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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS - CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA, MEMÓRIA E
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
HILDETE LEAL DOS SANTOS
DE CONTO EM CONTO, DE PONTO EM PONTO TECENDO A
REPRESENTAÇÃO FEMININA
Santo Antônio de Jesus - BA
2007
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2
HILDETE LEAL DOS SANTOS
DE CONTO EM CONTO, DE PONTO EM PONTO TECENDO A
REPRESENTAÇÃO FEMININA
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Cultura, Memória
e Desenvolvimento Regional do
Departamento de Ciências Humanas, da
Universidade do Estado da Bahia
UNEB, Campus V, como requisito
parcial para obtenção do título de
Mestra.
Orientador:
Prof. Dr. Gilberto Nazareno Telles
Sobral
Santo Antônio de Jesus - BA
2007
TERMO DE APROVAÇÃO
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FICHA CATALIGRÁFICA
Elaboração: Biblioteca Central / UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396
(Biblioteca Campus V/ UNEB)
SANTOS, Hildete Leal dos
De conto em conto, de ponto em ponto tecendo a
Representação feminina / Hildete Leal dos Santos. – Santo
Antônio de Jesus – Ba.:[s.n], 2007.
104 f.
Orientador: Gilberto Nazareno Telles Sobral
Dissertação (Mestrado)—Universidade do Estado da Bahia.
Campus V. Departamento de Ciências Humanas
1. Discurso. 2. Gênero. 3. Conto popular - Tradição Oral. I. Sobral,
Gilberto Nazareno Telles. II. Universidade do Estado da Bahia
Campus V. Departamento de Pós-graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional. III. Título
CDD: 305.4
4
HILDETE LEAL DOS SANTOS
DE CONTO EM CONTO, DE PONTO EM PONTO TECENDO A
REPRESENTAÇÃO FEMININA
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Cultura, Memória
e Desenvolvimento Regional do
Departamento de Ciências Humanas, da
Universidade do Estado da Bahia
UNEB, Campus V, como requisito
parcial para obtenção do título de
Mestra.
___________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Nazareno Telles Sobral – UNEB
___________________________________________
Profª. Drª. América Lúcia Silva César – UFBA
___________________________________________
Profª. Dra. Maria da Conceição Reis Teixeira - UNEB
Santo Antônio de Jesus - BA
2007
5
Resumo
Este trabalho apresenta uma análise discursiva sobre representação feminina em contos
populares de tradição oral, de cidades do interior da Bahia, classificados como versões do
“ciclo da Borralheira” (Cinderela). Busca-se analisar os discursos sobre a mulher que se
encontram nessas versões comparando-as com uma versão de Perrault para se apontar
discursos da versão escrita que se reproduzem ou se transformam nas versões orais. Para tanto
propõe-se uma abordagem sobre as especifidades do trabalho com o conto popular, e sobre a
história da mulher ou ausência dela, demonstrando como os discursos
produzidos\reproduzidos ao longo do tempo, por uma sociedade de domínio patriarcal, foram
fundamentais para criar e manter estereótipos sobre a mulher. Estereótipos esses que sempre
visam a submissão feminina, seja quando a idealiza como frágil e incapaz, seja quando rotula
as transgressoras como más, ameaçadoras, necessitando sempre de controle e “proteção”
masculina.
Palavras-chave: Discurso, Gênero, Conto Popular, Tradição Oral.
6
Abstract
This work presents a discursive analysis about feminine representation in popular tales of the
oral tradition of the countryside of Bahia State, tales classified as a part of the “Borralheira’s
cycle” (Cinderella). We make an analysis of the discourses about women inside those
versions comparing to Perrault’s version, to demonstrate discursive regularities of the written
modality repeated and changed in the oral tradition. Through the tales we search for the
history of women or its absence, showing how the discourses produced and reproduced by a
patriarchal society were fundamental to create and maintain stereotypes about women through
time. Such stereotypes aim feminine submission, picturing women as weak and incapable, as
well as labeling them as transgressive, bad and threatening, always in need of masculine
control and “protection”.
Key-words: Discourse, Gender, Popular Tale, Oral Tradition.
7
A Deus, meu guia e minha força
A minha mãe (in memorian) que fez de
minha vida não um conto de fadas, mas
uma realidade plausível onde os sonhos
sempre foram possíveis, superando todas
as adversidades. A mim sempre encantou
como ela conseguia reunir em si mesma
tanta força e fragilidade.
Minha eterna saudade.
8
Agradecimentos
Sou imensamente grata a todas as pessoas que viabilizaram a realização desse trabalho:
professores, amigos, colegas, funcionários das instituições. Mesmo correndo o risco de ser
injusta (por alguma omissão) gostaria de agradecer alguns, em especial:
A Derneval e Ionã, meus parceiros constantes e eternos amigos. Às vezes esqueço que somos
eu, Derneval e Ionã e falo sempre nós. Quantas angústias, alegrias, reflexões e,
principalmente, boas gargalhadas partilhamos?!
A meus demais colegas de turma: Daniele, Eliane, Mateus, Dirceu, Uberdan, Jorge, Juliana,
Elmo, foi muito bom conhecê-los.
Ao professor Dr. Daniel Francisco dos Santos pela confiança que sempre deposita em seus
alunos, e por nos fazer acreditar que é possível ir sempre além.
Ao meu orientador Dr. Gilberto Nazareno Telles Sobral pela contribuição e pela generosidade
de aceitar me orientar mesmo não me conhecendo.
A professora Dra. Conceição Reis, nossa fada madrinha, sem a sua ajuda nós (eu, Ionã e
Derneval) não estaríamos aqui.
Ao professor Ms. Wesley Correia pela acolhida e apoio durante o Tirocínio Docente.
A todos os demais professores do programa de Pós-Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional: Charles D’Almeida Santana, Felipe Magalhães, Paulo Guerreiro,
Victor Hugo, Nancy Sento Sé...
9
A professora Dra. Edil Costa, a quem ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente, mas
que esteve presente todo o tempo que trabalho com os contos publicados em seu livro.
Muito obrigada pela disponibilidade, eficiência e a agilidade que me atendeu em nossos
contatos por telefone ou por e-mail.
A meu amigo e irmão de alma Hamilton Rodrigues pelas idéias que trocamos, por escutar
minhas angústias, incertezas e as confidências inconfessáveis.
A minha amiga, irmã, segunda mãe, confidente, professora Paulina Teixeira por dividir
comigo sua família, sua casa e sua vida.
A meu amigo e digitador preferido Saulo Teixeira pelo carinho e ajuda, você é um anjo em
minha vida.
Aos funcionários da biblioteca Bartolomeu, Geraldo, Nilza... Pela paciência e presteza em nos
atender sempre.
10
Sumário
APRESENTAÇÃO 10
1. REPRESENTAÇÃO FEMININA NO CONTO POPULAR
NUMA PERSPECTIVA DISCURSIVA 17
ERA UMA VEZ... O CONTO POPULAR 16
A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA MEMÓRIA
COLETIVA – ENTRE EVAS, PANDORAS E CINDERLAS 22
UMA PERSPESTIVA DISCURSIVA 35
2. TRADIÇÃO E MEMÓRIA – OS FIOS QUE TECEM 43
2.1 TRADIÇÃO E TRANSFOMRAÇÃO 45
2.1.1 A tradição que sustenta o novo 47
2.1.2 Formas Fundamentais e Secundárias – O novo que
sustenta a tradição 56
3. REPRESENTAÇÃO FEMININA NOS CONTOS POPULARES 69
3.1 A SIMBOLOGIA DAS MADRASTAS – Evas, bruxas e Pandoras 70
11
3.2 OS PODERES FEMININOS 75
3.3 A MULHER IDEALIZADA - Entre Amélias e Cinderelas 82
3.4 LAR DOCE LAR 88
3.5 PARA SEMPRE... FELIZES PARA SEMPRE 92
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 97
5. REFERÊNCIAS 100
6. Anexos
Anexo I – Cinderela (v.P.)
Anexo II – A história de uma Caranguejinha (v.o. Taperoá)
Anexo III – Maria Borralheira (v.o. Anagé)
Anexo IV – Maria Borralheira (v.o. Itapetinga)
Anexo V – Maria Borralheira (v.o. Amargosa)
Anexo VI – Cinderela (v.o. Entre Rios)
Anexo VII – A Gata Borralheira (v.o. Entre Rios)
12
Apresentação
O estímulo inicial para esse estudo partiu da observação de como algumas
representações femininas são recorrentes em diversos textos, em diferentes épocas. A
delimitação para o estudo de apenas uma tipologia (os contos populares) foi influenciada pela
experiência em sala de aula no trabalho com crianças de alfabetização. Essa prática era
sempre permeada por atividades de narrar histórias nas quais sempre estavam presentes os
contos de fadas que traziam figuras femininas bastante significativa.
Outro aspecto instigante é o fato dessas narrativas serem reproduzidas séculos e, ao
menos tempo que mantêm a tradição, conseguem se ressignificar a cada tempo e lugar
garantindo assim sua sobrevivência.
Dessa forma, nesse trabalho objetiva-se analisar os contos populares, numa perspectiva
da Análise do Discurso da Escola Francesa, para discutir as representações femininas e em
13
que medida os discursos sobre a mulher que estão na matriz de Perrault se mantêm ou se
transformam nas narrativas orais catalogadas no interior da Bahia.
São analisadas um total de 7 ( sete) versões do conto Cinderela, sendo uma versão da
tradição escrita (com base na matriz de Perrault registrada na França no século XVIII) e 6(
seis) versões orais registradas em localidades do interior da Bahia, a saber:
1- A História de uma Caranguejinha (v.o. Taperoá) - doravante o termo versão oral,
usado para identificar os contos, será grafado v.o. - foi catalogada em 16 de abril de 1988,
narrada por Lélia Aleluia Couto Dantas, na época com 18 (dezoito) anos, solteira, ensino
médio completo, professora primária, pele clara. Ela é natural de Taperoá, cidade localizada
na região do Recôncavo Baiano, na micro-região dos Tabuleiros de Valença e faz parte do
Litoral da Baia de Tinharé. O município teve origem na aldeia jesuítica de São Miguel do
Taperaguá, fundada em 1561, que foi habitada por índios Tupiniquins, Tapuias, Queréns e
Aimorés.
1
Além da fertilidade do solo que favorece a agricultura, o município se destaca pela
fartura do pescado favorecido pela localização no Litoral e pela presença de rios;
2- A versão Maria Borralheira (v.o. Anagé) foi narrada por Luzia Rosa Silva, 51 anos,
casada, doméstica, analfabeta, natural de São Paulino. Essa versão foi catalogada em 07 de
janeiro de 1991, na cidade de Anagé, fundada em 1784 pelo bandeirante cel. João Gonçalves,
e servia como ponto de pousadas para tropeiros e viajantes, à margem do Rio Gavião; está
localizada na Região Sudoeste da Bahia, onde a pecuária é bastante diversificada,
apresentando seis tipos de rebanho, mas o principal destaque é a criação de bovinos;
2
3- A Maria Borralheira (v.o. Itapetinga), versão catalogada em Itapetinga em 21 de
março de 1991, foi narrada por Edite Boneneze de Souza, 66 anos, casada, cursou ao final
do ensino médio, é professora de datilografia (sic) e doméstica, natural de Itapetinga. Essa
cidade fica localizada no sul da Bahia. O desenvolvimento da região se deu em 1912, mas é
com a construção da rodovia Ilhéus Conquista, em 1942, que ela experimenta um progresso
significativo. Nas décadas de 80 e 90 o município possuía um dos maiores rebanhos bovinos
do Nordeste brasileiro, a ponto de ser chamada A Capital da Pecuária devido ao grande
número de criadores em grandes fazendas da Região; inclusive até hoje é tomada como
referência nos programas especializados quando se divulga a cotação de carne bovina.
Atualmente a pecuária perdeu um pouco da sua pujança, mas ainda é a principal atividade
econômica do município.
3
1
www.taperoa2001.hpg.ig.com.br
2
www.anage.ba.gov.br
3
www.google.com.br
14
4- A versão Maria Borralheira (v.o. Amargosa) foi catalogada em Amargosa em 16 de
novembro de 1991, narrada por Zulmira Maria Figueiredo, 63 anos, casada, costureira, com
ensino fundamental completo, natural de Amargosa, cidade localizada no Vale do Jequiriçá. A
região de Amargosa era de domínio dos índios Karirís de língua Karamuru e Sapuyá que
perdurou até meados do século XIX quando os remanescentes foram massacrados pelos
colonizadores. A pecuária extensiva que foi a marca do médio e grande produtor vem
passando por um declínio ao tempo em que m crescido as culturas de subsistência e o setor
de serviços.
4
5- A versão Cinderela (v.o. Entre Rios), foi catalogada em Entre Rios em 31 de outubro
de 1993. Narrada por Marinalva Pereira, 24 anos, casada, ensino fundamental completo,
mulata, doméstica e também artesã (ela utiliza a palha de uricuri na confecção de utensílios) é
natural de Subaúma, sub-localidade de Entre Rios, cidade essa localizada na região do Litoral
Norte. Seu surgimento se deu com a povoação às margens dos rios Joanes, Inhambupe e
Itapicuru. O município tem produção agrícola diversificada (laranja, côco da baía, amendoim,
batata doce); e na pecuária destacam-se os rebanhos de bovinos, eqüinos e suínos.
5
6- A versão A Gata Borralheira (v.o. Entre Rios) foi narrada por Clara dos Santos,
natural de Candeias-Ba, casada, lavradora, artesã (trançadeira de palha), analfabeta, negra,
portadora de cegueira adquirida; segundo informação da pesquisadora Prof. Dr. Edil Costa,
essa narradora já é falecida. Esse conto foi catalogado também em Entre Rios, em 2 de agosto
de 1994.
Todas as informações sobre os dados pessoais dos narradores estão no Programa de
Estudos e Pesquisa da Literatura Popular da Universidade Federal da Bahia (PEPLP-UFBA),
ressalta-se, entretanto, conforme informações da mesma pesquisadora, que só recentemente os
dados sobre traços étnicos predominantes foram incluídos nas fichas dos informantes,
portanto as informações sobre esse aspecto, que constam nesse trabalho, foram dadas de
memória pela pesquisadora. Alerta-se, ainda, que os dados pessoais foram colhidos no ato da
pesquisa; assim algumas informações como,estado civil, escolaridade, profissão já podem ter
sofrido mudanças. Todavia isso em nada influencia essa análise uma vez que o que de fato
interessa são as condições de produção, ou seja, as condições no ato da enunciação.
Como coincidência de títulos em algumas versões, ou ainda porque algumas versões
orais conservam o mesmo titulo de versões impressas, optou-se por criar, para esse trabalho,
uma classificação que permitisse diferenciar as narrativas com mesmo título; assim, cada
4
www.amargosa.ba.gov.br
5
www.google.com.br
15
conto será identificado com a abreviatura v.o. (versão oral) mais o nome da cidade onde foi
registrada e/ou cidade natal da narradora, e a versão escrita será identificada nas citações com
a abreviatura v.P (versão Perrault)
Os contos em suas versões orais tomados para análise foram publicados no livro
“Cinderela nos entrelaces da tradição” de autoria de Edil Silva Costa. Esses contos, por sua
vez, foram catalogados pelo Programa de Estudo e Pesquisa da Literatura Popular da UFBA
(PEPLP) que desde 1984 vem recolhendo diversas manifestações da literatura oral no estado
da Bahia; projeto do qual a autora do livro faz parte.
Conforme essa autora, o Projeto de Estudo e Pesquisa da Literatura Popular vem
recolhendo diversas manifestações da literatura oral no estado da Bahia: mas, o conto popular
e o romanceiro ibérico são as duas principais vertentes e, consequentemente, o principal alvo
dos pesquisadores envolvidos no projeto que conta com uma equipe formada por professores
e estudantes universitários. O trabalho de catalogação teve início na capital, depois se
expandiu para o interior. O conto da borralheira, que é considerado versão de Cinderela, até
janeiro de 1995 já contava com 144 (cento e quarenta e quatro) versões das quais 20 (vinte)
foram publicadas no livro Cinderela nos Entrelaces da Tradição de onde foram retiradas as
seis versões que constam nessa análise.
Ainda segundo a autora, os narradores do conto da Borralheira, em sua maior parte, são
mulheres, com idade entre 31 e 60, o escolarizadas. No projeto, de modo geral, aparecem
mais narradoras que narradores, principalmente no que diz respeito aos contos de
encantamento.
Os homens são melhores narradores de facécias e de contos de exemplo, com
brilhantes exceções, felizmente. As atividades femininas, mais voltadas para o
interior da casa e da família, certamente contribuem para o fato, embora se tenha
observado que, na presença do homem, a mulher costuma se calar. O domínio e o
exercício da palavra é, sem dúvida, uma expressão de poder que, numa sociedade
patriarcal, é privilégio masculino, com exceção do ambiente familiar, espaço para
educação dos filhos, tarefa eminentemente feminina. Aí a palavra feminina tem seu
espaço também, e é principalmente ela o instrumento de transmissão da literatura
oral. Quando, na Idade Média, o exercício da palavra era uma atividade prestigiosa,
pública e profissional, eram os homens que pronunciavam a voz poética, com muito
mais rara participação feminina (..) (Costa,1998, p.37)
Guimarães(2000), em sua abordagem sobre o conto popular, afirma que as variações da
narrativa devem ser vistas como resultado de um enunciado performático que tenta adequar a
história ao contexto que é sempre variável, ao interlocutor ou os laços socias. São os fatores
16
que em análise do discurso se chamam de condições de produção que iinterferir no tipo de
enunciação que irá se produzir
Nessas condições de produção não se pode esquecer a historicidade dessas narrativas e
dos sujeitos que os reproduzem. Nas palavras de Costa (1998), fazendo uso de uma expressão
de Zumthor( 1993), os narradores o “portadores da voz poética”, vozes que sustentam a
tradição e garantem a continuidade dessas histórias.
Sobre suas experiências na coleta dos contos, como integrante da equipe do PEPLP,
Costa (1998) relata que viu nos narradores talento nato. Eles narram com o corpo inteiro e
lançam mão de recursos extralingüísticos que melhoram a performance. Chama atenção ainda
que na sua publicação constam contos fragmentados por entender que a fragmentação também
é um traço das narrativas orais.
de se ressaltar ainda que na transcrição do oral para o escrito perdas o inevitáveis,
principalmente na performance; contudo, a autora assinala que fez questão de manter a
linguagem usada pelos narradores, que muitas vezes se distancia da língua padrão prestigiada,
“registrando formas que correspondem à realização tanto no nível fônico, como
morfossintático e lexical” (Costa, 1998,p.41), evitando discriminar o dialeto do informante.
Por isso é que nas citações de fragmentos dos contos, que constam nessa análise, buscou-se
preservá-los como estão publicados, mantendo as variações lingüísticas.
Ao se trabalhar com conto popular, com tradição oral, não se podem ignorar as
especificidades do gênero. Diferentemente da escrita, o texto oral acentua elementos
performáticos da comunicação que suplementam a mensagem; e toda tentativa de reproduzi-
los, na transcrição para o escrito, é sempre precária.
Embora Costa (1998) ressalte que o texto de tradição oral deve ser visto como um
grande texto virtual composto de matérias diversas, e que dada a sua amplitude não é tão fácil
nem preciso se determinar em que medida se tem uma versão ou uma nova estrutura, no caso
das narrativas que são objetos dessa análise tomou-se como base para classificação como
versões de Cinderela a presença dos motivos indicados por Propp (1984) em sua Morfologia
do Conto Maravilhoso. Esses motivos são descritos e discutidos no capítulo 2.
Esse trabalho se apresenta estruturado em três capítulos: O primeiro, traz uma base
teórica em três abordagens: a primeira abordagem é sobre o conto popular (que se constitui o
objeto desse estudo), discutindo suas especificidades e alguns estudos que passam pela
perspectiva folclorista, pela perspectiva da História Social e da psicanálise; a segunda
abordagem é sobre a representação feminina na memória coletiva, já que esse é o recorte da
análise, momento em que se retoma fatos historicamente marcados, discussões sobre a
17
História da Mulher ou sua ausência para se buscar entender como algumas representações
femininas o se reproduzindo ao longo do tempo; no terceiro momento tem-se uma
abordagem sobre a Análise do Discurso da Escola Francesa que é a base teórica que sustenta
essa discussão, procurando, além de referenciar alguns autores que contribuíram para essa
perspectiva de estudo, elucidar conceitos básicos que são fundamentais para sua compreensão.
No segundo capítulo, busca-se levantar os elementos da tradição (considerando os
motivos indicados por Propp) que se mantêm nas versões orais e os elementos locais que o
incorporados, discutindo como as condições de produção influenciam para as mudanças que
ocorrem nessas narrativas e sobre o imbricamento entre a tradição e o novo.
E no terceiro capítulo analisam-se os discursos relativos à mulher que permeiam essas
narrativas, discutindo em que medida as narrativas orais que passam por constantes
recriações, conservando elementos da tradição e incorporando elementos novos, mantêm ou
transformam os discursos produzidos na versão impressa. As análises acerca desses discursos
estão sistematizadas nas seguintes temáticas: as madrastas; o poder feminino; a idealização
feminina; o casamento; e as funções domésticas.
Além dos três capítulos mencionados acima, nesse trabalho constam ainda as
considerações finais, as referências bibliográficas e os anexos com as sete versões que
constituem o corpus da análise.
1. Representação Feminina no Conto Popular numa Perspectiva Discursiva
“- É muita coisa para uma palavra dizer disse Alice
com uma inflexão pensativa.
- Quando faço uma palavra trabalhar tanto assim
explicou Humpty Dumpty – pago sempre extra.
(Lewis Carroll)
Se por um lado historiadores apontam a ausência de uma história das mulheres, por
outro lado, estudos antropológicos discutem a existência ou não de um matriarcado em
estágios primitivos do desenvolvimento humano. alguns estudos que defendem a
existência de sociedades que foram governadas por mulheres e que em algum momento elas
foram subjugadas pelo homem e destituídas do poder. Outros estudos afirmam que a diferença
entre os sexos é de caráter universal (ocorreu em todas as sociedades) e existiu em todas as
etapas da evolução da humanidade. Como o conto popular é uma dessas produções humanas
que vêm sobrevivendo séculos, e pode em muito refletir formas de pensar, agir e
18
reproduzir idéias de uma determinada comunidade, isso impulsionou a discussão desse
trabalho.
A forma como se estrutura esse capítulo está baseada nas perguntas que foram
provocando inquietações ao longo da pesquisa. E as discussões que se trazem aqui buscam, se
não responder, pelo menos discutir estes questionamentos. A primeira inquietação que surgiu
foi: ainda desperta interesse estudar representação feminina em pleno século XXI pós-
movimento feminista quando, ao que parece, a mulher vem ocupando espaço em todos os
âmbitos da sociedade, quando ela tem deixado de assumir um lugar meramente secundário, e
atingiu uma liberdade sexual indiscutível, uma liberdade de escolha sem precedente? A
segunda inquietação foi: em que medida interessa o estudo de representação feminina no
conto popular?
Isso posto, a pretensão nesse capitulo é, além de apresentar os pressupostos da Análise
do Discurso que norteiam esse trabalho, trazer algumas discussões sobre o conto popular (que
se constitui o objeto analisado) e sobre a representação feminina construída ao longo da
história, que serão fundamentais para as inferências nas discussões seguintes.
Vale ressaltar ainda que, embora esse trabalho se valha de contribuições trazidas pelos
antropólogos, não se tem intenção, aqui, de buscar um discurso fundador sobre a mulher, mas
discutir como os discursos vêm se produzindo/ reproduzindo ou em que medida são
transformados.
Era uma vez... O Conto Popular
Essa bela simplicidade, essa divina ignorância da
primeira idade, que se encontra em obras literárias da
antigüidade clássica, conservou-se, como o perfume de
uma flor, nos contos e canções populares. Digamos
logo... que esses contos são absurdos. Se eles não
fossem absurdos, não seriam encantadores.
(Anatole France, Paris, 1885)
A arte de narrar acompanha a humanidade muitos séculos, é antiga e de caráter
universal; desde que a vida amanhecia no planeta, o homem já narrava. Inicialmente as
narrativas davam conta do cotidiano, o que lhes conferia um caráter também lúdico, depois
elas serviam para “explicar” o mundo a sua volta, buscavam assim um meio para dar sentido
aos acontecimentos para os quais o homem não tinha uma explicação racional. É dessa
tradição oral que surgem os contos maravilhosos. Embora seja difícil precisar quando esse
19
costume se inicia, os estudos etnográficos indicam sua presença nas mais diferentes
civilizações e que eram narrados na China no século IX d.C; outros estudiosos acreditam
que as narrativas maravilhosas tenham origem céltica (séc. II a.C.).
O termo conto de fadas” foi usado, apenas em seu sentido literal, para designar
histórias fantásticas sobre fadas. Atualmente o termo serve para identificar as mais variadas
narrativas marcadas por elementos “atemporais”, com presença de heróis ou heroínas e algum
elemento mágico, sobrenatural e não necessariamente uma fada. Mas todas elas são histórias
cujo enredo busca mostrar um princípio moral.
A história dessas narrativas nunca foi fácil de ser descrita, por não se ter uma exatidão
do seu surgimento, devido a sua origem na tradição oral. Mas esse aspecto não diminui, ao
contrário, instiga as mais diversas áreas do conhecimento: folclore, etnografia, antropologia,
lingüística, história, psicanálise.
Conforme Abramowicz (1997), considerando normas histórico-geográficas, Aarne, em
1910, faz um trabalho pioneiro no qual apresenta uma classificação sistemática sobre contos;
outros trabalhos se seguiram a esse, mas é com Vladimir Propp, a partir de estudos com
contos russos, com o livro Morfologia do Conto, publicado em 1928, que se tem uma nova
proposta de classificação e análise estrutural do conto fantástico. O trabalho de Propp só ficou
conhecido no ocidente em 1958 e recebeu severas críticas. Um de seus maiores críticos foi
Levi-Strauss que o acusava de se aproximar dos formalistas russos. Mesmo que se possa
apontar eventuais equívocos, hoje nenhum trabalho sobre contos pode negar a importante
contribuição da obra de Propp. Ao discutir sobre a noção de percurso gerativo de sentido,
numa abordagem sobre semiótica narrativa e discursiva, Fiorin (2002,p.57) aponta a
importância do trabalho de Propp:
Propp desejava revelar as regularidades subjacentes à imensa variedade das
narrativas; procurava apreender em meio à diversidade imensa de modos de
manifestação da narrativa (oral, escrita, gestual, pictórica, etc), de tipos de narrativas
(mitos, contos, romances, epopéias, tragédias, comédias, bulas, etc) e de realizações
concretas as invariantes narrativas.
Para Barthes (1976, p.8), o estudo de Propp “foi produto fundamental para o
desenvolvimento da narratologia, e que, polêmicas à parte, o trabalho de Levi-Strauss,
estudando a estrutura dos mitos, contribuiu para o desenvolvimento científico de pesquisas
nessa área”.
Sem deixar de reconhecer a importância do trabalho de Propp, segundo Abramowicz
(1997, p.10),
20
“foram os estudos centrados na psicanálise de Jung, Freud e Bettelheim que
difundiram no ocidente uma certa maneira de abordar [...] os contos de fadas [...]
que trazem os fantasmas que assolam a humanidade”.
Para a corrente de estudos psicanalistas, que analisa os contos populares, o simbolismo
presente nas tramas dos contos age no inconsciente da criança ajudando-a a resolver conflitos
interiores normais na infância. Esses símbolos estariam ligados aos dilemas que o homem
sempre enfrentou para atingir seu amadurecimento emocional e pode ajudar a criança a
superar o medo que a inibe e enfrentar os perigos e ameaças que marcam o universo infantil.
Para Bettelheim (1980), os contos contêm elementos do subconsciente ou irracional, e
para sua análise ele emprega idéias da psicanálise freudiana, buscando mostrar as razões, as
motivações psicológicas, os significados emocionais, a função do divertimento, a linguagem
simbólica do inconsciente que estão subjacentes nos contos.
A análise de Fromm (1983), sobre os contos, es baseada na decodificação de
elementos simbólicos que constituem a linguagem das narrativas. Para interpretação de mitos
e contos de fadas, ele utiliza os mesmos princípios freudianos para interpretação dos sonhos e
defende que a linguagem simbólica é a única verdadeiramente universal. Em sua obra A
Linguagem Esquecida o se preocupa apenas com os aspectos técnicos e formais da
linguagem, mas discute a importância da linguagem simbólica para o homem compreender
conflitos existenciais.
No campo da História Social, discordando abertamente da corrente de estudos centrada
na psicanálise, têm-se contribuições como as de Darnton (1984), em O Grande Massacre de
Gatos..., (com o que ele chama de história das mentalidades), onde procura entender através
dos contos populares, narrados por camponeses do século XVIII na França, como as pessoas
pensavam o mundo a sua volta; procura compreender como era o “Universo dos ‘não-
iluminados’ do iluminismo”. Para ele, os contos populares são documentos históricos que
surgiram ao longo de muitos séculos e sofrem diferentes transformações, em diferentes
culturas. Darnton (1984) considera importante o trabalho dos antropólogos para a
compreensão das tradições orais, porque eles relacionam os contos com a arte de narrar
histórias e com o contexto no qual isso ocorre e examinam a maneira como o narrador adapta
o tema herdado a sua audiência, de modo que a especificidade do tempo e do lugar apareça
através da universalidade do motivo.
Para esse autor, os contos apresentam substratos de uma realidade social vivida pelos
camponeses na França do século XVIII: a fome, a miséria, a ausência de mãe (madrasta). Os
21
contos demonstravam, portanto, a forma como os camponeses viam o mundo. Ele não
acredita que os camponeses precisassem de símbolos para falar de seus problemas (embora
ele reconheça o caráter simbólico da linguagem) e acredita que as histórias populares retratam
um mundo cruel. Ele justifica, por exemplo, que a presença marcante de madrastas deve-se ao
fato de constantes mortes de mulheres no parto, o que fazia com que os homens contraíssem
um segundo matrimônio.
A análise de Darnton é, sem dúvida, valiosíssima; o estilo irônico, até certo ponto
sarcástico, usado para criticar os psicanalistas, a seu texto um sabor especial. É pena que
ele o tenha atentado para discutir (explicar?) a presença do elemento mágico nos contos.
Talvez, Darnton pudesse sugerir que, imersos como estavam na realidade cruel de miséria e
exploração, só restasse aos camponeses a esperança de algo sobrenatural acontecer para
melhorar suas vidas.
Em sua introdução em “Contos Fantásticos do Século XIX”, Calvino (2004) diz que a
modernidade do conto fantástico e a razão do seu prestígio, mesmo em nossa época, estão no
elemento sobrenatural, que constitui esses enredos, e aparece sempre carregado de sentido,
como a irrupção do inconsciente, do reprimido, do esquecido, do que se distanciou de nossa
atenção racional, e nos diz muito sobre a interioridade do indivíduo e sobre a simbologia
coletiva. Ele afirma ainda que o fantástico” diz coisas que se referem “diretamente a nós,
embora estejamos menos dispostos do que os leitores do século passado a nos deixarmos
surpreender por aparições e fantasmagorias” (CALVINO, 2004, p. 9), ou melhor, para ele as
pessoas estão prontas a apreciá-las de outro modo, como elemento de cor da época. Ao que
parece tudo isso se aplica ao conto maravilhoso
6
.
Em vez de se excluírem, na verdade, o olhar de pesquisadores de diferentes áreas de
conhecimento tem enriquecido o estudo sobre os contos; eles têm contribuído para
preencher uma lacuna que existiu durante muito tempo com a ausência de perspectivas sobre
esse gênero narrativo. Por mais que divergências existam do ponto de vista de diferentes
pesquisas, o que não se pode é negar a fascinante perenidade dos contos fantásticos que vêm
se perpetuando há milênios, atravessando todas as geografias e mudanças pelas quais o
mundo vem passando. Em parte a manutenção dessa tradição milenar foi favorecida por
trabalhos como os de Perrault, um erudito acadêmico francês que colheu histórias junto ao
povo; dos irmãos Grimm, que 1800 viajaram por toda Alemanha conversando com as pessoas
6
Para Todorov (apud Calvino, 2004) o maravilhoso” se distingue do “fantástico” na medida em que
aquele pressupõe a aceitação do inverossímel e do inexplicável, e à medida que este deixa sempre
uma possibilidade de explicação racional, ainda que seja a da alucinação ou do sonho.
22
e registrando as narrativas; ou de Andersen, nascido nas camadas populares, cujas narrativas
brotam de suas próprias experiências de infância. Outro aspecto que favorece a sobrevivência
dos contos, que são internacionalmente conhecidos e marcam o início da literatura infantil,
deve-se também ao fato de constituírem uma prosa envolvente marcada por um universo
maravilhoso que dá vazão a fantasias.
Além disso, a sobrevivência secular desses contos populares deve-se também ao fato de
se adaptarem ao tempo e ao lugar onde são contados/ouvidos, produzidos/reproduzidos.
Para Propp (1984), o conto em suas versões atuais a exemplo dos contos de fadas, os
chamados contos maravilhosos - é resultado de um mito que foi sendo profanado ao longo de
suas ressignificações e perde o caráter sagrado para se tornar profano; por isso, estão
inscritas as práticas correntes e cotidianas de grupos que ao mesmo tempo os conservam e os
ressignificam sem, no entanto, perder em sua construção a estrutura que remete às matrizes
clássicas. Como sugere Costa (1998), é como se houvesse uma narrativa virtual, um grande
texto pairando sobre essas narrativas.
Os contos, em suas versões impressas que conhecemos hoje no Brasil, largamente
utilizados pelos livros didáticos, coletâneas infantis e produções televisivas ou
cinematográficas, são marcadamente de influência norte-americana (Walt Disney). Isso é
importante porque os contos populares (os chamados contos maravilhosos), que conhecemos
na América chegaram aqui impregnados das versões impressas de Perrault e dos irmãos
Grimm, que os coletaram nas versões da tradição oral, na Europa no século XVIII. Segundo
Darnton (1986), ao recolher os contos junto aos narradores camponeses, Perrault os adaptou
para serem narrados nos salões ao gosto dos burgueses, subtraindo deles substratos de
realidade que não interessavam aos novos ouvintes (inclusive o elemento grotesco
7
) e
incorporando lições e valores que atendiam aos interesses da sociedade burguesa. De acordo
com Mendes (2002), Perrault era freqüentador dos Salões Literários parisienses, ambiente
responsável pelo prestigio social que o conto popular adquiriu e onde ele encontrou apoio e
para publicar sua coletânea.
Conforme a mesma autora, os salões literários eram luxuosas residências de nobres e
burgueses projetadas para recepções sociais. se desenvolviam atividades literárias. Era
nesses salões que as mulheres se destacavam já que não tinham acesso à academia. Por
7
Grotesco aqui é compreendido na concepção de Bakhtin, para quem no Realismo Grotesco tudo está em
relação mútua, não existe nada isolado. E o corpo é um corpo aberto que está sempre interagindo com a terra,
com o universo e o meio em que vive. O corpo é visto em sua totalidade. Ver Bakhtim,Mikail. A Cultura Popular
na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4º ed. São Paulo Brasília: Editora
Universidade de Brasília – Hucitec, 1999.
23
praticar o preciosismo, que designava o Barroco francês, elas eram chamadas de preciosas.
Muitos escritores freqüentavam esses salões para ficarem por dentro da moda e acabavam
escrevendo comédias que ridicularizavam essas mulheres, como é o caso de Molière que
escreveu: As Preciosas Ridículas, A Escola de Mulheres e As Mulheres Sabidas.
Ao analisar imagens de mulheres nos contos de Perrault, Abramowicz (1997, p. 8)
comenta que
Eric Hobsbawm, segundo Velay-Vallantin,diz, em relação aos contos de
Perrault,que uma necessidade de simbolizar a coesão social de certos grupos
letrados, e a intenção de inculcar as crenças e os protocolos aos jovens, enfim, a
construção implícita de uma comunidade nacional. Esse processo civilizador
“coincide” com um acréscimo de poder socioeconômico da burguesia, em
particular na França e na Inglaterra, de tal maneira que as transformações sociais e
religiosas e as perspectivas políticas foram representativas, por sua vez, dos
interesses aristocráticos e burgueses. Esse processo civilizador significa também, na
época da reforma, uma caça às bruxas.
A concepção de civilização era pautada nos valores burgueses, o homem civilizado é o
homem da corte, civilizado e higienizado. A época em que Perrault escreve seus contos é
marcada por uma forte crise na aristocracia, e as narrativas reproduzidas pelos autores
atendiam a interesses dessa aristocracia ressaltando seus valores.
Dessa forma, o conto popular de tradição oral passa a ser reproduzido e impresso
nutrindo costumes, práticas e valores de uma determinada classe social, e era destinado
principalmente a crianças para que internalizassem mais facilmente os códigos sociais em
vigor e um discurso simbólico sobre o processo de civilização na França. Hobsbawm (1997,
p.14) falando sobre a invenção das tradições, diz que, na sociedade britânica no século XIX,
práticas tradicionais existentes “foram modificadas, ritualizadas e institucionalizadas para
servir a novos propósitos nacionais”.
O que não se tem dúvida é que, seja do ponto de vista da psicanálise ou da história
social, o essas narrativas carregadas de significado tanto claros quanto encobertos,
permeadas por discursos historicamente produzidos, reproduzidos, ressignificados. Alguns
autores supõem (já que reconstruir a história dos contos não é uma tarefa muito fácil, sem
garantia de precisão) que as narrativas populares são transmitidas de geração em geração no
mesmo espaço geográfico sem grandes e significativas transformações, mas se elas são
reproduzidas em outros contextos geográficos, modificam-se para se adaptarem a um novo
contexto cultural.
Assim como as versões orais reunidas por Perrault sofreram mudanças ao serem
escritas, da mesma forma é possível, como propõe Ferreira, (1993) que as narrativas orais
24
populares, registradas no Brasil, sejam contaminadas pelas versões escritas. Na verdade, as
versões orais e escritas, como se encontram hoje, se cruzam e se intercruzam de tal forma que
poderíamos nos apropriar de uma metáfora de Darnton (1986, p.31) para dizer que esses
“elementos se distinguem o nitidamente quanto o alho e a mostarda num molho de salada
francês”.
Para Cascudo (2003, p. 9), de todos os materiais de estudo considerados de origem
folclórica “o conto popular é justamente o mais amplo e mais expressivo”. Para ele, o conto
não representa apenas uma viagem à infância, de valor apenas emocional ou, ainda, social;
antes de tudo é fonte histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. “É um documento
vivo, denunciando costumes, idéias, mentalidades, decisões e julgamento” (Cascudo, 2003, p.
10). Nesse sentido, o conto popular é um campo fértil para estudo das manifestações orais que
traduzem a memória viva que integra uma comunidade e pode configurar a identidade de
grupos ali inseridos. Conforme Guimarães (2000, p. 89) as narrativas populares, além de
estarem ligadas às origens histórico-culturais, “têm relação com as circunstâncias sociais
imediatas que marcam as comunidades por onde circulam”.
Esses contos, pelas possibilidades de intertextualidade, geram, por sua vez, uma
significativa presença de interdiscursos. Assim, o papel da memória coletiva é fundamental no
processo de reprodução e ressignificação dessas narrativas. Nos entrelaces dos diversos
discursos que permeiam os contos, objetos desse estudo, deparamo-nos com uma significativa
presença de representações femininas.
1.2 Representação Feminina na Memória Coletiva – Entre Evas, Pandoras e Cinderelas.
E afinal, que sabemos nós delas? Os tênues vestígios que
elas nos deixaram provêm não tanto delas próprias (...)
como do olhar dos homens.
(Duby e Perrot)
Não se pretende aqui traçar uma história das mulheres, o que seria, além de inadequado
para o espaço de discussão, pretensão demasiada; mas buscar aqui e ali vestígios de discursos
que juntos permitirão se ter uma idéia do que se dizia ou se pensava sobre as mulheres e
apresenta discursos sobre a figura feminina que foram se constituindo em diversos momentos
da história.
Até bem pouco tempo a história das mulheres era a história da ausência, seja porque foi
esquecida, seja porque foi negada. Na introdução à “História das Mulheres no Ocidente”,
25
Duby e Perrot (1990,p.10) afirmam que a história da mulher foi durante muito tempo uma
“questão incongruente ou ausente”.De acordo com esses autores, se por um lado, da
antiguidade até os dias atuais, há uma escassez de informações circunstanciais sobre a mulher,
por outro lado, uma abundância das imagens, dos discursos. As mulheres são
representadas antes de serem descritas ou narradas, muito antes de ter elas próprias a palavra”;
e dizem, ainda, que a abundância de imagens pode ser proporcional ao recolhimento em que
vivia a mulher.
As deusas povoam o Olimpo das cidades sem cidadã, a virgem reina nos altares
onde oficiam os padres; Mariana encarna a República Francesa, assunto de homens.
A mulher imaginada, imaginária, ou mero fantasma, submerge tudo (DUBY e
PERROT, 1990, p. 10)
Nos contos de fadas, as personagens femininas aparecem com muita constância: as
fadas, as madrastas, as bruxas, as moças sofredoras, as princesas. A origem dessas
representações está no imaginário e na memória coletiva. Não se pode negar, principalmente
com os avanços técnico-científicos atuais, que os sexos se diferem em sua constituição
biológica. Entretanto as diferenças sicas por si não justificam os discursos de
superioridade masculina.
A Idade Média foi prodigiosa na reprodução de modelos de comportamento que
estabeleciam diferenças entre os sexos. Na sociedade feudal de domínio absolutamente
masculino, a mulher mal tem corpo ou rosto, e, quando mencionada em documento, é vista
sob o olhar masculino, conforme Muraro (2002)
Segundo Le Goff (1989), no ocidente medieval não se pode dizer que as mulheres eram
marginalizadas, mas “desprezadas”. que elas são responsáveis pela reprodução biológica,
precisavam ser, até certo ponto, integradas, enquadradas nos grupos sociais onde também
tinham papéis na reprodução da ordem social. Todavia, eram mal aceitas ou eram vítimas de
preconceito, não exerciam direitos; suas atuações ficavam restritas ao campo dos deveres.
O século XIII foi um marco “divisor de águas na história do ostracismo medieval”, e a
inquisição foi um dos principais instrumentos responsáveis pela classificação e exclusão dos
que eram considerados perniciosos para a cristandade, dentre elas as hereges, as bruxas e as
prostitutas, de acordo com Macedo (2002).
Eram consideradas heresias interpretações que iam de encontro ao que era determinado
pela igreja. Os movimentos heréticos se proliferaram pela Europa no século XI, cujos
registros feitos pelos perseguidores desses movimentos mostram a significativa participação
26
das mulheres. registros, inclusive, de que alguns desses movimentos tinham mulheres
como líderes. As sentenças dos primeiros inquisidores da diocese de Toulouse, na França,
condenaram 152 pessoas, 30% delas eram mulheres. Ainda de acordo com Macedo (2002),
talvez a heresia atraísse tanto as mulheres porque elas encontravam nesses movimentos um
espaço de ação, de pregação, que lhes era negado pela igreja. Fatos como esses indicam que,
embora houvesse uma dominação masculina no poder e nas esferas sociais de modo geral,
existiam movimentos de resistência que podem constituir uma história das mulheres, a
história das ações de resistência; ou seja, a mulher não se submeteu sempre, a imagem de uma
submissão absoluta é construída por uma mentalidade masculina que ecoa nas vozes que
escreveram a história oficial.
As maiores vítimas da inquisição são as mulheres representadas como bruxas. Embora
essa representação o tenha “surgido” nesse momento, uma vez que ela subsistia no
imaginário popular, visto que desde a antiguidade existia a crença na magia, nos poderes
mágicos. Entretanto, só entre os séculos XV e XVII é que ocorre o fenômeno da “caça às
bruxas”. As crises políticas, religiosas, morais que marcaram esse período podem ter
influenciado para desencadear o fenômeno, que trouxeram consigo “uma nova visão de
mundo, de Deus, do Diabo, e dos males praticados em seu nome” (MACEDO, 2002,p.56).
Segundo esse autor, o medo de um “mal” invisível gerou a perseguição a um inimigo visível:
as bruxas, ou antes, a mulher. Mulher fatal, mortífera, causa de perdição, a bruxa advêm das
antigas deusas, da Lilith hebraica, dos ritos demoníacos e dos bacanais.
A figura da feiticeira, as praticantes de atividades mágicas que povoavam o imaginário
popular deram lugar à figura da bruxa, que para a igreja era alguém que adorava o demônio. O
temor maior era ao SABAT, reunião de bruxas; vista como uma orgia satânica, ritual de sexo
e luxúria, como ode a satã. Elas eram consideradas responsáveis por atos sexuais
abomináveis, pela impotência dos homens, por malefícios de toda espécie.
Em Trier, na França, uma feroz epidemia de processos contra as “bruxas” ocorreu entre
1580 a 1599, quando duas grandes colheitas foram dizimadas. Escritas da época registram o
quase inacreditável: na diocese do Como, 1000 execuções em um ano. Em Toulouse, na
França, 400 cremações de bruxas são contadas em um único dia.
Conforme Macedo (2002, p 57), o auge da “caça as bruxas” ocorre entre 1560 e 1630,
quando houve perseguições maciças na Alemanha, Suíça, lgica, Inglaterra e França. Para
alguns historiadores o numero total de execuções na Europa chegou a vinte mil, enquanto
outros sugerem em setenta mil execuções na Alemanha, e trezentos em todo continente
27
europeu, em países católicos ou protestantes. Às vésperas da Revolução Francesa, em 1781,
ainda se registram execuções.
O historiador, sociólogo e jurista Jean Bodim, no século XVI dizia: que se leiam os
livros de todos aqueles que escreveram sobre feiticeiros e encontrar-se-ão 50 mulheres
feiticeiras, ou então demoníacas, para um homem”. Ainda no século XX não tinham se
apagado as “fogueiras” e as bruxas” continuavam a assustar o poder masculino. No dia 8 de
março de 1908, nos Estados Unidos, por exemplo, “foram queimadas vivas cento e cinqüenta
mulheres, presas por seus patrões dentro de uma fábrica por reivindicarem melhores salários e
menor jornada de trabalho”. (MURARO, 2002, p.134)
Duby e Perrot (1990, p.9) perguntam “que podemos dizer da proliferação dos discursos
provenientes de pensadores, de organizadores ou de porta-vozes de uma época?”. Ao longo da
história, filósofos, teólogos, juristas, médicos, moralistas, pedagogos disseram
incansavelmente o que são as mulheres, quais são seus papéis definidos, sobretudo, pelos
deveres.
Agradar (aos homens), ser-lhes úteis, fazer-se amar e honrar por eles, criá-los
quando jovens, cuidar deles quando adultos, aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes
a vida agradável e doce, tais são os deveres das mulheres em todas as épocas, e o
que se lhes devem ensinar desde a infância. (ROUSSEAU, apud Duby e Perrot,
1990, p. 9).
Conforme esses autores, vagas de discursos recorrentes (míticos, místicos, científicos,
normativos, sábios ou populares) enraizaram-se “numa episteme comum”, o que torna
necessário muita atenção para discernir modulações e desvios; esses discursos “provêm de
homens que dizem nós e falam de elas”. Mesmo quando a mulher “toma a palavra”, ela ainda
é mediatizada pelo homem, seja na tragédia antiga ou na comédia moderna, elas são apenas
porta-vozes dos homens, ou o que elas dizem apenas ecoa obsessões deles.
O registro do que elas fazem ou dizem é mediatizado pelos critérios de seleção dos
“escribas do poder”; uma vez que os homens eram indiferentes à vida privada e se dedicavam
à vida pública da qual a mulher o participava. “O que se sabe provém do olhar dos homens
que governam a cidade, constroem a sua memória e geram seus arquivos” (DUBY e
PERROT, p. 8).
Voltando a discutir sobre a Idade Média, acontecimentos comprovam como essa
memória vem se perpetuando. Durante mais de 300 anos, nas praças públicas de boa parte da
Europa, a fogueira foi o destino de milhares de mulheres. No imaginário popular e religioso,
28
as bruxas estavam soltas por toda a parte, semeando o pavor; nuas, montadas em vassouras
aterrorizando cidades, aldeias e castelos; a perversidade feminina “campeava’ solta a serviço
dos mandos dos demônios, e precisava ser contida a qualquer custo. De 1450 a 1750, poucas
pessoas ousariam contradizer essas idéias, repetidas em tom de ameaça pelos religiosos. E
tudo isso já em plena idade moderna, a mesma que presenciou as grandes navegações, a
ascensão da burguesia, o fim do feudalismo, a formação dos primeiros estados nacionais
europeus. É como se as trevas da Idade Média não tivessem se dissipado. Afinal, a prática de
levar “condenados” à fogueira contribuiu em muito para a “escuridão” do período Medieval.
A mais memorável delas foi aquela que consumiu a vida da Joana d’Arc, em 30 de maio de
1431. Heroína nacional ficou famosa por ter conduzido o exército francês à vitória sobre os
ingleses em Orleans e deu início à revanche de seu país na guerra dos Cem Anos. Além de
desafiar seus inimigos políticos, ela desafiava as crenças religiosas da época com afirmações
de que era capaz de ouvir vozes e ter visões. Era o que precisavam para levá-la à fogueira,
mesmo sabendo da sua extrema devoção religiosa.
Para provar a propensão da mulher à maldade, não faltavam argumentos aos autores do
livro “Malleus Maleficarum”, publicada em 1486 e escrito pelos inquisidores papais alemães
Heinrich Kramer e James Sprenger. A começar por uma falha na formação da primeira
mulher, por ser ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja
curvatura é contrária à retidão do homem”. A própria etimologia da palavra feminina
confirmava essa fraqueza original: segundo eles, feminina em latim, reunia, em sua formação,
as palavras fide e minus, o que quer dizer “menos fé”. Nesse mesmo livro os autores
descrevem, de maneira bem fantasiosa e negativa, atividades milenares de benzedeiras,
curandeiras e parteiras.
Uma das abominações é a do hábito de certas bruxas que vai contra o instinto da
natureza humana, e até mesmo contra o instinto da natureza de todas as feras, com a
possível exceção dos lobos -, de devorarem, como canibais, os recém-nascidos. O
inquisidor da cidade de Como, propósito, nos conta: foi intimido pelos habitantes
do condado de Barby a conduzir um processo inquisitório por causa de um homem
que, vendo ter desaparecido seu filho do berço, saiu a procurá-lo. Acabou por
encontrá-lo num congresso de mulheres durante a noite, no qual, segundo declarou
em juramento, as viu matarem-no, para depois beberem-lhe o sangue e devorarem-
no. (KRAMER e SPRENGER, 1991, p. 151).
Enquanto no manual Malleus Maleficarum, os inquisidores papais execram a “bruxa”
e a descrevem coadunada com o mal, relacionando-a à figura do demônio, no século XIX
Jules Michelet traz uma visão acusada por muito de ser romântica - que a transforma em
29
“Mártir universal”, enaltecendo suas qualidades e sua ligação com os genes da natureza.
Michelet (1989) a “bruxa” como uma vítima da sociedade da época (Idade Média) que,
driblando as adversidades financeiras, a fome e o trabalho extenuante, deixa-se influenciar por
forças malignas; ele a retrata como exilada em lugares ermos da natureza, exposta às
intempéries; muitas vezes expulsa de sua aldeia, era uma fugitiva que serviria de confessora
de apaixonados e daqueles que a buscavam para, com seus poderes, realizar prodígios. Para
esse historiador, a feiticeira foi durante mil anos o único médico do povo; se os papas, os
barões tinham médicos, a massa consultava apenas “a mulher sábia”. Segundo ele, a partir de
1300 “sua medicina é considerada um malefício, seus remédios são punidos como venenos. O
inocente sortilégio pelo qua os leprosos acreditavam melhorar sua sorte provoca o massacre
desses desgraçados” (MICHELET, 1992, p.124).
Notadamente (romântico ou não) Jules Michelet trás um novo discurso sobre uma
representação feminina tão forte e tão simbólica: a bruxa. A sobre o Sabat, “a terrível”
Missa Negra, Michelet (1992, p.124) diz: “Parecia ser essa redenção de Eva, maldita pelo
cristianismo. A mulher desempenhava todos os papeis no sabá. É o sacerdote, é o altar, é a
hóstia de que todos comungam. No fundo não seria ela o próprio Deus?” Ele busca
desconstruir uma imagem sobre a mulher paulatinamente construída durante séculos, afirmada
e reproduzida pela igreja, pelo poder patriarcal que dominou toda a Idade Média.
Mas, embora a Idade Média tenha sido marcada por um modelo patriarcal, no qual a
mulher era menosprezada, desprezada, não foi nessa época que surgiu a desigualdade entre os
sexos. Segundo Duby e Perrot (1990), as mulheres não eram consideradas nos
recenseamentos. Só no século III d.C. elas passaram a ser contabilizadas, por ordem de
Diocleciano para atender a interesses fiscais. Na verdade, essa desigualdade remota aos
primórdios das sociedades hierarquizadas, com o início das civilizações. Para Rosaldo (1979,
p.33),
Somos herdeiros de uma tradição sociológica que trata a mulher como socialmente
desinteressante e irrelevante, aceitando como necessário, natural e profundamente
problemático o fato de que, em toda cultura humana, a mulher de alguma forma é
subordinada ao homem.
Para Sissa (1990), ao discutir Filosofias do Gênero: Platão, Aristóteles e a diferença
dos sexos, a mulher grega é uma figura curiosa. Sob o olhar dos mitólogos, médicos e
filósofos era um objeto apaixonante para ser imaginado, dissecado e instituído,
respectivamente, mas como sujeito aparece esporadicamente e sempre à margem, o que
30
confirma o domínio masculino no universo intelectual. Na Grécia antiga, poetas, filósofos e
médicos construíram discursos em que a mulher é passiva, inferior. Em todos os discursos
havia basicamente o mesmo teor: “façam elas o que quiserem, e podem tentar tudo, fa-lo-ão
menos bem(Sissa, 1990, p. 86). A mesma autora alega que grandes homens dizem mal das
mulheres”, grandes filósofos e saberes constituídos construíram idéias falsas e desdenhosas a
respeito do universo feminino.
Em sua análise das figuras femininas nos vasos gregos, Lissarrague (1990) concluiu que
as representações mais diversas mãe ou esposa, hetera ou musa, amazonas ou ménades a
mulher é um objeto, um espetáculo para o sujeito que olha, no caso, o homem grego. A
análise mostra que tanto quanto nos textos, a cidade das imagens é a cidade do discurso.
Em sua discussão sobre A Divisão do Sexo no Direito Romano, Thomas (1990) mostra
como na tradição jurídica romana à mulher era vedado qualquer direito sobre outrem, até
mesmo a adoção de filhos ou gestão de uma tutela; elas estavam legalmente afastadas das
“funções civis”, que ainda eram chamadas de “funções viris”, em direito privado como em
direito público, cidadania e masculinidade confundiam-se.
A construção de uma imagem de mulher remete aos momentos mais longínquos da
história da humanidade. Muraro (2002, p.35) afirma que “uma infinidade de mitos no mundo
inteiro descreve épocas em que as mulheres estavam mais próximas do sagrado do que os
homens”. O mitólogo americano Campbell (1990) divide os estudos sobre os mitos ocidentais
em quatro partes: na primeira, o mundo é criado por uma deusa; na segunda, a deusa é
auxiliada por um consorte; na terceira, um deus cria um mundo sobre o corpo de uma deusa; e
por último, um deus masculino cria um mundo sozinho.
Na primeira parte, têm-se os exemplos do mito grego, cuja criadora do universo é Gea, a
mãe Terra, e dela nascem todos os protodeuses e protodeusas; e o mito nagô, no qual Nanã
Buruquê, que é a mãe de Oxae todos os orixás, gera a todos sozinha. Na segunda parte,
tem-se a mitologia sumeriana, segundo a qual Siduri reinava num jardim de delícias e teve o
lugar usurpado por um deus solar (ela se transforma em uma criada). Na terceira parte, o autor
toma como exemplo a mitologia chinesa, cuja origem do mundo está em um ser andrógino
com os dois princípios: feminino (yin) e masculino (yang). E, na quarta parte, surgem os
mitos da era cristã simbolizados por um deus masculino.
No campo dos mitos da Era Cristã, conforme Guimarães (2000), não faltam
significativas representações femininas. Na tradição grega, a versão de Hesíodo da criação do
mundo no poema “Teogonia” (nascimento dos deuses), fala da criação da mulher como
represália de Zeus contra o roubo do fogo por Prometeu: Pandora foi enviada a terra, dada de
31
presente ao irmão de Prometeu, Epimeteu, e trouxe consigo, em uma caixa, todos os dons
maléficos que os deuses lhe deram. Zeus proibiu-lhe de abri-la. Mas ela, vendo-se sozinha,
abriu-a. De dentro saíram as doenças, as infelicidades, todos os males que os homens não
conheciam até então, restando a esperança. Desde esse dia, os homens passaram a sofrer, e
os longos e despreocupados festins que tinham com os deuses nunca mais aconteceram.
Na literatura religiosa, a Eva descrita no Gênesis é semelhante à Pandora. Eva
representa aquela que não resistiu à tentação, aquela que leva o homem a perder o
discernimento, a cometer o pecado desobedecendo à vontade divina. Ambas representam a
construção da figura feminina no imaginário coletivo. E a criação tanto de Eva quanto de
Pandora representa a chegada dos males à Terra. Simboliza aquela que veio destruir o paraíso
habitado pelos homens. Quando Eva deixa de se submeter aos preceitos do primeiro homem e
desobedece à vontade de Deus, ela é severamente punida, Deus disse: “Farei com que, na
gravidez, tenhas grande sofrimento; é com dor que hás de gerar filhos. Teu desejo te impelirá
para teu homem, e este te dominará” (Gênesis, 3,16).
Outra representação simbólica presente tanto em Eva quanto em Pandora é a da
curiosidade feminina, como se ela fosse uma característica puramente da mulher, além do que
as conseqüências dessa curiosidade é sempre um castigo. Simbolicamente poderia se
interpretar a “curiosidade” como uma necessidade de descobrir, conhecer, aprender, desbravar
horizontes. Evidentemente tudo isso era negado à mulher, e quem usava desobedecer era
severamente punida.
A representação feminina encontrada na literatura religiosa em muito se aproxima da
encontrada nos contos de fadas, em ambas as representações coexistem duas faces opostas. Na
literatura religiosa, Eva é a pecadora e Maria, a redentora; nos contos, as fadas (seres mágicos
a serviço do bem) e as bruxas (seres mágicos a serviço do mau). Isso porque a idealização dos
comportamentos femininos sempre seguia critérios morais e religiosos. Aquela que simboliza
a “maldade” é sempre punida, não é exemplo a ser seguido. Aquela que representa o “bem” é
sempre premiada, é o ideal de mulher a ser imitado, sempre submissa, casta.
Segundo as ideologias que perpassam esses discursos, uma representa a natureza
original da mulher, pecadora, ardilosa, desobediente, perversa. A outra, a mulher que segue os
preceitos ditados pelo homem, é dócil, bela, virtuosa, sempre premiada no final. Essa imagem
é personificada em Maria, a “nova Eva”, que seria fonte de redenção, símbolo de pureza, de
santidade.
Conforme Macedo (2002), dentro da cristandade, a popularidade da figura da virgem
Maria foi lenta. em 431 ela é proclamada “Mãe de Deus”, até então era conhecida como
32
“Mãe de Cristo”. Mas no século XI, ela ganhou popularidade equivalente à do próprio
Cristo, dentre outras razões pela profusão de textos relacionados ao seu culto, entre eles as
narrativas de milagres Miracles de Notre Dame (Milagres de Nossa Senhora), o qual consta
de narrativas simples, mas sempre com uma lição de vida, uma mensagem final.
Na mitologia romana, Diana, deusa dos bosques e dos animais, costumava guiar
amazonas em cavalgadas celestes. Nas crenças germânicas, acreditava-se que figuras de
mulheres ameaçadoras se reuniam na floresta em torno de caldeirões para realizar seus rituais
e depois invadiam as casas para chupar a vitalidade das crianças.
Estes mitos que pouco a poucoo degradando a mulher são muito importante
politicamente, pois não introduzem a dominação masculina como a tornam
benéfica e necessária para todos. Além disso, tornando a mulher um ser fraco e
venenoso, impõem-lhe um caráter estrutural malévolo que ideologicamente torna
também benéfica para todos a sua submissão. E assim as novas relações sociais,
políticas e econômicas passam a ser sacralizadas, e sua transgressão passa a ser
considerada a origem de todo o pecado e de todo o mal. (MURARO, 2002, p. 37)
A propósito, retomando o dialogo com Muraro a partir das idéias de Campbell, no
campo da mitologia, em algumas sociedades aparecem mitos em que a mulher é dominante,
entre as quais Rea, que seria a mãe do dominador do Olimpo, Zeus. Contudo, a partir do
segundo milênio a.C. raramente se registram mitos em que a divindade primária seja a
mulher. Em muitos deles as mulheres são substituídas por um único deus que cria o mundo a
partir de si mesmo, entre os quais os medas, os persas e o mito cristão. Mas, para a autora,
provavelmente, nunca deve ter existido uma organização social matriarcal, seja ela
animal, humana ou proto-humana. Porque matriarcal, por analogia a patriarcal, a
organização social que veio depois, seria uma sociedade governada por mulheres da
mesma maneira que os homens governam as sociedades atuais, isto é, de maneira
autoritária, de cima para baixo, os chefes determinando o comportamento e o modo de
pensar dos outros elementos do grupo. (p. 13-14)
A autora argumenta, ainda, que se conhecem sociedades matricentriais e matrilocais
que não apresentam entre seus membros o mesmo padrão de relações que nas sociedades
patriarcais, se se tomar os termos em sentido dicotômico (matriarcal em oposição a
patriarcal).
A natureza matricêntrica das sociedades (que seguiam a linhagem feminina como base
no grupo mãe/filho e que o são consideradas matriarcais porque não eram governadas por
fêmeas) veio interessar aos antropólogos recentemente, que a ciência sempre acreditou
que o macho dominou em todas as sociedades animais.
33
Georgaudi (1990) comenta que, no campo dos estudos das sociedades humanas,
Bachofen elaborou uma teoria sobre a origem da vida física, segundo a qual existiu numa
época longínqua o reino do “direito materno”, o poder das mulheres, a ginecocracia. Também
em relação às idéias de Bachofen, Fromm(1980) comenta que esse autor analisa documentos
religiosos da antiguidade grega e romana e chegou à conclusão de que a supremacia das
mulheres tem encontrado expressão não apenas nos estudos relativos à esfera da organização
social e da família, mas também na religião. Ele encontrou elementos indicativos de que a
religião dos deuses do Olimpo teria sido precedida por uma outra em que deusas, figuras
maternas, eram as divindades supremas.
Analisando a mitologia grega, por exemplo, o autor aponta que na terceira parte da
trilogia Antígona, es o conflito entre os princípios matriarcal e patriarcal. Fromm (1990)
ressalta que estudos como esses levaram Bachofen a supor que, através de longo e lento
processo histórico, os homens derrotaram as mulheres, subjugaram-nas e conseguiram tornar-
se os dominadores em uma hierarquia social. O sistema patriarcal assim estabelecido é
caracterizado pela monogamia (pelo menos quanto às mulheres), pela autoridade do pai na
família e pelo papel dominante dos homens em uma sociedade hierarquicamente organizada.
Nessas culturas, a organização religiosa corresponde a sua organização social. Em vez de
deusas-mães, deuses masculinos passaram a ser os senhores supremos do homem, tal e qual o
pai o era na família.
Duby e Perrot (1990) discordam da teoria de Bachofen. Na concepção desses autores, o
matriarcado foi um conceito dos antropólogos do século XIX e um sonho nostálgico das
primeiras feministas americanas”. Postura semelhante é assumida por Rosaldo (1979, p.35) ao
afirmar que,
Contrariamente a algumas concepções populares, pouca razão para se acreditar
que existem, ou existiram, sociedades primitivas matriarcais, onde a mulher
predominava da mesma forma que o homem nas sociedades atualmente conhecidas.
A mesma autora cita vários exemplos de outras sociedades em que as mulheres
exerciam outra forma de autoridade, de poder, de influência
8
, mas que socialmente eram
sempre submissas ao homem, o que a leva a concluir que as relações desigualitárias dos sexos
tem causa universal. Alertando, entretanto, que estudou a organização cultural e social
humana e que “a desigualdade universal dos papéis sexuais provavelmente sejam o resultado
8
Ver em Weber (1947) a clássica distinção entre poder, autoridade e influência.
34
de uma conjunção de fatores” (1979, p 39), negando assim a afirmação, segundo a autora,
pouco plausível de que em algum momento na historia humana os homens tomaram o poder
das mulheres.
Mais em consonância com as propostas de Bachofen, Fromm (1993) considera que é no
mito bíblico onde é estabelecida assim a supremacia dos deuses masculinos o restando
nenhum traço da etapa matriarcal. Muda-se inclusive o curso natural da mulher como aquela
que da à luz: Deus cria o mundo a partir da palavra, sem necessitar da função geradora da
mulher que é criada a partir da costela de Adão.
Na perspectiva dos estudos antropológicos que buscam entender como se derivou a
divisão entre os sexos e que levou a uma subordinação feminina, Ortner (1979) discute a
universalidade da subordinação feminina, isto é, “o fato de existir em todo tipo de
classificação social e econômica e em sociedades de todo grau de complexidade” (p. 95, 96).
O autor expõe a lógica que jaz numa construção cultural para justificar a inferioridade da
mulher através de um determinismo biológico uma vez que o corpo feminino, pela função
geradora, a colocaria mais próxima da natureza. O próprio autor lembra que a dicotomia
natureza-cultura é uma construção humana, social. As categorias natureza” e “cultura” são
categorias conceituais, no mundo concreto não existe limite entre as duas. Entretanto não se
pode desconsiderar que algumas culturas estipulam posições diferenciadas entre as duas
categorias e, em alguns níveis de percepção, a cultura é colocada como superior à natureza.
Uma vez que “as mulheres são identificadas ou simbolicamente associadas com a natureza” e
o homem à cultura, então acha natural subordiná-las, para não dizer oprimi-las
(Ortner,1979, p. 101, 102)
Assim, segundo o mesmo autor, a situação feminina em seus aspectos físico, social e
psicológico levou a concepções que a consideram mais próxima da natureza, e por sua vez,
esta proximidade é incorporada em forma institucionais que atribuem a mesma condição à
natureza. As implicações para as mudanças sociais o igualmente circulares: uma visão
cultural diferente pode surgir de uma atualidade social diferente; uma atualidade social
diferente de uma visão cultural diferente.
Ao discutir Estratégias, Cooperação e Conflito entre as Mulheres em Grupos
Domésticos, Lamphere (1979) mostra que em muitas sociedades o mundo doméstico e
familiar pertence às mulheres, enquanto que aos homens cabe o domínio público e político, e
aponta ainda que a literatura sobre estudos antropológicos acerca do grupo familiar e
doméstico sempre se restringiu a temas e é quase sempre derivada da perspectiva masculina.
35
As unidades familiares e domésticas têm sido tratadas principalmente sobre o
aspecto de sua formação, desenvolvimento e divisão. A maioria dos debates,
embora não ignorando a posição das mulheres m tratando processos na família
sobre o ponto de vista do ego masculino [...] As formas pelas quais as mulheres
encaram a estrutura do poder doméstico masculino e como elas atuam dentro dele,
não são tópicos usualmente discutidos. ( LAMPHERE, 1979 p. 22)
Sacks (1979), “revisitando” Engels, faz uma reinterpretação das idéias desse autor sobre
a mulher, a organização da produção e a propriedade privada. Sacks acredita que “apesar de
tudo, Engels estava certo de que a propriedade privada e a produção de troca levaram à
domesticidade e subordinação feminina” (SACKS, 1979, p. 199). Mas Sacks não aceita a
proposição que a posse da propriedade pelo homem tenha sido a base para a supremacia
masculina nas sociedades de classe.
Primeiro, nem todos os homens possuem propriedades produtivas. Segundo, em
muitas sociedades de classe, tanto o homem quanto a mulher possuem propriedades
produtivas, mesmo em sociedade com forte padrão de domínio masculino. No
ultimo caso a propriedade à esposa um poder doméstico substancial em relação
ao seu marido [...] mas, sociedades de classes resultam numa acentuada dicotomia
entre as esferas de vidas domésticas e social, e este poder doméstico não é
transferível para o poder social ou posição na esfera pública. Mas ainda, nas
sociedades de classe autonomia econômica e política de uma família é bastante
restrita. Então em procedimentos necessários no setor público as mulheres estão em
desvantagem. Isto, provavelmente, vai contra qualquer igualdade doméstica.
(SACKS, 1979, p.199 – 200).
Discutindo sobre A Mulher Brasileira e suas lutas sociais e políticas, Hahner (1981)
analisa, já na sociedade capitalista, como a divisão de papéis, num âmbito doméstico e
público, ocultava o espaço doméstico.
Os homens, na condição de transmissores da cultura na sociedade, incluindo o registro
histórico, a ciência e as artes, veicularam aquilo que consideravam e julgavam importante. Na
medida em que as atividades das mulheres se diferenciavam consideravelmente das atividades
masculinas, às mulheres foi negada qualquer significação, e consideradas a indignas de
menção. Essa visão coloca as mulheres à margem das principais relações do desenvolvimento
histórico. Na medida em que os historiadores, em geral, pertencentes ao sexo masculino,
devotaram seus maiores esforços à investigação da transmissão e exercício do poder, a mulher
continuava a ser basicamente ignorada e excluída da história por eles produzidas.
Em que pese as discordâncias geradas por diferentes tendências não se pode negar que,
na história oficial da era cristã, é reforçada a subjugação da mulher quando são criadas
representações femininas que estão associadas à idéia de maldade. Ao lado da mulher símbolo
da maldade, cria-se a imagem da mulher subjugada, dominada pelo poder masculino; imagem
36
essa que também se justifica pela primeira, pois, que a mulher é vista como fonte do mal,
ela precisa do controle, da dominação masculina.
Assim, idéias foram se difundindo acerca da mulher e se formando uma ideologia na
memória coletiva, principalmente se se concebe ideologia como resultado de uma prática
social, como propõe Chauí (1995), e não como uma maquinação diabólica dos poderosos (esta
abordagem é ampliada no item 1.3 desse capítulo). Então, essa imagem da mulher foi se
construindo em uma prática social em que o poder masculino sempre determinou a forma de
pensar e de agir. E o mais “perigoso” é que o assujeitamento do indivíduo à ideologia é
inconsciente, ele é abordado pela ideologia em sua prática social. Os “esquecimentos” são
fundamentais nesse processo porque possibilitam que o sujeito tenha a ilusão de que tem
autonomia sobre o que diz. Tanto é assim, que a própria mulher é interpelada pela ideologia
machista que ainda predomina na sociedade.
Não se pode esquecer, que os estereótipos femininos em todas as épocas foram criados
por um discurso de dominação masculina. Retomando aquela idéia de Duby e Perrot (1990)
sobre as “ausências” na história, é necessário lembrar, como bem coloca Muraro (2002), que
também a história da mulher é marcada por ações de diferenças sociais. Durante a Idade
Média, foram elas (as mulheres pobres) que questionaram a condição da mulher, através de
sua sexualidade e do seu saber, e foram maciçamente punidas, enquanto as mulheres mais
ricas se dedicavam ao amor cortês, à submissão e às normas de conduta que essas práticas
geraram. Também na Renascença, continuaram as mulheres pobres a serem as grandes
questionadoras. Elas tomaram parte em todas as revoltas camponesas e exerceram papel
preponderante não na Reforma Protestante como na Guerra Civil Inglesa e em muitos
levantes camponeses na Europa até o século XVIII.
Em sua História da Revolução Francesa, Michelet (1989, p.254) diz: “As mulheres!
Que potencia!”, e afirma que se as mulheres estiveram na vanguarda dessa revolução “não é
de admirar: elas sofriam mais”.
estavam elas na “tomada” da Bastilha; a fome que assolava o país fez com que
mulheres esfomeadas avançassem sobre Versalhes, o que marcou o fim da monarquia;
também elas tomaram iniciativa dos atos mais violentos em defesa do pão para os filhos.
Foram elas também que reivindicaram a Declaração dos Direitos da Mulher (quando a
Assembléia do Povo redigia a Declaração dos Direitos do Homem), mas sua autora, Olympia
de Gouges, foi punida pela ousadia sendo decapitada pouco tempo depois, conforme Muraro
(2002).
37
Fatos como esses, ou a participação nos movimentos heréticos ou ainda o episódio de
08 março de 1908, nos Estados unidos, quando cento e cinqüenta mulheres fora queimadas
vivas, trancadas por seus patrões dentro de uma fábrica por reivindicarem melhores salários e
menor jornada de trabalho,são apenas exemplo de como a idéia de submissão total da mulher
foi um discurso criado para que ela ocupasse um “lugar” que atendia aos interesses
dominantes; e mostra ainda que a mulher não se submeteu sempre e inteiramente à coerção
exercida pelo poder masculino. A resistência existiu; se assim o o fosse não haveria
necessidade de uma reafirmação constante da subjugação. A perseguição e o controle indicam
que o processo de resistência é um fato e era possibilitado por um outro discurso que constrói
um outro dizer viabilizando um outro “lugar” de sujeito.
Por se entender que muitos são os discursos que historicamente construíram a
representação feminina é que se busca aqui analisar essas representações na perspectiva da
Análise do Discurso que possibilita entender a língua como um “palco de conflitos” que se
por um lado cria o campo para um assujeitamento, ela mesma permite o contra discurso, o
discurso da resistência, do outro dizer possível.
1.3 Uma Perspectiva Discursiva
Um sujeito que fosse a origem absoluta de seu próprio
discurso e o construísse peça por peça’ seria o criador
do verbo, o próprio verbo.
(Derrida)
Embora a Análise do Discurso em sua feição atual, oriunda dos pressupostos teóricos da
Escola francesa na perspectiva que trabalha o sujeito, a história e a língua, tenha seu início
nos anos 60 do século XX, não se pode deixar de reconhecer trabalhos anteriores que deram
contribuições fundamentais para a sua formação. Segundo Brandão (s/d), estudos como os de
Harris (Discourse Analysis, 1952), R. Jakobson e E. Benveniste na década de 50 foram
decisivos para a Análise do Discurso se constituir como disciplina. O primeiro porque
mostrou a possibilidade de se ultrapassar as análises restritas à frase, e os outros pelos seus
38
trabalhos sobre a enunciação. Também não se pode deixar de considerar que os formalistas
russos “abriram espaço para a entrada no campo dos estudos lingüísticos daquilo que se
chamaria mais tarde de discurso“ (Brandão s.d., p. 15). De acordo com essa autora, outro
estudo que favoreceu o progresso da Análise do Discurso para que ela se tornasse tal como a
conhecemos hoje foi a pesquisa de V. Propp, Morfologia do Conto Maravilhoso, que trouxe
grande contribuição para a teoria da narrativa; a existência de uma estrutura invariável,
apontada por ele, estimulou os estudos na área da lingüística, da antropologia, da etnografia,
do folclore e da semiótica. Nas palavras de Brandão (s.d.,p.83-84).
a Análise do Discurso de orientação francesa luta contra qualquer forma de
cristalização do conhecimento, contra a “territorialização, o esquadrinhamento, a
delimitação dos domínios do saber” (Courtine, 1984). Do fato de suas fronteiras
se confinarem com as determinadas áreas das ciências humanas como a História, a
Psicanálise, a Sociologia, para citar algumas. Pelos próprios objetivos a que se
propõe, a Análise do Discurso é, e só pode ser interdisciplinar.
Ao se pensar nas variadas contribuições que levaram ao estabelecimento da AD, não se
pode dispensar sequer os estudos da retórica na Grécia antiga. Segundo Aristóteles, a
argumentação da época era marcada pela retórica e pela persuasão em contextos públicos.
Ainda que o estudo sobre a retórica estivesse voltado para as figuras de linguagem, ele não
deixa de ter relevância para a concepção de análise de discurso contemporânea, por isso Viera
(2002) considera a retórica clássica o primeiro berço da AD.
Ainda na década de 50 do século XX, os estudos realizados apontavam para duas
diferentes perspectivas: uma postura teórica de análise do discurso americana e outra
européia, conforme Brandão (s.d.). Orlandi (1996, p.108) entende que essas duas direções vão
determinar duas diferentes maneiras de pensar o discurso – uma que a entende como extensão
da lingüística, que corresponde à corrente americana, nela o discurso se caracteriza como o
que vem a mais, o que vem depois, o que se acrescenta. Em suma, o secundário, o
contingente”; e a outra, francesa, que recorre aos conceitos exteriores do domínio da
lingüística para dar conta da análise de unidades mais complexas da língua, ou seja, essa
tendência parte de uma relação necessária entre o dizer e as condições de produção desse
dizer, o que coloca a exterioridade como elemento fundamental na produção de sentidos.
Conforme Orlandi (2005), a AD francesa, base teórica sobre a qual se pauta este
trabalho, ganha corpo nos anos 60, num momento de rupturas com o século XIX criadas pela
relação entre três domínios disciplinares: a lingüística, o marxismo e a psicanálise. A
lingüística vai apontar a o-transparência da língua, uma vez que o signo é arbitrário; o
marxismo concebe o materialismo histórico - o que permite perceber que o homem faz a
39
história, mas ela não lhe é transparente”, na medida que ele é feito por ela; e a psicanálise
aborda a opacidade do sujeito, “ele não é transparente nem para si mesmo”. Essas são as
condições históricas para o desenvolvimento da análise do discurso.
Segundo Pêcheux (1997), não se trata de fazer uma “adição ingênua” dos três campos de
saber; AD se constitui da relação entre essas teorias, mas tem seu método e seu objeto
próprios. Porém, dada a especificidade de sua constituição, recebendo influências de diversas
áreas de conhecimento, além das mudanças de concepção que tem sofrido até o momento, não
se pode negar que é difícil delimitar com precisão os princípios, as teorias e métodos
específicos usados por essa linha que seus estudos são interdisciplinares. Na verdade, ela
mantém dependência em relação a outras disciplinas, como a psicologia e a história, e vale-se
de contribuições dos mais diferentes estudos.
Existem muitas maneiras de estudo da linguagem, e nessas possibilidades, que vão além
da lingüística e além da gramática, está o campo fértil para a Análise do Discurso. Como
sugere o próprio nome, seu interesse é o discurso, por isso volta-se para o “exterior”
lingüístico, para as relações sócio-históricas. Trabalhos como os de Althusser, Foucault,
Lacan, Barthes e outros intelectuais demonstram um deslocamento no modo de encararem a
“leitura”, isso permite perguntar não o que o texto quer dizer, mas como um texto funciona.
Assim, como afirma Orlandi (2005, p. 86), a AD traz uma proposta para uma nova maneira de
ler na qual o dito está em relação ao não dito, ou o dito em outro lugar, “problematizando” as
leituras de arquivo, expondo o olhar leitor à opacidade do texto.
O que a Análise do Discurso propõe realizar é uma reflexão crítica, que não reduz o
discurso aos aspectos puramente lingüísticos nem se volta para um trabalho puramente
histórico sobre a ideologia. O seu objeto de análise não pode ser tomado como lingüístico,
mas um objeto sócio-histórico. A noção de ideologia é fundamental para a AD porque não
sujeito sem ideologia e essa surge como efeito de relação do sujeito com a língua na
construção do sentido. Nas palavras de Rodriguez (2003,p. 51),
não sentidos dados: estes são construídos por/através de sujeitos inscritos numa
história, num processo simbólico duplamente descentrado pelo inconsciente e pela
ideologia. Isto é, os sujeitostem um papel ativo determinante na construção dos
sentidos, mas este processo escapa ao seu controle consciente e às suas intenções.
Dessa forma, o texto interessa enquanto condição de ocorrência do discurso. Portanto, a
lingüística que se limita ao estudo interno da língua o conta do que propõe a Análise do
Discurso. Daí ser fundamental a proposição de Bakhtin (1979) para quem “a palavra é um
40
signo ideológico por excelência (...) por isso é lugar privilegiado para a manifestação da
ideologia”.
A noção de ideologia até hoje não é sempre muito clara, nem chega a ser unanimidade,
mas as definições mais difundidas são aquelas tradicionalmente marcadas pelo marxismo.
Quando Marx relaciona ideologia às classes dominantes, segundo Chauí (1995), não se trata
de supor que seria uma maquinação diabólica dos poderosos; a ideologia resulta da pratica
social, nasce da pratica social dos homens. Em uma das hipóteses de Althusser (1985), a
“ideologia é a maneira pela qual os homens vivem sua relação com as condições reais de
existência”.
Brandão (s.d, p. 24), discutindo as idéias de Ricouer, afirma (sem querer servir ou
contradizer a Marx), que é redutora a interpretação de ideologia partindo de uma análise em
termo de classes sociais. Portanto, ao lado de uma concepção marxista que apresenta o
fenômeno ideológico de maneira mais restrito e particular, entendendo como mecanismo que
leva ao escamoteamento e preconiza a existência de um discurso ideológico que serve para
legitimar o poder de uma classe ou grupo social, existe uma outra noção mais ampla proposta
por Ricouer, que define ideologia como uma visão, uma concepção de mundo de uma
determinada comunidade e determinada circunstância histórica. Mas as duas concepções não
se excluem se se pensa em ideologia como meio de pensar o mundo.
Isso implica dizer que a realidade é uma construção simbólica, o que não nega a
existência do real natural, mas que a apreensão desse real pelo sujeito é influenciada pela
ideologia; nesse sentido a historia é entendida como uma “trama de sentidos” (Orlandi, 2001)
Aqui, é importante, também, entender o que a Análise do Discurso chama de
assujeitamento ideológico, que consiste em fazer com que cada indivíduo seja levado a ocupar
um lugar, a identificar-se ideologicamente com grupos ou classes de uma determinada
formação social; e isso ocorre de forma inconsciente, o indivíduo o tem controle de esse
posicionar-se. Nesse sentido, o sujeito é abordado pela ideologia. “Ele é capaz de uma
liberdade sem limites e uma submissão sem falhas” (Orlandi, 2001, p. 50). Isso significa que
ele pode tudo dizer, mas esse dizer se submete a língua e é influenciado pela ideologia.
A ideologia interpela o indivíduo em sujeito e este submete-se à língua significando
e significando-se pelo simbólico na história. A subjetivação é uma questão de
qualidade, de natureza: não se é mais ou menos sujeito, não se é pouco ou muito
subjetivado. o se quantifica o assujeitamento. Quando se afirma que o sujeito é
assujeitado, o se está dizendo totalmente, parcialmente, muito ou pouco, ou mais
ou menos. O assujeitamento não é quantificável [...] se é sujeito pelo
assujeitamento à língua na história. (ORLANDI, 2006, p. 19).
41
Se homens e mulheres, indistintamente, são assujeitados pela língua o que vai
diferenciar que discurso se põe em evidencia e que discurso se cala é a ideologia de quem
exerce o poder, e sabe-se que historicamente o poder institucionalizado foi de domínio
masculino. Fiorin (2002) lembra que o enunciado de um discurso se coloca em relação
polêmica com o Outro, isso significa que rejeita um outro, ou seja, sempre que se coloca um
discurso em evidência, ele cala um outro; todo discurso tem um direito e um avesso que são
faces indissociáveis.
A noção de sujeito está fortemente ligada à ideologia porque esta é condição para
constituição do sujeito e dos sentidos. Os sentidos seriam gestos de interpretação que se
estabelecem na relação do sujeito com a língua e com a história. Na concepção discursiva, o
sujeito é pensado como um “lugar” que ocupa para ser sujeito, ao longo da vida o indivíduo
assume “posições” que o significam e o fazem sujeito.
Sujeito, na perspectiva da Análise do Discurso, não é o individuo em si, mas aquele que
existe socialmente e interpelado pela ideologia. Orlandi (2001, p. 49) diz que o sujeito “é
materialmente dividido, desde a sua constituição: ele é sujeito de e sujeito a”. Ele é quem diz,
mas não tem controle sobre tudo que diz porque é atravessado pela linguagem e pela história.
O que ele diz é atravessado por um discurso que de alguma forma já foi dito.
Dessa forma, a linguagem não pode ser encarada como uma entidade abstrata, mas
como um lugar” em que a ideologia se manifesta, e assim terá fundamental importância
nessa acepção o papel da historicidade. O histórico, aqui, não tem o sentido de ser o texto um
documento, mas discurso. Assim, seria adequado dizer que o texto é um objeto lingüístico-
histórico. E, para a Análise do Discurso, a historicidade deve ser compreendida como aquilo
que faz com que os sentidos sejam os mesmos, bem como possibilita que eles se transformem.
No caso do objeto de estudo desse trabalho, o conto popular, além do contexto amplo em que
está inserido, a historicidade está relacionada à produção de acontecimentos que significam
nessas narrativas. Por isso é que o sentido o está na palavra em si, mas é determinado
historicamente pela relação da ideologia com a linguagem produzida pelo sujeito.
Em análise do Discurso, a história o é cronológica, não é evolução nem relação
de causa-efeito, mas filiação, produção e mecanismo de distribuição de sentidos. A
interpretação, em suma,como veremos é função de historicidade. Invertendo a
perspectiva, podemos mesmo dizer que o fato simbólico mais característico da
historicidade é a interpretação (ORLANDI, 2003, p. 9).
42
Tanto é que, para Pêcheux (1997), o sentido de uma palavra muda de acordo com a
formação discursiva a que pertence. Uma condição essencial da linguagem é a sua
incompletude, conforme Orlandi (2001). Assim os sentidos estão sempre abertos, já que a
“falta é também o lugar do possível”; ainda segundo a autora, a linguagem não é transparente
e os sentidos não estão dados, eles vão se constituindo. ”O que se analisa são estados de um
processo discursivo sem pretender fechar esses estados em si mesmos, mas, antes, vendo
neles relações com outros estados, igualmente significativos desse processo” (ORLANDI,
2003, p.10).
O discurso é o efeito de sentido no processo de interação, e não apenas signos que
servem como instrumento de comunicação. Portanto, o discurso é o efeito de sentido que
possibilita a articulação entre os fenômenos lingüísticos e os aspectos materiais da ideologia
que podem se manifestar em diversas formações discursivas, que são conjuntos de enunciados
marcados pelas mesmas regularidades e que se define em sua relação com as formações
ideológicas. O mesmo texto pode aparecer com formações discursivas diferentes (Brandão,
s.d), bem como pode aparecer em discursos diferentes, o que caracteriza a interdiscursividade,
ou seja, a relação de um discurso com outros discursos.
Todo discurso está fundado em um outro, o que equivale dizer que nenhum discurso
existe isolado. Conforme Fiorin (2002), admitir que o discurso “é tecido a partir do discurso
do outro” é aceitar a sua heterogeneidade, que, de acordo com os princípios bakhtinianos, é o
dito, o exterior constitutivo. De acordo com essa concepção, a inegável heterogeneidade do
discurso pode ser mostrada porque é “acessível ao aparelho lingüístico”, que apresenta
elementos lingüísticos materialmente marcados no texto; e pode ser constitutiva quando não
deixa marcas lingüísticas, apenas está na memória discursiva.
Na compreensão da interdiscursividade, um conceito fundamental é a concepção de
memória discursiva, porque é ela que permite formulações de interdiscursividade, seja
rejeitando, seja transformando enunciados pertencentes a formações discursivas
historicamente constituídas. Toda enunciação tem relação com o dito constituído em outro
discurso, ainda que o sujeito não tenha consciência imediata. Por isso é que a memória
discursiva o é uma memória psicológica, mas de um enunciado que está escrito na história.
Todo dizer se sustenta em um dito e remete a uma filiação de dizeres, a uma memória e
permite identificá-lo historicamente em seus significados, mostrando seus compromissos
ideológicos (ORLANDI, 2001).
Ao conjunto de enunciações ditas e esquecidas é que se denomina de interdiscurso,
que se distingue da memória de arquivo, que representa o discurso documental, a memória
43
institucionalizada, e para ter acesso a ela basta consultar o arquivo das instituições. Na
concepção discursiva, a memória tem características especificas e nessa perspectiva é tratada
como interdiscurso, ou seja, nas palavras de Orlandi (2001, p.31), é
[...] O saber discursivo que torna possível todo o dizer e que retorna sob a forma do
pré-construído o dito que está na base no dizível, sustentando cada tomada da
palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito
significa em uma situação discursiva dada.
O interdiscurso “acionado” pela memória tem relação com as condições de produção
que incluem os sujeitos e a situação. De acordo com Orlandi (2005), essa situação pode ser
tomada no sentido estrito, que “compreende as circunstâncias de enunciação, o aqui e o agora
do dizer, o contexto imediato” (idem, p. 15); e em sentido lato, como o próprio nome sugere,
envolve o contexto mais amplo, o sócio-histórico-ideológico. Vale ressaltar que essa
separação é apenas para efeito sistemático, na prática, eles funcionam conjuntamente.
O interdiscurso a memória discursiva constitui-se nos esquecimentos que o
tecendo uma história de sentidos e faz com que o indivíduo pense ser a origem do que diz.
Segundo Pêcheux (1997), pode-se definir duas formas de esquecimento no discurso: o
esquecimento enunciativo que é parcial e semi-consciente, quando, ao longo do nosso dizer,
formam-se famílias parafrásticas; e o esquecimento ideológico resultado do modo pelo qual o
sujeito é afetado pela ideologia, é esse esquecimento que o faz pensar ser a origem do que diz,
quando, na verdade, retoma sentidos preexistentes.
Ao contrário do que possa parecer, os “esquecimentos” são fundamentais e necessários
para que o sujeito constitua sua identidade e assuma “lugares”; são eles que abrem espaços
para as rupturas, o movimento, os deslocamentos, e possibilita tanto a manutenção de um
discurso como o estabelecimento de um contradiscurso. Daí considerar-se o funcionamento da
linguagem assentado entre a paráfrase e a polissemia. Conforme Orlandi (2001, p. 36),
Os processos parafrásticos o aqueles pelos quais em todo dizer sempre algo
que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o retorno
aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer
sedimentado. A paráfrase está do lado da estabilização. Ao passo que, na
polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela
joga com o equívoco.
44
Por isso é que, quando se trata de linguagem, o sujeito, os sentidos, os discursos nunca
estão prontos, acabados, eles se constituem num processo de significação e ressignificação
constante. Se assim não fosse estariam condenados à estabilização.
O sujeito se faz em um movimento de entrega e de resistência. A resistência, aliás,
é ela própria movimento do sujeito para uma posição que não o submete
inteiramente à coerção. É a prática de deslocamento desse sujeito em relação a um
lugar em que ele constrói um poder dizer. Digressão dos sentidos, circulação do
sujeito. O processo de resistência é justamente isso: estabelecer um outro lugar de
discurso onde se possa (re)significar o que ficou fora do discurso (ORLANDI, ,
2003, p.17).
Uma das grandes contribuições de Pêcheux foi esclarecer que o “referente” nos
permite compreender as condições para a produção do discurso, mas no protagonista o está
a presença física de “organismos humanos individuais”, nele está a representação de “lugares
de sujeitos”, definidos na estrutura social marcada por determinados discursos (Brandão, s.d.).
Ao se pensar sobre a incompletude do sujeito, dos discursos e dos sentidos, poderia se
pensar na unidade de análise do discurso que é o texto. Seria o texto um objeto acabado,
pronto? Orlandi (2006) diz que considerando sua apresentação empírica ele tem começo, meio
e fim, mas se pensarmos como discurso instala-se imediatamente a sua incompletude”. Para
ela,
O texto é a unidade que o analista tem diante de si e da qual ele parte. O que faz ele
diante de um texto? Ele o remete imediatamente a um discurso que, por sua vez, se
explica em suas regularidades pela sua referência a uma ou outra formação
discursiva que ,por sua vez, ganha sentido porque deriva de um jogo definido pela
formação ideológica dominante naquela conjuntura (Orlandi, 2001, p.63).
Uma vez que ao analista cabe compreender como a matéria textual produz sentidos, e
os sentidos nunca estão dados, nunca estão prontos, o texto não pode apenas ser considerado
um conjunto de enunciados portadores de um significado; ele é um objeto lingüístico-
histórico. A sua historicidade é elemento de significação para o trabalho dos sentidos. Orlandi
(2001, p. 64-65) diz que
os textos, para nós, não o documentos que ilustram idéias pré-concebidas, mas
monumentos nos quais se inscrevem as múltiplas possibilidades de leituras. Nem
tampouco nos atemos a seus aspectos formais cuja repetição é garantida pelas
regras da ngua pois nos interessa sua materialidade que é lingüístico-histórica,
logo não se remete a regras mas as suas condições de produção em relação à
memória, onde intervém a ideologia, o inconsciente, os esquecimento, a falha, o
equívoco.
45
Dessa forma, cabe ao analista compreender e descrever o funcionamento do discurso
na produção de sentidos, desfazendo a ilusão de sentido único, de que poderia ser dito de
uma forma. Nesse sentido é que pode-se dizer que a longa ausência de uma história da mulher
calou um outro dizer, a voz feminina. Tomar os elementos da superfície lingüística e
transformá-lo em um objeto discursivo é um dos principais passos para implementação da
análise.
Orlandi (2001) esclarece que todo texto é heterogêneo seja quanto à natureza dos
diferentes materiais simbólicos, seja quanto às posições do sujeito, seja quanto às formações
discursivas que o perpassam. Ou se pode acrescentar ainda pela multiplicidade de sentidos
que esses discursos podem articular, podem produzir. Nosgestos” de interpretação do
analista, ele busca atravessar a opacidade da língua para perceber o discurso e a ideologia que
sustenta. Para tanto o analista não pode abrir mão de uma mediação teórica, como argumenta
Orlandi (2001).
É, portanto, nessa perspectiva, que serão analisados os contos para que se identifiquem
os discursos sobre a mulher. Antes, porém, far-se-á uma incursão pelos contos de tradição oral
para que se possam analisar as funções classificadas por Propp que se mantêm nessas
narrativas e em que medida “os nomes e os atributos” que mudam permitem a introdução de
elementos das comunidades por onde as narrativas circulam, discutindo, assim, o papel da
memória como lugar” onde tradição e transformação se imbricam criando as condições para
a sobrevivência dessas narrativas.
2. Tradição e Memória – os fios que tecem.
Em lugar de excluir qualquer referência ao contexto, a
descrição dos mitos é levada a utilizar informações
extratextuais sem as quais o estabelecimento da isotopia
narrativa seria impossível.
(A. J. Greimas, Paris, 1966)
46
Embora o se possa negar a importância que tem a compilação dos contos de fadas
num texto para sua expansão por diversos continentes é à tradição oral que se deve sua
sobrevivência. Por isso é que analisar contos populares e Discurso é necessariamente trabalhar
com memória.
Pesquisadores das mais diversas áreas das ciências têm estudado o conceito de
memória e a maneira como ela funciona na produção de sentidos, na construção da história,
no funcionamento da cultura, etc. Assim, o conceito vem se modificando. De acordo com a
abordagem que é feita, ele tem se adequado às funções, utilizações e à sua importância em
diferentes estudos em diferentes épocas.
Na Grécia antiga a memória era compreendida como um dom sobrenatural, atribuída à
deusa Mnemosine. Para os gregos, o registro era algo que contribuía para o enfraquecimento
da memória, por isso desenvolveram técnicas para preservar a lembrança sem recorrer à
escrita. O que conferia ao sujeito um papel social muito relevante.
Para os romanos, a memória era indispensável para a arte retórica, que se destinava a
convencer e emocionar por meio da linguagem. Com o cristianismo, na era medieval é dada
importância à memória litúrgica que pauta o presente na rememoração dos acontecimentos e
milagres do passado.
O advento da imprensa, a revolução industrial e todas a suas implicaturas vão exercer
forte influência sobre a memória tanto individual como coletiva. Passa-se de uma sociedade
de forte tradição oral para a tradição do registro escrito até se chegar à era do computador com
a sua magistral memória eletrônica capaz de armazenar imensas quantidades de informação.
Hoje, tanto as ciências sociais e a psicologia como as ciências físicas e biológicas
tomam a memória como objeto de estudo. Dessa forma, a contribuição de estudos sobre a
memória vem das mais diversas áreas. Trabalho de fundamental importância para a
compreensão da memória foi feito por Maurice Halbwachs. Para ele, a memória que nos
parece particular, remete a um grupo. Ele não descarta a memória individual, mas, segundo
ele, o que rege o trabalho da relembrança é a experiência social presente de quem lembra.
“Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que
se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos” (Halbwachs, 1990, p.26).
O autor não deixa de reconhecer a memória individual,
Mas ela está enraizada dentro dos quadros diversos que a simultaneidade ou a
contingência reaproxima momentaneamente. A rememoração pessoal situa-se na
encruzilhada das malhas de solidariedades múltiplas dentro das quais estamos
47
engajados. Nada escapa à trama sincrônica da existência social atual, e é da
combinação destes diversos elementos que pode emergir esta forma que chamamos
de lembrança, porque a traduzimos em uma linguagem. (HALBWACHS, 1990, p.
14)
Dessa forma, ele considera que ao lembrar somos arrastados em múltiplas direções, e a
lembrança é ponto de referência que permite ao sujeito se situar em meio à variação contínua
dos quadros sociais e da experiência coletiva histórica. Assim, o autor distingue memória
histórica, que supõe a reconstrução dos dados fornecidos pelo presente da vida social e
projetada no passado reinventado; e a memória coletiva, aquela que recompõe magicamente o
passado. Entre essas duas direções da memória, coletiva e individual, emergem as diversas
formas de memória, que mudam conforme os objetivos que elas implicam, o que não deixa de
ser a intencionalidade de quem lembra, implicando assim no aspecto ideológico.
A memória individual es impregnada de memórias que cercam o sujeito e se
constituem na tessitura das “experiências” de diversos grupos, exercendo a importante função
de contribuir para o sentimento de pertencimento a um grupo de passado comum. Ela garante
o sentimento de identidade do indivíduo calcado numa memória compartilhada não no
campo histórico do real, mas, sobretudo, no campo simbólico. Esse aspecto em particular leva
a se encontrar, nesse trabalho, ponto de convergências entre as discussões de Halbwachs sobre
memória e esquecimento e aquelas abordadas na Análise do Discurso.
2.1 Tradição e Transformação
Teriam os contos folclóricos uma origem comum apesar dos diferentes temas e
diferentes versões? Essa pergunta foi formulada por Propp em 1920 ao final da análise
estrutural feita em cem narrativas contidas em sua coletânea. A análise de Propp levou à
surpreendente conclusão de que todas as histórias tinham a mesma seqüência de ações ou
funções narrativas (Mendes, 2002, p. 23). Na pesquisa sobre as raízes históricas dos contos
maravilhosos seus estudos apontaram que supostamente os contos teriam sua origem nas
práticas comunitárias dos povos primitivos.
Para muitos pesquisadores, segundo Mendes (2000, p. 22), os chamados contos
maravilhosos que conhecemos “são remanescentes da tradição mitológica e os mitos se
originam de rituais praticados nas tribos primitivas”. De qualquer modo fica claro, para
Propp, que o conto popular da forma que conhecemos hoje, é o resultado da profanação do
mito, que deixa de ser sagrado, religioso para se tornar profano e artístico.
48
A importância do mito para as comunidades primitivas era igual ou maior que o papel
das religiões atuais, uma vez que o mito era um meio de explicar ou compreender a realidade.
Conforme Eliade (2000, p. 8), estudos mais recentes deixam de considerar o termo “mito”
apenas como ficção ou invenção, além de aceitá-lo tal como era compreendido pelas
sociedades arcaicas como história verdadeira” e reconhecer seu caráter sagrado e
significativo. Hoje, o termo é usado pelos etnólogos e historiadores no sentido de “tradição
sagrada”, revelação primordial, “modelo exemplar”.
Compreender a função dos mitos nas sociedades tradicionais não significa apenas
elucidar uma etapa na história do pensamento humano, mas também compreender
uma categoria dos nossos contemporâneos. (Eliade, 2000, p 8).
se apresenta uma questão básica nesse estudo: antes de querer situar exatamente
como tudo começou, interessa discutir o que (e de que forma) persiste, sobrevive, se mantém
nessas narrativas que se reinventam a cada lugar, a cada tempo.
Hobsbawm (1997, p.14) discutindo a invenção das tradições, fala de elementos antigos
na invenção de novas tradições e diz que no passado de qualquer sociedade pode-se encontrar
um repertório desses elementos; e que sempre uma linguagem elaborada constituída de
práticas e comunicações simbólicas”. Assim as novas tradições podem ser incorporadas às
velhas.
Embora em sua discussão sobre o caráter da mudança na modernidade Hall (2003)
diga que o que difere uma sociedade “tradicional” de uma “moderna” são as mudanças
constantes, rápidas e permanentes desta, não se pode perder de vista que o que garante a
sobrevivência de uma tradição é a capacidade de transformação, se assim não o fosse estaria
condenada à extinção. Anthony Giddens (apud Hall, 2003, p. 14-15) esclarece que:
A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer
atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro,
os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes. [...] As
práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz das informações
recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando, assim, constitutivamente seu
caráter.
O constante jogo de manutenção\transformação é fundamental para a existência das
narrativas populares. A eternização dessas histórias se através de releituras, adaptações,
reproduções. É o que Zumthor (1993, p.144-5) chama de “movência”, esse processo de
recriação contínua do texto oral para adequar-se a cada novo universo cultural. É certo que os
49
contos populares têm sua origem na literatura oral; mesmo no século XIX, na tradição dos
camponeses franceses ou russos, as histórias eram destinadas a pessoas que não sabiam ler,
por isso, segundo Guimarães (2000), elas seguem uma exposição simples, mantendo a
seqüência lógica, sem pormenor que demore ou o seja indispensável a audiência
influenciando no fluxo da narrativa), mantém uma ação dramática e prende-se ao imaginário
ou à memória coletiva.
O estado performático do narrador utilizando inflexões de voz, modulações
melódicas, gestos, expressões fisionômicas busca despertar o interesse e manter a atenção dos
ouvintes, mas demonstram também como o “lugar”, as condições de produção interferem na
reprodução das narrativas.
É preciso chamar atenção que as narrativas aqui analisadas foram catalogadas junto
aos narradores com o recurso da gravação em áudio pelo projeto PEPLP- UFBA, e que nessa
transposição do oral para o escrito ocorrem perdas inevitáveis justamente da atuação
performática de seus narradores que por certo levariam a outras leituras. Entretanto, não se
pode esquecer que não se deve falar de purismos quando se trata de contos populares. Mesmo
que se reconheça sua inegável origem na oralidade, quando foram catalogados na França
(caso específico de Cinderela) passaram por modificações determinadas não pelo modo de
registro (escrito), mas ao sabor dos interesses políticos/ideológicos da época (abordagem no
cap. I). De forma que as versões que hoje se reproduzem no Brasil são largamente
influenciadas pela tradição escrita. Conforme Guimarães (2000), as histórias que hoje fazem
parte da tradição oral no Brasil não o aquelas consideradas mais regionais ou nascidas no
país, mas aquelas de caráter universal, antigas, seculares e que se espalham por quase todos os
países nos diversos continentes; na verdade, a popularidade de uma narrativa está diretamente
ligada a sua universalidade. É assim que diferentes produções se enriquecem e se
interpenetram a partir de uma fonte inesgotável que é a memória popular, criando um
movimento constante entre o já dito, o dito e o não dito que caracteriza o processo discursivo.
2.1.1 A TRADIÇÃO QUE SUSTENTA O NOVO
Um dos elementos que ligam as narrativas de hoje com às primeiras versões que se
tem registro é a estrutura narrativa, aspecto esse que já foi suficientemente estudada por vários
50
autores a exemplo de Propp (1984), que concluiu sobre a existência de “grandezas constantes
e grandezas variáveis” que se revelam nas ações das personagens (as funções) que são sempre
as mesmas, mudando apenas os atributos de um conto para outro,; embora Mendes (2000)
chame a atenção de que o é possível reconhecer nos contos de Perrault as trinta e uma
funções, apontadas por Propp, devido a estrutura simplificada dos contos franceses. Assim,
destacam-se nessa análise, de acordo com a proposta de Mendes (2000, p.111) e com base nas
definições de Propp (1984), as nove principais funções: 1 - afastamento, 2 - proibição, 3 -
transgressão, 4 - interrogatório, 5 - informação, 6 - ardil, 7 - cumplicidade, 8 - dano e 9 -
mediação; complementadas pelo Punição (30ª função) e pelo casamento que é a função final
de todos os contos (31ª função).
Seguindo a justificativa da autora, aqui estão ausentes as funções de 10 a 29 porque
todas elas especificam a mediação encontrada nos contos russos e que sempre se por meio
de uma luta, o que não ocorre nos contos de Perrault. O próprio autor russo, segundo Mendes
(2000), em suas pesquisas pós-estruturalistas, alerta que não se devem ver os contos apenas
como uma seqüência de ações. Portanto, a descrição e a análise das funções feitas nesse
trabalho servem para demonstrar a manutenção ou mudança de elementos que podem
identificar a interferência cultural do contexto em que foram reproduzidos, e é com essa
intenção que elas aqui aparecem.
I A função Afastamento pode se com algum membro da família. Em quatro dos
contos analisados o afastamento sempre ocorre com a morte da mãe, assim como ocorre na
versão de Perrault:
Um triste dia, porém, sua querida mãe foi para o céu e a menina ficou sozinha
com o pai. (v. P.)
Era uma vez uma moça que chamava-se Maria. Maria, a mãe morreu, ela ficou
com o pai. (v.o. Maria Borralheira, Itapetinga).
O senhor era casado, tinha uma filha muito bonita! E essa menina, a mãe
morreu e ela ficou sozinha. (v.o. Maria Borralheira, Amargosa).
É que em um país distante havia um rei, e a esposa dele morreu. Quando
morreu, deixou uma filhinha. ( v.o. Cinderela, Entre Rios).
A Gata Borralheira era um viúvo que tinha uma filha. Aí ele casou com outra
mulher... ( v.o. A Gata Borralheira, Entre Rios).
Na versão registrada em Anagé não uma referência explícita à morte da mãe,
mas o afastamento é dedutível a partir do enunciado “Ela não gostava de Maria Borralheira
51
porque era enteada dela...”, o que demonstra que houve o afastamento da e, não está
explícito como se deu. Entretanto, é sabido que na tradição popular a mulher considera
enteada a filha do viúvo com o qual ela se casa.
Na História de uma Caranguejinha, a função de agressor é desempenhada pela
própria mãe, como não na narrativa nenhuma referência à figura paterna, o afastamento se
caracteriza pela “ausência” de pai.
II A proibição é sempre imposta ao herói; essa função encontrada na versão de
Perrault se mantém em cinco versões orais:
Ela também gostaria de ter ido ao baile no palácio do rei. Mas como poderia fazê-lo
com os pobres trapos que vestia. (v. P.).
- Eu não vou por causa que eu não tem roupa... (v.o. Maria Borralheira, Anagé).
- Oh, dona fulana, deixe eu ir pra festa!
- Não pode não, só vai gente grã-fina. (v.o. Maria Borralheira, Itapetinga).
- Maria, hoje vai ter uma festa tão bonita! No palácio que... Mas você não pode ir,
né, Maria? (v.o. Maria Borralheira, Amargosa).
É verdade, meu Deus! Tanto que eu queria ir no palácio, mas minha madrasta não
deixa eu ir. (v.o. Cinderela, Entre Rios).
Depois, teve uma festa muito grande e todo mundo foi. E ela não foi pra festa...
(v.o. A Gata Borralheira, Entre Rios).
Na História de uma Caranguejinha, ocorre uma proibição: “Vai fazer a moqueca e o
vai provar dessa moqueca”. Todavia, não se na impossibilidade de ir ao baile como ocorre
nas outras narrativas, uma vez que nessa versão, uma substituição do baile ( a substituição
é uma forma secundária que será estudada mais adiante).
III - A transgressão, conforme Propp (1984), forma um elemento par com a proibição,
uma está relacionada à outra, e pode está no campo do interdito, ou seja, através da
transgressão pode se deduzir uma proibição que não está explícita.
Nessa análise, cinco versões apresentam a transgressão de uma proibição evidenciada
na narrativa, aquela mesma encontrada na versão de Perrault: a proibição de ir ao baile, que
resulta na transgressão que sempre é possibilitada pela ação de um elemento mágico:
“E agora disse-lhe a fada irá ao baile no palácio. Entrará no salão de recepções e
dançará com o filho do rei. (v. P.).
- Olhe, bate a varinha no chão... a veinha, a velhinha era Nossa Senhora Bate a
varinha no chão, pede o que você quiser, Maria, e vai na festa do rei... (v.o. Maria
Borralheira, Anagé).
52
- Varinha de condão,
Condão que Deus me deu,
Eu quero uma carruagem muito bonita, da cor-do-céu-com-todas-as-estrelas! O meu
vestido também com todas as estrelas de brilhante, uma coroa bonita, um cavalo
branco também com o arreio todo prateado pr’eu ir nessa festa. (v.o. Maria
Borralheira, Itapetinga).
- Tem nada não, minha filha (...) Esta varinha vai fazer você valer (...) Quando a festa
tiver no meio da festa, você vai ser a última que vai entrar... (v.o. Maria Borralheira,
Amargosa).
(...) Vestiu ela bem bonita, ela foi pro palácio. Quando ela chegou no palácio, o
príncipe tava lá... (v.o. Cinderela, Entre Rios).
- Minha varinha de condão,
Pelo condão que Deus me deu,
Quero que Deus me dê um vestido cor-do-campo-com-as-flores!
apareceu, ela foi. ela voltou. Teve um príncipe que se interessou muito por ela.
(v.o. A gata Borralheira, Entre Rios)
Na História de uma Caranguejinha, assim como não ocorreu a proibição de ir ao baile,
uma vez que o elemento baile é substituído pela roseira, também não ocorre a transgressão e o
“encontro” com o príncipe se dá através da superação de um desafio:
O rei convocou todo mundo da cidade pra ver quem conseguia colher aquele cacho de
rosas. Todo mundo foi, mas ninguém conseguia colher...
IV - O interrogatório ocorre sempre quando o antagonista procura obter uma
informação:
“Seja bem-vinda a meu palácio. Quem é? De onde vem?” (v. P.)
Aqui tem alguma pessoa, alguma moça que nesse de sapato? (v.o. Maria
Borralheira, Amargosa).
Perguntou como era o nome dela (...) Perguntou que horas ela ia para casa. (v.o.
Cinderela, Entre Rios).
Aqui o interrogatório não é feito pelo antagonista aparente, mas, vale ressaltar que
Propp (1984) alerta para o fato de que a vontade dos personagens, suas intenções, não podem
ser consideradas marcas essenciais para definir suas funções; e ainda, a definição de uma
função o deve levar em consideração a identidade daquele a quem se atribui sua execução
ou o modo pelo qual se realiza. A definição de uma função depende muito mais do seu
53
significado para o herói ou para o desenvolvimento da ação. Nos casos específicos, aqui
analisados, o significado se mantém que o interrogatório, mesmo não sendo executado pelo
antagonista, busca descobrir a identidade da protagonista. Nas versões registradas em Anagé e
Itapetinga não ocorre explicitamente a função interrogatório.
V - Quanto à informação, Propp adverte que nem sempre essa função ocorre como
uma resposta direta ao interrogatório que pode estar subtendido. Na versão da tradição escrita,
é o “sapatinho” o elemento que possibilitará a informação sobre a identidade da moça com a
qual o príncipe deseja se casar:
Finalmente encontrei-a exclamou comovido e para provar que é realmente você,
deixe-me ver o outro sapatinho.
Em outras três versões orais a situação se repete:
Maria veio. Quando Maria meteu o no sapato, foi dar certinho. (v.o. Maria
Borralheira, Amargosa).
Chamou Cinderela, Cinderela veio. Quando Cinderela veio, que botou o pé, o sapato
entrou de vez. Aí disse:
- Pronto, é a senhora! (v.o. Cinderela, Entre Rios).
De quem era aquele sapato? Se tivesse uma moça que aquele carçado desse no pé, ele
casava com aquela moça
(...)
Aí, quando ela saiu, foi com um pé no chão e outro carçado. Aí casou com ele. (v.o. A
Gata Borralheira, Entre Rios).
Embora nas versões orais registradas em Anagé e Itapetinga não apareça o
interrogatório direto, o príncipe sai à procura da identidade da moça desejada, e se mantém o
sapatinho como o elemento que possibilita a informação:
Óia, eu perdi meu sapato e meu sapato só tem um. Quem é que me procurando
aqui? (v.o. Maria Borralheira, Anagé).
O rei tava numa paixão...! Mandou a comitiva dele de casa em casa pra ver em
quem o sapato servia. Em quem o sapato desse, era a moça.
(...)
tentou. Mas quando foi botando o sapato, colou. (v.o. Maria Borralheira,
Itapetinga).
VI- A função ardil ocorre quando o antagonista tenta ludibriar sua vítima para
apoderar-se dela ou de seus bens. Na versão de Perrault, essa função ocorre em vários
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momentos, mas destaca-se, aqui, quando uma meia-irmã de Cinderela tenta enganar o
príncipe dizendo ser ela a dona do “elegante sapatinho bordado a ouro”:
Apresentaram-se também as irmãs de Cinderela e a mais velha disse ter sido ela que
perdera o sapatinho.
A mesma função se mantém nas seguintes versões orais:
chegou, menina, quando chegou na casa da mãe de Maria Borralheira, a Maria
Pé-de-Lage foi colocar o sapato no pé...
- Esse sapato é meu! Eu perdi!
E colocava assim, com aquela ganância! ... (v.o. Maria Borralheira, Anagé).
Quando chegou na casa do véio, a negona botou logo o pé de fora. O pé da nega era
quarente (sic) e quatro bico chato, do pezão. Não entrou. (v.o. Maria Borralheira,
Itapetinga).
Essa moça que dê esse sapato aqui, eu me caso com ela.
- Ah, não tem não. Só tem minha filha.
A filha pelejou, sacode, pelejou, pelejou, pra dar o sapato. Que dava que nada! (v.o.
Maria Borralheira, Amargosa).
Quando chegou na casa de Maria Borralheira, bateu na porta. Quem apareceu logo
foi as duas moças do narigão (...) foram logo dizendo: “O sapato é meu! O
sapato é meu! (v.o. Cinderela, Entre Rios).
Se tivesse uma moça que aquele carçado desse no pé, ele casava com aquela moça.
Quando chegou nessa casa, a madrasta disse que não tinha ninguém ali, tinha de
filha as dela. (v.o. A Gata Borralheira, Entre Rios).
Na História de uma Caranguejinha a função ardil é realizada pela irmã Rosa sob a
orientação da mãe:
Então, ela perguntou, desconfiou que o era Maria que tava lavando a roupa (...)
Então, no dia seguinte, ela colocou Rosa para vigiar. Maria foi na frente com a
trouxa de roupa e Rosa atrás.
E outra ação que pode caracterizar a função ardil no mesmo conto e que o aproxima da
versão de Perrault ocorre quando a mãe, tal qual a madrasta na versão escrita, tenta impedir
que o príncipe encontre Maria:
- Ah, ela não pode vim não porque ela não tem roupa, fica em casa toda suja, não
pode vim aqui.
55
VII- A cumplicidade se quando a vítima se deixa enganar, ajudando assim,
involuntariamente, seu inimigo. Na versão escrita, o que se encontra mais próximo da
definição dada por Propp é quando a madrasta manda Cinderela buscar morangos na floresta:
No dia seguinte, a madrasta e as filhas, para desabafar sua raiva, ordenaram-lhe que
fosse ao bosque colher morangos.
(...)
Cinderela penetrou no bosque, caminhando depois até o de um monte muito
íngreme onde no dizer da madrasta os morangos cresciam. Cinderela sentia
medo e esse medo transformou-se em terror quando ouviu latidos furiosos.
Nas versões orais não foi encontrada nenhuma ação que pudesse se caracterizar como
a função Cumplicidade.
VIII - A função dano se quando o antagonista causa prejuízo a um dos membros da
família. Propp chama atenção que no dano está “o da intriga”. É importante observar que
ao tentar causar o dano, o antagonista acaba, sem querer, criando a possibilidade para a
realização do herói. Propp alerta, ainda, que as formas de dano são extremamente variadas; na
versão de Perrault ela se dá quando a madrasta tranca Cinderela no quarto:
A madrasta, porém, não ligando às palavras do príncipe, trancou Cinderela em seu
quarto, prevenindo-a de que não desse um passo enquanto não estivessem de volta.
Elas iam ao terceiro baile na corte. O rei desejava que seu filho naquela mesma
noite, escolhesse esposa.
em algumas versões orais o dano se quando o antagonista manda eliminar o
auxiliar mágico:
- Bom, Maria, eu descobrir que não é você que lava a roupa. Amanhã você vai
trazer essa caranguejinha morta, tratada pra fazer uma moqueca pra nós comer (v.o.
A História de uma Caranguejinha, Taperoá).
Aí o pai da Maria deu vontade de comer a vaca da Maria Pé-de-Lage (...)
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- Eu não vou deixar matar minha vaquinha não! Eu não vou deixar matar minha
vaca! De jeito nenhum! Mata a de Maria Borralheira.(v.o. Maria Borralheira,
Itapetinga).
Marido, vamos comer a vaquinha de Maria?
(...)
Aí a vaquinha chamou ela e disse:
- Maria, vão me matar, mas você não deixa ninguém lavar o fato. (A Gata
Borralheira, v.o. Entre Rios)
Na versão registrada em Amargosa, embora o porco não se constitua em auxiliar
mágico, sua eliminação é um dano porque assim como em outras versões é o que vai
possibilitar a realização da protagonista.
Olha, eu vou matar meu porco, mas quem vai lavar as tripa no riacho é você.
A Cinderela registrada em Entre Rios não apresenta nenhuma das várias formas
relacionadas por Propp que se caracterizam como um Dano; entretanto a ação da madrasta de
ir à loja comprar vestidos para as filhas, negando o mesmo direito à Maria, pode-se
caracterizar em uma privação o que seria uma outra forma de dano:
a mãe foi nas loja, comprou um monte de vestido pras duas filha dela (...) A
mãe fazia todos os gosto (...) Quando aconteceu a festa, as duas filha da rainha foi e
ficou Maria Borralheira.
IX - A mediação introduz o herói no conto. Propp identifica dois tipos de herói: o
herói vítima e o herói buscador. Isso porque nos contos russos a mediação sempre se com
uma luta ou um desafio a ser vencido. Como nos contos de Perrault não essa luta, a
chegada do herói se para reparar um dano ou uma carência. E será sempre um personagem
masculino, marcando assim o papel social do homem: “protetor” das mulheres. Na Cinderela
(v.P.) o encontro com o herói (o príncipe) se dá no baile:
À sua chegada (de Cinderela) todos se voltaram, maravilhados. A música e as
danças pararam. O príncipe foi ao encontro de Cinderela e inclinou-se, dizendo:
- Seja bem-vinda ao meu palácio! Quem é? De onde vem?
Essa mesma forma de mediação ocorre em cinco versões orais:
que chegou , foi chegando na carruage assim junto ao terreiro do rei, o rei
disse assim:
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- Oi meu filho, ô a princesa ali. (Maria Borralheira, v.o. Anagé)
Maria apareceu na festa (...) ficou todo mundo apaixonado por Maria (...) quando
ela foi pegando a carruage... o sapato caiu. o príncipe foi quem achou o sapato
(Maria Borralheira, v.o. Amargosa).
Quando chegou no palácio aquela moça muito bonita, toda bem formosa, bem
arrumada, aí o príncipe se encantou logo (Cinderela, v.o. Entre Rios).
Aí apareceu a carruage com o vestido, ela entrou (...) quando chegou lá (na festa), o
príncipe ficou:
- De onde é aquela moça? De onde é aquela moça? (A Gata Borralheira, v.o. Entre
Rios).
Na versão de Itapetinga, a mesma situação do encontro se mantém, mas o herói não é
o príncipe, e sim o rei
Quando ela vai dando a volta em roda da casa do rei, aí todo mundo:
- Rei, meu senhor, uma rainha está passeando de carruagem aqui na porta!
Na versão de Taperoá o herói é o príncipe, mas a mediação não se no baile, uma
vez que nessa versão não ocorre esse elemento. O encontro da protagonista com o príncipe se
dá com a superação de um obstáculo:
(...) o rei convocou todo mundo da cidade para vir ver quem conseguia colher
aquele cacho de rosas. Todo mundo foi, mas ninguém conseguiu colher aquele
cacho de rosas (...)
Nisso mandaram chamar Maria (...) quando o rei entregou a tesoura a ela, ela
conseguiu colher o cacho de rosa (...) ela casou com o filho dele, o príncipe.
O obstáculo que ocorre nessa narrativa seria uma função identificada nos contos
russos; entretanto, ao contrário do que ocorre nas narrativas estudadas por Propp, na História
de uma Caranguejinha não é o herói quem tem que superar o obstáculo, mas a própria
protagonista.
Embora o trabalho de Propp se volte para análise das funções e não das personagens,
ele faz uma distribuição das funções de acordo com esfera de ação das personagens. Diante
das numerosas funções que podem aparecer nos diversos contos, o autor faz um agrupamento
segundo determinadas esferas de ação: a esfera de ação do antagonista, do doador, do auxiliar,
da princesa e seu pai, do mandante, do herói e a esfera de ação do falso herói. O autor chama
atenção para o fato de que uma personagem pode ocupar várias esferas de ação, como se
pode observar no quadro abaixo:
Quadro I
58
Contos Função do
Agressor
do Doador do
Auxiliar
da Princesa do Pai do
Mandante
do Herói e
do seu pai
Cinderela (v.P.) A
madrasta e
suas duas
filhas
Uma fada Uma fada Cinderela
(Maria
Borralheira)
O pai de
Cinderela
A madrasta O príncipe e
o rei que
viabiliza o
casamento
Cinderela (v.o.
Entre Rios)
A
madrasta
(uma
rainha)
Uma fada Uma fada Maria
Borralheira
O rei (pai
de Maria
Borralheir
a)
A madrasta O príncipe e
o rei
A História de
uma
Caranguejiha
(v.o. Taperoá)
A mãe Uma
carangueji
nha
A
carangueji
nha
Maria
Borralheira
Ausência
de pai
A mãe O príncipe e
o rei que fez
a promessa
do
casamento
A Gata
Borralheira (v.o.
Entre Rios)
A
madrasta
Uma vaca A vaca Maria
Borralheira
O pai de
Maria
A madrasta O príncipe
Ausência do
rei
Maria
Borralheira (v.o.
Anagé)
A
madrasta e
uma filha
Uma vaca Nossa
Senhora
Uma vaca
Maria
Borralheira
O pai de
Maria
A madrasta O príncipe e
o rei que
promoveu a
festa
Maria
Borralheira (v.o.
Itapetinga)
A
madrasta
Uma
senhora
linda
Uma
senhora
Maria
Borralheira
O pai de
Maria
A madrasta O rei (o
herói)
Ausência do
príncipe
Maria
Borralheira (v.o.
Amargosa)
A
madrasta e
uma filha
Uma
moça
bonita
Uma
moça
bonita
Maria
Borralheira
O pai de
Maria
A madrasta O príncipe
Ausência do
rei
Na análise não se encontrou nenhuma função que pudesse ser definida como do falso
herói, do que se depreende que essas narrativas, embora mantenham uma estrutura, sofrem
modificações em suas partes constitutivas. Esses contos mantêm uma estrutura do enredo -
uma “princesa” sofre por ser maltratada por seu antagonista e consegue superar as
dificuldades com o auxílio de um elemento mágico levando-a à redenção final que se
sempre a partir do encontro com o príncipe resultando, invariavelmente, num casamento.
Mas, elementos vão se perdendo ou se modificando à medida que vão sendo reproduzidos. É
o que pode se observar no quadro acima quando, por exemplo, não se mantém as duas filhas
da madrasta das versões escritas nas versões orais; ou quando nas versões de A Gata
Borralheira de Entre Rios e a Maria Borralheira de Amargosa ocorre a ausência do rei, ou a
ausência do príncipe na versão de Itapetinga com o rei executando a função de herói.
2.1.2 FORMAS FUNDAMENTAIS E SECUNDÁRIAS O NOVO QUE SUSTENTA A
TRADIÇÃO
59
Propp (1984) em sua análise sobre o conto popular, ainda discutindo sua constituição,
identifica o que chama de formas fundamentais e formas secundárias. A forma fundamental
está ligada à origem do conto. A forma secundária está ligada aos elementos do meio que são
incorporados aos contos à medida que vão sendo reproduzidos. Assim se dão as
transformações que relacionam a narrativa com a comunidade por onde circulam. E dentre os
mecanismos de transformação, Guimarães (2000) cita os principais: as reduções, as
ampliações, as substituições e as assimilações.
Aponta-se aqui como alguns desses mecanismos ocorrem nas versões orais em
comparação com a versão escrita de Perrault:
a) Redução – Representa uma forma fundamental incompleta. Na versão de Perrault é
feita uma descrição da situação familiar de Cinderela, anterior à morte da mãe:
Quando a pequenina Flora surgiu na aldeia da Felicidade, foi uma festa geral: isto
porque ela era a filhinha o ansiosamente desejada pelo casal mais importante do
lugar. O pai de Flora era dono de um grande castelo e sua mãe era o hábil
bordadeira que recebia encomendas de todas as soberanas da redondeza.
Flora era feliz e crescia linda e boa como um anjo. Um triste dia, porém, sua
querida mamãe foi para o céu e a menina ficou sozinha com o pai, o qual, ocupado
com seu trabalho, não podia cuidar dela. Pro isto, resolveu casar novamente...
Em todas as versões orais ocorre a redução desse estado inicial, e a narrativa se
precipita já com o estado de penúria da heroína:
A mãe morreu, ela ficou com o pai, mas logo em seguida o pai resolveu casar com
uma mulher que não era muito boa (v.o. Itapetinga).
Um dia tinha um senhor. O senhor era casado e tinha uma filha muito bonita! Essa
menina a mãe morreu e ela ficou sozinha. Mas o pai cuidava muito dela ( v.o.
Amargosa).
Era um viúvo que tinha uma filha. ele se casou com outra mulher que judiava
muito da filha (A Gata Borralheira, v.o. Entre Rios).
É que em um país distante havia um rei, e a esposa dele morreu... ele sentiu
necessidade de casar de novo (Cinderela, v.o. Entre Rios).
Era uma vez uma senhora que tinha duas filhas, uma por nome Maria e outra por
nome Rosa. Só que ela gostava mais da Rosa e não gostava da Maria. Então,
justamente por isso, ela escravizava mais Maria (A História de uma Caranguejinha,
v.o. Taperoá).
60
Eu vou contar a história de Maria Borralheira. Olha, a Maria Borralheira era uma
moça bonita! Bonita, bonita, bonita! o tinha uma prencesa igual pra ser igual.
Mas pobrinha, e andava rasgada. Toda rasgada! E suja, com um pano marrado,
preto, marrado na cabeça (Maria Borralheira, v.o. Anagé).
Embora todas as versões mantenham a presença do rei e\ou do príncipe, ocorre em A
História de uma Caranguejinha (v.o. Taperoá) e Maria Borralheira, nas versões de Anagé,
Itapetinga e Entre Rios, a redução do elemento castelo ou palácio presente na versão de
Perrault, que por sua vez se mantém em duas versões; Maria Borralheira (v.o. Amargosa) e
Cinderela ( v.o. Entre Rios).
Estamos a seu serviço. Queira subir para que possamos conduzi-la ao palácio do
rei! (Cinderela, v.p.).
Maria, hoje vai ter uma festa tão bonita! No palácio. (Maria Borralheira, v.o.
Amargosa).
Um dia teve uma festa no palácio, Maria Borralheira queria ir também.
(Cinderela, v.o. Entre Rios).
Também ocorre redução, na versão de Itapetinga, do elemento carruagem, que na
versão de Perrault é o meio usado pela princesa para ir ao baile onde encontra o príncipe. As
demais versões mantêm esse elemento.
E a abóbora tornou-se enorme, quase do tamanho de uma carruagem.
(...)
A cada golpe da varinha de condão, a carruagem ficava mais bonita e reluzente (...)
(Cinderela, v.p.).
Menina, quando Maria... aparece carruagem, apareceu tudo! (Maria Borralheira,
v.o. Amargosa).
(...) e da abóbora ela fez a carruagem, vestiu ela bem bonita, ela foi pra o palácio.
(Cinderela, v.o. Entre Rio).
Arrumou, menino, uma carruagem de ouro, um cavalo de ouro, o diabo a quatro!
(Maria Borralheira, v.o. Anagé).
apareceu a carruagem com o vestido, ela entrou (A Gata Borralheira, v.o. Entre
Rios).
Também nos enunciados acima pode se observar que a abóbora que se transforma em
carruagem na versão de Perrault se mantém apenas na versão de Cinderela registrada em
Entre Rios; nas demais versões orais ocorre o apagamento desse elemento.
61
Outro elemento da versão escrita que sofre apagamento nas versões orais é o velho
sábio”
Um velho sábio de mais de trezentos anos (...) pôs se a ler nas estrelas (...) Não é a
princesa, mas merece ser rainha. (Cinderela, v.p.)
Apenas na versão de Cinderela registrada em Entre Rios é que aparece a figura de um
feiticeiro, o que pode se configurar como um caso de substituição.
Ia ao feiticeiro – o feiticeiro foi lá porque o rei viu que o filho tava muito triste.
É curioso observar que na versão escrita apareça uma personagem com poderes de
adivinhações denominado de Velho Sábio, quando à época em que Perrault catalogou seus
contos a mulher que tivesse esses poderes seria denominada de bruxa, o que representaria uma
ameaça para a sociedade.
A análise aponta que o inúmeros os exemplos de redução que ocorrem nas
narrativas; não foram todos descritos porque acredita-se que o detalhamento de cada um seria
exaustivo e pouco elucidativo para a discussão.
b) Outro mecanismo de transformação nos contos, a ampliação ocorre quando à forma
fundamental acrescentam-se detalhes. Em três versões orais, a ampliação ocorre, por exemplo,
quando os antagonistas descobrem o ajudante mágico e manda eliminá-los:
- Bom, Maria, eu descobrir que não é você que lava a roupa. Amanhã você vai
trazer essa caranguejinha morta, tratada pra fazer uma moqueca pra nós comer (v.o.
A História de uma Caranguejinha, Taperoá).
Aí o pai da Maria deu vontade de comer a vaca da Maria Pé-de-Lage (...)
- Eu não vou deixar matar minha vaquinha não! Eu não vou deixar matar minha
vaca! De jeito nenhum! Mata a de Maria Borralheira.(v.o. Maria Borralheira,
Itapetinga).
Marido, vamos comer a vaquinha de Maria?
(...)
Aí a vaquinha chamou ela e disse:
- Maria, vão me matar, mas você não deixa ninguém lavar o fato. (A Gata
Borralheira, v.o. Entre Rios)
A eliminação do ajudante mágico é um detalhe acrescentado nessas versões orais, uma
vez que não ocorre na versão de Perrault.
62
Em Cinderela (v.o. Entre Rios), na qual o ocorre a descoberta do ajudante mágico,
pode-se ilustrar a ampliação com a ação da madrasta de ir à loja para comprar presentes para
as filhas. Ação essa que serve para demonstrar como as filhas da madrasta desfrutavam
privilégios que eram negados à heroína:
a mãe foi nas loja, comprou um monte de vestido pras duas filha dela (...) A
mãe fazia todos os gosto (...) Quando aconteceu a festa, as duas filha da rainha foi e
ficou Maria Borralheira.
Na versão registrada em Amargosa as alianças também surgem como um caso de
ampliação uma vez que não estão na versão de Perrault:
- Oi, eu caso com ela... (eu vou dizer aqui uma coisa... eu vou dizer, pode
dizer?) Eu só caso com ela se meu porco obrar um par de aliança.
(...)
Ela mandou fazer um par de aliança e botou na obra do porco.
A referencia à “obra do porco” caracteriza a presença do grotesco na concepção
bakhtiniana. Darnton (1984), ao discutir como os contos populares em suas versões escritas
foram adaptados ao gosto burguês do século XVIII, analisa diversas histórias narradas pelos
camponeses nas quais o grotesco estava presente, aspecto esse que desaparece nos contos
catalogados por Perrault.
c) Quanto à substituição pode ocorrer por transposição, por exemplo, de vocabulário.
Em Maria Borralheira, versão registrada em Itapetinga, ocorre substituição do palácio da
versão de Perrault pelo termo reinado:
Maria foi viver no reinado, casou, teve filhos e até hoje vive numa grandeza com
o rei.
Também ocorre substituição do vocábulo baile, da versão escrita, por festa nas versões
orais:
E agora – disse-lhe a fada irá ao baile no palácio. Entrará no salão de recepções e
dançará com o filho do rei (Cinderela, v.p.)
tinha um rei que ia fazer uma festa pa todos os vizinhos, pra o fio dele escoler
(sic) uma moça... (Maria Borralheira, v.o. Anagé).
63
O rei mandou convidar todo mundo, mas queria que todo mundo fosse a festa...
(Maria Borralheira, v.o. Itapetinga).
Maria, hoje vai ter uma festa tão bonita! No palácio. (Maria Borralheira, v.o.
Amargosa).
Um dia teve uma festa no palácio, Maria Borralheira queria ir também
(Cinderela, v.o. Entre Rios).
Depois teve uma festa muito grande e todo mundo foi (A Gata Borralheira, v.o.
Entre Rios).
d) Sobre a assimilação, Guimarães (2000) chama a atenção que ela se quando
ocorre um deslocamento, uma substituição incompleta de uma forma pra outra, de modo que
produz uma fusão de duas formas. Nas narrativas aqui analisadas observa-se que isso ocorre
quando o ajudante mágico, que na versão de Perrault é representado pela fada, em cinco
versões orais apresenta animais com poderes especiais; nas versões de Taperoá aparece uma
caranguejinha mágica, nas versões Maria Borralheira de Anagé, Itapetinga e Entre rios tem-se
uma vaca com poderes especiais. Na versão de Amargosa o porco não tem poderes especiais,
mas é a varinha encontrada em suas víceras que permite o aparecimento da fada que remete à
versão escrita. na Cinderela narrada em Entre Rios a manutenção da fada da versão
escrita.
Nessas versões orais, observa-se que a assimilação não se apenas com formas
dentro do mesmo enredo, variando apenas nas versões, mas, como é próprio da tradição oral,
há assimilação de formas e elementos de outros enredos. Cascudo (2003) explica que no conto
popular, bem como em outras modalidades da tradição oral, os elementos não figuram
“virgens e novos”, mas são provenientes de outros discursos, como acontece em qualquer
processo discursivo da língua. É o caso, por exemplo, da superação de um obstáculo (descrito
nas ginas 14-15) elemento que não aparece nas narrativas de Perrault, mas nos contos
russos estudados por Propp. Nas histórias orais um imbricamento, um “enredamento” de
diversos elementos que figuram em diversas narrativas. A personificação de animais como
ocorre nas versões de Taperoá, Anagé, Itapetinga e Entre Rios trazem elementos de outras
histórias que o folclorista brasileiro classifica como histórias de animais.
O desejo de comer a vaca remete a lenda de Pai Francisco e mãe Catirina que deu
origem à festa de Parintins com o ritual dos Bumbas. Conta a lenda que mãe Catirina, grávida
, deseja comer a língua do boi mais bonito da fazenda. Para satisfazer o desejo da mulher, Pai
64
Francisco manda matar o boi de estimação do patrão. Pai Francisco é descoberto, tenta fugir,
mas é preso. Para salvar o boi, um padre e um pajé são chamados e conseguem ressuscitá-lo.
Conforme Alconforado (1997), o boi está ligado a um complexo e ambivalente
simbolismo, é um personagem que está presente em diversas culturas: nas pinturas e
hieróglifos do Egito; representa a primeira letra do alfabeto hebraico alef; em Creta, o
minotauro é um touro, guardião do labirinto; também é uma das várias formas assumidas por
Zeus.
A presença de animais na literatura oral em regiões do Brasil, como ressalta Antonacci
(2002), deu origem a diversos estudos como os de Gilberto Freire e Mauro Mota que deixam
perceber a intensa imbricação entre heranças indígenas, africanas e européias. A autora
enfatiza a importância única do boi em quase toda a África e, ainda, que a presença do boi
está muito ligada à cultura dos povos bantu que durante as colheitas o conduziam em
procissão em meio a cantorias e danças, e lembra que Artur Ramos considera essa uma das
etiologias do Bumba-meu-boi, tão comum na região nordeste.
É como se uma teia fosse se tecendo e o fio condutor, entremeado de diversas histórias
ancestrais, ticas, formasse um grande texto marcado por transformações que, ao mesmo
tempo em que ligam essas narrativas à tradição, adquirem um caráter inovador e
culturalmente localizado.
A descrição e análise dessas formas presentes nos contos, que Propp denomina de
fundamentais e secundárias, demonstram como a memória atua na manutenção e na inovação
de elementos no conto popular. Se por um lado as narrativas mantêm elementos como
palácios, reis, príncipes, fadas unindo os “fios da tradição”, caracterizando assim a
manutenção de formas fundamentais; por outro lado se tem uma caranguejinha gica na
versão de Taperoá que é uma cidade localizada no litoral da Baía de Tinharé, marcada pela
presença de manguezais onde a pesca de caranguejo faz parte das atividades locais, e a
moqueca mencionada no conto é tradição na culinária local. Ou ainda a vaca com poderes
especiais na versão registrada em Itapetinga, uma cidade com forte tradição na pecuária
nordestina, o que a levou a ser conhecida como a Capital da Pecuária.
Elementos como esses, incorporados às narrativas, também, denotam como a
reprodução e ressignificação dos contos estão marcadas pelas identidades da comunidade e à
medida que os contos vão sendo reproduzidos, elementos do cotidiano o incorporados a sua
constituição; assim a fada da versão de Perrault passa a ser representada por uma
caranguejinha que ao ser morta e enterrada se transforma numa roseira também com poderes
mágicos; ou numa vaquinha, da versão de Itapetinga, que, ao ser morta tinha uma varinha
65
mágica em suas vísceras; e a mesma vaca esna versão de Anagé na qual a vaca, além de
trazer a varinha mágica nas vísceras, aparece personificada com habilidade para conversar
com a heroína e consolá-la em sua aflição. Além da presença do boi na literatura oral
nordestina estar ligada a diversas manifestações históricas, culturais, vale lembrar que as duas
cidades têm suas bases econômicas fortemente marcadas pela criação de bovinos.
São elementos da cultural local que são incorporados às narrativas tradicionais que
vêm se perpetuando e atravessando todas as geografias e as mudanças pelas quais o mundo
vem passando. Nessa sobrevivência é fundamental o fato das narrativas estarem sempre
passando pelo processo de recriação em que tradição/manutenção, renovação/adaptação se
dão num imbricamento contínuo.
Ao contrário do que possa parecer, tradição e transformação não formam uma
oposição, na verdade, é a capacidade de transformação aliada à manutenção de alguns
elementos que garantem a sobrevivência de muitas manifestações culturais; assim tradição e
renovação caminham juntas.
As mudanças que ocorrem nas narrativas possibilitam a adaptação à cor local. Nessas
versões orais o regional assume o papel relevante não só com a mudança do elemento mágico
(fada => caranguejinha) como o sapatinho de ouro” que na versão atualizada é representado
por uma roseira; na estrutura interna ambos são fundamentais para o desfecho da história
porque são elementos que vão fazer com que protagonista seja identificada pelo herói.
Reitera-se aqui o papel da memória. Nesses processos de reprodução, adaptação e
ressignificação é fundamental a atuação do “esquecimento”. Ferreira (1991), ao tratar das
Armadilhas da memória na poesia e no conto popular, distingue dois tipos de esquecimento:
um que é o esquecimento profundo, é a incapacidade absoluta de lembrar, é o que se perdeu
por algum motivo e não emerge para a narrativa, poderia se dizer que es ligado mais
especificamente a uma falha de memória; e o esquecimento do que se desliza na seqüência da
narrativa, situações que se mascaram, eufemizam ou simplesmente se omitem fatos ou
passagens; essas distinções de alguma forma estão ligadas àquelas concepções de Pêcheux
sobre os tipos de esquecimento (já discutidas no item 1.3) a mesma autora esclarece ainda
que a seletividade feita pela memória está ligada à forma como o indivíduo e a comunidade
excluem elementos da narrativa que são “indesejáveis” e que a memória possibilita os
“buracos” do esquecimento se se considerar que
66
tradição é uma espécie de reserva conceitual, icônica, metafórica, lexical, e
sintática, que carrega a memória dos homens, sempre pronta a se repetir, ou
pensarmos na tradição como um repertório de paradigmas e de virtualidades em
relação. (FERREIRA, 1991, p.13)
Bakhtin (1979) esclarece que a enunciação humana mais primitiva, ainda que realizada
por um organismo individual, é, do ponto de vista de seu conteúdo, de sua classificação,
organizada fora do individuo pelas condições extra-orgânicas do meio social. Assim é que
Guimarães (2000) considera que o conto, no ato de sua enunciação, deve ser visto não apenas
como um fato individual, fruto de um narrador/enunciador que decide, por si, as variações
que instaura em sua narrativa, mas como uma enunciação que tenta se adequar a um
interlocutor real.
Nessa dinâmica contínua por que passa as reproduções dos contos populares onde a
manutenção, transformação, ressignificação são possibilitadas pela ação do “esquecimento”,
pela atuação do interdiscurso, a memória coletiva é que garante tanto a tradição quanto a
renovação dessas narrativas.
As considerações que Maluf (1995) faz sobre o lugar onde o relato é produzido,
parecem pertinentes também para se compreender as narrativas de tradição oral. Para ela, o
lugar onde se produz um enunciado é muito relevante porque não lugar que não esteja
mergulhado na linguagem e na cultura. Considerações essas que encontram ressonância nas
palavras de Certeau (1995, p.17) quando diz que “o meu dialeto demonstra minha ligação
com certo lugar”.
Um dos aspectos que garantem a sobrevivência secular desses contos populares deve-
se justamente (além do elemento mágico que povoa a imaginação humana) ao fato de se
adaptarem ao tempo e ao lugar onde são contados/ouvidos, produzidos/reproduzidos.
Darnton (1986) mostra que nos contos populares veiculados pelos camponeses, no
século XVIII, por entre as tramas padronizadas e temas convencionais, entre fantasias, ogres,
duendes revelam-se elementos de um realismo mostrando como se vivia nas aldeias e nas
estradas, na Europa da época. Por isso, os contos sempre ocorriam em contextos básicos
(aldeias e estradas). Dessa forma, alguns temas/elementos são sempre recorrentes nessas
versões: alimento, madrastas, órfãos, peregrinação, etc.
A necessidade de dar sentido ao que é produzido, através de um realismo que reflete o
cotidiano de quem narra, além de denotar o lugar social, político, ideológico do sujeito que
fala e de passar pelo sentimento de pertencimento, passa também pela questão da
verossimilhança. Esse é um dos aspectos que garantem ao ouvinte/leitor aceitar uma narrativa
67
ficcional; é preciso que ela seja constituída de elementos que de alguma forma se aproximem
do verossímil, do plausível como pertencente ao contexto.
Assim, quando na narrativa da “caranguejinha”, o narrador incorpora elementos da
cultura local como o caranguejo no lugar da fada, a roseira no lugar do sapatinho de ouro”,
além de um traço de identidade, que faz com quem se reconheça essa produção como
pertencente a uma determinada comunidade, também se garante que o ouvinte/leitor consiga
atribuir sentido a esse texto que ele, de alguma forma, se aproxima do seu contexto onde
está sendo narrado/ouvido. Nessa mesma versão a narradora enuncia:
como era no tempo do reinado, o rei convocou todo mundo da cidade pra
ver quem conseguia colher aquele cacho de rosas
Ocorre aí uma evidente atualização da memória num jogo entre esquecimento e
lembrança, nesse caso consciente, para sentido à narrativa, para não ferir o princípio da
verossimilhança. Caso contrário, como falar de reinado no final do século XX, no interior da
Bahia. O enunciado “era no tempo do reinado” desloca a narrativa no tempo criando uma
espécie de tempo mítico e alertando o ouvinte/leitor. Do mesmo modo, essa mesma memória,
talvez muito mais inconsciente, atualiza essa narrativa por meio do “esquecimento” da figura
do pai presente tanto na versão de Perrault como nas outras versões analisadas. Esse
esquecimento é muito mais uma lembrança se considerarmos que na época do registro dessa
história (final do século XX) já era bastante comum a ocorrência de mulheres que sozinhas
eram chefes de família.
Essa discussão remete à Ferreira (1991, p.16-17) quando afirma que
O esquecimento é sempre um conflito, algo que se situa como antagônicos o herói
e os mundos em que ele transita, na história como no universo narrativo. É, além
disso, resultado de um confronto que tem diversas causas de tensão, e que põe em
campos opostos, por exemplo, quem diz e quem escuta.
Assim como Pêcheux (1987) diz que o “esquecimento”, (que é um processo
inconsciente) age fazendo o sujeito ter a ilusão de que são suas as palavras que enuncia;
também a assimilação de elementos da cultura local aos contos faz com que o enunciador
tenha o sentimento de que ali está a sua origem, e essa assimilação se justamente no jogo
da memória entre lembrança e esquecimento. Nesse sentido é que Ferreira (1991, p.14)
esclarece:
68
A dupla esquecimento/memória, portanto, é apenas uma aparente oposição.
Numa grande medida, essas oposições o conjuntos e indispensáveis em projetos
narrativos que dão conta de eixos do conflito. também o caso de, no corpo da
própria narrativa, formarem-se núcleos em que lembrar é um fluxo, um processo,
uma razão de ser e o ato de esquecer se faz o pidaquilo que se desenvolverá,
denotando uma série de transformações ou a transformação.
Para a autora, pode se considerar que o esquecimento é responsável pela memória,
pela lembrança, seria mesmo o responsável pela continuidade, porque, conforme Levi Strauss
(1970), a criação é resultado do esquecimento uma vez que ele quebra a ordem mental e cria
uma nova ordem.
Nessa perspectiva, Costa (1999, p.22) fala do papel decisivo do narrador no processo
de variação do conto popular. Como é próprio da narrativa oral, ela é anônima, de domínio
coletivo, não se reconhece um individuo único como autor (embora não se possa negar que
tenha existido um autor primeiro antes que o texto se tornasse de domínio publico).Mas se o
autor se perdeu no processo de transmissão, ainda assim existe um recriador, um reelaborador
que o faz “de acordo com o estado emotivo da performance, com o publico ouvinte e com o
contexto”. É o individual e o coletivo na construção da memória.
Para Morin (2001), o sujeito desde o seu nascimento “não conhece por si, para si,
em função de si, mas também pela sua família, pela sua tribo, pela sua cultura, pela sua
sociedade, para elas, em função delas”. Morin (idem) afirma assim que a maneira como se
constrói o conhecimento depende da memória biológica e da memória cultural que
constituem a memória do individuo. Nossas percepções o controladas por variáveis
culturais e históricas, à medida que o sujeito se constitui ele incorpora o que E. Morin chama
de imprinting cultural.
A atuação da memória no apagamento de elementos da narrativa faz com que esta se
aproxime do “lugar” onde se reproduz, apagando algo que a distancia do contexto. Nas
palavras de Halbwachs (1990), a memória se modifica e se rearticula conforme a posição que
se ocupa e as relações que se estabelece, bem como está submetida a questões do
inconsciente como o afeto, censura, entre outros. Mas as memórias individuais se alimentam
da memória coletiva e histórica. Nesse aspecto, um dos elementos fundamentais para afirmar
o caráter social da memória é a linguagem; lembrar e narrar se constituem da linguagem.
Conforme Bosi (1994), a linguagem é o elemento socializador da memória à medida que
reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural “vivências” tão diversas.
69
É importante ressaltar que linguagem e memória são elementos também de luta de
poder. Dessa forma, o que é lembrado/esquecido (o que se reflete nas narrativas populares
como manutenção da tradição e transformação/adaptação) integra mecanismos de controle e
de alteridade. O processo pode ser inconsciente, mas de forma alguma por acaso.
O conto popular é produto de vários autores ao longo das produções\reproduções,
tanto na versão oral como escrita, elementos novos são incorporados ou substituídos para se
adequar à audiência, ao publico que se destina, ainda que não se possa garantir se é um
processo consciente ou inconsciente, e é muito provável que se nos dois processos. Mais
uma vez se retoma Halbwachs (1990) ao dizer que a memória tira sua força e duração do fato
de ter suporte no grupo; assim, cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva, e esse ponto de vista muda conforme o lugar que o indivíduo ocupa, e também esse
lugar muda de acordo com as relações que se mantém com outros meios. Nas palavras de
Ferreira (1991, p 42) “segue-se as memórias dos homens, em percurso, e em foco estão
seus impasses com a família, com o grupo social, consigo próprios”. E cada realização
narrativa é uma nova possibilidade sobre a matriz que se depreende do contínuo.
Para Guimarães (2000), o conto popular busca sua fonte no imaginário e na memória
coletiva de forma que todo ouvinte ou leitor possa se reconhecer, se identificar, dando sentido
ao que ouve ou lê. temas que persistem, como a temática da mulher, não só por fazerem
parte da memória coletiva, mas principalmente por envolverem uma questão universal. Nos
contos populares, além do sentido moral, podem ser percebidos vários elementos filosóficos
discursivos formações discursivas que tanto os prendem à tradição como revelam as
facetas ideológicas, as condições de produção de quem os produz assim como de seus
ouvintes/leitores. Nessa perspectiva é que nesse trabalho é fundamental a concepção de
memória para a análise dos discursos relativos à mulher que é apresentada no capítulo que
segue.
70
3. Representação feminina nos Contos Populares
Eles (os mitos) têm sua origem em um espírito que não é bem humano,
e sim um sopro da natureza – o espírito de uma deusa bela e generosa,
mas também cruel.
(Carl G. Jung, Zurique, 1961).
Estudos indicam que todas as sociedades conhecidas sempre estabelecem diferença
entre os sexos. Essa diferença se configura na distribuição de tarefas, responsabilidades. Mas,
ao longo da história (pelo menos ao que indica a história oficial) houve um predomínio do
regime patriarcal e a diferença entre os sexos foi usada para justificar a superioridade
masculina, construindo uma prática política de poder marcadamente de conotação positiva
para o homem e negativa para mulher (Rosaldo, 1979).
Assim, num processo de representação simbólica que passa pelas mais diversas
produções e reproduções humanas foi se constituindo o discurso sobre a figura feminina, na
mitologia, nas artes, ganhando força durante a inquisição da Idade Média e sobrevivendo à
modernidade. Ao passo que as lutas da mulher, seus movimentos em busca de direitos, as
conquistas logradas nessas lutas parecem que são “esquecidas”.
Os discursos que foram se constituindo ao longo da história sobre a mulher criaram
uma imagem de um ser que precisa da proteção e do controle masculino, dentro de um jogo
de dualidade que envolve o materno e o maléfico; a proteção é necessária porque a mulher
ideal é frágil e submissa; o controle porque, por outro lado, nela é personalizada a maldade
que precisa ser contida. Essa visão foi se constituindo ao logo da história e está na memória
coletiva. Os efeitos de memória, conforme Brandão (s.d), tanto podem ser de lembranças, de
redefinição, de transformação, quanto de esquecimento, de ruptura, de degeneração do já-dito.
Dessa forma, a proposta, nesse capitulo, é analisar os contos para discutir as
formações discursivas, sobre a mulher, que os permeiam. Dentre as diversas formações
discursivas que podem se fazer evidentes nessas narrativas, destacar-se-ão as presentes
nas seguintes temáticas: as madrastas; o poder feminino; o arquétipo materno; o casamento; e
as funções domésticas.
71
3.1 A simbologia das madrastas – Evas, bruxas e Pandoras
Lucíola é o vampiro noturno que brilha de uma luz tão
viva no seio da treva e à beira dos charcos. Não será a
imagem verdadeira da mulher que no abismo da
perdição conserva a pureza d’alma?
(José de Alencar)
Segundo os estudos de Propp (1994), nos contos maravilhosos são atribuídas ações
constantes a personagens diferentes. Nessa perspectiva, a estrutura narrativa pode ser estudada
a partir das funções das personagens que se desenvolvem num enredo. Propp aponta ainda que
essas narrativas começam sempre pela exposição de uma situação em que se enumeram os
membros da família, apresentando um estado que pode ser de falta ou de injustiça. Nos contos
aqui analisados, essa proposição se confirma. A falta inicial ou injustiça é a marca
fundamental para a presença de um conflito normalmente desencadeado por uma personagem
antagônica que, para o folclorista russo, está na esfera da Ação do Agressor, quem comete a
falta. Nos contos, objeto desse estudo, o conflito é gerado por uma perversa madrasta e duas
meias-irmãs, situadas na esfera de ação do agressor. Elas atormentam e desprezam Cinderela
com inveja de sua beleza:
A princípio, a viúva mostrou-se carinhosa e gentil com Flora, mas depois revelou-se
de péssimo caráter. Começou por tirar todos os lindos vestidos de Flora e dá-los às
suas filhas; depois pôs-se a repreendê-la pelos mínimos motivos e finalmente obrigou-
a a fazer os mais humildes e pesados serviços da casa.
Flora o tinha a quem queixar-se, pois o pai acreditava nas mentiras da nova esposa,
que lhe falava sem parar de caprichos e maldades da pobre menina.( Cinderela, v. P.)
está inscrito um discurso da mulher perversa e cruel. Nas versões orais se mantêm
esses mesmos discursos de personagens femininas que se comprazem na prática da maldade:
Ela não gostava de Maria Borralheira porque era enteada dela, não é? Então, ela judiava
com a Maria Borralheira (Maria Borralheira – v.o Anagé)
O pai resolveu casar com uma mulher que não era muito boa. Preta, toda ruim, era
gente mesmo grossa... (Maria Borralheira – v.o Itapetinga)
Quando o pai tava vivo, ela tratava a filha muito bem... mas depois o velho morreu.
(Ela) botava todo desprezo para Maria.
72
... tava namorando com a rainha, mas a rainha era muito má. (Maria Borralheira
v.o Amargosa)
Casou com a rainha, aí, ao em vez de bolo a rainha pegou a Cinderela, né, que era
Maria Borralheira e botou na cozinha:
__ Seu emprego agora é aí! (Cinderela – v.o Entre Rios)
Era um viúvo que tinha uma filha. ele casou com uma mulher que judiava muito
da filha. A mulher botava ela no mau trato, para ela fazer tudo (A Gata Borralheira
v.o Entre Rios)
O que se nota é que as funções classificadas como más, as mais perversas ações são
atribuídas a personagens femininas. Existe um discurso recorrente nesses textos em que a
idéia de maldade é personalizada na figura feminina. Com uma análise mais cuidadosa e
profunda é possível perceber que os textos são perpassados por uma memória discursiva que
remete à cultura grega, ao mito de pandora, a mulher que tem função de gerar e propiciar o
mal. Está presente a ação da memória discursiva gerando a interdiscursividade que se
relaciona com todo um contexto sócio-histórico, ideológico.
Nesse processo é fundamental a ação do “esquecimento” que, na proposição de Michel
Pêcheux (1997) é o que está na instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos
afetados pela ideologia.
Dentre as representações negativas relacionadas à mulher, presentes nos contos, está a
inveja; na versão de Itapetinga, a madrasta tinha inveja de Maria. E na versão de Entre Rios, a
mulher é capaz de enganar para conseguir atingir seu objetivo que era prejudicar Maria: ela
botou pano na barriga e disse que tava grávida”.
Nota-se, portanto, a presença, nos textos, do interdiscurso, ou seja, um conjunto de
formulações feitas, já esquecidas ou o no nível da consciência, que determina o que o
sujeito diz, trazendo em si uma memória construída no imaginário coletivo que possibilita a
realização de formações discursivas que remetem a um discurso milenarmente reproduzido: o
da mulher como fonte e disseminadora da maldade. Trabalhando no campo do simbólico, as
“bruxas”, as madrastas, as mulheres “maldosas” podem representar a mulher transgressora,
suas ações podem simbolizar uma resistência à dominação masculina, portanto elas são
sempre punidas no final, para demonstrar que não devem ser imitadas. Conforme Alves
(2005, p.73), “se a mulher infringe o código de comportamento, saindo de seu território,
escapando da esfera doméstica e do papel de mãe [...] transformar-se-á numa representação
(demoníaca)”. Representações essas que são sempre retomadas na memória coletiva. no
73
século XX, nos Estados Unidos, as feministas que se lançaram na luta por direitos, eram
hostilizadas por quase toda sociedade, porque se supunha que mulheres não deviam criar
perturbações à ordem estabelecida. “Eram chamadas de bruxas, mal-amada, lésbicas”
(Muraro, 2002, p. 133)
Nos contos, a maldade é associada às mulheres feias. A madrasta representada por
Perrault é uma “viúva que tinha duas filhas feias e invejosas a mais não poder”, essa
representação se mantém nas seguintes versões orais:
Uma mulher que o era muito boa. Preta, toda ruim, era gente mesmo grossa.
(Maria Borralheira, v. o Anagé)
Uma senhora também viúva, tinha uma filha, mas a filha não era muito bonita igual
a que tinha o moço (Maria Borralheira, v.o Amargosa)
Mais próxima da versão de Perrault, a Cinderela reproduzida em Entre Rios mantém
as duas filhas, também na esfera do agressor: “Feia, não! Todas duas feias parecia um...”. o
culto à beleza é uma marca das sociedades modernas que criam padrões para julgar o que
apraz ao olhos. Embora esses padrões possam mudar de uma sociedade para outra ou na
mesma sociedade em épocas diferentes, ao que parece também é uma prática se abominar o
“feio”, o exótico, o que causa estranheza, o que não se enquadra nos padrões estabelecidos.
Nas narrativas registradas em Anagé e Itapetinga uma referência ao tamanho do
de duas personagens que antagonizam com Maria, a personagem principal:
O sapato não servia nem nos dois dedo do pé do bicho. Tem o des’tamanho, que
chamava Maria-Pé-Laje (v.o. Anagé)
Quando chegou na casa do veio, a negona botou logo o pé de fora. O pé da nega era
quarente (sic) e quatro bico chato, do pezão. Não entrou... ( v.o. Itapetinga).
Nas duas versões, a menção ao de tamanho exagerado mostra a produção de um
discurso em que o caráter está refletido nos aspectos físicos das personagens, aspectos esses
que são colocados como negativos, pouco apreciáveis, deformados”, aqui o dito popular
sofre uma inversão e parece dizer “quem vê cara, vê coração”.
Esses discursos demonstram também a valorização de um padrão de beleza que es
marcado na memória coletiva, em que a representação de beleza ideal é colocada sempre em
74
relação à mulher branca. O delicado é das “princesas” de origem branca européia, ao passo
que o tipo desvalorizado, o grande, representa traços físicos de um povo mestiço e remete
aos escravos e pessoas das classes menos favorecidas economicamente. Construções como
essas estão na base da formação ideológica do racismo. Aqui a referência ao grande e a
expressão do bicho” remetem àquelas concepções de Nina Rodrigues
9
de associar ao
negro caracteres animalescos. A tendência para animalizar a figura do negro, criando
estereótipos com simbologias descaracterizantes aparece em diversas concepções e obras
como aborda Silva (2004) quando discute a discriminação do negro no livro didático; a autora
afirma que promovendo o estereótipo, a ideologia consegue com que o estereotipado
internalize uma imagem negativa que o inferioriza.
Também o se pode esquecer que no imaginário popular o tamanho do da mulher
está relacionado à sexualidade, “sapatão” equivale a lésbica, homossexual, e que por
conseguinte não serve para o casamento que atende ao modelo padrão.
O esquecimento” possibilita, através da memória discursiva que está no inconsciente
coletivo, a ação do interdiscurso, seja por meio da manutenção, da transformação e, no caso
específico, da falta que para Orlandi “é também o lugar do possível” (2001, p. 52). Em “Maria
Borralheira” (v.o Anagé), não é feita uma abordagem explícita sobre os atributos físicos da
madrasta, ou a falta dele, mas uma das antagonistas, Maria Pé-de-Laje, tem um
absurdamente desproporcional (daí sua alcunha) a ponto de “o sapato não servia nem dos dois
dedos do do bicho”; além de ser chamado de bicho, o que no imaginário popular está
relacionado à feiúra, o exagero do tamanho do está em oposição à delicadeza do da
“Cinderela” de Perrault, que é reproduzida nas versões orais. Embora essa representação do
extremamente delicado não esteja explícita nessas narrativas, essa ausência autoriza um
não dito que é o dito em outro lugar, está na memória coletiva, e esse não dito é autorizado
pela relação de oposição em que a imagem de um de tamanho descomunal se constitui a
partir de seu oposto, o pé pequeno, delicado.
Também no conto “Cinderela” narrado em Entre Rios, um traço físico é característico
das duas irmãs que rivalizam com Maria.
Quando chegou na casa de Maria Borralheira, bateu na porta. Quem apareceu logo
foi as duas moça de narigão. Cada nariz com uma berruga bem em cima [risos]. Ai
foram logo dizendo: “o sapato é meu! o sapato é meu!”
9
Ver Rodrigues, R. N. Os Africanos no Brasil. São Paulo,Companhia Editora Nacional, 1976, p. 153 – 169.
75
O “narigão”, “cada um com uma berruga (sic) bem em cima”, traz uma filiação de
sentidos permitida pela memória discursiva que remete às bruxas, às feiticeiras que povoam o
imaginário popular e marcam a historia da Idade Média; é o interdiscurso permitindo a
produção de sentidos e recupera um já dito em tantos outros lugares”. Fazendo-se uma
analogia, simbolicamente as madrastas presentes nos contos, as mulheres más, as que não se
enquadram no padrão também são vistas como bruxas e feiticeiras.
Ao se discutir a simbologia da madrasta, não se pode esquecer que elas representam a
ausência de mãe que é, segundo Jung (s.d), um dos mais marcantes arquétipos do imaginário
coletivo. Assim, a madrasta significa a negação de tudo que remete ao arquétipo materno, à
idealização de mãe: amor, dedicação, abnegação, renúncia, proteção.
Nessas representações, a mulher que inverte as regras, que foge ao modelo
estabelecido pela ação de uma ideologia de subjugação da mulher, é descartada pela
sociedade. Nessa representação feminina, também ocorre a referência à mentira, a exemplo da
madrasta em Perrault que conseguia seus intentos “pois o pai (de Cinderela) acreditava nas
mentiras da nova esposa. Na narrativa registrada em Amargosa, a mulher astuta trama para
enganar o pai de Maria e casar-se com ele, uma vez que esse tinha declarado que o enlace
ocorreria se o porco obrar um par de aliança”. Ao que ela prontamente cuidou que ocorresse:
“mandou fazer um par de aliança, botou na obra do porco”.
Essas construções, mulher má, perversa, mentirosa (síntese de bruxa) apontam para
um modelo de mulher construído por uma ideologia dominante fortemente reforçado na Idade
Média e mantida nos sistemas patriarcais, modelos esses usados como forma de controle das
ações femininas, que inculcam, através de sistemas simbólicos de códigos, limitações de
conduta e de papéis.
76
3.2 Os “Poderes” Femininos
“O vinho e as mulheres fazem sucumbir até mesmo os
sábios, e tornam culpados os homens sensatos.”
(Eclesiástico: 19,2)
Nos estudos antropológicos, encontram-se pesquisas que defendem a existência de
sociedades matriarcais e as que defendem a existência universal do patriarcado (abordagem
no item 1.2). Partindo dessa discussão, Murraro (1995) defende que, do ponto de vista dos
estudos antropológicos, desde os proto-humanos aos mamíferos em geral, o que existiam
eram organizações matricentriais (que seguiam uma linhagem feminina cujo centro era o
grupo mãe/filho) não matriarcais, pois não eram, em geral, governadas pelas fêmeas.
Corroborando com as idéias de Murraro, quando discute as relações da mulher com o poder
na sociedade Francesa do Século XX, Perrot (1992) afirma que as mulheres não têm o Poder,
elas têm Poderes. Ela chama atenção para a polissemia dos termos. “Poder”, no singular, tem
uma conotação política e designa, geralmente, a figura central, cardeal do estado e poderia se
dizer que simbolicamente teria uma relação com Deus. No plural a palavra se “estilhaça em
fragmentos múltiplos, equivalente a ‘influências’ difusas e periféricas onde as mulheres têm
sua grande parcela (Perrot, 1992 p.167) e teria relação com deuses, associada às ciências
ocultas, à magia, e por conseguinte à falta de cientificidade, de objetividade. Na prática, a
mulher seria o poder oculto por detrás do trono, tanto na política como nas relações sociais e
econômicas. Ao tratar dessa questão, Rosaldo (1979, p.27) as estratégias femininas como
uma forma de resistência ao domínio masculino:
As estratégias femininas são diretamente relacionada com a estrutura do poder
familiar. Onde poder e autoridade estão nas mãos do homem, a mulher trabalha para
influenciá-lo, entrando assim em conflito um com o outro. Quando a autoridade é
compartilhada tanto pelo homem como pela mulher na família, ela não precisa utilizar
o jogo de influência sutil e a manipulação “por-trás-do-pano”.
Perrot (1992, p.68) afirma que na França do século XIX era muito divulgada a idéia de
que as mulheres “puxam os fiozinhos dos bastidores”; nessa visão os “pobres” homens eram
marionetes nas cenas da vida pública e se deixavam influenciar pelas mulheres tomando
77
decisões políticas “sobre o travesseiro, a mulher, em si tão pouco criminosa, é a verdadeira
instigadora do crime. ’Procurem a mulher’, diziam em coro Lombroso e Joly”.
Assim como Alves (2005) discute que a mulher idealizada, submissa, que atende à
dominação masculina, é recorrente na literatura (abordagem no item 3.3), também a idéia da
mulher manipuladora é representada em obras literárias, a exemplo da obra clássica de
Shakespeare, Macbeth”, em que a personagem Lady Macbeth acha o marido demasiado
fraco, demasiado cheio do “leite da bondade humana” para atingir seus objetivos (matar o rei
e assumir o trono). Sente que tem que ser ela a intervir, nem que para isso tenha que ser
desnaturada:
“[...] vinde espíritos
que os pensamentos espreitais de morte,
tirai-me o sexo, cheia me deixando
da cabeça até os pés, da mais terrível
crueldade!”(Macbeth, s\d)
Invocando os espíritos do mal, pede para ficar com todas as características inerentes à
crueldade, de modo que possa levar a cabo o seu plano sem qualquer hesitação, solicitando à
noite, protetora dos assassinos que a ajude também. É a sua vontade férrea que faz levar a
cabo os planos para obtenção da coroa para o marido, já que reconhece nele fragilidade para a
tarefa, embora ele ambicionasse o trono. se percebe também a mulher como representação
do “mal”, aquela que urde nos bastidores as piores tramas.
O discurso da mulher manipuladora está presente em todas as versões quando a
madrasta (ou a mãe na versão de Taperoá) e as filhas tentam impedir a protagonista de
encontrar o príncipe; mas nessas ações se apresentam mulheres que tentam ludibriar uma
outra mulher. Entretanto, em três dessas versões se apresentam ações em que as mulheres
manipulam os maridos:
Depois ela (a madrasta) botou pano na barriga e disse que estava grávida, que era
pra matar a vaca pra ela comer. ( A Gata Borralheira, v. o. Entre Rios)
Ela (a madrasta) mandou fazer um par de aliança, botou na obra do porco e o pai
teve de ver aquilo. E teve que a palavra de ser certa, né, porque ele disse, se o porco
obrasse... Ela tapeou a menina (...).( Maria Borralheira,v.o. Amargosa)
A madrasta de Maria ficou grávida, e ela, com inveja porque Maria tinha uma vaca
e ela não tinha, ela resolveu dar o desejo de comer a vaca (...) O pai de Maria, que
era muito abestalhado, mata a vaca. (Maria Borralheira, v.o. Itapetinga)
78
Esses enunciados demonstram mulheres usando de subterfúgios para conseguir
enganar o homem; a aparente situação dominante da mulher, entretanto, não se por um
poder socialmente constituído, mas pelo uso de artimanhas. O pai que era muito
abestalhado” só é considerado assim porque se deixa enganar pelos caprichos da esposa.
Nos contos aqui analisados, um aspecto é evidente: em todos os textos, a mulher
nunca tem Poder e os poderes que lhe são atribuídos ou o sempre conseguidos por meio de
astúcias, de influências escusas ou são sempre sobrenaturais. Os contos estão povoados por
seres mágicos que conferem poderes às personagens femininas:
Um soluço a sacudiu... viu uma luz cintilante penetrar pela janela. No mesmo
instante surgiu uma linda fada.(Cinderela, v.P)
Em A História de uma Caranguejinha, a menina sofredora resolve os problemas
auxiliada por uma caranguejinha que tinha poderes mágicos:
Pegou as casca da caranguejinha e enterrou na janela do rei e foi dormir. Quando
amanheceu o dia, na janela do rei tava uma roseira enorme, cheias de rosas!
Na versão Maria Borralheira (v.o. Anagé), a portadora de poderes sobrenaturais,
encarregada de ajudar a protagonista, é uma vaca:
a Maria Borralheira chorou... A vaquinha conversava mais ela, conversava ela e
a vaquinha.
- Não, Maria, pode deixar me matar... dende meu bucho tem uma varinha verde.
Todas as coisas que tu desejar pedir, tu bate a varinha no chão e pede.
A presença do mesmo elemento se mantém na versão Maria Borralheira (v.o
Itapetinga) e em A Gata Borralheira (v.o Entre Rios)
Maria botou o fato numa gamela e foi pro rio. Quando ela limpando a tripa, ela
sentiu que dentro de uma tripa tinha uma espécie de vara... Era uma varinha de
ouro... quando ele pegou na vara, apareceu aquela senhora linda. (Maria
Borralheira).
Então, ela ia, quando chegava lá, a vaca encantada é que fazia as coisas. (A Gata
Borralheira).
79
Em Maria Borralheira (v.o Amargosa) uma adaptação mais próxima da
representação da fada da história de Perrault:
Quando ela tava lavando no rio, ela foi apanhar uma varinha para virar as tripa do
porco. Quando ela apanhou aquela varinha... apareceu uma moça tão bonita junto
dela!
A mesma fada da versão de Perrault se mantém na versão de Cinderela registrada em
Entre Rios:
Ficou chorando, chorando. Aí apareceu uma fada e disse assim:
- Por que chora, minha filha?
Nos contos é recorrente a presença de personagens femininas que conseguem feitos
extraordinários sempre de cunho mágico. Existe, nesses textos, uma formação discursiva
ancorada no discurso da inaptidão radical da mulher para o poder. A expressão é emprestada
de August Comte (apud Perrot, 1992, p.178) que fala da “inaptidão radical do sexo feminino
para o governo, mesmo da simples família”, portanto o poder atribuído às personagens vem
de fora, não é natural delas. E, retomando aquela idéia de Perrot (1992), ainda assim, nesses
textos a mulher não tem o Poder, ela tem Poderes.
Outras formações discursivas permitem a construção dos mesmos sentidos
materializados nas palavras de Comte. Em Cinderela” (v. Perrault) aparece um líder do
núcleo familiar, personalizado na figura de um rei:
O pai de Flora era o dono de um grande castelo e sua mãe era tão hábil bordadeira!
A presença da figura do pai se mantém na Cinderela (v.o), nas versões Maria
Borralheira (v.o Anagé, v.o Itapetinga, v.o Amargosa) e em A Gata Borralheira (v.o Entre
Rios)
É que em um país distante havia um rei, e a esposa dele morreu... aí ele sentiu
necessidade de casar de novo. (Cinderela, v.o. Entre Rios).
Aí o pai de Maria deu vontade de comer a vaca de Maria -de-Laje (Maria
Borralheira v.o Anagé)
A mãe morreu, ela ficou com o pai, mas logo em seguida o pai resolveu casar com
uma mulher que não era muito boa. (v.o Itapetinga)
80
A mãe morreu e ela ficou sozinha. Mas o pai cuidava muito dela ( v.o Amargosa)
Era um viúvo que tinha uma filha. ele se casou com outra mulher que judiava
muito da filha (A Gata Borralheira, v.o Entre Rios).
Nas versões orais, a figura paterna mencionada inicialmente é anulada no desenrolar
do enredo, porque o pai se mantém distante das ões domésticas. No conto Cinderela (v.
Perrault), o pai retorna depois de uma longa viagem:
Nesse momento entrou o pai de Cinderela, de volta de uma de suas viagens de
negócios.
O que indica que o pai, o provedor, se mantém distante dos cuidados domésticos,
incluindo aí a educação e administração e das relações familiares. Isso faz com que as
mulheres fiquem com a responsabilidade de cuidar do cotidiano familiar. Entretanto, essas
representações femininas trazem uma idéia de mulheres incapazes de exercer com eficiência
o governo mesmo da simples família”, uma vez que sobre seus cuidados se instala a
desarmonia na família. Em algumas versões as mulheres “malvadas” acabam sendo, de
alguma forma, destituídas até mesmo do “poder” familiar. Na Maria borralheira narrada em
Itapetinga, a madrasta “caiu morta”. Na História de uma caranguejinha , a madrasta perde a
condição de dona de casa e passa a ser a criada, “ela ficou cuidando do trabalho da casa”. O
mesmo ocorre em Cinderela (v.o Entre Rios) em que a madrasta desaparece devorada por um
peixe:
Quando chegou lá, chamou, veio... um bem grandão e de dentro do rio, pegou ela
por o pé, esticou, carregou, carregou! Um peixe brabo. Um bicho brabo de dentro
do mar.
Mas como não é possível negar em absoluto os “poderes” femininos mesmo numa
sociedade tradicionalmente governada por homens, a capacidade feminina é difundida como
algo que o é normal, às vezes como algo benéfico, mas, às vezes, também como algo
maléfico. Essa dualidade se deve porque, se de um lado a sociedade o reconhece o poder
nas mulheres, por outro lado sua potência materna é inegável. Para Perrot (1992, p.183), “a
mãe é o ponto geométrico de cultos diversos que acabam por criar uma saturação insuportável
e alimenta o velho medo que os homens sentem pelas mulheres e, particularmente, pela
potência materna”. É a maternidade, essa capacidade feminina, que assusta os homens e faz
81
surgir esses seres femininos revertidos de poderes mágicos, inexplicáveis. O mágico, o
sobrenatural simboliza aquilo sobre o qual não se tem controle. Em tempos remotos quando a
ciência ainda não havia surgido para explicar alguns “fenômenos”, para o homem era
assustador e impossível de entender como as “fêmeas” podiam sangrar regularmente e ainda
assim permanecerem vivas. Por julgar incompreensível o universo feminino, construíam-se
representações em torno dele. Dessas representações surgem paradigmas do homem como
detentor da razão e do equilíbrio, e da mulher como ser estranho que precisa de controle;
portanto, deveria ser enclausurada em um casamento com um “senhor” que a controlasse e
“protegesse”.
Em seu ensaio A Mulher, a Cultura e a Sociedade, Rosaldo (1979, p.51), ao discutir
aspectos culturais de algumas sociedades que vêem as mulheres como “anomalias”, afirma
que essa visão surge porque essas sociedades as limitam em sua autoridade e “não possuem
meios de reconhecer a realidade do poder feminino”. Ainda nas palavras da autora, essa
realidade é refletida na sociedade moderna “quando nos referimos às mulheres poderosas
como feiticeiras”. E “a mulher que exerce o poder é vista como desviada, manipuladora, ou na
melhor das hipóteses, uma exceção”. (Rosaldo, 1979, p.26)
São esses mesmos discursos que se refletem nas narrativas populares nas quais pode-
se ler a atuação de uma ideologia que tira da mulher qualquer espécie de poder que lhe seja
próprio, que lhe seja natural, atribuindo-lhe apenas poderes mágicos. Por outro lado, essa
mesma ideologia age imputando todo poder ao homem.
Os desfechos das histórias premiam as bondosas, obedientes, resignadas, cheias de
virtudes, como convém ao modelo ideal de mulher, e pune as más, as cheias de defeitos que
não convém serem imitadas, assim como tantas ao longo da história foram punidas (a
exemplo de Joana d’Arc) porque ousaram ir além do papel de boas esposas, boas mães e
perfeitas donas de casas, ou rejeitaram esses papéis. O simbólico atua nesses textos
sustentando o discurso de que a mulher ideal é aquela que se enquadra no padrão, nos
modelos que foram historicamente estabelecidos. Ainda que isso seja inconsciente por parte
do sujeito, como afirma Orlandi (2001), o sujeito não tem controle sobre o que diz, e ele pode
através dos enunciados esproduzindo (ou reproduzindo) um discurso mascarado por uma
ideologia que não pode ou não quer evidenciar, como pode com a atuação do esquecimento
está produzindo formações discursivas presentes em tantos outros momentos, em outros
discursos produzidos por outros sujeitos, como é o caso da punição ao “mal” que remete a
tantos outros discursos. Quando o sujeito produz um texto falado ou escrito, ele pode ser
82
afetado por ideologias que estão estabelecidas pela relação da língua com história e que ele
nem sequer tem consciência.
A manutenção da forte presença feminina com poderes é garantida a ponto de se criar
uma caranguejinha gica (quando é costumeiro se fazer referencia a esse crustáceo como
substantivo masculino).
A caranguejinha lavou a roupa toda, enxugou, dobrou, formou a trouxa...
Você me mata... Junta as cascas todas de mim... E me enterra... Na janela do rei.
Isso Maria fez. Quando amanheceu o dia, na janela do rei tava uma roseira enorme.
Assim, nas narrativas, a magia, o sobrenatural está sempre relacionado à figura
feminina, seja porque elas conseguem realizações extraordinárias com o auxilio de uma
ajudante mágico, seja porque essa ajuda mágica vem sempre através das fadas, Nossa Senhora
ou um elemento da natureza, mas sempre feminino (vaca encantada, caranguejinha mágica).
É possível ler a manutenção da mesma formação discursiva sustentada por
interdiscursos presentes na narrativa tradicional, aqui analisada, que têm suas matrizes nos
impressos de Perrault, coletadas na França no século XVIII: o sobrenatural poder feminino.
Mas, como é próprio das narrativas populares, elas são marcadas por um característico
processo de manutenção\transformação. Por isso Darnton (1996) considera importante
estudos que relacionam os contos ao contexto no qual são reproduzidos e consideram o
narrador, a audiência, o tempo e o lugar como acionadores de sentidos. É nesse processo que
podem surgir os espaços para a ruptura.
E nessa análise dos poderes femininos representados nos contos pode-se indicar um
momento de ruptura marcado pelas condições de produção, do tempo, do lugar na
construção/desconstrução de um discurso. Em “A História de Uma Caranguejinha” há a
ausência da figura paterna e aparece a mãe como a única provedora da família, situação muito
comum na sociedade no final do século XX, o que denota uma mudança no modelo burguês
de núcleo familiar característico do século XVIII. Entretanto é mantido o discurso da mulher
perversa e cruel das versões tradicionais dos “Contos Maravilhosos”.
Um outro momento que pode significar uma descontinuidade na relação do “lugar” da
mulher ocorre quando, na História de uma Caranguejinha, o elemento superação de um
obstáculo não é realizado pelo herói (príncipe), como se nas narrativas russas, mas por
Maria; o que coloca a mulher não apenas como protagonista do enredo, mas de sua própria
história, embora o prêmio pela superação do obstáculo continue a ser o casamento. Mas não é
assim, num movimento entre assujeitamento e resistência, que se constitui o sujeito?
83
A situação acima parece refletir as palavras de Orlandi (2003) ao afirmar que o que o
sujeito diz está marcado por dizeres anteriores, mas isso não significa que os sentidos já estão
dados; “eles o construídos por\através de sujeitos inscritos numa história, num processo
simbólico”, (ORLANDI, 2003, p.51) marcados pelo inconsciente e pela ideologia. Isso quer
dizer que o indivíduo tem um papel ativo, determinante, na construção do sentido, mas é um
processo que escapa ao seu controle.
A presença da Caranguejinha, na história da narradora de Taperoá, demonstra, como
propõe Cascuda (2003), a presença de mentalidades, costumes, idéias que fazem do conto de
tradição oral um campo expressivo para a memória viva e a identidade das comunidades onde
são reproduzidos.
3.3- A mulher idealizada – Entre Amélias e Cinderelas
“Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher.
(Ataufo Alves e Mário Lago)
A figura materna está entre os mais representativos arquétipos do inconsciente
coletivo. Para Jung (s.d), um arquétipo é um símbolo das experiências humanas sicas que
são as mesmas para qualquer indivíduo em qualquer lugar.
A mulher vista como fonte do mal cria a necessidade de aprisioná-la ao casamento
fazendo surgir o arquétipo feminino: a mulher dócil, submissa, resignada e sempre bela ideal
para dominação masculina. Na Cinderela de Perrault, a protagonista é uma mulher que sofre
calada, submissa durante toda trama. Esse mesmo discurso se mantém nas versões orais.
Veja como é formada essa imagem das protagonistas:
A moça, para fugir às repressões da madrasta, refugiava-se junto à lareira e ficava
sempre suja de fulijem...
Cinderela reprimia as lágrimas, empunhava o pesado machado e dirigia-se ao jardim
(Cinderela, V. Perrault)
Mas pobrinha, e andava rasgada. Toda rasgada! E suja, com um pano marrado,
preto, marrado na cabeça...
84
Ela não gostava da Maria Borralheira porque era enteada dela, não é? Então ela
judiava com a Maria Borralheira. (v.o Anagé).
Ela resolveu botar Maria para fazer todo serviço da casa. Não dava nenhuma
liberdade a Maria de ir pra sala, de sentar na mesa.
Dormia assim também no borralho mesmo, que era quentinho, aquela cinza quente
que ela não tinha nem cobertor. (v.o Itapetinga)
O pai da menina, que era rico, morreu. E esta menina sofreu tanto, sofreu tanto...
Ficava fazendo a comida de todo mundo, descalça, Suja, sem tomar banho... (Maria
Borralheira, v.o Amargosa)
Pobre de Maria Borralheira ia lavar prato, limpar mesa e lavar roupa de duas irmãs...
fazia e acontecia. (Cinderela v.o Entre Rios)
A mulher botava ela no mau trato, pra ela fazer tudo. (A Gata Borralheira v.o Entre
Rios)
Existe uma representação feminina bem de acordo com o modelo idealizado por um
discurso de dominação masculina nas sociedades patriarcais. Esse mesmo discurso, talvez, até
certo ponto, esteja condizente com as condições de produção da narrativa de Perrault (a
França no século XVIII). Entretanto essas mesmas formações discursivas se mantêm nas
versões recolhidas no interior da Bahia no final do século XX.
Se se levar em consideração o final das histórias em que todas as protagonistas são
premiadas com casamento, pode se perceber a forte atuação do simbólico. Como propõe
Orlandi (2001), é importante a compreensão de como o objeto simbólico produz sentido,
como ele está investido de significados para e pelo sujeito. O jogo de sentidos criando, por um
lado o modelo de mulher ideal que é premiada no final, por outro lado com a punição das
más, autoriza o não dito que corresponde a: a mulher que quiser ser aceita deve ser boa,
submissa, frágil; são qualidades que constituem o conceito de mulher ideal. A falta de reação,
a resignação põe essas personagens em um estado de inércia que, não por acaso, remete a
outras narrativas em que a mulher fica “adormecida” esperando um “príncipe”. É o dito em
outros “lugares” produzindo sentido.
Os textos, portanto, reproduzem um arquétipo feminino idealizado por uma sociedade
de predominância masculina: a mulher frágil, acomodada, resignada, obediente. Quando
escreve sobre a mulher no mundo feudal, Duby (1995) diz que ela “mal tem corpo ou rosto” e
85
quando mencionada é sempre através do olhar masculino e cita algumas mulheres entre as
raras que se destacaram nesse período: Isolda, Heloísa e Maria Madalena. O autor alerta ainda
que elas se destacaram porque adotaram comportamentos que romperam com as conversões
sociais impostas na época o que as tornavam um ameaça para a imagem idealizada da mulher:
submissa, frágil e que aceitasse sua posição secundaria na sociedade. Considerações como
essas corroboram com a idéia discutida de que as mulheres execradas (as feias, as más, as
bruxas) simbolizam aquelas que não se submetiam e assim representavam uma ameaça à
dominação masculina.
Nos contos populares, a mulher idealizada, forjada ao gosto de uma ideologia
masculina, encontra a sua representação em delicadas fadas e ingênuas princesas. Além disso,
em concordância com a versão de Perrault, as narrativas orais aqui analisadas são marcadas
por “mocinhas” muito bonitas. Assim o ideal de beleza é associado a mulheres bondosas e
dóceis. A exceção se faz em A Gata Borralheira que o faz uma menção inicial à beleza da
menina, mas que pode ter se tornado bela pela ação mágica da fada: fademos. Quem
tantos bens nos fez de ser bonita como a noite de lua cheia”. Nas demais versões o
estereótipo de beleza é fundamental para a construção de seus personagens.
Com aquela tristeza toda e com aquela sujeira, o pano amarrado assim na cabeça,
mas era moça bonita! Bem bonita... (Maria Borralheira, v.o Anagé)
Maria era uma menina o mimosa, cabelos bons, clarinha, dos olhos claros, mas
uma criatura assim muito mimosa. (Maria Borralheira, v.o Itapetinga)
O senhor era casado, tinha uma filha muito bonita... Maria era muito bonita e com as
roupa, ela ficou mais bonita ainda. (Maria Borralheira v.o Amargosa)
Quando chegou aquela moça muito bonita, toda bem formosa, bem arrumada, o
príncipe se encantou logo. (Cinderela, v.o Entre Rios).
Por outro lado, às mulheres representadas como s, perversas sempre são
denominadas de feias. O estereótipo de beleza definidor da protagonista na versão narrada em
Itapetinga chama a atenção de forma especial porque aparece um discurso autorizado por
marcas lingüísticas, “cabelos bons”, “clarinha”, “olhos claros. A beleza de Maria estava em
oposição a da antagonista (madrasta) que “era preta, toda ruim, era gente mesmo grossa”;
indicando assim um padrão de beleza que se distancia do que é comum num país tropical e
mestiço, e se aproxima do padrão de beleza européia. Os enunciados autorizam a produção de
sentido marcado por uma ideologia de valorização da beleza branca. Para Silva (2004), a
86
ideologia do branqueamento tende a isolar a mulher negra das relações afetivas uma vez que
os homens brancos e negros, dirigidos por essa ideologia, unem-se cada vez mais a mulheres
de pele clara cujo padrão de beleza e moral é valorizada na sociedade brasileira.
Discutindo sobre a inserção da mulher na sociedade, Alves (2005) afirma que através
da beleza a sociedade irá construir três tipos de modelos comportamentais dos quais dois
modelos que serão aceitos e que vão dirigir a mulher para o recesso doméstico para a família e
para a reprodução, e um outro que será o controle das atitudes execrada pela a sociedade”;
ainda segundo a autora, “este último modelo será marginalizado e o comportamento nele
contido será, analogicamente, identificado com o comportamento demoníaco, naquilo que ele
contém de satânico, implicando a idéia de subversão de regras”(Alves,2005,p. 71).
Esses modelos definem papéis que se encontram configurados no discurso de muitas
formas de arte: literatura, escritura, pintura. Em Maria Borralheira (v.o. Amargosa), “uma
moça bonita” que corresponde à mesma fada da versão de Perrault, diz para Maria, ao tentar
consolá-la por ser excluída da ida ao baile:
Tem nada não, minha filha. Esta varinha vai fazer você valer.
Não se preocupe.
.
Demonstra uma concepção de que a mulher não vale por si mesma, a validação
feminina se pela beleza que juntamente com a bondade” serão as características
necessárias para a mulher ser aceita como ideal, principalmente, para o casamento. Os mitos
de beleza são forças muitas vezes usadas para a determinação e controle do comportamento
feminino. Na construção dos arquétipos femininos, uma representação é bastante simbólica: a
virgem Maria. As discussões de Macedo (2000), abordadas no primeiro capítulo, demonstram
que ela começou a ganhar popularidade no século XI, mas a trindade continuou a ser
masculina (Pai, Filho, Espírito Santo). A representação da virgem é recuperada simbolizando
a mulher devotada ao filho, casta, resignada, de amor incondicional, de dedicação extrema,
sofredora. Como foi abordado no item 1.2 do capítulo I, a igreja foi uma das instituições
mais implacáveis quanto aos discursos sobre a mulher produzidos\reproduzidos,
principalmente, a partir da Idade Média. Se por um lado o discurso religioso se encarregou de
endemonizar a mulher (na figura das bruxas, feiticeiras); por outro lado, para garantir o seu
controle, também o discurso de autoridade religiosa cria a mulher ideal simbolizada na
Virgem Maria que iria ganhar popularidade como “Nossa Senhora” e todas as diversas
denominações que ela assume nas práticas católicas. De origem hebraica, MARIA significa
87
senhora soberana; o nome indica, ainda, serenidade, força vital e vontade de viver. As pessoas
com esse nome “por vezes são forçadas a pedir auxílio para resolução dos problemas que têm
que enfrentar na vida e para agüentar a dor”
10
.
Seria coincidência? Diferentemente da matriz de Perrault, as protagonistas das
narrativas orais, aqui tomadas para análise, são denominadas de Maria, sempre sofredoras e
recorrendo à magia ao sobrenatural na solução dos problemas e para aliviar seus sofrimentos.
E, na versão de Anagé, ainda aparece Nossa Senhora na função de doador:
Ensinou como é que fazia, né, que rolasse quando chegasse numa casinha bem
pobrinha, que era a casa de Nossa Senhora. E tinha três meninos [...] e o outro que
ela ficasse, que ela colocasse no fogo e deixasse para a hora que Nossa Senhora
chegar, dar ... pra deixar Nossa Senhora, não é?
Nas mesmas narrativas a mulher que representa Nossa Senhora tinha três menino”,
que também não por acaso remete à trindade católica. Isso evidencia uma ação da memória
discursiva, de um já dito marcado pelo esquecimento.
Na análise de personagens femininas em romances brasileiros que mantêm alguns
estereótipos, Alves (2005,p. 123) comenta que “as mulheres que mostravam certas qualidades
obtinham o que desejavam” , isso remete às “heroínas” dos contos populares nos quais a
mulher que atende à idealização masculina, preferencialmente belas, bondosas e resignadas,
sempre são premiadas no fim da trama, ao passo que as “feias”, transgressoras são
severamente punidas. “A mulher descartada pela sociedade, a mulher-demônio” representa a
tentação e ameaça para a sociedade. que a mulher foi “criada” para o casamento, romper
com essa estrutura em busca de liberdade sempre gera conflito. Se a mulher infringe códigos
de comportamento, foge à esfera doméstica e do papel de mãe ela não aparece como modelo a
ser imitado.
As idéias discutidas por Macedo (2002) sobre a representação simbólica da Virgem
Maria, que ganha popularidade no século XI, são corroboradas com discussões como a de
Alves (2005) quando afirma que o papel a ser representado pela mulher já na modernidade foi
modelado a partir da representação da virgem Maria, “a menina mãe, casta e ingênua, a
mulher voltada a velar seu filho” (ALVES, 2005, p 48).
A mesma autora aborda essa questão ao discutir a mulher idealizada pelos escritores
na ascensão da burguesia.
10
in www.portalbrasil.net
88
Além de idealizar um perfil de mulher, completamente diverso da mulher “real”, eles
passaram o modelo para a mulher burguesa de três tipos de comportamento: a mulher-
anjo, a mulher-sedução – estas duas aceitas pela sociedade e a terceira, a excluída, a
mulher-demônio, a mulher-tentação [...] (ALVES, 2005, p. 124).
Continuando a discussão, a autora afirma que a mulher morena ou a mulher de cabelo
negro caracterizava as antagonistas que faziam uso de estratagemas para “tentar” o homem, e
que essa mulher invariavelmente sairia perdedora por utilizar-se de caminhos excusos. Essa
formação discursiva está presente também na versão de Maria Borralheira registrada em
Anagé, cuja madrastanão era muito boa. Preta, toda ruim, era gente mesmo grossa”.
Na história narrada em Entre Rios, um outro traço físico é relacionada ao caráter das
duas irmãs que rivalizavam com Maria:
Chegou na casa de Maria Borralheira, bateu na porta. Quem apareceu logo foi as duas
moça dos narigão. Cada nariz com a berruga bem em cima [risos]. Ai foram logo
dizendo: “o sapato é meu! O sapato é meu!”.
Em contrapartida, retomando aquelas idéias de Cascudo (2003) e de Brandão (s/d) ao
defenderem que as narrativas populares além de terem relação com as origens histórico
culturais trazem em si as circunstâncias sociais dos lugares por onde se reproduzem, é
possível perceber um momento de ruptura, da desconstrução de um discurso, ou seja, um
outro discurso, um outro dizer em A História da Caranguejinha:
Era uma vez uma senhora que tinha duas filhas, uma por nome Maria e outra por
nome Rosa. Só que ela gostava mais da Rosa e não gostava da Maria. Então,
justamente por isso, ela escravizava mais Maria.
Aqui as ações consideradas opressoras o são praticadas por uma madrasta como é
recorrente nas outras versões, mas pela própria mãe que o gosta da filha e a escraviza. O
que indica uma desconstrução do arquétipo materno no qual a mãe é símbolo de proteção e de
amor incondicional.
89
3.4 Lar Doce Lar
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
[...]
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
(Chico Buarque e Augusto Boal)
O arrivismo em defesa da família nuclear que, segundo Mendes (2001), é invenção
setecentista, passando forçosamente pela submissão, pelo conformismo, aliado àquela idéia de
que a mulher precisa de proteção e controle masculino, restando o casamento como sua única
possibilidade de ter uma função social, cria o campo propício para que a importância da
mulher se restrinja ao lar e que o seu papel seja o de cuidar dos afazeres domésticos.
A manutenção desse discurso é perceptível no conto “Cinderela”:
Sua mãe era tão hábil bordadeira que recebia encomenda de todas as soberanas da
redondeza.
Obrigou-a a fazer os mais humildes e pesados serviços da casa.
Nesses enunciados pode-se ler que as funções domésticas são atribuídas à mulher, e a
atividade fora do lar é atribuída ao homem. A mesma realidade se repete nas versões orais:
Maria era quem cuidava do serviço da casa; lavava prato, lavava roupa, fazia tudo;
cozinhava e tinha que dar conta de tudo. Maria não saia, era o dia todo, todos os
dias; o tinha feriado, entregada ao trabalho da casa. (A História da
Caranguejinha, v.o)
- Ô mainha! Aqui tem uma muler, mainha que é uma muler santa, que deu de
comer pra nós, lavou nossas roupa barreu a casa, colocou água nos pote e barreu
o terreiro, barreu a casa toda e boto de comer no fogo pra senhora! (Maria
Borralheira, v.o Anagé).
Ela resolveu botar Maria para fazer todo o serviço da casa. Não dava nenhuma
liberdade a Maria. (Maria Borralheira, v.o Itapetinga).
E esta menina sofreu tanto, sofreu tanto que a menina ficou como Maria Borraeia.
Ficava fazendo comida de todo mundo, descalça, suja, sem tomar banho... (Maria
Borralheira, v.o Amargosa).
90
Ao em vez de bolo, a rainha pegou a Cinderela, né, que era a Maria Borralheira e
botou na cozinha:
- Seu emprego agora é aí! (Cinderela, v.o Entre Rios).
A mulher botava ela no mau trato, pra ela fazer tudo em casa (grifo nosso) (A Gata
Borralheira, v.o Entre Rios).
As mulheres aparecem nos enunciados como aquelas que têm habilidades para exercer
as funções domésticas ou que são obrigadas a executá-las. Em contrapartida ao homem cabe o
trabalho para o provimento do lar.
Aparecem três situações: a mulher extremamente habilidosa nas tarefas do lar; a
mulher que naturalmente se sente atraída, interessada pela atividade do lar; e a mulher sendo
obrigada a desempenhar as tarefas do lar. O fato é que em todos os textos, a incumbência de
cuidar dos afazeres domésticos é sempre da mulher. Por outro lado, aos homens é atribuído o
dever de proteger a mulher e de providenciar o provimento da família. Como em Cinderela
(v.p) em que o pai “chega de uma longa viagem de negócios”; ou em Cinderela (v.o Entre
Rios) em que o rei “ta pensando que a madrasta tava tratando bem dela”, que demonstram que
o homem não tomava conhecimento do que acontecia no lar.
A memória discursiva atua nesses enunciados reproduzindo um discurso transformado
pela ação do “esquecimento” onde o discurso sobre atribuição de tarefas do lar às mulheres
aparece como natural e não como imposição.
Tais enunciados demonstram que, nos contos de fadas, mantém-se a estrutura familiar
centrada no homem que cuida de negócios, trabalha e ainda tem função de “proteger” a
mulher. A ela cabe ser submissa (como foi abordado no item 3.3 desse capítulo) e
desempenhar as tarefas cuidando do lar. Tais idéias definem o padrão da família burguesa que
se estabelece a partir do século XVIII, numa sociedade que submete a mulher ao poder
masculino a quem ela deve obrigações. Rosaldo (1979) não descarta a possibilidade de que as
diferenças sicas (força, resistência) tenham influenciado para as diferenças nas
características entre os sexos. Entretanto, considera surpreendente que “as atividades
masculinas, opostas às femininas, sejam sempre reconhecidas como predominantemente
importantes e os sistemas culturais dêem poder e valor aos papéis e atividades dos homens”
(idem, p. 35).
Sobre a orientação doméstica da mulher ser relacionada a sua função de mãe, a autora
afirma que:
As mulheres são absorvidas principalmente em atividades domésticas devido ao seu
papel de mãe. Suas atividades econômicas e políticas são restringidas pela
91
responsabilidade nos cuidados com os filhos e o enfoque de suas emoções e atenções é
particularista e dirigido para os filhos. Assim, Durkheim, por exemplo foi capaz de
especular que ‘há muito tempo atrás, a mulher foi retirada dos afazeres militares e
públicos e consagrada a vida inteira a sua família. (p.40)
Assim, o argumento da maternidade foi usado para se justificar a exclusividade das
tarefas “do lar” à mulher. Não se pode negar que a função de gerar e cuidar dos filhos possa
ser um dos fatores que influenciaram a sua posição social, mas esse aspecto não pode ser
tomado de forma demasiadamente simples, nem usada como argumento “natural” e, nas
palavras de Muraro (2002), deixar de reconhecer “as enormes ramificações” a que esse fato
implica e como culturalmente foi usado para tornar a mulher o “segundo sexo”.
Discutindo a domesticidade, Muraro (2002) atribui à chegada do capitalismo a
mudança ocorrida nas relações familiares e ao surgimento da dona de casa e da e dedicada
e sofredora, uma vez que, com o sistema capitalista, a família deixa de ser a unidade de
produção e reprodução, como era na família medieval, e passa a ser a unidade de reprodução
da força de trabalho. Como o mercado era incipiente, mal dava para os homens, assim, nessa
época, as mulheres são outra vez excluídas do domínio público.
Não obstante todas as transformações pelas quais a sociedade e a família têm passado,
o discurso da “mulher do lar” se mantém vivo na memória coletiva, e perpetuando uma
ideologia machista, mesmo que não corresponda mais a uma realidade absoluta, uma vez que
a mulher tem ocupado muitos espaços em diversas atividades “fora do lar”. Mesmo que se
tenha mudado uma prática social, algumas práticas discursivas continuam as mesmas.
Certamente essas reflexões remetem a uma sugestão de Rosaldo (1979, p. 59) para quem
As sociedades mais igualitárias não são aquelas nas quais homens e mulheres se
opõem ou mesmo competem, mas, sim aquelas onde os homens valorizam e
participam na vida doméstica do lar. Correspondentemente, são sociedades onde as
mulheres podem realmente participar em eventos públicos importantes.
A sugestão da autora parece propícia a uma discussão atual sobre as diferenças sexuais
e a distribuição das funções, uma vez que a mulher tenha ocupado as mais diversas funções na
sociedade, inclusive em atividades de produção, contudo a esfera das funções domésticas
continua sendo de responsabilidade da mulher. Homens que assumem funções domésticas
continuam sendo um fato inusitado, exótico; e o discurso da mulher “do lar” ainda sobrevive
no século XXI, está presente nas narrativas analisadas e guardam proximidade com os
discursos reproduzidos nas versões catalogadas por Perrault no século XVIII.
92
É ainda necessário lembrar que quando, no século XX, a mulher ocupa o mercado
de trabalho, além de exercer as atividades de dona-de-casa, no emprego ela ganha menos que
o homem para executar o mesmo trabalho. Era o que ocorria, por exemplo, nos Estados
Unidos, em 1911, quando quase oito milhões de mulheres “trabalhavam até tarde à noite, sem
ar, sem calefação, sem horas extras, continuamente de pé, sem intervalo de descanso para
comer” (Muraro, 2002, p.135).
Mesmo com as conquistas sociais e trabalhistas que a mulher logrou, não sem muita
luta, sua capacidade continua a ser vista como inferior à capacidade masculina. Nas palavras
de Muraro (2002, p. 189):
No final do século XX, pelo fato de o sistema capitalista ter feito mais máquinas do
que machos, nós mulheres conseguimos fechar um ciclo que começou a cerca de
dez mil anos com a divisão do privado e do público e a fabricação da conseqüente
estrutura psíquica competitiva que este corte originou. Hoje, no final do século XX,
acabamos com esta primeira dicotomia. Falta agora mudar a cabeça de homens e
mulheres!
Considerações como essas remetem à idéia de que não basta que se mudem as práticas
sociais, é necessário mudar as práticas discursivas. Principalmente ao se considerar que,
quando a mulher sai da esfera do estritamente privado para a esfera pública, ela o faz
carregada de preconceitos secularmente construídos. Há, portanto, uma necessidade de mudar
as mentalidades tanto do homem quanto da mulher, ela que é duplamente vítima uma vez que
o sentimento de inferioridade está marcado também em sua estrutura psíquica, ela também é
assujeitada pelo discurso de ideologia machista que está na memória coletiva.
93
3.5 Para sempre... Felizes para sempre
“Uma filha é uma preocupação secreta para seu pai
(...)
Ele teme que passe a flor da sua idade sem se casar”
(Eclesiástico: 42,9)
Ao lado da visão da mulher como um ser perverso, dotado de maldade, (abordado no
item I desse capítulo), cria-se a necessidade de que ela seja controlada por um homem, essa
idéia de dominação masculina é reforçada pela subjugação em algumas mitologias, como
sugeriu Muraro (1995), em que as deusas perdem o trono para os deuses.
Na sociedade patriarcal, o casamento é, portanto, a chave dessa dominação masculina,
o homem passa a ser o Senhor absoluto das vontades da mulher e até de seus pensamentos.
Como a mulher é vista pela ideologia masculina como um ser inferior, sua única
possibilidade de redenção é sua aceitação por um homem, assim ela teria uma função social:
esposa. A “defesa da família”, como bem discute Mendes (2001), é fortemente defendida no
período Setecentista, vai validar ainda mais a importância do casamento e será fundamental
na divulgação do modelo burguês de núcleo familiar. O afastamento, a função que marca o
início dos contos analisados, representa a desestruturação desse modelo e da ideologia que o
sustenta. Para Zilbermam (1982, p.16), é “um conceito de estrutura familiar privado,
desvinculado de compromissos mais estreitos com o grupo social”.
Para entender como ocorre essa validação do casamento nos contos de fadas é
importante retomar como se apresenta fixamente estruturada essa modalidade de texto.
Os contos de fadas sempre partem de um problema vinculado a realidade (como
estado de penúria, carência afetiva, conflito familiar) que desequilibra a tranqüilidade inicial;
desenvolvem-se em busca de soluções no plano da fantasia com a introdução de elementos
mágicos (fadas, bruxas, anões, duendes...); e a restauração da ordem se no plano final da
narrativa quando volta ao real.
A restauração da ordem no conto “Cinderela” (v.P) se dá com o casamento:
O príncipe estendeu-lhe a mãe e saiu com sua noiva, entre a alegria de todos...
Bem se pode imaginar a alegria do rei e da rainha, que imediatamente começaram
os preparativos para o casamento.
94
A restauração da ordem pelo casamento se mantém em todas as versões orais aqui
analisadas:
Quando o rei entregou a tesoura a ela, ela conseguiu colher o cacho de rosa muito
bonito, entregou a ele e, daí em diante, ela casou com o filho dele, com o príncipe,
e tornou-se princesa. (A História de Uma Caranguejinha, v.o)
Braçou Maria Borralheira, foi... casou, minha fia! Nesse dia que esse príncipe
casou com essa moça, minha fia, mas foi uma festa tão grande... (Maria Borralheira
v.o Anagé).
Maria foi viver no reinado, casou, teve filhos, e ate hoje vive lá numa grandeza com
o rei! (Maria Borralheira v.o.Itapetinga).
Maria casou com o príncipe, a outra ficou triste porque não deu pra ela... (Maria
Borralheira, v.o.Amargosa).
Chamou Cinderela, Cinderela veio. Quando Cinderela veio, que botou o pé, o
sapato entrou de vez... Foi uma festa. Levaram logo pro palácio, casou logo com
o rei... (Cinderela, v.o.Entre Rios).
Aí, quando ela saiu, foi com um pé no chão e o outro carçado. Aí casou com ele. (A
Gata Borralheira, v.o.Entre Rios).
Os textos são permeados por uma formação discursiva em que transparece o discurso
de que a única possibilidade de realização da mulher se da através do casamento que é sua
única oportunidade de redenção, de realização, por ser um ser frágil, (princesinha, pobre
menina) precisa ser amparada e protegida por um homem que surge como possibilidade,
única, de livrá-la da infelicidade e do sofrimento.
O príncipe declarou que agora Flora era a sua rainha e que seu único desejo seria
fazê-la feliz para compensá-la de todos os sofrimentos. (Cinderela, v.P)
Tais enunciados incorporam filiações de sentido que remetem a memórias não do
que está no texto, mas em relação à exterioridade e a historicidade. Os dizeres que finalizam
os contos criam efeitos de sentido que equivalem a formações como a solução para os
problemas da mulher é o casamento, ou ainda, a mulher precisa ser amparada por um
homem. Esses sentidos equivalem ao não-dito o que poderia ser dito e não-foi; para Orlandi
(2001), no dizer há sempre um não-dito que o sustenta. Além do não-dito, nessas formulações
95
está presente o já-dito, que são sentidos já produzidos por outros sujeitos em outros “lugares”.
Como argumenta a autora, as palavras não são do sujeito que as enuncia, elas significam pela
história e pela língua, o “esquecimento” age nesse processo fazendo o sujeito ter a ilusão de
que são suas as palavras, a origem do que diz.
Em todas as narrativas, as protagonistas sofrem caladas e os momentos de alegria ou
felicidade só acontecem a partir do encontro com o “príncipe encantado”; a mulher sofre
resignadamente esperando uma recompensa final, que invariavelmente é um casamento. Os
discursos presentes nos contos acentuam uma ideologia de predominância masculina e
autorizam um efeito de sentido de que a vida da mulher faz sentido quando é aceita pelo
homem, a existência feminina faz sentido a partir do casamento, é quando a vida começa
efetivamente. Esses discursos consolidam a natureza feminina como dependente, frágil,
emotiva, instintivamente maternal e esvaziada de sentido, imagens que estão construídas
nos discursos em outros textos, a exemplo dos indicados por Alves (2005) ao discutir a
representação feminina em obras da literatura brasileira.
A mulher logo era retirada dos salões para desempenhar o seu papel de esposa,
vivendo para o marido e cuidando dos filhos, papel plasmado pela ideologia burguesa
e reforçado pela igreja, à imagem da Virgem Maria, simbolizava abnegação, amor e
altruísmo. Sua rápida incursão na esfera pública estava restrita aos primeiros anos da
juventude. ( Alves,2005,p.90)
Essa incursão na esfera pública até a juventude era simbolicamente marcada pelo
“debutar”, que significava que a mulher já estava pronta para o casamento.
É justamente esse modelo burguês de casamento tão difundido como essencial para a
mulher que Engels (apud Perrot, 1992) diz ser “a chave de opressão da mulher”. Como já foi
dito, a Idade Media não criou a submissão feminina nem a encerra; o Renascimento, que
continua a construir estereótipos femininos, não parece ter trazido muita luz para a condição
feminina, ela é reduzida ao “rainha” do lar, cuja feminilidade é definida pela pureza, a
piedade religiosa e a submissão.
Também aqui pode se dialogar com Alves (2005, p.89), que analisa a mulher
idealizada pelo discurso dominante veiculado pelos romances, já na Idade Média:
O comportamento idealizado da mulher era traduzido pelos olhos baixos, cabeça
inclinada para o chão, gestos comedidos e silenciosos que representavam a jovem
delicada, casta, o verdadeiro anjo à espera de mãos fortes e preparadas que, através do
casamento, delineariam seu caráter, transmutando-a em outra representação (também
construídas), que era a imagem e o papel de mãe de família.
96
Muraro (2002, p. 172) também lembra que toda década de cinqüenta é bombardeada
com “ideologias baseadas em Freud de que a mulher verdadeira é a dona-de-casa e a boa mãe,
isto é, aquela que não compete com o homem, a que não se masculiniza”.
A mesma autora aborda ainda a situação da mulher na China antes Revolução, que era
pior do que a mulher russa, que o regime socialista sempre temeu o movimento feminista,
as poucas feministas que existiam na (ex) União Soviética foram presas ou exiladas. Na
China, a submissão ao pai ou ao marido fazia com que a mulher preferisse o suicídio ao
casamento que era sinônimo de escravidão.
É interesse de uma sociedade de predominância masculina (no poder) que a mulher
seja reservada pura e simplesmente para o casamento. Essa ideologia é predominante em
todos os textos e, em que pese todas as conquistas que a mulher já galgou, essa ideologia
sobrevive e continua a produzir discursos que ainda colocam a mulher como dependente e
submissa ao poder masculino. É preciso atentar para o fato de que esses discursos são
mantidos, produzidos/reproduzidos em narrativas reproduzidas no final do século XX, ainda
assim, elas sustentam formações discursivas presentes nas narrativas catalogadas por Perrot
no século XVIII.
Em Cinderela (v.P.), toda “desgraça” ocorre porque o pai fazia longas viagens
deixando Cinderela sob os cuidados exclusivos da madrasta.
Nesse momento entrou o pai de Cinderela, de volta de uma de suas viagens de
negócios.
O enunciado cria o sentido de que a mulher precisa de um homem ao seu lado, por ser
frágil e incapaz de cuidar de si mesma, dependendo de auxílio e da proteção masculina. As
formulações aqui evidenciadas sustentam o discurso de que o lar, o casamento constitui o
“lugar” ideal onde a mulher deve ser enclausurada, a sua função social deve ser a de esposa e
suas habilidades devem estar voltadas para as tarefas domésticas. Ela tem seu papel plasmado
pela ideologia reforçada pelo discurso religioso à imagem abnegada, dedicada, submissa, a
exemplo da Virgem Maria.
Na versão oral de Taperoá fica bem evidente o discurso do casamento como meio de
salvação para a mulher:
Isso ele tinha feito as promessas antes. Se fosse uma moça, casaria com o filho
dele. Se fosse uma senhora, ganharia uma fortuna muito boa. E se fosse um rapaz,
também ganharia uma fortuna muito boa.
97
Nessa formulação, o dito “se fosse senhora” ou “se fosse um rapaz” quem conseguisse
vencer o desafio proposto pelo rei (cortar o cacho da roseira), autoriza a leitura de que aos
rapazes não se destina o casamento como prêmio, como “provedor” que são, o prêmio é
“constituir” fortuna, ser bem sucedido financeiramente. Na versão registrada em Amargosa, o
desejo de casar não é colocado simbolicamente como na versão de Perrault; aqui é
textualmente marcado: “ela andava doidinha para casar”. Para a realização do o sonhado
desejo é colocado um obstáculo a ser vencido: “eu caso com ela se meu porco obrar um
par de aliança”. Ao que a mulher não mediu esforços para cumprir e, usando de astúcias e
artimanhas, fez as alianças aparecerem onde foram exigidas e casou-se com o viúvo.
As ações das personagens fazem lembrar a necessidade de mudanças de mentalidades;
secularmente assujeitada pelo discurso do casamento como validação, a mulher, mesmo no
terceiro milênio, continua a repetir o discurso do fazer qualquer esforço para “conquistar” a
aprovação masculina. Essa ideologia está refletida nas estatísticas que indicam o alto índice
de mulheres que sofrem violência do próprio marido.
Discutindo sobre A Mulher, a Cultura e a Sociedade, Rosaldo e Lamphere (1979)
fazem uma análise crítica da universalidade da subordinação feminina, propondo que é um
produto cultural e não uma condição necessária das sociedades, portanto, passível de sofrer
mudanças. Defendem ainda que “a posição da mulher não é biologicamente determinada”, e a
sua condição de mãe (a que à luz e amamenta os filhos) o pode ser justificativa para o
seu status secundário; as conseqüências culturais e sociais da maternidade, a mulher ser
considerada como esposa e mais especificamente como mãe, ter suas atividades limitadas
pelas responsabilidades no cuidado com os filhos, ter sua vida definida em termos das funções
reprodutoras” (ROSALDO e LAMPHERE, 1979, p.50) são todas construções humanas
passíveis de serem mudadas.
As mesmas autoras sugeriram, ao seu tempo, que à mulher dirigir suas ões e
“contestar todos os estereótipos complexos assumidos pela mulher para ser ‘natural’”
(ROSALDO e LAMPHERE, 1979, p.31), o que, talvez, atualmente, não seja mais bandeira
necessária uma vez que o status feminino vem sofrendo mudanças à medida que a mulher
participa igualmente com o homem do mercado de trabalho. Entretanto, os discursos sobre a
mulher, em alguns aspectos, parecem o ter sofrido muito as rupturas que geram
possibilidade de mudança. O que foi socialmente construído pode ser socialmente
transformado. E os discursos sempre são socialmente construídos e se materializam na relação
da língua com a ideologia.
98
4. Considerações Finais
Ao se estudar o conto popular de tradição oral, de se ter consciência que é um
objeto com suas especificidades pela sua própria natureza literária, etnográfica, lingüística e
histórica, considerando também que durante muito tempo o que houve foi uma ausência dessa
história; talvez devido a sua inegável universalidade tenha se dado pouca importância em
definir sua origem ou a quem se destina.
Entretanto, são também inegáveis os valores que permeiam os contos populares,
valores esses que durante muito tempo foram tomados como legítimos. Portanto devem ser
abordados sob uma perspectiva que busque uma subversão, uma descontinuação dos
ensinamentos e padrões de comportamento ali definidos, e muitos deles estão relacionados a
representações femininas.
No conjunto dos textos analisados nesse trabalho se comprova a memória de uma
tradição trazida pelos colonizadores que ainda resiste às inovações tecnológicas. Ao tempo em
que também traduz formas de pensar, viver e se relacionar das comunidades onde são
narrados e dos sujeitos que os reproduzem.
As versões orais que constituem o corpus desse trabalho apresentam elementos
estruturais e funções que permitem associá-las à Cinderela, versão registrada por Perrault. As
protagonistas desses contos são mulheres órfãs que sofrem com as ações de uma madrasta,
invariavelmente recebe ajuda de um elemento mágico para superar a impossibilidade de ir ao
baile quando perde o sapato que permitirá seu encontro com o príncipe e o conseqüente
casamento que simboliza a felicidade e o fim do sofrimento.
A exceção a essa estrutura do enredo ocorre no conto A História de uma
Caranguejinha em que a jovem não é órfã e é a mãe quem a oprime. Também na temática do
ajudante mágico não aparece a fada da versão escrita nem a vaca das outras versões orais, mas
a presença da caranguejinha mágica causando uma quebra da seqüência e provocando o
apagamento dos elementos baile e perda do sapato. Assim, é uma roseira que surge no lugar
da caranguejinha interrada que permitirá o encontro com o príncipe. Mesmo que se possa
dizer que essa versão apresenta uma estrutura reorganizada, ela ainda se enquadra no “ciclo da
Borralheira” (Cinderela).
Em todas as versões, o casamento é o único objetivo da protagonista, aspecto esse que
restringe a mulher aos papéis sociais de esposa e mãe. Aparecendo como o único meio de
realização feminina, o casamento figura nessas narrativas como um símbolo do domínio
99
masculino. É o homem o detentor do poder; a mulher é renegada às funções domésticas,
estando seus poderes (ou se poderia dizer influências) associados à capacidade de enganar, de
influenciar, ou associados ao sobrenatural. Essas narrativas revelam uma ótica patriarcal ao
representar a mulher ideal como submissa, acomodada; ao passo que as transgressoras são
retratadas como más, necessitando do controle masculino, reproduzindo discursos
historicamente construídos sobre a mulher e seu “lugar” na sociedade.
Dentre as representações femininas apresentadas nesse trabalho, pode se perceber que
enquanto a mulher branca, submissa, bondosa representa o modelo idealizado, as mulheres
negras que aparecem nas narrativas são personagens s, invejosas e feias apresentando
aspectos sicos grotescos, desproporcionais relacionados a formas animalescas. As
considerações feitas por Silva (2004) acerca da estereotipia do negro ser uma tentativa de
negar-lhe seus direitos também cabe aos estereótipos relacionados à mulher como forma de
mantê-la submissa ao poder masculino.
Os contos populares (nas versões escritas) sempre foram usados como instrumentos
pedagógicos quando recolhidos na França e ainda hoje. Portanto é necessário se pensar novas
posturas no trabalho com esses textos, repensar questões e, sobretudo, há muito que se
desconstruir pensamentos, idéias, enfim discursos que ainda colocam a mulher num “lugar”
construído por um poder masculino que a inferioriza e muitas vezes a mantém “escrava” de
estereótipos, que foram também por ela internalizados com o objetivo de inferiorizá-la
porque é esse o trabalho dos estereótipos.
Acredita-se que a escola é o lugar por excelência privilegiado para se desconstruir
esses discursos, e que seria importante desenvolver trabalhos que levem o professor em sua
ação pedagógica a ter condições de utilizar os contos em sala de aula de forma crítica,
transformando-o em instrumento de desenvolvimento da consciência crítica que possam
evidenciar os discursos que estão emaranhados por entre esses enredos.
Esses contos apresentam significativas mudanças de elementos relacionados aos
aspectos socioculturais que são incorporados de cada região onde são reproduzidos. E nessa
análise nota-se que essas recriações constantes, também, possibilitam mudanças de alguns
discursos, tênues é verdade, mas apresentam. É o caso da protagonista de História de uma
caranguejinha que tem ela mesma que superar um obstáculo; está a desconstrução do
estereotipo da mulher acomodada e incapaz; embora o prêmio pela superação do obstáculo
seja o casamento, o que demonstra a manutenção de um discurso. Ou ainda quando, na
mesma versão, a mãe aparece como a provedora, uma vez que ausência da figura do pai.
Assim a mulher assume o “lugar” de chefe em todo seu significado a ponto de ser ela a
opressora da própria filha.
A máxima que diz “quem conta um conto, aumento um ponto” (ou diminui?)
demonstra como as narrativas populares são campo fértil para a manutenção de discursos -
que estão ligadas a um contexto sócio-histórico-ideológico - ou transformação de outros, uma
vez que estão fortemente relacionadas ao tempo e ao lugar onde são narradas.
Vale ressaltar que para a AD a base da interpretação é a constituição de sentido. Se
dois diferentes analistas\leitores tomarem o mesmo objeto para análise podem extrair dele
diferentes sentidos, sem que um invalide o outro. Fazer análise do discurso não é fazer juízo
de valores. Ao analista interessa perceber o discurso que subjaz à superfície do texto, interessa
perceber a atuação da memória coletiva que segue produzindo\reproduzindo discursos através
da ação do “esquecimento”.
Por fim, resta dizer que o ato de narrar e ouvir histórias sempre provocou
encantamento inestimável que marca a experiência humana em diversas épocas e culturas, e
está ligado a uma das mais antigas formas de educação e entretenimento da humanidade.
Narrar histórias é preciso, e preciso também é se perguntar: o que essas histórias contam?
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