamente uma tentativa de
cura que o permitirá viver de algum modo, privadamente, o seu delírio delírio como
forma de reconstrução do mundo, de resolução, desde fora, de um conflito psíquico, o
que o permitirá inclusive retomar seu interesse social a ponto de adotar uma filha. Antes
de tal reconstrução, pela via do delírio, Schreber se encontrava em pleno fim de mundo.
Era impossível para Schreber resignar-se a representar o papel de uma
devassa para com seu médico, mas a missão de fornecer ao Próprio Deus as
sensações voluptuosas que Este exigia não provocava tal resistência por
parte do ego. A emasculação não era mais uma calamidade; tornava-se
‘consonante com a Ordem das Coisas’ [...] Seu ego encontrava satisfação na
megalomania, enquanto que sua fantasia feminina de desejo avançava e
tornava-se aceitável. (Freud 1911: 57)
A partir destas elaborações, Freud vai procurar descrever o mecanismo de
formação do sintoma na paranóia, e o faz recorrendo à história do desenvolvimento
libidinal, inserindo aqui o elemento do narcisismo. Assim, a noção de narcisismo
primário comparece no caso Schreber (1911) quando Freud fala do desenvolvimento
infantil, embora só venha a melhor desenvolvê-la em 1914.
36
Neste sentido, o texto de Schreber é absolutamente precursor dos pontos a
serem desenvolvidos no texto do narcisismo, e que colocam a primeira tópica freudiana
em questão. As parafrenias ensinam a Freud como o eu pode ser objeto de investimento
libidinal. Até então, Freud trabalhava com a perspectiva de que o eu é um dos pólos do
conflito psíquico oposto à sexualidade, mas a psicose ensina a Freud como o eu pode
absorver todo o investimento libidinal. Freud percebe em Schreber que a libido que
abandonou os objetos da realidade migra para o eu, inflando-o. A megalomania é a sua
expressão.
É assim que, no artigo Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914), Freud
coloca que a teoria da libido precisa se haver com os aspectos clínicos da demência
precoce ou esquizofrenia, bem como dos casos de paranóia. Se, na neurose, o
investimento libidinal retirado do mundo se volta para objetos imaginários
(investimento em representações fantasísticas do objeto), conservando, pela via da
fantasia, a ligação com pessoas e coisas, na psicose uma retirada mais radical dos
investimentos libidinais no mundo
15
, e esta libido seria então reconduzida ao eu,
transformando-o num objeto. Este seria um aspecto comum tanto à psicose paranóica
quanto esquizofrênica, sendo que, na primeira, essa libido regrediria à fase do
narcisismo, ao passo que, na segunda, a regressão da libido seria mais primitiva,
retornando ao auto-erotismo.
A retirada da libido do mundo externo, chamada de “repressão propriamente
dita” (Freud 1911: 75), ocorre de modo silencioso. Dela, temos notícia num depois,
através dos fenômenos que se seguem e que são índice do fracasso dessa repressão. A
formação delirante é um exemplo desse esforço da libido em retornar aos objetos.
Do exposto, podemos inferir que essa “unidade” que denominamos de eu
não é estável para todos
16
, nem tampouco está desde a origem. A experiência da
psicose nos oferece um ponto de mirada bastante especial de como o eu precisa ser
construído, e pode nem sequer vir a sê-lo. Uma série de fenômenos presentes na psicose
15
Freud, ao final do caso Schreber, sugere que este desligamento da libido pode ser total ou parcial, sendo
este último caso o mais comum.
16
Mesmo na neurose esta suposta “unidade” está sujeita a desestabilizações. Sendo proveniente de uma
dispersão original, o trabalho de unificação é contínuo, permanente e não está dado de uma vez por todas.
37
sustentam essa afirmativa, tais como a fragmentação do corpo e a sensação de fim de
mundo.
Freud diz então que esse investimento no eu é libido e, como tal, é sexual,
podendo migrar para o delírio. Através da análise da frase básica “Eu o amo” e de seus
possíveis desdobramentos na trama da linguagem
17
, Freud reconhece no delírio uma
prova desse caráter sexual da libido. A produção de um delírio estaria do lado de
uma tentativa de restituir a libido aos objetos, restabelecendo um laço com a realidade.
O delírio, portanto, tem um caráter restitutivo, como uma espécie de remendo, lá mesmo
onde houve uma ruptura da libido com os objetos do mundo. O delírio, pela produção
de uma significação, mantém esta função de suporte da cadeia representacional.
Trata-se, portanto, de uma formação secundária, com algumas características
especiais, dentre as quais vale destacar a produção de uma significação não articulada à
trama do Édipo/castração. Além disso, na medida em que o eu é tomado como objeto
libidinal, uma espécie de “fusão”, de colagem entre o eu e o objeto, daí falarmos em
preservação da posição narcisista do eu. Cumpre ressaltar que esse objeto é fruto de um
processo de decomposição do eu, tornando-se uma espécie de duplo.
Percebemos que o delírio ocupa uma função muito particular, paradoxal até:
ele, ao mesmo tempo em que, através de significações inéditas, tenta produzir uma
separação entre sujeito e objeto, mantém a posição narcisista. Hanna (2000: 51-52),
marcando este paradoxo, insiste em que a função do destinatário é central por permitir
uma separação através da entrada em cena de um terceiro, que pode se opor a essa
obscura assimilação: “A manobra do analista deve se opor a qualquer assimilação do
sujeito e objeto maldita e mortífera coincidência, que faz com que se apague qualquer
diferença entre ambos”.
É importante colocar que Freud vai tecer suas articulações sobre o caso
Schreber a partir de uma teoria do recalque, e no âmbito ainda de sua primeira tópica,
17
Freud (1911: 71) diz que as diferentes formas clínicas da paranóia Delírio de Perseguição,
Erotomania, Delírio de Ciúme e Megalomania - fundam-se na contradição da proposição única “Eu (um
homem) o amo (um homem)” respectivamente em seu verbo, objeto, o sujeito ou na frase toda.
38
do primeiro dualismo pulsional. Mesmo ressaltando que se trata de um recalque muito
especial, não estabelece aqui em que consiste tal especialidade.
aqui, entretanto, Freud fala de uma certa insuficiência do mecanismo da
projeção, insuficiência inclusive por não ser algo específico das psicoses: “Foi incorreto
dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é,
pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna
desde fora.” (Freud, 1911: 78)
O estatuto da projeção aqui se altera. Não se trata mais do mecanismo
causador da psicose, tal como colocada nas primeiras elaborações freudianas. Se é desde
fora que retorna o que foi abolido, não se trata de uma mera projeção. Não é possível
projetar algo que nem sequer chegou a ser inscrito, simbolizado.
Esse é um dos pontos que permitirá o desenvolvimento da noção de
Verwerfung, tal como retomada por Lacan. Para Lacan, em sua crítica do termo
projeção presente em O Seminário, livro 3 (1955-56), não é possível projetar algo que
fora alvo de uma verdadeira abolição simbólica.
Mendonça (1996), em uma análise textual das diversas terminologias
utilizadas por Freud para se referir ao mecanismo da psicose, destaca que nesta
passagem, ao referir-se àquilo que foi abolido, Freud utiliza o termo Aufgehobene, e não
Verwerfung. Tal escolha, segundo ela, pode ser atribuída ao fato de que Freud, ao dizer
que aquilo que foi abolido retorna desde fora, estaria se referindo mais propriamente ao
desligamento da libido dos objetos. A projeção, como vimos, perde o caráter central de
mecanismo constitutivo da psicose a que Freud lhe atribuíra no Rascunho H, adquirindo
aqui o caráter de uma tentativa de restabelecimento, diante do desinvestimento da libido
dos objetos do mundo externo:
O que se impõe tão ruidosamente à nossa atenção é o processo de
restabelecimento, que desfaz o trabalho da repressão e traz de volta
novamente a libido para as pessoas que ela havia abandonado. Na paranóia,
este processo é efetuado por meio da projeção. (Freud 1911: 78)
Da leitura deste texto riquíssimo e de grande complexidade, pode-se destacar
desde logo como essencial não exatamente a articulação da paranóia com a defesa
39
contra um desejo homossexual, ponto em que insistem os pós-freudianos e que o
próprio Freud aponta como insuficiente
18
, mas no que ele correlaciona o delírio com a
linguagem, ponto que Lacan retomará, a partir dos desenvolvimentos da Lingüística, e
que será posteriormente discutido.
19
Seguindo esta articulação com a questão da linguagem, Freud apresentará,
em seu artigo O Inconsciente (1915), uma distinção entre neurose e psicose baseada na
noção de representação, ou seja, no modo como ambas articulam os mbolos.
Exemplifica tal distinção através de uma paciente esquizofrênica de Tausk, que se
queixa de que seus olhos estariam virados, ao passo em que se refere ao namorado
através do termo Augenverdreher, traduzido por entortador de olhos, enganador.
Uma paciente de Tausk, uma moça levada à clínica após uma discussão com
o amante, queixou-se de que seus olhos não estavam direitos, estavam
tortos. Ela mesma explicou o fato, apresentando, em linguagem coerente,
uma série de acusações contra o amante. ‘De forma alguma ela conseguia
compreendê-lo, a cada vez ele parecia diferente; era hipócrita, um entortador
de olhos (Augenverdreher tem o sentido figurado de enganador), ele tinha
entortado os olhos dela; agora ela tinha olhos tortos; não eram mais os olhos
dela; agora via o mundo com olhos diferentes’. (Freud 1915: 202)
Uma neurótica, em tal situação, diz Freud (1915), criaria símbolos que
incidiriam sobre as ligações entre as representações, de modo a preservar tanto as
representações de coisa quanto as de palavra. Já na psicose, a cena inconsciente seria
abolida, de modo que as palavras perderiam suas referências. A palavra torna-se então a
própria coisa, daí a paciente de Tausk acreditar que seus olhos estavam de fato tortos.
Prejudicada, digamos assim, a possibilidade de constituir representações, ou
seja, decaindo a linguagem de sua função de metaforização, a libido seria então
represada no eu, investida na imagem do corpo. É o que Freud (1915: 203) chama de
“fala do órgão”, que permite ao sujeito, pela via do investimento narcísico e a referência
ao corpo próprio, garantir alguma função da linguagem.
18
Esse equívoco promoveu e vem promovendo conseqüências desastrosas tanto teóricas quanto clínicas,
dentre as quais o reducionismo de se confundir a clínica com psicóticos com uma pedagogização, no
sentido de uma aceitação intelectual, por parte do psicótico, desta suposta “verdade”. Lacan critica
duramente a hipótese freudiana de que a homossexualidade está na base da operação de rejeição, sendo
ela apenas um dos efeitos da não-inscrição do psicótico na norma fálica. Para Lacan, portanto, a
homossexualidade não está no nível da causa, mas dos efeitos.
19
Ver capítulo 2.
40
1.3 PSICOSE E PERDA DA REALIDADE
Neurose e Psicose (1924a) e A perda da realidade na Neurose e na Psicose
(1924b) são dois textos escritos após as elaborações freudianas de O ego e o Id (1923).
Desde já se deve colocar que, dentre os pós-freudianos, de tal modo se deu ênfase a este
momento da teorização, que muito do contexto mais amplo da elaboração freudiana
concernente à psicoses foi relegada, em especial no que se refere à noção de Verwerfen.
Em Neurose e Psicose (1924a: 167-168), Freud fará a distinção entre estas
duas categorias clínicas tomando por base o tipo de conflito, entre o eu e o isso na
primeira e entre o eu e o mundo externo na segunda:
A neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a
psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre
o ego e o mundo externo. [...] O ego cria, autocraticamente, um novo mundo
externo e interno, e não pode haver dúvidas quanto a dois fatos: que esse
mundo é construído de acordo com os impulsos desejosos do id e que o
motivo dessa dissociação do mundo externo é uma frustração muito séria de
um desejo, por parte da realidade - frustração que parece intolerável.
A imprecisão de tal passagem será posteriormente apontada por Freud, e
consiste no fato de que, tanto na neurose quanto na psicose, o vínculo com a realidade
está alterado, e não apenas na segunda, conforme indica a referida passagem, na qual
freqüentemente insistem os pós-freudianos. Dela, podemos, no entanto, ressaltar que em
uma psicose o mundo externo afeta, incide sobre o eu. Freud fala em uma frustração
intolerável, e podemos entendê-la como uma frustração diante da realidade da castração.
Esse rompimento do eu com o mundo externo que ocorre nas psicoses,
localiza Freud, é decorrente de uma obediência para com os desejos do isso. A nova
realidade criada será mais consonante com tais exigências.
Em A perda da realidade na neurose e na psicose (1924b), Freud afirma que
tanto na neurose quanto na psicose um processo de perda da realidade, o que ele
descreve como “arrastar o eu para longe da realidade” (: 206), mas por mecanismos
diferentes em ambas:
Por conseguinte, a diferença inicial assim se expressa no desfecho final: na
neurose, o fragmento da realidade é evitado por uma espécie de fuga, ao
41
passo que na psicose ele é remodelado. Ou poderíamos dizer: na psicose, a
fuga inicial é sucedida por uma fase ativa de remodelamento; na neurose, a
obediência inicial é sucedida por uma tentativa adiada de fuga. Ou ainda,
expresso de outro modo: a neurose não repudia a realidade, apenas a ignora;
a psicose a repudia (Verleugnung) e tenta substituí-la. (Freud 1924b: 207)
Tanto na neurose quanto na psicose, o que foi reprimido ou rejeitado sempre
retornam, sendo que na primeira, o faz pela via do sintoma, como índice do fracasso do
processo de recalque. A fantasia na neurose, como vimos articulado em Freud desde o
conceito do Narcisismo, mediatiza o retorno da libido aos objetos, através das
representações fantasísticas de objeto. A significação gira em torno do falo, através da
articulação complexo de Édipo/complexo de castração.
Na psicose, por sua vez, o que estaria em jogo é a criação, pela via do
delírio, de um novo mundo frente à realidade, entendida aqui como realidade da
castração. Destacamos da citação acima que dois tempos necessários no trabalho da
psicose até a construção de um delírio: o primeiro tempo, sobre o qual discorremos,
diz respeito a essa retirada radical da libido dos objetos e seu retorno para o eu. O
segundo tempo já é o do trabalho de substituição da realidade, através da criação de uma
significação inédita.
Não se trata, pois, como até então Freud caracterizava a projeção, de, a partir
do interior do psiquismo, transpor para fora uma dada realidade interna. Ao invés disso,
uma vez eliminado, abolido o mundo subjetivo, o processo de reconstrução vai se dar
desde fora.
Podemos localizar no conceito de Verwerfung, traduzido para o português
como rejeição, um instrumento mais rigoroso no sentido mesmo de permitir à psicose
um estatuto específico: “Uma repressão é algo muito diferente de uma rejeição.” (Freud
1918: 88) Devemos, no entanto, ressaltar, que é somente quando lemos Freud com as
lentes de Lacan que conseguimos isolar mais precisamente a noção de Verwerfung
como referindo o mecanismo específico da psicose, pois em Freud esta tentativa não
chega a um acabamento mais preciso. A idéia que Lacan destaca como central na
rejeição é a vivência de exterioridade a partir da qual os fenômenos são vividos na
psicose.
42
Freud vai retomar o conceito de Verwerfung em 1918, no caso do Homem
dos Lobos (História de uma Neurose Infantil), que lança mão do mecanismo da
Verwerfung, em um episódio ocorrido em sua infância, conhecido como a alucinação do
dedo cortado. Neste episódio, a representação inconsciente de coisa, a cena da
castração, foi suprimida inteiramente (uma parte de si próprio fora "cortada").
De repente, para meu inexprimível terror, notei ter cortado fora o dedo
mínimo da mão (direita ou esquerda?), de modo que ele se achava
dependurado, preso apenas pela pele. Não senti dor, mas um grande medo.
Não me atrevi a dizer nada à babá, que se encontrava a apenas alguns passos
de distância (...) Por fim, me acalmei, olhei para ele e vi que estava
inteiramente ileso. (Freud 1918: 93)
A alucinação do dedo cortado veio exatamente fazer retornar, de fora, a cena
abolida, a realidade da castração. A Verwerfung é entendida aqui como um modo
peculiar de recusa da castração. É essa a via de análise que Lacan retomará para
desenvolver a sua noção de foraclusão, afirmando que o que é foracluído no simbólico
retorna no real, como se verá adiante.
20
Assim, aquilo que não foi simbolizado retornou
no registro da percepção como visto.
Tamanha a complexidade da questão da perda da realidade, que ela
acompanhará Freud em trabalhos bem posteriores, como O Fetichismo (1927) e Esboço
de uma Psicanálise (1938). Verleugnung, traduzido como recusa, renegação ou ainda
desmentido, é o termo que Freud lança mão para caracterizar o mecanismo fetichista, no
qual uma parte da realidade, no caso a ausência de pênis na mulher, é recusada. Este
mesmo termo é utilizado por Freud, em vários momentos, a partir dos anos 20, a
propósito das psicoses.
Convém ainda destacar que, ao longo de toda a obra freudiana, a realidade
da qual se trata é a realidade psíquica, ou seja, o registro sempre singular, construído por
cada sujeito, onde o que está em jogo é a die Sache (coisa representada), e não das
Ding, a Coisa para sempre perdida. Assim, não como não se reportar à realidade da
castração, símbolo do que para o sujeito comparece como perda.
20
Ver item 3.1.
43
Finalizaremos este capítulo com o destaque das linhas que consideramos
centrais na elaboração freudiana em torno do delírio:
- Trata-se de uma tentativa de explicar, dar sentido e consistência ao
que comparece para o sujeito como incidindo desde fora. Está, portanto, no campo
da significação, da busca de sentido diante do retorno daquilo que foi rejeitado;
- O preço deste tipo de solução é o de um comprometimento de uma
parte da realidade. Tal comprometimento o delírio tenta equacionar, através da
criação de uma nova realidade;
- O delírio mantém a posição narcisista do eu (eu=objeto), embora todo
o trabalho do delírio consista em afastar um pouco o eu deste lugar;
- Diante da retirada da libido dos objetos, o delírio é uma tentativa de
reinvesti-los (caráter de restituição, de prótese). Tal tentativa nem sempre é
exitosa;
- Há uma inequívoca relação entre o campo do delírio e o da linguagem.
- Freud localiza como um efeito possível do delírio a constituição de um
mundo habitável, através de uma certa reconciliação entre o sujeito e o mundo;
Como vimos, não são poucos os elementos presentes na obra freudiana em
torno da importância do delírio na paranóia. Esse lugar privilegiado, por si só, já
justifica a importância de nos determos neste tema. de se valorizar o trabalho que é
realizado por esta via, mesmo com a ressalva de que esta não é a única via de trabalho
possível em uma psicose. Trata-se, desde Freud, de uma tentativa de retorno da libido
aos objetos. O que permite que esta tentativa seja bem sucedida ou não? Esta é a
questão que nos relança paro estudo da metáfora delirante, a partir das elaborações
lacanianas. Que elementos precisam estar presentes para o sucesso da estabilização de
uma psicose pela via do trabalho do delírio?
Continuemos, pois, com Lacan, a questão formulada por Freud em Neurose
e Psicose (1924: 171) e que orienta todo este trabalho: “Qual pode ser o mecanismo,
análogo à repressão, por cujo intermédio o ego se desliga do mundo externo?”. E no que
44
este entendimento nos importa para cernirmos a questão da função e os efeitos do
delírio para a psicanálise? Para encaminharmos esta questão, teceremos
preliminarmente algumas considerações sobre a dimensão metafórica enquanto tal.
45
Capítulo 2 - CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIMENSÃO METAFÓRICA
“A conseqüência é que a língua domina o
pensamento, impondo-lhe a ordem do negativo,
do absurdo, da metáfora. É que a ciência da
linguagem relaciona-se com o registro do
inconsciente.”
M. Pêcheux
Em psicanálise, um único tema é passível de múltiplos recortes. Inúmeras
são as vias de abordagem de uma questão, exigindo escolhas, por vezes mais ou menos
exitosas. Trata-se de uma teoria não acabada, sujeita aos impasses do caso a caso, numa
articulação onde a clínica incide sobre a teoria e vice-versa.
Com relação às psicoses, vimos que em Freud não encontramos uma teoria
pronta, um ponto de vista acabado, definitivo. Suas (re-)elaborações são permanentes,
impedindo uma leitura meramente evolutiva, onde a nova formulação suplante ou
elimine a anterior. Por esta razão, a experiência de leitura com cada texto nos lança
diante de reflexões não estanques, que retornam muitas vezes como impasses.
Ao nos propormos a uma leitura do delírio em psicanálise, estamos cientes
do risco, mas, ao mesmo tempo, da exigência de um recorte preciso. Risco porque a
escolha por uma via de leitura deixa inúmeras questões em aberto, o que é um índice da
complexidade de nosso campo. Exigência na medida em que a delimitação é condição
para que algo possa ser trabalhado, cernido.
A problemática da psicose comparece ao longo de todo o ensino lacaniano,
de Aimée a Joyce, requerendo um amplo e complexo aparato conceitual. Lacan, pela via
da psicose, se aproxima da psicanálise, em sua tese de doutorado de 1932, endereçada
ao saber médico-psiquiátrico. O tema lhe acompanha a propósito de sua teorização sob
as incidências do campo da fala e linguagem sobre o sujeito, sendo ainda retomado, ao
final de seu ensino, na discussão sobre as diversas saídas possíveis diante da
inconsistência do campo do Outro, que se coloca para todo e qualquer falante.
Para os fins deste trabalho, cujo enfoque é a estabilização pela via do
trabalho do delírio, nos ocuparemos, especialmente, das formulações de Lacan na
46
década de 50, em torno da relação do sujeito com o significante, com alguns
apontamentos sobre a questão da estabilização pela via da localização de gozo.
Pensamos que esta abordagem nos é fértil para pensar da psicose a sua fenomenologia,
bem como sua estrutura, desencadeamento e a possibilidade de estabilização que é alvo
de nossa pesquisa.
Para tanto, balizaremos algumas articulações fundamentais para a
delimitação do campo da psicose na obra lacaniana. Dentre os pontos-chave,
destacaremos inicialmente a formulação lacaniana em torno do esquema L, para, em
seguida, nos determos em torno da foraclusão do Nome-do-Pai, nos sendo exigido, para
este fim, retomarmos a questão do complexo de Édipo e da metáfora paterna. A partir
daí, recorreremos aos esquemas R e I para pensarmos no trabalho de estabilização da
realidade que o delírio pode vir a promover, como solução elegante que é.
Outro ponto-chave desta dissertação será a noção de metáfora delirante, na
medida em que procuraremos balizar diferenças e aproximações entre esta e o delírio. O
conceito de ponto de basta nos será, neste aspecto, bastante útil. Adentraremos, também,
na questão do estatuto do Outro na psicose de Schreber, a fim de pensarmos no que uma
estabilização pode alterar a posição do psicótico em relação ao Outro.
Lacan precisa operar deslocamentos decisivos e em nada evidentes para que
possa se orientar em uma abordagem a partir da lógica do significante e de suas leis.
Este passo será repleto de conseqüências, desdobramentos clínicos.
Ocuparemo-nos, brevemente, apenas título de introdução deste capítulo, em
localizar o terreno onde nosso recorte conceitual está inserido, para, em seguida, nos
determos nos conceitos-chave de nossa dissertação.
2.1 DAS RELAÇÕES DE COMPREENSÃO À LÓGICA DO SIGNIFICANTE
O encontro de Lacan com a psicanálise se dá na década de trinta, num
contexto de forte controvérsia no meio psiquiátrico, onde as diferentes escolas discutiam
questões relativas à etiologia dos transtornos mentais.
47
O debate, então, girava em torno da organogênese, da qual Clérambault era
um representante, ou psicogênese enquanto fator determinante, esta sustentada, dentre
outros, por Kraepelin, Seriux e Capgras. Em sua tese de doutoramento, Lacan divide a
tradição psiquiátrica nestes dois grupos opostos, e se presta a um exame cuidadoso de
ambos.
Kraepelin houvera agrupado os sintomas observados em grandes entidades
clínicas, sistematizando assim as unidades nosológicas através de um método que
consistia na observação dos traços mais gerais observados nos diferentes casos, com a
eliminação do que cada caso trazia de peculiar. Desse modo, acreditava ele, seria
possível estabelecer, para cada grupo, a sua evolução, bem como sua determinação
causal.
É inicialmente a este método utilizado por Kraepelin
21
que Lacan vai se opor.
Em sua tese de doutorado em psiquiatria intitulada Da psicose paranóica em sua
relações com a personalidade (1932), Lacan questiona este modo de pesquisa
psicopatológica, afirmando que abrir mão dos traços específicos de um caso é prescindir
do que ele traz de mais essencial
22
.
Na referida tese, ao invés de discutir uma grande quantidade de casos
clínicos, Lacan vai optar pelo estudo de um único caso, no intuito de chegar a um
diagnóstico e de apreender suas determinantes.
É neste ponto, o da causação das psicoses, que o debate organogênese versus
psicogênese se coloca para Lacan. Seu rompimento com as teorias psiquiátricas
clássicas pode ser localizado em uma recusa em pensar a psicose a partir de um déficit,
seja ele de natureza orgânica (psiquiatria organicista) ou psíquica (psiquiatria
constitucional).
21
É importante precisar que, apesar de suas críticas a Kraepelin, Lacan reconhece o valor, segundo ele
“preponderante” (1932: 54) da nosografia kraepeliniana. Não é à toa que abre sua tese de doutorado
pondo em discussão a divisão kraepeliniana entre demências e psicoses. Soma-se a isso o fato de que
em Kraepelin uma leitura da paranóia referida às relações com a personalidade, e não com um ficit
observável, uma debilidade orgânica. Ambos, no entanto, se distanciam na medida em que, para
Kraepelin, haveria na paranóia uma “disposição deficiente em relação à luta vital (:50), ou seja, para
Kraepelin há um déficit na paranóia, mesmo que este déficit não seja orgânico.
22
Já encontramos, neste ato, a rubrica do Lacan psicanalista.
48
Lacan realiza, já na tese de 32, uma leitura muito particular da noção de
compreensão, advinda inicialmente do trabalho de Jaspers, abrindo a possibilidade de
leitura do fenômeno clínico não referida às concepções deficitárias da organogênese e
da psicogênese, mas da relação do psicótico com a linguagem, neste momento pensada
em termos de relações de sentido (campo das significações).
Lacan posteriormente se afasta da noção de compreensão, e este ponto ele
faz questão de destacar, a propósito de seu seminário sobre as psicoses, onde afirma:
“Há muito tempo que eu não fazia diferença entre a psicologia e a fisiologia.” (1955-56:
24). Como conseqüência, diz Lacan: “o segredo da psicanálise é que não
psicogênese.” (: 16)
A partir do exame do caso de Marguerite Anzieu, Lacan chega à paranóia de
autopunição como categoria diagnóstica. Não está nos nossos objetivos discorrer sobre
este caso, mas vale pontuar que o desejo de autopunição mostra de forma veemente que
o sujeito nem sempre quer seu próprio bem, o que levará, adiante, a questionar a
possibilidade de basear a clínica numa relação de compreensão.
Eis o impasse que o fará, posteriormente, reconhecer Clérambault como o
seu único mestre em psiquiatria. Tal se deve ao seu conceito de automatismo mental,
onde se põe em questão aquilo que incide sobre o sujeito como pura influência externa,
ou seja, aquilo que para ele é percebido como vindo de fora
23
.
Clérambault toma tal conceito a partir de uma referência do organicismo ao
qual se filia, onde o funcionamento psíquico não é mais passível de um controle
voluntário do sujeito, sendo manifestação direta de um problema orgânico. Lacan, por
sua vez, o tomará a partir de uma outra referência, onde o automatismo é índice da
incidência de algo que o sujeito percebe como pura exterioridade, como vindo de fora:
Autopunição e divisão do sujeito. Lacan, por essa via, se aproxima da teoria
psicanalítica, mais precisamente da segunda tópica freudiana:
Foi o que levou Lacan para a psicanálise. Encontrou na obra de Freud dos
anos 20 o conceito de supereu como instância do mecanismo de
autopunição. E considerou o caso de sua paciente como o protótipo de uma
paranóia de autopunição, o inverso da de reivindicação. Foi esta sua última
23
Vimos como Freud articula esta questão, e retomaremos o tema adiante, com Lacan.
49
tentativa na psiquiatria. O importante é a referência ao conceito de supereu,
que comporta, na própria análise, a ênfase da divisão do sujeito: trabalha
contra si próprio, não sendo uma unidade homogênea. (Miller 1997: 132)
Convém situar este movimento de Lacan que será conhecido como retorno
ao sentido de Freud e que tem como marco o trabalho intitulado Função e campo da
fala e da linguagem em psicanálise (1953), também conhecido como Discurso de
Roma. Retornando a Freud, Lacan faz incidir sua crítica às psicologias do ego, leitura
privilegiada pelos anglo-saxônicos e norte-americanos. Tal leitura, conforme assinala
Figueiredo (1997), é inaugurada por Hartmann através de seu livro ‘Psicologia do eu e o
problema da adaptação’ (1939), que desenvolve a proposta de Anna Freud de O Ego e
seus mecanismos de defesa (1936)
24
, e se baseia numa interpretação da segunda tópica
freudiana que concebe o eu como a instância central da personalidade, com uma função
de síntese, de adaptação à realidade externa, de base eminentemente racionalista e
evolucionista.
Os textos freudianos vinham sendo, de fato, relegados a um esquecimento
em prol da leitura de autores pós-freudianos, e tal esquecimento, ressalta Julien (1993),
relacionava-se ainda com a tentativa de alguns psicanalistas europeus de fugir do
nazismo, refugiando-se nos Estados Unidos.
Os emigrados, querendo ser assimilados, a qualquer preço, à cultura
americana, esqueceram todos a mensagem freudiana e seu próprio passado
cultural e político de europeus, passado que veiculava esta mensagem [...]
Esta captura com o passado levou estes “pássaros migratórios” a se
quererem diferentes de seus colegas europeus, em seguida, assumindo seus
lugares na I.P.A., no s-guerra, que os acolheu, doarem, em sua volta à
Europa, a Ego-psychology. Belo exemplo de ida e volta: sem o saberem,
suas respostas à perseguição foi a promoção de um eu forte e da estratégia
de desmoronamento das defesas do analisante. (Julien 1993: xi-xii)
Não se trata, entretanto, segue o autor, de se queixar desse esquecimento,
mas de levá-lo em conta para retornar ao sentido da descoberta freudiana, o
inconsciente, e assim procurar os pontos-cegos presentes nos textos freudianos.
24
Observe-se que esta obra data do mesmo ano em que Lacan teoriza sobre o Estádio do Espelho.
50
Desse modo, o retorno a Freud não se dá por uma simples volta, onde o texto
lacaniano substitui o freudiano, mas pela insistência no questionamento, sustentando o
lugar de abertura para o saber inconsciente.
Lacan situa o ano de 1953 como o início de seu ensino, com o texto Função
e campo da palavra e da linguagem em psicanálise, de modo que sua teorização
anterior situa-se, em relação a seu ensino, como antecedente. Este é ainda o ano da
primeira cisão do movimento psicanalítico francês
25
.
Assim, tanto a tese de 1932 sobre a psicose paranóica quanto a teorização
sobre o Estádio do Espelho, esta última sendo a sua primeira incursão no campo
psicanalítico, situam-se como antecedentes. Vale lembrar que a proposição “O
inconsciente estruturado como uma linguagem” também é introduzida em 1953, bem
como os três registros, Imaginário, Simbólico e Real.
Este período de vinte anos, que vai do ano de 1932 a 1953, designado por
Lacan como antecedente de seu ensino, tem como foco o registro que ele posteriormente
designará de Imaginário, baseado na leitura da segunda tópica freudiana.
Neste período, Lacan escreve ainda um importante trabalho para o estudo
das psicoses, Formulações sobre a causalidade psíquica (1946), onde reitera a sua
crítica ao organicismo, mais especificamente ao organo-dinamismo de Henri Ey. É
bastante claro neste texto sua recusa a uma visão negativa da doença mental, bem como
suas críticas à localização da gênese dos distúrbios no funcionamento interno do
organismo.
Lacan aqui refere a loucura ao ser do homem, reportando seus fenômenos ao
campo do sentido, da significação e manifestando-se contra as perspectivas de leitura do
delírio em termos de erro ou déficit das funções psíquicas. A causalidade da loucura é
atribuída a uma “insondável de cisão do ser”. (1946: 179)
No que tange aos fenômenos da loucura, alucinações, interpretações e
intuições, Lacan, para além de uma análise da sensorialidade ou da crença aí implicadas,
põe em relevo, neste texto, o fato de que estes fenômenos visam o sujeito:
25
A segunda cisão dar-se-á em 1963, e no ano seguinte, 1964, Lacan funda a Escola Freudiana de Paris.
51
(...) eles o desdobram, respondem-lhe, fazem-lhe eco ou lêem nele, assim
como eles o identifica, interroga, provoca e decifra. E, quando vem a lhe
faltar todo e qualquer meio de exprimi-los, sua perplexidade nos evidencia
nele, mais uma vez, uma hiância interrogativa, ou seja, toda a loucura é
vivida no registro do sentido. (Lacan 1946: 166)
Outro ponto de relevo sustentado neste texto, e retomado ainda no Discurso
de Roma (1953), é a idéia de que na loucura um desconhecimento da dialética do ser
(: 172). Daí, segundo Lacan, o louco querer impor a lei de seu coração
26
à desordem do
mundo, não reconhecendo esta desordem como sua.
Este ponto nos interessa na medida em que, por esta via, Lacan vai dizer que
na loucura uma estase do ser em uma “identificação ideal” (: 173), ou seja, não
mediação nesta identificação. Mesmo sem recorrer ao Édipo, percebemos que nesta
passagem Lacan antecipa a idéia de que falta um terceiro termo que promova uma
mediação nesta identificação, produzindo o que ele denomina de enfatuação do
sujeito”. (: 171)
Na teoria sobre a psicose inaugurada na década de 50, Lacan se ocupa em
pensar a psicose pelo viés da linguagem, da relação do sujeito com o significante, da
posição do sujeito diante do Outro, e nesse campo buscar para a psicose a especificidade
de sua estrutura. Tal especificidade Lacan a localiza não enfatizando uma suposta
tendência homossexual na paranóia, como insistiam os pós-freudianos, mas num tipo
peculiar de relação com as leis do significante, referidas à questão da castração.
A leitura a partir da lógica do significante é um modo privilegiado de
distinção entre aquilo que pertence ao campo de leitura psicanalítica e aquilo que diz
respeito ao saber psiquiátrico (talvez mais propriamente neurológico) ou às psicologias
do ego. Isto porque permite pensar o fenômeno psicótico a partir da estrutura que o
caracteriza, da posição do sujeito no inconsciente, ao invés de defini-lo a partir de uma
extensa e complexa rede nosológica.
Não se trata de desprezar da psicose a sua fenomenologia, mas de distinguir
(e não simplesmente de confrontar), e daí poder tirar conseqüências teórico-clínicas, em
26
“(...) seu ser está encerrado num círculo” (: 173). Lacan remete esta fórmula a Hegel.
52
que consiste o sintoma psicanalítico. Este é referido, necessariamente, a uma escuta do
sujeito, e não a categorias fixas do que seria normalidade pattern
27
-, que como tal
desprezam a relação do sujeito com o significante.
Dizer da psicose implica, pois, em recolocar a problemática do sujeito, não
mais referido ao campo da compreensão, de uma semântica referida à significação, mas
ao campo do significante, de suas leis e, mais tarde, como veremos, ao campo do gozo.
É sob esta ótica que Lacan vai situar a estrutura da psicose, bem como sua
possibilidade de tratamento. Em o Seminário, livro III: as psicoses (1955-56) e no texto
De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a), os
elementos princeps dessa nova articulação são cernidos, sob o suporte dos instrumentos
da Lingüística Moderna de Ferdinad de Saussure e R. Jakobson, a partir dos quais
Lacan retoma as Memórias de Daniel Paul Schreber.
Situar as psicoses a partir do terreno da linguagem - sendo esta um modo
específico de relação do sujeito com o significante e com a realidade da castração - é um
passo absolutamente fundador, tanto por permitir uma leitura da psicose por um viés
que lhe seja próprio, estrutural, específico, quanto por inaugurar uma outra perspectiva
sobre o desencadeamento e as possibilidades de estabilização nesta estrutura.
Para acompanharmos o modo como Lacan articula o mecanismo da psicose a
partir de sua discussão sobre o significante, apresentaremos as articulações entre os
campos do simbólico e do imaginário presentes no Esquema L para, a partir daí,
introduzirmos a função do Nome-do-Pai.
2.1.1 O esquema L
Lacan apresenta seu esquema L, também conhecido como ‘esquema da fala
e da linguagem’ em o Seminário, livro II: O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise (1954-55), no capítulo XIX. Nessa ocasião, anuncia-o como um “pequeno
27
Lacan utiliza este termo em O Seminário, livro III: as psicoses, referindo-se a determinados modos de
comportamento. (1955-56: 28)
53
esquema para ilustrar os problemas levantados pelo eu e pelo outro, pela linguagem e
pela fala” (: 306). Este esquema é retomado em diversas ocasiões, dentre as quais, para
modificá-lo, em O Seminário, livro III: as psicoses (1955-56), a propósito das
alucinações, e em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose
(1957-58a), onde este é inserido no esquema R
28
.
No esquema L, Lacan articula uma topologia estrutural do sujeito, ordenada
a partir de lugares que mantêm entre si determinadas relações, indicadas pela direção
das setas. Quatro são os elementos deste esquema: S (sujeito), a’ (outro), a (eu) e A
(Outro), que se distribuem em torno de dois eixos, o eixo simbólico (relação Sujeito e
Outro) e o eixo imaginário (relação entre o eu e o outro, semelhante), referente ao
estádio do espelho.
Figura 1 – Esquema L
O sentido das setas nos indica que o sujeito se dirige ao seu semelhante, mas
recebe do Outro sua mensagem de forma invertida (Sa’--a). De A, lugar da linguagem,
Outro antecedente lógico do sujeito, as setas partem, mas não chegam. Desse modo,
Lacan articula a estrutura de reconhecimento na neurose, a partir da relação do sujeito
com o Outro.
Como dissemos, o esquema L é retomado no seminário sobre as psicoses a
propósito da alucinação auditiva verbal, quando Lacan comenta o caso Porca! Trata-se
de um caso examinado por Lacan em uma apresentação de pacientes, onde a paciente
28
O esquema R será apresentado no item 2.2.
54
encontrava-se junto a sua mãe em um delírio a dois. Ambas haviam fugido da casa de
seu marido, que, segundo o relato, pretendia cortar-lhe em rodelas.
A paciente queixa-se a Lacan de ter encontrado o amante de sua vizinha no
corredor e de tê-lo ouvido proferir-lhe uma injúria. Antes de escutar a injúria, ela
mesma teria pronunciado a frase: ‘Eu venho do salsicheiro’. A paciente então revela o
que ouviu: “porca” foi a injúria a alucinatória.
Lacan dirá, então, que o a minúsculo é o senhor que ela encontra no
corredor (não mais o eu, moi), e que o a’ é a pessoa que nos fala e que falou com o
delirante, o que diz “Eu venho do salsicheiro” (1955-56: 64). Ele complementa ainda
que o S neste exemplo é de quem se diz “Eu venho do salsicheiro”, e que não A
maiúsculo. Na alucinação auditiva verbal
29
, A estaria excluído e sua existência seria
indicada pela forma de alusão.
Observamos, a partir deste exemplo, que Lacan faz uma inversão entre os
elementos do eixo imaginário, a e a’, tal como ele os concebe em O seminário, livro II
(1954-55), embora reproduza a grafia do esquema L, na lição inaugural deste seminário
(1955-56: 22), tal como o fez em sua apresentação no seminário II.
Podemos então supor que esta mudança de perspectiva com relação ao eixo
imaginário se deu no interior do próprio seminário III (1955-56), mudança esta
corroborada na Questão preliminar (1957-58a). Assim, o eu será considerado como a’ e
o outro como a, evidenciando, acreditamos, a importância do outro na formação do eu.
Voltando ao exemplo da alucinação auditiva verbal, Lacan afirmará que,
para esta mulher, o circuito se fecha no eixo imaginário. Ele faz uma distinção entre
neurose e psicose com base em duas maneiras possíveis de falar de S: “ou dirigindo-se
verdadeiramente ao Outro e recebendo sua mensagem sob a forma invertida, ou
indicando sua direção, sua existência, sob a forma da alusão” (1955-56: 64).
Este Outro, portanto, Lacan o enfatiza, precisa ser instituído como tal
através de seu reconhecimento. Na neurose, uma estrutura de reconhecimento do
Outro para além da relação imaginária. O Outro é instituído pelo sujeito, reconhecido
29
Ressalte-se que não se pode afirmar a generalização desta afirmativa sobre a alucinação auditiva verbal
para a psicose como um todo.
55
como tal, e no que é reconhecido pode reconhecer o sujeito, numa relação de
reciprocidade. Esta estrutura de reconhecimento é, como tal, inconsciente, e aponta para
um além da relação imaginária, na medida em que visa o reconhecimento do Outro.
Lacan exemplifica esta estrutura de reconhecimento através dos exemplos
do ‘Tu és minha mulher’, ou ainda ‘Tu és o meu mestre’, que implicam,
reciprocamente, em um ‘Eu sou o teu homem’, ou ‘Eu sou teu discípulo’.
na alusão, Lacan, neste seminário, fala de uma “exclusão do Outro” (:
64):
Na fala delirante, o Outro está verdadeiramente excluído, não verdade
atrás, tão pouca que o sujeito não e nisso nenhuma verdade, e que fica
em face desse fenômeno, bruto no fim das contas, na atitude da perplexidade.
É preciso muito tempo antes que ele tente restituir em torno disso uma
ordem a que chamaremos a ordem delirante. (1955-56: 65, grifos nossos)
Esta retomada do esquema L nos interessa, como depreendemos da citação
acima, na medida em que Lacan, a partir dele, enfatiza a ordem delirante como uma
tentativa, a posteriori, de restituição.
Na alucinação, tal como Lacan a articula neste momento, temos o retorno,
sob a forma de significantes não-encadeados (fora da cadeia), de algo que é da ordem do
significante foracluído, índice da dissolução do vínculo linguagem-lei:
No lugar em que o objeto indizível é rechaçado no real, uma palavra faz-se
ouvir, porque, vinda no lugar daquilo que não tem nome, ela não pode
acompanhar a intenção do sujeito sem dele se desligar pelo travessão da
réplica. (Lacan 1957-58a: 541)
Trata-se, portanto, de uma ruptura com o sistema de linguagem
30
, muito
embora, como lembra Muñoz (2005: 92), possa indicar uma nomeação para o ser do
sujeito. Já o delírio comporta um trabalho, uma tentativa de encadeamento. Veremos
mais adiante como este trabalho se dá.
30
Dizer que há, na alucinação, uma ruptura com o sistema de linguagem é diferente de dizer que uma
ruptura com a linguagem enquanto tal.
56
É importante ressaltar, quanto a esta idéia de exclusão do Outro na psicose,
que na Questão preliminar (1957-58a), Lacan retoma o esquema L e se retifica,
afirmando que o que está excluído da psicose não é o Outro como tal, e sim o
significante do Outro como lugar da lei.
Lacan, neste escrito, se refere à psicose como um “processo pelo qual o
significante ‘desatrelou-se’ no real, depois de declarada a falência do Nome-do-Pai
isto é, do significante que, no Outro como lugar do significante, é o significante do
outro como lugar da lei.” (Lacan 1957-58: 590)
Esta afirmação nos permite nuançar uma distinção entre simbólico e Nome-
do-Pai. Podemos ler nessa passagem uma certa precisão que distingue o Outro do
significante e Outro como lugar da lei. Na psicose, não teríamos essa duplicação do
Outro promovida pela inscrição do Nome-do-Pai.
Nessa perspectiva, o Outro está presente como lugar do significante, ainda
que esse Outro não seja marcado pelo significante da lei. Trata-se, portanto, da presença
de um Outro consistente, intrusivo, sem barra.
No próprio seminário III (1955-56: 52), Lacan diz que “desde que o sujeito
fala, há o Outro com A maiúsculo”. Não restam dúvidas, portanto, de que para Lacan há
Outro na psicose, embora este Outro não esteja submetido à lei fálica. Trata-se de uma
estrutura que mantém com o Outro uma relação distinta daquela mantida na neurose.
Vejamos o esquema L com a nova grafia:
Figura 2 – Esquema Z
Entre a e a’ o plano do espelho. O eu está em relação direta com o outro
imaginário, e tal relação Lacan a situa através de uma lógica de exclusão, por si mesma
alienante, alienação mortífera:
57
Se em toda relação, mesmo erótica, com o outro, algum eco dessa relação
de exclusão, é ele ou eu, é que, no plano imaginário, o sujeito humano é
assim constituído de forma que o outro está sempre prestes a retomar seu
lugar de domínio em relação a ele (...) é por isso que todo equilíbrio
puramente imaginário com o outro está sempre condenado por uma
instabilidade fundamental. (Lacan 1955-56: 111)
Seguindo Lacan, para impedir o conflito, a ruína resultante desta relação, é
preciso uma lei, uma cadeia, uma ordem simbólica, a intervenção da ordem da palavra,
isto é, do pai” (: 114). Esta ordem, longe de ser natural, precisa ser realizada, superposta
através de um trabalho a posteriori.
Este terceiro mediador e pacificador funciona aí como um “modelo de
harmonia” (: 114), regulando, através do encadeamento metafórico, os significantes que
incidem sobre o sujeito. Analisaremos agora este terceiro elemento e suas funções.
2.2 A METÁFORA E A DIMENSÃO METAFÓRICA DO PAI
A metáfora não é a coisa no mundo das mais
fáceis de falar.
Jacques Lacan
Antes de entrarmos mais propriamente na função metafórica do pai, através
da qual discutiremos a metáfora paterna e sua foraclusão, julgamos pertinente nos
atermos nesta idéia de metáfora, na medida em que, no contexto de nossa discussão, o
estatuto da metáfora adquire lugar central. Esta noção é essencial aos desdobramentos
de nosso trabalho, para que possamos circunscrever em que consiste uma metáfora
delirante, que processo peculiar de produção de sentido é este.
Convém, pois, traçar algumas linhas sobre esta noção dentro de seus
desdobramentos na teoria lacaniana, tentando balizar o que Lacan, neste momento de
seu ensino, entende como metáfora e em que concepção de metáfora ele se apóia e se
sustenta.
58
O substantivo metáfora, do grego metaphorá, é definida, pelo dicionário
Aurélio, como o “tropo que consiste na transferência de uma palavra para um âmbito
semântico que não é o do objeto que ela designa, e que se fundamenta numa relação de
semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado; translação.” (: 1126)
Depreendemos, desta definição, que a idéia de metáfora, ao menos em sua
origem, sustenta-se na possibilidade de um processo comparativo entre os termos,
fundado em relações de semelhança. O termo translação, retirado do dicionário,
conserva esta idéia de transposição, mudança do sentido original, ou melhor, do campo
semântico original.
Dentro dos recursos estilísticos, a metáfora é considerada um recurso
semântico, que, também pela definição do dicionário, é o “estudo das mudanças ou
translações sofridas, no tempo e no espaço, pela significação das palavras;” ou ainda “o
estudo da relação de significação nos signos e da representação do sentido dos
enunciados.” (: 1565)
A definição do dicionário, entretanto, oculta o caráter problemático deste
conceito, tanto no campo do debate filosófico (a metáfora é ou não um obstáculo ao
conhecimento, à filosofia em especial?) quanto no campo lingüístico (a metáfora porta
um sentido literal? Este sentido é aberto ou não?)
31
.
Não é objeto de nosso estudo a dissecção deste conceito nos campos da
filosofia e da lingüística, mas vale pontuar que grande parte da tradição filosófica
ocidental é tributária da concepção de metáfora sistematizada por Aristóteles (1997
XXI: 42), que assim a define: “A metáfora é o transporte para uma coisa de um nome
que designa uma outra coisa, transporte de gênero para espécie, ou de uma espécie para
gênero, da espécie para a espécie ou segundo a analogia.”
Interessa-nos apontar que, se, para Aristóteles, a metáfora é definida como
um tipo de analogia, onde o sentido novo produzido pela metáfora aponta para um
campo semântico original, para Lacan, ao contrário, e esta é a grande subversão que ele
opera nesta noção, a metáfora comporta um verdadeiro salto, uma interrupção, um corte
nas proporções entre os termos.
31
Estas questões são desenvolvidas, de maneira sucinta, na tese de Rego (2005).
59
Sua concepção de metáfora rompe com a linearidade da definição
Aristotélica, na medida em que desamarra o sentido produzido pela metáfora de um
significado original, referido a um campo semântico de base: “(...) a metáfora se coloca
no ponto exato em que o sentido se produz no não-senso (...)” (Lacan 1957: 512)
Roman Jakobson é uma referência fundamental para esta concepção de
metáfora articulada por Lacan. Embora este lingüista russo se volte para o estudo da
língua enquanto possibilidade de construção de sentenças que objetivem a comunicação,
ele considera que o ruído, a não comunicação, também são possibilidades do dizer,
abrindo margens para o que Lacan articula como “o ponto em que a ordem da ngua se
rompe” (Mariani 2004: 58).
32
Jakobson (1969), nessa perspectiva de consideração sobre o aspecto do
ruído presente na linguagem, volta-se para o estudo das afasias, que analisa a partir das
relações sintagmáticas e paradigmáticas desenvolvidas por Saussure, bem como do
funcionamento da metáfora e da metonímia.
No artigo Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia (1969),
Jakobson propõe uma classificação das perturbações afásicas tomando por base os
aspectos da linguagem prejudicados nos diferentes tipos de afasia, o que requer uma
análise profunda da estrutura da linguagem.
O autor se questiona, então, sobre o objeto de estudo da lingüística, que em
sua opinião deve contemplar a linguagem em sua “dissolução”, as perturbações da
linguagem, discussão que até então passava ao largo das ciências da linguagem.
Para Jakobson, os métodos lingüísticos podem iluminar os dados clínicos
sobre as afasias, e estas, por sua vez, têm algo a ensinar sobre a linguagem. E isto na
medida em que as afasias demonstram exatamente esse curto-circuito na dimensão
comunicativa da linguagem, decorrente de um desarranjo nas relações sintagmáticas ou
paradigmáticas.
No ‘distúrbio de similaridade’, temos um desarranjo na ordem das relações
de seleção e substituição, ficando comprometida a dimensão metafórica. Nos ‘distúrbios
32
Vale situar que, em Jakobson, esta abertura para a dimensão do ruído, da não comunicação, é relativa à
influência da poética em seu percurso (Jakobson era amigo dos poetas Maiacóvski e Khlebnikov), o que
traz conseqüências para sua elaboração sobre a língua. Para o autor, “só é possível pensar a língua a partir
do momento em que ela integra a possibilidade da poesia” (Mariani 2004: 60). Esta perspectiva é
duramente criticada pela perspectiva lingüística norte-americana.
60
de contigüidade’, por sua vez, o desarranjo é metonímico, da ordem da combinação, do
alinhamento das palavras.
Convém sublinhar que Jakobson apóia como fundamento dos processos
metafórico e metonímico as noções de sintagma e paradigma presentes no texto de
Saussure, aos quais Lacan, por sua vez, remete à condensação e ao deslocamento
presentes no texto freudiano.
Em o Seminário, livro III: as psicoses (1955-56), Lacan faz referência
exatamente aos estudos de Jakobson sobre as afasias, em sua dimensão de falha, de
tropeço no processo comunicativo. É somente a partir deste tropeço que o sentido
metafórico emerge.
Nesta mesma perspectiva, em A metáfora do sujeito (1961), Lacan se
endereça de modo contundente a Chaim Perelman, defensor da retórica argumentativa,
que sustenta a aproximação da metáfora à analogia. Lacan, neste texto, se refere à
metáfora como “formação do inconsciente por excelência” e “ponto mais ardente do
pensamento (: 903), assentada numa dimensão de injúria, de violência, irredutível a uma
mera linearidade.
Percebemos aqui o quanto Lacan é fiel à idéia freudiana da inadequação
entre a palavra e a coisa. É em virtude mesmo de tal inadequação que a verdade não
pode ser dita toda, de modo que o campo metafórico se abre a partir da possibilidade de
corte para com o sentido anterior. Veremos adiante como esta concepção de metáfora
serve a Lacan na formulação do seu conceito de metáfora paterna.
No texto A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud
(1957: 519), Lacan apresenta a fórmula da metáfora em geral, alçando a metáfora à
condição de possibilidade do advento da significação: “O sinal +, colocado entre
parênteses, manifesta aqui a transposição da barra - , bem como o valor constitutivo
dessa transposição para a emergência da significação.”
f (S’) S S (+) s
S
Nesse texto, Lacan (1957: 510) faz uso de um exemplo de metáfora, que já
havia sido citado em o Seminário, livro III: as psicoses, extraído do poema de Victor
Hugo, denominado “Booz erdomi”: “Seu feixe não era avaro nem odiento.”
61
Para a personagem blica Booz, na releitura feita pelo poeta, a paternidade
era tida como improvável em virtude da idade avançada. Contra as probabilidades, no
entanto, Booz engravida sua mulher Ruth. Vejamos este exemplo de metáfora recolhido
por Lacan:
S . $’ S I
$’ x s
S: feixe
S’: Booz (elemento recalcado em decorrência da substituição significante)
x: significação enigmática, desconhecida
s: significação induzida pela metáfora, o falo.
I: inconsciente
Percebemos como a mudança de sentido se produz em decorrência da
substituição significante, no caso do exemplo de Lacan, Booz por seu feixe. O efeito
metafórico, no caso a paternidade de Booz, brota entre dois significantes (feixe e Booz),
e um sentido novo se dá:
A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas
imagens, isto é, de dois significantes igualmente atualizados. Ela brota entre
dois significantes dos quais um substitui o outro, assumindo seu lugar na
cadeia significante, enquanto o significante oculto permanece presente em
sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia. (Lacan 1957: 510, grifos
nossos)
A mesma gica de substituição significante é encontrada na fórmula da
metáfora paterna, tal como apresentada em De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose (1957-1958a: 563):
Nome-do-Pai . Desejo da Mãe
Nome-do-Pai A
Desejo da Mãe Significado para o sujeito Falo
62
Nesta fórmula, o Nome-do-Pai está para o desejo da mãe, assim como o
desejo da mãe está para o significado para o sujeito. A significação do falo é
precisamente o efeito de sentido decorrente da substituição significante, onde o desejo
da mãe é substituído pelo Nome-do-Pai. Por essa via, um Nome é dado aos
deslocamentos da mãe. Instaura-se, assim, a dimensão metafórica do pai.
Essa dimensão simbólica do pai pai como símbolo -, Lacan a localiza no
terreno mesmo da obra freudiana, no “caráter inevitável da intuição freudiana” (1955-
56: 245), no mito freudiano do parricídio, ato de assassinar e devorar o pai, índice da
interiorização da lei e da passagem para a cultura.
Lacan se utiliza desta referência freudiana apoiado na hipótese do
inconsciente estruturado como uma linguagem, a partir dos novos desdobramentos do
pensamento que lhe é contemporâneo, exteriores à psicanálise, tais como,
especialmente, a Lingüística de Saussure e Jakobson e a Antropologia de Lévi-Strauss.
Desse modo, sua retomada do mito freudiano se sob novos elementos, a
partir dos quais estabelece, para este mito, uma certa gica estrutural apoiada em um
“fundamento literal” (Vidal 2005: 114). A metáfora paterna, ainda segundo Vidal,
permite a Lacan “falar como os matemáticos”.
Pela via do Édipo, Lacan situa a intervenção de um terceiro, a instância
paterna – pai entendido não enquanto pai biológico, mas enquanto função simbólica que
regula o gozo, mediatiza a relação da criança com a mãe, instaura a interdição – a lei da
proibição do incesto, da privação do falo materno, que vem significar para a criança o
lugar do desejo da mãe, barrando a mãe, e apontando para a sua castração (o Outro é
castrado, furado).
Destaque-se, no entanto, que a proibição que o pai faz intervir recai sobre a
mãe mais propriamente, tendo efeitos sobre o filho absolutamente estruturantes (Laia
2006).
Assim, no lugar desta mãe plena, inscreve-se agora o significante Nome-do-
Pai, por intermédio da metáfora paterna. A inscrição deste significante no campo do
Outro tem um efeito de interdição, de ciframento do gozo, regulando-o:
63
Esse é o estádio, digamos, nodal e negativo, pelo qual aquilo que desvincula
o sujeito de sua identificação liga-o, ao mesmo tempo, ao primeiro
aparecimento da lei, sob a forma desse fato de que a mãe é dependente de
um objeto, que já não é simplesmente o objeto de seu desejo, mas um objeto
que o Outro tem ou não tem. A estreita ligação desse remeter a mãe a uma
lei que não é a dela, mas a de um Outro, com o fato de o objeto de seu
desejo ser soberanamente possuído, na realidade, por esse mesmo Outro a
cuja lei ela remete, fornece a chave da relação do Édipo. (Lacan 1957-58b:
199)
Como não se trata de pai biológico, diz Lacan (1957-58b), sua carência na
família não equivale à sua carência no complexo. Na medida em que a entidade paterna
é correlata de uma representação simbólica, sua função é potencialmente aberta a
qualquer referente terceiro que possa se interpor na relação mãe-filho, desde que sua
intervenção seja de fato significante para a economia do desejo da criança.
A dimensão simbólica do pai, portanto, neste momento do ensino
lacaniano
33
, está para além das contingências do homem real, tendo seu suporte na
atribuição do objeto fálico. O pai na realidade é apenas o vetor da função simbólica que
representa, e não seu detentor. Sobre este ponto, diz Lacan (1957-58b):
Será que um Édipo pode se constituir de maneira normal quando não um
pai? [...] Percebemos que não é assim tão simples, que um Édipo poderia
muito bem se constituir mesmo que o pai não estivesse lá [...]. Os complexos
de Édipo inteiramente normais, normais nos dois sentidos, tanto
normatizantes, por um lado, quanto normais enquanto desnormativizam,
quero dizer, por exemplo, quanto a seus efeitos neurotizantes, seriam
estabelecidos de uma maneira exatamente homogênea aos demais casos,
mesmo que o pai não estivesse ali.
Tal é possível se a mãe apontar este homem como tendo lugar junto ao
seu desejo, indicando ao filho que é portadora de uma falta à qual este não está em
condições de preencher. O pai vem, portanto, pelo dito da mãe, como detendo o objeto
de seu desejo, o que atribui ao pai um lugar simbólico. Em elaborações posteriores,
contudo, Lacan indica que é essencial que esse pai compareça na realidade,
33
É essencial ressaltarmos que o lugar do pai no texto lacaniano é bastante complexo, exigindo
desdobramentos que estão para além dos objetivos deste trabalho. Limitamo-nos a cercar a questão a
partir da referência simbólica ao significante do Nome-do-Pai, ou seja, à operação metafórica como tal,
objeto de nosso interesse. Cumpre, no entanto, mencionar que Lacan não deixa de abordar, em sua obra, o
pai em suas funções reais e imaginárias, como enfatiza Porge (1998). O próprio encaminhamento do
ensino de Lacan coloca em parênteses o modelo edípico, na medida em que outros significantes são
passíveis de fazer operar esta função.
64
autenticando sua presença, intervindo assim como aquele que tem o falo, que tem um
lugar junto ao desejo da mãe.
Nessa operação essencialmente simbólica está em jogo o momento da
castração, onde o pai (simbólico) se interpõe nessa relação mãe-filho. Não sendo o falo,
a criança percebe também não -lo, sendo o pai seu suposto detentor. É assim que
Lacan retoma a questão da castração no contexto da constituição da ordem simbólica,
ou seja, relativa à estrutura do sujeito.
Se essa mãe, entretanto, em sua relação com a sua própria falta, não suporta
essa ida e vinda, coloca esta criança no lugar de objeto cuja função é tamponar esse
vazio, está de saída comprometida uma possível intervenção paterna no sentido de
apontar um para-além da criança: “É no que seu desejo que está para além ou para
aquém no que ela diz, no que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que
seu desejo é desconhecido, é nesse ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito.”
(Lacan 1964: 207)
Ao pai morto de Freud, portanto, corresponde o pai simbólico de Lacan, que
transmite à criança o significante fálico (pai doador), através do qual é possível à
criança deixar de ser o falo para poder tê-lo, inserindo-se assim na dialética do ter.
Desse modo, tem-se como condição para a produção de um sujeito desejante
a descoberta da falta no Outro (castração simbólica - inscrição da castração no Outro), o
que desloca a criança de uma posição de assujeitado ao que supõe ser o desejo da mãe a
uma posição de sujeito desejante. Para que o humano possa se situar como sujeito,
portanto, é preciso abrir mão desse colamento com a mãe, o que se dá pela incidência da
função simbólica paterna.
Pela via da Lei do Pai, o sujeito tem acesso à via do desejo, ou seja, ao gozo
fálico que, no entanto, não o impede de insistir na busca de uma completude que é, ela
mesma, impossível.
Ressalte-se mais uma vez que para Lacan a função deste pai é a de uma
metáfora, na medida em que um significante (S1, significante do desejo da mãe,
65
significante fálico para sempre recalcado recalque originário) é substituído por outro
(S2, o significante paterno, Nome-do-Pai), advindo daí a significação fálica.
É, portanto, pela via dessa substituição significante designada de Metáfora
Paterna, operação inaugural correlativa ao recalque originário, que um novo
significante, o significante Nome-do-Pai, tomará o lugar do significante do desejo da
mãe, este último a partir de então tornado inconsciente. Se este recalque originário do
significante do desejo da mãe não se dá, compromete-se todo o processo da Metáfora
Paterna.
O que o significante Nome-do-Pai faz, portanto, é dar uma resposta ao
desejo enigmático da mãe, dando a este uma significação que é fálica, a partir daquilo
que Lacan chama de invocação do Nome-do-Pai.
Digo exatamente: o pai é um significante que substitui um outro
significante. Nisso está o pilar, o pilar essencial, o pilar único da intervenção
do pai no complexo de Édipo. [...] A função do pai no complexo de Édipo é
ser um significante que substitui o primeiro significante introduzido na
simbolização, o significante materno. (Lacan 1957-58b: 180)
Se, para Lacan, um significante é aquilo que representa o sujeito para um
outro significante, é com a Metáfora Paterna que a cadeia de significantes é instaurada,
na medida em que S2 substitui S1, fazendo advir o sujeito, que comparece, de modo
essencialmente evanescente, nesse deslizar significante, sendo, pois, segundo Lacan,
tomado como efeito do significante.
O pai não é um objeto real, então o que é? [...] o pai é uma metáfora. O que
é uma metáfora? [...] é um significante que vem no lugar de um outro
significante [...] O pai é um significante que substitui um outro significante,
e está o alcance, o único alcance essencial do pai ao intervir no complexo
de Édipo. (Lacan 1957-58b: 69)
Assim, o que está em jogo, tanto na constituição do sujeito quanto na sua
estrutura de divisão psíquica, é uma substituição significante. A divisão do sujeito se
coloca em sua relação de dependência com a ordem simbólica, a partir desse processo
designado de metáfora do Nome-do-Pai.
66
O sujeito do inconsciente, desse modo, advém de um processo de divisão
onde está em jogo a ordem significante enquanto tal, em seu efeito de causação do
sujeito
34
,
e que tem como conseqüência sua alienação na linguagem. O que resta dessa
operação significante é uma Spaltung, sujeito barrado, estrutura de divisão psíquica ($),
que decorre da instauração da cadeia de significantes, a via do desejo, o que requer sua
submissão à ordem simbólica.
Ocorre que, na medida em que o objeto do desejo está, pela via do recalque
originário, para sempre perdido, o desejo está fundamentalmente para além dos objetos
substitutivos. Assim, todo esse esforço incansável feito na busca desse objeto traz a
marca de um impossível, que o objeto encontrado não é, e nem teria como ser, o
objeto perdido, instaurando-se uma hiância, um vazio entre sujeito e objeto. É por não
ser o desejo nunca plenamente satisfeito que Lacan vai falar no deslizar metonímico do
desejo ou ainda objeto metonímico, atrelado inexoravelmente, se se trata de uma
neurose, à dimensão da linguagem.
O significante Nome-do-Pai é exatamente esse significante que, referido ao
Édipo, estrutura a neurose, permitindo um mínimo de ligação entre significante e
significado. Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose
(1957-58a), Lacan se refere ao Nome-do-Pai como o significante da Lei, significante
que assegura, ordena o conjunto dos significantes. Pode-se dizer que o significante
Nome-do-Pai é aquele que promove um corte, uma barra, qual seja, a operação da
castração.
Nesse mesmo texto, a função metafórica do pai é articulada por Lacan
através do esquema R, que matiza o campo da realidade
35
na neurose. No esquema R, o
esquema L por nós apresentado é ampliado
36
.
O esquema R apresenta a seguinte composição: um ternário imaginário
composto por φ - o falo imaginário, i - a imagem especular (semelhante) e m - o eu
34
Lacan fala de ex-sistência do sujeito como efeito da ordem simbólica, ou seja, como efeito do corte
produzido pelo significante.
35
O R deste esquema diz respeito à realidade, e não ao real. O real está velado sob o campo da realidade.
36
Notemos que, no esquema R, estão presentes os elementos do esquema L, S, a, a’ e A.
67
(moi) e um ternário simbólico formado pelos pontos M - Outro primordial materno, P -
Nome-do-Pai e I - Ideal do eu.
Entre estes dois triângulos, encontramos um quadrilátero formado pelos
vértices MimI, que Lacan situa como sendo o campo da realidade. No ano de 1966, uma
importante nota de rodapé é acrescida ao texto De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose (1957-58a: 559-560), onde Lacan afirma que o campo da
realidade se mantém pela extração do objeto a
37
.
Perdido o objeto a, o neurótico
procurará reencontrá-lo pelo viés da fantasia. A extração do objeto a é efeito da
operação da castração. Na ausência de tal extração, o campo da realidade não se
estabiliza.
Ainda na referida nota de rodapé, Lacan esclarece que a faixa MimI é uma
banda de Moebius, de modo que “o esquema R é num plano projetivo” (Lacan 1957-
58a: 560). A faixa terá uma estrutura möbiana desde que juntemos m e M e i a I. Esta
faixa, ao mesmo tempo, separa e une os dois triângulos.
Figura 3 - Esquema R
Cumpre-nos uma observação sobre os pontos M e P do esquema R. Vimos
que, na neurose, o significante do Nome-do-Pai duplica o campo do Outro: entre o lugar
do significante, Outro primordial correlato da primeira simbolização decorrente da
37
O objeto a surge na obra lacaniana a partir do seminário, livro X: a angústia (1962-63), e seu
desenvolvimento prossegue em o seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
(1964). Para sua formulação, é essencial a idéia de que, na passagem do auto-erotismo para o narcisismo,
uma parcela, um resíduo do investimento libidinal que não é transposto para a imagem unificada.
Permanece, portanto, como um resto, algo de libidinal não traduzível em imagem, uma reserva irredutível
de libido: “Nem toda imagem libidinal passa pela imagem especular. um resto”. (Lacan 1962-63: 48-
49)
68
ausência da mãe, e o lugar da lei. No esquema R, esse desdobramento do campo do
Outro é grafado através das letras M e P, sendo M o lugar do significante e P o lugar da
lei, Nome-do-Pai no lugar do Outro.
Mais adiante apresentaremos o esquema I
38
, que se produz a partir de uma
torção do esquema R e onde Lacan procura matizar graficamente a estabilização
schereberiana. Antes, porém, de discutirmos a noção de estabilização a partir do
esquema I, convém situar a noção de ponto de basta, crucial para que possamos
circunscrever a operação metafórica.
2.2.1 O Ponto de basta
A noção de ponto de basta
39
(ou point de capiton) é bastante importante neste
contexto. Ela responde, de certo modo, à crítica de Perelman a essa leitura lacaniana da
metáfora, segundo a qual, sem o raciocínio por analogia, o deslizamento dos
significantes tende ao infinito, introduzindo o caos no simbólico.
Sem esta noção, de fato, o fluxo de significantes, seu deslizamento tenderia
ao infinito. O ponto de estofo detém esse deslizamento contínuo da significação, o que,
no grafo do desejo, corresponde aos pontos em que $ toca a cadeia significante SS’,
permitindo que, num só-depois, retroativamente, um dado signo encontre a sua
significação, produzindo sentido.
A relação do significante com o significado [...] levou-me a fazer referência
ao célebre esquema de Ferdinand de Saussure em que vemos representado o
duplo fluxo paralelo do significante e do significado, distintos e fadados a
um eterno deslizamento um sobre o outro. Foi a propósito disse que forjei a
imagem, retirada da técnica do estofador, do ponto de basta. É preciso que
em algum ponto, com efeito, o tecido de um se prenda ao do outro, para que
saibamos a que nos atermos, pelo menos nos limites possíveis desses
38
Ver item 3.4.
39
Este termo, no uso comum, corresponde ao ponto onde as linhas de costura de um estofamento se
encontram. Neste momento, estamos trabalhando a hipótese de que o Nome-do-Pai funciona como ponto
de basta, via operação metafórica. Mais adiante, sustentaremos a hipótese de que o delírio é um modo
possível de fazer um ponto de na ausência do recurso do Nome-do-Pai.
69
deslizamentos. Existem pontos de basta, portanto, mas eles deixam uma
certa elasticidade nas ligações entre os dois termos. (Lacan 1957-58b: 15)
Figura 4 - Grafo do desejo
Para Lacan, o significante do Nome-do-Pai, em sua função de ponto de
basta, permite uma certa ordenação da cadeia, detendo minimamente o deslizamento
significante, na medida em que ele é um significante sem sentido, ou seja, não remete a
nenhuma outra significação.
Na ausência de um vínculo natural que ligue palavra e coisa, o Nome-do-Pai
comporta essa função essencial de amarração, de articulação da cadeia significante. O
Pai, diz Lacan (1955-56: 359), introduz “uma ordem, uma ordenação matemática cuja
estrutura é diferente da ordem natural”.
Posteriormente, em Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960: 820),
Lacan define o ponto de basta como aquele “pelo qual o significante detém o
deslizamento da significação, de outro modo indefinido.”
Podemos dizer a noção de ponto de basta é correlativa à idéia de que o pai é
um furo no Outro, um furo que estabiliza o campo do Outro, o torna minimamente
ordenado:
Em torno desse significante, tudo se irradia e tudo se organiza, como nessas
linhazinhas de força formadas à superfície de uma trama pelo ponto de basta.
É o ponto de convergência que permite situar retroativa e prospectivamente
tudo o que passa nesse discurso. (Lacan 1955-56: 303)
70
Na falta desse ponto de basta, enfatiza Maleval (2002), a cadeia se
desestrutura, provocando uma irrupção no real de significantes desconectados, não
dialetizáveis.
Na psicose, vemos que é possível pensar em uma certa amarração entre
significante e significado que passe não pela via do Nome-do-Pai, mas por outras vias
que o substituam, como, por exemplo, a certeza delirante. A certeza delirante, nesse
sentido, seria um sucedâneo do ponto de basta. Trata-se de um ponto de basta forjado,
produzido através de um trabalho de estabilização que o delírio pode veicular. No ponto
da certeza delirante, um significante não remete a outro significante.
Numa discussão sobre a questão da crença, Melman (1997) situa a dimensão
da crença neurótica (e não certeza) como a crença de que alguém, em algum lugar,
que sabe. Temos então, na neurose, uma certa crença no Outro e no inconsciente.
Podemos inferir que esta crença é correlata da inscrição do Nome-do-Pai no campo do
Outro.
Na paranóia, teríamos essa crença comprometida, instaurando a questão da
descrença paranóica
(Unglauben
40
).
Na ausência da dimensão da crença, o risco de ser
enganado é permanente. Neste ponto, Melman estabelece uma diferença sutil, porém
essencial, entre a dimensão da crença e a dimensão da certeza. Na certeza, ao contrário
da crença, temos um campo não-dialetizável, onde o saber assume um aspecto absoluto,
totalizante.
Lacan fala em ‘crença delirante’ a propósito dessa dimensão de certeza:
A realidade não é o que está em causa. (...) O sujeito admite (...) que esses
fenômenos são de uma outra ordem que o real, ele sabe bem que a realidade
deles não está assegurada, admite mesmo até um certo ponto a sua
irrealidade. Mas contrariamente ao sujeito normal para quem a realidade lhe
chega de bandeja, ele tem uma certeza, que é a de que aquilo de que se trata –
da alucinação à interpretação lhe concerne. Não é da realidade que se trata,
mas de certeza. (...) Essa certeza é radical. Eis o que constitui o que se
chama, com razão ou sem, o fenômeno elementar, ou ainda, o fenômeno mais
desenvolvido, a crença delirante. (1955-56: 91)
40
Lacan utiliza este termo para fazer referência ao que Freud situa como essa descrença, ou ainda, recusa
da crença presente na paranóia. Lembremos ainda que, em seus escritos iniciais, ainda no Rascunho H,
Freud valoriza uma certa formulação da paranóia que a descreve como ‘psicose intelectual’.
71
Na mesma linha de argumentação, Vandermersch (2000) situa a certeza do
paranóico como referida não ao conteúdo do significado (quanto ao conteúdo
incerteza, perplexidade), mas ao fato de que signos e que estes signos concernem ao
sujeito, o visam. O autor segue seu raciocínio esclarecendo que a certeza do paranóico
não está fundada em uma dúvida primeira - dúvida quanto ao que o Outro quer de mim,
dúvida que elide o sujeito.
É importante frisar que nem todos os psicóticos encontrarão um ponto de
certeza. Esta é uma aposta, que pode servir a uma estabilização ou não. A certeza,
segundo entendemos, nem sempre é elemento de uma estabilização, como por exemplo,
na certeza psicótica de que o Outro quer o mal do sujeito, o persegue, quer sua morte.
Antes de articularmos este trabalho de estabilização, vamos nos ater ao que
Freud propõe como mecanismo da psicose, assentado na carência da inscrição desse
significante paterno no lugar do Outro.
72
Capítulo 3 – DELÍRIO E ESTABILIZAÇÃO NA PARANÓIA
“É preciso recolocarmos incessantemente
questão de saber por que somos tão apegados à
questão do delírio”.
Jacques Lacan
3.1 A FORACLUSÃO DO NOME-DO-PAI
O ensino de Lacan na década de cinqüenta situa a psicose a partir de sua
causalidade significante. É nessa perspectiva que Lacan retoma o discurso delirante de
Schreber, a partir do qual constrói a tese da foraclusão do significante do Nome-do-Pai.
Vimos que, uma vez inscrito este significante no campo do Outro, este se
desdobra como lugar da Lei, permitindo a consistência da ordem simbólica. Tal
consistência é correlata da existência de um significante primordial capaz de instaurar
uma certa ordenação na cadeia significante. Essa ancoragem simbólica tem uma função
de pacificação, permitindo ainda que o sujeito possa se situar na partilha dos sexos.
É este um aspecto fundamental sustentado por Lacan no Seminário III
(1955-56) acerca da determinação das psicoses: não há, nessa estrutura, a inscrição do
Nome-do-Pai, da Lei no campo do Outro, de modo que este permanece não barrado (A),
o que compromete a cadeia significante, ou seja, o uso minimamente estruturado da
linguagem, que vem pela via da função paterna no Édipo.
Com a recusa do reconhecimento da castração, vê-se impossibilitada a
articulação simbólica estruturada via metáfora paterna. Assim Lacan demarca aquilo
que estaria no âmbito de determinação das psicoses:
Tentemos agora conceber uma circunstância da posição subjetiva em que ao
apelo do Nome-do-Pai corresponda, não a ausência do pai real, pois essa
ausência é mais que compatível com a presença do significante, mas a
carência do próprio significante. (...) A Verwerfung será tida por nós,
portanto, como foraclusão do significante. No ponto em que, veremos de
que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um
73
puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará
um furo correspondente no lugar da significação fálica. (Lacan 1957-58a:
563-564)
41
No texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose
(1957-58a), Lacan formaliza o conceito de foraclusão do Nome-do-Pai, proposto por ele
na última lição do Seminário III: as psicoses (1955-56).
Lacan vai retomar o termo freudiano Verwerfung, propondo a utilização do
termo Forclusion (foraclusão), alçando-o à condição de uma posição específica da
linguagem na psicose, onde o significante Nome-do-Pai, chamado a intervir na metáfora
paterna, não intervém, sendo radicalmente rejeitado, foracluído no lugar do Outro.
O termo foraclusão, Lacan o retira da terminologia jurídica, onde este é
sinônimo de preclusão ou prescrição. Na preclusão, algo é lançado para fora do “mundo
jurídico” por não ter ocorrido nos prazos prescritos em lei. Assim, também nas psicoses,
algo é jogado para fora, fora da possibilidade de simbolização.
Rabinovitch (2001) destaca que, antes mesmo de que este termo fosse
empregado no campo jurídico, era bastante forte a sua significação no vocabulário
comum: “excluir, privar, expulsar, impedir, banir, cortar” (:16), acentuando assim o
poder de corte deste conceito, sua potência e irredutibilidade.
Convém enfatizarmos que Lacan não faz uma mera tradução do termo
freudiano, atribuindo a este termo um sentido próprio dentro da teoria psicanalítica, de
tal modo que a Verwerfung freudiana e a Forclusion lacaniana não são exatamente
noções coextensivas
42
. uma verdadeira intervenção conceitual lacaniana, a partir
da retomada de um termo freudiano.
A forclusão é, então, algo mais do que uma tradução. A Verwerfung é a
rejeição de certos significantes que ficarão para sempre ‘fora’ do
inconsciente. Consiste, pois, numa posição ativa do sujeito face ao
insuportável, um dos nomes do impossível. A forclusão não se reduz ao ato
de rejeição, mas também a seu efeito, ao modo de aparição do real. Fala
41
O conceito de pai real não é unívoco na obra de Lacan. Nessa época, percebemos que ele se serve do
conceito de pai real e de pai da realidade de modo pouco diferenciado.
42
Eduardo Vidal (2005: 151) enfatiza que o termo foraclusão não é uma substituição do termo
Verwerfung, tanto que este último continua comparecendo no ensino de Lacan “sem ser recoberto pelo
conceito de forclusão”.
74
daquilo que, excluído do simbólico, (re-)aparece a partir do real. (Vidal 2005:
152)
Lacan procura acentuar que aquilo que retorna desde fora numa psicose não
é da ordem de uma projeção, o que estaria na ordem de um retorno do recalcado. Será
melhor, diz ele (1955-56: 58), abandonar tal termo. O termo projeção não se adéqua ao
conceito de foraclusão exatamente porque não se trata de retorno, mas de algo que vem
de fora.
Na psicose, neste momento de seu ensino, Lacan localiza uma carência
estrutural no campo simbólico, esse buraco no ponto exato onde a organização da
linguagem se dá, relativo à recusa do reconhecimento da castração (abolição simbólica).
Como vimos, a castração é um operador absolutamente estruturante, e sua não inscrição
implica numa ausência de ancoragem da qual Schreber dá testemunho:
Como já foi observado no capítulo IX, já naquela época a conversa das
vozes consistia predominantemente de um fraseado vazio, feito de
expressões monótonas, que se repetiam de modo cansativo, que além disso
traziam cada vez mais a marca da falta de acabamento gramatical, devido à
omissão de palavras e até mesmo de sílabas. (Schreber 1903: 164)
Não há, na psicose, a travessia do Édipo que culmina com a castração
simbólica e o advento da significação fálica, da inscrição da Lei no campo do Outro.
Desse modo, a questão da foraclusão diz respeito exatamente ao destino do significante
fálico na dialética edipiana. Em sua ausência, falta a referência fálica que organiza o
campo da realidade para um sujeito, na medida em que a realidade é correlata da
inserção em um certo jogo significante.
Lacan situa a foraclusão no nível de uma hipótese causal – causalidade
significante - e não no nível dos fenômenos, embora, no nível fenomênico, observemos
suas conseqüências. O que está na ordem fenomênica comparece como efeito de uma
dada posição no campo da fala e da linguagem.
Os distúrbios de linguagem, alçados no Seminário III (1955-56) à condição
de critério diagnóstico de psicose, fornecem indicativos de uma relação peculiar com o
75
significante. Isso porque a foraclusão do Nome-do-Pai concerne à dimensão do acesso
ao simbólico enquanto tal, à estrutura da linguagem, à falência da simbolização da lei,
de modo tal que palavra e coisa se confundem.
Assim, pode-se dizer que Lacan localiza na noção de foraclusão do
significante Nome-do-Pai a especificidade do processo psicótico, remetido, pois, a uma
teoria da linguagem. Na psicose, trata-se sempre do significante. Mas este não é isolado,
pois o significante faz cadeia. Se falta um, vai haver efeitos em toda a extensão da
cadeia significante. Lacan irá formalizar a causalidade significante na psicose nos
seguintes termos:
De que se trata quando falo de Verwerfung? Trata-se da rejeição de um
significante primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde
então neste nível. Eis o mecanismo fundamental que suponho na base da
paranóia. [...] um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo,
que não é o dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo significante.
(1955-56: 174)
Esse “acidente” no simbólico decorrente do vazio deixado pela ausência do
significante Nome-do-Pai que acarreta a impossibilidade de inscrição da castração-,
deixa o sujeito susceptível ao retorno desse vazio no real, tal como ocorre na alucinação,
e este é um ponto que Lacan no texto freudiano: “tudo o que é recusado na ordem
simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real.” (1955-56: 21). Na psicose,
aquilo que foi foracluído não pode ser simbolizado como castração, voltando assim no
registro da percepção.
Jean-Claude Maleval (2002), em um trabalho inteiramente dedicado à
análise e aos desdobramentos do conceito de foraclusão do Nome-do-Pai, destaca os
efeitos da ausência da operação metafórica na psicose. Não se produzindo nenhuma
substituição, diz ele, o desejo da mãe se apresenta como uma modalidade de gozo
impossível de dominar, na medida em que o sujeito não dispõe da significação fálica.
Em razão disto, o que é significado pelo Outro adquire uma significação enigmática, tal
como nos demonstra a perplexidade que acompanha os fenômenos elementares.
A alucinação nos é bastante paradigmática deste modo de funcionamento da
linguagem, onde observamos o caráter de imposição do significante que comparece no
76
real, fora da estrutura de reconhecimento, índice do vazio no lugar na significação.
Lacan destaca que toda alucinação é verbal, na medida em que se trata de um
significante foracluído. A alucinação traz à tona, necessariamente, a dimensão do
verbal, da voz.
Maleval (2002: 11) nos lembra que, apesar da grande difusão do conceito de
foraclusão no campo psicanalítico, poucos o conhecem bem. “Su difusión sólo se
superada por su desconocimiento.”
Acreditamos, ainda com esse autor, que muito embora a hipótese da
foraclusão no Nome-do-Pai adquira sua potência em um momento do ensino de Lacan
em que o retorno a Freud se assenta em uma clínica psicanalítica estrutural, o desenrolar
do ensino de Lacan não prescinde da importância decisiva deste conceito. A
pluralização do Nome-do-Pai não é incompatível com a hipótese inicial da foraclusão
do Nome-do-Pai.
Maleval (2002) acentua o quanto é notável que Lacan se refira a foraclusão
do Nome-do-Pai como designando a estrutura específica da psicose mesmo com todo o
enriquecimento de seu ensino.
Isto não quer dizer, no entanto, acentua o autor, que ele não seja levado a
reconsiderá-lo a partir dos desdobramentos deste mesmo ensino: “Más bien parece que
vuelve a tomar impulso cada vez y que se va torciendo, sin romperse, al seguir la
corriente de las etapas principales de lo imagiario, lo simbólico y lo real que marcan el
desarrollo de la enseñanza lacaniana.” (Maleval 2002: 28)
Nesse mesmo sentido, Pérez (2006) se questiona o que teria se mantido da
metáfora paterna e da foraclusão do Nome-do-Pai após as diversas transformações às
quais Lacan submeteu seus conceitos, entre as quais a idéia de um “além do pai”, esse
deslocamento do acento sobre o pai.
Ele ressalta que inúmeros progressos da psicanálise são tributários desse
conceito, que é uma verdadeira homenagem a Freud e a Jakobson, e que a explicação
lacaniana da psicose seria impossível sem recorrermos à idéia de fracasso da metáfora
paterna.
77
Convém ressaltarmos que a foraclusão do Nome-do-Pai, embora condição
necessária, não é suficiente para provocar o desencadeamento de uma psicose, tanto que
psicoses que nunca são desencadeadas. Vejamos então as circunstâncias necessárias
para que se produza o desencadeamento de uma psicose.
3.2 O DESENCADEAMENTO NA PSICOSE
Em o Seminário, livro III: as psicoses (1955-56) e no artigo De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a), Lacan formula, em
relação à abertura de um quadro psicótico, uma teoria clássica do desencadeamento.
Nestes dois trabalhos, Lacan demarca uma posição descontinuísta em
relação ao desencadeamento da psicose. desencadeamento quando ruptura,
descontinuidade, daí Lacan dizer que na psicose não há pré-história.
Na contramão da concepção kraepeliniana, que afirma o caráter insidioso da
paranóia, ligado a uma evolução contínua, Lacan fala do desencadeamento como um
mecanismo de eclosão, relativo ao encontro do sujeito com um significante ao qual ele
não pode responder, remetendo-o à foraclusão do Nome-do-Pai e à ausência de
significação fálica.
É a partir do estudo das condições do desencadeamento do presidente
Schreber que Lacan delineia este paradigma do desencadeamento. Sob esta perspectiva,
para que haja desencadeamento são necessárias pelo menos duas condições clínicas,
duas ordens de causalidade, uma estrutural e outra contingente.
A condição estrutural, não-contingente, é a foraclusão do significante
primordial do Nome-do-Pai, cuja ausência deixará um furo no lugar da significação
fálica (1957-58a). Esta condição, embora essencial, não é por si suficiente para levar
o psicótico ao desencadeamento.
É necessária ainda uma condição contingente, circunstancial, ocasional, qual
seja, um certo apelo ao significante Nome-do-Pai no lugar do Outro, provocando uma
ruptura relativa ao momento em que o Nome-do-Pai é convocado em uma posição
78
terceira numa relação baseada no par imaginário a a’. É preciso que “(...) Um-pai
venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes”. (Lacan 1957-58a: 584).
É necessário, pois, o encontro com Um-pai, entendido como uma exigência
simbólica à qual o sujeito não tem como responder, por não contar com o significante
da Lei. Esse Um-pai, não é “nada mais nada menos que um Pai real, não forçosamente,
em absoluto, o pai do sujeito, mas Um-pai” (1957-58a: 584)
Segundo Lacan, na psicose ocorre uma retração no esquema L, de modo que
o eixo imaginário e o eixo simbólico se recobrem (As’-----Aa), tendo por conseqüência
uma série de fenômenos imaginários relativos a essa presença maciça do Outro.
Diante do apelo desse elemento heterogêneo, o sujeito, até então ancorado
em uma identificação imaginária com o semelhante (eixo a a’ do esquema L), vê
rompido esse eixo, através da intervenção de um elemento que lhe é heterogêneo,
terceiro.
Este Um-pai, sendo irredutível à díade imaginária, não pode ser assimilado
ao eixo imaginário. O psicótico busca então um recurso simbólico com o qual não pode
contar. Ele chama o pai simbólico, e em seu lugar responde no Outro um puro e simples
furo:
Não tocamos aí, na nossa própria experiência, e sem ter de procurar mais
longe, no que está no cerne dos motivos de entrada na psicose? É o que se
pode propor de mais árduo a um homem, e ao que seu ser no mundo não
enfrenta tão freqüentemente é o que se chama tomar a palavra, eu entendo
a sua, o contrário mesmo de dizer sim, sim, sim à do vizinho. Isso não se
exprime forçosamente em palavras. A clínica mostra que é justamente nesse
momento, se sabemos referenciá-lo, que a psicose se desencadeia. (Lacan
1955-56: 285, grifos do autor)
Lembremos que, na psicose do presidente Schreber, o primeiro
desencadeamento se dá após o fracasso de sua candidatura para o Partido Nacional
Liberal, e o segundo e mais importante desencadeamento ocorre após a sua nomeação
como Juiz-Presidente da Corte de Apelação. A referida promoção teve um caráter
excepcional, fora da norma, e pôs em evidencia a falta da referência do Nome-do-Pai.
Esta posição lhe era, pois, impossível de assumir.
Podemos dizer, com Lacan, que o desencadeamento da psicose é correlato
de uma série de remanejamentos significantes e do desastre crescente do imaginário
(catástrofe imaginária ou cataclisma imaginário). O desencadeamento tem uma
79
incidência no campo das significações que até então sustentavam o sujeito em sua
existência
43
.
No momento do desencadeamento, o campo das significações, não ancorado
pela significação fálica, está susceptível de apresentar-se como o mais absoluto vazio ou
dotado da significação mais plena. O delírio, como veremos, é uma via possível de dar
sentido a essa experiência de perplexidade.
É importante enfatizar que o estudo sobre as psicoses não-desencadeadas
nos leva a interrogar se deveríamos pensar em desencadeamentos mais silenciosos, mais
discretos, menos ruidosos. Nesta linha de interrogação, Frederico (2008) questiona se
essa noção de desencadeamento presente no Seminário III e na Questão preliminar
abrange todos os casos de desencadeamento ou se precisaríamos alargar esta noção a
ponto de pensar em outros fatores desencadeantes.
Como nossa questão de trabalho requer uma psicose desencadeada, nos é
suficiente esta concepção clássica do desencadeamento psicótico. A referência deste
trabalho, portanto, é a do estudo de psicoses que apresentam uma descontinuidade em
seu curso, podendo ser pensadas a partir da teoria do desencadeamento clássico
formulada por Lacan no Seminário III (1955-56) e na Questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose (1957-58a). A partir daí, poderemos precisar este tipo
singular de estabilização através do trabalho do delírio. Vejamos, portanto, a questão da
estabilização.
3.3 A ESTABILIZAÇÃO NA PSICOSE
Encontramos, ao longo do ensino lacaniano, diversas terminologias para
tratar das estratégias de estabilizações nas psicoses (solução, suplência, amarração,
sinthoma são algumas delas). Para além da multiplicidade terminológica, encontramos
ainda diferentes formulações para a questão da estabilização.
43
Veremos, no capítulo 4, a partir de um caso de nossa clínica, a incidência do desencadeamento
psicótico no campo das significações que ancoravam a existência desse sujeito, com a conseqüente
perplexidade, seguida de uma séria de manifestações corporais.
80
Guerra (2007), em sua tese de doutorado, faz um mapeamento cuidadoso da
utilização destes termos ao longo dos textos e seminários de Lacan, e nos propõe a
seguinte sistematização de seu uso:
1. Estabilizações = soluções
2. Suplência = amarração
3. Sinthoma
Na linha adotada pela autora, estabilização (= solução) é um termo mais
geral que abriga em seu teto diferentes modalizações, como a estabilização pela via das
identificações imaginárias, a estabilização pelo trabalho de construção simbólica ou
ainda a passagem ao ato. Nesta perspectiva, existem estabilizações mais ou menos
precárias.
O termo suplência, por sua vez, comparece de diversas maneiras no ensino
lacaniano: “poderia implicar em promover um elemento no lugar de outro, como na
operação metafórica ou, por outro lado, em um acréscimo, em um suplemento.
Suplência, enquanto ato de suprir, implicaria em completar, substituir, fazer as vezes de,
preencher a falta de.” (Guerra 2007: 112-113). A autora aproxima a noção de suplência
à de amarração, como um modo de amarrar os três registros.
o termo sinthoma seria um tipo específico de suplência, ou seja, a
suplência em um ponto específico, que ataria os três registros através de um quarto
elemento, suplenciando seu desarranjo.
Não nos aprofundaremos nestes modos mais específicos de soluções, que
requerem necessariamente uma discussão topológica. Para os fins de nosso estudo, o
termo estabilização se presta adequadamente, desde que precisemos seu uso.
81
Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-
58a), Lacan fala em estabilização a propósito do esquema I, que é o esquema da
estabilização schreberiana. Neste esquema, a estabilização é concebida como efeito da
construção de uma realidade estabilizada, resultando de uma transformação do
esquema R. Discutiremos o esquema I mais adiante, especificando a noção de
estabilização aí sustentada.
Embora o termo estabilização se preste a algumas imprecisões
44
, é possível
sustentar seu uso, dando-lhe um sentido preciso dentro da psicanálise. Nesta
perspectiva, Colette Soler (2007) afirma que, através das noções de metáfora e de
suplência, que são específicas do vocabulário lacaniano, podemos circunscrever aquilo
de que se trata em uma estabilização.
A autora ressalta que, na Questão preliminar (1957-58a), texto
contemporâneo à Instância da letra no inconsciente (1957), a metáfora é entendida
como um princípio de estabilização, permitindo “fixar, ‘reter’ a significação” (Soler
2007: 196). Trabalhamos esta idéia a propósito do ponto de basta e da função
metafórica do pai, que cria um ponto de parada no deslizamento do significado sob o
significante.
Esta idéia da metáfora como princípio de estabilização nos será útil em nossa
discussão da metáfora delirante, que Soler (2007) identifica como uma metáfora de
suplência ou metáfora de compensação, correlativa à idéia de que a foraclusão do
Nome-do-Pai pode ser compensada por outros substitutos que exerçam a função de
estabilizadores para um sujeito, sendo a metáfora delirante um deles.
A partir dos anos 60, as formulações de Lacan sobre as psicoses passam a
contar com as elaborações acerca do objeto a, introduzidas em o Seminário, livro X: a
angústia (1962-63). Isto nos faculta um outro modo de abordar a questão da
estabilização nas psicoses, situando-a pelo viés da localização do gozo.
No prefácio a uma nova edição das memórias de Schreber (1966), Lacan
introduz o que denomina “o sujeito do gozo”, situando a paranóia como o que
44
Uma imprecisão em seu uso, a partir da perspectiva psicanalítica, seria confundir a estabilização com
um mero apaziguamento ou remissão sintomática, referida ao uso da medicação, sem um correlativo
trabalho do sujeito.
82
“identifica o gozo no lugar do Outro”, estando o sujeito no lugar de objeto do gozo do
Outro. Este Outro, não sendo barrado pelo significante da castração, inclui o gozo, na
medida em que não há a extração do objeto a, condensador de gozo. Nessa mesma
linha, em Alocução sobre as psicoses da criança (1967), Lacan afirma que toda
formulação humana tem como essência refrear o gozo.
Esta abordagem nos permite pensar, no trabalho de estabilização, em um
outro aspecto além da dimensão significante. Esse aspecto é corolário da idéia de que a
regulação do gozo pela linguagem deixa sempre um resto, sendo o objeto a o índice
desse elemento heterogêneo, apontando para uma falta estrutural no campo do Outro.
Essa inconsistência do Outro passa a ser entendida como uma falta constitutiva da
ordem simbólica enquanto tal, que se coloca para todo falante.
Maleval (2002) aponta que, no ensino de Lacan, no começo dos anos 60, o
Nome-do-Pai começará a ser entendido como o que organiza a incompletude do Outro.
Por não dispor da resposta fálica, ao psicótico é insuportável a proximidade com essa
hiância no campo do Outro, de modo que ele se obrigado a realizar um trabalho para
obturá-lo. O trabalho do delírio se situa como uma tentativa tanto de mobilizar novas
significações para a construção de uma nova realidade, como um esforço de localização
do gozo.
Acreditamos, com Soler (2007), que a abordagem da psicose por meio de
uma outra localização do gozo, embora mais ampla, não implica em uma superação da
abordagem pelo significante. Desde a Questão preliminar, ressalta a autora, estava
colocada, com a metáfora paterna, a incidência do Nome-do-Pai no sentido de uma
regulação do gozo.
Vale lembrar que, em Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo (1960),
Lacan diz que a linguagem promove uma barreira ao gozo e que o significante Nome-
do-Pai tem a função de regular o gozo que incide sobre o sujeito.
Entendemos, portanto, que a foraclusão do Nome-do-Pai tem incidências
sobre a regulação do gozo, de modo que encontramos, na psicose, uma presença do
gozo de forma excessiva, sem mediação. A construção delirante é uma tentativa (dentre
83
outras) de circunscrever o gozo, uma forma de tratamento significante do gozo,
diferente da regulação edípica.
Nessa mesma linha de argumentação, Alvarenga (2000: 18), em uma
discussão sobre o que caracteriza uma estabilização, sugere como hipótese-eixo a de
que “a estabilização é uma operação que circunscreve, localiza, deposita, separa ou
apazigua o gozo, correlativa de uma entrada em algum tipo de discurso, por mais
precário que seja”.
Gostaríamos de enfatizar que reconhecemos, para além da construção
delirante, serem inúmeras as saídas possíveis encontradas pelos psicóticos em suas
tentativas de localização do gozo
45
. O delírio é uma via, dentre outras, de localização, de
regulação do gozo na psicose. Trata-se de um trabalho onde o paranóico procura
articular o gozo e o Outro. Nem todos os psicóticos farão uso deste recurso, e mesmo
os que o fazem, não necessariamente encontrarão êxito por esta via. Pensemos, portanto,
nas possibilidades e limites deste tipo peculiar de trabalho que é o trabalho do delírio.
3.4 O DELÍRIO COMO SOLUÇÃO ELEGANTE
Examinaremos agora este tipo específico de trabalho da psicose que é o
trabalho do delírio, que iremos abordar em seu viés de restituição, como tentativa de
promover uma estabilização na psicose.
Discutiremos este trabalho de restituição a partir das considerações tecidas
anteriormente sobre a questão da estabilização, quais sejam, a de que o delírio é uma
construção que pode veicular uma inserção numa realidade e a de que o delírio pode
permitir uma localização de gozo.
Priorizaremos, neste desenvolvimento, o delírio em sua função de
estabilização, mesmo com a ressalva de que nem todo delírio é bem-sucedido quanto a
45
Colette Soler (2007), por exemplo, distingue, com base em Lacan, algumas saídas possíveis na psicose
para além do trabalho do delírio: o ato, a obra, a identificação imaginária e a sublimação criadora. Por
uma questão de delimitação, não vamos entrar nessas diversas saídas, mas é importante lembrar que um
mesmo sujeito pode fazer uso de mais de uma via em seu trabalho de estabilização. Não necessariamente
o sujeito faz uso de uma via exclusiva, como veremos no próximo capítulo, com um caso de nossa clínica.
84
esta função. Há autores, inclusive, que defendem que o delírio pode desestabilizar
(Antônio Beneti, por exemplo), mas esta não é a via de análise de nosso trabalho.
Vimos, no primeiro capítulo, que, desde Freud, a psicose traz questões que
fazem avançar a teoria e a clínica psicanalíticas. A análise das demências precoces é
fundamental na elaboração do conceito de narcisismo, no que permite mostrar a Freud
como que, diante de uma frustração, a libido pode retirar-se radicalmente dos objetos do
mundo e depositar-se no eu.
Ao contrário da neurose, onde o vínculo com os objetos do mundo é mantido
através da fantasia, na psicose, sem o recurso da fantasia, a retirada da libido dos objetos
é muito mais radical. A partir destas elaborações, Freud situa o delírio como uma via
possível de retorno da libido aos objetos, uma tentativa de reconstrução do mundo após
o seu fim, permitindo ao paranóico “poder viver nele mais uma vez”. (Freud 1911: 78)
Trata-se, como vimos em Schreber, da construção de uma nova significação,
não referida à articulação Édipo-castração. Esta nova significação, no entanto, preserva
a posição narcisista do eu, na medida em que o eu é tomado como objeto de
investimento libidinal.
O delírio é, para Freud, um “remendo no lugar que originalmente uma fenda
apareceu na relação do ego com o mundo externo” (Freud 1924a: 169), que se
através da construção de uma nova realidade que substitui a anterior, e que,
conseqüentemente, cria um mundo possível para o sujeito habitar. O delírio é, nessa
perspectiva, um segundo tempo no trabalho da psicose, posterior à perda da realidade, e
vem no sentido de repará-la.
Esta dimensão temporal fora destacada por Clérambault, ao considerar o
delírio como secundário ao que ele designa de automatismo mental. Com a noção de
automatismo mental, Clérambault busca algo que seja elementar na clínica da psicose,
primário, constituinte, tal como um ponto de partida. E isto ele situa no caráter
autônomo desses fenômenos, os quais ele designa de “neutros”, automáticos” e
“atemáticos”.
85
O que Clérambault nomeia de “caráter anidéico dos fenômenos psicóticos
(Lacan 1955-56: 14) refere-se, pois, à afirmativa de que um fenômeno fundamental
na base de uma psicose e de que esse fenômeno é automático, não compreensível e não
passível de inscrição histórica na vida do sujeito. Algo lhe ocorre como automático e
vindo de fora, trazendo em si um caráter enigmático, de perplexidade, índice de um
vazio de significação.
Lacan (1955-56) recolhe da noção de automatismo mental as condições
lógicas para articular uma leitura estrutural dos fenômenos da psicose. Trata-se,
portanto, de uma lógica, da apreensão de uma lógica peculiar que está na base, no
coração dessa estrutura clínica, e que Lacan refere a um tipo de relação com o
significante, onde se evidencia o caráter de imposição da palavra sobre o sujeito.
O delírio, para Clérambault, seria sempre secundário a isso que para o
sujeito incide como influência externa, daí Clérambault designá-lo de “superestrutura”:
“O Automatismo Mental (...) não comporta em si mesmo nenhum delírio, e um delírio
pode vir a se juntar a ele somente muitos anos depois de seu início.” (Clérambault 1924:
195)
Clérambault fora, portanto, sensível a esse caráter de posterioridade do
delírio com relação ao que se impõem como automatismo
46
. Para ele, o delírio é visto
como um modo de resposta diante disso que comparece como fenômenos que se
impõem ao sujeito como um corpo estranho, fenômenos estes que são índice daquilo
que Ferretto (1999: 101) denomina de “irrupção no psicótico do significante em sua
materialidade.”
Diante daquilo que para o sujeito incide como efeito da desamarração do
significante, diante do que comparece como palavra imposta, como um pensamento
antecipado, como um eco do pensamento, enfim, como pura exterioridade, abre-se a
possibilidade de que o sujeito possa, a partir de um certo tipo de relação com o
significante, realizar um trabalho.
46
Convém precisar que, para Lacan, o delírio é também um fenômeno elementar, índice do retorno do
significante no real, mesmo concordando com o mestre Clérambault quanto ao caráter de posterioridade
do delírio em relação ao que se impõe como vindo de fora.
86
O delírio, como campo de significação, pode conceder um lugar ao que
comparece para o sujeito como vindo de fora, sendo um tipo de resposta que o sujeito
irá dar diante da experiência de perplexidade decorrente da quebra da cadeia
significante.
Na psicose, vimos que na ausência da significação fálica, algo, vindo de fora,
visa o sujeito, concerne ao seu ser. O delírio é exatamente uma via de construção de um
saber sobre isso que incide sobre o sujeito, como tentativa de fazer barreira às invasões
do Outro.
A este tipo de trabalho, Lacan se refere como “solução elegante”,
especialmente desenvolvida em o Seminário, livro III: as psicoses (1955-56), e no
escrito De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a),
onde procura cernir a construção delirante a partir de um tipo de relação singular com o
significante.
Para Lacan, na via da análise freudiana, o trabalho de construção agenciado
pelo delírio, se bem sucedido, pode permitir ao sujeito, pela via da produção de uma
nova significação, situar-se de modo em que lhe seja possível, constituindo o Outro, ao
mesmo tempo ir precisando um lugar junto a esse Outro que lhe dê alguma sustentação.
Trata-se de uma tentativa de produzir uma separação entre o sujeito e o
objeto, descolando o psicótico deste lugar mortífero em que sujeito e objeto coincidem.
A posição de objeto, paradoxalmente, coincide com a tentativa de produzir um
distanciamento desta posição.
Vimos, a propósito de nossa discussão sobre o ponto de basta, que esse saber
produzido pelo delírio se situa num campo não-dialetizável, ancorado, fixado numa
dimensão de certeza que lhe é própria. A significação, portanto, cristaliza-se, congela-
se, não sendo passível de interpretação, e conseqüentemente não remetendo a uma outra
significação. Esse campo de significação é, pois, verdadeiramente sui generis, na
medida em que é próprio da significação remeter sempre a uma outra significação.
Invocando o valor concedido por Freud à dimensão do mistério, Lacan
assim se expressa sobre o mistério envolto na relação do psicótico com seu delírio:
87
uma afeição, um apego, uma presentificação essencial, cujo mistério
continua sendo para nós quase total, o mistério de que o delirante, o
psicótico, está unido ao seu delírio como a algo que é ele próprio. (1955-56:
246)
Tentemos agora precisar uma distinção entre delírio e metáfora delirante. Em
De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a),
encontramos bastante evidenciada a idéia de que a foraclusão é passível de
compensação, sendo a metáfora delirante uma espécie de metáfora de substituição, uma
formação restitutiva.
Nessa mesma linha, Soler (2007), ao discorrer sobre algumas saídas que o
psicótico inventa para tratar os retornos do significante no real e sua correlativa
emergência de gozo, situa a metáfora delirante como uma solução referida à construção
de uma ficção não-edipiana através de um “simbólico de suplência”.
Comprometido, no psicótico, o registro simbólico, em decorrência da
ausência do Nome-do-Pai, a metáfora delirante vem no sentido de permitir alguns
pontos de ligação (points de capition/pontos de basta) que articulem minimamente o
discurso:
É a falta do Nome-doPai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado,
início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o
desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que
significante e significado se estabilizam na metáfora delirante (Lacan 1957-
58a: 584)
Hanna (2000) esclarece que, na metáfora delirante, mesmo sendo mantida a
posição narcisista, uma tentativa de constituição de uma certa distância entre o
sujeito e o objeto através do destaque de um significante Ideal, que tem por função
substituir o falo, organizando, em torno de si, todo um campo de significações (“Mulher
de Deus”, para o presidente Schreber).
Na falta de uma metáfora paterna, a metáfora delirante é um modo de
inscrição de um significante nesse Outro que invade o sujeito. Essa significação de
suplência tem efeitos sobre o gozo excessivo que invade o psicótico, podendo-se
produzir, por esta via, uma estabilização.
88
Vimos, a propósito de nossa discussão sobre a metáfora, que a centelha
criadora se apóia em uma lógica de substituição significante, onde um elemento é
recalcado como condição de possibilidade do advento da nova significação. Mas, no
caso da metáfora delirante, temos uma nova significação que vem não vem no lugar de
um elemento recalcado, o que a torna bem peculiar.
A nova significação não se apóia no recalque de um significante, daí
podermos dizer que a metáfora delirante é uma metáfora muito sui generis. Pensamos
que, ainda assim, é possível dar à metáfora delirante o estatuto de metáfora, na medida
em que ela atende ao critério essencial da metáfora, qual seja, a produção de uma nova
significação, de um sentido novo. Hanna (2000: 96), a este respeito, fala em uma
“proporção inventada”. A metáfora delirante veicula a construção de uma proporção.
Vejamos agora como esta idéia de proporção pode ser localizada no esquema
I, que é o esquema da solução schreberiana. Este esquema é apresentado por Lacan em
De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a), e cabe
ressaltar que sua utilização não deve ser transposta para toda e qualquer solução
psicótica, na medida em que Lacan o utiliza para falar da estabilização do delírio de
Schreber.
Figura 5 – Esquema I
Observamos que, topologicamente, este esquema se constitui a partir de
uma torção do esquema R, que localiza o campo da realidade na neurose. Diante de Po e
Φo, ou seja, diante da foraclusão do Nome-do-Pai e da ausência da significação fálica,
89
abre-se uma buraco tanto no triângulo imaginário (im
φ), quanto no triângulo simbólico
(MIP).
Os buracos abertos na ausência dos recursos simbólicos do Nome-do-Pai e do
significante fálico acarretam uma deformação nas linhas imaginária (m-i) e simbólica (M-I),
encurvando-as. Com a metáfora delirante, inscreve-se um significante Ideal no lugar do Nome-
do-Pai, produzindo-se um substituto para o lugar da Lei (“Ordem do Mundo”, em Schreber).
Este significante, uma vez demarcado, ordena a bateria de significantes, permitindo
um certo contorno para Po e
Φo. Trata-se de um contorno bastante peculiar, na medida
em que, diante da ausência de ponto de basta, m-i e M-I são reenviadas para o infinito,
formando assíntotas.
O Ideal insere-se nesse movimento assintótico, sendo lançado para o infinito.
Desse modo, o momento onde a posição do eu e do objeto coincidem é lançado para o
infinito (encontro no infinito), impedindo essa colisão mortífera.
Percebemos, pela observação da topologia do esquema I, como, pela via da
metáfora delirante, opera-se um distanciamento entre m (eu do sujeito) e M (lugar do
Outro primordial), sendo as assíntotas um recurso para separar o eu da posição de objeto
do gozo do Outro.
No esquema I, o campo da realidade não se fecha, é aberto, esvaindo-se para
o infinito, daí Lacan situar o esquema I como um plano hiperbólico. Não há, neste
esquema, a banda de Moebius. No entanto, o estabelecimento de uma certa
proporção entre quatro termos, - i, m, M, I - e esta proporção organiza o campo da
realidade, ainda que sem a extração de um objeto.
Localizamos em Daniel Paul Schreber uma certa mudança de posição que
lhe é essencial. Ele se desloca, durante anos do trabalho de seu delírio, de uma posição
onde sua transformação em mulher, exigida pelo médico Flechsig, seria uma catástrofe,
a um tipo de acabamento do delírio onde essa idéia se reconcilia com a “Ordem das
Coisas”. Era Deus quem exigia dele a feminilidade, de modo que sua entrega à
voluptuosidade é então assemelhada ao estado de beatitude, como solução do conflito.
90
De um Schreber puro objeto de um Deus que se retira do mundo e o deixa
entregue - “(...) existe uma falha na Ordem das Coisas” (Schreber 1903 apud Freud
1911: 35) tem-se um Schreber que virá, como “Mulher de Deus”, e não uma mulher
qualquer, a ser veículo de uma nova raça de homens.
A metáfora delirante “Mulher de Deus” lhe permite uma estabilização, e um
certo distanciamento entre as posições de sujeito e objeto. Não se trata mais do Luder
47
ouvido alucinatoriamente, mas da construção de uma metáfora delirante que serve de
suplência
48
para o Nome-do-Pai foracluído (Lacan 1957-58a).
A metáfora delirante, em sua função de ponto de basta, produz efeitos de
circunscrição do gozo por meio de sua localização no lugar do Outro. Em Schreber, essa
localização do gozo vai se dar através da prática transexualista que decorre da metáfora
delirante, onde o presidente se coloca, frente ao espelho, seminu, orna-se com colares e
fitas colorida e sente seus seios crescerem ou diminuírem conforme Deus se aproxima
ou se afasta.
Por esta prática, Schreber goza narcisicamente de sua imagem de mulher
diante do Outro que é Deus. A beatitude torna-se um dever, consonante com a “Ordem
das Coisas”. É Deus quem exige de Schreber a beatitude, ao que ele consente, de modo
tal que uma certa parcela de gozo lhe é cabida, através da prática transexual:
(...) Deus exige um gozo contínuo, correspondente às condições de existência
das almas, de acordo com a Ordem do Mundo, que foi criada; se, ao fazê-lo,
tenho um pouco de prazer sensual, sinto-me justificado a recebê-lo, a título
de pequeno ressarcimento pelo excesso de sofrimentos e privações que
anos me é imposto (...) (Schreber 1903: 219, grifos nossos)
Quinet (2003) localiza, já na Questão preliminar, o que ocorre a nível do
real em jogo na psicose, situando a transformação do gozo operada pelo trabalho
delirante de Schreber: de um gozo que retorna no corpo, estilhaçado, despedaçado,
invadido pelas vozes, Schreber se desloca, pelo delírio, a um gozo da imagem, ou gozo
transexualista, a partir da erotomania divina.
47
Traduzido por carcaça, rameira, safada, segundo Munõz (2005).
48
O termo suplência é utilizado no texto de 1957-58 no sentido de suprir a foraclusão do Nome-do-Pai.
Posteriormente, em O Seminário, livro XXIII: o Sinthoma (1975-76), Lacan o utiliza no sentido de um
suplemento, de um algo a mais, uma invenção do sujeito.
91
Esse gozo transexualista, ou gozo narcísico da imagem, é situado por Lacan
no esquema I, no nível da imagem especular (i), sendo que, em m, (moi), temos o futuro
da criatura, a transformação em mulher, que ocorrerá em um futuro assintótico. Ambos,
prática transexualista e transformação em mulher, permitem um certo enquadramento de
Φo. Do lado simbólico, fazendo contorno à NPo, por sua vez, encontramos, em I, lugar
do Ideal do eu, a “Ordem do Mundo”, e em M o lugar do Criador. Esta é a montagem
que permite a Schreber o restabelecimento da realidade.
Quinet (2003) ressalta ainda, como correlata à estabilização de Schreber,
uma modificação do estatuto do Outro a partir da metáfora delirante “Mulher de Deus”.
Inicialmente, encontramos no delírio de Schreber um Outro fragmentado, disperso em
várias figuras, como o Deus duplicado em Orzmud e Arihman. a partir da
estabilização, esse Outro se torna unitário, sendo personificado na figura de Deus, um
Deus que é também sujeito à Ordem do Mundo”, da qual Schreber é o garante, o
esteio.
Neste ponto, convém situarmos brevemente a noção de ‘delírio parcial’ que
Lacan utiliza em alguns momentos, remetendo-a à psiquiatria, embora não especifique
de onde exatamente a retira. Entendemos, pela leitura destas referências, que a categoria
de ‘delírio parcial’ era relativamente corrente na psiquiatria de sua época, a ponto de ser
desnecessária uma discriminação mais precisa de suas fontes.
Como esta categoria não está mais presente nos atuais manuais
internacionais de diagnóstico de doenças mentais, nos interessamos em pesquisar sobre
suas origens, a fim de precisar o uso que Lacan faz desta noção nos referidos textos
49
.
A designação de ‘delírio parcial’ surge na nosologia psiquiátrica com
Esquirol, ligado à classe das monomanias intelectuais
50
.
Esquirol agrupara, nas
monomanias, “todas as afecções mentais que afetavam o espírito parcialmente,
deixando intactas as faculdades, afora a lesão mental que constituía toda a doença”
(Bercherie 1989). Para Esquirol, o delírio parcial ficava circunscrito apenas a alguns
49
Em nossas conversas com alguns colegas psiquiatras, nenhum conhecia esta noção. As referências em
livros e artigos recentes são igualmente escassas.
50
Para Esquirol, seriam três as classes de monomanias: intelectuais (relativa a noção de delírio parcial),
afetivas ou racionais (prejuízo no campo dos afetos, não acompanhado de delírio) e instintivas (alterações
da vontade, relativa a impulsos criminosos, por exemplo). (Bercherie 1989)
92
objetos ou idéias, preservando os campos onde estas idéias ou objetos não eram
evocados.
Podemos exemplificar, com Freud (1911), uma referência a esta idéia de
‘delírio parcial’, quando Freud retira do relatório de Dr. Weber a descrição da conduta
de Schreber nas reuniões que freqüentava em sua casa:
‘Visto que, durante os últimos nove meses, Herr Präsident Schreber fez suas
refeições diariamente em minha mesa familiar, tive as mais amplas
oportunidades de conversar com ele sobre todos os tópicos imagináveis.
Qualquer que fosse o assunto em debate (exceto, naturalmente, suas idéias
delirantes), concernente a acontecimentos no campo da administração ou do
direito, da política, da arte, da literatura e da vida social em resumo,
qualquer que fosse o tópico, o Dr. Schreber mostrava interesse vivaz, mente
bem informada, boa memória e julgamento sólido; ademais, era impossível
não endossar sua concepção ética’. (Freud 1911: 26, grifos nossos)
Sublinhamos que este relatório data de julho de 1899, época em que
Schreber havia desenvolvido sua “engenhosa estrutura delirante”. Antes deste ponto
de acabamento, o delírio envolvia toda sua vida mental. A partir de então, “Dr. Schreber
não apresenta sinais de confusão ou de inibição psíquica, nem sua inteligência se acha
prejudicada”. Isto tudo, sublinha Freud no relatório do Dr. Weber, apesar de Schreber
estar “(...) repleto de idéias de origem patológica, que se constituíam num sistema
completo”. (Freud 1911: 24-25)
Encontramos, em nossas pesquisas, uma referência a um apagamento da
oposição entre ‘delírio geral’ e ‘delírio parcial’ ao longo do século XIX, na medida em
que tomam corpo as perturbações do humor (Douville 2007).
Lacan, no entanto, retoma a noção de delírio parcial em pelo dois
momentos: em o Seminário, livro III (1955-56), e em De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose (1957-58a).
No Seminário III (1955-56), encontramos uma referência ao delírio parcial a
propósito da paciente que empregava o termo galopiner. Esta mulher psicótica, diz
Lacan, durante todo o tempo “me deixou em dificuldades e se mostrou de espírito”,
mantendo-se “no limite do que pode ser percebido clinicamente como um delírio” (:
49), sendo capaz, inclusive, de zombar do outro a quem fala.
93
Outra referência textual a esta noção está colocada na seguinte pergunta
formulada por Lacan (1955-56: 153): “Há exemplo mais patente da existência
contrastada de uma parte e de uma parte alienada do eu do que os delírios que é
clássico chamar parciais?”
Em De uma questão preliminar (1957-58a) esta noção aparece a propósito
da apresentação do Esquema I, e Lacan então a localiza como “qualificada na velha
clínica, impropriamente, mas não sem uma certa força de abordagem (...)” (: 580). Sua
referência ao delírio parcial, neste texto, evoca a possibilidade da existência de uma
relação com o semelhante compatível com uma relação fora-do-eixo com o grande
Outro, como nos atesta Schreber.
Soler (2007) faz menção ao delírio parcial quando discute a localização de
gozo veiculada pela construção delirante de Schreber. Uma vez localizado pela prática
transexualista, este gozo fica reservado aos momentos de solidão. Esta construção
delirante seria, então, parcial. Podemos, a partir destas indicações, entender a
parcialização como decorrente da estabilização.
Tal como entendemos, Lacan utiliza a noção de delírio parcial não
exatamente como sinônimo de metáfora delirante, pois esta é produto de um longo
trabalho de elaboração, ao passo que, ao menos no entendimento de Esquirol, é possível
que um delírio, desde seu início, já seja caracterizado como parcial. No entanto, a noção
de delírio parcial nos é bastante útil para pensarmos nos efeitos que a metáfora delirante
pode veicular.
Sabemos que nem todo delírio chega a se organizar em torno de uma
metáfora delirante, mas podemos dizer, com Lacan, que o delírio é mais bem sucedido
quanto mais ele se organiza, quanto mais adquire uma forma sistematizada: “Em relação
à cadeia do delírio, se assim se pode dizer, o sujeito nos parece ao mesmo tempo agente
e paciente. O delírio é tanto mais sofrido por ele quanto mais ele não o organiza.”
(Lacan 1955-56: 257).
51
51
Novamente nos reportamos ao caso a ser trabalhado no próximo capítulo, onde o delírio, embora rico e
complexo, lhe custa, além de muito sofrimento, um insistente trabalho no corpo.
94
Este ponto de acabamento que é a metáfora delirante, mesmo nos casos em
que é alcançado, não assevera, contudo, uma estabilização definitiva, não sujeita a
impasses, a momentos de desestabilização. Soler (2007: 205) se refere à metáfora
delirante como uma pseudometáfora, “tão pseudo quanto instável”. É o que também nos
ensina Schreber, com sua recaída após anos de trabalho do delírio.
Que seja instável, no entanto, não implica em dizer que não permita uma
localização de gozo, uma resposta à invasão do real. Nessa linha de trabalho, Maleval
(2002) sustenta a existência de uma lógica quaternária que regeria o trabalho do delírio
no sentido de uma estabilização, de uma solução cada vez mais acabada.
Para esse autor, tal lógica havia sido entrevista por alguns clássicos da
psiquiatria, que apontam para um período de perplexidade inicial, seguido de um tempo
intermediário de elaboração inquieta, até uma sutura megalomaníaca. Clérambault,
como vimos, aponta a existência de um período inicial “anidéico”, seguido da
construção de uma “superestrutura delirante”, embora este não tenha chegado a
descrever um período megalomaníaco final.
Lacan, por sua vez, prossegue Maleval (2002), embora não se ocupe da
elaboração de uma sucessão ordenada do delírio em fases, esboça esta lógica
quaternária em seu estudo do caso Schreber, partindo da posição do presidente com
relação a sua emasculação. Acompanhemos o que Maleval indica como uma evolução
específica do delírio, uma lógica evolutiva generalizável, correlativa a uma modificação
na relação do sujeito com o gozo:
1. Deslocalização do gozo e perplexidade angustiante (P0): Momento do
desencadeamento psicótico, revelando a carência do significante paterno e produzindo
como conseqüências a ruptura da cadeia significante e a deslocalização do gozo. A
“Ordem do Mundo” se altera, gerando angústia e perplexidade. Este período de
inquietude é fortemente correlacionado a transtornos hipocondríacos, entendidos como
um efeito dessa deslocalização do gozo sob o corpo do psicótico, que coincide ainda
com uma angústia extrema. Em Schreber, este período pode ser localizado no ano de
1893, quando de seu “esgotamento nervoso”, com inúmeras queixas hipocondríacas, às
quais se segue um verdadeiro crepúsculo do mundo.
95
2. Tentativa de significação do gozo do Outro (P1): Trata-se da mobilização do
aparato significante pelo psicótico, com vistas a reparar a foraclusão do Nome-do-Pai, e
deste modo dar uma explicação para os fenômenos que lhe ocorrem. Neste período, são
comuns as tentativas de desenvolver elaborações que confirmem esta explicação inicial.
Em Schreber, esta primeira tentativa de significantização do gozo deslocalizado é
correlacionada a uma perseguição a cargo do professor Flechsig. Esta primeira resposta
não fora suficiente para reduzir a angústia de Schreber, na medida em que o deixava
exposto à figura de um perseguidor implacável. Nos poucos casos em que se chega a
um “compromisso razoável”, este é possível ao término das tentativas de
significantização presentes nesse segundo período.
3. Identificação do gozo do Outro (P2): Nesta fase, o gozo do Outro é identificado
em um significante, que se converte num certo organizador do que está ocorrendo. Em
Schreber, este significante organizador é o “Mulher de Deus”. A partir daí, Schreber
“aceita” sua feminilização e adota, ao final de 1895, o culto à feminilidade. Mesmo
aqui, no entanto, subsiste para Schreber a idéia de que estava sendo vítima de
perseguição, que ele atribui em particular às almas malignas de Flechsig e Von W.,
perseguidores agora identificados. Neste período, o delírio se organiza em torno de uma
significação fixa, onde o psicótico adquire certezas irremovíveis. Nem todos os
psicóticos, muito poucos, acentua Maleval (2002), alcançam P2.
4. Consentimento ao gozo do Outro (P3): Neste ponto de acabamento, impõe-se
um sentimento de comunhão com o gozo do Outro, um consentimento com este gozo. O
psicótico consente com o gozo do Outro porque acredita que, por essa via, tem acesso a
algo de muito especial. A megalomania aqui adquire a sua maior exuberância. O
psicótico, muitas vezes, se converte ele mesmo em Deus ou em um de seus eleitos, ou
ainda em um grande personagem. Neste momento, Schreber já não se sente mais
perseguido, e a alma Flechsig perde seus poderes maléficos, embora um “miserável
resto” da alma Flechsig subsista. A feminilização de Schreber se converte em motivo de
redenção para a humanidade, quando de sua fecundação por raios divinos com vistas a
gerar uma nova raça de homens. Através dessa construção, Schreber pode consentir com
96
a fantasia inicial, a de que será belo ser uma mulher copulando. Data deste período a
redação de suas memórias, escritas entre 1900 e 1902.
Maleval (2002) correlaciona este momento da evolução do delírio à “parafrenia
sistemática” de Kraepelin. Trata-se de uma elaboração complexa, e ainda pouco
estudada pelos clássicos, talvez por ser a forma mais rara entre os delírios crônicos. Sua
elaboração exige um longo trabalho do psicótico.
Em P2 e P3, o delírio, uma vez sistematizado, consegue criar um certo
contorno para o gozo, como observamos no esquema I. Alguns fenômenos observados
em P0 e P1 chegam inclusive a desaparecer.
Convém precisar que Maleval (1998; 2002) propõe esta lógica a partir de
uma certa economia do gozo, confrontada com o problema de sua deslocalização e
tentativas de localização. No entanto, o autor ressalva que a sintomatologia de cada um
destes períodos é extremamente variada, e esta sucessão muitas vezes não é tão regular
quanto à apresentada, de modo que se observa mais habitualmente a ausência de certas
fases, ou a imbricação entre períodos contíguos, ou ainda a coexistência de elementos
pertencentes a diversos períodos.
Embora Maleval (1998; 2002) não o diga textualmente, entendemos, a partir
da análise desta proposta de uma lógica quaternária, que a metáfora delirante encontra
em P3 suas condições de possibilidade, pois há, em P3, a localização do gozo a partir do
destaque de um significante Ideal que organiza a cadeia e o consentimento com o gozo
do Outro, com conseqüentes efeitos pacificadores sobre o gozo invasivo.
Acreditamos que, mesmo tendo em mente essa lógica, não devemos alçá-la
à condição de ideal a ser necessariamente alcançado pelo tratamento. Muitos psicóticos
nem sequer conseguem chegar a P1, enquanto outros não saem dessa tentativa
desordenada de significantização, sendo raros os psicóticos que alcançam a pacificação
descrita em P3. É preciso que estejamos atentos às possibilidades de localização de gozo
próprias a cada sujeito.
Além disso, mesmo nos delírios que alcançam P3, as organizações estão
sujeitas a desestabilizações, de modo que este ponto de acabamento não é
necessariamente uma solução definitiva. E mais: mesmo nas organizações delirantes
97
mais estáveis, sempre um resto inassimilável que subsiste para além do trabalho de
elaboração delirante, como um “um eco de la violencia ejercida por las iniciativas del
Otro” (Maleval 2002: 283). Algo do real persiste às tentativas de regulação do gozo pela
linguagem, apontando, conforme mencionamos, para uma falta estrutural no Outro,
constituinte da ordem simbólica enquanto tal.
O risco da assimilação mortífera com a posição de objeto do gozo do Outro
está sempre presente na psicose, como vimos desde Freud (1911), quando este ressalva
que o delírio mantém a posição narcisista do eu, embora, paradoxalmente, constitua
uma tentativa de produzir um descolamento entre o eu e o objeto através da construção
de uma proporção.
Trata-se de uma ressalva importante quando nos questionamos sobre as
possibilidades e limites do trabalho do delírio. Em muitos casos, como já pontuamos, as
tentativas de localização de gozo vão se dar por vias que podem inclusive prescindir
totalmente do delírio, ou ainda por vias que passam pelo delírio, mas não se restringem
a ele. Veremos agora esta última situação no próximo capítulo, a partir de um caso de
nossa clínica.
98
Capítulo 4 SOBRE AS “LINHAS FORTES”: CONSIDERAÇÕES SOBRE UM
CASO DE PSICOSE
“A vida da gente é uma linha esticadinha. Se
embaralha, um danado. É preciso então
desembaraçar as linhas e procurar as linhas
fortes.”
João Pedro
4.1 NOTA PRELIMINAR
A proposta de discutir o trabalho do delírio na estabilização de uma psicose
nos parece enriquecida quando, atrelada às elaborações teóricas e a casos clássicos da
literatura psicanalítica, apresentamos um caso de nossa própria clínica.
Isto porque, através das questões que a clínica suscita e convoca, somos
levados a interrogar mais de perto nossos instrumentos conceituais, pô-los à prova no
sentido mesmo de nos questionar se eles nos são úteis e suficientes para pensar aquele
caso específico.
Temos tentado, nesta dissertação, estudar a possibilidade de estabilização de
uma psicose através do trabalho do delírio. No entanto, deparamo-nos com um caso
onde a elaboração delirante, apesar de intensa, não parece, até o momento, organizar-se
em torno de uma metáfora delirante.
Destacamos então algumas perguntas que gostaríamos de cernir neste caso
específico, e que se articulam de modo mais estreito à discussão teórica de nossa
dissertação: qual é a direção do trabalho do delírio neste caso? Podemos localizar
efeitos estabilizadores mesmo sem que este delírio esteja organizado em torno de uma
metáfora delirante? Quais são as vias privilegiadas de localização de gozo?
Questionamo-nos se se trata de um paciente estabilizado. Até o momento,
sustentamos a hipótese de que sua estabilização é bastante precária, embora lhe permita,
por exemplo, nunca ter sido internado e dar conta de muitas atribuições dentro de sua
casa, como pai de família que é.
99
Além disso, precisamos localizar em que consiste exatamente o trabalho
desta psicose, que elementos permitem com que esta estabilização, ainda que precária,
possa se dar. Estamos cientes do risco que corremos, durante esta discussão, de perceber
que precisamos dispor de outros elementos para pensar este caso, para além dos
conceitos-chave de nossa dissertação.
Diante deste risco, temos o cuidado de não forçar o caso para que ele se
adéqüe aos conceitos que pretendemos trabalhar. Não é essa a indicação freudiana.
Freud teve sempre o cuidado e o rigor de pôr seus instrumentos e sua teoria à prova do
que a clínica lhe mostrava, e foi esta atitude que lhe permitiu os maiores avanços.
Também o paciente de nosso caso nos indica este caminho quando diz: Eu não me
fantasio para a vida toda. Do jeito que a situação está eu coloco minha roupa (...) às
vezes você lê um livro todo, e é uma pequena palavra que resolve o problema.”
Seguindo a orientação freudiana de construção do caso tomando como base
os elementos que ele próprio fornece, recortamos algumas falas do paciente que
consideramos essenciais para situar a posição desse sujeito em relação ao gozo
52
.
Não escolhemos um caso perfeitamente adequável aos conceitos que
pretendemos destacar, como uma prova de sua validade e importância. Trata-se, pelo
contrário, de um caso que nos suscita inúmeras questões. Obviamente, como se trata de
um caso bastante rico e com inúmeros elementos, muitas são as vias possíveis de
recorte, e precisamos escolher.
Privilegiamos aqui a discussão em torno do delírio, de como ele se apresenta
e que efeitos promove. Poderíamos cernir nossa questão central neste caso do seguinte
modo: “O que este caso nos ensina sobre o delírio e sua função?” Percebemos um
certo tipo de trabalho, que passa pela elaboração delirante, mas que necessita de um
insistente trabalho no corpo, trabalho de fazer um corpo.
Até o momento, ele não tem um delírio que seja suficiente para organizá-lo
na existência, embora sua existência seja permeada por esse trabalho de construção que
inegavelmente passa pelo delírio. Assim, são perceptíveis e distinguíveis fenômenos
primários que o abatem (corpo furado, comandos alucinatórios freqüentes etc.),
52
Todas as referências as falas do paciente foram mantidas entre aspas e em itálico.
100
acompanhados de um intenso “trabalho da psicose” que passa inegavelmente pela
elaboração delirante.
Localizamos duas ordens de fenômenos, distintas, porém absolutamente
interligadas: fenômenos de constituição do Outro, onde localizamos a dimensão das
instituições (Rede Globo, governo e hospital), e fenômenos na ordem de fazer um corpo
(correr, praticar exercícios, “mostrar a agressividade”, superar os recordes, destruir e
consertar”, intervir sobre o espaço urbano da cidade), que são também uma forma de
tratar esse Outro com o qual está lidando.
É importante precisar que a questão do corpo na psicose não é o tema de
nosso trabalho de pesquisa, mas sustentaremos provisoriamente a hipótese de que, neste
caso, o trabalho no corpo não é um segundo recurso mobilizado, nem sequer um resto
do trabalho do delírio, mas está a serviço deste.
Sublinhamos ainda que não é nossa pretensão apresentar um saber unívoco
sobre o caso, mas aprender sobre essa tentativa peculiar, essa dimensão singular de
localização de gozo, no sentido de por em movimento, fazer operar a teoria que
apresentamos, e com isso extrair suas conseqüências.
4.2. O CASO CLÍNICO
4.2.5 Demanda Inicial
Começamos a atender João Pedro de Souza
53
no Instituto de Psiquiatria da
UFRJ no início de 2006, a pedido de sua psiquiatra. Com a saída da psicóloga que
durante um certo período o acompanhara, João Pedro passa a dizer que a instituição
estava prejudicando o seu tratamento, e que isso fazia parte de um grande complô que
incluía o hospital, o governo e a Rede Globo: “Comecei a pensar que as pessoas do
hospital haviam se juntado para me afastar. Me senti largado, jogado”.
53
A escolha do nome fictício foi feita levando-se em consideração duas peculiaridades importantes, quais
sejam, conter dois prenomes e ter um apenas um sobrenome, sendo este bastante comum, incapaz de
diferenciá-lo, segundo suas palavras. Este sobrenome sem tradições” não é suficiente para dar-lhe um
lugar que o inscreva na ordem das gerações.
101
Percebemos que João Pedro, desde o início de seu tratamento, nos
apresenta a posição estrutural do sujeito na psicose, a de ser objeto do gozo do que
poderíamos denominar de “figuras do Outro”, a dimensão das instituições, presentes de
modo incidente em sua fala.
Segundo informações do prontuário, João Pedro passou pelo Grupo de
Admissão do instituto, onde enunciou uma “dúvida”: “Será que ao final do tratamento
serei transformado em mulher?”
Dizia-nos então, por ocasião dos primeiros atendimentos, que tem certas
coisas, “traços”, que não consegue esquecer, “como num coquetel, onde a letra de uma
palavra serve para outra palavra”. Na ausência de um referente que sirva como ponto
de basta, evidencia-se em sua fala um certo fluir metonímico que tende ao infinito, o
que dificulta, por exemplo, a conclusão de um certo assunto.
Observamos no caso a presença constante do que Lacan denomina, em De
uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a), de
fenômenos de mensagem, quais sejam, as mensagens interrompidas, indicativas de uma
significação em suspenso, e que se interrompem no momento mesmo de sua
significação: “É ela (...), vem ela (...), é dela (...)”. Estas mensagens, tamanha sua
presença e consistência, são equiparadas por ele a “chiclete na boca de criança”.
Também são freqüentes os fenômenos de código: neologismos
(maturalidade
54
, ortopia), fenômenos de vazio de significação (“Por que o Papai Noel
deixa presentes nas meias de todas as casas do morro, menos na minha?”) e as
intuições (“O céu está mais alto que de costume. Algo deve me acontecer”).
Deparando-se com essa dificuldade no campo da linguagem, João Pedro
passa a fazer uso, no tratamento, do que denomina de “metáforas”, instaurando uma via
interessante de trabalho, de endereçamento: Eu uso essas metáforas para que você
possa me entender. Se eu falo direto, você não vai me entender. Preciso usar
simbolismos”.
54
Pensamos tratar-se de um neologismo composto pela aglutinação de maturidade e naturalidade.
102
O que ele chama de “metáforas”, entendemos como uma tentativa de dizer
quem é
55
, fazendo uso do recurso da comparação, e não propriamente de uma metáfora:
“Sou como um peixe, que vive no mar, mas não é salgado”; “se eu fosse um queijo,
seria o queijo mais caro, porque meu corpo é todo furado de bala”.
4.2.6 História do Caso
João Pedro é casado 24 anos e pai de dois filhos, um rapaz de 17 e uma
menina de 06 anos. Muito embora sua psicose seja declarada de modo evidente, jamais
foi internado. Está afastado do trabalho há cerca de 9 anos, e apesar das perícias
regulares, não foi ainda aposentado.
Em uma pasta que sempre carrega consigo, guarda toda a documentação
referente ao hospital e ao auxílio-doença, além de vários recibos e carnês de lojas
populares, com os quais faz compras parceladas que “equipam” sua casa. Este
“equipar” a casa, acompanhado do lugar que ocupa em relação à família, é o que de
menos delirante podemos localizar em sua fala.
Preocupa-se com o conforto da família, com a alimentação e vestuário dos
filhos, com seu corte de cabelo e roupas, e diz ser de sua inteira responsabilidade o
cuidado e sustento da família. Por isto, teme a perda do auxílio-doença, esse “presente
do governo” que permite com que cumpra esta função, mas que está sempre em risco de
perder.
Certa vez, diante do intenso receio da perda do benefício (que se renova a
cada três meses), diz carregar a “dúvida” de se a cantora Sandy é verdadeiro pai de sua
filha, sendo ele apenas um instrumento utilizado para dar conforto à família.
Percebemos então que seu delírio invade até mesmo o que de menos delirante parecia
haver em sua fala.
João Pedro circunscreve as sessões como o lugar onde pode falar de sua
“agressividade”, “contar o da semana”, de modo que apesar dos três anos de
55
Ana Cristina Figueiredo, em uma supervisão do caso, propôs, para estas metáforas, a denominação de
“metáforas do ser”.
103
atendimento, alguns pontos de sua história familiar ainda nos são obliterados.
Entendemos que, sobre alguns pontos, não fala porque também lhe faltam elementos:
Minha infância é como um jogo de quebra-cabeças com 5000 peças e que eu tenho
1000, como um livro faltando páginas, e as que têm não são suficientes”. Nesta fala,
vemos um registro surpreendente desse buraco decorrente da foraclusão do Nome-do-
Pai.
Sabemos que tem duas irmãs, uma mais velha e outra mais nova, das quais
nunca fala. Diz não saber o porquê de seu pai ter deixado sua mãe, mas supõe que foi
por sua causa, pelo fato de ter nascido “rosado, muito branquinho e pequeno, enquanto
ele era um caboco, um índio, um negão do tamanho dessa porta.”
Diz ainda ter visto pela Rede Globo que seu enxoval era todo de menina.
Podemos precisar esse ponto em que o pai não comparece no relato de João Pedro. Seu
nome não o diferencia, e essa não inscrição promove efeitos. Em sua origem, algo da
ordem de uma filiação, de um reconhecimento, não se opera.
Conta que viu o pai apenas duas vezes. Na primeira, ainda criança, seu pai,
vestido de índio durante o carnaval, foi a sua casa “mostrar a fantasia”, o que o
assustou muito. A segunda vez foi no hospital, quando o pai estava à beira da morte,
sendo que desta vez não sabe se o viu ou se imaginou tê-lo visto.
Como a mãe era muito “namoradeira”, fica a dúvida de quem era seu pai.
Nada o liga a uma tradição”, a um “nome”: “Minha infância foi dada por terceiros;
não foi uma infância familiar. Tudo que acontece comigo hoje é um reflexo da minha
vida familiar, todos os meus medos, a minha raiva. Minha família não tem nome, o
tem tradições”.
Após o afastamento do trabalho, aproxima-se de sua mãe, que tenta instruí-
lo na obtenção do auxílio-doença. A mãe morre pouco tempo depois, e João Pedro
entende que fora envenenada nas proximidades do Maracanã por tentar ajudá-lo.
O delírio tenta, mas não consegue, responder à questão da filiação. Às vezes
pensa, sem nenhuma certeza, que é filho de alguém importante da Rede Globo. A
minha infância provas reais de que eu tinha pais muito diferentes dos meus. Vamos
104
então emendar a linha. Como eu posso ter conseguido tanta coisa se eu era tão
carente? Devia ter outros pais por trás me ajudando. Com toda essa emenda de linha
da minha vida você não acha que eu devia ter outros pais me ajudando?” É importante
ressaltar que esta hipótese, que comparece muito pontualmente, não é apresentada em
termos de certeza: “Acho que sou filho...”, Devo ser filho...”, “Só posso ser filho...”
etc.
4.2.7 Do desencadeamento
Convém trazer alguma luz sobre o que pensamos, a título de hipótese de
trabalho, tratar-se das condições que, num dado momento da vida de João Pedro,
abalam este precário equilíbrio. Coloca-se então a pergunta de Lacan: “O que será que
torna subitamente insuficientes as muletas imaginárias que permitiam ao sujeito
compensar a ausência do significante?” (Lacan 1955-56: 233)
Após ser demitido de uma empresa de fórmicas, já casado, começa a
trabalhar como cobrador de ônibus na empresa “Real”. Nesta época, situa aquilo que
considera os primeiros sinais de sua doença, a morte de sua filha logo após no
nascimento, há 19 anos, o que atribui a um erro médico.
Quando a filha morta, decide tocá-la e percebe que seu corpo estava
quente, embora devesse estar gelado. Alguém desaparece, e de um modo bastante
estranho. Ela deveria estar fria, mas seu corpo está quente. algo de errado.
Destacamos que, neste ponto, nascimento e morte se misturam, denunciando um vazio
de significação. A filha morre assim que nasce, e, confrontado com o irredutível da
experiência da vida/morte, João Pedro encontra no delírio um artifício, atribuindo esta
morte à “Meneguel”, embora até hoje não saiba dizer com que propósito.
Localizamos neste ponto um primeiro desencadeamento. Seu cotidiano, no
entanto, não é ainda alterado de um modo mais radical. João Pedro continua trabalhando
neste “novo mundo”, a “área rodoviária”, o que lhe produziu, diz, uma “grande
distorção psicológica”, pois “fábrica é uma área interna. Transporte urbano é
105
diferente. É um pedaço de ferro, a sociedade e o dinheiro.” A ausência da referência
fálica para lidar com estes novos elementos se faz sentir.
Depois de 06 ou 07 anos como cobrador de uma mesma linha de ônibus, a
empresa o transferiu para o “Frescão” do aeroporto internacional. “Aí as frutas
começaram a secar, porque antes eu estava habituado. No Frescão era uma coisa
muito pesada, porque tinha excesso de bagagem, eu via pessoas de brincadeira pelo
retrovisor passando de um banco para outro. Isso era uma irresponsabilidade delas, e
eram pessoas muito sofisticadas. Eu era como uma plantinha que estavam tentando
quebrar. Eu não sabia a quem cobrava porque os passageiros mudavam de lugar. Senti
que aquilo era uma armação para me demitirem por justa-causa”.
João Pedro fala dessa estranheza, dessa verdadeira catástrofe que altera os
seus hábitos, todo o seu corpo, a sua “massa cefálica”. Pensamento e visão coincidem,
diz ele, índice deste desencadeamento sob o plano dos registros.
No Seminário III (1955-56) e na Questão Preliminar a todo tratamento
possível da psicose (1957-58a), Lacan fala do desencadeamento psicótico como um
mecanismo de eclosão, de ruptura, relativo ao encontro do sujeito com um significante
ao qual ele não pode responder, remetendo-o à foraclusão do Nome-do-Pai e à ausência
de significação fálica.
Como já articulamos a propósito da teoria clássica do desencadeamento
psicótico, a irrupção de uma psicose é correlativa a presença alguns elementos: a
condição estrutural da ausência do Nome-do-Pai; a causa contingente relativa ao
encontro com Um pai, produzindo uma desestabilização; e a conseqüente quebra de
uma identificação imaginária ou de algum elemento estabilizador.
Localizamos neste ponto um desencadeamento mais disruptivo. Diante do
significante Frescão, que retorna desde fora, temos a conseqüente perplexidade: não
consegue mais pegar as bagagens, sente que os passageiros querem ludibriá-lo. É
também acometido de diferentes manifestações corporais. Acredita ter sido intoxicado
com água contaminada, o que o fez entrar no que chama de “estado alucinático”. Vai
para casa e começa a malhar até cair no chão A contaminação tinha atingido toda a
106
minha massa cefálica. Nessa época eu malhava muito, e era a sica que me curava.
Aí comecei a me sentir bem do corpo, mas não da mente”.
Começa neste ponto a criar o que chama de “mundo infantil, da
imaginação”. Imagina que sua esposa o está traindo, o que relaciona a lembranças que
não têm como provar. Não diz que lembranças eram estas. Neste momento específico é
que o esporte passa a ser o que chama de “medicação”. Diz que todos os sintomas
depois passam a ligar-se a esse parque infantil, onde a “imaginação” e o esporte se
ligam.
É então transferido para a Barra da Tijuca, numa nova função, a de fiscal.
Após as trevas, diz, começa a luz do sol. Mas como pode ter sido agradado se
desagradou a empresa? Este lugar não lhe é merecido. “Uma pessoa comum não teria
tido essa liberdade. Era como uma criança acalentada.Cerca de seis anos depois é
afastado do trabalho e inicia o tratamento psiquiátrico.
4.2.8 O delírio e seus efeitos
Em nosso terceiro capítulo, procuramos cernir como Lacan articula, a partir
de Schreber, essa lógica peculiar posta em jogo em uma metáfora delirante, na medida
em que nem todo delírio se articula deste modo.
Sustentamos, em relação a este caso, a hipótese de que não há, ainda, uma
metáfora delirante precisada, um certo núcleo delirante em torno do qual as coisas se
organizem. Vimos, a propósito de nossa discussão sobre a metáfora delirante, que ela
opera via circunscrição de um significante ideal localizado assintoticamente. Na
construção delirante de João Pedro, observamos que certos elementos se repetem, mas
não se coordenam em torno da circunscrição de um significante ideal reenviado para o
infinito.
Entre Rede Globo, governo e hospital, é possível destacar que a Rede Globo
está em uma posição privilegiada, advindo com maior ênfase, destaque e importância
em sua fala. Podemos localizar a Rede Globo como o Outro privilegiado do delírio
deste paciente, em relação ao qual ele se situa como “um importante instrumento de
107
trabalho”, mantendo-se a posição narcisista do eu (eu=objeto). É em relação à Rede
Globo que ele situa sua suspeita (não é uma certeza) de filiação. É também esta
instância que é rica em nomes, em personagens protetoras e perseguidoras, ao contrário
do governo e do hospital.
Há, no entanto, momentos do tratamento em que sua relação com o hospital
ou o governo é destacada, como quando está às voltas com laudo, passe-livre e perícia
médica.
Visto que não localizamos no caso algo da ordem de uma metáfora
delirante, tentemos então precisar, a partir dos elementos teóricos já apresentados, como
este delírio se articula neste momento do tratamento, quais as suas funções e efeitos e o
que ele não tem conseguido responder.
Para tanto, utilizaremos a leitura que Maleval (2002) promove dos textos de
Freud, Lacan e alguns psiquiatras clássicos, onde propõe um certo desenvolvimento da
construção delirante em fases.
Investigaremos então a complexa rede delirante de nosso paciente à luz
dessa lógica quaternária, mais uma vez ressaltando que tal lógica não segue uma
ordenação cronológica ou evolutiva, nem tampouco estanque.
1. PO: Deslocalização do gozo e da perplexidade angustiante: momento do
desencadeamento psicótico propriamente dito, onde destacamos a ruptura da cadeia
decorrente da autonomia do significante Frescão. Acreditamos, como vimos a propósito
do desencadeamento, que algo se opera nessa passagem de “cobrador” aoFrescão do
aeroporto”, fazendo vacilar a identificação imaginária com o homem cobrador. Vimos
toda a proliferação de fenômenos decorrentes da deslocalização do gozo: perplexidade,
sintomas hipocondríacos, delírio de ciúme, diferentes experiências corporais, idéias de
intoxicação e contaminação, entre outros.
2. P1: Significação do gozo deslocalizado: diante dessa experiência bastante
ruidosa de deslocalização do gozo, iniciam-se as tentativas de significação. Invadido por
um excesso de angústia, João Pedro se volta a um trabalho de mobilização do
significante de modo a tentar explicar os fenômenos que o invadem. Passa a atribuir à
108
“Meneguel” as experiências que o acometem. Essa explicação, longe de o apaziguar, o
deixa submetido, entregue a essa poderosa figura de mulher.
Posteriormente, a Rede Globo se decompõe em uma série de personagens
protetoras e perseguidoras. O hospital e o governo passam também a compor a trama
delirante.
De um modo geral, no entanto, a relação com estas instituições oscila, todas
com um duplo viés: proteção e perseguição. de se ressaltar que não são relações
estanques, o que entendemos como um ponto positivo, na medida em que exatamente
por isso ele pode se alojar, realizar um trabalho. Destacamos aqui o modo como se
ordena esse duplo aspecto nas três instituições:
a. Rede Globo: utiliza-lhe como “instrumento de trabalho”, pois seus olhos são
“pepitas preciosas”. João Pedro é um instrumento, mas não um instrumento qualquer.
Situamos aqui o que Lacan (1957-58a) designa de sacrifício da morte do sujeito. Em
relação à Rede Globo, João Pedro passa a ter uma função, o que requer de sua parte uma
atividade (“a sala da minha casa é um importante escritório da Rede Globo”).
Destacamos ainda que esta figura do Outro é decomposta entre personagens
que o protegem e que o perseguem, numa rede sujeita a alterações como quando, por
exemplo, um perseguido vai ao programa de um protetor. Nestes casos, fica diante de
um impasse. Não consegue especificar nisso um motivo definido.
b. Hospital: está sob a “tutela” do hospital, pois é “um doente, um paciente, sem
condições de voltar para o trabalho e viver em sociedade”. Deve respeito e obediência
aos funcionários do hospital Não pode mentir aos médicos. No entanto, estranha a
demora na emissão dos laudos médicos. Precisa destruir algo durante as corridas
(Maracanã, Estádio do Engenhão etc.) para conseguir o laudo médico mais rápido.
Sente-se largado e jogado” diante da ausência da médica (que se afastara em licença
maternidade). Situa no hospital dois tipos específicos de tratamento: o da psiquiatria,
mais diretamente ligado ao governo, e a escuta analítica, que denomina de “trabalho
simbólico”, o de “emendar as linhas e procurar as linhas fortes”.
109
c. Governo: fornece-lhe o benefício, com o qual equipa a casa”. Ao mesmo
tempo, não reajusta o valor do benefício, impondo-lhe restrições financeiras. O governo
demora a decidir se o aposenta ou se mantém o auxílio-doença. Desconhece os
propósitos disso. Gostaria de uma decisão, mas diz que as autoridades o o escutam.
Precisa então praticar os exercícios físicos para mostrar seu valor, lembrar que está
vivo.
Enfatizamos ainda que Rede Globo, governo e hospital mantém relações
recíprocas e indissociáveis. Não há, por exemplo, como pensar o governo sem o
hospital. A aposentadoria depende do laudo. A Rede Globo emite, “nas entrelinhas”,
informações sobre o benefício.
3. P2: Identificação do gozo do Outro: vimos que é característica desta fase o fato
de os perseguidores se encontrarem identificados. Não podemos dizer, como vimos
anteriormente, que João Pedro tenha identificado claramente suas figuras perseguidoras.
Embora algumas destas figuras estejam localizadas (a cantora Sandy e a jornalista
Fátima Bernardes, por exemplo), na maioria das vezes os comandos alucinatórios que
recebe não são ligados a nenhuma figura persecutória.
É também freqüente que relate imperativos contraditórios que lhe chegam
do real sobre o que ele deve ou não fazer. Durante uma corrida em volta do Maracanã, é
comum que ouça, ao mesmo tempo, “quebre!” e “não quebre!”, destrua!” e “não
destrua!”, o que o coloca entre acatar ou não os comandos que lhe chegam do real.
4. P3: Consentimento ao gozo do Outro: com Maleval (2002), vimos que um certo
apaziguamento é correlativo ao consentimento ao gozo do Outro, e que o psicótico, uma
vez consentindo, passa a se encontrar de acordo com o gozo então localizado.
Em João Pedro, não podemos identificar um consentimento desta ordem.
Muito pelo contrário, os comandos lhe atormentam, as perseguições e invasões no corpo
são constantes e poucos são seus momentos de descanso.
Esse gozo excessivo, pouco localizado, incide sobre o real de seu corpo,
exigindo-lhe um trabalho. Neste sentido, João Pedro se mostra incansável. Diante deste
corpo furado”, passível de ser feminilizado por um Outro intrusivo e sem nome, João
Pedro engaja-se no que chama de “luta de morte” de modo a não se deixar levar, e o faz
110
através de exercícios físicos exaustivos. Seu corpo precisa ficar forte, atlético,
masculino.
Apesar dos constantes ataques (de fora) que seu corpo sofre durante as
corridas, João Pedro sempre realiza grandes feitos de modo a reagir: suspende o céu,
rebaixa o mar, empurra o ar e com isso ataca o aeroporto internacional, move o morro
do Pão-de-açúcar etc.
Não dúvida de que, se “o céu está mais alto que de costume”, isso lhe
concerne, é sinal de que algo vai acontecer, exigindo-lhe um trabalho, trabalho delirante
e sempre ligado a seu corpo. João Pedro adquire uma atitude bastante ativa em relação
às mensagens que lhe chegam do real. Trata-se do que Colette Soler (2007: 186) chama
de psicótico trabalhador.
Este trabalho do delírio veiculado ao corpo, no entanto, não vai no sentido de
acatar a feminilização. Pelo contrário, o trabalho do delírio vai na contramão de um
consentimento à feminilização. Se não corre, “o corpo fica rosado, a barriga cresce, o
rosto e a cintura ficam finos”.
Acreditamos então que, mesmo sem uma metáfora delirante, este paciente
constituiu algumas linhas de trabalho, todas no sentido de uma certa contenção de gozo,
que vão por direções não-excludentes:
1. Trabalho delirante de constituição do Outro: caracterizar detalhadamente o
possível propósito das instituições (Rede Globo, governo e hospital), e sua posição em
relação a estas. Com freqüência, este propósito lhe exige um trabalho delirante de
deciframento, a partir de pequenas pistas. Por esta via, uma tentativa de localização
do gozo no campo do Outro.
2. Trabalho de constituição e, como ele mesmo diz, “manutenção” do corpo,
através dos exercícios físicos, da “agressividade”. Chama-nos atenção a diversidade
das manifestações corporais relatadas por este paciente. Fenômenos de despedaçamento
são freqüentes: “é como se a perna nem estivesse mais lá, é como se o braço ficasse
111
solto”. São também comuns as sensações de transformação corporal, que apontam para
o risco eminente de feminização (corpo ficando delicado, feminino, rosado, furado etc.).
Na falta de uma consistência imaginária do corpo, o exercício lhe permite
alguma apreensão deste corpo. Muitas vezes, mostrar que está vivo, mostrar o seu valor
exige o desgaste do corpo. O exercício o deixa exausto e, no limite, pode levá-lo à
morte. João Pedro aos exercícios a dimensão de um fazer: “Muitas vezes não basta
falar. É preciso fazer. Para ele buscar a solução ele precisa fazer”, ou ainda, “Quando
eu faço minhas bravuras, estou tentando me defender”.
Deve-se, no entanto, enfatizar, que entendemos este trabalho com o corpo
não como um resto do trabalho do delírio, não como um segundo recurso mobilizado
na tentativa de localização do gozo. Durante os exercícios, realiza uma série de
intervenções sobre o espaço da cidade (afunda o Maracanã, rebaixa o céu, suspende o
mar, quebra o dedo de Deus, corta os fios que sustentam o do teleférico do Pão de
Açúcar, faz Dom Pedro descer do cavalo de ferro, etc.). Sustentamos a hipótese de que
temos um trabalho com o corpo vinculado a uma dimensão delirante, a serviço do
delírio.
No entanto, não podemos deixar de precisar que este “trabalho no corpo”,
ainda que referido a um propósito delirante, denuncia um certo limite da linguagem em
dar conta desse excesso. Algo transborda, e o corpo é então convocado.
3. Tentativa de dizer quem é: Ele é frágil, incompreensivo, tem um
perfeccionismo grande, não esquece um passado, tem uma manutenção muscular, tem
diamante nas vistas. Às vezes ele aumenta, se expande, é um animal, é um bandido, é
uma marionete, é uma criança chorona, é um cachorro de madame, é um cachorro
vira-lata”.
Situamos aqui os samba-enredos, que ele canta em casa, nos ônibus,
enquanto corre e na sala de espera do ambulatório. Considera que a letra do samba, por
fazer referência a uma história, lhe permite saber mais sobre si próprio.
O período que antecede ao Carnaval lhe é vivido com certa expectativa.
Assiste, pela televisão, a todas as escolas de samba, com o propósito de acompanhar
seus enredos, e assim emendar a linha”. Na ausência de um referente fálico que
112
veicule para João Pedro uma historicização, a letra do samba serve como um certo
referente, dando-lhe algumas coordenadas.
4. Tentativa muito incipiente de constituição de um delírio de filiação, referido
à possibilidade de ser, talvez, filho de alguém importante da Rede Globo (enunciado
como mera suposição). João Pedro fica admirado com pessoas famosas que, mesmo
sem um “sobrenome de gerações”, conseguem fazer seu próprio nome. Devido à
foraclusão do Nome-do-Pai, João Pedro se encontra fora de uma série, de uma ordem na
linhagem (Lacan 1955-56: 359). Surge então a questão de seu sobrenome, que não o
diferencia por ser, segundo ele, demasiado comum. Não vemos ainda, neste caso, um
delírio de filiação caracterizado, embora ele formule algumas suposições que visam dar
conta da questão de sua origem.
5. Trabalho de “manutenção simbólica” pelo tratamento, através do qual, diz,
“o mundo fica mais organizado”. “Através das consultas eu tento esclarecer as coisas
sem esclarecimento”. Você faz um curativo no seu paciente com um lado psicológico-
verbal de organização. Se eu não tenho respostas, fico incontrolável”. Sob este aspecto,
também nos retifica quanto à direção do tratamento e o risco, sempre posto, da
compreensão: “Vai emendando a linha. Não tenta entender, raciocinar muito não, que
é muito complicado. Vai emendando os traços psicológicos que você vai entender
seu paciente”.
Podemos localizar, de modo ainda muito pontual, porém importante, a
produção de uma certa escansão entre João Pedro e o Outro como efeito do trabalho
analítico: “Sou manipulado a cortar os fios do teleférico, me mandam fazer isso. Mas
quando eu conto pra você, sou eu falando de como eu sou manipulado, e isso é
diferente”; ou ainda, após uma falta nossa ao atendimento, em que não conseguimos
avisá-lo a tempo e deixamos um recado na recepção do instituto: “Eu te desculpo. Você
erra, eu erro, todo mundo erra”.
Notemos como a significação delirante comparece como pano de fundo em
todas estas vias de trabalho. No entanto, entendemos que a direção do tratamento deve
ter o cuidado de valorizar as soluções deste sujeito, os recursos subjetivos que utiliza
113
como caminhos para a estabilização. Seria ingênuo apostar na solução assintótica da
metáfora delirante, sem estarmos atentos ao que, de singular, comparece na procura
incansável deste sujeito por uma estabilização.
Esta é, exatamente, a riqueza deste caso, sua busca insistente de constituir
um corpo, de reagir às invasões do Outro sobre este corpo. Seu trabalho testemunha o
esforço delirante de localizar este gozo que transborda pelo corpo.
Se observamos, por um lado, uma busca metonímica de sentido, esta mesma
busca é correlata de uma tentativa constante de se posicionar face à invasão de gozo.
João Pedro queixa-se de cansaço, diz precisar descansar:“Pensar demais cansa, e eu
particularmente não sabia”. A atividade delirante o toma, nos levando a questionar o
que pode vir a fazer função de um certo ponto de basta nesse caso.
Deslizando entre essas diferentes vias, os recursos de João Pedro, embora
complexos, ainda são frágeis quanto à estabilização. Apesar de todo seu esforço, ainda
não localizamos um certo ponto de amarração que possa, de algum modo, servir de
continente ao gozo que invade diuturnamente o seu corpo.
Suas estratégias, no entanto, têm se mostrado eficazes no sentido de permitir
um certo lugar em sua casa, junto à família, na preocupação e cuidado com a esposa e
os filhos. Precisamos valorizar este trabalho, que nos convoca.
Entendemos, a partir do que temos trabalhado ao longo destes anos com este
paciente, que discutir um caso de psicose é adentrar num terreno onde as teorizações
estão em aberto, lançando questionamentos e impasses que se impõem tanto ao campo
conceitual quanto à prática clínica.
Exatamente porque impõe dificuldades importantes é que a consideração
deste tema é essencial, ainda que toque num impossível de suportar, de dizer e também
de compreender.
Num caso tão rico quanto este, de tanta produção delirante e de tanto
esforço, trabalho subjetivo de reconstrução de mundo, a construção do caso clínico é
sempre, de algum modo, recortada, reduzida, redução necessária para que algo possa ser
dito.
114
Procuramos circunscrever o trabalho do delírio no caso, e acreditamos ter
localizado efeitos deste trabalho mesmo sem a demarcação de uma metáfora delirante.
Pensamos que a necessidade de recorrer a um fazer com o corpo não renega a
importância que o trabalho do delírio tem neste caso. “É preciso respostas na palavra e
na ação, no lado delicado das palavras e na ação. É uma agressividade que tem que ser
representada”. É cada vez mais necessário colocar em questão o efeito desta abertura
na clínica da psicose, onde o problema da significação aparece escancarado, a céu
aberto.
115
CONCLUSÃO
Refletir sobre o tema das psicoses é adentrar num terreno cujas teorizações
estão absolutamente em aberto, lançando questionamentos e impasses que se impõem
ao campo conceitual psicanalítico, bem como à prática clínica.
Exatamente porque impõe dificuldades importantes é que a consideração
deste tema é essencial, ainda que toque num impossível de suportar, de dizer e também
de compreender. Assim, pensar o fenômeno psicótico é sempre, de algum modo,
recortá-lo, reduzi-lo, redução necessária para que algo possa ser dito.
Em nosso recorte, acreditamos ter abordado pontos importantes para a
consideração do tema do delírio em psicanálise, visto aqui a partir da possibilidade de
estabilização que pode vir a veicular, ainda que se mantendo a ressalva de que nem todo
trabalho delirante é feliz quanto a esta função.
Acentuamos o caráter precursor da visada freudiana quanto ao delírio,
atribuindo-lhe uma positividade quanto à constituição de um mundo possível de habitar,
no que reata os laços com a realidade. Esta perspectiva vai na contramão da acepção do
delírio enquanto falsa percepção de uma suposta realidade sensorial, relativa a um
excesso da imaginação ou controle inadequado da vontade, ou ainda erro do juízo. Não
podemos obliterar a dimensão do quanto este gesto é fundador.
Enfatizamos ainda, quanto ao passo freudiano, a importância na busca da
delimitação de um mecanismo para a psicose, que tivemos o cuidado de não encerrar
em uma leitura mecanicista (causa e efeito). Recortamos como essencial a incidência
daquilo que comparece desde fora, o que é diferente de uma projeção, de um retorno.
Marcamos ainda a relação do delírio com a linguagem, bem como a
observação sobre o seu caráter de tentativa, nem sempre exitosa, de retorno da libido
aos objetos. Enfatizamos que esta via tem o condão de manter a posição narcisista do
eu, embora se constitua como tentativa de fazer frente a tal posição.
Com Lacan, nos interessamos em recortar a dimensão da metáfora e o tipo
de articulação que ela promove no psiquismo. A análise da acepção de metáfora
116
empreendida por Lacan nos foi útil e enriquecedora, e pudemos apreender que falar de
metáfora é falar de um certo tipo de lógica, de uma operação, aos moldes de uma
proporção matemática. Lacan estava, antes de tudo, articulando um modo de
funcionamento que ele retira do texto freudiano, fazendo uso dos saberes de seu tempo.
Destacamos, no que tange a estes, a contribuição deste lingüista notável que foi Roman
Jakobson, cujo trabalho esteve às voltas com a poesia e a dimensão do ruído, do não-
sentido.
Foi por esta via, levando em conta a dimensão metafórica do pai, que
entramos na discussão da noção de ponto de basta, abrindo a perspectiva de que outros
elementos, que não o Nome-do-Pai, podem fazer a função deste operador, e aqui
destacamos a certeza delirante.
Em seguida, enfatizamos a importância e atualidade do conceito de
foraclusão do Nome-do-Pai, que só se vê enriquecido com os avanços posteriores do
ensino de Lacan. Discutimos o desencadeamento psicótico na acepção clássica, ainda
que levando em consideração a existência de desencadeamentos menos ruidosos, mais
discretos.
Achamos conveniente abrir um item para precisar a noção de estabilização
que utilizamos. Isto porque, apesar de seu uso corriqueiro, consideramo-la uma noção
perigosa e bastante aberta a mal-entendidos e imprecisões. Pensamos ter conseguido
sustentar seu uso a partir de uma referência psicanalítica, que a considera distinta de um
mero entorpecimento, sendo este passível de ser conseguido por outras vias que não o
trabalho subjetivo.
Lacan fala, textualmente, em estabilização como construção de uma
realidade estabilizada em seu esquema I. Fizemos uso deste esquema para trabalhar a
idéia de localização de gozo, que é veiculada, no esquema scheberiano, pela via do gozo
transexualista. Com isso, estamos dizendo que é possível, de forma precisa, falar em
localização de gozo em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose (1957-58a), mesmo antes da teorização posterior sobre o objeto a.
De posse desta noção de estabilização, trabalhamos a construção delirante
propriamente dita. Interessamo-nos em desenvolver a idéia, presente deste Freud, de que
117
o delírio comporta uma lógica particular. Para tanto, recorremos mais uma vez a
Schreber e a uma certa sistematização desta lógica que Maleval (1998; 2002) retira do
texto lacaniano, sempre com a ressalva de que esta proposta não diz de um caminho pré-
estabelecido para o encaminhamento de todo delírio.
Por fim, apresentamos nosso trabalho a partir de um caso de nossa clínica.
Gostaríamos, neste momento, de enfatizar a felicidade que tivemos com o encontro
deste caso, que nos foi um verdadeiro presente recebido de sua então psiquiatra, atenta à
necessidade de uma escuta mais atenta deste sujeito. Parte essencial de nossa formação
nos últimos quatro anos se deve a ele, com quem temos aprendido cotidianamente. A
persistência de seu trabalho nos motiva, nos convoca a avançar, nos lança questões que
vão muito além daquilo que conseguimos abordar no tempo deste trabalho, onde
enfatizamos a questão do delírio, como ele opera, quais são seus efeitos, a que ele
responde e o que deixa em aberto.
Seu relato nos revela um sujeito habitado pela linguagem, ensinando-nos
sobre este funcionamento peculiar. Vemos um sujeito que tenta constituir o Outro, e
neste mesmo ato, localizar um gozo que incide sobre seu corpo. Isto ele o faz
convocado, insistindo em ser escutado, em “provar que está vivo”. Ele apela, em ato,
correndo, fardando-se, “destruindo e consertando”, por um endereçamento de sua fala.
Gostaríamos ainda de enfatizar que apresentamos um caso ainda em
andamento, em que acompanhamos sua tentativa singular de construção de recursos que
permitam a este sujeito habitar a linguagem, reatar a cadeia significante, o que
impossibilita que tenhamos, neste momento, um certo olhar a posteriori sobre o caso.
Convém ainda uma última palavra sobre nossa posição em relação à leitura
que empreendemos dos textos utilizados nesta dissertação.
Ainda que tenhamos centrado nosso trabalho de leitura nos textos
lacanianos da década de 50 e 60, prescindindo, neste momento da escrita, das
teorizações em torno da topologia, acreditamos ter trabalhado numa perspectiva que
recusa, de saída, uma abordagem da psicose a partir das noções de falha ou déficit.
118
Nossa leitura dos textos freudiano e lacaniano apontam para uma recusa
dessa perspectiva deficitária com relação às psicoses mesmo nos textos mais iniciais,
como enfatizamos a propósito da leitura freudiana sobre o presidente Schreber. Freud
positiva o mecanismo do delírio, ao atribuir-lhe um caráter de criação da realidade, e
consideramos este gesto absolutamente fundador.
Do mesmo modo, lemos em Lacan uma recusa expressa a esse modo de
conceber as psicoses em seus primeiros textos, e esperamos que isto tenha ficado
expresso no modo como abordamos os textos da década de 50. Como ressaltamos em
nosso texto, acreditamos que a pluralização do Nome-do-Pai não é incompatível com a
tese inicial da foraclusão do Nome-do-Pai, e acreditamos que a clínica da psicose se
enriquecida com os avanços posteriores.
Tal como entendemos, o fato de que nem todo sintoma se organize como
uma metáfora não invalida a importância decisiva da consideração desta noção, que
articula um certo modo de funcionamento (embora não exclusivo) do inconsciente, e
que tem muito a nos ensinar para a clínica.
Nessa perspectiva, não compartilhamos com uma certa leitura da obra de
Lacan que divide sua teorização com relação às psicoses em dois momentos: uma
primeira leitura - relativa a seus primeiros textos -, que a considera deficitária para com
relação à neurose, e uma perspectiva supostamente mais refinada, característica de sua
leitura topológica.
Ao estudarmos o tipo de estabilização que uma metáfora pode veicular,
abrimos caminho para o entendimento sobre a metáfora delirante, não no sentido de
tomar a neurose como modelo, mas no sentido de aprender, num certo vai-e-vem, que
lógica que opera neste tipo sui generis de metáfora que é a metáfora delirante.
Acreditamos que a idéia de Nome-do-Pai como um certo operador, na
premissa fálica, se vê enriquecida com a perspectiva de localização de gozo, na medida
em que podemos entender o Nome-do-Pai como um princípio regulador de gozo. Não
entendemos este princípio como exclusivo nem tampouco privilegiado, como
abordamos em nosso texto.
119
É preciso levar em conta as vicissitudes de um Outro do gozo não marcado,
não regulado pela lei fálica. As psicoses nos mostram como as leis da linguagem estão
para além da lei interditora veiculada pelo Nome-do-Pai. Como vimos em nosso texto, o
Nome-do-Pai não é o único modo possível de fazer operar um ponto de basta,
amarrando, colcheteando significante e significado na cadeia significante.
Isto podemos ler no texto lacaniano mesmo antes da referência textual à
pluralização do Nome-do-Pai, na medida em que a própria metáfora delirante “Mulher-
de-Deus” nos aponta para uma certa amarração significante que não passa pelo Nome-
do-Pai, sendo esta função passível de ser preenchida por outros significantes.
Como vimos, não existe um significante último que feche a cadeia, e esta
falta estrutural no campo do Outro está colocada para todos. O delírio é uma forma,
entre outras, de tentar suplênciá-la.
Inúmeras questões ficaram em aberto ao longo de nosso texto, para serem
trabalhadas em um outro momento. Duas em especial, particularmente suscitadas pelo
caso que apresentamos: a articulação entre delírio e corpo, na medida em que o delírio
deste paciente convoca seu corpo, e a questão do endereçamento na psicose, em
particular, que tipo de endereçamento se opera neste caso.
Esse “algo mais”, que está para além do recorte feito neste trabalho, é o que
mantém aceso, nas palavras de Clarice Lispector, o “fino frio fio” do desejo, “essa coisa
grave e que impulsiona”.
120
BIBLIOGRAFIA
ALVARENGA, E. “Estabilizações”. In: algo de novo nas psicoses. Revista
Curinga, nº14, EBP-MG: 2000.
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGUINO. A Poética Clássica. São Paulo: Cultrix,
1997.
BENETI, A. “Do discurso do analista ao borromeano”. Disponível em:
http://www.opcaolacaniana.com.br/n3/pdf/artigos/ABDiscurso.pdf (Opção Lacaniana
on-line). Maio/2005.
BERCHERIE, P. Os fundamentos da Clínica: história e estrutura do saber psiquiátrico.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1980.
CLÉRAMBAULT, G. “Definição do automatismo mental” (1924). In: A clínica da
psicose: Lacan e a psiquiatria. Volume 1: os fenômenos elementares. Revista do
Tempo Freudiano Associação Psicanalítica. Rio de Janeiro: nº 3, abril de 2004.
DIAS, M. M. “As psicoses hoje, para o psicanalista da Escola de Psicanálise”. In:
Jornada de Estudos: As Psicoses. Revista da Escola Lacaniana de Psicanálise de
Campinas. São Paulo: nº. 2, 2000.
DOUVILLE, O. “O delírio de negação de Cotard a glas”. Revista da Psicologia
Clinica. Rio de Janeiro: vol.19, n.1, 2007.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa.
ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986.
FERRETTO, J. “O automatismo mental” (1999). In: A clínica da psicose: Lacan e a
psiquiatria. Volume 1: os fenômenos elementares, Op. cit.
121
FIGUEIREDO, Ana Cristina. Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica
psicanalítica no ambulatório público. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.
FREDERICO, Cristina. A psicose não desencadeada: um programa de investigação
clínica. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, IP/UFRJ, Programa de Pós-Graduação
em Teoria Psicanalítica, 2008.
FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição Standart
Brasileira, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987.
_______ (1894) "As Neuropsicoses de Defesa", vol.III.
_______ (1895) "Rascunho H", vol.I.
_______ (1896a) "Manuscrito K", vol.I.
_______ (1896b) "Observações Adicionais sobre as Neuropsicoses de Defesa”, vol.III.
_______ (1899) “Carta 125”, v. I.
_______ (1900) “Interpretação dos Sonhos”, v. IV e v. V.
_______ (1901) “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, v. VI.
_______ (1905a) “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, vol. VII
_______ (1905b) “Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente”, v. VIII.
_______ (1911) “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de
paranóia (dementia paranoides)”, vol. XII.
______ (1912-13) "Totem e tabu", vol. XIII.
______ (1914) "Sobre o narcisismo: uma introdução", vol. XIV.
______ (1915) "O Inconsciente", vol.XIV.
______ (1918[1914]) História de uma Neurose Infantil, v. XVII.
______(1923) "O ego e o Id", vol. XIX.
______(1924a) Neurose e Psicose,v. XIX.
122
______(1924b) " A perda da realidade na neurose e na psicose", vol. XIX.
______ (1927) “O Fetichismo”, v. XXI.
______ (1927) “Esboço de uma Psicanálise”, v. XXIII.
GUERRA, A. M. C. A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e
suplência. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, IP/UFRJ, Programa de Pós-Graduação
em Teoria Psicanalítica, 2007.
HANNA, M. S. G. F. A transferência na psicose: uma questão. Tese de Doutorado. Rio
de Janeiro, IP/UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2000.
JAKOBSON, R. “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia” In: Linguística e
Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969.
JULIEN, Philippe. O retorno a Freud de Jacques Lacan: a aplicação ao espelho. Porto
Alegre: Artes Médicas Sul, 1993.
LACAN, J. (1932) Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
________ (1946) “Formulações sobre a causalidade psíquica”. In: Escritos, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
________ (1949) "O estádio do espelho como formador da função do eu". In: Escritos,
Op. cit.
________ (1953) "O simbólico, o imaginário e o real". In: Nomes-do-Pai. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
________ (1953) “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos,
Op. cit.
123
________ (1955) O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
________ (1955-1956) O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1988.
________ (1957) "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud". In:
Escritos, Op. cit.
________ (1957-58a) "De uma questão preliminar a todo o tratamento possível da
psicose". In: Escritos, Op. cit.
________ (1957-58b) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
________ (1960) "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano". In: Escritos, Op. cit.
________ (1961) “A metáfora do sujeito”. In: Escritos, Op. cit.
________ (1962-63) O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2005.
________ (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
________ (1966a) "De nossos antecedentes". In: Escritos, Op.cit.
________ (1966b) "Apresentação das Memórias de um doente dos nervos". In: Outros
escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
________ (1967) “Alocução sobre as psicoses da criança”. In: Escritos, Op. cit.
________ (1975-76) O seminário, livro 23: o sinthoma, Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007.
LAIA, Sérgio. “Declinações do Pai em Lacan”. In: Latusa. Rio de Janeiro: Revista da
Escola brasileira de Psicanálise nº 11, 2006.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.
124
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de janeiro: Rocco, 1999.
MALEVAL, Jean-Claude. Lógica del delírio. Barcelona: Ediciones Del Serbal, 1998.
________ La forclusión Del Nombre Del Padre: El concepto y su clínica. Buenos
Aires: Paidós, 2002.
MARIANI, B.Silêncio e metáfora, algo para se pensar”. Revista Trama. Niterói:
Volume 3 - Número 5, 1º Semestre de 2007.
MELMAN, C. A crença, 1997. Conferência feita em Reims em 1997. Publicado
originalmente no Bulletin da Association freudienne internationale 84, setembro de
1999. Tradução de Fernando Tenório. Revisão de Sérgio Rezende. Disponível em:
http://www.tempofreudiano.com.br/artigos/detalhe.asp?cod=14
MENDONÇA, A. M. M. V. D. Da Verwerfung freudiana a foraclusão lacaniana.
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: IP/UFRJ, Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica, 1996.
MILLER, Jacques-Alain. Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997.
MILLER, J.-A. et al. Os casos raros inclassificáveis da clínica psicanalítica - A
conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.
MUÑOZ, N. M. Inventar o amor: um desafio na clínica das psicoses. Tese de
Doutorado. Rio de Janeiro, IP/UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, 2005.
PÉREZ, J.F. “Metáfora”. In: Scilicet dos Nomes-do-Pai, textos preparatórios para o
Congresso de Roma: AMP, 2006.
125
PORGE, E. Os nomes do pai em Jacques Lacan: pontuações e problemáticas. Rio de
janeiro, Companhia de Freud, 1998.
QUINET, A. Teoria e clínica da psicose. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003.
RABINOVITCH, S. A foraclusão: presos do lado de fora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
REGO, C. Traço, letra e escrita na / da psicanálise. Tese de Doutorado. Rio de
Janeiro, PUC, Programa de Pós-graduação em Psicologia, 2005.
SCHREBER, D.P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995.
SOLER, Colette. O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007.
VANDERMERSCH, B. “Definições da paranóia”. In: A clínica da psicose: Lacan e a
psiquiatria. Volume 2: as paranóias. Rio de Janeiro: Revista do Tempo Freudiano
Associação Psicanalítica, nº 4, janeiro de 2005.
VIDAL, E. Verwerfung e/ou forclusão.” In: Psicoses. Rio de Janeiro: Revista da
Escola Letra freudiana, Ano XXIV – nº 36, 2005.
VIDAL, P. Declinando o declínio do Pai. Tese de Doutorado. Programa de Pós-
Graduação em Teoria Psicanalítica, IP/UFRJ, Rio de Janeiro, junho de 2005.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo