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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Simone Lerner
De Coleções a Narrações:
recortes de um caminhamento em terapia ocupacional
Porto Alegre
2008
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Simone Lerner
De Coleções a Narrações:
recortes de um caminhamento em terapia ocupacional
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação.
Orientadora:
Profa. Dra. Simone Moschen Rickes
Porto Alegre
2008
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
____________________________________________________________________________________
L616d Lerner, Simone
De coleções a narrações: recortes de um caminhamento em terapia ocupacional
[manuscrito] / Simone Lerner; orientadora: Simone Moschen Rickes. – Porto Alegre,
2008.
132 f. + Anexo.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de
Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, 2008, Porto Alegre, BR-RS.
1. Psicanálise – Ética. 2. Terapia ocupacional. 3. Saúde mental. Freud, Sigmund. 4.
Lacan, Jacques Emile. I. Rickes, Simone Moschen. II. Título.
CDU – 159.964.28
_________________________________________________________________________________
Bibliotecária Neliana Schirmer Antunes Menezes – CRB 10/939
Simone Lerner
De Coleções a Narrações:
recortes de um caminhamento em terapia ocupacional
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação.
Aprovada em 10 out. 2008.
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Simone Moschen Rickes - Orientadora (UFRGS)
___________________________________________________________________________
Profa. Dra.Ana Maria Medeiros da Costa (UERJ)
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Andréa Máris Campos Guerra (UFMJ)
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Analice de Lima Palombini (UFRGS)
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Margareth Schäffer (UFRGS)
___________________________________________________________________________
Ao Moa
Que, do traço
Faz rastro
Aos pequenos grandes colecionadores
Eduardo e Rodrigo
Agradeço a minha mãe, Roseline, pela memória e pela transmissão da injunção ético-política de
dar andamento à história; e a meu pai, Ruy, pelo cultivo, não intencional, do espaço da ficção.
Agradeço às famílias Amon, Serafini e Trein Lerner, pela presença incansável em todas as horas.
A minha irmã, Claudia Lerner Zimmer, e a minha amiga e colega, Larissa Gomes, agradeço pelo
afeto, demonstrado em inglês e lá de longe, na elaboração do abstract desse trabalho.
Aos colegas do Cais Mental, agradeço pela experiência e pela possibilidade do exercício do
trabalho em equipe e da amizade.
Pela experiência, agradeço também aos pacientes do Cais Mental.
Agradeço a minhas amigas, Francilene Nunes Rainone e Marcia Sottili, redundantemente, pela
amizade.
A Francilene Nunes Rainone, agradeço, também, por muitas outras coisas, desde os tempos da
graduação, em terapia ocupacional, até hoje, dos encontros na praia, aos encontros nas oficinas.
Agradeço a minha amiga pelo compartilhamento e pelo exemplo de generosidade, ética e pique
de trabalho.
A minha amiga e comadre Marcia Sottili, também agradeço pelos não-disjuntivos, pelos baldes
de água fria que joga em nossas quentes cabeças, trazendo sempre, à cena, a justa medida da
sensatez. Um agradecimento especial a sua compreensão das ausências nos churrascos e banhos
de piscina, quando eu escrevia a dissertação. Por esta compreensão de amigo, também agradeço a
meu compadre, Nelson Sottili.
Agradeço a nossa colega, Marialva Nardi, pela parceria agradável e incansável nas oficinas de
culinária e nas tardes de CAD.
Muito especialmente, agradeço às colegas do grupo de pesquisa: Giovana Serafini, Ana Carolina
Rios Simoni, Thoya Mosena, Claudia Bechara Fröhlich e Tatielle Souza da Silva. Agradeço a
elas pelo testemunho e pelas contribuições preciosas, que tantas vezes me deixaram sem chão,
provocando a inscrição de buracos e bordas, da escrita.
Também pelo testemunho, compartilhamento e parceria, agradeço a Ester Luisa Rosso Trevisan e
Denise Maracci da Silveira.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
agradeço pelo acolhimento, por ter me permitido habitar esse (a mim) entranho e inquietante
território da pesquisa.
Agradeço a Ana Costa, Analice Palombini e Margareth Schäffer pela transmissão e pela
possibilidade do exercício do endereçamento. Também pela leitura generosa de meu projeto de
dissertação, levando-me, simultaneamente, a fechar e abrir caminhos. Agradeço por terem aceito
o convite de serem minhas leitoras.
Pela disponibilidade generosa de aceitar um desconhecido convite de última hora, assim como
pelas contribuições conceituais preciosas ao texto e ao cotidiano do trabalho, agradeço a Andréa
Guerra, psicanalista mineira cujas formulações teórico-clínicas vêm, algum tempo,
fomentando espaços de abertura e criação nos dispositivos da rede de serviços de saúde mental.
A Margareth Schaffer, agradeço, também e especialmente, pela oportunidade dos encontros, nas
sextas feiras pela manhã. Sempre foram um ótimo começo de fim de semana.
Por todos esses substantivos, agradeço a minha orientadora, Simone Rickes (trocando, claro, os
encontros de sexta feira pela manhã pelos de sexta feira à tarde). Muito obrigada, Simone, por
teres me permitido experienciar o convívio privilegiado com isso que é da ordem da mestria.
Agradeço ao amor e à paciência do meu marido, Moa. Também pelo amor e paciência,
juntamente com a inspiração, agradeço aos meus filhos, os pequenos grandes colecionadores
Eduardo e Rodrigo.
Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
João Cabral de Melo Neto, A Educação Pela Pedra
RESUMO
LERNER, Simone. De Coleções a Narrações: recortes de um caminhamento em terapia
ocupacional. Porto Alegre, 2008. 132 f. + Anexo. Dissertação (Mestrado em Educação)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-
Graduação em Educação, Porto Alegre, 2008.
A presente pesquisa buscou refletir acerca do processo de trabalho clínico, em terapia
ocupacional, nos atendimentos a sujeitos com transtornos mentais graves. Partindo da experiência
de trabalho da pesquisadora, que se desenvolve em um centro de atenção psicossocial (caps), da
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, procurou-se refletir acerca do processo de construção
narrativa e do estatuto do objeto na clínica da terapia ocupacional, inserida no contexto da rede
pública de dispositivos de saúde mental. Tomando como ponto de partida o ato de colecionar,
esse estudo se tramou a partir de fragmentos da prática clínica cotidiana, bem como de uma
reflexão mais detalhada acerca do processo de escrever de um paciente, a quem se chamou de
Ciro. Utilizou-se o termo caminhamento, cunhado por Antoninho, também paciente do caps,
como eixo metodológico, alçando referido termo ao estatuto de conceito. Com o sentido de
caminhar acompanhado, tomou-se o conceito de caminhamento, no qual não se tem,
propriamente, como objetivo, um bem aprioristicamente determinado a alcançar, mas sim, uma
posição de disponibilidade para um encontro.
A construção do objeto de estudo se deu a partir de elementos articulados, primeiramente,
aos moldes de uma coleção. Estes elementos, ao longo do texto vão sendo tramados para
produzir a narrativa dessa dissertação. Utilizou-se a figura topológica da Banda de Moebius
como lente para refletir acerca do trabalho que se produz em dobra, no sentido de que, como
efeito do jogo transferencial, o formato que a escrita da dissertação toma é homólogo aos
processos trilhados por Ciro, os quais considerou-se terem sido da ordem de um movimento que
partiu de coleções, chegando a narrações possíveis. Entendendo o trabalho em oficinas
terapêuticas como situado em um espaço híbrido (Rickes, 2007), em uma zona de fronteira entre
o campo clínico e o educativo, utilizou-se, para escrever e ler a experiência, referenciais
conceituais oriundos da psicanálise, principalmente das obras de Freud e Lacan, e de leituras das
mesmas realizadas por autores contemporâneos.
Procurou-se pensar, tomando o caminhamento como método, nos efeitos produzidos
através deste trabalho em terapia ocupacional, a partir das reflexões acerca da negativa (Freud,
1925), na perspectiva da disjunção que produz o campo do não eu, marcando, conseqüentemente
a diferença entre o fora e o dentro; do estranho (Freud, 1919), para prblematizar os momentos
em que se faz necessária a (re)fundação destes campos; do endereçamento (Lacan, 1955-1956),
no sentido de que a inscrição psíquica se efetiva quando encontra representação no discurso
social (no Outro, desde a psicanálise); e da densidade simbólica diferenciada (Guerra, 2004),
estatuto do objeto produzido em um espaço de oficinas terapêuticas, como operador de um corte,
uma disjunção na relação de continuidade que se estabelece entre o psicótico e o Outro.
Palavras-Chave: 1. Psicanálise – Ética. 2. Terapia ocupacional. 3. Saúde mental.
4. Freud, Sigmund. 5. Lacan, Jacques Marie Emile.
ABSTRACT
LERNER, Simone. De Coleções a Narrações: recortes de um caminhamento em terapia
ocupacional. Porto Alegre, 2008. 132 f. + Anexo. Dissertação (Mestrado em Educação)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-
Graduação em Educação, Porto Alegre, 2008.
The aim of the present work is to reflect on the process of clinical occupational therapy
practice, in the caring for individuals with severe mental disease. Based on the author's
experience working at a municipal psychosocial outpatient center (“CAPS”) in the city of Porto
Alegre, Brazil, the objective was to reflect on the process of developing a narrative and also on
the status of the object in the occupational therapy practice as part of the public mental health
system. Utilizing the act of collecting as a starting point, the study evolved from fragments of
daily clinical practice into a more detailed reflection into the writing process of a patient whom
we named Ciro.The term "caminhamento" (a word not existent in the Portuguese language,
coined by Antoninho, also a patient at the “CAPS”) was used as methodological axis, as well as,
eventually, a concept. While uttered originally with the meaning of "walking with a companion",
the concept of "caminhamento" refers to a process without an objective to be reached, but as a
situation of openness to an encounter.
The objective of this study grew from articulated fragments assembled as a collection,
initially. These elements are intertwined throughout the text, producing a narrative, which is this
dissertation. The topological picture of a Moebius strip was used as a lens through which to view
this work, as a loop. As an effect of transferential play, the format that this narrative took is
homologous to the process utilized by Ciro considering he started with collections and proceeded
to tentative narratives. From the standpoint that the therapeutic worshop is a hybrid space (Rickes
2007), on the border between clinical and educational, the conceptual references used to describe
the experiences herein came from the field of psychoanalysis, specially the works of Freud and
Lacan and their more contemporary scholars.
Utilizing "caminhamento" as a method, the author attempted to think about the effects of
this work in occupational therapy. Reflecting on negation (Freud, 1925) , in the perspective of the
disjunction that creates the field of "not me", consequently stressing the difference between the
out and the in; on the uncanny (Freud, 1919), to question the moments when the (re)foundation of
these fields is necessary; on the addressment (Lacan,1955-1956), in the sense that psychic
inscription is only effective when it finds representations in the social discourse (in the Other,
from psychoanalysis); and, on the differentiated symbolic density (Guerra, 2004), status of object
originated in therapeutic workshops as the one that severs the relationship of continuity that is
established between a psychotic individual and the Other.
Keywords: 1. Psychoanalysis – Ethics. 2. Ocupacional therapy. 3. Mental health.
4. Freud, Sigmund. 5. Lacan, Jacques Marie Emile.
SUMÁRIO
1. JONAS, O COLECIONADOR ........................................................................................ 15
2. DAS COLEÇÕES ...............................................................................................................17
2.1 UNS NOVELOS ............................................................................................................... 17
2.1.1 O Colecionador ............................................................................................................. 19
2.1.2 Antoninho, um Colecionador ...................................................................................... 21
2.1.3 Irmãos Collier, uns Colecionadores? .......................................................................... 23
2.1.4 De Coleções a Narrações .............................................................................................. 26
2.1.5 Da Posição Moebiana, a Dobra ................................................................................... 28
2.1.6 Da Carta roubada, o Jogo Posicional .......................................................................... 30
2.2 UNS FIOS ......................................................................................................................... 33
2.2.1 Dos Caminhamentos ..................................................................................................... 33
2.2.2 Da Reforma Psiquiátrica.............................................................................................. 38
2.2.3 Do Caps Cais Mental Centro ...................................................................................... 39
2.2.4 Da Terapia Ocupacional .............................................................................................. 41
2.2.5 Da Escolha e da Responsabilização ............................................................................ 43
2.2.6 Do Fazer, do Vazio e da Responsabilidade ................................................................ 46
2.2.7 Da Inserção e da Inscrição .......................................................................................... 47
2.2.7.1 Da Clínica Ampliada ................................................................................................... 50
2.2.8 De Alguns Conceitos .................................................................................................... 52
2.2.8.1 Do Compartilhamento, Testemunho e Endereçamento: considerações acerca das
psicoses ................................................................................................................................... 52
2.2.8.2 Fazer e Transicionalidade: algumas idéias ................................................................. 64
3. DAS NARRAÇÕES .......................................................................................................... 73
3.1 UMA TRAMA: da escrita da experiência ........................................................................ 78
3.1.1 Do Aportar no Cais .......................................................................................................78
3.1.2 Da Ancoragem .............................................................................................................. 80
3.1.2.1 Na Superfície do Inferno, o Estranho ......................................................................... 83
3.1.2.2 Na Caixa com os Demônios, a Negativa .................................................................... 94
3.1.2.3 O partido Azul, o Endereçamento ............................................................................ 104
3.1.3 Da Partida: na superfície do inferno – o livro, a densidade simbólica Diferenciada
............................................................................................................................................... 112
3.2 UM TECIDO: da experiência da escrita ......................................................................... 118
3.2.1 Assinaturas em Dobra ............................................................................................... 123
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 125
ANEXO ................................................................................................................................ 133
1 JONAS, O COLECIONADOR
Cedo na vida, Jonas se descobriu um colecionador.
Um dia, enquanto brincava em uma praça cheia de esconderijos feitos de terra e árvores,
achou umas pedrinhas diferentes e decidiu guardá-las no bolso.
Desde então, passou a catar pedras de tudo quanto é tipo, que, de dentro dos bolsos, iam
parar em um copinho com tampa, que ficava na estante do seu quarto.
Os pais de Jonas achavam estranha aquela coleção, meio sem sentido, meio sem
finalidade. Jonas entendeu, então, de tanto ouvir os pais, que esse era o princípio da coleção:
guardar por guardar, cuidar por cuidar. Não tinha nada a ver com usar, com fazer sentido, com
ter finalidade.
Jonas gostava, também, de desenhar. Desenhava tanto, que estava sempre fazendo pontas em
seus lápis, lápis preto, lápis de cor. Um dia, olhou para umas pontinhas coloridas e as achou tão
bonitinhas. Decidiu colecionar pontas. Mais um copinho, mais uma tampinha. E um montão de
pontas, de tudo quanto é cor.
Na escola, tinha uma turma de amigos de Jonas que juntavam pontas pra ele, e a coleção
cresceu bastante e rapidamente.
Foi também na escola que Jonas conheceu seu primeiro álbum de figurinhas, seu
primeiro projeto de coleção. Essa coleção era diferente, pois tinha um final a ser alcançado. E
Jonas se empenhou muito pra chegar até ele. Logo aprendeu a bater figurinhas e negociar
figurinhas “raras”. Se fosse necessário, trocava duas por uma, e seu álbum ia ficando cheinho
delas, até que um único espaço ficou vazio em todo o álbum.
O pai de uma colega de Jonas prometeu que ia conseguir a figurinha que faltava. Levou
alguns dias, mas ele conseguiu mesmo, e Jonas completou o álbum. Que sensação estranha!
Jonas nunca tinha terminado uma coleção. De repente, com o álbum completo, se sentiu meio
vazio. Bater figurinhas, que era tão divertido, perdeu a graça. Assim como ficar pensando, na
hora do almoço, nas trocas que ia fazer na escola, com tantos amigos novos e diferentes que
colecionavam aquelas figurinhas. Completar o álbum foi, ao mesmo tempo, bom e ruim. Jonas
entendeu que, por mais que tivesse um projeto, uma autêntica coleção não deveria chegar a um
fim, não deveria terminar nunca. Deveria ser como respirar: quando a gente solta o ar, já tem que
pegar ele de novo. Jonas achou bonito dizer essas palavras juntas: respirar e colecionar.
Um dia, Jonas foi viajar com seus pais. Ficou pensando no que poderia levar da viagem,
como uma lembrança de um lugar. Alguma coisa que, em casa, ia lhe lembrar daquela viagem.
Comprou um mapa. Mandou fazer um quadro e pendurou no seu quarto. No começo, mostrava
para os amigos, apontando no mapa, os lugares que tinha visitado e contava histórias incríveis de
cada um. Algumas aconteceram com ele, outras eram de pessoas que também tinham ido
naquele lugar. Histórias verdadeiras, histórias um pouco inventadas, às vezes, aumentadas, mas
sempre histórias.
Jonas ficava tão encantado com aquele mapa, com tanta história, que decidiu que ia
colecionar mapas dos lugares pra onde viajasse. Achou que tinha a ver com o álbum de
figurinhas, mas não tinha tanto assim. Aquela coleção não vinha pronta e não tinha fim,
começo. Jonas foi enchendo suas paredes de mapas, mapas de tudo quanto é tipo, carregados de
tudo quanto é história. Às vezes, olhando um mapa, Jonas se lembrava de uma história que tinha
vivido, ou que alguém lhe contou. Jonas pensava no passado e imaginava um futuro.
Lembrou-se, então, subitamente, das pedrinhas e das pontinhas de lápis. E foi que
Jonas sentiu a coleção como uma máquina que viaja no tempo, como uma linha que costura o
que passou com o que é, inventando o que vai ser. De tantas histórias colecionadas, Jonas
inventou seu futuro: decidiu ser escritor.
2 DAS COLEÇÕES
2.1 UNS NOVELOS
A presente pesquisa se debruça sobre um campo empírico que nos permite pensar acerca
da tensão existente entre o sujeito e suas possibilidades de se representar no discurso social,
sendo, para isto, imprescindível que esses campos se coloquem em relação. Dito de outra forma,
para que alguém se represente, no discurso social, é preciso que se coloque em relação a ele.
Para um leitor psicanalista, salientamos, neste trabalho, um certo modo de pensar a
materialidade do objeto. Para um leitor terapeuta ocupacional, ou demais trabalhadores do
campo da saúde mental, procuramos, justamentente, salientar o esvaziamento da materialidade
do objeto, que, por vezes, o satura, na direção da centralidade do processo, da processualidade.
Entendemos compartilhar, aqui, com o que traz Andrea Guerra (2004), ao se referir ao
objeto produzido em oficinas terapêuticas
1
, tratando-se, justamente, de algo que se configura
“[...] na intersecção entre objeto, no campo da clínica, e produto, no campo sociopolítico”
(ob.cit., p.51). Tal colocação nos remete, ainda, à tematica relativa à articulação possível, entre a
clínica e a política, que incluimos como ponto de reflexão neste trabalho.
Desde o início desse processo, tínhamos, como questão, algo que nos intrigava
bastante tempo, no sentido de nos indagarmos acerca da função clínica de um trabalho em
oficinas terapêuticas. Para além da questão do encontro, das possibilidades de compartilhamento
entre pares, na perspectiva da inserção dos sujeitos (isolados pela própria condição psicótica e
pelos tratamentos aos quais teriam se submetido anteriormente), nos perguntávamos acerca da
potência clínica, de produção de si, possível em um trabalho em oficinas, ou mesmo em
atendimentos individuais em terapia ocupacional, nos quais a produção de um objeto, de algo
material se coloca em cena.
1
Retornaremos ao tema do objeto produzido (nesse campo de trabalho) ao longo de nosso texto.
Seguindo nossas indagações, consideramos ser, precisamente, a questão do estatuto do
objeto o tema organizador de nosso caminhamento
2
, sendo sobre e a partir dela, que procuramos
nos debruçar em nosso percurso de pesquisa. Nessa trajetória, tomando, então, como território,
os atendimentos, em terapia ocupacional, a sujeitos com psicoses, ou portadores de transtornos
mentais graves
3
, prática cotidiana de trabalho que desenvolvemos, há alguns anos, no Caps Cais
Mental Centro
4
, entendemos termos colecionado alguns objetos, os quais, na escrita desse texto,
se colocaram em relação, a partir de uma ordem narrativa.
Os objetos de nossa coleção vão desde cenas do cotidiano de nossa prática, passando por
histórias que capturaram nossa atenção e fragmentos da defesa de nosso projeto de dissertação,
até alguns operadores conceituais que nos permitiram refletir acerca de nossa experiência,
escrevendo-a. Embora estes elementos, que se referem à experiência, à reflexão e à escrita da
mesma, apareçam seqüenciados, não como situá-los no sentido de uma temporalidade que
defina exatamente o que veio antes e o que veio depois, o que nos leva a considerar que se trata
de uma operação em simultaneidade.
É partindo de uma posição possível de ser ocupada, pelo jogo transferencial que se dá no
atendimento aos sujeitos com os quais trabalhamos, que propomos, nesta trajetória de pesquisa,
um percurso de trabalho que vai de coleções a narrações, sobre o qual versarão as páginas que se
seguem.
2
Apesar de entendermos que a noção de caminhamento vai se construindo ao longo deste trabalho, fazemos uma
referência mais direta a ela no item 2.2.1 Dos caminhamentos.
3
Escolhemos, em algumas passagens do texto, utilizar o termo transtornos mentais graves, preconizado, atualmente,
pelo Ministério da Saúde, por entender que o mesmo pode dar conta de um espectro mais amplo de sintomas (não
somente da psicose), que são tomados como efeito de um declínio da função paterna e uma conseqüente
dessimbolização, segundo as teses de Dufour (2005) e Lebrun (2004), entre outros autores. Jurandir Freire Costa
(2004), neste sentido, aponta, também, novos sintomas, na contemporaneidade, os quais entendemos se encontrarem
na mesma direção. Ao utilizar o termo psicose, estaremos nos referindo, especificamente, à estruturação psicótica,
tal como foi conceituada por Lacan ([1955-1956] 1992), no sentido da forclusão do Nome-do-Pai: [...] o se trata
de fenomenologia. Trata-se de conceber, não de imaginar, o que se passa para um sujeito quando a questão lhe vem
dali onde o significante, quando é o buraco, a falta que se faz sentir como tal.” (Lacan, [1955-1956] 1992,
p.230-1).
Como toda a tentativa de nomeação, esta também nos coloca alguns problemas, no sentido de não abarcar a
diversidade dos impasses enfrentados pelos sujeitos que freqüentam um Caps. Na medida do possível, procuraremos
vetorizar nossa reflexão na direção da psicose, embora questões oriundas de outros campos estejam conjuntamente
contribuindo para a mesma.
4
Centro de Atenção Psicossocial, dispositivo da rede de saúde mental da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, no
item 2.2.3 Do caps cais mental centro.
2.1.1 O colecionador
Em nosso projeto de dissertação
5
, trabalhamos a noção do colecionador para pensar
acerca do estatuto do objeto na clínica da terapia ocupacional. Iniciamos, nessa direção, com
Hannah Arendt (1993), referindo-se ao que confere sensação de consistência, de permanência
aos homens, apontando que os objetos mais inúteis (que não têm no uso seu fim) são, justamente,
os que produzem esta sensação (entre eles, os objetos de arte). Tais objetos não portam, em si, a
dimensão da necessidade, e confeririam, portanto, ao homem, uma existência eminentemente
humana e, ao mundo das coisas, a possibilidade da permanência
6
:
Entre as coisas que emprestam ao artifício humano a estabilidade sem a qual ele jamais
poderia ser um lugar seguro para os homens, uma quantidade de objetos estritamente
sem utilidade e que, ademais por serem únicos, não o intercambiáveis, e portanto não
são possíveis de igualação através de um denominador comum como o dinheiro; se
expostos no mercado de trocas, poderiam ser apreçados arbitrariamente. Além disso, o
devido relacionamento do homem com uma obra de arte não é ‘usá-la’; pelo contrário,
ela deve ser cuidadosamente isolada de todo o contexto dos objetos de uso comuns para
que possa galgar o seu lugar devido no mundo. Da mesma forma, deve ser isolada das
exigências e necessidades da vida diária, com as quais tem menos contato que qualquer
outra coisa. [...] Ainda que a origem histórica da arte tivesse caráter exclusivamente
religioso ou mitológico, o fato é que a arte sobreviveu magnificamente à sua separação da
religião, da magia e do mito. (ARENDT, ob.cit., p.180-181).
Abordando, desta forma, a questão da inutilidade do objeto, ou a produção de artefatos
que não portam relação com o que é da ordem da necessidade, a autora conclui que a mais alta
capacidade do homo faber (manifesta, por exemplo, nos artistas, poetas, historiógrafos,
escritores) é o que permite que o único produto da atividade humana, ou seja, sua história, possa
sobreviver. E é, justamente, a história que deve ser, portanto, a medida das coisas (e não a
necessidade da vida biológica ou o utilitarismo da fabricação e do uso).
Lacan ([1959-1960] 1997), ao abordar, em certo sentido, a questão da inutilidade do
objeto, conta-nos a respeito de uma visita que fez a um amigo, colecionador de caixas de fósforo
5
Caminhamentos em Terapia Ocupacional – a Construção de Endereçamentos Possíveis no trabalho em um
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).
6
Para Platão (apud Arendt, ob. cit.), a obra de arte era considerada divina, por se assemelhar à imortalidade.
vazias. Antes de tal exemplo, adverte que o objeto, no caso de uma coleção, distingue-se do
objeto que dá satisfação a uma pulsão.
Em outros termos, esse arranjo manifestava que uma caixa de fósforos não é
simplesmente algo com uma certa utilidade, [...] que a caixa de sforos sozinha é uma
coisa, com sua coerência de ser. O caráter completamente gratuito, proliferante e
supérfluo, quase absurdo, dessa coleção visava, com efeito, sua coisidade de caixa de
fósforos. O colecionador encontrava assim sua razão nesse modo de apreensão que
incidia menos na caixa de sforos do que nessa Coisa
7
que subsiste na caixa de fósforos.
(LACAN, 1997 [1959-1960], p.143-4).
Para Ana Costa (2003), a questão da coleção, em Lacan, refere-se, justamente, a um
esvaziamento do objeto a seu mínimo estatuto e a relação a ele como traço, “[...] que faz
necessária a série como estabelecimento de um diferencial” (ob. cit., p. 133).
Assim como Lacan, Benjamin também se interessou por coleções, ele próprio sendo um
colecionador. Arendt (1987), no escrito biográfico que faz dele, lembra de sua coleção de
citações, sistematicamente organizadas em seus cadernos de capa preta, portados e alimentados
por ele ao vagar pelas cidades. Benjamin tinha uma idéia de poder escrever um trabalho
inteiramente composto por citações.
Para Arendt, Benjamin, ao analisar a paixão do colecionador, procurou ilustar a
ambigüidade das atitudes em relação ao passado, no sentido de, simultaneamente, tratar-se de
querer preservar e de querer destruir:
“[...] o colecionador é a paixão das crianças, para quem as coisas ainda não são
mercadorias eo são avaliadas segundo sua utilidade, e também o passatempo dos ricos,
que possuem o suficiente para não precisar de nada útil e portanto podem se permitir a
fazer da transfigurão de objetos o seu negócio. [...] Em qualquer caso, o objeto
colecionado possui apenas um valor diletante e nenhum valor de uso, qualquer que seja”
(p.169, grifo da autora).
Nessa direção, Benjamin aproximava a paixão do colecionador da atitude do
revolucionário, uma vez que, em ambos, “[...] as coisas estão liberadas do trabalho humilhante
7
A noção de Coisa é desenvolvida por Lacan, a partir da referência, de Freud, a Das Ding, no Entwurf (Projeto
para uma psicologia científica), e se relaciona ao vazio em torno do qual criam-se bordas, como um oleiro faz seu
vaso a partir de um buraco (criando, simultaneamente, o vaso e o buraco) o que nos remete, justamente, ao vazio no
centro do real, ou “o que do real padece de significante” (Lacan, ob. cit., p.157).
da utilidade”, complementando a redenção dos homens (Arendt, ob. cit., p.169). O objeto passa a
ter, então, um valor intrínseco, não sendo mais um meio para determinado fim.
Entendemos que Paul Valéry (1991), também nessa direção, define suas obras de
espírito, ou seja, “[...] aquelas que o espírito quer fazer para seu próprio uso, empregando para
esse fim todos os meios físicos que possam lhe servir [...]”, dando ao fazer
8
, à ação que faz uma
dimensão maior que a coisa feita. (ob. cit., p. 180-1).
2.1.1.1 Antoninho, um colecionador
alguns anos, venho acompanhando Antoninho, em terapia ocupacional, no Caps Cais
Mental Centro
9
. Antoninho graduou-se em arquitetura, pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, na década de oitenta. Em sua primeira experiência de trabalho, já como arquiteto
formado, adoeceu, motivo pelo qual acabou abandonando o exercício profissional. O predicado
“arquiteto”, entretando, manteve-se presente em seu discurso, acompanhando-o nas situações em
que fala de si.
Encontramos, na arquitetura e nas tantas possibilidades que daí se abriram, uma via de
trabalho com Antoninho, que sempre nos mostrou, a seu jeito, sua “paixão” pela fotografia, pelos
livros (de arquitetura, principalmente), escritos (sobre favelas, recorrentemente), pelos desenhos
com poucos traços.
Com alguma resistência inicial de sua família, passamos a acolher suas atitudes de gastar
uma parte significativa de sua aposentadoria na compra de objetos relacionados a suas “paixões”,
ou à carreira na qual se graduou. Com os objetos trazidos em cada encontro de trabalho,
inventamos diferentes projetos, aos quais ele passou a dar andamento, a seu ritmo, também nos
intervalos entre um e outro atendimento. Utilizou, por exemplo, as lapiseiras e folhas importadas
8
Utilizaremos, assim, a palavra fazer para nos referirmos ao processo de produção de um objeto, através do
trabalho em terapia ocupacional. Tomamos o conceito na direção que aponta Valéry e não na que traz Aristóteles,
ao colocar o fazer como a algo eminentemente técnico, onde se opera uma tida separação entre o criador e a
criatura.
9
Conforme nota anterior, discorreremos acerca do Caps Cais Mental Centro no terceiro capítulo deste trabalho.
que comprava para desenhar casas ideais (inclusive para o Caps), tomando, como base, os
fragmentos de leitura que fazíamos, durante os atendimentos, de alguns livros adquiridos por ele.
A constância desse movimento de adquirir objetos determinados e trazê-los ao espaço
dos atendimentos, levou-nos a levantar como hipótese, que Antoninho, agia como um
colecionador: de lapiseiras, livros de arquitetura (que, muitas vezes, não eram para ler),
fotografias, fichas que escrevia, estojos, réguas.
Tomando outro caminho, tal atitude foi interpretada, pela equipe de trabalho, como algo
da ordem de uma pura acumulação, que deveria, portanto, ser questionado, uma vez que se
referia ao lugar que Antoninho ocupara no passado, ao se graduar em arquitetura, mantendo-o
imaginariamente cristalizado nele. Minha tendência era, justamente, outra: a de ver Antoninho
como alguém que fazia uma tentativa de, talvez, liberar o objeto de seu caráter de utilidade,
revelando-se um colecionador.
Acompanhar Antoninho, considerando esse traço de colecionador, que poderia ser parte
de sua história, e as tentativas que fazia, em nossos encontros, de criar diferentes projetos com os
objetos que adquiria, levou-nos a pensar, entre outras coisas, acerca de nosso recorte clínico de
trabalho, desde a terapia ocupacional. Estaria este dirigido aos objetos que permanecem sempre
(e apenas) constantes, presentes, depositados, ou aos que constituem, partindo de uma presença,
um outro endereço, que seria a narração, ou a ficção compartilhada
10
?
O primeiro efeito dessa reflexão foi, justamente, a escrita de Jonas, o colecionador. Na
verdade, não pensávamos em apresentá-lo nesse caminhamento. Ele foi, entretanto, aparecendo,
supomos que por falar um pouco desse processo de colecionar, que vimos fazendo, e das
possibilidades de colocar os objetos das coleções em uma ordem narrativa, em uma narração.
10
Temas que trabalharemos ao longo de nosso texto.
2.1.1.2 Irmãos Collyer, uns colecionadores?
Entendemos que a questão das coleções pode ser tomada de diferentes formas, que vão
desde a atitude de acumular objetos, como uma certa estocagem, no sentido de não ser possível
se desfazer de nada, até algo que envolve um certo método e, conseqüentemente, alguma
experiência de seriação, temporalidade, narração.
Ana Costa (2003) nos lembra que “O colecionador sabe esconder seu valor na essência
do objeto, subtraindo-o da circulação, do gasto das trocas que a equivalência dos valores põe em
causa” (ob. cit., p. 129). Segundo a autora, ao mesmo tempo em que tal figura pode adquirir um
considerável status social, pode estar, também, nas margens da sociedade. Desenvolve, então, tal
questão na direção de pensar o colecionador como uma “figura da ausência”, no sentido de que
sua representação se sustentaria por uma espécie de subtração.
O colecionador compõe uma peculiar figura, que sugerimos como uma das tantas
alegorias de “figuras da ausência”. São figuras cuja representação se sustenta de uma
espécie de subtração. Ao buscarem registrar em uma peculiaridade de seu lugar social, o
instituem suportando em uma condição de subtração (COSTA, ob. cit., p. 134, grifos da
autora).
Para situar este ponto de sua reflexão, Ana Costa se refere a um texto de Ernest Dupré,
escrito 1913, no qual este autor aborda casos que denominou de “mendigos-tesoureiros”.
Tratavam-se de pessoas idosas, em situação de miséria extrema, que morriam, muitas vezes, de
inanição. A surpresa era que, após sua morte, eram encontradas, nos locais em que viviam,
somas consideráveis de dinheiro, que lhes teriam permitido viver bem a vida e por muitos anos.
A questão é que estas somas eram [...] guardadas zelosamente, como se guarda uma coleção de
coisas” (ob. cit., p. 134, grifo da autora).
No extremo do termo coleção, ou das “figuras de ausência”, encontramos a história dos
Collyer
11
, dois irmãos americanos que viveram em Nova Iorque, na primeira metade do século
vinte. Em função de sua compulsão por acumular objetos, forneceram os elementos para, em seu
11
Ver detalhes em http://en.wikipedia.org/wiki/Collyer_brothers e no filme (curta-metragem) de Alfeu França
(2006): Irmãos Collyer: uma fábula do acúmulo.
continente, criar-se a categoria nosográfica “'Collyer brothers syndrome”, que se caracterizaria
pelo medo de jogar qualquer coisa fora, de se desafazer dos objetos.
Homer Lusk Collyer (1881–1947) e Langley Collyer (1885–1947) obsessivamente
colecionaram jornais, livros, móveis, instrumentos musicais, entre outros objetos,
cuidadosamente protegidos de possíveis “intrusos”, através de janelas lacradas e armadilhas por
eles desenvolvidas. Foram encontrados mortos, na casa em que vivam como hermitões,
rodeados, ou melhor, soterrados por mais de cem toneladas de “entulhos”.
Enquanto viviam, por falta de pagamento, seu gás, telefone, água e eletricidade foram
cortados, o que levou Langley, a partir de suas habilidades inventivas, a criar engenhocas e a sair
à noite para buscar água e alimentos. Em seus trajetos, alimentava também suas coleções,
voltando sempre, para casa, com pedaços de objetos abandonados, que despertavam seu
interesse.
Em 1947, um telefonema anônimo denunciou que havia uma pessoa morta na casa dos
Collyer. A polícia, após enfrentar dificuldades para entrar, em função do acúmulo de “lixo”,
encontrou o corpo de Homer. Duas semanas mais tarde, havendo sido retiradas,
aproximadamente, 100 toneladas deste “lixo”, encontrou-se o corpo de Langley parcialmente
decomposto, a alguns metros além de onde se encontrara o corpo de seu irmão. Aparentemente,
Langley estaria tentando levar comida para Homer, engatinhando sob túneis formados entre
pilhas de jornais diários, quando disparou uma de suas armadilhas. Dias depois, Homer, que,
além de ter ficado cego, sofria de reumatismo, teria morrido de fome.
Destacamos, ainda, desta história, uma passagem que, ao nosso ver, é bastante potente
para pensarmos a relação dos Collyer com os objetos que acumulavam. Em 1942, entrevistado a
respeito do porquê acumular tantos jornais diários, Langley respondeu: I am saving newspapers
for Homer, so that when he regains his sight he can catch up on the news. Traduziríamos, por
impulso e seguimento semântico da pergunta, que Langley estava guardando os jornais para
Homer poder lê-los quando recuperasse a visão. Chama a nossa atenção, porém, o uso da palavra
saving, literalmente traduzida por salvando. Estariam, então, os Collyer, salvando os objetos que
acumulavam, ao subtraí-los de sua circulação social, ou seja, poupando-os da perda necessária a
sua circulação no laço social, ao seu uso pelo homem, a sua apreensão no sistema simbólico? Ou,
por outro lado, nesse movimento de subtração dos objetos, como uma posição primeira de
apagamento, estariam fazendo uma tentativa de produção de uma falta no campo do Outro
12
?
(Interior da casa dos Collyer)
Se consideramos que há, aqui, algo relativo a um “puro acúmulo”, poderíamos, então,
tensionar a relação que se coloca entre acúmulo e narração. Quando podemos pensar que há,
mesmo em se tratando de um acúmulo, algo da ordem de uma narração? Seria possível
considerar que, na história dos Collyer, estaria em jogo um certo paradigma do acúmulo, sim,
desprovido da dimensão narrativa?
13
Parece-nos que, nesse caso, a sobreposição dos objetos, ou de seus pedaços, achata
qualquer possível intervalo entre eles, indiferenciando-os, no sentido de produzir um bloco
único, sem destaque de elementos e sem uma relação subseqüente entre eles. Há, aqui, um
apagamento do intervalo (que é o que permite, precisamente, alguma diferença entre os
elementos), não sendo possível qualquer produção de ordem narrativa.
12
Tomaremos o tema do campo do Outro no item 2.2.7 De alguns conceitos.
13
o deixamos, aqui, porém, de considerar que, mesmo minimamente, havia uma dimensão de escolha no acúmulo
dos objetos, no sentido de que determinadas coisas eram “estocadas”, outras, não.
2.1.2 De coleções a narrações
Podemos pensar que o ato de colecionar porta, necessariamente, algum elemento de ordem
narrativa, se consideramos que há, mesmo que minimamente, uma certa organização
metodológica no “acúmulo” de objetos. Tal organização se relaciona com as (conscientes ou
não) estratégias, escolhas, critérios, catalogação, organização, entre outros aspectos, de uma
coleção
14
. É como se a coleção estivesse em um espaço “entre”: espaço intervalar entre a
acumulação (do que se sobrepõe, quase sem lógica) e a narração (dos elementos em um
seqüenciamento no tempo e da perda aí implicada).
Ana Costa (2003) trabalhou o tema das coleções, para pensar a relação entre natureza e
cultura, no sentido da descontinuidade que se impõe entre elas. Lembra-nos que, em um museu,
por exemplo, “A maneira como são dispostas e construídas as coleções constitui, por si mesma,
uma criação artística” (ob. cit., p. 72). Tal apontamento nos remete a pensar que as escolhas
envolvidas em uma coleção dizem de um sistema simbólico, do elemento subjetivo dela
inseparável, ou do que “[...] interrompe a continuidade entre homem e natureza” (ob. cit., p. 72).
A autora aponta, então, para os princípios de uma coleção, ou seja, “A possibilidade de
estabelecer, ao mesmo tempo, descontinuidade e permanência” (ob.cit., p. 72), indicando-nos o
que é da ordem de uma diferenciação. Lembramos, aqui, da referência que faz Arendt (1987)
sobre a visão de Benjamin acerca da aitude do colecionador, no sentido de querer preservar e
querer destruir. Diz Ana Costa:
O descontínuo, para os humanos, é introduzido pelos seus sistemas de símbolos, que
estabelecem o próprio indivíduo como um entre outros, por relação a outros (diferença,
identidade, taxonomia), em uma condição de contar-se no real, entre seus semelhantes e
no tempo. (COSTA, ob. cit., p. 73).
14
Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Collecting
Queremos que esse trabalho fale disto: do que vamos acumulando, ao longo da vida,
como coleções mesmo, de imagens, passagens, textos, conceitos, afetos, e do que podemos fazer
com isto, ou em que tipo de colcha os retalhos vão ser transformados num final. O que está em
jogo é, justamente, a possibilidade de que estes elementos, os objetos colecionados, se coloquem
em uma seqüência, experimentando-se, desta forma, as diferenças de sentido produzidas a cada
novo elementos incluído. Já, aqui,observamos a dupla dimensão da narração, isso de ser
transformados em: trata-se de algo que cria um novo (a partir de uma referência) e modifica a
própria referência...
Destacando os fios dos novelos, para poder tecê-los, dividimos nosso texto em duas partes:
na primeira, "Das Coleções", levantamos alguns pontos colecionados, que dizem respeito aos
operadores e aos “tensionadores” com os quais procuramos construir nossa narrativa; na
segunda, "Das Narrações", tratamos de fazer sua tessitura, a partir e através da escrita da
experiência.
Trazendo a produção escrita de Ciro, um paciente por nós acompanhado, parece-nos
termos imprimido, no texto, esse movimento que vai de coleções a narrações, no sentido de
aparecer, em nosso caminhamento de pesquisa e de trabalho clínico, a possibilidade de se
colocar em uma série, em uma narrativa, em uma tessitura, o que era, em alguma medida, da
ordem de uma coleção, ou as palavras que se foram colecionando ao longo do tempo.
Apontamos este movimento no que diz respeito a nossa escrita e a de Ciro. Na perda que
opera, algo pode passar, provocando, subjetivamente e simultaneamente, enlaçamento e
distinção.
A forma, portanto, que acabou tomando nosso texto, inspira-se (não intencionalmente, mas
como efeito) em nosso percurso de trabalho com Ciro. É como se estivéssemos elaborando, em
simultaneidade, um conhecimento acerca de sua produção e do trabalho que desenvolvemos,
dando a este uma estrutura homóloga ao percurso que Ciro fez durante o tempo em que esteve
trabalhando comigo.
Pensamos estar, aqui, em questão, um método de caminhamento que nos remete ao que é
da ordem de uma dobra, tal como a ela se refere João Trois (2007), ao trabalhar, em Lacan
15
, o
movimento de retorno enunciativo ao texto freudiano: o retornar para, então, como efeito dizer
15
Conforme Trois (2007, p. 31), Lacan utilizou, em vários momentos de sua obra, o dispositivo da dobra, através de
figuras topológicas como, por exemplo, a Banda de Moebius e o Oito Interior.
desde outro lugar. Tal apontamento nos permite refletir acerca da operação simultânea dos
movimentos de continuidade e distinção e, conseqüentemente, da semelhança estrutural entre
nosso texto e a experiência que nos propusemos a escrever. Como falar acerca da experiência a
não ser através da forma como Ciro faz seu percurso de escrita no trabalho conosco?
2.1.2.1 Da posição moebiana, a dobra
O matematico August Ferdinand Möbius (ou Moebius)
16
, em 1858, descobriu o que se
denominou de Banda (Laço, Fita) de Moebius, a partir dos estudos que vinha fazendo acerca de
superfícies com uma cara. Conforme a figura abaixo, percebemos que tal banda pode ser
formada ao tomarmos uma tira retangular de papel e unirmos suas extremidades, após a
execução de uma meia volta na tira.
Banda de Moebius
Como se pode ver, no desenho moebiano do artista holandês Escher, por exemplo, um
animal que se arrastasse sobre esta superfície, andando sempre pelo meio da tira, chegaria a sua
posição original no lado inferior da mesma, se tivesse partido do lado superior e vice-versa. Em
outras palavras, alguém que caminhasse, sem interrupção, sobre um dos lados da banda, em
algum momento, encontrar-se-ia em seu avesso, sem perceber, entretanto, qualquer
16
http://www.sitographics.com/conceptos/notas/moebius.html
descontinuidade no percurso.
M. C. Escher
Tomando, então, a Banda de Moebius, inspirados em Lacan, podemos experienciar o efeito
da dobra na relação entre o sujeito e o mundo, ou, no caso, entre paciente e terapeuta. Trata-se,
aqui, de pensar que não é uma descontinuidade que está posta em cena, tampouco suporíamos
algo simplesmente da ordem de uma continuidade.
Lacan ([1959-60] 1997, p. 173) traz, justamente, a noção de extimidade, neologismo que
cria para falar acerca dessa posição moebiana entre o dentro e o fora, colocando, em cena, uma
exterioridade íntima, ou o paradoxo de algo que se configura como uma realidade íntima ao
sujeito e, simultaneamente, uma exterioridade. A relação moebiana pressupõe, portanto,
simultaneamente, diferença e continuidade, o que é possível a partir de uma dobra, que é
sempre algo a ser construído e não naturalmente dado. Sem a meia volta da tira, sem a torção,
tratar-se-ia de uma superfície com duas caras, uma para cada lado, sem encontro possível entre
elas.
Entendemos que, ao fazer a dobra operar, falamos do lugar em que estamos situados, na
transferência
17
, com alguém que acompanhamos, ou seja, falamos de um encontro, no qual se
está, simultaneamente, dentro e fora, em distinção e continuidade.
17
Seguindo Lacan ([1964] 1985), que coloca a transferência como um dos quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, podemos pensá-la (a transferência) como o que estrutura as relações particulares (ob. cit., p. 120) do que
entendemos, nesse caso, como o encontro entre o paciente e o terapeuta, que semarcado pelas manifestações de
seus inconscientes (assim como as marcará), no sentido do lugar desde o qual cada um vai tomar o outro. Trata-se,
Desde esta posição, na qual nos encontramos, o material do qual se trata, então, não é
apenas do paciente que está sendo acompanhado em seu fazer, no momento em que nos toma,
também, produzindo-se nesse espaço entre dois.
2.1.2.2 Da carta roubada, o jogo posicional
No conto A Carta Roubada, de Edgar Alan Poe, o investigador Dupin, conhecido por
suas acertadas deduções, é chamado para auxiliar na solução de um caso. O comissário de
polícia, responsável pelo mesmo, lhe pede ajuda para recuperar uma carta, que teria sido roubada
por um certo ministro a quem daria poder de chantagem.
O caso em questão estava sendo mantido em sigilo (em função do envolvimento de uma
figura pública importante: a Rainha), sigilo este agora quebrado, pois o comissário precisava da
ajuda de Dupin: havia realizado minuciosas inspeções na casa do ministro, bem como
contratado batedores de carteira para tirar a carta de seu poder. Apesar de todas as tentativas, não
encontrara a carta.
Ao ser informado que ganharia uma soma em dinheiro, no caso de resolver o mistério,
Dupin, no mesmo momento, tira a carta de uma gaveta e a entrega ao comissário. Explicando,
logo depois (ao narrador do conto), que tomara conhecimento do caso e que, sabendo da
esperteza do ministro, tinha certeza de que a carta não havia sido escondida em um lugar onde a
polícia a pudesse encontrar. Deduz que o ministro tentaria confundir os investigadores, deixando
a carta à vista e não escondida, conclusão que o leva à casa do mesmo, onde encontra a carta,
“disfarçada”, com o selo do ministro, entre outros cartões. Seguindo Dupin, o comissário jamais
encontraria a carta, pois a lógica com que a procurava (a sua lógica) era diferente da utilizada ao
ser “escondida”.
portanto, de um vínculo que se estabelece entre os dois, e que vai ser, justamente, o motor dos movimentos possíveis
no processo deste encontro.
Segundo Maurano (2006), “A transferência é a aposta de que de existir um saber que virá dar conta dessa falta
do encontro perfeito, desse furo na relação do sujeito e do Outro” (ob. cit., p.28).
Salientamos que, desde a psicanálise, os fenômenos transferenciais estão presentes em todos os campos da vida de
relação dos sujeitos, o que nos aponta para o fato de que os efeitos de um encontro serão sempre originais e
imprevisíveis, por se criarem nesse espo entre os sujeitos.
Lacan (1998), em O seminário sobre “A carta roubada”, traz a idéia de que Dupin
desvenda o enigma da carta por se concentrar na questão relativa às posições dos personagens da
história. É como se, por exemplo, quando olhamos uma cena, escutamos uma narrativa ou nos
deparamos com fatos da vida, considerássemos que é mais potente nos indagarmos acerca de
como se ocupam os lugares em questão do que sobre seus possíveis sentidos.
Lacan vai dizer que, justamente, o sentido deriva de um jogo de lugares, de um jogo
posicional, referindo-se à idéia de que a produção de sentido deriva da posição que o significante
ocupa em uma cadeia. O mesmo significante, em posições diferentes, na cadeia, gera efeitos de
sentido diversos.
Ao apontar, então, que a carta, em posse do ministro, porta o selo do mesmo, lança a
seguinte questão: como uma carta, que chega ao seu destinatário, tem o selo do destinatário e não
do emissor?
Foi assim de fato que ele [o ministro] teve de operar, à maneira como na época uma carta
era dobrada e lacrada, para liberar o lugar virgem onde escrever um novo endereço.
Esse endereço passa a ser o dele mesmo. Seja por seu próprio punho ou pelo de outro,
[...] ele imprime ali seu próprio sinete. Essa singularidade de uma carta marcada com o
sinete de seu destinatário é ainda mais impressionanate de notar em sua invenção [...]
(LACAN, ob. cit., p. 38-9).
Trata-se de um sinal de que aquela carta está deslocada de sua posição. O que denuncia
sua presença é, portanto, o fato de estar em um lugar de “não pertença” ao sistema. Lacan vai
dizer que a convição de Dupin ao acreditar que encontrara a carta, na casa do ministro, “[...] é
fortalecida pelos próprios detalhes, que parecem forjados para contrariar a descrição que ele tem
da carta roubada, exceto pelo formato, que é compatível” (ob. cit., p. 16).
Retomamos o fato de que a polícia não encontra a carta por estar, narcisicamente. presa
em sua própria lógica, oriunda do campo da exatidão e não do registro da verdade. Este último,
segundo Lacan, [...] situa-se num lugar completamente diferente, propriamente, na fundação da
intersubjetividade” (ob. cit., p. 22). Acrescenta Lacan que:
[...] Poe aqui introduz [...] que a polícia, há dezoito meses voltando ali tantas vezes
quantas lho permitiram ausências noturnas e habituais do ministro, vasculhou
meticulosamente a mansão e suas adjacências. Em vão, embora qualquer um possa
deduzir da situação que o ministro conserva a carta a seu alcance (LACAN, ob. cit., p.
15).
Qual a diferença que imprime Dupin às tentativas de encontrar a carta? Se pensamos
desde a psicanálise, comecemos por considerar que existe um saber acerca do lugar desde o qual
o sujeito vai emergir, ao mesmo tempo em que sempre algo que é da ordem do novo, do lado do
sujeito, vai irromper. Dito de outra forma, se, por um lado, uma tendência ao mesmo, por
outro, o ponto de engate do sujeito a si mesmo, antecipado pelo Outro
18
, é sempre da ordem de
um certo acidente, não havendo determinação unilateral possível. Poderíamos dizer que se trata
de uma tendência à coesão em tensão com uma tendência à dispersão: a relação em dobra entre o
sentido antecipado do lado do Outro e o sujeito. É disso que nos fala Dupin ao se colocar no jogo
posicional em questão no desaparecimento da carta. Entre a poesia e a matemática, pode decifrar
o enigma da carta roubada:
O que eu quero dizer é que, se o ministro não fosse mais que um matemático, o
comissário não teria tido a menor necessidade de me dar este cheque. Todavia, eu sei que
ele é ao mesmo tempo matemático e poeta, e, deste modo, minhas medidas foram
adaptadas a sua capacidade, com referência também às circusntâncias que o rodeavam
(POE, 2003, p. 28).
Podemos pensar, então, a partir deste conto e de uma das leituras que dele faz Lacan, a
transferência, no trabalho, como um jogo de posições. Se o comissário é aquele que quer
encontrar a carta, dentro de sua lógica somente, sem considerar a lógica na qual o objeto foi
roubado, mantém-se preso em uma posição narcísica, desconsiderando o que de novo pode surgir
do lado do sujeito, no caso, o ministro. É como o que diz Dupin, ao se referir ao chefe de polícia
e seus auxiliares:
18
Segundo Lacan ([1955-1956]1992, p. 286-7), o Outro é o lugar do simbólico, da linguagem, do código
fundamental da linguagem, sem o qual não haveria cultura. O Outro, grafado em maiúscula, foi adotado para mostrar
que a relação entre o sujeito e o grande Outro é diferente da relação com o outro simétrico, especular. Procuraremos,
ao longo do texto, trabalhar a noção do Outro, desde a perspectiva da psicanálise.
Consideram somente as próprias idéias de engenhosidade e, ao procurarem alguma coisa
escondida, atentam somente para as maneiras segundo as quais eles mesmos a teriam
ocultado (POE, ob. cit., p. 23, grifo do autor).
Dupin, como investigador, nos remete à posição que ocupamos no trabalho clínico, no
sentido de abrir mão de nosso narcisismo, para poder entrar no jogo posicional em que o outro
nos coloca. Desde aí, então, em dobra, será possível criar as condições para que um objeto (no
caso de Ciro, sua produção escrita) possa circular.
2.2 UNS FIOS
2.2.1 Dos caminhamentos
Nosso paciente colecionador, Antoninho, em uma entrevista, cunhou o termo
caminhamento, para falar dos atendimentos, em terapia ocupacional, comigo.
Para chegar a esse neologismo, começou contando que escrevia por militância, pra ter
um texto depois, mas lembrava que tinha sempre alguém por perto. Eu havia perguntado a ele,
justamente, que motivação tinha para escrever, desenhar, fotografar (dentro do tema favela, ao
qual vem se dedicando há mais de dez anos), atividades que, freqüentemente, realiza.
Militância. Militância sábado de tarde. Sábado de tarde, eu me sento e escrevo uma
ficha. Eu fico com uma ficha, em branco, e fico pensando no que posso escrever, olhando
a fotografia. A fotografia, as fotografias são um trajeto meu dentro da favela. Então, tu
lendo o drops, mas tu vendo a favela desde a entrada, o percurso da favela, o que a
favela foi. Tu escrevendo a ficha, e a pessoa que o foi à favela conhecendo a
favela pelas fotografias.
Minha hipótese, que me levou a fazer a pergunta seguinte, nesta entrevista, a partir de sua
resposta, é de que ele escrevia para alguém, no caso, para a pessoa que não foi à favela. Mas
Antoninho tinha outro ponto de chegada para seu texto (e suas fotografias), que parecia não
remeter a uma pessoa, em sua tentativa de lançar sua produção ao encontro de um endereço.
Escrevo pra ter um texto depois. É pra guardar esse texto. Vou guardando. Às vezes, tem
uns congressos, a gente pode escrever um texto pro congresso. Às vezes, se põe nos anais
do congresso.
Lembrei, então, que fizemos alguns trabalhos juntos, no sentido de que ele organizasse
suas produções, articulando fotografias e escrita. Teria alguma relação o fato de trabalharmos
junto e essas coisas que fazia por militância?
É muito por eu mais saudável, de cuca, pelo atendimento de vocês aqui, do Nilson e
teu. Com a atendimento de vocês, aqui dentro, eu fui melhorando, melhorando a minha
escrita, melhorando a escrita das fichas, revendo as fontes, organizando os textos. Antes
não tinha uma organização, depois que eu fui aperfeiçoando essa história, e agora vou
guardar esses textinhos pra quando tiver um congresso...
E, no período de férias, como conseguia produzir por militância?
de uma maneira um pouco mais caótica. Quando começa aqui, de novo, o atendimento
de vocês aqui, é que eu começo a ficar com a cuca mais certa, mais exata, e vou
escrevendo as fichinhas. Então, cada bado, trabalho na militância, me sento, escrevo
uma fichinha na história e guardo. A militância sábado, a militância...
Antoninho me fazia pensar na questão da presença, atualizando, a questão da diferença
que faz uma presença. Esse outro, que não vai embora, como sustenta os efeitos de sua
presença? De que forma se inclui, em determinada cena, provocando inscrição, experiência,
transmissão? Lembrei, então, de uma exposição que organizamos com as fotografias que tirou do
Parque da Redenção.
Eu me lembro da gente fazendo os painéis, isso eu me lembro. A exposição o me
lembro muito. Mas lembro da gente fazendo os painéis e as legendas das fotos. Tinha
uma mocinha da psicologia que tava junto...
Antoninho não lembrava muito da exposição, mas lembrava da presença da mocinha da
psicologia. Era uma estagiária que trabalhou, durante seis meses, na oficina de terapia
ocupacional, conosco.
É, e tinha essa mocinha que tava por perto, me ajudava, às vezes, conversando comigo.
Ela tava por perto quando eu organizei os painéis. Eu pus o parque de diversões.
Lembra que nós tiramos as fotos com aquela lente? Era uma grande angular, eu chegava
bem perto e tirava a foto, vamos tirar foto da iluminação?, tiramos da iluminação e tinha
uma foto do interior do Araújo Vianna... Os caminhamentos que a gente fazia...
Acompanhei Antoninho em seus caminhamentos... Em sua narrativa, percebia a
presença de pessoas como o que lhe coloca em movimento, demandando-lhe algo que é da
ordem da ação: um irmão, um professor da faculdade, um colega, terapeuta, médico, uma
mocinha da psicologia. Sua ação, então, fazia com que se sentisse mais inteligente, que tivesse o
que dizer, o que contar ao outro, procurando supor, talvez, um endereço para escutá-lo.
Antes da doença, eu fotografava, eu tinha um equipamento de fotografia e fotografava.
Meu irmão trazia pra mim, trazia da França pra mim, e eu fotografava, tirava foto,
fotografava. Uma época, a gente revelou filme uma época. Mas eram umas fotos mais de,
umas fotos mais, Simone, foto da Sulcolor, slides, fotografias da diplomação. Tinha a
diplomação e uma cadeira que teve antes, uma cadeira de história da arquitetura
brasileira. Era eu e um amigo meu. O professor se interessou numa história. Ele disse
faz esse trabalho de tombamento de casa popular. Tinha a história de tombamento de
prédios mais caros, mais eruditos, era o que tinha. E as casas popular? Vamos tombar
ou não vamos tombar as casas popular? E aí começou a história. Tiramos A na história.
Eu e o meu amigo. Ele tirou A, eu tirei A. Depois da diplomação que teve uma história
no Solar. Ele disse vamos fazer um estudo no Solar, não de diplomão de estudantes,
em uma cidade menor. De levar, pra prefeitura idéias pro solar, passo municipal, a
praça, a igreja. Pensar umas casinhas na praça, umas igrejas, uns posto de gasolina.
Fazer um passo municipal, na história. Tinha uns fascículos que eu tinha da arte no
Brasil, saíam só em bancas de revistas. Eu precisava tirar as fotos. E eu levei seis
pessoas pra um dia, pra ajudar no levantamento, eu e mais um fotógrafo, um outro
que era fotógrafo. Os outros todos em volta, me ajudando, conhecendo a cidade. Passar
um tempo numa cidade histórica é diferente que passar um tempo em Porto Alegre, com
esses prédios com essas histórias. É uma outra história que tem de cidade histórica. De
morar numa cidade histórica, as casas, os lugares históricos, de caminhar... Como a
gente fica mais inteligente... Eu voltava pra cá e começava a conversar, falar, escrever,
olhando as fotos, desenhando. Como a gente fica mais inteligente quando a gente visita
uma cidade mais antiga, de uma outra época, do passado...
Será que nos falava, mais uma vez, da importância da presença, da função de
testemunho, talvez? Quando lembrei-lhe de ter, recentemente, se separado do pai, com quem
vinha morando, foi enfático e pareceu relacionar a possibilidade de agir com a de compartilhar,
quando, espontaneamente, deslizou de um assunto a outro. Separar-se do pai
foi um pouco difícil... Agora, eu sozinho... Não me fala em separação, Simone, o me
fala em separação, não me fala em separação. com essas fotos, essas histórias, não
me fala de separação... Agora, vamos ver essas fotos, essas fotos de favela, de São Jo
do Norte... Eu tenho 220 slides de São José do Norte...
O neologismo caminhamento, cunhado por Antoninho, nos remete à flânerie, ou esse
andar a passeio, do qual nos fala Benjamin (1989), referindo-se ao flâneur (figura que toma do
poeta oitocentista Baudelaire), como o transeunte que, em meio à multidão, com seu vagar
ocioso, sem direção ou propósito, pela cidade, a transforma em paisagem.
Tal transformação se dá, segundo o autor, a partir das novas percepções que o
“flanador”
19
pode ter sobre a cidade e seus detalhes, como um artista que cria sua obra. Para
Benjamin,
As ruas são a morada do coletivo. O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente
agitado, que, entre os muros dos prédios, vive, experimenta, reconhece e inventa tanto
quanto os indivíduos ao abrigo de suas quatro paredes. Para esse ser coletivo, as tabuletas
das firmas, brilhantes e esmaltadas, constituem decoração mural tão boa ou melhor que o
quadro a óleo no salão burguês; os muros com ‘défense d’afficher (proibido colocar
cartazes) são sua escrivaninha, as bancas de jornal, suas bibliotecas, as caixas de
correspondência, seus bronzes, os bancos, seus móveis do quarto de dormir, e o terraço
do café, a sacada de onde observa o ambiente. O gradil, onde os operários do asfalto
penduram a jaqueta, isso é o vestíbulo, e o portão que, da linha dos pátios, leva ao ar
livre, o longo corredor que assusta o burguês, é para ele o acesso aos aposentos da cidade.
A galeria é o seu salão. Nela, mais do que em qualquer outro lugar, a rua se a conhecer
como o interior mobiliado e habitado pelas massas. (BENJAMIN, ob. cit., p. 194-5)
19
Como aparece traduzido, em alguns momentos do texto de Benjamin.
Pensamos encontrar, na figura do flâneur, em seu andar quase embriagado pela cidade, a
alegoria para os caminhamentos, dos quais nos fala (e nos quais nos inclui) Antoninho. Ao
contrário de Baudelaire, porém, que, segundo Benjamin, “[...] amava a solidão, mas a queria na
multidão” (ob. cit., p. 47, grifo nosso), Antoninho elege o caminhar acompanhado como o ponto
que lhe permite a relação com a cidade e sua possível transformação em paisagem.
Passamos a tomar, então, a expressão caminhamento, para tentar falar de nosso método
enquanto sujeitos de uma pesquisa e de nosso modo de trabalhar no cotidiano da clínica. Nos
sentimos, aqui, contemplados pela frase, de Picasso, citada por Lacan ([1959-1960] 1997, p.149),
“Eu não procuro, acho”, no sentido de não se tratar de um bem aprioristicamente idealizado a
alcançar, mas sim, da disponibilidade para um encontro.
Da fala de Antoninho, tomamos, também, a questão do acompanhamento, ou do
compartilhamento: os caminhamentos que a gente fazia, fala que nos remete ao caminhar junto,
mover-se junto, fazer junto, fazer com, ao que é da ordem de um coletivo. Escolhemos, assim, na
maior parte do tempo deste trabalho, empregar o uso da primeira pessoa do plural, que diz,
justamente, dos sujeitos que caminham, de certa forma, juntos
20
: pacientes, equipe, professores,
colegas, autores, amigos, familiares, interlocutores.
Em uma espécie de flânerie acompanhada, de caminhamento, procuramos construir
nosso trabalho de pesquisa, a partir de uma posição que não é propriamente a de quem procura
algo, mas sim a de quem, nesse vagar um tanto quanto sem direção ou propósito (no sentido de
um bem a alcançar) pode se colocar em uma posição de disponibilidade para um encontro, que é
sempre em dobra. Entendemos ter sido também desta forma que se desenrolou nosso trabalho
com Ciro, assim como sua experiência de escrita.
20
Salientamos que juntos tem, aqui, o sentido de se estar em relação, não em continuidade, mas sim, desde lugares
heterogêneos que ocupamos e que podem estar em relação. Abordaremos o tema da relação entre heterogêneos
dissimétricos mais adiante, neste trabalho.
2.2.2 Da reforma psiquiátrica
É no século XX que, após a segunda guerra mundial, buscando-se romper com as práticas
excludentes, segregacionistas e ineficazes das instituições asilares, se inicia, na Itália, o
movimento da Reforma Psiquiátrica, cuja essência era a de romper com o modelo asilar
(considerado manicomial) de tratamento e seu caráter fechado, segregacionista e excludente.
Neste contexto, cria-se o campo da saúde mental, dentro do qual a questão do resgate da
singularidade e das possibilidades de inserção no tecido social surgem como questões essenciais,
no sentido de se passar a conceber a “loucura” como um modo de estar no mundo, e não mais
como uma doença a ser debelada.
No Brasil, é a partir da década de 1980, que se iniciam os questionamentos em relação à
reforma do campo da saúde mental, deflagrando-se o movimento da reforma psiquiátrica no país,
que terá, como uma espécie de “lema” o pressuposto por uma sociedade sem manicômios,
entendendo-se que, com a estrutura do manicômio, não há aliança possível.
O movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira foi marcado pela psiquiatria
democrática italiana, na qual a questão do exercício da cidadania e dos direitos dos portadores de
transtornos mentais graves era fundamental, articulada à noção de território, entendido não
apenas como território geográfico, mas também, e principalmente, como o espaço onde se situam
as relações sociais. O trabalho clínico, em especial, a psicoterapia institucional francesa,
influenciou, também, o movimento no Brasil
21
, abrindo caminhos para alguns encontros, entre
eles, dos dispositivos de assistência com os referenciais psicanalíticos.
Lima (2004) exemplifica a associação entre o trabalho em saúde mental e o campo
conceitual da psicanálise, referindo-se à instituições como Bonneuil e La Borde, ambas na
França:
Aqui, podemos vislumbrar questões importantes que estão em pauta nesse tipo de
proposta: a tentativa de criar um espaço de jogo, para que uma singularidade possa
inscrever-se no mundo; a participação em atividades que tenham lugar na cultura como
prática social; as possibilidades que trazem de serem reinterpretadas e recompostas,
participando da construção de novos territórios; o caráter a um tempo expressivo e
construtivo desses trabalhos. (LIMA, ob. cit., p.70).
21
Sobre os diálogos do movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira com projetos na Itália e na França, ver
GOLDBERG, 1996, p. 61-91.
A Reforma Psiquiátrica propõe novos paradigmas de tratamento aos portadores de
transtornos mentais graves, na rede pública de serviços, que passa a se configurar a partir de um
diferente modo de funcionamento. Provoca-se uma quebra na hegemonia médica e
hospitalocêntrica, observada até então, passando o trabalho a ser desenvolvido por diferentes
disciplinas, a partir de novas estratégias de atenção, cujo foco se encontra nas questões relativas
ao resgate da cidadania e dos direitos e à reabilitação psicossocial.
Criam-se, então, novas modalidades de assistência que se caracterizam por ser abertas e
substitutivas ao manicômios: CAPS
22
, centros de convivência, pensões protegidas, entre outras,
possibilitando-se novas formas de compartilhamento do tecido social. (GUERRA, 2004, p.37-8).
Segundo Guerra (ob. cit., p. 38), tais dispositivos objetivam a ressocialização, a
reintegração do portador de transtornos mentais graves, a uma rede comum de significados
cotidianos, partilhados socialmente. Oportuniza-se, assim, o resgate da cidadania e a recuperação
ou criação de novos enlaçamentos sociais, permitindo-se, ao sujeito, inserir-se em alguma forma
de liame social, à medida que lhe for possível.
2.2.3 Do caps cais mental centro
Os CAPS se configuraram, então, como dispositivos de atendimento, no campo da saúde
mental, que compõem a rede de serviços substitutivos à internação psiquiátrica, definida pelo
movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Caracterizam-se por imprimirem novas formas de
acolhida e acompanhamento a sujeitos com transtornos mentais graves objetivando a construção
de possibilidades de que estes sujeitos possam estar em relação com o espaço da cidade, com o
discurso social. Desta forma, os CAPS se constituiram como o principal dispositivo, dentro da
lógica da Reforma Psiquiátrica, em substituição ao modelo manicomial de assistência, até então
em vigor.
Na definição do Ministério da Saúde,
22
Centro de Atenção Psicossocial.
[...]os CAPS são instituições destinadas a acolher os pacientes com transtornos mentais,
estimular sua integração social e familiar, apoiá-los em suas iniciativas de busca da
autonomia, oferecer-lhes atendimento dico e psicológico. Sua característica principal é
buscar integrá-los a um ambiente social e cultural concreto, designado como seu
‘território’, o espaço da cidade onde se desenvolve a vida cotidiana de usuários e
familiares (BRASIL, 2004, p.9).
É neste contexto que, em 1996, é fundado Caps Cais Mental Centro
23
, na época,
denomidado de Cais Mental. A escolha deste nome, no momento em que o serviço foi
concebido, mistura-se com o território que estava, então, sendo pensado desde o ponto de vista
da Reforma Psiquiátrica, no sentido que vimos abordando. Como não havia, ainda, uma
determinação ministerial de se padronizar o nome (sigla) CAPS no território brasileiro, em nossa
fundação, escolhemos a sigla CAIS (Centro de Atenção Integral à Saúde), seguida da palavra
mental, por ser um dispositivo da rede de serviços em saúde mental. Naquele momento,
entendemos que o nome cais portava a potência de ser utilizado também como metáfora, como
um lugar onde aportar e de onde partir, um porto, um espaço de ancoragem e passagem, de
travessia.
Nossa prática cotidiana, no Caps Cais Mental Centro, que vem a ser um dos dispositivos
da rede de serviços de saúde da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e se destina ao atendimento
de sujeitos com transtornos mentais graves, orienta-se por um projeto de trabalho construído
coletivamente, que tem, na psicanálise, um de seus eixos conceituais. Os pacientes integram-se
às diferentes modalidades de atendimento, seja em nível ambulatorial, seja em regime de atenção
diária (nas situações em que se faz necessário um ambiente mais protegido).
Chamaremos de terapia ocupacional o campo empírico sobre o qual vimos trabalhando,
mas entendemos que outras práticas, com outros nomes, podem estar aí contempladas, desde que
o desejo de trabalhar com o fazer, grupos e as possíveis relações com o discurso social esteja
nelas colocado. Lembramos que optamos pelo uso do termo fazer, compartilhando com Paul
23
Cais (centro de atenção integral à saúde) Mental Centro (por estar localizado no distrito centro da cidade de Porto
Alegre, território ao qual deve ser referência para atendimento da população portadora de transtornos mentais
graves).
Valéry sua concepção das obras de espírito
24
, no sentido de dar à ação que faz uma dimensão
maior que a coisa feita.
2.2.4 Da terapia ocupacional
É também no contexto do século XX, após a segunda guerra mundial, e dentro da mesma
lógica de rompimentos com práticas excludentes, segregacionistas e ineficazes, presentes, até
então, nas instituições asilares, que, segundo Guerra (2004), “formaliza-se o campo de práticas e
saberes da terapia ocupacional que se consolida enquanto profissão nesse mesmo período,
sistematizando e conferindo novo enfoque ao uso da atividade originado no campo psiquiátrico,
bem como desapropriando sua prescriçåo da autoridade médica” (ob. cit., p. 29). As chamadas
oficinas terapêuticas surgem, então, como possibilidades em direção ao resgate da singularidade,
do exercício da cidadania e da inserção social.
Em relação à prática da terapia ocupacional, encontramo-nos, aqui, com a dificuldade
decorrente de sua nomeação, no que diz respeito ao lugar que ocupa na relação com os sujeitos
que acompanha. Estaria esta posicionada no campo clínico ou no campo educativo? Entendemos
que, uma vez que o trabalho, em terapia ocupacional, dentro de um Caps, encontra-se ancorado
em uma proposta de clínica ampliada
25
, talvez seja uma espécie de falsa questão buscar tal
posicionamento. Podemos pensar que se trata, aqui, de um dos lugares desde onde é possível a
“costura” destas diferentes dimensões.
Neste sentido, ao refletir sobre o trabalho em oficinas terapêuticas, na clínica da psicose,
Rickes (2006) aponta a diversidade dos campos de saberes que dele se ocupam, compartihando
sua condução, “[...] interrogados acerca das próprias fronteiras entre os saberes, as práticas, os
campos e as profissões”. A autora acrescenta:
24
Conforme referimos anteriormente, no item 2.1.1 O colecionador, na página 18 deste trabalho.
25
Apesar do tema da clínica ampliada não ser o foco desta dissertação, procuraremos “tangenciá-lo”, nesse capítulo,
por entendermos estar nele inserido nosso recorte de trabalho.
Em palestra proferida na Associação Psicanalítica de Porto Alegre, em julho de 2008, Dóris Rinaldi pontua que o
termo clínica, nos CAPS, é utilizado normalmente acompanhado de um adjetivo: ampliada, do encontro, do
cotidiano, no coletivo.
Este trabalho estabelece territórios híbridos de atuação dos quais os diferentes saberes
podem retirar indagações e ensinamentos que podem operar no interior mesmo de seus
campos de forma a desenhar com mais clareza suas possibilidades e seu limites, aquilo
que está assentado e aquilo em que se precisa avançar. (RICKES, ob. cit.).
A questão colocada, acerca do hibridismo, no trabalho em oficinas terapêuticas, nos
permite pensar que também a prática da terapia ocupacional, diante da necessidade de uma
tomada de posição referente a seu campo de intervenção, estaria nessa zona híbrida, de fronteiras
não tão delimitadas, tirando, também, daí sua potência.
Serafini (2006), na mesma direção, referindo-se à experiência na oficina de escrita por ela
coordenada, coloca que:
O trabalho na Oficina de Escrita configura-se num espaço que não é nem estritamente
clínico, nem estritamente educacional, mas num lugar de fronteira entre esses dois
campos de saberes. o é estritamente clínico, na medida em que se situa a partir de uma
proposta que vem da coordenadora da oficina e que objetiva abrir o espaço das letras para
esses sujeitos. Não é estritamente educacional, na medida em que não se trata de ensinar
o bem escrever, mas de constituir um lugar onde o escrever e o ler possam produzir
efeitos subjetivos. (SERAFINI, ob. cit. , p.14).
Com estas questões em mente, e diante da necessidade de se fazer uma escolha, optamos
por falar em clínica da terapia ocupacional, considerando, também, que esta se insere no
território que se denominou de clínica ampliada, justamente, para dar conta da articulação entre
o sujeito e o social.
Disciplinas diversas vêm compondo o território do campo da saúde mental, entre elas,
conforme referido anteriormente, a psicanálise, que além de nos ajudar a pensar acerca da
estruturação psíquica, intrinsecamente relacionada ao que é da ordem do social, permite-nos
refletir sobre o lugar que ocupamos diante do sofrimento e das diferentes formas de se habitar o
tecido social (e do que podemos fazer com isto).
2.2.5 Da escolha e da responsabilização
Para refletir acerca das questões relativas às escolhas, em nossa prática de trabalho, e à
responsabilização delas decorrente, tomamos o drama de Antígona, escrita por Sófocles dois
mil e quinhentos e abordada por autores diversos, entre os quais encontramos também Lacan.
Hannah Arendt (1993) nos lembra que a palavra drama vem do verbo grego dran, que
significa agir, sendo a representação teatral uma imitação da vida, cujo assunto exclusivo é o
homem e suas relações com outros homens. As reações provocadas pela ação de determinado
homem constituem-se como causas de novos processos, novas ações com potencial de atingir e
afetar tanto o agente quanto os outros homens: “o menor dos atos, nas circunstâncias mais
limitadas, traz em si a semente da mesma ilimitação, pois basta um ato e, às vezes, uma palavra
para mudar todo um conjunto” (ob. cit., p. 203).
Na mesma direção, Aristóteles, em sua Poética, aponta para a importância da ação na
tragédia e, portanto, na vida dos homens:
A mais importante dessas partes [da tragédia] é a disposição das ações; a tragédia é
imitação, não das pessoas, mas de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura; a
felicidade e a desventura estão na ação, e a finalidade é uma ação, não uma qualidade.
Segundo o caráter, as pessoas são tais ou tais, mas é segundo as ações que são felizes ou
o contrário. Portanto, as personagens não agem para imitar os caracteres, mas adquirem
os caracteres graças às ações. Assim, as ações e a bula constituem a finalidade da
tragédia e, em tudo, a finalidade é o que mais importa. (ARISTÓTELES, 1996, p.36)
Aristóteles se refere ao drama como o que trata de fazer uma mímesis das ações humanas,
caracterizando-se por uma abordagem do homem que age, e não do homem que é uma marionete
dos deuses, não estando na condição de agir. O homem se encontra, então, no drama, com um
certo efeito da sua ação.
A organização da polis, onde os homens precisam se responsabilizar por suas ações
diante de outros homens passa a ter uma expressão que podemos ler na tragédia. não são
somente os deuses que impõem as leis aos homens. Os próprios homens se impõem leis, que
podem estar em condição de contradição com as leis dos deuses.
O texto Antígona, de Sófocles, nos transmite a história da filha de Édipo, ao procurar
garantir ao irmão Polinices o direito aos ritos funerais que lhe haviam sido negados pelo
governante Creonte. Polinices e Etéocles, irmãos de Antígona, morrem ao disputar o trono de
Tebas. Seu tio Creonte, então, herdeiro do trono, sepulta Etéocles com as honras que lhe cabiam
e nega sepultura a Polinices, considerado, por ele, traidor. Deixa-o exatamente onde caíra,
proibindo aos demais enterrá-lo. Antígona, colocando-se contra os desígnios do tirano, decide
enterrar o irmão, garantindo-lhe sua morte simbólica, escolha pela qual se responsabilizará,
mesmo lhe custando a própria morte. Antígona, então, existe, pois escolhe morrer a se subjugar à
tirania de Creonte, garantindo, também, existência a Polinices (que morre em defesa da polis, ou
seja, da existência).
26
É desde uma posição de “na-finda-linha”, lugar trabalhado por Lacan ([1959-1960] 1997,
p. 330), a partir do drama de Antígona, para refletir acerca da condição do herói trágico diante da
contingencialidade de uma escolha a ser feita, que pensamos se situar a questão da clínica em
nosso cotidiano de trabalho. Para Lacan, tal posição se refere a um ponto extremo, uma zona
limite entre a vida e a morte, onde um impasse ético se colocaria.
Nesse sentido, pensamos que, tanto o trabalho clínico, quanto o trabalho educativo
envolvem um julgamento, uma escolha (mesmo forçada, como exemplifica Lacan, na escolha
entre a bolsa e a vida
27
), pela qual vai ser preciso responsabilizar-se. Lembramos, aqui, que a
experiência da responsabilidade se sempre na relação com os outros e jamais a partir de um
exercício narcísico.Entendemos que nossa escolha se relaciona com a função de nos colocarmos
como uma espécie de guardiões da existência de um intervalo, ou seja, do espaço que se coloca
entre o sujeito e o Outro, a bolsa e a vida, espaço, ao mesmo tempo, de enlaçamento e de
distinção.
26
Lacan trabalha, justamente, a idéia de que o se colem vida e existência. Quando fala em existência, refere-se à
existência simbólica, enquanto a vida se relaciona à presença orgânica: A vida é isto – um rodeio, um rodeio
obstinado, em si mesmo transitório e caduco, e desprovido de significação.(...) Um sentido é uma ordem, isto é, um
surgimento. Um sentido é uma ordem que surge. Uma vida insiste para entrar nele, mas talvez ele expresse algo de
totalmente para além desta vida, que quando vamos à raiz desta vida, e por detrás do drama da passagem para a
existência, o achamos nada senão a vida conjugada com a morte. É aí que a dialética freudiana nos leva.
(LACAN, 1997, p.292)
27
“Se escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, uma vida decepada
(LACAN, [1964], 1988, p.201).
No momento em que se faz uma escolha, se está no terreno da ação (e não da
contemplação)
28
, no qual, simultaneamente, se tem um solo firme (da tradição, herança,
ancestralidade) e um escorregadio (do que é novo, enigmático, imprevisível) onde pisar. E,
justamente, nesta tensão vai se colocar o desejo, trazendo a possibilidade do novo, do que de
imprevisível e irreversível em toda a ação
29
.
Pensamos que o que está em questão, nas indagações que, cotidianamente, levantamos,
então, é algo que diz respeito a uma relevância mais ampla, uma amplitude maior, e não apenas à
psicose, ou aos transtornos mentais graves, indo além da clínica, do universo empírico sobre o
qual estamos nos debruçando. Lacan ([1955-1956] 1992), nesse sentido, estabelece uma relação
entre transmissão e tradição. Ao mesmo tempo em que a transmissão se sustenta em uma
tradição, implica em certa transposição, modificação da tradição. Se o sujeito aprende algo,
aquilo que ele aprende já introduz, na tradição, uma diferença.
Ao se perguntar, então, acerca de como se a transmissão de algo, Lacan ([1955-1956]
1992) coloca uma questão que consideramos bastante pertinente ao campo da educação, ou seja,
o que opera uma transmissão, o que faz com que uma transmissão aconteça? Lacan vai
construindo sua resposta no sentido de que se trata “com efeito, de uma realidade estruturada
pela presença de um certo significante que é herdado, tradicional, transmitido – e como? É claro,
pelo fato de que, em torno do sujeito, fala-se”. (LACAN, ([1955-1956] 1992, p.283).
Trazemos tais considerações, que se relacionam com os temas da interdisciplina (clínica e
educação), da ética e responsabilização, para contextualizar a direção de reflexão que tomamos:
posicionamo-nos um pouco porque queremos, mas, também, porque “podemos”. Não se trata,
portanto, de uma prescrição, mas do que se pode fazer neste intervalo entre o ancestral, as
referências que portamos e o que não “dominamos”, o que “podemos” fazer com o que nos é
transmitido, nesse plano que é da ordem de uma contingência. Fazemos nossa escolha, portanto,
no sentido de zelar pela existência de um espaço intervalar, sem suspender os enigmas que nos
convocam à ação.
28
Hannah Arendt (1993, p.332), coloca, ao se referir à era moderna, que se processa, na mesma uma passagem da
ação à contemplação (enquanto traz que a ação e o discurso são as formas de existência e singularização dos seres
humanos).
29
A ação, aqui, é tomada desde a perspectiva de Hannah Arendt, no sentido de conceituá-la como a atividade que se
entre os homens, sendo, portanto, sua condição a pluralidade, através da qual se cria a possibilidade da história,
que depende, inteiramente, da presença de outros homens (ARENDT, 1993, p. 31).
2.2.6 Do fazer, do vazio e da responsabilidade
É pensando na questão da contingência, como motriz de um fazer, que se efetiva em um
espaço intervalar, que lemos o que coloca Lacan ([1964] 1988, p. 200), em relação ao não-senso,
no sentido de ser o espaço articulador entre o sujeito e o Outro, um espaço “vazio”. Ao longo de
sua obra, Lacan põe, justamente, o vazio no centro de todo argumento. Talvez um vazio um tanto
quanto paradoxal, pois não se trata exatamente de um nada, mas sim de um buraco que
tensionará e terá como bordas a relação entre a tradição e a possibilidade de criação de algo
novo.
Lebrun se refere a este lugar que não é totalmente garantido por ninguém, ao vazio, ao
ponto de impossibilidade. Em uma passagem de seu texto, utiliza-se da metáfora da cicatriz para
representar o movimento necessário de se fazer algo a partir deste ponto:
Representemos aqui nossa afirmação dizendo que esse ponto não pode ficar aberto,
hiante; convém que, de uma certa forma, esse orifício seja cicatrizado, que se torne um
umbigo para que se produza um arranjo que não deixe o futuro sujeito completamente à
deriva com relação ao sistema linguageiro, ou em risco de ser engolfado no mundo
materno. (LEBRUN, 2004, p.30).
Mais adiante, no mesmo texto, adverte para a importância de que furo e tampa estejam
em certa relação, uma vez que o furo manter-se-á como algo impossível de suturar, e a tampa
dispor-se-á de maneira a evitar o efeito similar ao de uma corrente em turbilhonamento.
Sublinhemos imediatamente que estamos lidando com um duplo movimento: de um lado,
a necessidade de apelar ao pai para se organizar diante do vazio originário, a fim de não
deixar hiante um furo no qual se arriscaria ser engolfado; de um outro lado, não obturar
esse furo de maneira tal que seja completamente eludido; ele é como a casa vazia do jogo
de “resta um”, ou de passa-passa que permite que o jogo possa acontecer. (LEBRUN,
ob.cit., p.31).
A este duplo movimento, Lebrun atribui a função do pai, ou seja, a de, ao mesmo tempo,
deter a possibilidade de um engolfamento e permitir certa confrontação com o furo, com o vazio,
no sentido de viabilizar a convivência com ele. Lebrum aponta que se trata, justamente, em
relação à função paterna, de “[...] estar ali não estando ali demais” (ob.cit, p.31, gifo nosso).
2.2.7 Da inserção e da inscrição
Questões diversas se colocam em nosso cotidiano de trabalho e pesquisa, tensionando-o.
Referimo-nos, aqui, precisamente, a não equivalência, mas sim, a relação entre inserção social e
inscrição psíquica, ou uma reflexão acerca do lugar desde o qual nos posicionamos, quando
pensamos na problemática da inserção social.
Muito embora não sejam estas objeto de nosso estudo de dissertação, em função de sua
relevância e potencial de adensar nosso problema, decidimos inseri-las nesta
coleção/caminhamento, para com ela tensionar.
No trabalho com as psicoses, inúmeras vezes, nos encontramos com a perspectiva do
quanto poderia ser interessante, para um determinado sujeito, publicizar uma produção, na
direção de lhe possibilitar algo da ordem de uma inserção social. Muitas vezes, porém, não é
possível sustentar os efeitos que uma publicização implicaria. A idéia da inserção (social) e da
inscrição (psíquica) coloca-se como uma questão delicada.
No cotidiano do trabalho, inúmeras vezes, encontramo-nos com um discurso que garante
que o sujeito, ao se colocar como cidadão, terá sua palavra reconhecida. Entendemos que
produzir uma inscrição psíquica, porém, nem sempre vai passar pela condição do exercício da
cidadania, tal como se coloca no imaginário de nosso discurso social (podendo, justamente, se
desviar dela).
Aqui, pensamos em Gislaine, paciente do caps alguns anos, avaliada, pela equipe de
trabalho, como alguém bastante capaz, o que gerou insistentes encaminhamentos a cursos,
inclusive profissionalizantes. A cada tentativa, sucedia-se um fracasso, no sentido de
provocarem-se, para ela, justamente, situações de exclusão, sensações de estranhamento e
precipitação de momentos de crise. Foi preciso iniciar e sustentar um trabalho (além de seu
atendimento clínico) mais “lento” para que pudesse, de certa forma, suportar os efeitos (ou o que
entendia como a ausência de efeitos) de suas produções no tecido social. Voltaremos a falar de
Gislaine ao longo da escrita deste trabalho.
A esse respeito, encontramos uma passagem de Andréa Guerra, ao se referir às
possibilidades de transformação subjetiva em um trabalho em oficinas terapêuticas:
Transformação subjetiva não se opera simplesmente pelo intercâmbio social, pela
transformação do ocioso em trabalhador ou pelo indício da possibilidade de acúmulo de
riquezas ou do exercício da cidadania. Assim, não basta que se produzam objetos
materiais, circuláveis qualitativamente e vendáveis no mercado para que haja realmente
algum deslocamento de posição quanto ao participante de uma oficina.
Certamente as trocas através das relações intersubjetivas produzem efeitos, inclusive
“terapêuticos”, se se pensa na possibilidade de circulação social do participante e no
trabalho sobre o imaginário popular constituído sobre o que é a loucura. Porém, para que
haja algum tipo de arranjo subjetivo com vistas ao estabelecimento do laço social na
psicose, é preciso que algo do sujeito, de seu savoir-faire com o adoecimento psíquico,
seja fisgado e transformado em atividade sobre um objeto qualquer, produzindo nele uma
densidade simbólica
30
GUERRA, 2000, p. 259) .
Ser reconhecido, portanto, em um lugar fálico por conta da publicização de uma
produção, pode funcionar como uma injunção, não sendo possível suportar os efeitos deste
reconhecimento. Às vezes, um sujeito, em uma condição psicótica, pode vir a produzir algo do
qual vai, justamente, precisar se desfazer depois. Ao nosso ver, constitui-se, aqui, um certo
impasse para nossa intervenção: será necessário preservar a produção ou autorizar seu
desaparecimento?
Se, por um lado, nosso trabalho vai na direção de que algo se inscreva, que permaneça,
por outro, tenderíamos a pensar que o que está em jogo, então, é, precisamente, a necessidade de
se produzir uma certa perda, para que o que for da ordem de uma acumulação possa deslocar-se
na direção de uma experiência narrativa.
A relação da loucura com o social tem sido objeto de reflexão de vários autores, não
necessariamente no sentido de resolvê-la, mas sim, de problematizá-la ainda mais. Esta posição
nos interessa neste trabalho, pois conserva os enigmas que a alteridade coloca, sem procurar
respondê-los, obturando-os. Neste sentido, coloca Lobosque (2001) que:
30
Retomaremos ao tema da densidade simbólica do objeto mais adiante neste trabalho.
O social, nas suasrias formações, é aqui um espaço que se faz indispensável considerar
posto que o embate com a psicose lhe traz problemas e questões, que podem ser
tratadas de maneiras muito diferentes: podem ter como efeito a recusa, com a
conseqüente dureza da segregação; ou a pergunta aceita, com a problematização
inevitável que se segue. (LOBOSQUE, 2001, p.97).
Pensamos que, ao não acolhermos esse tipo de tensionamento, presente em nosso
cotidiano de trabalho, na medida em que se pode colocar uma muito tênue fronteira entre a
inserção social e o apagamento da diferença, corremos o risco de produzir algo que vai na
direção de uma homogeneização do espaço social. Pelbart (1993), ao redigir um de seus ensaios
sobre o tempo da loucura, tensionando, justamente, a relação da sociedade sem manicômios com
as estratégias de homogeneização do social, nos pergunta: “Quando os loucos forem nossos
vizinhos pacíficos e estiver diluída sua singularidade, o que restará da loucura, ou melhor, da
dimensão desarrazoada que até hoje tem sido monopólio quase que exclusivo dos próprios
loucos?” (p.104).
Problematizando ainda mais, e nos aproximando, simultaneamente, da inseparabilidade
entre o sujeito e o social, ou o Outro, desde a perspectiva lacaniana, trazemos a leitura que faz
Julien acerca do que foi considerado cura, por Freud, no caso Schreber
31
, ou seja, que este teria
se curado por ter publicado (ou publicizado) suas memórias
32
. Diz Julien:
Então, em sua prática clínica da psicose, é importante que vocês destruam a fronteira
entre o psíquico e o social. Vejam o que a prática analítica da psicose nos ensina: não
procurem êxito na vida privada com o psicótico, vocês fracassarão. Estou de acordo com
Lacan neste ponto. É uma falsa separação, o psíquico de um lado e o social de outro.
(JULIEN, 1999, p.71).
E, nesse mesmo caminho, Ana Costa vai colocar que:
[...] se por um lado o um eu sem inscrição social, por outro, não digo sem
singularidade. O que quer simplesmente dizer, tanto que o social está representado no
sujeito, quanto o sujeito o está no social (COSTA, 2001, p. 93).
31
FREUD, Sigmund. [1911] Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia
paranoides). In: Ed Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
32
A questão da publicização tornará a aparecer ao refletirmos acerca do endereçamento, desde a psicanálise e ao
trazermos a escrita da experiência.
2.2.7.1 Da clínica ampliada
É pensando, portanto, na dissimetria entre o sujeito e o Outro que tomaremos a questão
da clínica ampliada, na qual se encontram articulados o trabalho clínico e o político, a clínica e a
política, o sujeito
33
e a cidadania. Seguindo Lobosque (ob. cit., p. 132-133), não é de uma “feliz
combinação” que se trata tal associação, mas sim de se poder pensar sobre uma articulação
possível, a partir de uma outra concepção, uma vez que estes termos “[...]não combinam em
absoluto, [...] não se complementam; eles pertencem a campos heterogêneos”. Para a autora, o
que está em questão, é, precisamente, poder formular essa equação, advinda do “problema” que
o trabalhador de saúde mental se coloca ao utilizar o referencial psicanalítico em sua prática
clínica.
[...] para pensar a heterogeneidade entre estes dois campos sujeito e cidadania e, por
conseguinte, psicanálise e política o nos podemos contentar com as habituais
contraposições esntre individual e coletivo, singular e universal, público e privado; todas
estas duplas trazem implícita a idéia de uma certa correspondência entre seus termos,
onde um deles responderia pelo que está ausente no outro. Como resgatar, então, num
outro registro, este e da expressão tão assídua em nosso discurso, sujeito e cidadania”?
Como estabelecer este elo, cuja necessidade se coloca para definirmops as questões da
saúde mental? Pois, se as questões da saúde mental têm alguma especificidade, se
pretendemos fazer aqui algo mais que uma superposição heteróclita de discursos e
práticas, a especificidade buscada residirá talvez nesta operação: pensar ambos os termos,
sujeito e cidadania, levando em conta a relação de descontinuidade que guardam entre si.
(LOBOSQUE, ob. cit, p. 134-5, grifos do autor).
Palombini (2007), refletindo acerca da relação entre subjetividade e cidade, reforça a
idéia da hetorogeneidade dos campos, insistindo que não se trata, também, entre eles, de uma
complementaridade. Tal relação nos remete ao que Lacan trabalha, em Lituraterra ([1971],
1986), no sentido da diferença entre fronteira e litoral: tratar-se-ia, no primeiro termo de uma
ausência de solução de continuidade entre os campos, limitados, apenas por um marco de ordem
33
Lobosque (2001) enfatiza que o sujeito, aqui referido, é o sujeito que a psicanálise pensa, o sujeito do inconsciente
(p. 133).
simbólica. no último, estariam em questão dois campos heterogêneos limitados, “sulcados”
por uma borda, a qual o autor chamará de letra. O interessante, aqui, é pensar que, seguindo
Lacan, nem os campos, nem a letra, são pré-existentes, ou seja, cada um produz e é produto do
outro, em simultaneidade.
Pensamos ser a partir dessa noção de heterogeneidade, que Palombini (2007), acerca dos
campos da clínica e da política, vai nos dizer que:
A idéia de complementaridade, aqui, não pressupõe uma homogeneidade entre esses
pólos, entre a clínica e a política, de forma que a sua soma pudesse abarcar a totalidade
do campo da reforma, mas antes se refere à necessária articulação entre saberes plurais,
na perspectiva inter ou transdisciplinar que implica a afetação recíproca entre os saberes e
onde a ignorância, o insabido, igualmente faz função. A polaridade, contudo, insiste
ainda, sob novas formas, quando um ou outro desses saberes pretende impor sua
hegemonia ao conjunto heterogêneo de teorias, pensamentos e práticas que constitui o
campo da reforma, sob o pretexto de que tal hegemonia visa o alcance da boa ‘clínicaou
da boa ‘política’ aquela que, fiel aos princípios da reforma, viria assegurar o êxito de
sua realização. (PALOMBINI, ob.cit., p. 10).
Entendemos que esse tema, da relação entre a clínica e a política, o sujeito e a cidadania, a
subjetividade e a cidade, tem sido largamente pesquisado por autores que vêm se debruçando
sobre o processo da Reforma Psiquiátrica e seus desdobramentos no Brasil (Guerra, 2004,
Lobosque, 2001, Palombini, 2007, entre outros), não sendo este o foco de nosso trabalho.
Entretanto, gostaríamos de salientar que nosso referencial de trabalho, no campo da saúde
mental, é fruto do engajamento de pessoas comprometidas com os pressupostos da Reforma
Psiquiátrica no Brasil, não no sentido de algo pronto e estabelecido como norma a seguir, mas
sim (e justamente) na direção de uma clínica ampliada que carrega, com sua denominação, um
processo de permanente construção. É nesse território, de práticas, conceitos e embates, que se
origina e caminha (nem sempre na mesma direção) o trabalho que desenvolvemos no Caps Cais
Mental Centro
34
Apesar de não nos propormos, nesse momento, a refletir mais verticalmente acerca do
conceito de clínica ampliada, tal como a ele nos referimos, consideramos de fundamental
34
Destacamos, aqui, dentre rios colegas da equipe do Cais, nossa coordenadora-fundadora, Maria Cristina
Carvalho da Silva, que esteve à frente deste projeto de trabalho por dez anos, até ser remanejada para um outro
serviço da Secretaria Municpal de Saúde da cidade de Porto Alegre.
importância explicitarmos, aqui, que é a esta posição que nos remetemos, ao pensar nosso
trabalho clínico, em terapia ocupacional, com sujeitos psicóticos. Embora entendamos que o
termo clínica ampliada vem sendo utilizado, pelos trabalhadores do campo da saude mental,
desde a perspectiva que abordamos anteriormente, optamos por utilizar, em nossa escrita, apenas
o termo clínica (da terapia ocupacional), justamente, por concebermos que este já deve trazer, ao
ser enunciado, a relação entre o sujeito e o social. Abrimos mão, desta forma, da redundância
que poderia decorrer do uso do termo ampliada.
Salientamos que é precisamente a relação entre heterogêneos dissimétricos, esse certo
desencontro presente constitutivo, que sustenta a existência de um campo vivo, dinâmico, aberto,
nunca totalmente apreensível, domesticável ou que possa se pretender completo. É por isto,
também, que nos propusemos a falar a partir de um recorte, de uma das tantas facetas das
questões que se colocam em nossos caminhamentos de trabalho.
2.2.8 De alguns conceitos
2.2.8.1 Do compartilhamento, testemunho e endereçamento – considerações acerca das psicoses
Em nosso projeto de dissertação, nos perguntávamos, também, acerca do lugar do
testemunho e do endereçamento no trabalho com sujeitos psicóticos. Seria a função do
testemunho viabilizar ou produzir as “condições” de um endereçamento possível? Um espaço de
trabalho em oficinas, onde a produção de algo está em jogo, poderia acionar estas “dimensões”?
De que forma? Para contemplar tais questões, em nossa tessitura, colecionamos
35
alguns
conceitos, a partir da leitura que fizemos da questão da estruturação psíquica e seu recorte, na
psicose, desde a psicanálise.
Comecemos por Lacan, em seu seminário sobre as psicoses, quando estava, justamente,
formulando a idéia do Outro (grande Outro) como o lugar do simbólico, da linguagem, do
código, sem o qual não haveria cultura. O Outro, grafado em maiúscula, foi adotado para mostrar
35
Não se trata, aqui, de uma pura acumulação, mas de algo que já porta uma dimensão narrativa.
que a relação entre o sujeito e o grande Outro é diferente da relação com o outro simétrico,
especular.
Simultaneamente, no mesmo seminário, Lacan trabalha a questão do imaginário, como o
que se precipita deste Outro no sujeito:
O primeiro, o outro com a minúsculo, é o outro imaginário, a alteridade em espelho, que
nos faz depender da forma de nosso semblante. O segundo, o Outro absoluto, é aquele ao
qual nós nos dirigimos para além desse semblante, aquele que somos forçados a admitir
para além da relação da miragem, aquele que aceita ou que se recusa na nossa presença,
aquele que na ocasião nos engana, aquele ao qual sempre nos endereçamos. (LACAN,
[1955-1956]1992, p. 286-7, grifo nosso)
A primeira operação de estruturação psíquica do sujeito vai ser, portanto, fazer uma
espécie de circunscrição do que é completamente indeterminado, no campo do Outro, no sentido
de que algo, deste campo, se dirija a ele (sujeito). Introduz-se, desta forma, no sujeito, a
dimensão da falta, experienciada de froma transitiva, no momento em que é situado como objeto
da demanda do Outro.
A falta, desta forma, aparece, primeiramente, no campo do Outro, sendo experienciada,
pelo sujeito, de forma transitiva. A operação de se demandar algo, do sujeito, se efetiva pelo
fato do Outro ter se colocado “em falta”. Trata-se da primeira operação de entrada no campo da
linguagem: esse corpo, antes puro organismo, transforma-se em objeto, a partir de algo que lhe é
especificamente dirigido. Nesse sentido, Laia (2001) coloca que:
Encontraremos, portanto, a afirmação lacaniana de que o homem, antes de falar, já é
falado desde um Outro lugar, diverso daquele em que ele se encontra, falado a partir de
um campo que – para ressaltar a diferença com relação ao sujeito e aos outros que não
deixam de lhe ser próximos, aos seus ‘semelhantes’ – Lacan chama de campo do Outro.
(LAIA, ob. cit., p. 141).
Entedemos que Lacan (ob. cit., p. 246), neste sentido, refere-se à defesa, desde a
psicanálise, enfatizando que a mesma “[...] dirige-se contra uma miragem, um nada, um vazio e
não contra tudo que existe e pesa na vida.” Ana Costa (1998) vai pensar, então, na relação
dissimétrica, entre o sujeito e o Outro, que entendemos ser o que provoca a fundação do que é da
ordem de um entre-lugares:
[...] entre o Sujeito e o Outro existe uma tensão constante. Essa tensão é responsável por
uma diferença de lugares uma dissimetria criando-se, assim, a necessidade de uma
versão. O sujeito é construído por essa versão em que ele tematiza, sem saber, sua ligação
com o lugar do Outro. Essa construção emerge a partir de uma referência temporal, desse
sentido do Outro que está antecipado à condição de apropriação do sujeito. (COSTA, ob.
cit., p.49)
O primeiro tempo da estruturação psíquica implica uma tomada de posição na alienação
e, na seqüência lógica do processo, a constituição de estratégias de defesa contra ela. Ana Costa,
trabalhando o conceito de alienação, em Lacan, salienta que a mesma “se fundamenta na
suposição de que toda afirmação do lado do sujeito parte de algo compartilhado, do que ele tem
em comum com o Outro” (ob. cit., p. 54). Para se separar, é preciso ter sido incluído no desejo
do Outro.
Acerca da introdução, então, do humano na ordem simbólica, a partir da leitura do
Projeto, de Freud, Garcia-Roza (2001) ilustra:
Se um recém-nascido premido pela fome chora e agita os braços e as pernas essas
respostas motoras não são eficazes para a eliminação do estado de estimulação na fonte
corporal. Essa conduta, considerada em si mesma, é ineficaz para a obtenção do
alimento; no entanto, em se tratando do recém-nascido humano, ela se inscreve num
outro registro, o da comunicação por sinais, e aparece como demanda, demanda do
Outro, deixando de ser um mero behavior ineficaz para se constituir numa forma de
introdução do sujeito na ordem simbólica. O choro é ouvido pelo próximo como
demanda, e na medida em que essa demanda é atendida, ela passa a fazer parte da troca
simbólica, especificamente humana.” (GARCIA-ROZA, 2001, p.130)
Desta forma, devido à prematuridade e fragilidade do ser humano, ao nascer, faz-se
necessária a presença e auxílio de um outro que, ao interpretar o mal-estar do bebê, procura saná-
lo: “Se assim é, a ajuda externa não se reduz à satisfação da necessidade, ela introduz o sujeito
na ordem simbólica.” A demanda do bebê é, então, dirigida ao Outro, no momento em que “o
destinatário é a ordem simbólica e não o outro especular” (Garcia-Roza, ob. cit., p. 133).
Entendemos, dessa forma, que o apelo, ao ser dirigido ao sistema simbólico e não ao
outro semelhante (que, neste caso, seria a mãe, ou quem presta os cuidados maternos ao bebê),
insere o sujeito na ordem da linguagem, na relação ao Outro. O bebê, então, apela ao sistema
simbólico, podendo realizar tal operação, entretanto, se o outro semelhante estiver ali, como
um “passador” (ao Outro). O que faz, portanto, com que a demanda se dirija ao Outro é que o
semelhante se constitua como um “passador”.
A partir dessa relação (dissimétrica) do sujeito com a ordem simbólica, Laia conclui que
“Não foi, então, sem razão, que Lacan definiu ainda o inconsciente como ‘o discurso do Outro’,
como esse linguajar tramado em um lugar ao mesmo tempo heterogêneo e estruturante para o
sujeito” (ob. cit., p. 142).
É de outra ordem, entretanto, o que observamos, muitas vezes, no discurso dos sujeitos
psicóticos. Não raramente, nos encontramos com pessoas que se colocam como os únicos
destinatários possíveis das produções destes sujeitos. O que se observa, na estruturação psicótica,
é uma demanda dirigida ao outro (semelhante), que se coloca como o único e último destinatário
e possível acolhedor da mesma. Percebe-se que a estratégia, na psicose, não será a de constituir
um saber para dar conta disso que o Outro quer, constituindo-se um saber totalizante, no
momento em que não há relação com a falta.
No trabalho com a psicose, trata-se de um exercício que tem a ver com a impossibilidade
de constituir um saber parcial acerca do Outro, de se separar dele, uma vez que, como coloca
Palombini (2004), na psicose, não “inscrição psíquica, simbólica da castração”(ob cit, p. 36).
A autora segue, dizendo que, em função disto, “não se sustentam as descontinuidades, os vazios
que marcam a diferença entre o eu e o Outro, diferença que possibilita ao eu deslocar-se da
posição de objeto de desejo do Outro primordial, tornando-se sujeito de seu próprio desejo” (ob.
cit., p. 36). Sem esse corte, então, o sujeito habitaria (ou seria) tudo e nada, ao mesmo tempo.
Na medida em que o sujeito não consegue, portanto, eleger um saber que conta da
demanda do Outro em relação a ele, acaba correndo sempre o risco iminente de nele se perder.
Vai procurar, então, constituir um saber totalizante, para se proteger dessa perda. Talvez a
estrutura do delírio nos fale um pouco disto, no sentido de não estar nele comportado o que é da
ordem da dúvida, da falta, propondo como equivalentes a representação e a coisa representada.
Neste sentido, Lacan, referindo-se a Schreber, exemplifica:
Num sujeito como Schreber, as coisas vão tão longe que o mundo inteiro está tomado
nesse delírio de significação, de tal modo que se pode dizer que, ao invés de estar ,
quase nadade tudo que o cerca que, de certo modo, ele não seja.
Em compensação, tudo o que ele faz existir nessas significações é de alguma maneira
vazio dele próprio. (LACAN, [1955-1956] 1992., p.95)
A partir daí, pode-se ter uma idéia acerca da simultaneidade, na psicose, da plenitude (o
tudo e o nada), ou seja, um delírio que abrange tudo, ao mesmo tempo em que as significações
por ele produzidas permanecem vazias de sujeito. Estando na lógica do todo, da pura presença,
não como inscreverem-se as marcas, registrar-se no simbólico, e, como defesa, infla-se a
dimensão do imaginário, das equivalências, das significações mais estáveis, mais cristalizadas.
De que forma seria possível, então, para o sujeito, a experiência de distanciamento, ou
melhor, de separação de sua produção? Lacan (ob.cit., p. 246) diz que o psicótico ama o delírio
como a si mesmo, não havendo tal separação. É como se, na psicose, o lugar da enunciação, do
eu que fala, equivalesse ao do enunciado, do eu que é falado, colando-se um ao outro. Diz Lacan:
O Outro, com A maiúsculo
36
, eu lhes disse que ele estava excluído, enquanto detentor do
significante. Por isso ele é tanto mais potentemente afirmado, entre ele e o sujeito, no
nível do outro com minúscula, do imaginário. (LACAN, [1955-1956] 1992, p.221)
Referindo-se a Schreber, ainda nessa direção, segue:
Temos a impressão de que é na medida que ele não conseguiu, ou perdeu esse Outro, que
ele encontra o outro puramente imaginário, o outro diminuído e decaído com o qual não
pode ter outras relações que não as de frustração esse outro o nega, literalmente o mata.
Esse outro é o que há de mais radical na alienação imaginária. (LACAN, ob.cit., p.238)
O Outro, portanto, não é um ente (com vontades) e sim uma rede de significantes (mais
ou menos) em relação. No entanto, observamos, na psicose, a necessidade, pela fragilidade da
organização simbólica, de imaginarizar o Outro em um outro, como uma ancoragem possível,
como alguém, ou algo que organizaria o mundo, para além desse sistema vazio de significação.
Não nos iludamos, como lemos, na citação acima, “esse outro o nega, literalmente o mata.”
Entendemos que é neste lugar que o sujeito vai procurar encontrar a pessoa que com ele
trabalha (analista, terapeuta, educador) e será para onde remeterá suas produções (verbais ou
materiais). Apesar disto, embora essa seja a modalidade de relação transferencial que se coloca,
36
O “A maiúsculo”, aqui, refere-se ao Autre, do original, em françês.
acreditamos que o trabalho acontece no sentido de se tentar provocar que determinada produção
possa vir a ser endereçada. Para que um endereçamento se produza, será necessário ocupar, na
transferência, um lugar de “passador”.
Ao se referir aos mecanismos que estão em jogo, na psicose, buscando a dinâmica que a
especifica, Lacan, porém, adverte:
Na ordem do imaginário, a alienação é constituinte. A alienação é o imaginário enquanto
tal. Não há nada a esperar do modo de abordagem da psicose no plano imaginário, pois o
mecanismo imaginário é o que dá a sua forma à alienação psicótica, mas não sua
dinâmica. (LACAN, [1955-1956] 1992, p.169)
Se, como coloca Lacan, é sempre ao Outro que nos endereçamos, como construir um
endereçamento, uma vez que o outro (semelhante) acaba atualizando seu absoluto (do Outro)?
Entendemos que o registro, a inscrição psíquica se dá quando determinada produção, após
atravessar, após rodear o campo do Outro, retorna, deste encontro, ao sujeito que a produziu. A
partir, portanto, de uma posição auto-referenciada, não há inscrição possível. Em outras palavras,
podemos considerar que é no ponto de chegada que uma inscrição se faz.
O Outro, então, opera como um ponto de referência simbólica, a partir do qual, Lacan
dirá, cada sujeito recebe sua própria mensagem, ou seja, a fala que o sujeito emite, e que
produz um efeito sobre os outros, só assume sua efetividade na medida em que é
sancionada pelo Outro, o que faz portanto com que o sujeito receba sua própria
mensagem sob forma invertida. Assim, através do Outro, o sujeito é constituído em sua
própria enunciação, que lhe retorna transformando-o. Sem o Outro, os outros
permaneceriam absolutamente em errância e suas falas jamais poderiam produzir efeitos
de sujeito, uma vez que estariam condenadas a permanecer aquém da significação de seu
ser, assumindo, na melhor das hipóteses, uma estrutura de alusão, em um cercamento
infindável de um sujeito irremediavelmente não nascido. (FREIRE, 2001. p. 46).
Saindo, um pouco, do terreno mais específico da psicose, nos indagamos, novamente,
acerca de quem seria, então, o destinatário de uma produção. Ana Costa volta a enfatizar a
dissimetria entre o sujeito e o Outro, impossível em se tratando de uma relação eminentemente
especular. Esta relação, na medida em que não comporta o absoluto de um encontro, funda, nesse
entre-lugares, o espaço da ficção.
Desde que o campo humano depende da significação, o lugar da “relação” é ocupado pela
ficção, na medida em que o é possível um encontro absoluto entre sujeito e Outro.
Como é uma resultante relacional, esta ficção não tem a propriedade de ser uma
construção individual, senão que precisa adquirir o caráter de uma certa construção
coletiva.” (COSTA, ob. cit., p.29)
Mais adiante, no texto, Ana Costa vai retomar o tema da ficção como resultante “coletiva”
deste encontro/desencontro entre o sujeito e o Outro. Traz, agora, neste sentido, a questão da
ficção compartilhada, afirmando que “Para que tenhamos palavras torna-se necessário que
tenhamos ficções com estatuto de verdade. O que permite esse estatuto é o reconhecimento do
outro” (ob. cit., p. 76).
Pensamos que, quando falamos em reconhecimento
37
, nos referimos a algo que opera no
plano imaginário, relacionando-se, portanto, ao outro, ao semelhante, e produzindo, assim, uma
espécie de relação em espelho, à estrutura do outro no espelho. Se consideramos, desta forma, a
diferença que entre reconhecimento (isso que o sujeito dirige, como um pedido, ao outro
semelhante) e endereçamento (algo que o sujeito produz no laço com o Outro), ressaltamos que
um objeto ganha estatuto de produção quando encontra, nesse universo do Outro, um lugar de
inscrição.
Lembramo-nos, aqui, do filme, O zero não é o vazio, de Andrea Menezes e Marcelo
Masagão, através do qual acompanhamos as tentativas de seus “personagens”, a partir da escrita,
construirem algo que desse conta dos impasses da condição de laço com o Outro, do ordenador
do mundo
38
. Trata-se de um filme-documentário, realizado a partir da experiência, da
psicanalista Andréa Menezes, na condução de uma oficina de escrita em um caps de São Paulo.
Os “personagens” do filme são, em sua maioria, sujeitos acompanhados nesta oficina, que nos
contam, um pouco, através dele, sobre sua relação com a escrita.
37
Apontamos, aqui, uma diferença entre as palavras reconhecimento e compartilhamento, no sentido de
entendermos que, esta última parece nos remeter a algo sempre implicado no endereçamento.
38
Função paterna, para a picanálise.
A escrita aparece, então, no filme, como um recurso de tentar escrever o que não está
inscrito, constituir um lugar desde o qual falar e ser reconhecido, um traço. Como Márcia, uma
das “personagens” do filme, que “não se cansa de escrever sua história, que, aos poucos, vai
produzindo marcas no elegante bairro de Higienópolis”. Ou, o Condicionado
39
, que procura
“marcar o papel com sua caneta na busca de que um traço original permaneça”
40
.
Assistimos, no filme, as tentativas de constituição de algo da ordem de um endereçamento,
quando o que aparece são lugares quase anônimos: as produções não são dirigidas
imaginariamente a alguém, ou a um Outro, mais ou menos, recortado, mas sim, para quem passar
por elas.
Sobre o processo do filme, Andréa Menezes nos conta que:
Não queríamos documentar, retratar, identificar, tínhamos apenas uma pergunta: Qual a
relação desas pessoas com a escrita? Nesse sentido o filme foi o trabalho de situar essa
pergunta, sem no entanto respondê-la. (MASAGÃO e MENEZES, 2005, p.51)
Trazemos, também, tal exemplo, para pensarmos na questão da reabilitação psicossocial,
ou da inserção social, sobre a qual discorremos brevemente. Entendemos que, no filme, cada um
tenta alçar sua escrita a um lugar de inscrição, através de estratégias bastante diferente do que se
espera, imaginariamente, em termos de homogeneização com o tecido social (como algo
imprescindível a qualquer possível compartilhamento da realidade).
Consideramos se tratar, neste filme, justamente, da construção de endereçamentos
possíveis e não propriamente da busca de um reconhecimento imaginário, trazendo, talvez, à
cena, dimensões singulares de inserção social. Construir um endereçamento, estar referido ao
campo do Outro, nem sempre vai passar pela via da inserção em homogeneidade ao campo
social.
41
39
Assistindo o filme, parece-nos que, tanto Márcia, quanto o Condicionado, escrevem na rua, e não no âmbito da
oficina de escrita do caps.
40
Trechos do filme O zero não é o vazio.
41
É possível pensar, desde este exemplo, no enlaçamento singular que cada um pode construir com o campo do
Outro, não sendo possíveis generalizações, ou idealizações, a respeito da inserção social ou da reabilitação
psicossocial.
Podemos pensar que o que está em questão, no filme, é uma aposta na possibilidade da
construção de narrativas, composição difícil para quem as palavras, praticamente, não se
separam do corpo. Dito de outro modo, talvez se trate da necessidade de se produzir um
diferencial, um traço que separe o corpo do sujeito da invasão do Outro, que instaure a relação
dissimétrica entre o sujeito e o Outro, fundando o entre-lugar da ficção, da criação.
Consideramos que outro elemento na composição deste filme: a busca de se constituir
um espectador, ou um leitor. É preciso que alguém se interesse pela produção de cada um e a
dirija ao campo do Outro, o que poderia ser, justamente, uma espécie de efeito da produção e
projeção do filme. É a própria Andréa Menezes quem diz:
Durante anos fui acumulando escritos; os pedacinhos de papel retirados dos maços de
cigarros fumados por Orlando, que em determinado momento me tomou por depositária
de suas letras. Escritos muitas vezes ilegíveis e que por um desvio da rota que os levava
sempre a lata do lixo, foram parar em minhasos. (MASAO e MENEZES, ob.cit.,
p.51)
Menezes segue:
Foi surgindo a necessidade de me livrar daquelas letras, de me separar delas e assim,
talvez poder passar para outra coisa, mas não podia simplesmente jogá-las fora. Talvez
estimulada pelo desejo de Gregório de se ver sendo visto e pelo interesse de Marcelo
pelas escrituras, pensamos na possibilidade de fazer um filme. (MASAGÃO e
MENEZES, ob.cit., p.51)
A autora nos fala, desta forma, dos efeitos, na transferência, sofridos por ela, no trabalho,
e do que é possível fazer com eles, no sentido de fazer passar os elementos dos quais se sente
depositária.
Entendemos que, quando determinado produto não encontra endereço, pode ficar preso a
um circuito auto-erótico, colocando-se um movimento que se esgota na produção mesma. É
como se uma máquina, e não um sujeito, estivesse, aqui, em questão, não se construindo, assim,
qualquer possibilidade de um endereçamento. Trata-se, precisamente, da idéia de um
automatismo, do qual o sujeito estaria excluído.
Trilhando esse caminho, o da possibilidade de que um endereçamento, na psicose, se
constitua a partir do interesse e “direção”, passagem, de determinada produção ao campo do
Outro, ou seja, da presença de alguém que faça esta função, pensamos, novamente, em Ana
Costa (1998) que aponta, justamente, para o fato de que a verdade e o real [...] dependem de
uma ficção compartilhada [...](ob. cit., p. 76). Para que nossas ficções adquiram o estatuto de
verdade, é preciso o reconhecimento do outro, tema trabalhado pela autora:
Podemos cercá-lo de dois lados: naquilo em que ele mostra sua face imaginária, sendo
responsável pelo amparo do eu na imagem do semelhante; ou sua face simbólica, onde as
produções de sujeito ganham amparo na circulação fálica, naquilo em que essas
produções podem estar referidas a um determinado traço simbólico qualquer. (COSTA,
ob.cit., p.101)
A autora trabalha, então, com a tragédia de Hamlet, para pensar, ao nosso ver, a questão
da função do testemunho e sua relação com o endereçamento:
Nas passagens em que Lacan se detém na análise de Hamlet [...], a grande indagação é de
por que Hamleto produz seu ato, do qual não tem nenhuma dúvida de precisar
produzir. Então, a vida o se situa do lado do ato em si. Lacan a coloca do lado do
ser, ou seja, de Hamlet ter perdido o lugar desde onde produzir tal ato.
Por todo o texto, Hamlet vai vagar por esse infinito, sem amparo de um lugar desde onde
possa produzir seu ato. Lacan propõe o encontro desse lugar na cena do cemitério, onde
ele testemunha e se reconhece no luto de Laerte. Laerte, como semelhante, tem a função
de indicar para Hamlet o luto de um objeto capaz de recortar a causa do desejo [...].
Assim, encontramos esta importante função do semelhante de poder testemunhar para o
sujeito a inscrição do lugar de um objeto enquanto perda radical.
Ou seja, o semelhante situaria o objeto para o sujeito, esta seria a função do semblante,
como alguém que pode dar testemunho ao encontro com a perda, com a falta. (COSTA,
ob.cit., p.122-3)
Novamente, lembro de Gislaine, que, justamente, se queixa, em uma entrevista acerca do
trabalho, em terapia ocupacional, que com ela desenvolvo, da falta de reconhecimento, por parte
dos outros, de sua atitude de tentar fazer alguma coisa. Para Gislaine, é apenas a equipe que
trabalha no caps que valoriza seu trabalho, que olha para ela, ao olhar seus trabalhos.
Na verdade, o crochê, não o crochê, também o trabalho com os velhinhos, toda essa
movimentação em torno de tentar fazer alguma coisa, que ela reverta em algo a ser
admirado, financeiramente, ou não, muito longe. Nem o trabalho com os velhinhos,
nem o crochê não têm, pra mim, uma resposta das pessoas que eu conheço, falo da
minha família e da sociedade, por exemplo, em relaçåo aos crochês o consigo vender.
E o trabalho com os velhinhos, também, se teve algum valor, foi aqui no Cais, assim, um
valor que as outras pessoas vissem algum valor nisso, né? Foi aqui no Cais e o
somente aqui no Cais. Os crochês, até hoje, tenho um carrinho de feira, de trabalhos
que exponho, mas, às vezes, a pessoa passa reto e nem olha... Eu acho lindo, mas me dói
quando as pessoas passam e nem olham...
Nessa direção, segue, falando do enxergar, olhar, ver, reconhecer, talvez:
Então, esse trabalho, esse empreendimento todo na instituição, em que eu
praticamente me doei, porque o rendia muito financeiramente (R$150,00, por mês,
duas tardes por semana). Claro que, para mim, ajudava, mas as pessoas sempre falavam
é, é um trabalhinho. Não, o era um trabalhinho, era quase uma doação, era um
trabalho importante, eu sei que era importante. Mas, como eu tava falando, esses dias,
eu tava contando, tava minha mãe e uma amiga dela, e eu tava contando desse trabalho
com os velhinhos, de todas as dificuldades que tinha, de tudo o que foi feito, dos livros
que eu li, de todo um contexto lá, situação, ambiente, calor, sem ar condicionado, sem
ventilador, tudo muito difícil para trabalhar, além das pessoas, da dificuldade, também é
um ambiente, eu tinha que fazer tudo sozinha, ajeitar, suportar toda uma estrutura que
não era bem adequada... Eu tava falando isso, mas a minha e, acho que ela tava
fazendo palavras-cruzadas, e assim como ela tava fazendo, ela seguiu fazendo, sem uma
pergunta, sem nada, mínimo interesse, nenhum... E isso que era a primeira vez que eu
tava falando sobre isso... E não é uma coisa interessante. Apro meu filho também. Eu
quis, também, com esse trabalho dos velhinos, com os crochês, dar o exemplo, dar
exemplo pra ele de continuar, isso eu aprendi aqui, de continuar, de continuar,de
desmanchar, refazer, continuar. Mas ele não enxerga com esses olhos, ele não...
Se pensamos no par compartilhamento/endereçamento, no sentido, talvez trazido por
Gislaine, de situar como necessário algum compartilhamento para a possível construção de um
endereçamento, percebemos que ela ainda busca, no caps, o espaço que lhe configure essa
experiencia, de poder, ali, encontrar alguma possibilidade de que suas produções sejam olhadas,
replicando-se, aí, a função da polis na produção de subjetividade, de existência. Gislaine, fala,
então, na seqüência, de algo que talvez nos evoque, hipoteticamente, um rudimento de uma
experiência de endereçamento, quando se refere às atividades que vem desenvolvendo em casa (e
não no caps):
É que, daí, em casa, eu me envolvo, tu vê, tem que tirar xerox das receitas, tem que
escolher modelo, tem que pensar na cor da linha... Então, isso eu faço no meu canto,
sozinha, lá em casa, enfim, se eu tiver aqui, não pra fazer isso. Mas, também, pode ter
um lado quase que de uma dependência disso. Na verdade, essa peça que eu fazendo é
totalmente inútil, ela não é para ninguém, ninguém pediu, fazendo porque eu tô
fazendo, porque, se eu não tiver fazendo, provavelmente, vou vir pra cá. Essa é a
questão.
Ao ir finalizando sua fala, porém, enfatiza:
O trabalho cansa, eu acho natural que canse, mas é natural que a pessoa se queixe que
cansada. Mas eu o tenho esse apoio. Então, por mais que a gente trate, converse,
um pouco me desanima também isso, também tem esse lado, né? Então, bom, eu penso de
procurar outra coisa pra fazer, mas, ao mesmo tempo, me sinto sozinha...
De que solidão fala Gislaine? Que tipo de presença quer que lhe acompanhe? Seria a ficção
compartilhada, da qual nos fala Ana Costa? Ou seria a lógica da pura presença, a qual nos
referimos anteriormente, ao falar acerca da simultaneidade, na psicose, da plenitude (do tudo e
do nada)?
Pensamos, que, no trabalho com sujeitos psicóticos, percebemo-nos, na maior parte das
vezes, ocupando um lugar excessivamente imaginarizado, fazendo intervenções mais na direção
do reconhecimento de uma produção possível que do encontro de um endereço e a inscrição
psíquica dele conseqüente. Retomamos, aqui, a passagem de Andréa Guerra (2000), que
referimos anteriormente, no sentido de que “[...] para que haja algum tipo de arranjo subjetivo
com vistas ao estabelecimento do laço social na psicose, é preciso que algo do sujeito, de seu
savoir-faire com o adoecimento psíquico, seja fisgado e transformado em atividade sobre um
objeto qualquer, produzindo nele uma densidade simbólica” (ob. cit., p. 259).
Nesse momento, encontramos, talvez, em Ana Costa, um certo refúgio deste lugar
excessivamente imaginarizado, uma espécie de ancoragem para seguirmos trabalhando:
Não há nada de “mais real” que a ficção, não nada “por trás” da ficção. Nosso eu é
uma ficção construída, no lugar de um dejeto corporal qualquer, que necessita o
reconhecimento do outro para que se torne algo possível de compartilhar. Não há nada de
“mais verdade” do que isso. (COSTA, ob.cit., p.74)
2.2.8.2 Fazer a transicionalidade: algumas idéias
42
A possibilidade de se tomar a transicionalidade, como operador, nos remete tanto ao
lugar dado aos objetos produzidos na clínica da terapia ocupacional (a escrita, o crochet, as
fotografias), quanto ao campo de relação em que determinada produção acontece. Esse objeto, ao
qual estamos nos referindo, porta algo que é “coletivo”, algo desse espaço de transicionalidade,
constituindo-se como um “entre-dois”, a partir de uma relação dual, e surgindo, primeiramente,
como objeto: o objeto transicional. Desde o ponto de vista lacaniano, trata-se, na
transicionalidade, de um tempo anterior à possibilidade de separação, criando-se uma certa
plataforma de sustentação para a separação. A transicionalidade, então, relaciona-se com o que
se inscreve entre a condição de alienação absoluta e a de separação: um tempo em que o eu e o
Outro se confundem, mas já são eu e Outro.
Ricardo Rodulfo (1990) nos lembra que Winiccott utilizava-se da palavra brincar e não
brinquedo, ao se referir à tal atividade da criança, uma vez que o verbo, no infinitivo, remeteria a
um processo e não a algo finalizado. Da mesma forma, escolhemos empregar a palavra fazer, ao
abordamos esse empenho do sujeito em realizar algo, e não atividade, termo correntemente
utilizado na escrita advinda do campo da terapia ocupacional, sobre o qual procuraremos nos
debruçar.
Seguimos Rodulfo, então, na direção de “[...] acentuar o sentido de prática significante
que tem para nós essa função [o brincar]; enquanto o brinquedo remete ao produto de certa
atividade, a um produto com determinados conteúdos, a atividade em si deve ser marcada pelo
verbo no infinitivo, que indica seu caráter de produção” (ob. cit., p.91). Podemos, aqui, substituir
os termos brincar e brinquedo por fazer e atividade, respectivamente. Utilizar o verbo no
42
No caminho que fomos traçando, ao longo deste trabalho, a questão da transicionalidade, como mais um operador
colecionado, também se colocou, a partir dos apontamentos de Ana Costa, no momento da qualificação de nosso
projeto de dissertação.
infinitivo nos remete, novamente, ao que coloca Paul Valéry (2001, p. 180-1) acerca de suas
obras de espírito, no sentido de dar à ação que faz uma dimensão maior que a coisa feita.
Feita esta breve introdução, partimos, com uma passagem de Lacan, em direção a uma
breve reflexão acerca de uma possível relação entre a transicionalidade e o trabalho clínico em
terapia ocupacional, heterogêneos dissimétricos, que procuraremos colocar em relação. Para
tanto, nos utilizaremos, além das referências de Freud e Lacan, alguns conceitos de Winnicott
que consideramos potentes nesse sentido. Tomaremos, aqui, o texto de Winnicott não
propriamente no sentido de dar conseqüências ao campo conceitual winnicottiano, mas sim de
tomar os elementos que nos auxiliam a qualificar as questões relativas aos movimentos de
alienação e separação, trazidos por Freud e Lacan.
Lacan, na parte final do texto O Estádio do Espelho como Formador da Função do
[Eu]
43
tal qual ela nos é Revelada na Experiência Psicanalítica (apresentado no ano de 1936 e
publicado no ano de 1849) coloca que “[...] somente a psicanálise reconhece o de servidão
imaginária que o amor deve sempre tornar a desfazer ou cortar” (ob. cit., p. 14). É partindo desta
passagem que iniciamos, então, nossa reflexão acerca do fazer como um dos processos de
produção de uma perda, na psicose, e não como um incremento, ou algo que viria no lugar de
encobrir uma falta, ou enriquecer uma vida empobrecida pela condição psicótica.
Referindo-se ao estádio do espelho
44
, Lacan observa que é em torno dos seis meses de
vida que se inicia este momento da estruturação psíquica (que perduraria até, aproximadamente,
os dezoito meses de vida
45
), no qual o filhote do homem, apesar de sua excessiva prematuração,
passa a reconhecer a imagem “completa” que no espelho como sendo sua. Observa-se, então,
na criança, o “afã jubilatório”, ou a relação lúdica que se estabelece no encontro do bebê humano
com sua imagem no espelho, índice de que o que é da ordem de um reconhecimento se produziu.
Trata-se, a partir de então, da relação identificatória com uma imagem, ou seja, da criança
assumir a imagem que como sua, sendo, então, transformada por ela. Para Lacan, o que está
43
Utiliza-se, na tradução para o português, o [eu], para se referir ao je, que se relaciona ao sujeito da enunciação (do
inconsciente), e o eu, para se referir ao moi, ou sujeito do enunciado.
44
Note-se que não se trata de estágio, pois Lacan não se refere a tal momento como fase, ou etapa, o que remeteria a
um sentido evolutivo da questão que está colocando. A imagem do estádio é justificada, no próprio texto, por Lacan,
dizendo respeito à arena, cercada por muralhas, ao campo fortificado, onde se da o embate da relação entre o
sujeito [eu] e sua imagem especular. (ob. cit., p. 12)
45
É, justamente, por volta dos dezoito meses de vida, que Freud observará, na criança, a brincadeira do fort-da, que
abordaremos mais adiante neste trabalho. Como se, à medida que fosse se inscrevendo o estádio do espelho, fosse
surgindo, como possibilidade de lidar com a presença/ausência do outro, este brincar infantil.
em questão, no estádio do espelho é uma identificação, ou seja “[...] a transformação produzida
no sujeito quando assume uma imagem (ob. cit., p. 8)”.
Lacan vai chamar atenção, então, para essa dissimetria entre a imagem que a criança
reconhece como sua e a excessiva prematuração experienciada, por ela, neste momento da vida.
Sobre tal dissimetria, ou tal desencontro, nos diz que:
O ponto importante, porém, é que esta forma situa a instância do eu, desde antes de sua
determinação social, em uma linha de ficção, irredutível para sempre apenas pelo
indivíduo ou antes, que somente assintoticamente se junta ao vir a ser do sujeito,
qualquer que seja o êxito das sínteses dialéticas por meio das quais tem de resolver
enquanto [eu] sua discordância com sua própria realidade. (LACAN, ob. cit., p.8-9)
Sendo a imagem da ordem de uma exterioridade constituinte, ao mesmo tempo em que
assegura a permanência do [eu], configura sua destinação alienante (ob. cit., p. 9), precipitando-
se, para o sujeito, o drama que vai da insuficiência à antecipação (ob. cit., p. 11). Por aí,
podemos pensar, também, a dissimetria que se coloca na relação entre o sujeito e o Outro. Lacan
utiliza-se, neste texto, de termos como discordância, realidades psíquicas heterogêneas,
dissimetria, discórdia primordial, ficção. Tendemos a considerar o entre-lugares que está se
estabelecendo neste momento da vida, a partir do descompasso que se coloca entre a imagem
“completa” assumida pelo bebê e seu estado natural de prematuração, ou, como coloca Rodulfo,
“[...] a antecipação de uma certa unificação ainda distante da experiência efetiva do próprio
sujeito (ob. cit., p. 137)”. É interessante que, neste ponto, Lacan menciona a linha de ficção
irredutível para sempre...
Neste sentido, acrescenta:
A função do estádio do espelho revela-se para nós desde então, como um caso particular
da função da imago, que é a de estabelecer uma relação do organismo com a sua
realidade ou, como dizemos, do Innenwelt com o Unwelt. (LACAN, ob. cit., p.10)
Lacan coloca, então, que, ao “término” do estádio do espelho, em torno dos dezoito
meses de vida, inaugura-se “[...] a dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente
elaboradas (ob. cit., p. 12)”, referindo-se, sem desenvolver neste momento, à função alienante do
[eu] e a agressividade daí decorrente. Sobre este ponto, retomamos a passagem que trouxemos,
anteriormente, na qual Lacan estaria abordando, a nosso ver, a inseparabilidade dos movimentos
de alienação e separação. Nesse momento, o reconhecimento da imagem exterior como própria,
lança o sujeito no “nó de servidão imaginária”, na alienação, portanto, de ser nesta imagem. Daí
decorrerão as relações com a realidade, com os outros, com as “situações socialmente
elaboradas”, a partir, ou não, das possibilidades subjetivas de, pela via da agressividade,
produzir-se a separação, a perda da totalidade.
Freud, em Além do Princípio do Prazer, texto de 1920, escreve acerca da observação à
brincadeira de seu neto, um menino, com idade de dezoito meses, justamente em torno da qual,
Lacan vai referir o “término” do estádio do espelho. Freud aponta, aqui, para o fato de que as
diferentes teorias que versam sobre a brincadeira das crianças, não trazem à cena seu motivo
econômico, ou seja a produção de prazer que está envolvida em seu desenrolar.
O autor denomina a tal brincadeira observada de Fort-da, em função dos sons emitidos
durante a mesma: ao lançar um carretel, amarrado a um barbante, ao longe, o menino dizia óóó,
no sentido de ir embora. Ao puxá-lo para si, dizia da, querendo dizer aqui.
O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta
dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o
carretel como se fosse um carro. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com
muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que
aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo que o menino proferia seu
expressivo ‘o-o-ó’. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do
cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre ‘da’(‘ali’). Essa, então, era a
brincadeira completa: desaparecimento e retorno. Via de regra, assistia-se apenas a seu
primeiro ato, que era incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo, embora o
haja dúvida de que o prazer maior se ligava ao segundo ato (FREUD, [1919], 1987. p.
25-6).
Esta brincadeira, para Freud, era como “brincar de ir embora com eles” (ob. cit., p.26), ou
seja, com os brinquedos, um jogo de presença/ausência, como se fosse a produção mesma de
uma perda, a perda dos brinquedos, remetendo-nos à relação que entre a inscrição da perda e
o trânsito pelo sistema simbólico. O reaparecimento do carretel, ao ser puxado para junto do
menino, era acompanhado, além da emissão do som da, de uma expressão de alegria.
A brincadeira completa constituía-se, então, do desaparecimento e do retorno, havendo
produção de prazer nesse segundo momento, quando se esboçava a alegria. A criança, para
Freud, encenava, então, a partida de sua mãe, ao lançar o carretel para longe de si, e seu retorno,
no segundo momento, acompanhado da produção de prazer.
É neste momento que Freud lança a idéia de que a criança realiza ativamente, pela via do
brincar, o que teria sofrido passivamente. Considerando a questão da produção de prazer, diz:
[...] o devemos, quanto a isso, desprezar o fato de existir uma produção de prazer
provinda de outra fonte. Quando a criança passa da passividade da experiência para a
atividade do jogo, transfere a experiência desagradável para um de seus companheiros de
brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto. (FREUD, ob.cit., p. 29)
Winnicott (1975) foi um autor que, extensamente, se debruçou sobre o tema do brincar.
A partir da hipótese, que formula no ano de 1951, de que a tendência dos bebês de estimularem
zonas do corpo (como colocar o polegar na boca, por exemplo) estaria relacionada ao que depois
se configurará como a primeira possessão do bebê, um objeto, em sua palavras, da ordem de um
“não eu”, introduz os termos objeto transicional
46
e fenômeno transicional:
[...] para designar a área intermediária de experiência, entre o polegar e o ursinho, entre o
erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a
projeção do que já foi introjetado, entre o desconhecimento primário de dívida e o
reconhecimento desta [...]. (WINNICOTT, ob.cit., p. 14)
Gostaríamos de frisar sua formulação acerca desta área intermediária da experiência,
como se estivesse se referindo a um entre-lugares, que começa a se estabelecer. Não se trata de
uma zona completamente interna ou externa, aproximando-se do que traz Lacan ([1955-1956],
1992) acerca da não objetividade absoluta da realidade, ou do que é da ordem do efeito do
significante na realidade.
47
Para Winnicott, trata-se de um terceiro campo, de uma “terceira parte
da vida”:
46
Diz Winnicott: Não é o objeto, naturalmente, que é transicional. Ele representa a transição do bebê de um estado
em que está fundido com a mãe para um estado em que está em relação com ela como algo externo e separado”
(WINNICOTT, 1975, p. 30).
47
Acerca da realidade, coloca Lacan (ob. cit., p.213):[...] o real de que se trata não deve ser tomado no sentido em
que o compreendemos habitualmente, implicando a objetividade [...]. O subjetivo aparece no real na medida que
supõe que temos à nossa frente um sujeito capaz de se servir do significante, do jogo do significante”.
[...] uma área intermediária de experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade
interna quanto a vida externa. Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma
reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o
indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e
externa separadas, ainda que inter-relacionadas. (WINNICOTT, ob.cit., p. 15)
Winnicott segue falando, então, que esta área intermediária da experiência, a qual
refere-se, em alguns momentos, como espaço potencial (entre o bebê e a mãe) vai ser, na vida
adulta, justamente o espaço ocupado, por exemplo, pelo campo da arte e da religião. O autor
salienta que está interessado “[...] na primeira possessão e na área intermediária entre o subjetivo
e aquilo que é objetivamente percebido” (ob. cit., p.15). Tal formulação nos remete à questão da
ficção, sobre a qual viemos trabalhando.
Vai chamar, então, de fenômenos transicionais isso que o bebê faz para constituir este
espaço potencial, transicional, a área intermediária da experiência. O objeto transicional será,
justamente, o objeto que transitará por esta zona, sendo de indiscutível valor para a criança.
Para Winnicott, o padrão dos fenômenos transicionais surge dos quatro aos seis meses de
vida, correspondendo, de certa forma, a entrada no estádio do espelho, da qual nos fala Lacan. O
término de tal padrão seria em torno de um ano de idade, o que também nos remete ao processo
de saída do espelho (dezoito meses, para Lacan). Parece-nos estar aqui, em questão, esse
encontro com o que seria da ordem da realidade, do objetivo, do que pode ser compartilhado
com o outro. Ou seja, como se dá este encontro e que espaço daí se cria, se funda.
Ao referir-se às qualidades do objeto transicional, Winnicott, entre outras, salienta a
seguinte: “Ele é oriundo do exterior, segundo nosso ponto de vista, mas não o é, segundo o ponto
de vista do bebê. Tampouco provém de dentro; não é uma alucinação” (ob. cit., p. 18). Volta a
enfatizar, desta forma, o caráter “material” do objeto, de algo a ser possuído, um “não-eu”. À
medida que tal objeto vai sendo desinvestido pela criança, outros fenômenos ocuparão esse
lugar:
Nesse ponto, meu tema se amplia para o do brincar, da criatividade e apreciação
artísticas, do sentimento religioso, do sonhar, e também do fetichismo, do mentir e do
furtar, a origem e a perda do sentimento afetuoso, o vício em drogas, o talismã dos rituais
obsessivos, etc.”. (WINNICOTT, ob.cit., p. 19).
Este objeto e o ato de nomeá-lo indicam uma zona necessária de presença, isso que se faz
em presença, para que a possibilidade da ausência se produza. O objeto transicional é, então, um
elemento separado, mas, ao mesmo tempo, incluído. É um objeto que indica o tanto de alienação
dos dois em causa (mãe e filho), para, enfim, a mãe poder se ausentar, mantendo-se, em questão,
a presença da mãe, na sua ausência. (Nesse sentido, consideramos importante refletirmos acerca
dos momentos onde a construção desse lugar, desse espaço, se faz necessária.)
Seguindo o texto de Winnicott, encontramos uma seção na qual fala acerca da ilusão que
a mãe (ou função materna, como nos remete a leitura do texto) deve oportunizar ao bebê, no
sentido, justamente, de iludi-lo de que o que cria, existe realmente. É preciso que se iluda o bebê,
portanto, em relação a sua onipotência, para, posteriormente e gradativamente, desiludi-lo. O
autor frisa: para ser possível desiludir, é preciso ter-se iludido. É somente a partir desta desilusão
que será possível a constituição do terceiro campo, da área intermediária da experiência, desde
a formulação de Winnicott. Seguimos, assim, bordeando a questão da produção da perda, ou,
neste caso, do objeto como algo criado, nesta “terceira parte da vida”.
Diz Winnicott:
A adaptação da mãe às necessidades do bebê, quando suficientemente boa, dá a este a
ilusão de que existe uma realidade externa correspondente à sua própria capacidade de
criar. Em outras palavras, ocorre uma sobreposição entre o que a mãe supre e o que a
criança poderia conceber. Para o observador, a criança percebe aquilo que a mãe
realmente apresenta, mas essa não é toda a verdade. O be percebe o seio apenas na
medida em que um seio poderia ser criado exatamente ali e naquele então.
(WINNICOTT, ob.cit., p. 27).
Da aproximação dos conceitos que viemos expondo, inferimos que não se trata, no
estádio do espelho, na brincadeira do carretel e nos fenômenos transicionais, do exercício de
determinada etapa evolutiva, no sentido de sua elaboração, mas sim, especialmente, da produção
mesma de um espaço potencial (como conceitua Winnicott), que se dará a partir do ato de
produzi-lo. Retomamos, aqui, a imagem do oleiro, moldando um vaso, referida por Lacan
([1959-1960]1997) para alegorizar a criação de um buraco e de um objeto, a partir do buraco,
simultaneamente. Ambos se fundam neste fazer. Entendemos se tratar, aqui, de algo da ordem de
uma dupla dimensão, no sentido de se ser, simultaneamente, resultante e criador.
Pensamos, por aí, no quanto, na brincadeira com o carretel, a criança segue produzindo
algo, na linha da ficção para sempre irredutível, da qual nos fala Lacan, no sentido de dar conta
da impossibilidade da pura presença, seja da imagem, da mãe, etcétera. O interessante é
considerarmos que a produção, nesse espaço de encontro entre heterogêneos, é, justamente, a
produção de uma perda, de algo que pode operar o que é da ordem da separação, retornando-se
ao movimento dialético entre alienação e separação.
Nesta linha, entendemos como um certo mito a questão, tantas vezes colocada, para
profissionais da terapia ocupacional, de que é preciso ocupar os pacientes psicóticos, para que se
possa, pelo menos minimamente, enriquecer suas vidas, empobrecidas por sua condição.
Pensamos que, desta forma, corre-se o risco de se cair em uma lógica da pura presença,
impossibilitando-se a oportunização de espaços nos quais, justamente, o que estaria em questão é
a produção de uma perda, de um corte no de servidão imaginária tão intensamente presente
na psicose. Dito de outra forma, trata-se da possibilidade de cada um produzir, inventar sua
perda, como no jogo do carretel, descrito por Freud.
Ao mesmo tempo, consideramos que, em alguns momentos, faz-se necessária a retomada,
ou o estabelecimento de uma posição mais acolhedora, de maior compartilhamento, que, talvez,
remeteria mais proximamente à questão da alienação. Nestes momentos, muitas vezes de crise,
ou maior desorganização, referimo-nos, no caps, à necessidade de uma maior continência para o
paciente, o que nos remete, logicamente, a continente, ou seja, ao que contém algo. Pensamos,
aqui, estar falando de alienação...
Podemos pensar que é no espaço potencial (proposto por Winnicott e que entendemos
carregar elementos trabalhados por Lacan) que o sujeito inclui o outro e, em um movimento
dialético, se separa dele, ou seja, onde será possível a experiência da tensão entre alienação e
separação. Este outro, em seu lugar de sujeito, está atravessado pela mesma qualidade de relação
à tradição, à cultura, ao Outro. Desta forma, entende-se que é neste espaço que se configura a
possibilidade de uma produção que não seja auto-referenciada, pessoalizada, e sim endereçada.
Pensamos neste espaço como um lugar, no sentido de, necessariamente, estar inextrincavelmente
tecido ao Outro.
Assim, retomando o início de nosso texto, quando relacionávamos brincar e fazer,
tomamos uma passagem, de Winnicott, desta vez, para encaminharmos nossa reflexão. Ao se
referir à psicoterapia como duas pessoas que brincam juntas, diz:
Em conseqüência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é
dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de
brincar para um estado em que o é. (WINNICOTT, ob. cit., p. 59, grifo do autor)
Tomando, então, brincar por fazer, entendemos que nosso trabalho, enquanto terapeutas
ocupacionais, é de, justamente, trazer o paciente de um estado em que não é capaz de fazer para
um estado em que o é.
Em nosso trabalho, entendemos ser necessária a criação e a produção destes lugares que
não estão bem constituídos. Caso contrário, corremos o risco de agir desde o automatismo de
jogar o que se produz no lixo, ou acumular objetos que acabam por se constituir a partir desse
lugar de lixo, como no caso dos irmãos Collyer. Desta história, podemos deslizar para a questão
de que o ato de jogar os objetos no lixo não é suficiente para deles se separar, no sentido de que,
para que a operação da separação se dê, será necessária a produção de uma perda simbólica.
Com estas questões em mente, partimos em direção ao encontro com a experiência, na
perspectiva de uma construção narrativa possível.
3 DAS NARRAÇÕES
Recolhidos os elementos do que consideramos como objetos de uma coleção, com os
quais o leitor, até então, veio se encontrando, passaremos, agora, a uma reflexão sob a
perspectiva de uma narração, de ordenamento mais seqüencial, onde a perda aparece como
operativa. Se estivemos colecionando elementos, iniciamos, então, o processo de perdê-los, ao
procurar tecer uma narrativa possível.
Nesse ponto, começamos por pensar em Walter Benjamin ([1936] 1994), mais
especificamente, no que nos suscita a leitura de seu texto O Narrador, no sentido da relação que
se coloca entre experiência e transmissão. Diante deste texto, percebemos que, o narrador e,
conseqüentemente, a narrativa, só se constituem diante de um outro, que escuta a história
narrada. Se não um ouvinte, ou leitor, não narração possível, e por aí, deslizamos para a
relação entre experiência e transmissão.
Nos perguntamos, então, acerca do lugar que ocupamos diante das produções de nossos
pacientes, no sentido da possibilidade de nos colocarmos como um lugar de endereçamento, para
que algo da ordem de uma narrativa possa se produzir, um ordenamento possível dos objetos
acumulados, ou colecionados, com a perda inevitavelmente, daí, decorrente e operativa.
Retomando a história dos irmãos nova-iorquinos e sua posição de “ausência”, de
subtração, teriam tido os Collyer outro destino diante da possibilidade de contar a alguém sua
história? Ao mesmo tempo, o que se pode fazer, diante de janelas lacradas, que blindam o sujeito
e seu sofrimento até o ponto de soterrá-lo?
Jeanne Marie Gagnebin (2006) trabalha a questão de que a experiência (erfahrung) é o
que se dá, justamente, em um limiar, em um ponto de limite, que entendemos comoa zona de
compartilhamento entre dois registros, da vida e da morte, como diria Lacan ([1959-1960] 1997,
p. 330). A autora traduz erlebinisse, que comumente vemos traduzido por vivência, como
“experiência individual particular” (ob. cit., p. 50), apontando para o fato de que se trata, na
experiência, necessariamente, de uma relação ao coletivo. O que estaria acentuado, na primeira é
a dimensão do particular, do indivíduo, do privado, e não do indivíduo em uma coletividade
48
.
Para ilustrar tal diferenciação, Benjamin ([1933] 1994) em Experiência e Pobreza, conta
uma fábula na qual o pai, em seu leito de morte, diz, aos filhos, ter enterrado um tesouro. O ato
de cavarem (para encontrar o tesouro inexistente) faz com que suas vindimas se tornem as mais
abundantes da região: “Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa
experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho.” (ob. cit., p. 114)
O que importa é que o pai fala do seu leito de morte e é ouvido, que os filhos respondem
a uma palavra transmitida nesse limiar, e reconhecem, em seus atos que algo passa de
geração para geração [...]; algo, portanto, que transcende a vida e a morte particulares,
mas nelas se diz; algo que concerne aos descendentes (GAGNEBIN, ob.cit., p. 50)
Para Benjamin, a experiência é o que “passa de pessoa a pessoa”, ou seja ganha
registro como tal, quando o filho se responsabiliza por transmitir o que ouviu do pai. Em outras
palavras, o registro não se efetiva no momento em que o pai diz, e sim, no momento em que o
filho toma para si o dizer, o contar a história. É como se Benjamin estivesse se referindo a algo
que se faz em presença de, remetendo ao que é da ordem do coletivo, do laço entre os homens.
Ao mesmo tempo, o autor nos remete a pensar na experiência como uma ação realizada
por um sujeito, que nela deixaria suas marcas e por elas seria marcado. Falando, assim, acerca da
narração, como algo que se distingue da informação, esta sim, atrofiadora da experiência, coloca
que:
Esta não tem a pretensão de transmitir um acontecimento, pura e simplesmente (como a
informação o faz); integra-o à vida do narrador, para passá-lo aos ouvintes como
experiência. Nela ficam impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do
oleiro no vaso da argila. (BENJAMIN, [1936] 1994, p. 107)
48
Para Ana Costa (1988), o coletivo refere-se a “uma acentuação daquilo que pode promover ou ser resultante de
um laço, de uma ligação”. (ob.cit., p. 29)
Benjamin relaciona, assim, experiência e transmissão. Arriscaríamos, aqui, lançar a idéia
de que discutir a questão do endereçamento traz, em seu horizonte, uma possível trama com a
questão da transmissão, no sentido de que toda transmissão implica um endereçamento. Nesta
perspectiva, podemos pensar que narração, endereçamento e transmissão carregam uma
intrínseca relação.
É como se a condição da experiência estivesse no ponto de chegada e não no de partida:
na fábula contada por Benjamin, ao final da escavação, os filhos passam a “ter” a experiência
que lhes foi transmitida. Lembramos, então, novamente, da frase de Picasso Eu não procuro,
acho, (Lacan, [1959-1960] 1997, p. 149) e do que ela sintetiza neste sentido. Assim como o ato
se registra como tal quando encontra um endereço, a experiência implica uma passagem para
se registrar, para se produzir.
Gagnebin (ob.cit.), em sua leitura do texto O narrador, de Benjamin, traz algumas pistas
interessantes para pensarmos em como proceder tal leitura sem nos mantermos em uma posição
excessivamente nostálgica, no sentido de que teria havido um tempo, denso simbolicamente (em
que a experiência se transmitia), que se perdeu.
A autora nos leva a pensar na relação entre transmissão e tradição e nas possíveis formas
de nos referirmos ao passado. Trabalha, então, no sentido de que o que está em jogo na
produção da memória, por exemplo, ou na relação com o passado, como podemos entender, não
equivale propriamente a uma perspectiva de comemoração, ou de apologia, como se existisse
uma espécie de necessidade de se manter permanentemente determinada lembrança, como uma
forma de cultuar o passado.
Ao mesmo tempo em que se refere à importância de não se deixar apagar o passado,
coloca a pertiência de se tensionar essa relação entre lembrar e esquecer. Uma apologia do
passado poderia, então, justamente, impedir esse tensionamento (entre lembrar e esquecer), tão
necessário à invenção do novo. A comemoração do passado nos desresponsabilizaria do
presente: apesar de se tratar de uma injunção ético-política de “não deixar o passado cair no
esquecimento” (ob. cit., p. 53), a “fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa a
transformação do presente.” (ob. cit., p. 55) A partir daí, Gagnebin propõe uma ampliação do
conceito de testemunha: “não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, [...]
também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e
que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro [...]” (ob.
cit., p. 57).
Ana Costa (1998), nesse sentido, coloca que seria o semelhante quem situaria o objeto
para o sujeito, sendo essa, precisamente, a função do semblante, ou seja, de alguém que pode dar
testemunho ao encontro com a perda, com a falta: “Os atos somente se viabilizam no suporte dos
atos do semelhante, naquilo que eles indicam, não algo positivo, mas uma falta de certeza em se
afirmarem” (ob. cit., p. 124).
Pensando na função do testemunho, perguntamo-nos, então, que diferença faz uma
presença? Que efeito faz uma presença? Retomaremos este ponto na seqüência do trabalho.
Quando pensamos em testemunho, é como se nos remetêssemos a algo que se faz entre,
compondo a polissemia do sentido da palavra: um fala (testemunha) o outro escuta (testemunha).
A polissemia de sentido se desdobra como duas posições para um mesmo sujeito, mantendo
relação com a passagem, travessia da experiência. Se a experiência se produz no ponto de
chegada, quando alguém toma para si a responsabilidade de seguir uma transmissão, podemos
pensar que esse sujeito que escutou, agora fala (e assim sucessiva e retroativamente, enlaçando
os homens).
Lembramos, aqui, de Alessandro, um jovem de vinte e poucos anos, encontrado vivendo
na rua, motivo pelo qual é levado a um albergue municipal. Chega, ao Cais Mental, dizendo não
saber há quanto tempo está na rua e ri muito quando fala algo de si: conta que ajudava a mãe nas
tarefas da casa, em Capão do Leão, e que trabalhava na roça.
Por um tempo, participou da oficina de terapia ocupacional, no início, sempre rindo,
dizendo não gostar de lembrar. Improvisa, em uma atividade com jogos dramáticos, cenas em
que amarra fumo e realiza tarefas na casa e na roça. A partir de um documentário que assistimos,
sobre sono e sonhos, e da proposta que se coloca para o grupo, começa a escrever seus sonhos,
palavra que toma no sentido de ideais.
Através da escrita, começa a nos contar sua história, o suicídio do pai, a morte da mãe, os
maus tratos dos parentes, seus ressentimentos... Escreve sem cessar. No dia das mães, escreve
uma poesia, dizendo sentir muitas saudades de sua mãe. Motiva-se para o trabalho e busca um
curso profissionalizante, na área de serviços gerais, tarefas que o remetem ao convívio com a
mãe que, doente, encontrava-se incapacitada para as lidas domésticas.
Pensamos estar em questão, aqui, a implicação do testemunho, na narração, no sentido de
ser, justamente, o que consistência, o que confere o elemento de verdade à narrativa, que é
sempre algo da ordem do ficcional, uma vez que é recortada, produzida por um sujeito.
Com os elementos recolhidos até aqui, partiremos em direção ao encontro com o percurso
de trabalho que se desenvolveu com Ciro. Entendemos que tal percurso se produziu, justamente,
em função de termos nos colocado desde um lugar de testemunho, constituindo-se, então, um
campo de experiência, na dobra aí implicada.
3.1 UMA TRAMA: DA ESCRITA DA EXPERIÊNCIA
Nesse ponto do trabalho, procuraremos tramar nossas reflexões acerca do percurso que
fez Ciro, através de seus escritos, que nos pareceu partir de algo inicialmente da ordem de uma
coleção, chegando a uma narração possível. Neste caminhamento em dobra, ao escrever acerca
da experiência, no mesmo movimento (da coleção à narração), aparece, então, a forma como fui
tomada, na transferência com ele, colocando-me como um certo “dever” o fato de fazer passar
essa história, como na condição de um testemunho. Isto diz respeito, justamente, a poder dar
andamento à transferência que se articulou neste caminhamento.
3.1.1 Do aportar no cais
Meu primeiro contato com Ciro é no final do ano de 2001. Vem ao Cais mental,
encaminhado pelo serviço de psicologia do órgão público no qual trabalha como operário
especializado (desde 1995), cargo do qual encontra-se afastado: em função dos problemas que
venho enfrentando, dos problemas de relacionamento no ambiente de trabalho.
49
Consta, no
encaminhamento (o qual Ciro desconhece), escrito pela psicóloga do setor, uma solicitação de
atendimento, “tendo em vista o quadro psiquiátrico que o mesmo vem apresentando”.
A psicóloga relata que Ciro tem sido acometido, atualmente, por delírios persecutórios, o
que tem dificultado sua atuação no departamento, uma vez que, em função disto, se nega a
trabalhar em equipe e não acata mais ordens de sua chefia, por acreditar que a mesma está
querendo lhe causar algum mal. Paralelamente, não adere a qualquer tratamento: não sou doente
nem louco!
49
Utilizaremos o recurso da letra em itálico ao referirmos as citações literais de Ciro.
O encaminhamento ao Cais se justifica, também, pelo interesse de Ciro “por produções
artísticas como poesia e escultura”, o que faciliaria “sua aderência ao tratamento psiquiátrico (...)
e também para possibilitar uma assistência integral com outras especialidades”.
Ao final do encaminhamento, um aviso: “Ressaltamos que o servidor, em reunião
realizada com sua chefia e demais colegas de setor, solicitou avaliação médico-psiquiátrica para
provar aos colegas que não é ‘doente’ (sic), sendo que combinamos com o mesmo que
marcaríamos tal avaliação em algum local de atendimento à comunidade”.
Ciro está, então, com 44 anos, casado mais de vinte e com três filhos (deste
casamento). No trabalho, no ano 2000, foi encaminhado ao serviço de psicologia, “devido a
mudanças em seu comportamento no local”, recusando-se a desenvolver determinadas atividades
que, supostamente, o estariam prejudicando. Além disto, receava que seus colegas o estivessem
envenenando e se mostrava inconformado com as injustiças sociais.
Ciro conta que, até ingressar em seu local de trabalho, através de concurso público, tinha
uma vida normal. Daí percebi a ciranda dos vagabundos e comecei a usar maconha para
aprofundar a mente. Dois meses depois, parou, iniciando experiências com cheiro de gasolina.
Sua primeira crise ocorreu em 1996, tendo, então, permanecido cerca de um mês internado em
um hospital psiquiátrico. Na ocasião, apresentou alucinações auditivas (tão te envenenando, tua
mulher quer te matar), formigamentos na nuca e uma sensação de que o coração ia parar de
bater. Coisas absurdas! Encontrava-se excessivamente desconfiado das outras pessoas, inclusive
da esposa e da mãe, que mora junto.
Para ele, a primeira crise foi conseqüência desta experiência com drogas, ou melhor, uma
intoxicação por gasolina misturada com óleo dois tempos, produtos utilizados em seu trabalho.
Após a internação, não seguiu qualquer tratamento, tendo passado mal outras vezes. Mais duas
crises, mas não tão fortes.
aproximadamente um ano, começou a crise dos cheiros. Tapava o nariz com
papelotes para não sentir o cheiro de óleo e gasolina, que lhe provocava formigamentos, dor e
queimação na cabeça. saía na rua com esses papelotes dentro do nariz. No trabalho, têm
máquinas e tonéis com óleo e gasolina, que lhe provocam os mesmos sintomas.
Em casa, generalizei: não posso sentir cheiro de Omo, sabonete barato. Passa a desfazer-
se de produtos de limpeza, como água sanitária e sabão em pó, temendo intoxicar-se, em função
do forte odor.
Observa, no ambiente de trabalho, a ciranda viciosa de mau-caratismo e vagabundagem,
o complô e a sabotagem às minhas tarefas. Têm pessoas que não são equilibradas e estão
trabalhando. O chefe começou a fazer um verdadeiro ato de nazismo comigo. Uma verdadeira
máfia!
Durante o período de nossas conversas iniciais, que denominamos acolhimento
50
, Ciro é
remanejado, justamente, para o serviço de limpeza de seu departamento, não conseguindo
permanecer trabalhando, por causa dos cheiros fortes! Sente dores no peito e palpitações, o que,
de certa forma, facilita a justificativa do encaminhamento, nesse momento, a uma avaliação
médica, com um colega do Cais. Dois meses depois de chegar, Ciro inicia, também, seu
tratamento psiquiátrico no Cais, apesar de se referir ao mesmo como embromação.
3.1.2 Da ancoragem
Ciro me diz que precisa ter paz de espírito, para voltar a pintar e escrever. Sou um
artista plástico. Sabe que não pode, mas gostaria de amarrar os colegas, jogar gasolina neles e
tocar fogo. Essa é minha sina, sempre levando porrada.
Quando Ciro tinha três meses, sua mãe saiu, com ele, de casa, em função das brigas com
o marido, que morreu quatro anos no Hospital Colônia Itapoã. Ciro foi criado pela mãe, avó
e tia. Os tios e o avô moravam junto, mas nunca são mencionados por ele. Ciro tinha planos de
cuidar do pai, levá-lo para casa... Uma preocupação lhe acompanha: seu pai e seu filho têm
história de doença mental, o filho de Ciro foi diagnosticado como esquizofrênico. Será que eu
também sou doente?Será que eu passei isso do meu pai pro meu filho?
Diante do espírito atormentado de Ciro, em busca de paz, para voltar a pintar e escrever,
sugiro outro caminho, inverso: o de escrever para encontrar a paz. Do ano de 2002 ao ano de
50
Chamamos acolhimento (e o triagem) as entrevistas iniciais que se o no Cais, seguindo o entendimento que
faz Tenório (2000) da clínica da recepção, no sentido de pensar “(...) o ato de recepção como sendo decisivo para os
lances futuros do tratamento e como estando atravessado pelas questões que se colocam para o tratamento como
um todo (ob. cit., p. 79). Na direção da qualificação da recepção, trata-se, segundo Tenório, de “instituir uma
escuta que fosse além de uma avaliação duagnóstica apressada e de uma indicação apriorística de contuda(ob. cit.,
p. 82, grifo do autor). Entendemos que o que está em questão no acolhimento é, justamente o que traz Tenório como
“palavra de ordem” na clínica da recepção: (...) desmedicalizar a demanda e subjetivar a queixa (ob. cit., p. 82,
grifo do autor).
2007, quando interrompe seu tratamento, escreve incessantemente, sempre nos encontros
comigo, ou antes deles, e no atelier de escrita do Cais (do qual começa a participar
posteriormente). Em todos os nossos encontros, havia um momento (inicial ou final) em que eu
lia, para ele, em voz alta, o texto que ele produzia.
3.1.2.1 Na Superfície do Inferno, o estranho
Em nossos encontros iniciais, Ciro, escrevendo sob o título, Na Superfície do Inferno,
assim por ele nomeado, começa a fazer a retrospectiva de sua vida, levando-nos a pensar no
efeito do apagamento, ou da ausência de fronteiras na relação entre o eu e o Outro. Pensando
aqui em fronteiras como a elas se refere Ana Costa (2001), ou seja “[...] onde limite e dissolução
do limite se confundem” (ob. cit., p. 92). Não há espaço possível entre sujeito e Outro, trata-se da
pura indiferenciação. Escreve Ciro:
Saía pelas ruas a caminhar sempre ouvindo vozes dizendo coisas como: tu tens que
praticar artes marciais, pois tu és sensitivo, paranormal e mentor, tu sintoniza um monge
chinês, que realizou muitas caridades na China, por volta do ano 1600. Também as vozes
diziam que os cachorros tem espititualidade do bem e do mal. E que os espíritos se guiam
pelos cheiros e também se caracterizam.
E que as drogas tem sexo a exemplo da cocaína que é feminina e a maconha masculina.
51
É como se o Outro o estivesse invadindo, ou melhor, fazendo “um” com ele.
Quando chegaram os meses de junho e julho me deparei com outra tempestade, ou, com
meu monstro.
Tempestade, que vem de fora, ou meu monstro, que vem de dentro. Do que se trata o
fora, do que se trata o dentro? Seria possível fazer a diferença? Estaria se referindo a um lugar
onde o fora e o dentro se equivalem, anulando-se a distinção entre o sujeito e o outro?
Em uma noite nesses meses ao me preparar para dormir, senti uma espécie de
formigamento na nuca, subindo lentamente para a cabeça e se transformando em uma
enorme dor.
Meu coração começa a acelerar os batimentos cardíacos, me sinto mal e tenho que
levantar-me da cama e começo a caminhar pela casa, sentindo um imenso frio pelo corpo.
51
Os textos de Ciro foram digitados, mantendo-se a escrita exata dos mesmos. Não houve, de nossa parte, portanto,
qualquer correção ortográfica, semântica ou de concordância, nesse material.
Comava a me sentir mal quando entrava no ônibus, pois a trepidação por causa do
funcionamento do motor causava aceleramento nos meus batimentos cardíacos.
Várias vezes tive que descer, ficava, com muita falta de ar, e meu coração parecia que ia
explodir.
No trabalho me deparei também com semelhante situação quando me preparava para sair
nos caminhões aos locais de trabalho, terrenos baldios, áreas como hidráulicas.
Em casa quando deitado na cama sentia trepidação no coração, por causa do
funcionamento da bomba de recalque de água da CORSAN, esta que tem um reservatório
próxima a minha casa.
O coração de Ciro é como a bomba de água da CORSAN, é afetado por ela, talvez se
trate de ser a própria bomba mesmo. A máquina, que nos remete a algo cujo funcionamento é
autômato e repetitivo, algo que se fecha em si, produzindo a repetição do mesmo.
Certa vez, coloquei pedaçøs de borracha nos pós da cama para ver se amenizava essa
hipersensibilidade de ondas magnéticas sonoras interligadas com meus batimentos
cardíacos.
Um corpo sem superfície, sem bordas. Um organismo em funcionamento.
Independentemente de qualquer coisa, tinha e tenho certeza de que algo havia de errado
no funcionamento de meu organismo, que sempre conheci muito bem. Por fim, até o
barulho do motor de minha velha Frigidaire fazia com que me sentisse mal, muitas vezes
me levantava da cama para desligá-la.
Assim como a bomba da CORSAN, podemos inferir que a velha Frigidaire também se
impôs ao funcionamento do organismo de Ciro.
Comecei a ter muita queda de temperatura do corpo, várias vezes tinha que caminhar para
poder aquecê-lo. Geralmente isso acontecia à noite.
E da invasão corporal, à invasão dos pensamentos.
Estava trabalhando, e meus pensamentos começaram a ficar confusos, também. Sentia a
cabeça muito pesada e novamente os batimentos muito acelerados.
Dos objetos (bomba de água, geladeira) invasivos às pessoas que invadem.
Comecei a ficar desconfiado com minha mulher, com as pessoas no meu trabalho,
achando que elas estariam colocando alguma coisa tóxica em minha comida ou bebida.
Investigando mentalmente todas as pessoas de meu relacionamento, e um parecer
curioso me veio em consideração, a de que, todas as vezes que me deu tais crises,
coincidiram com o retorno de minha mãe a minha casa.
Enumerando, então, os aspectos tóxicos do trabalho e os efeitos em março de 1996,
poucos meses depois de ser admitido no departamento, Ciro escreve:
Experiência com Canabis sativa, para melhor ser aceito no grupo de trabalho, e também
como experiência em busca de uma melhor percepção sensitiva. [...]
Aumento da percepção como; movimentos de insetos, como moscas etc...
Expressões faciais de pessoas, profunda sensação de tranqüilidade, e análises profundas
da verbalização das pessoas, com certas contradições.
A admissão no trabalho, via aprovação em concurso público, parece precipitar,
justamente, sua impossibilidade de diferenciação, diluindo-se os limites corporais, o que o leva
às experiências com Canabis Sativa, com o intuito de conseguir perceber, sentir o outro, tentando
construir, produzir a borda inexistente.
Ana Costa (2001) ao trabalhar o texto A Negativa, de Freud, indaga sobre as condições
de produção de um “não-eu”: “[...] precisamos estar sempre recriando a operação desse ‘não’
disjuntivo, produção necessária á diferença” (ob. cit., p. 78). Disjunção esta que vai, justamente
fundar e refundar o campo do Outro e o do sujeito (do eu), em simultaneidade.
Diz Ana Costa:
Mas o que mesmo significa essa disjunção? Quando se precipita um “não é eu” (ou “é
outro”) que permite uma certa unidade de constância para a representação do eu, cria-se
uma zona nebulosa, que pode vir a se tornar “eu”. (COSTA, ob. cit., p. 76)
Esta zona nebulosa, referida por Ana Costa, nos remete aos espaços que compreedem o
transitivismo (momento de alienação no outro, próprio da estruturação psíquica) e a
transicionalidade. Este último trouxemos, anteriormente, como a área intermediária da
experiência, tal como nomeia Winnicott (1975). Nesse sentido, segue Ana Costa:
Vivenciamos cotidianamente os incessantes deslocamentos de algumas fronteiras.
Quantas vezes o nos perguntamos se determinado sintoma que nos aflige seria mesmo
nosso, ou de nosso parceiro [...]? É dessa zona nebulosa, que limita/expande a
representação do eu, que se produzem os atos representantes do sujeito [...]. Esses atos,
ao mesmo tempo, confirmam e negam as fronteiras do que é eu”. (COSTA, ob. cit., p.
77)
Também esta zona nebulosa, da qual fala Ana Costa, nos faz deslizar para o texto de
Freud ([1919] 2003) Das unheimlich, traduzido, para o português, como O Estranho, em função
de sua aproximação com o que é da ordem do fantástico, do misterioso, do sinistro. Diz Freud,
então, que “[...] o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de
velho, e há muito familiar” (ob. cit., p. 277).
Neste texto, escrito durante a Primeira Guerra Mundial, Freud se pergunta acerca das
possibilidades e circunstâncias de que algo familiar se torne estranho, assustador, ilustrando suas
questões a partir do conto O Homem da Areia, de Ernst Theodor Amadeus Hoffman (1776-
1822), autor alemão, do gênero da literatura fantástica.
No conto em questão, o jovem Natanael encontra-se às voltas com uma lembrança de
infância: a enigmática figura, justamente, do homem da areia, o qual, nas palavras de sua babá,
era um homem mau. Quando as crianças não iam para a cama, na hora em que deveriam ir, o
homem da areia chegava e jogava areia em seus olhos, fazendo com que saltassem do rosto.
Colocava-os, então, em um saco, que levava para os filhos, a fim de alimentá-los. São deveras
assustadores, também, os filhos do homem da areia: “Eles estão acomodados em cima, no
ninho, e seus bicos são curvos como bicos de coruja, e eles os usam para mosdiscar os olhos dos
meninos e das meninas desobedientes” (Freud, ob. cit., p. 285).
A questão é que Natanael começa a ver o homem da areia em outras figuras que
aparecem em sua vida, passando a viver em uma espécie de confusão, como se habitasse um
território unheimlich (estranho), no sentido da suspensão da fronteira entre o eu e o Outro. Tal
confusão, marcada por deslizamentos significantes relacionados ao temor de ter os olhos
arrancados, acaba o levando ao manicômio e, posteriormente, após aparente recuperação, ao
suicídio.
Para Freud, o sentimento de estranho, neste conto, está ligado à idéia da possibilidade de
se ter os olhos roubados, lembrando que “[...] o medo de ferir ou perder os olhos é um dos mais
terríveis temores das crianças” e que [...] o medo de ficar cego é muitas vezes um substituto do
temor de ser castrado” (ob. cit., p. 289). Este ponto do texto nos remete a considerar que o
sentimento de estranho teria alguma relação com a atualização dos movimentos de separação
(representado pelo temor de ser castrado) e alienação (como um retorno a um tempo mítico de
continuidade com o Outro).
Discorrendo, então, sobre o tema do duplo, ou essa imagem do espelho que retorna,
invadindo o sujeito, Freud aponta, em Hoffmann
Um retorno a determinadas fases na elevação do sentimento de auto consideração, uma
regressão a um período em que o ego não se distinguira ainda nitidamente do mundo
externo e de outras pessoas (FREUD, ob. cit., p. 295)
Freud acrescenta: “Acredito que esses fatores são em parte responsáveis pela impressão
de estranheza” (ob. cit., p. 295).
A partir da leitura do texto de Freud, apontamos que, ao se suspender algo da ordem da
castração, retornando-se a um tempo de continuidade em relação ao Outro, de alienação no
Outro, tem-se a experiência de um estranhamento, derivada da experimentação de um momento
de indiscriminação, de indiferenciação. Freud pensa o fenômeno do estranho nessa direção, no
sentido da experimentação de uma continuidade sem quebra, de uma certa suspensão da eficácia
de um corte, de uma separação. Neste sentido, Rickes coloca que se trata do “[...] reencontro de
algo que data de um momento mítico inicial de constituição do Sujeito em que este ainda não se
distinguia do Outro, em que a sensação de desamparo constituía a tônica, produz no sujeito um
‘sentir’ cuja qualidade se adjetiva por estranho” (ob. cit., p. 65).
Mais adiante, a autora vai apontar para o fato de que o que provoca a sensação de
estranhamento é, justamente, algo que se encontra no sujeito, atualizando “[...] o caráter
constitutivo e de construção da operação de divisão Sujeito / Outro, bem como revela a sua não-
garantia de perenidade, ou melhor, a sua necessidade de refundação a cada passo” (Rickes, ob.
cit., p. 66). Tal colocação nos remete à questão de que, assim como não se trata de uma distinção
de campos naturalmente dada, tampouco podemos pensar que uma fundação subjetiva pode se
dar por concluída. Isto nos leva a pensar que a refundação das bordas (e de seus buracos) deverá
ser uma experiência praticamente da ordem de um ad eternum na vida de um sujeito.
Sami-Ali (1993), para pensar a relação entre o corpo e o espaço, trabalhou a questão do
estranho, ao qual denominou estranho inquietante, para se referir a algo que é simultaneamente
entranho e familiar, “[...] que, de familiar, converte-se em estranho e de estranho, em algo
inquietante por sua proximidade absoluta” (ob. cit., p. 31). O autor segue: “O sentimento de
estranho inquietante implica o retorno a essa organização particular do espaço onde tudo se
reduz ao dentro e ao fora e onde o dentro é também o fora.” (ob. cit., p. 34).
O mesmo conto de Hoffman que inspirou Freud em suas formulações, permeia o texto de
Sami-Ali, que, em determinado momento vai dizer que a experiência de estranhamento do jovem
Natanael permite-lhe afirmar que não distância entre o personagem e o que ele percebe. Para
o autor, dessa experiência “[...] resulta uma organização espacial que se assemelha ao espaço
especular, espaço onde o sujeito se apreende como um outro e onde o outro é a imagem do
sujeito: mundo da metamorfose do mesmo” (ob. cit., p. 37).
Sami-Ali refere a necessidade da alternância para que se configure o sentimento de
estranho inquietante, o que nos coloca que, se não alguma experiência de perda, não
estranho inquietante.
O estranho inquietante aparece todas as vezes que se perde a distância em que se mantém
normalmente o objeto porque o espaço perdeu sua dimensão “aqui-lá”. Perda circunscrita
e de curta duração que deixa intacta a estrutura tridimensional subjacente, em meio do
que surge o insólito. Assim, em “O Homem da areia”, os momentos de estranho
inquietante que anunciam a alienação progressiva do sujeito se alternam rapidamente
com outros em que a percepção permanece fiel a seu objeto. Quando essa alternância se
interrompe, o familiar cessará de ser estranho para voltar a ser simplesmente familiar e o
estranho que invade o familiar, será o absolutamente estranho contra o qual se rompeu a
vida do herói do conto de Hoffman (SAMI-ALI, ob. cit., p. 39-40).
Consideramos, então, que, se por um lado, a experiência do estranho pode remeter um
sujeito, como no caso do jovem Natanael, a um tempo mítico de indiferenciação entre o eu e o
Outro, do qual não poderá mais sair (a não ser através da morte), por outro lado, é, justamente a
dimensão do estranhamento, não enquanto presença constante, mas em alternância, que vai
possibilitar o processo de refundação subjetiva, de produção de si, de criação.
Talvez possamos pensar, por aí, as experiências provocadas pelo encontro com algumas
produções do campo da arte, ou mesmo com fenômenos da natureza, que parecem nos remeter a
um retorno a um tempo em que não se era, ou que se era no Outro. Um tempo em que, talvez, a
questão da existência não esteja garantida, sendo necessário, então, um novo movimento em
direção a sua fundação. Mais uma vez em dobra, da experiência do estranho, produzir-se-á
experiência.
Neste sentido, Simoni coloca que:
Algumas conseqüências decorrem dessa proposição. Se o que desenha o contorno
sujeito/Outro não está presente, estamos diante de um sujeito completamente jogado no
campo do estranho. Tudo no mundo lhe diz respeito e, paradoxalmente, ele não pode
reconhecer-se em absolutamente nada do que faz. Todas as coisas vêm de fora e o há
apropriação possível. No conto de Hoffmann, trabalhado por Freud, o personagem
Natanael encontra-se jogado nessa dimensão aniquilante da vivência do estranho.
Entretanto, se, por outro lado, não há lugar para o estranhamento – o que pode ser
observado no discurso da ciência, em que tudo pode ser reconhecido e passível de
explicação também não há experiência possível. A região em que tudo é estranho é
vizinha daquela onde nada de estranho pode emergir, na medida em que ambas colocam
em cena o princípio aniquilante da totalidade (SIMONI, 2007, p. 81).
Lembramos, aqui, de uma passagem, relatada por Sami-Ali, na qual uma paciente,
acompanhada por ele, diz:
O senhor me devorará e eu o devorarei, morreremos ao mesmo tempo para renascermos
juntos. O senhor estará dentro de mim e eu dentro do senhor, um único corpo fechado
como um ovo. É a vida que começa. (SAMI-ALI, ob. cit., p. 26)
Sami-Ali traz, então, como questão, acerca deste caso, [...]a plenitude narcísica na qual
coincidem sujeito e objeto, dentro e fora, passividade e atividade” (ob. cit., p. 27). Como (se)
produzir(em) as bordas corporais que vão, justamente, permitir que algo da ordem de uma
relação com o Outro se estabeleça?
Para Lacan ([1964] 1985), as zonas erógenas, que se produzem a partir dos orifícios
corporais, constituem-se, precisamente, em estruturas de bordas. São elas que possibilitarão,
portanto, a relação e a fronteira entre o sujeito e o Outro, criando-se um trajeto circular, que
deve, necessariamente, passar pelo Outro para ganhar estatuto de circuito pulsional. Acerca da
pulsão, diz Chemama (1995):
Ela também constitui o ponto-limite em que se percebe a especificidade do desejo do
sujeito, ela revela, por sua estrutura em anel, a aporia, ela permite construir uma
verdadeira topologia dos bordos, finalmente surgindo como um dos principais modos
teóricos de acesso ao campo do real, termo da estrutura lacaniana que designa aquilo que
é impossível para o sujeito. (CHEMAMA, ob. cit., p. 178)
Lacan ([1964] 1985), ao se referir ao circuito pulsional, lembra da imagem, que traz Freud,
de uma ejeção de lava: “essa forma de trajeto em retorno” (ob. cit., p. 171). “Será que não vemos
na metáfora freudiana encarnar-se essa estrutura fundamental algo que sai de uma borda, que
reduplica sua estrutura fechada, seguindo um trajeto que faz retorno, e de que nada mais assegura
a consciência senão o objeto, a título de algo que deve ser contornado?” (ob. cit., p.171).
Acrescentaríamos, sobre esta metáfora da lava ejetada, que não se trata do retorno do mesmo.
Algo de lava escapa, e o que retorna sofre, necessariamente, alguma ordem de transformação.
Acrescenta Lacan:
O sujeito é um aparelho. Esse aparelho é algo de lacunar, e é na lacuna que o sujeito
instaura a função de um certo objeto, enquanto objeto perdido. É o estatuto do objeto a
enquanto presente na pulsão.” (LACAN, ob. cit. p.175)
Percebemos, na produção escrita de Ciro, o quanto a questão dos odores é uma constante,
sendo tomados desde um lugar de invasão. É como se esse fosse o seu jeito de falar acerca da
ausência de bordas, de sua fusão mais primordial ao Outro, como se os cheiros imprimissem uma
resistência à possibilidade de produção de uma certa perda, de um certo buraco.
Trazemos, aqui, a questão que faz Andréa Guerra (2004), ao pensar no trabalho com
oficinas terapêuticas na clínica da psicose: “Como trabalhar, na perspectiva da clínica ampliada
através das oficinas, de forma a restituir um certo trajeto da pulsão, de tal maneira que ela não
fique curto-circuitada ao invés de produzir enlaçamentos”? (ob. cit., p. 51).
Retomamos, então, a referência feita ao filme O zero não é o vazio, quando colocamos
que, quando determinado produto não encontra um endereço, pode ficar preso a um circuito
auto-erótico, imprimindo-se um movimento que se esgota na própria produção. Lacan ([1954-
1955] 1992) coloca que, no auto-erotismo, uma colagem entre a fonte e o objeto, como se o
objeto da pulsão fosse sua própria fonte: quando “[...] se trata dos investimentos denominados
auto-eróticos, não podemos distinguir a fonte e o objeto” (ob. cit., p 128).
Quando uma distenção entre a fonte e o objeto, constitui-se a dimensão da alteridade,
uma vez que aquilo que emana do corpo vai precisar encontrar suas vias de satisfação, passando,
então, pelo Outro, deixando o objeto de ser o próprio corpo. Lacan vai se referir ao auto-erotismo
como o exercício onde esta alteridade está suspensa.
Tal como o jovem Natanael, Ciro experimenta esse estado quase permanente de
continuidade, de indiferenciação entre os campos do eu e do Outro, seja na relação com as
pessoas, seja na relação com os objetos. Aliás, será que, no momento, poderíamos falar em
objetos, na medida em que o objeto parece ser apenas o próprio corpo?
Nesse início de trabalho com Ciro, quando começa a escrever, apostou-se na
possibilidade de que a produção material do texto, seguida de sua leitura, em voz alta, fazendo o
mesmo “circular” de um ao outro, operasse algo da ordem da constituição de uma borda
corporal. Como se, em uma espécie de suplência, minha presença articulada à presença do texto,
contribuissem na experimentação dessa área intermediária da experiência, referida por
Winnicott, ou a zona nebulosa, referida por Ana Costa, criando, de certa forma, alguma
alternância neste estado de indiferenciação.
A partir daí, pensamos que, à medida em que experimentasse, em alternância, um estado
de estranhamento, estaria jogado no movimento de fundação subjetiva. Entendemos que o que
configura a possibilidade deste movimento é, justamente, a criação do espaço intervalar,
dissimétrico, disjuntivo entre o eu e o Outro, que, ao longo da vida, em momentos diversos,
esmorece, provocando-se as experiências de estranhamento. Destas experiências, recolhemos
novas fundações de um intervalo, o que nos remete à questão de que a produção subjetiva se
de forma incessante. Será necessária, então, uma alternância das tendências à coesão e à
dispersão para a operação da produção de si.
Pensamos que, através da materialidade da escrita, e a partir de nossa presença,
propusemos a Ciro um caminho de produção de alguma borda (ainda que evanescente), uma
fronteira entre o sujeito e o Outro, que poderia se estabelecer através da materialidade do objeto
(texto escrito) e da centralidade do processo de escrever. Um pouco como a produção simultânea
da borda e do furo, ligada à diferença que faz uma presença, imprimindo movimento ao circuito
pulsional.
Neste sentido, acerca da diferença que faz uma presença, novamente é Ana Costa quem vai
nos dizer que:
A memória que se transmite está no campo da negação. [...] A razão disso é que seja
necessário pelo menos um parceiro que sirva de suporte a esse “não é a mãe”. É
importante pensar-se que o é somente do lado do sujeito, mas também do lado do
parceiro que se produz tal necessidade. Essa condição que o campo da representação
requer é responsável por tudo o que se produz em comum. Pode-se depreender daí que
toda produção do laço social depende desse “não é a mãe”. Percebe-se, também, que a
negação requer o suporte de uma presença e, desta forma, compõe um campo coletivo. É
resultante de duas impossibilidades: ou bem de um encontro absoluto, ou bem de uma
separação (substituição) definitiva. Essas duas impossibilidades estão ligadas à
necessidade da presença do outro: tanto como suporte da representação, quanto como
“lembrança” da diferença. (COSTA, ob.cit., p.78)
3.1.2.2 Na Caixa com os Demônios, a negativa
Tal como coloca Lacan, acerca da escolha do termo estádio, ao se referir ao processo em
questão na assunção de uma imagem como própria, Ciro repete, em seus escritos, o embate em
que se coloca na tentativa de constituição de um espaço que o separe do Outro, remetendo-nos à
arena, ao campo fortificado onde se trava a luta decorrente de tal embate.
O sonho de seguir e fazer uma bonita e eficiente carreira, foram água abaixo a partir do
momento em que fui colocado no setor de praças e jardins; sim Simone Lerner, foi em
1996 que o monstro começou a mostrar as garras para mim.
Na grande verdade eu vivi um pesadelo semelhante aos que os prisioneiros dos campos
de concentração nazista viveram, eu estava morrendo aos poucos. [...]
O que eu quero mesmo é ver o que existe do outro lado das montanhas, gostaria de deixar
minha esquizofrenia e seguir sem ela.
Sobre este ano (de 1996), conclui:
Terminei o ano navegando em pequenas ondas, após passar por uma tempestade enorme
que voltaria a enfrenta-la futuramente.
Essa sensação de viver, como na guerra, o convoca a vários campos de batalha. No
escrito entitulado Na caixa com os demônios, onde se refere, mais uma vez, ao local de trabalho,
Ciro coloca que:
Minha vida foi se transformando a cada dia que passava em um verdadeiro inferno. [...]
No trajeto [de caminhão, para realizar uma tarefa de trabalho] notei que meu colega, sr.
P. M., que estava sentado ao meu lado, começava a bater uma caixa de isopor que estava
em seu colo.
Eu notava que suas batidas não eram feitas de forma descompromissadas ou
descontraída, eram feitas em um certo compasso, como fosse um digo morse ou
telégrafo.
Conclui que talvez seriam batidas para forçar meu coração. [...]
Dona J. [...], percebendo que me sentia mal com o cheiro do cigarro, começou a fumar
ainda mais, em vários locais aonde eu estava.
Ela dizia; agora sim que eu vou fazer fumaça, e dava risadas.
Descobri também que eu me sentia mal com o cheiro de Omo, detergentes, e vários
produtos de limpeza.
Ela então começou a derramar, de propósito, Omo, ao redor do tanque, ou então
simplesmente deixar a tampinha erguida, para quando eu estivesse ou passasse pelo local
me sentisse mal. [...]
Se ficasse em frente ao prédio era a descarga dos veículos atormentando. Aquela situação
estava me transformando em um verdadeiro zumbi ambulante, o conseguia raciocinar
direito, meus reflexos diminuindo, muita dor na cabeça e no coração, meus cabelos
caindo rapidamente. [...]
Nas reuniões que se faziam no setor, eu notava que 3 ou 4 colegas começavam a fumar
ao mesmo tempo, só para fazer seqüência de entoxicação para mim.
Seguindo na mesma temática, agora entitulada Demônios me procurando por todos os
cantos, Ciro nos leva a pensar que sua casa não se encontra suficientemente fortificada, como um
bunker, talvez, deixando-o vulnerável a possíveis invasões.
A minha casa o meu terreno tem planície topográfica muito ruim, fica abaixo da linha da
rua. Tudo que for gás, gasolina, escapamento de óleo, emfim tudo que entra pelas portas
e janelas se é, que se dá pra chamar assim.
Na madrugada de domingo me acordei muito mal sentia uma dor imensa de cabeça o
sentia desposição para nada, nem sequer responder perguntas para as pessoas.
Na noite de sábado passei muito mal, o ar extremamente passado insuportável.
É uma batalha que começa a travar, também, com as drogas. É ainda no ano de 2002 que
escreve Com toda certeza:
Temos que nos unir, sendo soldados do bem, vamos lutar com inteligencia, sabedoria,
perspicácia, sensibilidade e criatividade.
Vamos combater o tão enraizado câncer da humanidade chamado cocaína e, o resto das
drogas em geral.
Cada vez mais acrescentando sérios problemas a humanidade como:
1. Morte.
2. Descaracterização da personalidade humana natural.
3. Inversão da sexualidade.
4. Destruição, promiscuidade, degradação.
5. Destruição da natureza mundial.
6. Está em todos os setores da sociedade.
Em Demônios me procurando por todos os cantos, a temática em torno das drogas volta
a aparecer.
Acordei mais ou menos bem, aque o V. coleguinha de meu filho [...] apareceu, logo
noto e senti, que ele estava com um cheiro anormal, e o ar que ele expirava era sufocante,
o V. não fala com pessoas de mais idade,com jovem.
O V. foi abandonado pelo pai, porque a mulher que o pai dele mora não gosta dele, o V.
ficou de mal com o pai por causa disso.
Estava deitado em minha cama quando olho em direção ao teto notei umas nuvens, o
sei de poeira outro produto químico estavam inalando em meu quarto e vindo em minha
direção. A respiração do V. é muito forte pois ele é viciado em cocaína, nem entendi
porque o meu filho ainda não esviciado porque ele sempre anda com o V.. Realmente
as drogas tem muitas complexidades para se analisar e decobrir, não se fala mais em nada
a não ser em cheirinho ou bolinha.
Até bebê já está traficando, nas fraldas na roupinha, etc...
Fiquei atingido não sei como, pelas tais bolinhas, intupidouras e nojentas.
Nunca tinha visto uma coisa igual, feita pela mão maldita do homomem.
Batalha também com os vizinhos.
Quando entrava na minha rua sempre dava a coincidência de uma moto, caminhão ou
carro arrancar da casa de meu vizinho da frente, que trabalhava com carros usados.
Resumindo, me aprofundava cada vez mais na entoxicação, comecei a descobrir que
existia um complô, ou uma espécie de organização, para fazer com que eu permanecesse
sempre naquele estado.
Em Minha luta, escreve:
[...] me sinto meio ilhado dentro de casa, porque na rua, meus vizinhos colocaram 2
carros velhos fedendo à óleo, e gasolina, bem na frente da minha casa.
Eles são marginais, tem luz, tem água, porém não pagam a conta, são ladrões de
caminhão, carros, motos.
Acho que eles estão fazendo isto para me prejudicar, e fazer com que eu me mude, coisa
que não vai acontecer, pois minha família é decente. [...]
Sei respeitar meu semelhante e realizo minhas tarefas com dedicação.
quero um lugar a onde eu possa trabalhar com paz de espírito e organizar a minha vida
e de minha família.
A mãe também pode ser uma inimiga, alguém contra quem lutar. Um dia, resolve fazer
um traçado da personalidade dela, a partir de alguns pontos, por ele, elencados.
Temperamento: explosivo, antisocial falso, egoísta, dissimulado periculoso, desfalsado.
Aspectos: nunca teve amigos, ou sequer tentou, nunca se esforçou, na simpatia.
Baixa auto estima, vida sexual supostamente desativada, possibilidade de sexualidade
reprimida por descriminação social.
valoriza vagabundos e pessoas de caráter suspeito, honestas e trabalhadoras não.
Sempre foi preguiçosa e relaxada.
Mau humor constante, por o ter conseguido enriquecer aagora, gostaria de morar em
uma cobertura no centro da cidade, detesta pessoas pobres.
Hábitos: possibilidade de uso de drogas, ou algum tipo de barbitúricos.
Aspectos: Atriz, anti esquerda, rápida quando em busca dos seus intentos.
Não é nostálgica.
Desprovida de sensibilidade natural.
Após algum tempo, escreve:
Um ano se passou e já estamos em abril de 2003, e eu me sinto perante a toda a situação
de estado de vida em geral como se fosse um capitão de um pequeno barco.
Barco este em que minha família é a tripulação, enfrentando várias tempestades no mar
bravio da vida, mais temos que estar firmes na resistência com muita fé.
Como diz o filósofo “somos simples marionetes no teatro da vida”, em que eu deixei de
sê apenas um coadjuvante para se tornar um ator principal.
Freud, no texto, traduzido, para o português, por A Negativa ([1925] 1987) coloca que
verneinung (negativa, negação, denegação
52
) é o que permite que conteúdos, traços
inconscientes, cheguem à consciência, podendo, então, ser operados pelo sujeito. Considera que,
ao repudiar algo, o sujeito acaba manifestando uma idéia que lhe ocorrera, suspendendo o
recalcamento da mesma: “A negativa constitui um modo de tomar conhecimento do que está
reprimido; com efeito, é uma suspensão da repressão, embora não, naturalmente, uma
aceitação do que está reprimido” (Freud, ob. cit., p. 296). A partir desta formulação, Rickes
(2001) vai apontar que, para além das questões de manejo técnico, na prática da psicanálise,
Freud, neste artigo, nos leva a seguir “[...] a gênese do sujeito psíquico e sua relação com o fora”
(ob. cit., p. 62).
Seguindo, então, o texto, Freud afirma que a possibilidade de negar (ou afirmar) algo se
dá a partir da função do julgamento, que se relaciona com duas espécies de juízos: o de
atribuição e o de existência. O primeiro diria respeito ao que é da ordem dos atributos dos
52
Também encontramos, nas traduções para a língua portuguesa, os termos negação e denegação.
objetos, enquanto o segundo, “à existência real de algo de que existe uma representação” (ob.
cit., p. 297).
Seu raciocínio, ao nosso entender, desdobra-se no sentido da introdução da dimensão da
alteridade, trazendo à cena o processo de constituição do dentro e do fora, do interno e do
externo. Em relação ao juízo de atribuição, no qual observa-se uma primeira operação de
expulsão (Rickes, ob. cit., p. 63), Freud vai dizer que ele é movido pelo princípio do prazer, no
sentido de que o sujeito procurará incorporar o que lhe confere prazer, o que sente como bom,
expulsando o que lhe provoca desprazer:
Expresso na linguagem dos mais antigos impulsos instituais os orais o julgamento é:
‘Gostaria de comer isso’, ou ‘gostaria de cuspi-lo fora’, ou, colocado de modo mais geral,
‘gostaria de botar isso para dentro de mim e manter aquilo fora’. Isso equivale a dizer:
‘Estará dentro de mim’ ou ‘estará fora de mim’. (FREUD, ob. cit., p. 297)
Neste sentido, Rickes coloca que:
Assim, se é possível ao sujeito referir-se a um fora como distinto dele próprio é porque
houve, em algum momento, uma primeira operação de expulsão capaz de produzir essas
duas instâncias numa certa tensão – dentro/fora; eu/não-eu. Isso porque, de início, é
preciso imaginar um tempo em que ela não existia. As origens deste mecanismo que
Freud chamou de juízo de atribuição, ou seja, a capacidade de o sujeito decidir sobre as
características de algo, inscreve-se a partir de uma expulsão que funda duas instâncias em
tensão, em um momento segundo, em relação ao que seria o da pura unidade, em que
ainda não se verificaria a existência de um eu e de umo-eu. A negação (expulsão)
aparece como subseqüente a esse momento inaugural (RICKES, ob. cit., p. 64).
Na seqüência do texto, entende-se que esta separação (dentro/fora, interno/externo) não é
algo dado, inscrevendo-se, em um determinado tempo do sujeito, a partir do registro do que
resiste à sua satisfação, ou seja, do que está fora. Referindo-se ao juízo de existência, Freud
coloca que:
Trata-se, como vemos mais uma vez de uma questão de externo e interno. O que é irreal,
meramente uma representação e subjetivo, é apenas interno; o que é real está tamm lá
fora. Nesse estágio do desenvolvimento a consideração eplo princípio do prazer foi posta
de lado. A experiência demonstrou ao indivíduo que nãoé importante uma coisa (um
objeto de satisfação para ele) possuir o atributo “bom”, assim merecendo ser integrada ao
seu ego, mas também que ele esteja no mundo externo, de modo a que ele possa se
apossar dela sempre que dela necessitar (FREUD, ob. cit., p. 298).
Fora e dentro se produzem, portanto, na relação ao Outro, não fazendo parte, então, da
natureza do indivíduo. É o próprio Freud quem diz: “A antítese entre subjetivo e objetivo não
existe desde o início” (ob. cit., p. 298). O interessante é pensarmos que, mesmo sendo um efeito
do Outro (o fora e o dentro, ou o interno e o externo), não se trata de uma mera passagem de um
para o outro, mas de algo que se inscreve como diferença, como disjunção, a partir da introdução
do não, da negação.
Ana Costa (2001) traz a radicalidade desse corte disjuntivo operado pela negativa:
Não é simplesmente pensar que alguém enuncie “não é ae” esteja encobrindo a
verdade de que é ae. Muito mais do que isso, o que se evidencia na negação é uma
disjunção entre o que seria um código e os atos indicativos de um sujeito. Essa condição
disjuntiva podemos encontrar naquilo que Freud propõe como matriz de nosso
julgamento, ou seja, naquilo que nos permite representar o que está dentro e o que está
fora, o eu e o outro (COSTA, ob. cit., p. 76)
E Freud enfatiza, ainda, como condição para o estabelecimento do juízo de existência, “[...]
que os objetos, que outrora trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos” (ob. cit., p. 299).
Em outras palavras é preciso que o objeto tenha sido perdido, ausentificado, negado, para que se
o que é da ordem da representação: “Será desde esta operação de negação que ao sujeito será
possível empenhar-se no processo de procurar reencontrar o objeto perdido, ausente (Rickes, ob.
cit., p. 67).
Retomando o que traz Rickes (ob. cit., p. 62), no sentido de se tratar, também neste texto,
da “[...] gênese do sujeito psíquico e sua relação com o fora”, pensamos que o que está em
questão, então, na operação da negativa, é a fundação do eu a partir do não eu, conforme o
comentário de Jean Hippolite, acerca da verneinung, de Freud, ou seja, “[...] um modo de
apresentar o que se é à maneira do não ser” (1998, p. 895). É como se pudéssemos dizer que o
não eu vem antes do eu, que o não é o que vai recortar qualquer afirmação.
Novamente recorremos a figura da Banda de Moebius, no sentido de alertar que não se
trata, nesta operação da negativa, de algo que se dá a partir do enunciado em negação. Referimo-
nos à temporalidade do que opera em simultaneidade, ou seja, a enunciação do não funda a e se
funda na disjuntividade. Produzir a negação é, de certa froma, inverter a mensagem que vem do
Outro, deixando-se marcado seu campo e podendo-se, então, dele se destacar. Neste sentido,
Lacan, traz a denegação como o
[...] fenômeno pelo qual o sujeito revela um de seus movimentos pela própria denegação
que faz deles, e no momento mesmo em que a faz. Ressalto que não se trata de um
desmentido de pertencimento, mas de uma negação formal: em outras palavras, de um
fenômeno típico de desconhecimento e sob a forma invertida em que insistimos, forma
cuja expressão mais habitual – Não pensar que... – já nos formece essa relação
profunda com o outro como tal, que valorizaremos no Eu. (LACAN, 1998, p. 181)
Lacan segue, então, falando acerca do transitivismo, ou seja, da impossibilidade
(estruturante), em um determinado tempo, de que a criança opere tal inversão (até o momento em
que é chamada a responder por ela mesma), o que se manifesta como a “matriz do Eu” (ob. cit.,
p. 181). O autor aponta, desta forma, que “[...] o primeiro efeito que aparece da imago no ser
humano é um efeito de alienação do sujeito. É no outro que o sujeito se identifica e até se
experimenta a princípio” (ob. cit., p. 182).
E, nesse mesmo sentido, Schäffer, ao pensar acerca da denegação, ou da relação entre o
sujeito e o mundo, a partir da leitura que faz do comentário de Jean Hippolite sobre a
verneinung, coloca que:
[...] no início desse processo, o que é indiferenciação entre o eu e o exterior, entre a
representação da coisa e a coisa mesma. O estabelecimento por completo dessa
faculdade, que já existia anteriormente mas não completamente construída, é o que
permite fazer as diferenciações, de início possíveis distinção entre o que é representado
e o que é percebido, entre o mundo interior e o mundo exterior. Assim, a plena realização
da função do julgamento decidir sobre a existência ou inexistência da coisa e deliberar
a respeito das propriedades e qualidades dessa coisa somente é possível pela criação do
símbolo da negação como simbolização explicitada. O reconhecimento do inconsciente,
do lado do eu, exprime-se então dentro de uma fórmula negativa – a denegacão
mostrando o que é, sob a forma deo-ser. (SCHÄFFER, 2002, p.151)
Os fragmentos de textos de Ciro, aqui trazidos, nos remetem a uma escrita que busca a
exatidão do que vive, do que sente. Ciro nos escreve acerca da sensação de ser como um
prisioneiro de campo de concentração nazista e da necessidade de estar protegido, na casa onde
mora, que é por demais vulnerável. Ao mesmo tempo, manifesta o desejo de “ver o que existe do
outro lado das montanhas”, dividindo conosco a certeza de que um outro lado, o qual não
pode ver, por uma ausência de corte, de bordas.
Acompanhamos seu sofrimento, nesta indiscriminação entre o externo e o interno, o fora
e o dentro, que lhe deixa a mercê do Outro, absoluto, sendo por ele invadido, em todos os
momentos, como por exemplo, nas situações de trabalho. Tal como Lacan se refere a Schreber,
Ciro encontra-se imerso nesta vivência de totalidade (sem perda, portanto), na qual tudo e nada
lhe dizem respeito, chegando ao ponto de se escrever como a marionete principal do teatro da
vida. Como se o Outro, aqui, fosse, de fato, um ente com vontades, ao invés de significantes em
rede.
O que pensamos, então, é que Ciro se encontra com a tentativa de operar uma inversão,
descolando-se do Outro, destacando-se. Mas é como se estivesse em um movimento de ou eu, ou
o outro, uma relação de dualidade, marcada por uma agressividade guerreira, sem alteridade,
sem referência terceira que suporte a separação sem aniquilação. Talvez o que esteja em questão,
neste ponto, é uma tentativa de que algo da ordem de uma disjunção negativa opere, permitindo,
a Ciro, a experiência de um não eu. Como nos traz Lacan ao se referir à arena, no estádio do
espelho, encontramos, também, a agressividade enquanto qualidade necessária à operação de um
corte. Trata-se porém de uma agressividade que instaura um intervalo, sendo, portanto,
radicalmente diferente da agressão, ou da guerra, que buscam a aniquilação do Outro.
Esse estado de prontidão para a guerra, o qual Ciro parece habitar, nos remete a uma
espécie de pedido, no sentido de fazer operar uma separação, um intervalo, entre o eu e o Outro,
na perspectiva de buscar fundar, mesmo que de forma evanescente, esses campos heterogêneos,
em simultaneidade. É como se ele soubesse que, somente assim, poderá se relacionar com o
Outro, representar-se no discurso social.
Consideramos que se trata, aqui, da possibilidade de suportar, através de uma presença, a
condição para que se produza uma negação, ou seja, a presença como vetor de fomento às
possibilidades de construção de uma negação, de uma perda, mesmo se tratando de um
movimento de suplência. Como se, o que estivesse em jogo fosse a possibilidade de Ciro
estabelecer alguma relação com a falta, criando-a simultaneamente.
Nesta presença que sustenta, encontramos, também, a instituição na qual este trabalho
acontece, que, também, em dobra, o produz. Como referimos anteriormente, o nome “Cais”
porta, além de uma sigla, uma metáfora, que nunca é explicitada, mas que segue sendo um “sub-
texto” institucional. Nos escritos de Ciro, em alguns momentos, nos deparamos com
significantes que entendemos ser um produto da relação transferencial estabelecida, também com
a instituição: navegando em pequenas ondas; capitão de um pequeno barco; barco este em que
minha família é a tripulação; enfrentando várias tempestades no mar bravio da vida.
3.1.2.3 O Partido Azul, o endereçamento
Ciro decide, então, criar um partido político, o Partido Azul. É em torno desta questão
que passam a girar suas produções escritas por alguns meses. Nesse período, cria a bandeira do
Partido Azul e começa a me pedir para ser intermediária entre suas idéias (escritas e desenhadas)
e a “sociedade”, solicitando-me que seja emissária de suas produções (para o Partido Azul), via
internet.
Bandeira do Partido Azul
Diante do impasse em que me sinto colocada, sugiro-lhe que siga escrevendo, mantendo
nossa combinação de leitura e comentários de cada material, e acrescento que talvez seja o
momento de pensarmos em organizar os escritos até então produzidos, revê-los, reescrevê-los,
encaderná-los. Converso com ele sobre talvez pensar nas formas possíveis de fazer suas
produções chegarem em um outro endereço. Ciro segue, então, escrevendo.
Então, sob o título Eu sou assim, escreve:
Meu pensamento é de fazer uma espécie de corrente de sensibilidade unindo, as artes
plásticas, a jardinagem e a natureza, as relações humanísticas, filosóficas ocultas e a
música também.
Creio que é através disso é, que irei encontrar o meu caminho, para ser mais útil a minha
família e a humanidade. [...]
Quero me relacionar e conviver com pessoas que pensam de forma semelhante à minha.
Que Deus me ajude a encontrar, e a seguir meu caminho.
Em Filosofia e objetividade para um mundo correto, começa a desenvolver mais a
questão relativa à corrente de sensibilidade.
Em muitas vezes somos apenas costumes e vícios, em muitas vezes, na realidade não
precisamos daquilo que queremos viver e ter.
Se todas as pessoas fossem perfeitas ou, quase perfeitas, saberiam se transportar para a
dor do sofrimento psífico é físico do seu semelhante.
Em muitas vezes, estamos presentes de corpo sico, porém, ausentes na presneça de
espírito, isso anula completamente a razão de ser e estar no presente momento, horas e
minutos.
Malditos mascarados com suas máscaras, são uns pobres coitados na verdade, porque não
sabem do que gostam, e desconhecem o amor.
Um corpo é humano se o pensamento agir como tal, caso contrário seapenas um
organismo bestial.
Da razão de homem, é preciso saber realizar uma mulher, também amar e respeitar as
crianças, produtivo e útil, amar a natureza e as artes, e conseguir chorar, saber sê
amigo.
Da razão de mulher é preciso usar a feminilidade e sexualidade, com cumplicidade,
saber sêe carinhosa, vaidosa, hábil, profissional e perspicaz.
está provado que a humanidade é má, e a única salvação é proteger a natureza. Existe
muita formalidade em torno das coisas mais importantes, tanta formalidade que a própria
filosofia antiga se tornou meio obsoleta.
Da razão de homens sem caráter estarem usufruindo de bens e vantagens, enquanto
outros de bom caráter sofrem.
Um ser humano existi no momento em que estiver fazendo o que sta caso
contrário se apenas um corpo flutuante à serviço de interesses o próprios,
despersonalizando a sua própria razão de existir.
Todo controle de natalidade é fundamental para a salvação do planeta, toda pessoa que
nascer deverá acompanhada e monitorada, não coloca no mundo pessoas de forma
desnecessária.
O desrespeito do jovens para com as pessoas de idade, não passa de pura ignorância e
hipocresia, por isto devemos aplicar e desenvolver estudos sobre longevidade saudável.
Somos o que pensamos, e da forma como agimos, teremos real e verdadeiro valor para
a humanidade, se amarmos a natureza e respeitá-la, e procurando conviver com as
pessoas certas no lugar adequado.
O progresso, trabalho, destribuição de renda e principalmente investir na felicidade das
pessoas.
O que não presta não precisa existir, a exemplo da energia nuclear.
Estilo é muito importante na personalidade de uma pessoa, sem te-lo seria como um
barco sem motor e vela.
Voltamos, aqui, a Lacan (1998), em O seminário sobre o “A carta roubada”, quando ele
se utiliza da homografia, no francês, de lettre, que quer dizer, em português, tanto carta, quanto
letra. Em Lituraterra ([1971], 1986), o autor coloca que a letra é o que, justamente, faz litoral
entre o saber e o gozo, referindo-se, neste texto, à questão do litoral como algo que remete a um
espaço geográfico, uma planície que, ao ser sulcada, funda dois campos heterogêneos,
dissimétricos, em relação e não em continuidade. Trata-se, então, de um litoral, ou da letra,
como uma espécie de “beira” entre dois territórios impossíveis de se homogeneizar. Por aí,
diferencia a questão da fronteira e do litoral, estando em jogo, na primeira, uma delimitação de
ordem simbólica, sem solução de continuidade entre os campos.
Salientamos que a “beira” nos evoca algo que é da ordem de uma heterogeneidade de
lugares, ou o que risca um certo limite. Podemos nos remeter, desta forma, à questão da escrita,
dos rabiscos, dos riscos. Não se trata de um limite tal qual se configura o de uma fronteira, no
qual uma transposição, sem mudança de plano, torna-se possível, como percebemos no risco de
uma cerca, por exemplo. O arriscar da “beira” é outro, tratando-se, então, de planos diferentes,
heterogêneos, dissimétricos.
Tomando, então, o conto de Poe e o seminário a este dedicado por Lacan, se
consideramos que uma carta é algo que se endereça a alguém de quem se está separado,
inferimos, daí, que para um escrito se configurar como carta, a questão da separação coloca-se
como imprescindível. Salientamos, porém, que não se trata de uma separação anteriormente
dada, mas sim de algo que se produz no próprio ato do endereçamento, produzindo-o também,
em simultaneidade. Ao trabalhar o conto de Poe
53
, no qual uma determinada carta faz algumas
voltas até efetivamente poder retornar às mãos da pessoa a quem havia sido remetida, Lacan
finaliza a primeira parte desse seminário escrito, referindo que “[...] o que quer dizer ‘a carta
53
Referido anteriormente, neste trabalho, no item 2.1.2.2 Da carta roubada, o jogo posicional.
roubada’ ou ‘não retirada’, [lettre en souffrance], é que uma carta sempre chega a seu destino”
(ob. cit., p. 45).
Entendemos que o texto de Poe é, então, bastante interessante para pensarmos a questão
do endereçamento, no sentido de que é no a posteriori, no encontro com o leitor, que uma carta
se confiurará como tal. Enquanto não chega a seu endereço, mantêm-se as palavras em
sofrimento, à deriva.
A partir de Lacan, podemos pensar que o endereçamento, em sua dimensão simbólica,
diz respeito a um circuito, onde um retorno, daquele ato de escrever, sobre o próprio sujeito
que o suportou. É como se o endereçamento se configurasse na volta, em uma dimensão de
circularidade. Como a mensagem invertida que o sujeito recebe do Outro, o que se produz
“engancha-se” ao Outro e retorna sobre o sujeito que produziu, constituindo-se, somente aí, o
endereçamento. Nesta perspectiva, retomamos parte de um trecho de Marcelo Freire, ao se referir
ao modo de operação da mensagem invertida,
[...] ou seja, a fala que o sujeito emite, e que produz um efeito sobre os outros, só assume
sua efetividade na medida em que é sancionada pelo Outro, o que faz portanto com que o
sujeito receba sua própria mensagem sob forma invertida. Assim, através do Outro, o
sujeito é constituído em sua própria enunciação, que lhe retorna transformando-o.
(FREIRE, 2001. p. 46).
Tal como o circuito pulsional, a circularidade aqui colocada, traz a dimensão da abertura,
no sentido de que não se trata de um retorno ao mesmo, mas de uma repetição diferencial, o que
também nos ajuda a pensar no tensionamento entre a diferença e o mesmo, a referência e a
produção do novo, a filiação e a autoria. Colocaríamos, também aqui, a figura topológica da
Banda de Moebius.
O endereçamento coloca-se, então, como uma tentativa de se deslocar a pessoalidade de
quem produz determinado objeto, e pensar um pouco mais acerca do sistema de posições
simbólicas em que se está, o que entendemos ser algo pulsante no conto de Poe.
Como em toda representação, também nas traduções o que é da ordem de uma perda
opera: neste caso, perdemos algo precioso na leitura do texto, que é, justamente, o duplo sentido,
o trocadilho que a palavra lettre, no original, produz. Podemos ler, aqui, que se, como escreve
Lacan, “uma letra (carta) sempre chega a seu destino”, para que o estatuto da letra se configure, é
preciso o encontro do endereço, o que entendemos como uma relação ao Outro, ao discurso
social. Tal encontro implica, necessariamente, uma separação, o litoral, que funda dois campos
distintos, heterogêneos, dissimétricos, ao mesmo tempo, em que os coloca em relação.
Se seguimos Lacan, neste mesmo texto, nos deparamos com a questão de que uma carta
(lettre) que não encontra endereço é uma lettre en souffrance (ob. cit., p. 45), uma carta não
retirada, um escrito que fica à deriva. Ao não chegar ao campo do Outro, não se pondo, portanto,
em relação a ele, estabelece-se, de algum modo, a experiência do sofrimento.
A partir da psicanálise, desde os textos escritos em 1924 (Neurose e psicose e A perda da
realidade na neurose e na psicose), Freud aponta para a questão de que se trata, na psicose, de
um “conflito” entre o eu e a realidade externa, ou “distúrbios na relação do sujeito com a ordem
significante” (Freire, 2001, p. 30), com o Outro, se tomamos a conceituação de Lacan.
Retornando ao tema do endereçamento, então, Sérgio Laia, a partir da leitura da obra de
Lacan, mais especificamente do seminário que dedica ao escritor James Joyce
54
, detalha um
pouco mais esse sulco que se abre quando uma produção encontra um endereço, incidindo,
simultaneamente, no sujeito que a produz e no campo do Outro, do discurso social, destacando-
se um de outro
55
. O autor insiste nas “consequências decisivas”, na literatura, que a obra de
Joyce imprimiu, tratando-se de uma produção que está para além das questões narcísicas do
escritor, encontrando e constituindo um leitor.
54
Lacan, Jacques. Livro 23 - O sinthoma 1975-1976. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 2007. É no seminário
sobre o sinthoma, que Lacan vai pensar, debruçando-se sobre a escrita do irlandês James Joyce, acerca da amarração
singular que cada sujeito, psicoticamente estruturado, vai poder operar. Apesar de o termos incluído esse ponto no
âmbito de nossa dissertação, em função da complexidade do seminário, que nos demandaria um tempo maior de
pesquisa e talvez uma outra escolha de direção, consideramos ser, o mesmo, bastante relevante para refletrimos
acerca de nossa experiência.
55
Sobre este ponto, Freire coloca uma questão que, ao nosso ver, mereceria um maior aprofundamento, o que,
talvez, nos desviasse ainda mais do objeto deste trabalho. De qualquer forma, deixamos seu registro, para que possa
tensionar com nossa experiência e produzir possiveis reflexões posteriores: “Com o seminário XXIII, responsável
pela elaboração do conceito de sinthoma, tornou-se possível postular uma direção do tratamento das psicoses que
dispense o recurso do delírio, privilegiando-se antes a construção, pelo analisando, de um sinthoma com o qual se
identifique, e que permita manter junto o seu nó, evitando a crise e possibilitando o mesmo a articulação de algo da
ordem de seu desejo” (ob. cit., p.38).
Guerra (2004) também traz uma reflexão neste sentido: “Com a clínica do ‘sinthoma’, elaborada por volta dos anos
1970, Lacan permite uma nova forma de compreensão dos fenômenos mnetais da psicose que não se ordena pela
norma fálica, ancorada na Metáfora Paterna como ideal positivo de organização psíquica, mas pela teoria dos s.
Com isso, o haveria um ponto central ideal, o Nome do Pai, em torno do qual a normalidade se estruturaria nos
moldes do funcionamento neurótico, mas Nomes do Pai (...) enquanto maneiras de estabelecimento de laços na
composição da realidade, deslocando a ordem fálica do papel de normatizadora desse ideal de normalidade em
relação ao qual os outros arranjos se apresentariam negativizados, disfuncionais (ob. cit., p. 50).
Valendo-se de referências subjetivas, Joyce concebe sua obra, mas quando insisto em
Joyce como poeta de seu próprio poema, posso sustentar também que ele endereça sua
obra para além do campo que lhe concerne subjetivamente. Por isso, a obra, ele a
concebe como uma referência de si próprio, mas ela é, ao mesmo tempo, completamente
Outra com relação a ele mesmo. Afinal, a obra se impõe, para nós e também para o
próprio Joyce, como um Outro nome através do qual seu autor é designado. Além disso,
trata-se de uma obra que incide e interfere no campo mesmo do Outro, pois ela opera
sobre a língua inglesa e tem conseqüências decisivas tanto para a literatura produzida
antes de Joyce, quanto para aquela que será produzida depois dele (LAIA, ob. cit, p. 152).
Quanto a questão do endereçamento, tal como foi colocada por Lacan, a partir da leitura
do conto A carta roubada: a letra, em sofrimento enquanto não encontra endereço, e o campo do
Outro, o leitor, o que, a posteriori, possibilitará a questão da inscrição psíquica, como o exemplo
de Joyce. Se fosse uma escrita puramente narcísica, ou delirante, talvez não chegasse ao leitor,
ao campo do Outro, e sem endereçamento, não há inscrição psíquica possível.
Voltamos, aqui, ao filme O zero não é o vazio, pensando, agora, em Orlando Travesta,
mais um de seus “personagens”, que escreve, em pequenos papéis, palavras que vai deixando em
caixas de correspondência, anônimas, que encontra pela frente. Para nós, essa atitude se
relaciona, justamente, em se tratando de psicose, com a tentativa, quase obstinada, de produzir
um endereçamento, ou do encontro de um endereço, que traria, no retorno, o efeito de inscrição
psíquica.
Quanto a Orlando Travesta, parece-nos que é como se ele quisesse encontrar um leitor,
para produzir o que lhe parece difícil, ou seja, inserir-se no código social, produzindo-se a partir
dele. Busca, então, produzir uma inscrição psíquica a partir de inserção social. Em alguma
medida, fracassa nisto, tendo, então, que retomar, retomar... Assim como retomamos que o
encontro com a esfera social, com o semelhante, pode potencializar a construção de um
endereçamento, não se constituindo, entretanto, em sua condição necessária, ou suficiente.
Consideramos, que, na produção deste filme, a questão do endereçamento também se
coloca do lado de quem recebia o discurso, a produção, dos diferentes “personagens” nele
presentes. É como se houvesse a configuração uma tentativa de constituir um endereçamento, no
momento em que, ao se acolher determinada produção, fosse necessário endereçá-la, como isso
que passa, como traz Benjamin, ao se referir à narração, “de pessoa a pessoa”.
Sobre esse ponto, retomamos a questão da ficção compartilhada, no sentido de que
acompanhar a produção de um paciente pode estar, justamente, nesse lugar de se colocar como
um veículo, como um lugar desde onde o Outro vai falar, trazendo à cena clínica a questão do
endereçamento, ou essa disponibilidade que permite articular o campo do Outro com um
endereço, operando-se, aí o que é da ordem da diferença, da alteridade.
Pensamos que o pedido que faz Ciro, de ajudá-lo a socializar suas produções, acerca do
Partido Azul, relaciona-se aos rudimentos da construção de algo da ordem de um enderçamento,
tomando-me como alguém que pode “fazer passar” suas produções.
Neste momento, apresenta uma escrita mais prescritiva, na qual parece considerar que
tem coisas importantes a dizer ao Outro. Observamos, aqui, na escrita de Ciro, um certo espectro
de uma fundação do campo do Outro, um movimento no sentido de uma possível produção de
um lugar ao qual endereçar-se, podendo nele se representar.
Novamente, lemos, então, um pedido: de que este Outro, do qual talvez possa se destacar,
devolva-lhe a mensagem (invertida), como um certo arremedo de fundação, de produção
subjetiva. Pensamos, aqui, em um modo possível de se estar, simultaneamente, incluído no e
excluído do campo do Outro, em um extimidade (como diria Lacan), a partir da qual os campos
podem se por em relação.
Do contrário, lembramos de Maribel, que após escrever um texto, durante o atelier de
escrita do caps, no momento de lê-lo, demonstra um não reconhecimento de algo que escreveu
como uma produção sua, tomando o que está escrito como uma invasão em sua folha de papel.
Pergunta, então, indignada, ao grupo, apontando para o texto: “O que ele fazendo aqui? Quem
chamou ele aqui?”.
3.1.3 Da Partida: Na Superfície do Inferno – o Livro, a densidade simbólica diferenciada
Propondo-se a rever o que havia escrito até então, material que eu vinha guardando,
como uma coleção, em 2006, Ciro começa a reescrever alguns textos, nos quais se detém,
pensando em escrever um livro sobre sua vida, dando a ele o mesmo título de seu primeiro
escrito, no início do trabalho comigo.
Foi a partir deste momento, que passamos a tomar os textos que, até então Ciro escrevera,
como objetos de uma coleção, aos quais, em um movimento de retorno (novamente, em dobra),
passou a dar outro tratamento, na direção de uma ordem narrativa, de uma narração em forma,
agora, de livro.
Entendemos, então, que, nesse momento, poder voltar a escritos anteriores marca uma
diferença entre um puro acúmulo e uma coleção, no sentido de, neste retorno, a ordem narrativa,
inevitavelmente, se colocar. Retornar, também, nos remete à imagem de um circuito, no caso, o
circuito pulsional onde nunca se retorna ao ponto mesmo de onde se partiu, tratando-se, assim,
de um retorno sobre o sujeito, mas não no mesmo ponto.
A idéia de escrever um livro sobre sua vida não se sustenta, e ele a acaba abandonando.
De qualquer forma, parece começar a constituir um leitor outro, remetendo o que escreve a uma
dimensão para a qual posso, justamente, facilitar a passagem.
Remexer nos textos, me leva a pensar nessa perspectiva de um dobrar-se sobre o
produzido, um certo movimento de retorno enunciativo. Retornamos, aqui, de certa forma, ao
início de nosso trabalho, um início diferenciado, uma repetição diferencial. É como se o fim
levasse novamente ao começo, modificando-o, tal como o circuito pulsional, ou retornando a seu
avesso, como na banda de Moebius. Pensamos, aqui, em Hannah Arendt (1993), quando traz que
a capacidade humana de agir diz respeito à capacidade humana de começar algo, à possibilidade
de se iniciarem processos novos e sem precedentes, com resultados incertos e imprevisíveis, o
que nos remete à questão de que o fazer tem a ver com (re)começo e não com um fim a ser
atingido.
Retomamos, também, nesse momento, a questão da dobra, da qual falamos
anteriormente, no sentido do retorno enunciativo aqui presente. Em seu percurso moebiano, Ciro
retorna, de certa forma, ao ponto de partida, já estando, porém, em seu avesso.
Ciro, então, não escreve mais sobre o trabalho. Seu interesse se volta para uma história
um pouco mais remota, o nascimento, a infância, as mudanças de cidade. Encontra-se em um
outro momento, não está dentro de nuvens de poeira, composta por pequenas partículas de
cocaína. Escreve, então, como parte do livro “inacabado”, Nuvens.
Parece-nos que Ciro está dando alguma forma às nuvens, recortando o que antes era da
ordem de uma bruma. Não está mais no meio delas, podendo, então, olhá-las. Descolando-se
delas, pode falar do que vê. É como se pudesse fazer algum recorte, produzir um recorte na
demanda indeterminada do Outro. Ao mesmo tempo em que pode dar formato às nuvens, pode
se dar algum formato, ou seja, se destacar, produzindo suas bordas.
Contardo Calligaris (1989) enfatiza, acerca do saber na psicose, que este não é “furado”,
não se organizando a partir de algo não simbolizado (real), do referente paterno não simbolizado.
O que falta, ou melhor, está forcluído, é a amarragem, ou a função organizadora do nome-do-pai
(ob. cit., p. 43-4). Sobre o saber, na psicose, acrescenta: “Se tivesse um buraco, seria uma
amarragem. Num saber neurótico, na medida em que a função paterna é reprimida, se trata
justamente de um buraco, de alguma coisa simbolizada como buraco, como ausência” (ob. cit., p.
43).
Se consideramos como presente, em Ciro, uma certa dificuldade de consituir algo da
ordem de uma permanência simbólica, podemos pensar que poder reencontrar-se com suas
produções escritas, na presença de um outro, nesse determinado momento, permitiu que a
concretude, a materialidade do objeto em questão contribuísse na operação da diferenciação, da
separação. É como se o objeto, o texto escrito, se constituisse como resto e efeito de um
compartilhamento, portando a resistência decorrente de sua existência (material e produzida pelo
sujeito), que impulsiona a constituição de uma suplência do que está fora, do que está dentro, do
externo e do interno, assunto que abordamos ao tratar do tema da negativa, a partir de Freud.
Nesse sentido, Andrea Guerra (2004) toma o termo densidade simbólica diferenciada
56
,
ao qual estatuto conceitual, para pensar nos efeitos produzidos a partir de um trabalho de
oficinas no campo da saúde mental, onde a construção de um objeto concreto, de um produto, de
uma produção material está em questão..
Trata-se da “densidade simbólica diferenciada” [...] que diz respeito à materialidade do
produto, ou à densidade diferenciada que particulariza e diferencia o uso da atividade nas
oficinas das demais intervenções, coletivas ou não, existentes nos serviços que compõem
a rede de assistência em saúde mental. Além disso, oferece como epicentro em torno do
qual a conflituosa tensão clínica e política pode ser pensada a partir de uma perspectiva
ética, servindo também como eixo orientador de qualquer tentaiva de organização de um
saber possível acerca das oficinas. (GUERRA, ob. cit., p.49)
A autora salienta que, diferentemente dos espaços nos quais a fala está mais em questão,
nas oficinas terapêuticas, espaço de mediação entre o psicótico e o Outro absoluto, totalizante, há
sempre referência a um produto concreto, material. Vai refletir, então, acerca da potência
operacional deste objeto (que produziria um esvaziamento do Outro absoluto), na clínica das
56
Termo que toma de uma das entrevistas analisadas em sua dissertação de mestrado.
psicoses, no momento em que o sujeito psicótico pode “[...] deixar o lugar de objeto de seu gozo
para ocupar o lugar de autor, produtor de um objeto com consistência simbólica” (GUERRA, ob.
cit., p.51):
[...] ao criar coisas concretas, talvez o psicótico estivesse extraindo do ventre do Outro
objetos reais que, permitindo-lhe produzir um resto nessa operação um objeto inédito
talvez lhe conferisse uma densidade simlica sobre sua corporalidade real. O psicótico
seria deslocado ou separado dessa posição de objeto do gozo do Outro ao criar um objeto
externo, endereçado ao social, via oficineiro ou qualquer outra pessoa ou instituição.
(GUERRA, ob. cit., p.51)
Entendemos estar, aqui em questão, o lugar de testemunho e a possibilidade de
constituição de um endereçamento, presentes em um trabalho no qual a produção de algo
material está em jogo. Ao nos colocarmos, na transferência, como um lugar para o qual
determinada produção pode ser remetida, fazendo dela algo que, ao ser criado nesse espaço
compartilhado, passa a portar a marca do enlaçamento e da distinção, podemos oportunizar a
criação das condições para que um trilhamento, ou um caminhamento, na direção de que um
endereçamento possa se constituir, mesmo que de forma evanescente.
Lembramos que é no ponto de chegada, ou seja, no Outro, que o endereçamento se dá,
ponto que, sempre desde um lugar eticamente ocupado, podemos potencializar. Através da
criação de um objeto concreto, entendemos ser possível, à medida do caminhamento de cada um,
da singularidade de cada um, oportunizarmos, desde um lugar de “passadores”, que o sujeito e o
Outro se coloquem em relação, questão bastante delicada ao sujeito psicótico.
Tal objeto, produzido pelo sujeito, com sua densidade simbólica diferenciada, ao
esvaziar a demanda de um Outro absoluto, poderia, a nosso ver, em uma certa suplência, fazer
operar os efeitos da negativa, no sentido de, ao disjuntar os campos do sujeito e do Outro,
possibilitar que se coloquem em relação.
Acresentaríamos, à composição deste objeto, cuja densidade é simbólica e diferenciada,
que a possibilidade de que o mesmo se inscreva, a partir de tais atributos, é também fruto da
potência de permanência que um objeto criado porta. Sabemos o quanto é delicada a questão da
permanência, na psicose, e o quanto pode, justamente, a permanência, remeter a algo da ordem
de uma amarragem, propiciando a escolha de um caminho a seguir, ao invés da falta de escolha
imposta pela errância psicótica, pela não inscrição de uma amarragem central, organizadora. À
importância da presença de um outro, na ficção compartilhada, acresentamos a presença, a
permanência, do objeto produzido, na cena terapêutica.
Andréa Guerra coloca, então, que, ao se criar esse produto concreto inédito, no trabalho
em oficinas terapêuticas, opera-se um descolamento do psicótico “[...] do lugar de ser ele próprio
o objeto-resto que não caiu quando de sua inscrição na linguagem, quando fixou-se ele mesmo
nesse lugar, permanentemente à mercê de outra ordem, assujeitado” (ob. cit., p. 52). E, sobre este
ponto, conclui: “A oficina operaria, nesse sentido, sobre os pontos de desligamento do psicótico
com a realidade” (ob. cit. p. 52).
Entendemos, aqui, que poderíamos falar não de um desligamento, mas sim, justamente,
de uma ligação, ou melhor, a continuidade sem quebra a qual nos referimos anteriormente ao
tratar da questão do estranho. A partir das colocações da autora, arriscaríamos dizer que se trata,
neste trabalho, onde a produção de algo material se coloca em cena, da possibilidade da
produção de um “desligamento”, entendido aqui como a disjunção que funda e refunda os
campos do sujeito e do Outro, colocando-os em relação.
Andréa Guerra segue:
Talvez o psicótico esteja costurando, com a produção nas oficinas, seus pontos de
capiton na realidade através de novas formas de enlaçamento social. Dessa maneira,
poderia com a atividade de produção nas oficinas, atividades de circunscrição de gozo,
produzir sentidos históricos para sua produção a partir de fragmentos de coisas,
inscrevendo-se na linguagem ou inventando uma possibilidade de encadeamento na
cadeia significante (GUERRA, ob. cit., p. 52)
E, nesse movimento de torção moebiana, presente em nosso trabalho de pesquisa, mesmo
sem ser recorrentemente explicitado, retornamos, nesse momento, à parte inicial do texto,
quando trazíamos a colocação de Hannah Arendt (1993), ao se referir que os objetos que não tem
no uso sua finalidade última, que não portam, em si, a dimensão da utilidade, são, justamente, os
que conferem a sensação de consistência, de permanência, aos homens. Para a autora, como
dizíamos, é a produção destes objetos que confere, ao homem, uma existência humana, e, às
coisas, a possibilidade da pemanência, deixando marcas, criando história.
Ressaltamos, também, a partir do trabalho com Ciro, que foi através da escrita
(compartilhada), e não de um fazer aleatório, que entendemos ter-se possibilitado algo da ordem
de uma separação. Enfatizamos, desta forma, que o encontro foi possível a partir de elementos
trazidos por Ciro e dessa espécie de “compulsão” a escrever que portava.
A este respeito, faz, também, sua ressalva Andréa Guerra, no sentido de não ser possível,
a alguém, que não o próprio sujeito “[...] a priori, ‘planejar’ aquilo que poderá promover um
encontro entre o real da marca subjetiva com o imaginário social ou estético e a dimensão
simbólica da obra produzida sobre uma superfície outra [...]” (ob. cit., p. 53-4). Nessa direção,
adverte-nos de que “cada oficina é única”, não havendo, em nosso entender, prescrição, fazer ou
objeto ideal possível. Trata-se, sim, de uma perspectiva ética, na qual, está sempre em questão
um encontro moebiano entre os sujeitos.
Entendemos que, através do caminhamento pela escrita compartilhada, Ciro pode
experienciar a operação dessa área intermediária da experiência, da qual nos fala Winnicott
(1975), ou a zona nebulosa, referida por Ana Costa (2001), realizando suas tentativas de produzir
e colocar em relação, mesmo que de forma evanescente, furo e bordas. Como diz Lacan (1998),
“[...] nada existe senão sob um suposto fundo de ausência. Nada existe senão na medida em que
não existe (ob. cit., p. 394)”.
É extremamente interessante que Ciro finalize suas Nuvens (escrita em forma de poema,
onde uma pulsação das palavras está implicada), falando em trilho e filho, significantes que nos
remetem a caminho, à passagem...
3.2 UM TECIDO: DA EXPERIÊNCIA DA ESCRITA
Recolhemos, deste caminhamento, um certo percurso trilhado na direção de refletir
acerca do estatuto do objeto na clínica da terapia ocupacional. Procuramos trabalhar tal questão,
partindo da perspectiva da coleção, cujo princípio, segundo Ana Costa (2003), [...] orienta-nos o
tempo inteiro” (ob. cit., p. 129), e chegando à tessitura de uma narração possível.
Neste trilhamento, recorremos, novamente, a Lacan (1998), em seu seminário sobre a
carta roubada, de Poe, para pensarmos acerca do “valor” de um objeto. Quando se refere à
“utilidade” das cartas de amor, Lacan aponta que, se fossem para ser úteis, para cumprir uma
função, não teriam tanto valor ao serem devolvidas, com o sentido de selar o final de uma
relação amorosa:
Se pudéssemos dizer que uma carta cumpriu seu destino após ter desempenhado sua
função, a cerimônia da devolução de cartas seria menos aceita para servir de
encerramento quando da extinção dos fogos dos festejos do amor. O significante não é
funcional (LACAN, ob. cit., p. 29).
De certa forma, trata-se, aqui, de um paradoxo. No início deste trabalho, nos referíamos à
questão do esvaziamento da materialidade do objeto, em direção à centralidade de um processo.
Para isto, nos utilizamos da figura do colecionador e do ato de colecionar, com o sentido de uma
“acumulação” de elementos, subtraídos do contexto em que se produziram (acompanhada,
portanto, de um certo esvaziamento dos próprios objetos), para a posterior construção narrativa.
Retomamos, agora esta questão, apontando, também, para o valor do objeto, no sentido de sua
permanência e potência de fazer marca, mas não pelo seu valor utilitário, não pelo cumprimento
de uma função.
Procuramos, assim, através deste caminhamento, operar com o movimento circular, ou
melhor, espiralar, que enlaça os termos experiência e escrita, no qual cada um, a seu tempo,
ressignifica o outro, produzindo efeitos de escritura.
Neste sentido, gostaríamos de trazer a dupla dimensão da relação da experiência com a
escrita e vice-versa. Se, por um lado, se trata de pensar como escrever a experiência, por outro,
coloca-se a questão de que a própria escrita a produz. Referimo-nos a um texto que é resultante
de uma experiência e que, simultaneamente faz experiência ao ser escrito, colocando-se, então,
de saída, a tensão que tange a relação temporal colocada em causa: o que vem antes, o que vem
depois? Retomamos, aqui, a Banda de Moebius, no sentido de que um caminhamento em dobra
nos leva a desconstruir esta experiência de temporalidade.
Para escolher uma forma de começar, nos servimos dos referenciais da escrita ensaística
e psicanalítica, no sentido de nos colocarmos a partir de uma posição de recorte (e não de
totalização) para escrever a experiência.
Ainda desde a perspectiva da impossibilidade de uma totalização, entendemos que a
escrita, ao mesmo tempo em que circunscreve determinado objeto, pode transmitir algo que não
se reduz ao seu conteúdo, ou que não como representar, mas que permite alguma leitura.
Considerando-se o que de inapreensível em toda experiência, é, na medida em que se pode
produzir algo da ordem do ficcional, ou seja, de um outro plano que não apenas o do conteúdo da
mesma, que uma transmissão pode operar.
Nosso texto parte, então, de um recorte e, portanto, das perdas implicadas. Isto seria
suficiente para entendermos que se trata, então, de uma espécie de ficção, ou da experiência de
uma ficcionalidade, uma vez que nosso recorte cria seus efeitos de significação, trazendo uma
verdade que, ao invés de ser revelada, passa a ser construída.
Sendo assim, não estamos lidando com um referente de linguagem colado à realidade,
mas sim, com um recorte por nós produzido, o qual gostaríamos que trouxesse, simultaneamente,
a tensão existente entre a filiação de nosso texto (sua relação ao Outro) e nossa própria autoria
(ou criação).
Entendemos que, para escrever a experiência, portanto, opera-se nossa inclusão enquanto
sujeitos da mesma, produzindo-se um certo apagamento (rasura, furo, descontinuidade) e nossa
possibilidade, subseqüente, de ficcionalizar. Assim como desejamos que Ciro pudesse construir
suas possibilidades narrativas, fazendo-se imprescindível a produção de uma perda (por si
operativa), também procuramos produzir, com nosso escrito, uma perda (rasura, furo,
descontinuidade) no campo do Outro.
É a partir do texto de Adorno (2003) que pensamos na relação entre verdade e história, no
sentido de que não há como separar-se aquilo que se enuncia das condições de enunciação de um
determinado tempo, ou seja, o singular do coletivo.
Neste sentido, podemos pensar que a estrutura do objeto que tentamos compor nos
contagia, contagiando nosso texto escrito, assumindo, de certa forma, o desenho do que tentamos
estabelecer como objeto de trabalho. Adorno nos acompanha, então, na aventura de falar sobre o
que se deseja falar: “[...] diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim
[...]” (ob. cit., p.17). E o autor acresenta, em relação ao ensaio, que “[...] seus esforços ainda
espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar
com o que os outros já fizeram” (ob. cit., p. 16)
Retornamos, aqui, então, à questão do recorte, da não-totalização, que a escrita ensaística
nos permite operar. Nesta medida, deixamos muito de fora, produzindo e suportando uma certa
perda. É como se tivéssemos que construir o campo, ao mesmo tempo em que construímos o
buraco sobre o qual este mesmo campo se organiza. Algo como a imagem que traz Lacan
([1959-1960] 1997) acerca do oleiro, que, ao criar o vaso de barro, produz, simultaneamente, a
borda e o furo, colocando-os em relação.
Vários autores
57
debruçaram-se sobre o texto de Adorno, ensaiando a configuração de um
campo que se situaria entre o subjetivismo e o cientificismo, não no sentido de um encontro entre
eles, mas, em nosso entender, de algo da ordem de um terceiro campo de experiência: um escrito
que, simultaneamente, tensiona autoria e filiação, singular e coletivo.
Ao nosso ver, é a isto que se refere Robson Pereira (2006), ao trazer a questão do efeito
de escritura de determinado texto: “[...] mesmo a ficção, para que seja considerada uma ficção, e
não simplesmente um subjetivismo desenfreado que pode oscilar entre a literatura e um
escrito psicótico, o escrito tem que produzir um efeito de escritura [...]” (ob. cit., p. 59). O autor
segue, salientando que tal efeito de escritura se dá quando o que se escreve vai além (ou em outra
direção, talvez) da fantasmática pessoal de quem escreve.
É desta forma que pensamos a possibilidade do efeito de escritura a partir do que escreve
Ciro, ou a partir do que escrevemos: é preciso que o texto em outra direção, que não somente
57
Destacamos os textos de Jorge Larrosa, O ensaio e a escrita acadêmica e Robson Pereira, Litoral, sintoma,
encontro - quase ensaio.
na de nossa fantasmática pessoal, o que nos levaria, necessariamente, a um exercício de
narcisismo extremo, compartilhado em um texto excessivamente pessoalizado.
Abrimos, aqui, um parênteses, para pensar acerca da escrita e da escritura. Pensamos em
utilizar, como alegoria, o exemplo da cadela de Lacan ([1961-1962] 2003), referido por ele, ao
procurar diferenciar fala e linguagem, no sentido de, justamente, apontar que ter-se a palavra não
é o mesmo que estar-se em relação com a linguagem: “Ela não fala o tempo todo; ela fala,
contrariamente a muitos humanos, unicamente nos momentos nos quais ela tem necessidade de
falar” (ob. cit., p. 40). Diferentemente do ser humano, sua cadela jamais o toma por um outro
(ob. cit., p. 41).
Segue Lacan, agora referindo-se à experiência analítica, para pensar acerca da relação do
sujeito com a linguagem:
[...] ao tomá-los por um outro, o sujeito os coloca ao vel do Outro, com A maiúsculo.
58
É justamente o que falta na minha cadela, para ela o pequeno outro. Não parece que
sua relação com a linguagem lhe dê acesso ao Grande Outro. (LACAN, ob.cit., p. 42)
E, um pouco mais adiante, se pergunta: “Por que, uma vez que fala [a cadela], não
chegaria como nós a constituir essas articulações de uma forma tal, que o lugar, para ela como
para nós, desse Outro, se desenvolva onde se situa a cadeia significante?” (ob. cit., p. 42).
A partir daí, poderíamos pensar que a escrita, enquanto impressão, está para a escritura
assim como a palavra está para a linguagem
59
? A escrita, enquanto impressão, desta forma, seria
a possibilidade do exercício técnico, um certo domínio de um fazer específico, enquanto a
escritura envolveria, necessariamente a relação com a linguagem, que dá acesso ao Grande
Outro, sustentando uma filiação e possibilitando algo da ordem de uma separação, ou algum
efeito de significação, de verdade.
Encontramo-nos, então, na escrita ensaística (ou na escrita do caso, desde a psicanálise),
em uma condição de produção que não se totaliza, que não chega a ter um começo, ou mesmo
um fim, que não se fecha. Tratam-se de recortes, de fragmentos. Por vezes, a partir desta
produção provocam-se efeitos de escritura, operando-se um recorte, no real, que é novo, que é
58
O “A maiúsculo” refere-se, aqui, ao Autre, do original em francês.
59
Entendemos que, caberia, aqui, uma reflexão mais aprofundada acerca do estatuto da escrita na teoria lacaniana.
diferente, que não estava ali antes, algo que se recorta de um modo distinto do que até então se
recortara.
Tal efeito de escritura se no momento em que quem escreve inclui o Outro em sua
escrita, sendo por ele, em simultaneidade, incluído, o que nos faz pensar que, se não há leitura, se
uma produção não chega no Outro, a escrita também não existe. Ressaltamos que esse
movimento, de um icluir o Outro, sendo por ele incluído, se não no sentido de uma
continuidade entre os campos, mas sim, justamente, no da descontinuidade, da ruptura, da rasura,
construindo-se uma nova borda, um novo furo, uma nova relação entre eles e um subseqüente
efeito de verdade.
Mas não se trata de reconhecer algo que estaria aí, dado, pronto para ser coaptado. Ao
nomeá-lo, o sujeito cria, faz surgir uma nova presença no mundo. Ele introduz a presença
como tal, e, da mesma forma, cava a ausência como tal. (LACAN, [1954-1955] 1985,
p.287)
Após este percurso, entendemos ter recolhido, como efeito da experiência, tanto a nossa,
quanto a de Ciro (esses efeitos que se dão em dobra), novos objetos “colecionáveis”, novos
pontos de partidas para outras possíveis construções narrativas.
Pensamos, a partir desta experência, que os objetos eminentemente utilitários se
oferecem, ao sujeito, na modalidade de uma relação de consumo. Ao serem incorporados, pelo
modo de relação que se estabelece com eles, não possibilitam movimento de retorno, fechando-
se o circuito em uma perspectiva individual (e não coletiva, e não de incluir o Outro, sendo, por
ele, incluído).
Se, por outro lado, com nosso texto, nossa escrita, constitui-se um leitor, produzindo-se
endereçamento (mesmo em uma condição de suplência, mesmo que evanescente), tomamos,
então, estes objetos, ou, no caso, os textos escritos, como, de certa forma, esvaziados de sua
materialidade, no sentido do utilitarismo que poderia estar aí contemplado.
O que recolhemos, então, é, justamente, o paradoxo que um objeto cuja densidade é
simbólica e diferenciada (como diria Guerra) porta: um texto-objeto que, simultaneamente, é e
não é para ser lido; um texto-objeto que, construído na centralidade de um processo, ao ser
“passado”, inscreve a possibilidade do enlaçamento e da distinção (sempre em dissimetria) com
o Outro, produzindo endereçamento. Como em um jogo de presença/ausência, atualiza-se, neste
ponto do trabalho, a relação entre a inscrição da perda e o trânsito pelo sistema simbólico.
3.2.1 Assinaturas em dobra
É chegado o momento de assinar o texto, nosso caminhamento. Tal como uma dobra,
tomamos, também, de Ciro, a trajetória do gesto de assinar suas produções. E fazendo passar
nosso escrito, passamos também o dele...
Lembro aqui dos diferentes jeitos como foi assinando seus escritos, os quais trago da
forma como foram aparecendo, em uma relação cronológica de tempo:
Juro que o que escrevi aqui é somente a verdade do que eu vivi.
Juro que tudo o que foi escrito aqui aconteceu comigo, ou seja, fatos vividos
por minha pessoa.
Tudo que escrevi aqui juro que eu vivi.
Juro que tudo o que eu escrevi aqui é somente a verdade.
Posso estar enganado no que afirmei, porém mais possível estar certo, afirmo
que tudo tá certo.
Juro que tudo que escrevi aqui é tudo verdade, ou eu vivi (separando, aqui, o
vivido da verdade, criando-se um intervalo).
Assinava seu nome e sobrenomes (materno e paterno) e, logo abaixo, após um p/ (por)
escrevia, novamente, o nome e os sobrenomes, em letras de forma, o que era seguido da
referência da cidade onde havia produzido o escrito e da data (eventualmente, seguida da hora)
da escrita. Na maioria das vezes, me entregava o escrito original, e guardava, para si, uma cópia.
Algumas vezes, me entregou a cópia, guardando o original.
Esse jeito de assinar sempre me intrigou. Penso que talvez estivesse, justamente, tentando
criar as condições de produção de uma verdade, de sua verdade, verdade que é sempre ficcional,
mas que precisa ser compartilhada, para que se crie alguma possibilidade de saída da auto-
referência, da auto-eroticidade. Nem que, para isto, fosse preciso jurar.
Com o tempo, à medida em que sua escrita foi se descolando da realidade por ele vivida,
chegando à produção de Nuvens, Ciro foi ensaiando o que considerava ser um nome artístico.
Suprimiu o texto “testemunhal” que antecedia seu nome, nas assinaturas, bem como as
referências a datas e locais, até chegar a um novo gesto: Cirinho Fagundes
60
.
Colocamos, então, aqui, um ponto final, também em forma de gesto, neste
caminhamento. Do nome incluído na fala de Antoninho (Não me fala em separação, Simone,
não me fala em separação, não me fala em separação) e na escrita de Ciro (Sim, Simone Lerner
foi em 1996, que o monstro começou a mostrar as garras para mim)
61
agora em seu avesso,
produzimos também nosso intervalo e um novo ponto de partida, um novo ponto de começo.
60
O sobrenome, ficcional, Fagundes, refere-se ao sobrenome materno de Ciro.
61
Páginas 33 e 94, deste trabalho, respectivamente.
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WINNICOTT, D. W. O Brincar & a Realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1975.
ANEXO
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Pelo presente consentimento, tenho a dizer que fui informado e que conheço e concordo
com minha paticipação nesse trabalho, que visa pesquisar a relação entre o fazer e a produção de
subjetividade, a partir do que se produz nos atendimentos, em terapia ocupacional, no CAPS
Cais Mental Centro, serviço de saúde mental da Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
Tenho conhecimento de que posso fazer qualquer pergunta, caso tenha dúvidas sobre
qualquer etapa do estudo, e que poderei obter informações sobre outros assuntos relacionados a
esta pesquisa. Sei, ainda, que terei, eu mesmo, ou meus reponsáveis, total liberdade para retirar
este consentimento, a qualquer momento, e deixar de participar do estudo, sem que isto traga
prejuízo ao atendimento dispensado nesta instituição.
Entendo que o estudo se utilizará daquilo que eu vier a produzir no trabalho de oficinas
ou nos atendimentos individuais de terapia ocupacional. Tenho conhecimento que a utilização
dos dados será feita de forma a não identificar meu nome, mantendo sob sigilo minha identidade.
Sei e aceito que posso participar de entrevistas e que as mesmas poderão ser utilizadas para fins
exclusivamente de pesquisa.
Sei que as responsáveis por esta pesquisa são: a pesquisadora Simone Lerner e a
professora Simone Moschen Rickes, que poderão ser contatadas pelos telefones (51) 32121669 e
(51) 33165466, respectivamente.
Data: ____/____/____
Nome: __________________________________________________
Assinatura: ______________________________________________
Assinatura do responsável: __________________________________
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