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Adriana de Albuquerque Gomes
A ARQUITETURA INFORMACIONAL NOS EXTRAS DE OBRAS
CINEMATOGRÁFICAS EM DVD: UMA LEITURA CRÍTICA
Bauru
2008
Dissertação apresentada como requisito à
obtenção do Grau de Mestre em Comunicação na
Universidade Estadual Paulista “Julio de
Mesquita Filho” – Área de concentração:
Comunicação Midiática, sob a orientação da
Profª. Drª. Ana Sílvia Lopes Davi Médola.
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Adriana de Albuquerque Gomes
A ARQUITETURA INFORMACIONAL NOS EXTRAS DE OBRAS
CINEMATOGRÁFICAS EM DVD: UMA LEITURA CRÍTICA
Banca Examinadora:
Nome/titulação: Profª Drª Ana Sílvia Lopes Davi Médola (presidente).
Instituição: Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, FAAC, UNESP,
campus Bauru.
Nome/titulação: Prof. Dr. Oscar Angel Cesarotto.
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP.
Nome/titulação: Prof. Dr. André Luiz Gellis.
Instituição: Faculdade de Ciências, FC, UNESP, campus Bauru.
Dissertação apresentada como requisito à
obtenção do Grau de Mestre em Comunicação na
Universidade Estadual Paulista “Julio de
Mesquita Filho” – Área de concentração:
Comunicação Midiática, sob a orientação da
Profª. Drª. Ana Sílvia Lopes Davi Médola.
Bauru, 27 de junho de 2008.
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À memória de MARIA GOMES.
AGRADECIMENTOS
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Ensino Superior –
CAPES – , pelo apoio financeiro.
À professora Dr
a
. Ana Sílvia Médola, pela orientação do trabalho.
Ao professor Dr. Maximiliano Martín Vicente, pela permissão que me foi
concedida de participar no grupo de pesquisa Mídia e Sociedade,
cadastrado no CNPq.
Ao professor Dr. Claudio Bertolli Filho, pela pertinência de suas críticas.
Ao professor Dr. André Luiz Gellis, pela transmissão da Psicanálise.
GOMES, A. A. A arquitetura informacional nos extras de obras
cinematográficas em DVD: uma leitura crítica. 124 f. Dissertação (Mestrado em
Comunicação). Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, UNESP, Bauru,
2008.
RESUMO
O trabalho discute a natureza da Comunicação Social, seu estatuto disciplinar e
suas principais abordagens teóricas, apresentando, em seguida, a Psicanálise de
Jacques Lacan com o objetivo de evidenciar suas contribuições conceituais e
metodológicas ao campo. Segue-se o movimento das idéias propostas por Lacan
para, posteriormente, colocá-las à prova em face de um objeto específico: os extras
de obras cinematográficas em DVD. Para a constituição do corpus foram
selecionados cinco títulos de obras européias qualificadas como cult movies pela
crítica especializada. A avaliação da arquitetura de tais produtos midiáticos enfatiza
uma perspectiva voltada à compreensão de como neles se dá o tratamento da
informação. Identificou-se que sua configuração consiste em um modo de
organização de seus constituintes que conduz o espectador a descobrir uma
synopsis, visão de conjunto, do antes, do durante e do depois do lançamento da
obra cinematográfica no mercado.
Palavras-chave: Comunicação Social. Informação. Psicanálise. Jacques Lacan.
ABSTRACT
The work discusses the scientific nature of the Communication Field and its main
approaches. The study presents the Psychoanalysis of Jacques Lacan in order to
analyse its theoretical-methodological contributions to the research in this field. It
follows the thinking movement of the author to check it further, now faced to an
object: the special features of cinematograph artworks in DVD videos. Five titles of
european cult movies were selected. The avaliation of the architecture that builds
these midiatic products emphasizes a perspective that brings out the information
organization in it. It was possible to identify that the logic of the information
distribution on the DVD’s structure is based on procedures which point out the
different moments related to the creation process of the artwork and its promotion on
the cinematograph market.
Keywords: Communication. Information. Psychoanalysis. Jacques Lacan.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 08
2 A COMUNICAÇÃO SOCIAL: ELEMENTOS DE TEORIA E PESQUISA 14
3 COMUNICAÇÃO, CINEMA E PROCESSOS INTERACIONAIS 36
4 A PSICANÁLISE 50
4.1 O sujeito da ciência, a metodologia psicanalítica e os matemas de Jacques
Lacan 62
4.2 Comunicação e cultura entre Freud e Lacan 77
5 A INFORMAÇÃO COMO MATÉRIA-PRIMA NO CAMPO DA COMUNICAÇÃO
SOCIAL 85
5.1 Informação e democracia 85
5.2 Análise dos extras 92
5.2.1 Menu interativo 92
5.2.2 Informações gerais sobre o objeto fílmico (Trailers de cinema, pôsteres,
dados de premiação e ficha técnica do DVD) 101
5.2.3 Informações sobre o processo de construção da obra (Documentários,
imagens dos bastidores e críticas especializadas) 105
5.2.4 Informações sobre atores e diretores (Biografias, fotos e filmografias) 109
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 114
REFERÊNCIAS 115
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo discutir a natureza da Comunicação
Social, seu estatuto disciplinar, seu objeto, para, posteriormente, extrair, da leitura
lacaniana da obra de Sigmund Freud, aportes metodológico-conceituais pertinentes
à análise da configuração de obras cinematográficas em formato de DVD.
Por configuração, entendemos o modo de apresentação de um filme em
formato digital, com recursos não disponíveis em uma sala de exibição, que lhe
modificam na medida em que possibilitam a visibilidade de ângulos outros, seja em
relação ao processo de produção da obra, seja em relação aos sujeitos que a fazem
ser o que é.
Um termo alemão capaz de dar conta do que colocamos aqui como
configuração, talvez, seria Darstellungsweise, modo de demonstração, em que o
substantivo Weise, considerado isoladamente, pode significar melodia. Do ponto de
vista dos estudos comunicacionais, essa configuração engloba gêneros específicos,
como as biografias, por exemplo, e formatos distintos como documentários e
entrevistas. Focalizamos o que os editores geralmente denominam de extras em um
DVD. Não teriam eles o efeito de um acompanhamento especial, tal como uma trilha
sonora, que imprime sua marca em determinadas cenas, provocando em nós, seus
espectadores, sentimentos, lembranças ou sensações variadas?
Optamos por destacar, mormente, a função eminentemente informativa
desse tipo de configuração.
Mais precisamente, nosso corpus é composto de cinco títulos de filmes
europeus, das décadas de 50 e 60 do século XX, disponíveis em suporte digital:
“Matrimônio à italiana”, de Vittorio de Sica, “Noites brancas”, de Luchino Visconti,
“Um homem, uma mulher”, de Claude Lelouch, “O eclipse” de Michelangelo
Antonioni e “A doce vida”, de Frederico Fellini, sendo este último uma edição
constituída por dois DVDs, na qual um deles é destinado exclusivamente a extras.
Contamos decerto com uma amostra pequena, contudo tivemos como
critério a escolha de filmes fora de circulação do grande circuito de estréias na
atualidade. É claro que existem salas de cinema dedicadas à exposição de obras
antigas, os chamados clássicos da Sétima Arte; não obstante, elas constituem
exceção e não a regra.
Fundamental se faz ressaltar que, se os filmes que selecionamos são
considerados cult pela crítica especializada, tal fato é por nós compreendido em
termos de um contínuo e complexo processo de valorização de determinados
produtos culturais, concomitantemente à depreciação de outros no mercado
cinematográfico. Expliquemos melhor.
Sabemos que o pensamento moderno, inaugurado, no campo da
Filosofia, por René Descartes, foi marcado pelas dicotomias. Ora, no jogo de
oposições, característico da cultura moderna, em que cada pólo é a negação do
outro, podemos compreender como se aloca, em nosso caso específico, o cult e o
não-cult, um não existindo sem o seu contrário.
Diferença socialmente construída – já que discursos e práticas que
definem o cult se colocam como referência para estabelecer o Bom, o Belo, e o
Verdadeiro – podemos constatar, em tal polaridade, uma hierarquia implícita, na qual
um de seus componentes é dado como superior em relação aquele que,
simultaneamente, o nega e é negado por ele.
Acreditamos, assim, que o que alinharia um filme a outros da categoria
cult não seria exclusivamente seu valor estético, mas, sobretudo, seu modo de
produção e de inserção em um contexto social amplo. Façamos, nesse exato
momento, uma observação.
Há que se considerar que a função estética ocupa um lugar
extremamente importante na esfera individual e coletiva e que o número de pessoas
que entram em contato direto com a arte é bastante restrito, já que são limitadas
também as possibilidades de acesso às obras de arte e de educação estética para
algumas camadas da sociedade. Outrossim, faz-se mister esclarecer que “não há
nenhum limite fixo entre o estético e o extra-estético”; não existem objetos nem
processos que, por essência e estrutura, e sem que se leve em conta o tempo, o
espaço e os critérios de sua avaliação, sejam portadores da função estética por si
só, nem outros que, pela sua configuração, hajam de se considerar subtraídos ao
seu alcance. Em outras palavras, a predestinação para a função estética não
constitui uma propriedade do objeto, mesmo que ele tenha sido concebido
intencionalmente com vistas a essa função, pois ela se manifesta tão somente em
determinadas circunstâncias e em contextos específicos (MUKAR3VSKÝ, 1997,
p.22-23).
O que queremos deixar claro, com esse longo parêntese, é que o corpus
com o qual trabalhamos reflete o gosto de uma classe específica, e é óbvio que os
editores de DVDs estão cientes da necessidade de dispor eficientemente a
informação nesses produtos para estimular o consumo de um público-alvo bem
delimitado. Não é à toa que muitos lançamentos contêm em suas embalagens a
“advertência”: edição de colecionador. Ora, colecionar implica a acumulação
obsessiva, a qual pode se dar tanto pela troca de dinheiro por produtos, como pela
troca de produtos por outros produtos.
Marx (1864/1987) explica, em ”O Capital”, que o valor de troca consiste
em uma maneira social específica de expressar o trabalho empregado em um
objeto, não sendo uma propriedade das coisas mesmas. Ironizando os economistas
de então, Marx pontua que, até aquele momento de seu ato enunciativo, nenhum
experto em Química havia descoberto um valor de troca intrínseco a pérolas e
diamantes.
Atentos à explicação marxiana, podemos dizer que o cult, em si, não se
põe automaticamente como “pérola” no mercado cinematográfico; ele é posto como
tal em um sistema de relações sociais complexas em que o seu valor já é levado em
consideração no momento de sua produção para satisfazer determinada
necessidade social. Acontece que, no capitalismo, a relação social entre homens
assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. O caráter fetichista
das mercadorias, diz-nos Marx (1864/1987), não provém de seu valor de uso, mas
de sua forma mesmo. Ele provém, portanto, do caráter social peculiar do trabalho
que as produz.
Uma das questões fundamentais presentes no fetichismo da mercadoria
diz respeito à impossibilidade do sujeito apreender a estrutura social de
determinação do valor dos objetos em razão da instauração de um regime de
fascinação pela “objetividade fantasmática” – gespenstige Gegenständlichkeit – do
que aparece. Tal fascínio vincula-se a um processo de naturalização de
significações socialmente determinadas e à alienação da consciência no domínio da
falsa objetividade da aparência e da reificação das relações. Alienação, então,
indicativa da incapacidade de compreensão da totalidade das relações
estruturalmente determinantes do sentido (SAFATLE, 2007).
A definição simplificada do fetichismo da mercadoria é a que explicita que
ele é o resultado de uma operação que oculta, sob a aparente equivalência objetiva
das mercadorias, as diferenças – sob as formas de dominação e exploração – entre
os homens que as produziram. Cada mercadoria disponível no mercado e que pode
ser trocada por outras, equivalentes em seu valor – equivalência simbolizada pelo
dinheiro – traz em si a história de um dono dos meios de produção e de um
proletário; história de um homem que comprou a força de trabalho de um outro que a
vendeu sem a noção exata do quanto de seu tempo havia sido cedido à reprodução
do capital. Assim, a riqueza concentrada pela mercadoria resulta da extração do
tempo de vida que um sujeito, despossuído de bens, foi obrigado a entregar ao
capitalista para possibilitar sua sobrevivência e, deste modo, continuar vendendo
sua força de trabalho e produzindo mais mercadorias. O brilho da
imagem/mercadoria tem o poder de encobrir o conflito existente em sua origem. A
alienação, conceito comum às teorias de Marx e Freud diz respeito à impossibilidade
dos sujeitos alcançarem o processo que está na gênese do que os subjetiva. Em
Freud, especificamente, a alienação é inerente à condição humana. A transformação
do infans em sujeito decorre de seu atravessamento pela dimensão da linguagem
que já está aí e, por isso mesmo, o ultrapassa. É fundamental entender que o sujeito
freudiano nunca é senhor de si, enquanto que, em Marx, os trabalhadores não estão
cientes de que consentem na expropriação de uma parte de seu tempo de trabalho
em prol da acumulação capitalista (KEHL, 2003b).
A informação, em nossa era, tornou-se uma mercadoria preciosa para a
produção de novas – e cada vez mais sofisticadas – mercadorias e, por isso,
compreender suas diversas formas de utilização constitui um desafio aos
pesquisadores do campo da Comunicação Social e de outras áreas correlatas. Sites
comerciais, bancos de dados, embalagens de produtos, mídia impressa e televisiva,
em todos esses espaços a informação é vital. Mas ela também se tornou estratégica
no cinema em formato de DVD, motivo pelo qual este foi o tema central de nossa
dissertação.
Como procedimento metodológico, alocamos os extras em três categorias
distintas, conforme o elemento informativo prevalecente em cada uma delas:
informações gerais sobre o objeto fílmico (trailer de cinema, premiação, pôsteres,
ficha técnica do DVD), informações sobre o processo de construção da obra
(documentários e imagens dos bastidores, além de críticas especializadas) e
informações sobre atores e diretores (biografias, fotos e filmografias).
Nós poderíamos, obviamente, ter-nos atido a um único extra, visto que um
documentário, por exemplo, considerado isoladamente, constitui um objeto de
enorme complexidade. Mas não foi esse o nosso intuito. Nossa proposta foi refletir,
tão somente, sobre a estrutura articulatória desses diferentes dispositivos em um
mesmo produto audiovisual.
Para atingirmos nosso objetivo, sustentamos nossas apreciações críticas
nos estudos de topologia e na teoria dos discursos de Jacques Lacan. No entanto, a
tarefa que a nós se impôs, foi a edificação de uma visão de conjunto em que tanto
as concepções lacanianas, quanto noções e idéias lançadas em outras áreas do
saber pudessem contribuir para a problematização da gestão da informação em
nosso objeto de análise.
No campo dos estudos de Cinema, as considerações de André Gardies
(1993, tradução nossa), professor de audiovisual na Universidade Lumière-Lyon II, e
autor de numerosos trabalhos sobre a Sétima Arte, constituíram o ponto de partida
para a formulação da indagação que direcionou nossos esforços investigativos. O
autor explica que o midium cinematográfico tem suas próprias exigências, sua
dimensão expressiva. Em razão do caráter plural e heterogêneo de suas matérias de
expressão, ele diz, todo filme trabalha, simultaneamente, com várias fontes de
informação.
A assertiva de Gardies levou-nos a questionar o extra-fílmico de um DVD
enquanto uma fonte profundamente informativa. Embora não tenhamos traçado um
inventário sobre o histórico do cinema como um todo, buscamos evidenciar os
aspectos mais essenciais da relação do público com esse meio de comunicação de
massa no Ocidente.
Sem negligenciar as preocupações e problemas próprios da pesquisa em
Cinema, procuramos explorar nosso corpus em um prisma cujo privilégio maior é
dado ao modo de distribuição da informação na rubrica extras de DVDs de filmes
classificados como cult.
Cônscios de que a integridade de um produto midiático não pode ser
contemplada sem que sejam avaliados os elementos internos e externos que atuam
em sua organização, privilegiamos os aspectos sincrônicos de nosso objeto, mas
voltamos nosso olhar também aos dados diacrônicos quando estes se fizeram
necessários para a compreensão de sua economia geral. Ainda que insatisfatória, tal
metodologia nos possibilitou estabelecer um corte mais preciso a partir do qual se
tornou possível a delimitação de nosso interesse de pesquisa. Uma investigação
mais aprofundada sobre o tema implicaria, certamente, um trabalho de campo, o
qual envolveria o estudo das empresas brasileiras detentoras dos direitos autorais
dos produtos midiáticos que selecionamos em nosso corpus. O conhecimento de
seu passado e a compreensão de seu presente, por meio de análises documentais e
de entrevistas com os profissionais que determinam o tratamento a ser dado a
informação é a principal lacuna dessa dissertação.
Começamos nosso trabalho com uma discussão a respeito do campo da
Comunicação Social e das teorias de comunicação. Pautamos nossas reflexões nas
idéias já desenvolvidas por José Luiz Braga, em contraponto a considerações
conduzidas pelo antropólogo francês François Laplantine nas Ciências Sociais.
Alguns podem objetar, dizendo que a obra de Laplantine que nos serviu de apoio
consiste em um manual introdutório e, como tal, insuficiente para a consolidação de
nossas idéias. Se assim for, a esses possíveis leitores, respondemos que Laplantine
é um autor cujas incursões no campo da Saúde é extremamente respeitada e que
este tomou a si a difícil tarefa de sintetizar várias décadas do pensamento
antropológico, tornando-o acessível a estudiosos de outras áreas que não os
especialistas das Ciências Sociais.
Dando continuidade à dissertação, discorremos sobre a leitura lacaniana
da obra de Sigmund Freud. Discutimo-la em termos de pesquisa e epistemologia,
sublinhando a concepção psicanalítica de cultura e comunicação, bem como suas
considerações sobre cinema. Buscamos evidenciar suas contribuições ao campo da
Comunicação Social enquanto uma teoria que aborda a linguagem e os processos
de significação.
Destacamos as relações entre informação, política e democracia e, para
concluir, procedemos à análise das relações estabelecidas entre os diversos
componentes do que comumente se denomina de extras em um DVD
cinematográfico.
2 A COMUNICAÇÃO SOCIAL: ELEMENTOS DE TEORIA E PESQUISA
Para darmos início a uma discussão a respeito da Comunicação Social
enquanto um campo científico, julgamos importante explicitar o que é comunicação,
qual sua natureza, para, posteriormente, problematizarmos a existência – ou não –
de teorias da comunicação.
Isso porque, a relevância do assunto a ser aqui tratado gera
controvérsias
1
e exige que situemos as articulações que ensejamos realizar para que
não ultrapassemos o limite de uma abordagem inicial, porém bem fundamentada.
Antes, porém, discutamos o que é uma dissertação e o que compreendemos a
respeito do sentido da atividade investigativa.
O objetivo de uma dissertação, segundo Folscheid e Wunenburger (1997,
p. XI) é permitir a seu próprio autor confrontar-se com modos de raciocínio,
hipóteses e escolhas, sendo, dessa maneira, um momento preliminar de uma
atividade reflexiva que busca a maturidade intelectual. Assim, “ela torna-se a ocasião
privilegiada para um pensamento inexperiente pôr-se à prova, pôr-se em jogo
assumindo riscos, efetuando escolhas, formulando conclusões, ainda que
provisórias ou hipotéticas”.
Nesse sentido, uma dissertação se alimenta longamente de citações de
autores que já atingiram certa maturidade intelectual. Mas o que são citações?
Encontramos em Lacan (1969-1970/1992, p.37-38) uma versão a respeito
de sua função textual:
Em que consiste a citação? No decorrer de um texto em que você avança
mais ou menos bem, se você está, digamos, nos pontos certos da luta
social, de repente cita Marx, e acrescenta – disse Marx. (...) A citação é – eu
exponho o enunciado e, quanto ao restante, trata-se do sólido apoio que
encontram no nome do autor, que deixo ao encargo de vocês. (...) Quando
se cita Marx ou Freud – não foi por acaso que escolhi estes dois nomes –,
isto se dá em função da participação em um discurso pelo leitor suposto. À
sua maneira, a citação é também um semi-dizer. É um enunciado sobre o
qual se lhes indica que só é válido na medida em que vocês já participam
de certo discurso, estruturado, no nível das estruturas fundamentais que
estão lá no quadro.
1
Basta abrirmos um livro destinado à discussão de questões epistemológicas da Comunicação Social
para verificarmos os inúmeros ângulos nos quais essa temática é abordada.
Portanto, a citação só adquire sentido quando inserida em um contexto
que a engloba.
Nossa dissertação se apoiará, então, na articulação de enunciados de
diversos autores com os quais buscaremos interlocução pela via discursiva.
Lacan (1993, p.79), restabelecendo as palavras do poeta Boileau, afirma
que “o que bem se enuncia, claramente se concebe”. Com essa retomada do
discípulo de Freud em mente, tentaremos expor nossas idéias com o máximo de
transparência possível.
Mas há um outro movimento que gostaríamos de destacar, pois todo
pesquisador tem suas motivações próprias para escolher este ou aquele tema a ser
investigado, todo ser humano quer ter seu esforço, seu empenho reconhecido. Uma
dissertação de mestrado não se resume a um texto a ser redigido e entregue à
avaliação.
Nasio (1995, p. 13) acredita que, quando alguém tem que dar conta de
uma reflexão, o mais importante é que o que ele diga não valha pelo conteúdo do
que ele disser, mas pelo próprio fato de dizê-lo.
Para Barthes (1988, p. 97), “o trabalho (de pesquisa) deve ser assumido
no desejo”. Ele continua, afirmando que, para que o desejo se insinue no trabalho, é
preciso que ele seja pedido por uma “assembléia viva de leitores em quem se faz
ouvir o desejo do Outro”.
Isso porque
O desejo, para que seja humano, deve incidir sobre um objeto que não seja
um objeto natural, e sim um objeto que ultrapasse a realidade dada. (...)
Segundo Hegel, a única coisa que ultrapassa a realidade humana é o
desejo, pois o desejo, antes mesmo da satisfação, é um vazio, um vazio
irreal, um nada revelado. O desejo humano, para se constituir enquanto tal,
é um desejo que incide sobre um desejo. (...) É um desejo de desejo
(QUINET, 2003, p.92, grifo do autor).
Relembremos, contudo, que “o desejo hegeliano não tem parte com o
inconsciente”, enquanto o Désir lacaniano gravita em torno da dimensão do Outro
(ARANTES, 2003, p.57).
A tematização da dialética do desejo do sujeito como se constituindo pelo
desejo do Outro implica que devemos compreender a referência a Hegel
como sendo apenas propedêutica e não fundadora. (...) Se o hegelianismo
quer ser uma filosofia da identidade, o lacanismo quer constituir-se em um
hegelianismo da diferença, em função da dessimetria congênita entre
significante e significado. A referência ao hegelianismo em Lacan, deve ser
compreendida como representando uma fase de transição para um sistema
de pensamento próprio (SANTUÁRIO, 2004, p.52).
No que se distingue, então, o desejo para Hegel e para Lacan?
Se, para Hegel, o desejo do homem é o desejo do outro (com minúscula),
para Lacan, o desejo do homem é o desejo do Outro (com maiúscula). Em
Hegel, meu desejo depende do outro como desejante e como consciência,
estando, como desejo, interessado numa luta de prestígio com o outro para
ser por ele reconhecido. Para Hegel, o outro é aquele que está presente e
que me vê e contra quem eu luto. Para Lacan, o Outro se apresenta com
inconsistência e inconsciência. O inconsciente é o discurso do Outro, sendo
que para o neurótico, ele é barrado, porque há uma inscrição da falta no
Outro, o que o torna inconsistente. É justamente por haver uma falta inscrita
no Outro que o Outro diz respeito ao desejo do sujeito, pois é ao nível do
que falta no Outro que sou levado a buscar aquilo que me falta – o que me
falta como objeto de meu desejo. O Outro para Lacan é o lugar de
significantes (A), mas é também o lugar onde se institui o Outro da falta,
pois falta o significante que o definiria como uma totalidade: S (A) (QUINET,
2003, p. 93).
Como explica-nos Chalhub (2001, p.19), a concepção de linguagem, em
Psicanálise, refere-se ao que é subjetivo, de sujeito. “Assujeitado à linguagem – não
portando subjetividade própria, inata. A construção (não o desenvolvimento de uma
potência em ato) da subjetividade dá-se pela exterioridade. O Outro o condiciona e
imprime aí seu “código”. Para Freud, “Outro, ein andere Schauplatz” (CHALHUB,
2001, p.18).
O Outro como inconsciente, como alteridade radical para o sujeito, é o lugar
que se presentifica na fala a partir da linguagem. Ele não se situa
propriamente nem fora nem dentro do sujeito, mas faz parte da ordem do
simbólico que é da mesma ordem da cultura (QUINET, 2003, p.45).
Assim, o desejo, identificável à coisa psicanalítica, encontra-se no centro
de sua prática, como causa, objetivo e motor da sua ação (PUJÓ, 2001, p.23).
Ainda, no campo da psicanálise, Fernandes (2004, p.212) nos diz que
o privilégio dado por Lacan à leitura de Freud não se resume ao
aclaramento dos conceitos erigidos pelo médico vienense. A atenção de
Lacan a uma dimensão opaca da transmissão da experiência analítica aos
sucessores de Freud está na base das dissensões de 1953, resultantes da
inserção de seu ensino na psicanálise. Lacan quer saber o que permite a
uma psicanálise ser psicanálise; o que a condiciona, o que a determina. Isso
implica enfrentar, no que é transmitido desde Freud, as arestas de seu
pensamento e não somente o brilho teórico. (...) Transmitir um modo de
investigação do emprego do poder da fala e da linguagem não significa
ensinar somente conceitos. Trata-se de transmitir também os problemas
gerados por essa investigação.
Lacan vai além de Freud, portanto, mas não sem Freud. Vai além apenas
a partir da questão que o próprio Freud nos coloca (JULIEN, 1996, p. 73, grifo do
autor).
No presente trabalho, concentraremos nossos esforços na organização de
nossas idéias, pautadas em pesquisas já consolidadas no cenário acadêmico,
tentando formar um todo coerente, porém conciso.
Reconhecemos a importância do que Wilson (2001, p. IX) nos ensina,
pois ele nos diz que “a análise conceitual dá estrutura e objetividade ao pensamento
que, sem ela, estaria condenado a vagar sem rumo e indefinidamente pelos
meandros do intelecto e da cultura”.
Em Kant, temos que conceito é “uma unidade mental que compreende
uma multiplicidade de coisas”, ele é, pois “uma unidade do múltiplo” (MORENTE,
1979, p.234).
Santuário (2004, p.18) argumenta que “o conceito mata o objeto”,
utilizando o termo “matar” na acepção de “des-presentificar, ou, retirar o objeto real
da cena do visível”. Ele continua, afirmando que
A palavra livro mata todos os objetos livros, porém dá acesso a cada objeto
empírico, livro em particular. O humano dispõe, assim, de uma condição a
priori de possibilidade de relação, através da linguagem, com a
universalidade do objeto, pois o conceito lhe garante a possibilidade da
relação com o real. Um real fictício, porém para a experiência possível que o
humano pode produzir, ainda assim, para ele, real. Da mesma forma, o
sujeito falante existe posicionado a partir do significante que utiliza, no
sentido de que seu ser é definido pelo estatuto dessa relação. A linguagem
envelopa o ser. Daí que Lacan constrói o estatuto ontológico do humano,
designando-o por parlêtre, construído a partir da noção de que o humano
somente é humano porque é um ser que fala, um ser que tem uma relação
com a linguagem. Daí a junção de parler (falar) + être (ser), ou fala-ser. (...)
O saber trazido por Freud e Lacan implica compreender o humano como
constituído por um universo de sentido que lhe é exterior, excêntrico e
excedente, do qual não possui domínio absoluto (SANTUÁRIO, 2004, p.18-
19)
Segundo Quinet (2003, p.91), no movimento de retomar algumas teses de
Hegel, Lacan as renova no interior da teoria psicanalítica. Dentre essas teses está
que “a palavra é o assassinato da coisa”, isto é, a incidência do significante faz a
coisa desaparecer. Assim, em seu primeiro Seminário
2
publicado, consta que “basta
falar ‘elefantes’” para que eles surjam. Logo, o significante tem “a propriedade de
constituir a presença sobre o fundo de ausência, ou seja, de ser uma presença
ausente e uma ausência presente”.
No opúsculo “Nomes-do-pai”, que reúne duas intervenções de Jacques
Lacan, há uma passagem interessante em que o autor cita Hegel para delimitar o
que ele entende por conceito. Vejamos.
(...) o conceito é o tempo. Seria preciso uma conferência de uma hora para
fazer a demonstração de que o conceito é o tempo. Coisa curiosa, o sr.
Hyppolite, em sua tradução da Fenomenologia do espírito, contentou-se em
colocar uma nota dizendo que esse era um dos pontos mais obscuros da
teoria de Hegel. Porém, graças ao exemplo de Freud [encontrado em Mais
além do princípio de prazer e que mostra como a criança abole seu
brinquedo, pelo desaparecimento], vocês podem perceber essa coisa
simples que consiste em dizer que o símbolo do objeto é justamente o
objeto-aí. Quando ele não está mais aí, é o objeto encarnado em sua
duração, separado de si próprio e que, por isso mesmo, pode estar de certa
forma sempre presente para você, sempre ali, sempre à sua disposição.
Encontramos aqui a relação que há entre o símbolo e o fato de que tudo o
que é humano é conservado como tal. Quanto mais humano, mais
preservado do lado movediço e descompensante do processo natural. O
homem faz subsistir em uma certa permanência tudo o que durou como
humano, e, antes de tudo, ele próprio (LACAN, 2005, p.35-36).
Lacan (1969-1970/1992, p. 14) expõe, em “O Seminário, livro 17”, que os
seres humanos, enquanto seres de fragilidade, precisam de sentido. E, “se damos
um sentido ao que Freud enuncia do princípio do prazer como essencial ao
2
Quinet refere-se à obra “O Seminário, livro 1”, publicado no Brasil pela Jorge Zahar Editor.
funcionamento da vida”, então, que a pesquisa que temos aqui seja a manifestação
da aspiração de trazer uma contribuição aos estudos em Comunicação Social.
Isso sem alimentar ilusões, porque o Begehren
3
freudiano, o anseio, de
acordo com Miller (2002, p.26), “não está destinado à plenitude”, muito pelo
contrário, ele “está coordenado a uma função de falta, de carência”, ou seja, “não há
satisfação para o desejo”.
Passemos, então, à construção da base argumentativa que sustentará o
tratamento sistematizado de temas já abordados nesse campo.
Definamos, agora, o que entendemos por teoria. Particularmente em
Heródoto, o verbo θεωρέω (theoréo), do qual advém a palavra θεωρία (theoría),
indica a ação de “assistir como espectador aos jogos olímpicos”. No entanto, esse
mesmo verbo pode significar também “contemplar pela inteligência”
4
(BAILLY, 2000,
p.932). A teoria envolve então, um raisonnement, um modo de intelecção da
realidade.
Para Nasio (1995, p.12), o processo de construção de uma teoria envolve
“dar nome, definir sentidos e ligar o nome a outros nomes”. Uma definição simples
que, aqui, também acolhemos de bom grado, mesmo estando atentos ao fato de que
uma teoria, para permanecer
5
no campo acadêmico, deve, necessariamente, ser
científica, isto é, não basta que articulemos um significante a outro. Vejamos melhor.
No que diz respeito especificamente à ciência, Fourez (1995, p.11)
explicita de forma clara que a prática científica está inevitavelmente inserida em
“nossa vida individual e coletiva”, mostrando que todo “esforço científico” relaciona-
se a um projeto humano, com toda a criatividade que lhe é inerente. O autor (p.15),
doutor em Física e professor da Universidade de Namur, consciente da existência de
múltiplas maneiras de pensar, defende a fecundidade de trocas e confrontações.
Para ele,
De acordo com o ponto de vista (...) desenvolvido, a ciência surge como
uma prática que substitui continuamente por outras as representações que
3
Lacan diferencia os 4 termos utilizados por Freud: Forderung, Demanda; Begehren, Desejo;
Bedürfnis, Necessidade e Wunsch, Desejo do Sonho. A esse respeito, consultar: LACAN, Jacques. O
seminário: livro 5 – as formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1999, p.399.
4
Tradução adaptada do verbete que compõe o dicionário Bailly realizada pela autora.
5
Permanência essa que pode ser envolta a profundas transformações. A permanência não indica,
evidentemente, falta de plasticidade.
se tinha do mundo. Aliás, começa-se a fazer ciência quando não se aceita
mais a visão espontânea como absolutamente necessária, mas como uma
interpretação útil em determinado momento (FOUREZ, 1995, p.66).
É já consagrada a oposição que Thomas Kuhn estabelece entre ciência
normal, vinculada ao conceito de paradigma e ciência extraordinária, na qual está
implícita a idéia de revolução. Delimitemos melhor a proposta de Kuhn, para que
possamos empreender um aprofundamento na visão de Fourez.
A ciência natural explora um paradigma em torno do qual se reúne, em
determinado momento, uma comunidade (científica) igualmente bem
determinada. Os membros dessa comunidade encontram no paradigma um
conjunto – que uma teoria terá tornado suficientemente coerente – de
problemas exemplares, soluções típicas e aplicações bem-sucedidas num
domínio determinado do real. Nesse conjunto pragmaticamente dado, eles
encontram um modelo com base no qual podem orientar sua atividade de
pesquisa e fundá-la numa tradição solidamente partilhada. Problemas e
aplicações do paradigma são, por si mesmos, suficientemente abertos para
dar lugar a uma pesquisa subseqüente. Kuhn compara essa pesquisa com
a atividade lúdica de quem resolve um quebra-cabeça. Isto porque, nesse
jogo, as peças são dadas já prontas e o jogador sabe, de antemão, que elas
devem adaptar-se umas às outras para compor um conjunto inteligível. A
pesquisa consiste em encontrar a ordem em que as peças devem ser
dispostas. Pode-se dizer, assim, que a ciência natural progride de maneira
cumulativa. O paradigma é constantemente confrontado com anomalias,
com resultados que não correspondem àquilo que se previra em sua
exploração. (...) O paradigma em curso entra em crise. É então que ocorre
um novo tipo de pesquisa, o da ciência extraordinária. (...) A transição um
tanto brusca de um paradigma a outro, abandono do antigo e adesão ao
novo, determina, então, uma revolução científica, uma verdadeira subversão
da visão do mundo. Tal processo, portanto, diz respeito à descontinuidade,
à ruptura e à resultante incomensurabilidade das duas margens (HUISMAN,
2001, p.580-581).
No tocante às ciências humanas e sociais, Miller (2002, p.44) chega, a
nosso ver, a ser áspero
Tenho que lhes dizer que tudo o que admitimos como disciplinas científicas
na faculdade de letras – a sociologia, a psicologia – , para um matemático
ou um físico resulta ser, muitas vezes, uma piada. Só digo isso para que se
saiba que o conceito de ciência é mais complicado do que simplesmente
tratar de ser objetivo. Como dizia Hamlet: “Há mais coisas na ciência do que
crês, Horácio”.
Geertz (1978, p.15-16), por exemplo, assumindo a Antropologia como
uma ciência interpretativa e concebendo o comportamento humano como, na
maioria das vezes, uma ação simbólica, pensa que nossas indagações devam incidir
em sua importância e no que está sendo transmitido com sua ocorrência. O autor
nos alerta, então, para o que nos diferencia e nos distancia das Ciências Exatas, o
que não invalida, por outro lado, o empreendimento lacaniano de formalizar sua
teoria, já que, em Lacan, os matemas surgem em um contexto bastante pontual
dentro de seu ensino. Sem a compreensão do papel da Matemática no interior do
empreendimento teórico lacaniano, o trecho que extraímos do texto de Miller pode
soar como uma tentativa de desqualificação das Ciências Humanas e Sociais por
sua falta de exatidão, o que, absolutamente, não é o caso. Voltaremos a esse
assunto mais adiante. Prossigamos.
E quanto à constituição de um objeto científico? Como ela se dá?
Fourez (1995, p.106), com sua experiência no campo da Física, enfatiza
que o “o objeto de uma disciplina não existe, portanto, antes da existência dessa
própria disciplina; ele é construído por ela”. O professor continua, afirmando que
“uma disciplina científica não é definida pelo objeto que ela estuda, mas é ela que o
determina”, sendo que, “na evolução de uma disciplina, esse objeto pode variar”.
Passemos à questão da fundamentação de uma teoria. As considerações
do filósofo Heidegger, traduzidas por Ernildo Stein
6
nos serão de grande valia.
Convidando-nos a escutar a palavra “filosofia” em sua origem grega, Heidegger nos
diz que ela determina a “linha mestra de nossa história ocidental-européia”.
Assim, aprendemos que
A frase: a filosofia é grega em sua essência, não diz outra coisa que: o
Ocidente e a Europa, e somente eles, são, na marcha mais íntima de sua
história, originalmente “filosóficos”. Isto é atestado pelo surto e domínio das
ciências. Pelo fato de elas brotarem da marcha mais íntima da história
ocidental-européia, o que vale dizer do processo da filosofia, são elas
capazes de marcar hoje, com seu cunho específico, a história da
humanidade pelo orbe terrestre. Consideremos por um momento o que
significa o fato de caracterizarmos uma era da história humana de “era
atômica”. A energia atômica descoberta e liberada pelas ciências é
representada como aquele poder que deve determinar a marcha da história.
6
Esse excerto faz parte da página 03 de Que é isto – a Filosofia? Traduzido pelo professor Ernildo
Stein, o clássico texto de Heidegger foi disponibilizado em rede pelo grupo Acrópolis, como e-book.
Contudo, não consta a data de sua publicação on-line. A esse respeito, consultar nossas referências
bibliográficas.
Entretanto, a ciência nunca existiria se a filosofia não a tivesse precedido e
antecipado (HEIDDEGER, tradução de Ernildo Stein).
Se a ciência é “filha” da filosofia, como podemos depreender da leitura de
Heidegger, isso significa, então, que as chamadas teorias da comunicação só
puderam surgir a partir de alguma matriz filosófica. Trataremos dessa questão logo a
seguir. Antes, porém, analisemos, a partir desse momento, a etimologia do termo
comunicar.
Communico
7
, do latim, pôr ou ter em comum, repartir, dividir alguma coisa
com alguém. Socius
8
, também do latim, adjetivo que significa associado com, junto,
unido. Segundo Martino (2003, p. 14), “no próprio sentido etimológico do termo já
aparece a comunicação como produto de um encontro social”.
A Comunicação só pode, então, estar alocada no interior das chamadas
Ciências Socias. Reflitamos, agora, sobre o que se conhece na academia brasileira
como teorias da comunicação.
Tomando como um pequeno corpus de análise os já conhecidos manuais
da área, como os publicados por De Fleur & Ball-Rokeach (1993), Hohlfeldt, Martino
& França (2001) e Wolf (2005), verificamos uma profusão de nomes e de
perspectivas teóricas distintas, fruto do trabalho de sociólogos, matemáticos,
antropólogos, psicólogos, filósofos e estudiosos de História e Literatura.
Percebemos, assim, pela leitura dessas publicações, que a Comunicação Social,
enquanto ciência, só encontra seu modo de existência a partir de olhares que
nascem em outros campos do saber. As teorias que dão corpo a esses manuais de
consulta são denominadas de comunicação pelo fato de abordarem o fenômeno
comunicacional como parte de um conjunto de problematizações e de
questionamentos mais amplos.
O comunicólogo, enquanto pesquisador autônomo, não existe.
Entendamos autonomia como a possibilidade de empreender uma investigação com
metódos do próprio campo e não no sentido de restrições ao ato de pensar por si só.
É evidente que o comunicólogo já delimitou seu espaço reflexivo no âmbito das
Ciências Sociais, no entanto, a Comunicação Social, enquanto portadora de uma
forma singular, única, de abordagem do fenômeno comunicacional, a nosso ver, está
7
Cf. Dicionário de Latim-Português, Porto: Porto Editora, 1988, p.258.
8
Idem, p. 1077.
em vias de ser construída. Contudo, há que se deixar claro que a autonomia, à qual
estamos nos referindo, não deve ser confundida com auto-suficiência, pois, no
estado atual das coisas, em que as disciplinas se suportam nos conhecimentos
produzidos nos mais distintos campos, é praticamente impossível o desenvolvimento
de uma reflexão sem aportes outros. A tendência ao solipsismo caracteriza uma
atitude incompatível com o espírito “antropofágico”
9
que deve prevalecer em nosso
meio.
Jacques Lacan, por exemplo, acompanhou os progressos feitos em
Etologia e, talvez, sem os conhecimentos dessa ciência, sua teoria do estádio do
espelho não tivesse sido elaborada. Por outro lado, a Psicanálise, de modo geral,
importa conhecimentos de outras áreas e os transforma em algo completamente
novo e original. É esse o grande desafio de qualquer disciplina que se pretenda
diferenciada das demais no campo das Ciências Humanas. A Psicanálise é uma
construção teórica em que os processos comunicacionais são centrais. Ela lida o
tempo todo com a linguagem, mas não surge para dar conta, especificamente, da
comunicação humana. Sua importância para o tratamento analítico só vem a ser
problematizada depois. A Psicanálise, no momento de sua inauguração, tem como
objetivo desvendar o funcionamento psíquico dos seres humanos. Mas, conforme
nos explica Safatle (2000a), o valor da Psicanálise sempre esteve na percepção de
que “uma ciência da subjetividade seria, necessariamente, uma lógica da
enunciação”.
De acordo com Silva (2001, p.181), que procura construir um panorama
do pensamento contemporâneo na França sobre a comunicação, a “complexidade
tem algo de decepcionante para os que desejam soluções simples”. A complexidade
de que fala o autor deve ser compreendida em referência a Edgar Morin.
Buscando demonstrar a heterogeneidade característica da “escola”
francesa, o autor sintetiza as diferentes concepções de seus “membros
10
” com
alguns termos-chave:
9
No sentido metafórico que Oswald de Andrade deu ao termo. Enquanto, no contexto do Modernismo
brasileiro, a antropofagia referia-se à assimilação crítica das idéias e modelos europeus, de modo a
se produzir algo novo em solo nacional, sem cair na relação modelo/cópia, que prevalecia na
Literatura Brasileira até então, em nosso contexto, da Comunicação Social, fazemos alusão à
antropofagia enquanto um procedimento ativo, criativo e crítico, gerador de um modo autônomo de
pensar a mídia.
10
Os vocábulos “escola” e “membros” estão entre aspas, pois, Juremir Machado da Silva (2001) é
explícito em seu texto: uma escola de pensamento francês em Comunicação é algo inexistente. O
que há são intelectuais que, de uma forma ou de outra, incluíram a comunicação em suas reflexões.
A comunicação é, ao mesmo tempo, fenômeno extremo, vínculo e cimento
social, “imagem réliante”, fator de isolamento, produtora de “tautismo”,
espetacularização do jornalismo e do mundo, cristalização da técnica que
acelera a existência e suprime o espaço e o tempo, fator de interatividade,
nova utopia, velha manipulação, meio, mensagem, suporte e vertigem de
signos vazios (SILVA, 2001, p.180).
Mas, se encontramos forças antagônicas em um mesmo pensamento, há
que se destacar, também, forças complementares que se deslocam no tempo, e ao
longo do tempo. Tal é o caso da Escola de Frankfurt. Marcuse, Adorno, Horkheimer,
seus componentes, da primeira geração, eram parte integrante de um grupo
polissêmico que testemunha transformações sociais em que a cultura é convertida
em mercadoria. Habermas, já em outro momento, desenvolve novas idéias, em que
a problematização da esfera pública ocupa um lugar essencial.
Em língua inglesa, outras tendências e paradigmas. Na chamada Escola
de Chicago, edificou-se um enfoque microssociológico de processos comunicativos,
tendo no urbano seu lócus de observação. Com Peirce, temos a Semiótica
preocupada com a formação de significados e, nos estudos de Bateson, Goffman e
Watzlawick, verificamos a proposta de uma compreensão da comunicação como um
processo social permanente, que deveria ser analisado a partir de um modelo
circular. Na teoria de Shannon e Weaver, destacou-se uma perspectiva técnica, com
ênfase nos aspectos quantitativos da comunicação, entendida como um processo de
transmissão de uma mensagem, por uma fonte informativa, através de um canal, a
um destinatário. Entre os anos 20 e 60 do século XX, houve, nos Estados Unidos, a
hegemonia de um campo de estudos denominado Mass Communication Research.
Com uma orientação empiricista de pesquisa, a obra de Lasswell se interessa pelos
efeitos provocados pelas mensagens e meios no público (ARAÚJO, 2001).
Wolf (2005) lista duas diretrizes, nas quais se deu a capacidade da
Communication Research de se caracterizar e se desenvolver, se não exatamente
como âmbito disciplinar autônomo, pelo menos como área temática específica.
Primeiramente, trava-se de determinar o que estudar e como estudá-lo em um nível
privilegiado de análise, uma pertinência mais significativa do que outras, para que
fosse possível homogeneizar o campo. Paralelamente, também se fazia necessária
a elaboração de uma abordagem teórica, um conjunto de hipóteses e metodologias
que consentisse superar a fragmentação e a dispersão de conhecimentos. Em
matéria de pesquisa, os trabalhos se ligavam mais a contingências específicas e a
exigências imediatas; eles não estavam inseridos em um projeto a longo prazo. Daí
a dificuldade em reunir resultados em grande parte não comparáveis – e isso não
apenas por razões metodológicas. Em síntese, sem grandes idéias e sem grandes
hipóteses teóricas, a Mass Communication Research caracterizava-se pela
aplicação de uma variedade de abordagens metodológicas em um amplo campo
temático. Passemos para a Semiótica.
Em seu artigo princeps “Lingüística e teoria da comunicação”, Jakobson
(1973) explica que Charles Peirce, em seu programa para uma futura ciência dos
signos, afirmava que “um Legissigno é uma lei que é um Signo”, sendo essa lei
comumente estabelecida pelos homens. Assim, todo signo convencional consistiria
em um legissigno, sendo os signos verbais citados como um exemplo notável de
legissignos. Os interlocutores pertencentes a uma mesma comunidade lingüística
poderiam ser definidos, então, como usuários efetivos de um único e mesmo código,
o qual, por sua vez, compreenderia os mesmos legissignos. Conseqüentemente, um
código comum seria o seu instrumento de comunicação, que fundamentaria e
possibilitaria efetivamente a troca de mensagens.
A definição semiótica do significado de um símbolo como sendo sua
tradução em outros símbolos encontrou inúmeros campos de aplicação. A escola
anglo-saxã, em seus primórdios, diz Jakobson (1973), insistiu na existência de uma
linha precisa de demarcação entre a teoria da comunicação e a teoria da
informação. Para Shannon, a informação se definia como “aquilo que fica invariável
através de todas as operações reversíveis de codificação ou tradução”, ou, mais
sinteticamente, como “a classe de equivalência de todas as traduções”.
Na Inglaterra, Williams, Thompson e Hoggart, expoentes dos Estudos
Culturais, não podem ser vistos como mentores de um projeto britânico voltado à
investigação da comunicação social, mesmo que seus questionamentos sejam, até
hoje, pertinentes ao campo. Estabelecendo conexões entre os mass media e a
cultura popular, os autores discorrem sobre a complexidade das formas simbólicas
em si mesmas (ESCOSTEGUY, 2001).
Da leitura de todo esse legado, qualquer que seja seu idioma de origem, o
desafio de cada pesquisador consiste na extração de uma metodologia adequada à
análise das mídias.
Voltemos nossa atenção, a partir do presente momento, à práxis científica
na Comunicação Social. No Brasil, os estudos na academia sobre os meios de
comunicação no Brasil são recentes
11
, embora, em algumas áreas mais tradicionais,
como, por exemplo, o Jornalismo, já exista uma literatura
12
considerável a respeito.
Mas, por que estaríamos destacando os estudos dos meios de comunicação como
definidores, a princípio, de nosso estatuto disciplinar?
É Martino (2003, p.31) quem ressalta a centralidade dos processos
comunicativos, mediados por dispositivos técnicos, para essa disciplina. Para ele (p.
36-37), os media “constituem o fator que melhor pode caracterizar o objeto dos
estudos em Comunicação”.
Braga (2004, p. 222) acredita que as pesquisas sobre a mídia e seus
processos formem realmente o núcleo de aceitação mais generalizada do campo,
contudo há que se ter cuidado para que não se crie o que o autor denomina de
“tática de dispersão”, em que tudo se torna mídia.
Sodré (2003, p.308) expressa o mesmo juízo, afirmando que
A variedade dos estudos e das análises comunicacionais por parte dos
acadêmicos expande-se, assim, à maneira da própria prática midiática, sem
maior vigilância epistemológica, uma vez que não se obtém uma
reflexividade teórica sobre os limites do campo, nem se otimiza um diálogo
entre os pesquisadores capaz de cruzar resultados das investigações
diversas sobre um mesmo objeto.
Nosso desígnio, no presente capítulo, será discorrer sobre a
Comunicação a partir da leitura de reflexões já empreendidas por François
Laplantine (2000) no campo das Ciências Sociais. O antropólogo francês apresenta
um panorama sobre o conhecimento produzido em sua área do saber e discute
questões de ordem prática que, a nosso ver, podem trazer consideráveis
contribuições aos comunicólogos.
Antes, porém, é necessário sublinhar que, no campo da Epistemologia da
Comunicação Social no Brasil, um dos pesquisadores que problematiza questões
diretamente vinculadas aos estudos comunicacionais a partir do pensamento
11
Em 1962, por exemplo, o ensino de Comunicação na academia foi regido por um currículo mínimo
homologado pelo MEC. Essa informação foi encontrada em: http://
www.jornalismo.ufsc.br/redealcar/cd3/forum/claudiapeixotodemoura.doc Acesso em: 10.abr.2007.
12
Os trabalhos de José Marques de Melo e de Nelson Werneck Sodré ilustram o nosso argumento.
antropológico é José Luiz Braga (2004), o qual, pautando-se em Marcel Mauss,
desenvolve sua linha argumentativa. Explicitemos, então, a importância de Mauss no
Campo das Ciências Sociais.
Segundo Lévi-Strauss (2003, p.11)
a influência de Mauss não se limitou aos etnógrafos, nenhum dos quais
poderia ter escapado a ela, mas se estendeu também aos lingüistas,
psicólogos, historiadores das religiões e orientalistas, de modo que, no
domínio das ciências sociais e humanas, uma plêiade de pesquisadores
franceses lhe deve, de alguma forma, a orientação. Para os demais, a obra
escrita permanecia muito dispersa e, em geral, de difícil acesso.
O autor diz-nos ainda que
a complementaridade entre psiquismo individual e estrutura social funda a
fértil colaboração reclamada por Mauss, que se realizou entre etnologia e
psicologia; mas essa colaboração só permanecerá válida se a primeira
disciplina continuar a reivindicar, para a descrição e a análise objetiva dos
costumes e das instituições, um lugar que o aprofundamento de suas
incidências subjetivas pode consolidar, sem conseguir jamais fazê-la passar
ao segundo plano (LÉVI-STRAUSS, 2003, p.22).
Braga (2004, p.219) parte de uma afirmação de Mauss
13
para pensar a
formação do campo comunicacional como dependente mais “do trabalho de
investigação do que de definições abstratas sobre qual seja “o objeto do campo”’.
“O que impressiona, segundo Lévi-Strauss (2003, p.12, grifo do autor), é o
modernismo do pensamento de Mauss”. Ele revela, ainda, que
Mauss não apenas estabelece o plano de trabalho que será, de forma
predominante, o da etnografia moderna ao longo dos dez últimos anos, mas
percebe ao mesmo tempo a conseqüência mais significativa dessa nova
orientação, isto é, a aproximação entre etnologia e psicanálise (2003, p.13).
13
A afirmação é a seguinte: “... é nos confins das ciências, em suas bordas exteriores, com tanta
freqüência quanto em seus princípios, seu núcleo e seu centro, que se fazem os progressos” – Marcel
Mauss.
Talvez alguns leitores interroguem a funcionalidade da exposição da
avaliação de Lévi-Strauss sobre o legado de Marcel Mauss no presente trabalho.
Fizemos questão de registrar tal juízo de valor, pois ele é importante para
ampliarmos a compreensão do raciocínio de José Luiz Braga (2004), que vê em
Mauss um pensador estratégico.
No nosso caso específico, seguiremos os passos de François Laplantine,
mas, resgatando, nos momentos em que julgarmos oportuno, as considerações de
José Luiz Braga. Comecemos nossa explanação.
O pesquisador francês (p.13) afirma que o projeto de criação de uma
ciência do homem é recente e data do final do século XVIII, quando a Antropologia
se propõe como pensamento do homem sobre o humano. Já na “segunda metade
do século XIX, ela se atribui objetos empíricos autônomos: as sociedades então
ditas ‘primitivas’, ou seja, exteriores às áreas de civilização européias ou norte-
americanas” (LAPLANTINE, 2000, p.14).
Mas, curiosamente, no início do século XX, revela-nos o autor (p.15), a
Antropologia percebe que o objeto empírico que ela havia selecionado estava
simplesmente desaparecendo, pois as sociedades consideradas “primitivas” também
sofriam os impactos de desenvolvimentos de sociedades outras.
Como a ciência do homem sai de seu impasse, então? Segundo
Laplantine (2000, p.16) ela “afirma a especificidade de sua prática, não mais através
de um objeto empírico constituído (o selvagem, o camponês), mas através de uma
abordagem epistemológica constituinte”. A Antropologia cria um enfoque para
abordar o homem em sua totalidade, para estudá-lo em todas as sociedades e em
todas as épocas. Trata-se, de acordo com o autor, de um modo integrativo de “levar
em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade”. Para ele, a
principal vocação da ciência antropológica é “relacionar campos de investigação
freqüentemente separados”.
Como podemos trazer as observações de François Laplantine ao âmbito
dos estudos em Comunicação Social, sem operar uma simples transposição que
desconsidere a especificidade dessas duas áreas? Um movimento certamente
delicado, pois, no universo das humanidades
14
, sempre estamos longe de uma
harmonia no plano das idéias.
Braga (2004, p.220) afirma que, na Comunicação Social, um dos raros
pontos de consenso é a perspectiva largamente aceita de que somos ‘um campo de
estudos em construção’”. No entanto, ele se preocupa com algumas interpretações
que, na prática, possam surgir de tal proposição, a saber, ausência de rigor,
autorização para qualquer tipo de estudo, não formalização do campo. Por outro
lado, ele acredita que seja possível tirar uma conseqüência proativa da afirmação
segundo a qual seja fundamental refletir sobre os encaminhamentos requeridos para
que essa construção seja vista como processual (BRAGA, 2004, p.221).
Se a Antropologia, conforme nos ensina Laplantine (2000, p.15), se viu
“confrontada a uma crise de identidade”, com o desaparecimento do “universo dos
‘selvagens’”, a Comunicação Social teve que lidar com a complexificação cada vez
mais intensa dos media promovida pela sofisticação tecnológica.
Percebemos, portanto, que estamos diante de uma questão, a nosso ver,
inversa, isto é, se a Antropologia se considerava abalada pelo suposto “fim” de seu
objeto empírico, a Comunicação Social surgia como disciplina emergente, dada a
importância gradativa que os processos comunicacionais iam adquirindo no
Ocidente capitalista.
Por outro lado, “a comunicação tende a ser percebida como prática social
relegada aos interesses fragmentários do mercado ou, academicamente, como
subtema de disciplinas clássicas do pensamento social” (SODRÉ, 2003, p.308).
Braga (2004, p. 223, grifo do autor) ressalta, contudo, que “não se tratará
nunca do objeto empírico ou da situação de referência, mas de um modo específico
de problematizá-lo”, apontando a importância de tomar em consideração a
“possibilidade (ou não) de se constituir questionamentos produtivos de
conhecimento diferenciados dos questionamentos propostos por outras CHS
15
(ainda que partindo de mesmas bases teóricas)”.
Agora, adentraremos no terreno do que seja a interdisciplinaridade e de
suas conseqüências para a Comunicação Social. Compreendamos, inicialmente, o
14
No sentido de Geisteswissenchaften, ciências do Espírito, de acordo com os filósofos neo-
idealistas.
15
CHS é a abreviatura que o autor utiliza, para se referir, em seu artigo, às Ciências Humanas e
Sociais.
que ela significa. Barthes (1977, p.13), por exemplo, refletindo sobre as etapas de
evolução da Semiologia, relembra que ela começa estabelecendo um “léxico
mitológico”, “listas de símbolos”, mas que sua missão vai se tornando,
paulatinamente, “de ordem sintática (de quais articulações, de quais deslocamentos
é feito o tecido mítico de uma sociedade de alto consumo?)”. No texto em questão,
ele expressa o desejo de gerar um novo objeto, início de uma nova ciência. Em outro
momento, Barthes (1988, p.99) explica que
o interdisciplinar, de que tanto se fala, não está em confrontar disciplinas já
constituídas das quais, na realidade, nenhuma consente em abandonar-se.
Para se fazer interdisciplinaridade, não basta tomar um “assunto” (um tema)
e convocar em torno duas ou três ciências. A interdisciplinaridade consiste
em criar um objeto novo que não pertença a ninguém.
Martino (2003, p.35, grifo do autor) julga que “o estabelecimento da
disciplina Comunicação não está inviabilizado, a priori, pela complexidade das
relações disciplinares de seu objeto de estudo”. Ele enfatiza que o importante é
saber se ela pode criar um objetivo específico.
Braga (2004, p.229) coloca o acento na necessidade de formulação de
problemas, na construção de outras perguntas e hipóteses, defendendo a tese de
que é “a questão interacional (midiática ou não) que deve prevalecer”. Ele propõe
um estudo de interfaces, em que “o conhecimento avança pelo desenvolvimento de
percepção das incidências mútuas entre o campo da comunicação e os campos
sociais e/ou de conhecimentos outros”.
Voltemos à Antropologia. Ela certamente se desenvolveu e Laplantine
(2000, p.22-23), ao identificá-la a um saber sobre a alteridade, questiona se essa
ciência não seria o “discurso do Ocidente – e somente dele – ” sobre o outro, o
qual, ao mesmo tempo, “visa superar a irredutibilidade das culturas”. Avançando um
pouco mais, o autor (p.25) discorre sobre a dificuldade que se manifesta ao nível das
palavras, dificuldade essa reveladora da juventude de uma “disciplina, que não
sendo, como a física, uma ciência constituída, continua não tendo ainda optado
definitivamente pela sua própria designação”. Enquanto a etnografia reside na coleta
direta de fenômenos observados, a etnologia consiste na análise dos materiais
colhidos, sendo que a Antropologia expressa um nível de inteligibilidade que resulta
na construção de modelos que permitam a comparação das sociedades entre si.
Tékhne e episteme, técnica e conhecimento, entrelaçados, um como
complemento do outro, assim surge a Comunicação Social como profissão e
disciplina. O jornalista, o publicitário, o radialista, o profissional de relações públicas
e os especialistas em televisão e cinema precisam lidar com um cotidiano que exige
domínio técnico, mas que, simultaneamente, lhe traz outras exigências, no sentido
de elaborar, pela via da razão, um saber sobre esse domínio. Assim, se os meios de
comunicação surgem antes da reflexão a seu respeito, sua complexificação
progressiva cria a necessidade de se pensar acerca dos processos dos quais eles
são parte vital.
Novamente, uma situação, ao que tudo indica, invertida em relação ao
etnógrafo que, no início da constituição de sua disciplina, vai ao campo e se depara
com grupos sociais que ele qualifica como “selvagens”, com uma tecnologia
aparentemente rudimentar. Laplantine (2000, p.20) diz que “os antropólogos
começaram a se dedicar ao estudo das sociedades industriais avançadas apenas
muito recentemente”, sendo que as primeiras pesquisas abordaram inicialmente “os
aspectos ‘tradicionais’ das sociedades ‘não tradicionais’”.
Os comunicólogos, ao contrário, desde sempre, tiveram que lidar com
processos comunicacionais presentes em sociedades complexas e, no entendimento
de Braga (2004, p. 221), o campo se desenvolve pelas tendências da pesquisa
empírica, e não por decisões lógico-teóricas, oriundas da disciplina. O pesquisador
propõe, então, que
na fase atual interessa menos definir qual o objeto do campo (seja em
notação empírica, seja conceitual) e mais buscar problemas e questões que
pareçam relevantes ao campo (em formulações que não se limitem a copiar
as questões já habitualmente feitas em outras áreas de conhecimento). Isso
significa buscar explicitamente o que há de “comunicacional” no
questionamento.
Por sua vez, François Laplantine (2000, p. 164, grifo do autor) afirma, com
ponderação, que “o etnólogo contemporâneo é infinitamente mais modesto que seus
predecessores. Ele não procura atingir a natureza da arte, da religião, do
parentesco, nem em geral e, nem mesmo, em particular”. Segundo o autor, “o que
se compara hoje são costumes, comportamentos, instituições, não mais isolados de
seus contextos, e sim fazendo parte destes; são sistemas de relação”. Concluindo,
ele enfatiza que “os termos da comparação não podem ser a realidade dos fatos
empíricos em si, mas sistemas de relações que o pesquisador constrói, enquanto
hipóteses operatórias, a partir desses fatos”.
Em outro estudo, mais recente, Braga (2006, p.21) defende a idéia de que
(...) a abrangência dos processos midiáticos, na sociedade, não se esgota
nos subsistemas de produção e recepção. Esses dois ângulos da
midiatização da sociedade são fundados na já tradicional descrição do
processo de comunicação como uma relação entre emissor e receptor
(através de um “canal” – que seriam os meios de comunicação). Essa
descrição tem sido largamente criticada e pode ser considerar superada por
perspectivas processuais muito mais flexíveis e complexas. Entretanto,
continua estranhamente presente na percepção de senso comum:
emissores e receptores (mesmo quando, em situações de “interatividade”,
possam trocar seus papéis) parecem responder, separadamente ou em
conjunto, por todos os processos midiáticos existentes na sociedade.
José Luiz Braga (p.21, grifo do autor) aponta para a necessidade de
contrapor “à visão ‘informacional’ (unidirecional) uma posição decididamente
comunicacional”.
Destarte, levando em consideração os argumentos aqui expostos, nosso
próximo desafio será relacionar alguns aspectos da interação público-cinema,
durante os diversos momentos que pontuaram a história da Sétima Arte, a
processos comunicacionais que, a nosso ver, não existem descolados dos
processos informacionais.
Sublinhemos, antes de prosseguirmos nossa exposição, que a relação
entre informação e comunicação não deixa de suscitar debates diversos entre
cientistas sociais, comunicólogos e especialistas em Ciências da Informação.
Wolton (2004, p.149), por exemplo, afirma que “o mais difícil não é a
informação, mas a comunicação”. Discorrendo sobre a Internet, ele a vê como um
sistema informativo automatizado cujo sentido só pode emergir por meio da
comunicação, pois são os homens que integram “esses fluxos de informações em
suas comunicações”. Wolton (p.152) julga necessária a valorização do receptor, “de
cujas expectativas e aderência àquilo que lhe é proposto jamais se está certo”.
Figura-chave da Comunicação Social, o receptor nos faz considerar “a existência da
desigualdade de conhecimentos, de competências, mas também de interesses”.
Em outro trabalho, Dominique Wolton (2003) diz que a comunicação
mediada pelas novas tecnologias coloca na ordem do dia a discussão sobre a
competência na busca de informação e sobre o relacionamento com a alteridade.
Segundo o autor,
Em definitivo, se a comunicação se reduzisse a uma troca performática,
racional, rápida e livre de informações, não se falaria mais de “problemas de
comunicação”, nem de “incomunicabilidade”. O drama com os seres
humanos é que eles não se contentam com informações; eles são
portadores de emoções, nunca interpretam da mesma maneira as
informações e têm dificuldades, principalmente, em distinguir informação de
boatos. (...) Na oposição entre a velocidade da informação e o vagar da
comunicação encontra-se toda a questão de relacionamento com o outro
(WOLTON, 2003, p.134-135, grifos do autor).
Concluindo, Wolton (p.135, grifos do autor) alerta para a importância de
se refletir sobre o tipo de informação produzida pelos sistemas técnicos, já que não
há informação transparente. Nos contextos de livre acesso, evidencia-se o problema
da capacidade dos sujeitos de busca de informação, pois, “se não se tem a
competência para assimilar o aprendizado, os sistemas de informação e de
conhecimentos erguerão outros tantos muros intransponíveis”. A comunicação, no
que se denomina atualmente como sociedade informacional, exige um aparato
educacional condizente com a complexidade do conhecimento disponível aos seres
humanos neste século XXI. Como bem questiona Wolton (2003), de que adianta o
acesso à biblioteca do Congresso, se não se sabe o que buscar, se não se conhece
os Estados Unidos, se não se tem nenhuma relação com este universo e, pior ainda,
se não se sabe como lidar com as informações encontradas ao final da busca? Daí
resulta o papel fundamental do mediador, seja ele o professor, seja ele um
documentalista, profissões tão desvalorizadas em nosso continente.
Abordando o mesmo tema, Miège (2000) afirma que as divisões internas
às ciências da informação e da comunicação resistem ao tempo. Considera-se,
então, a existência de especialistas da informação jornalística e os da informação
profissional especializada que, por sua vez, não são tidos como pertencentes ao
âmbito da Comunicação Social. Nos anos 70 do século XX, a teoria da informação,
concebida como redução da incerteza, é vista como um capítulo de uma teoria geral
da comunicação que, esta sim, revelava-se mais rica por considerar as reações dos
receptores das mensagens em termos de feedback. Já as afirmações de Régis
Debray passam a ser compartilhadas por pesquisadores para os quais o pólo
comunicação levaria vantagem sobre o pólo informação, assim como o audiovisual
criaria uma ligação maior com a audiência em relação ao suporte impresso. Miège
(2000) não explicita o que Debray entende por ligação maior, no entanto, fica claro
que o proponente da midiologia coloca a comunicação em uma posição privilegiada
e dominante em relação à informação, como se elas pudessem existir isoladamente.
Debray considera que a participação em fatos jornalísticos gera pouquíssimo
aprendizado, pois, os meios de comunicação, concentrados nas mãos de grandes
grupos, privilegia a espetacularização dos acontecimentos.
Questionamos, então, se, no Brasil, os telejornais não estariam
incorporando características próprias do cinema e, por este motivo, não estariam se
aproximando, cada vez mais, dos produtos da indústria de entretenimento. E, se
falamos em cinema, não podemos nos esquecer da necessidade de discutirmos a
natureza do ficcional. No que tange à subjetividade, fato e narrativa, na perspectiva
da Psicanálise, são uma só coisa (SAFATLE, 2000a). Por outro lado, no que se
diferenciaria as informações disponibilizadas nos extras de DVDs das informações
do jornalismo especializado sobre cinema? O recurso à persuasão, não seria ele o
elo entre ambas? Nossa hipótese é que as fronteiras que separam esses universos
estão cada vez mais tênues. Não funcionaria a crítica de cinema como um estímulo
– ou muitas vezes como desestímulo – à locação e à aquisição de um DVD ou à
velha ida a uma sala de exibição de produtos da indústria cinematográfica? Informar
para promover, eis aqui, talvez, o esquema geral desses dois universos.
A informação especializada, diz Miège (2000) passa a ser estratégica
quando contribui para favorecer a inovação nas empresas, tanto no que tange aos
“procedimentos de fabricação, modalidades da gestão, organização do trabalho e
gerenciamento, quanto como para a promoção dos produtos”. Assim, ele considera
que o estabelecimento de uma oposição entre informação e comunicação resulta em
uma compreensão superficial de um fenômeno profundamente complexo. No
entanto, ele não problematiza os processos interacionais que, a nosso ver,
complementariam tal discussão.
Nossa tarefa, a partir de agora, será transpor esses questionamentos a
um veículo de comunicação de massa, a saber, o cinema, que, segundo Gardies
(1993, p.16, tradução nossa), se define, essencialmente, como imagem em
movimento.
3 COMUNICAÇÃO, CINEMA E PROCESSOS INTERACIONAIS
Para darmos continuidade à nossa dissertação e iniciarmos esta seção,
destacaremos algumas pontuações essenciais de especialistas europeus em
Imagem e Cinema, para, em seguida, refletirmos brevemente sobre a origem da
Sétima Arte e dos estudos na academia a esse respeito, bem como sobre os
processos interacionais engendrados pelos dispositivos cinematográficos.
Comecemos com Goliot-Lété & Vanoye (1992, tradução nossa) que, na
obra de referência Précis d’analyse filmique, discorrem sobre a diversidade de
abordagens para se proceder a uma análise fílmica. Mais do que em fornecer rígidas
grades de leitura, os autores se preocupam em colocar em evidência que o
fenômeno cinematográfico pode ser considerado de maneira distinta de acordo com
a atitude própria a cada démarche analítica. Uma afirmação que à primeira vista
pode até ser considerada evidente, mas, se atentarmos bem à mensagem que
Goliot-Lété & Vanoye (1992, tradução e grifos nossos) intencionam passar, podemos
dela extrair uma conclusão bastante simples, mas não menos relevante. Os
pesquisadores enfatizam, nas entrelinhas, que a complexidade do objeto fílmico não
permite, mas exige de nós o estabelecimento de uma perspectiva capaz de
propiciar uma determinada leitura que, longe de esgotar as possibilidades
interpretativas, desvela uma – e tão somente uma – face do fenômeno
cinematográfico. Perspectiva que só pode existir a partir de uma referência, o que
nos leva a explorar a riqueza semântica que o vocábulo francês repère encerra. No
Petit Larousse Illustré (1991, p.837, tradução adaptada de verbete de dicionário)
encontramos: marca ou objeto que permite orientar-se no espaço, localizar algo,
avaliar uma distância, uma medida, um valor, etc.; referencial; conjunto de
elementos do espaço que permitem a definição de um sistema de coordenadas.
Logo, nos estudos de Cinema, observamos que, a cada repère, com seus alcances
e limites, correspondem diferentes tipos de aproximação do objeto fílmico.
Em vista, então, dos distintos enquadramentos passíveis de serem
colocados em ação, destacam-se, no domínio da leitura da imagem, os trabalhos de
Martine Joly e, aqui, citamos o clássico Introduction à l’analyse de l’image (1994). No
caso em questão, temos o olhar de um pesquisador interessado em compreender,
por exemplo, como uma imagem – estática ou em movimento – , fruto da criatividade
de um ser humano, pode se tornar mensagem para um destinatário. Representação
e relação com a alteridade são, conseqüentemente, os conceitos que orientam essa
perspectiva.
Jacques Aumont (1994) também propõe questões como: o que é ver uma
imagem? Como ela representa o mundo real? Que critérios são necessários para
qualificá-la como artística? Como se dá a relação imagem-espectador?
A imagem também é central nos estudos psicanalíticos sobre cinema.
Lacoste (1996, p. 593-600) destaca a importância da problematização da
figurabilidade e considera o cinema “silencioso” um rico objeto de análise. As
comparações com o processo do sonho, por serem demasiadamente fáceis, são
secundarizadas pelo autor. Vejamos o que ele pontua acerca dessa ausência de
som que “privilegia a situação que faz dizer”.
Mesmo que o filme não-falado pareça-nos hoje duplamente mudo – e ainda
mais silencioso por já não haver nenhuma música para acompanhá-lo –,
devemos acrescentar a essa meia dúzia de estranhezas toda a riqueza do
ponto de vista desenvolvido por Alain Masson: “Nascido insonoro por
acidente, o cinema transformou seu mutismo numa necessidade artística
(...) o silêncio consumou uma vocação da imagem (...) foi realmente o
silêncio que fez do cinema uma arte.” Como notou Robert Desnos em 1923,
o problema não era tanto que o cinema fosse mudo, se o espectador não
era surdo. O cinema silencioso não era carente nem defeituoso – René
Clair, aliás, sustentou por muito tempo que o “cinema puro” deveria opor-se
às artes que participavam da fala –, e a ausência de sonoridades orientava
a criação, precisamente, para um trabalho de abstração realmente
considerável; o visível, evidentemente, não era apresentado como a meta
última da percepção, e, acreditando afastar-se sem prejuízo da
arbitrariedade do signo, a ponto de poder atingir um misticismo da língua
universal, o cinema silencioso escapava triunfalmente à escravidão da fala,
à dominação da língua. Não vamos imaginar, no entanto, que alguém possa
enganar-se sobre a estrutura absolutamente linguageira – senão lingüística
– da primeira expressão da arte cinematográfica. O contraste que podemos
sentir hoje nos faz perceber duplamente esse aspecto linguageiro da
imagem cinematográfica, sublinhando em silêncio a estrutura narrativa,
muito além das legendas intermediárias. (...) O movimento-tempo do cinema
mudo calcava no vazio a duração da sintaxe. Ela era colocada numa
expectativa constante, ao mesmo tempo que preenchia freneticamente esse
vazio com sinais de silêncio, fazendo o silêncio aparecer ante o olhar. (...) É
comum esquecermos, ao “aplicar” a psicanálise às imagens, que a
consideração da figurabilidade no psíquico é também uma forma de
negociação com a censura, e que a imagem artística não se deixa
desmaterializar como a imagem onírica. Ao utilizar imagens, temos que
recolocar repetidamente a questão da figurabilidade da imagem, e mais até.
O escritor Michel Chion (1990, tradução nossa) esclarece que os objetos
audiovisuais dão lugar a uma percepção específica, a audiovisão, que funciona
essencialmente por projeção e contaminação recíprocas do que se escuta sobre o
que se vê. Para Chion, esse processo é um ilusionismo, daí seu efeito de magia.
Embora enfoque tão somente a televisão e o video-clip, a pena desse escritor nos
aproxima do fenômeno cinematográfico pela via da explicação dos procedimentos
técnicos específicos ao audiovisual.
Enquanto Jost & Gaudreault (1994) focam sua atenção na narrativa
cinematográfica e seus desenvolvimentos, seja em filme mudo, seja em filme falado,
ou, então, em gêneros distintos, como o policial e a comédia, Sorlin (1992, tradução
nossa) coloca em relevo o aspecto interacional da imagem. Isso porque, para o
autor, cada produção audiovisual não se faz exclusivamente de sentidos e de
códigos, mas é endereçada à sensibilidade do público. Sorlin (1992, tradução e
grifos nossos) defende que as realizações audiovisuais se constituem como um
apelo aos sentidos. Destarte, a categoria axial para este autor é a interação, isto é, a
ação e influência recíprocas de, no mínimo, dois fenômenos ou duas pessoas.
Não foi à toa que destacamos a palavra “fenômenos”, já que estamos
falando de interação e não de interatividade, a qual implica troca de informações
entre emissor e receptor. Paulo Vaz, em sua reflexão sobre mediação e tecnologia,
deixa isto bem claro.
Nas teorias de maior vigência o conceito está marcado por uma idealização
e uma ausência. O diálogo é colocado como um ideal a partir do qual se
hierarquiza diferentes tecnologias. Quanto à ausência, raramente as teorias
apontam o vínculo necessário entre tecnologias interativas e a constituição
de mecanismos de rastreamento e constituição de banco de dados. Havia
um viés ideológico nas primeiras teorizações da interatividade. Como se
tratava de encontrar alternativas à passividade forçada dos meios de
comunicação de massa, só se pensava as possibilidades que o novo meio
trazia ao receptor; não havia preocupação em teorizar as possibilidades e
exigências lançadas ao antigo emissor. Podemos pensar, porém, que a
interatividade designa muito simplesmente toda forma de comunicação
diferente daquela própria aos meios de comunicação de massa, onde a
única atividade significativa do consumidor da informação é a recepção da
mensagem; o máximo de “interatividade” aí existente é a apropriação e
interpretação individualizada das mensagens. Contudo, a definição a ser
proposta não diz respeito à relação do usuário com a mensagem e sim com
o meio de comunicação. Neste caso, a interatividade ocorre quando há uma
dupla via de informações entre emissor e receptor (VAZ, 2004, p. 232, grifo
nosso).
Sabemos que, no pensamento comunicacional tradicional, os meios de
massa não são interatuantes. Emissor e receptor são tidos como entidades
empíricas e, a situação com a qual se estabelece analogia, é aquela onde se realiza
a comunicação interpessoal. No que tange a relação entre público e cinema, é fato
indiscutível que as influências não se dão em tempo real, mas ao longo do tempo.
Ela implica, a nosso ver, em instâncias abstratas instauradas pela enunciação
cinematográfica, a saber, o sujeito que enuncia e o sujeito que participa dessa
enunciação. Instâncias essas que unicamente representam, de acordo com
Mukar4vskϖ (1997, p.270), a possibilidade de projeções na estrutura interna da obra.
A influência recíproca, no caso do cinema, não significa, obviamente, influência
simultânea. Um filme, quando exibido, já está pronto e não será modificado, a não
ser que sofra uma represália que resulte em algum tipo de censura. Mas, a influência
do público, sua aceitação, por exemplo, pode gerar uma continuação da obra em um
momento posterior. Já em relação ao DVD, essa mesma influência pode dar
margem à elaboração de uma segunda edição, com informações inéditas em relação
ao DVD anteriormente produzido. Quanto às influências que um filme pode provocar
na platéia, elas dizem respeito à ressonância das imagens em cada um e na cultura
como um todo.
O ponto de vista de Sorlin (1992) nos incita, por conseguinte, a percorrer
algumas etapas essenciais da história da Sétima Arte de modo a verificar que tipos
de interação
16
foram sendo estabelecidos entre público consumidor e produtos da
indústria cinematográfica. Acreditamos, em consonância com as idéias de Jacques
Cosnier (2004, p.284), que a tarefa dos pesquisadores em interação seja a de
“reconstituir as partituras que subjazem à execução das interações particulares e,
além disso, explicitar as regras gerais de uma ‘harmonia’ conversacional”.
A título de esclarecimento, estejamos cientes, contudo, que a
respeitabilidade acadêmica dos estudos sobre história do cinema só teve início por
volta dos anos sessenta do século XX, sendo que, até a década de noventa do
mesmo século, essa esfera do saber era concebida como pertencente a outros
domínios como a história cultural, por exemplo, e não à história da Comunicação
Social. Isso porque, para o universo da academia, o consumo das produções
cinematográficas era tido como um fenômeno depreciável, seja em relação à leitura
16
Insistimos que a palavra “interação” seja lida em nosso texto de forma genérica e não com a
acepção de troca de informações.
de livros clássicos, ou a ida ao teatro e a concertos de música erudita. O que não
significa que não existiram investigações rigorosas e científicas sobre cinema. Elas
existiam e desde os períodos iniciais do século XX (1908), estando os interesses
voltados não tanto à cinematografia propriamente dita, mas a sua capacidade de
persuasão e sua influência nos comportamentos das pessoas. Com o surgimento da
televisão – e com todas as críticas que o novo meio recebeu, muitas das quais
também aplicadas ao cinema de então – e com a abertura do conceito de cultura,
mudou-se a consideração acadêmica em relação aos produtos cinematográficos
(DIAZ & ALFFOND, 2001, p.78-79, grifos dos autores, tradução nossa, adaptada do
original).
Vejamos alguns critérios mais correntes de periodização da história do
cinema. Há intelectuais, como Laurent Creton
17
, que se apóiam em aspectos
políticos, sociais e econômicos, ao passo que outros autores, como Laurent
Mannoni
18
privilegiam os vários desenvolvimentos tecnológicos e suas incidências
no modo de produção cinematográfica. As conseqüências de tais desenvolvimentos
são importantíssimas, pois dizem respeito, por exemplo, a momentos cruciais da
história da Sétima Arte, como a passagem do curta ao longa metragem, do cinema
mudo ao cinema sonoro e falado, ou então, da imagem preta e branca à imagem
colorida. Duas orientações gerais que podem certamente aparecer em combinação.
Mannoni (1994, tradução nossa), traçando uma arqueologia da indústria
cinematográfica, aponta a tecnologia fotográfica de Daguerre como um passo capital
para o surgimento do cinema, o qual, a partir de Thomas Edison, no final do século
XIX, transforma-se em uma realidade posta em circulação para a fruição da
audiência por meio do kinetoscópio. Tal máquina produzia o que o autor denomina
como “filmes de buraco de fechadura”. A interação do espectador com o
kinetoscópio, se bem que realizada em espaços públicos, dava-se de maneira
individualizada, exigindo do usuário poucas habilidades.
De acordo com De Fleur & Ball-Rokeach (1993, p.90), em 1895, um
estabelecimento denominado Cinematographe foi inaugurado em Paris. Com uma
simples nota de um franco no bolso, a platéia podia assistir de pé a filmes curtos.
17
Cf. CRETON, Laurent. Économie du cinéma: perspectives stratégiques. Paris: Éditions Nathan,
1995.
18
Cf. MANNONI, Laurent. Le grand art de la lumière et de l’ombre: archéologie du cinéma. Paris:
Éditions Nathan, 1994.
Figura 1 La sortie de l’usine Lumière, 1985, primeiro filme da história.
Fonte http://www.memo.fr/article.asp?ID=THE_ART_050
As primeiras películas dos irmãos Lumière
19
duravam apenas um minuto
e mostravam cenas da vida cotidiana da cidade de Lyon. O pouco tempo de exibição
dessas imagens em movimento já era suficiente para engendrar uma interação entre
o corpo fílmico e os corpos da audiência. Entusiasmo e encantamento diante do
extra-ordinário eram reações típicas da platéia desse período da história do cinema.
Desde tal época, a apreciação do público e a estrutura da “indústria”
nascente influenciavam a seleção de conteúdos pelos produtores. Por volta do ano
de 1900, indivíduos empreendedores começaram a alugar lojas desocupadas e a
mobiliá-las com bancos ou cadeiras para projeção de filme. Na década de 20, o
cinema já se consolidava como forma de entretenimento. A novidade de admirar
imagens em movimento cedia lugar à preferência por filmes mais longos e com
narrativa estruturada. As demandas dos espectadores se transformavam e os
produtores expandiam seus negócios no intuito de atendê-las. As humildes
acomodações de telespectadores eram substituídas por salas cada vez mais
decoradas. À estética fílmica somava-se à estética dos locais de exibição. Era o
auge de Hollywood. Após a Primeira Grande Guerra, o cinema torna-se um veículo
de significado mundial (DE FLEUR & BALL-ROKEACH, 1993, p.92). Os conteúdos
imagéticos eram, a partir de então, ofertados a uma coletividade, que os com-
19
Cf. informação extraída do site: http://www.memo.fr/article.asp?ID=THE_ART_050
Acesso em: 10 fev.2008.
partilhava no mesmo tempo e espaço. Mas, o que isso significa em termos de
comunicação social?
Algarra (2003, tradução nossa) nos fornece uma pista interessante, a
partir da qual podemos tentar construir uma possível resposta para tal questão.
Partindo da premissa da comunicação enquanto ação humana e social, o autor
afirma que, entre dois ou mais co-partícipes do processo comunicacional, é
estabelecida uma relação que tem como finalidade a compreensão mútua e do
conjunto de conhecimentos compartilhados. Sempre que há comunicação, há um
partícipe que expressa (ou se expressa) e outro ou outros que interpretam o que foi
expresso. A comunicação se dá quando o que se expressa é compreendido
20
,
quando se supera o asilamento e se produz integração. O tempo próprio da
comunicação é o do presente interior, porque a expressão e a interpretação dos co-
partícipes coincidem somente na simultaneidade das consciências daqueles que
atuam, independentemente do tempo cronológico.
Verificamos, nas idéias de Algarra (2003), um ponto que gostaríamos de
destacar em nosso trabalho, a saber, a centralidade do ato de compartilhar
conhecimentos. O cinema, tal como o experenciamos na atualidade, é fonte de
informação e conhecimento do mundo. Nesse sentido, podemos questionar, com
muito cuidado, se, no período do kinetoscópio, a relação homem-cinema consistia,
efetivamente, em uma interação comunicacional ou, simplesmente, em uma fruição
de imagens. Wolton (2003, p. 41-42), ao abordar o estatuto da imagem, no campo
da Comunicação Social, avalia que não basta isolá-la para se estabelecer uma
lógica do conhecimento a seu respeito. Muito pelo contrário, há que se relativizá-la,
pois ela está inscrita em um contexto, sendo seu receptor crítico. Além disso, o autor
pontua que “não há imagem sem imaginário”, visto que “entre a intenção dos autores
e a dos receptores não operam somente os diferentes sistemas de interpretação,
(...),mas, igualmente todos os imaginários”.
Continuando nessa linha de raciocínio, qual teria sido a função social do
kinetoscópio?
Ampliemos nosso foco de análise. Nada melhor do que Antonio Candido
(2002), intelectual que deixou sua marca indelével na academia brasileira, para nos
auxiliar a aprofundar as questões que levantamos anteriormente.
20
Uma concepção de comunicação completamente antagônica à de Lacan. Veremos depois.
Em seu campo específico de atuação, ele nos diz que, provavelmente, um
certo tipo de função psicológica seja a primeira coisa que nos ocorra quando
pensamos no papel da literatura. A produção e a fruição do objeto literário se
baseariam, portanto, em uma espécie de necessidade universal de ficção e de
fantasia, que decerto é co-extensiva ao homem, pois aparece, invariavelmente, em
sua vida, tanto individual, como coletiva, ao lado da satisfação das necessidades
mais elementares. E isto ocorre na criança e no adulto, no letrado e no analfabeto,
na tribo e na cidade. A literatura propriamente dita é uma das modalidades que
funcionam como resposta a essa necessidade universal, cujas formas mais simples
e espontâneas de satisfação quiçá sejam a anedota, a advinha, o trocadilho, o rifão.
Em nível de complexidade maior, surgem as narrativas populares, os cantos
folclóricos, as lendas, os mitos. Se, inicialmente, em nosso ciclo de civilização, tudo
isso culminou, de certo modo, no livro, no jornal e na revista, mais recentemente,
assistimos ao auge das modalidades vinculadas à comunicação pela imagem e à
redefinição da comunicação oral, propiciada pela técnica. Logo, por via oral ou
visual; sob formas curtas e elementares, ou sob formas extensas e mais
sofisticadas, a necessidade de ficção se manifesta a cada instante, o que justifica o
interesse pela função das formas de sistematizar a fantasia. Mas, a fantasia quase
nunca é pura, já que se refere constantemente a alguma realidade (CANDIDO, 2002,
p.80-81).
No campo da Psicanálise, Maria Rita Kehl (2003a) é enfática: nós,
humanos, nunca estamos mergulhados no Real, tal como Lacan o concebe. O Real
é para seres da natureza. A realidade humana está sempre parcialmente encoberta
por um véu imaginário, sendo que, fora dele, seria impossível viver. Os romancistas
do século XIX, que se consagraram como “realistas”, já demonstraram que a
realidade não é feita de “fatos”, mas de linguagem. Isso porque, na perspectiva
lacaniana, nosso senso de realidade não se estrutura a partir dos eventos e
acidentes que acontecem em nosso cotidiano, nem a partir de nossa experiência
direta, sensível com as coisas do mundo; é o modo como a cultura interpreta e
valoriza os eventos que compõe a realidade humana que é basicamente social,
sendo que o espetáculo faz parte dela.
Vejamos em profundidade a teorização do imaginário presente na
Psicanálise lacaniana.
Um único homem, Lacan, inspirando-se nas ciências de seu tempo – a
lingüística, a antropologia estrutural e a matemática –, revê a obra de Freud
com uma nova lente e descobre implícitos nela três registros heterogêneos
que constituem o aparelho psíquico: R.S.I. A nomeação desses registros
não só fornece um enorme alcance às teses freudianas, mas também
permite a compreensão e o enriquecimento dos conceitos. (...) Para Lacan,
há três grandes segmentos na obra de Freud que podem ser incluídos
nessas três instâncias. O simbólico corresponde às relações entre
inconsciente e linguagem, demonstradas, principalmente, nos textos sobre
os sonhos, os chistes e a psicopatologia da vida cotidiana, os quais são
considerados por Lacan textos “canônicos em matéria de inconsciente”. O
imaginário compreende toda a abordagem freudiana sobre o narcisismo,
introduzida desde 1911, inicialmente no Caso Schreber, depois em “Sobre o
Narcisismo: uma introdução”, e em “Luto e melancolia”. O real está ligado
àquele segmento voltado às questões da diferença sexual – abordadas
desde Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, “As pulsões e suas
vicissitudes” e nos textos em que interroga o feminino e o que quer uma
mulher – introduzidos em 1920, em Mais-além do princípio do prazer e
retomados em inúmeros artigos, tais como “O problema econômico do
masoquismo” e “O mal-estar na cultura”. (...) O real é o que está fora do
simbólico, sendo por isso mesmo definido como “o impossível de ser
simbolizado”. O imaginário é tudo o que diz respeito à imagem do corpo
sem a mediação da palavra, reduzindo as relações humanas à
especularidade, o que faz com que sejam anulados os limites e as
diferenças entre o sujeito e o outro como semelhante. No imaginário reina a
lei do transitivismo, onde o eu se torna sinônimo do outro. O caráter de
univocidade do imaginário elimina a ambigüidade, a polissemia e o
equívoco, marcas indeléveis do simbólico. As definições mais simples dos
três registros e, ao mesmo tempo, capazes de reunir as concepções mais
avançadas de Freud e Lacan, devem ser elaboradas em relação com o
sentido. O real é da ordem do não-sentido ou não-senso radical. Lacan dirá
que ele é o sentido em branco, a ausência de sentido, ou até mesmo “o
impensável”. O simbólico é do campo do duplo sentido. Nele o equívoco e o
mal-entendido formigam. O imaginário é o sentido unívoco. Tais definições
permitem ver que imaginário e real são, propriamente, um o avesso do
outro, enquanto que o simbólico é uma verdadeira tentativa de articulação
entre o real e o imaginário (JORGE & FERREIRA, 2005, p. 30-36).
Jacques-Alain Miller (2005, p.7) explica que “’o simbólico, o imaginário e o
real’ precede imediatamente a redação, durante o verão [de 1953], do relatório de
Roma sobre ‘Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise’”, o qual,
segundo o autor, constituiria um marco “no início público do ‘ensino de Lacan’”.
Assim, a conferência dá lugar à apresentação temática inaugural da famosa tríade
que dará consistência à elaboração lacaniana ao longo das três décadas
subseqüentes, tornando-se seu objeto essencial, não apenas conceitual, mas
matemático e material, sob a forma do nó borromeano e seus derivados.
Nasio (1995, p.19), ao questionar o que é a dimensão imaginária em
Lacan, afirma que se trata da dimensão que se estende entre o eu e o mundo das
imagens. Contudo, o eu, diz ele (p.21), não acolhe, não recebe, não percebe todas
as imagens. O eu percebe imagens pregnantes, que são aquelas em que o eu se
reconhece, que adquirem sentido para essa instância psíquica.
O eu percebe todas as formas imaginárias, sejam elas sonoras, tácteis ou,
sobretudo, visuais, em que se reconhece. Reconhecer-se não quer dizer
que “isso é o mesmo que eu”, mas que esse objeto desperta prontamente
um sentido ligado ao eu. E sentido quer dizer: ajustar-me à imagem desse
objeto, reconhecer na imagem desse objeto algo que está ligado a minha
história, a minha impressão, a minha sensação (NASIO, 1995, p.22).
O Real, na concepção de Lacan (2005, p.45), é “ou a totalidade ou o
instante esvanecido. Na experiência analítica, para o sujeito, é sempre o choque
com alguma coisa, por exemplo, com o silêncio do analista”. Em “O Seminário, livro
17”, ele (1992, p. 173) diz que é no plano do impossível que sua teoria define o que
é Real.
Vejamos, agora, a diferença entre o Real e a realidade.
A realidade é o que acontece, o que acontece efetivamente. Melhor, a
realidade é o lugar onde isso muda, onde isso se transforma, se modifica.
(...) É com relação a essa realidade que vai se colocar a diferença com o
Real como aquilo que não muda. Mas efetividade não quer dizer
materialidade. A psicanálise nos demonstra que os efeitos mais decisivos na
história de um sujeito podem ser produzidos por causas não materiais, nem
tangíveis, nem aparentemente externas. Para nós, há duas ordens de
determinações fundamentais da realidade: o simbólico e o imaginário. Direi
que, até nova ordem, esses são os dois tipos de causas que produzem
efeitos: palavras e imagens. Isto quer dizer que, afinal, a psicanálise pensa
que o que produz um efeito é um significante, ou uma imagem. (...) Estas
duas determinações, simbólico e imaginário, vão constituir como uma
montagem que vai definir a realidade. A realidade efetiva é finalmente como
uma montagem da dimensão imaginária e da dimensão simbólica. (...) Na
dimensão imaginária, a personagem principal é a libido. Toda vez que se
ouve falar de imaginário, deve-se pensar libido, e não imagem. Ou imagem,
mas tão-somente como um meio para que a libido circule. Quando digo isso
é para frisar mais ainda que no imaginário não se trata de espelho. Como
disse no ano passado, creio que a intervenção do espelho na teoria de
Lacan foi mais prejudicial do que útil, pois se acredita que toda a questão se
passa com o espelho. No imaginário, as imagens se refletem e se refratam
no corpo o mais opaco do outro que temos frente a nós. E não precisamos
nem do espelho nem também dos olhos: um cego vive absolutamente na
dimensão imaginária sem espelho e sem ver o outro. Basta se sentir visto. E
ele se sente (NASIO, 1995, p.14-15).
Assim, de acordo com Guimarães (2001, p. 104), na fenomenologia de
Merleau-Ponty “o que era ‘somos olhados’ pelo mundo onividente”, em Lacan “revira
no olhar como um dos objetos pulsionais inscrito no campo do Outro e, nesta
medida, se define como ‘ser olhado’”.
Kehl (2003a) afirma que nenhuma sociedade seria capaz de sobreviver
sem sua produção imaginária. Podemos cogitar, então, que o kinetoscópio consistia
em um aparato que respondia a essa necessidade humana de ficção. A projeção em
tela, promovendo a partilha de imagens, deu visibilidade a essa necessidade coletiva
que, no entanto, só podia ser satisfeita de maneira individualizada por ocasião do
surgimento do kinetoscópio. Ele era a única forma possível, na época, de produzir
“espetáculo”. Contudo, Jacques Rancière (2005, p.47-48) nos alerta para um sutil –
e importante – detalhe, quando o assunto diz respeito ao que ele denomina de “artes
mecânicas”, a partir da aproximação de um paradigma científico a um estético. Este
filósofo nos explica que, para que um dado modo de fazer técnico – um uso das
palavras ou da câmera – seja qualificado como pertencendo à arte, é preciso, antes
de tudo, que seu tema o seja. Contrário à tese de Benjamin, a qual supõe que as
artes mecânicas induziriam, enquanto artes mecânicas, uma modificação de
paradigma artístico e uma nova relação da arte com seus temas (p.45, grifos do
autor), Rancière explica que a revolução técnica sucede a revolução estética. Esta é
pictural e literária, antes de ser fotográfica ou cinematográfica. Assim, no seu
entender, para que as artes mecânicas adquiram estatuto artístico, elas devem ser
praticadas e reconhecidas como outra coisa, e não como técnicas de reprodução e
difusão. O filósofo (p.45-46), declara-se, portanto, avesso a uma das teses mestras
do modernismo: “a que vincula a diferença das artes à diferença de suas condições
técnicas ou de seu suporte ou midium específico”.
Para um comunicólogo, no entanto, levar em consideração a dimensão
técnica de uma determinada mídia e a qualidade artística de seus produtos, sem
resvalar em determinismos simplistas, é fundamental. É por isso que, a partir de
agora, voltaremos nosso olhar ao surgimento de um aparato que permitiu, não
somente a reprodução de imagens, mas também sua gravação em âmbito
doméstico: o videocassete, que reorganizou os hábitos cotidianos da maioria das
famílias. A partir dele, criou-se um mercado de locação de filmes, gerador de uma
nova relação, inclusive em termos econômicos, entre as audiências e os produtos
cinematográficos. Ao contrário das salas de cinema, que exigem de cada um seu
próprio ingresso para o acesso ao filme, exibido em uma determinada temporada, as
locadoras de vídeos permitem que vários sujeitos assistam a uma mesma obra,
várias vezes, em um mesmo período, pois o valor é cobrado por locação e não por
pessoa. O horário de exibição não precisa ser aquele decidido pela sala, pois quem
escolhe o “melhor” horário é o espectador. Filmes antigos podem ser lançados por
empresas especializadas, o que amplia o acesso de novas gerações a sucessos de
outras épocas. No que tange à relação com a televisão, o telespectador finalmente
pode se “libertar”, mesmo que parcialmente, dos horários das grades de
programação.
Todas essas colocações já foram repetidas exaustivamente e se tornaram
lugar comum no campo da Comunicação. Todavia, elas se fazem necessárias para
que possamos dar prosseguimento a nossa argumentação. Continuemos, então.
As pesquisas empreendidas por Nestor Garcia Canclini (1995) na cidade
do México demonstraram que, nesta importante capital da América Latina, a
inserção do videocassete no cotidiano das famílias conduziu a uma intensificação da
reclusão na cultura doméstica e a perda de espaço das salas de cinema. Em nosso
continente, especificamente, esse fenômeno se agrava com a falta de incentivo dado
à cultura pelos órgãos governamentais, e a quase ausência de espetáculos com
ingresso gratuito, com os baixos salários pagos à população e, conseqüentemente,
com o diminuto orçamento familiar destinado ao lazer em espaços públicos.
Somadas a todos esses fatores, a violência urbana e as grandes distâncias
existentes entre os centros de entretenimento e os bairros residenciais, com toda a
ineficiência dos meios de transporte municipais, convidam ao recolhimento na esfera
familiar.
A interrogação fundamental de Canclini (p.221), que incide na interação
público e cinema, é a seguinte:
(...) em que medida [a] variedade de interesses será levada em conta pelas
políticas de produção e distribuição dos filmes, inclusive quando não forem
dos mais rentáveis? É difícil que sem um papel mais ativo do poder público
na definição das regras de uso e circulação do cinema (...) se possa
promover um cinema de qualidade que sirva também para as salas e espere
algo mais que o simples aumento dos lucros. Cinema para o público ou para
os empresários? Esta é uma opção excludente?
Na atualidade, o DVD, ao se beneficiar da via traçada pela tecnologia que
possibilitou o laserdisc, já se encontra em condições técnicas de rivalizar com as
salas de cinema. Isso, não só porque hoje o público abastado tem a possibilidade de
adquirir equipamentos de exibição de imagens similares aos encontrados nos
melhores recintos destinados à difusão das produções da Sétima Arte, mas,
principalmente, pelos recursos informativos contidos nos pacotes oferecidos aos
cinéfilos. Nesse sentido, os extras fazem a diferença.
Na presente dissertação, trabalhamos com a hipótese de que tais
recursos informativos, se bem que colaboram para a exibição de novos ângulos de
uma mesma obra, são sustentados pelo Discurso do Capitalista, cujas
características explicitaremos na próxima seção. Tal sustentação, viabilizada pela
arquitetura do produto midiático, a qual privilegia uma forma específica de
gerenciamento da informação na rubrica dos extras, faria parte, a nosso ver, de uma
estratégia de marketing que se apóia na qualificação dos filmes como parte de um
universo denominado “cult”.
A grande perenidade em matéria de arquivo, dada pelo suporte digital,
torna-se, também, um incentivo aos colecionadores. É evidente que a figura do
emissor enquanto um colecionador surgiu com o vídeo, pois, antes dele, a relação
do cinéfilo com o objeto fílmico não podia se dar por meio de sua posse. O que
queremos enfatizar, contudo, é que o suporte digital encorajou ainda mais o ter, na
medida em que suas qualidades técnicas pressupõem a longa durabilidade do
conteúdo nele arquivado.
Não foi nosso foco de pesquisa o consumo cultural, mas não podemos
negar que um filme em formato de DVD é fruto de uma indústria de entretenimento
e, que ele faz parte, no Brasil, de um processo de modernização tecnológica restrito
a minorias.
Em relação ao tema com o qual estamos lidando, essa modernização
permite a preservação de um patrimônio cultural. No Brasil, todavia, a falta de
acesso à cultura, mesmo em outros suportes, como o livro, por exemplo, é um
problema secular. Por esse motivo, consideramos ingênua a atitude de colocar o
foco da discussão na questão da modernização tecnológica quando, o que estaria
efetivamente em jogo, em nossa opinião, são, de modo geral, as políticas públicas
de uma nação. Também não compactuamos com posturas intransigentes que se
limitam a emitir juízos de valor negativos a respeito dos meios de comunicação e da
modernização que eles representam. Isso porque, a nosso ver, as mais diversas
formas nas quais o radicalismo pode se manifestar não permitem atingir a
radicalidade dos fenômenos comunicacionais.
Mas há também os otimistas, cujas avaliações não deixam de ser
interessantes. Thompson (1995, p.296, grifo nosso), por exemplo, vê no
aparecimento de novos meios técnicos a possibilidade de formas outras de interação
social, com a criação de novos focos e novas situações que abrem brechas para a
reestruturação tanto de relações já existentes, como de instituições e organizações
das quais elas fazem parte. Para Thompson (p.297-298, grifos do autor) os meios
facilitam a interação através do tempo e do espaço e modificam a maneira como as
pessoas agem para os outros e em resposta aos outros, além de alterarem as
formas como os sujeitos agem e interagem nas esferas da vida cotidiana em que a
recepção das mensagens mediadas por meios tornou-se uma atividade rotineira.
Que instrumento é mais eficiente para ficcionar diariamente a vida social
do que a televisão? A pergunta é de Maria Rita Kehl (2003a). Enquanto nos séculos
XVII e XVIII as cortes absolutistas faziam uso de recursos espetaculares para
impressionar a plebe, hoje são as imagens que, mais próximas da experiência
sensível do que do entendimento intelectual, tem o poder de seduzir e produzir um
efeito de real. O problema, na visão da autora, é que a ficção política adaptada à
cultura de massa sofreu um profundo empobrecimento estético no século XXI.
Preferimos desenvolver nossa análise de forma a abordar o produto
midiático visto em si, mas, também, sem desconsiderar os fatores de divulgação
responsáveis pela instauração de uma nova relação entre público e filmes em DVD.
O sistema triádico formado pelos produtores, consumidores e a informação
“traduzida” em extras dá lugar a um tipo de comunicação em que o bem simbólico,
apesar de conservar seu valor estético, quando o tem, transforma-se em mercadoria
pela ação do Discurso do Capitalista.
Explicitemos, então, o campo teórico no qual tentaremos demonstrar
como um produto midiático faz apelo a seu destinatário a partir de fragmentos de
informações que se articulam em um mesmo espaço digital. O campo em questão é
o campo freudiano, re-inaugurado por Jacques Lacan.
4 A PSICANÁLISE
Philipe Julien expressa seu testemunho diante da monumentalidade da
obra de Freud. Ele nos parece interessante para introduzirmos a natureza da
pesquisa em psicanálise, sua especificidade e os cuidados que devemos ter na
transposição de conceitos dessa área à Comunicação Social, pois, conforme nos
alerta José Luiz Braga, a nossa tarefa, em contato com outras teorias, é extrair
questões pertinentes a nosso próprio campo para fazê-lo evoluir.
Vejamos, então, o que nos participa o psicanalista francês
Há uma maneira de ler Freud que consiste em lhe formular nossas próprias
perguntas. Assim, supomos nele um saber e nele esperamos encontrar uma
resposta. Esse método de leitura decerto não é inútil, caso um dia nos leve
a esbarrar em seus limites e a nos despertar... para uma outra leitura! Freud
escreveu longamente para nos dizer de suas próprias questões. Claro,
comunicou-nos descobertas absolutamente decisivas, mas o fez, em cada
ocasião, para nos designar seu ponto de resistência, para nos apontar o
ponto onde tropeçara, ali mesmo onde se interrogava. Não será essa sua
herança? Fazer-nos seguir um certo caminho, para enfim podermos dizer a
nós mesmos qual é a incerteza até então inédita de uma nova perplexidade
(JULIEN, 1996, p.21).
Mezan (1998, p. XIV) vê nos textos freudianos “uma provocação e um
desafio”:
Provocação pela radical novidade do que dizem, desafio pela complexidade
e sutileza como que o novo campo é desbravado e mapeado, resultando
num conhecimento que “perturba a paz do mundo e o sono dos homens”. A
provocação freudiana se estende a todos os domínios tradicionalmente
sobrevoados pelo pássaro de Minerva. A Epistemologia, por exemplo, é
obrigada a repensar o problema da objetividade do conhecimento a partir do
instante em que mostra o papel do desejo na constituição da racionalidade.
O discípulo freudiano mais eminente, Jacques Lacan (2005, p.11), pontua
com grande ênfase que “não há apreensão mais completa da realidade humana que
a feita pela experiência freudiana, e que não podemos deixar de retornar às fontes e
apreender esses textos em todos os sentidos da palavra”. Neles, diz Lacan (p.11-
12), a “teoria da psicanálise e, ao mesmo tempo, sua técnica, (...) não formam senão
uma única e mesma coisa”.
Não seria esse o esforço de qualquer empreendimento intelectual no
campo da Comunicação Social, a conjugação de teoria e técnica? Como formar o
futuro jornalista ou, então, o especialista em rádio e TV sem esse entrelaçamento?
Aí está um aspecto fundamental destacado por Châtelet (1994, p.17) que afirma
que, na palavra grega tékhne, há simultaneamente a idéia de técnica, de um saber
aplicado, e a idéia de arte, de invenção, de produção original.
Prossigamos com os psicanalistas.
Miller (2002, p.12) nos diz que, atualmente, o nome de Lacan está
diretamente vinculado ao de Sigmund Freud e que não foi seu objetivo reinventar a
psicanálise. Lacan colocou o início de seu ensino sob o signo de um retorno a
Freud, formulando uma questão crítica: quais são as condições de possibilidade da
psicanálise? Ao que ele respondeu: “a psicanálise só é possível se, e somente se, o
inconsciente está estruturado como uma linguagem”.
A investigação do inconsciente empreendida por Lacan quer deixar claro
que, isso de que Freud fala, não consiste em uma entidade abstrata ou metafísica, e
tampouco nos remete ao registro de uma entidade biológica ou de algum substrato
psíquico mensurável e quantificável. Os processos inconscientes circunscritos por
Freud encontram-se, desde o início de sua descoberta, submetidos à dimensão
psíquica da linguagem (DOR, 1989, p.11).
Segundo André (1998, p.17-18)
Convém, com efeito, perceber a profunda comunidade e a continuidade que
ligam as obras de Freud e de Lacan – a tal ponto que se poderia afirmar
que de um a outro a mesma obra tem prosseguimento. É isso, ao menos, o
que aparece, se tomarmos essas obras pelo que são: elaborações, “obras
em curso”, em nenhum caso trabalhos acabados. O discurso de Freud,
como o de Lacan, não pode se reduzir a uma série de enunciados a
considerar como “verdadeiros” – ainda que provisoriamente. Seu verdadeiro
ensinamento consiste no deslocamento, na deriva que conheceram suas
elaborações ao longo de tudo aquilo que, finalmente, constitui a obra. É,
pois, desse movimento e do que esse movimento tenta delimitar ou
encerrar, que é possível dar conta, se quisermos atribuir todo o seu valor
aos enunciados que o definem.
De acordo com Nogueira (2004, p.103), “Freud era um cientista, um
neurologista, que estava muito imbuído da ciência moderna. Ele estava preocupado
justamente em fazer da Psicanálise uma ciência”.
Aproximando Filosofia e Psicanálise, Fulgêncio (2004, p.1-2) demonstra
como Freud se pauta no sistema kantiano buscando “manter-se num campo de
trabalho próprio ao cientista, onde o que o guia são os problemas empíricos que seu
aparato conceitual possibilita enunciar e resolver”. Ele afirma também que “são os
problemas clínicos que impulsionam o desenvolvimento da metapsicologia, e não as
questões teóricas que recairiam sobre os conceitos fundamentais que a psicanálise
postula”.
Na construção de um caso, diz Nogueira (2004, p.97), podemos
diferenciar níveis em que o primeiro caberia a descrição e o segundo a
conceituação. No famoso caso Dora, comenta o autor, Freud alternava a descrição
da relação clínica mantida com ela com a “conceituação de suas intervenções e com
a reflexão sobre o que tinha ocorrido”.
Assim, Freud foi investigando e construindo uma teoria para explicar as
suas descrições. Então, os analistas, hoje em dia, têm um conjunto teórico
conceitual para dar conta da relação analítica. Isso é universal, isso se
aplica a qualquer ser falante. Mas não sabemos, de antemão, como é que
aquele cliente Y vai realizar essa conceituação. Não estamos aplicando a
ele esse conceito. O que estamos fazendo é convidando-o a associar
livremente, mas não sabemos, de antemão, como é que isso vai ser feito,
porque sua associação é singular. O que sabemos é que ele vai repetir, de
alguma forma, essas estruturas universais conceitualizadas por Freud e
outros analistas (ibid.)”.
Se lembrarmos bem, uma postura similar é defendida por José Luiz Braga
no campo da Comunicação Social. O olhar do pesquisador sendo direcionado por
questões que pedem respostas e soluções prementes para que haja avanço do
saber em nossa área.
Na reflexão de Fulgêncio (2004), “há uma relação estrutural entre as
posições filosóficas de Kant e o pensamento epistemológico de Freud aplicado à
psicanálise enquanto prática própria às ciências da natureza”.
Kant se encontrava, quando veio ao mundo filosófico, por sorte e pelo gênio
de sua imensa capacidade filosófica, situado no cruzamento de três grandes
correntes ideológicas que sulcavam o século XVIII. Estas três grandes
correntes filosóficas eram, de uma parte, o racionalismo de Leibniz, (...) de
outra parte o empirismo de Hume, (...) e em terceiro lugar, a ciência positiva
físico-matemática que Newton acabava de estabelecer. Na confluência
dessas três grandes correntes situou-se Kant; e dessas três grandes
correntes tirou os elementos fundamentais para poder estabelecer, de um
modo eficaz, de um modo concreto, o problema da teoria do conhecimento
e, em seguida, o problema da metafísica. Kant, pois, nessa encruzilhada,
representa o homem que tem na mão todos os fios da ideologia do seu
tempo. (...) a diferença radical, fundamental, que existe entre Kant e seus
predecessores é que os predecessores de Kant, quando falam do
conhecimento, falam do conhecimento que vão ter, do conhecimento que se
vai construir, da ciência que há de se constituir, da ciência que está em
constituição, em germe, aquela que nesses momentos se está forjando em
Galileu, em Pascal, em Newton. Pelo contrário, quando Kant fala do
conhecimento, fala de uma ciência físico-matemática já estabelecida.
Quando fala do conhecimento, refere-se ao conhecimento científico-
matemático da Natureza, tal como Newton o estabeleceu definitivamente.
(...) A possibilidade de reduzir a fórmulas matematicamente exatas as leis
fundamentais da Natureza, dos objetos, dos corpos, do movimento, da
gravitação, não é já uma possibilidade, é uma realidade; conseguiu-o
Newton e existe; aí está, definitivamente estabelecida, a ciência físico-
matemática da Natureza. Portanto, para Kant a teoria do conhecimento vai
significar, antes de tudo e principalmente, não a teoria do conhecimento
possível, desejável, como em Descartes, ou de um conhecimento que se
está fazendo, que está em fermentação, como para Leibniz, mas a teoria do
conhecimento significa para ele a teoria da física matemática de Newton
(MORENTE, 1979, p.220-221).
Lembremos, atentamente, com Santuário (2004, p.62-63), que Kant
demonstra que “aquilo que confere inteligibilidade aos fenômenos do mundo
sensível não é algo que pertence ao mundo empírico, mas às formas a priori do
entendimento, as categorias”. Assim, o “objeto é obrigatoriamente submetido ao
sujeito”, o “objeto não é dado pela experiência”, é a estrutura do sujeito que torna
possível a experiência e a esse conhecimento Kant dá a denominação de
transcendental. Portanto, “transcendental se opõe ao empírico” na medida em que
se refere às condições de possibilidade do conhecimento; transcendental diz
respeito aos “meios pelos quais o real é captado e ordenado”.
Em suma, Kant deseja terminar definitivamente com a idéia de ser em si.
Ele se esforça para demonstrar, na filosofia, como, “na relação do conhecimento,
aquilo que chamamos ser é não um ser em si, mas um ser objeto, um ser “para” ser
conhecido”, um ser colocado logicamente pelo sujeito que pensa e conhece
(MORENTE, 1979, p.219).
Mas, qual a importância de Kant enquanto um filósofo da Modernidade?
Châtelet (1994, p. 88-89) nos dá a oportunidade de entender o que representou o
sistema kantiano para o universo da ciência:
Kant se situa no fim de uma época (...) e se inscreve no vasto movimento de
idéias que se chama, na Alemanha, Aufklãrung, que se pode traduzir como
“esclarecimento”. Na França, é a “Idade das Luzes”, ou “iluminismo”. Ele é
um Aufklärer, um pensador das Luzes, mas um Aufklärer que já vai além.
(...) a Idade das Luzes é assim chamada porque alguns pensadores
militantes, como Voltaire, Rousseau, Diderot (...) d’Alembert (...) decidem
usar unicamente a luz natural para iluminar a vida do homem, para facilitar o
seu florescimento e o seu sucesso. (...) O século XVIII é o século dos
filósofos que se opõem não só aos teólogos, mas também aos metafísicos,
aos que continuam, como os sucessores de Descartes, a extrair seus
conceitos do pensamento teológico. Os filósofos das Luzes são pessoas
que só confiam na experiência, que se interessam pela ciência teórica,
pelas técnicas, pela vida cotidiana, pelas transformações dos costumes.
Como diríamos hoje, estão muito mais perto da realidade. Baseiam-se na
luz natural ou na reflexão, nascida da experiência, para esclarecer o destino
da humanidade. Seu objetivo principal é a liberdade; talvez fosse melhor
dizer a “libertação” do homem. (...) A Enciclopédia de d’Alembert (...) é uma
obra extraordinária, combinando um estudo de saber livresco do tempo com
uma reflexão sobre a técnica e sobre a vida de cada dia. Ao olharmos, por
exemplo, as ilustrações da Enciclopédia, publicadas à parte nos últimos
volumes, ficamos impressionados com o cuidado dos enciclopedistas na
descrição do trabalho do sapateiro, do marceneiro, etc. As ferramentas
usadas, a madeira empregada... são minuciosamente descritas. E, ao lado
disso, se encontram artigos de crítica sobre noções teológicas ou um
resumo da filosofia de Spinoza. Todos esses aspectos são interligados.
Trata-se, realmente, de libertar o homem da natureza, das paixões, e, ao
mesmo tempo, libertá-lo das trevas.
Continuemos com a simplicidade e a clareza de Châtelet (1994, p.94). Ele
afirma que “Kant toma como ponto de partida, em sua teoria do conhecimento, o fato
de o pensamento humano ter elaborado a matemática, a física”. Isso posto, o filósofo
se questiona: “como se deve conceber o objeto conhecido (...) para que haja física e
matemática”?
A realidade sensível, no sistema kantiano, indica-nos Châtelet (1994,
p.97), denominada usualmente de “real”, não é o que está dado ao sujeito
cognoscente. Ela é produzida por esse sujeito e é em virtude da sua própria
“sensibilidade e de sua organização intelectual que o sujeito cognoscente transforma
o material que lhe é fornecido, imposto, por essa exterioridade incognoscível”. No
que diz respeito, mais especificamente, às relações entre Kant e Descartes, o autor
(p.90) comenta que “Kant se situa na perspectiva do progresso com uma
moderação, uma profundidade que o tornam, desse ponto de vista, exemplar para
nós ainda hoje”. Quanto ao aspecto filosófico do século XVIII, “ele se apresenta
como uma administração e como um questionamento da herança cartesiana”.
No fundo, Descartes lega à posteridade duas mensagens que não
caminham necessariamente juntas. Por um lado, faz-se o apologista da
ciência. Volta-se para a natureza, considera a filosofia natural, como se dizia
na época, importante. Indica, pois, a direção da ciência, da transformação
da natureza pelas técnicas humanas. Mas, por outro lado, continua sendo
um filósofo profundamente clássico. Utiliza conceitos retirados da teologia
(CHÂTELET, 1994, p.90).
Em síntese,
Apropriação do saber, apropriação explícita das Luzes, Kant marca uma
guinada. Não é herdeiro de Descartes. Antes dele, diante do discurso da
verdade do Deus perfeito criador, dizia-se: como pode haver erro? Kant
pergunta: como pode haver verdade? Grande leitor, estabelece o princípio
da relação de exterioridade da filosofia com as disciplinas sobre as quais ela
reflete e instaura o espírito crítico como instrumento. O real é velado por
natureza, está no fenômeno. O objeto kantiano é fenomênico. (...) À medida
que nos aproximamos da época contemporânea, a filosofia terá que contar
com as ciências humanas e sociais. Assim, o marxismo se infiltra no
pensamento filosófico, com a vontade, algumas vezes exorbitante, de
esvaziá-lo do seu conteúdo. Assim também a psicanálise, que, através da
sua metapsicologia, tende a pensar que a filosofia como tal não tem mais
razão de ser. (...) De qualquer forma, depois de Freud não se pode mais
fazer filosofia como antes: o conceito de inconsciente é uma contribuição
incontornável da psicanálise para a filosofia, que não pode mais considerar
o pensamento “puro”, cortado do afeto...Assim também, aconteça o que
acontecer com o marxismo hoje, não se pode negar a sua contribuição
(NOËL, 1994, p.13-14)
Para Châtelet (1994, p. 104), “o que Kant estabelece com grande firmeza
é que, quanto ao real, só a ciência pode desenvolver enunciados verificáveis” e ele
insiste no fato do filósofo de Königsberg ter sido “o fundador do pensamento
experimental”. Além disso, ele entende que a reflexão acurada sobre o sistema
kantiano demonstra que, “quando um cientista, a partir de resultados verificados
experimentalmente, extrapola para o campo ontológico, também ele cai na ilusão”.
Mas por que isso acontece? Isso ocorre “porque somos razão, e razão teórica,
queremos sempre o axioma absoluto, a explicação definitiva. Isso faz parte do
espírito humano; e, fazendo isso, o homem se engana, mas não pode deixar de se
enganar”.
Fulgêncio (2004, p. 5-6) avalia que Freud tem em Kant o sistema de base
para sua pesquisa no campo das doenças nervosas, já que ele se formou no interior
de uma tradição científica muito específica, onde obteve lições de como formular
problemas válidos e de como procurar soluções, junto a seus mestres e em sua
própria prática laboratorial. Supõe-se, aqui, que é nesse âmbito modelar que Freud
se inscreverá no sistema kantiano, pois sua educação epistemológica está de
acordo com os padrões científicos das ciências da natureza que se tornaram
hegemônicas no final do século XIX.
Miller (2002, p. 13, grifo do autor) explica que Freud realmente se
preocupou muito tentando reabsorver a psicanálise às ciências da natureza desde
seu primeiro trabalho, o qual só foi conhecido depois de sua morte, o Projeto de uma
psicologia científica”.
Mas Lacan (1969-1970/1992, p.130) é enfático ao dizer que “a
enunciação freudiana nada tem a ver com a psicologia”, ela é, segundo Quinet
(2003, p.37)
(...) uma antipsicologia, pois enquanto a psicologia, ao lidar com os
processos conscientes, está imersa no reino do sentido, a psicanálise opera
sobre o inconsciente, que dá prevalência ao significante – pois o significado
nada mais é que outro significante que, junto com o primeiro, produz efeito
de sentido. O significante é apenas o som da palavra esvaziado de sentido,
como uma palavra estrangeira desconhecida ou o nome próprio que,
embora designe, nada significa.
Na visão de Lacan (1993, p.19),
O homem não pensa com sua alma, como o Filósofo imagina. Ele pensa
porque uma estrutura, a da linguagem – como a palavra o comporta – ,
porque uma estrutura recorta seu corpo, e que nada tem a ver com a
anatomia. Testemunha a histérica. Essa cisalha chega à alma com o
sintoma obsessivo: pensamento com o qual a alma fica embaraçada, não
sabe o que fazer. O pensamento é desarmônico em relação à alma. E o
nous grego é o mito de uma complacência do pensamento para com a alma,
de uma complacência que seria conforme ao mundo, ao mundo (Umwelt)
pelo qual a alma é tida por responsável, ao passo que ele é apenas a
fantasia com a qual um pensamento se sustenta, “realidade” certamente,
mas a se entender como esgar do real.
“O descobrimento inicial de Freud”, nos revela Miller (2002, p.35), a
descoberta que “cava um sulco inesquecível”, é que integrou à ciência, à linguagem,
os esquecimentos; “todos os fenômenos negativos do sentido, acrescentou-os ao
sentido”. Para esse gênio do século XX, “o que mais sentido tinha para o sujeito”,
eram os momentos em que seu “discurso podia desfalecer, desfazer-se”, cair e onde
algo podia ser um lapso. Freud restabeleceu a positividade desse negativo.
Voltemos a Kant, agora em suas relações com Jacques Lacan. Santuário
(2004, p.128) coloca que, se no sistema kantiano o vital diz respeito ao
estabelecimento das condições a priori do conhecimento e da ação, na Psicanálise
lacaniana “o que está em jogo é a tarefa de repor, por demonstração indireta e por
reflexão estrita, as condições de possibilidade do humano ek-sistir, enquanto
inelutável e simbioticamente colado e atado ao símbolo”.
Segundo Jorge & Ferreira (2005, p. 44), “Lacan parte da evidência de que
a linguagem, a cadeia simbólica, determina o homem antes do nascimento e depois
da morte”. A criança vem ao mundo marcada por um discurso, no qual se inscrevem
a fantasia dos progenitores, a cultura, a classe social, a língua, a época, etc. Tudo
isso constitui o campo do Outro, lugar onde se forma o sujeito. Por essa razão Lacan
não só insiste na exterioridade do simbólico em relação ao homem, mas também na
sua sujeição à linguagem. A estrutura da linguagem preexiste ao sujeito; seja qual
for o aprendizado, a criança não a modifica, tem que se submeter a ela (MILLER,
2002, p.20).
Continuemos.
Há uma similaridade, de acordo com Santuário (2004, p.47-48) entre o
procedimento do kantismo e o trabalho de produção conceitual em Lacan. Mas como
isso se dá? O autor nos diz que “ambos retrocedem até as condições de
possibilidade dos fenômenos observados”. Lacan articula a noção de registro do
simbólico como lócus privilegiado de suportabilidade do humano. A doutrina kantiana
consiste na renúncia “à visão naturalista do mundo e do pensamento do mundo”,
operando uma “virada antropológica” que obriga o homem a se ater “às condições
de todo pensamento e de todo conteúdo mental que ele possui”. Em Kant, há um
“sujeito centrado sobre um eu penso (mas não me conheço)”, enquanto em Freud
surge a problemática do aparelho psíquico em que “isso pensa (mas sobre uma
outra cena que não a consciência)”. Por fim, com Lacan somos informados de que “o
isso fala, sendo o isso o discurso do Outro”.
Assim, conforme podemos depreender dos excertos que destacamos,
Lacan não só resgata Freud como também o complementa, pois seu ensino,
ao redirecionar a experiência psicanalítica para sua vocação inaugural de
escuta do desejo do sujeito em sua verdade singular, criou uma lógica do
significante e uma tripartição estrutural real-simbólico-imaginário, ambas
fundamentais para a psicanálise contemporânea. Real-simbólico-imaginário
constitui um novo nome, dado por Lacan, ao inconsciente freudiano. (...) a
experiência da psicanálise (...) parte de dois conceitos fundamentais –
inconsciente e pulsão – que caracterizam a poderosa singularidade de suas
descobertas (JORGE, 2002, p. 13-14).
Segundo Safatle (2006, p.24) é comum a “perspectiva de leitura cujo
dispositivo central consiste em dividir a experiência intelectual e analítica de Lacan
em uma profusão de momentos isolados”. O autor diz que de fato “é impossível
negar a existência de modificações profundas de cartografia conceitual na trajetória
de Lacan”, a qual, por sua vez, pode ser considerada, a seu ver, como “sintoma dos
impasses da tradição crítica do racionalismo moderno aberta pela dialética
hegeliana”. Ele afirma, ainda, que a “práxis e a metapsicologia analítica desdobram-
se no interior do horizonte da dialética hegeliana, mas elas produzem uma
transformação neste horizonte”, já que Lacan “teria tomado distância dos
dispositivos de totalização sistêmica presentes em Hegel” (SAFATLE, 2006, p.24-
25).
Logo, em um momento em que
(...) a figura do sujeito (pensado a partir de sua matriz cartesiana) é objeto
de críticas virulentas endereçadas pela filosofia anglo-saxã da mente, pelo
pós-estruturalismo francês e pela filosofia neopragmática da
intersubjetividade, não devemos esquecer que a psicanálise é uma práxis
que insiste na irredutibilidade ontológica da subjetividade (daí se segue, por
exemplo, o desejo lacaniano de entrar no “debate das luzes” pela discussão
com a tradição da filosofia do sujeito nas figuras de Descartes, Kant e
Hegel). Lacan sempre afirmou querer recolocar o sujeito no interior do
quadro da ciência e, assim, trazer um programa de racionalidade cujas
conseqüências ainda estão para ser exploradas (SAFATLE, 2006, p.30).
Miller (2002, p.40) esclarece que a diferença entre ciência e conhecimento
é fundamental na epistemologia de Lacan. Acompanhemos, a partir de agora, o
interessante raciocínio desenvolvido por aquele que, segundo Roitman (2002, p.7)
“foi encarregado por Lacan de estabelecer os textos de seus seminários e por ele
apontado, logo após a atribulada dissolução da École Freudienne de Paris, como
‘ao-menos-um que me lê’”.
Primeiramente, Miller (p.40) afirma que “a teoria do conhecimento sempre
teve, na história do pensamento, um ideal, formulado de diferentes maneiras: o da
união entre sujeito e objeto”, supondo uma co-naturalidade entre ambos, uma
harmonia entre o sujeito cognoscente e o objeto alvo de tal conhecimento. Assim,
ele (p.41) continua, “a ciência distingue-se do conhecimento, desde o começo,
mesmo que seja pelo fato de construir seu objeto”. Miller explica, ainda, que esse
princípio é também de Bachelard e que, a ciência, nascida com a física-matemática
a partir do século XVII “supõe, pelo contrário, que não há co-naturalidade entre
sujeito e objeto”.
Façamos um parêntese no intuito de precisar dois importantes aforismos
lacanianos interligados: não há relação sexual e a mulher não existe. Em se tratando
do primeiro aforismo, ele significa que “não há complementaridade entre os sexos e
que não é possível decifrar o enigma da diferença sexual” (JORGE & FERREIRA,
2005, p.55).
A importância do simbólico na realização sexual, seja na constituição da
identidade sexual (situar-se subjetivamente como homem ou mulher), ou na
realização por cada um de seu sexo, de seu ser sexuado em relação a um
outro sexuado ou no destino da vida erótica, é incessantemente reafirmada
por Lacan que, seguindo Freud, dá todo seu peso ao Édipo, isto é, uma
relação simbólica que orienta e regula o campo do pulsional e o campo do
imaginário ( a relação com a imagem) e, conseqüentemente, a função
simbólica fálica (castração) na medida em que ela legifera o desejo e
ordena a sexualidade de cada um. (...) A diferença entre os sexos, no
sentido biológico ou anatômico, não decide, portanto, necessariamente a
questão da reivindicação de uma identidade sexual conforme ao sexo
anatômico ou biológico e não reflete as modalidades inconscientes segundo
as quais cada um, homem ou mulher, negocia a questão da diferença dos
sexos e sua posição subjetiva como ser sexuado que mantém uma relação
com outro ser sexuado. (...) Falar até hoje de “pulsão instintiva”, termo
introduzido ao que parece por Henri Ey e retomado por alguns atualmente
na sexologia clínica, continua a ser prova de incompreensão e/ou anulação
do que Freud problematiza como pulsão: a inexistência ou perturbação
essencial no ser humano de um programa instintivo natural, a
irredutibilidade do campo do sexual a uma finalidade biológica ou a
esquemas predeterminados de comportamento, e, em contrapartida, a
pregnância da relação com outro humano falante e desejante na
instauração e na manifestação desse campo da vida sexual (KAUFMANN,
1996, p.471-472).
Miller (2002, p.27-39) explicita esse aforismo de forma um pouco mais
simples. Primeiramente, ele pontua a dessimetria existente na relação entre os
sexos. O grande Outro, lugar do código fundamental da linguagem, é, segundo o
psicanalista, sustentado pela mulher. Ele afirma que, na verdade, “os dois sexos são
cada um Outro para o outro, mas, em um sentido mais profundo, o sexo chamado
feminino é que é fundamentalmente Outro”. Acrescenta, ainda, que Freud não
conseguiu decifrar esse mistério, o de saber o que quer uma mulher. Mas o que
Lacan destaca é justamente essa separação dos sexos que nenhuma relação sexual
pode jamais preencher, sendo que o que falta, em síntese, é uma relação fixa e
invariável, “como uma proporção entre um sexo e o outro sobre os trilhos do
instinto”.
O tema é denso. Silva (2001, p.148-150, grifo do autor) nos diz que
O que Lacan descobre por meio da lógica é que não há relação entre os
sexos porque só existe um, o masculino. O feminino, isso não se inscreve
na ordem da linguagem. No entanto, existem mulheres e cada uma tenta
dar conta como pode desse real impossível. A complexidade dessa
descoberta foi de tal ordem que provocou, na teoria psicanalítica, uma
ultrapassagem do método estruturalista; pois, ao assinalar o traço
imaginário que marca simbolicamente os seres segundo a posição de ter e
não-ter o pênis, Lacan deu um passo além, demarcando o termo menos
como uma posição fora do sistema simbólico. Isso só foi possível,
obviamente, a partir de sua elaboração do falo como um significante. Do
lado masculino, os seres se agrupam segundo uma lógica própria, a do
universal. (...) Logicamente, esse agrupamento colocou uma aporia: de que
lado está o feminino? Se não está dentro do conjunto fechado dos seres
fálicos, então está fora. Logo, como é possível que se relacionem, homens e
mulheres? O que significa, de fato, a diferença de gênero na espécie de
seres falantes? (...) Quais as conseqüências psíquicas desse a menos para
o ser falante? (...) Retomemos a frase “A mulher não existe”. O “a” ao qual
se refere Lacan é o artigo definido e o que ele quer dizer é que, embora
existam mulheres, não há uma que faça exceção e funde uma comunidade
de seres femininos. Porque? Porque só há um elemento simbólico
diferenciador, que é o Falo, e ele estabelece os sinais + e – que vão balizar
os seres em seu processo de identificação sexual.
Cabe ressaltar que o termo “falo” denota, em Freud, “o elemento
organizador da sexualidade humana” e que não se trata, de forma alguma, do “órgão
genital masculino”, mas da “representação construída com base nessa parte
anatômica do corpo do homem”(NASIO, 1997, p.33, grifo do autor).
Depois desses longos comentários acerca dos dois aforismos, podemos
avançar um pouco mais para demonstrar o que eles significam no quadro da
Psicanálise. Novamente é Miller (2002, p.41) nossa referência. Ele afirma que, na
ótica lacaniana, “toda teoria do conhecimento tem conotações sexuais” e de que a
tese, de que “a mulher não existe” é fundamental para a epistemologia, na medida
em que “esse objeto que se quer complementar ao sujeito, na teoria do
conhecimento, é também uma forma de domesticar a mulher”. Já a ciência supõe
“que não há qualquer estesia do sexo oposto”. Miller diz ainda que, para Lacan, “a
estrutura do discurso da ciência não deixa de ter relação com a estrutura do discurso
da histeria”.
Ele conclui que
(...) o enfoque científico supõe uma dessexualização da abordagem do
mundo e, para empregar uma expreso filosófica, uma dessexualização do
ser-no-mundo. A psicanálise não é, de modo algum, um pansexualismo. O
pansexualismo é, por exemplo, a teoria de Shopenhauer, que é construída
colocando em seu princípio a vida, e mais precisamente o instinto sexual,
que animaria, que animaria toda a natureza e todas as criações humanas.
Freud, talvez desajeitadamente, mas de forma muito significativa, introduziu
a paradoxal expressão instinto de morte, e descobriu – por intermédio da
histeria – que o Outro sexo, com um grande A, o grande A da exterioridade,
o outro sexo é A (Outro sexo) (MILLER, 2002, p.42).
Teixeira (2004) desenvolve uma interessante reflexão acerca da
proximidade estabelecida por Lacan entre a paranóia, forma de padecimento mental
em que o sujeito elabora, desenfreadamente, sofisticados sistemas de explicação do
mundo capazes de prover de sentido a sua experiência pessoal e o conhecimento.
O autor, doutor em Psicanálise pela Universidade de Paris VIII, afirma que Freud
criticava, na especulação filosófica, o ideal de uma adequação entre o pensamento e
a coisa representada, sendo que Lacan ironizava o ideal de uma co-naturalidade
especular entre sujeito e objeto representado com o trocadilho “co-naître”.
Retomando Jacques-Alain Miller, Teixeira endossa suas palavras, defendendo que a
crença na relação complementar entre sujeito e objeto deriva da tentativa de
encontrar no mundo a complementaridade ilusória da relação sexual.
Por fim, ele nos explica que
A ciência não somente desconecta o significante da indução complementar
da imagem, como também confere ao registro simbólico uma autonomia
própria. Ela extingue radicalmente, do dispositivo simbólico, a exigência
imaginária da significação, na medida em que estabelece fórmulas que
funcionam como uma espécie de sintaxe do real, sem se ocupar, no
entanto, com o conteúdo que essas fórmulas significam (TEIXEIRA, 2004,
p.185).
Qual seria, então, o objeto da Psicanálise? Em resposta a estudantes de
Filosofia, no verão de 1966, Jacques Lacan se questiona:
Pode haver ou há uma disciplina fundamental que dê conta da unidade das
ciências humanas? Há um objeto único das ciências humanas? A
psicanálise pode fundar uma antropologia? A melhor antropologia não pode
ir além do que fazer do homem um ser falante. (...) Ora, o sujeito da
psicanálise é um ser falado e é o ser do homem. (...) O objeto da psicanálise
não é o homem; é o que lhe falta – não falta absoluta, mas falta de um
objeto. Ainda é preciso fazer entender de que falta se trata; é aquela que
coloca fora de questão a menção do objeto (tradução nossa).
No ponto em que estamos, faz-se necessário abrirmos uma nova
subseção em que trataremos do que Lacan entende por sujeito da ciência, além de
apresentarmos sua metodologia e um pouco de sua álgebra.
4.1 O sujeito da ciência, a metodologia psicanalítica e os matemas de
Jacques Lacan
Antes de abordarmos a questão do sujeito da ciência em Lacan,
trataremos de delimitar o que ele entende por sujeito, significante e corte. Para tanto,
buscaremos apoio nas explicações de Dor (1995). O autor esclarece que uma das
metas insistentemente visadas por Lacan foi a de nos fornecer uma argumentação
tão rigorosa quanto possível – embora árida – sobre a lógica dos procedimentos que
contribuem para a determinação do sujeito pelo significante. Como a estrutura do
sujeito depende da relação que mantém com a ordem significante? Tal interrogação
é fundamental no legado lacaniano (DOR, 1995, p.150).
Segundo Dor (p.152), enquanto para Saussure o signo lingüístico constitui
uma unidade de significação que associa um significante a um significado, para
Lacan há um fluxo de significantes e um fluxo de significados, não existindo um
“corte” que uniria um significante a um significado, mas uma nova delimitação
definida por ele como ponto-de-estofo.
De fato, a noção lacaniana de ponto-de-estofo retoma o conceito de “valor
do signo” saussuriano, levando suas conseqüências mais adiante. Se, como
formula Saussure, “em uma língua, cada termo tem seu valor em oposição a
todos os outros termos”, é somente no final da articulação significante que a
significação advém. Outra maneira, como faz Lacan, de enfatizar a função a
posteriori, para nos indicar precisamente que a significação nunca vem
senão no final da própria articulação significante. Produzindo a seqüência
significativa, a articulação significante prevalece, portanto, sobre a cadeia de
significados. Todavia, ainda que o ponto-de-estofo organize na cadeia
fonêmica um certo número de cortes, este é apenas um dos aspectos da
relação do corte com o significante. Devemos agora considerar a cadeia dos
significantes como corte original operado sobre o Real, que vai assim impor
ao ser da necessidade sua estrutura de sujeito. Em outras palavras, Lacan
convida-nos a conceber a dimensão de um corte que recorta a si mesmo: a
cadeia significante, intervindo como primeiro corte, ao mesmo tempo que
estrutura cada um dos significantes dessa cadeia como cortes secundários
oriundos desse corte original (DOR, 1995, p.153, grifo do autor).
Sabemos que Lacan contou com aportes da Lingüística para construção
de sua abordagem da linguagem.
Contudo, como é característica do estilo de Lacan, os conceitos
originalmente produzidos, naquele campo, sofreram uma metamorfose ao
serem incorporados à arquitetura lacaniana, em função das necessidades e
especificidades do seu novo território conceitual. (...) O ponto de ruptura
entre Lacan e a lingüística refere-se a que a metamorfose lacaniana,
imposta ao conceito de significante, implica considerá-lo como autônomo
em relação ao significado, ou seja, a produção da significação não se deve
a que o significante esteja ligado ao significado por uma barra de união
mas, precisamente, ao inverso. (...) Compreende-se assim a distinção
fundamental entre significante e significado como duas redes de relações
que eles organizam e que não se recobrem. (...) Lacan mostra de que
forma, ao ser atingido pelo significante, na entrada do registro do simbólico,
o ser humano, ao utilizar a linguagem, apenas demonstra que fica
posicionado ali onde utiliza o significante para designar algo (SANTUÁRIO,
2004, p. 114-115).
A noção de ponto-de-estofo foi, na visão de Dor (1989, p.41), um passo
decisivo na produção intelectual de Jacques Lacan. Tal avanço consistiu na “lógica
do significante”, a qual “se esboça com a análise dos processos metafóricos e
metonímicos no discurso do sujeito, como testemunhos incontornáveis do caráter
primordial do significante”. À metáfora, corresponde a condensação freudiana, sendo
que à metonímia corresponde o mecanismo de deslocamento.
A condensação é entendida como um processo metafórico no qual trata-se
da substituição de vários significantes por outro significante num processo
de superposição: “A Verdichtung, condensação, é a estrutura de
superposição dos significantes em que ganha campo a metáfora, e cujo
nome, por condensar em si mesmo a Dichtung, indica a conaturalidade
desse mecanismo com a poesia, a ponto de envolver a função propriamente
tradicional desta”. O deslocamento é visto como um processo puramente
metonímico, no qual não há substituição de um significante por outro, mas
sim um remetimento a outro significante: “A Verschiebung ou
deslocamento... é o transporte da significação que a metonímia demonstra e
que, desde seu aparecimento em Freud, é apresentado como o meio mais
adequado do inconsciente para despistar a censura” (JORGE, 2002, p.89).
Logo,
Quanto à metáfora, cuja fórmula de definição é uma palavra por outra, é
exigida a condição de máxima disparidade entre as imagens significadas
(ao contrário da metonímia que se estabelece por relações de contigüidade
e semelhança entre os termos). Para a eficácia da metáfora devemos ter
substituição de uma palavra por outra que não guarde, sob nenhuma
hipótese, relação de semelhança imediata com a palavra substituída
(SANTUÁRIO, 2004, p.116).
Em Lacan (2005, p.24), a questão da origem da linguagem não causa
embaraço. Ele diz
Naturalmente, a questão da origem da linguagem é um dos temas que
melhor podem se prestar a delírios organizados, coletivos ou individuais.
Não é o que temos a fazer. A linguagem está aí. É um emergente. Agora
que emergiu, jamais saberemos quando nem como começou, nem como
era antes que fosse.
De acordo com Jorge & Ferreira (2005, p.45-46), Lacan desenvolveu a
lógica do significante para edificar uma teoria sobre a relação entre inconsciente e
linguagem, sendo o significante a unidade mínima do simbólico, tendo como
característica essencial o fato de jamais comparecer sozinho, isolado, mas articulado
com outros significantes. Assim sendo, é a articulação entre os significantes que
engendra o processo de significação. Continuando sua explanação, os autores
colocam que Lacan introduz uma fórmula, pela qual surge o sujeito dividido entre
dois significantes, que ele nomeia de sujeito barrado. Eles advertem que o conceito
de sujeito não se confunde com o de indivíduo (do latim, indiviso), opondo-se à
noção de unidade, remetendo constantemente a uma divisão. Destarte, o sujeito
está sempre deslizando em uma cadeia de significantes.
O significante é uma categoria formal, e não descritiva. Pouco importa o que
ele designa; por exemplo, tomamos aqui a figura do sintoma, mas o
significante pode, da mesma forma, ser um lapso, um sonho, o relato do
sonho, um detalhe desse relato, ou mesmo um gesto, um som, ou até um
silêncio ou uma interpretação do psicanalista. Todas essas manifestações
podem ser legitimamente qualificadas de acontecimentos significantes,
desde que sejam respeitados três critérios, três critérios não-lingüísticos,
apesar do termo significante, que é de origem lingüística. O significante é
sempre a expressão involuntária de um ser falante. Um gesto qualquer só
será significante se for um gesto desajeitado e imprevisto, executado fora de
qualquer intencionalidade e saber consciente. O significante é desprovido
de sentido, não significa nada e, portanto, não entra na alternativa de ser
explicável ou inexplicável. O sintoma, na qualidade de acontecimento
significante, não invoca, pois, nem uma suposição do analisando, nem uma
construção do psicanalista. Numa palavra, o significante é, e nada mais. O
significante é, sim, desde que permaneça ligado a um conjunto de outros
significantes: é Um entre outros com os quais se articula. (...) Um aforismo
lacaniano resume bem essa relação: um significante só é significante para
outros significantes (NASIO, 1993, p.17-18).
Lacan (1957-1958/1999, p.406) deixa claro que há sempre uma Spaltung,
isto é, há sempre duas linhas nas quais o sujeito se constitui. Disso, então, nascem
todos os problemas estruturais que nos são próprios. Ele estabelece uma diferença
precisa entre sentido e significação, sendo esta, também, um efeito, isto é, algo que
passa a existir em um encontro de elementos. O sentido é o efeito que surge na
relação do eu com a imagem e que se articula no encontro de dois sistemas: o
imaginário e o simbólico. Já a significação é um efeito do simbólico. Sinônimo de
sujeito do inconsciente, ela é o efeito produzido pelo vínculo entre dois significantes
(NASIO, 1995, p.30).
Temos que pontuar que, “a partir de 1938, em função dos ensinamentos
de Kojève”, Lacan trabalha a distinção entre o Je, sujeito do desejo, e o Moi, lugar
da ilusão e fonte do erro (SANTUÁRIO, 2004, p.50). O sujeito da enunciação é
sempre um não-dito que só pode se fazer presente ausentando-se do enunciado
(SAFATLE, 2000a).
Mas, o que Jacques Lacan compreende, exatamente, como sujeito da
ciência? No seminário em que são expostos os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, o autor diz que o campo freudiano só pôde ser inaugurado com a
emergência do cogito que fundamenta todo saber científico possível (LACAN,
1964/1990; SAFATLE, 2000a ).
De acordo com Dor (1995, p.55), que analisa tal questão, ao longo de
toda sua obra, Lacan nunca deixou de abordar o cogito cartesiano. Isso porque, ele
nos explica, o cogito desperta seu interesse ao encarnar a melhor ilustração do que
a psicanálise e sua prática tratam, a saber, o sujeito da ciência.
Para Descartes, “pensar é colocar a representação do objeto diante de si.
Cogitatio é, na verdade, Vorstellung”. Desta maneira, o “eu penso” do cogito seria
equivalente a “eu me objetifico diante de mim”, pois Descartes concebe o ser
enquanto representaidade (SAFATLE, 2000a).
A explanação de Jacques-Alain Miller acerca do filósofo René Descartes é
longa, porém merece nossa transcrição na íntegra:
Descartes elaborou o que podemos chamar de sujeito da ciência. Sabemos
que a emergência do sujeito cartesiano, do sujeito que “penso-sou”,
constitui um corte na história do pensamento. Esse corte foi identificado
como tal, de todas as maneiras, na história da filosofia. E é um erro pensar
que Descartes funda, no cogito, a identidade eu, eu, eu. O cogito cartesiano
é uma coisa diferente do eu como função de síntese que os psicólogos
testam. É um abuso estender a identidade específica do cogito cartesiano a
toda a esfera psíquica, a todos os atos, a todos os movimentos, a todas as
representações da esfera psíquica. Pois o destacado, e Lacan, muito
próximo ao texto de Descartes, e de um modo que não é contraditório com a
leitura mais rigorosa que já se fez das meditações cartesianas, a do
historiador da filosofia Martial Guéroult, Lacan, então, decifrou as primeiras
meditações de Descartes nesse sentido. Vocês conhecem, penso, mesmo
que seja só de ouvir falar, a função da dúvida hiperbólica em Descartes;
qual é? O esvaziamento da esfera psíquica, o esvaziamento do universo
das representações, o esvaziamento de tudo o que é imaginário. O cogito,
em sua identidade, só surge como resíduo ineliminável dessa operação de
esvaziamento. Nesse sentido, para acompanhar a argúcia de Lacan sobre o
tema, a evidência é a de um sujeito esvaziado (vidé-evidé) que não existe,
de modo algum, como uma esfera que implicaria um monte de
representações, de qualidades e propriedades diversas, mas sim como um
simples ponto desvanescente, já que, como diz Descartes, ‘ eu sou, eu
penso’, mas... por quanto tempo? Só no instante em que penso. Esse é um
sujeito que, em seu ponto de emergência, não é de nenhum modo uma
substância, e sim, pelo contrário, um sujeito completamente
dessubstanciado, que de modo algum é uma alma, que não está
relacionado com qualquer natureza, um sujeito desamarrado de todas as
aderências naturais. Esse sujeito, que rompeu com todas as suas
aderências naturais, com toda significação que não seja o resíduo pontual e
desvanecente onde o pensamento e o ser formam um; esse sujeito é
estruturalmente o agente do discurso da ciência. E esse sujeito que, em
seguida, põe em ação um significante em sua relação com os outros
significantes (...) (MILLER, 2002, p.50-51).
Pois bem, Quinet (2003, p. 11), também psicanalista, ao discorrer sobre o
Discurso do Método, comenta que, em tal obra, já em seu título, acha-se explícito o
projeto cartesiano de ‘procurar a verdade nas ciências’, sendo que “o que é
verdadeiro para Descartes é o que pode ser concebido ‘clara e distintamente’
unicamente pela razão”. Está ali, segundo Quinet, “o passo precursor para o
desenvolvimento da ciência moderna”. Ele nos diz que “é esse mesmo sujeito da
ciência sobre o qual opera a psicanálise”.
As considerações desse psicanalista são bastante elucidativas:
Para a psicanálise, o sujeito é também sujeito do pensamento –
pensamento inconsciente. Pois o que Freud descobriu é que o inconsciente
é feito de pensamento. Trata-se aqui do sujeito não da desrazão e sim da
razão inconsciente, cuja lógica é também apreendida através de um método
– o método psicanalítico. Essa herança da filosofia cartesiana conserva o
ideal de cientificismo da psicanálise cujos efeitos de sua prática devem ser
verificados, cujo modo de operação pode ser explicitado e cujos conceitos
podem ser transmitidos, justificando assim o ensino da psicanálise, inclusive
na Universidade. Foi nessa orientação que Jacques Lacan propôs matemas
para a psicanálise (QUINET, 2003, p. 12).
Em síntese, as relações da Psicanálise com a ciência dependem da
natureza da ciência moderna, a qual nasceu no século XVII com a descoberta de
que o saber acumulado, até então, apresentava um limite e de que novos achados
seriam suscetíveis de demonstrar sua caducidade. Assim, a ciência moderna
aparece com a descoberta do Real como o que põe em cheque o saber e provoca
uma nova elaboração. Coube a Descartes dar os fundamentos dessa ciência,
colocando em evidência a clivagem entre a verdade e o saber, deixando para Deus
o encargo da primeira. A pesquisa em Psicanálise pertence a uma nova etapa no
capítulo da ciência moderna. No campo da Matemática, admitindo que ela seja
consistente, concluiu-se que existem proposições verdadeiras que não são
demonstráveis, revelando a incompletude do sistema. Foi nesse contexto que Lacan
se empenhou em formalizar o discurso psicanalítico e produzir os matemas
(SAURET, 2003, p.89-90, grifo nosso).
Do grego, ϑ 20:∀, matema, estudo, ciência, conhecimento (Bailly,2000,
p.1215, tradução nossa).
Segundo Morente (1979, p.236),
(...) toda matemática representa um sistema de leis a priori, de leis
independentes da experiência e que se impõem a toda percepção sensível.
Toda percepção sensível que nós tivermos haverá de estar sujeita às leis da
matemática, e essas leis da matemática não foram deduzidas, inferidas de
nenhuma percepção sensível: tiramo-las da cabeça, direi usando uma forma
vulgar de expressão. E, todavia, todas as percepções sensíveis, todos os
objetos reais físicos na natureza e aqueles que acontecerem no futuro,
eternamente, sempre haverão de estar sujeitos a essas leis matemáticas
que nós tiramos de nossa cabeça. Como é isso possível? Já o acabamos de
ouvir em todo o desenvolvimento do pensamento kantiano. Isto é possível,
porque o espaço e o tempo, base das matemáticas, não são coisas que nós
conhecemos por experiência, mas antes formas de nossa faculdade de
perceber as coisas, e, portanto, são estruturas que nós, a priori, fora de toda
a experiência, imprimimos sobre nossas sensações, para torná-las
cognoscíveis. As formas da sensibilidade, espaço e tempo, são, pois, aquilo
que o sujeito envia ao objeto para que o objeto se aposse dele, assimile-o,
converta-se nele e logo possa ser conhecido.
Soulez (2003, p.261) afirma que Lacan tinha um imenso apreço pelo
“modelo das ciências físicas, contrariamente a vários de seus contemporâneos
filósofos. Em particular, ele procurou o modelo representado pela lógica e pelas
matemáticas”.
Nogueira (2004, p.98) explica que
A nossa matemática, a matemática humana, é uma linguagem. E são
símbolos criados pela nossa linguagem que substituem a linguagem natural,
da língua. A linguagem matemática serve para qualquer língua: qualquer ser
humano, pelo menos aqueles que usam o alfabeto originado do latim, lendo
2 + 2 = 4 ou a + b = c, sabe, independente de qual seja a sua língua, que
isso tem um significado. Portanto, a linguagem matemática é a linguagem
que serve para fazer ciência, pois a ciência pretende, justamente, uma
linguagem universal – o conhecimento que ela obtém da realidade deve ser
um conhecimento que possa ser usado pelos seres falantes em geral. E a
Psicanálise vê-se diante de um impasse, ou seja, a sua investigação é uma
investigação do singular, do particular – cada analisante vai fazer uma
investigação – e essa investigação serve para ele, não serve para o outro. O
que é que serve para o outro? Aquilo que passa pela mediação da
linguagem do analista, quer dizer, aquilo que passou pela linguagem do
Freud. É por isso que eu afirmo que a Psicanálise é uma ciência nova,
porque Freud foi capaz de construir um corpo de conceitos universais a
partir dessa experiência nova, dessa experiência singular. Lacan, então,
tentando aproveitar a linguagem matemática, tentou criar símbolos mais
abstratos ainda do que os conceitos iniciais da Psicanálise.
Jorge & Ferreira (2005, p.13) consideram que, em relação à cientificidade
da Psicanálise, a construção de matemas foi a contribuição fundamental de Jacques
Lacan ao campo. Ele recorre às fórmulas matemáticas, pois elas, são a “via pela
qual as ciências operam sobre o real”. Os autores lançam a questão: “Como é
possível mandar um homem para a lua?” Com o auxílio das fórmulas matemáticas,
eis a resposta, já que elas “conseguem recortar um pedaço do real e arrancar dele
as leis que ali vigoram”. Portanto, eles nos dizem que, em tal sentido, explicitado
acima, toda ciência é uma tentativa de simbolizar o real, ou melhor, nas palavras de
Lacan, “uma pontinha dele”.
Lacan chega aos matemas aos poucos. Inicialmente estabelece algumas
letras, denominadas por ele de álgebra lacaniana: S
1
, S
2
, S, a. Depois , vai
articulando essas letras entre si e compondo pequenas fórmulas, como a da
fantasia ( S a ), do sintoma (), dos quatro discursos, etc. Em 1976,
quando vai ministrar conferências nos EUA, os psicanalistas norte-
americanos perguntam se quer matematizar tudo e ele responde que não,
que apenas pretende “começar a isolar na psicanálise um mínimo passível
de ser matematizado”, isto é, quer introduzir algumas fórmulas que
funcionem como balizas minimamente seguras para o trabalho dos
psicanalistas e para a troca teórica entre eles. Além disso, os matemas são
fórmulas que asseguram a transmissão de conceitos centrais da
psicanálise, ainda que permitam uma pluralidade de leituras (ibid.).
Exploremos, agora, os aspectos mais áridos da formalização proposta por
Lacan que, como nos lembra Safatle (2006, p.38), pressupõe a “centralidade de um
irredutível que resta na exterioridade do conceito”. S(A), ν, Ν, A e a são os matemas
lacanianos essenciais. Primeiramente, S(A), porque todo sujeito encontra um ponto
em seu próprio gozo, no qual o Outro não responde, uma parte de gozo que não foi
nomeada pelo Nome-do-Pai durante a crise edipiana, um além da castração. Na
formalização lacaniana não há (1)/(-1) e sim (1)/ (0), uma inscrição e um vazio, vazio
significante preferencialmente a uma falta de órgão, pois falta, na linguagem, um
significante para dizer “A” mulher. O falocentrismo – e não falocratismo – da teoria
freudiana coloca que o falo é o único significante a vir e representar o sexo. Assim,
ou fálico/masculino ou não fálico/castrado. Em Freud, o conceito de falo oscila entre
simbólico (significante) e imaginário (órgão do corpo). Em Lacan, Ν designa o falo
simbólico, significante sem significado, enquanto ν designa o falo imaginário. A vem
dizer que “A mulher não existe”, mas existem mulheres, só que elas não fazem parte
de um conjunto, sendo que todo conjunto só se sustenta por uma exclusão. Por fim,
o pequeno a, objeto causa do desejo, perdido para o ser-falante
21
.
Fundamental, também, é a noção de “furo”. Segundo Nasio (1999, p.73),
o “furo” é um termo oriundo da topologia e que, no corpo teórico psicanalítico, tem
diferentes acepções. O autor apresenta o “furo” como a palavra que significa que “o
objeto da pulsão é variável”. Mais especificamente, para Lacan, o “furo” é um “lugar
vazio, para o qual qualquer coisa que represente a função de objeto para essa
pulsão pode ir”. Assim, ele conclui que “dizer que o objeto da pulsão é um furo, é o
mesmo que dizer que o objeto da pulsão é uma função ou um lugar”.
Além do fato de que esse vazio circunscreve um lugar a ser ocupado por
qualquer objeto, pode-se asseverar que não existe, na realidade, objeto do desejo, a
não ser que se designe tal objeto como objeto eternamente faltante (DOR, 1989,
p.146).
Aqui se faz necessário explicar que, para Lacan, a estrutura,
diferentemente do que se pensa na Antropologia, por exemplo, em que ela pode ser
compreendida somente como organizada pelo Simbólico, é vista como um Simbólico
organizado pelo Real. Em seu ensino, ele demonstra a incompletude do Simbólico, a
21
Nossa breve exposição a respeito dos matemas é fruto de inúmeras leituras de artigos e seminários
produzidos pela equipe de pesquisa em clínica psicanalítica da Universidade Toulouse II – Le Mirail.
As reflexões do grupo vem sendo expostas no endereço: http:// w3.erc.univ-tlse2.fr/seminaires.html
partir da escrita de S(A). “Este ‘buraco’ no Outro decorre do objeto a, impondo uma
prevalência do Real sobre o Simbólico” (LEITE, 2001, p.38-39).
Vale à pena destacar que Lacan procura conjugar em sua teoria “arte e
ciência”. O ilustre freudiano afirmava, sem modéstia alguma, que seus escritos não
se destinavam a uma simples leitura, mas, como formações do inconsciente,
deveriam ser decifrados. Em sua metodologia, optava por investigar e explorar um
único caso, em sua máxima complexidade, como fez seu mestre ao redigir o caso
Schreber, esperando que de um fato isolado jorrasse o universal. E Lacan levava tal
metodologia a sério, “no sentido de fazer série, de tirar o máximo de conseqüências
e insistir em uma direção” (JORGE & FERREIRA, 2005, p.10-24).
A partir da década de 70 do século XX, seu ensino passa por profundas
mudanças com “O seminário, livro 17”, intitulado “O avesso da psicanálise”.
Referência aos estudiosos do discurso, nele fundamentaremos nossa análise dos
extras.
Leiamos com atenção as palavras de Jacques Lacan:
“Pois bem, esses pequenos termos mais ou menos alados, S
1
, S
2
, S, a,
digo-lhes que podem servir em um número muito grande de relações. É
preciso simplesmente familiarizar-se com seu manejo” (LACAN, 1969-1970/
1992, p.199).
Dada a complexidade d’“O seminário, livro 17”, seguiremos, neste exato
momento, as reflexões de Luiz Carlos Nogueira (1999), o qual expõe, em seu
trabalho, de forma simplificada, o que esse Seminário significou em termos de
avanço na Psicanálise. Segundo o autor, temos que há uma mudança conceitual
efetuada por Lacan em relação à década de 50 do século XX, na qual ele enfatizava
a importância da cadeia de significantes, possibilitando a escuta analítica de maneira
totalmente distinta do que se fazia até então.
Aqui, cabe ressaltar a turbulenta ruptura de Jacques Lacan com a IPA
(International Psychoanalitical Association), que o proíbe de exercer função de
formação de analistas e que ele passa a denominar, ironicamente, SAMCDA
(Sociedade de Auxílio Mútuo contra o Discurso Analítico).
Mas, o que a IPA alegava? Jorge & Ferreira (2005, p.26-27) narram o
ocorrido, dizendo, primeiramente que, para os padrões da Associação, a prática
lacaniana de sessões de duração variável era incompatível com a Psicanálise
freudiana. Os autores continuam:
(...) a intervenção de Lacan no campo psicanalítico foi tão poderosa que ele
arrancou a psicanálise das mãos da IPA e a tomou para si. O legitimismo
que queria fazer da psicanálise uma propriedade da IPA, instituição fundada
por Freud, caiu por terra. Para Lacan, a psicanálise é um discurso e,
portanto, não diz respeito a títulos de propriedades. Por tudo isso, no
resumo do Seminário 11, redigido em meados de 1965 para a École
Pratique des Hautes Etudes e publicado na contracapa da edição francesa,
Lacan pontifica com arrogância que esse seminário visa nada menos do
que “ a restauração do real no campo legado por Freud a nossos cuidados’.
Vê-se que seus objetivos não poderiam ser mais ambiciosos e que seu
lugar neles não poderia ser mais essencial! Lacan não só fala do seu
“projeto radical”, mas também das questões subjacentes a esse projeto, que
tratam da relação entre psicanálise e ciência: a psicanálise é uma ciência?
O que é uma ciência que inclui a psicanálise? Depois de ter sido
considerado anátema pela IPA, (...) e de ter percebido que a IPA não é mais
uma instituição freudiana, ele funda sua instituição e a batiza de Escola
Freudiana de Paris. Não é por acaso que, na segunda lição do Seminário
11, referindo-se ao que estava em jogo [no que ele denomina de] sua
excomunhão, fala de recusa do conceito e introduz os quatro conceitos
freudianos fundamentais: inconsciente, repetição, transferência e pulsão. O
inconsciente é um conceito esquecido pelos pós-freudianos, pois eles
acham que a segunda tópica de Freud (Isso, Eu e Supereu) substitui a
primeira tópica (Inconsciente, Pré-consciente e Consciente). Lacan, ao
contrário, considera que, em 1920, Freud escreve Mais-além do princípio do
prazer, plataforma da segunda tópica, exatamente para chamar a atenção
dos analistas para algo de que eles estavam se afastando cada vez mais: o
inconsciente (ibid.).
Sauret (1999) considera que, a Psicanálise lacaniana “não hesita em se
explicar sobre a lógica de seu discurso” e de que, a lógica, de modo geral, “se
apresenta como um discurso consistente que sabe distinguir o verdadeiro e o falso,
o sim e o não e assentar na razão sua diferença”. Além disso, ela conclui que não
há a lógica científica de um lado e a psicanalítica do outro, mas sim que a lógica
matemática é a lógica da fantasia. Contudo, tal afirmação não significa que a
matemática seja uma fantasia, da mesma forma que nem tudo é fantasia. Muito pelo
contrário, a própria “identificação da lógica e da matemática leva a fazer da
matemática uma objeção à realização da ciência como fantasia!”
Convém assinalar que, a fantasia, para Freud, era tanto consciente
quanto inconsciente, “à maneira de uma formação psíquica em constante
movimento”. Mudando ininterruptamente de registro, em geral, ela permanece
inconsciente (NASIO, 1993, p.125).
Prossigamos com a excelente
22
explicação de Luiz Carlos Nogueira
(1999). Na década de 70 do século XX, diz ele, Lacan voltou-se para a linguagem da
lógica moderna. “O referente na linguagem estava sendo questionado, uma vez que
a percepção da natureza não era mais suficiente, como referente, para o mundo da
fantasia inconsciente”. O discípulo de Freud recorreu a Frege, o qual criou “símbolos
para uma linguagem artificial que desse conta do mundo das operações
matemáticas”. Assim, Lacan pensou que, a linguagem das fantasias inconscientes,
construída na relação analítica, estabelecia, “não um conhecimento da realidade
objetiva do analisante, mas um saber”. Que saber era esse, então? “Um saber
decorrente das articulações dos significantes que indicavam relações simbólicas, isto
é, posições sexuadas e sociais, (...), para além do prazer”.
Continuemos com o próprio Lacan (1969-1970/1992, p.47), em “O
Seminário, livro 17”:
O inconsciente permite situar o desejo, eis o sentido do primeiro passo de
Freud, já inteiramente não apenas implicado, mas propriamente articulado e
desenvolvido na Traumdeutung. Isto para ele já está dado quando, em um
segundo tempo, aberto para Além do princípio do prazer, afirma que
devemos levar em consideração essa função que se chama como? – a
repetição. A repetição, o que é? Leiamos o texto de Freud, e vamos ver o
que ele articula. É o gozo, termo designado em sentido próprio, que
necessita a repetição. Na medida em que há busca do gozo como repetição
que produz o que está em jogo no franqueamento freudiano – o que nos
interessa como repetição, e se inscreve em uma dialética do gozo, é
propriamente aquilo que se dirige contra a vida. É no nível da repetição que
Freud se vê de algum modo obrigado, pela própria estrutura do discurso, a
articular o instinto de morte. Hipérbole, extrapolação fabulosa e, na verdade,
escandalosa, para quem quer que tome ao pé da letra a identificação entre
inconsciente e instinto. É, a saber, o seguinte – a repetição não é apenas
função de ciclos que a vida comporta, ciclos da necessidade e da
satisfação, mas de algo diferente, de um ciclo que acarreta a desaparição
dessa vida como tal, que é o retorno do inanimado. O inanimado. Ponto de
horizonte, ponto ideal, ponto fora do traçado, mas cujo sentido se revela à
análise estrutural. Revela-se perfeitamente pelo que há de gozo. Basta
partir do princípio do prazer, que nada mais é do que o princípio da menor
tensão, da tensão mínima a manter para que subsista a vida. Isto demonstra
que, em si mesmo, o gozo o transborda, e o que o princípio do prazer
mantém é o limite em relação ao gozo.
22
A excelência do professor Nogueira, a qual nos referimos aqui, consiste em sua didática.
Nogueira (1999) elucida que, para a Psicanálise, a sexualidade humana é
comandada pela linguagem, em que se revelam diferenciações entre Desejo e Gozo.
Enquanto o primeiro “movimenta a cadeia de significantes”, o segundo faz com que
“o corpo fique numa relação de exclusão com a cadeia da linguagem”.
Na teoria de Jacques Lacan, o gozo revela o impasse na simbolização e,
seu proponente, da mesma maneira como procediam os lógicos matemáticos, criou
um símbolo – o objeto a – para formalizar esse lugar.
“Objeto causa do desejo e não objeto do desejo, o objeto a é um conceito
que retoma as formulações freudianas em torno da natureza do objeto pulsional”.
Ressaltando que a parcialidade, marca do objeto pulsional, leva Lacan a afirmar que
o conceito freudiano de pulsão é caracterizado pela falta do objeto. Como nomear,
assim, esse objeto faltoso que tem como função acionar o desejo? Recorrendo à
primeira letra do alfabeto: objeto a (JORGE & FERREIRA, 2005, p.28-29).
A subversão analítica se refere à preocupação lacaniana de mostrar que o
que ele chamou de Discurso Analítico subverte o discurso corrente, ou seja,
o Discurso do Mestre ou do Senhor, que pretende usar a linguagem para
exercer um domínio através do poder do conhecimento e das leis positivas.
(...) Lacan mostra que a linguagem manifesta uma demanda, para além do
objeto intencionado e significado. Levando em conta a realidade do
inconsciente, através da enunciação nos seus tropeços, é possível a
dedução de uma falta, indicando o movimento do desejo e a manifestação
de uma estrutura psíquica. O desejo aparece como um elemento essencial
da experiência humana, que emerge na linguagem e só por ela, revelando-
se inconsciente, e só podendo ser contornado num processo interminável.
Para formalizar tal fenômeno, Lacan propôs que se pensasse como
referência do desejo o desejo do Outro (grande outro), para diferenciá-lo do
outro (pequeno), o objeto percebido e intencionado. (...) Há aí o pressuposto
de que esse Outro, como lugar dos significantes, possa dar uma resposta à
investigação analítica. A Psicanálise estaria propondo uma investigação do
sentido da linguagem inconsciente. Seria a recuperação da verdade
subjetiva, anteriormente investigada como introspecção, agora, produzida
pelo método da Associação Livre e com o manejo da Transferência. (...) O
Seminário XVII, “O avesso da psicanálise”, também conhecido como o
Seminário dos Quatro Discursos, trouxe uma nova dimensão da linguagem.
O Discurso Analítico possibilitou duas principais conseqüências: um
Discurso sem Palavras, isto é, a importância do saber, como articulação
formal, diferentemente do conhecimento, e, principalmente, a indicação do
gozo como interesse maior da experiência analítica, agora voltada para as
relações da linguagem com o corpo (NOGUEIRA, 1999).
Desses quatro discursos, o que mais nos interessa, na atual subseção, é
o Discurso da Histeria. Por que? Porque Lacan (1993, p.40, grifo do autor) enuncia
que “o discurso científico e o discurso histérico têm quase a mesma estrutura”.
Segundo Nogueira (1999) o Discurso da Histeria é comandado pelo sujeito
questionador, no sentido de fazer com que o outro produza o saber.
Santuário (2004, p.53) diz que “se o discurso em direção ao saber pode
ser compreendido como uma manifestação de histeria, para Lacan, Hegel deve ser
referido como o mais sublime dos histéricos”.
Daí que Lacan não cessa de denunciar o imanentismo hegeliano, que se
mostra na marcha do sujeito da consciência em direção à completa
identidade consigo mesmo, em total autoconsciência. Isso é equivalente à
marcha de uma consciência imanente e mimética em relação a si mesma.
Daí que Lacan irá denunciar a barbaridade do saber absoluto. O avesso da
psicanálise é o discurso do mestre, cujo representante mais apropriado e
legítimo se encontra na tradição filosófica (ibid.).
O Discurso do Mestre é, na explicação de Nogueira (1999), o “discurso
apresentado ao outro como O Saber que satisfaria o desejo”. O mesmo autor (2004,
p.86, grifo nosso), ao discorrer sobre a pesquisa em Psicanálise, explica que Freud,
quando se propôs a tratar seus pacientes, não investigando seus organismos, mas
convidando-os a associar livremente, fez uma mudança radical na concepção de
como lidar com eles. A Psicanálise, então, diferentemente do que se fazia
anteriormente a Freud, consiste em uma “relação entre falantes”, uma ciência
humana, “porque só o ser humano é um ser falante”.
Lacan percebe desde o início de sua trajetória intelectual o primado dessa
relação de fala entre analista e analisante em Freud e indaga, em se tratando do
discurso, isto é, da realidade social da comunicação, acerca da mutação que sofrem
aí os determinantes da cadeia significante, que são o significado e o significante
substitutivo, diferenciados, respectivamente, por Lacan, como “sítios” permanentes,
posições constitutivas da estrutura de todo discurso, e “termos” móveis, elementos
constitutivos de toda cadeia falada. No esquema lacaniano, há o corte que
proscreve, de um lado, a imediação entre a verdade e sua representação em uma
relação dual, de outro, a imediação entre o lugar de encaminhamento da mensagem
social e sua produção. Isso será assegurado pela reintegração da Barra,
incorporada do legado de Saussure, do significante ao significado, sob a forma de
uma barra representativa do duplo corte discursivo (KAUFMANN, 1996, p.131-132,
grifos nossos).
O significante, diversamente do signo, é aquilo que representa um sujeito
para outro significante. Fica claro então, que não se trata de representação, mas de
representante. O que se descobre na experiência de uma psicanálise é justamente
da ordem do saber, e não do conhecimento ou da representação. O discurso já está
no mundo e o sustenta; não apenas já está inscrito, como faz parte de seus pilares.
Pouco importa a forma das letras onde inscrevemos essa cadeia simbólica, pois isso
basta para que algo de relações constantes se manifeste (LACAN, 1969-1970/1992,
p.13-14).
No esquema de Lacan, cada discurso tem um agente, que é agente frente
a um outro. Esse, levado a agir por aquele, gera um produto, sendo o agente um
ator sustentado por uma verdade (ALBERTI, 2000, p.39, grifos do autor).
Essas posições podem ser ocupadas por S
1
, significante Mestre, S
2
, outro
significante, S, sujeito dividido e objeto a.
Não deixamos de designar o ponto de onde extraímos essa função do
objeto perdido [objeto a]. É do discurso de Freud sobre o sentido específico
da repetição no ser falante. De fato, não se trata, na repetição, de qualquer
efeito de memória no sentido biológico. A repetição tem uma certa relação
com aquilo que, desse saber, é o limite – e que se chama gozo. Eis porque
é de uma articulação lógica que se trata na fórmula pela qual o saber é o
gozo do Outro. Do Outro, obviamente, na medida em que o faz surgir como
campo – posto que não há nenhum Outro – a intervenção do significante
(LACAN, 1969-1970/1992, p.13).
A partir da teoria dos discursos de Jacques Lacan podemos verificar,
então, as posições que um determinado sujeito assume no laço social, o que indica,
conseqüentemente, que comunicação e sociedade são conceitos indissociáveis na
Psicanálise. Mas, o que Freud e Lacan compreendem, especificamente, por cultura
e sociedade? Como abordar os meios de comunicação com o auxílio da perspectiva
psicanalítica? A próxima subseção pretende trabalhar com essas – e outras –
questões.
4.2 Comunicação e cultura entre Freud e Lacan
Para a introdução deste tópico, que consideramos complexo e denso,
apoiar-nos-emos no importante verbete, sobre Psicanálise e Comunicação, contido
no dicionário editado por Kaufmann (1996), um clássico da Psicanálise lacaniana:
Fundar uma filosofia da comunicação é não ceder em dois pontos
essenciais, contraditórios aos modismos de nosso fim de século: – A
comunicação é um objeto de ciência. Quer a chamemos cibernética, teoria
dos códigos ou teoria da transmissão, é preciso entender com isso que se
trata de uma ciência no sentido mais rigoroso, e que qualquer inspiração
que não seja epistemológica é inaceitável: ninguém entra nela sem ser
matemático. – A comunicação escapa às ciências da natureza por tudo o
que faz com que o autômato não se comunique sozinho e com que o
homem seja apenas uma máquina. Quer busquemos provas disso no
exercício da política e do discurso, na relação singular induzida pela
hipnose, no curto-circuito da comunicação instituído pela relação analítica,
ou na teoria e prática do marketing, tal como as ensinam as estratégias do
sabão em pó e da mídia, nada é mais evidente do que essa dimensão
propriamente viva, que tudo deve ao encanto e nada à aritmética: de sua
eficácia depende a quase totalidade das economias contemporâneas. Os
engenheiros produziram algumas reflexões, raramente: surdos para a
música da fala, eles só ouvem aquilo que se presta ao cálculo. (...) A
psicanálise instala-se prontamente numa relação de comunicação: por isso,
produzindo sua teoria pari passu com sua clínica, Freud nos propõe uma
verdadeira teoria da comunicação. Há três momentos decisivos em relação
a isso: – o primeiro, bem conhecido, por volta de 1900, coincide com o
nascimento da psicanálise e com a renúncia à hipnose; – o segundo, por
volta dos ensaios de 1915 reunidos na Metapsicologia, aborda de frente o
tema da comunicação; – de 1921 e do ensaio Psicologia de grupo e a
análise do eu até os últimos anos e às “Construções em análise”, assistimos
a um retorno aos temas precedentes e mesmo a um aprofundamento que
perpassa todo o questionamento sobre a comunicação: a ética da
psicanálise é a mesma da comunicação. (...) Tanto em sua prática quanto
em seu ensino, portanto, Freud seria analista da comunicação. Que vem a
ser, com efeito, o dispositivo analítico, senão uma reflexão contínua de
Freud, ao longo de uma vida inteira, sobre a eficácia da comunicação? (...)
Primeira etapa: a psicanálise é arte interpretativa e se constitui por sua
rejeição da hipnose como acesso ao foro íntimo de outrem. O analista, por
sua atitude passiva, limita-se a colher a fala do paciente e a lhe comunicar o
resultado de sua adivinhação. Mas, ao resgatar para essa comunicação a
noção de “momento oportuno”, o kairos da sofística, poderá ele ainda
aspirar à passividade da atenção flutuante? Daí a segunda etapa: a
psicanálise funciona, na verdade, pela construção. Esta é a obra do
analista, e o circuito da comunicação fica reequilibrado: o analista constrói, o
analisando rememora. Mas, assim fazendo, a que validade pode aspirar a
construção, qual é o estatuto da prova em matéria de comunicação? Daí a
terceira etapa: que diferença distingue a transferência analítica da sugestão
hipnótica? (...) A ética da comunicação ordena que ele [o psicanalista]
renuncie aos poderes da hipnose; a construção só se valida pela
confirmação do analisando em seus atos, e a comunicação imediata e
contínua de inconsciente para inconsciente deve ser mediada na relação de
comunicação descontínua instituída pela fala. (...) Assim se constituiu a
psicanálise, a partir de sua rejeição da hipnose, mas sem por isso
transformar-se numa máquina de interpretar (ARNAUD, 1996, p.601-605)
O longo excerto, destacado acima, circunscreve a relação do fundador da
Psicanálise com a comunicação em sua práxis clínica. Sintetizando as diferentes
maneiras como Freud lidava com o material simbólico produzido por seus
analisandos, esse trecho enfatiza a cientificidade que ele buscava para abordar a
linguagem e os fenômenos comunicacionais, bem como as mudanças que advinham
dessa busca. Interpretação, construção e transferência sustentaram o trabalho de
Freud com a palavra ao longo de sua trajetória.
Lacan, durante todo seu ensino, esteve muito atento a esses
desdobramentos, demonstrando que a essência da comunicação é o mal-entendido
e que é um erro tradicional imaginar que a linguagem tenha por função apreender
uma referência. Para esse continuador da obra freudiana, quando se quer designar
algo, não há uma palavra adequada para dizê-lo e é sempre em relação a outros
significantes que se pode formular alguma coisa. A matriz mínima da linguagem é S
1
e S
2
que, na teoria dos conjuntos, chama-se par ordenado. Nesse sentido, a
linguagem-objeto é uma ilusão. Mesmo quando se fazem linguagens formais, há
algo que não se pode sobrepassar, que é a língua materna, sempre necessária para
a introdução dos significantes formais (MILLER, 2002, p.36-37). Sem a relação
estabelecida com a alteridade, como poderia o sujeito se constituir? Lacan (1978,
p.259) diferencia o Outro com “o” maiúsculo e o outro com “o” minúsculo. Ele diz que
Se eu falo da letra e do ser (do ponto e do onto), se eu distingo o outro e o
Outro, é porque Freud m’os indica como os termos em que se referem
esses efeitos de resistência e de transferência, aos quais tive de medir-me
de maneira desigual, nos vinte anos que eu exerço essa prática –
impossível, todos se comprazem em repeti-lo, da psicanálise. É também
porque me é preciso ajudar os outros a aí não se perderem.
Dor (1989, p.154) considera imprescindível elucidar o caráter fundamental
da referência ao Outro, que se encontra no princípio mesmo do processo de
comunicação, sendo o código isótopo ao lugar do Outro, “de onde resulta que o
inconsciente é o discurso do Outro”.
O Outro é o lugar do significante, é o registro do simbólico, que Lacan
denomina de Outro na medida mesma em que o campo dos significantes é
faltoso, é incompleto e nele há sempre a possibilidade de introduzir, por
meio de um ato criativo, um novo significante. Não é outra coisa o que faz o
poeta e é o que confere a ele sua suma importância, pois não é outra sua
aspiração. A bateria dos significantes tem uma estrutura “descompletada”,
ela é homóloga à série de números inteiros: ambas são uma série infinita,
seu termo derradeiro não existe, pois há sempre a possibilidade de nelas se
incluir mais-um significante ou mais-um número. O que Lacan chamou de
S(A) é precisamente aquele significante, S, que indica a incompletude do
Outro (A), que é por isso mesmo perpassado pela barra tal como o sujeito,
S. Tal denominação, S (A), pode ser equiparada ao número transfinito
introduzido por Cantor para nomear o último número da série de números
inteiros que, evidentemente, não há. Logo, o lugar do significante é
nomeado por Lacan de Outro porque ele jamais é o mesmo, ele é sempre
diverso de si mesmo, ele nunca apresenta uma identidade definitiva: ele é
pura alteridade. Assim, atestar que “não há Outro do Outro” implica formular
a radical incompletude do Outro: para além desse regime faltoso, furado da
linguagem, nada vem em suplência. O Outro não poderia possuir uma
alteridade para além de sua própria, ele já é a alteridade, ele já é Outro
continuamente: nada vem lhe garantir qualquer limite definido. Dito de outro
modo, o aforismo lacaniano “não há metalinguagem” vem corroborar que
“não há Outro do Outro”: jamais se sai do regime da linguagem, está-se
sempre mergulhado no “campo da linguagem” e não existe qualquer outra
linguagem que venha dar conta desse “campo” (JORGE, 2002, p. 92, grifos
do autor).
Por mais que a Comunicação Social se defina, dentre outras coisas, como
a área do saber que lida com a comunicação pela via de aparatos técnicos, os
comunicólogos sabem que são seres humanos que os construíram e que se
relacionam por meio deles. Dominique Wolton (2006, p. 15) acredita que, “embora a
economia e as técnicas prevaleçam hoje, nunca se deve perder de vista a
perspectiva antropológica e ontológica da comunicação”. Atentos às palavras de
Wolton, deixemos claro, então, que a reflexão do fundador da Psicanálise se abre
para “uma problemática da alteridade e não sobre uma ontologia”(DAVID-MÉNARD,
2004, p. 194).
Em “Totem e tabu”, Freud (1913/2006) coloca que, na origem do humano
há um crime: o parricídio. No mito da horda primitiva, há um primeiro momento, o do
acontecimento, no qual se dá o assassinato do pai, e, um segundo momento, em
que a organização fraterna padece dos retornos de seu ato primitivo, seja na
prescrição de um ideal a ser seguido – o totem – seja pela restrição da satisfação –
tabu. Em síntese, a produção do ato e sua inscrição compõem o tempo de fundação
da cultura, situando um ponto de referência inicial no espaço/tempo da história
(POLI, 2004).
Lacan (1969-1970/1992), discorrendo sobre o papel do elemento
mitológico em Freud, seja em relação ao Complexo de Édipo, que ele coloca em
termos de metáfora paterna, seja em relação à “essa história danada de assassinato
do pai da horda” (p.118), define o mito como um conteúdo manifesto que precisa ser
colocado à prova para que se possa depreender seu conteúdo latente. Em outras
palavras, o mito é “a tentativa de dar forma épica ao que se opera da estrutura”
(LACAN, 1993, p.55). A horda deve ser tomada como “proto-organização da
comunidade, como fase intermediária entre o estado animal e o advento da cultura”
(MEZAN, 2006, p.550). Lacan (1969-1970/1992) afirma, contudo, que, do pai da
horda jamais se viu o menor rastro; orangotangos, sim, foram vistos.
Miticamente – e é o que quer dizer mítica mente –, o pai só pode ser um
animal. O pai primordial é o pai anterior ao interdito do incesto, anterior ao
surgimento da Lei, da ordem das estruturas da aliança e do parentesco, em
suma, anterior ao surgimento da cultura. Eis porque Freud faz dele o chefe
da horda, cuja satisfação, de acordo com o mito animal é irrefreável. Que
Freud chame esse pai de totem adquire todo sentido à luz dos progressos
introduzidos pela crítica estruturalista de Lévi-Strauss, sobre a qual vocês
sabem que põe em relevo a essência classificatória do totem (LACAN,
2005, p.73, grifos do autor).
Lacan (p.73-74) julga necessário colocar, no nível do pai, um segundo
termo depois do totem: a função do nome próprio, “marca já aberta à leitura – eis por
que ela será lida da mesma forma em todas as línguas” – impressa sobre algo que
“pode ser um sujeito que vai falar, mas que não falará de modo algum
obrigatoriamente”. É no seminário dedicado à identificação (1961/1962), que Lacan
trata em profundidade da incidência do Um na estruturação do inconsciente (POLI,
2004). Em “O seminário, livro 17”, ele retoma essa questão, dizendo que, a propósito
do pai, no discurso freudiano de 1921, intitulado “Psicologia das massas e análise do
eu”, é precisamente a identificação ao pai que é dada como primária. Ele é, de
maneira privilegiada, aquele que merece o amor (LACAN, 1969-1970/1992, p.92).
Em “O Seminário, livro 8”, Lacan (1960-1961) esclarece que a
identificação não diz respeito à relação entre indivíduos empíricos, mas sim a
relações entre significantes (POLI, 2004). Um é o significante de uma existência,
passo necessário na identificação sexual. Enquanto o zero se reporta ao
assassinato do pai primevo, o unário instaura o registro do possível: possibilidade do
sujeito e do dito (VIDAL, 2001, p.46).
Em “Totem e Tabu” (FREUD,1913/2006), está posto que cada fratria
incorpora uma parte do pai morto. Os irmãos, no entanto, renunciam, não somente à
sua mãe, mas a todas as fêmeas desse pai. Depois de sua morte, a interdição é
reforçada, já que uma lei ainda mais rigorosa se impõe aos filhos. A culpa, que do
parricídio provém, está na origem de todas as formações culturais. No plano
individual, cada criança, no momento do declínio do Édipo, internaliza a instância do
supereu, “incorporando” o pai. O remorso resulta da ambivalência dos sentimentos
em relação a ele (JULIEN, 1996, p.73-76, grifo do autor).
O Nome-do-Pai
23
, que sucesso! Isso fala a todos. A paternidade tem
pouquíssima evidência natural, sendo antes um fato cultural. “O Nome-do-
Pai, diz Lacan, cria a função do pai”. (...). Entendamos: o Pai não tem Nome
próprio. Não é uma figura, é uma função. O Pai tem tantos nomes quantos
suportes tem a função. Sua função? A função religiosa por excelência, a de
ligar. O quê? O significante e o significado, a Lei e o desejo, o pensamento
e o corpo. Em suma, o simbólico e o imaginário (MILLER, 2005).
O pai intervém no campo conceitual da Psicanálise como um operador
simbólico a-histórico, entidade simbólica que ordena uma função. Excluído da
história, ele está, paradoxalmente, inscrito no ponto de origem de toda história. A
única história que lhe podemos logicamente supor é uma história mítica (DOR, 1991,
p.13-14, grifos do autor).
De modo geral, podemos concluir que, pelo dispositivo do supereu, Freud
tentou explicar a gênese da consciência moral, do sentimento de culpa, dos ideais
sociais do eu e da internalização da lei simbólica. No momento em que desenvolvia
seu pensamento, ele se deparava com um processo no qual socialização e
repressão convergiam (SAFATLE, 2005).
Mas Lacan (1993, p.52) elucida que Freud não afirmou que o recalque era
originado pela repressão. O supereu, sendo estrutural, não é efeito da civilização,
mas “mal-estar na civilização”.
23
Explicação de Jacques-Alain Miller contida na contracapa da edição brasileira do original Des
Noms-du-Père. A respeito da obra em português, consultar nossas referências ao final.
O recalque propriamente dito é um processo ativo que emana do eu
(JORGE, 2002, p.23, grifos do autor).
Em síntese, a Psicanálise insistiu no papel das identificações como
processos centrais na socialização e sustentação dos vínculos sociais. Socializar é,
fundamentalmente, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que servem de
modelo. No entanto, a fim de dar conta de dois modos distintos de “fazer como”, a
Psicanálise lacaniana se viu obrigada a estabelecer uma diferenciação entre
identificação imaginária, fundada na introjeção constitutiva e especular da imagem
de um outro que tem o valor de tipo ideal, e identificação simbólica que, esta, indica
o reconhecimento de si em um traço unário vindo de um Outro – este, com “o”
maiúsculo – na posição de Ideal do eu (SAFATLE, 2005).
Com o declínio da figura ideal paterna, verificado na Modernidade Tardia
ou Pós-Modernidade, como queiram, foi aberto espaço para o advento de figuras
fantasmáticas de autoridade que se assemelham ao pai primevo do mito freudiano
de “Totem e tabu”, pai-senhor do gozo, père-version, que pauta sua conduta pela
busca incessante de satisfação imediata. Logo, em um momento histórico no qual o
supereu aparece vinculado ao imperativo do gozo, os sujeitos são chamados a
assumir seus fantasmas na arena do mercado. Aliás, a assunção do fantasma é
cada vez mais a forma de reconhecimento entre sujeitos (SAFATLE, 2005, grifos do
autor).
O cinema e a televisão sempre se notabilizaram pela recriação contínua
de modelos de identificação. Mas Safatle (2004) nos diz que, a respeito da mídia
como Outro,“estrutura sócio-simbólica que suporta e configura a integralidade dos
vínculos sociais”, há muito ainda a ser teorizado, já que ela se coloca como espaço
de mediação social por excelência. O que o autor vem constatando em suas
pesquisas acerca da retórica do consumo e da indústria cultural é que há uma
tendência, principalmente no discurso publicitário, de se conceber o corpo como uma
interface de conexão reconfigurável a qualquer momento. As aspirações de
singularidade, segundo Safatle (2004), tendem a migrar para a negação bruta, em
que se destacam formas de implementação de pulsões de auto-destruição contra a
imagem do corpo e o desejo pelo informe.
Para Maria Rita Kehl (2003b), o problema maior da cultura midiática é o
imperativo mercadológico que a sustenta. Diferenciando o “bom” e o “mau” produto,
de acordo com critérios de audiência e lucro, ele prima por tirar de circulação
expressões culturais pouco rentáveis, mesmo que elas se destaquem pela
criatividade. Nesse sentido, a novidade se rege pela dinâmica veloz do consumo e
mascara a intolerância a tudo que não se encaixa nos padrões impostos pelo
mercado. O mesmo é revestido de várias máscaras.
No campo do marketing, as estratégias persuasivas colocadas em ação
pelo discurso publicitário visam tiram proveito da “relação fundamentalmente
paranóica do homem com seu objeto” (MILLER, 2002, p.17).
Que significa dizer que a relação do homem com seu objeto é paranóica?
Significa que o objeto lhe interessa na medida em que o outro está disposto
a tomar-lho; esse é, por outro lado, o nível de conhecimento em que se
situam os especialistas da publicidade: para criar a demanda deve-se dar a
entender que o produto é raro, quer dizer, que os outros o vão arrebatar. (...)
Isso dá conta do caráter histérico do desejo humano, que é sempre
fundamentalmente desejo do outro”(ibid.).
O capitalismo, no empenho de colocar o objeto de consumo no lugar da
falta fundadora do desejo, “empurra” o sujeito na direção contrária à castração
(ZANGHELLINI, 2006, p.31-32, tradução nossa adaptada do original).
É nessa lógica de prevalência do gozo perverso que, na atualidade, a
informação se transformou em fetiche, objeto que impede a apresentação da falta no
Outro e defende o sujeito da angústia da castração.
O inconsciente permite situar o desejo, eis o sentido do primeiro passo de
Freud, já inteiramente não apenas implicado, mas propriamente articulado e
desenvolvido na Traumdeutung. Isto para ele já está dado quando, em um
segundo tempo, aberto por Além do princípio do prazer, afirma que
devemos levar em consideração essa função que se chama como? – A
repetição. A repetição, o que é? Leiamos o texto de Freud, e vamos ver o
que ele articula. É o gozo, termo designado em sentido próprio, que
necessita a repetição. Na medida em que há busca do gozo como repetição
que se produz o que está em jogo no franqueamento freudiano – o que nos
interessa como repetição, e se inscreve em uma dialética do gozo, é
propriamente aquilo que se dirige contra a vida (LACAN, 1960-1979/ 1992,
p.47).
Segundo Poli (2004), há uma dispersão de interpretações sobre o sintoma
social na literatura psicanalítica e, em razão disso, a autora propõe um avanço na
leitura do “mal-estar na cultura” pela aproximação entre neurose e laço social e entre
perversão e cultura. De acordo com sua leitura da obra de Freud, o elemento cultural
– atemporal, posto que mítico – fundaria a humanidade, enquanto os laços sociais
estabeleceriam a história, inscrevendo, ao longo do tempo, as formas de enlace que
os humanos constituem entre si. A sociedade conduziria à neurose, sendo a
perversão um produto da cultura. A autora enfatiza que, mais do que estruturas
clínicas, ela está lidando, na verdade, com momentos lógicos no processo de
subjetivação.
Mas, como Poli (2004) chega a esta conclusão? A partir da referência
freudiana que coloca a neurose como o negativo da perversão nos “Três Ensaios
sobre a Teoria da Sexualidade”, publicados em 1905. A neurose, nessa referência,
é segunda em relação à perversão; ela é um efeito do recalque que, na visão de
Freud, a estrutura ternária do Édipo opera sobre a sexualidade infantil, perversa
polimorfa. A autora cita um importante trabalho de Valas, o qual afirma que, o
fantasma perverso é inconsciente na neurose e consciente na perversão. Esta, por
sua vez, está presente na própria estrutura da neurose e no fantasma que sustenta
o sintoma neurótico.
No fantasma perverso, o significante em estado puro se sustenta sem a
relação intersubjetiva, esvaziado de seu sujeito. O gozo do puro deslocamento
significante se objetifica, se reifica, na imagem do objeto a. Assim, o sujeito rejeita,
pelas vias objetificadoras do fantasma perverso, sua divisão e sua característica de
falta-a-ser. A perversão produz o fetiche responsável pela dissimulação da
impossibilidade de gozo. A função fetiche do objeto consiste na exposição de seu
caráter metonímico. Mais exatamente, o fetiche se define como a imagem daquilo
que não se apresenta no deslocamento significante, isto é, o próprio trabalho do
desejo. Ele é a imagem mesma do movimento congelado em um momento de
suspensão. Logo, a noção de fixação perversa deve ser compreendida como um
certo procedimento de objetificação do movimento de deslocamento significante.
Aceitar a castração, nesse contexto, significaria, então, reconhecer a impossibilidade
do Todo (SAFATLE, 2000b).
Vejamos, em continuidade ao exposto, como o tratamento da informação
no campo da Comunicação Social, a partir de certos agenciamentos discursivos nos
produtos midiáticos, é expressivo de um laço social regulado pelo gozo perverso.
5 A INFORMAÇÃO COMO MATÉRIA-PRIMA NO CAMPO DA
COMUNICAÇÃO SOCIAL
5.1 Informação e democracia
“Nem tudo é político, com certeza, mas existe, em todos os níveis, certa
presença do político, isto é, da organização do poder e da decisão”. Esta citação,
extraída do brilhante historiador francês Pierre-Vidal Naquet (2002, p.235), será
nosso ponto de partida para pensarmos as relações entre gestão da informação e
democracia no campo da Comunicação Social.
O conceito de “partilha do sensível”, tal como proposto por Jacques
Rancière (2005, p.15-17, grifos do autor), parece-nos operatório para nosso objetivo
imediato, a saber, promover a articulação entre informação, política e democracia.
Nesse conceito estaria, segundo o filósofo, a chave da junção entre práticas
estéticas e práticas políticas. Acompanhemos sua argumentação. Ele denomina a
partilha do sensível como sendo o “sistema de evidências sensíveis que revela, ao
mesmo tempo, a existência do comum e dos recortes que nele definem lugares e
partes respectivas”. Logo, uma partilha do sensível estabelece, simultaneamente,
um comum partilhado e partes exclusivas. Na Antiguidade grega, os artesãos, dizia
Platão, não poderiam participar das coisas comuns porque não teriam tempo para se
dedicar a outra atividade que não fosse o trabalho. Aristóteles equiparava o animal
falante ao animal político, mas, quanto ao escravo, mesmo se ele compreendesse a
linguagem, não a “possuía”. “A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte
no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade
se exerce”. Há, portanto, na base da política, uma estética que deve ser
compreendida no sentido kantiano como o sistema das formas a priori determinando
o que se dá a sentir. Trata-se de um “recorte dos tempos e dos espaços, do visível e
do invisível, da palavra e do ruído” que estabelece, concomitantemente, o lugar e o
que está em jogo na “política como forma de experiência”. “A política ocupa-se do
que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência
para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do
tempo”. Conclui-se, assim, que é a partir dessa “estética primeira” que a questão das
“práticas estéticas” podem ser colocadas. Essas dizem respeito a formas de
visibilidade das práticas de arte que devem ser entendidas como “maneiras de
fazer”.
No campo da Comunicação Social, as “práticas midiáticas” também
podem ser colocadas a partir do que Rancière postula como “estética primeira”. Elas
também “fazem política”, pois são movidas por interesses de uma classe social
específica que determina quais conflitos humanos podem ser expostos, o que se
pode dizer deles, o que não se deve mostrar e quem está habilitado a tomar a
palavra. As práticas midiáticas se caracterizam, então, pelo tratamento constante da
informação.
Afiliados ao Discurso do Mestre, tal como formulado por Lacan, os
profissionais da área de comunicação devem saber utilizar as regras da
“objetividade” em determinados contextos, mas, também, devem estar aptos a lidar
com a letra, tal como o poeta, que busca instaurar em seus textos a presença do
belo. Esses profissionais aprenderam que o trabalho com a língua envolve não
apenas o que é dito, isto é, o enunciado, mas, sobretudo, o modo de dizer, a
enunciação. Em síntese, eles são detentores de um know-how. No entanto, sua
práxis cotidiana, não só com as palavras, mas, igualmente, com imagens e sons,
está na dependência da posição que ocupam em uma hierarquia complexa que
envolve relações de poder.
Não podemos nos esquecer que o jornalista, o publicitário e os
especialistas de rádio e TV ou de relações públicas podem também exercer a função
de pesquisadores e estarem afiliados, igualmente, ao Discurso do Universitário, “no
qual um saber equivale a outro, desde que bem sustentado por títulos acadêmicos”.
A universidade implica, destarte, em uma “subversão discursiva em relação ao
Discurso do Mestre”. No entanto, na atualidade, esse saber está sendo subsumido
pelo Discurso do Capitalista. Em meados da década de 60 do século passado,
Lacan já se referia ao científico, não como herança do legado de Descartes, mas
revelando sua contemporânea interseção com o Discurso do Capitalista que anula
os laços sociais. Nele, então, não há relação entre o agente e o outro; S
1
se dirige a
S
2
, colocando o gozo a seu serviço. O outro não é mais, como no Discurso do
Mestre, aquele que detém um saber, por mais que esse seja da ordem da doxa; o
outro é reduzido a seu lugar de gozo que, no Discurso do Capitalista, volta a S
1
,
aumentando o seu capital. Contudo, enquanto no Discurso do Mestre é impossível
ao sujeito aceder a esse gozo, no Discurso do Capitalista isso se torna viável, de
forma que a castração fica foracluída e o sujeito fixado nesse lugar que o S
1
determina. Em suma, o Discurso do Capitalista não exige a renúncia pulsional e
sustenta, sobretudo, a pulsão de morte. Assim, quando, no Discurso Universitário, o
saber se conta em títulos acadêmicos e quantidade de publicações, pouco
importando se esses títulos condizem a algum estofo de sujeito e à qualidade do que
se publica, um pequeno passo seria suficiente para instituir a perversão na própria
ordem do discurso. E essa perversão é a que abre a porta para o Discurso do
Capitalista (ALBERTI, 2001, p.47-51). Logo, nem o profissional e nem o
pesquisador de Comunicação Social estão isentos de sentirem os efeitos
devastadores desse processo.
Lacan seguiu os passos de Marx para aprimorar seus próprios conceitos.
Marx é, para ele, o primeiro que mostrou que a emergência histórica de um
verdadeiro mercado do trabalho constituía o ponto de virada da economia moderna.
O discurso marxiano teorizou sobre a classe dos que, para subsistir, tinham como
único recurso a venda de sua força de trabalho. O assalariamento condicionou o
processo de acumulação próprio ao capitalismo contemporâneo, que repousa na
extração metódica da mais-valia por uma classe chamada burguesa. Esta detém os
meios de produção e compra a força de trabalho como uma mercadoria qualquer. O
saber do “homem-mercadoria” vale um certo preço no mercado e o discurso da
ciência torna homogêneo o valor desse saber. Há, nesse sentido, um mercado dos
saberes. A mais-valia é trabalho não pago. Em Lacan, a mais-valia é re-batizada: ela
é o mais-de-gozar, o objeto a ao qual o Eu renuncia na produção e que se realiza no
mercado na forma de valor de troca que as mercadorias podem ter. O capitalista
renuncia a seu gozo reinvestindo o mais-de-gozar, que ele acumulou, em novos
meios de produção ou na contratação de novos assalariados, os quais renunciam a
uma fração de seu gozo. Marx denuncia essa espoliação do gozo captado por
alguns em detrimento da maioria. A reivindicação que disso resulta é, segundo
Lacan, da ordem da frustração. Há sempre uma falta radical que separa o Eu do
produto de seu trabalho e que o frustra. O pensamento econômico moderno desde
Keynes fundou sua pertinência em políticas de redistribuição que, graças ao papel
exercido pelo Estado no orçamento e na fiscalização permitem, teoricamente, um
relançamento da demanda pelo consumo. A postura dos governos atuais é
implicitamente keynesiana. O produtor transformou-se em consumidor. Ele goza do
mais-de-gozar que ele produziu e esse gozo tornou-se norma social. Ele goza de
objetos de consumo que lhes são propostos no mercado e que sinalizam a
prevalência do objeto a como agente operatório do discurso capitalista
contemporâneo. A frustração, atualmente, parece estruturar a aspiração social a um
gozo generalizado (CATHELINEAU, 2002, grifo nosso, tradução nossa, adaptada do
original).
Segundo Wolton (2006, p.10), “o essencial da comunicação não está ao
lado das técnicas, dos usos e dos mercados, mas ao lado da capacidade de ligar
ferramentas cada vez mais performáticas a valores democráticos”. Wolton aponta
para a necessidade da relação entre comunicação e democracia, o que nos motiva
situar essa questão de outra maneira.
Primeiramente, “a democracia é possível porque a política é possível, e a
política é, por definição, assunto de todos”. Democracia, invenção grega por
excelência, imortalizada nos registros de Heródoto que constata que, logo após a
reforma de Clístenes, a prosperidade de Atenas poderia ser atribuída não a uma
igualdade abstrata, como se afirma muitas vezes, mas sim à isegoría, o direito legal
à palavra, par da isonomia, o direito legal à elaboração e à recepção da lei, que
foram os primeiros nomes da democracia. Mas esta participação, sobre a qual se
discutiu e se discutirá sempre, não suprime os antagonismos econômicos. O que
inclui, exclui. Excluem-se as mulheres, os estrangeiros, os escravos, isso sem falar
nos jovens, excluídos provisórios, sendo a exclusão ateniense mais radical do que
em Esparta (VIDAL-NAQUET, 2002, p.178-179).
Em ”O mal-estar na cultura”, Freud (1929) inaugura uma longa reflexão
sobre o mandamento: “Amarás teu próximo como a ti mesmo”, pontuando sua
surpresa diante da estranheza de tal mandamento. Ele se questiona como seria
possível realizar esse amor, sendo o homem um ser que tem que computar uma boa
dose de agressividade. Belo ideal esse de amar o próximo, mas nenhum esforço
empreendido pela civilização em nome desse mandamento surtiu, até hoje, grande
efeito. A fraternidade fundamentou-se sempre na segregação, o amor entre os
semelhantes no ódio ao dessemelhante. Ao que Freud conclui que “é sempre
possível unir entre si pelos laços do amor uma massa maior de homens, sob a
condição de que restem outros fora dela para receber os golpes”. Fato curioso, uma
sociedade que se pretenda fundamentada no amor acaba, efetivamente, em seu
avesso, a intolerância (JULIEN, 1996, p.21-22, grifos do autor).
Como articular, então, comunicação e democracia em uma civilização
marcada, inexoravelmente, pela desarmonia?
O idílio reinante vê na democracia consensual a concordância racional de
sujeitos e de grupos sociais, que compreenderam que o conhecimento do possível e
a discussão entre parceiros são, para cada parte, uma maneira de obter a parcela
optimal que a objetividade dos dados contextuais lhe permite esperar,
preferivelmente ao conflito. Antes de se caracterizar pela preferência dada à paz em
relação à guerra, o consenso é um regime do sensível em que as partes já estão
pressupostamente dadas. Tem-se um mundo em que tudo pode ser visto e em que
tudo pode ser regulado por meio da objetivação dos problemas. Em síntese, tem-se
o desaparecimento da política (RANCIÈRE, 1996, p.105, grifos nossos).
N’A sagrada família, Marx (1845) escreve que Robespierre, Saint-Just e
seus partidários fracassaram, ao confundir, o Estado realista e democrático antigo,
sedimentado na escravidão efetiva, com o Estado representativo espiritualista e
democrático moderno, baseado na escravidão emancipada, a sociedade burguesa
(VIDAL-NAQUET, 2002, p.239).
A solução seria, então, o fim do modo de produção capitalista?
Lacan (1966, tradução nossa), fundamentando seu argumento a partir de
sua teoria materialista da linguagem, questiona a possibilidade de uma
ultrapassagem, pelo sujeito, de seu trabalho alienado, por meio de uma revolução.
Ele enfatiza a dimensão antropológica da alienação.
Sujeito do desejo alienado, (...) aquilo que eu enuncio como: o desejo de – é
o desejo do Outro, o que é certo, na medida em que não há sujeito de
desejo. Há o sujeito do fantasma, isto é, uma divisão do sujeito causada por
um objeto, a saber, obstruída por ele, ou mais exatamente, o objeto cuja
categoria da causa tem lugar dentro do sujeito. Esse objeto é aquele que
falta à consideração filosófica para se situar, ou seja, para saber que ela
não é nada. (...) Esse objeto é aquele atrás do qual se corre na psicanálise,
de maneira desajeitada, com o intuito de teorizá-lo. Apenas quando esse
objeto, que eu denomino objeto a, (...), tiver seu estatuto reconhecido, nós
poderemos dar um sentido ao suposto objetivo [atribuído] à práxis
revolucionária de uma ultrapassagem pelo sujeito de seu trabalho alienado.
No que se poderia ultrapassar a alienação de seu trabalho? É como se você
quisesse ultrapassar a alienação do discurso.
O legado freudiano, interpretado por Lacan, diz-nos, portanto, que se, por
um lado é o princípio do prazer que determina o objetivo da vida, ele é, na prática,
inexeqüível. Por que? Ela é intrínseca à própria sexualidade, que nos recusa a plena
satisfação (JULIEN, 1996, p.30-31).
É verdade que todas as afirmações que destacamos poderia direcionar
nosso texto rumo a uma postura catastrofista que nos levaria a crer que a gestão da
informação, na atualidade, ver-se-ia impossibilitada de se constituir como lugar de
acolhimento dos valores democráticos. Mais ainda, poderíamos fechar a questão
colocando esse acolhimento como uma verdadeira utopia, sabendo que essa
palavra, de acordo com Rancière (2005, p.61), é passível de adquirir duas
significações contraditórias. A utopia é “o não-lugar, o ponto extremo de uma
reconfiguração polêmica do sensível, que rompe com as categorias da evidência”.
Mas a utopia pode ser também a configuração de “um bom lugar, de uma partilha
não polêmica do universo sensível”, onde o que se faz, o que se vê e o que se diz se
ajustam de modo perfeito.
Não se trata, em absoluto, da orientação que desejamos tomar e, muito
menos, do posicionamento que iremos defender. Os autores com os quais estamos
trabalhando, Marx, Freud e Lacan, deixam claro, cada qual a sua maneira, que é
sempre do (desejo do) sujeito que pode partir qualquer tipo de transformação.
FAUSTO (1998, p.106), em sua leitura do Manifesto Comunista, aponta
que os socialistas utópicos não viam nenhuma auto-atividade – Selbsttätigkeit
histórica por parte do proletariado. A referência desse socialismo pré-marxista era
Rousseau. O processo de ruptura da velha sociedade fazia apelo à figura do mestre.
A novidade de Marx foi ter encontrado um elemento, inerente à sociedade
corrompida, capaz de auto-educação, a partir de que seria possível reconstruir toda
a ordem social.
Já a sociedade comunista é pensada por Marx como uma “sociedade
mais ou menos transparente, onde não haveria Estado, e nem mesmo leis”. Do
ponto de vista formal, “essa forma social é mais pressuposta do que posta pelo
discurso. Na verdade, ela é sempre visada ‘no horizonte’”. O comunismo é
apresentado como uma forma em que se realizam plenamente as qualidades do
humano (FAUSTO, 2002, p.14).
Lacan observou que Marx já sabia que, quanto ao Discurso do Capitalista,
“o laço social fracassa, o que, a longo termo, levará ao fracasso do próprio
capitalismo porque o homem é um ser que faz, por definição, laço social”. O
Discurso do Psicanalista é o único, dos outros Discursos, que dá lugar de sujeito ao
outro. O psicanalista, mero objeto a, é o agente do discurso que subverte e barra o
Discurso do Capitalista, “no qual o sujeito se crê agente sem se dar conta de que
age somente a partir dos significantes mestres que o comandam e que, no Discurso
do Capitalista, estão no lugar da verdade”(ALBERTI,2000, p.45-46).
Fixado ao objeto, o homem da Revolução da Informação aparenta não
precisar de ninguém, ter tudo o que precisa e não estar assujeitado a nada.
Isso, porém, é uma dupla alienação: supor que o objeto concreto pode
preencher uma falta que é justamente a de objeto, que terá caído pelo corte
significante. Por não querer saber de sua alienação no Outro, ele se deixa à
mercê do semelhante, como robô, a seu capricho... Diferentemente do
analista, que está na cena como um faz de conta de objeto para que o
sujeito possa falar e, falando, se confronte com aquilo que lhe falta.
Aparentemente, estamos outra vez mergulhados num ideal simbolista de
artificialidade, cuja estética é necessariamente a da pura imagem, em que a
recusa do desejo dá lugar ao gozo imediato e desmedido. Aos que se
preocupam com a direção do tratamento clínico, no entanto, a psicanálise
continua respondendo com a mesma política referida à falta-a-ser e não ao
ser; com a mesma estratégia que é a de relançar o jogo, a cada vez, e com
a tática que Lacan identificou com a interpretação, à qual acrescentou a
pressa, que, por sinal, não está distante dos tempos que correm (AMORIM,
2000, p.136-137).
Sabemos que, nas sociedades capitalistas ocidentais, a mídia não
transmite apenas informação; ela transmite valores.
Contudo, os valores são plurais, eles se apresentam sempre como
sistema de valores. A hierarquia, em um sistema axiológico dado, nunca é fixa, ela
está sujeita a variações, a mudanças. Os valores são palavras. Só que há palavras e
palavras... Entre os significantes de uma língua habitada por um sujeito, há um certo
número delas que são investidas de uma maneira singular, significantes que
funcionam como se fossem a referência mesma de nosso ser, como se nossa
identidade se situasse em sua dependência estrita. São os significantes-mestres,
Entre eles, há aqueles que são colocados como princípios e como ideais que
orientam nossa razão prática e que a Psicanálise qualifica como valores. O problema
com os valores, então, só é posto verdadeiramente a partir do momento em que a
questão da vida, da liberdade, da integridade ou da dignidade do sujeito ou do outro
está em jogo. Trata-se de uma questão ética, bioética, biopolitica (ASKOFARÉ,
2005, tradução nossa).
Segundo Vernant (2002, p.471-472), existe hoje um consenso relativo da
parte do corpo social para aceitar fenômenos de exclusão. “Existem os que estão
dentro e os que estão fora. Para quem está dentro, não é sempre muito animador,
mas ao menos sabem onde estão”.
Cabe, então, às políticas públicas de uma nação, a tarefa de incluir quem
está fora e de humanizar a condição dos que já estão dentro.
Se o grande desafio, para a Comunicação Social de nosso tempo, é fazer
da mídia, enquanto Outro, um espaço de transmissão de valores democráticos, é
preciso que ela dê ao outro lugar de sujeito. O trabalho com a informação deve
pontuar a falta-a-ser e não se colocar como aquilo que preenche essa falta
estrutural. O direito de acesso à informação precisa ser garantido, mas seu modo de
produção e difusão precisa ser repensado para que a diferença seja respeitada e a
exclusão deixe de ser algo naturalizado em nossas sociedades. A análise dos extras
de DVDs de filmes europeus tidos por “cult” parece ser emblemática para
demonstrar que a práxis midiática está muito aquém desse desafio.
5.2 Análise dos extras
5.2.1 O menu interativo
Imaginemos uma cortina no palco de um teatro. Qual sua função? Ocultar
os bastidores da peça ou marcar ali a promessa de um sonho?
O texto dramático só se realiza plenamente quando é encenado diante dos
espectadores; o levantar da cortina, ninguém ousaria sustentar o contrário,
é sua intenção verdadeira. A peça nasce de uma escrita particular, que
se torna plenamente ela mesma, isto é, espetáculo, através da mediação de
um trabalho coletivo que escapa em grande parte ao autor. Logo, o texto
não representa um fim em si; ele espera sua criação (RULLIER-THEURET,
2003, p.5, tradução nossa).
Dispositivo que mobiliza o olhar e nos faz desejar, o menu interativo, tal
como a cortina teatral, é a janela que dá acesso ao conteúdo de todo DVD fílmico.
Superfície gráfica que indica trajetos a serem seguidos – filme, cenas, legendas,
extras - ele nos convida a ir além
24
do que se nos apresenta, propondo a descoberta
do que se passa em uma mise en scène outra.
No entanto, uma superfície não pode ser resumida a uma composição
geométrica de linhas. Ela é uma forma de partilha do sensível. A dimensão da letra e
o elemento pictural, na filosofia platônica, caracterizavam-se como superfícies
equivalentes de “signos mudos, privados do sopro que anima e transporta a palavra
viva”. Na lógica de Platão, o plano não se opõe ao tridimensional. Ele se opõe ao
“vivo”, ao ato de palavra conduzido pelo locutor ao seu destinatário (RANCIÈRE,
2005, p.21)
No menu interativo, e apenas nele, encontramos o eixo organizador de
interações programadas para um público potencial. Isso porque, enquanto um
espaço de referência aos movimentos de ida e vinda do receptor, entre os caminhos
prováveis de serem percorridos no universo digital em questão, é ele que garante a
estrutura circular do DVD. Tais caminhos, no entanto, existem em número limitado.
Por que não estabelecer uma analogia entre essa estrutura e as
propriedades do significante segundo Jacques Lacan? Vejamos.
A primeira propriedade indica que um significante não se define pelo
significado e sim por outro significante, como o qual ele vai estar em
oposição. Tomemos o significante “homem”. Quando se diz “o homem e a
humanidade”, “o homem e a massa”, “o homem e o animal” e o “homem e a
mulher”, esse homem que está presente nessas quatro proposições é o
mesmo? Esse simples exemplo mostra que a primeira propriedade do
significante é que ele só se define pela diferença. (...) Para que o universo
simbólico se constitua é suficiente ter um par de oposição significante. (...) A
segunda propriedade do significante é sua topologia de composição
“segundo as leis de uma ordem fechada”. É uma ordem que tem suas leis,
(...) metáfora e metonímia. Essa ordem fechada constitui a repetição própria
ao inconsciente, mostrando que a associação livre não é tão livre, pois as
cadeias significantes têm uma amarração que faz com que se esteja sempre
voltando aos mesmos lugares (...) [O] acaso nunca é por acaso, pois o
encadeamento dos significantes segue determinadas vias particulares de
cada sujeito. O que Freud mostra nada mais é que o acaso no inconsciente
é determinado e tem leis. Por isso Lacan propõe pensar o inconsciente
24
Aqui, poderíamos utilizar dois termos que integram o belíssimo título da conferência de abertura do
15º Compós, proferida pelo professor Ismail Xavier (USP), um dos maiores especialistas brasileiros
dos Estudos de Cinema na atualidade: “ver além” na imanência. O título completo é: Maquinações do
olhar: a cinefilia como “ver além”, na imanência.
como o conjunto de cadeias significantes em que cada uma, como um anel,
se articula com outra cadeia significante formando assim anéis dentro de um
colar, que se articula com outro anel de um outro colar, feito de anéis e este
com outro colar e assim sucessivamente (QUINET, 2003, p.40-41).
O excerto destacado acima já nos permite a proposição de certos
questionamentos.
Poderia um extra ser considerado extra sem a existência de algo em
relação ao qual ele se definiria como um mais, ainda
25
?
Se o menu interativo consiste em um convite ao receptor para que ele
deslize a uma ambiance outra, que a inicialmente apresentada, é porque ele se
constitui enquanto ponto de partida de uma série de operações metonímicas
programadas por seus idealizadores. O encadeamento associativo depende,
portanto, do usuário.
Lacan compara a estrutura do significante ao oito-interior. Vejamos em
que consiste, especificamente, tal comparação.
Devemos agora considerar a cadeia de significantes como corte original
operado sobre o Real, que vai assim impor ao ser da necessidade sua
estrutura de sujeito. Em outras palavras, Lacan convida-nos a conceber a
dimensão de um corte que recorta a si mesmo: a cadeia significante,
intervindo como primeiro corte ao mesmo tempo que estrutura cada um dos
significantes dessa cadeia como cortes secundários oriundos desse corte
original: “Efeitos de significante, o corte foi, primeiramente, para nós, na
análise fonêmica da linguagem, esta linha temporal, mais precisamente,
sucessiva dos significantes que habitualmente eu chamava de cadeia
significante. Mas o que acontecerá agora, se eu os incitar a considerar a
própria linha como corte original? (...) Se a própria linha é corte, cada um de
seus elementos será portanto secção de corte, e é isto, em suma, que
introduz este elemento vivo, se assim posso dizer, do significante que
chamei de oito-interior, ou seja, precisamente o anel
26
”. Baseados em quê
comparamos a estrutura do significante à do oito-interior, ou seja, a uma
circularidade que retoma a si mesma? A cadeia significante permanece uma
sucessão de fracionamentos que produz sobre o Real uma descontinuidade
significativa, sob a forma de um corte. Mas cada significante dessa cadeia é
também separado daquele que o precede e daquele que o segue. Ele
próprio é, portanto, corte sobre essa linha de corte, logo, corte do corte.
Neste sentido, o oito-interior é um substrato metafórico judicioso para
representar este corte significante sobre o real recortando a si mesmo para
garantir sua função significante. Isto não deixa de levantar certos problemas
na relação do significante com o Real. O Real, precisa Lacan, é “o que volta
sempre ao mesmo lugar”. Como compreender que o Real confronta sempre
25
Aqui fazemos alusão ao título d’”O seminário, livro 20”: “Mais, ainda”, de Jacques Lacan publicado,
em português, pela editora Jorge Zahar.
26
Joël Dor faz uso de um trecho de um seminário lacaniano inédito, datado de 6 de junho de 1962.
o sujeito com o mesmo se, de um lado, é o significante que dá acesso ao
Real, se, de outro, o Real é distinto do significante e se, enfim, o significante
é sempre diferente de si mesmo? O significante já introduz um corte sobre o
Real, pelo menos para reencontrá-lo, portanto, para que o Real seja
revelado por um significante. Todavia, esse primeiro corte não poderia
bastar, pois nada, sem esse encontro do significante e do Real, garante-nos
o mesmo. Em sua essência, o significante é pura diferença, visto que é o
que os outros não são (DOR,1995, p.153-154).
Em uma estrutura caracterizada pela segmentação, cada fragmento de
um DVD fílmico só adquire sentido em relação aos demais, sendo que tal
estratificação corresponde a diferentes momentos de composição do produto
midiático em questão. Assim, temos o filme, mas temos também a possibilidade de
selecionar cenas, legendas ou de ir direto aos extras. Um recurso é o que o outro
não é.
Seria o oito-interior um objeto topológico adequado para explicar essa
arquitetura?
Saibamos que
A topologia é uma geometria sem medição, onde não se trata das
distâncias, dos distanciamentos, onde não temos outra coisa senão a rede
sistemática do significante para suportar os objetos; os objetos não
consistem, não têm outra substância senão a da própria rede significante
(MILLER, 2002, p.43).
O recurso à topologia em Lacan evidencia seu desejo de encontrar uma
“metaforização direta suscetível de mostrar a realidade de uma estrutura”. Já um
modelo consiste em um dispositivo intermediário e não eterno entre uma teoria e o
Real (PRADO JÚNIOR, 2003, p.261, grifo do autor).
Com a topologia, Lacan demonstra que era possível dar uma expressão
matemática à Psicanálise, o que “garantia”, de certo modo, sua validade científica,
uma vez que, por meio de uma escrita, poder-se-ia delinear as leis do inconsciente.
Dor (1995, p.128) pontua que o oito-interior consiste em “uma
circularidade que retoma a si mesma no interior de si mesma”. Logo, trata-se de um
círculo que pode se desdobrar e se retomar, visto que a distância do primeiro anel
para o segundo vai sendo reduzida progressivamente.
Contudo, no oito-interior há círculos que não se “tocam”, o que o torna
pouco operatório para representar conexões em um DVD, a partir de sua plataforma
raiz, já que não aparecem campos de interseção.
O menu interativo é, portanto, a primeira realidade visível para o receptor;
nele são colocados os links que criam a ilusão de “profundidade”, ou melhor, de
prolongamento dos conteúdos ali ofertados. Assim, o tratamento do espaço e as
escolhas estéticas de seu idealizador fazem parte de um processo de gestão da
informação, no qual a disposição de formas, cores e sons visa a engendrar efeitos
que poderão – ou não – suscitar ações do espectador.
Não obstante, são os links – e as informações que eles veiculam – que
expressam a espera de uma resposta efetiva do receptor. Eles teriam, em nossa
leitura, propriedades performativas
27
. A produção da oferta pode, ou não, fazer surgir
a demanda
28
por parte do público consumidor.
27
Na acepção já consagrada que John Austin deu ao termo. Na teoria austiniana está a descoberta
da existência de um tipo particular de enunciados, os enunciados performativos, que têm a
propriedade de poder e, em certas condições, realizar o ato que eles denotam, isto é, “fazer” qualquer
coisa pelo simples fato do “dizer”. Para um aprofundamento sobre o assunto, aconselhamos:
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São
Paulo: Contexto, 2004, p.72-74.
28
Jacques-Alain Miller nos ensina que as necessidades do homem estão nele completamente
transformadas pelo fato de que fala, pelo fato de que dirige demandas ao Outro. No humano, o
significante substitui a necessidade, pois a demanda ao Outro tende, por seu próprio movimento, a se
Figura 2 – Oito-interior.
Fonte – DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan, v.2, 2000, p.128.
Em termos lacanianos, “a demanda está no apelo (grito interpretado como
dirigido ao Outro da assistência) que o sujeito faz em busca de um complemento que
é o objeto que pode satisfazê-lo”. Nela há sempre “pedido de restituição de um
status quo ante, de um estado anterior de complementação que o sujeito supõe
existir ou ter existido algum dia”. Enquanto na ordem da necessidade o animal
encontra um objeto preciso de satisfação na natureza, como o alimento que sacia a
fome, na demanda isso não acontece. Pode-se dizer que, para a psicanálise, o
enunciado de uma fala é da ordem da demanda, mas é em sua enunciação, na
modalização do dito, sua entonação, suas pausas, sua cadência, sua rapidez ou sua
lentidão, na ênfase ou na elipse de suas palavras que rola o desejo”. Desejo
entendido, aqui, enquanto “busca do objeto suposto da primeira experiência fictícia
de satisfação” (QUINET, 2003, p.88-90, grifos nossos).
No entanto, não é nos links do menu interativo que a oferta se dá pela
primeira vez. Ela já se apresenta, na capa e na contra-capa que revestem a caixa do
produto midiático, como resultado de um modo específico de gestão da informação
que privilegia a extração de enunciados jornalísticos de seu contexto original e sua
utilização na forma de garantia da qualidade da obra cinematográfica. A
credibilidade de grandes empresas de comunicação é utilizada, então, com a função
de persuasão do público consumidor. Na caixa do DVD do filme “A doce vida”, a
fonte da informação é Luiz Carlos Merten, profissional do jornal “O Estado de São
Paulo”. Ele diz: “Diante das imagens poderosas deste filme, (...), você vai entender
porque A Doce Vida virou clássico”. Do mesmo jornal, é o enunciado de Luiz Zanin
Oricchio sobre “O eclipse”: “Uma das grandes obras-primas de Antonioni”. Os
editores do filme “Noites brancas” optaram por uma referência internacional:
Maurizio Liverani, do Paese Sera afirma que “Noites Brancas é uma obra de alta
classe”. Aqui já está delineada a imagem do destinatário, no qual se deseja fomentar
a demanda: um sujeito com gosto refinado e que tem o saber necessário para
apreciar o produto que lhe está sendo ofertado. No “pacote” de “A doce vida”, o DVD
suplementar, exclusivo para a alocação de extras, é “dedicado aos amantes do
converter em demanda pura da resposta do Outro – aí se coloca o amor. O amor está, então, além do
que seria a satisfação da necessidade. O mais importante que se tem para dar é o que não se tem
como uma propriedade, como um bem, e esta é, decerto, a definição lacaniana do amor: dar o que
não se tem. Essa resposta do Outro, a pura resposta do Outro, é mais importante que a satisfação da
necessidade. A esse respeito, consultar: MILLER, Jacques-Alain. Percurso de Lacan: uma
introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p.25.
cinema e da música erudita”. Um DVD que começa “in media res”, tal como os
clássicos da Antiguidade. Essas mensagens veiculam, destarte, valores
aristocráticos investidos positivamente por/para determinadas classes e grupos, que
remetem a uma maneira de ser e de agir no espaço social. O produto midiático
procura apresentar-se como passível de responder a demandas de sujeitos que se
apropriaram subjetivamente desses valores, os quais, por sua vez, dizem respeito à
transmissão do ideal do eu de geração a geração no âmbito da cultura.
A dimensão da falta é negada pelos editores que primam pela
megalomania em suas adjetivações, explorando a relação paranóica do receptor
com o objeto supostamente capaz de satisfazer seu desejo. Assim, “A doce vida é a
grande obra-prima do mestre Frederico Fellini e também um dos maiores filmes da
história do cinema”. Contudo, trata-se de uma “edição especial limitada” que “traz
muitos extras, incluindo Nino Rota, Entre o Cinema e o Concerto, emocionante
documentário sobre o genial compositor (...)”. “Matrimônio à italiana” é apresentado
em “versão completa restaurada e remasterizada com áudio original em italiano”.
“Um homem, uma mulher” é “uma história de amor aclamada no mundo todo”,
enquanto “O Eclipse” é “um dos filmes essenciais dos anos 60”.
Particularmente, no campo heterogêneo da Análise do Discurso, a noção
de informação pode ser tratada como um gênero discursivo. Desde que, a finalidade
da situação comunicacional, a identidade dos parceiros da troca e a natureza de
seus propósitos sejam levadas em consideração, pode-se definir, de maneira geral,
o discurso informativo em oposição a outros discursos e, de maneira específica, em
oposição ao discurso de informação midiática (CHARAUDEAU, 2004, p.279). Não é
essa a concepção de informação por nós adotada. Em nosso caso, consideramo-la
como “o dado que faz sentido” (TEIXEIRA FILHO, 2000, p.21), sendo que, quem
determina o sentido é seu receptor. O vocábulo Information, na língua alemã
29
,
indica sua constituição por detalhes que só podem ser obtidos pela mediação de um
livro, jornal, rádio, etc. O trabalho com a informação implica, então, o manejo de
nuances em um suporte peculiar.
Segundo Ducrot (1977, p.144-145), para quem a transmissão de
informação estaria longe de ser o objetivo único da comunicação lingüística, a lei da
informatividade é uma condição à qual qualquer enunciação que tenha por objetivo
29
Cf. LANGENSCHEIDTS GROWÖRTERBUCH. Deutsch als Fremdsprache. Berlin und München:
Langenscheidt, 1998, p. 514, tradução parcial de verbete de dicionário.
informar o ouvinte está submetida. Ela diz respeito à produção de subentendidos.
Em um enunciado como: “Só Pedro veio” não só me informa que Pedro veio e que
ninguém além dele veio, mas que se podia pensar que outros viriam.
A lei da informatividade incide sobre o conteúdo dos enunciados e
estabelece que não se fala para não dizer nada. Os enunciados devem fornecer
informações novas ao destinatário. Se não o fizerem explicitamente, como nas
tautologias, o destinatário é obrigado a inferir subentendidos (MAINGUENEAU,
2004, p.36, grifo nosso).
No campo da Lingüística, essa lei, portanto, aponta para a centralidade do
ato enunciativo nos processos comunicacionais e para a novidade contida em
qualquer informação, mesmo não estando ela explícita.
Assim, em nosso trabalho, a informação é compreendida como o
elemento novo, o detalhe que faz sentido para um destinatário em um suporte
específico. Esse elemento pode ser buscado tanto na dimensão da palavra, falada
ou escrita, como na dimensão da imagem, estática ou em movimento. Para a
Comunicação Social, a informação é, necessariamente, veiculada por meio de
aparatos técnicos.
Na presente análise, verificamos que, nos filmes “cult”, pertencentes ao
gênero dramático, há uma ênfase maior na figura do diretor, que se torna o foco
informativo dos extras e o elo entre os diferentes formatos nos quais as informações
são veiculadas. À semelhança do que ocorre no processo lingüístico da endófora, a
figura do diretor é constantemente retomada, ora por imagens de sua pessoa
empírica, ora por comentários especializados a seu respeito, ora pela inscrição
estratégica de seu nome em determinados espaços. Sobre esse último recurso,
temos mais a dizer.
No menu interativo dos filmes dramáticos, ou o nome do diretor é
posicionado na vertical, contrastando com os outros elementos gráficos, que estão
na horizontal, ou, então, ele se diferencia pela cor. Na tela de abertura do DVD
principal de “A doce vida”, por exemplo, o nome de Frederico Fellini se destaca de
um fundo preto pela cor laranja, sendo que, para o título da obra, selecionou-se o
amarelo, enquanto os links encontram-se na cor branca. Na capa da caixa do
produto, Frederico Fellini está escrito no topo e é grafado quase no mesmo tom de
laranja que o nome do filme. Se atentarmos bem aos detalhes, as primeiras letras
das duas palavras que compõem o título da obra estão no campo de alcance da
iluminação de um feixe de luz que incide no nome de Frederico, no topo, e se
prolonga nos cabelos loiros e no colo de Anita Ekberg, descendo até a capa
esvoaçante que envolve seu corpo, da cintura aos pés. O rosto de Marcello
Mastroianni, coberto por reflexos brancos e azuis, tem a expressão de um voyeur.
Em sua boca, um cigarro, cuja chama é da mesma cor da capa de Anita. A
associação entre a “obra-prima” e seu “mestre”, pelo trajeto da luz em diagonal, é
visível.
Figura 3 – Capa da caixa do DVD “A doce vida”.
Fonte – Versátil Home Vídeo.
Esse destaque, ao nome do diretor, não foi encontrado nos filmes de
outros gêneros por nós analisados. Em “Um homem, uma mulher”, narrativa
romântica, o nome Claude Lelouch, grafado em caracteres diminutos, está
centralizado na porção inferior na capa da caixa do DVD e não reaparece no menu
interativo. A ênfase é posta nos atores principais da trama. Na comédia “Matrimônio
à italiana”, verificamos um procedimento similar a esse. Os nomes de Marcello
Mastroianni e Sophia Loren é que ocupam a porção superior esquerda da capa.
Na abordagem lacaniana de Psicanálise, o nome próprio é, por assim
dizer, o significante “sigla”, que demonstra a sujeição do homem à linguagem e, mais
precisamente, à letra. Ele não se presta à tradução e também não diz rigorosamente
nada do sujeito. Ao designar seu corpo e o lugar dele na filiação, o nome próprio se
singulariza por ser um puro significante. Ele está articulado com uma letra que,
fundadora, “já está lá antes de ser lida”. Letra essa que é “negação do objeto pela
inscrição do traço unário”, marcando seu apagamento por um traço que lembra a
unicidade do objeto (ANDRÈS, 1996, p.372, grifos do autor).
No contexto que estamos considerando, ao que tudo indica, o nome do
diretor funciona como uma espécie de marca, ou melhor, um selo de qualidade do
produto. Da mesma forma como um colecionador de quadros ambiciona adquirir um
Picasso, de maneira infinitamente mais modesta, um cinéfilo demanda um Fellini.
Mesmo que não diga nada sobre sua pessoa, o nome do realizador da obra está
associado a uma imagem que foi construída pela própria indústria cinematográfica. A
gestão da informação joga com essas referências culturais, mobilizando saberes
anteriores à enunciação. O destinatário visado é, por conseguinte, o receptor
proficiente em Sétima Arte.
5.2.2 Informações gerais sobre o objeto fílmico (Trailers de cinema, pôsteres,
dados de premiação e ficha técnica do DVD)
Originalmente, um trailer é uma produção audiovisual de curta duração,
cuja finalidade primordial consiste na divulgação de uma obra cinematográfica. A
partir da découpage de cenas marcantes do filme que pretende publicizar e de seu
reencadeamento em uma nova seqüência, ele concentra o essencial da narrativa
sem, necessariamente, seguir a ordem cronológica estabelecida por seu autor.
Mas, o que entendemos, precisamente, por cenas marcantes? De modo
geral, são aquelas imagens indispensáveis para compreendermos o tema central da
trama. Assim, reorganizando acontecimentos singulares, o trailer, quando bem
elaborado, nos mostra, paradoxalmente, de forma sintética, a obra em sua dimensão
global.
O ensino de Lacan demonstra que “a palavra é impotente para dizer tudo”
(SANTOS, 2000, p.97). Como transmitir, então, o máximo de informações nos
trailers? Agenciando imagens, mas também fazendo uso de uma voz off, a qual
instala um discreto efeito enigmático. Que filme é esse? O que ele traz de novo?
Criar a diferença, não seria essa a função de um discurso promocional?
Gardies (1993, p.12, tradução nossa) compara a relação do espectador
com a voz off de uma obra cinematográfica com a de uma mãe e seu filho. Ele diz
Para a criança que, no momento de dormir, solicita uma história, pouco
importa seu conteúdo. Sua demanda está em outro lugar, no desejo da voz
materna: é preciso e basta que ela vibre, com seu timbre e elocução. Há
sempre na escuta, na leitura, na recepção da narrativa, o eco desse desejo.
Aprofundemos um pouco mais essas considerações.
O primeiro objeto do desejo é ser reconhecido pelo outro. (...) Desse modo,
podemos dizer que a teoria do reconhecimento do desejo e do desejo de
reconhecimento depende da concepção de um sujeito que, sendo
reconhecido, experimenta uma satisfação, encontra uma “identidade”. (...)
[Posteriormente, em Lacan], o desejo é considerado como “demanda
significada”. (...) O desejo de reconhecimento dá lugar ao desejo
metonímico, sendo o falo o significante fundamental pelo qual o desejo do
sujeito tem de se fazer reconhecer (SANTOS, 2000, p.93-98).
No corpus por nós selecionado, verificamos que, quando a figura do
diretor de cinema é colocada em segundo plano pelos editores do DVD, o trailer
funciona como o recurso privilegiado por meio do qual o produto procura se fazer
reconhecer pelo público em termos de sua superioridade estética. Em “Um homem,
uma mulher”, há uma aposta em imagens de ação, nos movimentos de aproximação
e de distanciamento da câmera, além da ostentação da trilha sonora. Já o trailer de
“Matrimônio à italiana” dá a palavra a sujeitos de todas as faixas etárias para se
fazer reconhecer como um filme para qualquer idade. Ele tem início com dois jovens
que são questionados a respeito de suas preferências cinematográficas. À pergunta
que lhes é interposta, eles respondem que gostam dos clássicos, especialmente
aqueles com Sophia Loren no elenco. Assim, temos um filme para qualquer idade,
mas não um filme qualquer.
Nos pôsteres, a publicização da obra se dá a partir de imagens
“congeladas”. Nos extras de “Noites brancas” são apresentados pôsteres do filme
em diferentes países. Somos informados que, na Argentina, “Noites brancas” foi
exibido com outro título: “Puente entre dos vidas”. Teria sido “Noites brancas” um
sucesso em vários continentes? Trata-se, no mínimo, de um filme que “ultrapassa
fronteiras”, inteligível para culturas completamente distintas. Essa informação está
presente, de outra maneira, na voz off do trailer, quando se diz que a narrativa de
“Noites brancas” consiste em um drama humano universal. Nomeia-se o espaço, no
qual os personagens vivem esse drama, de “Livorno metafísica”. Percebemos,
então, que estamos diante de um modo de configuração em que detalhes ínfimos
entram na composição de um território do visível montado por um recorte ordenado
de informações.
Já a ficha técnica do DVD consiste no registro dos nomes de seus
realizadores, dando-lhes o devido crédito no projeto em questão. Ele é importante
para a garantia dos direitos autorais. A dimensão mercadológica do produto está
posta exatamente nesse sítio dos extras. O DVD é propriedade de uma empresa.
Propriedade na concepção aristotélica do termo, isto é, um instrumento de ação
separado do proprietário. Assim, a propriedade é parte, mas, parte separada de um
sujeito (FAUSTO, 2002, p.112).
Todavia, o que significa ser vencedor do Oscar de melhor filme
estrangeiro em Hollywood (“Um homem, uma mulher”), receber um Leão de Prata
em Veneza (“Noites brancas”) ou ser contemplado com a Palma de Ouro em Cannes
(“A doce vida”)? Os dados de premiação indicam que estamos consumindo um arte
factu
30
que obteve o reconhecimento de especialistas da indústria cinematográfica.
É Julien (1996, p.170-171, grifos do autor) quem nos diz que
Não há saber sem transmissão, não há saber extra-lugar sem um vínculo
social. (...) Com efeito, só há saber mediatizado pela comunicação; é por
isso que sua credibilidade se mede pela possibilidade que têm aqueles que
participam de sua elaboração de se orientar em função de critérios de
validade, que não repousam em nada além de um consenso, isto é, de um
reconhecimento social.
Para um espectador contemporâneo à época de exibição de um filme, um
trailer, um pôster, uma informação concernente a prêmios obtidos por seus
30
No sentido latino de feito com arte.
realizadores, todos esses são elementos capazes de promover
31
condições
suscetíveis de motivar o consumo.
No entanto, em um DVD, sabemos que o filme já passou, logo, a função
de flash-back que tais elementos em conjunto engendram consiste, a nosso ver, de
um jogo com a temporalidade.
Como a Psicanálise trata a dimensão do tempo?
Não é partindo de uma fenomenologia do tempo vivido (Minkovski), mas
definindo que o sintoma como tal exprime mais ou menos diretamente uma
relação do sujeito com várias coordenadas temporais objetiváveis, que
podemos apreciar o valor do caminho aberto por Lacan. (...) Em toda fala
que engaja o sujeito há uma dimensão temporal muito importante a
considerar; essa dimensão temporal é inerente ao simbólico. (...) A noção
de só-depois (Nachträglichkeit), (...) serve [a Freud] para explicar a
formação dos sintomas histéricos. Não são os acontecimentos em si
mesmos que têm uma ação traumática, mas o segundo tempo constituído
por sua forma de revivescência sob forma de fantasia, depois que o sujeito
atingiu a maturidade sexual. Lacan retomou e generalizou o esquema
freudiano do só-depois. (...) Ao formalizar o esquema do só-depois com o
grafo, Lacan faz do só-depois um tempo de retroação de um significante
sobre outro. Esse passo é decisivo porque separa a ordem lógica da
linguagem, na qual se situa a retroação, da ordem das coisas. Por outro
lado, isso elimina a prevalência da função diacrônica da filogênese, pois,
como sabemos, Freud tendeu a fazer remontar o primeiro tempo do
traumatismo à orla da história da humanidade, consagrando assim de direito
uma prioridade ao primeiro tempo do só-depois. Formulá-lo em termos de
significantes permite, ao contrário, conservar a originalidade do só-depois, a
saber, a sincronia de seu funcionamento na retroação do tempo dois, que
faz existir um tempo um (o que é uma definição da repetição). Finalmente,
ao generalizar esse esquema temporal, Lacan não o reserva mais à
formação do sintoma histérico, mas o converte em esquema explicativo da
significação. O início de uma frase só encontra sua significação quando ela
se encerra. Os fundamentos da estruturação temporal da experiência
subjetiva não se limitam em Lacan à retomada do esquema do só-depois.
Lacan traçou também o plano das coordenadas temporais do campo do
Outro, nas quais funciona esse esquema, e que são o instante de ver, o
tempo para compreender e o momento de concluir. (...) No momento de
concluir, o tempo de adiantamento possível do outro se constitui como
objeto de uma competição temporal; o sujeito se precipita em concluir para
“compensar” seu atraso eventual, se apoderar desse objeto temporal de
competição, esse objeto apressado, h(a)té como diz Lacan. (...) Assim, na
identificação pela imagem no espelho, em que o sujeito antecipa aquele que
ele designa como eu, e no fundo da resposta fantasística, em que há uma
relação do sujeito com o tempo que se enuncia no futuro do presente
composto (“ele terá querido”) do lugar do Outro, a função da pressa é
decisiva. (...) Lacan prescreve que o desejo do analista deve se limitar ao
vazio, ao corte, a esse lugar que deixamos ao desejo para que ele nele se
situe. O que se produz ao final de cada sessão escandida é imanente a toda
a situação em si mesma. A escansão não ocorrerá forçosamente ao final de
uma sessão, ela pode se dar no início ou fim de várias sessões. Por esse
ato o analista se engaja fisicamente numa operação que presentifica o corte
31
No sentido latino de promovere, favorecer o desenvolvimento.
como tal e como dimensão temporal plena (só há um único tempo), para ele
e para o analisando. Ele se recusa a se abrigar por trás de um pretenso
contrato de duração, que logra o analisando quanto à obtenção de um
direito. Com esse modo de intervenção, o analista mostra sua
disponibilidade para a fala e aposta na enunciação, ele se regula pelo
afastamento entre o dizer e o dito. A escansão da sessão, tal como a do
tempo lógico, toma o tempo como evento significante e não como ocasião
de duração mensurável que contém enunciados. Esse manejo do tempo da
sessão liga a repetição à rememoração; o atual da fala que reinscreve no
lugar do Outro a não-identidade consigo mesmo das palavras da história do
sujeito lhe permite ter acesso ao que constitui a indestrutibilidade de seu
desejo (PORGE, 1996, p.519-521).
Avaliando a estrutura de um DVD fílmico, no nosso caso, a dos clássicos,
percebemos que os gestores da informação enfatizam cada componente dos extras
como um evento significativo no contexto geral de produção da obra. Esse tipo de
montagem permite que, aquilo que foi dito no passado seja ressignificado no tempo
em que o receptor interagir com as mensagens disponíveis naquela arquitetura em
questão. Assim, a cada corte que o espectador efetuar, passando, por exemplo, de
uma determinada cena do filme ao seu trailer, instaura-se a possibilidade de uma
informação ser re-inscrita, re-novada, mesmo que, na aparência, ela seja a mesma.
A repetição ligada à rememoração como forma de ressignificação do que está ali
posto, eis o jogo com a temporalidade que designamos, em nosso trabalho, como
efeito décalage
32
. Isso porque, os editores de um DVD estão cientes que o presente
de sua elaboração depende de uma realização passada – seja fruto da inventividade
de um Fellini ou um Visconti – mas, que sua fruição só se dará em um tempo futuro,
que corresponderá, por outro lado, ao presente da recepção.
5.2.3 Informações sobre o processo de construção da obra (Documentários,
imagens dos bastidores e críticas especializadas)
A vocação de um documentário, em um extra é, basicamente, prover o
público com informações de um determinado universo, delineando, com o auxílio da
32
Não só no sentido de deslocamento no espaço ou no tempo, e a distância dele resultante, mas,
sobretudo, na acepção mais profunda de falta de concordância. A esse respeito, consultar: PETIT
LAROUSSE ILLUSTRÉ 1991. Paris: Larousse, 1990, p. 294, tradução nossa do verbete do
dicionário.
câmera, aspectos da “realidade”. Para atingir esse objetivo, ele faz uso, na maioria
das vezes, de entrevistas e de imagens dos bastidores do set de filmagens. Esses
recursos buscam construir, aos olhos do espectador, um efeito de “verdade”, a ilusão
de saber o que haveria do “outro lado” da cena fílmica.
Organizado a partir de procedimentos de revelação dos processos pelos
quais o filme – seja na condição de texto, seja na condição de produto disponível no
mercado – teria passado antes de atingir sua completude, o documentário, no
espaço dos extras, procura apresentar-se como um momento de dissolução da
ficção que garantiria a apreensão da integralidade das etapas de estruturação do
objeto artístico. Assim, Claude Lelouch narra suas dificuldades financeiras e
técnicas, enquanto Visconti é narrado por uma jornalista especializada em cinema.
No primeiro, o relato face to face, do diretor ao público. No segundo, o discurso
autorizado discorre sobre um mestre da Sétima Arte.
Especificamente, em “Noites Brancas”, a prova dos atores tira partido de
imagens sem som e exerce a função de documentário do processo de elaboração
dos personagens da trama. Nela, Marcello Mastroianni e Maria Schell dão prova de
seu talento e sensibilidade pela linguagem gestual. A câmera registra toda a
possibilidade expressiva latente em seus rostos. Mukar4vskϖ (1997, p.50) nos
lembra que, para o ator, “o gesto é um fato artístico em que domina a função
estética”, o que lhe permite uma certa margem de liberdade de criação e de
transformação em relação ao sistema de gesticulação presente no cotidiano das
relações sociais.
O documentário dos bastidores de “Um homem, uma mulher” destaca os
mínimos movimentos de Anouk Aimée, desde seu modo de olhar até sua forma
“genuína” de caminhar. Nas cenas que necessitam de refilmagem, o foco incide nos
gestos de Jean-Louis Trintignant, reveladores de sua maneira apressada de fazer as
coisas, atestando seu próprio savoir-faire de ator, já que seu personagem, na
narrativa em questão, é um piloto automobilístico.
A palavra francesa coulisse, que no plural “equivale”
33
ao vocábulo
bastidores, em português, é bastante interessante para pensarmos o que esses
elementos dos extras podem introduzir de atrativo na configuração geral do DVD.
33
A noção de equivalência é sempre problemática. Deixemos esse debate para seus legítimos
especialistas, os lingüistas.
Coulisse
34
, substantivo feminino, de porte coulisse, porta que desliza.
Designa a parte de um teatro situada atrás do palco e fora do campo de visão do
público. Demarca o que está escondido, conotando o lado secreto de algo.
Geralmente as imagens de bastidores expõem os erros, as gafes, as
dificuldades de realização de uma obra cinematográfica, os risos, as lágrimas, enfim,
o que há de humano – autêntico, talvez – em um produto midiático.
Os bastidores constituiriam, curiosamente, o locus por excelência de
êxitos
35
, de uma felicidade própria da argúcia, em que, no plano do discurso, se vê
oscilar a ordem lingüística, e o sem sentido é descoberto, em um instante, como
capaz de fazer vacilar as significações mais estabelecidas. Isso porque no chiste e
nos lapsos, o sujeito é sobrepassado por sua criação (MILLER, 2002, p.30). Mas, o
que é o que equivoca? O que é o que faz equivocar? A psicanálise descobre que os
equívocos se produzem em relação com a verdade (KATZ, 2006, tradução nossa).
Todavia, se “a verdade revela aí sua ordem de ficção” (LACAN, 1978,
p.24), os bastidores tentam se caracterizar como o espaço de surgimento de uma
verdade capaz de promover um retorno ao in-forme e de evidenciar processos
eclipsados pelo esquecimento para gerar informações inéditas a respeito das
relações tecidas entre as figuras que, nele, são protagonistas.
O adjetivo fictício, em Lacan, encontra sua referência no filósofo Jeremy
Bentham, onde não toma a conotação de “ilusório, nem a de fingimento ou invenção
falseadora”. “As ficções, devendo a sua existência inteiramente à linguagem,
participam de um modo particular da realidade – aquela verbal, advinda de um
radical descolamento da referencialidade imediata” (WAJNBERG, 2001, p.157).
“O sujeito é patológico por definição, sujeito ao pathos” (QUINET, 2003,
p.16); ele é não-identificável e pode, por isso, ter várias identificações. Não tendo
substância, ele se manifesta na hesitação, na dúvida entre isto e aquilo. “Desejo é o
nome do sujeito de nossa era: a era freudiana (p.13)”.
Está claro que as imagens de bastidores têm como matéria-prima as
emoções. E as críticas especializadas? A nosso ver, elas dilatam ainda mais essa
quimera de maîtrise, de acúmulo e domínio de informações por parte do receptor.
34
Cf. PETIT LAROUSSE ILLUSTRÉ 1991. Paris: Larousse, 1990, p. 268, tradução parcial do verbete
do dicionário.
35
Êxitos em relação ao inconsciente, pois todo ato falho é falho em relação à consciência.
Barthes (2003, p.161-162) afirma que o discurso crítico nunca é mais que
tautológico: ele consiste em “dizer com atraso, mas colocando-se inteiramente nesse
atraso, que por isso mesmo não é insignificante”. A “prova crítica”, na reflexão
barthesiana, se existe de verdade, depende de uma aptidão não para descobrir a
obra interrogada, mas, ao contrário, para cobri-la o mais completamente possível
com sua própria linguagem.
De modo geral, a articulação de um discurso supõe que sejam situadas as
duas vertentes que o especificam: a vertente do enunciado e o ato enunciativo que
origina esse enunciado. Uma distinção já clássica em Lingüística, mas que do ponto
de vista lacaniano é essencial para especificar a relação que o sujeito falante
mantém com o inconsciente e o desejo. Usualmente, é pela inscrição do “eu” que o
sujeito se atualiza em seus enunciados. Contudo, o emprego de outros pronomes
pode constituir um meio de engendrar uma certa neutralidade subjetiva por parte de
quem enuncia, como é comum, a título de ilustração, no discurso didático. Neste tipo
de discurso, constituído por enunciados gnômicos, o sujeito articula proposições
generalizando ou universalizando. Cria-se, então, uma distância entre o sujeito do
enunciado e da enunciação (DOR, 1989, p.115-117).
Podemos perceber que a heterogeneidade composicional de um DVD
fílmico explora a oposição evidenciada no interior do sujeito por sua própria divisão
constitucional – Spaltung
36
. “Se onde não está, ele pensa, se onde ele não pensa,
está, é precisamente porque está nos dois lugares” (LACAN, 1969-1970/1992,
p.109, grifos do autor). A banda de Moebius expõe essa contradição. Dor (1995,
p.110, grifo do autor) explica que “a faixa de Moebius é uma superfície unilateral de
uma borda que pode ser obtida a partir de uma superfície quadrilátera chamada
polígono fundamental”.
36
Joël Dor explica que a divisão do sujeito implica, na perspectiva lacaniana, ter de se definir uma
parte de nossa subjetividade como sujeito do inconsciente, como sujeito do desejo. É preciso,
portanto, distinguir o sujeito do enunciado, propriamente dito, de sua participação diretamente
subjetiva que o invoca como tal no discurso. Esta participação subjetiva, que atualiza um
representante como sujeito do enunciado num discurso será designada como sujeito da enunciação.
O inconsciente emerge, pois, no dizer, ao passo que no dito a verdade do sujeito se perde, por
somente aparecer sob a máscara do sujeito do enunciado, onde ela não tem outra saída, para se
fazer ouvir, senão se meio dizer. Cf. DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan, v.1: o inconsciente
estruturado como uma linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989, p.114-118.
Esse polígono fundamental tem duas bordas vetorizadas em direções
opostas. Para construir a faixa de Moebius, basta suturá-las, orientando-as na
mesma direção, isto é, efetuando uma torsão (ibid.).
Nos bastidores, joga-se com o “isso fala”, apresentando o sujeito na
suposta
37
verdade de seu desejo; já nas críticas especializadas, procura-se apagar a
participação diretamente subjetiva que o invoca como tal no discurso. Ele não é
falado, mas uma autoridade no assunto fala dele. Por fim, os documentários
promovem uma alternância entre essas duas vertentes discursivas.
5.2.4 Informações sobre atores e diretores (Biografias, fotos e filmografias)
Nesta subseção, refletiremos sobre o ser artista e as formas de
visibilidade que esse ser adquire na configuração geral de um DVD fílmico, o que
nos levará a concluir sobre o modo de gestão da informação aí implicado.
As biografias procuram des-velar aspectos da existência de atores e
diretores na forma de um relato que busca o efeito de transparência. Os acentos são
37
Suposta porque não sabemos até que ponto as gafes são gafes “originais” ou pura simulação para
as câmeras.
Figura 2 – polígono fundamental.
Fonte – DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan, v.2, 2000, p.110.
Figura 3 – faixa de Moebius.
Fonte
DOR, Joël. Introdu
ão à leitura de Lacan, v.2, 2000,
.110.
colocados na vida pessoal do profissional da arte, muitas vezes em características
de sua personalidade. Retrospectivas, de retro spectare, olhar para trás, que
intencionam dizer a “verdade” dos sujeitos, colocar em relevo sua interioridade,
provocando, portanto, nossa saída do espaço-tempo ficcional em direção ao espaço-
tempo da “realidade”.
Assim, numa sucessão de etapas que contemplam nascimento, fatos
vividos na infância e adolescência, além de capítulos da vida profissional e afetiva
do indivíduo, elabora-se o portrait de uma pessoa “empírica”.
A leitura que Prates (2004, p.150-151) empreende dos trabalhos de Lévi-
Strauss e Lacan é significativa para abordarmos a função das biografias –
complementadas por fotos e filmografias, curriculum vitae dos artistas, nós diríamos
– na arquitetura do produto midiático que enfocamos aqui. Vejamos. A psicanalista
relembra, muito oportunamente, que o sobrenome marca um lugar simbólico e
sexual na estrutura familiar e social. Ela ainda esclarece que
Sob certo ângulo, não seria exagerado afirmar que a possibilidade de uma
transmissão, além daquela que se dá através da hereditariedade genética, é
o que confere à dimensão humana sua especificidade. A artificialidade da
norma social, na medida em que nos afasta da natureza, só é possível de
ser sustentada a partir do fato de que algo pode ser passado, transmitido
por meio das gerações. (...) [Contudo], o que cada um faz com sua herança
simbólica? Qual é a nossa “margem de liberdade” (ibid.)?
Façamos uso de exemplos. Sophia Loren, celebridade do cinema
europeu. Em Matrimônio à italiana, de Vittorio De Sica, somos informados de que a
posição social ocupado por Filumena, sua personagem no filme, é idêntica a que ela
ocupava antes de se tornar famosa. A pobreza, então, é apresentada como elo entre
a figura ficcional e a mulher Sophia. Consta, em sua biografia, que a atriz era “filha
ilegítima” e que “passou infância miserável nas favelas de Nápoles”. Sonhando com
a carreira artística, procurou concursos de beleza para ingressar no universo
cinematográfico. Está construída, logo, a imagem de alguém que alcançou um status
social distinto, superando as duras condições prévias ao estrelato.
Curiosamente, percebemos que a maioria dos atores altera sobrenome e
prenome quando a intenção é passar do cenário da vida real para outros cenários.
Vejamos. Sophia Loren, nascida Sofia Villani Scicolone, Maria Schell, batizada
Margarete Schell, Marcello Vincenzo Domenico Mastroianni, Maria Louisa Ceciarelli,
quem diria, Mônica Vitti, a musa de Antonioni! Não constituiriam essas “mudanças”
de identidade uma espécie de Β,∆4ΒΞϑγ4∀, peripécia, no sentido do termo, em
grego clássico, de passagem de uma situação a outra contrária? Em Políbio
38
,
inclusive, peripécia denota felicidade súbita!
Há sempre, nas biografias que avaliamos, um dado que revela um
acontecimento singular na trajetória do profissional da arte. Trata-se do des-abrochar
para a fama e esse nascimento implica, necessariamente, a presença do Outro. No
caso de Alain Delon, cuja adolescência é descrita como problemática, visto que o
rapaz chegou até a ser expulso da escola várias vezes, esse Outro é encarnado,
seja por um produtor americano, seja pela crítica internacional. Mas, como nos
lembra Julien (1996, p.146), o Outro, em sua completude, não existe!
Embora os extras estejam, aqui, em três categorias distintas, devemos
ressaltar que as informações sobre os diretores e sua forma de pensar o cinema
encontram-se bastante dispersas. Em “O eclipse”, a vida de Antonioni é
cuidadosamente delineada em um longo documentário, mas é no espaço intitulado
“Uma palavra do diretor” que encontramos os enunciados nos quais ele revela que
sentido tem para ele o momento do eclipse.
“Tudo o que consigo pensar é que, durante o eclipse, provavelmente ficarão
parados até os sentimentos. É uma idéia que tem vagamente a ver com o
filme que estava preparando, mais uma sensação que uma idéia, mas que
já define o filme, se bem que este ainda esteja longe de estar definido”
(ANTONIONI, 1962).
As relações estabelecidas entre atores e diretores também são
pontuadas, inclusive as dificuldades de entendimento no set de filmagens. Em “37
anos depois com Claude Lelouch”, o diretor expõe problemas de diálogo com Anouk
Aimée, a qual temia protagonizar cenas em que ela e Jean-Louis Trintignant tinham
que se degustar
39
– pelo olhar – em um barco em pleno alto-mar! Para Fellini,
Marcello Mastroianni, além de um “ator de verdade”, era um “grande amigo”.
38
A esse respeito, ver: BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: dictionnaire grec-français. Paris: Hachette,
2000, p.1534.
39
No sentido etimológico de gustare, apreciar. Quem assistiu ao filme, certamente entenderá nossa
escolha lexical.
Já em um trecho de documentário, Claude Lelouch confessa ser pouco
emotivo e projetar um “eu ideal” no personagem de Jean-Louis Trintignant.
Especificamente, quando o assunto é a direção da obra cinematográfica, a ênfase
incide sempre na originalidade de quem exerce essa função. Assim, Fellini é aquele
que, em certa medida, produziu inovações na língua italiana contemporânea; por
outro lado, “o cinema moderno não seria o mesmo sem o olhar único de
Michelangelo Antonioni, um dos mestres absolutos da Sétima Arte”.
É traçada, também, uma espécie de “psicopatologia” dos diretores:
Visconti e sua obsessão pelo detalhe, Fellini e sua fobia à música, Antonioni e sua
insatisfação histérica. Informações que sublinham o fato de estarmos consumindo
um produto artístico bem específico, a saber, um filme de autor, e, como tal, dotado
do estilo de seu criador.
Antonio Quinet (1999) nos explica que, a Estilística, desenvolvida sob a
égide da Lingüística, fornece duas definições de estilo. A primeira o coloca como
“instrumento de generalização”, designando um sistema de meios e regras prescritos
ou inventados, e utilizados na produção de uma obra. Há, portanto, um sistema com
o qual se entra em acordo ou desacordo. A segunda definição coloca o estilo como
um “instrumento de singularização”, enfatizando a virtude de alguém de quem se
pode dizer que o possui. Pode existir, inclusive, um sujeito que antecipa um estilo,
rompendo com o anterior e promovendo inovação. Distinguem-se, destarte, os
talentosos dos não talentosos.
Visconti afirma ter realizado “Noites brancas” por estar convencido da
necessidade de seguir um caminho muito diferente daquele que o cinema estava
percorrendo em sua época. Assim, opondo-se ao neo-realismo, Visconti diz que, até
através da cenografia, ele quis obter, não uma realidade documentada, precisa, mas
uma decidida ruptura com o estilo usual do cinema italiano de seu tempo. Assim
procedendo, sua intenção era abrir uma nova porta aos jovens diretores italianos
iniciantes na Sétima Arte.
A Psicanálise, segundo Quinet (1999), admite a vertente do estilo como
instrumento de singularização, mas não faz dele um instrumento de segregação.
Para a teoria lacaniana, o estilo é da ordem da enunciação por onde circula a
verdade. Enunciação que diz respeito ao modo de manejar os enunciados, próprio
de cada um, uma forma de lidar com a linguagem, ou ainda, “aquilo que vem a mais
no enunciado por onde circula o mais-de-gozar, esse suplemento do enunciado”. O
estilo advém do sem recurso; é o objeto a que responde por ele.
Claude Lelouch, por exemplo, enfatiza a dimensão humana de seu filme,
pois, segundo o diretor, a falta de recursos fê-lo apelar à criatividade, o que explica a
alternância de cenas coloridas e de cenas em preto e branco em “Um homem, uma
mulher”. A história do filme, ele diz, é fruto de uma inspiração que lhe surgiu após ter
dormido sozinho dentro do carro na cidade de Deauville. Inspiração que lhe trouxe
de volta à vida, pois o diretor se coloca como alguém que não tinha nada, que
estava na ruína.
Podemos perceber, então, que, enquanto Visconti se destaca por sua
mestria, Lelouch se notabiliza por sua inventividade. Ambos, diretores muito
distantes do lugar comum e que endereçam suas obras a pessoas extra-ordinárias.
De modo geral, depreendemos de nossas análises que os extras tentam
propor, na arquitetura de DVDs dos cult movies, verdadeiras sínteses documentais,
reunindo informações que permitiriam sua re-consideração sob os mais diversos
ângulos. A configuração do DVD consiste, portanto, em um modo de organização de
seus constituintes que conduz o espectador a descobrir uma synopsis, visão de
conjunto, do antes, do durante e do depois do lançamento da obra cinematográfica
no mercado. Mirabile visu, a ilusão criada é de estar a par de tudo, de que nada
escapou de nossa curiosidade. Um saber pormenorizado e, no entanto, acessível
apenas aos que estão em condições de assimilá-lo. Narra-se a história de um
sucesso; sucesso de e para poucos.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta dissertação partiu da constatação de que o campo da Comunicação
Social se acha recortado por abordagens distintas do fenômeno comunicacional e
marcado pela dispersão temática. Propusemos, por conseguinte, um percurso nessa
paisagem complexa de teorias e paradigmas, na tentativa de demonstrar que,
apesar da fragmentação, em nossa prática de pesquisa podemos encontrar apoio
em um ponto de ancoragem específico, comum a todos comunicólogos: o estudo
das mídias.
Mesmo sendo uma teoria da comunicação, a Psicanálise não figura nas
principais coletâneas sobre métodos de pesquisa publicadas no Brasil. Por que
estaria ela ausente nesses importantes materiais de consulta para os estudantes de
Comunicação Social? Talvez porque os comunicólogos a vejam com desconfiança,
seja por sua origem, já que ela nasce de uma experiência singular de Freud com o
sofrimento humano na clínica, seja porque os conceitos metapsicológicos postulados
por Freud não podem ser validados empiricamente.
Em nosso trabalho, defendemos que o modo de fazer ciência de Freud
ser-nos-ia pertinente como um modelo de superação de problemas descritos pelos
pesquisadores mais atuantes nos debates sobre epistemologia da Comunicação.
Buscando aportes no legado de Jacques Lacan, formulamos a pergunta:
como se dá a articulação estratégica da informação nos extras de DVDs de filmes
cult”? Priorizamos o estudo d’“O Seminário, livro 17”, pelo fato de que ele constituiu
um marco na teoria lacaniana dos discursos. Procedemos, também, pela via da
congregação crítica de argumentos dos mais importantes comentadores da obra
lacaniana, no Brasil e em outros países, notadamente, na França.
Nossa leitura possibilitou-nos concluir que a configuração dos DVDs que
constituíram nosso corpus procura simular a existência de uma arquitetura capaz de
garantir a elucidação da totalidade do processo de engendramento de sentido na
obra cinematográfica. Sugerindo a instauração de um espaço de manifestação da
“verdade”, pela clarificação do objeto fílmico por intermédio da distribuição de
informações em múltiplos gêneros e formatos, a racionalidade midiática estrutura o
produto final fazendo uso de mecanismos que impedem a desintegração de sua
unidade temática.
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