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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA
A DETERMINAÇÃO DO SUJEITO DO INCONSCIENTE E A SUA
RESPONSABILIDADE EM PSICANÁLISE
JOANA COELHO BARBOSA
Rio de Janeiro
2009
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A DETERMINAÇÃO DO SUJEITO DO INCONSCIENTE E A SUA
RESPONSABILIDADE EM PSICANÁLISE
JOANA COELHO BARBOSA
Dissertação submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Prof
a
. Dr
a
. Simone Perelson
Rio de Janeiro
2009
ii
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A DETERMINAÇÃO DO SUJEITO DO INCONSCIENTE E A SUA
RESPONSABILIDADE EM PSICANÁLISE
JOANA COELHO BARBOSA
Dissertação submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre.
APROVADA POR:
-----------------------------------------------------------------
Profa. Dra. Simone Perelson - Orientadora
Universidade Federal do Rio de Janeiro
-----------------------------------------------------------------
Prof. Dr. Joel Birman - Orientador
Universidade Federal do Rio de Janeiro
-----------------------------------------------------------------
Profa. Dra. Fernanda Costa-Moura
Universidade Federal do Rio de Janeiro
-----------------------------------------------------------------
Profa. Dra. Silvia Alexim Nunes
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2009
iii
iv
B238 Barbosa, Joana Coelho
A Determinação do Sujeito do Inconsciente e a sua
Responsabilidade em Psicanálise / Joana Coelho Barbosa. Rio de Janeiro:
UFRJ, 2009.
ix, 87 f.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Psicologia / Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, 2009.
Orientadores: Simone Perelson.
Joel Birman.
1. Psicanálise. 2. Constituição do sujeito. 3. Desejo (Psicanálise).
4. Responsabilidade. I. Perelson, Simone. II. Birman, Joel. III. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.
CDD: 150.195
À Beth, pelo apoio e torcida
por todos esses anos.
A Caio, pela presença carinhosa
nos anos mais recentes.
v
AGRADECIMENTOS
À Simone Perelson, pela preciosa orientação, fundamental para a elaboração desse
trabalho;
À Angélica Bastos, pela acolhida e apoio dos últimos anos;
Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
da UFRJ, em especial à Fernanda Costa-Moura e Joel Birman, pela importante
contribuição à minha formação.
Aos amigos queridos da UFRJ, por todos os bons momentos;
Ao CNPq, pelo apoio financeiro provido.
vi
RESUMO
Esse trabalho realiza uma investigação acerca do sujeito do inconsciente, traçando um
percurso que vai de sua determinação significante até a questão ética de sua
responsabilidade. O sujeito, tido como efeito de significante e, conseqüentemente, dos
mecanismos que operam na linguagem metáfora e metonímia –, parece muitas vezes
fugir ao chamado da cadeia simbólica, o que aponta para um funcionamento peculiar do
psiquismo inconsciente. Essa máquina não possui um funcionamento homeostático e
produz sempre um resto inassimilável, que insiste em não se inscrever na cadeia
significante. Das Ding, um dos nomes desse resto, será um ponto em comum entre o
tema da determinação significante e o da responsabilidade. Na ética da psicanálise, em
sua prática diária, o sujeito deverá ser responsável por aquilo em que não se reconhece,
pelo que lhe é estranho, estranhamente íntimo.
Palavras-chave: psicanálise; constituição do sujeito; desejo (psicanálise);
responsabilidade.
vii
ABSTRACT
This work investigates the unconscious subject from its significant’s determination
through to its ethical responsibility. The subject taken as an effect of the significant, and
consequently as an effect of the language mechanisms metaphor and metonymy –,
looks as though it will elude the call from the signifier’s chain, what points towards a
peculiar behaviour of the unconscious psyche. This machine does not work
homeostatically and always produces a non-assimilable reminder, which insists on its
non-inscription on the signifier’s chain. Das Ding, one of this reminder’s name, will be
the common ground between the signifier’s meaning and responsibility themes. In the
Psychoanalysis ethic’s, in its daily practice, the subject shall be responsible for what one
does not recognise in oneself, for what is inherently uncanny, intimately uncanny.
Key-words: psychoanalysis; subject's constitution; desire (psychoanalysis);
responsibility.
viii
SUMÁRIO
Introdução 1
1 - A determinação simbólica do sujeito do inconsciente 6
1.1 - Os mecanismos freudianos do inconsciente 6
1.2 - Freud com Saussure 10
1.3 - A formalização da metáfora e da metonímia 13
1.4 - Um sujeito de linguagem 15
1.5 - Introdução ao grafo 19
1.6 - A metáfora paterna e o determinismo simbólico 23
1.7 - O falo e o desejo do Outro 25
1.8 - Os “eus” e o isso 27
1.9 - A perturbação da ordem simbólica 30
2 - O furo na ordem simbólica – a causa real do sujeito do inconsciente 33
2.1 - Das Ding entre o Bem e o Mal 33
2.2 - Retornar, repetir e gozar 39
2.3 - O sublime objeto proibido do desejo 43
2.4 - “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um...” 47
3 - A responsabilidade do sujeito do inconsciente 52
3.1 - Da ética do Real à responsabilidade do sujeito 52
3.2 - O desejo: entre a responsabilidade e a culpa 59
3.3 - Ceder de seu desejo ou persistir nele? 64
3.3.1 - A Terceira Margem do Rio 64
3.3.2 - Antígona: a trágica persistência no desejo 68
Considerações Finais 73
Referências Bibliográficas 83
ix
INTRODUÇÃO
O conceito de sujeito recebeu destaque na história da filosofia a partir do
pensamento de Descartes. O sujeito cartesiano equivale à consciência, sendo totalmente
transparente a si mesmo e tendo o pensamento como seu principal atributo. Isso
significa que não poderia haver uma idéia em seu ser à qual o sujeito fosse alheio; e
que, de todos os seus pensamentos, ele seria o senhor. A invenção freudiana do
inconsciente, entretanto, trouxe profundas modificações a esse conceito cartesiano.
As elaborações freudianas tornaram no mínimo – problemática a concepção da
autotransparência da consciência. Freud introduziu, no cerne da soberana consciência,
um ponto opaco, fugidio, irrepresentável. E é justamente nesse ponto que Lacan
localizará o sujeito. No seio dessa mudança radical, a subversão do sujeito cartesiano se
deu, ainda, de outra forma: o sujeito que, em Descartes, representava o papel de causa
de seus pensamentos, tornar-se-á, na psicanálise, um efeito do jogo combinatório dos
significantes.
O sujeito é um efeito do significante. Qualquer um que tenha tido uma mínima
aproximação com a teoria psicanalítica lacaniana conhece essa definição. O que
pretendemos realizar nesse trabalho é uma investigação sobre o sentido e algumas
conseqüências dessa afirmação, em especial, sobre como podemos articular a mesma
com a questão ética de que esse sujeito, determinado pelo inconsciente, deva ser,
também, responsável por sua posição frente ao seu gozo.
De partida, é importante destacar que a psicanálise, antes de tudo, é uma prática
que tem o sujeito como seu ponto central. Esse fato faz com que seja impossível a
concepção do psiquismo como um sistema fechado, tal como foram concebidos os
sistemas que o movimento estruturalista construiu. O sujeito, furo da estrutura
significante, é também um ponto que gera muitas dúvidas e inquietações no meio
analítico. Por isso, pretendemos, ao longo desse trabalho, investigar em que medida este
furo-sujeito se situa na interface entre a cadeia significante de que ele resulta e o real do
gozo inassimilável pela estrutura.
Para tanto, dividimos nossa dissertação em três capítulos. No primeiro deles,
intitulado A Determinação Simbólica do Sujeito do Inconsciente, iniciaremos nosso
percurso pelo modo de funcionamento dessa máquina simbólica que é o inconsciente, e
o faremos, a princípio, nos remetendo a Freud, em sua A Interpretação dos Sonhos
(1900/1996).
Nessa obra, aprendemos que entre os pensamentos latentes e o conteúdo
manifesto do sonho opera o trabalho onírico, o qual possui dois principais mecanismos
de funcionamento: o deslocamento e a condensação. O primeiro se refere a uma
transposição dos valores psíquicos, na qual as intensidades, desprendidas de suas
representações de origem, são transferidas para outras, as quais, aparentemente, não
possuem relações lógicas com as primeiras. na condensação ocorre que uma
representação aparece no lugar de outras, o que origem, muitas vezes, a um efeito de
estranhamento, de surpresa, frente ao aparecimento de um novo e inesperado sentido.
Em suas obras posteriores, A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901/1996) e
Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente (1905/1996), podemos constatar, com
Freud, que esses mecanismos não são privilégios dos sonhos, mas também se mostram
claramente presentes em atos falhos e chistes, por exemplo. De onde se pode concluir
que tais mecanismos possuem grande importância na manifestação do funcionamento
inconsciente, o qual Lacan irá aproximar – em especial em seu seminário As Formações
do Inconsciente (1957-58/1999) e em seu escrito A Instância da Letra no Inconsciente
ou a Razão desde Freud (1957/1998) –, do funcionamento da linguagem.
No movimento dessa aproximação, Lacan fará uma incursão na lingüística, em
especial naquela que se constituiu a partir dos desenvolvimentos realizados por
Ferdinand de Saussure em seu Curso de Lingüística Geral (1970) e por Roman
Jakobson em Dois Aspectos da Linguagem e Dois Tipos de Afasia (1974). Algumas
novidades trazidas por esses estudiosos à Lingüística foram decisivas para sua
2
apropriação em psicanálise, tais como a noção de arbitrariedade do signo e a maior
importância conferida à dimensão sincrônica da língua. A contestação da relação
necessária entre significante e significado foi um ponto de partida crucial para que
Lacan pudesse inverter o algoritmo saussureanosignificado/significante –, postulando
a prevalência do significante sobre o significado. a importância da dimensão
sincrônica da língua nos leva à formulação essencial na obra lacaniana da cadeia
significante, herdeira das Bahnungen freudianas (FREUD, 1895/1996). A partir do
estudo da lingüística de Saussure e Jakobson, portanto, Lacan realizará um retorno a
Freud, reconhecendo, em seus conceitos de deslocamento e condensação, dois
importantes mecanismos de funcionamento da língua: a metonímia e a metáfora.
A primeira representa o deslocamento das significações, o deslizamento
interminável da cadeia significante, sem o qual a segunda não pode existir, já que a
mesma – a metáfora – indica um ponto de parada desse deslizamento, onde aparece uma
centelha criadora, podendo advir algo de novo – um efeito do significante. É justamente
nessas quebras, nesses intervalos da cadeia, que pode haver um lugar para o sujeito do
inconsciente na medida em que ele mesmo é um efeito do significante. Não podemos
esquecer que foi a partir desses momentos de interrupção da linearidade da consciência
que Freud (1915/1996) pôde fazer a suposição dessa instância psíquica tão peculiar que
é o inconsciente.
A presença desses intervalos na cadeia significante, que são, justamente, os
lugares pelos quais o sujeito freudiano pode se fazer presente, aponta para uma
característica peculiar da estrutura simbólica que é o inconsciente: a abertura. O
aparelho psíquico pensado por Freud não é, de forma alguma, um aparelho fechado,
homeostático, sem sobras ou furos. Pelo contrário, esse peculiar aparelho parece ser
capaz de produzir uma brecha em seu próprio funcionamento, uma descontinuidade que
perturba o encadeamento de seus significantes com o aparecimento de um nada, de um
“corpo estranho”, que não é passível de ser significantizado. Essas perturbações da
ordem simbólica das quais trataremos aqui, sob a denominação de causa real do
sujeito do inconsciente receberam, na psicanálise, nomes diversos. No segundo
capítulo do presente trabalho, intitulado O Furo na Ordem Simbólica A Causa Real
do Sujeito do Inconsciente, abordaremos, especialmente, um de seus nomes, das Ding.
3
No Seminário 7: A Ética da Psicanálise, Lacan introduziu o conceito de Das
Ding termo retirado da obra de Freud
1
para nomear um vazio interno e necessário à
estrutura significante tal como ela nos aparece na clínica. Consideramos que esse fato
não pertence à ordem do acaso. Em primeiro lugar, veremos como das Ding está ligada
a uma subversão da Lei moral em psicanálise. A Coisa, por sua inquietante
ambivalência, se relaciona, de perto, com um paradoxo da Lei moral, que como
afirmará Lacan, inspirado em São Paulo é por meio da Lei que o pecado se torna
desmesuradamente pecaminoso (LACAN, 1959-60/1997, p. 217). Ou seja, em
psicanálise, a Lei moral aparecerá com um caráter subversivo, sendo que segui-la não
representará – tal como poderia ocorrer na religião – a conquista de certa paz de espírito
ou de uma consciência tranqüila. Freud nos havia chamado a atenção para o
inquietante fato de que quanto mais abdicamos da satisfação pulsional para
submetermo-nos aos mandamentos superegóicos, mais somos punidos pela fúria cruel
dessa instância psíquica.
Em segundo lugar, Das Ding, ao se constituir como o vazio necessário ao
movimento metonímico do desejo, traz para o primeiro plano a questão ética do
posicionamento do sujeito frente a seu desejo. Questão essa que consideramos
igualmente paradoxal, pois, se afirmamos que o sujeito do inconsciente é determinado
pela cadeia significante que o antecede e que seu desejo não é outra coisa senão o desejo
do Outro, como podemos falar em ética da psicanálise? Que espaço pode haver para a
responsabilidade subjetiva neste contexto de determinação significante inconsciente?
A ética da psicanálise, portanto, deve considerar algo que se refere a das Ding;
ou, melhor dizendo, deve considerar o gozo. Após nossa abordagem da Coisa,
passaremos, no fim de nosso segundo capítulo, a refletir sobre a ética da psicanálise,
trazendo, inicialmente, a questão do imperativo categórico de Kant, lido a partir do
imperativo de gozo sadeano. O texto principal que nos acompanhará nesse momento
será o seminário A Ética da Psicanálise (LACAN, 1959-60/1997), central nos dois
capítulos finais dessa dissertação.
Ao fim de nosso percurso, no terceiro e último capítulo do presente trabalho,
discutiremos A Responsabilidade do Sujeito do Inconsciente (expressão que intitula o
1
O texto em questão seria o Projeto para uma Psicologia Científica (FREUD, 1895/1996).
4
capítulo). Por considerarmos paradoxal falar em responsabilidade de um sujeito
determinado, começamos, no início desse trabalho, por um esforço de compreender o
funcionamento de tal determinação para, em seguida, estudar as peculiares perturbações
da mesma. Acreditamos que, após esse percurso realizado, chegaremos com menos
arestas à questão da responsabilidade subjetiva. Abordaremos, no último capítulo, as
questões da responsabilidade referente ao gozo e da distinção entre culpa e
responsabilidade, tomando o desejo como ponto de referência. Nesse momento,
seguimos a hipótese, baseada na leitura do seminário 7 (LACAN, 1959-60/1997), de
que, enquanto a responsabilidade implica em uma persistência na via do desejo, a culpa,
por outro lado, se aproxima de um abandono dessa mesma via.
No intuito de tentar nos apropriar do que debatemos nesse capítulo final,
lançaremos mão de dois textos literários, sendo que um representaria um caso de um
sujeito que escolhe a via da culpa e o outro, um caso de um sujeito que escolhe a via da
responsabilidade que é a mesma do desejo. Esses textos são, respectivamente, A
Terceira Margem do Rio, pequeno conto de Guimarães Rosa, e Antígona, tragédia de
Sófocles estudada por Lacan no seminário da ética, justamente numa alegoria do que
seria a via do desejo.
Ao longo desse trabalho, procuraremos apresentar o sujeito da psicanálise em
seu aparente paradoxo: por um lado, ele é fruto de uma determinação simbólica e
inconsciente; por outro, este mesmo sujeito deve responder por aquilo que lhe concerne,
atendendo ao chamado da cadeia significante e advindo onde isso estava. Em outras
palavras, pretendemos, sobretudo a partir do estudo do legado de Freud e Lacan, chegar
a alguma compreensão acerca da condição ambivalente do sujeito em psicanálise:
determinado e responsável.
5
CAPÍTULO 1
A DETERMINAÇÃO SIMBÓLICA DO SUJEITO DO INCONSCIENTE
1.1 Os mecanismos freudianos do inconsciente
A invenção do conceito de inconsciente constituiu uma novidade que foi
fundamental para o estabelecimento da psicanálise como distinta dos demais sistemas
de pensamento relativos ao ser humano. Em seu artigo O Inconsciente (1915b/1996),
Freud escreve sobre a importância desse conceito e a dificuldade que os filósofos da
época encontraram em admiti-lo. Essa dificuldade deve-se ao fato de que, até então,
psíquico e consciente eram termos coincidentes. Nada do que não fosse consciente
poderia ser admitido sob o termo psíquico, sendo, antes, relacionado ao físico ou
puramente somático. É por partirem desse pressuposto que os filósofos não poderiam
aceitar o inconsciente freudiano, especialmente no momento em que o mesmo era
considerado uma importante instância psíquica.
Freud apresenta, nesse artigo, argumentos que visam justificar a importância e a
necessidade de se supor um psiquismo inconsciente. Afirma, por exemplo, que certas
cadeias de pensamento que se apresentam na consciência possuem lacunas em
quantidades significativas, as quais tornam tais cadeias incoerentes. Apenas com a
suposição de que essas lacunas possam ser preenchidas por pensamentos ou processos
que não estão presentes na consciência, pode-se restituir o sentido a essas cadeias de
pensamento falhas. Nas palavras de Freud:
Todos esses atos conscientes permanecerão desligados e ininteligíveis, se
insistirmos em sustentar que todo ato mental que ocorre conosco,
necessariamente deve também ser experimentado por nós através da
consciência; por outro lado, esses atos se enquadrarão numa ligação
demonstrável, se interpolarmos entre eles os atos inconscientes sobre os
quais estamos conjeturando. (FREUD, 1915b/1996, p. 172).
Um outro argumento apresentado é o seguinte: posso notar em mim
manifestações ou atos psíquicos os quais não sei como ligar ao resto de minha vida
mental, ou seja, nos quais eu não me reconheço como, por exemplo, os atos falhos.
Quando noto manifestações psíquicas em uma outra pessoa, eu prontamente assumo que
as mesmas são resultado de processos psíquicos, mesmo que eu não possa ter acesso a
esses, isto é, mesmo que essa inferência não possa ir além de uma suposição incapaz de
verificação. Nada deve impedir, portanto, que eu estenda essa suposição ao que me
ocorre, levando-me à conclusão de que em mim processos psíquicos os quais me são
estranhos. Remeter tais processos a uma segunda consciência seria incoerente, pois,
como seria possível existir uma consciência à qual falta a sua característica mais
evidente, a de ser consciente? Tanto esse argumento quanto o descrito no parágrafo
anterior apresentam o inconsciente como algo que se faz presente pelas lacunas do
pensamento consciente, subvertendo-o de alguma forma. É no estudo dos sonhos que
Freud procurará definir a forma sob a qual essa subversão ocorre.
Em A Interpretação dos Sonhos (1900/1996), Freud descreve os mecanismos
que regem os processos inconscientes. Dentre esses mecanismos, dois merecem
destaque: a condensação e o deslocamento. Antes de explicá-los, faz-se necessária uma
breve explicação do processo da formação dos sonhos, para esclarecermos alguns dos
termos que serão utilizados adiante. Conteúdo manifesto é o nome dado ao sonho tal
qual ele aparece à nossa consciência. Ele apresenta uma série de incoerências e
absurdos, os quais fizeram com que muitos dentre os estudiosos desse assunto
concluíssem que os sonhos fossem fenômenos desprovidos de sentido. Freud
(1900/1996), ao contrário, afirma que esses fenômenos possuem sentido, sendo que esse
estaria apenas mascarado por um processo psíquico inconsciente denominado
elaboração onírica. Os pensamentos latentes, material do qual os sonhos são feitos,
seriam pensamentos tais quais os conscientes, isto é, coincidiriam com esses em sua
natureza de pensamento, ainda que não pudessem ser reconhecidos pela consciência.
Entretanto, ao serem submetidos à elaboração onírica, os pensamentos latentes
receberiam uma aparência de incoerência e absurdidade, aparência essa que os tornaria,
à primeira vista, bastante distintos dos pensamentos conscientes.
7
Dito isso, voltemos aos dois principais mecanismos presentes na elaboração
onírica: a condensação e o deslocamento. O primeiro deles foi deduzido por Freud do
fato de que a interpretação do sonho era sempre muito maior, ou seja, possuía muito
mais elementos do que o seu relato. Qual seria a origem desse conteúdo extra? Pois
bem, um único elemento do conteúdo manifesto do sonho estaria representando
diversos elementos presentes nos pensamentos latentes. Isso seria possível quando
características de cada um desses pensamentos se fundissem em um único representante,
o qual passaria a significar todo o grupo. O exemplo mais clássico desse mecanismo
provém do sonho da injeção de Irma. O personagem principal desse sonho possuía
características que remetiam a outras pessoas, como por exemplo, a filha mais velha de
Freud, sua mulher e uma paciente a qual sucumbira ao envenenamento. É interessante
notar que a condensação também pode ocorrer no sentido inverso, quando um elemento
dos pensamentos latentes é representado por vários elementos do conteúdo manifesto.
Essa estratégia do trabalho do sonho fornece a chave da compreensão do motivo de uma
interpretação de um sonho não poder ser esgotada. Os sonhos são sobredeterminados,
sendo que seus elementos admitem inúmeras interpretações.
O mecanismo de condensação não é exclusivo dos sonhos, estando presente
também em outras formações do inconsciente, tais como os chistes. Num dos mais
famosos exemplos apresentados por Freud (1905b/1996), um humilde agente de loteria,
ao se referir ao tratamento que um rico barão lhe concedeu, afirma: “ele me tratou como
um seu igual bastante familionariamente.” Esse neologismo é o representante de dois
termos distintos familiarmente e milionariamente
2
–, os quais, ao passarem pelo
processo da condensação, foram unidos em um único termo familionariamente que,
por sua vez, apresenta um significado singular e novo. Seu significado é o de que o
barão concedeu ao agente de loteria um tratamento familiar, na medida em que isto é
possível para um milionário.
O segundo mecanismo da elaboração onírica citado, o deslocamento, foi
deduzido do seguinte fato: os elementos que ocupavam um papel central no conteúdo
manifesto possuíam, contudo, papéis secundários nos pensamentos latentes e vive-
2
Em alemão, língua na qual esse chiste é originalmente formulado, os termos condensados são familiär
(familiarmente) e milionär (milionário). Optamos aqui pelo neologismo milionariamente, no lugar de
milionário, no intuito de preservar a homofonia presente na língua de origem.
8
versa. Essa estratégia origem à transposição de todos os valores psíquicos entre o
material dos pensamentos oníricos e o sonho, expressão de Nietzsche citada por Freud
(1900/1996) para indicar que os mesmos elementos possuíam intensidades psíquicas
bastante diferentes das originais ao serem representados num sonho. Um exemplo
apresentado em A Interpretação dos Sonhos (1900/1996) se refere ao sonho da
monografia botânica. Nesse, o elemento de maior destaque do conteúdo manifesto é
botânica, enquanto que, nos pensamentos latentes, os elementos que mais se
destacavam concerniam às complicações e conflitos que surgem entre colegas por suas
obrigações profissionais, e ainda à acusação de que o sonhador tinha o hábito de fazer
sacrifícios demais em prol de seus passatempos, dentre os quais não figurava, de forma
alguma, a botânica.
O mecanismo de deslocamento, tal como o da condensação também pode ser
observado nos chistes. Há, nesses casos, um desvio de uma resposta em relação ao
sentido de um comentário, resultando em uma modificação da ênfase psíquica de uma
mesma expressão. Um exemplo deve tornar essa explicação mais clara:
Um bem conhecido especulador da Bolsa de Valores, também banqueiro,
caminhava com um amigo pela Ringstrasse [principal avenida de Viena].
Quando passavam por um café, comentou: “Vamos entrar e tomar alguma
coisa!” Seu amigo o conteve: “Mas, Herr Hofrat, o lugar está cheio de
gente!” (FREUD, 1905b/1996, p. 57).
O que ocorreu entre o comentário e a resposta foi um deslizamento do significado da
expressão tomar, que passou a possuir valores diferentes para cada um dos personagens.
Apesar de essa expressão ser aparentemente uma só, não é isso o que ocorre, pois seu
sentido é dado apenas pela relação que a mesma possui com os outros elementos da
frase. É importante notar como que o essencial nesse chiste é a escolha do significante
tomar, sem o qual não seria possível o deslocamento de sentido ocorrido. Se, no lugar
de vamos tomar alguma coisa, o banqueiro houvesse dito vamos beber alguma coisa, o
chiste não se teria produzido. Os chistes, portanto, dependem, como afirma Freud
(1905b/1996, p. 26) de sua forma de expressão, da verbalização que os exprimem. E
essa forma de expressão é, simplesmente, a linguagem.
9
1.2 Freud com Saussure
Uma das interpretações possíveis da afirmação de Lacan “O Inconsciente é
estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1964/1998) é a de que os mecanismos
pelos quais se dão os processos inconscientes podem ser encontrados operando na
própria linguagem. Esse autor recorre, portanto, à lingüística estrutural inaugurada por
Ferdinand de Saussure em seu Curso de Lingüística Geral (1970) e aplica alguns de
seus elementos à psicanálise. Essa abordagem permitirá que se desdobrem importantes
conseqüências para o estudo do sujeito em psicanálise. Além disso, os dois mecanismos
da elaboração onírica anteriormente apresentados possuirão um papel de destaque nessa
estratégia lacaniana. Antes de apresentar como isso se dá, será realizada uma breve
exposição das novidades trazidas, a partir das elaborações de Saussure, ao campo da
lingüística.
Essa “ciência” como a denomina o lingüista passou por três fases sucessivas
antes de se estabelecer seu propósito atual (SAUSSURE, 1970). A primeira delas, a
Gramática Normativa, se interessava apenas pelo estabelecimento de regras com o
objetivo de distinguir as formas corretas das incorretas. A segunda, a Filologia, não
possuía a língua como seu único objeto, se ocupando também da história literária, dos
costumes e das instituições. A comparação dos textos de diferentes épocas apontava
para uma falha da crítica filológica: um apego muito maior à língua escrita do que à
falada. A terceira fase, a Gramática Comparada, tem como sua principal característica a
comparação das línguas entre si. Esse método, entretanto, restringia-se a essa
comparação, sem tirar da mesma quaisquer conclusões. Finalmente, a lingüística
estrutural de Saussure assumiu como tarefa a descoberta das forças que estão em jogo
em todas as línguas e a dedução das leis gerais às quais se poderiam referir os
fenômenos peculiares das mesmas. A língua corresponderia a uma estrutura, na qual
todos os elementos estariam interligados e seus respectivos valores seriam sempre uma
função de suas posições com relação aos demais elementos.
A língua distingue-se da fala, a qual é sempre individual e cuja execução pode
ser observada. A língua, por sua vez, é um sistema virtual, que não está completo em
indivíduo algum. Além disso, ela não constitui uma função do falante, não supondo
jamais premeditação. Deve-se ressaltar, ainda, que o objeto da lingüística é a palavra
10
falada, sendo a palavra escrita puramente uma representante daquela. É a palavra falada,
portanto, que constitui o signo lingüístico.
Com relação a esse signo, Saussure introduzirá uma observação importante. Ele
é arbitrário, isto é, não uma relação necessária, natural, unindo um significante a um
significado. Essa união é, antes, baseada em uma convenção. É certo que tal convenção
não pode ser alterada pela simples vontade do falante, que esse é assujeitado à sua
língua; todavia, essa arbitrariedade permitirá que a relação entre significante e
significado seja alterada em algumas situações. Esse será o caso da metáfora e da
metonímia, a ser visto em breve.
Outra novidade importante é que, a partir de Saussure, o signo lingüístico não
mais será representado como aquilo que une uma coisa a uma palavra, mas antes, um
conceito ou significado a uma imagem acústica ou significante –, os quais são,
ambos, elementos psíquicos. Essa novidade rompe com um nominalismo realista
segundo o qual haveria “coisas” na realidade e a função da língua seria simplesmente a
de atribuir nomes a cada uma delas. Ademais, o sentido não preexiste ao signo
lingüístico. “Não existem idéias preestabelecidas e nada é distinto antes do
aparecimento da língua.” (SAUSSURE, 1970, p. 130). Como afirmou Jakobson (1974),
o fato de apontar com o dedo não é suficiente para a elucidação do sentido, pois esse
pode ser apreendido caso se domine toda uma série de signos lingüísticos que servem de
interpretantes de um signo. De que forma, então, se produziria o sentido? Para
representar esse fenômeno, Saussure imagina dois planos paralelos, sendo um deles
formado pelas idéias confusas e o outro pelos sons não menos indeterminados. O
sentido se daria num corte perpendicular a esses dois planos, o qual uniria um conceito
a uma imagem acústica, ambos determinados apenas após essa união.
Como se pode presumir a partir dessa representação de Saussure, o significante
possui um caráter linear, se organizando como em uma seqüência temporal. Esse
aspecto do significante está relacionado a uma característica da língua: o fato de ela
desdobrar-se em uma direção orientada denominada eixo sintagmático. É esse eixo que
Lacan designa como cadeia significante. De acordo com Jakobson (1974), dois
modos de arranjo dos signos lingüísticos. O eixo sintagmático é descrito como um
arranjo por combinação: uma concatenação de entidades sucessivas. A característica da
11
contigüidade é aqui essencial. O outro eixo da língua, perpendicular ao primeiro,
denomina-se eixo paradigmático e pode ser descrito como um arranjo por seleção: uma
concorrência de entidades simultâneas. Esse eixo “concerne às entidades associadas no
código, mas não na mensagem dada” (JAKOBSON, 1974, p. 40) e sua característica
essencial é a da similaridade. Exemplificando: a frase, tomada em seu conjunto, se
organiza sobre o eixo sintagmático. Ao separar um de seus elementos, o verbo, por
exemplo, vemos que, além de estar em relação aos outros elementos da frase sujeito,
objeto direto –, ele também se relaciona com outros verbos da língua, os quais poderiam
substituí-lo sem que a estrutura da frase fosse abalada. Esta última relação es referida
ao segundo eixo da língua, o eixo paradigmático.
Essas duas relações a sintagmática e a paradigmática são as que estabelecem
o valor de um signo lingüístico. Os valores que este signo pode assumir são, em
conseqüência disso, “puramente diferenciais, definidos não positivamente por seu
conteúdo, mas negativamente por suas relações com os outros termos do sistema.”
(SAUSSURE, 1970 p. 136). Lacan (1957-58/1999, p. 86), por sua vez, faz uma alusão a
Marx para comentar a questão do valor de um significante. De acordo com o
economista, no princípio de qualquer relação de troca deve ser estabelecida uma
equivalência geral do valor das mercadorias. O que Lacan chama atenção é que para que
esse estabelecimento seja efetivado, cada mercadoria envolvida no mesmo deve perder
uma parcela de sentido, para se tornar o significante do valor de uma outra mercadoria.
Pode-se transpor esse raciocínio para a questão dos signos saussurianos: por serem eles
integrados na estrutura das trocas lingüísticas, eles “perdem” uma parcela importante de
seu sentido, passando a ter apenas esse valor puramente diferencial. O verbo entre aspas
indica que essa perda se em relação a uma situação anterior mítica, que,
também para Saussure, os signos não são anteriores à linguagem.
De volta aos dois eixos da língua, as características principais do eixo
paradigmático e do eixo sintagmático são, respectivamente, a similaridade e a
contigüidade. Essas duas características, por sua vez, relacionam-se a duas figuras de
linguagem, respectivamente a metáfora e a metonímia. Essa relação fora feita por
lingüistas, como Jakobson (1974), todavia, Lacan acrescentará mais um par a essa série,
12
par esse proveniente dos mecanismos inconscientes. Metáfora e metonímia estarão, na
psicanálise, relacionadas, respectivamente, à condensação e ao deslocamento.
1.3 A formalização da metáfora e da metonímia
A metáfora consiste em uma substituição significante, como por exemplo, no
advento de uma palavra no lugar de outra. Segundo Lacan (1957-58/1999), esse é o
processo responsável pela criação de sentidos novos, sendo que a centelha criadora da
metáfora brota entre os dois significantes presentes nessa relação de substituição. Esses
sentidos criados vêm “aprimorar, complicar, aprofundar, dar sentido de profundidade
àquilo que, no real, não passa de pura opacidade” (LACAN, 1957-58/1999, p. 35). É
importante notar que o sentido que a metáfora faz brotar não estava latente em algum
reservatório, em estado de dicionário, esperando pela sua convocação. Ele não é
anterior ou independente do efeito puramente significante provocado pela metáfora. Isso
quer dizer que um sentido se produz a partir de um não sentido, de uma falta aberta
por um significante que, ao substituir um outro, faz o lugar vazio do mesmo. A relação
motivadora dessa substituição não é uma relação entre significados, mas uma relação
denominada por Freud, em sua Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901/1996),
associação externa, entendendo-se que a mesma é externa ao sentido, mas interna ao
jogo dos significantes, que essa relação passa pela materialidade do mesmo, o que
fica claro nos casos da homonímia e da homofonia.
No caso do chiste, anteriormente citado, do familionariamente, pode-se observar
a proximidade entre a metáfora e a condensação. Nesse caso, duas palavras
familiarmente e milionariamente
3
foram condensadas em uma sendo que o que
permitiu esse efeito não foi uma semelhança do sentido das duas palavras, mas a
associação externa de suas sílabas ou, melhor dizendo, de seus fonemas. A partir desse
exemplo, pode-se compreender melhor a fórmula da metáfora apresentada por Lacan
(1957-58/1998, p. 16), assim como sua explicação:
f (S’) S” = S (+) s
S
3
Vide nota de rodapé da página 8.
13
A substituição de S (familiarmente) por S’ (familionariamente), realizada a partir da
semelhança fonética com S” (milionariamente) leva à relação S (+) s, que indica o
surgimento de uma significação nova (s), possível graças à transposição da barra da
significação o que é sugerido pelo sinal (+). Tal substituição se como fica
evidenciado, se compararmos essa fórmula com a da metonímia, que será vista mais
adiante no eixo vertical, o eixo paradigmático. Esse processo produz uma mensagem
que não existia anteriormente no código e é essa produção que caracteriza a
peculiaridade metafórica, tão facilmente exemplificada na poesia.
Ademais, podemos afirmar que aqui o advento do sujeito. Esse expressa seu
juízo da situação por meio da condensação familionariamente, cujo sentido é o seguinte:
o milionário me tratou de forma familiar, na medida em que isso é possível para um
milionário. Esse juízo pôde ser expresso em apenas uma palavra, por meio do recurso
metafórico. Sendo assim, podemos afirmar que a metáfora permite, por meio de sua
centelha criadora, o advento de um efeito peculiar do significante: o sujeito.
A metonímia, por sua vez, consiste na função assumida por um significante no
que ele se relaciona com um outro significante, situado na continuidade da cadeia. O
que ocorre nesse caso é uma transferência de significação que se ao longo da cadeia.
Ambos os significantes em questão situam-se em relação a um significado que desliza
sob a série dos significantes, não se firmando em lugar algum.
Habitualmente, costuma-se definir a metonímia pela expressão parte pelo todo.
Deve-se precisar, contudo, que a relação que une os dois significantes envolvidos na
metonímia é uma relação inerente à cadeia simbólica, e não uma relação que se na
realidade objetiva. A vela, por exemplo, pode ser a metonímia do barco pela relação
apresentada na expressão barco à vela e não porque a vela pode ser observada “na
realidade” como sendo parte do barco.
O jogo realizado pela metonímia é um jogo entre contextos e empregos. Um
mesmo significante pode ser empregado de maneira diferente em contextos diferentes, o
que lhe dois sentidos completamente diversos. É isso o que se pode observar no
chiste citado anteriormente, no qual o significante tomar é referido ora ao sentido de
consumir, ora ao sentido de roubar. A diferença que se pode observar com relação à
14
metáfora é que, no caso da metonímia, os elementos associados estão presentes no
tesouro das metonímias, sendo que nenhum sentido novo é produzido. Esse fato pode
ser observado na fórmula da metonímia, na qual se que a barra da significação
permanece ilesa, não transposta:
f (S...S’) S” = S (-) s
Aqui não o advento de s (sentido novo) o sinal (-) indica que a barra da
significação não foi transposta –, que pode reduzir-se às significações existentes
no código, movendo-se, de uma à outra, ao longo da cadeia. É esse movimento
incessante que permite aproximar a metonímia do deslocamento. Um significante
aparece aqui associado a vários outros (S...S’), no eixo horizontal, isto é, no eixo
sintagmático. O sentido participa apenas na medida em que se situa na dimensão de
álibi, isto é, ele está situado sempre em outro lugar, no qual nunca é esperado ser
encontrado.
1.4 Um sujeito de linguagem
A partir das questões da lingüística, pode-se ainda tirar outras conclusões
interessantes para a psicanálise, relativas ao sujeito do inconsciente. De acordo com
Saussure (1970), a língua é um fenômeno social que constitui um todo, no qual seus
elementos se mantêm reciprocamente em equilíbrio segundo regras determinadas. Cada
termo da língua tem seu valor definido por oposição a outros termos, de forma que
nenhum elemento possui valor em si, mas apenas o adquire por comparação a outros
elementos, de acordo com as identidades e diferenças que puderem ser estabelecidas. O
falante de uma língua não tem qualquer poder sobre a estrutura da mesma, tendo que se
submeter às suas regras: a língua é independente do falante, não havendo para esse, um
lugar no sistema daquela.
Para dar uma imagem de tal sistema, poder-se-ia pensar num programa de
computador que simulasse um jogo de cartas. No desenvolvimento de tal aplicativo, o
programador estabelece todas as regras do jogo, o que faz com que apenas determinadas
jogadas aquelas que estão de acordo com as regras criadas durante a programação
15
sejam permitidas. O jogo é independente do jogador, no sentido de que é impossível a
esse a desobediência das regras estabelecidas de antemão. Entretanto, a psicanálise
apontará para um fato que escapou a Saussure: no jogo da linguagem, o sujeito blefa.
Esse blefe, no entanto, não deve ser atribuído a uma do sujeito, mas antes
a uma característica do próprio significante. Aqui se insinua o problema da Verdade em
psicanálise. No caso da filosofia, se pensarmos no sujeito estabelecido por Descartes,
por exemplo, por mais que esse sujeito, por si só, pudesse estar sem abrigo contra o erro
e o engano que seu acesso ao mundo dos objetos era intermediado pelos sentidos,
os quais são enganadores, por natureza –, havia um Deus, uma instância superior que
garantia a Verdade das idéias inatas e daquelas que dessas derivassem. Em que consistia
essa Verdade? Na correspondência entre essas idéias, provenientes do espírito, e as
coisas, presentes no mundo (LANDIM, 1992). O significante se apresenta, na
psicanálise, tal como os sentidos em Descartes; ambos são enganadores e não possuem,
em si, uma garantia de Verdade ou de certeza. A diferença é que na psicanálise, não
um Deus que possa fornecer qualquer garantia. Não há, portanto, uma saída da rede de
significantes, não o que faça uma correspondência entre esses e uma pretensa
realidade para além da linguagem. Freud apresenta um interessante exemplo disso que
podemos chamar, a partir de Lacan, de característica enganadora do significante:
Dois judeus encontraram-se num vagão de trem em uma estação na Galícia.
‘Onde vai?’ perguntou um. ‘À Cracóvia’, foi a resposta. ‘Como você é
mentiroso!’, não se conteve o outro. ‘Se você dissesse que ia à Cracóvia,
você estaria querendo fazer-me acreditar que estava indo a Lemberg. Mas
sei que, de fato, você vai à Cracóvia. Portanto, por que você está mentindo
pra mim?’ (FREUD, 1905b/1996, p. 113).
Ao comentar esse chiste, Freud afirma que “a mais séria substância do chiste é o
problema do que determina a verdade.” E, em seguida: “Estaremos certos em descrever
as coisas tais quais são sem nos importarmos em considerar a forma pela qual nosso
ouvinte entenderá o que dissermos?” (FREUD, 1905b/1996, p. 113). O eco dessas
passagens aparece nas primeiras aulas do Seminário As Formações do Inconsciente
(1957-58/1999). Já na primeira, Lacan afirma que a essência da tirada espirituosa reside
em sua relação à dimensão da verdade como álibi. O chiste traz à tona uma certa
verdade a verdade inconsciente –, a qual pode ser vista quando se olha para um
outro lugar. Ao sermos pegos de surpresa por um sentido novo produzido no chiste,
16
temos contato com uma das características essenciais da linguagem aquela de dizer
outra coisa que não o que se pretendia. Essa peculiaridade do significante permite que a
verdade se faça passar por mentira, em sua própria apresentação como verdade, o que
fica bem demonstrado no chiste anteriormente citado.
O inconsciente, poder-se-ia dizer, se entrega quando o olhamos meio de lado.
É isso o que acontece no chiste. Pois o inconsciente é esse próprio enviesamento, aquilo
que, em seu funcionamento, turva a realidade no ato mesmo em que a suscita. O homem
é esse ser que habita esses caminhos tortuosos trilhados por um mecanismo, do qual o
chiste nos a chave do desvendamento. A satisfação que ele nos fornece é aquela de
termos, por um breve momento, nos aproximado da verdade. Pois essa tem uma
dimensão de álibi, aparecendo somente ali onde não é esperada. Nem a verdade escapa
à retorção do significante.
De volta à questão do sujeito, é mister comentar que, ao apropriar-se desse
conceito – o qual, como se sabe, não está presente na obra de Freud –, Lacan o afasta da
relação que o mesmo apresentava no campo filosófico, em especial, no da filosofia
cartesiana, com a consciência, aproximando-o, ao contrário, do inconsciente freudiano.
Dessa forma, o sujeito, em vez de ser remetido ao lugar do falante do discurso
consciente, será situado, na psicanálise, nas lacunas desse mesmo discurso. O que isso
pode significar? Se não houvesse sujeito, talvez a linguagem utilizada, aqui, como
sinônimo de língua (Saussure) tivesse, de fato um funcionamento equilibrado,
harmonioso, sem lacunas; todavia, se não houvesse sujeito, não haveria linguagem. “É
nesse buraco no seio do Outro substancial que o sujeito deve reconhecer seu lugar: o
sujeito é interno ao Outro substancial enquanto identificado com seu bloqueio, com sua
impossibilidade de chegar à identidade fechada consigo mesmo.” (ZIZEK, 1991, p.
124).
Por outro lado, o sujeito só pode se constituir por meio de sua inserção na
linguagem. Contudo essa inserção é também responsável por uma alienação do sujeito.
Esse, por se constituir como segundo em relação a um significante, não pode mais,
como era em Descartes, por exemplo, ser considerado como uma substância, não
podendo também ser o fundamento de qualquer conhecimento seguro. Não é mais
possível, na psicanálise, dar uma essência do sujeito, tal como era o pensamento, em
17
Descartes. Entretanto, esse assujeitamento ao significante não abre ao sujeito todos os
sentidos como se poderia dizer que o homem é um devir –, mas abole todos. Isto
significa que ao sujeito não corresponde nenhum sentido pré-determinado; mais do que
isso, não há, quanto ao sujeito, um significante que o torne inteiramente presente. Em
detrimento disso, o sujeito é aquilo que um significante representa para um outro
significante (LACAN, 1964/1998, p. 150), só tendo existência possível nesse jogo de
intercâmbios dos significantes que é a linguagem.
Em seu Seminário As Formações do Inconsciente (1957-58/1999), Lacan afirma
que é possível encontrar a descrição da relação fundamental do sujeito com a cadeia
significante naquilo que Freud denomina o além do princípio de prazer. Na compulsão à
repetição, nesse retorno incessante do mesmo que acossa o sujeito, por mais que ele
tente disso se livrar, o que se delineia é o funcionamento da cadeia significante, a qual
pode ser movida isto é, alterada no que diz respeito a essa repetição por um ato
específico que o sujeito deve realizar em relação a seu desejo. É por se recusar a realizar
esse ato que a repetição insiste e que o sujeito é acossado pelas formações do
inconsciente, as representantes de sua dívida pendente. Nas palavras do autor:
(...) o sujeito em sua relação com o significante pode, de vez em quando, ao
ser solicitado a se constituir no significante, recusar-se a fazê-lo. Ele pode
dizer: Não, eu não serei um elemento da cadeia. (...) Que faz o sujeito, na
verdade, a cada momento em que se recusa, de certo modo, a pagar uma
dívida que não contraiu? Não faz outra coisa senão perpetuá-la. Suas recusas
sucessivas têm como efeito fazer a cadeia repercutir mais, e ele se descobre
sempre mais e mais ligado a essa mesma cadeia. A Absagüngswang, essa
necessidade eterna de repetir a mesma recusa, é onde Freud nos mostra o
último recurso de tudo aquilo que se manifesta do inconsciente sob a forma
de reprodução sintomática. (LACAN, 1957-58/1999, p. 255).
A partir disso, uma questão pode ser colocada: como se esse processo pelo
qual um sujeito, nas vias de sua constituição como um falante, é capturado na cadeia
significante? Para respondê-la, passaremos a uma breve abordagem do grafo do desejo,
tal como ele é apresentado no início de sua montagem, no seminário supracitado.
18
1.5 Introdução ao grafo
O sujeito é função da relação simbólica, é afetado por essa relação, em
razão da hiância aberta no ser humano pela presença original da morte, na prematuração
do nascimento. O desamparo constitutivo do homem, a dependência absoluta do
mesmo, em seus primeiros anos de vida, com relação a um outro, para a satisfação de
suas necessidades, o empurra para o jogo da troca simbólica, jogo no qual o sujeito
entra perdendo. Em troca dessa pretensa satisfação, o sujeito deve encontrar seu desejo
não em si mesmo, mas antes, no desejo do Outro, alienando-se de seu ser, que passará a
ex-sistir em um campo Outro, no campo do significante, ali onde ele mesmo o sujeito
– não pode ter uma localização precisa. “Penso onde não sou, logo sou onde não penso”
(LACAN, 1957/1998, p. 521) é essa a divisão na qual o sujeito se precipita ao
constituir-se como tal, em sua entrada na ordem simbólica.
Em um dos primeiros esboços da construção de seu grafo do desejo, Lacan
(1957-58/1999) representou o momento fundador da entrada do sujeito no simbólico e
da constituição do Outro como sede do significante. Pode-se observar, abaixo, uma das
etapas iniciais da composição do grafo:
Nesse esquema, dois vetores principais podem ser destacados. Aquele que se
desenha da esquerda para a direita representa a cadeia significante, enquanto o que se
movimenta de forma retrógrada com relação ao primeiro, atravessando-o, representa o
que aqui será denominado intenção. Pois bem, no princípio do segundo vetor um
delta (Δ), que representa uma excitação qualquer que se faz presente no bebê,
provocando uma agitação no mesmo, a qual, em sua passagem pelo Outro (A), será
acolhida como demanda. Essa excitação indefinida receberá da mãe estando a mesma
19
no lugar de A um sentido, que será estabelecido no lugar da mensagem (M). É essa
última que constituirá o sujeito como efeito da cadeia significante cadeia essa, é
importante ressaltar, que é proveniente do Outro e que, portanto, é anterior ao sujeito –;
é por meio da mensagem que, à manifestação indeterminada de sua intenção, será
atribuído um significado e que, ao ser que se debatia com suas necessidades, será
atribuído um lugar na dialética da demanda.
Um terceiro vetor presente no grafo merece uma breve explicação. Esse vetor
representa a dimensão imaginária da constituição do sujeito. Em β, temos o eu, que se
constitui a partir da imagem de seu objeto, β’. Algumas questões referentes a esse vetor
serão abordadas mais adiante.
Quanto à relação entre os dois outros vetores, uma questão pode ser posta: por
que o vetor da intenção deve cruzar o vetor do significante? Ora, porque essa é a
condição à qual a satisfação humana está subordinada (LACAN, 1957-58/1999, p. 298).
Essa satisfação existe como função do significante, e esse fato terá conseqüências
muito significativas para o sujeito e seu desejo. E quanto a este último, como ele se
institui?
O vetor da intenção, antes de ter atravessado a cadeia significante, pode ser
também chamado de necessidade. Quando essa atravessa o significante, fazendo-se
demanda, esse processo não é sem resto. O que sobra nessa equação é, justamente, o
desejo. Esse, por sua vez, se fará notar no interior mesmo da dialética da demanda:
O que tem de ser introduzido, e que está ali desde o começo, latente desde a
origem, é que, para-além daquilo que o sujeito demanda, além daquilo que o
Outro demanda do sujeito, deve haver a presença e a dimensão do que o
Outro deseja. (LACAN, 1957-58/1999, p. 371).
E o que o Outro deseja, Lacan o deixa bem claro no seminário As Formações do
Inconsciente (1957-58/1999); é o falo.
Esse elemento central na constituição do sujeito se faz presente em pelo menos
duas dimensões. Em sua vertente imaginária, o falo é aquilo com o que a criança se
identifica para obter a sua almejada satisfação; aquela de surgir no lugar do objeto do
desejo da mãe. Esse falo, pode-se dizer que ele é um objeto universal, que é válido
para todo sujeito, não importando o seu sexo. Foi isso o que escandalizou os partidários
20
da simetria entre os sexos. É isso, igualmente, o que oferece a melhor sanção de que
haja um campo analítico distinto daquele do desenvolvimento instintivo –, um campo
no qual os efeitos do significante sobrepujam a constituição anatômica.
O que é preciso para que a criança coincida com o objeto do desejo da mãe?
Voltando ao grafo, Lacan (1957-58/1999, p. 208) afirma que a criança recebe em M a
mensagem bruta do desejo da mãe. Nesse mesmo movimento, o que acontece no nível
do terceiro vetor, aquele da relação imaginária, é a identificação da criança (β) com o
objeto do desejo da mãe (β’), objeto esse que pode ser qualificado de metonímico por
estar intimamente articulado à função do significante – e, conseqüentemente,
extremamente desarticulado do campo das determinações naturais, como por exemplo,
o instinto. O que esse objeto representa é o deslizamento perpétuo da significação com
relação ao significante; ele é o elemento que representa, no imaginário, aquilo que
sempre se furta, sendo que nenhum objeto da realidade é capaz de ocupar
satisfatoriamente o seu lugar.
4
Seu nome, como já se pode imaginar, é falo.
Contudo, ao identificar-se com esse objeto, a criança não se constitui ainda
como um sujeito, mas antes como um assujeito, dado que a mesma torna-se assujeitada
ao capricho materno, sendo um joguete de seu desejo, presa da relação dual, imaginária,
da dialética da demanda. Essa situação corresponde ao primeiro tempo do Édipo, como
descrito por Lacan (1957-58/1999, p. 185-220) no seminário 5. Para que a criança passe
ao segundo tempo do Édipo, é necessária a intervenção paterna. No entanto, é
importante notar que tal intervenção não se diretamente, mas por intermédio da fala
da mãe. Essa fala, para que a passagem ao segundo tempo seja possível, deve carregar a
marca de uma proibição, que não é aquela presente em Não te deitarás com tua mãe,
mas antes a que aparece em Não reintegrarás teu produto.
O que a intervenção paterna traz, portanto, é uma proibição que incide sobre a
mãe, o que tem para a criança o sentido de castração da mãe. Em outras palavras, a mãe
é privada de seus poderes aparentemente absolutos e aparece, para a criança, como
também submetida a uma lei outra que não aquela de seu capricho. É apenas dessa
forma, pelo reconhecimento de que o Outro primordial é castrado, que a criança pode
4
Vemos aqui um eco do que Freud fala sobre o objeto da pulsão em Instintos e suas Vicissitudes: “[O
objeto] é o que de mais variável num instinto e, originalmente, não está ligado a ele (...).” (FREUD,
1915a/1996, p. 128).
21
reconhecer a si mesma como igualmente castrada, condição fundamental para que haja
um lugar para o sujeito.
A terceira fase é aquela que representa o declínio do complexo de Édipo. Nela, o
sujeito encontrará seu lugar a partir da identificação com as insígnias paternas, com as
insígnias de sua linhagem familiar. Isso significa que o sujeito se encontrará situado em
um certo ponto de uma cadeia significante que o antecede, a qual, evidentemente não
foi, de forma alguma, forjada por ele mesmo. Assumir seu lugar nessa cadeia meio
pelo qual o sujeito pode advir é uma grande dificuldade para o neurótico, o que nos
leva a suspeitar de que o Édipo não representa uma etapa pontual do desenvolvimento
do homem, mas um desafio que o acompanha ao longo de toda a sua existência. Isso
fica evidente se observarmos o caso do neurótico obsessivo. Todas as suas artimanhas,
toda a sua encenação, são voltadas para uma tentativa de destruição do desejo do Outro.
Pois bem, um Outro que não deseje não é nada mais que um Outro não castrado, um
Outro no qual não nenhuma falta. E, dado que o sujeito, como vimos, pode se
constituir como castrado a partir do reconhecimento da castração do Outro, se esse não
apresentasse essa falta, a mesma também não se faria presente no sujeito. O que o
obsessivo apresenta nesse comportamento pode ser assimilado a uma dificuldade em
deixar o lugar de falo imaginário, dificuldade essa que, como veremos, é um obstáculo
ao advento do sujeito. Pois bem, passemos agora ao outro aspecto do falo, o qual terá
um papel igualmente importante para a constituição subjetiva.
Em sua vertente simbólica, o falo é o símbolo da falta fundamental que introduz
o desejo no significante; da hiância entre significante e significado; da margem que
separa o sujeito de seu desejo e faz com que esse seja marcado pela alteração provocada
por sua entrada na cadeia simbólica. O falo é aquilo que abre esse espaço vazio sem o
qual não seria possível o deslocamento do desejo ao longo da cadeia. No entanto, esse
falo não é dado de antemão, mas é o produto de um certo processo: o falo só pode entrar
na área do significante por meio da barra. Dito de outra forma, o falo pode atuar
como significante na medida em que o sujeito é submetido à castração e essa se dá,
como vínhamos comentando, por meio do complexo de Édipo.
O falo é, ainda, o significante que designa o conjunto das significações. Essas
não são nada além de efeitos das relações entre os significantes. Sabemos que o sujeito
22
é, igualmente, um efeito de significante, o que nos leva à conclusão de que o falo é o
significante que pode designar o sujeito. O que se formula aqui não é Eu sou o falo,
mas, ao contrário, Eu sou/estou [Je suis] no próprio lugar ocupado pelo falo na
articulação significante.” (LACAN, 1957-58/1999, p. 498). Esse lugar é o lugar de uma
falta, de uma lacuna que se interpõe no transcorrer da cadeia. E a instauração desse
lugar ocupado pelo falo ocorre pelo intermédio de uma metáfora, a qual Lacan
denomina metáfora paterna.
1.6 A metáfora paterna e o determinismo subjetivo
Como visto anteriormente, a criança, às voltas com sua relação com a mãe,
deseja estar no lugar do objeto do desejo da mesma. Esse lugar é, no entanto, um lugar
enigmático, que, as idas e vindas da mãe, que não se ocupa integralmente de seu
filho, não apresentam um sentido acessível a esse. A conhecida resposta a esse
enigma o que a mãe deseja é o falo será dada pela intervenção do pai; não aquele
personagem que ocupa uma posição na família, mas o significante que ocupará um
lugar fundamental no complexo de Édipo e, conseqüentemente, na castração.
Lacan (1957-58/1999, p. 181) utiliza, para designar essa intervenção, a fórmula
da metáfora:
S . S’ → S ( 1 )
S’ x s’
S é o significante do pai simbólico – o Nome-do-Pai –, o qual substitui S’, o significante
do desejo da mãe, primeiro significante ao qual a criança tem acesso. S’, por sua vez,
estava no lugar do sentido enigmático do desejo materno. O resultado dessa operação é
o surgimento de um efeito de significação (s’), o qual será designado pelo falo
simbólico. E é a partir do lugar desse falo, como vimos, que o sujeito achará o seu
próprio. A metáfora paterna deixa claro que esse lugar do sujeito é resultado da
simbolização do desejo do Outro da mãe, nome do Outro primordial. O significante
do pai, ao substituir o significante do desejo da mãe, produz o lugar vazio desse último,
a hiância para a qual o sujeito pode ser remetido. É a partir de uma metáfora, portanto,
23
que o falo passa a assumir seu lugar na articulação simbólica, lugar privilegiado por ser
aquele no qual o sujeito poderá advir.
Uma conclusão evidente a que podemos chegar até agora é que os mecanismos
freudianos do inconsciente ou mecanismos de funcionamento da linguagem estão
definitivamente implicados na constituição do sujeito tal como ele é apresentado no
momento da obra de Lacan que estamos trabalhando. Lacan (1957-58/1999, p. 80)
afirma que sem metonímia não metáfora; a partir de nossa elaboração, afirmamos
que sem metonímia e metáfora não há sujeito.
Essa conclusão parece nos levar, de certa forma, a um inexorável determinismo
simbólico, que se imporia sobre o sujeito sem possibilidades de recusa. Esse
determinismo parece ser encarado por Freud, em alguns momentos de seu trabalho
como no último capítulo de sua Psicopatologia da Vida Cotidiana, por exemplo –,
como absoluto: “não no psíquico nada que seja arbitrário ou indeterminado.”
(FREUD, 1901/1996, p. 240). Todavia, devemos precaver o leigo de chegar, a partir
disso, a uma conclusão precipitada: se tudo no psíquico é determinado e se sabemos de
onde provém essa determinação dos mecanismos inconscientes –, então podemos
afirmar que é possível prevermos o sujeito, ou seja, saber, antecipadamente, quando e
em que ponto da cadeia significante ele se fará presente.
Tal raciocínio apresenta pelo menos dois pontos problemáticos
fundamentais. O primeiro deles está em que ele ignora uma característica essencial do
funcionamento significante, a saber, o caráter nachträglich caráter de retroversão de
sua ação. Essa característica é explicada por Lacan de forma muito simples: “é
absolutamente necessário (...) que eu tenha dito a última palavra para que vocês
compreendam a situação da primeira.” (LACAN, 1957-58/1999, p. 17). A situação do
sujeito, por sua vez, também pode ser compreendida na posterioridade de seu
advento, e nunca antes disso. A conseqüência para o sujeito dessa ação nachträglich do
significante é, pois, a impossibilidade de antever o seu lugar, que dele não podemos
afirmar que estará aqui o sujeito, mas antes que teria estado aqui o sujeito. O que
ocorre nesse efeito de retroversão é uma subversão da linearidade temporal, na qual o
depois se faz de antecâmara para que o antes possa tomar o seu lugar (LACAN,
1945/1998, p. 197).
24
O tempo verbal empregado em teria estado aqui o sujeito, o futuro do pretérito
composto, parece nos ensinar algo sobre o sujeito. Ele nos apresenta duas conotações
principais: ora ele representa uma suposição como no exemplo pelas evidências,
Fulano teria estado na cena do crime ora algo que aconteceria sob determinada
condição – eu teria vindo se você tivesse pedido. Pois bem, o sujeito é aquele do qual só
podemos supor sua presença através das evidências as formações do inconsciente e
também aquele que pode advir sob determinada condição: a presença dos
mecanismos do inconsciente.
O segundo ponto problemático da conclusão fictícia supracitada é queo sujeito
em sua relação com o significante pode, de vez em quando, ao ser solicitado a se
constituir no significante, recusar-se a fazê-lo. Ele pode dizer: - Não, eu não serei um
elemento da cadeia.” (LACAN, 1957-58/1999, p. 255). Essa possibilidade de recusa faz
furo na hipótese de que o sujeito seja plenamente determinado por um suposto sistema
significante fechado, sem furos ou falhas. Desde o Projeto para uma psicologia
científica (1895/1996), podemos observar, com Freud, que o sistema psíquico apresenta
um funcionamento problemático, desarmônico. Devemos admitir, então, que deve haver
um fator x, externo mas íntimo da determinação significante, que interfere na mesma,
abrindo um espaço no qual o sujeito poderia se situar como responsável por sua própria
determinação. De início, podemos suspeitar, pelo modo como Lacan coloca a questão
na citação acima, que esse fator x abrirá espaço para uma escolha, a qual será de
responsabilidade do sujeito, e não da estrutura.
À questão desse fator x envolvido na responsabilidade nos dedicaremos em um
momento posterior. Antes disso, voltaremos ao falo como significante e à sua relação
com o desejo do Outro, no intuito de chegar, também por essa via, à questão da ética.
1.7 O falo e o desejo do Outro
O falo, significante privilegiado, terá como vimos anteriormente um papel
central na relação do sujeito com o desejo, já que esse significante é – por ser aquilo que
aponta para uma falta no Outro o significante do desejo do Outro. Este último, que
participa com o sujeito da dialética da demanda, não pode ser identificado ao tesouro
25
dos significantes; o Outro representa, nessa dinâmica da constituição do desejo, um
outro sujeito, o qual é também marcado pelo corte significante. É graças a esse fato que
o sujeito poderá reconhecer a si mesmo como desejante:
É precisamente na medida em que o Outro é marcado pelo significante que o
sujeito pode e pode através disso, por intermédio desse Outro
reconhecer que também ele é marcado pelo significante, ou seja, que
sempre algo que resta para além do que pode satisfazer-se por intermédio do
significante, isto é, pela demanda. (LACAN, 1957-58/1999, p. 379).
Uma vez reconhecido esse desejo do Outro, o que ocorre com o desejo do
sujeito? Esse não é um desejo por um objeto, mas um desejo elevado à segunda
potência, um desejo de um desejo o do Outro. O sujeito deseja ser aquilo que é
desejado pelo Outro e, dado que o falo é o que ocupa esse lugar, o que o sujeito deseja é
ser o falo. ainda mais uma complicação. A relação do homem com o desejo exibe
uma característica muito peculiar: o sujeito goza com seu desejo, goza por desejar. Daí
conclui-se que um gozo que acompanha o desejo de ser o falo e esse gozo será
responsável pela resistência que o sujeito oporá a qualquer possibilidade de reconhecer
que ele não o é. Essa resistência é um elemento essencial da recusa do sujeito a ocupar
seu lugar na cadeia significante, pois, em vez de apresentar-se no lugar que lhe cabe, o
sujeito insiste em ignorar o chamado dessa cadeia, persistindo, por outro lado, na ilusão
de que pode ser o falo.
Como pode o sujeito escapar a essa miragem que o precipita no ciclo vicioso da
compulsão à repetição? É isso que está em jogo na análise e, mais especificamente, em
sua ética. Pois o de que se trata na mesma é o reconhecimento de seu lugar de sujeito
numa cadeia significante, o que se opõe radicalmente à esperança narcísica de
identificação com o falo imaginário, evidentemente. Nas últimas páginas de seu
seminário, Lacan anuncia a articulação dessa questão com aquilo que chamaremos aqui
de imperativo ético freudiano:
O sujeito, captado no movimento do significante, deve conseguir conceber
que aquilo com que ele se confrontou precocemente o significante do
desejo que lhe subtraiu o objeto total, a mãe –, esse falo, ele não o é, mas
está apenas submetido à necessidade de que esse falo ocupe um certo lugar.
(...) A elucidação da relação do sujeito com o falo, na medida em que ele
não o é, mas deve vir em seu lugar, é a única apropriada a permitir que se
conceba a conclusão ideal que Freud articula em seu Wo Es war soll Ich
werden. (LACAN, 1957-58/1999, p. 499).
26
Nessa passagem, fica patente a necessidade de diferenciar o falo imaginário do
falo simbólico. Pois perceber que não se é o primeiro é ter acesso ao segundo, ao falo
como o significante que designa o lugar vazio no qual pode o sujeito advir. Enquanto
essa mudança não se dá, não lugar para o sujeito, mas apenas para o eu fraco, por
ser bombardeado pelas formações do inconsciente, as quais representam o retorno
incessante daquilo que foi recalcado: que o falo, ninguém o pode ser.
Antes de entrar propriamente na discussão sobre o imperativo ético freudiano,
nos deteremos numa distinção essencial para o que estamos trabalhando: aquela entre o
eu e o sujeito do inconsciente. Essa distinção nos esclarece tanto a diferença entre ser o
falo – ilusão própria ao eu – e estar em seu lugar na articulação significantefunção do
sujeito –, quanto a dissimetria entre as duas principais interpretações dadas ao Wo Es
war soll Ich werden, as quais veremos mais adiante.
1.8 Os “eus” e o isso
O Seminário 2 de Lacan, intitulado O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise (1954-55/1985), presta auxílio na tarefa de definir quais são os lugares
ocupados pelo eu e pelo sujeito do inconsciente na psicanálise. Importante para essa
compreensão é saber em que lugar e de que forma o sujeito se constitui. Pois bem, em
Freud, essa constituição se no espaço situado entre o pólo perceptivo e a instância
pré-consciente, em outras palavras, o sujeito é constituído no lugar dos traços
mnêmicos, os quais são considerados por Lacan como significantes. Esses, enquanto
tais, nada significam; isto é, não possuem nenhum significado pré-estabelecido ao qual
estejam indissoluvelmente ligados; não remetem, em si a qualquer significação, mas
sim uns aos outros, num jogo de diferenças. Entretanto, por uma exigência proveniente
do ingresso na ordem da linguagem, esses significantes se “colam” a significações
arbitrárias, as quais serão reconhecidas pelo eu como as suas características essenciais,
como os seus predicados. No entanto, esse reconhecimento poderia ser considerado uma
ilusão retroativa, que o eu é efeito dessas significações e não sua causa. Pode-se
perceber, então, uma distinção que se delineia entre o sujeito e o eu: enquanto o último
denominado moi consiste em uma imagem na qual alguém se identifica, o primeiro
27
denominado je consiste em um ato ou pensamento insondável e arbitrário, o qual
estabelece as significações que formarão essa imagem.
O moi remete ao eu tal como esse é comumente considerado, representando tudo
aquilo que o sujeito diz de si mesmo, tudo aquilo que ele acredita compor sua
personalidade, seu caráter, em suma, este círculo de certezas no qual o homem se
reconhece como um eu.” (LACAN, 1954-55/1985). Esse “é constituído pela série das
identificações que representaram para o sujeito um marco essencial em cada momento
histórico de sua vida.” (LACAN, 1954-55/1985). A noção de série de identificações
implica no caráter fragmentário do eu – não há nada que organize suas características de
forma a constituir uma unidade, na qual seus elementos estariam em equilíbrio. Esse
não é possível para o eu, o que significa que a esperança pós-freudiana de que a análise
produza um ego forte, equilibrado, capaz de administrar todas as tensões psíquicas, é,
minimamente, inocente. “O eu não é senhor de sua casa”. (FREUD, 1917b/1996).
O je, por sua vez, é justamente aquele que pensa a partir do inconsciente e que,
enquanto pensa, não pode ser determinado. Em outras palavras, o sujeito,
diferentemente do eu, não pode ser tomado como objeto da consciência, não pode ser
conhecido ou reconhecido conscientemente. Esse sujeito encontra-se deslocado em
relação ao eu, é um sujeito que não possui conteúdo, não possui qualidades; ele não
pode ser formalmente apreendido e seu aparecimento é pontual, sua existência, puro
posicionamento. O umbigo dos sonhos, do qual fala Freud em sua A Interpretação dos
Sonhos (1900/1996), é um dos representantes desse sujeito da enunciação: ele é o lugar
dos desejos inconscientes responsáveis pela formação dos sonhos, lugar esse que, no
entanto, não pode ser interpretado, não por uma incapacidade da interpretação, mas por
não apresentar conteúdos para serem abordados pela mesma.
Esse sujeito que pensa, no entanto, o faz a partir de leis específicas, as quais
demonstram ser as mesmas da organização da cadeia significante. O je possui, portanto,
a mesma estrutura que as formações do inconsciente, podendo ser considerado,
juntamente com elas, uma formação proveniente do fato de que o homem é um ser de
linguagem. O sujeito do inconsciente “é tido como o original, tão separado de tudo o
que é o funcionamento de uma tendência, que Freud nos repete de mil maneiras que se
trata de uma outra cena psíquica.” (LACAN, 1957-58/1999, p. 112). Essa é
28
correlacionada por Freud “à estrita heterogeneidade das leis concernentes ao
inconsciente com respeito a tudo o que pode estar relacionado ao domínio do pré-
consciente, isto é, ao domínio do compreensível, da significação.” (idem).
Essa distinção entre je e moi é correlata da dissimetria entre as duas principais
interpretações fornecidas ao imperativo Wo Es war soll Ich werden. É interessante
observar que cada uma das interpretações acompanha uma tradução diferente. Na
Edição Standard Brasileira das Obras de Freud, o que encontramos é “Onde estava o id,
ali estará o ego” (FREUD, 1933/1996, p. 84). Essa tradução segue a versão inglesa
“Where the id was, there the ego shall be.” Lacan (1955/1998, p. 418) chama atenção
para o fato de que Freud, nessa afirmativa, não fez uso dos artigos definidos: ele não
escreveu das Es e das Ich, mas antes, Es e Ich. Dado o rigor freudiano, essa diferença
não pode ser tomada como insignificante; ela designa que aquilo de que se trata não é
do eu constituído pela série alienante de identificações o qual poderia ser definido por
um artigo mas sim, do sujeito do inconsciente. Es se refere ao lugar no significante
onde é dever (sollen) do sujeito (Ich) advir, responder. Daí a tradução proposta por
Lacan: “ali onde isso era, é meu dever que eu venha a ser.” (LACAN, 1955/1998, p.
419).
Ao considerarmos a distinção entre je e moi, podemos afirmar que a diferença
das interpretações se devido à possibilidade de se compreender de duas formas o Ich
que aparece no imperativo: ora como eu, ora como sujeito do inconsciente. A escola
inglesa de psicanálise compreendeu que o eu, enquanto instância psíquica responsável
pela síntese, pelo ordenamento dos conteúdos do psiquismo enquanto moi, portanto –,
é aquele que deve desalojar o isso, que deve assenhorear-se dele, submetendo suas
pulsões desenfreadas à vontade e ao discernimento conscientes. Era o que significava a
construção de um eu forte, preparado para gerenciar todas as vicissitudes da vida com
uma habilidade que faltava ao eu fraco do neurótico. Entretanto, essa proposta
interpretativa ao eu qualidades que passaram a não lhe parecer muito apropriadas
justamente após o ensino de Freud. De acordo com Lacan, nada na experiência permite
atribuir ao eu esse poder de síntese imaginado pela escola inglesa:
Não realmente nada que seja uma experiência mais comum do que não
apenas a incoerência de nossos motivos, como também o sentimento de sua
29
profunda imotivação, de sua alienação fundamental. Freud traz uma idéia de
um sujeito que funciona mais além. (LACAN, 1957-58/1999, p. 51).
O que Lacan propõe como interpretação para a afirmativa freudiana se refere,
pois, a esse sujeito que funciona mais além. Não é o eu da experiência que deve
desalojar o isso, tomando conta de seu território, mas antes o sujeito do inconsciente
deve responder à injunção que lhe é feita a partir do Outro, advindo no lugar no qual é
convocado, a partir daquele, a responder. E a hipótese da presente pesquisa é a de que
essa resposta, ela será possível a partir da interferência, no simbólico, de uma causa
subjetiva, localizada em Outro lugar.
1.9 A perturbação da ordem simbólica
Os mecanismos de funcionamento do inconsciente, vimos ao longo deste
capítulo que eles possuem um importante papel na determinação do sujeito. Todavia,
seria possível conceber o simbólico como um domínio autônomo? Se assim fosse, seria
também necessário concebê-lo como uma estrutura estável e o inconsciente como um
lugar fechado. O sujeito, por sua vez, sendo ele mesmo algo que se anuncia nas brechas
entre um significante e outro, não teria lugar nesse restrito domínio.
Como é possível que, nesse tecido significante, o sujeito faça um rasgo? Ao
assumir seu lugar, ao se implicar naquilo que lhe concerne, o sujeito é capaz de induzir
aquilo que Lacan denominou de abertura do inconsciente (1964/1998), constituindo, no
coração mesmo do simbólico, um estranho lugar, o lugar de sua própria verdade.
Um ato falho ou o sonho, que Freud chamou a via régia, o são nada se
tomados em si mesmos, sem a implicação do sonhador. Ambos seriam no
máximo passíveis de uma descrição objetivante como fenômenos. É
somente a pontualidade de um passo ético que pode vir a constituir aquele
sonho, aquele engano determinado, como verdade do sujeito; oportunidade
de encontro com o que se é (onde se está). E é somente uma passagem ao
limite que pode impedir que aquilo que foi uma abertura do inconsciente se
feche na cristalização, na estabilização, na identidade (que, enquanto jorra
como saber, não atinge ninguém). (COSTA-MOURA, 2006, p. 89).
Esse passo ético do sujeito nos remete, certamente, a um limite do simbólico,
limite esse que, em termos freudianos, poderíamos chamar de além do princípio do
prazer. Isto é, por meio desse passo ético, somos remetidos a uma esfera que escapa ao
30
que Freud (1920/1996, p.17) definiu como aquilo que automaticamente regula o curso
dos eventos mentais o princípio do prazer. Poderíamos nos perguntar, então, em que
consiste esse além e qual é a sua relação com o advento do sujeito?
Em Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901/1996), Freud afirma que aquilo que
interrompe a cadeia normal dos pensamentos provocando um esquecimento ou um ato
falho, por exemplo, é uma recordação traumática. De modo similar, em Além do
Princípio do Prazer (1920/1996), um dos exemplos mais definitivos dessa força que se
opõe ao que Freud pressupunha como o funcionamento esperado do psiquismo, é a
repetição de sonhos cujo motivo principal é, também, uma recordação traumática. O
trauma, tão freqüentemente presente, portanto, nos desarranjos simbólicos, será situado
por Lacan em outro registro da realidade humana: o real.
O real é precisamente o que resiste à apreensão do simbólico e a esquiva, e,
por conseguinte, o que sob a forma das suas perturbações é detectável no
simbólico. Em síntese, o real é a causa ausente que perturba a causalidade da
lei simbólica. (ZIZEK, 2006, p. 147).
Essas perturbações da lei simbólica são correlatas do sujeito do inconsciente,
que o mesmo deve ter o seu lugar remetido a esses desarranjos, os quais aparecem,
como vimos, sob a forma de lacunas no deslizamento habitual da cadeia significante. E
será sempre a partir de um passo ético que o sujeito será capaz de sustentar essa abertura
do inconsciente por meio da qual ele mesmo poderá advir.
Desse modo, chegamos ao que consideramos uma importante questão para o
nosso trabalho. pelo menos duas condições sem as quais o sujeito do
inconsciente não seria possível. A primeira delas, sua determinação simbólica, foi
estudada ao longo do presente capítulo. No capítulo seguinte, abordaremos a segunda
dessas condições, isto é, as perturbações da ordem simbólica – ou, em outras palavras, a
causa real do sujeito, a qual consideramos essencial à discussão sobre responsabilidade
subjetiva. Pois, se por um lado, ao nos determos apenas na consideração da causa
simbólica do sujeito, nos deparamos com um sistema aparentemente fechado e
autônomo, por outro, se considerarmos juntamente com a causa simbólica a causa
real, entraremos prontamente no terreno da ética; um terreno no qual não há justificativa
31
possível para os atos subjetivos, senão a da persistência do sujeito em um desejo
extremamente singular: o desejo do Outro.
A conjugação dessas duas categorias de causas subjetivas desemboca num
aparente paradoxo: o sujeito, definido na topologia do significante como efeito do
funcionamento simbólico, deve ser considerado, no âmbito da ética, um sujeito
responsável por aquilo que lhe concerne, inclusive por aquilo que lhe antecedeu. Como
pode o sujeito ter uma implicação naquilo que foi produzido anteriormente ao seu
advento?
Nos capítulos que se seguem, pretendemos compreender melhor esse aparente
paradoxo da responsabilidade subjetiva. Para tanto, estudaremos, no segundo capítulo,
algumas manifestações da perturbação da ordem simbólica, em especial, aquilo que,
inspirando-se em Freud, Lacan denominará das Ding.
32
CAPÍTULO 2
O FURO NA ORDEM SIMBÓLICA – A CAUSA REAL DO SUJEITO DO
INCONSCIENTE
2.1 Das Ding entre o Bem e o Mal
No início de uma das primeiras lições do seminário A Ética da Psicanálise
(1959-60/1997, p. 58), Lacan faz um brevíssimo comentário que, no entanto, é bastante
interessante para a nossa pesquisa: a palavra francesa chose é derivada do latim causa.
Essa informação etimológica introduz o tema de das Ding como causa. A Coisa estará
no centro da movimentação dos significantes, ocupando um lugar privilegiado, portanto,
em relação ao desejo e ao sujeito que o suporta.
Em seu artigo O Inconsciente (1915b/1996), Freud, ao tratar do que foi
traduzido para o português como representação da coisa da qual é dito estar em
relação com a representação da palavra (Wortvorstellung) –, utiliza o termo
Sachvorstellung. Como em alemão dois termos diferentes para designar coisa, Lacan
se interroga por que o termo eleito nesse caso foi Sache e não Ding. Sua resposta é a
seguinte: Sache e Wort estão envolvidas numa íntima relação, a qual “faz o homem
colocar em questão suas palavras como referindo-se às coisas que, no entanto, elas
criaram.” (LACAN, 1959-60/1997, p. 61). Isto é, apesar de a coisa
5
ser um “produto da
indústria ou da ação humana enquanto governada pela linguagem.” (idem), ela é muitas
vezes considerada como o referente, na realidade objetiva, da palavra, a qual reduz-se,
nessa interpretação, a um simples nome atribuído à coisa. A partir disso podemos
concluir que Sache e Wort formam um par intimamente relacionado. Das Ding, por sua
vez, não participa desse tipo de relação com a palavra estabelecida por die Sache; mas,
5
Escolhemos, nesse trecho, utilizar coisa, com minúscula, para designar Sache, e Coisa, com maiúscula,
para designar Ding.
no entanto, não deixa de ter uma relação, bastante íntima inclusive, com das Wort.
Retomaremos essa relação mais adiante. Por ora, voltemos a Freud, em seu texto
Projeto para uma Psicologia Científica (1895/1996), que foi o ponto de partida para a
elaboração lacaniana do termo que estamos investigandodas Ding.
No tópico Cognição e Pensamento Reprodutivo, no momento em que Freud
disserta sobre os primórdios da apreensão da realidade pelo sujeito, encontramos a
seguinte passagem:
Comparando o complexo perceptual com outros complexos congêneres,
pode-se decompô-lo em dois componentes: o primeiro, que geralmente se
mantém constante, é o neurônio a, e o segundo, habitualmente variável, é o
neurônio b. A linguagem (...) chamará o neurônio a de a coisa, e o neurônio
b, de sua atividade ou atributo em suma, de seu predicado. (FREUD,
1895/1996, p. 380).
A esse complexo perceptual”, Lacan seguindo Freud se refere como complexo do
Nebenmensch, “essa realidade que tem relação com o sujeito da maneira mais íntima.”
(LACAN, 1959-60/1997, p. 68). Tal realidade é, de fato, um complexo composto por
duas partes. Uma delas abrange tudo aquilo que é qualidade do objeto, que pode ser
formulado como atributo e que pode, portanto, ser reconhecido pela consciência,
cumprir com as exigências da identidade de percepção. a outra parte nada tem a ver
com a primeira. Refere-se – como vemos Freud afirmar – a um elemento que se mantém
constante; ou, em outras palavras, a algo que retorna sempre no mesmo lugar. A essa
outra parte, das Ding, Lacan se refere como algo que, “do interior do sujeito encontra-se
originalmente levado para um primeiro exterior” (LACAN, 1959-60/1997, p. 68).
Philippe Julien (1996, p. 42) nos apresenta uma distinção bem tida entre esses
dois elementos presentes no complexo do Nebenmensch, ou do próximo, como se pode
traduzi-lo. Por um lado, temos o semelhante. Esse é o nosso parceiro imaginário, com o
qual nos identificamos e a partir do qual nosso próprio eu é formado, por meio de um
processo de espelhamento. Nossas relações com essa face do Nebenmensch são
facilmente regidas pelo princípio de prazer que o meu bem e o bem de meu
semelhante são equivalentes, sendo essa visada do próximo aquela que está na base da
ideologia utilitarista da felicidade como uma questão de política (LACAN, 1959-
60/1997, p.350): Não poderia haver a satisfação de ninguém fora da satisfação de
34
todos. Se a realidade fosse composta apenas por semelhantes, a satisfação de todos
poderia ser buscada com base na equivalência dos bens. Quiçá poderíamos quantificar
esses bens e distribuí-los igualmente entre todos os homens. É essa equivalência que se
apresenta no Direito. No caso das punições por crimes, por exemplo, como é possível
calcular quantos anos equivalem a um roubo, e quantos outros a um assassinato? No
caso das indenizações por mortes ou acidentes de trabalho, qual o valor monetário de
uma vida? Quanto custa a perda da visão? São esses cálculos impossíveis que estão em
jogo no Direito. E eles são impossíveis justamente porque os bens não são equivalentes;
porque, em última instância, não somos semelhantes. Como dizia o clichê defendido
pelos porcos na Revolução dos bichos, todos são iguais, mas uns são mais iguais do
que os outros (ORWELL, 2007).
E a razão dessa diferença intransponível entre os homens pode ser vislumbrada
na Outra face do Nebenmensch, a face, como vimos, de das Ding. A Coisa é
apresentada, então, como
o próximo propriamente dito, o Outro inominável, fora do significado,
estranho e estrangeiro a mim mesmo, imprevisível. (...) De acordo com essa
segunda face, o Outro me aparece sob o signo do capricho, do arbítrio, do
sem crença nem moral que me possa dar alguma garantia. (JULIEN, 1996,
p. 42).
Ao tentar mediar nossas relações com esse Outro que nos aparece como caprichoso e
arbitrário, o princípio do prazer não poderá senão falhar. Como encontrar a medida
impossível entre nosso bem e aquilo que seria o bem desse Outro aterrador, o qual
aparenta, antes, querer o meu mal? Essa Coisa tão distinta de nosso eu, vemos com
Freud que ela será, desde os primórdios da construção da realidade humana por cada
falante, ejetada dessa realidade e reconhecida prontamente como algo mau: “o ego-
prazer original deseja introjetar para dentro de si tudo quanto é bom, e ejetar de si tudo
quanto é mau. Aquilo que é mau, que é estranho ao ego, e aquilo que é externo são, para
começar, idênticos.” (FREUD, 1925b/1996, p. 267).
Paradoxalmente, é em torno desse exterior, disso mesmo que é ejetado, que será
orientado todo o encaminhamento do sujeito na sua busca por satisfação. Pois Lacan
nos ensina que todo o funcionamento do psiquismo se num esforço de circunscrever
das Ding. É imprescindível para a compreensão desse ensinamento levarmos em conta
35
que não apenas o Nebenmensch, mas também a Coisa possui uma dupla face. Se por um
lado ela é um objeto mau, ejetado da realidade que o infante começa a forjar, por outro,
das Ding é o objeto perdido a ser reencontrado, o objeto presente na primeira
experiência de satisfação, o qual é ansiosamente buscado; no entanto, diz-nos Lacan,
“reencontramo-lo no máximo como saudade.” (LACAN, 1959-60/1997, p. 69). Das
Ding, por essa face, é o objeto que as coordenadas do prazer; o objeto em torno do
qual o princípio do prazer realiza seu trabalho.
O que podemos falar sobre o reencontro do objeto? Seguindo a orientação de
Lacan no seminário da ética, retomemos o texto freudiano A Negativa (1925b/1996).
Nele, Freud disserta sobre o teste de realidade, que seria uma forma de estabelecer que
certo objeto do qual possui-se uma representação psíquica o objeto alucinado da
satisfação está presente na realidade objetiva:o objetivo primeiro e imediato do teste
de realidade é não encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao
representado, mas reencontrar tal objeto, convencer-se de que ele está lá.” (FREUD,
1925b/1996, p. 267). Algumas linhas adiante, vemos uma complementação: “Contudo é
evidente que uma precondição para o estabelecimento do teste de realidade consiste em
que objetos, que outrora trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos.” (FREUD,
1925b/1996, p. 268).
Com isso, podemos afirmar que das Ding é um objeto cuja perda cria a
necessidade desse teste de realidade, cria a necessidade do movimento no sentido de seu
reencontro, movimento esse que é organizado pelo princípio do prazer. É importante
destacar, ainda, que esse objeto peculiar teria trazido outrora uma satisfação real, nos
termos de Freud, de forma que buscar o seu reencontro é buscar a reprodução dessa
satisfação.
No entanto, o que seria essa satisfação real? Ela é uma satisfação perdida, no
sentido em que Lacan nos fala do objeto perdido:
O objeto é, por sua natureza, um objeto reencontrado. Que ele tenha sido
perdido é a conseqüência disso mas só-depois. E, portanto, ele é
reencontrado, sendo que a única maneira de saber que foi perdido é por meio
desses reencontros, desses reachados. (LACAN, 1959-60/1997, p. 149).
36
A satisfação real da qual Freud nos fala é, portanto, uma satisfação suposta no só-depois
de seu reencontro. Em outras palavras, ao contrário do que se poderia imaginar, é o
desejo que molda a Coisa, é a necessidade de seu reencontro que a estabelece em algum
lugar do passado. Essa situação é muito bem expressa por um tempo verbal da língua
francesa, o futuro anterior: é apenas após o sujeito ter reencontrado um objeto de
satisfação que a Coisa terá participado outrora de um suposto primeiro encontro.
Essa situação na qual um desejo é condição necessária para que algo seja
estabelecido, temos um curioso exemplo dela em um chiste hegeliano. Nele, um polonês
se dirige a um judeu, no intuito de descobrir qual é o segredo judaico de tirar das
pessoas até o último centavo, acumulando assim, muitas riquezas.
O judeu lhe responde: ‘Bem, eu lhe direi, mas não em troca de nada; dê-
me cinco zlotys.’ Depois de receber a moeda, ele começa: ‘Você tem que
pegar um peixe morto, cortar-lhe a cabeça e despejar as vísceras num
copo d’água. Quando a lua estiver cheia, tem que enterrar esse copo no
cemitério...’ ‘E aí?’, pergunta o polonês avidamente, ‘se eu fizer tudo
isso, vou enriquecer?’ ‘Não tão depressa’, responde o judeu, ‘isso ainda
não é tudo; mas se você quiser aprender o que vem depois, dê-me mais
cinco zlotys!’ Depois de receber novamente uma moeda, o judeu
continua sua história, e logo torna a pedir dinheiro etc, até que
finalmente o polonês se enfurece: ‘Você é mesquinho, está mesmo
pensando que não reparei no que quer de mim? Não segredo nenhum,
você quer é pegar todo o meu dinheiro!’ O judeu lhe responde
tranqüilamente: “Pois então, você compreendeu como é que os
judeus...’” (ZIZEK, 1991, p. 110).
Por meio dessa história podemos ver que a Coisa judaica, o segredo tão bem guardado
pelos membros dessa comunidade, podia existir simultaneamente e a partir do desejo
do polonês. O principal aqui é que o Segredo pode existir na busca ansiosa por ele;
em outros termos, das Ding é mais um produto dessa busca do que aquilo que a
motivou. Mas não é assim que nós, “poloneses”, a enxergamos: a ilusão retroativa nos
faz crer que a Coisa está lá, em algum lugar distante esperando por nós, e que um dia,
quando a reencontrarmos, daremos nossa busca por encerrada.
Mas essa busca não se encerra tão fácil e o princípio do prazer, por sua vez, não
age de modo muito econômico na realização da mesma. No lugar de, como se poderia
esperar, traçar uma linha reta até a consecução de seu objetivo, esse princípio impõe
rodeios que conservam uma certa distância com relação a esse fim que é o encontro com
o objeto. Tais rodeios, no entanto, são necessários para a manutenção da Coisa enquanto
37
tal, enquanto inacessível e proibida. Tal interdito consiste, na verdade, em uma
proibição paradoxal, na medida em que aquilo que se proíbe é algo da ordem do
impossível. O que se proíbe aquilo de que o princípio do prazer nos mantém distante
por meio de seus rodeios é o que jamais se poderia ter, não por uma impotência do
sujeito, mas por uma impossibilidade do objeto; em outros termos, a Coisa o existe
enquanto positividade a ser alcançada, a ser possuída. Antes, ela existe apenas como
negatividade, como um nada inerradicável. É justamente sobre o encontro com essa
não-existência, com esse vazio, que recai o interdito. Pois o encontro com a Coisa não
se resume a uma simples frustração de nada encontrar, mas consiste, antes, em um
encontro traumático com um nada irredutível a qualquer simbolização, um nada que
perturba a ordem do mundo tal como o concebemos, nos fazendo encarar aquilo do que
nada queremos saber; o fato de que um campo de nossa experiência indomável pelo
sentido.
Lacan (1959-60/1997, p. 77) afirma que a lei do prazer fixa um nível de
quantidade de excitação que não pode ser ultrapassado. Esse nível mínimo de excitação
pode ser relacionado à distância mínima com relação à Coisa. O que encontramos ao
ultrapassar esse limite é a dor – “(...) deveríamos talvez conceber a dor como um campo
que, na ordem da existência, abre-se precisamente no limite em que não
possibilidade para o ser de mover-se.” (LACAN, 1959-60/1997, p. 78). Ao aproximar-
se de das Ding, portanto, o princípio do prazer parece travar seu funcionamento,
precipitando o sujeito numa imobilidade angustiante. Essa imobilidade, como podemos
concluir, não se deve a qualquer obstáculo ou rochedo intransponível presente no campo
da Coisa, mas, pelo contrário, se deve a uma súbita ausência de obstáculo dado o
vazio central da Coisa –, o que acaba por desarticular, igualmente, o ímpeto por transpor
qualquer barreira.
Essa dor sentida pela aproximação de das Ding é testemunha de sua face de
maldade. Essa face, contudo, está indissociavelmente ligada a uma certa satisfação.
Seria possível pensar em uma satisfação que comportasse nela mesma o nosso próprio
mal? Nos parece que Freud começou a descrevê-la em 1920, quando sua clínica o levou
a repensar sua teoria das pulsões, devido a fenômenos que, indiscutivelmente, não
participavam de um predomínio do princípio do prazer. Essa estranha satisfação, própria
38
aos seres de linguagem, passará por muitos desenvolvimentos na obra de Lacan. Nos
deteremos, contudo, naquilo que dela podemos deduzir a partir da leitura do seminário
da Ética da psicanálise.
2.2 Retornar, repetir e gozar
“O gozo é aquilo que não serve para nada”diz Lacan (1972-73/1985, p.11) em
seu Seminário Mais, Ainda. Essa afirmação pode ser facilmente remetida ao Seminário
da ética (1959-60/1997), que, nesse, Lacan indica que a dimensão do gozo situa-se
para além do serviço dos bens, da administração dos bens, para além da tentativa
sempre falha de que por meio desse serviço se alcance a tão sonhada felicidade. O gozo
não não serve para nada, como também interfere no que parece servir para alguma
coisa, insistentemente atrapalhando a ambição homeostática do princípio de prazer. Não
é à toa que Freud (1920/1996) o irá encontrar em fenômenos que desafiam o suposto
primado desse princípio no aparelho psíquico, onde esse gozo aparecerá relacionado a
uma força que tende à destruição, não do outro, mas de si mesmo: a pulsão de morte.
Tal gozo imporá um desequilíbrio não ao aparelho psíquico, mas também à teoria
freudiana das pulsões, a qual, a partir de então, deverá sofrer uma significativa
reformulação.
Os fenômenos classificados como compulsão à repetição foram os que fizeram
Freud reconsiderar sua teoria exposta na primeira página de Além do Princípio de
Prazer (1920/1996) segundo a qual o aparelho psíquico era regido por uma tendência
no sentido do princípio de prazer. Esses fenômenos, apesar de aparecerem
acompanhados por grande angústia, insistiam em repetir-se, à revelia do bem-estar do
sujeito. Dentre eles, encontra-se a reação terapêutica negativa, isto é, a resistência que
certos pacientes apresentavam às eventuais melhoras proporcionadas pelo tratamento.
Alguns deles repetiam, na transferência, situações de desprazer vividas em sua infância,
imaginando-se desprezados pelo analista ou encontrando facilmente objetos para serem
alvo de seu ciúmes. É certo que a psicanálise conhecia casos da insistência de
fenômenos desprazerosos, como eram os próprios sintomas; entretanto, nesses casos, o
que causava hoje desprazer havia, no passado, sido fonte de grande prazer, e só o havia
39
deixado de ser por incidência do recalque. nos casos de compulsão à repetição, as
situações revividas não haviam jamais proporcionado prazer o que fica claro no
exemplo dos sonhos traumáticos, os quais repetem uma situação vivida com extremo
desprazer, tal como uma experiência de guerra.
Aqui cabe um pequeno parêntese para afirmar que necessário seria, portanto, a
suposição de uma satisfação para além do princípio de prazer, uma satisfação que se
exercesse à revelia do que poderia ser considerado o bem do sujeito. O que é isso que se
satisfaz enquanto o eu está em franco sofrimento? Talvez possamos encontrar pistas de
uma resposta lacaniana se trocarmos a expressão o que pelo pronome interrogativo
onde. O lugar dessa satisfação esquisita, certamente é o lugar de das Ding.
Essa localização se justifica de, pelo menos, duas formas. Em primeiro lugar, o
gozo é aquilo que não admite reciprocidade, que não admite equivalências. Como vimos
a respeito do complexo do Nebenmensch, apenas com relação à sua face de semelhante
podemos pensar em equivalências. Quanto à sua face de Ding, não medida comum,
não há o fiel da balança. A (falta de) relação sexual deixa isso muito claro. Enquanto no
âmbito do semelhante poderíamos imaginar um casal, em que os bens do homem e da
mulher se equivalessem – sendo que um representaria o bem do outro, seria seu ideal de
satisfação –, no campo de das Ding, o que encontramos é uma inquietante dessimetria:
para o homem, o ideal seria possuir todas as mulheres; ao passo que para essas, o ideal
seria encontrar o homem perfeito. (LACAN, 1959-60/1997, p. 364). Em outros termos,
poderíamos afirmar que o gozo masculino e o gozo feminino não se harmonizam
jamais, não havendo medida comum entre eles.
Em segundo lugar, das Ding tal como o gozo tem existência possível em
um mundo organizado pela linguagem. Antes da linguagem, não havia gozo, mas
depois, o gozo torna-se aquilo que pré-existia a ela e que a ultrapassa, que está aquém e
além dela, que não pode ser subsumido por ela, que sempre resta inerte após toda e cada
tentativa de simbolização. Nas palavras de Braunstein:
A cadeia significante não tem medida comum e não tem possibilidade de
significar o gozo a que aspira; (...) o significante é incomensurável com o
gozo e (...) a falta de tal medida comum é o que define o gozo como um tipo
de substância que corre por baixo, algo que constantemente se produz e ao
mesmo tempo escapa e é barrado como impossível, indizível pelo discurso.
(BRAUNSTEIN, 2007, p. 68).
40
Essa definição de gozo, podemos observar que ela se adequa perfeitamente à
Coisa. Das Ding, poderíamos dizer, é homóloga ao gozo. É um lugar no real cravado
pelo significante, um rasgo, um furo introduzido na realidade pelo funcionamento da
linguagem. É o saudoso Bem Supremo, o sublime objeto perdido e proibido, o Mal
absoluto. Barrada, embarreirada, indizível, impossível. E Freud encontrou essa estranha
Coisa, que causa e entrava o funcionamento do aparelho psíquico a partir de um déficit
não programado.
A compulsão à repetição retomando trouxe a Freud a compreensão de um
novo aspecto da pulsão: seu impulso a restaurar um estado anterior de coisas. Embora
não relacionado propriamente à pulsão, esse aspecto peculiar podia ser observado no
Projeto para uma Psicologia Científica (1895/1996) como uma característica do
princípio de prazer então denominado princípio de desprazer –, que era concebido
como uma tendência a restabelecer um patamar mínimo de energia dentro do aparelho
psíquico sempre que esse balanço era desregulado. Mínimo, porque a descarga total da
energia que seria o ideal não seria compatível com a sobrevivência do organismo.
Mas esse mínimo, esse resto sempre reencontrado após cada ação no sentido do prazer,
faz uma diferença, estabelece uma distância entre a satisfação almejada e a conseguida,
deixando sempre um ficit energético entre prazer e gozo. Pois o prazer, como vemos
no seminário da ética (LACAN, 1959-60/1997) é uma barreira ao gozo.
Antes de prosseguir, é interessante dar um passo atrás: o que é o princípio de
prazer?
Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que o curso tomado pelos
eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio de prazer, ou
seja, acreditamos que o curso desses eventos é invariavelmente colocado em
movimento por uma tensão desagradável e que toma uma direção tal, que
seu resultado final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma
evitação de desprazer ou uma produção de prazer. (FREUD, 1920/1996, p.
17).
Se Freud, por um lado, responde à nossa questão, por outro, nos deixa com novos
problemas: o que é essa tensão desagradável que coloca o aparelho psíquico em
movimento? Acaso não a vemos se manifestar nos fenômenos de compulsão à
repetição? Por que, então o princípio de prazer não entra em ação nesses casos?
41
Quanto à primeira questão, Freud nos diz que essa tensão desagradável
corresponde a uma energia psíquica livre, isto é, uma energia que não está ligada a
qualquer representação em outras palavras, uma energia que não foi simbolizada. A
fonte de tal energia são excitações somáticas, as quais, quando somadas, afetam o
aparelho psíquico, provocando o seu funcionamento. É essa energia que está na causa
da compulsão à repetição e os fenômenos que se encaixam nessa categoria seriam todos
tentativas de ligar essa energia livre, de torná-la quiescente, levando-a de volta a um
estado de repouso. Todavia, caso esse esforço fosse bem sucedido, as repetições não se
dariam e haveria, como afirmado acima, uma produção de prazer. Pode-se dizer,
portanto, que na compulsão à repetição, algo resiste ao esforço de simbolização
efetivado pelo aparelho psíquico. E esse algo retorna sempre no mesmo lugar; é sempre
a mesma situação traumática que aparece no sonho, é sempre a mesma sorte que
persegue, por exemplo, a personagem da música Foi Assim de Lupicínio Rodrigues: “Se
deixo de alguém / Por falta de carinho / Por brigas e outras coisas mais / Quem aparece /
No meu caminho / Tem os defeitos iguais.”
Um caso como o dessa personagem, sempre insatisfeita no amor, encontrando
parceiros sempre iguais, poderia incentivar uma crença num destino diabólico, do qual o
sujeito é uma pobre vítima. Entretanto, nas palavras do próprio Freud, “a psicanálise,
porém, sempre foi de opinião de que seu destino é, na maior parte, arranjado por elas
próprias [pessoas desafortunadas]” (FREUD, 1920/1996, p. 32). Como alguém poderia
escolher um destino cruel para si próprio? Isso não iria contra a tendência ao princípio
de prazer com sua conseqüente evitação do sofrimento?
O que vemos delinear-se aqui nesse desvio do princípio do prazer é nada menos
que a pulsão de morte. O primeiro sentido dado por Freud a essa pulsão é o de uma
entropia, sentido esse que aparece na formulação do princípio de Nirvana. Esse
princípio se apresentaria como uma tendência a restaurar um estado anterior de coisas.
No limite, qual seria esse estado? O inanimado; em uma palavra, a morte. Pois, na
morte, toda excitação se extingue, estado de coisas que constitui aquilo que, no Projeto
para uma Psicologia Científica (FREUD, 1895/1996), é tido como a satisfação plena.
Todavia, Lacan afirma que Freud não se restringiu a essa formulação. Pois a
entropia poderia caracterizar a tendência, mas não a pulsão: “A pulsão, como tal, e uma
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vez que é então pulsão de destruição, deve estar para além da tendência ao retorno ao
inanimado. O que ela poderia ser? – senão uma vontade de destruição direta.” (LACAN,
1959-60/1997, p. 259). É importante ressaltar que essa vontade de destruição não é, de
forma alguma, uma vontade consciente, proveniente da autonomia do sujeito, mas antes,
algo que se insinua no próprio funcionamento da linguagem. O significante, ao por em
causa tudo o que existe, ao impor a tudo o que existe um equilíbrio precário e efêmero,
nos coloca essa dimensão de destruição que vai além da morte do organismo, da
destruição física, estabelecendo o risco constante do que Lacan (1959-60/1997)
denominou a segunda morte. Nessa, “o destino de uma vida que vai confundir-se com a
morte certa, morte vivida de maneira antecipada, morte invadindo o domínio da vida,
vida invadindo a morte.” (LACAN, 1959-60, p. 301).
A pulsão de morte como tal, como o domínio da segunda morte, se relaciona
com a produção de um gozo silencioso, um gozo do qual o sujeito nada sabe. É esse
gozo que pode explicar a repetição do “destino cruel”. É desse gozo que o sujeito recua,
tentando se apoiar no princípio de prazer. E se assim procede o sujeito é por estar
submetido a uma Lei rigorosa, uma Lei que interdita, precisamente, o encontro do
sujeito com o objeto causa de seu desejo, o qual, como vimos, possui uma face
maléfica: das Ding.
2.3 O sublime objeto proibido do desejo
A interdição desse encontro, afirmará Lacan (1959-60/1997, p. 89), é a condição
para que subsista a fala. Por quê? Retomando, com Lacan, o artigo freudiano O
Inconsciente (1915b/1996), vemos que Freud, na tentativa de responder à complicada
questão sobre como um processo inconsciente pode se tornar consciente, chega à
conclusão de que isso é possível a partir das Wortvorstellungen. É a partir do
discurso instaurado por elas que a consciência é informada a respeito dos processos de
pensamento, os quais são, em sua origem, inconscientes. Essas Wortvorstellungen
estabelecem a possibilidade da fala por se apoiarem, elas mesmas, sobre os processos de
pensamento inconscientes, processos esses definidos por Lacan como o movimento das
Vorstellungen inconscientes as quais ele designará como significantes. Ele nos
43
demonstra que a concepção do aparelho psíquico freudiano é uma concepção atomista,
dado que esse aparelho é resultado da organização desses elementos fundamentais que
são as Vorstellungen inconscientes, nas quais a matéria psíquica encontra-se floculada.
Sendo assim, a psicologia nos diz Lacan (1959-60/1997, p.128), está submetida à
condição atomista de manejar esses elementos fundamentais pois bem, sabemos que o
manejo do significante é um ponto crucial da práxis do psicanalista.
Estabelecido esse paralelo entre as Vorstellungen inconscientes e os
significantes, é importante colocar que o movimento desses elementos fundamentais
tem seu fundamento, seu ponto pivô, em Outro lugar:
Das Ding é o que (...) se apresenta, e se isola, como o termo de estranho em
torno do qual gira todo o movimento da Vorstellung, que Freud nos mostra
governado por um princípio regulador, o dito princípio do prazer, vinculado
ao funcionamento do aparelho neurônico. É em torno desse das Ding que
roda todo esse processo adaptativo, tão particular no homem visto que o
processo simbólico mostra-se inextricavelmente tramado. (LACAN,
1959-60/1997, p.76).
O que vemos nesse desenvolvimento é algo que nos remete ao exemplo, famoso
no meio psicanalítico, da cebola e de suas camadas. A fala seria a camada mais
superficial que, ao descascá-la, deparar-nos-íamos com a camada das Vorstellungen; no
centro dessa camada, no entanto, encontramos o núcleo estranho, insondável e
inominável da Coisa, núcleo esse inacessível à interpretação e fonte dos desejos
inconscientes. Pois a movimentação das Vorstellungen ou dos significantes –, que
caracteriza o desejo, é possível em torno do vazio da Coisa, tal como um outro
exemplo – apresentado no seminário da ética –, nos faz ver.
Nesse exemplo, Lacan nos fala da modelagem do significante a partir da
modelagem do vaso. Ao criar o vaso, o oleiro instaura no mundo um vazio o qual, a
partir de então, estabelece a perspectiva de ser preenchido. Isso significa que em um
único ato, o oleiro coloca no mundo o cheio e o vazio: “é a partir desse significante
modelado que é o vaso, que o vazio e o pleno entram como tais no mundo, nem mais
nem menos, e com o mesmo sentido.” (LACAN, 1959-60/1997, p. 152). Em outras
palavras, a Coisa e o significante são inseridos no mundo por um ato único de criação, o
qual é feito a partir do nada, contornando um vazio e dando-lhe uma certa localização
no cerne do significante. Nessa operação, o nada original, mítico, é substituído pelo
44
vazio, pelo furo: “há uma identidade entre a modelagem do significante e a introdução
no real de uma hiância, de um furo.” (LACAN, 1959-60/1997, p. 153). As
Vorstellungen são esse vaso que, ao ser criado, institui um vazio no mundo; o vazio de
das Ding.
O preenchimento definitivo de tal vazio daria fim, por um lado, ao vaso, que
perderia sua função, e, por outro, à movimentação dos significantes, a qual depende
desse núcleo oco em torno do qual ela pode se realizar. Daí a importância da
manutenção de uma certa distância com relação a das Ding. Daí a importância do
interdito do objeto causa do desejo.
Esse exemplo nos apresenta, de forma figurativa, a relação mencionada
anteriormente – entre das Ding e das Wort: “a Coisa só se apresenta a nós na medida em
que ela acerta na palavra, como se diz acertar na mosca.” (LACAN, 1959-60/1997, p.
72). Essa e outras passagens do seminário da ética nos apontam uma íntima relação
entre Coisa e palavra, uma íntima relação, em outros termos, entre Real e Simbólico.
Esses dois registros da realidade humana encontram-se, desde o princípio,
indissociavelmente articulados. A Coisa, causa da movimentação das palavras, de seu
encadeamento constante, não deve ser considerada como algo presente antes do
aparecimento dessas. Antes, é a movimentação das palavras que engendra a Coisa como
sua causa. Em termos freudianos, é só-depois de termos acesso ao trauma, a esse resto
não simbolizado da atividade psíquica, é que podemos afirmar que teria existido, num
primeiro momento, algo fora da representação, algo que exigia esse trabalho do
aparelho psíquico.
Em Freud, o que temos como o objeto causa do desejo por excelência? A mãe. É
por isso que podemos afirmar que Freud fornece, quanto ao fundamento moral, a
descoberta (...) que a lei fundamental é a interdição do incesto.” (LACAN, 1959-
60/1997, p. 86). Tudo o que ocorre entre a mãe e a criança não é senão um
desenvolvimento da Coisa materna, isto é, da mãe enquanto ela ocupa o lugar de das
Ding, o lugar desse objeto perdido do desejo. A isso acrescentamos que Freud identifica
o incesto com o desejo mais fundamental e sua proibição como o interdito mais
fundamental dos grupos humanos. A realização de tal desejo, ao preencher
drasticamente o vazio da Coisa, desarticularia o inconsciente, na medida em que o
45
mesmo pode se organizar a partir da distância com relação ao vazio central de das
Ding.
A impressionante conseqüência, a qual não podemos perder de vista, é que esse
interdito leva à proposição, na psicanálise, de uma Lei moral subversiva. Pois, na
contramão das éticas tradicionais que se erguem sobre o objetivo último do encontro
harmônico com o Bem Supremo das quais a aristotélica é a mais exemplar –, a
psicanálise demonstra que uma moral civilizada é possível ao fundamentar-se, não
em um bom encontro com o Bem Supremo, mas antes, em uma proibição suprema de
um encontro com esse Bem:
O passo dado por Freud, no nível do princípio do prazer, é o de mostrar-nos
que não Bem Supremo que o Bem Supremo, que é das Ding, que é a
mãe, o objeto do incesto, é um bem proibido e que não há outro bem. Tal é o
fundamento, derrubado, invertido, em Freud, da lei moral. (LACAN, 1959-
60/1997, p. 90).
A Lei moral é aquilo por meio do qual entramos em contato com o real, com a
presença de das Ding. A razão disso é que essa Lei, por seu funcionamento, abre, no
seio do significante, o espaço vazio da Coisa. Essa, como estamos desenvolvendo,
encontra-se no centro da organização psíquica; contudo, é importante ressaltar,
encontra-se no centro justamente na medida em que está excluída da mesma. Excluída,
por não estar submetida à Lei, o que abre espaço para a suposição de que a Coisa é o
próprio fundamento da Lei.
Tal como a psicanálise a vê, a Lei moral se apresenta de forma paradoxal. Como
vimos, essa Lei é responsável pela proibição, pelo interdito da aproximação ao objeto
pecaminoso. No entanto, nesse mesmo movimento de interdição, a Lei moral cria a
possibilidade de sua própria transgressão, do encontro com a Coisa. Lacan (1959-
60/1997) nos transmite essa idéia parafraseando São Paulo:
É a Lei a Coisa? De modo algum. Mas eu não conheci a Coisa senão pela
Lei. Porque não teria idéia da concupiscência se a Lei não dissesse Não
cobiçarás. Foi a Coisa, portanto, que, aproveitando-se da ocasião que lhe foi
dada pelo mandamento, excitou em mim todas as concupiscências; porque
sem a Lei, a Coisa estava morta. Quando eu estava sem a Lei, eu vivia; mas,
sobrevindo o mandamento, a Coisa recobrou vida, e eu morri. Assim, o
mandamento que me devia dar a vida, conduziu-me à morte. Porque a Coisa,
aproveitando da ocasião do mandamento, seduziu-me, e por ele fez-me
desejo de morte. (LACAN, 1959-60/1997, p. 106).
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Da mesma forma que, para São Paulo, a Lei cria o pecado, tornando-o
desmesuradamente pecaminoso (LACAN, 1959-60/1997, p. 217), Lacan nos indica que
a Lei moral cria a Coisa como seu fundamento, nessa temporalidade tão importante para
a psicanálise que é a nachträglichkeit. Pois das Ding se torna o fundamento da Lei
moral só-depois de essa Lei incidir sobre o sujeito, interditando a realização de seu
desejo e tornando-o desejo de morte, aquele que não pode ser realizado senão na
perspectiva do Juízo Final, isto é, num além da vida que não pode ser alcançado pela
mesma, permanecendo sempre como um horizonte distante. Dessa forma, não é
precisamente a Coisa que constitui o fundamento da Lei moral, mas antes o interdito de
das Ding: a Lei e a Coisa são criadas num ato, nesse interdito que Lévy Strauss
considerava o ato fundador da cultura.
No próximo e último tópico desse capítulo, objetivamos abordar os dois autores
que, juntos, revelam o alcance dessa Lei tirânica: Kant e Sade. A Lei de das Ding, nós a
vemos formulada na obra desse famoso libertino sob a forma de um imperativo
categórico, o qual não deixa nada a desejar ao imperativo kantiano: “Tenho o direito de
gozar do teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito, sem que
nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me gosto de nele saciar.”
(LACAN, 1963/1998, p.780). Vejamos como essa Lei sadeana se encaixa nos moldes
do imperativo categórico de Kant e como a articulação desses dois autores pode nos
levar a uma íntima associação entre das Ding e a Lei moral.
2.4 “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um...”
O que todo analisante demanda do analista, ensina-nos Lacan (1959-60/1997), é
a felicidade. Todavia, esse Bem Supremo, o analista sabe que não há, diferentemente de
Aristóteles, por exemplo, que havia desenvolvido uma disciplina da felicidade. Esse
filósofo pretendia conhecer os caminhos que levariam qualquer homem que os seguisse
ao encontro com esse Bem Supremo a felicidade –, o qual coincidiria com o seu
próprio bem. Na psicanálise, isso o se aplica. Freud nos dizia que “não existe uma
regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que
modo específico ele pode ser salvo.” (FREUD, 1930/1996, p.91). Mas essa dificuldade
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na definição dos caminhos da felicidade e do Bem não é uma novidade psicanalítica. No
século XVIII, Kant já a havia abordado.
Paton (1964) afirma que embora a felicidade seja um fim buscado por todos,
Kant considera que nosso conceito da mesma é, infelizmente, vago e indeterminado; em
outras palavras, nós não sabemos claramente que fim é esse. Isso ocorre porque, não
sendo possível ter uma experiência sensível de conceitos como o Bem ou a felicidade,
tudo o que podemos formular sobre eles torna-se uma pura especulação da razão, o que
Kant chamava de quimera. Dessa forma, nos encontramos diante de um problema ético:
de que maneira podemos formar um juízo que oriente nossa ação, dado que não nos é
possível conhecer o Bem, o móvel último da ação moral? Pois bem, a resposta desse
filósofo passará pelo caráter da ação, a qual deverá ser estritamente racional, isto é,
purgada de elementos patológicos.
Ora, para Kant, um agente totalmente racional aquele cujas ações são guiadas
integralmente pela razão, em detrimento da paixão que deseje um fim deve
necessariamente desejar também conhecer os meios que podem levá-lo a esse fim. No
caso da moral e do imperativo categórico, um agente totalmente racional agiria de uma
determinada forma não por desejar algum fim que esse fim, nos é vedado conhecê-
lo –, mas apenas por seguir um princípio objetivo aquele que deixa de fora qualquer
motivação subjetiva, aquele que pode ser erigido a uma lei universal. Um tal princípio
objetivo incondicionado isto é, não baseado em qualquer desejo precedente à ação e
não direcionado a um fim específico é o que Kant denomina imperativo categórico.
Esse, portanto, sustenta-se em si mesmo, não apelando a qualquer motivo ou
justificativa, não admitindo réplica, pois, em detrimento do que diz o dito popular, gosto
é a única coisa que se discute, isto é, apenas princípios subjetivos podem ser
questionados pela razão.
Pois bem, todas essas condições são cumpridas pela Lei do gozo sadeana.
Nenhuma paixão pode se opor a tal imperativo, que nenhum limite deve deter o
agente em sua atividade a barreira do prazer deve ser totalmente transposta. Essa lei é
enunciada sem vistas a qualquer fim, como vemos no fato de ela ser a enunciação de um
direito de outrem, não do sujeito que a enuncia, de forma que as vontades ou inclinações
desse sujeito não representam qualquer papel o que também nos leva crer que essa
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lei pode ser considerada um princípio objetivo. Tal imperativo tem, ademais, uma
característica de universalidade, o que é expresso no “pode dizer-me qualquer um.” Por
fim, a lei sadeana não vem acompanhada de qualquer justificativa, nem de qualquer
fundamento: ela sustenta-se por si mesma, no próprio ato de sua enunciação.
Lacan afirma que Sade aponta para a verdade do imperativo kantiano. Fazendo
da máxima moral uma Lei do gozo, vemos que, levando um princípio objetivo ao seu
extremo nos deparamos não com o Bem Supremo – almejado sempre como horizonte da
Lei moral –, mas com o Mal absoluto, encarnado por um gozo contra o qual nenhuma
barreira passional se ergue.
E é que Sade enxerga mais além do que Kant o faz. Em suas elucubrações
sobre o crime, o libertino nos mostra, de forma bastante ilustrativa, como, no princípio
da Lei que rege a natureza, deve haver um ato de destruição, tanto melhor quanto mais
devastadora for essa destruição. A ordem da natureza necessitaria dessa devastação para
subsistir, pois, sem ela, não haveria a possibilidade de criação do novo:
O crime é, portanto, necessário no mundo. Porém, os mais úteis, certamente,
são os que perturbam mais, tais como a recusa da propagação ou a
destruição; todos os outros são nulos, ou melhor, esses dois podem
merecer o nome de crimes: e eis, portanto, esses crimes essenciais às leis dos
reinos, e essenciais às leis da natureza. (...) Essa dissolução é útil à natureza,
pois é dessas partes destruídas que ela recompõe. (LACAN apud SADE,
1959-60/1997, p. 258).
A lição de Sade aqui é a da presença de um Mal radical no princípio da Lei, o
qual se encarna em das Ding. Esse Mal é tão insuportável quanto seria o acesso à Coisa
como Bem Supremo, o que podemos aprender com a tragédia de Édipo. Esse
personagem é aquele que consegue realizar o desejo de todo homem, tendo acesso à
Coisa como o Bem mais desejado e absolutamente proibido: a mãe. Conhecendo seu
destino de sofrimento e desgraça, podemos notar que “o extremo do prazer, na medida
em que consiste em forçar o acesso à Coisa, nós não podemos suportá-lo.” (LACAN,
1959-60/1997, p. 102).
Nesse crime que, por um lado, tem a destruição como elemento indispensável, e
por outro, é útil, por permitir a recomposição da natureza o que poderíamos pensar
como uma criação a partir do nada instaurado pela destruição mesma –, vemos ressoar a
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pulsão de morte. Essa pulsão é caracterizada por Lacan, no seminário da ética, como
uma “pulsão de destruição, uma vez que ela põe em causa tudo o que existe. Mas ela é
igualmente vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeçar.” (LACAN,
1959-60/1997 p. 259-260). O texto de Sade, pois, nos torna presente, de forma clara,
essa pulsão tão peculiar que deu um rumo diferenciado à obra freudiana.
No entanto, a pulsão de morte, também a encontramos como uma conseqüência
inesperada, certamente da moral kantiana. Em sua formulação do imperativo
categórico como único guia moral, Kant, ao invés de garantir a possibilidade de agir
segundo um Bem Supremo, abre, pelo contrário, um novo domínio ao Mal: um Mal à
aparência do Bem, um Mal purgado dos motivos patológicos, o que faz com que ele seja
muito mais inquietante do que o mal patológico habitual. Uma passagem muito
interessante, retirada de um conto de Edgar Allan Poe, denominado O Demônio da
Perversidade, parece dar uma descrição que se encaixa, de forma impressionante, na
concepção da pulsão de morte como esse Mal absolutamente não patológico, tornado
possível pelo imperativo kantiano:
Em teoria, nenhuma razão pode ser mais insensata; mas, com efeito,
nenhuma outra mais forte... Tão certamente como que respiro, sei que é
na certeza do equívoco ou do erro de uma qualquer ação que reside amiúde a
força irresistível, a única a impelir-nos à sua prossecução. Essa inclinação
invencível a fazer o mal pelo próprio mal não se deixará analisar ou resolver
em elementos posteriores. É um impulso radical, primitivo, elementar.
(ZIZEK apud POE, 2006, p. 29).
Uma inclinação invencível a fazer o mal pelo próprio mal e não por qualquer
motivo patológico, e não buscando qualquer fim para além do mal em si mesmo. Uma
inclinação invencível, que não pode ser freada por qualquer consideração patológica por
si ou pelo outros. Uma inclinação a um ato que deverá ser propriamente ético, purgado
de emoções sem temor, nem piedade. Esse é o estatuto de uma Maldade
transcendental, cuja possibilidade é colocada a partir da formulação da moral kantiana.
Mas isso não está em Kant; assim como o filósofo alemão também não admitia que o
desejo poderia possuir um estatuto transcendental, sendo ele o reduto das inclinações
patológicas. Sade e Lacan pensavam diferente.
Quanto a Sade, vimos como sua Lei do gozo a qual diz respeito à esfera da
sexualidade, a um livre curso garantido ao desejo sexual cumpre com as condições
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estabelecidas pelo imperativo categórico. Quanto a Lacan, podemos dizer que ele
também realiza a elevação do desejo ao estatuto transcendental. (ZIZEK, 2006, p. 30).
No seminário da ética, podemos observar como a motivação do desejo é totalmente
indiferente à patologia, tal como Kant a considera; como vimos desenvolvendo ao longo
deste trabalho, a causa do desejo é das Ding, um objeto não-patológico por excelência,
o qual não apresenta conteúdos empíricos positivos. A Coisa é um vazio instaurado no
centro do significante e que, justamente por ser um vazio, pode assumir funções
antagônicas, como o objeto mais desejado e o mais repelido, o Bem Supremo e o “Ser-
supremo-em-maldade” (LACAN, 1959-60/1997, p. 263). Essas complicações referentes
ao Bem acompanham a formulação, em Lacan, de uma ética distinta de qualquer outra
na história da filosofia. Veremos, no capítulo seguinte, quais são suas peculiaridades,
com o objetivo de tirar as conseqüências para a questão da responsabilidade subjetiva.
51
CAPÍTULO 3
A RESPONSABILIDADE DO SUJEITO DO INCONSCIENTE
3.1 Da ética do Real à responsabilidade do sujeito
Slavoj Zizek (1997) propõe uma distinção entre as concepções de ética
presentes na atualidade. A primeira delas, qualificada de ética substancial, pode ser
representada pela ética clássica aristotélica, na qual uma concepção de um Bem
Supremo, o qual deve ser visado em todos os atos humanos. Nela, podem-se encontrar
preceitos que orientam a conduta em direção ao Bem. A segunda concepção representa
uma tentativa de suprimir os conteúdos substanciais, constituindo uma ética puramente
formal, no intuito de salvar seu universalismo, ameaçado pela diferença entre as
tradições culturais, que essa diferença põe em questão a validade universal de
preceitos positivos. A terceira concepção, a pós-moderna, realiza uma renúncia à
universalidade e faz uso de preceitos negativos, os quais visam ao respeito da diferença
e à manutenção da pluralidade das narrativas. Por último, a ética delineada por Lacan,
não podendo fundamentar-se em uma ontologia que “o estatuto do inconsciente é
ético e não ôntico” (LACAN, 1964/1998, p. 37) e, portanto, afastando-se de qualquer
referência à substância, tem seu fundamento no Real. O que isso significa?
Em primeiro lugar, tal ética pode sustentar-se a partir da distinção entre o
Real e a realidade. A segunda representa, na tradição filosófica, a última referência de
simbolização, ou seja, a objetividade enquanto tal. O Real, por outro lado, é aquilo que
impossibilita uma significação objetiva e totalizante da realidade. Ademais, em vez de
situar-se para além do simbólico, ex-siste
6
ao mesmo, o que o torna impossível de ser
significado, ao mesmo tempo em que impede que haja um fim para o deslizamento da
cadeia significante. A concepção psicanalítica de Real se estabelece contra um realismo
6
Isto é, o Real é aquilo que não cessa de se apresentar como exterioridade inassimilável, como borda,
como o impossível que estabelece os limites intransponíveis do simbólico.
ingênuo, que pressupõe uma existência autêntica para além de toda representação, para
além da linguagem. O conceito kantiano do noumenon, de uma coisa em si, não
acessível a nós – dado quetemos acesso aos fenômenos, àquilo que nos afeta através
de nossas categorias do entendimento: tempo, espaço etc –, exemplifica o que seria a
realidade na filosofia realista: uma existência que se sustenta por si mesma, alheia e
independente de nossos esforços em acessá-la. Na psicanálise, contudo, não a coisa
em si: das Ding é possível articulada a uma cadeia significante; em outros termos, a
Coisa freudiana só existe na linguagem e para os seres de linguagem.
A existência do Real segue a mesma lógica: o Real é aquilo que apenas ex-siste
na cadeia simbólica. O Real concerne ao furo da ordem simbólica, às interrupções no
deslizamento habitual da cadeia, às hiâncias impreenchíveis, que possuem um efeito
peculiar no ser do sujeito falante: o gozo. O mais-de-gozar postulado por Lacan
(1969-70/1992) é uma espécie de excesso produzido pelo funcionamento habitual da
máquina significante, excesso esse que não é da mesma ordem daquilo que o produz,
sendo, por esse motivo, inassimilável ao equilíbrio original do sistema. Tomemos o
exemplo do progresso industrial. A máquina simbólica da ciência foi capaz de
transformar produtos retirados do meio ambiente, como carvão e petróleo, em energia
para aprimorar nosso bem-estar. No entanto, ao lado dessa energia, foi produzido
também um resto inassimilável à cadeia original do meio-ambiente: a poluição. O que
fazer com esse resto inútil da operação industrial? A impossibilidade de encontrar uma
resposta final e satisfatória a essa questão nos remete a uma outra pergunta sem
resposta: o que fazer com o gozo?
Uma ética que possui fundamento no Real, portanto, é aquela que nos confronta
com a questão a respeito do gozo. Se consideramos a produção do mesmo como um
excedente do funcionamento significante, nos deparamos com o seguinte: a
peculiaridade de uma ética do Real é a abordagem da responsabilidade do sujeito
referente aos dejetos inassimiláveis de seus atos significantes. Disso retiramos duas
importantes conseqüências: a primeira delas é a de que o sujeito deve responsabilizar-se
por aquilo no qual ele não se reconhece de forma alguma, por aquilo que lhe ex-siste,
que lhe é inassimilável e, ao mesmo tempo, não cessa de nos constranger ao desafio de
sua assimilação. Essa descrição nos remete à questão anteriormente discutida da
53
compulsão à repetição. Um sonho traumático, por exemplo, é um caso disso que, não só
é in-inscritível no aparelho psíquico, como também não cessa de não se escrever
(LACAN, 1972-73/1985). E a razão dessa insistência não é outra senão um excesso de
satisfação, pois “a repetição se funda em um retorno do gozo.” (LACAN, 1969-
70/1992, p. 44).
Em Responsabilidade moral pelo conteúdo dos sonhos (1925a/1996), Freud
trata da necessidade de considerar o sujeito como o único responsável pelos
pensamentos de seus sonhos, por mais que o mesmo os repudie e não seja capaz de
neles se reconhecer:
Obviamente, temos de nos considerar responsáveis pelos impulsos maus dos
próprios sonhos. Que mais se pode fazer com eles? A menos que o conteúdo
do sonho (corretamente entendido) seja inspirado por espíritos estranhos, ele
faz parte de seu próprio ser. (...) Aprenderei, talvez, que o que estou
repudiando não apenas ‘está’ em mim, mas vez e outra ‘age’ também desde
mim para fora. (FREUD, 1925a/1996, p. 145).
Nesse texto de 1925, Freud afirma que, por mais que nos seja doloroso
reconhecer essa responsabilidade, não nos alternativa; se quisermos estar de acordo
com a teoria psicanalítica, é inevitável que nos consideremos responsáveis pelo
conteúdo de nossos sonhos. Pois, por mais que consideremos que os impulsos
agressivos ou indecorosos presentes nos sonhos emanem do isso, é sobre essa instância
psíquica que nosso eu se assenta e a partir da qual ele se desenvolve. A total separação
entre isso e eu é, em psicanálise, irrealizável.
Ademais, Freud afirma que a experiência clínica demonstra que não apenas
deveríamos nos considerar responsáveis por isso que “age desde nós”, mas que, muitas
vezes, somos compelidos a fazê-lo. Tomemos o caso da neurose obsessiva. No momento
em que surgem, na mente de um obsessivo, idéias de morte contra algum ente querido,
nosso neurótico é compelido a se punir por tais idéias, lançando mão de complicadas
artimanhas compulsivas, as quais demandam muita energia e são sentidas pelo sujeito
em questão como um amargo inconveniente em sua vida. Nesse exemplo, por meio de
um sintoma, o neurótico se apresenta como responsável pelo desejo de morte de seu
familiar e pune, prontamente, o culpado por tal desejo.
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De forma que nos deparamos aqui com um impasse: em que a responsabilidade
subjetiva se distingue da culpa? Assumir a responsabilidade e assumir a culpa são atos
equivalentes?
Se respondermos afirmativamente, concluiremos que todo neurótico, ao se punir
por meio dos sintomas, assume, de fato, a responsabilidade por seus impulsos
inconscientes. Tal conclusão não nos faria dar muitos passos adiante e nossa discussão a
respeito da responsabilidade em psicanálise se findaria nesse ponto, com a promoção da
culpabilização. O que encontramos na psicanálise é a resposta negativa: em seu sintoma,
o neurótico assume a culpa pelos impulsos inconscientes, no entanto, a
responsabilização representa um passo adiante e é esse passo que a experiência analítica
pode proporcionar ao sujeito em sofrimento. Adiemos, contudo, essa discussão sobre
culpa e responsabilidade, para retomarmos a segunda conseqüência a ser tirada do fato
de o sujeito ser responsável por seus atos.
Pois bem, a segunda conseqüência é a seguinte: o sujeito será responsável pelos
seus atos significantes ainda que esses mesmos atos lhe tenham sido impostos, ainda
que o sujeito consiga se enxergar como uma vítima das circunstâncias ou um
cumpridor de ordens superiores.
A figura hegeliana da Bela Alma retrata bem a questão da complacência gozosa
que a vítima exerce em sua situação. Um exemplo clássico dessa condição é o da
paciente Dora (FREUD, 1905a/1996), a quem Freud se esforça em demonstrar que “(...)
da grande desordem do mundo de seu pai, cujo estrago constitui o objeto de sua
reclamação, ela faz mais do que participar; que ela se constitui a cavilha dessa
desordem, e que não poderia continuar sem sua complacência.” (LACAN, 1958/1998,
p. 602). Vejamos, a partir de uma breve abordagem desse caso clínico, em que consiste
essa figura hegeliana.
De acordo com Zizek (1991), a Bela Alma é aquela que tenta escapar do ato
pecaminoso, isto é, do ato patológico cujas motivações são puramente subjetivas, pela
ausência de ação. É a figura de quem apenas lamenta, deplora o triste estado do mundo
e dos homens, acreditandodada a sua postura passiva – não tomar parte na construção
desse quadro que tanto a enoja. O que escapa à sua percepção é que
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a rede de relações intersubjetivas em cujo contexto ela desempenha o papel
da vítima passiva, de alguém que não consegue se adaptar às exigências da
realidade vulgar, a totalidade dessa rede é obra sua: não se pode produzir
sem que ela consinta em desempenhar esse papel (ZIZEK, 1991, p. 85).
Dito de outro modo, o que essa bela figura hegeliana nos ensina, portanto, é o seguinte:
“a inatividade, o papel da vítima passiva, pode funcionar como uma forma de atividade
por excelência, na medida em que se endossa ativamente esse papel.” (ZIZEK, 1991, p.
85).
Braunstein (2007) refere-se à alma bela como uma das quatro belezas histéricas
as quais seriam reações, poder-se-ia dizer, indignadas, à falta do Outro, à
incompletude e à insuficiência apresentadas pelo mesmo e a expõe em uma
esclarecedora descrição:
Queixosa, vítima, objeto de humilhações, traições, incompreensões e
ingratidões, ela é alma bela, depositária imerecida de sevícias e desgraças.
Oferece-se como objeto ao olhar e à escuta do Outro. ‘Olhe ao que me vejo
reduzida.’ ‘Ouça, se é que pode suportar, o relato de minhas desventuras.’
Sade o prefigurou com um título mordaz: Justine ou os infortúnios da
virtude. O ser da alma bela confunde-se com essa queixa continuada, esse
prolongado lamento, essa sucessão de sintomas e crueldades. O gozo corre
ao largo do relato sem que seja identificado como tal nos pormenores das
traições do amado, dos erros dos médicos que deixam um resto de corpo que
sofre, descartado, marcado por cicatrizes cirúrgicas, das faltas de
reconhecimento por parte dos filhos e amigos, das injustiças de chefes e
professores. (BRAUNSTEIN, 2007, p. 222).
Frente a tal posição subjetiva, qual deveria ser a direção do tratamento? Lacan
(1951/1998) afirma que o caso Dora é apresentado sob a forma de “uma série de
inversões dialéticas” (LACAN, 1951/1998, p.217), cujo objetivo é o de provocar
escansões no discurso da paciente, escansões essas que criem condições para uma
alteração da posição subjetiva de Dora perante seus objetos. Em outras palavras, a partir
das intervenções de Freud, seriam dadas a essa histérica, tão inconscientemente
arraigada a seu gozo da posição de vítima, as condições para que ela assumisse esse
gozo, para que ela se deparasse com a sua própria participação na manutenção desse
mundo cruel denunciado; para que ela, enquanto sujeito, adviesse ali onde o isso estava.
Dora chega a Freud com uma questão apresentada por Lacan na seguinte
fórmula: “Esses fatos estão aí, dizem respeito à realidade, e não a mim mesma. O que o
senhor quer mudar nisso? (LACAN, 1951/1998, p. 218). Esses fatos, dos quais a
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paciente tanto se queixa são todas as questões relacionadas ao envolvimento de seu pai
com a senhora K e ao fato de o mesmo ter supostamente dado sua filha ao senhor K
como moeda de troca. O passo que dará Freud – numa primeira inversão dialética – será
o de denunciar o que essa bela alma tenta ocultar: “qual é sua própria parte na desordem
de que você se queixa?” (Idem). Uma outra leitura dessa questão pode ser a seguinte: de
que forma você goza com essa situação? Essa intervenção que não se exatamente
dessa forma tão rápida e direta, mas ao longo de diferentes interpretações – possibilitará
que algo mais faça questão no discurso de Dora; qual seria o significado do ciúme tão
preponderante que ela tem de seu pai? O que para qualquer pessoa poderia parecer
obviamente justificado, Freud irá questionar, possibilitando assim numa segunda
inversão dialética um novo desenvolvimento do discurso de nossa histérica. Esse
desenvolvimento se dará a partir de uma segunda inversão dialética: por trás de um
exagerado ciúme do pai, Dora mascara uma fascinada admiração por sua rival, a
senhora K, amante de seu pai.
“Freud discerniu a pergunta a que levava esse novo desdobramento” (LACAN,
1951/1998, p.219), entretanto, por motivos de sua contra-transferência preconceitos e
expectativas que esse analista falhou em manter afastados –, não foi capaz de levá-la
adiante numa intervenção que poderia ter constituído uma terceira inversão dialética. A
pergunta é a seguinte: dado que a senhora K havia traído Dora, desrespeitando a
cumplicidade que havia entre elas, por que a paciente continuava a defendê-la, por que
não era capaz de romper essa lealdade? O desenvolvimento ao qual tal intervenção
poderia ter levado é o de que o valor real da senhora K não era o de um indivíduo, “mas
o de um mistério, o mistério de sua própria feminilidade” (LACAN, 1951/1998, p.220).
Por meio dessas três inversões dialéticas, portanto, o que vemos é um percurso
que leva de uma fixação à posição da Bela Alma ao enfrentamento de um mistério que
concerne intimamente ao sujeito. A realização dessas três intervenções colocaria as
condições que permitiriam a Dora ir ao encontro de seu próprio gozo e responsabilizar-
se pelo mesmo, passando da condição de pobre vítima das circunstâncias à condição de
sujeito ético, capaz de tomar para si a causa de seus atos e de não ceder de seu desejo,
minimizando o gozo masoquista.
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Por meio dessa discussão, podemos entrever algo que a psicanálise e talvez
apenas ela nos ensina: frente às artimanhas de um suposto destino, frente aos
sofrimentos que a vida parece nos impor, nossa resposta é, estritamente, uma resposta
ética. Podemos gozar de tudo isso, como um masoquista moral ou uma Bela Alma,
fazendo do sofrimento um álibi para nossa passividade ativamente engendrada; ou
podemos advir como sujeito ético justo onde nos sentimos tão vítimas das
conseqüências. De acordo com Perelson,
O problema ético, com efeito, concerne à relação que o sujeito estabelece
com um gozo que é sempre presente, e mesmo muito presente. Dito de outra
forma, a questão ética é a de saber em que medida o sujeito se responsabiliza
por seu gozo ou, ao contrário, assume, de forma perversa, a posição de
vítima do gozo do Outro. (PERELSON, 1999, p. 242).
7
Apesar de não se tratar de um caso clínico, ou seja, do relato sobre um sujeito
submetido ao artifício de falar livremente em análise, um segundo exemplo de
responsabilidade de alguém que se considera absolutamente não implicado em seus atos
pode ser o do torturador que, ao ser questionado num tribunal por seus atos cruéis e
desumanos, afirma não poder responder por eles, dado que, ao realizá-los, esteve apenas
cumprindo ordens superiores. O caso de Eichmann, torturador nazista que teve seu
julgamento registrado por Hannah Arendt (1999), ficou famoso por uma curiosa
argumentação do réu. Eichmann afirmou que, ao longo do Terceiro Reich, agia de
acordo com o que denominou de “uso doméstico da ética kantiana”. Neste uso, o
imperativo categórico sofria uma ligeira mas grotesca alteração. No lugar de age de
tal maneira que o motivo que te levou a agir possa ser convertido em lei universal, o
imperativo categórico nazista era o seguinte: age de tal maneira que o motivo que te
levou a agir esteja de acordo com a legislação do Terceiro Reich.
Arendt afirma ainda que Eichmann efetivamente seguia os preceitos de Kant, na
medida em que ele não admitia exceções às leis às quais se submetia. Sem exceções
essa era a prova de que ele havia agido sempre contra seus ‘pendores’, fossem eles
sentimentais ou inspirados por interesse, em prol do cumprimento do ‘dever’”
(ARENDT, 1999, p. 154). O burocrata nazista agia de acordo com a ética kantiana,
7
Tradução nossa. O trecho original é o seguinte:Le problème éthique, en effet, concerne le rapport que
le sujet établit à une jouissance qui est toujours présente, voire trop présente. Autrement dit, la question
éthique est de savoir dans quelle mesure le sujet se responsabilise de sa jouissance ou, au contraire,
assume, de façon perverse, la position de victime de la jouissance de l’Autre.”
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portanto, ao colocar o dever acima de todas as coisas, até mesmo da consideração pela
vida humana e de qualquer sentimento que pudesse vir a ter, tais como compaixão ou
repulsa pela violência de seus atos.
Ao defender a responsabilidade do sujeito em casos como o de Eichmann, fica
claro que a mesma, em psicanálise, não tem como condição um ato realizado a partir do
livre arbítrio do indivíduo. A possibilidade de agir segundo uma escolha livre e não
imposta não é, de forma alguma, necessária para que o sujeito seja responsável por tal
escolha:
Mesmo que o sujeito não aja segundo seu livre arbítrio, pois ele obedece a
um Outro, objetivo, que o determina como o Dever, a História ou o
Inconsciente e mesmo que ele não seja senão a vítima do ato do outro, ele
está subjetivamente implicado nesse ato por meio do gozo que ele encontra
e, conseqüentemente, é responsável por esse ato. Assim, o sujeito é
responsável por um ato não por tê-lo escolhido fazer, mas na medida em que
ele goza por meio de sua realização. (PERELSON, 1999, p. 245).
8
Dessa forma, vemos que a questão da responsabilidade subjetiva na psicanálise
não é dependente da questão do livre arbítrio, posto que, como estudamos no primeiro
capítulo dessa dissertação, o sujeito do inconsciente não possui as qualidades de
liberdade e autonomia; ele é, antes, sujeito ao significante, determinado pela cadeia
simbólica que o antecede e o origina. Pela via da responsabilidade referida ao gozo,
portanto, acreditamos encontrar uma resposta ao paradoxo de um sujeito que é, por um
lado, necessariamente determinado e, por outro, deve ser responsável por aquilo que lhe
concerne.
3.2 O desejo: entre a responsabilidade e a culpa
Até agora, em nossa discussão, caracterizamos a responsabilidade pelo gozo
como uma peculiaridade da ética da psicanálise. No entanto, não podemos perder de
vista que, no seminário 7, Lacan apresenta essa ética como uma ética do desejo. O que
8
Tradução nossa. O trecho original é o seguinte: Même si le sujet n’agit pas selon son libre arbitre,
puisqu’il obéit toujours à un Autre, objectif, qui le détermine - comme le Devoir, l’Histoire ou
l’Inconscient - et même s’il n’est que la victime de l’acte de l’autre, - il n’est pas moins subjectivement
impliqué dans cet acte à travers la jouissance qu’il y trouve et conséquemment pas moins responsable de
cet acte. Ainsi, on est responsable d’un acte, non pour avoir choisi de le faire, mais dans la mesure
l’on jouit à travers son accomplissement.
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implica que não podemos desconsiderar o desejo na discussão acerca da
responsabilidade subjetiva. Para analisar essa questão, voltemos à pergunta cuja
discussão adiamos anteriormente: qual é a relação que podemos estabelecer entre culpa
e responsabilidade?
No seminário da ética, Lacan afirma que a única coisa pela qual o sujeito se
sente culpado é por ter cedido em seu desejo. A pergunta agiste conforme o desejo que
te habita? apresenta-se como uma espécie de referencial ético da análise. A partir disso,
levantamos a hipótese de que a responsabilidade subjetiva na psicanálise está
intimamente ligada ao desejo; ou ainda, mais especificamente, a um ato que deixa
transparecer uma posição de persistência no desejo. Por outro lado, o sentimento de
culpa seria o sinal de uma desistência do desejo, de uma renúncia ao mesmo, em prol,
geralmente, de um bem, de um bom motivo, como nos descreve Lacan: “O que ocorre
cada vez que para nós soa a hora do desejo? Pois bem, não se chega perto, e pelas
melhores razões.” (LACAN, 1959-60/1997, p. 264).
Para nosso esforço em articular uma distinção entre culpa e responsabilidade,
tendo como parâmetro o posicionamento subjetivo frente ao desejo, encontramos um
auxílio em Didier-Weil (1997). Ao tratar da questão ética do advento do sujeito por
meio da “persistência na palavra”, o que se traduz por uma conquista do bem-dizer, esse
autor distingue dois mandamentos antagônicos que se impõem simultaneamente ao
sujeito, o qual é convocado a escolher a qual dos dois mestres irá servir.
Por um lado ainda segundo Didier-Weil (1997) –, temos o mandamento
superegóico impondo ao sujeito a renúncia a seu próprio advento, e acusando-o segundo
uma lei que não está escrita em qualquer lugar, o que torna impossível toda tentativa do
mesmo de inocentar-se. Esse estado de coisas assemelha-se àquele descrito no romance
de Franz Kafka, denominado O Processo. Nessa obra, o personagem Josef K. é detido,
certa manhã, em seu apartamento, sem que ele saiba a razão pela qual o está sendo. Ao
longo desse romance, K. tenta, de todas as formas possíveis – e sem sucesso –, conhecer
a lei que o condena e o crime pelo qual está sendo culpado. Tenta, também, diferentes
artimanhas para se provar inocente. No entanto, como seria possível provar a inocência
na medida em que não se conhece a lei que julga? No fim, cansado de sua inútil
resistência, K. aceita que deve pagar por seu desconhecido crime e decide poupar o
60
trabalho de seus carrascos que realizam uma repulsiva troca de gentilezas antes de ser
decidido quem dará o golpe final –, tomando em suas mãos o ato de sua própria
execução.
Esse desenlace final do romance nos revela uma verdade a respeito da lei
superegóica, pois, do mesmo modo que Josef K. escolhe sujeitar-se ao cumprimento dos
desígnios de uma lei insondável, o sujeito culpado escolhe submeter-se ao mandamento
superegóico, em detrimento de responder ao chamado simbólico do que Didier-Weil
(1997) denominou de mandamento siderante. Esse autor nos apresenta essa escolha
específica como sendo um deslocamento da questão sobre a dívida simbólica, que é a
mesma questão sobre a persistência no desejo. Por exemplo, a questão que lhe vem do
Outro agiste conforme o desejo que te habita? , o sujeito a substitui pela acusação
você é culpado!, sentida como injusta, dado que o sujeito não sabe porque nem pelo que
é culpado. O motivo desse deslocamento é o de que o assentimento dado à questão
sobre o desejo implica a difícil tarefa de poder sustentar o que não se compreende.
O desejo não se reduz à vontade autônoma e consciente; ele é antes, desejo do
Outro, um ímpeto que determina o sujeito quer ele queira ou não. Aliás, a dificuldade
em responder afirmativamente ao mandamento superegóico é justamente a de se
posicionar como causa desse estranho e incessante deslizamento determinado pelo
Outro, a de tomar essa alteridade para si. A essa complicada tarefa, o sujeito escolhe
dizer sim ou não. A resposta afirmativa implica a persistência na via do desejo, que é a
via da falta: falta de saber, falta de gozo, já que o saber é meio de gozo (LACAN, 1969-
70/1992, p. 37).
Nesse ponto, torna-se necessário abrirmos um pequeno parêntese para esclarecer
a seguinte questão: se a responsabilização implica, por um lado, a assunção do gozo, ou
o ato de tomar para si essa estranha satisfação, como é possível, por outro lado, afirmar
que a via do desejo – que é a da responsabilidade – implica em abdicar do gozo? Aquilo
de que se abdica na responsabilização é de um certo posicionamento frente ao gozo, um
posicionamento no qual, o sujeito não é capaz de situar-se como causa de sua
(in)satisfação. Abdica-se, portanto, do gozo da posição de vítima. Em contrapartida,
nesse mesmo ato de responsabilização, o gozo é atingido, não a partir do
61
posicionamento anterior, mas sim na escala invertida da Lei do desejo (LACAN,
1960/1998, p. 841).
Esse re-encontro com o gozo, dessa vez em uma escala invertida, ou seja, a
partir de um posicionamento novo frente ao mesmo, é o que acreditamos ser um efeito
do jogo analítico. E essa mudança e possível quando o sujeito pode ultrapassar a
inércia gozante dos sintomas e repetições, e seguir, por um momento que seja, o
incessante movimento metonímico do desejo. Mas dar esse passo, assumir em ato esse
movimento é uma missão impossível para o sujeito que se encurralado por seu gozo,
sem brechas pelas quais poderia livrar-se dessa “marcação cerrada”. No entanto, tal qual
num jogo de futebol, em que o artilheiro parece criar do nada uma brecha entre os
jogadores do time adversário para continuar seu movimento em busca do gol, o sujeito
deve também criar do nada essa possibilidade ante o impossível. É num ato inesperado,
num drible inédito que o sujeito pode abdicar de seu gozo para reencontrá-lo depois sob
outro prisma.
Por outro lado, para manter o gozo do qual se deve abdicar para tomar a via do
desejo, o sujeito escolhe dizer não ao mandamento siderante, seguindo a via da culpa,
por meio da qual é possível encontrar, por meio de certas artimanhas neuróticas, um
saber sobre a acusação:
A experiência analítica nos ensina, a esse respeito, que o sujeito, para
escapar à questão do não-saber, não quer senão assumir o fato de ser
realmente acusado, por pouco que se saiba de que tipo de acusação ele é
culpado: não é raro se ver um sujeito cometer um erro real para ser posto em
contato com uma lei que deixa de se manifestar como questionadora para se
tornar puramente sancionadora, enunciando com clareza qual é o delito e
com que preço deve ser pago. (DIDIER-WEIL, 1997, p. 183).
Essa situação, em que um erro real é cometido para dar um conteúdo objetivo ao
sentimento de culpa, é explorada por Freud em seu pequeno texto Alguns tipos de
caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916/1996), na sessão denominada
Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa. O autor afirma que não é raro
encontrar casos em que ocorre o seguinte: o paciente sofria de um opressivo
sentimento de culpa, cuja origem não conhecia e, após praticar uma ação má, essa
opressão se atenuava. Seu sentimento de culpa estava pelo menos ligado a algo.”
(FREUD, 1916/1996, p. 347).
62
Por meio do crime, portanto, o sujeito culpado era capaz de aceder a um saber
sobre sua culpa, capaz de livrar-se do desamparador não sei o quê que dominava
anteriormente esse sentimento. Na seqüência do texto, Freud afirma que essa culpa que
pré-existe a esses crimes provém do complexo de Édipo e constitui uma reação às duas
grandes intenções criminosas da humanidade: o incesto e o parricídio. Disso podemos
deduzir que há, em Freud, uma universalização da culpa e que apenas seu aspecto
quantitativo admitiria variação no caso a caso. Essa culpa, que seria, portanto, intrínseca
ao ser de linguagem, não cabe à psicanálise expiá-la. Muito menos levar o sujeito a
assumi-la, ou a descobrir sua verdadeira razão, objetivando a promoção de algo que se
poderia chamar de culpa consciente. A questão ética da psicanálise não é a questão da
culpa. Essa, pelo contrário, é uma barreira erguida contra a inquietante questão do
desejo do Outro.
O enfrentamento da questão do desejo do Outro, da dívida simbólica, é o ponto
aonde nos leva o problema da responsabilidade em psicanálise. Didier-Weil (1997, p.
182) afirma que a palavra alia o paradoxo de, ao mesmo tempo, ser um dom transmitido
do Outro ao sujeito e ensinar que algo a pagar por esse dom. No entanto, esse preço
não está afixado em qualquer etiqueta. Se soubesse como pagar, o sujeito o faria com
todo prazer, mas, como não sabe, permanece num estado de angústia, do qual há apenas
duas saídas possíveis. A primeira delas é a culpa, sobre a qual vínhamos discutindo nos
parágrafos anteriores. A segunda saída é a seguinte: “da solidão extrema em que me
encontro, pelo fato de o Outro me abandonar não me dizendo o que devo fazer, consigo
me arrancar encontrando em mim o suporte de onde não é impossível me autorizar por
mim mesmo a produzir um bem-dizer” (DIDIER-WEIL, 1997, p. 182).
No momento em que paro de emitir ao Outro apelos em série para que ele me
ensine como pagar uma dívida que não contraí mas que devo assumir em meu nome
para me fazer sujeito desejante estou prestes a me tornar responsável. Se nos
remetermos agora às palavras de Freud em Projeto para uma psicologia científica
(1895/1996, p. 370) o desamparo humano é a fonte primordial de todos os motivos
morais podemos tirar delas a seguinte conclusão: é por não podermos delegar ao
Outro a rédea de nossa existência, por termos de nos virar por nós mesmos, que a
moralidade é possível. A partir do momento em que se considera que o sujeito não é
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controlado por qualquer Outro que seja tais como espíritos malignos, homúnculos
cerebrais, instintos animais, códigos genéticos ou químicas neuronais é possível falar
em responsabilidade.
3.3 Ceder de seu desejo ou persistir nele?
Numa tentativa de ilustrar o que foi elaborado, pretendemos, nesse tópico final,
realizar uma breve discussão de dois exemplos retirados da literatura: um conto de
Guimarães Rosa denominado A terceira margem do rio e a tragédia Antígona, de
Sófocles. Pretendemos compreender, a partir do que estudamos ao longo do presente
trabalho, o que está implicado na questão da responsabilidade subjetiva em psicanálise,
tendo a culpa como contraponto. Partindo da hipótese de que a responsabilidade se
relaciona a uma certa atitude do sujeito com relação a seu desejo, examinamos um caso
em que o sujeito não é capaz de sustentar esse desejo promovendo, desse modo, a
persistência da culpa –, e um outro no qual o sujeito não cede do mesmo, por mais
percalços que encontre em seu caminho.
3.3.1 A Terceira Margem do Rio
Esse conto de Guimarães Rosa fornece-nos um exemplo de um sujeito que é
incapaz de assumir a responsabilidade pelo que lhe cabe. Vemos, nessa pequena obra, a
hesitação opondo-se à realização de uma missão. Podemos observar, ainda, como a via
do desejo pode ser a mais cruel e a mais difícil. E que, apesar disso, ao evitá-la a vida
resta sem sentido.
A história narrada é a de um pai, “homem cumpridor, ordeiro, positivo” (ROSA,
2005, p.77), que manda fazer uma canoa e instala-se nela, “sem alegria, nem cuidado”
(Idem), passando a viver no leito do rio, sem nunca voltar ou ir-se embora. Indiferente a
todos os clamores de familiares e às curiosidades de terceiros, esse pai não volta atrás
em seu desígnio, cujo motivo se torna um ponto opaco, inatingível, do qual muitas
especulações tentam, sem sucesso, dar conta. O único possível conhecedor dessa
verdade seria o construtor da canoa, cuja morte sela seu silêncio, fazendo persistir um
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mistério sem esperança de solução. Após o estarrecimento inicial, toda a família segue
sua vida, mas um filho é incapaz de abandonar esse pai e vive acompanhado por uma
culpa “sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro.” (Ibid., p.81).
Até o dia em que ele resolve fazer o que lhe parece ser sua missão, oferecendo-se ao pai
para tomar o seu lugar. Quando que o pai aceita sua proposta, foge, “num
procedimento desatinado” (Ibid., p.82), desse pai que lhe parece vir “da parte de além”
(Ibid., p.80). Após esse episódio, ninguém mais sabe do pai e restam ao filho a
persistência da culpa e uma espécie de morte, pela qual sua vida parece apagar-se como
conseqüência dessa falta “sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o
que vai ficar calado.” (Ibid., p.82).
Que conseqüências podemos tirar desse conto? Comecemos pelo título. A
Terceira Margem do Rio é um espaço quase virtual, que passa a idéia de uma
suspensão, uma suspensão da realidade, encarnada numa e noutra margens. No
seminário da ética, Lacan (1959-60/1997) elabora a noção do entre-duas-mortes, espaço
igualmente virtual, situado entre a morte simbólica e a morte real. A segunda delas
representaria o falecimento do corpo, acontecimento do qual o pai parece estar
estranhamente protegido, que, não obstante as degradantes condições objetivas às
quais está submetido, mantém alguma saúde e força nos braços. a morte simbólica
poderia representar a abolição do sujeito enquanto elemento de uma comunidade, o
rompimento dos laços sociais que o constituem como tal. É o que ocorre com o
personagem do pai. Esse não mais exerce suas funções sociais, senão “sempre fazendo
ausência” (ROSA, 2005, p.79). Mas esse pai é algo além de um pai ausente, pois insiste
em uma presença muda, inerte e estranha. O pai, ao mesmo tempo familiar e
inconciliável à família, ocupa o lugar da Coisa, daquilo que do real, padece de
significação. E de que real estaríamos falando senão daquele que concerne ao filho
enquanto sujeito? O filho, após fazer a proposta a seu pai, afirma que, nesse momento,
seu “coração bateu no compasso do mais certo.” (Ibid., p.82). E o que seria esse “mais
certo” senão a sua verdade, a verdade de seu desejo?
Pois bem, esse ponto nos coloca frente a uma questão; o que esse conto pode nos
ensinar a respeito do problema do posicionamento subjetivo frente ao desejo? Pode-se
dizer que o filho, até esse momento de escolha, havia vivido na submissão à
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necessidade de punição imposta pelo supereu, remoendo sua culpa e às voltas sempre
com a mesma questão: o enigma de seu pai. Mesmo após sua família toda ter ido
embora, o filho permaneceu no mesmo lugar, incapaz de tornar-se pai e nem mesmo
marido. Sua vida estava, por assim dizer, em suspensão. A o momento em que o
sentimento da passagem do tempo – “eu sofria já o começo de velhice esta vida era
o demoramento” (Ibid., p.81) e a angústia que a morte do pai lhe causava vê-se
nisso que a ausência que o pai fazia era uma ausência presente, cuja ameaça de deixar
de sê-lo pôde precipitar a ação puseram o filho frente à sua escolha, a única escolha
legítima que ele poderia tomar em sua vida: a escolha de ceder ou não de seu desejo. E
que desejo seria esse senão o de assumir o lugar do pai, o desejo edípico por excelência?
O que fica claro nesse exemplo é que o desejo nada tem a ver com a vontade, tida como
uma volição cuja origem está no ser do sujeito. A precedência desse desejo é totalmente
estranha ao filho e aponta para esse lugar enigmático ao qual ele almeja, sem saber
porquê. Como afirma Perelson (1994, p.48), “o desejo essencial, o puro desejo, não é
efeito de uma escolha ou de uma liberdade.”
Todavia, isso não quer dizer que o sujeito não possa vir a responsabilizar-se por
esse desejo que lhe é estranho. Esse é um sentido da famosa expressão de Freud wo Es
war, soll Ich werden. Não é o isso que deve submeter-se à mestria do eu, tal como
pensaram os pós-freudianos, mas antes, o eu deve destituir-se de sua ilusória mestria e
reconhecer-se n’isso que lhe constitui. E isso goza justamente ali onde o eu
encontraria sofrimento, nesse espaço entre duas margens, entre prazer e realidade, os
quais, juntos, se opõem a esse mais além que é o gozo. É essa a posição ética da
psicanálise, e é essa a escolha com a qual se depara o filho, no momento em que propõe
ao pai ocupar o seu lugar. Fazer essa escolha é assumir esse gozo, tão estranho ao
sujeito quanto oposto ao seu prazer, ao seu bem-estar.
Contudo, é justamente por ser estranho, que é inamovível; o sujeito não é capaz
de deliberar, de decidir a respeito de seu modo de gozo, tendo apenas uma escolha a
fazer, uma escolha forçada: ou bem ele se reconhece nesse estranho gozo e pode advir
como sujeito responsável, como alguém que, reconhecendo o real de sua condição, pode
então se mover no mundo de sua maneira única; ou bem ele resiste à assunção desse
gozo, agarrando-se a seu prazer, o que não o impede de encontrar-se constantemente
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com aquele numa topada, na incessante repetição do que lhe parece ser um destino
maligno. O filho retratado no conto, por exemplo, não é capaz de advir como sujeito,
cede de seu desejo, pagando por isso o preço da culpa que lhe é imposta pelo supereu,
frente às exigências pulsionais. Afinal, quando a satisfação exigida pela pulsão não é
alcançada por caminhos mais diretos, a culpa apresenta-se como uma possibilidade de
resolver esse déficit energético. Por meio dessa, satisfaz-se o supereu que, como
sabemos desde Freud (1923/1996), possui, em sua origem mesma, uma íntima relação
com o isso, reservatório das pulsões. É por meio de uma severa moralidade que se
alcança, portanto, por vias tortuosas, uma satisfação sexual exigida pela pulsão, mais
especificamente, uma satisfação masoquista. É dessa satisfação que devemos abdicar na
responsabilização, ao tomarmos uma via mais direta porém, não sem curvas –, uma
via que expressa uma certa retificação do sujeito em relação à pulsão, isto é, uma certa
forma de o sujeito emendar-se com relação àquilo que o move.
Dessa forma, podemos afirmar que a escolha por não ceder de seu desejo
implicaria num encontro com o gozo, numa aproximação deveras próxima com o lugar
do vazio central de das Ding, representado, no conto em questão, pela figura do pai. É
curioso que aqui apareça justo o pai, aquele cuja autoridade, segundo Freud, é
introjetada na constituição do supereu, aquele, portanto, que está na origem da Lei
superegóica, dessa Lei obscena que manda o gozo; o pai, no conto, está no lugar da
causa do desejo que impele o sujeito a encontrar com seu gozo, o que o coloca na
origem tanto da Lei superegóica, quanto do mandamento siderante do desejo.
Por fim, é necessário lembrar que, caso o filho tivesse escolhido por não ceder
de seu desejo, sua sorte não seria livre de um preço. Esse preço, vemos ele ser pago pelo
pai, pago com “uma libra de carne” (LACAN, 1959-60/1997), com o seu próprio gozo.
Exilado da comunidade simbólica, indiferente tanto ao temor quanto à piedade, esse pai
se assemelha ao herói trágico, preso no espaço entre duas mortes, na terceira margem do
rio...
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3.3.2 Antígona: a trágica persistência no desejo
Uma das primeiras observações de Lacan em seu comentário sobre Antígona
no seminário da ética é a de que a tragédia está presente no primeiro plano da
experiência analítica. Pois bem, o que haveria de trágico nessa experiência? Antígona,
nos diz Lacan, nos faz ver o ponto de vista que define o desejo. Consideramos que
quanto a esse ponto de vista, dois aspectos principais que encontramos na tragédia,
em especial, em Antígona. Em primeiro lugar, o que Lacan denominou a segunda
morte. Em segundo, o que os gregos chamavam de Até (LACAN, 1959-60/1997).
A segunda morte fala de uma extinção que atinge não o ser biológico, mas o ser
de linguagem. O homem, enquanto ser de linguagem, deve ser considerado como um
elemento numa cadeia de gerações, como um ser que se constitui no Outro e por
intermédio do Outro, como um ser que não tem existência para-si, e cuja própria
identidade só pode ser definida a partir do Outro.
O interessante problema lógico apresentado por Lacan em O tempo lógico e a
asserção da certeza antecipada (1945/1998) nos deixa muito claro o que significa ter a
própria vida definida, decidida, a partir de uma posição relativa aos outros. Nesse
problema, temos três prisioneiros e uma promessa de liberdade àquele que for capaz de
aceder a um saber sobre si mesmo. Nas costas de cada um desses prisioneiros é colado
um círculo, que pode ser branco ou preto. A tarefa que lhes é passada é a de descobrir a
cor de seu próprio círculo. A informação da qual eles dispõem é a seguinte: seus
círculos serão escolhidos de um total de cinco, dos quais, três são brancos e dois são
pretos. Disso, eles podem facilmente concluir que todos os círculos podem ser brancos,
mas, apenas um ou dois podem ser pretos.
Num primeiro momento, os prisioneiros se observam, esperando que alguém
tome a direção da porta. Pois, se um dos prisioneiros visse nas costas de seus
companheiros dois círculos pretos, ele imediatamente saberia a sua própria cor, o
branco. Dado que isso não acontece, os prisioneiros sabem que pode haver, no
máximo, um círculo preto. De posse de tal saber, nesse segundo momento, um
prisioneiro que visse um círculo preto nas costas de um de seus companheiros, sairia de
pronto, pois se saberia branco. Novamente, nenhum dos prisioneiros se move. O
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terceiro e último momento é o da assunção coletiva da certeza: temos todos círculos
brancos nas costas.
Esse pequeno apólogo nos serve para demonstrar a característica do ser de
linguagem, que pode saber de si ao se referenciar pelos outros. E mais: cada
prisioneiro só chega à conclusão sobre si mesmo por meio da falta de certeza dos outros
– aos três personagens falta o saber que lhe daria a possibilidade de agir em uma certeza
independente, autônoma. Identificados em sua falta de saber, todos os prisioneiros se
vêm portadores da mesma cor.
Antígona, ao persistir no desejo de enterrar seu irmão Polinices com as honras
devidas, o faz por entender que, independentemente de seus atos ou decisões ao longo
da vida, seu irmão é único, insubstituível. Ao caminhar para a tumba, em sua lamúria, a
heroína afirma que não agiria da mesma forma por um filho ou um marido. Pois se
perdesse um filho, poderia ter outro; se perdesse um marido, se casaria novamente. Mas
seu irmão, por ter nascido do mesmo pai e da mesma mãe, agora mortos, por
compartilhar com ela essa origem criminosa e esse destino de maldição, seu irmão é
quem ele é. Não pode haver outro. E Antígona entende que cabe a ela defender essa
unicidade do irmão, que, de todo modo, participa de sua própria unicidade. O que
Antígona defende do capricho de Creonte é algo que está muito além de seu próprio
capricho, algo que diz respeito à sua origem, àqueles que lhe antecederam e fizeram-na
ser quem ela é: o que Antígona defende é a Até familiar.
Lacan não chega a traduzir esse termo grego, mas, por seus comentários,
podemos tentar nos aproximar de seu significado. Quando Antígona aproxima-se da Até
“é em razão de algo que está ligado no caso a um começo e a uma cadeia, a da desgraça
da família dos Labdácias.” (LACAN, 1959-60/1997, p. 319). Antígona está, querendo
ou não e ela sabe bem disso –, inexoravelmente implicada nessa cadeia. A única
escolha que se apresenta a ela é essa escolha forçada de responder desse ponto infeliz a
partir do qual – e unicamente a partir do qual – ela se constituiu. Essa é a sua verdade. E
Antígona não pode desejar outra coisa. Ela não pode desejar o impossível.
Guyomard (1996) nos chama atenção para o fato de que, quando Antígona
argumenta que Polinices é seu irmão e que não pode haver outro, ela também está
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falando sobre sua própria condição. É como se sua argumentação contivesse o
entendimento de que Antígona é a irmã de Polinices e que não pode haver outra.
Portanto, cabe a ela realizar, contra o poder de Creonte, as honras fúnebres de seu
irmão. Ela é a única que está em posição de realizá-las, por mais que isso lhe custe a
vida.
Aliás, o que está em jogo para Antígona, a sua visada, não diz respeito à
manutenção ou perda da vida biológica. Como dissemos, essa tragédia nos apresenta o
domínio da segunda morte, e é precisamente esse domínio que está em questão para a
heroína. O que importa para Antígona não é sua vida em si, mas o valor da mesma. É
como se não valesse a pena manter a vida às custas de seu valor. E esse valor, para
Antígona, está relacionado à Até familiar. Essa questão fica esclarecida desde o primeiro
diálogo da peça, quando a heroína, ao saber que sua irmã, Ismênia, não a ajudará a
enterrar Polinices, lhe diz: “Cuida bem de tua vida que vale, desde já, menos que a
minha.” (SÓFOCLES, 1996, p. 9). O que faz Antígona ao destituir a vida do lugar de
valor primordial? Ela se afasta do âmbito do serviço dos bens. Esse âmbito “não é algo
que diga respeito ao desejo do sujeito, mas ao bem do outro, e para que o bem do outro
seja atendido, é necessário que o sujeito ceda do seu desejo.” (LACAN, 1959-60/1997,
p. 161).
Quem não é capaz de tomar o mesmo caminho é Creonte. Esse governante
pretende, por suas ações, defender o bem de todos e, por isso, acaba por cometer o que
Lacan considera um erro de julgamento. Pois o que Creonte desconhece é que “o bem
não poderá reinar sobre tudo sem que apareça um excesso, de cujas conseqüências fatais
nos adverte a tragédia.” (LACAN, 1959-60/1997, p. 314). Esse excesso é sentido por
Creonte na desgraça à qual sua obstinação o precipita. Por não ser capaz de subtrair-se
ao serviço dos bens, Creonte perde seus dois filhos, sua esposa, sua cidade. Tebas
tomba frente ao inimigo. No final da peça Creonte reconhece ter causado a destruição
por não reconhecer que havia leis antes dele. Essas leis, é Antígona quem as defende;
são as leis de Até, são as leis do desejo.
Ao se afastar do serviço dos bens, Antígona, portanto, não cede de seu desejo.
Uma das definições possíveis do desejo o coloca como pura diferença: o intervalo entre
enunciação e enunciado, esse hiato que nos apresenta a pergunta sobre o que por
70
detrás do dito. Além disso, vimos no segundo capítulo que o objeto causa do desejo é
um objetivo perdido desde/para sempre; o desejo sempre nos remete a uma falta, a uma
incompletude. O que Antígona defende é a falta de sua família, que também é a sua. E
no seu caso, essa falta se apresenta indisfarçadamente como crime.
Não há ninguém para assumir o crime e a validade do crime senão Antígona
(...) Antígona escolhe ser pura e simplesmente a guardiã do ser criminoso
como tal. As coisas certamente poderiam ter tido um término se o corpo
social tivesse aceitado perdoar, esquecer, e cobrir tudo com as mesmas
honras funerárias. É na medida em que a comunidade se recusa a isso que
Antígona deve fazer o sacrifício de seu ser para a manutenção desse ser
essencial que é a Até familiar motivo, eixo verdadeiro em torno do qual
gira toda essa tragédia. (LACAN, 1959-60/1997, p. 343).
O fato de a Até familiar ter uma importância tão central na tragédia nos traz de
volta à questão da determinação do sujeito. Pois esse não pôde escolher a própria
família, não pôde escolher seu nome nem outros significantes que lhe foram destinados
pelo Outro antes mesmo de sua concepção. Como fica, então a questão de sua
responsabilidade?
Uma citação predileta de Freud segundo James Strachey (FREUD,
1917a/1996, p. 357) –, retirada de uma das principais obras de Goethe, Fausto, pode nos
ajudar a compreender melhor a questão de como determinação e responsabilidade se
articulam na tragédia e na psicanálise: aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o
para fazê-lo teu. Se, por um lado, não podemos escolher a herança que nos é legada a
cadeia que nos antecede –, por outro, é necessário uma conquista do sujeito, uma
escolha, uma persistência, para que ele possa tomar essa herança para si, num ato de
responsabilização. É isso que Antígona faz. Essa heroína é capaz de nos mostrar a
visada do desejo, pois ela é aquela que toma para si sua herança de crime e maldição,
quitando com um preço altíssimo, evidentementesua dívida simbólica com o Outro
que a constituiu.
Esse movimento de assunção da Até, realizado por Antígona, é o mesmo que se
espera de um sujeito em análise. E o alto preço pago pela heroína pelo ato de tomar para
si o seu destino é uma indicação de que esse trabalho não é sem sofrimento ou perdas.
Nossa tragédia cotidiana não nos livra de dificultosos percalços no caminho que nos
leva a assumir nossa dívida, a responsabilizarmo-nos por nosso advento na cadeia que
71
nos antecede. Mas uma importante conquista que provém desse difícil trabalho. A
conquista do que é propriamente nosso afazer (LACAN, 1959-60/1997, p. 383);
O que o sujeito conquista na análise (...) é sua própria lei (...). Essa lei é,
primeiramente, sempre aceitação de algo que começou a se articular antes
dele nas gerações precedentes, e que é, propriamente falando, a Até. Essa
Até, não é por não atingir sempre o trágico da Até de Antígona que ela seja
menos parente da desgraça. (LACAN, 1959-60/1997, p. 360).
72
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso realizado em nossa pesquisa desde a análise dos mecanismos
freudianos do inconsciente até a assunção pelo sujeito de sua própria Até, ou seja,
daquilo que, lhe sendo exterior, lhe é mais próprio nos levou ao encontro de novas
questões que não puderam ser abordadas ao longo dessa dissertação. Dessa forma,
nessas considerações finais, em vez de encerrar o assunto com um texto francamente
conclusivo, escolhemos trazer parte dessas novas questões para a discussão. Sendo
assim, retomaremos um tema introduzido no primeiro capítulo, à luz do que foi visto no
capítulo final. Esse tema é o grafo do desejo, cujo estudo consideramos frutífero para
desdobrarmos mais conseqüências para a questão da responsabilidade subjetiva em
psicanálise. Afinal, como vimos anteriormente, aquilo pelo qual o sujeito deve ser
responsável é, principalmente, por não ceder de seu desejo.
Lacan constrói o grafo do desejo em quatro etapas sucessivas. Cada uma, no
entanto, não deve ser abandonada em prol da posterior. De fato, as etapas devem ser
compreendidas em relação às demais. A primeira delas se escreve da seguinte forma:
Nessa “célula elementar do desejo”, temos a representação gráfica da relação
entre significante e significado. Saussure ilustrou essa relação por meio de duas linhas
curvas paralelas, indicando que a progressão linear do significado corre paralelamente à
articulação dos significantes. Esse conceito lingüístico, sabemos que o mesmo foi
subvertido por Lacan, subversão representada graficamente pela célula acima. Nela,
lemos que a significação se dá por meio de um ponto de basta, que é o ponto no qual um
significado é costurado a um significante. Esse encontro estabelece, retroativamente, o
sentido de toda uma cadeia significante, representada pelo vetor S-S’.
O vetor que cruza o eixo da cadeia significante, num movimento retroativo,
representa, como visto anteriormente, uma intenção mítica não simbolizada, real. Como
resultado do entrecruzamento real-simbólico, temos, no canto esquerdo inferior, o
sujeito barrado ($). O que significa que esse sujeito seja barrado? Significa que o ser
(intenção mítica), ao alienar-se no significante ao atravessar a cadeia significante
perde algo de si, algo irrecuperável, mas que, no entanto, não tem outro destino senão o
de ser perdido.
A essa etapa da constituição do sujeito podemos associar o conceito de
alienação, apresentado por Lacan no seminário 11 (1964/1998) e no escrito Posição do
inconsciente (1966/1998). A alienação é uma operação que diz respeito à categoria
lógica da reunião. A essa categoria está relacionado um conectivo da lógica matemática
denominado ou inclusivo. Esse conectivo implica que dadas as proposições p e q, p v q
(p ou q) será verdadeira no caso de p, q ou ambas as proposições serem verdadeiras. A
tabela da verdade nos possibilita observar essa relação de forma mais clara:
p q p v q
V V V
V F V
F V V
F F F
Para exemplificar o que se escreve na tabela acima, suponhamos que p seja
“hoje vou à praia” e q seja “amanhã vou ao cinema”. A sentença p v q representa: “hoje
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vou à praia ou amanhã vou ao cinema.” Tal sentença será considerada verdadeira caso:
a) eu à praia hoje e ao cinema amanhã; b) eu à praia hoje; c) eu ao cinema
amanhã. A única forma de essa sentença ser falsa é caso d) eu o nem à praia hoje,
nem ao cinema amanhã.
O lacaniano vel (ou) da alienação, no entanto, inclui uma complicação a mais
nessa lógica. É que um dos elementos em questão digamos, p –, sempre o mesmo, é
eliminado é falso –, qualquer que seja a escolha a ser feita. Isso implica uma redução
das possibilidades da tabela, já que sabemos que p só pode ser falso:
p q p v q
F V V
F F F
No caso da alienação, portanto, o que resta é saber se q será mantido ou eliminado. No
entanto, ao atentarmo-nos para a terceira coluna da tabela, veremos que a única
possibilidade verdadeira é a que implica a manutenção de q; disso resulta que o vel da
alienação nos coloca diante de uma escolha forçada, na qual a única possibilidade é a
escolha de q. Sigamos, para exemplificar esse caso, o exemplo dado por Lacan
(1964/1998, p. 201): diante de um assalto, a vítima, ao ser interpelada pela injunção a
escolher entre a bolsa ou a vida, encontra-se diante de uma escolha forçada, dada que
sua única possibilidade real é a de escolher a vida, posto que a bolsa está perdida
qualquer que seja sua escolha.
Uma observação importante é a de que no caso do vel da alienação, o que resta,
de qualquer modo, fica desfalcado. A vítima do assalto pode escolher manter sua vida,
mas terá de continuar a vivê-la sem sua bolsa.
Enfim, quanto à constituição do sujeito no significante, o que ocorre nessa
operação pode ser descrito nos moldes do vel da alienação. O sujeito barrado é o
resultado de uma escolha forçada entre o Ser e o sentido, posto que o Ser é perdido
qualquer que seja a escolha. O $ implica, portanto, em um sujeito que perdeu sua
substância, seu Ser, lhe restando apenas um sentido desfalcado, capenga, inconsciente.
Tal situação pode ser ilustrada da seguinte forma:
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Uma última observação quanto à operação de alienação. Escolher o sentido em
detrimento do Ser significa alienar-se ao campo do Outro. Primeiramente, a forma pela
qual o sujeito se aliena no Outro é a petrificação provocada pela identificação a um
significante mestre (S1) que lhe é designado a partir do Outro. Ao se identificar a esse
significante, o sujeito é definido como se estivesse morto, como se lhe faltasse a parte
viva de seu Ser, seu gozo. Essa primeira identificação com um significante mestre
prescinde do significante binário (S2), que representa o sentido. Portanto, “as
identificações básicas não têm sentido nenhum, apenas são. Pode-se explorar os
sentidos que elas têm, mas não se pode negligenciar o fato de que, no final, elas não
fazem sentido.” (LAURENT, 1997, p. 45).
Como saída a essa situação de catatonia simbólica, está a abertura da cadeia
significante em seu deslizamento metonímico infindável. É por isso que podemos
afirmar, seguindo Colette Soler (1997, p. 62), que o destino do sujeito do significante é
uma vacilação entre petrificação e indeterminação. Ou bem o sujeito se fixa em um
significante de não-senso, ou bem ele vaga indeterminado ao longo da cadeia de
significantes, incapaz de estabelecer para si mesmo um sentido derradeiro.
Nessa deriva, o sujeito, em contraposição ao que propunha Aristófanes em O
Banquete, não está em busca de um outro sujeito capaz de lhe completar, capaz de lhe
restituir sua metade perdida graças à fúria dos deuses; o que o sujeito busca, de fato, é a
parte perdida de seu próprio Ser, sua bolsa, da qual teve de abdicar para manter sua vida
sendo que, nesse caso, devemos entender que a vida que o sujeito mantém é a vida
simbólica. A esse resto de ser para sempre perdido graças à constituição linguageira do
sujeito, Lacan deu-lhe a designação de uma letra: o objeto a. Entretanto, podemos
relacionar esse furo da articulação significante que é o objeto a àquilo que
estudamos ao longo do segundo capítulo: das Ding. Temos aqui, novamente, a
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conceituação da Coisa como algo mítico perdido, ejetado, excluído do simbólico desde
o princípio da constituição do sujeito e da realidade.
Ao abordar a petrificação do sujeito em um significante, chegamos à segunda
etapa da constituição do grafo do desejo:
Nessa etapa, vemos o sujeito aparecer, por um efeito de ilusão retroativa, no princípio
do vetor da intenção. Na outra extremidade desse vetor, está I(A), a identificação
simbólica, ou seja, a identificação do sujeito com um traço, com uma insígnia do Outro;
um S1 colhido do campo do Outro. Aqui devemos distinguir a identificação simbólica,
I(A), da identificação imaginária, i (a). Esta última apresenta o eu como autônomo e
constitui, dessa forma, uma maneira de desconhecer sua dependência radical do Outro,
sua alienação. A partir do seminário 5 (1957-58/1999), podemos pensar a identificação
imaginária como a identificação do sujeito ao falo. Essa compreende o eu ideal, “sua
majestade, o bebê” (FREUD, 1914/1996), a ilusão de onipotência que precede,
logicamente, o momento da castração simbólica, efetuada pelo Nome-do-Pai. a
identificação simbólica é o que resta a um sujeito que é barrado, castrado, alienado. Não
podendo mais se identificar ao falo, o sujeito se identificará com algum traço daquele
ponto a partir do qual ele pode ser visto como desejado. O Ideal do eu é o que designa
esse ponto de vista, esse lugar simbólico que resta como referência possível após o
destronamento. Lacan coloca a identificação ao Ideal do eu no nível paterno, pois
“nesse vel, o desapego é maior no que concerne à relação imaginária do que no nível
da relação com a mãe.” (LACAN, 1957-58/1999, p. 235).
77
O que podemos ler a respeito dessa voz que aparece no final do vetor da cadeia
significante? A voz aparece nesse ponto como um resto objetal rejeitado pela operação
de significação; é um objeto excluído do basteamento que, por esse mesmo fato, resta
como uma presença de não-senso, petrificante. Ao considerar tanto a voz quanto a
identificação simbólica, vemos que o que extrapola o circuito do significante remete
sempre a uma condição objetal inerte, opaca. Seria essa a condição do sujeito se não lhe
fosse possível dar um passo além da alienação, um passo que depende de um querer
subjetivo, mas que é despertado pelo encontro com uma inquietante pergunta,
representada na terceira etapa do grafo.
Essa pergunta Che vuoi? –, localizada acima da curva do basteamento
significante, aponta para o abismo entre o enunciado e a enunciação, explícito na
seguinte pergunta: “você está me dizendo isso, mas o que você realmente quer dizer
com isso, para além do que você efetivamente me diz?”. É justamente no nível dessa
pergunta que vemos surgir o d do desejo no grafo. Ele se apresenta como um querer
outro, que se faz ouvir por meio da demanda, mas que não se confunde com a mesma. É
um eco da demanda que, ao correr por detrás da mesma, aponta para sua infinitude.
Toda demanda é infinita, pois, para além do que ela manifesta exigir, uma exigência
outra, indecifrável e insaciável. O sujeito, confrontado com a questão sobre o desejo, é
incapaz de encontrar uma resposta definitiva no campo do Outro; em outros termos, é
por meio da questão Che vuoi? que o sujeito se depara com a falta de um significante no
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Outro, com a ausência de um significante derradeiro que seja capaz de calar essa mesma
questão.
Contra o vazio manifesto por Che vuoi?, o sujeito possui um anteparo. Após ser
jogado na indeterminação pela incapacidade de encontrar um significante derradeiro, o
sujeito passa por um eclipse. O correlato desse fading subjetivo é o advento de um
peculiar objeto: ao tentar responder a pergunta sobre o desejo do Outro, o sujeito
apresenta a si mesmo como o objeto desejado, e o faz por meio da fantasia ($ ◊ a).
A fantasia funciona como uma construção, uma trama imaginária que
preenche o vazio, a abertura deixada pelo desejo do Outro: ao nos dar uma
resposta clara à pergunta “que quer o Outro?”, ela nos permite escapar da
situação insuportável e sem saída em que o Outro quer algo de nós, mas na
qual, ao mesmo tempo, somos incapazes de traduzir esse desejo do Outro
numa interpelação positiva, numa missão com que possamos nos identificar.
(ZIZEK, 1992, p. 112).
A fantasia, portanto, ao dar uma resposta à Che vuoi?, protege o sujeito do
enfrentamento da falta no Outro. Mas essa não é sua única função. A fantasia é o que dá
ao sujeito as coordenadas de seu desejo, as condições nas quais lhe é dado desejar. Esse
estabelecimento de condições específicas tem a função de domesticar o gozo, de lhe
fornecer uma trilha, um canal pelo qual lhe é permitido escorrer sem grandes
perturbações. Na ausência da tela da fantasia, portanto, somos levados a enfrentar o
desejo do Outro em seu enigma desconcertante, sem qualquer coordenada que nos
permita desvendar a sua questão.
ainda uma outra artimanha que permite ao sujeito fugir desse enfrentamento:
a culpa. Essa, como vimos anteriormente, se faz presente por meio do sintoma e
representa uma tentativa de substituir uma impossibilidade estrutural inerente ao Outro
por uma impotência contingente do eu.
Assim, essa imputação de culpa feita ao eu tem por efeito salvar o Outro, ao
afirmar que ele é inocente (...): que o Outro possa ser inconsistente, falho
quanto ao saber, remete a um horror supremo que o eu, para preservar sua
consistência, prefere velar, fazendo-se a causa de uma falha no saber. Assim,
a culpa é o meio que o eu escolhe para não ter que encontrar a angústia que
haveria em reconhecera existência de um furo no Outro. (DIDIER-WEILL,
1997, p. 219).
79
Contudo, não podemos afirmar que o desvelamento do desejo do Outro seja de
todo traumático. Pois essa dimensão do desejo é a condição para que uma segunda
operação logicamente posterior à alienação de constituição do sujeito seja possível.
O Outro implicado na separação diferentemente daquele da alienação não é o Outro
como tesouro dos significantes, mas o Outro ao qual falta alguma coisa.
A separação é uma operação definida a partir de uma modificação da função
lógica da interseção. Dados os conjuntos A e B, essa função, como sabemos, representa
os elementos que pertencem tanto a A quanto a B, como podemos observar no esquema
abaixo:
A B
No caso da separação, o espaço destacado da figura o pertence nem a A, nem a B. É
um espaço no qual há o recobrimento de duas faltas – sendo A o sujeito e B, o outro –: a
falta do sujeito e a falta do Outro. A falta do sujeito remete à parte perdida de seu Ser,
em decorrência da operação de alienação. A falta do Outro é a falta desvelada pelo
desejo do Outro. Portanto, na separação, “o sujeito reencontra no desejo do Outro sua
equivalência ao que ele é como sujeito do inconsciente.” (LACAN, 1966/1998, p. 857).
Lacan (1966/1998, p. 857) realiza um jogo de palavras, ao afirmar que o vel da
alienação retorna como o velle (querer) da separação. Pois, enquanto a alienação é o
destino de todo ser de linguagem, a separação é tributária de um querer do sujeito.
Nesse ponto, vemos mais um elemento para a nossa compreensão da responsabilidade
na psicanálise. Entendemos que a passagem pela operação de separação, isto é, o
enfrentamento, o não ceder do desejo do Outro como equivalente ao próprio ser cindido
do sujeito é uma etapa ao qual o sujeito em análise é levado, a partir da questão o que
sou eu no desejo do Outro? Segundo Colette Soler, a psicanálise é o processo de
resposta a essa questão. No fim, Lacan diz que o sujeito pode saber o que ele é no
desejo do Outro, sem esquecer que o desejo do Outro é o seu próprio desejo” (SOLER,
1997, p. 65).
80
A responsabilidade, no caso das operações de constituição do sujeito – alienação
e separação –, apareceria como o correlato de uma perda. O sujeito, não encontrando
um significante no Outro que justifique sua existência, precisa saber fazer com sua
inconsistência, com sua falta. O homem, não possuindo uma programação inata que dê,
de partida, as coordenadas de seu desejo, precisa proceder à construção de sua fantasia.
O sujeito em psicanálise, desamparado de qualquer auxílio, seja divino ou genético,
precisa responder pela perda de gozo que o afeta ao ingressar na linguagem, precisa
responder pelo seu modo de gozar, isto é, de tirar satisfação dos significantes que lhe
afetam e que o petrificam.
Com isso chegamos ao grafo completo, o qual apresenta como novidade o vetor
do gozo, situado acima do vetor da cadeia significante. A pergunta Che vuoi? foi
metabolizada pela fantasia ($ a), que aparece no mesmo nível do desejo, regulando-o,
de maneira homóloga à qual o eu (m) é regulado pela imagem do outro, i (a), exceto que
essa segunda relação continua a ser marcada pela inversão que aponta para os
desconhecimentos caracterizados pela ilusão retroativa que encara o eu como
possuindo uma existência autônoma, anterior à imagem do outro.
A questão levantada por esse segundo nível do grafo é a de saber o que acontece
no entrecruzamento do campo da ordem do significante – o Outro – com o gozo. Vemos
o resultado na segunda extremidade desse vetor: a castração. Esse é o resultado da
incidência da linguagem no Ser do sujeito. Como vimos, o sujeito linguageiro perde
81
uma parte de si no momento de sua constituição. O que resta do corpo do sujeito, vemos
representado em $ D, a fórmula da pulsão. D, demanda simbólica, representa as zonas
erógenas que constituem o corpo do sujeito, $, um corpo que, graças à incidência
significante, não é mais determinado pela fisiologia.
Para Colette Soler (1997, p. 65), a resposta à questão o que é o sujeito para além
do significante? é a pulsão. Essa é a resposta à questão inefável do sujeito, dado que as
pulsões são silenciosas. “As pulsões não falam porque se satisfazem silenciosamente na
ação.” (SOLER, 1997, p. 66). E essa ação é realizada em uma temporalidade peculiar. O
tempo da satisfação pulsional não corresponde nem ao cronológico, nem ao tempo da
retroação significante. É o instante. Um acontecimento pontual que opera como um
corte na continuidade do tempo significativo.
Esse tempo do instante, supomos que ele é o mesmo que o da responsabilidade
subjetiva. O sujeito só pode convocar a responsabilidade para si mesmo em ato. A
responsabilização não pode ser o resultado de uma longa meditação como em Descartes.
Muito menos pode ser algo que lhe é imputado a partir do Outro. A responsabilização se
no exato momento em que o sujeito tem diante de si a possibilidade de tomar para si
o seu insensato destino, sem perder-se em rodeios e procrastinações, sem interrogar-se
sobre o sentido do que lhe acomete. A responsabilidade em psicanálise aparece quando
o sujeito toma para si uma missão que lhe ultrapassa, dado que ele pode cumpri-la ao
se deparar com sua falta-a-ser, com sua inconsistência, com uma existência não
justificada pelo Outro.
82
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