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Universidade Federal do Rio de Janeiro
A PRÁTICA PSICANALÍTICA COMO
CRIAÇÃO DE UM SI
Mariana de Toledo Barbosa
2007
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UFRJ
A PRÁTICA PSICANALÍTICA COMO
CRIAÇÃO DE UM SI
Mariana de Toledo Barbosa
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de
Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Teoria Psicanalítica.
Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Rio de Janeiro
Janeiro/2007
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A PRÁTICA PSICANALÍTICA COMO CRIAÇÃO DE UM SI
Mariana de Toledo Barbosa
Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por:
_______________________________________
Presidente, Profa. Dra. Maria Teresa da Silveira Pinheiro
_______________________________________
Profa. Dra. Regina Herzog de Oliveira
_______________________________________
Profa. Dra. Josaida de Oliveira Gondar
Rio de Janeiro
Janeiro/2007
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Barbosa, Mariana de Toledo
A prática psicanalítica como criação de um si.
Mariana de Toledo Barbosa. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2007
xi, 127 f. ; 29,7 cm
Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica, 2007.
Referências Bibliográficas: f. 116-127.
1. Prática psicanalítica 2. Constituição subjetiva 3. Criação de um si
I. Pinheiro, Maria Teresa da Silveira. II. Universidade Federal do Rio
de Janeiro/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica. III. A prática psicanalítica como criação de um si.
5
Ao meu avô Toledo
6
Agradecimentos
À minha orientadora, Maria Teresa da Silveira Pinheiro, pelos ensinamentos, pela
confiança e pela paciência.
À Regina Herzog de Oliveira e à Josaida de Oliveira Gondar, pelas contribuições
valiosas.
Ao grupo de pesquisa do NEPECC, pelo estudo e convivência.
À minha família, pelo apoio. Principalmente aos meus pais e avós.
Ao Camilo, por estar sempre perto.
Aos meus padrinhos, pela dedicação.
Aos amigos, por me tirarem do trabalho, e me levarem para a diversão. Entre os muitos:
Laura, Maria, Daniel e Renata.
Aos meus colegas de pós-graduação, por compartilharem do mesmo sofrimento.
Especialmente à Luna, Daniel, Diane, Bianca e Fernanda, pelas ajudas e trocas ao longo
desse percurso.
Aos professores, que me proporcionaram aulas maravilhosas durante o mestrado.
À Sherrine, pelos livros que herdei e pelo filho, Diogo, amigo tão querido.
À CAPES, pelo fornecimento da bolsa que tornou possível que eu me dedicasse
exclusivamente ao desenvolvimento desta dissertação.
7
“Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que,
sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos,
energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências,
e tudo o mais que na impermanência se indefine?”
(Guimarães Rosa).
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Resumo
A PRÁTICA PSICANALÍTICA COMO CRIAÇÃO DE UM SI
Mariana de Toledo Barbosa
Orientadora: Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Teoria Psicanalítica.
Esta dissertação partiu da hipótese de que a prática psicanalítica pode ser
concebida como criação de um si. No desenvolvimento dessa pesquisa, foi feito um
levantamento bibliográfico nas obras de três autores, Freud, Ferenczi e Winnicott, para
cada um dos quais foi dedicado um capítulo. O recenseamento realizado levou à
organização de cada capítulo em três eixos de exposição: o primeiro, sobre as propostas
clínicas e as estratégias técnicas; o segundo, acerca da noção de subjetividade; e o
terceiro, voltado para a averiguação da existência, e a explicitação das características, da
criação de um si, no âmbito do arcabouço teórico de cada um dos autores principais.
A questão que guia este trabalho tem como pano de fundo a constatação de que,
na contemporaneidade, muitos pacientes que recorrem ao tratamento analítico se
constituem subjetivamente de forma bastante diferente dos pacientes neuróticos, que
serviram como parâmetro a Freud quando este criou o saber psicanalítico e sua prática
clínica. Tais sujeitos da atualidade seriam melhor compreendidos por uma
9
metapsicologia distinta, nomeada por alguns de metapsicologia da melancolia. Uma
prática psicanalítica mais compatível com o acolhimento desses pacientes é aqui
apresentada sob a denominação de criação de um si, sendo este conceito de “si”
discutido em contraste com os conceitos de “eu”, de “selfe de “ser”. As peculiaridades
dessa abordagem clínica são a atenção ao sofrimento narcísico e a busca pela conquista
da possibilidade do paciente criar sua própria subjetividade, a partir do contato com o
mundo.
Palavras-chaves: dissertação; psicanálise; prática psicanalítica; constituição subjetiva;
criação de um si.
Rio de Janeiro
Janeiro/2007
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Résumé
LA PRATIQUE PSYCHANALYTIQUE COMME CRÉATION D’UN SOI
Mariana de Toledo Barbosa
Directrice de Thèse: Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Résumé de la Dissertation de Maîtrise soumise au Programme de Deuxième
Cycle en Théorie Psychanalytique, à l’Institut de Psychologie de l’Universtité Fédérale
de Rio de Janeiro - UFRJ, faisant partie des conditions nécessaires à l’obtention du titre
de Maître en Théorie Psychanalytique.
Cette dissertation est née de l’hypothèse selon laquelle la pratique
psychanalytique peut être conçue comme création d’un soi. Au cours du développement
de ce travail de recherche, on a procédé à un relevé bibliographique des oeuvres de trois
auteurs, Freud, Ferenczi et Winnicott, et dédié un chapitre à chacun d’entre eux. Le
recensement réalisé a conduit à l’organisation de chaque chapitre sur trois axes
d’exposition: le premier, quant aux propositions cliniques et stratégies techniques; le
second, au sujet de la notion de subjectivité; et le troisième, voué à la vérification de
l’existence et à l’explicitation des caractéristiques de la création d’un soi, au sein de la
théorie de chacun des trois auteurs principaux.
La question qui guide ce travail a pour panneau de fond la constatation du fait
que, dans la contemporanéité, beaucoup de patients qui font appel au traitement
analytique ont une constitution subjective bien différente de celle des patients névrosés
qui ont servi de paramètre à Freud lors de la fondation du savoir psychanalytique et de
l’élaboration de sa pratique clinique. Ces sujets de l’actualité seraient mieux compris
11
par une métapsychologie distincte, nommée par certains métapsychologie de la
mélancolie. Une pratique psychanalytique plus adéquate à l’accueil de ces patients est
présentée ici comme conception de la création d’un soi. Ce concept de “soi” est discuté
en contraste avec ceux de “je”, de “self” et d’ “être”. Les particularités de cette approche
clinique sont l’attention portée à la souffrance narcissique et l’essai d’aboutir à la
conquête, par le patient, de la possibilité de créer sa propre subjectivité à partir du
contact avec le monde.
Mots-clés: dissertation; psychanalyse; pratique psychanalytique; constitution
subjective; création d’un soi.
Rio de Janeiro
Janvier/2007
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Sumário
INTRODUÇÃO: A prática psicanalítica como criação de um si....................................12
CAPÍTULO 1: Freud e o remodelamento do eu..............................................................24
As técnicas.......................................................................................................................24
O eu..................................................................................................................................33
A criação de um si...........................................................................................................39
CAPÍTULO 2: Ferenczi e a fluidez do caráter................................................................49
As experimentações técnicas...........................................................................................49
O caráter..........................................................................................................................66
A criação de um si...........................................................................................................75
CAPÍTULO 3: Winnicott e o tiquetaquear da personalidade..........................................79
Comentários técnicos.......................................................................................................79
O eu, o self, o (núcleo do) ser e o si.................................................................................93
A criação de um si.........................................................................................................107
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Um horizonte clínico....................................................112
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................115
13
Introdução:
A prática psicanalítica como criação de um si
O que move este trabalho é a hipótese segundo a qual a prática clínica da
psicanálise pode ser pensada como um processo de criação de um si
1
. Esta hipótese será
desenvolvida por meio da investigação da obra de três autores da psicanálise: Freud,
Ferenczi e Winnicott. Estes, além de darem margem ao entendimento de suas práticas
sob a perspectiva da criação de um si
2
, também discorrem sobre o tema, cada qual à sua
maneira e com o subsídio de sua própria terminologia. O procedimento será a revisão
bibliográfica das contribuições teóricas dos referidos autores acerca da prática
psicanalítica e da constituição subjetiva, obedecendo a um recorte das considerações
que se prestarem a um melhor delineamento do assunto desta dissertação. Todavia,
mostra-se igualmente interessante estender a leitura a escritos dos mesmos autores sobre
outras matérias, assim como travar um rápido diálogo com dois filósofos Henri
Bergson e Gilles Deleuze. O estudo de Bergson sobre o tempo em Matéria e memória
(1896), oferecerá os conceitos de virtual, atual e caráter, para facilitar o estabelecimento
1
Um si será definido mais adiante.
2
A criação de si é um tema da terceira fase da produção do filósofo Michel Foucault, sobre a ética. A
ética, para ele, é definida como a forma de se conduzir, de agir, de ser, de se relacionar consigo. A relação
consigo é construída por meio de práticas que são denominadas tecnologias do eu, ou tecnologias de si,
dependendo da tradução. Tal modalidade de tecnologia é acionada para dar conta do papel do próprio
sujeito na construção de si, uma vez que, na fase anterior da obra foucaultiana, a respeito da genealogia
do poder, este aspecto da formação subjetiva foi freqüentemente negligenciado em benefício de uma
perspectiva do sujeito como resultado da atuação da rede social de poderes e saberes.
Com a abordagem da ética da existência, as formas de subjetivação passam a ser fruto da conjugação de
dois termos, das tecnologias de poder e das tecnologias de si. Sendo assim, pode-se notar, neste período
da obra de Foucault, a conceituação de uma subjetividade que é produzida por relações de saber e poder,
e por uma ética. Está presente a intenção de dissolver uma concepção de sujeito universal (Birman,
2000, p. 81-88), sendo a historicidade (Foucault, 1980, p. 205) o que assegura a multiplicidade de
subjetividades e a singularidade de cada conformação subjetiva, sempre levando-se em consideração o
ambiente cultural que a circunda. uma criação de subjetividades, que estão sempre em devir (Ortega,
1999, p. 63), sendo perpetuamente transformadas nesta relação consigo mesmas e com a rede social de
saberes e de poderes. Foucault (1984, p. 275) substitui uma substância subjetiva por uma forma subjetiva,
que não cessa de se moldar e remoldar.
Sua proposta com a criação de si é instituir, desde dentro de um momento histórico rico em determinantes
atravessado por saberes e poderes uma existência diferente, criada em uma relação consigo, mas
também na relação com esse meio. Todo o seu estudo se voltou para compreender de que maneira o novo
pode surgir na subjetividade, quando esta se relaciona consigo mesma e com o ambiente à sua volta.
Ainda que haja possíveis aproximações entre a ética de Foucault e a prática psicanalítica como criação de
um si, a análise de tal relação extrapolaria os objetivos dessa dissertação. A criação de um si de que se
trata aqui não coincide com a criação de si foucaultiana, dentre outras razões, porque abdica da
perspectiva genealógica dos modos de subjetivação, em prol de uma restrição à compreensão de algumas
subjetividades contemporâneas, pelo viés da clínica.
14
de uma distinção entre self, si e eu, no último dos três capítulos. Igualmente neste
capítulo, será promovida uma breve discussão entre Deleuze e Winnicott, a respeito dos
temas da criação e da dimensão em que esta acontece. Ademais, o pensamento de
Deleuze também auxiliará na construção da noção de um si, que figura nesta introdução.
O objetivo dos levantamentos é averiguar se elementos suficientes, nos universos
psicanalíticos mapeados, para afirmar a existência de uma clínica enquanto criação de
um si. Nesse esforço, contar-se-á com o auxílio de uma pequena, mas fundamental,
literatura suplementar.
Antes de precisar a exposição geral do problema, faz-se premente enunciar duas
ressalvas. A primeira tem como função sublinhar que a interpretação da psicanálise
enquanto criação de um si não é candidata ao posto de verdadeira psicanálise, ou de
melhor psicanálise. Serve apenas para se somar a outras tantas interpretações,
respeitando a pluralidade do saber psicanalítico, assim como a multiplicidade dos
campos de atuação deste saber. A segunda ressalva diz respeito ao procedimento e visa
esclarecer que não se pretende uma apresentação minuciosa dos preceitos ou uma
fidelidade estrita aos autores. O intuito é utilizá-los como cúmplices deste projeto de
tomar a psicanálise como criação de um si, elegendo entre suas articulações conceituais
e nocionais, componentes que enriqueçam o desdobramento dessa questão.
Evidentemente, haverá o cuidado de se tentar posicionar os autores a favor do que se
está advogando, sem que seja deflagrada uma contradição fundamental com o conjunto
maior de suas produções teóricas.
O contexto de surgimento deste estudo é a prática psicanalítica atual, na qual se
observa o aumento exponencial de certas formas de subjetivação
3
, que vêm incitando os
psicanalistas a reverem suas perspectivas teórico-clínicas. Esses pacientes quase não
produzem atos falhos, não costumam recordar seus sonhos, e nunca, ou apenas muito
raramente, fazem uso de associações. A relação que têm com o discurso revela o projeto
de uma linguagem unívoca, sem lugar para a polissemia e a ambigüidade, que, se usada
corretamente, permitiria, através de uma descrição exaustiva, que o interlocutor
conseguisse ver do que se está falando. As imagens vão se delineando nos relatos de
3
Forma de subjetivação é uma expressão foucaultiana, pertencente à sua abordagem sobre a ética, que
concerne a uma concepção de subjetividade que escapa ao essencialismo e se determina historicamente. A
adoção dessa expressão cumpre, neste trabalho, a função de livrar a subjetividade de um âmago essencial
ou ainda, de uma ordenação estrutural. A subjetividade é aqui pensada como um processo em perpétua
formação, uma forma que se subjetiva ao longo da história social e pessoal. Emprestando-lhe uma
tonalidade psicanalítica, a forma de subjetivação determina o modo de cada um se organizar e se
relacionar com o mundo. Modo de vida, modo de ser e modo de subjetivação são sinônimos dessa
expressão.
15
maneira que a atenção flutuante do analista é trocada por um testemunho quase visual
das cenas. A narrativa voltada para a apresentação da história subjetiva produz quadros
de imagens, que, da perspectiva dos pacientes, são evidentes, mas, para quem ouve,
soam estranhamente desconexas, como se não houvesse elos de ligação entre elas. Na
mesma lógica que os leva a atribuir obviedade aos seus discursos, a imagem própria é
sentida como se tudo dissesse, bastando que se olhasse para eles por um instante para
perceber como são, de que sofrem, o que pensam, etc. Essa transparência que percebem
em si tem como uma de suas conseqüências a invasão muito penosa do olhar do outro,
que parece não cansar de perscrutar, sem qualquer barreira, suas subjetividades. Por
isso, precisam estar sempre atentos ao que os outros esperam deles e têm muita
dificuldade em se desprenderem dessa preocupação a ponto de se sentirem espontâneos.
Contudo, é uma situação consideravelmente diferente da paranóia, pois não se trata de
uma construção delirante a respeito da perseguição que lhe impingem as outras pessoas,
mas de uma fragilidade narcísica tal, que lhes faz sentirem-se sempre aquém das
expectativas, e preferirem esconder essa insuficiência do mundo, tarefa que, da
perspectiva deles, é impossível, por causa da transparência que atribuem às suas
imagens narcísicas.
A história subjetiva, contada em quadros que nem sempre se sucedem de forma
clara, aponta uma experiência do tempo também peculiar: de um tempo que está sempre
picotado, sem um encadeamento muito organizado dos acontecimentos. Não se trata de
uma confusão temporal completa, tal qual ocorre em algumas psicoses, mas de eventos
contados como se fossem retalhos soltos, que dão a sensação no ouvinte de que, para
compreendê-los, seria preciso empreender uma costura, ligá-los com uma linha. Esse
desencontro entre os momentos, que são expostos como peças autônomas que não se
reúnem na confecção de um todo, denuncia como as etapas temporais compartilhadas
pelo senso comum – o passado, o presente e o futuro – estão desvinculadas entre si para
esses pacientes. O futuro não é um tempo em aberto, a ser construído por um presente.
O passado não representa mais do que o instante em que começaram as coisas que
continuam a ter lugar numa repetição previsível no presente. Pressupõe-se a
perpetuidade de certos arranjos supostamente imutáveis, e não se reconhece qualquer
possibilidade de realizar ações que impliquem em transformações substanciais na
própria vida, como se o tempo não pudesse apresentar qualquer surpresa, e tampouco o
sujeito pudesse mudar a sua história. Disso deriva a dificuldade de fazer projetos, ou de
16
empreender iniciativas que tornem esses projetos viáveis. As experiências desses
sujeitos parecem intocadas pelo ritmo do tempo.
Outra característica central é a relação com o corpo. Este não tem uma ligação
evidente com a subjetividade, sendo seu funcionamento, por vezes, percebido como um
verdadeiro mistério. A localização da subjetividade no corpo não se faz completamente,
e este pode ser tomado como um outro espaço, distinto do espaço subjetivo: é muitas
vezes tratado como o corpo, e não meu corpo. Mesmo sensações físicas de dor podem
ser difusas ou dificilmente localizadas. Não é a mesma difusão que o movimento
migratório das linhas do desejo inscreve no corpo histérico, mas, justamente, quase não
movimento; é um corpo esvaziado de desejo, e operando segundo uma lógica
absolutamente desconhecida, que mantém a distância entre o sujeito e o corpo. A
unidade corporal, ainda que exista, é bastante inconsistente, estando permanentemente
ameaçada. Por isso, às vezes é necessário manter uma rigidez do eu, que impede,
porém, que se entre num contato criativo com o mundo, o que contribuiria para o
preenchimento dessa unidade narcísica, de atributos, e mesmo de desejo, e a manteria de
pé por períodos mais prolongados.
Em termos gerais, o que atormenta esses pacientes é uma constituição narcísica
muito instável, que leva a essas características como a experiência da linguagem, do
tempo e do corpo, tal como pontuadas acima. A hipótese é que o narcisismo, que deve
ser a composição de uma unidade do eu, cuidadosamente enriquecida de atributos por
quem quer que tome conta desse bebê na fase inicial de sua vida, encontrou fortes
obstáculos, o que redundou numa imagem narcísica que não se sustenta no tempo,
também porque o corpo, que daria o contorno a essa unidade, não está em relação direta
com a subjetividade. O sujeito que não se lembra de ter sido sua majestade, o bebê para
ninguém, de ter proporcionado aos pais ou cuidadores a reedição de seus narcisismos
perdidos, não se sentiu investido libidinalmente, não se sentiu objeto de desejo, e parece
continuar a esperar que venha do olhar do outro os atributos que nunca lhe foram
oferecidos. Busca nas faces do mundo, alguém que lhe diga o que ele é. E todos
parecem observá-lo, com expressão insatisfeita, frente à transparência que atravessam
com o olhar. O que esse sujeito sente que lhe devolvem como atributos é sempre um
conjunto de características pouco louváveis, que o remetem à sua insuficiência, e fazem
emergir toda a sua fragilidade narcísica.
Portanto, a temática que lhes atormenta passa ao largo da trama edípica e
também se localiza à distância dos conflitos ligados à sexualidade. Eles portam
17
características que extrapolam a metapsicologia freudiana tradicional, alicerçada sobre a
organização histérica, e não parecem responder aos dispositivos técnicos elaborados a
partir desta referência.
Em decorrência desta constatação, o grupo de pesquisa do qual faço parte o
NEPECC
4
– possuía, há alguns anos, uma linha de investigação que extraiu, da teoria
freudiana, indícios de uma metapsicologia alternativa, que se convencionou chamar
metapsicologia da melancolia (Pinheiro, 1995, 1997, 2002, 2004), na qual se enfatizou a
vertente narcísica do processo de subjetivação, porque, hoje, a queixa de grande parte
dos sujeitos que chegam aos consultórios e ambulatórios aponta para um sofrimento
acerca da própria existência. Essas organizações subjetivas, que se multiplicam e
questionam a psicanálise em sua teoria, sua prática, e mesmo em sua atualidade, são
assoladas por sofrimentos narcísicos, relacionados a uma constituição frágil do eu
5
que vacila em seu ser inconsistente –, assim como à volatilidade e impermanência das
características do eu. As sessões são ocupadas com o tema do existir, do ser, e o
propósito da demanda por análise é arquitetar um espaço e um tempo em que a
constituição narcísica inédita possa se fazer, com a participação do analista. Essa
experiência inaugural de construir o próprio eu, preenchendo-o de atributos, pode,
assim, ser levada à frente na análise, a partir de um primeiro encontro possível: com o
analista, representante do mundo. Para tanto, tem que se estabelecer uma relação
distinta das outras relações do sujeito, para que este possa colher, dessa vez, do olhar do
analista, atributos mais valiosos, que façam seu eu ser sentido como digno de algum
amor, e consigam reverter o esvaziamento libidinal que assola sua unidade narcísica,
esta devendo se tornar mais consistente e plástica.
O espaço a ser instaurado é aquele do encontro com o mundo, em que há a ilusão
de uma relação possível com o ambiente circundante. As fronteiras delimitadoras do
interno e do externo se desvanecem por instantes nesta área de ilusão. O setting e o
rapport transferencial compõem com o paciente, muitas vezes pela primeira vez, o
plano narcísico de encontro
6
. Com a dissolução do amor transferencial, se o tratamento
4
Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade. Site:
www.psicologia.ufrj.br/nepecc.
5
O eu frágil, nesta perspectiva, não tem que ser substituído, durante a análise, por um eu forte, como
propunha a psicologia do ego, mas transformado em um eu plástico.
6
Esta é uma das diferenças, talvez a mais relevante, entre a análise com pacientes cujos modos de
subjetivação se caracterizam por um predomínio de traços neuróticos e a análise com aqueles que
acumulam mais aspectos melancólicos: esse plano narcísico de encontro, no primeiro grupo, foi
experimentado previamente, e no segundo grupo, não, ao menos não de forma durável. Dessa maneira, a
criação de um si é uma possibilidade em qualquer análise, mas na análise de alguns pacientes
18
tiver alcançado sua meta de abertura desse espaço, a ilusão do encontro com o mundo
deixará de surgir em análise para se apresentar em múltiplas outras circunstâncias.
A temporalidade que se imprime nesse espaço define-se por uma continuidade
que deve ser abandonada quando o eu tiver conquistado uma certa estabilidade no
tempo. Este é um espaço-tempo de repouso, para o qual o eu pode se refugiar quando
estiver em apuros. Constituída essa dimensão espaço-temporal, as interrupções abruptas,
as surpresas, os reveses bruscos não mais representam ameaça, pois a processualidade
sustenta a organização do eu e garante o seu retorno à unidade, sempre que esta for
perdida. Se pode contar com um espaço-tempo em que a vida continua, o sujeito relaxa
e se entrega ao contato com o mundo e à criação de um si, a partir desse encontro.
Assim sendo, ao lado da empreitada propriamente metapsicológica, em relação
de complementaridade com ela, se dispuseram indagações de ordem prática: Como
fazer clínica psicanalítica com esses pacientes? Qual é o papel do analista? Qual é o
objetivo do tratamento? Para citar apenas algumas. Todas elas, entretanto, convergem
para uma única pergunta: O que é a psicanálise hoje? Birman (2002) argumenta que o
que se impõe é uma redefinição da experiência psicanalítica.
Certamente, seria demasiado ambicioso buscar dar conta dessa vastíssima
problemática ao longo dos escassos dois anos de mestrado. De forma que a intenção
dessa dissertação consiste no ensaio de uma das respostas possíveis. Em verdade, essa
tentativa de aproximação segue apenas uma das diversas veredas que se cruzam no seio
de cada possibilidade, a saber, a vereda clínica.
A via que se busca é aquela da compreensão da prática psicanalítica como
criação de um si, caminho que oferece ao menos uma vantagem: é herdeiro de um
precioso legado freudiano. Não se está mencionando uma adoção incondicional ou um
cumprimento dogmático dos postulados teóricos do criador da psicanálise. Ao contrário,
guarda-se fidelidade ao primado da clínica sobre a teoria, primado este fortemente
defendido por Freud. Sua originalidade, na época em que viveu, resultou de sua recusa
em tratar as histéricas segundo os métodos já estabelecidos, e do seu empenho em ouvi-
las e inventar com elas uma nova estratégia terapêutica. Foi dando voz às palavras de
quem sofria que ele erigiu um saber que conta mais de um século de duração, e que
influenciou todo o imaginário cultural ao seu redor. A sobrevivência da psicanálise até
os dias de hoje certamente se deve à abertura de seu aparato conceitual à reformulação,
contemporâneos, de constituição narcísica frágil, é preciso inaugurar esse plano afetivo, antes do processo
criativo ser engendrado.
19
sempre que a clínica se depara com novos impasses. Freud compõe a tríade de
protagonistas a serem aqui postos em cena não simplesmente por ter sido o primeiro a
criar a psicanálise, mas, dentre outros motivos, por ser inspiradora a sua coragem de
desbravar caminhos inicialmente bastante obscuros.
Como Laurent (2000) e Birman (2002) fazem notar, os inúmeros vetos firmados
para delimitar o alcance clínico e a esfera de atuação da psicanálise vêm, um a um,
sendo derrubados. As crianças, os psicóticos, os pacientes psicossomáticos, os
borderlines e os falsos selves, os pobres e os idosos passaram a ser convidados, por
alguns psicanalistas mais ousados, a habitar o interior das fronteiras da prática e do
saber inaugurados por Freud. A solicitação feita à psicanálise pelos pacientes
contemporâneos, de mergulhar em mais um renascimento teórico e clínico, não é,
portanto, propriamente nova, mas deve superar um árduo obstáculo: a resistência de
muitos analistas em abandonarem a segurança dos hábitos práticos e conceituais
adquiridos em troca da incerteza de trabalhar às escuras, sempre tateando as dimensões
do setting e da transferência antes de lançarem-se ao movimento.
Talvez a dificuldade se faça perceber porque o que se invoca é, precisamente, o
resgate e o refinamento de uma metapsicologia e de um arcabouço clínico até então
preteridos pela psicanálise. Entretanto, vale lembrar que alguns psicanalistas se
dedicaram ao exame desses modos de subjetivação que, em geral, margeiam desde fora
a psicanálise, pelo fato de seus tratamentos constituirem variantes da cura-tipo
(Birman, 2002, p. 53), isto é, divergirem do modelo tradicional de prática clínica.
Ferenczi foi um dos que aceitaram este desafio, e o fez quando Freud ainda estava vivo.
Depois dele, outros vieram, entre os quais, Winnicott. Ambos figurarão nessa reflexão
sobre a clínica, dentre outras razões, por causa da contribuição direta que fazem à
psicanálise da atualidade, na medida em que atendiam e teorizavam sobre pacientes
bastante similares aos dos dias de hoje.
Na construção da questão sobre a prática psicanalítica enquanto criação de um
si, alguns conceitos e noções são indispensáveis. Incluem-se nesse grupo privilegiado: o
narcisismo primário, sobretudo a leitura desse conceito à luz do sentimento oceânico,
mencionado por Freud em 1930; o eu, em Freud; as recomendações técnicas do pai da
psicanálise; o laço afetivo inaugurado pela relação analítica, denominado transferência;
o conceito ferencziano de introjeção; os postulados técnicos de Ferenczi, que promovem
à primeira importância o cuidado e a confiança; a distinção entre sexualidade genital e
ternura como duas linhagens da transferência; o eu, o self e o ser, em Winnicott; as
20
noções winnicottianas de brincar e de espaço transicional; e a clínica winnicottiana, no
que ela se assemelha à ferencziana, e a complementa com observações como, por
exemplo, aquela sobre a regressão
7
à dependência. Todos esses termos se reúnem para
compor a prática analítica como um modo específico de relação com o mundo, chamado
criação de um si.
Uma vez que uma parcela expressiva dos pacientes atuais trazem para o
tratamento relatos ou gestos que reportam a um sofrimento narcísico e a uma fase da
constituição subjetiva muito precoce, a análise, nesses casos, tem a tarefa de se
processar numa dimensão narcísica de encontro. Se ao se dedicarem a pacientes cuja
organização subjetiva foi principalmente marcada pela sexualidade e pelo complexo de
Édipo, os analistas devem estar alerta para manterem-se trabalhando, a maior parte do
tempo, numa dimensão edípica de separação, em que a transferência jamais deve ser
satisfeita, sendo essa insatisfação o próprio motor do tratamento; em pacientes cujos
traumas lhes privaram de fruir a fusão terna anterior à separação, precipitar mais uma
vez o desencontro com o mundo seria repetir sadicamente o trauma. Nestes casos, a
experiência analítica deve abandonar a dimensão edípica de separação para ingressar na
dimensão narcísica de encontro
8
. Esta, em Freud, será abordada por meio do narcisismo
primário; em Ferenczi, do amor terno; e em Winnicott, do espaço transicional.
A prática psicanalítica de Freud receberá mais descrições referidas ao espaço
edípico de separação, por causa da experiência clínica freudiana, predominantemente
voltada ao atendimento de pacientes neuróticos. Sendo assim, o capítulo 1, sobre Freud,
abarcará uma breve comparação de duas clínicas freudianas, desenroladas em duas
dimensões distintas, porém ambas com o objetivo de dar ensejo aos processos de
remodelamento do eu, a partir da transferência. A segunda dessas clínicas, que recebe
menos atenção do criador da psicanálise, é o correspondente prático da metapsicologia
7
É sabido que esta palavra regressão carrega consigo uma concepção de tempo bastante problemática,
em que se supõe possível um retorno a um momento passado, desconsiderando-se as experiências vividas
desde aquele ponto. Tal repetição literal de um instante vivido não parece viável, de modo que a regressão
é aqui entendida como a atualização de uma das formas possíveis de relação com o mundo a saber, a
dependência –, dentre as componentes do repertório do sujeito.
8
Essa contraposição esquemática entre uma clínica da neurose e uma clínica da melancolia não deve,
todavia, ser levada muito ao da letra, pois o trânsito entre as duas dimensões narcísica de encontro e
edípica de separação pode ser um procedimento interessante. Esse manejo transferencial é muito
delicado, mas não deve ser descartado, pois momentos no atendimento de uma forma de subjetivação
predominantemente neurótica, em que o encontro pode ser proveitoso, ao passo que ao tratar de modos de
subjetivação mais marcadamente melancólicos, eventualmente pode se fazer necessário um desencontro,
isto é, o ingresso na dimensão edípica de separação. Sendo a forma de subjetivação um processo em
aberto, não um padrão rígido para a clínica, devendo o analista se esforçar para sentir com o paciente,
em cada momento, qual a dimensão mais produtiva para o trabalho analítico.
21
da melancolia, e consiste num trabalho analítico desdobrado ao longo de uma ligação
narcísica entre paciente e analista.
Como Ferenczi e Winnicott lidam com pacientes muito similares aos
contemporâneos, não um contraste entre duas práticas clínicas nos capítulos 2 e 3,
que lhes serão dedicados, mas apenas uma exposição de certas idéias e experiências que
trazem contribuições diretas à clínica atual enfocada, esta servindo como um pano de
fundo para esse estudo.
Os pacientes traumatizados têm na prática psicanalítica de Ferenczi uma
oportunidade para desatar e fazer ecoar a língua da ternura. A construção de uma
relação em que isso fosse possível custou a Ferenczi muitas tentativas frustradas, e uma
seqüência de retratações, que legitimam sua fama de experimentador clínico
incrivelmente talentoso. Nesse contexto, ele convida o paciente a perder a solidez de seu
caráter, para que a subjetividade possa ser transformada.
Winnicott acolhe os psicóticos, borderlines e falsos selves que lhe chegam,
dando ao setting e ao vínculo transferencial uma caracterização espaço-temporal
definida pela transicionalidade, pela emergência de um entre, onde se combinam o que
é exterior e o que é interior. Antes da criação nesse espaço transicional, a personalidade
tiquetaqueia, torna-se amorfa, o eu se desfaz na não-integração. A partir dessa
experiência de simplesmente ser, sendo dispensável toda e qualquer ação, algo pode ser
criado.
O que é criado na relação narcísica de encontro é um si, que receberá diferentes
nomes nos três capítulos: será o eu, enquanto totalidade oceânica eu-mundo, do
narcisismo primário de Freud; será o caráter fluido, em Ferenczi; será a personalidade
tiquetaqueante ou amorfa, em Winnicott.
Um si antecede historicamente o eu durante a constituição subjetiva; é a base
sobre a qual um eu se constituirá. Sendo a dimensão narcísica de encontro, em que um
si é criado, mais precoce do que a dimensão edípica de separação, na qual um eu é uma
unidade destacada e formada, um si é uma espécie de acoplamento, em que tudo o que
se tornará uma unidade, está misturado, sem que haja qualquer distinção muito clara.
Pode-se dizer que um si é o acoplamento prévio aos pólos individuais e está num devir,
ou seja, não está formado e se insere numa temporalidade contínua. Um si é anterior a
qualquer forma pré-existente que se intitule eu, sujeito, ou mesmo objeto. Como
indefinido, entretanto, um si é uma singularidade que antecede a individualização, ou
então, é uma individualização sem sujeito, que devém antes que qualquer coisa seja. O
22
ser de um si é o devir, processo em andamento que dá sustentação à conformação do eu;
este, mais sólido e concreto, é. Mesmo consolidado o eu, ainda que o eu já seja, um si é
sempre uma possibilidade no repertório de modos de se relacionar com o mundo. Neste
caso, trata-se de se recuperar a dimensão narcísica de encontro, de tornar líquida, uma
vez mais, uma solidez. O fluir amorfo e oceânico é um si que devém.
Gilles Deleuze é um autor que auxilia bastante no esclarecimento do que seria
um si. A principal dificuldade é que não há nada que um si seja; ele está em vias de ser,
está por vir; é o devir se estendendo entre um sujeito e um objeto, ou entre mais de um
sujeito, sendo cada um, objeto para o outro. Quando devêm um si, sujeito e objeto se
desfazem e ingressam no que Deleuze chama de zona de indistinção, que é precisamente
essa dimensão em que se atinge “o ponto que precede imediatamente sua respectiva
diferenciação” (Deleuze, 1989, p. 90). Sendo o devir seu próprio produto, ele, por
definição, não tem sujeito nem objeto, que esses pólos foram dissolvidos após serem
atingidos pela libido. Um si é justamente o que devém, bloco de devir no qual são
acopladas unidades que abdicaram de suas fronteiras e formas, tornando-se
multiplicidades, depois de terem sido atravessadas por uma potência libidinal que
liquefez todo e qualquer eu. Segundo escreve Deleuze:
[...] tudo que a libido investe se apresenta como um artigo indefinido,
ou melhor, é apresentado pelo artigo indefinido [...]. As crianças se
exprimem assim. [...] o indefinido não carece de nada, sobretudo de
determinação. Ele é a determinação do devir, sua potência própria, a
potência de um impessoal que não é uma generalidade, mas uma
singularidade no mais alto grau (Deleuze, 1993b, p. 77-78).
Essa singularidade indefinida, um si, que devém em decorrência de um
investimento libidinal, descobre sob as pessoas, um impessoal, que as despoja de suas
características formais (Deleuze, 1993a, p. 12-13); nessa dimensão de um si que devém,
fala-se a língua das crianças.
Pensando em termos de prática psicanalítica, a libido liga o analista e o
analisando por meio da transferência. Esta, nos casos contemporâneos de que se visa
tratar, é, na maior parte do tempo, narcísica, na medida em que se faz numa dimensão
narcísica de encontro. Em verdade, a transferência narcísica é o nome que recebe esse
encontro, quando ele se desenrola entre um analista e um analisando num setting
permeado pela transicionalidade. Tal encontro engaja o que antes eram pessoas,
23
individualidades, eus, num bloco de devir impessoal, pré-individual e singular, que é
batizado, no âmbito deste trabalho, de um si.
Um si é o processo no qual duas ou mais unidades molares e formadas tornam-se
fluidas e amorfas, em prol de uma molecularização que dispensa fronteiras. Quando
unidades cedem lugar à multiplicidade, e molaridades, à molecularização, um si devém.
Um si não é um trajeto que parte de um pólo e chega ao outro, um percurso de um si
não tem começo ou fim, é sempre um meio, um entre. Assim, não sentido, aqui, em
se pensar uma análise como uma identificação com o analista. Não ponto de partida
ou de chegada para um si: o analisando não se transforma no analista e, tampouco, o
analista se transforma no analisando. O devir não tem produto, é um puro movimento.
Se resultado no devir, este não é almejado, nem se faz sentir no nível
molecular, mas na esfera molar, quando as formas são outras. Apenas se demarca
um início e um fim, um antes e um depois, pois um si devém antes da integração do eu
ou entre um fim e um início da integração do eu, no intervalo em que ela é abolida e dá
lugar à não-integração
9
. Se um si – multiplicidade molecular – devém, o eu – unidade
molar somente é na medida em que advém, se transforma, a partir de um si.
Remodelar o eu é deixar fluir o caráter, fazer involuir
10
a forma da personalidade até
uma amorfia. Se as crianças se exprimem usando o indefinido próprio de um si é porque
elas são presenteadas com a plasticidade de um eu ainda coloidal, entre um si líquido e
um eu sólido; por isso, elas falam a língua da ternura, do encontro libidinal em que se
abdica momentaneamente da separação.
A criação é criação de um si porque ela própria não obedece a qualquer fim. A
criação quer apenas se criar; é desprovida de qualquer intencionalidade externa à sua
continuação. Todavia, sabe-se que a criação, o devir de um si, tem conseqüências
clínicas importantes, pois transforma o eu. E alguns pacientes atuais carecem de um eu
que se transforme e se enriqueça a partir do contato com o mundo. Para atendê-los com
a prática psicanalítica, os psicanalistas disponibilizam o setting e o próprio eu, num
esforço por um si a ser criado entre os extremos do par analítico. Cada analista o fará ao
9
O conceito winnicottiano de não-integração do eu será explicado no capítulo 3. Todavia, pode-se
adiantar que não se trata da desintegração psicótica, em que o eu se despedaça, gerando enorme angústia,
mas de um relaxamento em que o eu não precisa se esforçar para manter sua unidade, podendo permitir
que os seus pedaços se espalhem, pois o ambiente é confiável e assume o cuidado do sujeito não-
integrado.
10
Involução não designa uma regressão evolutiva, mas uma des-formação, uma desconfiguração da
forma. Longe de uma indiferenciação, o que ocorre é uma exacerbação das diferenças que, anteriormente
imperceptíveis, vêm à tona num plano molecular, promovendo a constatação da dimensão da
multiplicidade (Deleuze & Guattari, 1980).
24
seu jeito. Nesta dissertação, serão expostas as maneiras segundo as quais Freud,
Ferenczi e Winnicott empenharam essa tarefa. A cada autor será dedicado um capítulo,
subdividido em três itens: o primeiro, sobre as contribuições técnicas e estratégias
clínicas; o segundo, a respeito da formação da subjetividade; e o terceiro, acerca da
compreensão da prática psicanalítica como criação de um si. Apesar de tantas
separações, o que se espera é que o encontro dessas teorias as ponha em continuidade
num espaço compartilhado e dê margem à criação de algo novo.
25
Capítulo 1:
Freud e o remodelamento do eu
O propósito deste capítulo é buscar operadores na obra freudiana que auxiliem a
pensar a prática psicanalítica como criação de um si. Duas linhas temáticas servirão
como norte: a clínica e o eu. Primeiramente, será realizado um levantamento dos
enunciados técnicos para, em seguida, se examinar detidamente aqueles que contribuem
mais diretamente para uma prática psicanalítica aqui nomeada criação de um si. Então,
será iniciada uma discussão a respeito do eu, pois é possivelmente por meio deste
conceito que Freud faz referência à subjetividade
11
em transformação, a qual é aludida
pelo termo si. Apenas ao fim do capítulo, serão tecidas algumas considerações sobre
características de certas subjetividades atuais que impelem os psicanalistas a atentar
para a viabilidade de um laço transferencial que se desenrole sobre um plano narcísico
de composição do eu
12
.
As técnicas
Em 1895, Freud publica com Breuer sua primeira hipótese etiológica para a
histeria. Segundo eles, os sintomas histéricos derivam de um evento traumático ao qual
não foi possível reagir adequadamente, o que impediu a descarga do afeto, além de ter
levado as representações a ele atreladas a serem recalcadas, ou seja, excluídas do
pensamento consciente devido a uma incompatibilidade com ele. O componente afetivo,
por sua vez, dirigiu-se a uma parte do corpo e se converteu em sintomas. Como o afeto
não foi descarregado, a sua lembrança correlativa, concernente ao evento traumático e já
destacada da cadeia de representações conscientes, continua alimentando a produção
sintomática, o que justifica a famosa formulação segundo a qual “os histéricos sofrem
principalmente de reminiscências” (Breuer & Freud, 1895d [1893-95], p. 43).
11
O que se chama subjetividade, nessa passagem, não é um sujeito ou uma subjetividade pessoal, mas
uma singularidade, um acoplamento subjetivo que se transforma e pode dar origem a um ou mais eus, a
um ou mais sujeitos.
12
Plano narcísico de composição do eu é sinônimo de plano narcísico de encontro.
26
Ao versar sobre a psicoterapia, Freud (1895d), corroborando os pressupostos do
método catártico de Breuer, constata que sempre que é possível esclarecer com detalhes
a lembrança desencadeadora dos sintomas, assim como despertar o afeto a ela ligado,
ocorre uma tradução do afeto em palavras que redunda no desaparecimento dos
sintomas histéricos. Ele reitera, conseqüentemente, a dupla proposta do procedimento
psicoterapêutico de dar fim ao afeto retido na representação e inserir esta última na
cadeia associativa da consciência ou eliminá-la por meio da sugestão.
Freud e Breuer, nessa época, recorriam à hipnose em suas clínicas, o que
apresentava a vantagem de facilitar o acesso às lembranças traumáticas, de forma a
propiciar a ab-reação do afeto, o efeito catártico, e a conseqüente remissão dos
sintomas. Uma vez que não se havia dado uma reação proporcional ao acontecido na
cena original, a hipnose fornecia a oportunidade de, por meio da recordação do evento,
se abrir uma via de descarga do afeto atrelado à lembrança patogênica. Esta descarga
denomina-se ab-reação, e o seu efeito chama-se catártico. A catarse do afeto é o
principal objetivo desta psicoterapia, pois essa purgação do quantum anteriormente
convertido nas inervações do corpo leva à supressão dos sintomas histéricos.
Depois de oscilar durante alguns anos entre dois usos distintos da hipnose um
em que convencia o paciente hipnotizado de que ele não era portador de nenhum
sintoma histérico, e outro em que pretendia resgatar as lembranças causadoras das
complicações de que o paciente sofria
13
– Freud resolveu-se por abandonar esse
instrumental
14
. O impasse que suscitou essa atitude foi a observação de pacientes que
não eram hipnotizáveis, apesar de parecerem responder ao mecanismo psíquico da
histeria. Sem poder contar com a hipnose para lhes ampliar a memória e assim aceder às
reminiscências patogênicas, Freud se deparou com a resistência que seus pacientes
apresentavam quanto a permitir a emergência de tais lembranças na consciência. Tal
força psíquica que trabalhava contra a recuperação da perturbação provavelmente seria
a mesma que atuou nas circunstâncias das cenas traumáticas e engendrou o quadro
sintomático. O que equivale a dizer que a resistência notada por Freud na vigília de seus
pacientes seria a mesma força que, quando do acontecimento dos traumas, efetuou a
repulsão das representações desagradáveis para fora da cadeia consciente de
pensamentos.
13
Ver Freud, 1892-93.
14
Este passo foi fundamental, pois “a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova
técnica que dispensa a hipnose” (Freud, 1914d, p. 26).
27
É acrescentando a idéia de repressão laboriosa
15
como determinante do estado
histérico que Freud colabora com os ensinamentos de Breuer. Ele traz à tona, dessa
maneira, uma economia psíquica
16
que tem o eu como o agente de censura às
representações inconciliáveis com os pensamentos conscientes. A instauração da
histeria é devida, segundo esse ponto de vista, aos mecanismos de defesa acionados pelo
eu, em sua dupla manifestação: como repulsa que recalca as representações da
consciência e da memória, e como resistência que impede o ressurgimento, no âmbito
da consciência, dessas representações. Ao terapeuta cabe, por conseguinte, se contrapor
à resistência imposta por essa obstinação defensiva do eu.
Anos mais tarde, substituiu-se a hipnose pela regra fundamental da associação
livre, e somou-se a esta, a interpretação dos sonhos. O resultado foi a inauguração de
um manejo técnico bastante original, denominado psicanálise.
a partir de 1900, com a publicação de A interpretação dos sonhos (Freud,
1900a), deu-se um certo deslocamento de foco na abordagem da clínica. Nos Estudo
sobre a histeria (Breuer & Freud, 1895d), o método catártico, como o próprio nome
denuncia, estava privilegiadamente atento à economia afetiva do paciente. O método
psicanalítico, por sua vez, na medida em que investe numa decifração dos conteúdos
representacionais, direciona o seu olhar revelador para os recônditos do inconsciente,
deixando em segundo plano suas conseqüências afetivas. A catarse do afeto perde o
reinado para a interpretação das representações.
Livres para falarem o que lhes viesse à cabeça, os pacientes relatavam sonhos,
cujos conteúdos deformados induziram Freud a supor conteúdos latentes por trás dos
manifestos. Foi assim que o desejo passou a figurar como um dos pólos do conflito
defensivo
17
, e o sonho foi definido como “uma realização (disfarçada) de um desejo
(suprimido ou recalcado)” (Freud, 1900a, p. 193). O disfarce do conteúdo manifesto era
imposto justamente pela censura do eu o outro pólo do conflito –, que somente
permitia que o desejo inconsciente surgisse na consciência após sofrer deformações. Ao
estudar os sonhos, Freud instituiu a chamada primeira tópica, e elucidou o
funcionamento do inconsciente, suas leis e princípios. A interpretação dos sonhos foi
decretada “a via real para o conhecimento das atividades da vida anímica” (Freud,
15
A repressão laboriosa é o afastamento das idéias patogênicas da cadeia associativa do eu normal
(Freud, 1895d).
16
Neste capítulo, A psicoterapia da histeria (1895d), que Freud assina sozinho, ele reorganiza a dinâmica
afetiva, delineando noções extremamente relevantes, como resistência, recalcamento, transferência, e
defesa.
17
Laplanche & Pontalis, 1982, p. 113.
28
1900a, p. 634), sendo, por esse motivo, incorporada como um importante artifício
técnico.
Em 1905, veio a público o Fragmento da análise de um caso de histeria (Freud,
1905e [1901]), o primeiro tratamento exclusivamente psicanalítico, redigido entre
dezembro de 1900 e janeiro de 1901, no qual Freud intentou validar suas hipóteses
acerca da histeria, assim como expor a peculiaridade de seu método terapêutico,
calcado na interpretação dos sonhos e na associação livre
18
. A terapia é aqui definida
como uma tradução de representações recalcadas em representações normais,
conscientes
19
.
O caso Dora, como é conhecido no meio psicanalítico, lança luz sobre os temas
da sexualidade e da transferência. A sexualidade, como força impulsora de todos os
sintomas, é alçada à “chave do problema” das neuroses em geral
20
, sendo os fenômenos
patológicos a “atividade sexual do doente”
21
(Freud, 1905e, p. 110). A transferência, por
seu turno, torna-se uma exigência indispensável, além do aspecto mais difícil da análise.
O método psicanalítico de Freud (Freud, 1904a [1903]) detalha a tarefa da
psicanálise: eliminar as amnésias, preencher todas as lacunas da memória, de forma que
o esclarecimento dos enigmas evite a perduração e a reprodução do quadro patológico;
desfazer todos os recalcamentos; superar as resistências e viabilizar o acesso da
consciência ao inconsciente. Pondera Freud, no entanto, que tal organização psíquica
não é encontrável, e apenas muito raramente a terapia se aproxima destes parâmetros. O
sucesso do tratamento psicanalítico jaz não na obtenção de resultados impossíveis como
os descritos acima, mas na recuperação da “capacidade de rendimento e de gozo”
22
(Freud, 1904a, p. 239), ou ainda, retomando os Estudos sobre a histeria (Freud, 1895d,
p. 316), na transformação do “sofrimento histérico numa infelicidade comum”. Não se
trata de abolir a dimensão conflitual da vida psíquica e se livrar dos sofrimentos
18
Roudinesco & Plom, 1998, p. 50-51.
19
Note-se que, em 1895, Freud menciona a tradução do afeto em representação e, em 1905, a tradução é
de um tipo de representação recalcada para outro tipo de representação normal, consciente. Apesar
da palavra tradução permanecer, o acento inicialmente recaía sobre o afeto, e posteriormente, sobre a
representação, o que revela a mudança de perspectiva.
20
O conflito, de ordem sexual, que está na base das neuroses é travado entre a libido e a rejeição da
sexualidade, como é evidenciado em Psicanálise ‘silvestre’ (Freud, 1910k, p. 235).
21
Em As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica (Freud, 1910 d, p. 153), estes fenômenos são
entendidos como satisfações substitutivas de pulsões sexuais, o que está de acordo com essa afirmação.
22
Na vigésima oitava de suas conferências introdutórias, Freud explicita melhor essa idéia. A capacidade
de rendimento, ou seja, a eficiência, consiste na disponibilidade de energia livre, e o gozo, ou capacidade
de aproveitar a vida, nada mais é do que a possibilidade de investir em novos objetos, ao invés de
desperdiçar um montante exagerado de energia para manter os recalcamentos (Freud, 1916-17 [1915-17],
p. 454).
29
decorrentes dela
23
. É possível conviver com alguma conflitualidade, com uma
infelicidade comum, que são admitidos o rendimento e o gozo. Mesmo alguns
sintomas são toleráveis, desde que sejam esvaziados de seu potencial patogênico, e não
atrapalhem em demasia o indivíduo em sua vida prática. Enfim, a terapia ambiciona
simplesmente uma “significativa melhora do estado psíquico geral” (Freud, 1904a, p.
239). Para tanto, Freud (1905a [1904], p. 246) considera o seu método psicoterápico o
mais adequado, pois “é o mais penetrante, o que chega mais longe, aquele pelo qual se
consegue a transformação mais ampla do doente”.
O processo terapêutico divide-se em duas partes inter-relacionadas: de um lado,
o psicanalista oferece ao paciente uma idéia antecipadora consciente, que não passa de
uma amostra do que ele supõe estar recalcado; de outro, o paciente, auxiliado por esta
idéia, busca uma outra similar em seu inconsciente. Em suma, o psicanalista infere e
diz, e o paciente elabora a partir disso. Para esse trabalho em duas vias não recair no
efeito contrário do esperado, e terminar por exacerbar o sofrimento do paciente, este
deve estar bastante próximo do conteúdo recalcado, assim como ter uma ligação
transferencial consistente com o analista, para o caso de precisar se refugiar nessa
relação (Freud, 1910d).
Um exame mais aprofundado da transferência (Freud, 1912b, 1912e, 1913c,
1915a [1914]), levado a cabo no período da escrita dos textos técnicos, apontou o
manejo da transferência como o maior desafio com que se depara o analista. Para este, o
amor transferencial consiste não apenas numa importante arma de combate às
resistências, como também na aquisição de uma influência sugestiva, por meio da qual
incita o paciente a prosseguir com a elaboração psíquica
24
. Em 1913, Freud esclarece
esse ponto. A força motivadora que joga a favor da terapia é o sofrimento e o desejo de
cura do paciente acrescidos por um fator de menor poder, que é o seu esforço
intelectual. Estes elementos devem acompanhar todo o tratamento, mas sofrem prejuízo
de sua intensidade por causa do lucro secundário da doença, ou mesmo em função de
melhoras. De toda maneira, esta força motivadora não é suficiente para vencer a neurose
porque não sabe que direção seguir, e também porque não é páreo para a intensidade das
23
Em 1937, a despeito de uma série de retranscrições teóricas, a proposta da terapia psicanalítica continua
muito próxima desta. Freud escreve: “Nosso objetivo não será dissipar todas as peculiaridades do caráter
humano em benefício de uma ‘normalidade’ esquemática, nem tampouco exigir que a pessoa que foi
‘completamente analisada’ não sinta paixões nem desenvolva conflitos internos. A missão da análise é
garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego” (Freud, 1937c, p. 266-
267). As citadas funções do eu serão analisadas mais adiante.
24
O tema da transferência voltará a ser abordado algumas páginas adiante.
30
resistências. A transferência entra, então, com a sua contribuição, pois mobiliza energias
e fortalece a oposição à resistência
25
. Quanto aos caminhos a percorrer, o atalho é aberto
a partir das idéias antecipadoras conscientes do analista, proferidas no momento correto
(Freud, 1913c).
Ao avaliar as transformações da técnica, Freud (1914g) destaca que foi
abandonada a especificidade da cena traumática como foco de investigação, para que
emergissem os mais diversos conteúdos inconscientes. As associações livres, ao
tropeçarem em vazios de memória, davam pistas do recalcado, ao passo que a
interpretação decifrava as resistências e apontava o rumo da elaboração psíquica. Não
obstante as variações, Freud afirma que o objetivo da técnica permanece o mesmo.
“Descritivamente falando, trata-se de preencher lacunas na memória; dinamicamente, é
superar resistências devidas à repressão” (Freud, 1914g, p. 163). Também o eu conserva
o papel de agente do recalcamento e da anticatexia que o alimenta, tal como era
pensado em 1895. Porém, quase duas décadas mais tarde, o enfrentamento da
resistência imposta pelo eu ao restabelecimento não se faz pela insistência do analista
em aceder ao material recalcado que estaria na raiz dos sintomas. Em vez disso, o
paciente fala livremente e nascimento ao amor transferencial. Os conteúdos
revelados pelas associações livres e traduzidos pela interpretação respondem pelo
preenchimento das lacunas da memória, enquanto a transferência transpõe as
resistências
26
. A conclusão desse processo liberta o paciente de seus recalcamentos e
dos imperativos do princípio de prazer, tornando-o capaz de investir na realidade, a
libido antes represada na fantasia
27
.
Com a publicação de Além do princípio do prazer (Freud, 1920g), e a virada
para a segunda tópica, a dinâmica clínica teve que ser repensada, e o foi a partir de uma
revisão teórica da compulsão à repetição, citada pela primeira vez no texto Recordar,
repetir, elaborar (Freud, 1914g). Neste texto mais antigo, Freud adverte que, ao invés
de recordar o material psíquico esquecido, os pacientes muitas vezes o repetem, o
25
A transferência, essa sim, é “o mais poderoso móvel” do progresso do tratamento (Freud, 1916-17
[1915-17], p. 444).
26
A própria transferência é, contudo, uma resistência ao tratamento, pois surge em lugar de um material
recalcado relevante para a solução da neurose. É exatamente quando este conteúdo está em vias de
emergir na consciência que se estabelece o laço transferencial (Freud, 1912b).
27
A vida erótica dos neuróticos é marcada pela frustração dos investimentos na realidade externa e o
conseqüente escoamento da libido no universo fantasmático. Esta é, inclusive, a explicação da
predisponibilidade dos neuróticos ao amor transferencial. O analista é apenas o receptor desse
investimento iminente, que busca novos personagens para inserir nas “séries psíquicas” do paciente
(Freud, 1912b).
31
atuam, isto é, o reproduzem como ação. Esta repetição é uma maneira de resistir, que
deve ser convertida em lembrança. Para a repetição se tornar uma recordação, o analista
conta com o manejo da transferência e a elaboração das resistências. É apenas em O
estranho (Freud, 1919h) que a repetição assumirá sua feição mais diabólica, ao ser
contaminada pela pulsão de morte. Em Além do princípio do prazer (Freud, 1920g),
Freud se debruça ainda mais no estudo de exemplos em que se verifica a compulsão a
repetir experiências desagradáveis. Recolhe, nos fenômenos transferenciais dos
neuróticos, nas brincadeiras infantis, na recorrência de determinadas fatalidades a
pessoas comuns, e nos sonhos traumáticos, indícios para a dedução da existência de
algo “mais primitivo, mais elementar e mais instintual do que o princípio de prazer”
(1920g, p. 34), isto é, a pulsão de morte. Com a revelação dessa nova força, a técnica
psicanalítica se reformula.
Sem mencionar o próprio redimensionamento tópico, que retira a prioridade da
separação entre os registros inconsciente e pré-consciente–consciente, para dar maior
relevância à distinção entre eu, isso e supereu. As resistências são redistribuídas por
essas três instâncias. Ao lado do ganho secundário da doença
28
, que é uma resistência
facilmente conhecida, por estar muito próxima da consciência, acham-se resistências
mais profundamente arraigadas. O recalcamento e a anticatexia que o alimenta são,
como sabido, provenientes do eu (Freud, 1926e) ou, mais precisamente, da porção
inconsciente do eu, levada em consideração por Freud apenas a partir de 1920
29
. A
resistência oriunda do isso se faz sentir não na adesividade da libido sua
incapacidade de abandonar seus objetos e seguir novos rumos como na mobilidade
libidinal excessiva – uma troca bastante acelerada de objetos e caminhos de
investimento, que torna rapidamente obsoletas as conquistas da análise. É o isso que
está por trás da inércia psíquica de pacientes que agem como se tivessem esgotado sua
plasticidade, e hesitam muito antes de conseguirem enveredar pelas trilhas pulsionais
sinalizadas pela terapia. Outra poderosa fonte de resistência ao tratamento analítico o
28
O ganho secundário da doença são as vantagens sociais e emocionais adquiridas pelo paciente em
função da doença. Alguns exemplos são: a desobrigação de prestar serviço militar; a possibilidade de
encobrir alguma limitação profissional; um meio de fazer valer, sobre os outros, a própria vontade; e a
manipulação das pessoas (Freud, 1926e, p. 215).
29
Antes de 1920, havia uma coincidência entre sistema pré-consciente/consciente e eu. Por esse motivo,
falava-se de uma incompatibilidade entre as representações inconscientes e as representações conscientes
e coerentes do eu. A conflitualidade assim demarcada entre inconsciente e eu tinha como destino o
recalcamento do conteúdo incompatível e o acionamento dos inúmeros mecanismos de defesa. Todavia,
restava a dúvida de como esses processos instaurados pelo eu o recalcamento e a anticatexia que o
alimentava – não eram conhecidos à consciência. A solução encontrada por Freud, entre 1920 e 1923, foi
atribuir ao eu uma porção inconsciente, mas distinta do recalcado.
32
maior limite com que se depara a psicanálise – é o comportamento das pulsões de vida e
de morte. Dependendo de sua fusão ou desfusão, elas imprimem marcas distintas no
aparelho psíquico (Freud, 1937c).
No setting, muitas vezes o analista se prisioneiro de uma impressão de que
alguma força potente se opõe ao restabelecimento do paciente. Uma parcela dessa força
pode ser identificada na punição e no sentimento de culpa, resistências impostas pelo
supereu. Mas além dessa parcela reconhecível, cotas presas a outros locais, ou
mesmo livres. Elas podem ser discernidas no masoquismo de alguns, na reação
terapêutica negativa
30
, e em diversos fatos da vida mental dita normal. Estes são
indícios de que há fenômenos que estão para além do princípio do prazer, que endossam
a existência da agressividade, da destruição, da pulsão de morte (Freud, 1937c).
Já consolidada a hipótese desta nova dualidade pulsional, há um novo esforço de
definição da meta da terapia analítica. Existem duas compreensões alternativas. Uma
em que se nota que o paciente se livrou de seus sintomas, ansiedades e inibições, e que
o analista supõe que o percurso coberto impossibilita a repetição do processo
patológico. Outra em que se percebe que a análise fez o máximo possível, e
proporcionou tantos benefícios para o paciente, que este parece tão estável como seria
se todos os recalcamentos houvessem sido suspensos e todas as lacunas de memória,
preenchidas. Com estas definições de conclusão de análise, Freud mergulha num
questionamento sobre o término do tratamento (Freud, 1937c).
Delimita três variáveis de suma importância para o sucesso ou fracasso da
terapia analítica: o caráter traumático dos sintomas, as forças pulsionais e as alterações
do eu. Se a neurose tem como principal motivo um trauma adquirido o que ocorre
geralmente na infância a psicanálise está em seu campo mais favorável, pois cabe a
ela somente induzir a repetição desse trauma na transferência, e dar-lhe um novo
desfecho.
Os dois outros fatores forças pulsionais e alterações do eu podem ser
explicados conjuntamente. Trata-se de como se efetua a distribuição da libido, e dos
efeitos da intensidade das exigências do isso sobre a configuração do eu. Dentre esses
efeitos, se encontram não apenas os recalcamentos, mas os mecanismos de defesa em
geral. Este embate de forças entre as exigências do isso e as resistências do eu constitui
30
No capítulo V de O ego e o id (1923b, p. 62), Freud explica a reação terapêutica negativa como uma
piora do quadro clínico depois de alguma observação do analista, tendo como conteúdo uma esperança de
cura ou uma constatação a respeito do progresso do tratamento.
33
o fator econômico na causação da doença, que Freud afirma ter sido muitas vezes
desconsiderado em prol das abordagens topográfica e dinâmica
31
.
Dentre as alterações do eu, as adquiridas são as mais fáceis de se tratar. Elas se
deram durante o início da vida, quando o eu se empenhava por atender ao isso, segundo
o princípio de prazer e, ao mesmo tempo, se proteger do mundo externo. Mas, no curso
dessa mediação, ocorre que, inicialmente, o eu acione uma defesa contra o isso, tratando
suas exigências de satisfação como perigos externos. O eu não fez mais do que pôr em
funcionamento os mecanismos de defesa para evitar perigos, ansiedades e desprazer.
Mas os próprios mecanismos de defesa oferecem sérios riscos: podem implicar num
gasto muito alto de energia ou em restrições ao eu, que fica limitado pelos padrões de
condução na vida que compõem a atitude defensiva. Como resultado da aderência
destes mecanismos ao eu, mesmo após a obsolescência das dificuldades prévias, a
postura defensiva continua. Para justificar essa insistência na defesa, o eu procura na
realidade um substituto dos primeiros perigos, que possa ser revestido da mesma
roupagem ameaçadora. As neuroses derivam dos mecanismos de defesa do eu
exatamente devido a essa alienação em relação ao mundo externo e a esse desperdício
de libido no universo fantasmático.
A tarefa analítica divide-se, conseqüentemente, entre o eu e o isso: tem-se que se
desfazer, ao menos em parte, dos mecanismos de defesa, e revelar o que se esconde no
isso, ou seja, tornar conscientes fragmentos do isso e editar aspectos do eu. Ou ainda,
trazer à luz as moções de desejo que exigem realização, e aumentar a plasticidade do eu.
Na contra-corrente desse esforço psíquico, encontram-se as resistências, sendo a mais
poderosa delas a resistência da pulsão de morte. Esse “elemento de agressividade livre”
(Freud, 1937c, p. 261), essa tendência ao conflito que é a destrutividade, contribui para
a conflitualidade tanto ou mais do que a disputa de forças entre o eu e o isso.
Construções em análise (Freud, 1937d) é o último artigo sobre técnica escrito
por Freud, e tem como tema o trabalho de construção que o analista faz a partir de
fragmentos recordados, das associações, ou mesmo dos comportamentos do paciente.
Em geral, Freud tendeu a abordar mais as interpretações do analista, referentes a algum
elemento isolado do material, mas ressalta que a construção é um termo mais adequado,
pois se refere a um fragmento esquecido da história primitiva do analisando.
31
É curioso que Freud não faça referência à pulsão de morte ao expor as variáveis determinantes do
tratamento analítico. Apenas mais adiante no texto, quando recenseia as resistências, menciona a
participação dessa força pulsional.
34
A construção parte do pressuposto de que, no que tange ao psiquismo, nada é
destruído completamente, todos os elementos essenciais se preservam, de modo que fica
a cargo da análise trazê-los à tona, ao conhecimento consciente. Isto se faz por meio das
construções que são informadas ao paciente, para que ele as elabore. Então, recomeçam
as construções. Neste movimento de vai-e-vem entre as partes da relação analítica,
prossegue a terapia. Diferentemente do outro texto publicado no mesmo ano, Análise
terminável e interminável (Freud, 1937c), que sublinha a oscilação entre o eu e o isso,
este artigo dá relevo ao revezamento dos pólos do par transferencial.
Um dos aspectos mais interessantes deste texto é que a elaboração psíquica
assume o auge de sua autonomia, tornando-se independente da recordação. Freud
observa que, teoricamente, deveria haver uma linha que partisse da construção do
analista para a recordação do paciente, mas, em geral, não é o que acontece. Ao invés da
recordação do recalcado, se produz no analisando uma convicção de que a construção é
verdadeira, o que tem os mesmos efeitos do que se a lembrança tivesse emergido. Esse
reposicionamento de Freud frente à clínica é extremamente valioso, pois faz da técnica
não mais um instrumental para se desvendar segredos ou se descobrir representações
escondidas. O objetivo é construir, junto com o paciente, um sentido. Ao invés de
descobrir, construir. Ao invés de representar, criar.
Este apanhado muito breve das aproximações de Freud à técnica serve como
ponto de partida, pois, a despeito do fato de sua clínica ser formada predominantemente
por neuróticos, é possível extrair de suas considerações indicações relevantes para o
atendimento de outros modos de subjetivação. O recorte que se pretende realizar abarca
o câmbio da ênfase na sexualidade e no triângulo edípico pelo exame da experiência
narcísica, além da reformulação da transferência, que pode se engendrar não apenas no
registro da separação, mas também na dimensão do encontro. Estas são algumas
características do que se denota como criação de um si.
O eu
Antes, no entanto, de se adentrar a temática central deste capítulo a criação de
um si na psicanálise freudiana –, é preciso esclarecer o que é um si no âmbito da obra
freudiana. Esta não é uma palavra recorrente no vocabulário de Freud, que prefere o
vernáculo eu, presente ao longo de toda a sua produção, e referente a um conceito
35
fartamente descrito. Para os propósitos deste estudo, optou-se por expor as diversas
definições freudianas a respeito do eu, mas utilizou-se apenas aquela que se denomina
um si, ou seja, o eu enquanto abertura processual em continuidade com o mundo.
O eu do Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1950 a [1895]) é uma
rede de neurônios catexizados, que inibe os processos primários, adiando a descarga até
que se obtenha uma indicação de realidade. Em decorrência dessa inibição, se efetua
uma diferenciação entre lembrança e percepção que, apesar de não ser infalível, poupa o
aparelho psíquico de episódios de grande desprazer e de um dispêndio total da defesa
(Freud, 1950a, p. 379). Em lugar dos processos primários, o eu habilita os processos
secundários
32
, pautados na indicação de realidade. Informado por esta, o eu impulsiona
a descarga no sentido de uma ação específica, se houver desejo, ou dispara uma defesa
de magnitude proporcional, mediante a constatação do desprazer. O eu, portanto, faz a
ponte com a realidade, persegue a hegemonia dos processos secundários e é o agente da
defesa. À parte a linguagem neurológica adotada por Freud, estes três aspectos do eu
reaparecem em textos posteriores.
Ainda no ano de 1895, Estudos sobre a histeria (Freud & Breuer, 1895d)
apresenta um eu que, em desacordo com o eu de Projeto para uma psicologia científica
(Freud, 1950a [1895]), afrouxa o laço com a realidade e insiste em mecanismos de
defesa dispendiosos e dispensáveis, cuja dissolução não se segue ao desaparecimento do
perigo que os despertou. Ao contrário, os dispositivos defensivos em questão
perscrutam a realidade na procura de um substituto desta ameaça prévia, que justifique a
continuidade da defesa. Entretanto, esses mecanismos de defesa foram primeiramente
acionados em oposição aos processos primários, já que estes visavam apenas a descarga,
negligenciando os conflitos psíquicos e outros prejuízos possíveis. Nesta ocasião, o eu
recalcou a representação ligada ao excedente afetivo e, desde então, empregou uma
anticatexia para que essa representação incompatível com a consciência não escapasse
do inconsciente. A atitude inicial do eu realmente protegeu o sujeito, mas a sua
perduração engendra sintomas.
32
A principal distinção entre os processos primários e secundários é a consideração da indicação de
realidade. Os processos primários funcionam com a descarga imediata, assim que o excesso quantitativo
no aparelho neuronal provoca desprazer, os processos secundários adiam a descarga para depois do
recebimento da indicação de realidade. Assim, evitam um desprazer de maiores dimensões (Freud,
1950a).
36
Dentre essas três relações do eu com a defesa, com os processos primários e
secundários, e com a realidade externa é a última a de maior interesse para este
estudo.
Freud (1914c, p. 84) postula que o eu não existe desde o começo, precisa ser
desenvolvido
33
. Existem ao menos quatro vias diferentes, mas não auto-excludentes, de
entendimento deste postulado a respeito da instauração do eu. A primeira delas
pressupõe que o que antecede o narcisismo é o auto-erotismo, estado inicial da libido,
em que se experimenta satisfação sexual ao se receber cuidados corporais consagrados
às necessidades vitais. Na organização auto-erótica, a sexualidade é perverso-polimorfa:
não está centrada em nenhuma parte específica do corpo, nem se volta para objetos do
mundo exterior; encontra expressão por meio do prazer de órgão, obtido nas mais
diversas zonas erógenas (Freud, 1905d). Uma unidade corporal não é, tampouco,
vislumbrada: somente fragmentos desconexos. A passagem do auto-erotismo para a
unificação narcísica do eu é explicada de forma bastante enigmática e concisa por
Freud: faz-se pela adição de uma “nova ação psíquica” (Freud, 1914c, p. 84).
Outra concepção é aquela de um início megalômano do eu, em que o narcisismo
primário engloba o eu e o mundo, sem demarcar as bordas de cada um (Freud, 1914c).
O eu, nesse início, não se distingue nitidamente do mundo externo e das outras pessoas
(Freud, 1919h) e possui uma íntima ligação com o ambiente circundante. Para demarcar
suas fronteiras, o eu tem que se destacar desse todo. Nas palavras de Freud,
“originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo
externo” (Freud, 1930a, p. 77). O narcisismo não é um estado que é superado de uma
vez por todas. Ele nunca cessa completamente (Freud, 1925d [1924]), sendo possível
reexperimentá-lo ao longo da vida. É essa experiência de continuidade com o mundo,
em que os limites entre o eu e o mundo estão suspensos, que se está chamando de
dimensão do encontro
34
. A dinâmica transferencial no cotidiano clínico de algumas
33
Curiosamente, tanto no artigo sobre o narcisismo (Freud, 1914 c) quanto no Projeto para uma
psicologia científica (Freud, 1950a [1895]), o eu é inconsciente, ao contrário do restante dos textos
escritos até 1920. Em geral, antes da virada para a segunda tópica, o eu coincide com o sistema pré-
consciente-consciente.
34
Em resposta a Romain Rolland, para quem a origem da religiosidade é o sentimento oceânico, ou seja,
um sentimento de continuidade com o mundo, Freud traça a gênese desse sentimento. Segundo ele, o
início da vida se caracteriza pela ilimitabilidade do eu que, extremamente inclusivo, engloba tudo, apenas
posteriormente se destacando como unidade separada e mais reduzida. Seria, assim, o sentimento
oceânico uma espécie de persistência desse sentimento primário do eu, que coexistiria com um
sentimento posterior, relativo ao eu mais restrito, formado enquanto individualidade com fronteiras
demarcadas. É essa dimensão oceânica do eu megalômano que está sendo nomeada de dimensão narcísica
de encontro.
37
subjetividades contemporâneas ocupa essa dimensão peculiar. Essa idéia será detalhada
um pouco mais adiante.
O narcisismo primário, do qual resulta a conformação do eu, possui também uma
explicação que inclui a fantasia dos pais em relação ao filho esperado ou recém-
chegado. Como se quisessem ser indenizados pela perda da completude narcísica de
suas infâncias, os pais almejam para o filho uma vida sem limitações ou dificuldades,
em que este alcance tudo o que deseja. Sua majestade, o bebê, como foi chamada essa
criança idealizada, é absolutamente perfeita e não merece receber uma crítica. Essa
criança completa, que não sofre privações, nem é contrariada em suas vontades, é a
imagem do eu ideal. Ultrapassado o narcisismo primário, esse eu ideal torna-se o
passado do sujeito, ao mesmo tempo em que se coloca adiante, em seu futuro, um ideal
de eu, que se pretende vir a ser. Esses dois ideais remetem a uma satisfação completa do
narcisismo, e o sujeito sempre compara sua situação presente com o passado que perdeu
– o eu ideal – e o futuro a ser conquistado – o ideal do eu. Freud escreve:
O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo
primário e dá margem a uma vigorosa tentativa de recuperação desse
estado. Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido
em direção a um ideal do ego imposto de fora, sendo a satisfação
provocada pela realização desse ideal (Freud, 1914c, p. 106).
A nomeação de instâncias do aparelho psíquico, em 1923, representou uma
quarta versão para a origem do eu. No começo, tudo é isso. Então, a camada superficial
do isso que tem contato com a realidade externa se diferencia e produz o eu.
Contribuem para a formação do eu tanto o sistema percepção-consciência, quanto a
própria superfície corporal, que é afetada por sensações internas e externas. Essa dupla
fonte de afetação interna e externa também caracteriza o eu, que “é, primeiro e
acima de tudo, um ego corporal; não simplesmente uma entidade de superfície, mas é,
ele próprio, a projeção de uma superfície” (Freud, 1923b, p. 39). Mais tarde, então,
desdobra-se do eu a terceira instância psíquica, o supereu, fruto da identificação
primordial, a identificação com os pais.
A constituição do eu não se restringe à demarcação de um continente, mas se
complementa com a atribuição de qualidades. A composição das propriedades do eu
decorre das identificações. Estas se classificam em dois tipos: uma identificação
narcísica ou melancólica, que denota uma apropriação direta e imediata do objeto,
conforme o modelo oral da ingestão canibalesca; e uma identificação histérica, que
38
efetua o recolhimento de determinados traços do objeto, segundo uma atividade de
interpretação. Uma das diferenças centrais entre as duas reside na relação que se verifica
com o objeto após concluído o processo. Na identificação narcísica, persiste a influência
do objeto, mesmo que esta seja concernente apenas a certas ações ou sintomas. Na
identificação histérica, o objeto é abandonado, e guardam-se dele apenas alguns traços,
que não necessariamente determinam as ações do eu (Freud, 1917e [1915]). Ou melhor,
nas duas modalidades identificatórias, o eu sofre uma modificação que o determina, mas
na primeira, a amplitude da transformação é maior e a ausência da interpretação impede
uma reedição dos derivados da identificação. A modificação advinda da identificação
histérica, por sua vez, admite uma reconfiguração, por ser regulada pela lógica
interpretativa. Além disso, deixa no eu apenas algumas marcas identificatórias, cujo
impacto é proporcional à relevância do laço amoroso.
A identificação narcísica é a mais antiga das duas, e foi exemplificada em Totem
e tabu (Freud, 1912-13), quando Freud abordou a refeição totêmica da horda primeva.
Nesta, o pai, que era o mais forte de todo o grupo, impunha suas vontades por conta de
sua superioridade física. Certo dia, os outros machos expulsos da horda se uniram e
retornaram para assassinar o pai. Em seguida, o devoraram, se identificando com o
modelo paterno. O assassinato e a ingestão do pai, único detentor da lei por causa de sua
força física, levou os filhos a firmarem um contrato de que o interesse de todos estaria
acima do interesse individual. Reverteram a lei do mais forte em um regulador legal
abstrato, selando a entrada na cultura civilizada.
Este mito freudiano a respeito da coletividade civilizada é análogo ao que ocorre
no nível subjetivo. O mais precoce laço emocional com um outro é a identificação com
os pais, uma identificação por ingestão, que é um correlato metaforizado da devoração
do pai da horda. Nestes primórdios da vida amorosa, não uma separação clara entre
identificação e relação de objeto, o que torna complexa a ligação com os pais. Esta
sucumbe ao desfecho do complexo de Édipo, quando se faz valer a interdição do
incesto. O herdeiro dessa fase infantil é o supereu, instância que observa o eu e critica
algumas de suas iniciativas, além de golpeá-lo com o sentimento de culpa. A
identificação com os pais promoveu, também no sujeito, a abstração da lei, mas trouxe
uma séria desvantagem: quando a lei era externa, localizada nas figuras parentais,
apenas as ações podiam ser castigadas. Com a interiorização da lei, também os desejos
sofrem punição, pois o supereu acumula a função de auto-observação, à qual as moções
desejantes não escapam.
39
Logo, o supereu é uma gradação do eu, um herdeiro do complexo de Édipo,
conformado pela incorporação da lei abstrata. O ideal do eu, no entanto, é mais precoce
que a interiorização da lei, pois se instaura durante a identificação narcísica com os pais.
Quando abandona esse laço identificatório remoto, o eu introjeta o objeto, sofrendo uma
divisão em duas partes: o eu e o supereu. Surge, assim, a mais recente das três instâncias
psíquicas. Conclui Freud (1923b) que o eu se forma a partir das identificações, sendo a
primeira e mais importante delas, a que desembocou na constituição do supereu. Essa
modalidade narcísica de identificação, porém, não existe apenas durante a infância. É
uma alternativa identificatória em qualquer etapa da vida.
A identificação histérica opera de forma distinta: interpreta o objeto quando se
lhe retira o investimento libidinal. Alguns dos traços objetais são assumidos pelo eu,
que em função de se apoiar nas identificações para se preencher de atributos, é
concebido como um precipitado de catexias objetais abandonadas (Freud, 1923b, p.
42), ou seja, um precipitado de identificações. É a história dos antigos laços amorosos
que define o modo de condução na vida erótica (Freud, 1912b, p. 111), ou seja, o modo
de se relacionar com o mundo.
Recapitulando o que foi exposto sobre as instâncias psíquicas, infere-se a
difundida afirmação freudiana de que o eu serve a três senhores: intermedeia a relação
entre o isso e a realidade externa, administrando as exigências contraditórias desses dois
contrapontos, e ainda deve considerar as ordens do supereu, que não vacila na auto-
observação, nem desperdiça oportunidades quando se trata de agredir o eu com suas
punições ou maltratá-lo com o sentimento de culpa. Uma das maneiras de driblar a
incompatibilidade destas três fontes de exigência é acionar mecanismos de defesa como,
por exemplo, o recalcamento, que impede que o imperativo de satisfação do isso se
confronte com uma solução comprometedora da relação com a realidade, o que pode
colocar em risco a organização psíquica. Em um artigo curto e tardio, Freud (1940e
[1938]) adiciona uma outra saída para esse tipo de impasse: o eu, ao mesmo tempo,
satisfaz o isso e reconhece o perigo que essa satisfação gera face à realidade externa;
sustenta essa dupla postura ao custo de cindir-se.
As alterações do eu podem ser devidas, portanto, a três razões distintas entre si,
mas passíveis de coexistência: as identificações, os mecanismos de defesa e a cisão.
Sejam quais forem os motivos das modificações sofridas pelo eu, elas delineiam
padrões de ação, modos de se conduzir, que limitam sua liberdade. A psicanálise
enquanto criação de um si propõe um estremecimento desses padrões de ação e uma
40
multiplicação desses modos de se conduzir. Remete para a contingência do modo de
vida que, até então, predominou ao longo de toda a história do eu, e também evidencia a
arbitrariedade das características subjetivas. Dependendo do paciente, esse trabalho de
desconstrução das referências enrijecidas é muito delicado. Se o narcisismo for vítima
de uma fragilidade demasiado devastadora, deve-se adiar a desconstrução, e começar
por uma construção e por um enriquecimento do eu.
A criação de um si
Tendo sido os temas freudianos da técnica e do eu suficientemente examinados,
é chegada a hora de ensaiar uma solução para a questão: afinal, o que é a criação de um
si no âmbito da teoria do inventor da psicanálise? De imediato, sustar-se-ia a dúvida: “a
criação de um si, em Freud, é o remodelamento do eu”. Então, retrucar-se-ia: “o que é o
remodelamento do eu?” “Ora, é a desmontagem dos mecanismos de defesa do eu
efetuada na pós-educação analítica”, dir-se-ia. “E o que é a pós-educação analítica?”,
indagar-se-ia com alguma irritação. “É o manejo da transferência no sentido de
incentivar a elaboração psíquica do paciente”. Como fica claro nestas respostas, é
preciso abdicar dos jargões e atravessar algumas outras veredas freudianas.
A expressão remodelamento do eu faz sua única aparição, ao menos na edição
brasileira, em Análise terminável e interminável (1937c), para denotar processos que
teriam sido estimulados durante a análise e que não cessam mesmo depois de encerrado
o tratamento. No parágrafo em que figura a dita expressão, Freud pondera acerca da
importância de que o futuro analista se submeta à análise antes de iniciar suas atividades
profissionais. Ingressar numa terapia analítica com um analista mais experiente lhe
serve para fazer frente às suas limitações e estender a eficácia de seus serviços. Volta a
fazer análise periodicamente por conta disso e porque, em função da exploração dos
conteúdos recalcados de um outro, ele pode findar vítima de suas próprias exigências
pulsionais.
As vantagens da primeira experiência analítica são bastante relevantes: o futuro
analista fica convencido da existência do inconsciente e percebe, em si mesmo, coisas
imperceptíveis antes da análise, além de lucrar com o benefício de ter um primeiro
exemplo do manejo das técnicas analíticas. Depois da análise cumprida, ele não
abandona os citados processos de remodelamento do eu, que continuam a transcorrer
41
nos indivíduos analisados. Segundo Freud, apenas as outras vantagens não seriam o
bastante:
isso
35
não bastaria para sua instrução, mas contamos com que os
estímulos que recebeu em sua própria análise não cessem quando esta
termina, com que os processos de remodelamento do ego prossigam
espontaneamente no indivíduo analisado, e com que se faça uso de
todas as experiências subseqüentes nesse recém-adquirido sentido
(Freud, 1937c, p. 265).
A partir desse fragmento, deduz-se que os processos do remodelamento do eu
não são prerrogativa da análise dos futuros analistas, mas se estendem a todo e qualquer
sujeito que tenha sido analisado com algum sucesso. Esses processos nem mesmo se
limitam ao período em que a análise está em andamento. Sobrevivem a ela e se
prolongam enquanto o sujeito for hábil para usar suas experiências no sentido da
transformação do eu.
Apesar desta ocorrência isolada da expressão processos de remodelamento do
eu, a idéia de que o eu pode ser modelado não é nada estranha ao pensamento freudiano.
Se, de forma mais geral, é possível aproximá-la do que foi abordado como alterações do
eu algumas páginas acima, mais especificamente falando, se se ativer ao vocábulo
modelo, que se encontra no meio de remodelamento, descobre-se uma referência
bastante direta ao mecanismo da identificação, que é precisamente um esforço “por
moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como
modelo” (Freud, 1921c, p. 116).
Freud elenca três manifestações da identificação: uma em que ela configura o
primeiro laço emocional com um objeto; outra em que substitui um vínculo amoroso
anterior, introjetando o objeto ou alguns dos traços objetais no eu; e uma terceira, que
decorre do entendimento de que se compartilha, com uma outra pessoa, alguma
característica em comum. Essa última manifestação, a única ainda não aludida, também
se escora na interpretação, sendo uma subcategoria da identificação histérica ou por
traço. Baseia-se no desejo de se colocar no lugar de uma outra pessoa ou na
possibilidade de se imaginar na mesma situação que esta (Freud, 1921c, p. 117).
Os estímulos que o analisando recebe em sua análise não teriam a ver com um
incentivo a novas identificações? Sendo um eu um precipitado de identificações com
35
Esse pronome demonstrativo se refere às outras vantagens da análise do futuro analista, que são, como
exposto acima: tornar-se convicto da existência do inconsciente, perceber em si coisas a que era
insensível anteriormente e conhecer um primeiro exemplo do manejo das técnicas.
42
objetos abandonados, os estímulos da análise não teriam como alvo justamente a
renovação da vida amorosa do sujeito, um rearranjo de seu modo de condução na vida
erótica, que teriam como conseqüência inevitável o dito remodelamento do eu? Enfim, o
que seria incentivado não é a ampliação das formas de se relacionar com a realidade
externa e seus objetos e, em decorrência disso, a diversificação da relação consigo?
Quando institui os parâmetros de rendimento e gozo como meta do tratamento,
Freud tem em mente a incapacidade do neurótico de aproveitar a vida e ser eficiente. O
neurótico não consegue fruir da vida porque sua libido não investe em objetos da
realidade externa. Isso decorre do represamento da libido nos objetos fantasmáticos, que
dificulta o estabelecimento de laços com a realidade. A ineficiência reflete a escassez de
libido disponível ao eu para investimento, mas também indica o desgaste de energia
necessário para a manutenção dos mecanismos de defesa. Segundo esse enfoque, a
função da terapia é “liberar a libido de suas ligações atuais, subtraídas ao ego, e [...]
torná-la novamente utilizável para o ego” (Freud, 1916-17, p. 454).
A abertura de novas possibilidades relacionais é precedida da liberação da
libido represada na fantasia inconsciente, contra a qual são erigidos os mecanismos de
defesa. O primeiro passo é desmontar os mecanismos de defesa, isto é, superar as
resistências do eu. Assim, liberta-se o eu dos padrões de conduta impostos pela
atividade defensiva. O par analítico, como elucidado acima, se empenha neste
sentido, alternando construção do analista com elaboração do analisando. A
conseqüência é a liberação da libido e a reconquista da eficiência do eu, agora
preparado para se relacionar com o mundo externo, por meio dos investimentos em
objetos. O prosseguimento da história dos vínculos emocionais reabre o
remodelamento do eu com a coleção de novas identificações com objetos amados e
perdidos. Não é à toa que Freud afirma que o “neurótico realmente curado tornou-se
outro homem, embora, no fundo, naturalmente permaneceu o mesmo; ou seja, tornou-
se o que se teria tornado na melhor das hipóteses, sob as condições mais favoráveis”
(Freud, 1916-17, p. 437).
A análise possui uma face educadora, ocupa a posição de uma pós-educação
(Freud, 1916-17, p. 451-452). Por pós-educação analítica, Freud entende a utilização,
pelo analista, da influência sugestiva que ele tem sobre o paciente, para impulsioná-lo
no trabalho psíquico que resultará na dissolução dos mecanismos de defesa e no
remodelamento do eu. A sugestionabilidade do paciente no que concerne ao seu analista
43
é uma das peculiaridades da neurose de transferência. Esta neurose artificial se instala
no lugar da anterior e substitui a satisfação sexual obtida nos sintomas por aquela
adquirida pelo investimento erótico na figura do analista. Como a libido continua
represada na fantasia, apesar dos sintomas se amenizarem momentaneamente, o quadro
neurótico persiste.
Quando o analista se torna objeto de amor do neurótico, a ascendência que ele
adquire sobre o analisando deve ser manejada para servir aos objetivos da análise. O
analista não deve usar seu poder para orientar o analisando numa direção ou noutra. Ele
apenas indica que a vida pode ser diferente, que o eu pode ser transfigurado. Respeita,
dessa maneira, a discrição analítica, educando o analisando sem agredir sua
individualidade (Freud, 1919a [1918], p. 178). Trata-se de uma educação peculiar, cujo
destino o analista não consegue prever:
O analista é certamente capaz de fazer muito, mas não pode
determinar de antemão exatamente quais os resultados que produzirá.
Ele coloca em movimento um processo, o processo de solucionamento
das repressões existentes. [...]. Mas, em geral, uma vez começado,
segue sua própria rota e não permite que quer a direção que toma quer
a ordem em que colhe seus pontos lhe sejam prescritas (Freud, 1913c,
p. 145-146).
Este manejo da transferência é o motor do tratamento, na medida em que
impulsiona o “solucionamento das repressões existentes” ou, mais genericamente, a
suspensão dos mecanismos de defesa. Esse processo desemboca, por fim, no
remodelamento do eu. O paciente põe em marcha uma complexa elaboração psíquica
para promover essa criação de um eu mais capaz de rendimento e gozo, um eu sedento
por se ligar ao mundo externo e se construir a partir desse contato.
Ao fim do tratamento, a neurose de transferência é descartada em prol de um
amor voltado para os objetos do mundo, um amor alimentado pela libido, que se reveza
entre o eu e os objetos, entre o amor de si e o amor do outro, advindo o sofrimento
patológico de um exagero de libido em um desses extremos, simultaneamente ao
esvaziamento do outro (Freud, 1914c).
O mito da felicidade na paixão pressupõe a inseparabilidade entre a libido do eu
e a libido de objeto (Freud, 1914c). Essa indistinção é a principal característica do
narcisismo primário. E por uma razão bastante simples: não distinção entre eu o
objeto, entre eu e mundo, de modo que a libido se espraia por toda a continuidade eu-
mundo. Esta é a dimensão do encontro, anterior ao registro da separação, este atingido
44
com o declínio do complexo de Édipo. Depois de passar pelo complexo de Édipo, o
sujeito abandona sua primeira forma de laço amoroso, que é a identificação com os pais,
e instaura dois destinos alternativos para a libido: o eu e o objeto.
A transferência, na neurose, está nesse registro da separação, em que o analista
funciona como objeto de investimento. A libido circula pelos objetos fantasmáticos,
empobrecendo o eu, que se torna ineficiente e incapaz de gozo, de acordo com a lógica
da alternância dos investimentos: quanto mais libido se lança sobre os objetos, menos
sobra para o eu. Essa balança libidinal se inverte com a dissolução da transferência,
responsável por devolver ao eu uma parcela mais significativa de libido.
Na clínica contemporânea, encontramos outros modos de subjetivação, cujas
características centrais envolvem sensações peculiares a respeito do corpo
36
, uma
experiência do tempo
37
distinta do senso comum e um esvaziamento do eu expresso
numa baixíssima auto-estima
38
. Esses três fatores, que se articulam na ilustração de
alguns pacientes atuais, remetem todos ao narcisismo e à constituição do eu.
O corpo, por exemplo, é sentido como estranho, ou fonte de incômodos. Não
intimidade com o próprio corpo, como se este e o eu não ocupassem o mesmo espaço,
como se o eu, nesses casos, não houvesse se estabelecido como a projeção de uma
superfície corporal. Esses sujeitos não habitam o próprio corpo, referem-se a este como
se estivessem falando desde fora, e observassem uma massa material, cujo
funcionamento fosse absolutamente incompreensível. Em seus relatos, transparece uma
desconexão entre a mente e o corpo, em que o sujeito está identificado com uma mente
incorpórea e não se reconhece em sua materialidade corporal. Não se tem um saber
sobre esse corpo, que se torna uma espécie de apêndice inoportuno, que se preferiria
dispensar. Ou então, toma-se esse corpo como um meio para se alcançar uma unidade
narcísica, uma imagem de si. Quando isto ocorre, as conseqüências podem ser graves.
Entre as tentativas de se configurar um corpo, estão o corpo desenhado por exercícios
ou por tatuagens, adornado por acessórios ou próteses, emagrecido ou engordado por
dietas alimentares, o corpo anorético e o corpo bulímico, o corpo que tem prazer, o
corpo que dói. O corpo que se mutila, que se talha em plásticas variadas, o que se
suspende por ganchos de ferro, aquele no qual se enxertam novos volumes,
configurando outra face, outros membros, outro tronco: o rosto de um lagarto, o corpo,
36
Ver Pinheiro, Verztman, Viana, Caravelli, Canosa & Venturi, 2006.
37
Ver Pinheiro, Verztman, Jordão, Montes & Barbosa, inédito.
38
Ver Pinheiro, 2005.
45
os braços e as pernas de uma vaca malhada, e a escultura humana da boneca Barbie. O
corpo do transexual, muito mais interessado numa imagem narcísica do que preocupado
com um prazer orgástico. A imagem de um corpo perfeito, ou a sensação duramente
conquistada de um corpo unitário, num extremo de prazer ou de sofrimento. Quando
essas práticas se referem a um esforço quase desesperado de se estar no próprio corpo,
elas são um preço muito alto a se pagar.
39
.
A análise como assunção possível de um corpo é o espaço de acolhimento do
corpo, um espaço que contém um corpo ainda pouco consistente, cuja unidade narcísica
ameaça desfalecer. O analista deve ouvir o corpo, atentar para suas pequenas
manifestações, olhá-lo e ajudar o paciente a lhe dar sustentação. O setting deve ser um
ambiente em que o sujeito possa primeiramente dar firmeza a esse contorno corporal
vacilante, e então, somente mais tarde, emprestar-lhe a maleabilidade necessária para
assumir outras formas e ser afetado pelos impactos da relação com a externalidade,
dando corpo à narrativa subjetiva. Todavia, antes de lançar-se ao contato com o externo,
para que este contato seja fruído em toda sua riqueza e sem muita angústia, é necessário
ter demarcado a extensão de uma internalidade, o que se faz coincidindo eu e corpo
40
.
Alguns corpos da atualidade podem ser muito diferentes do corpo histérico,
erógeno, sexualizado e portador de inúmeros sentidos. O corpo da histeria é o corpo da
intimidade, que guarda segredos e borda uma narrativa interior complexa. É o corpo que
denuncia um desejo que se quer realizar, e sobre o qual se inventam muitos saberes. Ao
mesmo tempo, é o corpo da frigidez, da anestesia, símbolo máximo da belle indifférence
das histéricas. Um corpo que se estende como um mapa complexo de investimentos,
que se deslocam de um ponto a outro, de modo a enganar a consciência e esconder a
sexualidade fervorosa. Sobre este corpo tagarelam o próprio sujeito, seus pais que o
descrevem exaustivamente e traçam para ele um ideal de eu –, assim como todos do
círculo social mais próximo. uma libidinização maciça e um contorno bem
desenhado, além de um comprometimento absoluto com a história subjetiva.
O tempo também distingue essas duas casuísticas. Na clínica da neurose, a
repetição na transferência indica a temporalidade do inconsciente colapsando a
39
Certamente, não se pretende defender que todos, ou mesmo a maioria, dentre aqueles que aderem
às práticas enumeradas acima carecem de uma unidade narcísica mais consistente. Tampouco, se
crê que a cultura de hoje traga prejuízos maiores aos processos de subjetivação do que a cultura de
épocas anteriores. Ao contrário, acha-se algumas práticas corporais recém-adquiridas bastante ricas
e interessantes.
40
No artigo A escravidão do olhar , Pinheiro (2003) alerta para como a relação com o mundo pode ser
angustiante quando não se tem uma internalidade bem constituída.
46
ordenação temporal preponderante na consciência. À maneira do que ocorre nos sonhos,
na transferência, os produtos que emergem do inconsciente assumem um aspecto real e
atual. Contudo, o amor que o analisando sente pelo analista associa-se com relações
anteriores, provavelmente infantis. É uma versão presente de um passado remoto. O
analista cumpre seu dever ao contextualizar a transferência, incentivando o analisando a
lembrar-se desse passado inconsciente que determina suas ações presentes, e a
verbalizar suas fantasias, com o intuito de inserir esses fragmentos recalcados de suas
experiências amorosas em sua narrativa histórica (Freud, 1912b, 1914 g).
A temporalização das experiências também é uma tarefa da análise de outros
modos de subjetivação, em que o tempo não parece se desdobrar numa seqüência
passado-presente-futuro, como costuma acontecer nos discursos do senso comum. A
impressão do analista, ao ouvir estes pacientes, é de uma certa confusão entre as datas,
chegando a ficar difícil, às vezes, compreender a que época da vida aludem. Misturam
episódios antigos com recentes, sem deixar clara a distância temporal entre uns e outros.
Cabe ao analista, junto com eles, alinhavar com mais precisão estas experiências. É a
construção mesma de uma história que deve ser traçada pelos dois, analista e
analisando, no espaço analítico. Em contraste com os pacientes neuróticos, que obtêm
na análise uma reescrita de suas histórias e a flexibilização das formas de compreensão,
alguns pacientes contemporâneos parecem estar escrevendo suas histórias pela primeira
vez.
Outra experiência temporal relatada por estes pacientes é a impressão de que o
tempo não imprime mudanças na vida. As coisas sempre foram o que são agora, e assim
continuarão sendo nos anos por vir, como se as experiências não contribuíssem em nada
para um remodelamento do eu. Esta postura é congruente com a especificidade da
relação do eu com o ideal do eu nestes casos. Ao invés de interpretarem o ideal do eu
que lhes foi destinado, estes sujeitos o incorporam como uma imagem fixa, completa,
cujos aspectos não podem ser alterados, subtraídos ou incrementados por outras
características. Conseqüentemente, o ideal do eu, ao invés de demarcar um futuro que
promete trazer mudanças, se impõe como uma imagem plena e fora do tempo.
A relação do eu com a ordem temporal deriva da intervenção do sistema
perceptivo na constituição do eu (Freud, 1923b, p. 37). A submissão dos processos
mentais ao teste de realidade é a condição sine qua non para a organização das
experiências no tempo, organização esta regulada pela tendência do eu em sintetizar
seus conteúdos (Freud, 1933a [1932], p. 80-81). Todavia, não seria correto concluir
47
disto que tais sujeitos sofrem de um distúrbio perceptivo. O que ocorre é que, no
momento mesmo em que o eu se constituía a partir da continuidade com a realidade,
algum trauma teve lugar e prejudicou a formação da unidade narcísica. Essa
complicação, além de se refletir na imagem corporal evanescente, que marca a relação
do eu com o próprio corpo, também tem conseqüências para a capacidade de organizar
as experiências numa cadeia temporal segmentada em passado, presente e futuro, que é
a adotada pelo senso comum. A escrita de uma história subjetiva na análise tem um
efeito de organização incrível, além de imprimir movimento à vida e proporcionar o
vislumbre de mudanças possíveis.
Outra compreensão do tempo é aquela que envolve as instâncias ideais. Ao
descrever Sua majestade, o bebê –uma criança perfeita, que desconhece limites ou
privações –, os pais inventam um eu ideal. E quando imaginam um futuro brilhante e
maravilhoso para o filho, erigem um ideal de eu. Constituído o eu unitário, o eu ideal
torna-se a imagem do passado, e o ideal do eu, a imagem do futuro. O ritmo temporal
entra, assim, em voga, a menos que haja algum percalço no trajeto de construção dos
ideais. Se isso acontece, uma das conseqüências possíveis é a experiência de tempo dos
pacientes contemporâneos aqui descritos.
A terceira e última característica dessas subjetividades a ser esclarecida é a baixa
auto-estima. O sintoma mais marcante que se nota atualmente é a depressão (Herzog e
Pinheiro, 2003), que invariavelmente se acompanha de uma baixa auto-estima, às vezes
explicitamente mencionada, visto que o vocabulário psicológico perpassa o imaginário
cultural há muitas décadas. A auto-estima é o que Freud denomina “amor de si mesmo”,
característico da fase de narcisismo primário. Ela expressa o tamanho do eu e se
relaciona com uma certa confirmação da onipotência que se obtém quando se realiza o
ideal do eu ou se satisfaz a libido objetal. Outra fonte da auto-estima é residual: consiste
na conservação de parte da auto-estima do narcisismo primário, quando o eu ideal era
investido por toda a libido, uma vez que não havia separação entre libido do eu e libido
do objeto (Freud, 1914c, 1917e). Acidentes na constituição do eu podem implicar numa
diminuição significativa dessa auto-estima. Seja simplesmente porque o eu não chegou
a ser alvo de todo esse investimento libidinal talvez porque os pais não tenham se
dedicado a construir a Sua majestade, o bebê –, seja porque esse investimento foi
perdido num momento em que o eu ainda não tinha como reservar algum resto dele. Ou
ainda porque se traçou um ideal de eu de impossível realização, ou se almeja um amor
objetal que não se satisfaz em nenhuma circunstância. A recusa sistemática por essa
48
corroboração, mesmo que pontual, da onipotência, pode originar um descrédito do
sujeito em relação a si próprio, uma auto-desvalorização, um esvaziamento de seu eu.
Os três aspectos aqui selecionados como específicos de alguns dos analisandos
de hoje se articulam diretamente com o narcisismo e a instauração de um eu. Nesses
casos, obstáculos nesse processo atrapalharam um desfecho mais satisfatório, ou
melhor, uma continuação mais criativa da vida do eu. A clínica psicanalítica, no que
tange a esses tratamentos, deve fundar a transferência nesse plano narcísico de
composição do eu. Recordando a afirmação de Freud de que nada do que é psíquico
cessa completamente, mas sempre se pode retornar a configurações anteriores, propor-
se-ia uma clínica que restaurasse o vínculo narcísico de continuidade eu-mundo, num
empenho por tecer um pouco mais a trama subjetiva do eu, com muito cuidado,
delicadeza e vagar.
Isso estaria totalmente de acordo com a construção, eleita por Freud como a
nomeação mais apropriada para a conduta do analista por estar relacionada a um
fragmento esquecido da história primitiva do sujeito (Freud, 1937d). A retomada de
uma relação narcísica, de uma dimensão psíquica que suspende, momentaneamente, a
separação, é uma construção da clínica analítica, que funciona como palco para a
criação de um si. Assim, a partir da criação de um si, o eu teria chance de ser
transformado, e talvez pudesse escapar das inúmeras ameaças de desorganização que
sofre, além de se enriquecer infinitamente com as relações com o mundo. Afinal, “todas
as experiências da vida que se originam do exterior enriquecem o ego” (Freud, 1923b,
p. 68).
A relação transferencial a ser estabelecida se apoiaria no anseio do analisando
por um olhar constituinte de seu narcisismo, de seu eu. um contraste evidente com o
amor transferencial típico da neurose, impulsionado por um desejo em busca de
satisfação. Se nesta clínica com a neurose, a relação com o analista move “o processo de
solucionamento das repressões existentes” (Freud, 1913c, p. 145-146), a transferência,
na clínica contemporânea que está sendo tratada, põe em movimento esse processo de
configuração do narcisismo, de constituição do eu
41
.
Nessa dimensão transferencial narcísica de encontro com o mundo, criar-se-iam
novos modos de vida, novas maneiras de se conduzir na vida erótica, padrões menos
41
Como já sublinhado anteriormente, esses dois manejos transferenciais não se excluem mutuamente,
mas podem se combinar de maneira bastante proveitosa em muitos tratamentos.
49
rígidos de ação, ou mesmo, esporadicamente, a abdicação de tais padrões e a
experimentação de novas condutas.
Confirma-se, novamente, que o sofrimento propriamente dito, a dimensão
conflitual da vida, não é necessariamente danosa. O sofrimento que é nocivo e acaba
levando sujeitos ao tratamento analítico, é aquele que produz uma estagnação ou um
prejuízo significativo no processo de remodelamento do eu e amarra o eu a modos de
vida enrijecidos, que reduzem o escopo de matizes possíveis de relação com o mundo.
Quando este processo de remodelamento do eu é suspenso por um tempo demasiado
longo, ou se ele é freqüentemente entrecortado por perturbações, o sofrimento que
deriva disto alcança um status difícil de se transpor. A superação deste estado de coisas
costuma ser possível apenas num espaço-tempo criado artificialmente, que – à diferença
do ambiente em que se vive, que impõe repetidos entraves à criação de um si é
caracterizado pela confiança. Este ambiente confiável é erigido no setting, no espaço de
encontro entre analista e analisando. É nele que se desenrola o exercício criativo, a
criação de um si, que é a base sobre a qual o eu se remodela, se multiplicam as formas
de vida possíveis, se atualizam os processos de subjetivação, e se inclui o sofrimento no
cotidiano, como uma dentre as tantas vicissitudes do viver.
50
Capítulo 2:
Ferenczi e a fluidez do caráter
Neste capítulo, realizar-se-á uma exposição das experimentações técnicas
brotadas do espírito inquieto de Ferenczi ao longo de todos os seus anos de dedicação à
psicanálise; discutir-se-ão conceitos que auxiliam na delimitação de uma noção de um si
em sua obra, como, por exemplo, caráter, eu, introjeção e projeção, autoplastia e
aloplastia, e trauma; e, por fim, indicar-se-á uma leitura possível da prática psicanalítica
como criação de um si dentro desta perspectiva teórico-clínica.
As experimentações técnicas
Sándor Ferenczi marcou a história da psicanálise como um autor contemporâneo
de Freud que se ocupava de casos que ele definia como complicados, encaminhados
para ele por diversos analistas. Seus pacientes eram muito diferentes daqueles tratados
por Freud, o que fez com que derivassem de sua clínica, articulações teóricas e técnicas
inovadoras, consideradas, por alguns, complementares às observações freudianas
(Pinheiro, 1995, p. 120).
Desde o início de seu contato com a psicanálise, se destacou como pensador
original, que colaborava com a criação do jovem saber psicanalítico. As menções a
Ferenczi nos textos freudianos são inúmeras e o fundador da psicanálise não escondia
sua admiração pelo colega húngaro que, segundo ele, valia por uma sociedade
psicanalítica inteira (Freud, 1914d).
Extremamente sensível e atento, Ferenczi discerniu, na clínica, a musa
inspiradora de sua produção e estava decidido a sacrificar mesmo os aspectos mais
preciosos do arcabouço teórico da psicanálise, se suas experiências com seus pacientes
lhe apontassem tal necessidade. Era, sem dúvida alguma, estritamente coerente com a
orientação freudiana de reservar à clínica um primado sobre a teoria estabelecida e foi
um dos poucos que teve a coragem, em sua época, de sustentar a fidelidade a este
primado até o fim de sua trajetória como analista.
51
O esforço dispensado na busca por estratégias que abrissem novas vias
terapêuticas não foi sustentado apenas por uma determinação firme, mas também por
uma “fé fanática nas possibilidades de sucesso da psicologia das profundezas”
(Ferenczi, 1931, p. 334). Ferenczi depositava, na psicanálise, a esperança de acolher
pacientes que haviam fracassado inúmeras vezes na tentativa de alcançar a cura e eram
considerados casos perdidos. Com o avanço de suas experiências clínicas, chegou à
elasticidade da técnica e à neo-catarse, nas quais não apenas a interpretação era posta
em segundo plano, como também a questão econômica e, conseqüentemente, a
sexualidade. Essas alterações do setting se acompanhavam da proposta do princípio de
relaxação, em que a descarga da tensão servia ao tratamento, o que estava em clara
discordância com noção freudiana de abstinência, ou princípio de frustração, no qual a
tensão de natureza sexual não deveria ser escoada, sob o risco da interrupção do
tratamento. Freud irritou-se com esse passo de Ferenczi.
Essa divergência entre Freud e Ferenczi, entretanto, surgiu apenas muito
tardiamente. Em sua chegada ao universo psicanalítico, Ferenczi mantinha uma relação
próxima com Freud
42
e era um dos grandes embaixadores da psicanálise, responsável,
juntamente com outros, pela difusão dessas idéias pelo mundo. Viajou, proferiu
palestras e publicou artigos para espalhar o pensamento psicanalítico e firmar as
fronteiras deste saber, sobretudo contrapondo-o às terapêuticas hipnóticas e sugestivas,
que chegaram a participar inclusive da pré-história da psicanálise. Foi somente anos
depois, em 1919, que anunciou uma de suas estratégias técnicas, que acrescentava
recursos à técnica clássica freudiana e ainda estava plenamente de acordo com o
princípio da frustração.
Em verdade, como enfatiza Sabourin (1985), Freud havia publicado, em
Linhas de progresso na terapia psicanalítica (1919a [1918]), o que Ferenczi
considerava o protótipo da atividade, mas o psicanalista húngaro julgava que, apesar
desta técnica ter sido posta em prática desde a pré-história da psicanálise, o seu
manejo consciente dependia da formulação de uma nomenclatura e de uma reflexão
teórica consistente. Em 1926, porém, Ferenczi rogou claramente para si o mérito de ter
produzido alguma novidade com a proposição da técnica ativa.
Impactado pela estagnação vivida na análise de alguns pacientes, Ferenczi
concebeu um artifício técnico que deveria ser adotado quando a regra fundamental da
42
Sabe-se que a relação de Ferenczi com Freud foi marcada por um misto de admiração e ressentimento.
Ferenczi avaliava que Freud não o tinha analisado completamente, o que o haveria prejudicado.
52
psicanálise, a associação livre, não estivesse sendo suficiente para a produção de
material psíquico a ser elaborado. Ao invés de oferecer um substituto à técnica clássica,
o que Ferenczi queria era ter disponível um procedimento adjuvante, que conferisse
uma aceleração ao andamento da análise, sempre que esta se encontrasse paralisada.
A técnica ativa operava como uma demanda do analista para o paciente, no
sentido de que este se tornasse ativo pelo cumprimento de determinadas tarefas. Ao
invés de apenas se comprometer em obedecer à regra fundamental – o que,
precisamente, não acontecia –, o paciente era encarregado de seguir certas diretivas do
analista. Tratava-se de ordens e proibições que eram fixadas sempre em contradição
com o princípio de prazer e, portanto, de acordo com o princípio de frustração. Na
primeira fase, o analista exigia que o paciente executasse certas ações que eram sentidas
como desprazerosas. Em seguida, na segunda fase, quando o paciente conseguia
extrair prazer dessas ações, o analista lhe proibia de realizá-las. Assim, acatava-se o
postulado de Freud, segundo o qual era indispensável a manutenção da situação de
abstinência na análise. O efeito almejado por tal atividade era a redistribuição da energia
psíquica. O crescimento da tensão psíquica sobrepunha-se às resistências, deixando
escapar, para a consciência, um conteúdo recalcado importante, que deveria ser o ponto
de partida para o trabalho intelectual do par analítico.
Ao enumerar as situações em que a associação livre foi posta a serviço das
resistências, Ferenczi citou: o abuso da regra fundamental, no qual o paciente se
beneficiava da liberdade de expressão de suas idéias para expor ao analista tão somente
pensamentos absurdos, numa verborragia esvaziada; o silêncio, desrespeito à regra
fundamental, que se apoiava na argumentação pouco crível de que nada ocupava a
mente; um forte exercício da crítica, que se interpunha como obstáculo à produção
associativa espontânea; ou mesmo a interrupção repentina de um relato, quando se
parecia estar próximo de alguma questão crucial. Em qualquer dessas circunstâncias, a
atividade auxiliaria o prosseguimento da análise, fornecendo novo material para o
exame clínico.
O escoamento de energia psíquica em satisfações por vezes sequer notadas pelo
próprio sujeito também impedia o prosseguimento da análise. Barrava-se, então, essas
vias de descarga por meio das proibições, que eram impostas logo de início, abdicando-
se da primeira fase de injunções, a partir da constatação de que o paciente estava
ativo.
53
Além de uma atividade que alterasse a forma que assumia a fala do paciente,
tentando adequá-la à associação livre, Ferenczi igualmente teve a oportunidade de
empregar a técnica ativa ao próprio conteúdo associativo. Alguns devaneios que
serviam como subterfúgios na evitação de pensamentos e sentimentos desagradáveis
não eram mais autorizados. Visava-se, com isso, dar lugar aos fantasmas que realmente
importavam na arquitetura do quadro sintomático. Outra manifestação que fazia parte
dos alvos da atividade era a escassez ou pobreza dos fantasmas. Estes, reportados às
situações traumáticas, não condiziam, em absoluto, com reações proporcionais aos
danos trazidos pelo ocorrido, ficando muito aquém de uma contrapartida afetiva
compatível com o estrago causado na vida do sujeito. A saída encontrada por Ferenczi
foi incitar esses fantasmas, incentivar o paciente a dizer o que teria pensado ou sentido,
e insistir nessa iniciativa mesmo frente à alegação de que não se saberia exatamente o
que houve. O analista, então, proporia: “invente, fantasie uma reação palatável”. Ainda
reticente, o paciente tentaria escapar dessa tarefa, apontando a artificialidade de tal
fantasia. Todavia, o analista não prestaria atenção a isso, na medida em que estaria
ciente de que, em meio à fabulação forçada, compareceriam elementos pertencentes à
cadeia dos fatores etiológicos. A medida mais radical, contudo, apresentava-se quando o
paciente não conseguia, mesmo com as repetidas investidas do analista, esboçar
qualquer fantasia: o analista se punha, então, a sugerir o que poderia ter se passado com
o paciente, emprestando-lhe suas próprias fantasias. A partir desta ajuda inicial, o
paciente começava a ensaiar a composição fantasmática em parceria com o analista,
que, obviamente, dava mais ouvido ao que acrescentava o paciente do que às peças que
ele próprio havia posto em jogo.
A colocação das indicações desagradáveis da técnica ativa ao paciente abalava o
vínculo transferencial que, por este motivo, deveria estar solidamente firmado quando
do recurso à atividade. Por conseguinte, este artifício era qualificado como inapropriado
no início de uma análise, sendo, no entanto, altamente recomendado se o propósito fosse
dissolver a ligação afetiva entre analista e paciente, para precipitar o fim do tratamento.
Uma das práticas da técnica ativa voltada para isso era a fixação de um prazo para o
término da análise
43
, o que forçaria os últimos esclarecimentos ainda pendentes. Esse
aviso prévio comportava, porém, dois perigos possíveis: uma cura incompleta ou,
43
Antes de Ferenczi, o próprio Freud já havia fixado um prazo para o fim do tratamento, no famoso caso
do Homem dos Lobos (Freud, 1918b [1914]).
54
inversamente ao que se pretendia, um prolongamento do tratamento como resultado da
exacerbação das resistências.
Em decorrência de seu difícil manejo, Ferenczi contra-indicava a técnica ativa
para iniciantes, que deveriam preocupar-se primeiro em fazer uso da técnica clássica.
Reiterava freqüentemente o papel acessório da atividade, que deveria se limitar a ações
específicas nunca interferindo de maneira generalizada no modo de viver do paciente
–, e ser abandonada assim que este estivesse mais uma vez capacitado a associar
livremente. Para ser legitimamente nomeada psicanalítica, a atividade teria que
funcionar como um meio, e não com um fim para o tratamento, que continuava tendo,
como principal objetivo, a compreensão dos mecanismos psíquicos em pauta. O aspecto
afetivo da análise, apesar de fundamental, não poderia ser privado de sua contrapartida
intelectual, sob o risco da psicanálise ser equiparada a tratamentos puramente
sugestivos.
O deslocamento que a técnica ativa promovia no modo de condução habitual da
análise era devido à incidência da repetição, chamada a ocupar um posto de excelência
nas atividades terapêuticas. Bastante cauteloso na apresentação da técnica ativa,
Ferenczi não admitiu imediatamente o privilégio da repetição, que estaria subordinada à
rememoração, esta sim o verdadeiro triunfo terapêutico, segundo Freud. “A técnica
ativa não tem outra finalidade senão trazer à luz, pela ação, certas tendências ainda
latentes à repetição e ajudar, assim, a terapêutica na obtenção desse triunfo talvez um
pouco mais rapidamente” (Ferenczi, 1921b, p. 197). Não se esquivou, porém, em
reconhecer, tempos depois, que a repetição se emancipava da rememoração,
ultrapassando-a em importância: “o papel principal na técnica analítica, afinal, parece
então ser o da repetição, e não o da rememoração” (Ferenczi, 1924a, p. 217).
Divergindo das assertivas freudianas de Recordar, repetir, elaborar (Freud,
1914g), sustentou que, além de não se dever tomar a repetição como simples sintoma de
resistência e, por conseqüência, impedi-la sempre que possível, era indicado que se a
provocasse para pesquisar o que jazia por detrás da linguagem gestual posta em cena.
Segundo Ferenczi, havia uma qualidade de material inconsciente, que nunca sequer
tinha passado pela consciência, mas havia se registrado à maneira de uma memória
corporal, numa etapa da infância em que a linguagem se caracterizava pela execução de
gestos, e não ainda pela organização de um discurso verbal alinhavado por palavras de
uso compartilhado. Tal modalidade de conteúdo inconsciente poderia se fazer
presente na análise por meio da repetição. Cabia, pois, ao analista, descobrir como
55
desvendar essa linguagem gestual para aceder a algo que concorreria para a solução dos
sintomas. Logo, a repetição era convocada como ponto de contato com certas partículas
mnésicas patogênicas, encarnadas na tessitura corporal.
Repetir, para Ferenczi, tem um sentido bastante preciso: reverter os movimentos
atuados, reproduzidos a partir de experiências do passado, em lembrança atual. Para
convencer o paciente do valor dos acontecimentos infantis como causas
desencadeadoras do sofrimento psíquico presente, fazia-se necessário repeti-los, dar-
lhes corpo, para que eles atingissem a realidade atual e proporcionassem a convicção de
que aquilo que havia sido construído conjuntamente pelo par analítico procedia. Esta
convicção do paciente, enquanto certeza que jamais se alcança intelectualmente, mas
apenas afetivamente, se pautava em sua experiência, no momento presente, das emoções
componentes dos eventos infantis os mais remotos. Trazia-se para a esfera da atualidade
motora e consciente, o que antes pertencia ao passado puramente psíquico e
inconsciente. A repetição perdia sua face de reprodução exata e fiel desse passado, para
se estender como uma ponte, paulatinamente erguida, entre o passado e o presente,
guiando, em seguida, na direção de um futuro imprevisível. A passagem de um tempo a
outro, do passado para o presente, orientava-se pelo intuito de se maleabilizar uma
história por demais concreta em sua prisão tecidual. Pouco a pouco, o passado passava
para o presente por meio de uma repetição que continha em si uma promessa de
mudança para o futuro, ao fazer dizer-se, em uma outra língua, aquilo que antes era
apenas mecanicamente atuado pelo corpo. Repetir abarcava o encontro de muitos
tempos e a transcriação da linguagem exigida por essa pluritemporalidade. Entre tempos
e línguas, o futuro começaria a ser pintado.
Esse posicionamento de Ferenczi no que tange à hegemonia da repetição sobre a
rememoração refletia a assunção de uma postura política frente a uma conduta,
difundida entre os psicanalistas de sua época, em que se interpretava excessivamente e
se negligenciava, em compensação, a situação analítica como um todo, incluído, por
exemplo, todo o comportamento corporal dos pacientes. O fanatismo da interpretação
como Ferenczi cunhou tal hábito de seus colegas denotava uma dedicação maciça
voltada para a tradução dos conteúdos, ou seja, para o trabalho intelectual calcado nos
enunciados verbais, e desprezava completamente a mímica gestual do paciente. Na
opinião de Ferenczi, a interpretação eficaz deveria englobar tanto a vertente intelectual
do processo clínico, quanto aquela afetiva, perceptível pela observação da presença
física do paciente no setting, assim como pela atenção à relação analista-analisando.
56
Para melhor compreender o que Ferenczi defendia, sem presumir
equivocadamente que ele subestimava a relevância da recordação e da interpretação,
talvez seja interessante enfatizar a diferença entre tendência à repetição e repetição. Em
Perspectivas da psicanálise, ele definiu a repetição como transformação dos elementos
repetidos em lembrança atual: “essa repetição consiste [...] em permitir esses afetos e
depois progressivamente liquidá-los, ou ainda, em transformar elementos repetidos em
lembrança atual” (Ferenczi, 1924a, p. 217). Para tanto, encorajava-se a tendência à
repetição por meio da técnica ativa, isto é, imprimia-se uma alteração na dinâmica
econômica para que, em conseqüência disso, o paciente atuasse as cenas traumáticas, as
repetisse diante do olhar do analista. Enquanto tendência, a repetição se inseria numa
unidade temporal isolada, desconexa do restante da história subjetiva. Todavia, se fosse
posta em marcha, essa tendência à repetição adquiria a feição de repetição propriamente
dita e fazia brotar nexos capazes de preencher, em certa medida, as lacunas de memória
do sujeito, sendo então a tendência à repetição revertida em rememoração por meio da
repetição propriamente dita. Assim, a repetição encerrava seu ciclo ao vencer a
tendência à repetição, substituindo-a pela rememoração ou pela construção. A repetição
se localizaria, então, entre o ponto de partida da tendência à repetição e o ponto de
chegada da rememoração, desde o qual se relançaria o movimento analítico, agora
engajado na translaboração dos conteúdos evocados. A hegemonia da repetição na
perspectiva da técnica ativa advém da consideração da rememoração como simples
arrematação de seu percurso; e mesmo a translaboração
44
, terceiro dentre os processos
analíticos elencados por Freud em 1914, só se torna eficaz para a remissão dos sintomas
se enriquecida pela convicção afetiva produzida na repetição.
Outro detalhe interessante é a igualdade de estatuto entre a rememoração e a
construção. Pode-se entrever, também nesse ponto, uma certa desvalorização da
tradução interpretativa, uma vez que a exatidão da transposição de uma linguagem para
outra da linguagem inconsciente para a linguagem consciente ou da linguagem dos
gestos para a linguagem da fala é secundária. Ainda que a repetição não desvele
passado algum, ainda que ela seja pura construção de uma história que jamais ocorreu
dessa forma, se o que foi construído estiver envolto de convicção, o efeito psíquico será
o mesmo que aquele derivado de uma lembrança genuína. Além de ser muito mais
44
Existem inúmeras discussões sobre a tradução do termo alemão Durcharbeiten para o português,
optando-se alternadamente por elaborar, perlaborar ou translaborar. A distinção entre essas três
alternativas ultrapassa os objetivos deste trabalho, sendo os três termos aqui utilizados como sinônimos.
57
plausível pensar dessa maneira, visto que não se têm critérios para averiguar se o ponto
de chegada da repetição é uma recordação de um evento do passado ou uma fabulação
pura e simples, se ganha ainda ao se dotar a prática psicanalítica de uma certa
autonomia no que concerne à construção de uma narrativa histórica para o paciente.
Ferenczi empregava o conceito de construção desde 1920, ao passo que Freud só passou
a adotá-lo em 1936 (Sabourin, 1985, p. 121), chegando a publicar um artigo intitulado
Construções em análise em 1937, no qual endossa essa equivalência entre
rememoração, enquanto revelação de um conteúdo anteriormente afastado da
consciência, e construção, como criação de uma cadeia de sentidos capaz de gerar as
mesmas conseqüências que a recordação, isto é, de dissolver os arranjos psíquicos
sintomáticos.
Em 1926, Ferenczi recua em sua ousada experiência, alterando tão
significativamente o procedimento da técnica ativa, que Pinheiro (1995) e Bokanowski
(2000) concordam em tomar esse ano como o marco do fim da atividade. Sabourin
(1985), por outro lado, entende que, ao invés de criticar a própria técnica ativa, o que
Ferenczi coloca em xeque é o abuso de autoridade da parte do analista, a que se
margem quando se impõem injunções e proibições.
De fato, se a postura autoritária do analista é tida como inerente à técnica ativa,
considera-se 1926, ano em que Ferenczi já anuncia, apesar de timidamente, a
elasticidade por vir, o encerramento de uma fase. Se, ao contrário, se assume que esta
autoridade é apenas uma das modalidades de manifestação da técnica ativa, podendo
esta permanecer no quadro de estratégias terapêuticas disponíveis, a despeito do
abandono da rigidez do analista, adentramos apenas em mais uma etapa do uso da
atividade. Por conseguinte, parece mais importante esclarecer quais mudanças
transcorreram do que firmar uma decisão final sobre a abreviação ou a reconfiguração
da técnica ativa a partir de 1926, o que se deixa a cargo do leitor.
As contra-indicações à técnica ativa, apresentadas por Ferenczi aos psicanalistas,
são um conjunto de algumas precauções recomendadas anteriormente, acrescidas da
observação de que a postura por demais severa do analista, ao colocar injunções e
proibições expressas, induz a um efeito colateral nada desejável para o tratamento, o
aumento das resistências, podendo causar o abandono da análise pelo paciente. Ao
revestir-se de autoridade, o analista reproduz a relação pais-filho ou professor-aluno,
promovendo uma repetição literal demais do trauma, ao passo que a finalidade da
terapia analítica seria certamente repetir o trauma, mas em condições mais favoráveis
58
(Ferenczi, 1926a, p. 276), isto é, em um meio mais acolhedor do que o ambiente
infantil, o que daria um outro destino à experiência traumática, diferente do
adoecimento psíquico.
O subterfúgio encontrado por Ferenczi para contornar esse impasse foi substituir
a irredutibilidade das ordens impostas pelo acordo intelectual do paciente, deixando
aberta a possibilidade de se abdicar da indicação, provisória ou definitivamente, no caso
dela gerar dificuldades exageradas para a continuação do tratamento. “Nossas
indicações ativas não devem ter, segundo a expressão de um colega que analisei, uma
intransigência estrita, mas uma maleável elasticidade”, redigiu Ferenczi (1926a, p. 273),
antecipando o tema do artigo de 1928.
Uma das medidas apresentadas anteriormente como exemplo de atividade, a
marcação de um prazo para o fim de análise, é revista e abrandada, sublinhando
Ferenczi sua aplicação prudente e excepcional, e incutindo-lhe uma reversibilidade
anteriormente ausente, no sentido de evitar que ela tombasse sob o poder das
resistências. A paciência do analista, como arma mais poderosa que a aproximação do
termo do tratamento, evitaria que o paciente se esquivasse do contato com pensamentos
e sentimentos desagradáveis, à espera de que o suplício terapêutico se esgotasse. Se, em
1926, ele corrige seu radicalismo anterior, a partir do qual afirmava que as análises
terminariam mediante tal iniciativa, em 1928, ele rompe inteiramente com a prática do
aviso prévio, declarando que uma análise poderia se completar se dispusesse de um
tempo ilimitado, ou melhor, de uma disposição do paciente em gastar todo o tempo
necessário para se atingir a conclusão do trabalho clínico.
Se uma das razões para Ferenczi instituir a técnica ativa foi o abuso da
associação livre, um dos motivos para que ele questionasse a atividade foi o abuso das
ações. Muitos pacientes, escorados na autorização eventual de se tornarem ativos,
tentavam perturbar o analista e o andamento terapêutico, agindo propositadamente
contra certas convenções técnicas. Em compensação, notou-se que, em geral, tais
atitudes não prejudicavam o tratamento, podendo o analista permitir que os pacientes se
deixassem vencer pelo próprio cansaço. Os limites dessa permissividade se demarcavam
por um critério fundamental: em todo caso, o analista não deveria ser obrigado a sair de
seu lugar, a se deslocar de sua função, pois isso, sim, poderia ameaçar a análise.
Sem querer abdicar inteiramente da técnica ativa, pela qual teve de enfrentar
sucessivos embates políticos com seus colegas, Ferenczi restringiu muito o seu uso,
justificando-o como apropriado unicamente para criar certas condições psíquicas que
59
facilitassem o aparecimento de um material que se supunha existir, presenteando,
com a convicção, a translaboração do analisando. A atividade como promotora da
repetição e propiciadora de uma construção ou rememoração sofreu uma perda de
prestígio. Malgrado desde o primeiro anúncio da técnica ativa Ferenczi ter mencionado
que o analista talvez tivesse um palpite sobre o material inconsciente que encontraria
após a implementação da atividade, esta é rebaixada, neste texto de 1926, a pura
confirmação de raízes etiológicas abordadas pelo trabalho intelectual, estando,
conseqüentemente, excluída a priori a possibilidade do par analítico ser surpreendido
por algum elemento inesperado. Se essa mudança parece minar a importância da técnica
ativa, nesse mesmo escrito, Ferenczi defende que ela seja incluída na formação do
analista, talvez por uma resistência em abandonar o seu maior invento técnico até então.
Ao revisar o seu próprio percurso, ele nos complica ainda mais a tarefa de
interpretar uma continuidade ou descontinuidade entre suas proposições técnicas, ao
subdividir o emprego da técnica ativa em três fases históricas, sendo a última delas
dominada pela elasticidade e diferindo das outras basicamente pelo fato do analista se
contentar em interpretar as tendências à ação, aguardando pacientemente que o
analisando se decida por esboçar alguma atividade, o que seria prontamente aprovado
(Ferenczi, 1928a, p. 308-309). Segundo Pinheiro (1995) e Bokanowski (2000), ao
contrário, a elasticidade e a atividade seriam adventos técnicos substancialmente
heterogêneos, constituindo, portanto, fases técnicas distintas.
Elasticidade da técnica psicanalítica (Ferenczi, 1928a) comporta dois eixos
centrais de argumentação: o primeiro comparece no título e se refere à inserção da
elasticidade na conduta do analista, o que está intimamente vinculado com sua
capacidade de sentir com o paciente, isto é, de ter tato; o segundo opera como
decorrência do primeiro, pois remete à necessidade de que o analista tenha realizado
uma análise pessoal completa para que ele seja capaz de cumprir a exigência da
elasticidade. Ferenczi havia notado anteriormente que a intransigência excessiva do
analista atrapalhava o processo clínico. Complementou essa observação, combatendo o
autoritarismo do analista também no proferimento das interpretações, que deviam ser
proposicionais, e não assertivas, não somente para poupar a relação transferencial, mas
também porque o analista é suscetível a equívocos. Essa modéstia do analista condiria
melhor com os limites da psicanálise, que deveriam ser reconhecidos e aceitos por quem
a praticasse.
60
Inclusive, na eventualidade de um erro do analista, este deveria reconhecê-lo
honestamente ao paciente, sem temer qualquer perda de autoridade, mesmo porque,
segundo Ferenczi, ao contrário do que ocorre nos tratamentos sugestivos, em que a
autoridade do médico tem que ser mantida a todo custo, na análise, o que se espera do
analista é que ele seja confiável, franco e sincero. Para tanto, o analista tem que estar
apto a funcionar como um elástico e “ceder às tendências do paciente, mas sem
abandonar a pressão na direção de suas próprias opiniões, enquanto a inconsistência de
uma dessas duas opiniões não estiver plenamente comprovada” (Ferenczi, 1928a, p.
307). Essa tarefa bastante delicada exige muito tato do analista. Ele deve se colocar “no
mesmo diapasão do doente” (Ferenczi, 1928a, p. 311), estar próximo o suficiente para
sentir, por exemplo, o bom momento e a maneira adequada de enunciar uma
interpretação, com que elementos associativos formulá-la, como se portar nas mais
variadas circunstâncias, quando silenciar ou, inversamente, quebrar o silêncio, etc. O
tato, ademais, diminui a freqüência com que o analista estimula, inadvertidamente, o
fortalecimento das resistências, pois o leva a somar ao seu saber, essa sensibilidade ao
que transcorre no setting em termos afetivos, colocando-o em condições de até mesmo
adivinhar pensamentos e tendências inconscientes do paciente. Percebido por este como
uma espécie de bondade, o tato concerne, em verdade, à capacidade do analista em se
identificar com o paciente, colocar-se em seu lugar, “se representar o vivido do
paciente” (Pinheiro, 1995, p. 110), sendo apenas um dos pólos da metapsicologia dos
processos psíquicos do analista, a atividade intelectual figurando no outro extremo dessa
polaridade, lhe cabendo o exame racional do conteúdo associativo, acrescido de uma
auto-observação e um auto-controle que serviriam de parâmetro para a avaliação
constante dos procedimentos clínicos.
Esse revezamento de disposições psíquicas conta com a habilidade do analista
em lidar com o seu narcisismo e com os seus afetos, habilidade esta que lhe facilitaria
também a aceitação para atendimento de pacientes com as mais diversas idiossincrasias,
agradáveis ou desagradáveis, impedindo que os casos desesperados fossem condenados
ao fracasso em decorrência de uma antipatia insuperável. Tais desafios, porém, somente
são vencidos se o analista tiver se submetido a uma análise pessoal integral, e não a uma
reles análise didática que, nos moldes da época, tinha como objetivo deveras modesto a
ilustração dos mecanismos analíticos, ao invés de um verdadeiro processo terapêutico
voltado para a elaboração das questões subjetivas do futuro analista.
61
A imprescindibilidade da análise do analista, alçada ao posto de segunda regra
fundamental da psicanálise, se associa com a elasticidade da prática clínica de duas
maneiras: por um lado, o fim de análise é descrito por Ferenczi pela aquisição desta
característica elástica, que não está presente em sujeitos não analisados; por outro, para
ser fiel à determinação de manter-se elástico, seguindo de perto as mudanças no
paciente e se prestando a tomar parte inclusive em seus instantes de agressividade, é
exigida, do analista, uma renúncia narcísica que deriva numa sobrecarga emocional
dificilmente sustentável sem essa análise pessoal prévia. A elasticidade denota, assim, a
possibilidade do analista ser persistente e tolerante como um joão-bobo e, agredido sem
piedade pelo paciente, se recolocar de sem qualquer retaliação, disposto a ser
novamente golpeado, até que o paciente desista de descontar-lhe sua raiva, convencido
da obstinação do analista em tratá-lo. A paciência do analista obriga o paciente a trocar
sua transferência negativa por um amor terno.
Apenas muito raramente a hostilidade do analisando é espontaneamente
verbalizada por este, tendo o analista, muitas vezes, que incentivar esse ataque contra si
próprio, desconfiando das demonstrações descabidas de crença no método terapêutico e
da transferência positiva conquistada com muita facilidade, pois pode se esconder por
trás dessas manifestações afáveis, uma transferência negativa intensa. Em Perspectivas
da psicanálise (Ferenczi, 1924, p. 225-226), Ferenczi já havia alertado para a
necessidade de se desmascarar a transferência negativa, e tinha qualificado a análise
desta modalidade de vínculo como a principal ação terapêutica. Com a elasticidade, ele
aprecia, além disso, o funcionamento psíquico do analista na realização desse manejo.
Dois anos mais tarde, a preocupação de Ferenczi era amenizar o sofrimento
exagerado de alguns pacientes por meio do princípio do à vontade, que deveria se
intercalar com o princípio de frustração na regulação da tensão psíquica. Se a frustração
proporcionava o aumento de tensão com fins de produção de material para a
translaboração, o princípio do à vontade intervinha justamente quando essa tensão
tornava-se excessiva, sendo preferível dar ao paciente a liberdade para relaxar. Segundo
Ferenczi, esses dois princípios se alternavam desde a técnica ativa quando, por exemplo,
após forçar o paciente a uma certa rigidez muscular com uma ordem qualquer, liberá-lo
dessa obrigação fazia seguirem-se a relaxação e um enorme alívio, o que é próprio do
princípio do à vontade. Este remeteria a conjunturas clínicas ainda mais antigas como,
por exemplo, à associação livre, em que o imperativo de tudo dizer se acompanhava da
liberdade de expressão.
62
O princípio de relaxação e neo-catarse, assim como a elasticidade da técnica, se
insurgia contra o rigor exagerado do princípio de frustração, que gerava resistências
intransponíveis. Ferenczi descobriu que poderia ser mais frutífero reduzir a frustração e
recorrer à relaxação, da qual se derivava uma flexibilidade que atenuava o sofrimento
do analisando, dando forma a uma atmosfera psicológica mais interessante para o
tratamento. O uso insistente do princípio de frustração resultava numa postura muito
fria e severa do analista, similar à autoridade percebida pelo analisando, quando criança,
em sua relação com os pais ou outros adultos, incapazes de acolhê-lo em suas
necessidades. Essa intransigência era substituída, no princípio do à vontade, por uma
sinceridade total do analista, que emprestava um colorido ao setting bastante distinto
daquele que definia o ambiente infantil traumático, evitando uma repetição muito fiel do
passado doloroso, que deveria ser atuado sempre em vista de uma rememoração, de uma
indicação de mudança entre os tempos. “A semelhança entre a situação analítica e a
situação infantil incita, assim, à repetição, o contraste entre as duas favorece a
rememoração”. (Ferenczi, 1930b, p. 331). A economia de sofrimentos, como
sustentação apenas do sofrimento inevitável para a consecução dos processos analíticos
de repetição, recordação e translaboração, enquanto uma justa medida da angústia do
paciente, funcionava como critério para optar entre o aumento da tensão e a relaxação.
Entretanto, a opção entre essas alternativas deveria ser feita cuidadosamente, pois o que
se visava com o princípio do à vontade era satisfazer a avidez do paciente por ternura, e
não corresponder aos seus anseios sexuais.
Como conseqüência do delineamento de um enquadre analítico acolhedor,
sincero e confiável, a relaxação dava lugar, sem que Ferenczi tivesse qualquer intenção
desse tipo, a estados auto-hipnóticos ou de transe, que se tornavam palco de uma
conversão de sintomas corporais reprodutores de eventos traumáticos infantis, numa
espécie de neo-catarse. Essa “conversão infantil” se organizava pela linguagem gestual
da infância e, ao encenar traumas remotos, servia de confirmação aos fatores etiológicos
aventados pelo par analítico para o padecimento psíquico que assolava o paciente. Essa
repetição, diferentemente do que se dava na técnica ativa, coroava o processo
terapêutico, corroborando a exatidão das conclusões atingidas pelas construções e
translaborações, no que tangia à cadeia etiológica produtora dos sintomas. Assim sendo,
a neo-catarse era apenas uma confirmação inconsciente, obtida ao fim de um longo
percurso analítico, a respeito da etiologia sintomática, ao passo que a paleo-catarse de
63
Freud e Breuer era a distribuição, durante todo o tratamento sugestivo, de fragmentos
mnésicos com pouca eficácia curativa.
A traumatogênese adquiriu sua centralidade na obra teórica de Ferenczi a partir
de seus experimentos técnicos (Pinheiro, 1995, p. 103). A potencialidade patogênica do
trauma foi afirmada em oposição à fantasia ou mentira histérica, localizada por Freud na
raiz do sintoma. “Os fantasmas histéricos não mentem, quando nos falam como pais e
adultos podem de fato ir muito longe em sua paixão erótica pelas crianças”, nota
Ferenczi (1930b, p. 328), fundamentando-se na observação clínica de inúmeros
pacientes que confessavam ter levado às últimas conseqüências suas tendências
incestuosas (Ferenczi, 1933, p. 351). Mesmo que as crianças exibam uma presteza ao
erotismo genital muito maior do que se esperaria, sua expectativa com este jogo de
sedução é dar seguimento a uma brincadeira terna. Atribuindo à criança o aspecto
apaixonado da sexualidade adulta, o agressor instaura uma confusão de línguas em que
a ternura infantil é atropelada pela paixão adulta, sendo invadida precocemente pelo
sentimento de culpa e pela ambivalência. Enquanto ama ternamente um objeto, a
criança não pode simultaneamente odiá-lo, o que somente é tornado possível pela
aquisição do sentimento de culpa.
Logo após as experiências de abuso, a criança é invadida por um medo, que a
leva a esquecer-se de si e identificar-se com o agressor, tomando para si o sentimento de
culpa que recai sobre ele. Sem conseguir compreender essa língua estranha que
envolve paixão e culpa – a criança recorre a um segundo adulto, contando o acontecido,
sendo desmentida em seu relato, o que faz com que ela passe a desconfiar de seus
próprios sentidos. Ferenczi atribui a esse desmentido, e não à experiência de agressão
em si, a potencialidade patogênica do trauma.
Uma auto-clivagem narcísica se estabelece no eu em conseqüência desse trauma,
sendo a criança dividida em duas partes: uma que agoniza indefesa, e outra que cuida da
parcela em sofrimento à maneira de uma mãe. Esta segunda porção do eu se desenvolve
a partir de um amadurecimento precoce de determinadas faculdades ou disposições,
fenômeno a que Ferenczi nomeou “pré-maturação patológica” ou “progressão
traumática patológica” (Ferenczi, 1933, p. 354), mas que tinha esboçado no seu
comunicado sobre o sonho do neném sábio (Ferenczi, 1923).
Todo esse mecanismo da traumatogênese ficou mais evidente para Ferenczi a
partir da relaxação, e o levou a tratar seus pacientes adultos como alguns de seus
colegas analistas lidavam com os pacientes crianças: dando-lhes o privilégio, em
64
análise, de serem eventualmente cuidados com uma benevolência e compreensão
maternais, de serem mimados
45
, e terem a oportunidade de fruir da ingenuidade e
irresponsabilidade que lhes foi roubada em suas infâncias. “O que estes neuróticos
precisam é de serem verdadeiramente adotados e que se os deixe pela primeira vez
provar as graças de uma infância normal” (Ferenczi, 1930b, p. 332). Isso sempre
prudentemente revezado com o princípio de frustração, para que a transferência sexual
dedicada ao analista pela porção adulta do eu clivado não fosse satisfeita.
O jogo de perguntas e respostas
46
foi uma das estratégias de Ferenczi para
aproximar ainda mais os procedimentos terapêuticos com crianças e adultos. Neste, uma
regra à qual não se podia jamais renunciar, era que se fizessem perguntas por meio de
um vocabulário infantil, e que fossem compatíveis com a cultura de uma criança.
Interpretações complexas interrompiam o jogo e rendiam reprovações dos pacientes,
que reclamavam da falta de jeito do analista para a brincadeira. Se o analista, no
entanto, reconhecesse seu erro e se esforçasse por aprender a brincar, uma confiança
começava a se tecer na relação entre os dois. No âmbito dessa atmosfera confiável, os
pacientes se entregavam a relaxações profundas em que davam ensejo às tendências à
repetição, encenando as cenas traumáticas escondidas nos interstícios das atividades
lúdicas.
O predomínio da relaxação nessas análises realizadas por Ferenczi fala a favor
da hipótese de Pinheiro (1995) e Bokanowski (2000) sobre uma ruptura entre a técnica
ativa e a elasticidade, sendo esta uma espécie de anunciadora do princípio do à vontade.
Na técnica ativa, a frustração dominava o cenário do tratamento, e na relaxação adotada,
por exemplo, nessas “análises de crianças com adultos”, um incentivo por uma
economia de sofrimento, no sentido mesmo de conter a angústia proveniente da situação
traumática, ou melhor, deixar que ela advenha, mas possa finalmente abandonar o
paciente, uma vez que as condições atuais do tratamento são muito mais favoráveis.
Para que o analista possa conformar esse ambiente mais acolhedor, ele se apóia sobre a
elasticidade e a capacidade de sentir com o paciente.
É exatamente nesse ponto que se o distanciamento em relação a Freud, que
havia escrito anteriormente que a insatisfação da transferência, isto é, o impedimento de
que a tensão sexual se descarregasse, era condição sine qua non para o prosseguimento
45
“Pode-se, com razão, afirmar que o método que emprego com meus analisados consiste em “mimá-
los”” (Ferenczi, 1931, p. 341).
46
Esse tipo de procedimento, abarcado pelo que Ferenczi denominou “análise pelo jogo”, tem
ressonâncias inegáveis com o brincar winnicottiano.
65
do tratamento, visto que era essa tensão que impulsionava o paciente na busca pela cura
de seu mal-estar. A partir da manutenção da abstinência do paciente e da sustentação da
transferência, fragmentos inconscientes apareceriam, principalmente em alhos falhos e
relatos de sonhos. A frustração alimentando a emergência dos elementos inconscientes,
restava ao analista, além de manejar a transferência de maneira que ela não fosse
satisfeita, interpretar os conteúdos que invadiam a cena analítica.
Com a formulação de Ferenczi sobre o princípio de relaxação, todo esse arranjo
se desmonta. Segundo esse princípio, ao invés de sempre frustrar o paciente, o analista
deve preferencialmente deixá-lo ter a chance de relaxar, em algumas ocasiões, quando a
manutenção da tensão causa um sofrimento excessivo que, ao contrário de colaborar
com a análise, apenas deixa o paciente abandonado à sua angústia. Deriva
necessariamente dessa concepção, uma noção de cuidado, em que o analista deve sentir
quando pôr em vigor o à vontade. Em lugar da interpretação, a principal função do
analista passa a ser fornecer um setting acolhedor e confiável, com a inclusão de outros
procedimentos. Esse cuidado, ambientado no setting e desempenhado pelo analista,
implica num vínculo transferencial sem qualquer tonalidade sexual, inadmissível para
Freud. Portanto, as conseqüências de se abdicar da lógica econômica implícita no
princípio de abstinência são desastrosas da perspectiva freudiana, pois isso significaria
destituir a interpretação, como procedimento analítico central, e a sexualidade, como
ordenadora dos processos subjetivos.
É interessante, porém, que, mesmo frente a uma mudança tão radical que, ao
reverter a lógica econômica, muda completamente o entendimento da clínica, a
repetição mantenha uma marcada relevância ao longo de todo o percurso, ainda que ela
oscile entre reveladora de um conteúdo escondido e confirmadora de uma construção
concluída. Talvez seja ela o fio de continuidade que alguns vêem nas diversas dinâmicas
técnicas descritas por Ferenczi.
Em seu movimento, iniciado pela elasticidade, de ir cada vez mais ao encontro
do paciente, Ferenczi acabou por fazer do desconforto uma condição para o trabalho do
analista, na medida em que este deveria estar disposto a abdicar de suas fruições
narcísicas em benefício das necessidades do paciente. Sabendo que, para isso, era
indispensável uma análise pessoal completa do analista, e tendo sido desapontado por
Freud nesse ponto, Ferenczi se arrisca em mais uma modalidade técnica, que lhe custou
sérios aborrecimentos.
66
A análise mútua foi uma experiência desenvolvida por Ferenczi com alguns
poucos pacientes, e que jamais foi sistematizada com fins de publicação. Tem-se acesso
apenas a suas anotações num diário clínico redigido ao longo de 1932, ano anterior ao
ano de sua morte. Seu objetivo inicial era ser o mais sincero possível com o paciente,
deixando-lhe ciente das suas limitações que, inevitavelmente, impediriam o atendimento
de certas necessidades do paciente. Entretanto, mostrou-se impossível uma efetiva troca
de lugares, uma vez que o analista diria aquilo que o paciente tivesse apto a ouvir e
que lhe dissesse respeito em alguma medida. A análise mútua pode ser entendida como
uma tentativa absolutamente radical de compartilhamento das experiências traumáticas
do analista e do analisando, visando uma superação das conseqüências patógenas
incapacitantes do analisando, a partir de uma identificação profunda com o analista.
Ainda que alguns aspectos da vida do analista tenham sido expostos para o analisando, a
finalidade não é uma análise do analista, mas sim a criação de condições para que,
aprendendo a lidar com as limitações do analista, e tendo atingido a possibilidade de
perdoá-lo por suas falhas, o analisando criasse a “base mais sólida para a existência” a
que Ferenczi havia aludido (1930b, p. 332).
No início desse experimento, Ferenczi sentiu-se aliviado, como se houvesse tido
a chance de abdicar do desconforto que caracterizava o trabalho analítico desde a
adoção do artifício da elasticidade. Mas esse relaxamento do analista não se sustentou
por muito tempo, pois logo se multiplicaram as questões éticas em torno da análise
mútua. Uma delas consistia na comunicação do analista: se por um lado, a proposta da
análise mútua era falar para o analisando o que se pensava, por outro, não se podia
esquecer que a comunicação inclui uma administração do tempo, uma avaliação do
momento propício. Não seriam essas duas propostas incompatíveis? Deveria ele
comunicar o que havia pensado, assim que tal pensamento lhe viesse à mente? Poderia
ele omitir do paciente parte de suas reflexões? E quanto ao sigilo, como seria ele
resguardado, imaginando-se uma rede de análises mútuas, em que muitos dos
analisandos tratados eram também analistas? O acúmulo de ressalvas apontadas por
Ferenczi à análise mútua não pôde receber considerações adicionais, pois a morte
calaria, por longos anos
47
, a voz revolucionária desse incrível enfant terrible da
psicanálise.
47
Aqui, se faz referência não apenas à interrupção das pesquisas do próprio Ferenczi, mas também à
demora da publicação de seu Diário Clínico, que inviabilizou, por décadas, a discussão a respeito da
análise mútua nos meios psicanalíticos.
67
O caráter
A noção de um si, que se pretende definir na obra de cada um dos autores
centrais dessa dissertação, não se apresenta de forma nítida em Ferenczi. Esse processo
em perpétua abertura para o mundo e, conseqüentemente, em constante mutação, pode
ser compreendido a partir de alguns conceitos balizadores. Entre eles, destacam-se o
caráter, o eu, a introjeção e a projeção, a autoplastia e a aloplastia, e o trauma.
A obra de Ferenczi coloca muito mais dificuldades do que aquela de Freud na
hora de se delimitar o uso que se faz do conceito de eu. Freud, na segunda tópica, se
consagra a pensar metapsicologicamente o eu, ao passo que Ferenczi nunca fez isso. Em
sua teoria, a noção de eu é extremamente vaga e jamais foi, para ele, fonte de muito
interesse. Como é necessário, para este trabalho, extrair dos autores uma concepção de
subjetividade, será feito um esforço no sentido de retirar, dos escritos de Ferenczi,
alguns indícios que, agrupados, responderiam por uma tal concepção.
A nomenclatura de eu, evocada de maneira bastante imprecisa, se aplica tanto
para uma dentre as três instâncias do psiquismo sendo as outras, o isso e o supereu –,
como para uma idéia de totalidade narcísica, inaugurada por uma projeção primitiva.
Como uma das instâncias psíquicas, não se percebem diferenças significativas
entre o eu comentado por Ferenczi e aquele abordado por Freud, que justifiquem um
detalhamento. Assim sendo, avançar-se-á diretamente para o eu enquanto continente
narcísico que se contrapõe ao mundo no trabalho de demarcação de suas fronteiras. Em
1909, Ferenczi expõe a passagem de um monismo inicial, em que não haveria separação
ou distinção entre o eu e o mundo, ao dualismo posterior, quando esta limitação entre
interior e exterior houvesse sido definida. Acrescenta, em 1913, as etapas que
preenchem esse percurso, desde as fases de introjeção até a fase de projeção, na qual o
sentido de realidade predomina sobre a ilusão de onipotência.
A princípio incapaz de discernir entre os processos psíquicos e os estímulos
externos, tomando a ambos como percepções de mesma natureza e ignorando-lhes a
origem diversa, o bebê só opõe o vivido subjetivo ao percebido objetivo posteriormente,
depois da primeira projeção, a projeção primitiva. É nesse sentido que Ferenczi afirma
que “apenas quando um conteúdo psíquico puramente subjetivo torna-se puramente
objetivo, falaremos de projeção” (Ferenczi, 1912a, p. 63). Este primeiro movimento
projetivo inaugura o dualismo, apesar de não abolir imediatamente a ilusão de
onipotência.
68
Em seguida à projeção primitiva, uma parte previamente expulsa do eu impõe-se
e é reabsorvida na esfera egóica, fenômeno que foi denominado introjeção primitiva e
serve como protótipo das relações futuras com os objetos. Conforme o mundo exterior
vai sendo extraído da “massa de percepções” infantis, isto é, conforme as projeções vão
acontecendo, as introjeções que as sucedem permitem à criança atribuir aos objetos,
agora incluídos no eu, o prazer ou desprazer experimentado, sentindo, em relação a eles,
amor ou ódio. O desenvolvimento do eu se por esses dois processos postos em
marcha contínua: a projeção e a introjeção.
Tendo apresentado o conceito de introjeção em 1909, Ferenczi sente-se impelido
a precisá-lo ainda mais, três anos depois, por causa do uso equívoco desta noção por um
autor da época. Almejando a exatidão de sua idéia, sublinha que a introjeção consiste
numa extensão do interesse ao mundo externo, que concorre para a introdução dos
objetos no perímetro egóico, e redunda numa união com os objetos amados, numa fusão
destes com o eu. Apenas dessa maneira, está o eu apto a amar os objetos: tornando-os
sua extensão, integrando-os em seu continente. Uma boa imagem para essa
possibilidade de investimento libidinal nos objetos, revertendo-os em prolongamentos
do próprio eu, nos é oferecida por Freud em seu artigo sobre o narcisismo, que
contempla questões muito semelhantes àquelas aqui dispostas:
[...] formamos a idéia de que há uma catexia libidinal original do ego,
parte da qual é posteriormente transmitida a objetos, mas que
fundamentalmente persiste e está relacionada com as catexias objetais,
assim como o corpo de uma ameba está relacionado com os
pseudópodes que produz (Freud, 1914c, p. 83).
A compreensão do mundo em sua alteridade radical ao longo do
desenvolvimento do eu é tema de dois artigos importantíssimos de Ferenczi, afastados
por um intervalo de treze anos, em que a matriz teórica da psicanálise atravessou
enormes reconfigurações. O desenvolvimento do sentido de realidade (Ferenczi, 1913)
encaixa-se bastante bem num quadro psicanalítico freudiano de polarização da vida
psíquica entre o princípio de prazer, regente da sexualidade, e o princípio de realidade,
indispensável à auto-conservação. O problema da afirmação do desprazer (Ferenczi,
1926b), por sua vez, segue os passos da segunda tópica freudiana, em que o jogo entre
as pulsões de vida e de morte dita as regras da dinâmica psíquica. Conseqüentemente, se
no primeiro texto, o reconhecimento da realidade pressupõe uma renúncia à
onipotência, a certos desejos e, por conseguinte, a determinados prazeres; no segundo,
69
ainda que se coloque a possibilidade de um cálculo do menos desprazeroso, numa
matemática submetida à lógica do princípio do prazer, é destacada, porém, a
insuficiência desse princípio, sobrepujado por um mais além, que vincula a adaptação
ao mundo à destruição de uma parte do eu.
O pressuposto de que parte Ferenczi, em 1913, para apreciar as fases iniciais da
relação do eu com o mundo, é aquele segundo o qual não nenhuma tendência
espontânea ao desenvolvimento no sujeito, que apenas é impulsionado nesse sentido por
estímulos externos, que poder-se-ia, tranqüilamente, denominar traumas
48
. Ele designa
essa sucessão de traumas, como “uma série de arrancadas sucessivas de recalcamento”
(Ferenczi, 1913, p. 86), para salientar o imperativo de renúncia aos modos de satisfação
usuais, que deveriam ser esquecidos para que se pusessem outros em seu lugar, cada vez
mais informados da realidade.
duas séries paralelas de desenvolvimento: uma referente ao eu, e esmiuçada
neste texto de 1913, e outra relativa ao erotismo, publicada como capítulo em Thalassa
ensaio sobre a teoria da genitalidade (Ferenczi, 1924c). O desenvolvimento do
sentido de realidade erótica e seus estágios parte sobretudo dos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade (Freud, 1905d), para acompanhar o curso do erotismo até a
função genital que, nas palavras de Ferenczi, “representa o paralelo erótico da “função
de realidade”, ou seja, o acesso ao “sentido de realidade erótica”” (Ferenczi, 1924c, p.
26). Se no desenvolvimento do sentido de realidade, ultrapassam-se os diversos
períodos de onipotência até se estabelecer o predomínio do princípio de realidade; no
desenvolvimento do sentido de realidade erótica, percorrem-se desde os estágios iniciais
da sexualidade até o coito, no qual se uma “reprodução genital da situação intra-
uterina” (Ferenczi, 1924c, p. 34), reprodução esta que, nos termos do autor, “permite o
retorno real, se bem que parcial, ao útero materno” (Ferenczi, 1924c, p. 26).
Esse paralelo erótico do desenvolvimento não será mais extensamente abordado,
que não parece proveitoso à discussão da hipótese desta dissertação e, também, visto
que não é interessante manter uma distinção estrita entre realidade e realidade erótica.
Isso porque, para dar um exemplo, Ferenczi localiza o narcisismo na vertente erótica do
desenvolvimento (Ferenczi, 1913, p. 85), o que não se adequa perfeitamente à idéia que
48
O trauma nem sempre é patogênico na teoria de Ferenczi. Para além dos traumas desestruturantes, que
disparam a mutilação ou o aniquilamento do eu, dando margem a um sofrimento excessivo e a uma
incapacitação do sujeito para uma série de experiências em sua vida, há os traumas estruturantes, que são
condições para que se instaurem novos modos de estar no mundo, ainda que o modo anterior não seja
descartado, mas apenas privado de sua hegemonia.
70
toma o narcisismo como o modo de relação primitiva do eu com o mundo, na qual se
desconhece a alteridade, ou melhor, na qual o mundo está fundido com o eu, como se
compusesse juntamente com ele uma singularidade. Talvez se possa lançar mão dos
textos de Ferenczi, no âmbito da proposta desse capítulo, deixando de lado esse
paralelismo dos dois sentidos de realidade e partindo de um momento narcísico inicial
comum a essas duas linhas de desenvolvimento, em que a libido estaria depositada
nesse todo harmônico eu-mundo, configurando uma onipotência seja do eu, seja do
erotismo. Um atenuante para se ignorar essa distinção ferencziana entre os dois sentidos
de realidade é o fato de que ela se sustenta num conjunto teórico que oponha eu e
sexualidade, a saber, a primeira tópica freudiana, mas não num outro baseado no
conflito entre a pulsão de vida, que agrupa o eu e a sexualidade, e a pulsão de morte, ou
seja, a segunda tópica freudiana. Ainda se pode citar, a favor do abandono dessa dupla
linhagem do desenvolvimento do sentido de realidade, a fragilidade da noção de auto-
erotismo, à qual a teorização do desenvolvimento do sentido erótico é bastante fiel,
adotando inclusive a subdivisão da sexualidade em fases auto-eróticas. A maior crítica
de que o auto-erotismo é vítima concerne ao pretenso isolamento do sujeito em relação
ao ambiente circundante, que parece excluído dos circuitos de satisfação auto-eróticos
49
.
Durante a vida intra-uterina, o feto está de tal forma contemplado em suas
necessidades, que sequer deseja. Desse período da onipotência incondicional,
caracterizado pela satisfação plena das pulsões, o recém-nascido não abdica facilmente.
Privado das condições ideais do útero materno, o bebê reage de forma alucinatória,
representando-se as circunstâncias satisfatórias anteriores. Ingressa, desse modo, no
período da onipotência alucinatória mágica, em que os cuidados maternos garantem que
ele se sinta dono de poderes mágicos, apto a realizar todos os seus desejos pela simples
alucinação da satisfação. Desde este estágio, o desprazer ensejo a descargas motoras
desorganizadas, mais tarde derivadas em movimentos de complexidade gradativamente
maior. A função de toda esta movimentação é oferecer indícios ao mundo externo que,
acionado por esses gestos mágicos, comparece e abrevia o mal-estar. Quando este
trabalho motor adquire uma sofisticação, a ponto dos gestos corresponderem a
necessidades específicas, configurando uma verdadeira linguagem gestual, as condições
de atendimento das necessidades são mais uma vez preenchidas e se alcança o período
da onipotência com a ajuda de gestos mágicos. Entretanto, ainda que a criança queira
49
A esse respeito, ver a consistente crítica de Balint em A falha básica (1968).
71
adiar a todo custo o abandono da onipotência e o reconhecimento da realidade, os
desejos tornam-se mais ousados, além de dependentes de condições cada vez mais
numerosas e complexas, o que redunda numa impossibilidade do ambiente em atendê-
los com a mesma prontidão e eficiência, havendo alguns que deverão ser deixados
insatisfeitos. Tem lugar a projeção primitiva:
Se até então o ser “todo-poderoso” podia se sentir um com o universo
que o obedecia e seguia os seus sinais, uma discordância dolorosa vai
se produzir pouco a pouco, no seio de sua experiência. Ele é obrigado
a distinguir do seu ego, como constituindo o mundo exterior, certas
coisas malignas que resistem à sua vontade, isto é, separar os
conteúdos psíquicos subjetivos (sentimentos) dos conteúdos
objetivados (impressões sensíveis) (Ferenczi, 1913, p. 81).
Esta projeção primitiva inaugura a fase de projeção, regida pelo princípio de
realidade. Os períodos anteriores de onipotência, por outro lado, classificam-se como
fases de introjeção, por estarem todas as experiências incluídas no eu. Curiosamente, as
fases de introjeção antecedem a introjeção primitiva, esta, posterior à projeção
primitiva. Isto se dá, pois a introjeção primitiva leva em conta os objetos e com eles
tece os primeiros laços afetivos, as primeiras relações de amor e ódio. Em contrapartida,
nas fases de introjeção, o sujeito não está ciente dos objetos, devido à onipotência
experimentada. Essa ilusão de onipotência o induz a considerar os objetos como
prolongamentos do seu eu – ou proto-eu, uma vez que o eu propriamente dito só começa
a se constituir a partir da oposição com o mundo, na projeção primitiva –, à maneira da
ameba e seus pseudópodes, ilustrada por Freud e mencionada acima.
Apesar do eu estar apartado do mundo, a ligação entre os dois é preservada
primeiramente pela introjeção primitiva, que servirá de modelo de relação com os
objetos ao longo de toda a vida do sujeito, e depois por outras introjeções. Após a
projeção primitiva, o eu conformado com a redução de sua totalidade e privado de
parte do universo que antes lhe pertencia, ou seja, dos objetos investe nesse mundo
agora situado em seu exterior, sempre em busca de ali encontrar qualidades que lhe são
próprias. Neste período chamado animista, a vida e a lógica funcional corpórea, cabidas
ao eu, são igualmente percebidas nos objetos do mundo. Esta é a origem das relações
simbólicas, relações entre o corpo e o mundo externo, que se perpetuam ao longo de
toda a existência do sujeito.
O simbolismo começa por uma imitação do mundo externo pelo corpo, por uma
linguagem gestual paulatinamente refinada, que apresenta a oportunidade de expressão
72
de desejos envolvendo uma modificação do mundo externo. Logo antes, os desejos
visavam se realizar por meio de autoplastias, de modificações do próprio eu, que,
durante muito tempo nas fases de introjeção –, englobou também o mundo externo.
Este tendo sido destacado da totalidade narcísica, os desejos começaram a aludir a
objetos exteriores ao eu, exigindo uma transformação do mundo, uma aloplastia. Tais
moções desejantes, no entanto, puderam ser expressas somente em função do
aperfeiçoamento da linguagem gestual.
Mesmo neste estágio adiantado, a ilusão de onipotência é viável: basta que a
criança seja tratada com amor e atenção por seus cuidadores, que uma boa parcela dos
seus desejos se satisfazem, endossando a perspectiva animista a partir da qual ela o
mundo. Todavia, a satisfação não é tão certa como antes, vendo-se o bebê obrigado a se
empenhar numa espécie de conquista do ambiente circundante para que seus gestos
mágicos sejam recompensados com a satisfação almejada
50
.
Pouco a pouco, o simbolismo gestual vai sendo trocado por uma linguagem
verbal, que obtém mais sucesso na indicação dos desejos, não apenas por ser mais
precisa, mas também por ser mais econômica. Essa utilização das palavras porta ainda
uma outra vantagem: é o passo preliminar para o pensamento consciente, tido como “a
mais alta realização do aparelho psíquico” (Ferenczi, 1913, p. 83), por alongar o
intervalo entre o aumento de tensão e a descarga, e auxiliar o eu em sua relação com a
realidade. Ensaiando as primeiras palavras e pensamentos conscientes, se estiver
amparada por um meio cuidadoso, a criança ainda é atendida em muitos de seus desejos
e conserva sua onipotência, nesse último período anterior à separação psíquica completa
entre o eu e os cuidadores, denominado período dos pensamentos e palavras mágicos.
Em verdade, Ferenczi sublinha que uma reserva de onipotência acompanha o
sujeito por toda a vida, se ele ceder e fizer eventuais compromissos com o sentido de
realidade, através do qual se evidenciam as circunstâncias necessárias para a nossa
50
Apesar da histeria estar inserida na lógica animista dos gestos mágicos, a grande diferença entre esse
quadro sintomático e o estágio infantil em questão reside no fato de que, na histeria, tais gestos servem a
uma estratégia autoplástica de realização de desejo, ao passo que, no momento infantil aludido, essa
gestualidade, ainda que implique igualmente numa imitação do mundo, funciona como indicativo para
que a aloplastia tenha lugar, ou seja, para informar aos cuidadores acerca da transformação no mundo
exigida pelas moções desejantes infantis. Se a onipotência sentida pela criança parece apagar essa
diferença, em compensação, a incerteza crescente quanto à satisfação parece oferecer, para ela, indícios
de um ambiente cuidador, em cujas graças ela deve cair para não ter que abdicar de seus superpoderes.
Essa consideração do meio como condição de realização de moções desejantes que se dirigem para o
mundo exterior coincidiria com um triunfo da aloplastia sobre a autoplastia. Embora o agente dessa
aloplastia seja o cuidador, o impulso de transformação do mundo partiu do próprio sujeito e o desejo
apenas se por satisfeito em tais circunstâncias aloplásticas, ao contrário do que ocorre na histeria, cuja
satisfação é autoplasticamente alcançada.
73
satisfação. Caso contrário, se ele não quiser se dobrar à realidade e insistir em desejos
incompatíveis com as condições apresentadas, a onipotência e o sentido de realidade são
alocados em dois extremos de uma balança, significando o lucro de um necessariamente
o prejuízo do outro.
Ao empreender uma releitura do desenvolvimento do eu à luz da segunda
dualidade pulsional, Ferenczi (1926b) dedica especial atenção à aceitação do desprazer,
fundamental para o reconhecimento da realidade. Segundo ele, entre a ignorância e o
reconhecimento dos objetos exteriores, existe uma fase intermediária de denegação, que
consiste numa tentativa do princípio de prazer em evitar o sentido de realidade. No
período de onipotência alucinatória mágica, o bebê ignora o objeto, lançando mão da
alucinação. Tornando-se este recurso insuficiente, tem vez a denegação, a negação de
existência do conteúdo perceptivo. O desprazer insistindo em se fazer sentir, o
psiquismo lançaria mão de uma inteligência matemática que Ferenczi descreve como
uma máquina de calcular do aparato psíquico responsável por avaliar, em coerência
com o princípio de prazer, a alternativa menos desprazerosa: denegar ou aceitar a
percepção do objeto. A opção pela percepção do objeto resultaria, assim, de duas
negações: a negação do conteúdo perceptivo, sucedida pela negação dessa negação, ou
seja, pela negação da negação do conteúdo perceptivo. Sobrepostas duas negações,
obter-se-ia uma afirmação do desprazer.
A ambivalência caracteriza a relação do eu com os objetos a serem percebidos.
Quando os laços são puramente amorosos, os objetos não são notados, pois parecem
estar incluídos na esfera egóica; quando o vínculo é marcado pelo ódio, eles são
recalcados. Entretanto, quando amor e ódio convivem na ligação com algum objeto, se
desfazem as possibilidades de introjetá-lo ou recalcá-lo definitivamente, e se é forçado a
projetá-lo, a percebê-lo objetivamente, depois de acionar o mecanismo da dupla
negação. Isso se dá tanto com objetos de amor que às vezes se recusam em presentear o
sujeito com a satisfação, quanto com objetos odiados, cuja negação não se sustenta
precisamente porque, em verdade, o eu desejaria amá-los, mas a “malícia” deles não o
permite. Esses objetos provocam uma desintricação da mescla pulsional do eu e são
expelidos para o mundo exterior, mas isso é apenas o reconhecimento de que eles
existem. Para se chegar realmente à visão objetiva (desses objetos), as pulsões devem
intricar-se novamente. Essa neutralização mútua das pulsões é o que está por trás dos
processos de pensamento consciente abordados, da capacidade de julgar e agir
objetivamente, ao invés de descarregar a tensão de maneira reflexa.
74
A projeção de objetos que são fontes de desprazer não resolve inteiramente a
questão, mesmo porque, com a intricação pulsional readmitida, volta-se a lhes dedicar a
parcela de amor a que têm direito. No processo de afirmação do desprazer, o eu é,
portanto, colocado frente a alguns impasses em seu desenvolvimento: não somente
prazeres localizados externamente, tal como se constata na relação ambivalente com os
objetos que, apesar de projetados, continuam a ser amados; mas alguns desprazeres têm
como fonte o próprio eu, não sendo possível ignorá-los por alucinação ou por negação
durante muito tempo; e existem desejos aos quais é imperativo renunciar, dado que o
mundo lhes nega a satisfação e, como conseqüência lógica, é preciso reconhecer os
desejos recalcados. Em adição a isso, o eu se obrigado a introjetar, com a ajuda de
Eros, elementos hostis do mundo, perdendo parte de sua porção libidinal narcísica e,
igualmente, deve renunciar a uma parcela amada de si próprio, o que pode ser
explicado pelo impacto auto-destrutivo da pulsão de morte, cuja agressividade, no
entanto, contribui para o desenvolvimento do eu. Ferenczi argumenta que essa
destruição do eu, em boa medida, é a “causa do devir”, sendo este devir construído pelas
ligações empenhadas por Eros. Trata-se de uma alusão à noção de trauma estruturante,
comentada algumas páginas acima, de uma adaptação autoplástica do eu. Quando o
sentido de realidade está suficientemente desenvolvido, soma-se a essa modalidade
adaptativa, uma outra, aloplástica, que dispensa a destruição e reconstrução do eu, em
prol da transformação do mundo (Ferenczi, 1930c, p. 239-240).
Enfim, chega-se ao tema do caráter. Este poderia ser descrito como um
precipitado de hábitos e sintomas
51
, que responde pela “definição mais ampla da
personalidade” (Ferenczi, 1930a, p. 219). Antes mesmo da consolidação do caráter,
temos como causa de nossas ações a constituição instintiva, que se poderia batizar de
“sistema mnésico da espécie”, para contrapor ao “sistema mnésico do ego”, onde se
acumulam os traços caracteriais que definem o modo de ser do sujeito. Ferenczi,
aparentemente, inclui os instintos como parte do caráter, mas a incidência do biológico
puro, se é que ele existe, é menos relevante do que a maneira pela qual esse biológico
funciona, ou ainda, a maneira pela qual os hábitos orientam os instintos. Por exemplo,
ainda que a necessidade de dormir componha a vida prática de qualquer ser vivo, o que
concerne à investigação psíquica é a forma pela qual cada sujeito dorme, como é o seu
sono, com que produções psíquicas esse repouso físico faz par; para resumir, como
51
Hábitos em sua origem, os sintomas são fruto de um enrijecimento que lhes conferiu o aspecto imutável
dos instintos.
75
estão encadeados o biológico e o psíquico
52
, na consecução dos hábitos. Estes, por sua
vez, são formados a partir da transformação de ações ou pensamentos inicialmente
voluntários e conscientes, que se reverteram em automatismos, sendo os sintomas uma
radicalização desse processo, uma vez que são inconscientes, e não pré-conscientes
como os hábitos, e quase tão imutáveis quanto os instintos, ao passo que os hábitos são
a camada de mutação do caráter. Ambos tanto os hábitos quanto os sintomas são
traços gravados no sistema mnésico do eu, posteriormente a traumas sofridos, e servem
à reprodução destes traumas, cuja extensão e gravidade determina a freqüência e
intensidade destas repetições.
As ações e os pensamentos voluntários não fazem parte do caráter, mas
contribuem para a sua formação, ao firmarem relações com o mundo externo. Enquanto
movimentos introjetivos, as ações e pensamentos voluntários motivam uma alteração do
caráter por meio da introjeção de partes do mundo, que se registram mnesicamente no
eu como traços caracteriais. Por causa da relação ambivalente que temos com os objetos
pois, caso contrário, eles nunca teriam sido projetados, destacados do eu –, a
introjeção desses fragmentos do ambiente significa necessariamente a introjeção de
hostilidade. Como explicitado na menção ao desenvolvimento do eu, a afirmação desse
desprazer redunda na destruição de uma porção do eu, ou seja, em um trauma. Se o
trauma for estruturante, ele se assenta no sistema mnésico do eu sob a forma de hábitos;
se for desestruturante, na melhor das hipóteses, ele se transforma em sintomas
neuróticos, na pior, ele promove uma fragmentação tão grave do eu, que provoca uma
“desmaterialização” (Ferenczi, 1930c, p. 239).
Nessa leitura, o caráter coincide com o eu, este definido como o continente
narcísico que se constitui por oposição ao mundo na projeção primitiva, e que continua
a se desenvolver posteriormente, ao longo de toda a sua existência. No próximo item,
tentar-se-á demonstrar de que maneira o eu, ou o caráter, é tornado fluido e
reconfigurado na prática analítica.
52
Não há qualquer pretensão, aqui, em se abordar consistentemente a questão do dualismo mente x corpo,
ou psíquico x biológico, como se queira chamar. Essa passagem se presta unicamente para justificar a
opção por excluir, do caráter, o suposto agregado instintivo puro, levando em conta o instintivo apenas no
que ele se enlaça com o psíquico. Tais elementos puros sejam eles puramente biológicos ou puramente
mentais parecem, ademais, pura ficção, e não obtêm qualquer prova na observação das experiências
subjetivas, o que levou a considerá-los sempre misturados e inseparáveis uns dos outros. Cabe notar, no
entanto, que Ferenczi provavelmente estaria de acordo com esse aspecto, sendo muito possivelmente o
uso textual indiscriminado da noção de instinto tão somente um descuido terminológico.
76
A criação de um si
Na prática psicanalítica ferencziana, a ternura e a confiança características da
atmosfera do setting propiciam a criação de um si, que parte de uma fluidez do caráter
para avançar por movimentos destrutivos e introjetivos, desencadeadores de uma
oniplastia, ou seja, de uma plastia onidirecional, que agrega a autoplastia e a aloplastia,
uma como contrapartida necessária da outra.
A dimensão transferencial narcísica de encontro que foi tratada no primeiro
capítulo é abordada por Ferenczi como uma atmosfera psicológica sincera e confiável,
em que o sujeito pode experimentar uma relação amorosa sem ambivalência, terna. Essa
oportunidade de viver um laço amoroso infantil, esse “mimo” precioso que o analista
oferece ao paciente, promove a abolição momentânea da distância gigantesca entre o eu
e o mundo, precavidamente mantida no sentido de proteger a parcela do eu
vastamente castigada pelo trauma. Ao relaxar em análise, o paciente permite a
aproximação do analista que, sentindo com o paciente, colocando-se no mesmo
diapasão que ele, isto é, deixando-se amar ternamente, consolida o encontro que
sustenta a criação de um si. A especificidade do vínculo transferencial descrito por
Ferenczi, notadamente em seus textos mais tardios, evidencia que ele estava falando de
pacientes muito diferentes daqueles de Freud. Freud, em sua clínica, atendeu
predominante histéricas e, conseqüentemente, se consagrou mais a descrever o amor
genital que elas sentiam pelo analista. Percebendo o perigo oferecido por essa
transferência erótica intensa, decretou a necessidade de seu manejo, cujo princípio
fundamental ficou conhecido como princípio de abstinência. Ferenczi, lidando com
pacientes traumatizados a propósito, bastante similares aos pacientes contemporâneos
apresentados no fim do capítulo 1 –, flagra a emergência de um amor de outra ordem,
terno, parecendo provir da parte infantil do eu clivado. Se o trauma de que esses sujeitos
foram vítimas decorria de uma confusão de línguas, em que sua linguagem infantil, que
exprimia um amor terno, foi interpretada por uma demanda de amor adulto genital, não
era conveniente a manutenção a todo custo do princípio de abstinência ou de frustração,
pois isso configuraria numa repetição do trauma, numa reincidência da confusão de
línguas. O princípio de frustração só se adequava ao tratamento de pacientes
traumatizados quando a parte adulta do eu clivado estivesse exigindo uma reciprocidade
do analista no campo da transferência sexual genital. Todavia, o mais relevante nesses
casos era uma enorme carência da experiência de amor terno, de que haviam sido
77
privados em suas infâncias. Por isso, Ferenczi propôs o princípio do à vontade, para
erigir as condições necessárias a saber, confiança, sinceridade, paciência, amabilidade
para que o paciente pudesse viver a ternura infantil com o analista. O amor terno,
oposto do amor ambivalente, é típico das fases de introjeção, do início do
desenvolvimento, em que o eu ainda não se destacou do objeto. A continuidade e o
encontro são as marcas maiores da ternura, e constituem a transferência mais indicada
para o processo psicanalítico como criação de um si, no que concerne aos pacientes
contemporâneos em questão.
Ferenczi afirma que a destruição é a causa do devir, e também que é necessário
aceder a um plano de organização subjetiva mais simples, sempre disponível no
repertório subjetivo dos modos de relação com o mundo, para em seguida empreender
mudanças e assumir um novo modo de ser. É assim que ele faz análise de crianças com
adultos, e lança mão de brincadeiras e jogos infantis, de palavras do universo infantil, e
de pensamentos coerentes com esse universo. É assim que ele mima seus analisandos e
estende a sintaxe transferencial, até que ela inclua a linguagem da ternura como
alternativa. De acordo com isso, ele defende que, para pôr em atividade a camada de
mutação do caráter, este precisa adquirir uma certa fluidez:
[...] se a análise deve ser uma verdadeira reeducação do humano,
deve-se, com efeito, remontar na análise a toda a formação de caráter
do ser humano, o qual, quando do recalcamento pulsional, constitui-se
como automatismo protetor, retrocedendo até os seus fundamentos
pulsionais. É necessário que tudo volte a ser fluido, por assim dizer,
para que em seguida, a partir desse caos passageiro, uma nova
personalidade melhor adaptada possa constituir-se em condições mais
favoráveis (Ferenczi, 1928b, p. 18).
Como foi visto, a formação dos sintomas traços caracteriais que se tornam
inconscientes depois de sofrerem recalcamento – e dos hábitos organizam automatismos
protetores, isto é, um certo congelamento no modo de ser, que certamente varia de
acordo com a gravidade dos traumas sofridos. A tentativa da análise é maleabilizar esses
automatismos, desmontá-los pouco a pouco, para fazer nascer novos modos de
existência. Não se pode esquecer, no entanto, que esses automatismos cumprem uma
função essencial: eles protegem uma porção muito frágil do eu, que foi atingida
violentamente na ocasião do trauma. Sabemos que, em alguns casos, o trauma chegou a
ser desestruturante, promovendo uma verdadeira atomização do eu, o que torna o
trabalho do analista ainda mais delicado. De toda forma, com paciência, vai se
78
construindo no setting uma atmosfera de confiança em que passa a se poder abdicar,
eventualmente, dessa defesa endurecida, e ingressar nessa dimensão de encontro, em
que o caráter se entrega à sua fluidez prévia, das fases de introjeção. Essa plasticidade
do caráter reverte-se numa oniplastia, numa modificação desse todo narcísico composto
por um acoplamento do analisando com o meio analítico, por intermédio desse laço
transferencial.
Numa transferência nos moldes freudianos, o analista se posiciona com
autoridade e um certo distanciamento, de modo a propiciar que o paciente possa se
tornar responsável pelo seu desejo, o que é totalmente coerente com o atendimento de
modos de subjetivação em que a maior parte das características encaixam-se na neurose.
Esta é a dimensão edípica de separação. Na transferência concernente ao atendimento
dos pacientes atuais visados, assim como dos pacientes que eram recebidos por
Ferenczi, por outro lado, o analista deve cuidar e acolher, para dar ensejo a uma
confiança necessária às experimentações e brincadeiras que delineiam a criação de um
si. Este é o plano narcísico de encontro ou de composição do eu, pois é a partir da
criação de um si, que o eu se transforma.
Prefere-se falar em oniplastia, ao invés de autoplastia ou aloplastia, já que estas
duas palavras remetem a uma concepção diretiva da libido, citada por Freud no artigo
sobre o narcisismo, onde ele discorre sobre uma proporção inversa entre a libido do eu e
a libido do objeto, na qual uma sempre aumentava diante da diminuição da outra. Num
âmbito de encontro narcísico, essa divisão da libido ou essa direção que se lhe atribui,
perde o sentido, uma vez que é uma totalidade eu-mundo que se apresenta. A oniplastia
enquanto plastia onidirecional, abarcando todas as direções, foi um recurso que se
encontrou para tornar irrelevante essa caracterização diretiva da libido, em benefício de
uma concepção da libido como ligação do eu com o mundo, sendo os pólos unidos
afetados na eventualidade de qualquer transformação.
Na clínica contemporânea, ouvem-se, com freqüência, queixas cujo tema aponta
para uma mesmice, uma repetição, sem elementos novos significativos, de um quadro
doloroso que nunca cessa. Isto aparece em frases como “sempre foi assim”, “me dei
conta de que as coisas nunca seriam como eu gostaria”, ou ainda em observações acerca
do futuro que excluem qualquer possibilidade de edição da realidade presente. Os
pacientes expressam, dessa maneira, o sentimento de que não são capazes de modificar
nada, nem no próprio eu, nem no mundo; ou então, o sentimento de que o esforço para
mudar o próprio eu é inútil, pois não implica numa transformação no mundo. Foi este
79
sentimento de que uma separação radical entre o eu e o mundo, sentimento
experimentado pelos pacientes traumatizados, que fez Ferenczi isolar essas duas ordens
de transformações. Ao diferenciar as modificações autoplásticas e aloplásticas, ele
seguia fielmente sua sensibilidade clínica aguçada, e dava a importância merecida à fala
de seus pacientes e ao sentimento deles de que os dois recursos plásticos não se
colocavam como contrapartidas recíprocas. Um dos objetivos da análise é conciliar
autoplastia e aloplastia, eu e mundo, e instaurar o sentimento desta continuidade.
A oniplastia, como fluidez não apenas do caráter, mas de todo esse composto eu-
mundo, que é denominado um si, se desdobra sustentada por esse laço transferencial
característico da dimensão narcísica de encontro. É no âmbito desta ligação peculiar que
um si é criado.
80
Capítulo 3:
Winnicott e o tiquetaquear da personalidade
Este terceiro e último capítulo se destina a repertoriar as principais propostas
clínicas de Winnicott, a decantar, de sua teoria do desenvolvimento emocional, os
elementos componentes de uma possível idéia de um si, em contraste com as idéias de
eu, self e ser e, por fim, a apresentar a noção winnicottiana de criatividade e as suas
conseqüências, no que se referem ao entendimento da prática psicanalítica como criação
de um si.
Comentários técnicos
Winnicott fala de técnica na grande maioria de seus artigos, ainda que nem
sempre esse assunto ocupe uma posição central. Isto parece ter uma explicação bastante
simples: Winnicott era, antes de tudo, um clínico interessado em oferecer tratamento a
quem o procurasse. Por ter trabalhado em instituições públicas, nas quais havia uma
grande demanda por atendimento, ele foi obrigado a criar uma série de recursos, não
apenas para selecionar os casos que necessitavam de um acompanhamento mais longo,
como para não deixar sem algum tipo de acolhimento, os casos que não poderiam ou
não precisavam ser absorvidos. Foi assim que ele desenvolveu uma gama de estratégias
a serem adotadas nas entrevistas e nas “consultas terapêuticas”
53
, que o auxiliavam a
compreender mais rapidamente as questões clínicas como, por exemplo, a situação
padrão de atendimento de bebês, em que era observada a reação desses frente a uma
espátula brilhante, situada ao alcance de suas mãos (Winnicott, 1941), e o famoso jogo
do rabisco, no qual uma criança e o analista se revezavam na confecção de desenhos
(Winnicott, 1968b).
Contudo, esta via prática responde por apenas parte de sua motivação para
ocupar-se da técnica. Existia ainda o fato dele atender uma clientela em que
predominavam pacientes com um perfil bastante distinto dos neuróticos de Freud,
53
A consulta terapêutica é uma entrevista ou grupo de entrevistas, cujo propósito é chegar a um
diagnóstico e proporcionar um acolhimento imediato a pacientes que, muito provavelmente, não entrarão
em análise (Winnicott, 1965b).
81
incluindo casos gravíssimos de psicose, outros mais brandos, e uma forma de
organização sintomática nomeada por ele de falso self. Winnicott constatava que os
pacientes neuróticos rareavam cada vez mais, produzindo-se, em seu lugar, outros
modos de subjetivação, para os quais a técnica clássica freudiana não era a mais
adequada.
Neste grupo clínico heterogêneo, o que havia em comum era a ausência de um
ambiente suficientemente bom durante a infância mais precoce. Quando eram bebês
absolutamente dependentes de seus cuidadores, esses sujeitos não sentiram receber a
atenção e o cuidado de que precisavam, e ficaram privados de experiências
desencadeadoras não apenas de um eu consistente e rico, como de um relacionamento
criativo com o mundo ao longo de toda a vida. As falhas do ambiente foram muito
numerosas ou imprevisíveis, e esses pacientes experimentaram a loucura demasiado
cedo, na forma de uma aniquilação do eu. Como ainda estavam fundidos com o
ambiente inicial, não conseguiam se dar conta dos cuidados recebidos, e tampouco
compreender de onde provinha a enorme angústia que os assolava na forma das
angústias tipicamente características da psicose: a desintegração, em que a perda da
unidade narcísica se acompanha de grande confusão psíquica; o cair para sempre,
relacionado à mudança de meio do útero materno para o mundo, em decorrência do qual
sente-se a gravidade puxando para baixo; o sentimento de não se ter conexão alguma
com o corpo, em que as atividades somáticas e mentais parecem ter funcionamentos
independentes; e a carência de orientação no tempo e no espaço, tal qual compartilhados
pelo senso comum (Winnicott, 1962b, p. 57). Desde essa loucura primitiva, que recebe
também o nome de colapso, um descompasso se instalou nas continuidades do tempo,
do espaço, e entre a psique e o soma.
Apesar das experiências primitivas similares, as idiossincrasias de cada caso e a
gravidade das privações dão ensejo a modos de subjetivação que variam desde formas
de psicose profundamente desorganizadas, como esquizofrenias, passando por
borderlines, até chegar aos pacientes falsos selves
54
, que podem agir socialmente
bastante similarmente aos neuróticos. As conseqüências desse colapso primitivo não se
apagam facilmente, e se manifestam em sentimentos de vazio, de futilidade, de
desconexão com o próprio corpo; na experiência de falência, iminente ou já presente, do
continente corporal; na confusão ou estranhamento das concepções espaço-temporais
54
Pacientes falsos selves são aqueles cuja organização defensiva falso self alcança proporções que
comprometem a relação com o mundo.
82
difundidas no senso comum; assim como numa incapacidade ou dificuldade extrema em
confiar novamente no ambiente, que outrora os decepcionou tão drasticamente.
Essas são descrições clínicas que coincidem com modos de subjetivação que se
multiplicam na prática psicanalítica contemporânea e exigem uma reflexão sobre a
técnica e a transferência. A explicação de Winnicott para o sofrimento desses pacientes
se faz por sua teorização de um espaço intermediário do brincar que, interpondo-se entre
a esfera interior e o universo exterior dos objetos, paradoxalmente condiciona e impede
a separação eu-mundo, enriquecendo e transformando os dois pólos. Tal área, que
sofreu muito prejuízo no início da vida desses sujeitos, brota desde um conjunto
cuidador-bebê, em que estes estão imersos numa mescla anterior à separação. Nesta
totalidade sem demarcações divisórias, os objetos, da perspectiva do bebê, são vividos
como objetos subjetivos
55
, isto é, como objetos que são parte dele, lhe pertencem e lhe
obedecem incondicionalmente. Transcorrido um certo período de experiências repetidas
em que coincidência entre o que o bebê cria na sua área de objetos subjetivos e
aquilo que ele encontra no mundo – coincidência essa que é nomeada ilusão, e durante a
qual o bebê se sente onipotente em sua continuidade perfeita com os objetos –, segue-se
uma desilusão gradativa, em que a mãe dá indícios da natureza externa dos objetos. Esta
transição delicada entre estar fundido com o mundo e estar separado dele é facilitada
pelo brincar, pelo uso dos objetos e fenômenos transicionais que, ao preencherem o
terceiro espaço entre o bebê e o mundo, paradoxalmente permitem a separação na
medida em que a criança suporta, pelo uso deles, ficar cada vez mais tempo sem
cuidados e a impedem, pois são símbolos de união com o ambiente e, portanto,
preservam em si a continuidade com o mundo. Se as necessidades básicas do bebê,
fisiológicas e afetivas, forem atendidas por um cuidador dedicado, esta área
intermediária de ilusão que reúne, em uma continuidade, elementos do interior e do
exterior nunca será abolida, e a separação do mundo nunca se realizará
completamente. Caso contrário, esse espaço potencial entre o sujeito e o mundo pode
não ser construído solidamente, ou ser bruscamente estreitado ou achatado, ou repentina
e momentaneamente suprimido, causando uma aguda confusão e um penoso isolamento
em relação ao meio. Nesse segundo quadro, a relação com o mundo, ao invés de
55
Os objetos subjetivos são apercebidos pelo sujeito, isto é, são criados por ele em sua fantasia. Quando é
possível encontrar esses objetos apercebidos no mundo, quando se pode perceber algo no objeto, entrar
em contato com sua face objetiva, com seus aspectos que não foram criados pelo sujeito, esse objeto
deixa de ser subjetivo e passa a ser transicional, pois agrega em si a criação do sujeito e elementos do
mundo, sobrepondo apercepção e percepção. A esta coincidência entre apercepção e percepção, chama-
se ilusão.
83
redundar em transformação e enriquecimento mútuos – como acontece quando o brincar
é uma alternativa –, dispara padrões defensivos, que o ambiente não confiável é
sentido como insuportavelmente intrusivo e perturbador. Por ora, essas poucas
observações bastam para dar seguimento ao tema da técnica. No item sobre o eu, serão
fornecidos mais detalhes especificamente sobre o falso self.
Como Ferenczi, Winnicott não tinha qualquer intenção de descartar as
recomendações técnicas do criador da psicanálise, mas percebia que o contexto clínico
que havia levado Freud a construir esse conjunto analítico de procedimentos era
inteiramente distinto daquele com o qual ele lidava em seu cotidiano. Ainda que ele
defendesse que a formação dos analistas deveria partir desta concepção técnica clássica,
tal qual pensada por Freud, igualmente sublinhava que, uma vez formado, o analista
deveria perceber com que modo de subjetivação lidava no cenário analítico, para melhor
escolher suas intervenções e a maneira de se relacionar com o paciente. Por
conseguinte, quando Winnicott aborda algum aspecto de sua forma de lidar com seus
pacientes psicóticos, borderlines, ou falsos selves, ele invariavelmente sublinha a
necessidade de pensar uma técnica para além dos postulados freudianos.
Procurou superar, igualmente, a clínica kleiniana. Na Sociedade Psicanalítica
Britânica, de que fazia parte e onde se desenrolava uma poderosa guerra política entre
Anna Freud e Melanie Klein, Winnicott optou por se situar no Middle Group, que não
se alinhava com nenhuma das duas correntes. Apesar de Anna Freud carregar o nome
do pai da psicanálise, teoricamente, Klein teve uma incidência mais forte entre os
analistas. Winnicott era, em certa medida, um herdeiro de Klein. Todavia, um herdeiro
capaz de fazer um bom inventário daquilo que queria conservar consigo, e que foi,
pouco a pouco, deixando partes de sua herança para trás e as substituindo por bens
próprios. Neste trabalho, não será analisada a influência de Klein sobre Winnicott, mas
é válido indicar como, no que diz respeito à técnica, são destacáveis pelo menos dois
pontos inter-relacionados de discordância: o brincar e a interpretação.
Para Melanie Klein, e para a grande maioria dos analistas da época de
Winnicott, a brincadeira durante a sessão estava a serviço do trabalho analítico, era um
instrumento que auxiliava na emergência de um material psíquico importante, que seria
em seguida interpretado. O que era relevante era o acesso aberto pela brincadeira a esse
material, e não a própria brincadeira. Para Winnicott, a brincadeira não era um meio
acionado para se alcançar um fim outro, mas era um fim em si mesma. Se Klein
buscava, com a brincadeira, desvelar um determinado conteúdo a partir de
84
correspondências simbólicas, Winnicott queria o exercício do próprio brincar, sua
existência e expansão (Winnicott, 1971b, p. 61).
O eixo principal da técnica de Klein era indubitavelmente a interpretação, à qual
estava subordinado o brincar. A interpretação, para ela, era o procedimento psicanalítico
propriamente dito, pois trazia à consciência as fantasias tombadas sob o recalcamento.
A brincadeira, portanto, era apenas mais um elemento estratégico utilizado
preliminarmente, que apresentaria uma cena a ser compreendida simbolicamente e
traduzida para o paciente na interpretação.
Esse peso dado à interpretação não se repete em Winnicott. Ainda que este
artifício técnico não seja desqualificado, ele não é o mais fundamental, pelo menos se o
entendermos como tradução de simbolismos com o fim de descobrir fragmentos
inconscientes. Esta concepção interpretativa, mesmo que se apresente eventualmente na
clínica de Winnicott certamente de maneira mais moderada que em Klein
56
–, não é
hegemônica sobre outros tipos de interpretação, e muito menos sobre o brincar, este sim
a base do psicanalisar winnicottiano.
Afora a compreensão da interpretação como tradução simbólica cujo intuito é
revelar lembranças inconscientes, duas outras interpretações ou funções
interpretativas para Winnicott: a interpretação como modalidade de holding e a
interpretação como demarcadora dos limites de compreensão do analista. Note-se que,
em qualquer dessas duas alternativas, a interpretação não visa a si mesma, mas a um uso
que dela pode ser feito pelo paciente.
Tal uso remete à noção de uso de objeto, que é pensada em contraste com a
relação de objeto. Esta última envolve uma desconsideração da externalidade do objeto,
que é tomado como parte do eu, ou proto-eu, num estado anterior à integração, em que o
56
Os exageros interpretativos dos analistas eram uma preocupação para Winnicott. Uma preocupação,
aliás, inteiramente de acordo com a realidade histórica da psicanálise de sua época, em que as idéias
kleinianas adquiriam uma força bastante impressionante. Eis uma passagem: “[...] se poderia tomar uma
interpretação do tipo “os dois objetos brancos no sonho são os seios”, etc. Tão pronto o analista tenha
embarcado nesse tipo de interpretação, ele abandonou a terra firme e acha-se agora em uma área perigosa
onde está utilizando as suas próprias idéias, e estas podem estar erradas do ponto de vista do paciente, no
momento” (Winnicott, 1968a, p. 164).
Sua justificativa teórica para se abdicar desses excessos interpretativos calcados em simbolismos era de
que eles diziam mais respeito ao analista do que ao paciente e poderiam ser sentidos como intrusivos,
como verdadeiras imposições, o que, de fato, ocorria, sobretudo quando certos clínicos, mediante a recusa
dos pacientes em aceitarem ou concordarem com as interpretações oferecidas, lhes acusavam de
resistência.
85
eu está fundido com o mundo, ou seja, na não-integração
57
. Devido ao caráter inclusivo
do desenvolvimento, este estado pode voltar a ser vivido em qualquer momento que se
lhe mostre propício.
Em contrapartida, o uso de objeto é uma etapa posterior do desenvolvimento, em
que o objeto, sobrevivendo à destruição na esfera da fantasia do sujeito, tem uma
parcela de suas características objetivas consideradas e começa a ser colocado no
exterior (Winnicott, 1969)
58
. O objeto que é usado agrega em si elementos subjetivos e
objetivos, e transita no espaço entre o interior e o exterior, a saber, no espaço
intermediário de ilusão.
Ao enfatizar seu interesse pelo uso da interpretação e não pela própria
interpretação, Winnicott instaura um exercício interpretativo que deve se dar nesse
espaço transicional entre o interno e o externo, onde se localiza o uso dos objetos. Esta é
a dimensão peculiar do brincar, que não é nem propriamente subjetivo, nem
propriamente objetivo. Portanto, a interpretação usada tem o mesmo papel que a
brincadeira. Poder-se-ia perguntar, a partir desta constatação, se da mesma maneira que
Klein subordina o brincar à interpretação, Winnicott não manteria essa relação, apenas
invertendo os termos, ou seja, subordinando a interpretação ao brincar.
No que tange aos dois tipos de interpretação distintos da interpretação baseada
em correlações simbólicas, a interpretação-holding tem, como o próprio nome diz, a
função dar holding, isto é, sustentação, às experiências do paciente. O holding é
sinônimo de apoio proveniente de um eu auxiliar (Winnicott, 1963b, p. 217) e equivale
à sustentação proporcionada, no início da vida, pela mãe ou cuidador, e na análise,
pelo analista que viabiliza o relaxamento e a não-integração do eu. O holding numa
análise é, assim, a oferta, realizada pelo analista e pelo setting, de um espaço integrador,
em que os pedaços do eu podem se espalhar sem que se ofereça qualquer ameaça. Essa
perda de unidade do eu que, ao invés de provocar angústia, é relaxante, recebe o nome
de não-integração. Ao contrário da desintegração, que é um estado de profunda angústia
e desorganização, em que a fragmentação é sentida como um aniquilamento doloroso do
eu, a não-integração é apenas a dispensa do esforço por manter a unidade. O
57
A integração do eu é o processo do desenvolvimento responsável pela diferenciação do eu a partir do
todo eu-mundo, ao passo que a não integração é o momento anterior a essa diferenciação. O
desenvolvimento do eu e todos os seus processos serão esclarecidos no próximo item.
58
Contrariamente a Freud, que argumenta que o objeto recebe a agressividade do sujeito por ser externo a
ele e estar fora de seu controle mágico, Winnicott atribui à sobrevivência do objeto à agressividade do
bebê, a inauguração de uma externalidade. O objeto se torna externo ao receber a agressividade do
bebê sem sucumbir à destruição. É dessa maneira que o controle onipotente infantil começa a sofrer
limitações.
86
desmembramento do eu na não-integração é um recurso, disponível quando o meio é
confiável, que serve ao descanso, ao relaxamento durante o qual a existência apenas
continua sendo. Há, na não-integração, uma abdicação da ação, podendo o sujeito se
permitir ficar aos pedaços, ao invés de inteiro, sem que isso traga qualquer
conseqüência sentida como ruim. A desintegração, diferentemente, é uma reação contra
um ambiente intrusivo, não confiável. As falhas e exigências excessivas do ambiente
inicial, quando o sujeito ainda está fundido com ele, levam a angústia a crescer
exponencialmente, até que a unidade em vias de se fazer, se quebre em cacos. Para
alguém que foi vítima desta desintegração, a não-integração, o continuar a ser, não é
possível, pois o repouso e o relaxamento, quando alcançados, são insistentemente
interrompidos pelo ambiente pouco acolhedor, condenando a uma nova desintegração, a
um novo despedaçamento angustiado do eu, característico da psicose, e experimentado
como algo da ordem da loucura e da morte. Depois de ter passado pela desintegração na
infância precoce, pelo colapso primitivo, alguns sujeitos jamais recuperam sua unidade,
ou então, criam padrões defensivos de reação à intrusão do ambiente, caindo numa
integração demasiado rígida, que dificulta ou impede a não-integração.
O setting analítico pode ser o ambiente confiável que fornece o holding
necessário à não-integração, por vezes através da interpretação. Durante uma sessão, um
paciente de Winnicott falou sobre uma vontade de se encolher e, se explicando, fez um
certo gesto com as mãos, perto de seu rosto. Winnicott interpretou esse movimento
corporal, falando para o paciente que ele, como havia demonstrado sua gestualidade
manual, tinha vislumbrado um meio ao redor de si. (Winnicott, 1954a, p. 348-349). Este
tipo de intervenção é uma interpretação-holding, pois as palavras do analista podem ser
usadas pelo paciente para emoldurar um ambiente de sustentação, para o qual ele
relegaria momentaneamente as tarefas de defesa do eu e evitação das angústias
psicóticas.
Ao inaugurar um ambiente sustentador, que é o conjunto setting-analista, a
interpretação-holding permite que o paciente relaxe e ingresse no estado de não-
integração, em que o eu não precisa se esforçar para permanecer unitário. Nos instantes
de repouso, a criação toma corpo, mas, para que o paciente adquira ciência,
posteriormente, do que ocorreu quando estava não-integrado, ele conta com o analista,
que agrupa essa experiência e a reflete de volta, como no exemplo acima, em que o
analista devolveu ao paciente o que tinha testemunhado por meio de uma interpretação.
87
Antes da interpretação-holding, o paciente se angustiava com um isolamento que
Winnicott nomeou retraimento. Neste, as pontes entre o eu e o mundo foram demolidas
e o empobrecimento do eu é sentido como um escoamento infinito. Ao adotar o holding,
na forma de interpretação ou não, o analista torna o sujeito apto a habitar sua área de
fenômenos e objetos subjetivos, em que ele simplesmente continua a ser. O paciente não
está se comunicando e pode fazer isso porque tem um ambiente confiável que está
cuidando para que ele não tombe da não-integração para a desintegração. A não-
comunicação simples, aqui em pauta, é estar com os objetos subjetivos, numa dimensão
íntima que é sagrada e deve ser preservada incomunicável a todo o custo, denominada
por Winnicott de ser ou núcleo do ser, ou ainda, núcleo do eu
59
. Habitar essa área
subjetiva é o mesmo que ser capaz de estar só, isto é, de estar na presença de alguém
confiável, que forneça um holding e elimine ou diminua os riscos dessa solidão
relaxada. Quando está repousando nesse espaço de contato com o núcleo incomunicado
do eu, o paciente se sente em vias de criar algo, que efetivamente se apresenta e é
sentido como produto de sua criação. Nesse movimento criativo, comunica-se com o
analista, que compartilha toda a experiência: inicialmente, esperando com paciência
que, da solidão do paciente, sobrevenha uma criação; para que, em seguida, possa
brincar junto com o paciente no espaço potencial disposto entre os dois.
A comunicação que acompanha a criação é uma comunicação silenciosa, que
opera uma conciliação entre a não-comunicação própria da solidão compartilhada e a
comunicação explícita e indireta entre sujeito e objeto separados. A comunicação
silenciosa é transmitida por um certo jeito do corpo, pela entonação, pela modulação da
voz, pela expressão do rosto ou por um olhar diferente. Na relação de confiança, em que
o paciente depende
60
do analista para ficar só e agir criativamente, a comunicação
silenciosa faz parte do brincar terapêutico.
Ao se referir ao fato do analista agrupar os fragmentos dissociados
61
da
experiência de não-integração e os comunicar posteriormente ao paciente, quando este
reassume sua forma integrada, Winnicott fala de uma comunicação explícita e indireta
59
O ser é a experiência de continuidade, o continuar a ser característico da não-integração. Este tema será
devidamente valorizado no próximo item.
60
Este é o sentido da transferência como dependência: a dependência que se tem do apoio de um eu
auxiliar para que se possa relaxar, ficar só e criar.
61
A dissociação significa, de maneira geral, que o eu não conforma uma unidade e que suas partes se
comportam de forma autônoma, sem se ligarem entre si. Ela pode ser a indicação de um arranjo
sintomático, em que há uma impossibilidade ou dificuldade considerável em se manter o eu integrado, ou
pode constituir um recurso valioso, caso o espaço transicional acolha essa não-integração, cujos
elementos dissociados posteriormente são englobados na cadeia organizada do eu integrado.
88
que, apesar de suceder logicamente à comunicação silenciosa do brincar, uma vez que
pressupõe a separação eu-mundo, pode ser um requisito para o exercício criativo. Os
pacientes que sofreram privações primitivas sentem-se isolados do mundo e têm
dificuldades de trazer, para o território subjetivo, experiências que não foram nem
vividas neste espaço interno de fantasia
62
, nem organizadas pelo eu unitário. Estas
experiências dissociadas são perdidas, deixam de ser catalogadas pelo eu, porque esses
sujeitos não contam, ou contam de forma muito precária, com as pontes que se erguem
entre o dentro e o fora, na área intermediária, lugar em que a não-integração pode ser
vivida. Quando esta dimensão entre o eu e o mundo se põe em continuidade com o eu,
os elementos dissociados da experiência de não-integração podem ser organizados pelo
eu e aproveitados na escrita da história subjetiva. O prejuízo desse espaço entre o eu e o
mundo, derivado de privações ambientais precoces, constitui, para o brincar, um enorme
obstáculo, paulatinamente superável se o paciente consegue usar as comunicações
indiretas de seu analista. Estas são interpretações verbais que servem como holding e
ajudam na construção de uma arquitetura de ligação
63
.
O segundo tipo de interpretação mencionado é aquele que demarca os limites da
compreensão do analista. Este tipo de interpretação exerce ao menos duas funções: por
um lado, evidencia que algo foi compreendido e, conseqüentemente, que a comunicação
silenciosa está tendo sucesso e que a experiência da análise é compartilhada; por outro,
protege o paciente de sentimentos persecutórios, que poderiam advir de um analista que
sabe demais. O desencontro parcial que a falha de compreensão do analista produz entre
analista e paciente, desencadeando o processo de desilusão, rompe com a onipotência de
ambos: algo do analista que escapa ao controle do paciente e o analista, por sua vez,
não representa perigo para o núcleo do ser do analisando. Esta constatação, de que o
analista não está incluído no controle onipotente do paciente, é derivada da
agressividade a que o paciente submete o analista. Este, sobrevivendo aos golpes
destrutivos que o paciente lhe aplica na fantasia, isto é, na área dos fenômenos
subjetivos, se reveste de camadas de objetividade, e começa a ser deslocado para fora da
área interna, em direção ao exterior. Este percurso entre os dois extremos é feito no
espaço potencial
64
entre o sujeito e o mundo, em que os objetos são usados. Há um
62
Mais à frente, será explicada a diferença entre duas concepções distintas de fantasia em Winnicott: uma
que se desenrola no âmbito da subjetividade isolada do mundo, e outra que liga o sujeito aos objetos
externos.
63
A respeito do tema da ligação, ver Herzog, 2003.
64
Espaço potencial, espaço transicional, área intermediária e área de ilusão são sinônimos.
89
grande alívio em se constatar que o analista o objeto em questão sobreviveu às
investidas agressivas do paciente. Esta sobrevivência é a condição para que o paciente
não se sinta impedido de fantasiar e, ao mesmo tempo, não tema sua agressividade e
seus impulsos destrutivos, visto que eles têm um alcance limitado. Mantendo-se vivo e
disponível, o analista é confiável, por não haver retaliado, com uma reação pouco
acolhedora ou com a própria morte. Agora, ele está pronto para ser usado pelo paciente.
O paciente usa esta espécie de interpretação, ou as falhas do analista que esta
interpretação a ver, para localizar o objeto de sua transferência fora da área de
controle onipotente. Esta expulsão do analista da esfera dos fenômenos e objetos
subjetivos é um processo doloroso e delicado, que principia o abandono vagaroso da
dependência transferencial. Essas interpretações colaboram para a dissolução da
transferência, mas também para o estabelecimento desta, pois, apenas quando o analista
passa a poder ser usado, a sobreviver à raiva do paciente, é que ele se torna confiável e
alguém de quem se pode depender.
A dependência que o paciente sente em relação ao analista diz respeito aos
cuidados que o analista lhe dedica, ao apoio de seu eu auxiliar. Esse cuidado, esse
atendimento às necessidades do paciente, é o que está na base da confiança e do
relaxamento. Por certo, o atendimento das necessidades em questão não reporta à
sexualidade, principal viés transferencial da neurose, tampouco a uma concessão às
demandas do sintoma. Não se trata de fazer uma aliança com os sintomas, perpetuando
o sofrimento, ao invés de atacar-lhe a raiz, o que poderia ser expresso, numa linguagem
winnicottiana, como fazer análise com a porção falso self do sujeito, por exemplo. As
necessidades que são atendidas são agrupadas numa necessidade mais geral, aquela de
um ambiente acolhedor, que sirva de palco para a não-integração e a criação, condições
necessárias, no sentido de indispensáveis, para que o sujeito se sinta existindo.
A noção de dependência provém de uma proposição winnicottiana segundo a
qual o desenvolvimento do eu, nos primórdios da vida, parte da dependência absoluta,
em que não é possível para o bebê sequer se dar conta dos cuidados dedicados a ele;
passa pela dependência relativa, em que ele começa a vislumbrar que há alguém por trás
desses cuidados; e segue rumo à independência, quando houve a integração do eu,
mas a independência não se concretiza totalmente porque isso significaria cortar
qualquer vínculo com o mundo.
De volta às interpretações, as diferenças entre a interpretação-holding e a
interpretação limitadora da compreensão do analista, não se sustentam completamente
90
na prática, estando, geralmente, as duas alternativas interpretativas fundidas uma na
outra. Em verdade, se a análise ocorre, considerando-se aqui o ponto de vista de
Winnicott, ou seja, se a análise é o mesmo que um brincar compartilhado, estas duas
interpretações estão sempre sobrepostas.
O analista não tem uma compreensão absoluta quando proporciona uma
interpretação-holding, mas está dedicado a atender às necessidades de seu paciente, e
este, por sua vez, necessita de um ambiente perfeito, resultando desse quadro que
mesmo uma interpretação limitada pode ser profundamente confortante. Da mesma
maneira, o analista, ao enunciar a compreensão que teve, pretendendo fixar-lhe os
limites, pode ter até mesmo um erro de entendimento usado pelo paciente, por exemplo,
para eliminar os aspectos persecutórios da transferência e transformar o setting num
meio sustentador do eu. Um analista que busca a tudo compreender e atribuir sentido, ao
contrário do que se poderia esperar, longe de oferecer um espaço-tempo acolhedor e
digno de confiança, repete de forma literal demais o comportamento intrusivo do
ambiente inicial, condenando o sujeito ao medo da repetição do colapso e a um apego
ainda maior à sua desconfiança em relação ao meio.
Este cuidado para não invadir demais o eu a ponto de ameaçar seu núcleo
65
precioso, que deve se manter protegido e incomunicado, chama a atenção para o fator
temporal na decisão a respeito da interpretação ou de qualquer modalidade de
intervenção terapêutica. O ritmo absolutamente singular de cada paciente deve ser
respeitado acima de qualquer outro critério, pois a pressa do analista em interpretar,
precipitando-se com a intenção de ampliar a compreensão do paciente, não tem
qualquer utilidade. Na melhor das hipóteses, o paciente concorda intelectualmente com
o analista, mas essa nova visão de suas questões não engendra qualquer transformação
subjetiva, por não ser oriunda de nenhuma experiência afetiva. Ainda no grupo das boas
possibilidades, indiferença do paciente ao que foi dito, que não faz sentido para ele.
Na pior das situações, no entanto, a interpretação é nociva, quebra a atmosfera de
confiança, inviabiliza o relaxamento e o brincar e, por fim, devolve ao sujeito seu pavor
de desintegrar-se.
A espera tranqüila do analista corresponde à testagem, por parte do paciente, da
confiabilidade do setting, incluída a relação transferencial. Esse tempo em que
analista e setting são postos à prova pelo paciente denomina-se “período de hesitação” e
65
O núcleo é o continuar a ser. Comunicar-se com ele, invadi-lo, ameaçá-lo, é o mesmo que romper essa
continuidade, que está na base da organização do eu, como ficará claro na discussão do item seguinte.
91
foi teorizado por Winnicott (1941) em sua exposição de uma situação padrão em
atendimentos com bebês de idade entre cinco e treze meses. Relatou ele que, por
ocasião da consulta, pousava, numa beirada de sua mesa, uma espátula metálica
66
que,
quase sempre, suscitava o interesse do bebê. Após orientar a mãe, ela e ele abdicavam
de interferir na experiência, que seguia livremente seu rumo. Na maioria dos bebês, o
primeiro impulso para pegar a espátula era contido, porque o ambiente não garantia
completamente a segurança. Passados alguns instantes, o bebê tendo averiguado a
confiabilidade do setting, da mãe e do analista, atendia aos seus impulsos, pegava a
espátula e brincava com ela, até se entediar.
Winnicott argumenta que o período de hesitação em que o bebê adia a
obediência ao impulso para antes constatar que o ambiente é confiável –, é permeado
pela angústia derivada da fantasia inconsciente de uma mãe zangada, que poderia
repreender a atitude almejada pelo bebê. Se o bebê é capaz de imaginar previamente
uma retaliação ou de fantasiar, como Winnicott afirma, é uma discussão que não
acrescenta muito aqui. Todavia, em se tratando de um paciente adulto, ou de uma
criança mais velha, é um consenso que eles podem antecipar psiquicamente uma
retaliação, e que, provavelmente, isto deriva de outras experiências em que a retaliação
e a reprimenda de fato ocorreram. Estes pacientes hesitam em confiar porque já tiveram
sua confiança antes traída, e levam um certo tempo para se arriscarem a uma nova
tentativa, que é sempre atravessada pelo receio da decepção.
Entre os analistas ingleses contemporâneos de Winnicott, era comum que esse
período de hesitação não fosse muito bem aceito. Encaravam-no como uma resistência
em prosseguir com a análise e buscavam sua ultrapassagem por meio de uma espécie de
bombardeio interpretativo a interpretação exagerada citada em nota acima. No intuito
de desmontar a resistência, o que punham em marcha, segundo Winnicott, era o
desmoronamento do tímido ensaio de confiança que, se tivesse tido tempo de se
completar como experiência, teria legado, ao o paciente em angustiado isolamento, a
esperança de sentir-se real
67
não apenas ali, mas também em outras ocasiões.
Esta suspensão das intervenções do analista e a renúncia de atribuir sentido às
situações transferenciais quando o paciente busca repousar são indispensáveis para que
66
Esta espátula é aquela utilizada para abaixar a língua no exame médico da garganta.
67
Sentir-se real é sentir-se espontâneo; não somente ter como possibilidade o simples continuar a ser na
não-integração, como derivar desse contato com o núcleo do eu uma aptidão para agir sem preocupação
excessiva com a maneira pela qual o mundo receberá as ações. O oposto é sentir-se falso e vazio, como
ocorre aos pacientes falsos selves, que apenas reagem ao que o mundo impõe.
92
o setting se estabeleça como uma atmosfera de confiança, em que é possível ficar só.
Mesmo o nonsense deve ser incluído sem precisar ser dotado de explicação. O paciente
pode estar se esforçando para comunicar o caos que tem em si próprio e o analista
estragaria tudo querendo organizar o caos, ao invés de deixá-lo tomar parte na análise.
Hesitando, o paciente tateia as possibilidades do ambiente até estar seguro o
bastante para confiar e viver a experiência completa de que necessita para sentir-se real,
essa experiência que se origina do repouso e desemboca na criação. A interpretação é
descartável aqui; estamos na arena do brincar, do fazer criativo.
Sabemos que nesse tipo de trabalho, mesmo a explicação correta é
ineficaz. A pessoa a quem estamos tentando ajudar necessita de uma
nova experiência, num ambiente especializado. A experiência é a de
um estado não-intencional, uma espécie de tiquetaquear, digamos
assim, da personalidade não integrada. Referi-me a isso como amorfia
na descrição de um caso (Winnicott, 1971c, p. 81).
A amorfia ou o tiquetaquear da personalidade é o relaxamento na não
integração, a habitação da esfera dos objetos subjetivos, o ser do cerne do eu. Para
mergulhar nesse estado em que se abdica do passado, do presente e do futuro para
apenas se continuar a ser, sem qualquer propósito ou intenção
68
, é preciso que o
ambiente saiba esperar e seja confiável. O período de hesitação é um tempo de
desconfiança, que porta em si a esperança de confiar, e prepara o ambiente para que ele
suporte holding à não-integração. Ao se verificar que o ambiente é capaz de
sustentar o sujeito sem deixá-lo cair para sempre, ficar privado de seu corpo ou perder-
se no tempo e no espaço, alivia-se o temor da desintegração psicótica. Caso se decida
por confiar no meio analítico, o paciente torna-se dependente do setting e do analista, e
é fundamental que o analista atenda às necessidades inerentes ao estado de regressão à
dependência, pois não se pode deixar passar essa oportunidade de uma nova
experiência, em que o paciente confia no ambiente e não é desapontado.
O conceito de regressão, que assume diversos sentidos na psicanálise, carrega
em si mal-entendidos complicados como, por exemplo, aquele de uma concepção
temporal linear e progressiva, que pode ser interrompida ou paralisada por uma fixação
em algum ponto, ou ao longo da qual se pode regredir até um ponto anterior,
desconsiderando o percurso realizado para frente. Ao se tomar o desenvolvimento
68
O continuar a ser, na não-integração, em que toda a ação está suspensa, é o elemento feminino da
criatividade. Este condiciona o elemento masculino da criatividade, que é o fazer criativo, o brincar.
Ambos serão abordados no item sobre a criação de um si.
93
emocional de Winnicott como um agrupamento de experiências que, ao invés de se
sucederem e substituírem, se somam, tornando cada vez mais complexos o mundo e o
sujeito, entende-se o tempo de forma totalmente diferente. O desenvolvimento, nessa
abordagem inclusiva, é o aumento do repertório de modos de se relacionar com o
mundo, e não a adoção de modos de vida cada vez mais desenvolvidos ou adaptados. A
noção de evolução teleológica do tempo e do desenvolvimento é o que submete a
impasses o conceito psicanalítico de regressão. Quando Winnicott fala em regressão na
clínica, contudo, ele pensa na regressão à dependência a um eu auxiliar, que sustenta o
relaxamento no espaço dos fenômenos subjetivos, isto é, que fornece um holding ao
estar só. A palavra regressão remete à não-integração, que compõe o repertório de vida
do sujeito desde a mais tenra infância. Talvez fosse preferível abdicar dessa
nomenclatura, e tratar da experiência de regressão à dependência em outros termos.
Uma das alternativas é que se chame essa forma de relação absolutamente dependente
de dimensão narcísica de encontro, pois a fusão eu-mundo, que é vivida, foi
inicialmente experimentada no narcisismo primário, quando ainda não havia
diferenciação sujeito-objeto.
Antes de brincar num presente de comunicação silenciosa com o analista, a
amorfia continua a ser e não comunica. O analista deve ser sensível não apenas à
hesitação, mas também a esse tempo de não-comunicação, de suspensão da ação, a
partir do qual se estabelecerá a comunicação silenciosa no espaço intermediário. Essa
nova experiência de tiquetaquear
69
da personalidade é o cenário perfeito para o
surgimento do brincar, que é o mesmo que dizer que o brincar e a comunicação
silenciosa nascem do relaxamento e do continuar a ser num meio sustentador confiável.
A importância da amorfia, da não-integração do eu a partir da qual a criação se faz –,
jaz justamente em sua ligação com o brincar. Deste continuar a ser do cerne do eu, do
relaxamento amorfo em que se lida com os objetos subjetivos, advém o sentir-se
existindo. Todavia, para que essa existência possa perdurar, não basta estar só. Apenas o
brincar, a criação de algo no encontro com um objeto, permite prolongar essa
experiência de existência, estender esse continuar a ser para o relacionamento com os
objetos do mundo. O analista pode proporcionar isso porque foi deslocado, ele próprio,
de objeto subjetivo para objeto transicional e tornou-se passível de ser usado. Cumpriu
essa função analítica central, inicialmente se adaptando às necessidades do paciente na
69
O tiquetaquear da personalidade é a experiência temporal do continuar a ser, da qual muitos pacientes
de Winnicott haviam sido privados.
94
regressão à dependência e, em seguida, desiludindo-o com suas falhas. Como objeto que
realiza a transição entre o mundo interno e o mundo externo ao eu, o analista se
apresenta, ao mesmo tempo, como produto da criação do eu do paciente e como
portador de características ulteriores, traços objetivos, que enriquecem o universo
interior do paciente. A brincadeira, como fazer criativo, é esse fantasiar no espaço
intermediário, em que o interior e o exterior se encontram para dar corpo ao novo. Este
é o trabalho analítico empenhado por paciente e analista no espaço potencial entre os
dois, espaço que está concretamente presente na forma de setting.
O tratamento, do ponto de vista de Winnicott (1971c, p. 80), se desenrola na
sobreposição das áreas do brincar do analista e do paciente. O pré-requisito para ser
analista é saber brincar e, se o paciente não consegue brincar, deve-se ajudá-lo; caso
contrário, a terapia não acontece. Esse aprendizado conjunto do fazer criativo repousa
na confiança que o paciente desenvolve pelo analista, cujo esforço reside em atender às
necessidades do paciente, e sustentá-lo por tempo suficiente na dependência, para que
ele se sinta seguro, relaxe, e comece a brincar.
Contudo, uma vez que o brincar é uma experiência impensável em termos de
indivíduo isolado, talvez seja mais preciso afirmar que a análise ocorre no encontro do
paciente com o analista nessa área intermediária que não pertence a nenhum dos dois,
mas na qual ambos devem ingressar. Ao invés da sobreposição de duas áreas
supostamente subjetivas de brincar, o que se daria é a abertura dessa dimensão narcísica
de encontro, que não é inteiramente subjetiva, nem inteiramente objetiva, abarcando em
si os dois extremos interno e externo, subjetivo e objetivo, paciente e analista e os
transformando. O que se chama de um si é justamente esse acoplamento eu-mundo, que
segue em criação.
O eu, o self, o (núcleo do) ser e o si
Na obra de Winnicott, as distinções entre eu e self são assunto para muitas
reflexões, na medida em que, por vezes, essas noções são entendidas como sinônimos,
por vezes, como diferentes entre si. Neste item, parte-se da hipótese de que Winnicott
não resolveu essa questão em sua obra, deixando aos seus leitores o trabalho de realizar
alguma dentre as várias compreensões possíveis. Existe ainda um terceiro termo, o ser
ou núcleo do ser, que coincide com a continuidade de um tempo alheio à divisão
95
passado-presente-futuro. Para explicitar o que é um si que não é uma noção de
Winnicott, mas uma idéia que está sendo usada nessa dissertação para ilustrar uma
clínica da constituição narcísica, em que o eu se transforma a partir da criação de um si
–, é preciso contrastá-lo com esses outros termos: o eu, o self e o ser. Tendo em vista a
tarefa de construção do narcisismo própria à prática psicanalítica como criação de um si,
também serão descritas as etapas do desenvolvimento do eu, no sentido de expor a
perspectiva winnicottiana a respeito da formação subjetiva.
Em sua teoria do desenvolvimento emocional, Winnicott tenta dar conta dos
primórdios da vida do sujeito, e das condições para a conformação do eu. Destaca a
imprescindibilidade de um ambiente confiável, inicialmente encarnado por uma mãe
dedicada, para que se erija um eu permanentemente enriquecido pelo fazer criativo. Da
mesma forma, traça as diversas falhas do ambiente e as angústias correspondentes pelas
quais o bebê passa, caso sua mãe não seja suficientemente boa
70
.
Em um pronunciamento impactante – “Isso que chamam de um bebê não existe”
(Winnicott, 1952a, p. 165) –, Winnicott deixa claro que um bebê não se confronta com
os primeiros desafios de sua existência enquanto uma individualidade, que ele não
existe isoladamente. Da perspectiva tanto do bebê quanto da mãe, eles formam um
bloco inseparável, uma única massa viva e amorfa. Neste momento de dependência
absoluta, em que a célula é composta pelo indivíduo mais o ambiente, o bebê conta com
uma mãe suficientemente boa, que não precisa ser perfeita e infalível. A “mãe devotada
comum” se encaixa nessa categoria, simplesmente por amar seu filho, se dedicar a ele, e
tentar lhe satisfazer as necessidades a partir da identificação primária
71
. Esta precede o
estar-em-união-com, uma vez que o bebê e a mãe formam provisoriamente um. Ao
invés de consistir numa identificação que pressupõe uma separação prévia entre os
sujeitos, tal como se na idéia psicanalítica clássica de identificação, a identificação
primária de Winnicott qualifica uma continuidade mãe-bebê, na qual esses dois sujeitos
nunca estiveram separados
72
, sendo inclusive questionável a pertinência do termo
sujeito para referir-se a este bebê. É exatamente neste sentido que um bebê não existe.
O atendimento às necessidades, de que Winnicott fala, ultrapassa em muito o
provimento do funcionamento fisiológico. Inclui, ademais, três vertentes da
70
Qualquer cuidador que ofereça maternagem, se adapte ativamente às necessidades do bebê,
preservando-o de experimentar a privação numa fase muito precoce da vida, é passível de ser incluído na
expressão “mãe suficientemente boa”.
71
A identificação primária é extremamente relevante para as experiências de identificação subseqüentes
(Winnicott, 1971d, p. 114).
72
Esse estado precoce da relação mãe-bebê também é designado narcisismo primário.
96
maternagem: o cuidado, o manejo e a apresentação de objetos
73
. Estas três vertentes são
fundamentais para que o sujeito se constitua tendo a chance de se pôr, ocasionalmente,
em continuidade com o mundo, e se beneficiar desse contato. É digno de nota, porém,
que Winnicott reconhece como ilusória a relação de continuidade com o mundo, mas
não lhe retira a relevância em decorrência disso
74
. Ao contrário do que faz Freud
(1927c), que aproxima a ilusão do erro, Winnicott a coloca como base para a construção
de um modo de vida sentido como verdadeiro e real.
As primeiras experiências de ilusão dependem da habilidade da mãe em se
adaptar ativamente ao bebê
75
, nessa fase de dependência absoluta. Tal habilidade recebe
a nomenclatura de “preocupação materna primária” e é um estado transitório, que dura
desde o fim da gravidez até as primeiras semanas de maternagem, em que a mãe vive
exclusivamente para seu bebê. Nem todas as mães são capazes de tal envolvimento com
o que concerne aos cuidados maternos, apenas as mães suficientemente boas. Estas são
acometidas, nesse período, por um estado comparável a uma psicose de cura
espontânea, da qual se restabelecem com o passar do tempo e a recuperação do interesse
pelo restante de seus afazeres cotidianos. Antes disso, no entanto, sua dedicação integral
garante ao bebê um ambiente perfeito
76
, que o provê daquilo de que precisa, ou repara
as falhas num tempo muito curto. O pai é quem viabiliza que a célula mãe-bebê fique
73
Estes aspectos da maternagem serão abordados a seguir.
74
Winnicott escreve de maneira esclarecedora: “[...] alguns bebês têm a sorte de contar com uma mãe
cuja adaptação ativa inicial à necessidade foi suficientemente boa. Isto os capacita a terem a ilusão de
realmente encontrar aquilo que eles criaram (alucinaram). Eventualmente, depois que a capacidade para o
relacionamento foi estabelecida, estes bebês podem dar o próximo passo rumo ao reconhecimento da
solidão essencial do ser humano. Mais cedo ou mais tarde, um desses bebês crescerá e dirá: ‘Eu sei que
não nenhum contato direto entre a realidade externa e eu mesmo, apenas a ilusão de contato, um
fenômeno intermediário que funciona muito bem para mim quando não estou muito cansado. A mim não
me importa nem um pouco se existe um problema filosófico’” (Winnicott, 1988, p. 135). Pode-se
deduzir, dessa passagem, que Winnicott não desconhecia os problemas filosóficos implicados numa
noção de continuidade do sujeito com o mundo, mas optava por negligenciá-los em prol da experiência
singular de cada sujeito, ou seja, da forma pela qual cada sujeito sentia e relatava sua relação com o
mundo.
75
A adaptação ativa da mãe às necessidades do bebê significa o esforço que ela empreende para que seu
filho não fique carente de nenhum tipo de cuidado. A importância dessa disponibilidade materna se torna
evidente nos casos em que tal adaptação ativa não ocorreu, tendo como conseqüência que o próprio bebê
teve que se adaptar ao ambiente à sua volta. Se essa adaptação do sujeito ao mundo se impõe antes que
ele tenha experimentado a ilusão de onipotência, antes dele ter sentido que os objetos à sua volta eram
produtos de sua fantasia, há um prejuízo na relação com o mundo. O enriquecimento subjetivo a partir do
contato com o exterior deixa de estar disponível caso não se tenha podido experimentar, na infância
precoce, a ilusão de haver uma continuidade eu-mundo, em que o que é criado internamente e aquilo que
se apresenta desde fora coincidem. Esta experiência, vivida pelo bebê, de coincidência ilusória entre eu e
mundo, contudo, se viabiliza apoiada pela adaptação ativa da mãe, que impede que este tenha que
assumir o próprio cuidado e seja forçado a uma adaptação precoce ao ambiente.
76
A dedicação materna faz com que seja possível à mãe suficientemente boa corrigir suas falhas dentro
de um limiar temporal suportável para o bebê. É esta capacidade que a configura como ambiente perfeito,
mesmo levando-se em conta sua falibilidade.
97
momentaneamente isolada das perturbações estranhas a ela
77
. Se nesta fase de
dependência absoluta, o ambiente, inicialmente representado pela mãe, for
suficientemente bom, o bebê torna-se apto a depositar uma certa confiança na
fidedignidade não desse ambiente primário, como das formas futuras de ambiente,
que se apresentarão em seu rumo à independência. O desenvolvimento, que parte da
dependência absoluta, passando pela dependência relativa, rumo à independência é
composto pelos processos de amadurecimento do eu, que fixam as fronteiras entre o eu
e o mundo.
Em uma carta à sua tradutora francesa, Jeannine Kalmanovitch (Khan, 2000, p.
42), Winnicott escreve que eu é diferente de ego, e define o eu como a pessoa única que
se é, totalidade derivada do processo de amadurecimento, propiciado por um ambiente
suficientemente bom, que sustenta e maneja. São o eu e a vida do eu que dão sentido ao
viver, e o cerne do eu é a morada da criação. Eu define um somatório de experiências
tranqüilas, motilidade espontânea e sensações, retornos da atividade à quietude, e o
estabelecimento da capacidade de espera por recuperações após os aniquilamentos
derivados das reações a intrusões do meio (Winnicott, 1956, p. 405). Estabelece um
início e equivale, também, a uma soma de inícios.
Em diversos momentos da obra de Winnicott, entretanto, coloca-se certa
dificuldade em identificar um uso muito criterioso do termo eu, que pode ser adotado
como sinônimo de ego e de self, dando margem a equívocos. No artigo A integração do
ego no desenvolvimento da criança (1962b), o eu é caracterizado por sua busca por
integração, e pela dependência de uma mãe suficientemente boa para que este percurso
em direção à maturação ocorra sem prejuízos para o sujeito e estabeleça o eu enquanto
organizador das experiências vividas.
O isso, por sua vez, não é anterior ao eu, ou melhor, não faz sentido mencionar
as experiências do isso, caso estas não sejam organizadas pelo eu. O funcionamento do
isso está subordinado à catalogação de experiências realizada pelo eu, que permite que a
atividade pulsional relacionada ao isso passe a ser tomada pelo sujeito como parte
de sua vida. Antes de o eu estabelecer-se enquanto unidade, e abarcar essas pulsões, não
se justifica falar em isso, já que, para o bebê, os estímulos pulsionais do isso são vividos
como tão exteriores quanto os estímulos provenientes do mundo.
77
Este é um dos raros pontos em que Winnicott ilustra a participação do pai no desenvolvimento
emocional infantil.
98
O eu demarca o início da existência, e sua consistência e plasticidade varia de
acordo com a capacidade da mãe em ser suficientemente boa e atender às necessidades
psíquicas e físicas na fase de dependência absoluta. Neste estágio, o bebê está suscetível
a cair sob a ameaça das angústias inimagináveis, tais como a desintegração, cair para
sempre, não ter conexão alguma com o corpo e carecer de orientação; estas são as
angústias psicóticas. A mãe deve se utilizar de sua identificação com seu filho para
tentar adivinhar suas necessidades e supri-las, de modo a garantir a continuidade do
processo de maturação e impedir a eclosão dessas angústias psicóticas. A maternagem
molda um ambiente suficientemente bom, que facilita e suporte ao desenrolar das
tendências do desenvolvimento emocional, que são servidas por pulsões, e não
constituídas por elas. Neste trajeto, vai sendo composto um repertório pessoal de modos
de vida, combinados de forma inclusiva. O crescimento deste repertório ao longo da
maturação rumo à independência inclui o recurso a configurações anteriores como, por
exemplo, a possibilidade de não-integração, disponível mesmo após a integração.
As três tendências principais do desenvolvimento a integração, a
personalização e as relações de objeto – se concatenam com três aspectos da
maternagem – cuidado, manejo e apresentação de objetos, respectivamente. A
integração está relacionada à entrada do sujeito nas dimensões do tempo e do espaço
78
,
e tem a ver com a presença física da mãe, que se disponibiliza para cuidar do bebê. Ela
conforma o eu enquanto uma unidade que abriga o eu interno e repudia o não-eu
externo. A membrana limitante entre o dentro e o fora é a pele, o que remete à
personalização, que é a habitação, pelo bebê, do seu próprio corpo, e se por meio do
manejo da mãe, do contorno que a mãe ao corpo do bebê ao segurá-lo, do
mapeamento que ela faz quando toca partes desse corpo. A apresentação de objetos
remete à função materna da ilusão e está na base da instauração do espaço transicional.
Previamente às experiências de ilusão que permitem o translado entre
apercepção e percepção e criam um acesso à realidade –, o sujeito se encontra imerso na
fantasia, num isolamento em que se relaciona apenas com o que é eu
79
, composto pelo
conjunto do indivíduo e sua mãe. Na época da apercepção criativa pura, antes da
78
Em alguns artigos, Winnicott chama “realização” essa integração do eu no sentido do espaço e,
sobretudo, do tempo, e a explica como uma inserção num tempo ordenado em passado, presente e futuro.
Em suas palavras, a realização é definida como “a apreciação do tempo e do espaço e de outros aspectos
da realidade” (Winnicott, 1945, p. 222-223).
79
Há que se chamar atenção para o fato de que o termo eu está sendo utilizado apenas no sentido de
denotar uma identidade do bebê com o mundo circundante, denominada identificação primária. Ainda não
se pode falar, neste estágio, do eu enquanto uma unidade integrada, pois o processo de integração é
condicionado pela primeira ilusão, não podendo precedê-la.
99
possibilidade da percepção objetiva, ainda não relação com a realidade. O sujeito
transita no registro da fantasia que, na concepção de Winnicott antecede a realidade, ou
seja, é prévia ao contato com o mundo externo real.
Desde o início, o bebê está predisposto a alucinar – ou fantasiar – diante de uma
necessidade. A ilusão, ao conjugar o objeto alucinado com o objeto apresentado, faz
coincidir o criado com o “real”
80
e dá margem a uma experiência de onipotência. Para
Winnicott (1953, p. 26), a onipotência não é um estado, mas um fato da experiência,
algo que tem que ser vivido e revivido. Garantida por uma certa monotonia por parte da
mãe, que apresenta o mundo aos poucos e impede que o bebê seja assolado por
imprevistos incompreensíveis para ele, a repetição da experiência de onipotência gera
confiança no ambiente. Este deve ser suficientemente bom para que a onipotência não
seja afrontada muito precocemente.
Ao criar objetos do mundo à sua volta, ao praticar seu fazer divino, a criança
deve encontrar oposições de objetos apenas em doses com que consiga lidar, e jamais
deve ser desafiada com a questão: Você criou isto ou isto estava no mundo? O
paradoxo deve ser sustentado e preservado: o objeto foi criado e estava presente, é
externo e parte do sujeito, é uma “possessão não-eu”.
As experiências onipotentes de ilusão arquitetam uma área intermediária entre o
eu e a realidade externa, onde se dá o exercício da criação. A área de ilusão – ou espaço
transicional – é um espaço potencial de repouso e experimentação, em que o sujeito está
momentaneamente desobrigado de traçar uma linha delimitadora entre o dentro e o fora.
Este terceiro lugar, entre o interno e o externo, entre eu e não-eu, é o lugar em que se
experimenta a vida, justamente por abrigar a criação. Os fenômenos que ocorrem
denotados transicionais são infinitamente variáveis, em contraste com os fenômenos
relativamente estereotipados do funcionamento corporal e da realidade ambiental.
Os objetos e fenômenos transicionais são arbitrários. Todavia, depois de
escolhidos, os pais devem compreender a sua importância, permitindo que o bebê os
preserve junto a si sempre que queira, até que eles não mais lhe despertem interesse
algum e sejam relegados ao limbo. Eles demarcam os primeiros estágios da ilusão e
denominam-se transicionais, pois encarnam a transição de uma criação primária, onde a
atividade é apenas aperceptiva, para uma percepção objetiva do mundo, que se enlaça
80
O objeto da experiência ilusória – o objeto transicional –, ao abarcar características do mundo interior e
exterior, se transfigura numa terceira alternativa de objeto e nunca é meramente o substituto de algo.
100
com a apercepção criativa. Também se referem à transição da relação do bebê com sua
mãe de uma dependência absoluta para uma dependência relativa.
O sujeito inicia por meio dos objetos e fenômenos transicionais sua jornada
em direção à experimentação. O uso da primeira possessão não-eu é também o primeiro
uso de um símbolo e a primeira experiência do brincar – a primeira experiência criativa.
O objeto transicional pode ser usado, pois porta dois traços indispensáveis: é
complacente e resistente. O primeiro destes aspectos convida o bebê a exercitar toda a
sua onipotência; e o segundo, indica a solidez do mundo e os limites do corpo e do eu.
(Costa, 2004, p. 118-119).
Ademais, a ilusão cerze o tempo numa continuidade passado-presente-futuro,
escrevendo a história do eu pela composição dos tecidos remendados da experiência. É
justamente esta costura que estabelece a diferença entre os dois tipos de fantasia que se
podem distinguir na teoria winnicottiana: uma pessoal e organizada, relacionada com a
história de experiências físicas, excitações, prazeres e dores da infância; outra sinônima
de devaneio (daydream), que isola do contato com os outros, e custa a integração
pessoal (Phillips, 1988, p. 59). A primeira é a fantasia banhada pela ilusão e serve como
vínculo do eu com o mundo; a segunda denuncia um colapso primitivo do ambiente de
suporte, uma privação que rompe a continuidade da existência e torna necessário um
isolamento numa tentativa de auto-cura (Phillips, 1998, p. 102).
Essa distinção entre dois tipos de fantasia corresponde ao contraste entre duas
dimensões temporais: uma, do senso comum, que se organiza em passado-presente-
futuro; e outra, vivida pelos pacientes de constituição narcísica frágil, em que os
instantes são relatados como cenas desconexas, sem nada que os anteceda ou suceda. A
ilusão é a peça-chave para se entender essa diferença. No caso do tempo em que
passado-presente-futuro estão encadeados, por causa do trabalho de organização do eu,
as ações sempre portam conseqüências sobre os momentos seguintes, que são
imprevisíveis e capazes de trazer mudanças. Por conseguinte, o futuro sendo um tempo
em aberto, ainda por se fazer, projetos são planejados, considerando-se todas as etapas
necessárias para que eles se tornem viáveis. A ação que o sujeito empreende pode
determinar o seu futuro e transformá-lo substancialmente. Essa continuidade que faz
com que o passado se estenda até o presente e esse se lance para o futuro, é
condicionada pela ilusão, que sustenta o continuar a ser sobre o qual essa dimensão
temporal da realização do eu se constrói.
101
Quando a constituição narcísica sofre a violência de repetidas interrupções do
ambiente, o continuar a ser cai em des-uso, isto é, desloca-se para uma parte esquecida
do repertório do sujeito, que não pode se tornar experiência; ocupa o lugar de um
não-acontecimento, na medida em que a criação de um si que devinha sobre ele não
pôde durar tempo o suficiente ou não se repetiu um bom número de vezes. A desilusão
rompeu abruptamente a ilusão, que não tem sucesso em emprestar continuidade a
coisa alguma, nem sequer ao tempo. Por isso, quem ouve esses pacientes
contemporâneos, de unidades narcísicas inconsistentes, falarem, não percebe a ligação
entre as imagens que são descritas nos relatos. O eu é incapaz de construir um
encadeamento sustentável das experiências sem a base de um si que se cria no plano do
continuar a ser. O tempo compartilhado pelo senso comum está disponível no espaço de
ilusão, mas este foi esquecido num recôndito do repertório subjetivo, pois o sujeito,
devido às invasões do meio, não pode usar os objetos e fenômenos transicionais tanto
quanto precisava, e as experiências de ilusão caíram em des-uso, antes mesmo do tempo
adquirir seu continuar, sobre o qual os projetos se constroem e as ações adquirem
sentido e valor.
Além de configurarem os primeiros estágios de ilusão, são os objetos e
fenômenos transicionais que tornam possível uma outra importante função da mãe:
desiludir o bebê, isto é, indicar a ele que sua onipotência é ilusória, que nem sempre ele
pode criar os objetos presentes no mundo. A desilusão se inicia com as falhas da mãe,
com seu gradual abandono do estágio de “preocupação materna primária”. Frente a esta
nova situação, o bebê tem de abrir mão da dedicação exclusiva de sua mãe, e passar a
depender dela apenas relativamente, e não mais de forma absoluta. Nesta modalidade de
dependência, por estar fundido com a mãe, não pode se dar conta de seus cuidados; na
dependência relativa, os dois pólos – a mãe e o bebê – esboçam um destacamento, e já é
possível perceber os cuidados maternos, visto que a mãe começa a se configurar como
uma pessoa diferente do bebê.
Caso o ambiente seja suficientemente bom, o bebê produzirá meios para lidar
com as falhas maternas: a criação de um limite temporal para a frustração; a apreensão
do sentido de processo; a atividade mental rudimentar; satisfações eróticas; e a
integração das experiências do passado, do presente e do futuro (Winnicott, 1953, p.
25). As ausências da mãe poderão ser suportadas sem ameaçar a continuidade da
existência da criança, desde que não sejam demasiado prolongadas. O sentimento de
que a mãe existe tem um prazo de validade que pode ser um pouco adiado, mas nunca a
102
ponto de produzir um trauma no bebê. Se a mãe demora muito a retornar, o bebê não
consegue reter sua imagem, e sua ausência adquire o significado de morte, de
aniquilação. Por estar identificado com a mãe, a própria criança sente-se ameaçada de
desintegrar-se, e vê rompido o seu “continuar a ser”
81
.
A separação mãe-bebê, a dissolução do bloco previamente presente, é um
processo muito delicado, que deve transcorrer de forma gradual, a fim de que se
preserve a área de ilusão conquistada. Ao se partir em direção à desilusão, deve-se haver
experimentado muitas experiências de ilusão e onipotência, para que se tenha, ao longo
de toda vida, a possibilidade de repousar no espaço intermediário, a despeito do teste de
realidade, que passa a exigir a verificação do que é eu e do que é não-eu, assim como o
reconhecimento de que não se pode controlar, de forma mágica, o que é externo.
Os fenômenos e objetos transicionais propiciam o desencadeamento da
separação, por funcionarem como símbolos de união. O bebê se apega a um objeto ou a
um fenômeno transicional no momento em que a mãe se ausenta, pois lhe atribui um
caráter de símbolo de união entre ele e sua mãe, o que permite o entendimento de que,
apesar de ausente, a mãe continua viva. A separação para que não seja sentida como
uma ameaça de aniquilação pelo bebê é condicionada pelo objeto ou fenômeno
transicional eleito, que simboliza diversas continuidades: continuidade do bebê com a
mãe, com o mundo, continuidade dos cuidados maternos e continuidade da existência
82
do bebê. Estando entre a psique individual e a realidade externa (Winnicott, 1955, p.
217), os objetos e fenômenos transicionais amortecem o choque da separação. A
arquitetura do lugar em que vivemos o espaço transicional –, além de conservar-se, é
alargada com o amadurecimento do eu e a transposição do interesse pelos objetos e
fenômenos transicionais para todo o campo da experiência cultural. O brincar, que é
uma primitiva prática de criação, uma forma primordial de habitar a área intermediária,
não é prerrogativa infantil, mas deve ser fruído pelo sujeito em qualquer idade.
Com o sucesso das tendências de desenvolvimento, o eu pode emergir enquanto
um psicossoma, enraizado no corpo e, por este motivo, ligado à vitalidade corporal. O
81
“O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe ficar distante mais do que x minutos, então
a imago se esmaece e, juntamente com ela, cessa a capacidade do bebê utilizar o símbolo da união. O
bebê fica aflito, mas essa aflição é logo corrigida, pois a mãe retorna em x + y minutos. Em x + y minutos,
o bebê não se alterou. Em x + y + z minutos, o bebê ficou traumatizado. Em x + y + z minutos, o retorna
da mãe não corrige o estado alterado do bebê. O trauma implica que o bebê experimentou uma ruptura na
continuidade da vida, de modo que defesas primitivas agora se organizaram contra a repetição da
‘ansiedade impensável’ ou contra o retorno do agudo estado confusional próprio da desintegração da
estrutura nascente do ego” (Winnicott, 1967c, p. 135-136).
82
Continuidade da existência e continuar a ser são sinônimos.
103
eu se estabelece como unidade psicossomática ao longo do processo de
desenvolvimento, em que há uma apropriação das sensações e da motilidade, sustentada
pelo meio facilitador. Os fenômenos e objetos transicionais inauguram, no transcorrer
do desenvolvimento, a ligação entre o pensamento ou a fantasmatização
83
– próprios à
psique – com as funções corporais, compondo experiências que são igualmente físicas e
não-físicas, e contribuindo, assim, para o arranjo do psicossoma.
A psique é a “elaboração imaginária (imaginative) dos elementos, sentimentos e
funções somáticos, ou seja, da vitalidade física” (Winnicott, 1949, p. 333). A mente, do
ponto de vista winnicottiano, é uma função do psicossoma, uma especialização da parte
psíquica, que não existe enquanto entidade destacada na saúde. Ao dotar o bebê com
compreensão e tolerância, a atividade mental lhe fornece a capacidade de transformar a
falha da mãe suficientemente boa em êxito adaptativo, tanto no que se refere à vida do
eu, quanto no que concerne às atividades do isso.
Até aqui, foi descrito o desenvolvimento que conta com uma mãe
suficientemente boa e um ambiente suficientemente bom, em que o verdadeiro self é o
modo de ser predominante a maior parte do tempo, sendo a vida sentida como valiosa.
Sem a dedicação materna, no entanto, a criatividade virtual não se atualiza em
experiência, isto é, a criação não ocorre, e o bebê tem que se empenhar em reagir ao
ambiente intruso, ao invés de agir criativamente. Essa reação custa a continuidade da
existência do bebê, a sua experiência de ser
84
. O resultado é uma organização em que o
falso self toma a frente da vida do sujeito, funcionando como uma defesa contra o
impensável: a exploração e aniquilação do núcleo do eu, ou ainda, a ruptura do
continuar a ser.
O falso self, enquanto modo de vida predominante num sujeito, é produto da
inabilidade da mãe em atender às necessidades de seu filho, sua incapacidade de
ingressar no estado de preocupação materna primária e se identificar com a criança
recém-chegada ao mundo. Essa impossibilidade da mãe de adaptar-se ativamente que
é fruto de seu próprio desenvolvimento emocional primitivo faz com que ela se
torne demandante e incite seu filho a elencar estratégias de submissão para proteger o eu
da ameaça de aniquilação.
83
“Fantasmatização” assume, nessa passagem, o sentido de fantasia enquanto devaneio.
84
A experiência de ser denota o elemento feminino da criatividade; é o mesmo que continuar a ser na área
dos fenômenos subjetivos, em que se está no cerne do eu.
104
O bebê que forma a um modo de vida predominantemente falso self não teve
tempo de edificar uma área de ilusão consistente, pois foi desiludido precocemente,
assim como privado de seus exercícios onipotentes cedo demais. Passou por
experiências às quais não pôde atribuir sentido como, por exemplo, uma ausência
demasiado prolongada da mãe, vivida como sinônimo de sua morte. A perda traumática
dos objetos e fenômenos transicionais
85
implicou numa ruptura do continuar a ser, e na
adoção de padrões programados de ação, numa busca de se armar contra o imprevisto
aterrador: a desintegração do eu.
Phillips (1988, p. 133-134) cita as três funções do modo de vida falso self: 1)
atender às demandas da mãe, na medida do possível; 2) esconder e proteger o núcleo do
ser, através da submissão ao meio; 3) ser uma ama-seca e cuidar do bebê. A terceira
função a única ainda não citada ocorre com uma hiperatividade do funcionamento
mental: a mente entra em oposição com o psicossoma, e passa a desempenhar a tarefa,
caracteristicamente ambiental, de cuidar do psicossoma. O grande problema deste tipo
de distorção do eu é quando o falso self se torna o único modo de existência possível,
excluindo a alternativa do verdadeiro self (Jordão, 2004).
Onde esta separação muito demarcada entre os modos de vida do falso e do
verdadeiro self, em que o falso self exclui a possibilidade do verdadeiro self, verifica-se
uma certa pobreza na vida cultural, no fazer criativo, no brincar. Tais pessoas são
incapazes de estarem sós, de relaxarem, de se concentrarem na realização de algum
empreendimento. Além disso, suas experiências pulsionais têm fraca participação da
motilidade agressiva
86
ligada ao fazer criativo, o que produz uma sensação de vazio
subjetivo, de inexistência.
Existem graus de modo de vida falso self: desde casos graves, em que fica oculta
toda e qualquer referência ao que é significativo (meaningful) e criativo, e viver ou
morrer torna-se indiferente; até o equivalente do modo de vida falso self na saúde, o self
conciliador do convívio social, que se forma quando o modo de vida do verdadeiro
self já está estabelecido como hegemônico.
85
“O bebê que perde seu objeto transicional perde de uma só vez a boca e o seio, a mãe e a pele da mãe, a
criatividade e a percepção objetiva. Esse objeto é uma das pontes que tornam possível um contato entre a
psique individual e a realidade externa” (Winnicott, 1955, p.217).
86
A agressividade é um impulso motor extremamente importante para a experiência com os objetos
transicionais, pois é o que confere aspectos de externalidade a eles. Quando a agressividade encontra a
oposição dos objetos do mundo, é que estes deixam de ser subjetivos para serem transicionais. Essa
experiência de verificar agressivamente que objetos do mundo externo que coincidem com os objetos
subjetivos criados pela fantasia, reveste de consistência o mundo e o eu. Tal coincidência ilusória está
presente concretamente nos objetos transicionais.
105
A submissão do modo de vida predominantemente falso self ao meio
simetricamente oposta à relação criativa com o mundo externo vem acompanhada de
um sentimento de irrealidade e de inutilidade, que priva a vida de seu valor. Os três
espaços do viver ficam empobrecidos, pois o interno e o externo não contam com a
ponte ilusória de comunicação, da qual o bebê foi privado antes do tempo de terminar
de conformar sua área de repouso e experimentação. O traumático, para Winnicott, é
essa ruptura da continuidade do sujeito com as suas experiências, com o que lhe
concerne, lhe é próprio, peculiar, singular e, por isso, deveria preencher sua existência,
dar sentido à sua vida. Mas a mais fundamental das experiências, a experiência de ser,
para a organização subjetiva com o predomínio do falso self, já não é possível.
Para abordar o tema desse trabalho, que é a prática psicanalítica como criação de
um si, algumas distinções serão úteis: entre eu, self, si e (núcleo do) ser. Além de se
fazerem pertinentes alguns comentários sobre o verdadeiro e o falso selves. Antes,
contudo, dois conceitos da filosofia de Henri Bergson, o virtual e o atual, serão
rapidamente apresentados, unicamente no sentido de auxiliar na compreensão do que
está sendo proposto. Não qualquer pretensão de esgotar o tema em Bergson, apenas
de expor o estritamente necessário para que seja possível entender o uso que se fez de
tais conceitos.
Trata-se dos conceitos de virtual e atual. O virtual corresponde à memória, ao
tempo, que comporta todo o passado, mesmo aquele que não se realizou, que apenas
figurou como possibilidade; o atual é todo esse passado contraído na ação presente.
Explica Bergson (1896) que, a cada vez que um corpo age no mundo, há um período de
indeterminação, em que se faz uma escolha pelo tipo de ação a ser desempenhado.
Neste intervalo, o virtual se atualiza, isto é, o presente invoca o passado, que vem em
seu socorro, para ajudar na confecção de um futuro. Esta atualização, no entanto, não é
uma reprodução atual de um elemento disponível no leque de possibilidades do passado,
mas é uma criação, pois engendra uma experiência nova. Ainda que a atualização seja a
contração do virtual no atual, esse movimento de passagem sempre implica em criação.
O virtual nunca se ausenta, sendo invocado a cada momento. Contudo, ele
também não participa diretamente do presente, este marcadamente atual, mas se
prolonga até ele o empurra para o futuro, a criação se fazendo justamente nesse
movimento. Essa continuidade passado-presente-futuro é central na filosofia de
Bergson, na qual não é possível pensar esses três elementos temporais passado,
presente e futuro – como etapas destacadas e subseqüentes.
106
Quando se pensa na temporalidade tal qual vivida nos pacientes
contemporâneos, o que parece ao analista é que eles vivem como se não se tivessem
esse passado virtual lhes empurrando para o futuro, como se ignorassem o intervalo de
escolha e criação, a partir do qual se empreendem as mudanças no tempo. Não sentem
esse encadeamento operado pelo movimento do virtual se estendendo até o atual e o
impulsionando, na criação de um novo, de um si.
Para melhor compreender o espaço-tempo da criação, esses conceitos de
Bergson podem ser de algum auxílio. O self de Winnicott talvez possa ser entendido
como virtualidade que se prolonga em direção ao presente, dando condição para as
experiências de um si que, ao serem deixadas para trás, tornam-se narrativa ou história
pessoal em decorrência do trabalho de organização do eu. A diferença entre self e eu é a
seguinte: o self é a virtualidade, e se atualiza verdadeiramente
87
nas experiências de um
si, isto é, na criação que se faz na passagem da virtualidade para a atualidade; o eu, por
sua vez, é o organizador das experiências passadas, o narrador das ocorrências
subjetivas, incluídos os atos criativos consumados. O eu é o que Bergson define
como caráter, a saber, “a síntese atual de todos os nossos estados passados” (Bergson,
1896, p. 170).
Se o eu é o narrador da história subjetiva e o self é a criatividade virtual, um si é
o presente em que a criatividade virtual devém criação, ele é o fazer criativo. Em
Winnicott, não existe uma diferença clara entre a criatividade como virtualidade que
pode ou não se atualizar e a criação como fazer criativo que se estende ao longo da
atualização. Para ele, tanto a criatividade quanto a criação estão subsumidas pela
primeira destas terminologias. No âmbito deste capítulo, no entanto, pareceu proveitoso
estabelecer essa distinção, pois ela viria a serviço de uma outra distinção, essencial para
o tema da criação de um si, que é a distinção entre self e si.
uma correspondência entre o self e a criatividade, aqui compreendida como
uma virtualidade que se atualiza mediante certas condições ambientais do presente;
um si e o fazer criativo ou criação, enquanto brincar no qual se origina o novo; e o eu e
o ato criativo, que já foi consumado e pertence ao passado pessoal do sujeito. Partindo-
se desta distinção entre eu, si e self, o eu é o somatório das experiências passadas e
efetivamente ocorridas do sujeito, decantadas em um espaço interior, um si é o conjunto
87
Verdadeiramente, nessa frase, é uma referência ao verdadeiro self. Tal referência indica o vínculo
existente entre o modo de vida do verdadeiro self e o processo de atualização criativa.
107
de experiências em andamento no espaço intermediário de encontro com os objetos
transicionais, e o self é a dimensão que está fora da experiência, mas que a condiciona.
Sinônimo de criatividade virtual, o self é uma espécie de plano sobre o qual um
si devém. Este plano virtual que é a condição de possibilidade da experiência de criação
chama-se, na filosofia de Deleuze, plano de imanência; um si é o que povoa esse plano.
Alinhavando os três termos: o self condiciona e sustenta em seu plano a criação de um
si, experiência a partir da qual um eu pode ser construído.
É conveniente abordar agora o quarto conceito a ser definido, o ser, sinônimo de
continuar a ser ou núcleo do ser, e base sobre a qual o brincar se torna possível.
Adiando uma análise mais detalhada sobre o plano de imanência para o item acerca da
criação de um si, é inevitável, no entanto, abordar um dos aspectos dessa discussão para
definir o ser.
Deleuze sublinha que a construção do plano de imanência, no qual a criação se
faz, é composto por dois movimentos simultâneos: o traçado do plano e o seu
povoamento. O ser, ou continuar a ser, enquanto ingresso numa dimensão em que a
ação seria dispensada é o movimento de se traçar o plano. Da mesma maneira que, em
Winnicott, o continuar a ser é a base sobre a qual se desenvolve o brincar, sendo estes
dois elementos ser e brincar inseparáveis; em Deleuze, o traçado do plano se
acompanha de seu povoamento. O que povoa o plano é um si, essa criação em devir.
Chega-se, assim, à seguinte questão: Mas se o self é o plano de imanência, e o
ser é o traçado desse plano, qual a diferença entre ser e self? Segundo a filosofia de
Deleuze, nenhuma, na medida em que plano no traçar do plano, não havendo
qualquer distinção entre a existência do plano e o traçado do plano. O plano de
imanência existe enquanto dura o seu traçado. Nesse tempo em que é traçado, o
plano de imanência é povoado pelo devir, pela atualização, pela criação de um si. O
restante das breves observações a respeito dessa relação entre as obras de Deleuze e
Winnicott será deixada para o próximo tópico.
Nesta abordagem do self, não faz sentido pensar o verdadeiro e o falso selves
como variedades ou tipos de self. São preferencialmente modos de ser e de lidar com os
objetos do mundo, sendo um deles sempre predominante sobre o outro, no âmbito de
uma subjetividade específica, em determinado momento. Quando predomina o
verdadeiro self, o eu é transformado a partir da atualização criativa, que acrescenta
108
convicção
88
à história subjetiva, sentida como real. Quando predomina o falso self, o eu
é descontinuado pela coleção de nadas, de não-acontecimentos
89
. A hegemonia do modo
de ser falso self funciona como indicação sintomática de que a criação não teve lugar, e
se apresenta um vazio, um não-sentido, em toda a pluralidade de significações que não-
sentido admite. A existência que se faz a maior parte do tempo como verdadeiro self
vale a pena; a existência que se faz a maior parte do tempo como falso self sequer se
sustenta enquanto tal, sendo uma sucessão alternada de pontos existentes e não
existentes, vivos e mortos. Se o predomínio do verdadeiro self leva a traçar sentidos e
sentimentos para o eu, a hegemonia do falso self pontua a fragilidade e inconsistência
do eu com inúmeras descontinuidades.
Dessa maneira, busca-se solucionar o impasse de uma concepção essencialista
atribuída, por alguns, ao conceito de verdadeiro self. A verdade, segundo esta leitura,
seria concernente à reversão do virtual no atual, ocorrida no fazer criativo, ao passo que
a falsidade reportaria à atualização que não ocorreu, como o nada que (não) aconteceu,
mencionado por Winnicott em seu artigo sobre o medo do colapso
90
. Esta não-
atualização deixaria como rastro um sintoma, que é o próprio vazio, a falsidade e a
futilidade derivada de um si que não existiu em determinado momento.
Assim, quando o ser segue sendo, no traçado de um plano que é condição da
criação, um si se cria e povoa essa dimensão. Este um si, imerso no devir continuado do
ser, tem em sua criação apenas uma diferenciação, que não porta qualquer
intencionalidade ou finalidade. Esse criar-se diferenciando-se, próprio de um si, é a base
para a construção narcísica do eu organizador de todas as experiências subjetivas
numa linha de passado, presente e futuro, que atravessa o espaço de ilusão. Caso esse
espaço intermediário seja ameaçado por traumas numerosos ou abruptos, essa linha se
arrebenta, deixando as células temporais sem qualquer vínculo evidente. A menos que a
criação de um si se faça possível.
88
Está sendo tomada de empréstimo a idéia ferencziana de convicção, que denota uma certeza que deriva
de uma vivência, de uma experiência afetiva, e não de uma aferição intelectual.
89
Os nadas e não-acontecimentos se referem justamente ao provimento falho do ambiente, que não
proporcionou experiências imprescindíveis para uma constituição narcísica que permanecesse no tempo.
90
Nesse texto, Winnicott defende que o trauma, ao invés de se engendrar a partir de alguma ocorrência
violenta para o sujeito, pode ser provocado porque, no momento em que era vital que algo acontecesse,
algo não aconteceu. Esse não-acontecimento traumático redunda no colapso. Na teoria de Winnicott, a
provisão ambiental é responsável por sustentar as experiências do bebê. Se ela falha freqüentemente em
sua tarefa, o bebê entra em colapso, cai numa confusão agonizante a citada desintegração –, e fica
privado de experiências fundamentais. Estas são o algo que deveria ter acontecido e que, não havendo
acontecido, traumatizou o sujeito.
109
A criação de um si
Antes de dar seqüência ao pensamento sobre a criação a partir das distinções
entre ser, si e eu, será apresentada a noção winnicottiana de criatividade, assim como
seus elementos feminino e masculino.
Winnicott, ao delinear sua noção de criatividade, discorda de Freud, que toma a
criatividade como a sublimação da sexualidade, realizada principalmente por adultos.
Ele, diferentemente, considera a criatividade primária, pré-sexual, e característica da
relação de reciprocidade do bebê com a mãe suficientemente boa. Para ele, a
criatividade seria uma virtualidade que, caso atualizada em experiências, tornaria o
sujeito convicto de que viver vale a pena.
Na teoria winnicottiana, a criação compõe-se por dois elementos, o feminino e o
masculino, que convivem mesclados entre si, mas são analisados separadamente a título
de sistematização teórica. O elemento feminino corresponde à experiência de ser
91
e a
uma relação caracterizada pela identificação primária, e desembocará, no futuro, no
sentimento do eu
92
. O masculino está ligado à experiência de fazer e à vida pulsional;
constitui o brincar.
Antes da integração, quando o bebê tem com a mãe suficientemente boa uma
relação de dependência absoluta, ele se identifica com ela, ou com o seu seio, de forma
que ele é o seio. Neste momento, a experiência de ser significa ser juntamente com os
outros (Abram, 1996, p. 239), pois todos os objetos apercebidos pelo sujeito são
subjetivos e compõem o eu. A diferenciação entre o eu e o não-eu ainda não teve início,
e relação por meio da identificação primária. Quando o bebê encontra o seio, isto
é, quando sua mãe lhe apresenta o seio, este está incluído no eu rudimentar infantil, de
forma que o bebê tem a sensação de ter encontrado a si mesmo, pois ele é o seio, o
sujeito é o objeto
93
na relação de identificação primária. Ao criar o seio, é indispensável
que o bebê tenha à sua disposição uma mãe preocupada e devotada que lhe apresente o
seio, e permita que o bebê encontre a si mesmo no objeto, pois somente assim ele terá
acesso a uma das mais simples e fundamentais experiências humanas: a experiência de
ser. Esta experiência é um continuar a ser, um tiquetaquear, um ritmo de existir que
91
Estar no núcleo do ser, no cerne do eu, é a experiência do elemento feminino da criatividade, em que
nada ocorre, apenas o ser continua, segue sendo.
92
O sentimento do eu é a mesma coisa que sentir-se real ou sentir-se existindo.
93
Ou ainda, poder-se-ia afirmar que, uma vez que ainda não houve separação, essa divisão entre sujeito e
objeto não procede.
110
simplesmente continua, sem ter qualquer referência ao tempo espacializado em passado-
presente-futuro. Percebe-se, assim, como a ilusão e o continuar a ser são inseparáveis e
estão sempre sobrepostos, o que é o mesmo que dizer que um si e o ser sempre estão co-
implicados, e que o criar se faz em um devir.
O elemento feminino é de grande contribuição para a possibilidade de
organização do eu e conquista do sentimento do eu. Contudo, o sujeito deve receber
suporte do ambiente confiável, da mãe, que tem como função crucial refletir para o bebê
o que ela vê: que ele é. O bebê pode existir verdadeiramente, isto é, com o
predomínio do modo de vida verdadeiro self, se sua mãe voltar seu olhar para ele e
atestar sua existência, espelhando de volta o que ela percebe. A mãe é o árbitro da
verdade do bebê, pois o seu êxito em funcionar como espelho da existência espontânea
do bebê é o que vai permitir que, em sua existência de bebê, predomine o verdadeiro
self e, conseqüentemente, que ele sinta a vida como significativa (meaningful).
O elemento masculino é teoricamente mais tardio do que o feminino e depende
da integração do eu, que está relacionado à atividade do isso, à qual se pode levar
em consideração caso esteja incluída na organização do eu. A separação é, assim, uma
condição para o fazer criativo. Paradoxalmente, no entanto, o fazer criativo, ao mesmo
tempo em que pressupõe uma distinção entre eu e não-eu, a provoca e a acentua por
meio da satisfação dos impulsos, conduzindo o bebê à objetivação dos objetos externos.
O brincar é o que compõe o elemento masculino da criação, pois caracteriza um uso
de objeto, ou seja, uma separação sujeito-objeto, onde a criação já perdeu seu caráter de
controle onipotente e se transmutou na satisfação motora das manipulações. Ainda que
se possa falar em separação, uma vez que, com o brincar, se rompe com a identificação
primária, sabe-se, ao mesmo tempo, que a relação com os objetos e fenômenos
transicionais usados no brincar também preserva uma continuidade entre o eu e o não-
eu que, se o continuar a ser não for repetidamente rompido, não será superada em
nenhum momento da vida.
Outra insistência importante é na impossibilidade de se distinguir, na prática, o
elemento feminino do masculino. A explicação sistemática serve apenas para uma
primeira aproximação do tema. Entendidas as especificidades de cada vertente da
criação, é preciso reconsiderá-las sempre em conjunto, acontecendo num mesmo
intervalo temporal de indeterminação.
Retomando-se a equiparação do self e da criatividade virtuais com o plano de
imanência de Deleuze, deve-se conceber, bastante sucintamente, como se faz essa
111
relação entre duas teorias diferentes. A suposição de que isso é possível se origina do
interesse de ambos os autores pela criação enquanto devir que ocorre entre os pólos do
sujeito e objeto, ou melhor, antes do surgimento desses pólos.
Uma experiência sentida como real, segundo Deleuze, começa justamente com o
corte ou a instauração do plano de imanência que, ao mesmo tempo em que é cortado, já
se faz povoar por movimentos criativos em devir. que se distinguir, portanto, dois
momentos simultâneos na constituição do plano de imanência: o primeiro é seu desenho
propriamente dito, o segundo é fazer passar algo sobre ele. Os elementos feminino e
masculino da criação se correlacionam com esses dois procedimentos. O elemento
feminino, que é o ser, desligado da ação, é o simples traçado do plano, ou seja, a
abertura da dimensão de repouso em que se continua a ser; ao passo que o elemento
masculino é o povoamento desse plano com experiências de criação. Da mesma forma
que os elementos feminino e masculino estão sempre co-implicados, o traçado e o
povoamento do plano se co-engendram.
Essas idéias de Deleuze lembram especialmente uma frase de Winnicott: “Todos
os processos de uma criatura constituem um vir-a-ser, uma espécie de plano para a
existência” (Winnicott, 1963d, p. 82). A palavra criatura poderia ser um bom começo,
pois sugere a criação como característica mais marcante do vivo, mas traz consigo a
presença de um sujeito, ou ao menos de um indivíduo, de uma entidade unitária, molar,
que justamente teria que se liquefazer para se construir um si no plano de imanência.
Mas isso é certamente apenas um deslize de vocabulário, pois os processos e o vir-a-ser
deixam clara a perspectiva processual, de constante composição, própria do devir que
invade o plano de imanência. A vida, para Winnicott, é o exercício constante de criação
de um si, de transformação do eu, o que implica nessa ênfase na abertura processual.
Resta-nos, da citação, apenas o plano para a existência.
Se coincidirmos existência com vida, o plano para a existência, em Deleuze, é,
sem dúvida, o plano de imanência, que uma de suas faces é a vida. Em Winnicott, o
lugar em que experimentamos a vida é o espaço transicional também designado área
intermediária de ilusão ou espaço potencial.
Inconformado com as categorias psicanalíticas binárias de interior e exterior,
Winnicott propôs esse terceiro espaço, entre o dentro e o fora, o eu e o não-eu, que seria
uma área de experimentação, repouso e criação. Este espaço, disponível desde antes
mesmo de a criança conseguir estabelecer uma separação clara entre o interno e o
externo, pode ser habitado ao longo de toda a vida, com a condição de que se suspenda
112
momentaneamente a fronteira delimitadora do indivíduo, do sujeito, e se estabeleça um
laço com o ambiente em que o que antes eram dois o sujeito e o mundo tornam-se
uma multiplicidade, um todo sem fronteiras e em devir, um si.
No início da vida do bebê, a localização nessa área do fazer criativo, inicia o
destacamento entre o interno e o externo, o eu e o não-eu, o sujeito e o objeto, a
molaridade tomando forma, o eu se constituindo. Mas resta o espaço entre, de
molecularização, de zonas de indistinção, em que se entra no devir e se cria um si, base
de toda a transformação do eu, linha de sustentação da constituição narcísica.
Entretanto, quando as primeiras experiências de atualização criativa não tiveram
lugar – literalmente, já que o espaço transicional não foi suficientemente construído –, o
recurso do vir-a-ser processual no plano de imanência não precisa ser definitivamente
descartado. O analista, sendo um eu auxiliar mais confiável do que o cuidador não
suficiente bom do início da vida, pode sustentar as repetidas experiências de ser do
sujeito, fornecer um holding ao tiquetaquear de sua personalidade, para que se desdobre
o devir próprio da criação de um si.
Esta é a tarefa da psicanálise contemporânea, no que ela se propõe a atender
esses sujeitos, que chegam em grande número aos consultórios e ambulatórios públicos,
e padecem com seus modos de vida esvaziados, com seus narcisismos fragilizados.
Mesmo que o trabalho seja árduo até que se alcance essa dimensão narcísica de
encontro, esse espaço de ilusão em que o contato com o mundo é possível, não se deve
perder de vista que é apenas nesse plano que um si pode se criar, e somente assim um eu
assume consistência plástica, e se sente existindo, adquirindo, inclusive, o recurso de
construir uma história subjetiva. Ainda que pareça ilusória uma tal esperança, no
atendimento de sujeitos que se mostram a uma distância por demais exagerada dessa
dimensão de criação, Winnicott nos presenteou com a lição: é desde a ilusão que se
inicia uma realidade.
113
Considerações finais:
Um horizonte clínico
A hipótese que conduziu essa dissertação foi aquela segundo a qual uma prática
psicanalítica entendida como criação de um si poderia ser uma das propostas clínicas
interessantes para o atendimento de pacientes cujas queixas remontam a uma
constituição narcísica frágil, que não se sustenta no tempo, nem habita a espacialidade
corporal. Partiu-se de um breve comentário metapsicológico dos processos de
subjetivação de tais sujeitos, que seriam compreendidos à luz da metapsicologia da
melancolia, e teriam como características marcantes, suas experiências com a
linguagem, com o corpo, com o tempo, e com a auto-imagem este último aspecto
estando intimamente relacionado à auto-estima. Notou-se que todas essas problemáticas
remetiam ao momento de construção do narcisismo, e concluiu-se que algo na vida
primitiva desses sujeitos teria se sucedido a essa época, de maneira a fazê-los sentirem-
se privados dos cuidados de que necessitavam. Eles vivem como se não tivessem sido
investidos narcisicamente, como se os cuidadores que eram responsáveis por eles
tivessem falhado em lhes dedicar libido, em lhes erigir um eu ideal, um ideal do eu, ou
mesmo um eu que fosse consistente, plástico e preenchido por atributos.
Como conseqüência, padecem de um eu vulnerável e esvaziado, que empenha de
forma muito pouco competente sua função de organização narrativa, de encadeamento
das experiências, e de unificação e contenção da subjetividade no continente do corpo.
Entretanto, parte dessa tarefa do eu se realiza, visto que esses pacientes não são
psicóticos. Ao contrário de se desintegrarem num despedaçamento angustiante do eu e
do corpo, ou mergulharem num caos temporal absoluto, constituem uma unidade
corporal e conseguem relatar eventos de forma organizada. O que chama a atenção é a
falta de ligação. Entre o eu e o corpo, entre os momentos temporais, estão ausentes ou
escassos os elos que instauram as continuidades.
Por isso pensou-se numa dimensão de encontro com o mundo, em que essa
continuidade pudesse acontecer, em que o narcisismo tivesse finalmente lugar, partindo
de uma indiferenciação eu-mundo, no sentido de uma diferenciação do eu, a ser
ricamente adornado. Essa dimensão narcísica de encontro ou de composição do eu foi
pensada como plano de criação de um si.
114
A conformação de uma unidade narcísica pode parecer o extremo oposto de uma
dissolução das fronteiras entre eu e mundo, num encontro no plano da criação. Todavia,
historicamente, antes de existir a subjetividade unitária, integrada numa totalidade
narcísica, no continente do eu, havia uma totalidade indiferenciada eu-mundo, que no
capítulo 1, sobre Freud, chama-se narcisismo primário; no capítulo 2, acerca de
Ferenczi, fases de introjeção; e no capítulo 3, a respeito do Winnicott, não-integração.
É a partir dessa totalidade não-delimitada eu-mundo, dessa massa amorfa, que vai se
destacar o eu. Longe de serem opostos, a continuidade eu-mundo e o eu que dela se
separa estão profundamente vinculados. Por isso, ao se constatar que, na
contemporaneidade, muitos pacientes sofrem por causa do eu, o que se lhes oferece é
uma dimensão em que o eu não existe, para que, desde essa dimensão, ele possa passar
a ser sentido como existindo.
No capítulo 1, sobre Freud, a configuração subjetiva escolhida em sua teoria
para denotar um si foi o narcisismo primário, entendido como sentimento oceânico,
como unidade megalômana que inclui tudo e, a partir da qual se derivam o eu e o
mundo. A criação de um si assume a forma dos processos de remodelamento do eu, que
são iniciados pela análise, mas seguem se fazendo vida afora. Na obra de Ferenczi,
enfocada no capítulo 2, a clínica como lugar de confiança e cuidado, deu ensejo a um si
criado desde o caráter tornado fluido. O terceiro e último capítulo, a respeito de
Winnicott, apresenta uma clínica similar à ferencziana, em que a confiança e o holding
sustentam um si criado a partir do eu não-integrado, em seu tiquetaquear amorfo. É
sobre essa dimensão narcísica oceânica, fluida, amorfa, na qual um si é criado, que o eu
será transformado. Esta seria uma possibilidade clínica, sustentada por um laço
transferencial narcísico, em que o eu teria chances de se preencher com alguns atributos
e de adquirir uma dimensão de espaço interno, de intimidade, de maneira a sentir-se
menos invadido pelo mundo.
Na construção dessa argumentação, sentiu-se falta de elementos que teriam
enriquecido a discussão, mas que foram deixados de fora em prol de outros fatores. O
primeiro deles é bastante evidente e consiste numa descrição metapsicológica mais
demorada, de preferência ilustrada por exemplos clínicos, como aqueles dos pacientes
atendidos no âmbito da pesquisa do NEPECC. Da mesma forma, alguns conceitos de
Michael Balint, autor descoberto apenas alguns meses, facilitariam uma série de
propostas. Ao falar de amor primário, por exemplo, Balint oferece uma descrição
fascinante do que foi chamado de dimensão narcísica de encontro. A formação da
115
subjetividade, em sua teoria, tem enormes consonâncias com o que se sublinha nesse
trabalho. Ademais, sua exposição rigorosa do conceito de regressão teria sido preciosa
no debate teórico e clínico que envolve essa noção.
Outro acréscimo interessante ao texto, poderia ter sido a adoção de passagens
clínicas de pacientes dos próprios autores Freud, Ferenczi e Winnicott que dariam
uma maior fundamentação à apropriação de suas idéias.
Por fim, concluir-se-ia esse trabalho, situando a prática psicanalítica como
criação de um si como um horizonte clínico, a que se deveria almejar chegar no
trabalho com esses pacientes, mais do que como um espaço freqüente e facilmente
habitado pelo par transferencial. O encontro com o analista confiável e com a atmosfera
acolhedora do setting podem até ser convidativos para que o paciente se deixe relaxar e
ingressar nesse plano de criação de um si, mas, na prática, sabe-se que todo o percurso,
até que se chegue nesse ponto, é muito longo, e às vezes não é atingido, sem que o
trabalho analítico seja invalidado. Ocorre que os riscos de uma tal experiência são
grandes demais e, tanto analista quanto paciente precisam estar certos, antes de se
iniciarem em tal experimentação, de que ela não engendrará um novo trauma. Nessa
hesitação do par analítico, passam-se, em geral, não menos que anos. Além disso, a
maioria desses pacientes, se é que conseguem se inserir nessa dimensão de encontro,
nela não permanecem, retirando-se rápida e defensivamente. É para esse lapso temporal
que precisa estar atento o analista, na construção dessa possibilidade. Um relaxamento
duradouro não acontece com muita freqüência, mas pequenos lampejos de criação de
um si podem ser um começo que, se não se tivesse essa prática psicanalítica peculiar
como horizonte, seria, entretanto, inteiramente desperdiçado. O que quer que
efetivamente se realize, no que concerne à constituição do narcisismo, pode ser
engendrado nesse trajeto de experimentação, nessa busca vagarosa e hesitante, nessa
tentativa de encontrar o fio da ilusão, nessa procura por uma dimensão em que um si
devenha. A prática psicanalítica como criação de um si é o horizonte de uma clínica, um
dentre os tantos outros que a psicanálise tem a oferecer.
116
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