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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Psicologia
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica
A Violência Pulsional Atuada Na Ópera
Gisele de Araújo Abrantes
2008
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U
FR
J
A Violência Pulsional Atuada Na Ópera
Gisele de Araújo Abrantes
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
s-graduação em Teoria Psicanatica, Instituto de
Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Teoria Psicanalítica.
Orientadora: Marta Rezende Cardoso
Rio de Janeiro
Fevereiro/2008
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A Violência Pulsional Atuada Na Ópera
Gisele de Araújo Abrantes
Orientadora: Marta Rezende Cardoso
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
parte dos requisitos à obtenção dotulo de Mestre em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por:
_____________________________
Profa. Dra. Marta Rezende Cardoso
_____________________________
Profa. Dra. Giselle Falbo Kosovski
_____________________________
Profa. Dra. Marisa Schargel Maia
Rio de Janeiro
Fevereiro/2008
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Abrantes, Gisele de Araujo
A violência pulsional atuada na ópera.
Gisele de Araújo Abrantes. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2008
91 f. ; 29,7 cm
Orientadora: Marta Rezende Cardoso
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanatica, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 89-91.
1. Paixão. 2. Trauma. 3. Ópera. 4. Psicanálise. 5. Dissertação
(Mestrado). I. Cardoso, Marta Rezende. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-graduação
em Teoria Psicanalítica. III.tulo.
5
A Sonia, Candido e Alessi
6
Agradecimentos
A Deus, que me deu a força necessária para essa caminhada.
À CAPES, pela bolsa de estudos que tornou esta pesquisa viável.
A Professora Marta Rezende Cardoso, pela orientação primorosa e pela paciência que
teve para comigo.
Aos professores Joel Birman, Isabel Fortes e Regina Herzog, pelas contribuições feitas
através de suas aulas.
Às colegas Bianca, Lilia, Camila, Aline e Eliana, pelo apoio.
À minha família, especialmente meus pais, Sonia e Candido, minha tia Claudete e
minha avó Judith pelo incentivo, apoio e paciência.
Ao meu namorado Alessi, pela compreensão, apoio e companheirismo que demonstrou
durante este período.
A Louise, Gisela, Melissa, Cristiano e Rodrigo (in memoriam), pela compreensão e
incentivo.
A Marli e José Cesari, pelo apoio dispensado.
A Mônica Santana, pela grande ajuda, sem a qual não teria conseguido.
A Willa Soanne, minha professora de canto, que me iniciou no estudo da ópera.
A Pedro Henrique Bernardes Rondon, pela revisão atenta.
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D. José – Então, eu terei perdido a salvação da minha alma
para que tu, infame!,
vás rir de mim entre os braços dele?
o, Carmen, tu não irás!
É a mim que seguirás.
Carmen – Não, não, nunca!
D. José – Estou cansado de te fazer ameaças!
Carmen – Pois então me mata de uma vez,
ou deixa-me passar!
Bizet, G., Meilhac, H. & Halévy, L.
Carmen
, Ato IV, Duo final.
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Resumo
A VIOLÊNCIA PULSIONAL ATUADA NA ÓPERA
Gisele de Araújo Abrantes
Orientadora: Marta Rezende Cardoso
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Teoria Psicanalítica.
Esta pesquisa busca explorar, a partir de um referencial psicanalítico, a questão
da violência pulsional conforme é atuada na ópera. Isto se dá especialmente através do
aspecto trágico presente nesse gênero de arte e que, no plano inter-relacional se expressa
pela passividade que caracteriza as personagens e sua agonia. A análise desta questão
convoca uma investigação da noção de paixão, visando apreender, do ponto de vista
intrapsíquico, a questão do trauma, do excesso pulsional.
O estudo do tema da paixão vem possibilitar a exploração de um modo de
relação em que o outro é colocado como objeto absoluto, encontrando-se o indivíduo
em posição de passividade. Do ponto de vista intrapsíquico, isto pressupõe um ego em
posição de servidão ante um outro interno – ego passivo, portanto, diante da força
pulsional. O estudo deste aspecto, por sua vez, demanda uma análise sobre a questão do
trauma, visando a compreensão da presença de elementos disruptivos e inomináveis na
ópera.
Esta dimensão inominável é transmitida nesta forma de arte, preferencialmente
pela via sonora, através da música. O presente trabalho volta-se, então, para o que
9
estaria na base da comunicação musical, a saber, as trocas sonoras existentes entre mãe
e bebê em uma fase primitiva da vida do sujeito, fase em que este não seria ainda capaz
de compreender o que é dito, mas que já se ateria às entonações de voz, que constituem
um tipo de comunicação sem palavras, uma espécie de “sonata materna”.
Palavras-chaves:
Paixão – Trauma – ÓperaPsicanálise – Dissertação (Mestrado)
Rio de Janeiro
Fevereiro/2008
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Abstract
DRIVE VIOLENCE ENACTED IN THE OPERA
Gisele de Araujo Abrantes
Tutor: Marta Rezende Cardoso
Abstract of the Dissertation presented to the Post-graduation Programme of
Psychoanalytic Theory, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, as a part of the requisite for obtaining the Master's Degree in
Psychoanalytic Theory.
On psychoanalytic grounds, this research aims at studying the issue of drive
violence as enacted in the opera. Such enactment occurs specially through the tragic
feature of this kind of art and, in the interrelational plan, is expressed in the passiveness
that distinguishes the operatic characters and their affliction. The analysis of this issue
summons up an investigation of the notion of passion, aiming at grasping the issue of
trauma, of the drive excess, from an intrapsychic standpoint.
The study of the theme of passion enables the exploration of a way of relation in
which the other is placed as an absolute object, and the subject is set in a position of
passiveness. In an intrapsychic perspective, this presupposes an ego in a position of
bondage before an internal other – therefore, a passive ego in front of drive’s power.
The study of this feature in turn requires an analysis of the issue of trauma, aiming at
understanding the presence, in the opera, of innominable disruptive elements.
In this form of art that innominable dimension is preferentially conveyed
through the sound, through the music. This dissertation then turns to what lies in the
basis of musical communication, namely, the sound exchanges between mothers and
their babies, in an early phase of the subject’s life. In such phase the subject wouldn’t
yet be able to understand what is said, but would already be attentive to the varying
11
tones of the voice, which constitute a kind of communication without words, a kind of
“motherly sonata”.
Keywords: PassionTrauma – Opera – Psychoanalysis – Dissertation (Master’s
grade)
Rio de Janeiro
February/2008
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Sumário
Introdução................................................................................................................... 13
Capítulo I
A paio e a ópera ...................................................................................................... 19
I.1 – Sobre a ópera .................................................................................................. 20
I.1.1 Um pouco de hisria .................................................................................. 23
I.1.2 A ópera como cena privilegiada da paixão................................................... 26
I.2 – Sobre a paixão................................................................................................. 30
I.2.1 A paixão amorosa........................................................................................ 32
I.3 – A noção de paio em Freud ........................................................................... 33
I.3.1Sobre o narcisismo ...................................................................................34
I.3.2 – Libido do ego x libido do objeto............................................................... 35
I.3.3 – A idealização............................................................................................ 36
I.3.4 – A idealização encenada na ópera – alguns exemplos................................. 38
I.3.5 – O objeto da paixão como objeto da necessidade........................................ 39
CAPÍTULO II
Sobre o traumático e o intraduzível ............................................................................. 46
II.1Trauma e excesso pulsional em Freud............................................................ 46
II.2 – A segunda teoria do trauma............................................................................ 48
II.3 – Uma teoria do trauma marcada pela alteridade: a contribuição de Jean
Laplanche ...............................................................................................................51
II.4 - As marcas traumáticas....................................................................................53
II.5 – A arte como saída para a violência psíquica ................................................... 54
II.6 - A relação entre a escritura psíquica e a arte.....................................................60
II.6.1 - Da impressão das marcas traumáticas ...................................................... 62
II.6.2 – A fantásticaquina de escritura de Freud .............................................63
II.7 – A arte como arquivo ...................................................................................... 65
Catulo III
O dueto inicial eu-outro e suas implicações na ópera................................................... 69
III.1 – O Eu-Pele..................................................................................................... 72
III.2 – O envelope sonoro........................................................................................ 75
III.3 – A voz da mãe: asonata materna ................................................................78
III.3.1 - Asonata materna” na base da entrada do bebê na linguagem verbal...... 80
III.3.2 - Asonata materna” como traumática...................................................... 81
Conclusão ................................................................................................................... 85
Referências Bibliográficas .......................................................................................... 89
Introdução
“In bocca al Lupo!
1
Dentre os diversos gêneros de arte, a ópera é um dos que mais nos chamam a
atenção. Seja pela grandiosidade dos espetáculos produzidos, que nos oferecem a uno
de formas diferentes de arte, como a música e as artes cênicas, por exemplo, seja pelo
destaque que os cantores, que também são artistas, alcançam, devido à técnica utilizada
para dar conta das melodias com suas notas que são consideradas impossíveis de atingir,
e só com o desenvolvimento praticamente contínuo da técnica vocal se pode alcançar.
Porém, apesar de todas essas características que dizem respeito a sua parte técnica,
haveria ainda mais uma que faria a ópera se destacar dos demaisneros de arte e se
colocar em um lugar específico no ideário popular, e isto diz respeito ao que aqui
podemos nomear de seu aspecto trágico.
Esta relação ópera-trágico parece encontrar suas bases no fato de que a maioria
dos enredos de ópera dá conta de esrias marcadas pelo sofrimento do sujeito e por sua
passividade. Tomamos aqui a passividade como uma abertura ao externo, que se ime
ao sujeito de maneira abrupta, violenta, e que por isso coloca-o em uma situação à qual
é incapaz de oferecer resposta, o que lhe causa sofrimento. Na ópera, somos
apresentados a esse aspecto trágico através de estórias de amores impossíveis, ciúmes
devoradores, ódios implacáveis, invejas avassaladoras, queses de Estado ou de honra
que não são resolvidas. Deparamo-nos assim com a insistência de um estado de agonia
da personagem pelos mais variados motivos, como a morte, convenções sociais, ou
fatalidades do destino, por exemplo. Assim sendo, a persistência desses enredos
terminou por agregar este aspecto trágico à concepção que se tem sobre esse gênero de
arte, a ponto de ser comum nos depararmos com a iia de que não devemos esperar
finais felizes nas óperas.
Uma das formas como esse aspecto trágico se apresenta na ópera, é a expressão
do trágico nos relacionamentos amorosos. Estes nos são apresentados como
caracterizados pela idealização exacerbada do objeto, pela necessidade imperiosa de que
1
“Na boca do lobo”, saudação para desejar sorte usada pelos cantores de ópera.
14
este esteja junto ao sujeito-personagem como condição sine qua non para sua felicidade,
mas que justamente surge em uma situação contrária, em que a ausência de
reciprocidade das demandas termina por colocar o sujeito em uma situação
caracterizada pela impossibilidade radical de satisfação e pela agonia que lhe ime.
Ora, a hipótese que podemos traçar, a partir dessa observação, é que na ópera, não
estaríamos diante da representação de um amor que visa à união conjugal do par, que
poderíamos caracterizar pela reciprocidade, mas diante de uma forma de relação que se
contrapõe a isso, e que podemos articular à noção de paixão, em especial, em sua
vertente amorosa, ou seja, que toma o eu de um outro como objeto (Aulagnier, 1985).
Este objeto superidealizado, que se coloca, de certa forma, como da ordem da
“necessidade”, termina por apontar, no mundo interno, a presença de um excesso
pulsional que impõe ao ego este modo de funcionamento, buscando sempre mais do
mesmo, em uma espécie de eternização compulsiva do desejo, ou melhor, eternização
paradoxal da impossibilidade de sua realização. A ópera parece apresentar esta
situação de forma primorosa.
No entanto, a observação mais atenta de todo este panorama nos leva a pensar
sobre a relação desses aspectos presentes na ópera, ao que é proposto por Freud em
“Mal-Estar na Civilização” (1930 [1929]) a respeito do que seria a função da obra de
arte. Para ele, além da fruição do belo, a obra de arte diria respeito a satisfações
substitutivas, das quais poderíamos extrair luz de nossas próprias desgraças. No entanto,
a ópera parece ultrapassar isso. Nela, apesar de toda a elaboração, favorecida pela
técnica do artista, o que se configuraria diante do público, em última instância, seria
justamente o que a arte tem por função substituir – a desgraça, o sofrimento, o
desespero dos personagens. Desta forma, para além (ou antes, ao invés) da satisfação,
encontraríamos uma certa consternação que toma conta do público, uma sensação de
estranho, no sentido de Unheimlich, conforme proposta por Freud em 1919. A partir
dessas observações, extraímos uma série de perguntas: Por que expressar o extremo
sofrimento através do que deveria nos oferecer o contrário, ou seja, o prazer por meio da
fruição do belo? Ampliando este campo, por que utilizar preferencialmente o campo dos
relacionamentos amorosos, mais especificamente, a paixão, como meio para expressar a
agonia? Seria, na ópera, apenas através do enredo que essa violência seria transmitida,
15
ou haveria um outro meio para isso, de caráter menos consciente, que não pudesse ser
nomeado?
Também podemos indicar como marcada pelo aspecto do inomivel a própria
forma como de maneira abrupta, inesperada, e por isso mesmo violenta, esse aspecto do
sofrimento assola a audiência e os próprios cantores quando de sua atuação. Essa
característica muitas vezes nos é passada apenas pelo som, pelo canto, que nos transmite
a agonia vivida pelo personagem como se fosse um lamento, ou um grito de fúria,
independentemente de que compreendamos o texto que é dito. Como se de alguma
forma conseguíssemos identificar naquele som o sentimento a ser passado, em uma
espécie de comunicação sem palavras. E que vem a reforçar ainda mais o caráter de
inquietante estranheza presente nesse profundo e insustentável sofrimento da
personagem, com que o cantor termina por se identificar a fim de lhe dar vida, e com
que o público se identifica também.
A arte vocal tem como característica a possibilidade de expressão emocional
praticamente direta, favorecendo a manifestação de emoções quase que “em estado
bruto”, sem qualquer mediação de instrumento musical além do aparelho fonador do
cantor. A única mediação aí é a necessidade de desenvolver apurada técnica,
indispensável para que a voz alcance as notas consideradas praticamente impossíveis, de
que se valem os compositores para expressar os excessos emocionais. Essas
particularidades abrem caminho para a utilização das histórias trágicas que formam os
libretos das óperas.
A vivência que temos não só como audiência, mas também como cantora lírica,
permite-nos um contato mais próximo com este aspecto que nomeamos como violento
na ópera, por diferentes ângulos, permitindo traçar essas observações a respeito dele e
da forma como se apresenta preferencialmente na ópera, a saber, na forma de paixão.
Além disso, permite-nos observar que, dado o fato de perpassar a ópera, indo da obra
em direção ao público, passando pelos artistas, esta paixão deve estar presente desde a
sua origem na inspiração do compositor. Supondo a presença de um registro mais
primitivo nesse aspecto violento, próprio ao pulsional, e que diria respeito ao universo
psíquico do artista/compositor, recorremos em nossa pesquisa à psicanálise, pois
acreditamos que através desse referencial teórico possamos dar conta de estudar essa
16
dimensão de violência e o modo como se articula à questão do excesso pulsional que
impulsiona a criação artística.
No entanto, cabe ressaltar que nossa apreciação sobre os mecanismos envolvidos
na criação da obra de arte não segue apenas a via da sublimação, mas considera que
deve haver algo para além desta. Assim, privilegiaremos o estudo do que acreditamos
ser essa outra via de se pensar a criação artística, contemplando os aspectos disruptivos
que se encontrariam presentes nesse processo de criação e na obra resultante.
Verificaremos a importância do outro para que esse trauma se coloque ao sujeito, e dê
início a uma saída, a uma elaboração possível através da obra de arte, em especial, a
ópera.
No entanto, cabe ainda ressaltar que desenvolver esta pesquisa por este caminho
não se mostra como tarefa fácil. Muitos são os textos que falam a respeito da criação
artística, porém o fazem, em sua grande maioria, pela temática da sublimação, que não
constitui, no entanto, o foco de nossa pesquisa. Buscamos autores, tais como
Guillaumin, por exemplo, que privilegiam este aspecto violento presente na obra de
arte. Outra dificuldade se deve ao fato de pouco material ser encontrado a respeito da
temática da ópera sob uma abordagem psicanalítica. Baseamos nosso trabalho nas
proposições de poucos psicanalistas que se ocupam desta temática, como Jean Michel
Vivès e Marie-France Castarède. Esta última, psicanalista e cantora lírica, com ampla
pesquisa voltada para a temática da voz e do canto, considerando especialmente o canto
rico e a ópera, apoiada por André Green e Didier Anzieu, terminou por servir de guia
em nossa caminhada.
Ainda assim, apesar de contar com tão precioso auxílio, devemos admitir que
desenvolver esta pesquisa pelo prisma da psicanálise foi fazer um percurso por um
campo que ainda tem muito por desbravar, e que terminará por deixar ainda territórios
inexplorados, cabendo-nos mais levantar questões e vias possíveis de exploração, do
que encontrar respostas. Tendo em vista essas considerações, privilegiamos aspectos
importantes da teoria, como por exemplo, a noção de paixão, o trauma, e o papel do
outro, especialmente no que concerne ao início da vida psíquica.
A fim de darmos conta desse objetivo, essa investigação se inicia em nosso
primeiro capítulo, a partir de um estudo histórico sobre a ópera. Considerando sua
origem na Itália renascentista, influenciada pela tentativa de retomar formas da tradia
17
grega, verificamos haver nesse gênero, desde seu início, a presença do trágico. Este
aspecto é aqui articulado ao caráter de sofrimento, o pathos grego, que remete a um
acontecimento diante do qual o sujeito encontra-se passivo, sem possibilidade de reação
ante o inesperado. A partir disso, passamos ao estudo da forma como esse aspecto se
apresenta ao público através de uma faceta comum a muitas dessas obras – a paixão.
Ressaltamos aqui uma forma da paixão em especial – a paixão amorosa.
Fazendo uso dos apontamentos feitos por Freud a respeito do tema, bem como
os de autores como Maria Helena Barros e Silva e Piera Aulagnier, fazemos um estudo
do tema da paixão que termina por nos guiar à questão de um modo de relação em que o
outro é colocado como objeto da ordem da “necessidade”, encontrando-se o sujeito em
posição de passividade, o que pressupõe, no plano do funcionamento intrapsíquico, um
ego em posição de servidão diante de um outro interno: um ego passivo diante do
excesso pulsional.
No segundo capítulo, tendo feito o recorte para estudar a forma como o
trágico apareceria na ópera, a saber, a paixão, bem como para pensar em que esta
consiste, avançaremos nossa pesquisa em direção ao estudo da vioncia psíquica. Uma
vez que este objeto da paixão expõe o sujeito a uma situação de servidão, nos
deparamos com a própria situação de passividade radical ante o outro, permitindo-nos
articular essa passividade ao fenômeno do traumático.
Com base nas idéias de Guillaumin, Cattapan e Laplanche, avançamos em um
estudo de como este aspecto de passividade e abertura ao outro se encontraria na base
da criação artística. Pensamos o artista como caracterizado no seu mundo interno por
essa passividade egóica, sob a forma de uma abertura maior ao que se colocaria como
vindo do exterior, vindo dooutro”, e que o tomaria de assalto como algo que ele não
teria recursos para elaborar, ligar, em temos de trabalho psíquico. Essa incapacidade de
ligação nos permite uma articulação com o traumático, em especial como excesso
pulsional: diante da violenta irrupção pulsional, o ego é incapaz de ligar ou de recalcar
esse excesso intraduzível e, para dominá-lo, só pode mesmo tentar exteriorizá-lo, na
criação da obra de arte. Conseqüentemente, através da arte, o artista terminaria por
passar para o público conteúdos desconhecidos de si mesmo, como em uma mensagem
enigmática (Laplanche, 1992).
18
No terceiro capítulo, após considerarmos estes aspectos, passaremos ao estudo
da forma privilegiada através da qual este aspecto inominável seria transmitido através
da ópera. Voltaremos, assim, nossos olhos para a investigação do que estaria na base da
comunicação musical, a saber, as trocas sonoras existentes entre mãe e bebê em uma
fase bastante primitiva da vida do sujeito, fase em que este não seria ainda capaz de
compreender o que é dito, mas que já se atém às entonações de voz, que se constituem
como um tipo de comunicação sem palavras, uma espécie de sonata materna”.
Visamos, com isso, contemplar a importância do outro nessa fase inicial da vida, não
apenas para a constituição do eu, como também na imposição de mensagens que
permanecem pulsantes em seu psiquismo, e que acreditamos que podem dar origem à
experiência de criação e fruição da música.
Após desenvolvermos este percurso, acreditamos ter podido clarificar várias
questões a respeito dos mecanismos psíquicos envolvidos na criação artística que
permitiriam a transmissão da violência psíquica através da ópera, verificando como esta
se revela como uma via privilegiada para essa transmissão.
Capítulo I
A paixão e a ópera
A maioria dos estudos sobre a arte em psicanálise contempla o tema pelo prisma
da sublimação, que é exposta por Freud como o quarto destino da pulsão. Neste, tanto o
objeto quanto o objetivo da pulsão seriam modificados, fazendo com que aquilo que
originalmente era uma pulsão sexual encontre satisfação em alguma realização que não
seja mais sexual, mas de valoração social ou ética superior (FREUD, 1923
[1922]/1996). Partindo deste princípio, poderíamos dizer que uma observação mais
atenta sobre o conteúdo das obras de arte nos levaria a encontrar, em última instância,
nossas pulsões sexuais que, desviadas de suas metas, passariam a não mais ser sexuais
mas que, a despeito disso, estariam psiquicamente ainda relacionadas a esse conteúdo
sexual. Assim, aquilo que era do campo da intensidade das pulsões contribuiria para a
origem da beleza das obras de arte.
Dentro desse quadro, poderíamos propor que o trabalho de sublimação diria
respeito a Eros, guardião da vida, uma força unificadora e apaziguadora. Porém, o que
percebemos é que não somente dos componentes sexuais sublimados é composta uma
obra de arte. A observação de determinadas formas de arte coloca-nos diante da questão
da vioncia, do não-ligado, do estranho, no sentido de Unheimlich. A contemplação
daquela obra não nos levaria à fruição da beleza e do prazer, mas ao contrário, nos
exporia à dimensão do trágico, daquilo diante do qual nos encontraríamos impotentes.
Uma dessas formas de arte, que parece trazer em si já como uma espécie de
marca registrada, essa questão da violência e do trágico, é a ópera. Ela nos apresenta,
desde seus primórdios, o sofrimento humano pelos mais diversos motivos, tratando
sempre do caráter inesperado, sobre o qual o sujeito/personagem não teria qualquer
condição de domínio, e seria assim arrebatado pelos acontecimentos, levado às mais
extremas circunstâncias por conta disso.
Chama-nos a atenção o fato de esses personagens serem apresentados, na grande
maioria das vezes, em situação de extremo desespero, geralmente causado por um
sofrimento de ordem amorosa. Questionamo-nos se, nesses casos, estaria em jogo, na
criação dessas obras, apenas o pulsional em sua parcela erótica. Não poderíamos
20
perceber aí algum indício de uma presença de Tanatos, em seu aspecto disruptivo, seja
no que nos é apresentado, seja, de alguma forma, motivando esta criação?
Tendo em vista estes questionamentos, este capítulo tem por objetivo expor o
que estaria em jogo na criação artística, a fim de averiguarmos qual seria o papel do
disruptivo neste processo, e de que maneira ele conseguiria ser transposto para a obra de
arte.
I.1 – Sobre a ópera
A ópera é umnero artístico que consiste em um drama encenado com música.
Seu nome provém do latim Opus, que significa obra de arte. O plural de opus é ópera,
sendo utilizado para dar conta desse gênero que apresenta componentes derias
formas de arte. Jorge Coli nos diz que: “ela [a ópera] implica num cruzamento intricado
de várias formas artísticas, subordinadas à criação musical, que domina o conjunto”
(COLI, 2003, p.10)
Desta maneira, temos um drama que é apresentado utilizando elementos típicos
do teatro, da literatura e da música. Dos elementos típicos ao teatro, a ópera se apropria
da cenografia, do figurino e da atuação. Não podemos nos esquecer que a ópera é um
espetáculo encenado em um teatro, por atores que também são cantores e que devem
imprimir, através de seus corpos, bem como da entonação de sua voz, a emoção que se
visa passar através daquela cena. Esta cena é escrita no que chamamos libreto, que
vem a ser a contribuição da literatura para a ópera. Quando da concepção da ópera, o
compositor, geralmente com um argumento já em mente, procura um poeta que escreva
os versos que serão cantados pelos cantores. Esses versos devem dar conta desse
argumento, narrar os sentimentos dos personagens diante de determinadas situações,
mostrar o que ocorreu em seu passado e o que pretende fazer no futuro. No entanto, o
libreto, a letra da ópera, é cantado em lugar de ser falado, e desta forma, há aqui mais
uma exigência. Os versos cantados pelo personagem devem transmitir o que o
compositor pretende expressar através daquela parte sonora.
Encontramos assim, o aspecto musical da ópera. Como dissemos acima, temos
que, na ópera, os “atores” do drama também são cantores, e se exprimem na maior parte
do tempo cantando, salvo as passagens em recitativo. Em ambos os momentos (de canto
ou recitativo) estes são acompanhados por uma orquestra, que não só oferece uma
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melodia de fundo para o canto ou recitativo, mas também, uma espécie de moldura para
a entonação do artista, para a emoção que ele visa passar.
Na ópera, a música, em especial o canto, assume posição de máxima
importância, porque é através do canto que nos é narrado o drama. Marie France
Castarède, psicanalista e autora sobre diversos livros nos quais trabalha a questão da
ópera por um prisma psicanatico, em Vocalises de la Passion (2002), nos fala a
respeito da linguagem própria à ópera, que ela chama de linguagem performática.
Segundo a autora, esta linguagem visaria à expressão da realidade afetiva. Assim, no
teatro, teríamos uma linguagem que visa passar ao público iias, palavras através dos
quais ele possa compreender o que se passa em cena, através do diálogo entre os
personagens. Na ópera, isto seria diferente, pois não se defenderiam mais as idéias, mas
sim, a troca de emoções.
A música favoreceria, deveras, essa troca de emoções, uma vez que remeteria à
forma primeira de comunicação sonora, na qual a palavra pode não ser compreendida,
mas as suas entonações já vêm repletas de conteúdos inconscientes que a mãe passa
para o filho. Assim, a linguagem musical estaria relacionada a toda essa troca sonora
afetiva do início da vida. Assim talvez possamos compreender melhor a afirmação de
Richard Wagner:
“O que pode exprimir a língua musical é feito unicamente de sentimentos e de
expressões: ela exprime sobretudo em uma plenitude absoluta o contdo sentimental que a
língua humana desprendida de nossa língua verbal, que se torna um simples órgão de
entendimento . Essa música que eu tenho intimamente em mim, na qual eu me exprimo em uma
língua materna” (WAGNER, R. apud CASTARÈDE, 2002, p. 46. As traduções de todas as
citações desta autora, são nossas).
A respeito da importância que a música e especialmente o canto assumem na
ópera – ponto de extrema importância sobre o qual teremos a oportunidade de falar mais
adiante nesta pesquisa podemos dizer que provém das primeiras trocas sonoras com a
mãe, especialmente no que diz respeito às entonações da voz dela. Podemos propor que,
desta forma, a ópera seria uma escie de reedição desse contato, pelo qual não
passamos de maneira indiferente.
É provável que aqui tenhamos chegado a uma das razões do arrebatamento que a
música na ópera provoca. Podemos assistir a uma ópera cantada em uma língua que não
dominamos. Ou podemos também ir a um espetáculo com legendas e, mesmo assim,
quando percebemos, já nos desligamos do conteúdo das legendas, e estamos
22
completamente tomados de assalto pela música, seduzidos por ela. A própria arte do
Belcanto, preocupada com a ornamentação dos fraseados, com coloraturas e agudos
quase sobre-humanos, parece favorecer a perda da capacidade de compreender as
palavras que ali estão sendo cantadas, dando ênfase assim à estética musical da frase, às
sensações que experimentamos ao ouvir aquele canto, seja de felicidade, ou de tristeza.
Estaríamos assim expostos novamente a uma forma de comunicação na qual as
representações de palavra seriam dispensáveis, em proveito da fruição do puro afeto.
Bernard Golse (2005) nos mostra que a forma como o sujeito reage em relação à
ópera dependeria deste primeiro contato com a mãe, e os amantes da ópera encontrariam
nela uma forma de satisfão que remontaria a investimentos que teriam feito na voz
materna no início da vida. Assim, abandonar-se ao som da ópera seria uma forma de
abandonar-se novamente a este maternal sedutor, não menos repleto de fantasias de
beatitude.
Assim, Castarède nos diz:
O tratamento da linguagem na ópera é de uma natureza muito diferente do tratamento da
linguagem em sua modalidade racional e cienfica. Na ópera, isso é recapitulado e modulado por
uma linha musical que lhe deixa próximo do corpo e dos afetos, longe da denominação clara e
distinta do pensamento secundarizado: “regressar à rao, é perder a felicidade” (CASTARÈDE,
2002, op. cit., p. 46).
Assim, formada pela convergência de três vertentes artísticas: a literatura, a arte
cênica e a música, a ópera apresenta, desde o inicio, grande transbordamento emocional
que nos é passado, de forma mais intensa, pela música que acompanha a história
encenada. Com sua origem na tragédia grega, são freqüentes temas em que o destrutivo
se faz presente na figura do destino, da vingança ou do amor de perdição.
Nesse ponto nos perguntamos: seria a ópera, com essa dimensão do mortífero,
fruto da sublimação, ou seria de outro processo capaz de dar conta desse excesso? A
luta Eros e Thanatos, que nos é mostrada no palco, seria apenas encenada ou iria muito
além da cena?
A fim de buscarmos esse componente que aponta para o disruptivo, devemos
voltar nossa atenção, para o conteúdo (enredo) dessas obras. Buscaremos, neste
capítulo, verificar, na ópera, como esse excesso se situaria, desde sua origem, a partir do
aspecto trágico, especialmente através da maneira como a este se apresenta – através da
paixão, especialmente em sua vertente amorosa.
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I.1.1 Um pouco de história
De todas as formas de arte, talvez seja a ópera a única da qual temos
conhecimento do momento exato em que surgiu. Isto teria ocorrido no Carnaval do ano
de 1597, quando era apresentado pela primeira vez o dramma per musica de Jacopo Peri
e Ottavio Rinuccini, intitulado “Dafné”. Estes dois autores faziam parte de um grupo de
intelectuais e músicos que se reuniam àquela época (final do período renascentista) em
Florença, sob a proteção do mecenas Conde Giovanni Bardi, de Vernio. Este grupo
ficou conhecido como Camerata Florentina e em suas reuniões discutia-se filosofia,
ciências, artes (bem como a relação de umas com as outras), além de música. Lauro
Machado Coelho, professor de história da ópera, nos diz em A Ópera Barroca:
Na casa de um músico amador [o conde de Vernio], é claro, o assunto predominante é a música,
debatida do típico ângulo renascentista e neoplatônico: de que maneira restaurar o poder que ela
possuía, nos tempos clássicos – assim se acreditava – , de suscitar, guiar ou dominar emoções
espeficas (motivo pelo qual os poetas e compositores dos primórdios da ópera serão obcecadas
pelo tema de Orfeu domando as fúrias infernais) (COELHO, 2000, p. 43).
Desta forma, os membros da Camerata almejavam retomar asica como
supunham ter sido na Antiidade e, mais especificamente, retomar também uma
junção entre música e teatro como a que acreditavam ter havido na tragédia grega. Eles
desejavam desenvolver uma forma de recitar cantando, conforme pensavam ter sido a
tragédia grega. No entanto, havia um problema: eles sabiam muito pouco sobre a
música na Antigüidade.
Um dos membros da Camerata, Vincenzo Galilei (pai do Astrônomo), cantor e
alaudista amador, interessado nos trabalhos de reconstituição da música grega, passou a
corresponder-se com o helenista Girolamo Mei. Este tivera acesso direto a documentos
gregos, graças ao contato com estudiosos vindos de Constantinopla. Através de Mei, os
florentinos tomaram conhecimento das características da música grega. Descobriram
que no teatro grego as vozes – do solista ou do coro, em uníssono – concentravam-se
em efeitos de altura e ritmo. Não havia o contraponto, que deixaria a música confusa e
sem inteligibilidade – e terminava por se oferecer como motivo para a falta de expressão
de afeto que os renascentistas acreditavam haver na música de seu tempo.
24
Passaram então a se opor à música polifônica, ao contratempo, e se detiveram
em tentar desenvolver uma forma de recitar cantando. Deveria haver a união perfeita
entre texto e música, que permitisse a compreensão do texto. Valorizava-se assim a
declamação solística ou monódica. O texto deveria ser declamado conforme as inflexões
naturais da fala. A melodia deveria acomodar-se à fala, não o oposto. Nesse contexto, a
música era composta por melodias simples, com poucos instrumentos, devendo apenas
acompanhar as inflexões da fala da personagem, no sentido de exprimir o estado de
espírito em cada trecho.
Foi com base neste modelo que veio à luz o primeiro dramma per musica, o
citadoDafné”, de Peri e Rinuccini, do ano de 1597. Porém não sabiam eles que o que
apresentavam não era parecido com a tragédia grega, conforme pretendiam. Coelho
(2000, op. cit.) nos mostra que, ao contrário do que os autores da primeira ópera
imaginavam, a tragédia não era cantada de uma ponta a outra. O texto poderia sim, ser
declamado de forma rítmica, apoiado em parâmetros musicais. Em alguns momentos,
era possível que o texto fosse cantado realmente, porém acompanhado de melodias bem
simples. Apenas os coros – herdados do culto de Baco, no qual a tragédia tem origem
eram de fato cantados.
Aí estava, sim – emborao exatamente da forma como imaginavam os precursores da
Camerata, o longínquo embrião da ópera tal como seria praticada durante os séculos XVII –
XVIII: recitativo ou diálogo falado para que a ação possa se desenvolver rapidamente; e números
cantados para os momentos de maior intensidade lírica ou dramática (COELHO, 2000, op. cit., p.
19-21).
Neste ponto, poderíamos objetar que as preocupações dos integrantes da
Camerata apontavam para a dialética entre palavra e música – a mesma questão que
Didier-Weill nos mostra ocorrer com o bebê, quando das trocas sonoras com a mãe. Ele
diz que:
A vocação de se tornar humano nos é, desde a origem, transmitida por uma voz que não nos
passa a palavra sem nos passar ao mesmo tempo sua música: a musica dessa “sonata materna” é
recebida pelo recém nascido como um canto que, juntamente, transmite uma dupla vocão:
entendes tu a continuidade musical de minhas vogais e/ou a descontinuidade significante de
minhas consoantes? (DIDIER-WEILL, 1998 apud CASTARÈDE, 2005)
Desta forma, a ópera, desde seu nascimento, é confrontada com esse duplo
registro: o “prima la voce” da ária, e o “parlar cantando” do recitativo. Os precursores
da Camerata Florentina optaram pelo recitativo, e assim, deixaram de lado alguns
componentes importantes da tragédia grega.
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Apenas um pouco mais tarde, com Monteverdi, esse paradoxo entre recitativo e
ária seria resolvido, muito mais próximo do modelo grego, fazendo com que a ópera se
aproximasse da forma como a conhecemos hoje. Mestre da polifonia, ao escrever sua
primeira ópera Claudio Monteverdi já era um grande dramaturgo pronto, e já estava em
condições de superar as limitações de uma forma tosca, que dava seus primeiros passos,
conferindo-lhe imenso grau de maturidade” (COELHO, 2000, op. cit., p. 56).
Monteverdi buscava novas relações entre a música e a palavra, um equilíbrio
entre o aspecto linear da música (recitativo) e os ritornellos instrumentais (ária). Assim,
no recitativo, a música se submeteria à palavra, enquanto na ária o texto se colocaria no
interior de uma linha musical, destinada ao fundo da emão vocal. No entanto, não são
apenas as contribuições técnicas de Monteverdi para a ópera que nos fazem voltar
nossos olhos para este compositor. O tema que nos apresenta a sua primeira ópera
também merece destaque nesta pesquisa.
Não por acaso, o mito de Orfeu é escolhido, nem apenas por se tratar de um
gênero artístico no qual as doutrinas do Renascimento ainda tinham peso. Coelho (2000,
op. cit.) já nos apontou uma das explicações possíveis – a dominação das fúrias
infernais. No entanto, este tema assim abordado parece interessante apenas pelo prisma
dos precursores da Camerata, justamente por condizer com seus ideais de dominar as
emoções e subjugá-las à palavra, que deveria ser recitada cantando. O mito de Orfeu,
contudo, vai am.
A personagem de Orfeu já nos chama a atenção por sua ligação profunda com a
música. Seus dotes são explicados por alguns como decorrentes do fato de ser filho de
uma musa, Calíope (musa da música, da inspiração), enquanto outros remetem seus
dons ao fato de ser filho de Apolo, deus da música. No entanto, não é isso que nos
chama atenção, mas o drama de Orfeu.
Trata-se de uma história trágica. A esposa de Orfeu, Eudice, a quem ele muito
amava, é picada por uma cobra, e morre. O músico, então, tomado de intenso
sofrimento pela perda de sua Eurídice, desce aos infernos, no intuito de resgatá-la. Com
a doçura de seu canto, ele obtém das divindades infernais a permissão de levar Eurídice
de volta à vida, com a condição de que, enquanto não tivessem ultrapassado os limites
do inferno, ele não poderia olhá-la novamente. No entanto, Orfeu não consegue conter-
se, e volta para olhar Eurídice, e neste momento, ele a perde novamente, e desta vez,
26
para sempre. A dor da perda do objeto amoroso toma conta de Orfeu, deixa-o
inconsolável. Somente a música lhe permite reencontrar simbolicamente Eurídice, à
medida que ele passa a cantar sua perda.
Castarède (2002, op. cit.), a respeito desse mito, nos mostra que o herói,
crucificado por seu luto, termina por inventar o lirismo, lirismo que nasce do amor que
sente por Eurídice, e da dor de sua morte. A partir de então, o poeta passa pelos campos,
a cantar a dor de sua perda. “O atorico fundamental é cantar: a voz é o coração de uma
utopia que põe suas asas na música.” (MAULPOIX, J.-M. apud CASTARÈDE, 2002,
op. cit., p. 27).
A questão da perda, conforme proclamada por Orfeu, chama-nos a atenção. Isto
porque se trata aqui de uma das primeiras óperas, e o tema da perda do objeto, a
impossibilidade do luto, e todo o sofrimento advindo disto, nos faz pensar que o que é
retratado não é da ordem do amor, mas aponta para outro tipo de relação – a de paixão.
No que se refere à paixão a perda desse objeto seria insuportável, uma vez que a
motivação do sujeito estaria toda voltada para a união com objeto de sua necessidade.
Fala-se em amor quando se fala de Orfeu, mas percebemos aqui a impossibilidade do
luto, a negação da perda, e o estado de sofrimento ao qual é relegado o sujeito
apaixonado quando da perda de seu objeto, com isso, já não parece que estejamos
falando de amor.
O que parece ocorrer na ópera, desde Orfeu, passando por “Dido e Enéias”,
“Norma”, “Carmen”, “Tristão e Isolda”, “La Traviata”, “La Bohème”, “Madame
Butterfly”, entre tantas outras, é justamente a reedição dessa perda, dessa tragicidade.
Trata-se mais de paixão do que de amor que pudesse ser satisfeito, de perda, da busca
por uma revivência nostálgica de um tempo primitivo de união.
I.1.2 A ópera como cena privilegiada da paixão
Ao observarmos a “vocação” que a ópera possui de apresentar temas
relacionados às paixões, e à tragicidade em decorrência destas, nos vemos impelidos a
nos questionar sobre o estatuto da ópera como cena privilegiada para a exploração desse
tema. Poderíamos começar o levantamento de nossas hipóteses a partir da ligação da
ópera com a tragédia grega. Dissemos que, uma vez que esse gênero de arte teve origem
na tentativa de retomar a tragédia grega, tendo se tornado diferente no que diz respeito à
27
forma de declamação, a ópera ainda traz em si componentes da tragédia grega, como a
retomada de seus temas. Lendas sobre deuses, heróis que repentinamente se vêem diante
de uma situação maior do que eles, uma situação em que se encontram impotentes, em
estado passivo.
Nietzsche, em “A Origem da Tragédia” (1892[1870-1871]/1989) nos oferece
uma interpretação de como a tragédia grega teria tomado esta forma. Para ele, a tragédia
teria se formado pela união de duas vertentes presentes na arte grega – a aponea e a
dionisíaca, duas vertentes opostas, porém, de certa forma, complementares. Ou antes,
dispostas uma em relação à outra, como o que poderíamos propor ser uma relação de
figura-e-fundo. Enquanto uma se sobressaía, a outra se colocava como fundo. Porém, na
tragédia grega, elas teriam alcançado a convergência máxima possível entre as duas.
A vertente apolínea seria regida pelas características do deus de Delfos: Apolo –
deus de todas as faculdades criadoras de forma, da adivinhação e da imaginação.
Reconhece-se nele a imagem divina e esplêndida de um princípio de individuação, cujos
gestos e olhares nos falam de toda a sabedoria e de toda a alegria da aparência, e da
beleza (Id., ibid., op. cit. p. 22).
Nietzsche nos diz que essa divinação da individuação conhece uma lei – o
indivíduo, quer dizer, a conservação dos limites da personalidade, a medida, no sentido
helênico da palavra. Sendo uma divindade ética, Apolo exigiria o respeito pela medida,
e conseqüentemente, a autognose. Assim, à exigência estética da beleza necessária,
segue-se a rigidez dos preceitos: “conhece-te a ti mesmo” e “não te excedas”. O
desvario e o exagero são por demais hostis à esfera apolínea, sendo assim avatares de
um mundo extra-apolíneo, considerado bárbaro. Um mundo dioniaco, poderíamos
dizer.
O aspecto dionisíaco na antiga Grécia, era percebido através dos festins
praticados em homenagem a esse deus da natureza. Nessas festas, havia uma licença
sexual desenfreada, exuberante nas quais não se respeitavam sequer os laços de
consangüinidade. Bebia-se e comia-se em excesso. Tudo era em excesso. E para
acompanhar os rituais em homenagem ao deus, levantava-se o ditirambo dionisíaco,
uma espécie de coro, com a característica da perda da individuação. O cantor do
ditirambo não guardava a sua identidade, como um corista no templo de Apolo:. ao
28
contrário, libertava-se dela e se unia ao todo, e assim conseguia experimentar e exprimir
sentimentos até então desconhecidos.
O horror espantoso que se apodera do homem quando, subitamente derrotado pelas formas
aparentes dos fenômenos, vê que o princípio da casualidade, em qualquer das suas manifestações,
tem que admitir uma exceção. Se, além desse horror, considerarmos o êxtase arrebatador que,
perante a falência do princípio de individuação, surge do que há de mais profundo na própria
natureza, começaremos então a entender em que consiste o estado dionisíaco (Id., ibid.).
Tendo em vista o que foi dito a respeito dessas duas vertentes, não seria de
estranhar as formas de arte oriundas de cada uma delas. Enquanto no mundo apolíneo
teríamos o artista das imagens, da imaginação, no âmbito dionisíaco teríamos o artista
arrebatado pelo êxtase da experiência. Tomando como exemplo a música, a produzida
por um artista aponeo diria respeito a uma arquitetura dórica dos sons, mas só de sons
previamente determinados, como os da corda da cítara. A música produzida por um
artista dionisíaco traria em si a violência comovedora do som, a torrente unitária da
harmonia.
É neste sentido que Nietzsche nos propõe:
Imaginemos agora como deveria ter ressoado, através deste mundo artificialmente definido da
“medida”, a embriaguez extática das festas de Dioniso em melodias encantadoras e sedutoras;
desses cânticos irrompia o desmedido “excesso” da natureza em prazer, sofrimento e
conhecimento, até se formular em grito dilacerante. Imaginemos o que podia significar, para
quem ouvisse esse coro demoníaco das vozes do povo, a salmodia do artista olímpico,
acompanhado pelos sons abafados das harpas (...). O indivíduo, como todos os seus limites e
todas as suas medidas, esqueceu-se de si próprio e caiu em pleno êxtase dionisíaco. O desmedido
revelou-se verdadeiro; a contradição, o prazer nascido do sofrimento, surgiu espontaneamente do
coração da natureza. Foi assim que, por toda a parte onde penetrou o espírito dionisíaco se
quebrou e aniquilou a influência apolínea (Id., ibid., p. 35).
Porém, para Nietzsche, houve um momento em que essas duas vertentes se
uniram, como na reconciliação de dois adversários, com a delimitação precisa das
fronteiras. Essa aliança seria o momento mais importante da história do culto grego, e
diria respeito justamente à origem da tragédia, onde encontraamos, de um lado, o
mundo aponeo das imagens, da forma e da medida, através da cena e dos diálogos, e o
mundo do arrebatamento dionisíaco representado pelo coro.
A tradição coloca a origem da tragédia neste último elemento porque a excitação
dionisíaca teria a capacidade de comunicar a toda a multidão a faculdade artística de ser
cercada de uma multidão de seres fantásticos e de se considerar em uníssono com eles.
Segundo Nietzsche, este processo do coro trágico seria o femeno dramático
29
primordial: ver-se a si próprio, porém transformado, e atuar como se vivesse realmente
em outro corpo, com outro cater.
Segundo estes conhecimentos, devemos ver na tragédia grega o coro dioniaco, que
incessantemente se renova a contemplar um mundo de imagens apolíneas. Estas partes corais,
que se intercalam na tragédia, são assim como que as matrizes do que se chama diálogo, que
dizer, de tudo quanto se passa em cena, do verdadeiro drama. Da sucessão de várias
manifestações expansivas desta espécie resulta a causa primordial da tragédia, a visão radiosa do
drama, que está todo numa aparição percebida no sonho e, como tal, de natureza épica, mas que
por outro lado, como objetivão de um estado dionisíaco, representa, não a libertação apolínea
na aparência mas, pelo contrário, a destruição do indivíduo e a sua identificação com o ser
primordial. Assim, o drama é a representação apolínea de noção e de influências dionisíacas...
(Id., ibid., p. 57).
Nietzsche ainda aponta que a tragédia teria entrado em decadência quando teve
inicio uma valorização extrema do pensamento na cultura helênica. Desta forma, não
havia mais espaço para a expressão do dionisíaco, ainda que este aparecesse em uma
junção com aspectos apolíneos.
Fato curioso, e que nos chama a atenção, é que a ópera também tenderia a passar
pelo mesmo processo: com a expressão das paixões, parece se opor ao racionalismo que
tomou conta da sociedade ocidental a partir da época do Renascimento. Desde suas
origens, passando pelo curso de todo seu desenvolvimento, o que percebemos é uma
constante intensificação e valoração do pensamento na sociedade ocidental. As
explicações mitológicas e religiosas perdem lugar.o se pode mais compreender o
mundo a partir de um pensamento que busque dar conta de tudo, assim como o
pensamento mitológico e religioso visava fazer. Muito menos, justificar o sofrimento
humano por desejos que teriam sua origem em paixões não-racionais, que buscariam a
realização de um desejo que não coincidisse com os ideais lógicos da sociedade. Sofrer
em decorrência dessa paixão é loucura. Sofrer (uma paixão) visando aproximar-se de
Deus, também perde o seu sentido. Assim, o que denominamos paixão, em seu
significado mais amplo posvel, tem seu lugar diminuído, e deve até mesmo, ser
evitado.
No entanto, parece que, diferentemente do que ocorreu aos helênicos, como nos
propõe Nietzsche, no caso da sociedade ocidental a ópera permaneceu como um espaço
no qual essas paies podem ser expressadas. A música toma o lugar do pensamento
tico e religioso que tentava dar conta de tudo compreender, para ao menos expressar
aquilo que o pensamento corrente não abarcava. Explicar o inexplicável através da
única forma de comunicação possível – a música. A mesma música que, como iremos
30
explorar mais adiante, tem suas origens no que há de mais primário no homem,
impossível de ser transcrito para a palavra e o pensamento lógico – a paixão.
O apoio na mudaa da função mítica associada a sua rápida franquia às referências religiosas
explica que a ópera seja imposta, na configuração cultural ocidental, como lugar por excelência
na qual se exprimem as paixões e os desejos, onde se desenrola a história dos sonhos coletivos e
as fantasias sexuais da sociedade (...) (CASTARÈDE, 2002, op. cit., p. 26)
A ópera constitui um espaço, uma cena privilegiada para a apresentação da
paixão, especialmente, através do canto. Podemos ver como a questão do canto e da
paixão em seu aspecto mortífero e, por que não?, trágico, estão intrinsecamente ligadas
à própria origem da ópera. Esta fala de nós mesmos, de nossas próprias paixões, e de
como são expostas em cena de maneira a se opor às forças de Eros. Desta forma,
podeamos dizer que, na ópera, vemos em cena o nosso próprio drama interior.
(...) o próprio da ópera é oferecer ao inconsciente de qualquer ouvinte um espelho (à força
refletidora maior ou menor segundo onio do compositor) de suas fantasias origirias:
fantasias do nascimento e da morte, da cena primitiva, da diferença entre os sexos, da sedução, da
castração. Todos esses enigmas são chamados no imaginário do compositor, as respostas que este
último nos dá através de uma história dada em oferenda a nossa fantasmática pessoal. O ouvinte
espectador é assim convidado a uma regressão onírica: por pouco que as condições sejam
reunidas, ele cederá de boa vontade (Id., ibid., p. 17).
Porém, para que possamos compreender melhor este aspecto de paixão na ópera,
devemos aqui nos deter em uma explanação mais detalhada sobre este tema.
I.2 – Sobre a paixão
Falar sobre a paixão é falar sobre um tema que há muito, ocupa o pensamento
ocidental. J. Cornut (1999) nos propõe em seu texto “L‘énergie de la passion”, que a
paixão seja um termo tomado pelo pensamento ocidental para designar, já séculos,
um conjunto de sentimentos variados e ambíguos, mais ou menos contraditórios, e que
afetam o sujeito de maneira aguda.
Para compreendermos mais profundamente o significado da paio, podemos
nos voltar para um estudo da etimologia do termo. Autores como Cornut (ibid.) e
Berlink (1998, apud Silva, 2002) atribuem a origem etimológica da palavra ao grego
pathos, que significa fundamentalmente, sofrimento. Jean Bégoin (2001) propõe uma
outra explicação para a origem da palavra paixão, baseada no verbo latino pati, que
também significa sofrer e que, acreditamos, já seja uma derivação do grego pathos.
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O sofrimento de que nos fala o pathos grego, podemos propor, encontrou sua
demonstração máxima na tragédia grega, à qual já tivemos oportunidade de nos referir.
Jean Cornut (1999, op. cit.) ressalta que, de pathos, deriva-se também o adjetivo
patético, que diz respeito a todo o aspecto de forte emoção, sinistro, que caracterizava o
evento trágico. Neste quadro, confrontado com acontecimentos inesperados diante dos
quais não consegue reagir, encontramos o sujeito da tragédia, sujeito do sofrimento e da
passividade. A respeito dele, Manoel Tosta Berlink nos diz que:
(...) é constituído e coincide com o pathos, o sofrimento, a paixão, a passividade. Este sujeito que
não é nem racional nem agente e senhor de suas ações, encontra sua mais sublime representação
na tragédia grega. O que se figura na tragédia é pathos, sofrimento, paixão, passividade que, no
sentido clássico, quer dizer tudo o que se faz ou que acontece de novo, do ponto de vista daquele
ao qual acontece. Neste sentido, quando pathos acontece, algo da ordem do excesso, da
desmesura se põe em marcha sem que o eu possa se assenhorear desse acontecimento (Berlink,
1998, p. 53 apud Silva, 2002, op. cit., p. 24).
Ao remetermos a origem da paixão ao pathos grego, e ao observarmos sua
expressão na tragédia, encontramos, portanto, como correlatos da paixão, o sofrimento,
o excesso, e a passividade diante desse excesso. Passividade diante de um
acontecimento que o sujeito não tem como dominar.o há possibilidade de
elaboração, apenas uma convocação a agir. É nesse sentido que Jean Cornut diz que
“Ela [a paixão] despoja o sujeito seja por sua perda seja por um serviço mais elevado;
ela lhe tira seu jzo, ou ao contrio, o faz luminoso; ela anula ou decuplica seus
recursos; é excesso em estado bruto” (CORNUT, 1999, op. cit., p. 8-9. A tradução é
nossa). O sujeito não é mais senhor de si. Será esta visão da paixão que a dotará de
poder, visto como subversivo pela sociedade ocidental.
J.-B. Paturet (2001), ao analisar o poder da paixão e considerá-la como
desmedida, nos exe que seu poder subversivo é, já há muito tempo, questionado pelo
mundo ocidental, com seus valores pautados em ideais de domínio racional (o que se
opõe completamente à dimensão da passividade levantada pela paixão).
Desta forma, o termo paixão tem sido usado, ao longo dos séculos, para designar
aquilo que causa sofrimento e que afasta o homem da verdade e da razão No entanto, o
termo não era somente utilizado para designar aspectos negativos, os pecados, mas
também para designar um sofrimento transcendental. Originalmente, o termo era
utilizado para designar o sofrimento do Cristo na Semana Santa, que se entregou à
agonia e à morte para redimir todos os homens do pecado original. Assim, com a paixão
do sofrimento, Cristo salvava os homens da paixão pelo pecado. Essa atitude que
32
inspirava muitos fiéis no sentido de expiarem suas faltas no fervor religioso, no qual a
busca de Deus leva a pessoa a níveis de transcendência que muitas vezes implicam
sacrifícios como jejum, lacerar o próprio corpo, etc. Esse pensamento nos leva a outros
exemplos como os atos heróicos, justificados em nome do “amor” à pátria, ao poder, à
família, ao ente amado, etc.
Porém o termo paixão relacionado ao aspecto amoroso já era encontrado desde o
período renascentista, apesar de narrativas sobre o tema já existirem desde a
Antiidade clássica e terem se intensificado com as narrativas de amor cortês ao longo
da Idade Média. No entanto, somente com o romantismo a paixão amorosa tomou o
status que conhecemos atualmente, de ideal social. Podemos perceber isso nas várias
formas com que a paixão se apresenta. Na paixão amorosa, o sujeito encontra-se
fascinado por um objeto a ponto de não imaginar sua vida sem ele, chegando muitas
vezes à depressão quando o objeto não corresponde à altura, e até mesmo à morte
(suidio ou crime passional).
I.2.1 A paixão amorosa
Dentre as diversas formas em que a paixão se apresenta, uma nos chama atenção
especialmente pela forma como é retratada – a paixão amorosa. Ao longo dos séculos,
mitos, contos, canções são feitos unicamente no intuito de nos falar desse tipo de paixão
que assola o homem. Maria Helena de Barros Silva, em seu trabalho sobre a paixão
amorosa nos diz que a maioria das narrativas sobre este tipo de paixão, seja no âmbito
da arte e da cultura, seja no âmbito da clínica, dizem respeito a:
(...) impossibilidades, insaciabilidade, enganos. Relações vorazes, passivas, nas quais a
inacessibilidade do objeto coloca em risco o desejo de viver, fazendo eclodir estados de miséria
psíquica, fechamento ao mundo, ao desejo, ao prazer. Essas narrativas têm algo em comum:
expressam profundo sofrimento, um estado de aprisionamento psíquico ao objeto do desejo,
reclusão no mundo da fantasia – forma de apaziguamento das faltas. Alienação de si? Loucura?
(Silva, 2002, op. cit., p. 17-18).
No imaginário popular, nas obras de arte, a expressão da paixão está ligada a
sentimentos intensos, fulgurantes, plenos de atos heróicos em nome do objeto da paixão,
renúncias ou entregas que deles fazem alarde.
33
Cabe-nos, no entanto, estudar a paixão mais detidamente, não a tomando apenas
em sua concepção no ideário popular. Nosso ponto de partida nesta pesquisa serão os
textos freudianos que nos permitem dar conta de aspectos ligados à problemática da
paixão, dentre os quais podemos citar “Sobre o narcisismo – Uma Introdução” (1914a) e
Psicologia de Grupo e Análise do Ego” (1921); articulando os apontamentos de Freud
às proposições de outros autores.
I.3 – A noção de paixão em Freud
A tarefa de iniciarmos nosso percurso a partir da análise do termo paixão na obra
de Freud não se configura como algo fácil, porque aí o termo paixão é usado mais como
um termo descritivo do que metapsicológico, e não possui uma definição unívoca, sendo
trabalhado geralmente em interligação com o conceito de sexualidade.
Maria Helena Silva (2002, op. cit.), baseada nas idéias de Zeferino Rocha,
aponta um caminho possível para trabalharmos o tema em Freud. Ela parte do termo
alemão, Verliebtheit, presente na obra de Freud, que é traduzido para o português como
“estar amando”, “estar apaixonado”,estado de fascinação”, “relações amorosas”,
“laços emocionais”, mas que possui conotação muito mais profunda que estas no
português. Zeferino Rocha, que fez o prefácio a esse livro, ressalta que Freud usava esse
termo com relativa freqüência para distinguir a paixão amorosa de uma noção mais
geral de paixão, que os alemães designam por Leidenschaft.
A Verliebtheit, como toda Leidenschaft, denotaria uma emão veemente que
invade, domina e toma conta do sujeito, sem lhe deixar possibilidade de controle,
mediante recursos e diretrizes da razão. O sujeito seria dominado por uma experiência
amorosa muito intensa que, em virtude dessa intensidade, desse excesso, da
impossibilidade de controlar-se pela via da razão, bem merece o nome de paixão.
O próprio termo Verliebtheit já indica que se trataria de uma espécie de amor
distorcido em sua genuína forma de ser. Lieb significa amar, porém ver denota um
desvio na maneira habitual de amar. Rocha acrescenta que “Este desvio, quando
excessivo, pode tomar proporções de uma verdadeira transgressão ou de uma perversão
34
no sentido psicanalítico do termo. Assim, pode-se dizer que a paixão, por causa do
caráter transgressor que a define, é uma perversão do amor” (Rocha, in Silva, 2002, p.
12). Essa tradução abre a possibilidade de lidar com a noção de paixão com uma
significação própria, diferente do conceito de amor. A distinção entre os dois termos
será esboçada mais adiante neste capítulo, sendo necessário, por ora, nos determos no
estudo da noção de Verliebtheit.
I.3.1 – Sobre o narcisismo
Seguiremos as indicações de Silva (Ibid.) e voltaremos nossa atenção para o
texto “Sobre o Narcisismo – Uma Introdução” (FREUD, 1914a), a fim de fazermos um
estudo mais atento sobre o termo. Esta autora nos diz que:
(...) é neste artigo que a Verliebtheit adquire sua significância maior, uma vez que Freud
a define como referência ao narcisismo primário e normal, que diz respeito ao investimento
libidinal do sujeito no próprio ego, como também aos investimentos objetais da primeira
infância, relações de objeto que estão ancoradas nas vivências primárias. (...) Nesse texto, a
paixão amorosa é claramente colocada como uma revivência das relações primárias do sujeito
infantil, em um encontro que busca recuperar ou reviver as impressões outrora experienciadas
(SILVA, 2002, op. cit., p. 41)
No texto de Freud “Sobre O Narcisismo – Uma Introdução”, a paixão amorosa é
trabalhada como um dos meios para melhor compreender o narcisismo – conceito que
fundamenta uma nova orientação na teoria da libido e no estudo das relações de objeto.
A grande contribuição desse texto está na proposição que Freud faz de que o ego
também poderia ser investido libidinalmente, o que lhe impõe a necessidade de
introduzir em sua teoria a distinção entre libido objetal e libido do ego.
Tal movimento na teoria da libido somente tornou-se posvel depois da
observação de pacientes psicóticos, bem como de homossexuais e perversos. No
primeiro grupo, foi possível a Freud observar que a megalomania apresentada por estes
teria como base um afastamento da libido do mundo externo, passando a ser investida
no próprio Ego. Concomitantemente, a observação do segundo grupo favorece a
observação de que homossexuais e perversos trariam, em relação ao objeto de seu amor
uma forma de escolha de objeto particular, qual seja, tomavam a si mesmos como objeto
sexual (ou projetavam a si mesmos em um outro objeto que vinham a amar).
35
Essas observações levaram Freud ao termo narcisismo, já utilizado
anteriormente em textos comoLeonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância
(FREUD, 1910) e no caso Schreber (FREUD, 1911). Porém, é a partir da observão
desses dois grupos ressaltados acima que será possível a Freud observar que o Ego pode
ser investido libidinalmente, fazendo-o aventar a hipótese de que esse tipo de
investimento libidinal no ego se trate de característica comum ao desenvolvimento
sexual dos seres humanos. Isto porque, para Freud, o investimento libidinal no Ego
observado nos dois exemplos que ele utiliza, e para o qual utilizou o termo narcisismo,
surgiria da indução de investimentos objetais, aos quais seria secundário.
Para ele, anterior a esse narcisismo, haveria um estado anterior, primário, que
permaneceria obscurecido. Desta forma, ele diz que “O narcisismo, nesse sentido, não
seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo da pulo de
autoconservação que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a toda
criatura viva” (FREUD, 1914a, op. cit., p. 81).
Em relação a este narcisismo primário, no entanto, encontramos uma questão:
para que haja um investimento libidinal no ego, é necessário que este já esteja
constituído. Porém, segundo Freud, uma unidade comparável ao ego não pode existir no
indivíduo desde o início de sua vida, tendo assim de ser desenvolvida.
Jean Laplanche (1985) mostra, em seu livroVida e Morte em Psicanálise”, que
a tese de Freud sobre o narcisismo pode ser condensada em três proposições:
1) O narcisismo é um investimento libidinal sobre a própria pessoa, um amor de si;
2) Esse investimento libidinal de si passa necessariamente, no homem, por um
investimento libidinal no ego;
3) Esse investimento libidinal do ego é inseparável da própria constituição do ego
humano.
I.3.2 – Libido do ego x libido do objeto
Uma vez que o ego esteja constituído como unidade, encontramos uma questão,
de ordem ecomica, que diz respeito ao investimento da libido que, após as
observões de Freud sobre o narcisismo, mostrou-se como não apenas dirigida ao
objeto, mas também investida no próprio ego. Segundo ele:
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Formamos a idéia de um investimento libidinal original do ego, parte da qual é posteriormente
transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada com os
investimentos objetais, assim como o corpo de uma ameba está ligado aos pseudópodes que
produz (FREUD, 1914a, op. cit., p.83).
Laplanche & Pontalis (1982/2004, p. 269), propõem que essa concepção de
Freud, na qual o Ego é colocado como origem, reservatório da libido, no texto de 1914
se deve ao fato de que esta, como energia pulsional, tem sua fonte nas diversas zonas
erógenas. Sendo o ego erigido a partir da unificação dessas zonas erógenas, vai
armazenar essa energia libidinal da qual é o primeiro objeto. Posteriormente, o
reservatório se colocará, perante os objetos externos, como uma fonte, pois será dele
que emanarão todos os investimentos. Desta forma, o investimento da libido
inicialmente no ego mostra-se importante, tanto para a formação deste, quanto para que,
posteriormente, possa ser dirigida aos objetos. Como conseqüência disso, do ponto de
vista ecomico, estabelece-se uma balança, na qual quanto mais o ego é investido,
menos os objetos externos o são.
No que diz respeito à libido objetal, o investimento nos objetos recebe uma
atenção especial nossa para os fins deste trabalho, uma vez que será em referência aos
objetos externos que Freud nos fala a respeito da paixão. Ele nos diz que a libido neles
investida – portanto a libido objetal – atingiria sua fase mais elevada de
desenvolvimento no caso de uma pessoa apaixonada, quando o sujeito em questão
parece abrir mão de seu amor próprio em favor do investimento objetal.
Assim, a paixão implicaria um investimento oposto ao que ocorre no narcisismo,
já que nela ocorreria um fluir da libido do ego em direção ao objeto. Este fluir teria
conseqüências importantes que implicariam um esvaziamento do investimento no ego e
a valorização do objeto na paixão. Passamos a abordar este aspecto da relação passional
– denominado por Freud “idealização”.
I.3.3 – A idealização
A formulação da instância do ideal do ego, permite-nos avançar no estudo da
paixão porque é a partir da proposição dessa instância ideal que Freud propõe a
idealização. Esta, segundo o autor nos exe em 1914, seria um processo com ênfase no
objeto. Através dela, um objeto, sem qualquer alteração em sua natureza, seria
37
engrandecido e exaltado na mente do indivíduo. Este processo, ainda acrescenta Freud,
seria possível tanto na esfera da libido do ego quanto na da libido objetal.
Em 1921, em “Psicologia de grupo e análise do ego” (op. cit.), Freud retoma o
tema da idealização, apontando sua presença na valorização exacerbada que o objeto
recebe a partir do sujeito que ama. O objeto, nessas condições, é exposto por Freud
como livre de críticas, suas características são mais valorizadas do que as de outras
pessoas à sua volta, ou do que este próprio objeto, enquanto ainda não era alvo dessa
paixão. Ao que, acrescenta:
A tendência que falsifica o julgamento nesse respeito é a idealização. (...) vemos que o objeto
está sendo tratado da mesma maneira que nosso próprio ego, de modo que, quando estamos
amando, uma quantidade considerável de libido narcisista transborda para o objeto. Em muitas
formas de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de sucedâneo para algum
inatingido ideal do ego de nós mesmos. Nós o amamos por causa das perfeições que nos
esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e que agora gostaríamos de adquirir, dessa
maneira, indireta, como meio de satisfazer nosso narcisismo (FREUD, 1921, p. 122)
A partir disso, temos dois pontos de vista para conceber a idealização. O
primeiro diz respeito ao aspecto econômico, em que podemos concebê-la como
empréstimo de energia. A libido transborda do ego para o objeto, ocorrendo a
transformação da libido narcísica em libido objetal. Pelo ponto de vista dinâmico,
teríamos que o objeto deveria realizar aquilo que o sujeito tinha como ideal, deverá vir a
ser um sucedâneo do ideal não atingido por nós mesmos.
Em conseqüência do aspecto econômico envolvido na idealização, Freud propõe
que quanto maior a supervalorização do objeto e a paixão, mais o ego se torna
despretensioso e modesto: o objeto se torna cada vez mais sublime e precioso, até obter
finalmente a posse de todo o amor próprio do ego, que se sacrifica. Freud diz que, neste
caso,o objeto consumiu o ego.” (Id., ibid., p. 123). A balança econômica libidinal
tende para o lado do objeto idealizado.
O outro ponto de vista, dinâmico, nos dá conta do fato de que o objeto deve
realizar os ideais não atingidos do sujeito. Paralelamente a isso, Freud nos diz que
...as funções atribuídas ao ideal do ego deixam de funcionar. A crítica exercida por essa instância
silencia; tudo o que o objeto faz e pede é correto e inocente. A consciência não se aplica a nada
que seja feito por amor ao objeto.; na cegueira do amor, a falta de piedade é levada ao diapasão
do crime. A situão total pode ser inteiramente resumida numa fórmula: o objeto foi colocado
no lugar do ideal do ego (Id., ibid., p. 123).
38
I.3.4 – A idealização encenada na ópera – alguns exemplos
Ao observarmos a paixão conforme apresentada em nosso objeto de estudo – a
ópera – podemos obter exemplos, baseados na observação de obras de arte, de como o
objeto se colocaria no lugar do ideal do ego (Todos os exemplos citados neste tópico
baseiam-se no que é exposto por Kobbé [1997]).
Em Carmen (Bizet), apesar das claras demonstrões da volubilidade da
personagem-título, bem como de todas as brigas e atividades ilegais em que se envolve,
encontramos um Don José que, a despeito de tudo isso, segue Carmen. E mesmo após
ser abandonado, dirige-se a ela cantando a plenos pulmões “Carmen, Carmen eu te
adoro!”. Ele, anteriormente um soldado que cumpria seus deveres, tudo abandona para
segui-la e apesar de todas as demonstrações que a realidade lhe oferece, continua
apaixonado. Por Carmen ele comete atos ilícitos, abandona sua vida, até ser por ela
abandonado. Por fim, não conseguindo viver mais sem o objeto de sua paixão mata
Carmen na frente da praça dos touros, onde o atual amante dela se apresenta e triunfa.
Outro exemplo que podemos citar é o de Triso e Isolda (Wagner).
Apaixonados que estão, passam por cima da honra e de laços familiares. Isolda se
apaixona por Tristão quando ela o curou, e depois descobriu que este era o assassino de
seu noivo. Mesmo assim, apaixonou-se por ele. Tristão, por sua vez, deveria levar
Isolda a seu tio para que ele pudesse desposá-la, e transgredindo as leis da cavalaria e as
da família, termina por se apaixonar por Isolda e, assim, por falhar a seu tio e senhor. Os
laços familiares não importam mais para eles, situação que se torna mais intensa quando
bebem da poção do amor, que lhes permite transgredir as leis. Cegos pela paixão,
levam-na até as últimas conseqüências, uma vez que já não conseguiriam viver um sem
o outro.
Outro exemplo podemos extrair da ópera de Puccini, “Madame Butterfly” em
que a personagem-título abre mão de sua religião, de sua posição de gueixa, para casar-
se com Pinkerton, um tenente americano. Os votos do casamento são verdadeiros para
ela, e quando Pinkerton retorna aos Estados Unidos, ela lhes permanece fiel. Ela espera
o belo dia em que ele voltará e viao seu encontro, tratando-a como antes de sua
partida. A bela ária Un bel dí vedremo” dá conta dessa esperança que Butterfly tem,
bem como da capacidade que tem de idealizar um marido que não corresponde à sua
39
expectativa. Tudo o que ela espera, tudo o que idealiza em Pinkerton é a fidelidade,
assim como a que ela lhe tem. Porém, como todo objeto idealizado, esta idealização não
corresponde ao que realmente ele é, isto é, está fora das idealizações do sujeito. Quando
se depara com Pinkerton casado com outra mulher, sua “verdadeira esposa”, Butterfly –
que como todo sujeito apaixonado tem a libido do ego transbordada para o objeto,
portanto, sem ou com quase nenhum amor próprio e sem defesa egóica contra o
inesperadotermina por suicidar-se.
O que percebemos nesses casos é que o sujeito não só teria esse objeto no lugar
de seu próprio ideal do ego, a ponto de perder toda consciência de seus atos, mas
também, que viveria com este uma relação de fascínio, de servidão. Esse objeto, tão
dotado de qualidades para o sujeito, coloca-se como objeto da “necessidade”, do
absoluto, sem o qual o sujeito não conseguiria viver; e pelo qual seria capaz de tudo
até mesmo de morrer.
I.3.5 – O objeto da paio como objeto da necessidade
O que percebemos, em situações como estas expostas nas óperas, é que,
desprovido do amor próprio do ego, o sujeito se volta para esse objeto idealizado de
uma maneira extremamente submissa. Freud nos aponta, em 1921, a possibilidade de
tomarmos essa concepção de paixão como uma relação de fascínio, servidão, na qual o
objeto, tão excessivamente dotado de qualidades para o sujeito, coloca-se como objeto
da “necessidade”, da ordem do absoluto, a ponto de o sujeito não mais conseguir viver
sem ele. Expõe-se assim uma face da paixão de dependência em relação a esse objeto.
Jean Cornut nos diz que:
... a paixão se revela na ausência [do objeto] e pela dificuldade de o sujeito elaborar essa perda.
A paixão será, nessa perspectiva, a dificuldade, e mesmo a impossibilidade teimosa, obstinada,
cega, megalomaníaca, de fazer um trabalho de luto (CORNUT, 1999, op. cit., p. 13 – a tradução é
nossa).
Será esse objeto, ou antes, a sua ausência, que levará o sujeito a atos extremos,
porque viver sem esse objeto que assume o lugar de ideal do ego e diante do qual o
sujeito se coloca em uma situação de radical passividade – seria algo da ordem do
impossível, como se ele fosse obrigado a viver sem uma parte de si mesmo.
40
Questionamo-nos, neste ponto, a respeito dessa relação específica com objeto
que vem a ser um outro Eu. Piera Aulagnier, em Os destinos do Prazer (1985), nos
propõe que na relação passional haveria uma assimetria na relação Eu-Eu do outro. Para
compreender essa noção, cremos que antes seja necessário observar seu oposto, ou seja,
as relações simétricas, que teriam como protótipo as relações de amor.
Para esta autora, a relação “Eu”-Eu do outro” implicaria um poder de prazer e
sofrimento. O Eu do outro se coloca para o sujeito como fonte tanto de prazer como de
sofrimento, assim como o sujeito o é para o eu do outro. Percebemos haver aí uma
reciprocidade, e mais do que isso, uma aceitação dos riscos. Essa reciprocidade, por
mais sutil que seja, limitaria a dependência do amante frente ao amado e garantiria a
autonomia dos investimentos narcísicos que o Ego deve preservar.
Este poder de prazer e de sofrimento explicaria a potencialidade conflituosa
presente em toda relação de amor, potencialidade que, segundo a autora, mostraria a
razão pela qual toda relação amorosa comporta oscilação entre os momentos em que o
outro é fonte de prazer e os momentos em que é fonte de sofrimento. Além disso, para
se estabelecer uma relação de simetria, seria necessário que cada um dos dois “Eus” em
questão fizesse do outro o depositário privilegiado, mas não exclusivo, de suas
demandas de prazer.
Outro ponto importante seria o fato de que cada um dos “Eus” preservaria o
outro como suporte de sua libido graças a uma representação psíquica do outro, que fixa
a libido e que garante o investimento no objeto durante a ausência real do amado, ou
nos momentos de conflito. Após considerarmos essas características da relação
sitrica, torna-se importante ressaltar que, segundo Aulagnier, ... o amor pressupõe
que o outro seja um objeto privilegiado no registro dos investimentos e do prazer,
também exige que este amor não se torne o destinatário exclusivo da totalidade das
demandas” (Aulagnier, 1985, op. cit., p. 148).
Assim, podemos propor que, em uma relação de simetria, o que um dos Eus
demanda e precisa receber do outro é o mesmo que o Eu do outro precisa pedir e espera
do primeiro Eu como existente e desejante aunomo. Essa simetria, porém, não seria
jamais perfeita, mas seria suficiente para que o eu do amante não se encontrasse em
situação de dependência (Id., ibid., p. 117)
41
Uma vez contemplada a relação de simetria, estamos aptos para compreender o
que se opõe a ela – as relações assimétricas que têm como protótipo a paixão. A autora,
nesse texto, toma a paixão não apenas em sua vertente “amorosa”, mas também no que
se relaciona à paixão pela droga e pelo jogo. No entanto, nos deteremos no estudo da
paixão amorosa.
Para a autora, nesses casos, haveria uma diferença de ordem quantitativa entre o
poder de prazer e de sofrimento existente entre os dois parceiros, porque nas relações
passionais o Eu do outro seria inexistente para o sujeito. Aulagnier nos faz esta
observação a respeito do objeto-droga, mas poderíamos pensar ser também este o caso
de um outro investido que tivesse para com o investidor a postura do mais profundo
desprezo, indiferença – posturas apontadas por Freud em 1915 como sendo o verdadeiro
contrário do amor. Em decorrência dessa “inexistência” do objeto para o eu, teríamos
um sujeito que direcionaria uma demanda a um outro que teria, assim, o poder de prazer
e de fazê-lo sofrer, mas o sujeito, devido à indiferença mostrada pelo outro, não teria
essa possibilidade, colocando-se como não possuidor do poder de fazer sofrer.
A definição que a autora confere à paixão excluiu a idéia de uma relação
passional compartilhada ou recíproca. Ela diz:
Defino por este termo [a paixão] a relação em que o Eu situa o Eu do outro como objeto de
necessidade, tomando portanto o seu próprio Eu privado daquilo que apenas este objeto poderia
tornar possível. Para que o Eu possa projetar este poder desmedido e alienante no outro será
ainda necessário que os mecanismos projetivos continuem ocultos (para ele), isto é, que o outro
se apresente como autopossuidor de uma onipotência, não precisando de nada, não tendo
nenhuma necessidade do Eu investidor ou qualquer outro Eu (Id., ibid., p. 154-155)
Como características próprias à relão passional amorosa, a autora ressalta:
1) O fato de o Eu se pensar como capaz de oferecer prazer ao objeto, mas jamais o
de ser fonte de sofrimento para este. Esta seria, segundo a autora, uma das
razões da dependência passional e do sofrimento que ela comporta.
2) O Eu atribuiria ao Eu do outro o poder de prazer exclusivo. O Eu do outro
tornar-se-ia o único capaz de satisfazer o que se tornou para o primeiro Eu uma
necessidade de prazer, ao mesmo tempo em que teria um poder desmedido no
registro do sofrimento. Este assume prevalência na relação passional, seja pela
rejeição por parte do objeto, seja pelo medo dessa rejeição. Esse poder de
sofrimento, exercido pelo outro em seu excesso, pode chegar a induzir o sujeito
a preferir a morte à ausência ou à rejeição do outro.
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3) O outro satisfaz Eros durante o prazer sexual que os momentos de encontro
podem produzir, ou um prazer imaginado durante a espera, e satisfaz também
Tanatos, uma vez que traz junto de si o risco de morte e às vezes, de assassinato.
Aqui, poderíamos acrescentar que este outro satisfaria a Tanatos pois traria junto
de si um aniquilamento psíquico das funções egóicas, dada a situação de total
passividade em que o sujeito se encontraria ante esse outro dotado de todas as
características idealizadas, conforme tivemos possibilidade de observar acima, e
que se coloca como objeto da necessidade.
4) Uma vez convencido da incapacidade de fazer sofrer o outro, inversamente, o Eu
se convenceria do excesso de sua própria capacidade de sofrer. Não se trata
mais, como ressalta a autora, de um “eu gozo, portanto eu amo”, mas de um
“sofro, portanto eu amo” (Id., ibid., p.155). E mais adiante acrescenta: “A
supremacia do sofrimento como o desejo de não mais sofrer e não mais desejar
que daí resultam, mostram que a escolha de objeto é mais obra de Tanatos do
que de Eros” (Id., ibid., p. 157).
Após estas considerações devemos nos deter em um ponto ressaltado pela autora
– o fato de o objeto da paixão se mostrar como da ordem da “necessidade”.
Para Aulagnier, haveria duas formas de prazer: o prazer necessário e o prazer
suficiente. O objeto da paixão estaria no âmbito do primeiro tipo de prazer, que diria
respeito aoprazer necessário para que a vida do Eu seja possível” (Id., ibid., p. 139).
Para isso, haveria quatro condições necessárias, sendo que as duas primeiras diriam
respeito ao Eu materno, no início da vida do sujeito, enquanto as duas últimas se
refeririam às características psíquicas do Eu, suas exigências vitais. Estas seriam:
1) A condição de que o corpo habitado pelo Eu, gozando do bom funcionamento de
seus órgãos, tenha a possibilidade de encontrar os únicos objetos a satisfazer as
necessidades e as funções do corpo.
2) É necessário que o Eu tenha sido antecipado e, portanto, “pré-investido” pelo Eu
do porta-voz. A autora se refere, neste ponto, ao desejo do porta-voz de fazer
viver um corpo, desejo que permitiria que a vida não se reduzisse a um estado
vegetativo.
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3) É necessário que o Eu possa continuar investindo um nimo de referências e
pensamentos com função identificatória, necessários para que esse mesmo Eu
possa se pensar, se representar, e investir em si mesmo como existente.
4) É necessário, na cena da realidade exterior, ao menos um outro Eu que continue
a ser ponto de apoio e suporte de investimento. Esta é a condição para que um
fragmento da realidade continue a existir para o olhar do Eu, e condição para
que o Eu continue a existir, ainda que para o olhar de um outro. A respeito
desse prazer, Aulagnier acrescenta:
Ora, quer se trate das necessidades do corpo ou da psique, a satisfação dessas necessidades se
acompanhará sempre de uma vivencia de prazer, sem o que o Eu se recusaria a investir o ato
psíquico e motor, que permite esta satisfação. Existe, portanto, um prazer mínimo e um prazer
necessário cuja realização é uma condição da vida e uma condição para que o Eu invista o
funcionamento da psique e do corpo e suporte os momentos de sofrimento inevitáveis ao fato de
viver. Este prazer faz parte das necessidades, é a primeira necessidade que deve ser satisfeita e o
será sempre enquanto o sujeito permanecer em vida (Id., ibid., p. 140).
Esse tipo de prazer necessário coincide com o pprio acesso à vida, de onde
decorre que preservá-lo seria preservar-se vivo. O outro tipo de prazer ressaltado pela
autora seria o prazer suficiente, que diria respeito às escolhas do Eu. Para a autora, para
que esse prazer seja acrescentado ao prazer necessário, é preciso que o Eu tenha
convicção de que não é amado por obrigação ou necessidade, mas porque foi escolhido
e também escolheu.
O que percebemos, após o estudo dos tipos de prazer, baseados nas indicações
de Aulagnier de que o objeto da paixão seria colocado na ordem da “necessidade”, e
teria mais a ver com a manutenção da vida do Eu do que com suas escolhas, é que o
objeto da paixão perderia o caráter de contingência que caracteriza o objeto da pulsão,
para tornar-se imperioso, imprescindível à sobrevivência do sujeito.
Gantheret (1999) também aponta para o caráter de necessidade do objeto da
paixão, que se oporia à contingência, implicando uma troca de registro do objeto. Para
ele na paixão tenderíamos a passar do registro do desejo para o da necessidade. Para
este autor, isto seria possível através de um mecanismo regressivo do desenvolvimento
sexual, em uma espécie de des-apoio, poderíamos propor.
Gantheret parte do princípio de que o sexual nasce da autoconservação no tempo
de um apoio, no qual um componente sexual se destacaria e se afastaria ainda mais do
componente orgânico – momento que, segundo o autor, Laplanche aponta como sendo o
do auto-erotismo, em que o sujeito tenta emancipar de sua satisfação do exterior, bem
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como se emancipar de sua dependência em relão a outro ser humano, partindo em um
terceiro tempo, finalmente, para o amor objetal. O que ocorreria no caso da paixão seria
o movimento oposto, ou seja, uma tentativa de retorno a esse ponto de apoio, ou além, o
retorno a esse momento mais primitivo no qual a satisfação se colocava a serviço da
necessidade.
Neste ponto, devemos expor uma observação importante feita por Marta
Rezende Cardoso (2005) a respeito dessa noção de retorno à necessidade, porque a
noção de necessidade deve aqui ser relativizada. Não se trata de um retorno a um corpo-
organismo, mas a um corpo erógeno, uma vez que estaríamos dentro do espaço psíquico
da subjetividade.
A partir disso, podemos propor que este movimento de des-apoio defendido por
Gantheret favoreceria a compreensão de certas tentativas de solução que tendem a
promover o desvio de um regime objetal desconnuo, necessariamente satisfatório,
como o regime da pulsão, rumo a um regime substancial, contínuo, que seria o da
necessidade. No entanto, esse método de funcionamento não faria com que a
insatisfação desaparecesse, uma vez que o sujeito não está preso somente à necessidade,
mas também é submisso às reivindicações pulsionais sexuais. Apenas a forma de busca
de satisfação mudou, deixando de caminhar de objeto substituto a outro, para caminhar
em direção ao ainda mais do mesmo objeto.
O que podemos observar, considerando tais apontamentos feitos por Gantheret é
que a ênfase nesse tipo de satisfação estaria no caráter urgente dessa busca. A paixão se
exacerbaria sobre seu objeto, buscando, por assim dizer, consumi-lo, em um mecanismo
quantitativo, sempre buscando mais e mais. No entanto, como o próprio autor ressaltou,
a insatisfação não desapareceria, porque o sujeito ainda permanece submisso à
reivindicação pulsional. Tendo em vista que a plena realização da pulsão seria utópica,
uma vez que o objeto não será duravelmente satisfatório, Gantheret aponta:
Qual será a plena realização dessa necessidade? Uma dissolução do objeto em um nirvana onde
desaparecem as fronteiras, os limites. O retorno ao paraíso perdido (mesmo que ele jamais tenha
existido) da autoconservação. Este é o ideal da pulsão: o retorno ao nada (GANTHERET, 1999,
op. cit., p. 96 – a tradução é nossa).
Ao estudarmos o objeto da paixão como objeto da “necessidade” nos deparamos
com alguns pontos importantes, e que cabe aqui investigar um pouco mais detidamente,
uma vez que acreditamos haver neles apontamentos de extrema relevância para
45
considerarmos a relação entre a paixão e o excesso pulsional, ou antes, a violência
psíquica. O próprio estado de abertura diante do objeto que é colocado como
“necessário” nos permite relacionar o passional à dimensão de violência psíquica. O
mecanismo regressivo em jogo na busca pela satisfação, também.
No encontro com esse objeto da ordem do absoluto, o sujeito se coloca diante
desse outro em uma condição de passividade radical. Seu ego, já enfraquecido em
decorrência da balança pulsional, encontra-se completamente aberto ao outro, esperando
que este seja fonte de seu prazer. Recordamos, pois, o que foi proposto por Aulagnier,
aqui com uma ressalva nossa: de que este outro, segundo a autora, seria fonte de prazer
e sofrimento para o sujeito.
Acrescentamos ainda o apontamento feito por esta autora a respeito de o objeto
da paixão satisfazer a Eros e Tanatos. No que se refere à satisfação tanática, ela diz que,
através desse objeto, o sujeito pode encontrar a morte. Nãosica, mas uma morte
psíquica, uma vez que tenderia a uma forma de satisfação que necessita de um outro que
“deseje” fazê-lo viver, como um dia sua mãe lhe fez, e em relação à qual permaneceu
em estado de abertura a ponto de receber dela, e do mundo ao redor, mensagens das
quais não teve como dar conta.
O que nos parece ver aqui é uma certa revivescência dessa situação, o que
aponta para o que poderíamos chamar paixão mortífera – no sentido de tender a uma
inação psíquica, a um momento em que ainda não é possível assimilar, ligar, enfim,
realizar trabalho psíquico, e também no sentido de um sujeito totalmente aberto ao outro
em sua demanda de amor e que encontra, além deste, o sofrimento de não poder dar
conta das quantidades de energia que invadem seu psiquismo e que seu ego não tem
como ligar. Assim, permaneceriam num tempo de eterno presente, impondo sua
exigência de satisfação, de cada vez mais do mesmo, ou seja, como veremos
detalhadamente adiante, num tempo relativo ao trautico.
CAPÍTULO II
Sobre o traumático e o intraduzível
Na ópera – essa obra de arte que tem origem nos cantos gregos que exibiam o
aspecto trágico da vida, da natureza – podemos encontrar as paixões em suas mais altas
expressões. Hoje, são os cantores que nos oferecem esse canto sobre o que há de trágico
na vida humana – a paixão, e que em última instância remonta ao que há de mais
comum a toda humanidade: sua infância remota. Ao que nos diz Silva, “A paixão é a
expressão sintomática do imbricamento do sujeito na sua história infantil e possui o
caráter de alienação de si e desconhecimento do outro em sua diferença.” (SILVA,
2002, p. 23).
Mas o que seria isto que tomaria conta do artista? E por que isto aconteceria?
Somos confrontados com a dimensão do excesso, em última instância, com o excesso
pulsional. Como se houvesse no artista a presença de uma espécie de “força estranha
que se impõe ao seu psiquismo e o impele a criar. Força que, por tamanha intensidade,
terminaria por se colocar como violenta para o sujeito.
Ao levantarmos as características dessa força, segundo a maneira como esta se
nos apresenta, torna-se possível estabelecermos uma articulação desta dimensão de
excesso pulsional com a noção de trauma – que já engloba categorias como a do
excesso, da violência psíquica, bem como a da impressão e da “marca” psíquica.
No entanto, para que esta articulação seja feita de forma mais clara, passamos,
então, à tarefa de delimitar e explorar a questão do trauma na teoria freudiana, visando
dar continuidade e densidade a nossa pesquisa sobre os aspectos subjetivos envolvidos
no processo de criação artística, em particular na ópera, tendo em vista o papel aí
desempenhado pela dimensão do traumático e do “intraduzível”, marca de uma
violência pulsional que, se faz encenar, atuar.
II.1 – Trauma e excesso pulsional em Freud
A noção de trauma encontra-se presente na obra freudiana desde seus primórdios
(1893 – 1897), em uma fase que se convencionou chamar de pré-psicanalítica. Já nos
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seus primeiros textos, encontramos a noção de trauma como sendo proveniente de um
excesso de excitação (sexual, neste caso), que seria imposta por um outro, sedutor,
deixando o indivíduo em uma situação de impotência.
Nesta fase do pensamento de Freud, o trauma é tomado como hipótese etiológica
da histeria, estritamente correlacionado à teoria da sedução. Àquela época, Freud
encontrava na clínica vários registros que davam conta de que suas pacientes teriam
sofrido, em uma época inicial de suas vidas, sedução por parte de um adulto. Essa teoria
foi abandonada por Freud em 1897, porém, através de suas complexidades, podemos
observar o que era reconhecido como trauma ocorreria em decorrência dessa sedução,
ou antes, pelo caráter de passividade que caracterizaria o sujeito diante dessa vivência.
Encontramos a necessidade de duas cenas: a primeira, que ofereceria a força
traumática, enquanto a segunda ofereceria a condição traumatizante. Assim, a primeira
cena ficaria como enquistada no aparelho psíquico, sendo que só se tornaria traumática
quando da ocorrência da segunda cena. A respeito disso, Freud nos diz: “Devemos antes
presumir que o trauma psíquico – ou, mais precisamente, a lembrança do trauma – age
como um corpo estranho que, muito depois de sua entrada, deve continuar a ser
considerado como um agente que ainda está em ação” (FREUD, 1893-1895/1996, p.
42).
Ana Lila Lejarraga chama-nos a atenção para o fato de que, nessa primeira teoria
do trauma, não se trata de um fator desencadeador, externo, que agiria traumaticamente,
mas sim a lembraa do mesmo. Para ela, o agent provocateur que desencadearia o
sintoma não poderia ser considerado um simples fator externo, mas sim, um “externo
que se interioriza” (LEJARRAGA, 1996, p. 6). Seguindo este raciocínio, podemos
compreender a célebre frase de Freud que indica que “os histéricos sofrem
principalmente de reminiscências” (FREUD, 1893-1895, op. cit., p. 43). Seria a
lembrança que desencadearia o sintoma, e não o fator externo.
Ao contemplarmos esta fase inicial da teoria do trauma, que parece fundir-se à
teoria da sedução, percebemos que lidamos aqui com vários donios diferentes. O
primeiro com que nos deparamos, podemos propor, seria o aspecto da passividade
presente nessa primeira teoria do trauma. Este aspecto mostra-se de grande importância,
pois se coloca como condição sine qua non para que o traumático se instaure. O sujeito
se encontraria passivo ante o inesperado, e estaria assim sem condições de lidar com
48
esse sexual que viria do adulto, por encontrar-se ainda em uma fase “pré-sexual” de seu
desenvolvimento.
Entramos, neste ponto, em outro dos domínios, o que dá conta do aspecto
tradutivo. A vivência de um segundo episódio traria à tona a primeira cena, ou antes, os
afetos suscitados por ela, mas que dada a situação de passividade do sujeito, não
conseguiram encontrar descarga, e seriam assim responsáveis pelo sintoma.
Outro aspecto que encontramos, de grande relevância, é o fato de que, já nessa
época, a iia de trauma implica para Freud uma questão quantitativa. A noção de
trauma implica a idéia de afetos não-descarregados, de uma intensidade que, associada a
uma lembrança, a torna patógena. “O trauma é definido, em termos quantitativos, como
incremento de excitação que não foi descarregado, como as quantidades (de excitão)
que não tiveram um escoamento por vias normais” (LEJARRAGA, 1996, op. cit., p.
13). Essa visão quantitativa terminará por oferecer um elo entre a primeira teoria do
trauma e a segunda, formulada pouco mais de vinte anos mais tarde, a partir do “Além
do Princípio do Prazer”.
Freud, como vimos, põe de lado a hipótese da sedução em 1897, quando diz não
crer mais em sua histerica. Seja porque as tentativas de chegar a uma primeira cena se
mostraram infrutíferas, ou por um simples questionamento de caráter estatístico, conclui
que, seguindo esta linha de pensamento, seríamos levados a considerar que todos os pais
seriam perversos. Desta forma, Freud passa a dotar de maior importância a fantasia nos
processos mentais, passando a sedução para um outro plano da teoria.
II.2 – A segunda teoria do trauma
No entanto, as neuroses traumáticas, as neuroses de guerra, os sonhos
apresentados por seus pacientes, bem como a observação de outros fenômenos, como a
repetição em jogos infantis e na análise, levam Freud a reformular a sua teoria,
considerando a existência de algum fator psíquico que não obedeça ao princípio de
prazer. Ao investigar esse fator, Freud novamente iesbarrar na temática do trauma,
que retorna à cena da teoria como excesso de excitação que transborda o aparelho
49
psíquico e fica fora do princípio de prazer, sendo assim ressignificada a partir da nova
teoria pulsional, com a postulação da pulsão de morte.
Essa concepção do traumático, conforme postulada em 1920, nos servirá de guia
em nosso percurso. Nesse texto, Freud articula intimamente o trauma ao pulsional, e
explora a questão da incapacidade de defesa por parte do aparelho psíquico diante do
excesso pulsional na situação traumática. Assim, a partir desse momento, o problema da
ineficácia das ligações, da ausência de respostas de defesa do aparelho, a passividade e
sua relação com o trauma vêm ao primeiro plano da teoria.
A teorização de Freud a respeito do trauma em 1920 começa a ser esboçada a
partir da proposição do modelo da vesícula, no capítulo IV de “Além do princípio do
Prazer”. Trata-se, portanto, como nos aponta Freud, de uma vesícula indiferenciada de
uma substância suscetível à estimulação. Por sua própria situação, a camada superficial
dessa vesícula, que, portanto, encontra-se voltada para o meio externo, se diferenciaria e
serviria de órgão para o recebimento de estímulos. Pelo impacto constante de estímulos
externos, essa superfície, a certa profundidade, teria sua substância modificada.
Formar-se-ia assim uma crosta calcinada pela estimulação que apresentaria condições
favoráveis para a recepção de estímulos, tornando-se incapaz de outra modificação. A
camada mais interna, em conseqüência, teria uma outra forma de funcionamento.
Assim, a camada externa funcionaria como uma membrana protetora, resistente
a estímulos. “Através de sua morte, a camada exterior salvou toda as camadas mais
profundas de um destino semelhante” (FREUD, 1920, op. cit., p.38). Em conseqüência
disso, as energias do mundo externo só poderiam passar para camadas mais profundas
com uma parcela da intensidade original; assim, essas camadas poderiam passar a
receber as quantidades de excitação que a camada receptora externa deixou passar. Para
Freud, esse escudo protetor assim formado seria suprido com seu próprio estoque de
energia e deveria
acima de tudo, esforçar-se por preservar os modos espaciais de transformação de energia que nele
operam, contra os efeitos ameaçadores das enormes energias em ação no mundo externo, efeitos
que tendem para o nivelamento deles e, assim, para a destruição (Id., ibid., p. 38).
No entanto, ocorre um problema: essa camada interna não receberia apenas
estímulos provenientes do exterior, mas também excitações oriundas do interior, contra
as quais, porém, não pode haver escudo de proteção. Essas excitações provenientes das
camadas mais profundas estendem-se para o sistema consciente em quantidade não
50
reduzida “até onde algumas de suas características dão origem a sentimentos da série
prazer–desprazer” (Id., ibid., p. 39). Em conseqüência disso, os sentimentos de prazer e
desprazer predominam sobre todos os estímulos externos.
A partir disso, Freud nos oferece a seguinte definição de traumático:
Descrevemos como traumáticas quaisquer excitações provindas de fora que sejam
suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma
implica necessariamente uma conexão desse tipo com uma ruptura numa barreira sob outros
aspectos eficaz contra os estímulos. Um acontecimento como um trauma externo está destinado a
provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da energia do organismo e a colocar
em movimento todas as medidas posveis. Ao mesmo tempo, o prinpio de prazer é
momentaneamente posto fora de ação. Não mais possibilidade de impedir que o aparelho
mental seja inundado com grande quantidade de estímulos; em vez disso, outro problema surge, o
problema de dominar as quantidades de estímulo que irromperiam e de veiculá-las no sentido
psíquico a fim de que delas se possa então desvencilhar (Id., ibid., p. 40)
Freud ainda acrescenta que, a respeito das excitões provenientes do interior, a
transmissão desses estímulos possui preponderância em importância ecomica, e
acrescenta ainda que “as mais abundantes fontes dessa excitação são aquilo que é
descrito como pulsões” (Id., ibid., p. 45). Ora, os impulsos oriundos das pulsões não
pertenceriam aos tipos de processos nervosos ligados, mas a processos do tipo
livremente móvel, que pressionam no sentido de descarga. Assim sendo, caberia aos
estratos mais elevados do aparelho mental a tarefa de sujeitar a excitação pulsional. O
fracasso ao efetuar essa sujeição, provocaria distúrbios análogos à neurose traumática, e
somente depois é que seria possível a domincia do princípio do prazer.
Ao contemplarmos a noção de trauma conforme proposta por Freud em 1920,
percebemos como o próprio pulsional pode apresentar-se como traumático. No entanto,
devemos nos lembrar que a própria noção do que seja pulsional sofre modificações a
partir desse texto, com a postulação da pulsão de morte, que é tomada como a pulsão
por excelência.
Essa pulsão é postulada a partir da observação de fenômenos como a compulsão
à repetição, como os que ocorreriam na repetição dos sonhos nas neuroses traumáticas,
na análise de alguns pacientes e também nos jogos infantis. Freud então propõe que
parece haver um atributo universal das pulsões, que diz respeito a tentar restaurar um
estado anterior de coisas, e que teria sido abandonado pela entidade viva sob a pressão
de forças perturbadoras externas.
Assim, nós que estaríamos acostumados a ver nas pulsões uma força que
impeliria ao progresso, devemos, a partir desse momento, vê-las como a expressão da
51
natureza conservadora, podendo, no entanto, haver outros tipos de pulsão, segundo nos
aponta Freud, que impeliriam ao progresso e à produção de novas fórmulas.
Somos apresentados aqui a um novo dualismo pulsional. De um lado, as forças
pulsionais que tenderiam a um estado anterior, inanimado, inorgânico, nos termos de
Freud, e que visaria o escoamento total de excitação, tendendo ao absoluto, que seriam
as pulsões de morte, enquanto do outro lado encontraríamos as pulsões de vida, que
tenderiam à união, à ligação.
Cabe ainda ressaltar que ao tomarmos a pulsão de morte como destrutiva,
devemos fazê-lo a partir do ponto de vista do ego, uma vez que, constituiria uma
ameaça à integridade do ego. Cattapan diz que “em última instância, a pulsão de morte
aponta para uma alteridade radical – aquilo que se apresenta como estranho ao ego. Ela
é a evidência de um além da representação, da violenta imposição de uma outra coisa ao
invólucro egóico” (CATTAPAN, 2004, p. 35).
Essa visão de trauma, pautada na invasão do ego por um pulsional disruptivo é
aprofundada por Jean Laplanche. Este aprofundamento, de grande importância e riqueza
para os nossos propósitos nesta pesquisa, é o objeto, eno, de nosso próximo tópico.
II.3 – Uma teoria do trauma marcada pela alteridade: a contribuição de
Jean Laplanche
Pautado na noção de trauma pela sedução, especialmente nos textos em que a
mãe é colocada como primeiro sedutor, bem como nas idéias de Ferenczi, Laplanche
propõe uma teoria da sedução generalizada, em oposição a uma teoria da sedução que
ele denomina restrita, e que diria respeito à primeira teoria da sedução proposta por
Freud. Trata-se de uma nova concepção do trauma, longe de ficar restrita ao plano do
“acontecimento”, passando a ter um valor estruturante na vida do sujeito (UCHITEL,
2001, p. 108).
A teoria da sedução generalizada representa a relação primária entre mãe e bebê
pelo prisma da sedução. Partindo da noção de mãe como o primeiro sedutor, Laplanche
supõe uma sedução originária por parte da mãe em relação ao bebê, objeto de
investimento dela e que o diria respeito apenas aos cuidados maternos que
promoveriam a excitação das zonas erógenas, mas, além disso, apontaria para a hipótese
52
de que “(...) o confronto adulto–criança envolve uma relação essencial de atividade–
passividade, ligada ao fato inelutável de que o psiquismo dos pais é mais ‘rico’ que o da
criança” (LAPLANCHE, 1992, p. 134).
O que Laplanche deseja demonstrar a partir disso é que durante os cuidados
maternos, a mãe passaria para a criança conteúdos inconscientes, de si mesma
desconhecidos, mas que chegariam à criança sob a forma de significantes enigmáticos.
Esta situação configuraria a sedução originária. A respeito disso, Laplanche nos diz:
Por meio do termo sedução origiria qualificamos, portanto, essa situação fundamental em que
o adulto propõe à criança significantes não verbais assim como verbais, inclusive
comportamentais, impregnados de significações sexuais inconscientes.o é preciso procurar
muito longe para dar exemplos concretos do que eu chamo significantes enigmáticos. O próprio
seio, órgão aparentemente natural da lactação: pode-se continuar a negligenciar na teoria analítica
seu importante investimento sexual e inconsciente pela mulher? Pode-se supor que esse
investimento sexual, que pode ser considerado perverso no sentido dos ‘Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade’, não é percebido, suspeitado pelo bebê, como fonte desse obscuro
questionamento: o que ele quer de mim, além de me aleitar, e no fim das contas, por que ele quer
me aleitar? (Id., ibid., p. 134-135).
Laplanche neste ponto baseia-se nas idéias de Ferenczi, que coloca a situação
originária como sendo a confrontação da criança com o mundo adulto. O mundo adulto
não seria um mundo objetivo, que a criança teria que descobrir e aprender (como
aprender a caminhar, por exemplo), mas se caracterizaria pelas mensagens que
questionam a criança antes que ela as compreenda, mas às quais deve dar sentido e
resposta (Id., ibid., p. 133).
Porém, a criança ainda não teria como lidar com essa força que provocaria uma
exigência de trabalho ao bebê, na tentativa de dar conta do sexual, vivido por ele como
enigma. Esta situação possuiria, assim, um caráter traumático, configurando uma
situação de passividade diante da sedução sexual vinda do outro.
Assim, podemos dizer que o aspecto traumático dessa sedução está no caráter
inconsciente e ignorado que as mensagens, através das quais o adulto ime o pulsional
à criança, possuem, em relação ao próprio adulto. Essas mensagens, no entanto,
possibilitariam simultaneamente o início do trabalho de resposta à sedão: o trabalho
de representação, que instaura o psíquico. Laplanche diz:
Aquilo sobre o que insisti (...), prefigurando a idéia da sedução originária, é que há algo que
poderia ser dominado através de um trabalho de compreensão e que é traumatizante e recalcado,
justamente porque permanece como que em estado selvagem (Id., ibid., p. 136)
53
II.4 - As marcas traumáticas
Pudemos observar no tópico anterior que o trauma teria como conseqüência, no
psiquismo, efeitos que estariam para além do processo de representação. Esses restos do
trauma terminariam, assim, por apontar para a categoria do inassimilável. Para
Laplanche, esses restos, “fueros”, terminariam por constituir os objetos-fonte da pulsão,
que à revelia dos processos de transposição de energia e de distribuição de sentidos,
permanecem irredutíveis, inconscientes, pulsantes e traumáticos.
Pedro Cattapan, em sua dissertação de mestrado (2004, op. cit.), relaciona esses
restos às idéias propostas por Freud na carta 52 a Fliess, datada de 6 de dezembro de
1896, na qual é apresentado um modelo de aparelho de memória semelhante ao exposto
por Freud quatro anos mais tarde, em A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900).
Para Freud havia a hipótese de que o mecanismo psíquico teria se formado por
estratificação, sendo que o material disponível de traços mnésicos sofreria, de tempos
em tempos, uma reordenação, segundo novas relões, uma re-escritura.
A única diferença relevante entre esses dois modelos seria que no modelo da
carta 52 haveria, entre olo perceptual e o registro mnêmico II (a inconsciência), o
registro I, o das indicações de percepção. Esta primeira inscrição das percepções, sem
consciência, seria disposta segundo associações de sincronicidade. Podemos, a partir
dessas indicações, supor que haveria algo que seria percebido pelo aparelho, mas que
não seria inserido nas cadeias associativas de representação do inconsciente, sendo
incapaz de produzir qualquer sentido. Para Freud:
Quando falta uma transcrição subseqüente, a excitação é manejada segundo as leis psicológicas
vigentes no peodo anterior e consoante as vias abertas nessa época. Assim, persiste um
anacronismo: numa determinada região ainda vigoram os “fueros”; estamos em presença de
“sobrevivências” (FREUD, 1950 [1887-1902]/1996, p. 283).
Assim, a tradução para o registro da representação pode não ocorrer por conta de
uma irredutibilidade das marcas a possibilidades de associação e contenção de energia
e, em decorrência disto, sobraria assim um resto. Para Laplanche, essa recusa de
transcrição seria o recalcamento. Assim, as marcas apontariam tanto para algo
inassimilável como para a existência no aparelho psíquico de uma energia disruptiva,
violenta e indomada.
54
A noção de marca psíquica torna-se, neste trabalho, de extrema importância para
a compreensão do processo de criação artística, devido ao fato de os efeitos intensos
desses elementos não poderem ser incluídos no modelo de inscrição da sublimação, uma
vez que implicariam a ineficácia no trabalho egóico de ligação. Ao contrário, elas
apontariam para a força sempre pulsante dos conteúdos não-ligados, e que justamente
por isso impeliriam o sujeito à criação, como se através dela fosse capaz de poder
dominar esses componentes que seu ego por si só não é capaz de dominar.
Essa questão revela-se de grande utilidade para pensarmos a noção de criação
artística como um evento que viria a tentar ligar o que a princípio parece da ordem do
inassimilável, mas que seria capaz de encontrar uma expressão através da obra de arte.
II.5 – A arte como saída para a violência psíquica
Uma vez contemplados os aspectos traumáticos que acreditamos estarem
envolvidos na produção artística, devemos agora tentar oferecer uma hipótese de como
estas marcas entrariam em jogo no processo de criação.
Cattapan & Cardoso, no artigo “Criação artística: no limite da vioncia
psíquica” (2004), oferecem-nos uma associão possível entre as marcas traumáticas e a
predisposição pessoal para a criação artística que Freud já apontara no texto sobre
Leonardo da Vinci (1910).
Baseados nas idéias de Jean Laplanche, os autores nos apontam o fato de que
essa predisposição diria respeito a uma precariedade egóica do sujeito – artista. Este não
teria suas fronteiras bem delimitadas, o que pressupõe um estado de abertura ao trauma.
Haveria, no artista, apesar da existência do recalque, uma abertura ao enigma
(CARDOSO & CATTAPAN, 2004, p. 172) ao qual nos referimos acima.
Eles relacionam esse estado ao que Laplanche denomina inspiração. Esse estado
evocaria a vivência do artista de ser afetado por uma força que lhe é externa, e que
termina por impulsionar a sua obra. Para Laplanche, esta seria a marca em potencial dos
grandes artistas, indicando que esta situação daria conta do momento impulsivo que
antecede o processo de criação artística. O artista seria afetado pela inspiração e, para
este autor, somente aqueles que têm essa experiência é que podem ser considerados
verdadeiros artistas.
55
Segundo os autores:
A inspiração supõe a possibilidade de manter-se num estado de sedução, situação que apela à
relação primária. A inspiração pressupõe a manutenção de um estado de “abertura” pelo trauma e
para o trauma: ela proporciona a possibilidade de criar, porém sem promover o fechamento
próprio ao recalque. Podemos reconhecer aí a criação de uma representação, mas que é
qualitativamente diferente daquela que sustenta o mecanismo da sublimação, uma vez que se
trata de um processo de ligação capaz, porém, de manter especialmente viva a potencialidade dos
elementos não-ligados, os quais continuam produzindo efeitos, fonte maior da inspiração na
criação arstica. O artista seria aquele que é capaz não somente de viver essa experiência do
trautico, e de dar conta desse excesso mediante a criação, como também é aquele que mantém
essa abertura, de modo que o recalque não se faz dominante – ao contrário: ele se revela frágil
(CATTAPAN & CARDOSO, 2004, op. cit., p. 173).
A compreensão dessa proposição torna-se mais fácil se remontarmos ao que
dissemos anteriormente a respeito da relação inicial mãe-bebê e da transferência das
mensagens enigmáticas. Uma vez que este não teria suas fronteiras egóicas delimitadas,
encontrar-se-ia aberto ao outro (a mãe, no caso), de quem receberia toda uma carga de
conteúdos sexuais enigmáticos, que não teria ainda a capacidade de efetuar o trabalho
de ligação. Ora, o que encontramos é uma visão de artista que em muito se assemelha
com a visão do bebê proposta por Laplanche a respeito de sua teoria da sedução
generalizada, com a característica marcante de uma abertura radical ao outro, o que
facilitaria o ataque desses conteúdos enigmáticos, violentos, e que, por não conseguirem
uma representação, continuariam pulsantes e impulsionando ao trabalho de elaboração.
Guillaumin, em Le Moi Sublimé, nas diz que a obra de arte viria a cumprir essa
exigência de trabalho que essas marcas impõem, no sentido a elaborar esses elementos
que permanecem enquistados no psiquismo. Para este autor, a criação:
...aparece sem dúvida em um ponto e um momento precisos, sob a forma de um afluxo
quantitativo de energia desligada, conseqüência da ruptura de um arranjo interno com função de
pára-excitação, que habitualmente garantia uma certa distância em relação aos objetos
(GUILLAUMIN, 1998, p. 10 – a tradução é nossa).
O artista seria capaz de dar conta dessa energia desligada ao criar a obra de arte,
pois ela se colocaria como uma espécie de tópica extraterritorial, na qual seria projetado
o aparelho psíquico do artista. Nesta tópica, o conflito seria depositado, e nela poderia
ser elaborado – o que viria a atenuar a angústia advinda dos embates traumáticos com o
ego. O artista precisaria da obra para defender-se do ataque pulsional disruptivo que
abala a organização egóica. É nesse sentido que o artista pode se tornar escravo de sua
própria obra, uma vez que ela lhe ofereceria a possibilidade de se haver com o que há de
mais violento, disruptivo em si mesmo.
56
Guillaumin dá a essa necessidade do artista de se “reparar” através da obra de
arte o nome de Reação Criadora Negativa. Através deste processo, essa tópica
extraterritorial que seria a obra de arte funcionaria como uma espécie de autocriação
projetiva, na qual estariam em jogo mecanismos psíquicos muito primitivos, sutilmente
agenciados (Id., ibid., p. 19). Esses mecanismos destacariam a importância dos destinos
pulsionais quando o recalqueo ocorre: a transformação no seu oposto e o retorno
sobre a própria pessoa. Mas vejamos a proposição de como isto ocorre, prosseguindo
com nosso estudo das proposições de Guillaumin, aproveitando para contemplar outros
aspectos igualmente importantes.
Dissemos acima que Guillaumin confere a esta capacidade do artista de se
reparar” através da obra de arte, o nome de Reação Criadora Negativa. Para propor este
nome, ele se baseia na proposição de Freud de Reação Terapêutica Negativa, termo
definido por Laplanche & Pontalis:
Fenômeno encontrado em certos tratamentos psicanalíticos como tipo de resistência à cura
especialmente difícil de superar: cada vez que se poderia esperar uma melhoria do progresso da
análise, produz-se um agravamento, como se certos sujeitos preferissem o sofrimento à cura
(LAPLANCHE & PONTALIS, 1982/2004, p. 424).
Esse fenômeno se mostra em determinadas análises em que uma resolução, que
deveria ter como conseqüência a melhora ou o desaparecimento passageiro dos
sintomas, provoca nos pacientes um reforço momentâneo de seu sofrimento (FREUD,
1923/1996, op. cit.). Este fato já foi exposto por Freud em “Recordar Repetir e
Elaborar” (FREUD, 1914b/1996) onde ele chama a atenção para o “agravamento do
tratamento”, e atribui ao retorno do recalcado a causa desse fato. Freud nos fala, nesse
texto, de uma reação ao progresso do tratamento, quando a transferência se torna hostil,
e portanto, precisando de recalque, a repetição abriria caminho à atuação. O paciente
então não se colocaria a recordar as lembranças de sua infância, mas as atuaria em
relação ao analista.
Em 1920, Freud retoma o tema da repetição na análise. Nesse texto ele expõe
que o paciente não conseguiria recordar a totalidade do que nele se acha recalcado,
sendo que o que não lhe é possível recordar pode ser a parte essencial. Desta forma, o
paciente se vê, então, obrigado a repetir o material recalcado como se fosse uma
experiência contemporânea, em vez de, como o médico preferiria ver, recordá-lo.
57
Repetir seria a única elaboração psíquica possível para isso, que desta forma, seria
atuado.
Freud ainda aponta para o fato de que o que é re-experimentado sob a luz da
compulsão à repetição deve causar desprazer ao ego, pois traz à luz as atividades dos
impulsos pulsionais recalcados. Isso, no entanto, constitui desprazer de uma espécie,
uma vez que essa repetição diria respeito, na maioria das vezes, a situações
desprazerosas ao paciente, mas que não deixaria de causar prazer, no sentido em que
esta seria a única forma possível de elaboração encontrada pelo paciente. Assim, haveria
desprazer para um dos sistemas e, simultaneamente, satisfação para o outro.
Freud nos diz, a respeito disso:
Os pacientes repetem na transferência todas essas situações indesejadas e emoções penosas,
revivendo-as com a maior engenhosidade. Procuram ocasionar a interrupção do tratamento
enquanto este ainda se acha incompleto; imaginam sentir-se desprezados mais uma vez, obrigam
o médico a falar-lhes severamente e a tratá-los friamente; descobrem objetos apropriados para
seu ciúme; em vez do nenê apaixonadamente desejado de sua infância, produzem um plano ou a
promessa de algum grande presente, que em regra se mostra não menos irreal. Nenhuma dessas
coisas pode ter produzido prazer no passado, e poder-se-ia supor que causariam menos desprazer
hoje se emergissem como lembranças ou sonhos, em vez de assumirem a forma de experiências
novas. Constituem, naturalmente, as atividades de instintos destinados a levar à satisfão, mas
nenhuma lição foi aprendida da antiga experiência de que essas atividades, ao contrário,
conduziram apenas ao desprazer. A despeito disso, são repetidas sob a pressão de uma compulsão
(Id., 1920, op. cit., p. 32)
Ora, da mesma forma que o paciente repetiria a situação traumática na relação
com o seu analista, o artista, em sua obra, depositaria esses conteúdos traumáticos,
disruptivos em sua obra. Conteúdos estes que, nunca é demais ressaltar, o
impulsionariam a criar a obra, uma vez que esta se colocaria como única forma possível
para dar saída ao que não pode ser elaborado de outro jeito, para dar conta da angústia
decorrente do afluxo desses materiais o-ligados.
Assim, a obra se colocaria como um duplo do artista que pode ser manipulado e
elaborado por este, mas que leva em si mesma o caráter de estranho, conforme proposto
por Freud em 1919, daquilo que se expressa como enigma radical. Nesse sentido,
Cattapan (2004, op. cit.) nos diz que a obra seria uma outra possibilidade que o artista
teria de organizar aquilo que, não se representando, apresenta-se ao sujeito.
Em decorrência disto, teríamos que o artista se colocaria de maneira ativa onde
antes era passivo. Encontramos neste ponto, o que foi proposto por Guillaumin a
respeito dos mecanismos psíquicos primitivos, especificamente, a reversão no oposto no
58
que diria respeito ao par atividade-passividade. Neste quadro, a situação passiva ficaria
para o público.
Um outro paralelo pode ser traçado a respeito dessa passagem da passividade
para a atividade. Freud nos aponta uma situação, em 1920, na qual encontraríamos a
elaboração por uma atuação, na qual veríamos a passagem da passividade para a
atividade mais facilmente. Trata-se das brincadeiras infantis, femeno do qual Freud
nos fala a partir da observação do jogo do Fort - Da.
Nessa brincadeira, um menininho costumava a jogar um carretel longe, enquanto
pronunciava um longo “óóó”, que Freud relacionou com a palavra Fort, em alemão, ir.
Depois, puxava o carretel pela linha, e quando o via em sua frente novamente,
pronunciava Da (ali). Freud propõe que a brincadeira consistia em fazer sumir e fazer
aparecer o brinquedo.
Segundo Freud nos aponta, esta era uma forma, encontrada pelo menino, que lhe
permitia elaborar a ausência de sua mãe, e até mesmo, se vingar dessa ausência.
Quando jogava o carretel, ele o fazia sumir como sua mãe desaparecia para ele, e logo
depois, fazia aparecer o carretel, como desejaria que ela reaparecesse. Freud acrescenta
que “No início [a criança], achava-se numa situação passiva, era dominada pela
experiência; repetindo-a, porém, por mais desagradável que fosse, como jogo, assumia
papel ativo” (FREUD, 1920, op. cit., p. 26-27).
Freud observou ainda, em outras crianças, que experiências de natureza
desagradável com freqüência viravam motivo de brincadeira. Se uma criança era
examinada pelo médico, logo se punha a repetir essa experiência em sua próxima
brincadeira. Quando a criança passa da passividade da experiência para a atividade do
jogo, transfere a experiência desagradável para um de seus companheiros de brincadeira
e, dessa maneira, vinga-se em um substituto. Da mesma forma, o artista, através da obra
de arte, seria capaz de repetir uma experiência de ordem desagradável, dirigindo-se,
nesse caso, ao público. Freud, a respeito disso, nos diz:
Finalmente, em acréscimo, pode-se lembrar que a representação e a imitação artísticas efetuadas
por adultos, as quais, diferentemente daquelas das crianças, se dirigem a uma audiência, não
poupam aos espectadores (como na tragédia, por exemplo) as mais penosas experiências, e no
entanto, podem ser por eles sentidas como altamente prazerosas. Isso constitui prova convincente
de que, mesmo sob a dominância do principio de prazer, há maneiras e meios suficientes para
tornar o que em si mesmo é desagradável num tema a ser rememorado e elaborado na mente (Id.,
ibid., 1920, p. 28).
59
O que percebemos, portanto, é que haveria, na arte, um endereçamento, o qual
havia sido ressaltado anteriormente por Freud no texto de 1908 “Escritores criativos e
devaneios”. Guillaumin também atenta para este aspecto. Para ele o público, enquanto
outro, se colocaria como um espelho indispensável que o exterior pode pôr sobre o
próprio artista: “A sedução, ao menos potencial, do seu público é a garantia do efeito
reorganizador da criação para o criador” (GUILLAUMIN, 1998, op. cit., p. 13).
Isto porque, uma vez que o artista imprimiria em sua obra, em última instância,
conteúdos de si mesmo desconhecidos, enigmáticos, que encontram aí a única via de
escoamento, e terminam por se converter na mensagem passada para o público. Desta
forma, o público teria, assim, de se haver com o caráter “estranho” próprio ao artista que
ele imprime em sua obra, recebendo essas mensagens enigmáticas, colocando-se em
situação de sedução em relação à obra. A partir disso compreendemos o caráter
provocador da obra de arte, que provoca ems uma reação, ainda que da ordem do
estranho.
Apesar de tudo isso, no entanto, acrescenta Guillaumin, o artista ainda sofreria
para criar, e o resultado da criação de uma obra o satisfaria apenas temporariamente,
uma vez que, podemos propor, esses conteúdos enigmáticos, apesar de sua elaboração
na tópica extraterritorial que seria a obra de arte, por sua própria característica de serem
inassimiláveis no psiquismo, continuariam a impulsionar o artista a criar. Criar a obra
de arte revela-se necessário para que o artista possa encaminhar sua angústia, porém,
sem conseguir extingui-la (CATTAPAN, 2004, op. cit., p. 60). A arte, como tentativa de
representar o irrepresentável, ao mesmo tempo em que coloca o artista em situação de
trabalho, não é capaz de apaziguar sua anstia, mas apenas de direcioná-la.
A respeito da elaboração que o artista conseguiria através da criação da obra de
arte, Guillaumin ainda ressalta que o caráter destrutivo da pulsão sofreria uma mudança
em seu oposto. Poder-se-ia dizer que o artista criaria para fazer prevalecer o amor sobre
o ódio (GUILLAUMIN, 1998, op. cit., p. 68). Ao tomarmos esta proposição do autor
pelo prisma da segunda teoria pulsional, deveríamos propor haver nesse movimento o
trabalho de Eros sobre a pulsão de morte, ou antes, uma fusão entre as duas forças
pulsionais.
Tendo em vista o que aqui foi proposto a partir das idéias de Guillaumin a
respeito da criação artística, podemos propor que apesar dos aspectos disruptivos,
60
traumáticos, desligados envolvidos na criação artística, não devemos julgar que a obra
de arte não se trate de uma forma de inscrição. Apenas devemos atentar para o fato de
que a escrita da arte deve permitir que as marcas traumáticas participem efetivamente
dessa impressão.
Para compreendermos melhor isto, devemos agora nos voltar para o estudo da
arte como uma espécie de “espaço” em que essa escritura seria possível.
II.6 - A relação entre a escritura psíquica e a arte
Tendo já observado várias possíveis explicações para como podemos entender a
arte à luz da psicanálise, percebemos que na dinâmica de sua criação, estariam em jogo
basicamente dois componentes: as pulsões de morte e as pulsões de vida. Uma serviria à
outra. Enquanto a primeira motivaria a criação artística, em seu aspecto do excesso, do
disruptivo, exigindo trabalho; a segunda possibilitaria, por seu papel de união e de
representação, uma espécie de saída para essa energia traumática no psiquismo. Ora,
essas pules, para aparecerem transformadas em arte, precisam ser arquivadas,
“inscritas” no psiquismo. Ao que levantamos a pergunta: será que todas o são da mesma
forma? Isto porque se trata de dois tipos de pulsão diferentes: enquanto um pressupõe a
representação e a ligação (Eros), para a qual poderíamos falar de traços de memória,
para o outro, não haveria a possibilidade de ligação, e estaríamos então diante do
território das marcas, do terririo do intraduzível.
Pensar a questão da escritura em Freud, não constitui uma tarefa simples. Freud
nos oferece o desenvolvimento deste conceito ao longo de sua teoria. Desde o Projeto
para uma Psicologia científica” (1950 [1887-1902]), vemos sua preocupação com essa
questão, pois ela implicaria a questão de memória, o que era imprescindível à psicologia
da época. Como nos diz Derrida:
Em 1895 tratava-se de explicar a meria no estilo das ciências naturais, de “propor uma
psicologia como ciência natural, isto é, de representar os acontecimentos pquicos como estados
quantitativamente determinados de partículas materiais distintas” (DERRIDA, 1967, p. 184).
Neste texto, a escritura (ou antes, a relação entre percepção e memória) estaria
remetida à relação entre os neurônios φ e ψ, sendo os primeiros neurônios permeáveis,
que não ofereceriam resistência e não reteriam traço algum da percepção, enquanto os
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segundos oporiam barreiras de contato à quantidade de excitação, conservando o traço
impresso. Seriam estes últimos, portanto, que poderiam representar a memória, bem
como os outros processos psíquicos, já que seriam os únicos neurônios a ter qualidade
psíquica.
Neste quadro, a memória seria dada pela diferença de “exploração” entre os
neurônios ψ, onde: “o traço como memória não é uma exploração pura que sempre se
poderia recuperar como presença simples, é a diferença indiscernível e invisível entre as
explorações” (Id., ibid., p. 185).
Além disso, já em 1900, em A Interpretação dos Sonhos, Freud nos oferecera
uma nova visão para a escritura, contendo a questão do aparelho psíquico e do “texto
psíquico”, conforme chamou Derrida as ligações e relações entre os traços mnêmicos.
Estamos falando do modelo da primeira tópica, formulado para dar conta dos processos
psíquicos relacionados ao sonho (e que na verdade não estariam relacionados somente a
esses). Neste modelo, vemos os traços psíquicos como oriundos das percepções do pólo
perceptual/consciência. Eles (os traços), no entanto, são colocados em outra instância, o
inconsciente, o que permite que sejam o principal componente do sonho, ativados
quando do movimento regressivo do aparelho psíquico. São supostos no inconsciente,
pois se estivessem no consciente saturariam o pólo perceptual, dificultando a percepção.
Esta camada, portanto, deveria permanecer sempre aberta a novas percepções,
mantendo a noção do “Projeto”.
Neste sentido podemos ver a Traumdeutung como uma leitura dessa escrita
inconsciente, na qual os tros mnêmicos se ligariam uns aos outros, formando o
conteúdo onírico. É claro que essas ligações não aparecem apenas nos sonhos, mas na
sublimação, no sintoma, no ato falho... A escritura tem suas próprias leis, quais sejam,
as do inconsciente, uma vez que seria ali que se encontrariam esses tros mnêmicos.
Dessa forma:
Introduz-se aqui a ruptura freudiana. É certo que Freud pensa que o sonho se desloca como uma
escritura original, pondo as palavras em cena sem se submeter a elas; é certo que pensa aqui um
modelo de escritura irredutível à palavra e comportando, como os hieróglifos, elementos
pictográficos, ideogramáticos e fonéticos. Mas faz da escritura psíquica uma produção tão
originária que a escritura tal como julgamos pode ouvi-la em seu sentido próprio, escritura
codada e visível “no mundo”, não passaria de uma metáfora. A psíquica, por exemplo, a do
sonho que “segue explorações antigas”, simples momento na regressão para a escritura
“primária”, não se deixa ler a partir de nenhum código. (...) O sonhador inventa a sua própria
gramática (DERRIDA, 1967, op. cit., p. 196).
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Daí toda a questão da interpretação se coloca. Pois para acessarmos o
inconsciente, só poderíamos fazê-lo através de seus produtos que de alguma forma
atingem o consciente, o que já implicaria uma espécie de tradução. Mas seria válido
falar de tradução no que diz respeito à passagem de um processo (primário, no
inconsciente) para outro (secundário, do consciente), que segue uma outra lógica – a da
ligação, da linguagem?
Se observarmos o que Freud diz em um outro texto – “O Inconsciente” (1915), –
poderíamos encontrar uma via para pensar o que aconteceria. No inconsciente teríamos
o puro afeto e as representações-coisa (como se fossem imagens pictográficas),
seguindo a lógica aparentemente “a-lógica” do inconsciente. Para uma representação
(um traço mnêmico) atingir a consciência, seria necessária a ligação a um representante-
palavra. No consciente, portanto, estaríamos no terreno da lógica das palavras, o que
não dá conta da grandiosidade dessa escrita inconsciente. Desta maneira,
O texto não é pensável na forma originária ou modificada, da presença. O texto inconsciente já
está tecido de traços puros, de diferenças em que se unem o sentido e a força, texto em parte
alguma presente, constituído por arquivos que são, sempre já, inscrições. Estampas origirias.
Tudo começa pela reprodução. Sempre já, isto é, depósitos de um sentido que nunca esteve
presente, cujo presente significado é sempre reconstituído mais tarde, nachträglich,
posteriormente, suplementarmente... (DERRIDA, 1967, op. cit., p. 200).
II.6.1 - Da impressão das marcas traumáticas
Acabamos de ver como poderíamos pensar, no modelo da primeira tópica, o
processo de escritura dos traços mnêmicos. Entretanto, estes já pressuporiam uma
escritura, uma vez que poderiam ser ligados em uma cadeia de representações. Mas
como pensar as marcas traumáticas, provenientes de um excesso de excitação, que como
numa invasão, rompem o trabalho egóico de assimilação? Estas marcas ficariam como
cristalizadas no aparelho, pois, como nos diz Cattapan, “Marcas são irredutíveis às
possibilidades de associação e de contenção de energia; deste modo, as marcas apontam
tanto para algo ‘intraduzível’, ‘inassimilável’ quanto para a insistência, no aparelho, de
uma energia disruptiva, violenta, indomada” (Cattapan, 2004, op. cit., p. 38).
Poderíamos relacionar essa energia disruptiva ao trabalho da pulsão de morte,
uma vez que essas marcas imporiam ao corpo a exigência de trabalho, mas que
justamente por não serem capazes de sofrer o trabalho de ligação, estariam muito mais
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próximas do trabalho de desligamento da pulsão de morte. Entretanto, seria possível
pensar em uma escritura para tais marcas?
Se imaginarmos que essas marcas estão presentes no psiquismo e podem
inclusive contribuir para que ocorra a criação de um sentido na escritura, no que se
refere a tornar necessária a escritura dos traços mnêmicos, para que não se apagassem
(idéia que vamos desenvolver posteriormente), e no que diz respeito a participar da
gramática inconsciente, causando rombos, ou relevos, enfim, “marcando sua presença”;
poderíamos sim, dizer que essas marcas são impressas, de alguma forma. É como se as
moções pulsionais, ao invés de se ligarem aos representantes-coisas, permanecessem
sem esta ligação, livres, mas cristalizadas em uma espécie de nódulo dotado de uma
extrema força disruptiva. Portanto, poderíamos dizer que, escritas, no sentido de fazer
uma ligação, elas não estão. Mas estão impressas, de forma a dificultar a escritura dos
traços mnêmicos, ao mesmo tempo em que tornam esse trabalho imprescinvel. “Os
guardiões da vida tornam-se os lacaios da morte”, já nos dizia Freud, e parece que
poucas vezes veremos no estudo dos processos psíquicos algum exemplo tão claro.
E seria em meio a esse jogo que veríamos surgir as compulsões à repetição e a
própria arte, como uma forma de exteriorizar essa dinâmica, esse jogo entre o que é
escrito, o que deveria ser apagado, e o que se apresenta como lacuna cheia de
significado, que é incapaz de tradução, mas sim de transposição, através de toda uma
técnica dominada pelo artista.
Antes de prosseguirmos com a idéia de a arte ser uma espécie de arquivo dessa
escritura inconsciente, devemos observar mais um modelo de escritura postulado por
Freud, e que nos ajudará a compreender melhor esse jogo. Este será o modelo do bloco
mágico.
II.6.2 – A fantástica máquina de escritura de Freud
Em 1925, portanto, já tendo considerado todas as mudanças em sua teoria, Freud
nos apresenta o que seria o seu derradeiro modelo da escritura psíquica, oferecido
através da analogia com o bloco mágico. Ao contrário da folha ou da lousa, nas
palavras do próprio Freud trata-se tanto de “uma supercie receptiva sempre pronta”
como de “traços permanentes das notas feitas sobre ela” (FREUD, 1925 [1924], p. 256),
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onde “o estilete toca, ele pressiona a supercie inferior do papel encerado sobre a
prancha de cera, e os sulcos são visíveis como escrita preta sobre a superfície cinzento-
esbranquiçada do celulóide, antes lisa” (Id., ibid., p. 257).
Temos aqui, portanto, a semelhança com a questãopica do aparelho psíquico.
Haveria uma camada superficial, ligada à percepçãoo ego – que ao sofrer uma
determinada pressão exterior, deixaria um tro na superfície inferior (inconsciente),
que se deixaria ver através da sua relação com essa folha protetora, ou seja, através da
ligação com os processos característicos da instância egóica. Mas ainda temos a questão
de que, em algum momento, a folha de celulóide poderia ser toda tomada por inscrições.
Neste momento, vemos por que o bloco era chamado de mágico. Além da possibilidade
de uma escritura infinita diante de uma profundidade sem fundo e de uma exterioridade
perfeitamente superficial (DERRIDA, 1967, op. cit., p. 217), lemos, nas palavras do
próprio Freud:
Levantando-se toda a folha de cobertura – tanto o celulóide quanto o papel – da prancha de cera,
a escrita se desvanece e, como já observei, não mais reaparece. A superfície do Bloco Mágico
está limpa de escrita e mais uma vez capaz de receber impressões. No entanto, é fácil descobrir
que o traço permanente do que foi escrito está retido sobre a própria prancha de cera e, sob luz
apropriada, é legível (Freud, 1925[1924], op. cit., p. 258).
Vemos aqui a questão da permanência dos traços psíquicos que com uma
iluminação adequada”, poderiam deixar-se entrever através da camada protetora de
celulóide. Alguma semelhança com o funcionamento psíquico, não é mera coincidência.
Poderíamos ver, inclusive a possibilidade de uma representação do que seria o trauma
nesse modelo, e até mesmo, do próprio trabalho da pulsão de morte.
Se tomarmos o modelo da percepção e do trauma conforme exposto em Além do
Princípio de Prazer, no capítulo IV, veríamos como é possível uma analogia. Teríamos
aqui, portanto, uma folha de celulóide que protegeria o papel de cera, e que contém uma
grande semelhança com o ego que seria a barreira de contato com o mundo, e que, ao
ser pressionado por uma força, receberia uma inscrição, assim como o celulóide
pressionado pelo objeto pontiagudo. Entretanto, o que poderíamos pensar se essa folha
de celulóide se rompesse ao contato com esse objeto pontiagudo, quando de um excesso
de força? Por um acaso esse contato não deixaria uma marca, mas que não poderia ser
vista como as outras escrituras, onde o papel não havia sido rasgado?
Ela estaria impressa nessa folha de cera, e poderia ser vista com a mesma
iluminação adequada, mas não permitiria que se formasse um elo de ligação entre
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qualquer escritura feita ali. Haveria uma lacuna. O mesmo poderíamos pensar se
sepassemos as duas folhas em um determinado ponto. Não teamos aqui uma possível
analogia com o trabalho de destruição da pulsão de morte? Se bem que poderíamos
pensar esse trabalho em relação a toda extensão das duas folhas, no sentido em que ela
sempre tentaria romper o laço entre o traço deixado no papel de cera e sua representação
na folha de celulóide. Nesse ponto, poderíamos pensar em seu trabalho, evitando que o
afeto se ligasse às representações.
Se pensarmos tudo isto em relação à escritura da própria criação artística,
poderíamos ver outra coisa senão o jogo que se desenharia em toda a extensão do bloco
mágico? Talvez pudéssemos traçar uma analogia como se, aproveitando uma dessas
marcas causadas por rasgos pudéssemos, com ajuda da técnica, aproveitar e criar em
cima, um desenho, por exemplo. Dentro da teoria do trauma poderíamos pensar a que
permitiríamos que esta folha de celulóide estivesse sempre aberta a novos rasgos, os
quais uniríamos com o que poderíamos desenhar (algo novo, ou simplesmente cobrindo
as sobras que poderíamos perceber com a luz adequada, como nos disse Freud). O que
veríamos seria a união desses dois tipos de escrita: um, a escrita mesmo, seguindo a
égide do principio de prazer, portanto, de ligação; a outra não seria necessariamente
uma escrita, mas uma impressão, funcionando pelo prinpio contrário: o Além do
princípio do prazer, sob o donio da pulsão de morte, do disruptivo traumático, mas
que pode ser aproveitado, com alguma técnica. A técnica, neste ponto, se constituiria
numa forma de domar esse traumático, tornando possível uma união dessas duas
vertentes – os traços e as marcas – em uma tópica extrapsíquica.
II.7 – A arte como arquivo
Após termos observado atentamente a escritura psíquica, tentando contemplar a
questão das marcas traumáticas e fazer uma certa analogia com a escritura na arte, nos
deparamos com uma nova questão. Seria necessário, para que esses traços e
representações pudessem se transformar em arte, que fossem guardados, arquivados, por
assim dizer. Mas seria isso possível, diante da dimensão dessas marcas traumáticas?
Aqui é necessário nos determos um pouco mais, ou melhor, voltarmos, e definir melhor
como trabalharemos o arquivo aqui. Segundo Derrida, arquivo vem do grego Arkhê, que
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...designa ao mesmo tempo o começo e o comando. Este nome coordena aparentemente dois
prinpios em um: o prinpio da natureza ou da história, ali onde as coisas começam prinpio
físico, histórico ou ontogico –, mas também o princípio da lei, ali onde os homens e os deuses
comandam, ali onde se exerce a autoridade, a ordem social, nesse lugar a partir do qual a ordem é
dada – princípio nomológico (DERRIDA, 2001, p. 11).
Observando ainda a história do conceito de arquivo, o veremos surgir na Roma
e na Grécia antigas, quando os documentos oficiais eram guardados na própria casa dos
arcontes, homens que representavam a lei e cujas casas se tornavam o próprio arquivo
(no sentido em que a casa oferecia um lugar para esse arquivo). Esses homens eram
também os únicos que tinham o poder de interpretar os arquivos.
O que notamos aqui é tanto a questão do lugar onde se guarda e o exercício da
lei, e a questão da origem. Ora, em um momento, foi necessário guardar, manter esses
documentos, pois eles corriam o risco de desaparecer. E este talvez tenha sido o
correspondente do aspecto ontológico do arquivo, mantendo-o ao longo do tempo,
representando a história.
Poderíamos, neste ponto, colocar uma pergunta: como poderíamos pensar, então,
a questão do arquivo na teoria freudiana? Não do ponto de vista do arquivamento dos
textos da psicanálise, mas do ponto de vista de em que consistiria o pensamento
psicanalítico, ou seja, o pensamento sobre o psiquismo. Se o considerarmos como fruto
das várias escrituras e impressões, conforme foi exposto acima, como pensar o
arquivamento dos traços mnêmicos e das marcas, que em seu jogo dinâmico encenariam
todo o trabalho do psiquismo?
Numa tentativa de relacionar o psiquismo e o arquivo veríamos, de fato, um
conjunto de traços mnêmicos já arquivados. Poderíamos dizer, portanto, que já teríamos
diante de nós o aspecto da lei, da ordem, o prinpio arcôntico do arquivo psíquico já
funcionando, uma vez que, como já foi visto anteriormente, esses traços estariam “sob
os cuidados” de Eros, como representante do trabalho de ligação e de escritura do Ego.
Talvez o Ego e Eros fossem os verdadeiros arcontes do arquivo psíquico. Seriam eles os
responsáveis pela ligação e manutenção, a despeito da força disruptiva das marcas
traumáticas e da pulsão de morte.
Esta última é que parece estar um pouco fora da lógica do arquivo. Como pensar
uma pulsão, destruidora por sua própria definição (e que apagaria, por que não?) dentro
de um preâmbulo de manutenção, de ligação? Seria, portanto, característica dessa
pulsão, bem como das marcas traumáticas, a destruição do arquivo?
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Jacques Derrida nos fala, a respeito da pulsão de morte em relação ao arquivo:
Ela [a pulsão de morte] trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar mas também
com vistas a apagar seus “próprios” traços – que já não podem desde então ser chamados de
“próprios”. Ela devora seu arquivo, antes mesmo de tê-lo produzido externamente. Esta pulsão,
portanto, parece não apenas anárquica, anarcôntica (...): a pulo de morte é, acima de tudo,
anarquívica, poderíamos dizer, arquivolítica. Sempre foi, por vocação, silenciosa, destruidora de
arquivo. (DERRIDA, 2001, op. cit., p. 21).
Como inserir, portanto, a pulsão de morte, bem com as marcas traumáticas,
dentro da lógica do arquivo? Poderíamos dizer que, sozinha, a pulsão de morte de fato
seria destruidora de arquivo, mas o que pensar quando ela está em sua forma fusionada?
Derrida nos diz que, a menos que se vista de seu “simulacro erótico”, a pulsão de morte
não é capaz de deixar impressão alguma. Desta maneira, poderíamos supor que, sob sua
forma fusionada, seria possível que a pulsão de morte (ou antes, algo dela) permaneça
arquivado. Entretanto, não continuaria esse algo tendendo à destruição do próprio
arquivo?
E aqui cabe mais uma questão: não estaria aí, na ação dessa pulsão arquivotica,
a origem, a possibilidade, ou mais, a necessidade de um arquivo? Diante de toda essa
força destrutiva não seria necessário um esforço ainda maior a fim de manter esses
traços ainda ligados entre si e “ligados” com as marcas traumáticas? Encontrar-nos-
íamos, portanto, diante de um paradoxo: o que permite o arquivamento seria aquilo que
o expõe à destruição.
Parece haver aqui, portanto, uma relação com a arte. O que, a princípio destruiria
o aparelho pquico, o próprio sujeito, parece dar origem, como nos mostrou
Guillaumin, a uma tópica extrapsíquica, onde poderíamos, através de uma repetição da
situação traumática, elaborá-la. A origem, tanto do arquivo, quanto da arte, seria a
mesma energia disruptiva, exigindo trabalho, tanto no sentido da destruição, como no de
uma reação de Eros, tornando possível uma ligação, na qual fosse possível passar esse
conteúdo destrutivo. Mais ainda, arquivá-lo. Escrevê-lo em seu “simulacro erótico”.
Se observarmos que o conceito de arquivo pressupõe também um local onde
possa se assegurar possibilidade de memorização, de repetição, reprodução e
reimpressão, não seria possível uma analogia com essa tópica extrapsíquica da qual nos
fala Guillaumin? Neste sentido seria possível supor também a arte como uma forma de
arquivo. Um arquivo, conforme proposto por Derrida, no sentido em que é motivado
pela possibilidade de destruição imposta pela pulsão de morte, pela força disruptiva do
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trauma, mas que só é possível através de sua união com os aspectos de Eros (a
representação, ao ligar essas marcas, esse excesso pulsional de energia livre, a alguma
representação). Um arquivo feito para salvaguardar essas representações, e o próprio
artista, dessa força disruptiva.
Desta forma, pudemos ver como na arte não encontramos apenas as forças de
Eros trabalhando para transformar o que haveria de mais baixo na vida psíquica em algo
mais sublime. Também encontraríamos algo de disruptivo, que motiva a própria criação
artística e que nos chega a partir de todo um trabalho de fusão com esses elementos,
trabalho que só seria possível através do domínio da técnica do artista, que seria, em
última instância, um domínio do próprio excesso pulsional traumático.
Capítulo III
O dueto inicial eu-outro e suas implicações na ópera
Tivemos a oportunidade de ver no primeiro catulo como a ópera, nascida da
tragédia grega e dos ditirambos dionisíacos, facilitaria a expressão de situações
marcadas pela questão da passividade e do sofrimento. A observação de algumas óperas
nos permitiu articular esta situação de passividade e sofrimento com o tema da paixão,
especialmente, em sua faceta amorosa.
A paixão remeteria o homem ao que de mais primitivo em sua história: sua
vida infantil, mais precisamente, o início desta quando o Ego ainda se estrutura como
unidade, mas que, por conseqüência, ainda não tem suas fronteiras em relação ao outro
bem delimitadas. Trata-se de um momento em que o pequeno ser humano ainda
depende do outro para a satisfação de suas necessidades vitais e psíquicas.
Articulando estas informações ao que foi proposto no catulo anterior a respeito
das mensagens que o artista passaria através da obra de arte, propomos que, na ópera,
esta mensagem deveria estar relacionada à questão da paixão, ou antes, à sedução, ao
fascínio presente nessa temática e que, de certa forma, podemos pensar, indicariam a
situação de sedução originária sofrida pelo bebê.
Porém, devemos considerar o fato de que a paixão não é expressa apenas pelo
enredo da ópera, narrado no libreto. A leitura deste nos permite traçar inferências sobre
a personalidade dos personagens, sobre os sentimentos que estes expressam através de
suas falas, e constatar características da relação que determinado personagem manteria
com outro que apontam para aspectos comuns ao que foi proposto sobre a temática da
paixão. No entanto, devemos considerar que grande parte do público não entra em
contato com o libreto. Atualmente, tenta-se resolver este problema com a montagem de
espetáculos com legendas que, muitas vezes, não são acompanhadas por parte da
audiência, que prefere se deter nos aspectos cênicos e musicais – nada que prejudique a
interpretação do espetáculo. Anos a fio óperas foram montadas, em línguas estrangeiras,
sem legendas e com poucas pessoas tendo acesso ao libreto, e nada disso prejudicou que
o gênero fosse reconhecido pelos sentimentos humanos que apresenta no palco.
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Graças ao avanço das tecnologias, a simples audição de uma ópera, ou de uma
simples ária em nossas casas, sem o apelo à cena, já seria capaz de produzir, aos
ouvintes mais sensíveis à música, a emoção que o cantor visava conferir ao personagem
naquela hora: a tristeza, a alegria, a raiva... Outras vezes, captamos apenas uma emoção
que seria da ordem do estranho, do inominável, mas que independentemente disso, não
se torna menos tocante.
A música e o canto são a forma de linguagem usada na ópera. É desta forma que
se tratam entre si. Como nos diz um dos personagens da ópera “Capriccio”, de Richard
Strauss: “Ópera é uma coisa absurda. Dá-se uma ordem cantando, discute-se política
num dueto. As pessoas dançam em torno de um túmulo e usam a melodia para se
apunhalar” (STRAUSS, apud COELHO, 2000, op. cit., p.23)
Esta seria também a forma que o artista teria de se dirigir ao público. De acordo
com o domínio da técnica, esta forma de comunicação será diferente. O compositor se
utilizará desta ou daquela maneira de determinado instrumento, determinado fraseado
ou efeito sonoro. O cantor empregará mais força ou mais suavidade, de acordo com a
interpretação que visa conferir àquela parte.
A respeito do canto, podemos ainda expor outra problemática. Ora, sendo os
cantores responsáveis por narrar a hisria através de seu canto, por questões da técnica
utilizada e dos registros nos quais se escrevem as partes cantadas, deparamo-nos por
vezes com versos cantados em tons superagudos ou graves abissais. Esses timbres muito
baixos ou muito altos dificultam a articulação dos formantes, fazendo com que aquilo
que de fato se diz pareça outra coisa. Desta forma, como nos indica Vivès (2002) a
própria técnica de canto usada na ópera dificulta o entendimento, para parte do público,
daquilo que é dito. Parece-nos aqui perder a articulação com a linguagem, as palavras.
Sendo assim, como estas mensagens sobre a paixão e os sentimentos experimentados
pelo personagem nos chegariam?
Propomos, neste trabalho, que seria a música, em especial, o canto, a via
privilegiada para a expressão desse conteúdo na ópera. Um conteúdo que remete à
ordem do inassimilável, das marcas inconscientes do artista, e que ele deixaria
transparecer através da obra. Um conteúdo que passaria, para o público como algo da
ordem de uma mensagem enigmática, uma vez que diria respeito a conteúdos
inconscientes do próprio artista, desconhecidos para ele mesmo, e diante dos quais não
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teríamos mecanismos de defesa, uma vez que, quando da audição da ópera, estaríamos
completamente abertos para a experiência de fruição.
A fim de compreendermos como a música, em especial, a música vocal, se
coloca como uma via privilegiada para a apresentação dessas mensagens na ópera,
devemos nos voltar para o estudo do momento em que essas marcas seriam implantadas
no sujeito. Momento em que as características da relação eu-outro envolvida neste
processo nos permitiriam compreender não sua origem, mas o surgimento de marcas
de natureza especificamente sonora. Para tal, devemos voltar nosso olhar para o tempo
de formação do ego, bem como para os períodos anteriores a este processo.
Desta forma, visaremos, no presente capítulo analisar como o eu se funda a
partir de experiências de ordem basicamente sensorial (ou antes, a percepção destas),
dando ênfase especialmente ao aspecto sonoro, uma vez que será a estimulação desse
espaço que alçará o sujeito não somente à dimensão da linguagem, mas também a uma
dimensão de sons sem representação, abrindo assim espaço para aquilo que se converte
no berço da experiência musical. A primeira dessas indicações diz respeito à
importância da percepção para a formão do eu, uma vez que este seria a parte do id
modificada pela influência direta do mundo externo, devido à percepção deste.
Freud traça ainda outra indicação, sobre outro fator que tem papel ao ocasionar a
formação do ego e sua diferenciação do id – o próprio corpo de uma pessoa, e sua
superfície, acima de tudo. Isto porque o corpo, sobretudo em sua supercie, constitui
um lugar de onde podem se originar sensações tanto externas quanto internas. Neste
ponto, Freud confere ao tato grande importância, uma vez que ao menos uma das
sensações originadas pela supercie do corpo pode ser equivalente a uma percepção
interna que, pensamos, parece estar na base para a concepção da primeira noção de Eu.
Freud diz: “O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente
uma entidade de supercie, mas é, ele próprio, a projeção de uma supercie” (FREUD,
1923, op. cit., p. 39).
Essas idéias apresentadas por Freud são retomadas por Didier Anzieu, na
formulão de uma noção que ele nomeou de “Eu-pele”. Essa noção é desenvolvida em
um livro homônimo (1988), e será trabalhada nesta pesquisa no intuito de observarmos
mais detidamente como o Eu poderia ter origem em uma experiência de supercie do
corpo.
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III.1 – O Eu-Pele
Anzieu nos expõe, em seu livro “O Eu-Pele” (1988), uma hipótese de como se
daria a gênese do Eu a partir de sensações experimentadas sobre a supercie da pele do
bebê. Ele toma a experiência da amamentação como exemplo. Teríamos, portanto, um
bebê que tem fome e que deve ser alimentado pela mãe. Ele chora, e chama a atenção
desta. Ao ser amamentado, porém, o bebê seria exposto a uma série de estímulos
sensoriais. O primeiro deles, a excitação da zona bucofaríngea, tanto pela excitação da
mucosa oral pelo contato com o seio da mãe, como pelo contato com a substância leite
(por sua temperatura, sua textura e sabor). Assim, haveria uma estimulação da mucosa
oral, que terminaria por dar origem à primeira fase da organização da libido – a fase
oral. Além disso, a boca forneceria uma primeira experiência viva, ainda que breve, de
um contato diferenciador com o corpo do outro, de um lugar de passagem, representado
pela boca como local de passagem para o leite, e de uma incorporação.
Ao mesmo tempo em que é amamentado, o bebê é segurado nos braços, apertado
contra o corpo da mãe cujo calor sente, cujo cheiro e cujos movimentos percebe. Ele é
carregado, lavado, acariciado, ao mesmo tempo em que também recebe um banho de
palavras. Anzieu (1988) nos demonstra que, a partir dessas experiências de contato de
seu corpo com o corpo da mãe, o bebê adquiriria a percepção de pele como superfície.
Ele diz:
Estas atividades [as experiências de contato] conduzem progressivamente a criança a diferenciar
uma superfície que comporte uma face interna e uma face externa, isto é, uma interface que
permite a distinção do de fora e do de dentro, e um volume ambiente no qual ela se sente
mergulhada, superfície e volume que lhe trazem a experiência de um continente (ANZIEU, 1988,
op. cit., p. 58)
A noção de pele como uma supercie de interface, leva Anzieu a desenvolver a
idéia de um Eu-Pele, pelo qual devemos compreender: “...uma representão de que se
serve o Eu da criança durante fases precoces de seu desenvolvimento para se representar
a si mesma como Eu que contém conteúdos psíquicos, a partir de sua experiência da
superfície do corpo” (Id., ibid., p. 61).
73
Anzieu nos diz que assim como toda atividade mental seria estabelecida sobre
uma função biológica, o Eu-pele, como representação psíquica do eu, surgiria por apoio
às funções da pele, dentre as quais, cita:
a) Função de comunicação: a pele, segundo o autor, é um lugar primário de
comunicação com os outros;
b) Função de interface, barreira: pele como interface que marca o limite com o
exterior, funcionando assim como uma barreira de proteção contra as
agressões advindas do mundo externo;
c) Função contingente: a pele como bolsa que contém e retém em seu interior o
bom e o pleno ali armazenados com a alimentação e o banho de palavras.
Desta maneira, ao ser amamentado, acariciado, ao receber um banho de palavras
e cantigas, o bebê adquiriria uma representação psíquica do eu baseada em suas
vivências sensoriais, táteis, e a partir de então, pautado nas funções da pele que lhe
confere essas percepções, o bebê esboçaria uma primeira diferenciação entre dentro e
fora.
Essa diferenciação é importante pois a instauração do Eu-pele responde, assim, à
necessidade de um envelope narcísico que assegure ao aparelho psíquico a certeza e a
constância de um bem-estar de base (Id., ibid., p. 61). No entanto, para compreendermos
melhor esse aspecto, devemos nos deter um pouco mais na noção de Eu-pele como
estrutura de interface.
Como foi dito anteriormente, esta interface é formada pela interação mãe-bebê,
em um processo que Anzieu chamou de duplo feedback. O autor apresenta esta noção
baseando-se nos estudos de Brazelton (1981), sobre os comportamentos dos recém-
nascidos. Assim, quando nasce, o beo tem necessidade de receber os cuidados
do círculo maternante, como também de emitir, em relação a esse rculo, sinais que
refinem esses cuidados. É fato que ele ainda continua marcado pelo desamparo, devido
às próprias características da espécie humana, que impõem que o bebê receba uma gama
de cuidados por não ter condições de se manter sozinho. No entanto, o bebê desenvolve
meios de solicitar a atenção do outro que o ajudará nessa tarefa (e que, geralmente, é sua
mãe).
Um desses mecanismos, e talvez seja o mais eficaz, é o choro. Teremos a
oportunidade de trabalhar sobre sua importância mais adiante. No entanto, cabe aqui
74
ressaltar que este choro é percebido pelo adulto como sinal de que o bebê precisa de
ajuda. Neste momento, quando o outro vem em seu auxílio, estabelece-se um duplo
feedback. O adulto oferece à criança o alívio de sua necessidade, acalmando-a. Desta
forma, ao atuar especificamente, descobrirá o que o bebê queria e, assim, aprenderá
sobre as diferentes modalidades de seu choro, por exemplo. Desta forma, conforme nos
diz Anzieu: “a criança cria a sua mãe” (Id., ibid.).
A mãe estaria atenta às necessidades corporais e psíquicas de seu filho,
satisfazendo-as através de ações concretas. Essas ações estariam na base de um
envelope de bem-estar, investido narcisicamente, necessário para estabelecer o Eu-pele.
Esse envelope, ou antes, a representação deste, é fornecida ao bebê por aquilo que com
freqüência ele experimenta sensorialmente, a saber, a pele. Para que esta assuma a
função de envelope narcísico, o que percebemos é a presença de um ser, colocado do
outro lado do envelope, que reage imediatamente em simetria complementar a seus
sinais.
Essa pele-comum asseguraria aos dois parceiros uma comunicação sem
intermediários, uma identificação adesiva. Assim, percebemos que a pele que serve de
base para o surgimento do eu-pele seria uma pele com uma “dupla camada”, ou formada
pela sobreposição de dois envelopes, como nos fala Anzieu: um envelope voltado para o
interior, que forneceria uma experiência de contorno para o Eu, contorno que conteria
os conteúdos pquicos, enquanto o outro estaria voltado para o exterior, baseado no
círculo maternante e nas mensagens advindas deste.
A estruturação em interface transforma o funcionamento psíquico em um
sistema cada vez mais aberto, que encaminha a mãe e seu filho para funcionamentos
cada vez mais separados. Assim, a etapa seguinte pressupõe o desaparecimento desta
pele em comum e o reconhecimento de que cada um tem sua própria pele e seu próprio
Eu. A criança adquiriria um Eu-pele que lhe é próprio a partir de uma dupla
interiorização: primeiramente da interface, que se tornaria um envelope psíquico
continente dos conteúdos psíquicos, e por último, do círculo maternante, que se torna o
mundo interior dos afetos.
75
III.2 – O envelope sonoro
Desde o nascimento, o bebê já estaria imerso em um universo de linguagem,
falada por sua mãe e pelas pessoas do círculo que o envolve. Ele entra em contato com
ela através da fala e das cantigas de sua mãe enquanto é cuidado. Assim, o bebê entra
em contato com um universo sonoro com o qual pode, eventualmente interagir,
inicialmente a partir de seus choros e chiados, passando pelos balbucios até avançar às
primeiras palavras.
Contudo, devemos nos ater ao fato de que nem só de linguagem o be está
cercado. Uma outra infinidade de sons – sons gorgolejantes provenientes do próprio
corpo ou do exterior, rdos altos e bruscos, música cantada ou tocada por mecanismos
diversos, e a própria musicalidade inerente à voz humana falada (suas entonações,
ritmo, intensidade) – o rodeiam, e chegam aos seus ouvidos desde muito cedo. Alguns
estudos recentes dão conta de que o feto já consegue escutar dentro do ventre de sua
mãe a partir do sexto mês de gestação.
Assim, cabe observarmos de que maneira essa infinidade de sons atuaria na
formação do Eu. Como esse contato com a linguagem materna seria vivenciado pelo
bebê. Voltaremos nossa atenção, a partir desse momento, para esse mundo de sons que
envolvem o bebê, especialmente as interações sonoras entre ele e sua e que, a
exemplo das sensações táteis, também acreditamos que contribuem para o
desenvolvimento de seu Eu, oferecendo-lhe uma percepção de si, ainda que bastante
primária, baseada nos sons que ouve e que em grande parte lhe são endereçados. Para
dar conta desta questão, utilizaremos um conceito formulado por Anzieu, que tenta dar
conta desse universo sonoro que recobre o bebê, denominado por ele de envelope
sonoro.
Segundo o autor, este envelope teria origem concomitante ao estabelecimento
das fronteiras e dos limites do eu, conforme exposto acima, a partir da formão inicial
de um Eu-pele – que estaria estruturado em sensações táteis. Esse envelope, segundo o
autor, teria a mesma característica de interface que o Eu-pele, sendo formado, em sua
face externa pelos sons advindos do círculo maternante, principalmente da voz da mãe,
e no círculo interno, pelos sons produzidos pelo bebê – seus choros, risos, gorgolejos e
balbucios. Anzieu ainda acrescenta que a configuração deste envelope é que prefiguraria
76
a dupla-face do eu-pele. Seriam inicialmente os sons que forneceriam a noção de um
exterior-interior. Mais ainda, seria esse envelope sonoro que permitiria a primeira
percepção de ser um Eu – o Self.
Para compreendermos isto, devemos recordar que, paralelamente aos cuidados
com o bebê, sua amamentação, a mãe não só o toca, o acaricia, mas também fala com
ele, canta para ele, nomeia algumas de suas sensações – enfim, dirige-se ao bebê. Esse
direcionamento, segundo o autor, dará origem ao Self. Por este termo, segundo nos
indica Anzieu (1988, op. cit., p. 121), devemos compreender o Eu percebido como tal
pelo próprio sujeito. Trata-se, portanto, de uma faceta do eu percebida como objeto da
consciência, e não apenas como sujeito/veículo desta.
Assim temos que ao falar, cantar para o bebê, esse banho sonoro ao qual a mãe o
expõe fornecerá para este uma percepção de si mesmo como objeto dessa percepção –
como Self. Este Self é construído como uma cavidade psíquica pré-individual, dotada
de um esboço de unidade e identidade, a partir da introjeção do universo sonoro. Anzieu
propõe, assim, que haja um “espelho sonoro”, o qual ele enfatiza em detrimento dos
modelos que se utilizam do sentido da visão na formação do Eu. Isto porque Anzieu
demarca que haveria uma anterioridade do desenvolvimento da audição sobre o da
visão. Assim, por esse espelho sonoro, seria através da voz da mãe que o bebê se
reconheceria como um eu, e assim, seria capaz de responder às emissões da mãe. Ele
nos diz:
O bebê é introduzido na melodia da ilusão ao escutar o outro, desde que isso envolva o self na
harmonia (que outra palavra senão a musical caberia aqui?), e depois responda, de volta, em eco
à emissão e ao estímulo. (...) Antes que o olhar e o sorriso da mãe que o alimenta e cuida
produzam na criança uma imagem de si que lhe seja visualmente perceptível e que seja
interiorizada para reforçar seu Self e esboçar seu Eu, o banho melódico (a voz da mãe, suas
cantigas, a música que ela proporciona) põe à disposição um primeiro espelho sonoro do qual ele
se vale a princípio por seus choros (que a voz materna acalma em resposta), depois por seus
balbucios e, enfim, por seus jogos de articulação fonemática (Id., ibid., p. 213).
Percebemos que neste esquema de um espelho sonoro estaria pressuposto um
mecanismo de duplo feedback, que mencionamos acima. Assim, ao ouvir a voz de sua
mãe, o bebê tenderia a oferecer respostas que reforçariam esta interação. Neste ponto,
nos questionamos sobre quais seriam as maneiras possíveis que o bebê teria de interagir
sonoramente com sua mãe e outras pessoas do círculo maternante. Anzieu nos diz que:
...o bebê está ligado a seus pais por um sistema de comunicação verdadeiramente audiofônico; a
cavidade bucofaríngea, produzindo os elementos indispenveis à comunicação, está, muito cedo,
77
sob o controle da vida mental embrionária, ao mesmo tempo que exerce um papel essencial na
expressão das emoções (Id., ibid., p. 206).
Assim, além dos ruídos produzidos por tosse e atividades alimentares e
digestivas, teremos o que podemos dizer que seria a primeira forma de comunicação
(sonora) intencional do bebê com seus pais – o choro. Freud nos diz, em “Projeto para
uma Psicologia Científica” (1895) que o choro seria inicialmente pura descarga motora
da excitação externa. No entanto, posteriormente, ele será entendido pela criança e pelos
seus pais como uma exigência e como primeiro meio de comunicação entre eles.
A idéia de choro como primeira expressão de comunicação vocal do bebê
também é encontrada nas pesquisas experimentalistas feitas por Wolff (1963 e 1966) e
citadas por Anzieu (1988, op. cit.). Através da análise física dos parâmetros acústicos,
ele conseguiu distinguir, em bebês com menos de três semanas, quatro tipos de choro
diferentes, a saber: o choro de fome, o de cólera (quando ele é despido, por exemplo), o
choro de dor de origem externa ou visceral e o choro como resposta à frustração
(quando por exemplo, lhe retiram a chupeta que ele suga). Todos esses choros são
reconhecidos pela mãe como um sinal de que precisa intervir para ajudar seu filho. No
entanto, a manobra mais poderosa para cessar o choro é a audição da voz da mãe.
Outro fato interessante seria o falso choro de desamparo para chamar a atenção,
fenômeno que ocorreria em meio familiar, a partir de cerca de três semanas de vida,
mostrando ser esta a primeira emissão sonora intencional, sendo considerada a primeira
comunicação.
No entanto, as interações sonoras entre o bebê e sua mãe não se limitam ao
choro. Há, a partir dos três meses, os balbucios. O bebê passa a brincar com os sons,
inicialmente estalos, grasnados, e mais adiante, com fonemas que tentam imitar a fala
dos que o cercam.
Anzieu lista estas formas de emissão sonora do bebê, ao nos colocar diante do
fenômeno dos balbucios que tentam imitar os fonemas da ngua materna. No entanto,
paralelamente a todas essas emises, e justamente para que o femeno desses
balbucios ocorra, encontramos a participação da mãe, que fala ao bebê. Cabe agora,
voltar nossa atenção para este outro pólo, a fim de observarmos os aspectos envolvidos
nas emissões sonoras da mãe.
78
III.3 – A voz da mãe: a “sonata materna”
A voz da mãe assume, neste estudo, uma importância capital. Será através dessa
voz, carregada de investimentos maternos, que o bebê será introduzido na dimensão da
linguagem verbal. Ao falar com o bebê ela o nomeia, bem como nomeia objetos
externos, faz narrativas que vão desde a descrição de um incidente ocorrido, passando
por fábulas e contos infantis, e alcaam seu ponto máximo nas narrativas de suas
expectativas em relação ao bebê.
No entanto, todas essas narrativas da mãe são feitas com entonações, de maneira
ritmada, mais devagar ou mais rapidamente, em voz suave ou em voz mais forte.
Segundo Bernad Golse (2005) nos aponta, haveria um componente não-verbal na
linguagem verbal. Esse o-verbal seria caracterizado justamente por essas entonações,
que terminariam por transmitir toda a carga emotiva da narrativa materna.
Esse tipo de comunicação é chamado por Golse de comunicação analógica, e
teria como característica principal a transmissão de emoções ou afetos por elementos
não-codificados. Seria assim transmitida principalmente pela entonação da voz, pelas
mímicas que acompanham a fala, o que concederia a esse tipo de comunicação uma
característica de síntese, uma vez que seria muito mais global em relação à mensagem
que transmite.
Este tipo de comunicação seria diferente da comunicação chamada pelo autor de
comunicação digital, que seria mais analítica, e assim chamada por veicular
principalmente os conceitos por elementos codificados comogitos de informação.
Essas duas formas de comunicação não seriam de todo opostas, ao contrário;
haveria uma concatenação entre elas, pois uma pode servir ao propósito da outra.
Assim, na linguagem verbal teríamos uma parte segmentada, composta pelo enunciado
lingüístico propriamente dito, com seu conteúdo (os fonemas) e seu continente (as
regras de organizar o enunciado) e uma parte supra-segmentada, composta de uma
enunciação que poderíamos considerar de tipo musical por conta do timbre usado, do
tom, da intensidade da voz, variação de ritmos, etc.
Assim, podemos pensar que a mãe, ao falar com seu bebê, passa não somente as
suas palavras, mas também uma série de componentes musicais, que irão variar de
acordo com o seu estado de ânimo. Uma mãe deprimida, por exemplo, não será
79
certamente uma boa parceira nas trocas vocais com o be, falando pouco, com voz
baixa e monocórdica. Uma mãe mais disposta e vivaz, por sua vez, será capaz de se
expressar com mais intensidade, em tonalidades mais altas, com um ritmo mais
dinâmico.
Desta forma, o bebê é exposto à primeira forma musical de sua vida, a saber, a
melodia contida na fala da mãe. Essa musicalidade também causa no bebê experiências
diversas. Segundo nos fala Castarède (2004) a utilização de um crescendo por parte da
mãe (ou seja, quando a voz vai de uma intensidade mais fraca para uma mais forte),
favoreceria uma comunicação agradável, enquanto o decrescendo favoreceria o
adormecimento. Da mesma forma, a percepção rítmica da voz da mãe, quando marcada
por stacattos,
2
pareceria estar ligada à percepção do bebê à agilidade, assim como a um
maior número de figuras e notas musicais por tempo, que conferiria um aspecto de
rapidez. Essas duas formas de expressão favoreceriam o brincar da criança, ao passo
que o legatto
3
e o rittardando
4
favoreceriam a tranqüilidade, acalmando o bebê,
facilitando o seu adormecimento.
Outra característica dessa linguagem musical presente na fala da mãe (e claro,
em suas cantigas), seria a repetição de intervalos de tom progressivos (cromatismo,
arpeggios, por exemplo), que gerariam calma, uma vez que o bebê já poderia esperar a
continuidade do som. Por oposição a esta tranilidade, poderíamos encontrar a tensão
gerada por sons bruscos, como as síncopes, por exemplo.
Devemos ressaltar, neste ponto, a importância desta forma de comunicação para
o bebê. Uma vez que, no início da vida, o beainda o reconhece os sons emitidos
por sua mãe como palavras providas de sentido, ele i se ater mais a essa forma de
comunicação mais “musical”. Para Trevarthen & Gratier (2005) trata-se de
Musicalidade Comunicativa, à qual o bebê responderia por mecanismo de feedback.
Inicialmente, ele pode simplesmente se acalmar ao ouvir a voz de sua mãe, depois pode
gritar e movimentar seus membros expressando alegria, ao mesmo ritmo da narrativa ou
da música que sua mãe lhe apresenta. O bebê também pode simplesmente, logo que
conseguir fixar um ponto de visão, olhar para quem lhe fala, assim como pode, com seu
desenvolvimento, produzir balbucios que tentam imitar aquele som emitido pela mãe.
2
Em italiano, destacado, em música refere-se a notas destacadas.
3
Arte de ligar as notas
4
Aumenta-se progressivamente o tempo (duração) da execução de determinada nota em um trecho.
80
Tendo em vista a observação dos aspectos musicais na voz da mãe, e sabendo da
importância que este tipo de comunicação tem para a constituição do Ego, cabe-nos
indicar, agora, as possíveis implicações dessa forma de comunicação baseada em
aspectos musicais em outros processos. Destacaremos, nesta pesquisa, dois processos:
III.3.1 - A “sonata materna” na base da entrada do bebê na linguagem
verbal
Consideramos a participação da sonata materna na aquisição de linguagem
verbal pelo bebê a partir do caminho apontado por Golse (2005, op. cit.). Este autor
aponta para o fato de que a comunicação analógica, carregada de afetos, estaria
concatenada à comunicação digital, na linguagem falada. Para ele, o primeiro tipo de
linguagem facilitaria a aquisição deste último. Ele nos diz:
O que é importante de sublinhar (...) é que o bebê, contrariamente ao que F. Dolto e outros
sustentaram em seu tempo, não entra na linguagem pela parte simbólica e digital desta, mas
muito mais por sua parte afetiva e analógica. O bebê, com efeito, parece mais sensível,
inicialmente, à música da linguagem e aos sons (aqueles que ele ouve e aqueles que produz), do
que à significação de signos propriamente ditos (Id., ibid., p. 119 – a tradução é nossa).
O autor salienta que, para que entre na ordem da linguagem, e assim da
representação, o bebê tem necessidade não mais de saber, mas de experimentar e de
sentir profundamente a linguagem do outro, especialmente a de sua mãe. Assim, se a
fala desta o toca com todo o afeto contido na música de sua comunicação, e, também
devemos considerar, permite à criança uma primeira percepção de seu Eu, será em
retorno à voz de sua mãe que ela produzisuas primeiras emissões sonoras, sejam
choros, sejam, mais adiante, seus balbucios.
Retomando aqui as idéias de Anzieu, conforme expostas em “O Eu-Pele” (1988,
op. cit.), a aquisição da linguagem verbal pelo bebê se daria de acordo com um percurso
que poderíamos traçar aqui da seguinte forma: inicialmente, o Self se formaria como um
envelope sonoro na experiência do banho de sons, que ocorreria paralelamente à
experiência do aleitamento. Esse banho de sons, terminaria por configurar o Eu-pele em
sua dupla camada voltada para o exterior e para o interior – uma vez que o envelope
sonoro seria composto por sons alternadamente emitidos pelo meio ambiente e pelo
be. Devemos aqui ressaltar que, conforme nossas observações, este banho sonoro
81
oriundo do exterior já traria em si componentes dessa “sonata materna”. Desta forma, a
combinação desses sons produziria um espaço em comum entre a mãe e o bebê, que
permitiria uma troca bilateral, e em conseqüência, um elo de realização fusional com a
mãe (sem o qual, Anzieu acrescenta, uma fusão imaginária com ela não seria
posteriormente possível). Além disso, haveria a produção de uma primeira imagem,
ainda que espaço-auditiva, do próprio corpo.
Posteriormente a essa fase, em que as fronteiras eu-outro ainda não estariam bem
delimitadas, adviria um segundo momento, em que o sujeito não deixaria de fazer uso
de um sistema baseado em trocas sensoriais, mas também avançaria para o uso de trocas
baseadas em linguagem. Nesta fase, o Eu conseguiria se constituir como instância
relativamente autônoma, por apoio sobre a pele, com a aquisição da articulação entre a
emissão vocal e os fonemas formantes da língua materna, o que ocorreria paralelamente
à aquisição do estatuto de extraterritorialidade do objeto. A partir dessa fase, com ego
mais delimitado, o sujeito seria capaz de associar imagens mentais a moções pulsionais
e traços verbais, ou a associação do representante palavra ao representante coisa, o que
permitiria os processos psíquicos secundários e o pensamento.
No entanto, devemos ressaltar, tudo isto só se torna possível a partir do
investimento de um outro porta-voz, no caso a mãe, que com seu banho de palavras –
cujos aspectos musicais destacamos – pôde favorecer a primeira percepção de um Eu a
partir do Self.
A partir disso, o bebê já seria capaz de suas primeiras comunicações com a mãe,
através de choros por necessidade de comida, higiene, e atenção. Conforme seu
desenvolvimento avance, e seu distanciamento de sua mãe progrida, este se verá com a
necessidade de dirigir-se a ela para a manutenção de suas necessidades, não somente
físicas, mas psíquicas, de atenção e afeto. Desta forma, a criança iniciaria sua entrada no
mundo da linguagem falada através do espelho sonoro, o mesmo que lhe permitiu uma
primeira percepção de si mesma, baseada em sons que, como indicamos, seriam
experimentados pela criança por suas características musicais.
III.3.2 - A “sonata materna” como traumática
82
No entanto, antes que possa adquirir esse nível de articulação que lhe permitia
aquisição da linguagem verbal, a criança não possui mecanismos psíquicos para lidar
com as mensagens inconscientes que a mãe lhe passa através desse banho de palavras
altamente musical.
Esses estímulos musicais implicados na fala, que contribuem para a emergência
do eu, (da primeira percepção do eu, fundamentada em experiências de ordem musical)
vêm acompanhados de todo um investimento materno. Baseados no estudo de Golse
(2005, op. cit.), que diz ser esse tipo de comunicação o portador dos afetos, das
emoções, podemos pensar, por que não ser também o portador dos conteúdos inerentes
ao investimento libidinal da e no bebê? Como apontamos no segundo capítulo desta
dissertação, o bebê não teria condições de lidar com este investimento, justamente por
não estar dotado ainda de um eu que possa inscrever essa mensagem que, assim, se
colocaria como enigmática para ele.
Uma vez que não teríamos como representar, como lidar com esses “conteúdos
musicais” primeiros, os conteúdos inerentes a esta sonata materna” permaneceriam ao
longo de nossa vida cristalizados, não traduzidos, porém jamais esquecidos.
Permaneceria como uma espécie de “índice de percepção”, conforme apontamos
anteriormente, como uma marca – uma marca sonora. Já tivemos a oportunidade, nesta
pesquisa, de demonstrar como estas marcas estão relacionadas ao traumático, ao
violento. Uma vez que não conseguem uma representação, permanecem enquistadas,
sendo fonte de violência psíquica.
Ora, esta situação de sedução originária pela mãe, que agora vemos também
como uma mãe extremamente musical, pode encontrar uma representação através da
figura da sereia, do mito grego. Essas criaturas, metade mulheres, metade pássaros,
filhas de Calíope (a musa do canto) e do rio Aquelou, habitavam os rochedos de uma
ilha nas mediações do Mediterrâneo. Anunciavam sua presença por um murmúrio
harmonioso, e seu canto era mágico. Quando os marinheiros ouviam suas vozes,
precipitavam-se do navio e caíam no mar, para nunca mais voltar.
Marie-France Castarède nos diz, em Les vocalises de la passion (2002, op. cit.),
que este canto das sereias guardava a promessa de vida e de morte. Ao se jogarem ao
mar, encantados por essa voz extremamente sedutora que parecia prometer-lhes a
felicidade, terminavam por encontrar a morte. Os marinheiros encontravam-se, assim,
83
fascinados pelas vozes das sereias, da mesma forma como o bebê se encontraria
fascinado ante essa “mãe-sereia-sedutora”.
A questão da passividade e do fascínio, à qual chegamos novamente, apareceu
anteriormente em duas outras partes desta pesquisa, a saber – presente na criação
artística e na análise que fizemos sobre a paixão amorosa. Estas análises nos levam a
pensar nas possíveis relações que essas marcas sonoras, essa sedução sonora, teriam
nesses dois campos já estudados.
No que diz respeito à participação dessas marcas sonoras na criação artística,
traçamos aqui uma hitese de como isto poderia ocorrer. Sabemos que estas marcas
permanecem pulsantes, e terminam por impulsionar o sujeito a criar, na tentativa de
fornecer uma via de escoamento para o excesso pulsional decorrente.
A própria aprendizagem da música, ou seja, a aquisição da técnica para que seja
possível criar música, passa por um processo que parece reviver os primeiros momentos
com a mãe, como nos indica Castarède (2004, op. cit.). Seria uma forma de reviver o
contato que se tinha com a mãe em uma relação pautada em uma linguagem musical,
analógica, dos afetos, e que terminou por estar na base da aprendizagem da linguagem.
Porém, a linguagem que se ensina aqui vai à contra-mão. Na lição de música
aprendemos a usar, no mais alto grau, essa forma de linguagem que carece de
representações, que expressa o puro afeto. O que se aprende na lição de música é a
técnica de se expressar através do que não é simbolivel, representável – através do
puro afeto.
Desta forma, quando o artista cria uma obra musical, através do donio de sua
técnica, ele teria uma facilidade de expressar isso que é da ordem do inomivel
presente em seu psiquismo. Ele não precisaria do mundo do símbolo e das imagens do
artista aponeo conforme nos apontou Nietzsche (1892/1989, op. cit.). Ele estaria muito
mais próximo do arrebatamento do artista dionisíaco, da inspiração, uma vez que o meio
utilizado para se expressar através de sua arte permitiria a livre expressão do que se
coloca como não traduzido.
Isto explicaria, de certa forma a facilidade que temos de ouvir uma música e
conferir a ela adjetivos que dizem respeito ao sentimento que provocaram em nós.
Assim, não seria por acaso que, quando paramos para observar a letra, ou temos contato
com algum material que nos fale sobre o que o compositor visava transmitir através
84
daquela música, nos impressionamos em descobrir a “ressonância” (que outra palavra
representaria tão bem este pensamento, senão uma musical?) entre nossos sentimentos e
os do autor.
Conclusão
Iniciamos esta pesquisa com o objetivo de investigar acerca do que na ópera se
apresenta como da ordem do violento, do disruptivo. Essa investigação nos levou a
considerar o meio através do qual este aspecto nos é apresentado, ou seja, através do
enredo das óperas, especialmente os que giram em torno do tema da paixão.
Prosseguimos, assim, em uma investigação sobre este tema, avançando em direção aos
aspectos excessivos relacionados à paixão, chegando à questão do traumático e da
violência pulsional como impulsionadores da criação artística, e como estando
presentes desde o início da vida, inclusive nas trocas sonoras entre a mãe e o bebê. A
partir desse estudo, podemos, portanto, apresentar as seguintes conclusões:
A mensagem enigmática que o compositor nos passa, através da música, e que
diz respeito a sua própria experiência de vida, nos é transmitida através de fraseados,
solos, coloraturas, árias, duetos. Através da ópera entramos em contato com o que há de
mais profundo e desconhecido para ele mesmo. Entramos em contato com o que lhe
causou o fascínio, a inspiração, e até mesmo a primeira cena de sedução – cena que
seria comum a todo ser humano, o que nos causaria o caráter de estranhamento diante
da obra.
Dissemos, no segundo catulo, que através da obra – no caso musical – o artista
conseguiria seduzir o público. Colocá-lo na situação de passividade em que esteve
anteriormente, e que representava através da obra. Ora, quando assistimos, por exemplo,
a uma ópera, entraríamos em contato com esta situação de sedução, que nos é
transmitida através de uma mensagem que favorece esta passagem, e de certa forma, a
revivência de uma experiência, inerente a todos nós, de um tempo em que recebíamos
várias mensagens do mundo externo das quais não conseguíamos dar conta, fazendo
com que nos entregássemos, mais uma vez, a esta situação de fascínio diante de um
outro. Fascínio que nos remete a uma situação de abertura total para o outro, de um não-
fechamento das barreiras do indivíduo – de uma despessoalização, como se, de alguma
forma, pudéssemos experimentar o “sentimento oceânico” de que nos fala Romain
Rolland (ROLLAND, apud FREUD,1930 [1929]).
Essa abertura ao outro, a despessoalização causada pela música, que traz em si
conteúdos inconscientes do artista, permitiria assim que o público pudesse viver mais
86
arrebatadamente a experiência de fruição, e se identificasse com a ópera, com o que os
personagens cantam, e que em última instância, como pudemos perceber no nosso
primeiro capítulo, estaria relacionado ao tema da paixão. Marie-France Castarède nos
diz que “... na óperao é mais o amor racional e perene, social, de construir uma
família que é cantado! A loucura da paixão está ligada à nostalgia fusional sob o modelo
do paraíso perdido onde a criança fez um com sua mãe” (CASTARÈDE, 2002,op. cit.,
p. 64). Essa fantasia de união fusional com a mãe, como pudemos mostrar, diria respeito
a uma fase na vida em que a criança passaria a se desenvolver a partir dos contatos
sensoriais com a mãe, e que terminariam por lhe oferecer uma noção de Eu, conforme
apresentada pela noção de Eu-pele e de Self, por Anzieu (1989, op. cit.).
A formação dessas duas representações psíquicas do Eu estariam assim ligadas a
essa fase inicial em que o a criança se encontraria nesse estado difuso em relação à
mãe, como também necessitaria dela para a supressão de suas necessidades básicas,
tanto físicas quanto psíquicas. Esta mãe precisaria investi-lo psiquicamente, fazer este
eu viver (Aulagnier, 1985, op. cit.).
Remetemos, assim o tema da paixão ao fato final de que esta seria uma
implicação do sujeito em sua história infantil, uma vez que o objeto da paixão, objeto
idealizado e da ordem da necessidade, imporia ao sujeito um modo de satisfação da
necessidade, assim como uma vez foi em sua vida. Porém, no terceiro capítulo desta
dissertação, propusemos que a fruição da paixão, na ópera, se daria através do musical,
ao que nos perguntamos: qual seria a relação da voz com a paixão?
Ora, podemos pensar que a paixão, remetendo o sujeito a sua história infantil,
mais ainda, a um tempo em que o eu se constituía como espaço psíquico diferenciado,
nos traz novamente a questão da sedução materna nos cuidados do bebê, sedução que,
como já expusemos, se daria através de sua voz: enquanto cuida de seu bebê, a mãe
também o investe através de sua linguagem. Este investimento, conforme proposto por
Aulagnier (1985, op. cit.) seria uma das condições necessárias para que haja um eu – ou
seja, o desejo de um porta-voz de fazer viver esse eu.
No entanto, também tivemos a possibilidade de expor como essa voz materna ao
investir esse bebê traria consigo mensagens enigmáticas, referentes a sua própria
sexualidade, e transmitiria ao bebê, que não teria como lidar com essas mensagens, e
encontrar-se-ia, assim, em uma situação de passividade radical diante desses conteúdos.
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Ora, a partir disso, poderíamos propor ser essa voz sedutora da mãe a própria
voz da paixão, tanto no sentido em que ela se colocaria como um objeto da ordem da
necessidade – essencial, para Aulagnier, para determinar uma relação de assimetria e,
portanto, uma relação passional – como pelo fato de, através de sua sedução, deixar o
sujeito em situação passiva, o que também caracterizaria a paixão, tendo em vista o
caráter de fascínio causado pelo objeto.
“Há várias línguas do adulto, a linguagem verbal, linguagem dos gestos, da
mímica, dos afetos. Há na criança uma potencialidade para entrar nessas línguas,
potencialidade natural, instrumental e também afetiva” (LAPLANCHE, 1988, op. cit.,
p. 118). Para este autor, o problema não se resumiria à aquisição de várias linguagens, o
que a criança conseguiria fazer e, como vimos, ela o faz ao imitar os sons de sua mãe
com seus balbucios e ao aprender as inflexões inerentes ao que sua mãe lhe deseja
transmitir. O problema maior estaria na relação essencial de atividade-passividade
implicada nessa troca sonora entre mãe e criança. Assim, podemos propor que essa voz
da mãe, extremamente musical, e portadora de um enorme potencial sedutor – tal como
a de uma sereia, conforme apontamos – pode ser aprendida, ou antes, repetida e, assim,
interiorizada pela criança. E no futuro, eventualmente, será repetida.
Na ópera, somos expostos à expressão da paixão. Não seria esta linguagem uma
via privilegiada para a expressão desta, uma vez que a própria linguagem musical
remete a essa linguagem da paixão? Desta forma, na ópera, somos confrontados ao que
seria da ordem não só das marcas traumáticas, mas da própria sedução e do fascínio.
Castarède nos diz que “A paixão amorosa é a revivência da violência afetiva em
qualquer um de nós. Ora, precisamente a ópera oferece ao afeto a possibilidade de se
abrir livremente, sem entraves, ao grau da sua solicitação pela trama musical”
(CASTARÈDE, 2002, op. cit., p. 63 – a tradução é nossa).
Na ópera, graças ao trabalho psíquico envolvido na elaboração da obra de arte,
através do qual o artista seria capaz, de uma certa elaboração, somos confrontados a
uma apresentação da paixão, não só em cena, mas através do som, em especial, da
própria voz que, assim, se colocaria como um lamento frente ao sofrimento causado
pelo objeto idealizado necessário, ao desencontro que esta relação de assimetria implica
– uma vez que o que o sujeito deseja não é o que de fato ele obtém. É, além de lamento,
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quase um grito, uma via de escoamento pela qual pode se expressar o irrepresentável da
violência psíquica.
Assim, a ópera trata o trágico. Mas não apenas o trágico no sentido grego, mas a
tragicidade humana, que diz respeito à impossibilidade de uma total satisfação, que diz
respeito a confrontação com situações de passividade – fatores que nos trazem
sofrimento – o pathos que, em última análise, também se relaciona aos termos
passividade e paixão.
A ópera se torna assim a forma de arte, a cena privilegiada para a expressão da
paixão e da vioncia psíquica em geral. Talvez seja por isso que não há ópera feliz –
porque não há paixão feliz, não há possibilidade de felicidade na invasão por um outro
interno que só gera angústia. Restando apenas a saída do canto – um canto dionisíaco,
sem a contemplação da forma. Um canto de fruição, de despessoalização, catártico, e
que em última alise expressa o sofrimento primordial.
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