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1-3
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Umbelina Maria Duarte Barreto
Espiando pelo buraco da fechadura:
O conhecimento de Artes Visuais em nova chave
Porto Alegre
2008
1-4
Umbelina Maria Duarte Barreto
Espiando pelo buraco da fechadura:
O conhecimento de Artes Visuais em nova chave
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, como requisito
parcial para obtenção do título de Doutor em
Educação, na Linha de Pesquisa Educação: Arte,
Linguagem e Tecnologia.
Orientadora: PROFª. DRª. Analice Dutra Pillar.
Porto Alegre
2008
1-5
Em homenagem aos 100 anos do Instituto de Artes da
UFRGS, escola onde descobri o quanto a arte é importante
para a vida. Quando ainda adolescente, fui visitar uma
exposição e me deparei com a obra de uma artista/professora
que seria minha futura mestra. Escola onde fiz minha
formação superior e também onde leciono desde 1985,
compartilhando a responsabilidade da formação de pessoas
que, sendo chamadas para a arte, passaram a se sentir
escolhidas, pois dela fizeram seu guia.
Dedico este trabalho a minhas inesquecíveis mestras: Alice
Soares, Cristina Balbão e Nayá Correa dos Santos, com quem
aprendi a observar, selecionar e perseverar, qualidades
essenciais a todo artista/professor/pesquisador, e que, de
certa forma, procuro retribuir com este limitado gesto, mas
infinito reconhecimento.
Dedico a todos os alunos e ex-alunos do Instituto de Artes da
UFRGS, especialmente aqueles que ao serem tocados pela
arte têm constituído, desde então, este universo em
permanente expansão.
1-6
Ao concluir esta tese quero agradecer...
... aos ex-alunos Gabriela, Ana, Sabrina e César, que inspiraram os Metálogos,
recuperados através de uma parcela significativa de minha memória que tem se
constituído na experiência das relações humanas e vez por outra teima em ficar ao
sol;
... aos professores do PPG em Educação, especificamente ao Professor Cláudio e a
professora Denise, os quais também escolhi para compor a banca, por apontarem
para um novo sentido de aprendizado presente na consciência inclusiva através de
uma abordagem sistêmica e na avaliação democrática que abrange a auto-avaliação
em um processo participativo;
... a minha orientadora, Analice, que aceitando me orientar no caminho escolhido
sempre soube deixar a pista necessária ao desenvolvimento do percurso, mesmo
quando no mapa se explicitava o particular que é próprio da arte;
... aos meus colegas do Departamento de Artes Visuais que tem me apoiado durante
este tempo através da interlocução que naturalmente reitera em cada um a
experiência de formação continuada semelhante a que tenho passado na pós
graduação;
...ao meu colega de atelier Flávio, pela disponibilização do telescópio, um dispositivo
que foi muito importante para a tese;
... aos meus familiares, especialmente ao meu esposo pelo apoio incondicional e
também pela possibilidade de cotidianamente enfatizar a importância de um ponto
de vista diferenciado em um diálogo que é sempre dialógico em que estamos
sempre a definir um novo foco em nossa própria visão, como uma “diferença que faz
a diferença” como bem diria Gregory Bateson;
... aos professores da banca pela disponibilidade de ler/ ver o dispositivo tese.
1-7
Festina Lente. Apressa-te lentamente. (CALVINO, 1990, p.60)
1-8
RESUMO
Esta tese se desenvolve como um percurso semiótico em referência à semiótica do
texto de Greimas, percorrendo um caminho na busca pelo conhecimento da arte,
que se apresenta em um percurso curricular, no qual o sensível e o inteligível
procuram constituir-se como lados opostos e complementares sempre em estreita
conexão. A essa referência se articula a relação conceitual entre “conservação” e
“mudança” presente no pensamento constituído na ciência e filosofia e no discurso
das Ciências Humanas, através da “Árvore do conhecimento” que abriga a “Teoria
da Autopoiesis” de Humberto Maturana e Francisco Varela, da “filosofia da
experiência” de John Dewey e da “ecologia da mente” de Gregory Bateson. O objeto
semiótico é focalizado a partir da experiência definida no conceito de “experiência da
arte” de Dewey, estendido em uma abordagem micrológica e uma suposta utilização
científico-instrumental diretamente ligada a um universo macroscópico, no qual a
arte, entre o micro e o macro, vai, recursivamente, sendo exposta ao ser autorizada
pela enunciação de um sujeito que é artista/professor/pesquisador/curador.
A abordagem do conhecimento das Artes Visuais se constitui no texto em uma
precisa configuração topológica, em que a área de conhecimento, participando do
Ensino Superior Brasileiro, vai sendo institucionalizada na mesma medida da
transformação da arte na sociedade. Essa abordagem concorre simultaneamente
com as mudanças paradigmáticas do próprio conhecimento, que contribuem para a
inserção/aceitação da diferença da arte na universidade, em um quadro sistêmico
que inclui mudanças da sociedade geradas pelo acoplamento do sistema cultural. A
chave do conhecimento da arte vai sendo dada reiteradamente em circunscrição,
sendo delimitada no Currículo do Curso de Artes Visuais da UFRGS e situada em
processo de implementação curricular, enfatizando a contingência da mudança. O
regime de visibilidade utilizado é desenvolvido através de dispositivos de observação
que partem do próprio olhar e resgatam a imaginação no processo do pensamento.
Entremeado de descrições e narrativas, o texto está construído como um fazer/dizer
na linguagem, ao incluir o saber em um processo gerativo de significação. O olhar
vai sendo constituído como uma fresta, articulando o ver e o ler, que estão presentes
na visão ao serem desdobrados textualmente como possibilidades de um sujeito da
linguagem.
PALAVRAS-CHAVE: Semiótica do texto, conhecimento da arte, experiência da arte.
1-9
ABSTRACT
This thesis unfolds as a semiotic path in reference to Greimas’s text semiotics and in
search of the artistic knowledge that is met along the curriculum, in which
sensitiveness and intellect are constituted as opposite and complementary halves
permanently and tightly connected. Articulated with this reference is the conceptual
association of "conservation" and “change” found in thought embodied as science
and philosophy and in the Human Sciences discourse by means of the “Knowledge
Tree” that harbors the autopoiesis theory of Humberto Maturana and Francisco
Varela, John Dewey’s “philosophy of experience”, and Gregory Bateson’s “ecology of
mind”. The object of semiotics is focused from the perspective of Dewey’s concept of
“experience of art”, extended into a micrologic approach and a supposedly scientific-
instrumental use directly connected to a macroscopic universe where art, from the
micro to the macro instances, is recursively exposed to the extent that it is authorized
by the propositions of a subject that is artist/professor/researcher/curator.
The approach to knowledge of Visual Arts takes the form of texts, in accurate
topological configurations. This area of knowledge, as part of the Brazilian Higher
Education System, gradually becomes institutionalized as art changes in society. It
takes place together with simultaneous knowledge paradigm shifts, which contribute
to the insertion and acceptance of art differences in universities. This is part of a
systemic framework in which changes in society are generated by the association
with the cultural system. The key to knowledge about art is repeatedly found within
the limits of the Curriculum of the School of Visual Arts of the Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, and situated in the process of curricular implementation, which
underlines the contingency of change. Visibility is achieved by means of observation
devices that begin with the act of looking itself and restore imagination to the process
of thinking. Intermingled with descriptions and narratives, the text is built as a form of
doing/saying in the language and involves knowledge in a process that generates
meaning. The act of looking is gradually constituted through a slit. It articulates
seeing and reading, which are both present in the act of looking. They unfold
textually as possible actions of an individual subject of language.
KEY WORDS: Text semiotics, art knowledge, experience of art.
1-10
LISTA DE FIGURAS
Figura 01: Imagem da instalação “Templatedo artista Ai Weiwei exposta na 12ª
Documenta de Kassel, em 2007.
Figura 02: Imagem da obra Etant donnés: 1º) la chute d’eau, 2º) gaz
d’éclairage” de Marcel Duchamp, 1946-66. Tradução: Dados: 1º) A queda d’água,
2º) O gás de iluminação; A obra se encontra no Museu da Philadelphia.
Figura 03: As imagens fazem parte de uma publicação da FUNARTE. Instituto
Nacional de Artes Plásticas, intitulada Lygia Clark e Hélio Oiticica; Sala Especial do
9º Salão Nacional de Artes Plásticas. Rio de janeiro: 1986/1987.
Figura 04: A imagem mostra a obra de Ai Weiwei colapsada e o artista sendo
entrevistado.
Figura 05: Imagem da instalação “Convergências Paralelas” de Ernesto Klar,
encontrada no endereço eletrônico.
Figura 06: Filigreed Line, 1980. Instalação de Robert Irwin, in: Ana Barros, 1999, p.
179.
Figura 07: As três reproduções acima são “contra-imagens” da obra de Joseph
Beuys levada a termo em 1982, na Sétima Documenta de Kassel.
Figura 08: Ovogênesi 2000 e Humanóides 2001 são exemplos de obras vestíveis de
Ernesto Neto; no centro vê-se uma imagem da instalação realizada na 49ª Bienal de
Veneza, em 2001.
Figura 09: Doador, instalação de Elida Tessler, de 1999.
1-11
SUMÁRIO
1. OS LIMITES DA MOLDURA OU DO “ENTRE-VERO” INICIAL.....................12
2. QUESTÕES DE MÉTODO OU DISPOSITIVOS PARA A CONSTRUÇÃO
SEMIÓTICA DO CURRÍCULO..... ...........................................................................54
2.1 O RESGATE DO NEGATIVO NO CAMINHO DA CONSTRUÇÃO DO
SABER SEMIÓTICO
2.2 DA ABORDAGEM METODOLÓGICA À RECONSTRUÇÃO MICROLÓGICA
DO TEXTO
2.3 DA NARRATIVIDADE ENTRE “FRAMES” E HISTÓRIAS OU UTILIZANDO
O DISPOSITIVO OLHADURA NA ABORDAGEM CURRICULAR
3. ARTE E RETROVISÃO NA FORMAÇÃO DO ARTISTA...............................118
3.1 INSTITUIÇÃO E ACOPLAMENTO DA ÁREA DE CONHECIMENTO
3.2 A PERMANÊNCIA/ MUDANÇA OU O MAPA E O TERRITÓRIO
3.3 A MUDANÇA/ PERMANÊNCIA OU O CURRÍCULO COMO UM GPS
4. A VISÃO TELESCÓPICA E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE
ARTE.......................................................................................................................173
4.1 REGIME DE OBSERVAÇÃO E AUTOCONTROLE DA ARTE
4.2 A FORMAÇÃO DO LICENCIADO COMO UMA REINVENÇÃO DA ARTE
4.3 A ARTE E AS TECNOLOGIAS DA EDUCAÇÃO EM UM UNIVERSO EM
EXPANSÃO
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................. 216
6. APÊNDICE A: SOBRE A ARTE DE ENSINAR A ARTE.............................. 224
7. APÊNDICE B: SOBRE A NECESSÁRIA INUTILIDADE DA ARTE............. 236
8. APÊNDICE C: SOBRE A MULTIPLICIDADE DA ARTE.............................. 258
9. APÊNDICE D: SOBRE A IMEDIATA EXPOSIÇÃO DA ARTE..................... 278
10. APÊNDICE E: “PANORÓGRAFO”............................................................... 295
1-12
1 OS LIMITES DA MOLDURA OU DO “ENTRE-VERO” INICIAL
Organizar o espaço de trabalho para começar a escrever a tese, depois de
ter trilhado, durante quatro anos, os diversos caminhos apontados, a cada semestre,
por disciplinas escolhidas na estrutura curricular oferecida pelo Curso de Doutorado
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no
cumprimento dos créditos necessários à obtenção do título de Doutora em
Educação, significa encontrar, entre os apontamentos, as idéias que, ao longo desse
tempo, vêm sendo desenvolvidas.
Algumas idéias, quando surgiram, pareciam dotadas de uma espécie de
“autoflorescência” mediante a certeza de que floresceriam independente de qualquer
circunstância ou cuidado, entretanto essas acabaram por se restringir ao conjunto
mesmo de onde surgiram, constituindo-se como pequenas vias, que, por fim,
terminaram em becos sem saída. Por outro lado, outras idéias que surgiram como
pequenos microcosmos, ou talvez, eu pudesse dizer, como idéias autopoiéticas
1
,
aparentemente à margem do texto principal, tal como garatujas escritas nas bordas,
desenvolveram-se de um modo independente, através de constante reiteração,
sofrendo acréscimos que, ao longo do tempo, continuaram a multiplicá-las,
expandindo-as por inúmeras vias de acesso; e são essas as idéias que, quase sem
querer, me acompanham até este momento.
Fico pensando que talvez isso se deva, justamente, ao fato de,
aparentemente, não ter dado importância aos rabiscos, aos desvios e aos
apagamentos; e, certamente, esta é uma atitude contrária, principalmente, à função
de desenhista e de professora de desenho
2
, além de se constituir, em princípio,
1
Autopoiética refere-se ao conceito construído por Maturana e Varela como uma das chaves da Teoria
Biológica do Conhecimento (1984). Caracteriza a organização que define os seres vivos como classe pela
reiterada produção de si mesmos. A organização autopoiética define os seres vivos como sistemas autônomos,
realizando-os e especificando-os simultaneamente, sem separação entre produtor e produto.
2
A imagem da desenhista e professora de desenho que utilizo está inserida no paradigma contemporâneo onde o
desenho está constituído como uma linguagem substantiva e está impregnado de procedimentos que fazem
referência a outras linguagens artísticas, como gravura, pintura ou fotografia. Neste cruzamento, é muito comum
o desenho contemporâneo ser gerado em processos de construção e desconstrução que se mostram como
apagamentos e surgimentos tanto da forma quanto da matéria trabalhada, evidenciando a visibilidade na relação
visível/invisível da visualidade construída também como história.
1-13
como uma negativa à ação da pesquisadora que se diz uma observadora atenta e
concentrada em seu objeto de pesquisa
3
.
E agora, depois de passado esse tempo, neste momento em que se
presentificam as possibilidades de percursos da pesquisa e verifico a espessura das
idéias contidas nestas vias ao coletar as memórias escritas do vivido, me deparo
com escolhas e definições correlacionadas aos aparentes descartes, os quais,
reiteradamente, teimaram em aparecer. E, afinal de contas, são essas as idéias que
passam a assumir o espaço principal; aquele que, anteriormente, eu lhes havia
negado.
Concentrando minha atenção nessas idéias, no sentido de priorizar o apuro
da investigação, vou adentrando em um caminho de abordagem “micrológica”
4
no
qual os contextos correspondentes são co-participantes do processo e,
freqüentemente, são responsáveis pela doação de sentido
5
nos caminhos que vão
sendo construídos. Por esta via é interessante e também pertinente à temática desta
tese pensar na organização dos cursos de pós-graduação nas universidades, os
quais participam atualmente, de um modo amplo, do que se denomina como
formação continuada
6
, e, por outro lado, se constituem em programas específicos,
ligados diretamente à pesquisa das diversas áreas do conhecimento, confirmando
essa que foi, sem dúvida, a unidade do primeiro e principal objetivo da universidade.
3
Interessante pensar nas funções artista/ professor/ pesquisador como uma unidade realizada na diversidade em
que a dinâmica das convergências e divergências entre elas define seu estado de equilíbrio.
4
Micrológica se refere ao desdobramento textual, entretanto está proposto em um cruzamento com a ciência, e
diz respeito também à instrumentalização utilizada pela ciência: sistemas de microscopia óptica e eletrônica, que
possibilitam certa inserção em “microuniversos”, através do esquadrinhamento realizado pelo olhar, que
desenvolve uma busca interior, que adquire um sentido somente ao se articular a um universo exterior, o qual
funciona como um todo do qual ambos fazem parte, confirmando-o ou contestando-o ao possibilitar sua
descrição. Isso não significa, necessariamente, que esse todo mencionado seja único, pois esses todos, por sua
vez, também são fragmentos e necessitam de contextos, os quais são múltiplos, tendo em vista as articulações
sistêmicas atuais que estabelecem correspondências em rede, definindo distintos níveis de relação.
5
A pergunta pelo sentido: O que isto quer dizer? Confere sempre uma abordagem que difere do uso cotidiano da
língua e nos remete ao plano semântico, articulando contextos próximos e afastados, ou presentes e ausentes, que
passam a ser construídos em um sistema explicativo da linguagem.
6
A formação continuada na atualidade define tanto a continuidade da aprendizagem ao longo da vida como a
atualização da aprendizagem. Como exemplo, pode-se verificar o Processo de Bolonha no qual são definidas
linhas de ação para compatibilização do Ensino Superior Europeu, sendo em 2001, em Praga, inserida a
continuidade da aprendizagem ao longo da vida como uma destas linhas de ação, definindo o Ensino Superior
em 3 ciclos: Licenciado, Mestrado e Doutorado.
http://www.unl.pt/bolonha/processo
1-14
Freqüentemente, nesses programas de pós-graduação organizados
pedagogicamente em torno de uma estrutura curricular composta por disciplinas
alternativas, as quais são oferecidas através de um sistema de créditos, são
desenvolvidas linhas de pesquisa que correspondem às investigações realizadas
pelo corpo docente. Essa organização, ao fazer repercutir diretamente o ensino e a
pesquisa, é suficiente para deixar perceber que reside a especificidade da
formação do pesquisador, cuja consciência, necessariamente, vai sendo elaborada,
concomitantemente ao trabalho realizado a partir de suas escolhas como discente
de um curso de pós-graduação.
No curso de doutorado, lugar onde inicio esta reflexão me debruçando
sobre o próprio curso, definindo-o nesta dobra onde, também, faço a reflexão,
percebo que é justamente esta consciência que passa a constituir a consistência da
tese, cuja direção é delineada pelas escolhas que são feitas durante o curso, sob a
orientação e o acompanhamento atento do orientador, como um olhar desse outro,
o qual é o principal referencial para o modo de encaminhamento da pesquisa.
Minha primeira escolha, ainda como aluna PEC
7
, antes de ingressar no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul PPGEDU/UFRGS – definitivamente determinante para a realização da
inscrição no Programa, foi uma disciplina, ministrada por Analice Dutra Pillar
8
, minha
atual orientadora. Nesta ocasião, fui “apresentada” à obra de Algirdas-Julien
Greimas
9
e, conseqüentemente, à Teoria Semiótica Greimasiana
10
.
7
PEC Programa de Educação Continuada O Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS oferece
séries de disciplinas do currículo dos cursos de pós-graduação à comunidade externa, que, atendendo à exigência
de alguns pré-requisitos, constitui-se como aluno PEC (especial) do programa.
8
Analice Dutra Pillar é professora da Faculdade de Educação e do PPGEDU da UFRGS. Organizou e publicou
vários artigos e livros. Coordena o Grupo de Pesquisa em Educação e Arte (GEARTE/CNPq) e participa da
Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). É Doutora em Artes pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1994); mestre em Artes pela Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de o Paulo (1989), e graduada em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (1983).
9
Algirdas-Julien Greimas nasceu na Lituânia em 1917. Estudou na Universidade de Grenoble na França, de
1936 a 1939. Em 1944, realizou estudos de doutorado na França, defendendo uma tese sobre a moda em 1830, a
partir da análise de jornais de moda da época. Em 1966, fundou com R. Barthes, J. Dubois e outros a revista
Langages e publicou sua obra Semântica Estrutural. Foi membro, junto com Kristeva, Todorov e outros, do
grupo de investigações semióticas de Levi-Strauss no Collège de France. Sua última obra, Del’imperfection
(1987) une o rigor da semiótica à graça da experiência poética, colocando-se no limite da especulação dura,
quase se poderia dizer, numa inversão de suas primeiras obras. Greimas morreu em 1992.
10
A Teoria Semiótica Greimasiana refere-se ao conjunto teórico elaborado por Greimas ao longo de sua vida,
embora muitos se manifestem contrários à idéia desse conjunto constituir uma teoria semiótica completa, já que
1-15
Ao pensar nessa história pregressa da constituição desse momento, que se
apresenta como fundacional desta tese, considero que a minha principal motivação
é fruto do caráter poético do primeiro texto que conheci de Greimas. Verifico, com
surpresa, que não é por acaso que esse é também o seu último livro, editado em
1987, intitulado: “De la imperfección”
11
.
O encontro da experiência estética com a idéia da aprendizagem, tendo
como ancoragem o sentido da estesia, está presente nesta última reflexão de
Greimas, e essa é uma brecha entre o pensamento lógico tradicional, ligado à
especificidade da área científica, das chamadas “áreas duras” em que a quantidade
é determinante, e as construções proposicionais da linguagem, mais próximas da
pluralidade das áreas humanas, incluindo as artes e as letras, cuja fundamentação
advém principalmente da experiência da qualidade. Ou, ainda, no dizer de
Landowski (Educação e Realidade, 2005, p. 93-106) ao abordar o texto de Greimas:
a possibilidade de “ultrapassar a concepção dualista sensação versus cognição’
imposta pela tradição, mediante o desenvolvimento mais sensível da semiótica,
tornando-se, ao mesmo tempo, mais inteligível.
Pois esse é exatamente o lugar que começo a demarcar, definindo as
fundações para o desenvolvimento da tese. É um lugar construído, inicialmente, por
um esboço, a partir do campo semiótico que Greimas vinha investigando uma
inteligibilidade mais sensível, em concomitância à busca pelo sentido. Essa
investigação sensível/inteligível relacionada ao campo semiótico o fez ultrapassar o
trabalho desenvolvido em sua obra “Semântica Estrutural”, e também o
basicamente se limita à definição de princípios constituídos em sua obra Semântica Estrutural, aliados a
elaboração de um Dicionário de Semiótica, como um léxico com dois planos de referência, realizado com
Joseph Courtés. Quanto a essa manifestação, na apresentação do Dicionário é afirmado o objetivo de mostrar que
não ciência acabada, muito embora se possa definir e localizar determinados alvos em certa permanência.
Enfim, o desenvolvimento do trabalho de Greimas terminou por enfatizar elaborações semióticas em contextos
específicos, construindo percursos semióticos de geração de sentido. Seja sua obra, simplesmente, como um
conjunto de idéias a respeito da semiótica, um esboço de uma metodologia ou uma teoria, entretanto é
importante frisar que a semiótica de orientação greimasiana, 16 anos após a morte de Greimas, continua a se
desenvolver por caminhos, por vezes mais próximos de suas idéias e, por outros, distanciados, apesar de ainda
contribuírem para a ampliação de seu pensamento.
11
Greimas conforme declarou em entrevista com Peer Aage Brandt, na Vêr Morphe, n. 3-4, UAP, 1987, afirma
que este livro, antes das privações do fazer científico, evoca os dispêndios da arte. E é interessante pensar que
acabo por ingressar na obra de Greimas através de um texto que se constrói nesse espaço de passagem entre arte
e ciência encaixadas como engrenagens cujos “dentes” foram constituídos pelo excesso de uma que se encaixou
nas privações existentes em outra. O que considero ser verdadeiro, quer seja visto do lado da Ciência, como o
Greimas, quer seja visto do lado da Arte, onde me localizo e observo, e nesta posição, particularmente se inverte
o que é visto do lado de lá, ou seja, o que é privação passa a ser excesso, e o que é excesso passa a ser privação.
1-16
desenvolvimento iniciado através da análise semiótica do texto, e, ainda, o levou a
uma ampliação do enfoque anterior realizado na semiótica narrativa e discursiva
12
.
Enfim, nesse lugar, em “desvio ou confirmação”
13
, reconheço e destaco um
cruzamento com meu percurso investigativo, o qual, de certa forma, começa a se
articular em um movimento inverso ao sentido de Greimas, ao recorrer a uma
sensibilidade própria do universo artístico, com a finalidade de vir a tornar-se mais
inteligível.
Esse derradeiro texto escrito por Greimas apresenta um lugar no qual o
autor se embrenha por um terreno parcialmente desconhecido, enunciado por um
sujeito acometido pela estesia potencializada pela arte. Esse lugar, até bem pouco
tempo atrás, era interdito à área científica que não o acessava através da reflexão,
nem tampouco lhe dirigia” o pensamento lógico. Isso se deve ao fato de ser um
lugar intensivo, composto por muitas camadas, conhecidas e desconhecidas, que se
apresenta permeado por veladuras, as quais, simultaneamente, escondem e
revelam através de um ato paradoxal de encobrimento e de desvelamento,
freqüentemente simultâneos, apresentando uma sincronicidade dinâmica, definida
por um balanço do parecer, ao ser, e do ser, ao parecer.
É um lugar em que o sujeito ontológico é posto em uma espécie de estado
alterado, sendo substituído pelo sujeito da linguagem, postado entre parêntesis,
onde com freqüência fica “enjoado”, pois é levado a um movimento constante
articulado por margens sem paradouro
14
. Entretanto, foi exatamente aí que encontrei
certo conforto de poder falar de arte ao falar de conhecimento. E, em conseqüência,
ao falar de conhecimento, poder falar de sentido, e ao falar de sentido, poder utilizar
também os sentidos para construir um caminho, que, focalizando um campo
12
Entre a obra deixada por Greimas destaco a publicação em 1966 “Sémantique structurale”, Paris, Larousse; em
1976 “Maupassant”, “La sémiotique du texte”, a partir de um texto de Maupassant; o trabalho realizado com
Courtés: prefácio do livro “Introduction à la sémiotique narrative et discursive”, em 1976, e o “Dictionnaire
raisoné de la théorie du langage”, além do trabalho realizado com Landowski em 1979 “Introduction à l’analyse
du discours em sciences sociales.
13
Utilizo as palavras de Raul Dorra, com as quais apresenta a obra De la imperfección” de Greimas, ao se
referir a uma possível revitalização do projeto semiótico concomitantemente à declinação do interesse pela
disciplina semiótica.
14
Essa descrição me faz lembrar o conto de Guimarães Rosa (2005), A terceira margem do rio, o qual foi
publicado no livro intitulado: “Primeiras Estórias”, e que foi utilizado como referência pela curadoria geral da 6ª
Bienal de Arte do Mercosul (2007), num alinhamento com a arte contemporânea internacional.
1-17
semântico onde se insere, define um percurso gerativo da significação no campo
semiótico que a circunscreve.
Mas não pense que esse fardo é leve! Ao escolher “um caminho semiótico”
como identidade primeira para organização das idéias em tese, eu,
necessariamente, escolho também o dizer na linguagem através do dizer da própria.
Considero que a facilidade identitária desta escolha tenha sido definida pelo
fortalecimento advindo de encontros e reconhecimentos expressivos, e, também,
pelo fato deste caminho ter sido selecionado por apresentar certa proximidade com a
arte, que permite a compreensão das unidades significativas no instante mesmo que
vão sendo geradas. E, frente a estas facilidades que estão sendo selecionadas,
nada mais justo que eu pudesse levar por este caminho algo que, ao inverso,
constituísse a provação mais difícil.
Assim foi, pois a escolha deste caminho semiótico é a estratégia que me
permite uma outra abordagem do Currículo do Curso de Artes Visuais da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Entretanto, aparentemente, estas duas
escolhas: semiótica e currículo
15
, não se encontram. Ou, talvez, entre elas,
simplesmente ainda não se tenha construído nenhuma intersecção ou mesmo
nenhuma ligação. Mas isso aparece ser um disparate! Além de estar parecendo
também que o sentido do percurso vai-se constituindo inversamente ao sentido que
trilhou Greimas, buscando do inteligível uma proximidade maior com o sensível, e
que acabou por levá-lo à reflexão presente no texto De la imperfección”. Esta nova
inversão vai-se tornando visível, pois a intersecção com a arte, que, para Greimas,
foi um ponto de chegada, aqui está-se constituindo como um ponto de partida.
No interior desse universo definido como o campo da arte, e,
especificamente nesta condição, em que a arte se encontra dentro de uma
instituição caracterizada como uma Universidade, eu começo um movimento de
geração de sentido, na tentativa de encontrar instrumentos que possam acessar a
arte simultaneamente ao acessar o currículo de um curso de formação artística, sem
15
É comum se pensar no currículo de um curso como uma representação do curso, definindo o curso em relação
à instituição, entretanto não se pergunta nunca pelo sentido de um currículo, pela definição e constituição dos
contextos envolvidos, não se muda o foco para perguntar: Mas afinal o que quer dizer um currículo? Ou, ainda,
para encontrar o que realmente “faz” um currículo com seu “dizer”.
1-18
que precise tirá-la deste lugar onde se encontra, nem isolá-la, senão possibilitar que,
em expansão, contagie este espaço de relações que se mostram, em aparência,
meramente institucionais.
Buscar a arte no modo como o currículo se mostra, e descrever o que se
mostra, se define, ou se enfoca na formação superior em Artes Visuais, talvez, não
faça jus ao conceito de acessibilidade como o procedimento mais adequado a esta
busca. Nesse sentido, concorre o fato deste acesso precisar de outros quadros de
referência através dos quais a arte possa ser “pescada”, ou mesmo “içadaem sub-
redes, para que esses fragmentos, assim acessados, possam vir a funcionar,
posteriormente a esta operação, como um transborder”, uma marca, talvez como
rugas, ou ainda, como uma leve ondulação, enfim, uma oscilação
16
qualquer que, tal
como um código, ainda não será a coisa em si, ou seja, ainda não será a arte, mas,
tal como uma porta de entrada, marcará a possibilidade de acesso a ela,
funcionando como um novo signo.
Entretanto, ainda assim, para mim é muito claro que é somente através da
intermitência de breves instantes que isto pode ser realizado, pois a arte, como um
lugar interdito, não pode ser vista/compreendida, ou, no mínimo, nesse sentido,
permite apenas uma visão efêmera
17
. Sendo assim, o que é ofertado, o é, somente a
“piscadas” do olhar, gerando um fazer/dever que ocorre somente em fulgurações
que precisam ser compartilhadas, para, em algum outro momento, ou, de um outro
lugar, tornar possível o dever/fazer correspondente à inteligibilidade de seu campo.
Nesse entretempo, é desse modo, exatamente no vai-e-vem da construção de
possibilidades, que outras pontes de acesso poderão, posteriormente, vir-a-ser
geradas.
Pensando em todos esses despropósitos, mesmo que a escolha realizada
possa ainda parecer imprudente, tendo em vista o caráter institucional do currículo
16
Oscilação é utilizada com o sentido figurado de dúvida, perplexidade, mas também como uma variação
alternada, mudança e flutuação.
17
Isso me lembra uma história que eu vi em algum filme pois hoje parece que todas as histórias são fruto de
algum filme onde existia um jardim secreto que precisava de uma nova guardiã para conservá-lo. E, nessa
passagem, havia um episódio muito significativo onde o acesso ao jardim não era encontrado, pois embora a
nova guardiã soubesse que ele estava ali, não conseguia vê-lo, num trocadilho entre o que sabia sem conhecer e o
que conhecia sem ver.
1-19
de um curso superior, cujo regime é estabelecido por regulamentação para a
manutenção do sistema; e isto se mostre em aparente contradição com a
possibilidade de criação e autonomia da arte, cuja identidade da área de
conhecimento correspondente encontra-se escondida no campo semântico, afirmo
que: essa escolha pode também ser vista, exatamente como o propósito desta tese.
Encontrar um caminho possível entre arte e institucionalização é um dos fins
que viso com este trabalho, tendo em vista também a necessidade emergente, na
atualidade, de enfrentamento da resistência interna que procede da própria área
artística quanto a sua institucionalização; principalmente, se for considerado que
esta resistência seja devida a uma força ambígua e talvez desinformada, mais ligada
a um pretenso e nefasto jogo de poder oriundo da concepção de autonomia da
área
18
entretecida no paradigma da modernidade, que, simultaneamente, funda-a na
conjugação do pensamento, reinserindo-o em seu próprio corpo. E isso também se
estende à dificuldade de enquadramento da arte como área de conhecimento e
campo da formação superior, pautando-se por uma participação conflituosa na
academia, especificamente na universidade; quer seja considerada a comunidade
externa (outras áreas de conhecimento, próximas ou afastadas, humanas e
científicas) quer seja considerada a comunidade interna da área de Artes Visuais e
áreas afins, como Música e Teatro.
Em ntese, ao focalizar essas relações, confirma-se que este, também, é
um trabalho fundacional, visto que, ao discorrer sobre a produção de sentido,
concomitantemente, aborda em recursividade as diferenças entre os sistemas de
relações envolvidos, definindo essa abordagem como uma prática de conhecimento,
o qual, caracteristicamente, é reconhecido a posteriori, tornando necessária a
18
O paradigma moderno da arte é onde foi gerada a concepção de autonomia como um campo isolado do
conhecimento, numa afirmação da arte pela arte, que, se por um lado é necessária ao desenvolvimento do campo
artístico, por outro, gerou limites que somente na atualidade, com o desenvolvimento da cultura, estão sendo
ultrapassados, ao conceitualizar este campo como um sistema em interação com outros sistemas da cultura
humana. Como parte constitutiva da Cultura, a Arte destina-se a afirmá-la e também ultrapassá-la ao se sentir
perturbada por ela, redefinindo, desse modo, seus limites, através de uma indissociável relação de
dependência/autonomia que define a articulação sistêmica emergente da complexidade do pensamento
contemporâneo. A relação entre autonomia e dependência se constitui epistemologicamente em Maturana como
um acoplamento estrutural, sendo a relação substituída por conservação e mudança, onde as mudanças geram
perturbações, as quais geram mudanças, numa interação necessária ao desenvolvimento vital do sistema
autopoiético, sendo o rompimento da relação o fim do próprio sistema.
1-20
construção de dispositivos que comportem da mesma forma a operacionalidade e a
construção dessas diferenças.
Por essas questões justifica-se que, ao abordar a instituição universitária, eu
tenha selecionado os textos de Boaventura de Souza Santos
19
e também os textos
de sua pupila Denise Leite
20
, pois ambos focalizam a universidade através de
proposições democráticas ao considerar o momento atual de crise e transformação;
inclusive propondo a democracia participativa na renovação e avaliação da
universidade, o que garante voz a todas as instâncias coletivas acadêmicas: corpo
docente, corpo discente e corpo acadêmico-administrativo; sejam elas constituídas
por indivíduos conservadores, moderados ou vanguardistas, absorvendo, nessa
participação, todos os jogos de poder internos à Instituição. Isso sem mencionar que
Boaventura de Souza Santos é também um poeta
21
, o que o coloca nestas duas
posições relativas e complementares que constituem dois modos distintos de
produção humana: na arte e na ciência. E, deste modo, eu começo a delinear os
enfoques no esboço das prioridades, definindo um padrão que, sem descuidar das
semelhanças, aproxima linhas de pensamento que vão estruturando o trabalho na
convergência de diferenças como constitutivas da reflexão sobre o objeto da
investigação.
A abordagem semiótica do currículo do Curso de Artes Visuais da UFRGS
envolve instituição e conceituação, organizando e especificando práticas sociais de
sujeitos, que se apresentam como usuários coletivos e individuais. Esta relação
19
Boaventura de Souza Santos foi responsável em Portugal pela introdução da Sociologia como disciplina
acadêmica e criou, em 1988, uma Licenciatura em Sociologia. Fundou o Centro de Estudos Sociais e em 1977 a
Revista Crítica de Ciências Sociais. Atualmente realiza uma investigação comparativa “A Reinvenção da
Emancipação Social” com equipes de Portugal, Brasil, Colômbia, Moçambique, África do Sul e Índia. Aposta no
diálogo entre o saber científico e os outros saberes. Tem diversas obras publicadas no Brasil ligadas à Sociologia
do Direito, Sociologia Política e também à Sociologia do Conhecimento.
20
Denise Leite é professora do PPG-EDU UFRGS e coordena o Grupo de Estudos Inovação e Avaliação na
Universidade. Com várias obras publicadas entre elas: “Reformas Universitárias” de 2005, prefaciada por
Boaventura de Souza Santos.
21
Boaventura de Souza Santos publica sua obra poética assinando simplesmente como Boaventura de Souza.
Entre suas poesias, encontra-se: “Viagem ao centro da Pele” de 1995 e “Madison e Outros Lugares” de 1989.
Logo após a conclusão da Licenciatura, desenvolveu em doutoramento (1969-1973) uma investigação no Brasil
que funciona como uma matriz em parte significativa de seu desenvolvimento. Nessa investigação, se debruçou
sobre as relações jurídicas informais numa favela do Rio de Janeiro, a qual chamou de Passárgada, em referência
à sociedade imaginada pelo poeta brasileiro Manuel Bandeira. Entretanto, não podemos esquecer que Passárgada
é também o nome da capital do Império Persa em aproximadamente 500 A.C., considerada como o paraíso por
seus famosos jardins, entretanto sendo os Persas chamados de rbaros pelos Gregos, os quais fundam o
Pensamento Ocidental.
1-21
entre um texto que organiza e determina a ação a partir de objetivos conceituais e
institucionais, no caso, a formação superior em Artes Visuais, e a possibilidade de
construir um outro texto com esse, transformando-o num objeto semiótico, e torná-lo
significativo, ao acolher as diferenças envolvidas na concretização da ação prescrita,
bem como encontrar novos significados que possibilitem transformações
implementadas por protagonistas, ao acrescentar e ampliar a área de conhecimento,
é o que me move nessa imensa tarefa, que pode ser talvez hercúlea, ou ainda, tão
extensa que se assemelhe a uma odisséia.
Embora o caráter do caminho escolhido se aproxime a uma viagem
homérica, trabalhosa ou longa e entremeada por percalços, pré-disposto a errâncias
infinitas na promessa do retorno, como Penélope
22
me mostrarei confiante da volta,
pois o momento atual é propício, e, coincidentemente, é o momento em que todos,
de certa forma, estão, simultaneamente, fazendo a travessia, pois, na atualidade,
encontramo-nos no núcleo mesmo da transformação cultural impulsionada pela
mudança paradigmática
23
do conhecimento.
Ao escrever essa preleção penso na natureza da arte e, de imediato,
identifico a relação articuladora entre o ser e o parecer, onde o movimento se
amplia, abarcando uma errância necessária pelo não ser
24
, atravessando áreas
22
Penélope é a esposa fiel de Ulisses, ou do rei Odisseu, do reinado de Ítaca, cantado por Homero na Odisséia.
Sem passar da porta de seu espaço privado, numa longa espera por seu rei guerreiro e explorador em longos
vinte anos, ela vai com grande sabedoria iludindo seus pretendentes em fazeres e desfazeres que marcam
também a transformação irreversível do tempo, que, por sua vez, transforma a própria vida. E nessa
transformação, que inclui sua própria transformação, vê o desenvolvimento e amadurecimento de seu filho
Telêmaco, o qual na ausência do pai teve a autoridade paterna substituída pela materna, e se depara, finalmente,
com o momento em que é necessário que se reorganize a vida no que se refere à esfera pública.
23
Maria Vasconcellos afirma em seu livro “Pensamento Sistêmico: O novo paradigma da ciência”, 2005, que o
tema da mudança de paradigma da ciência transbordou do campo científico e tem estado de um modo amplo
presente em nosso cotidiano, sendo apontado por profissionais de diversas áreas como uma nova atitude de quem
vive, vê o mundo e atua nele com todas as implicações que aí residem.
24
A questão do ser (realidade) é o que possibilita o eixo de compreensão do pensamento ocidental (lógico),
entrementes historicamente o desdobramento inicia com a separação entre o ser e o pensar, visando à realidade
no pensamento, ou o conhecimento da realidade, a qual passa de um desocultamento característico da fundação
grega vindo-a-ser simples adequação, pressupondo com isso muitos outros modos de pensar, num adensamento
definido a cada vez de um modo mais complexo. A questão do parecer traz, justamente, a realidade encoberta,
aparecendo mesclada simbolicamente num amálgama entre o ser e o não ser, e toda a tentativa de encetar o
desdobramento do raciocínio lógico partiu da eliminação inicial do simbólico, ou seja, do sentido visto como a
possibilidade de um e outro, iniciando com a lógica transcendental, da qual o não ser é excluído como princípio.
A natureza da arte, tendo uma identidade com o simbólico, absorve a negatividade do não ser e é descartada da
sociedade perfeita de Platão, tal como do puro raciocínio em busca da verdade. A arte, desse modo, cria uma
outra realidade, uma realidade própria, sendo esta a sua natureza, seja ela bela ou feia, verdadeira ou falsa. E o
que a distingue é o fato de seu ser se dar sempre pelo fazer-ser, passando pelo dizer, o querer e o saber de um
1-22
onde tudo está escondido ou não pode ser visto
25
. Nesse percurso poderei me
mostrar afeita a segredos ou mentiras constituídos em paradoxos aparentes,
entretanto precisarei de muitas deambulações na busca por um pensamento que
possa abarcá-los, ultrapassando sua visibilidade e, concomitantemente, tornando-os
legíveis. Corroborando essa determinação, aponto a epígrafe no último livro de
Greimas, mencionado anteriormente, assinalando a afirmação do parecer como
nossa intolerável condição humana, confirmando-o como um “guardião” de uma
imperfeição que oculta o ser e ao mesmo tempo parte para a construção de um
querer-ser e um dever-ser
26
, os quais são vistos, entretanto, como se
apresentando em desvio do sentido. Mas, confirma ainda Greimas, que é somente
no poder-ser
27
que o parecer se apresenta pelo menos suportável
28
.
Pensando justamente naquilo que possibilita e promove a ação, muitas
vezes em diligência, outras vezes, apenas em impulsão ou mesmo pulsão, em
alguns pontos deste percurso onde está sendo gerado o projeto surgem novos
cruzamentos que apontam caminhos que parecem se estender ao infinito, pois
algumas escolhas que vão sendo realizadas levam a um movimento muito
distanciado da definição do eixo principal da pesquisa. Entretanto, ao perceber essa
congruência de diferenças, verifico que o sentido de incompletude do conhecimento
está sempre andando ao redor, rondando... E acaba por se expor na experiência
vivida, sendo simultaneamente construído através da completude pressentida como
experiência, que, com freqüência, coloca em evidência um novo elo, o qual redefine
o todo inicial, embora, a priori, não se saiba de sua existência.
sujeito que a constrói na linguagem como um fazer-dever. Essa construção estético-ética constitui-se através de
relações de diferenças que denotam alguma semelhança, o que define o dizer ou fazer sempre em “isto é como
aquilo”, ou “isto parece aquilo” e esse é um caminho onde o sentido do ser é resgatado de uma suspensão
determinada desde a antiguidade grega. É ainda importante perceber que esta relação só se estabelece porque
parte do princípio que isto que está sendo dito/mostrado não é aquilo que é referido.
25
É interessante pensar em alguns mitos relacionados à arte onde o ver - compreender ocasiona a perda do
objeto, ou onde o pensar - conhecer só é possível a posteriori, como o mito de Orfeu, ou o mito de Epimeteu.
26
A relação entre o dever-ser e o querer-ser faz uma referência à razão e à emoção humana como os dois modos
de ação do ser no mundo, referência também, na contemporaneidade, à diferenciação dos dois hemisférios
cerebrais. Em Greimas a semiótica movimenta-se pelas Ciências Sociais, ao possibilitar novos caminhos ao
encontro do político, e também do jurídico, sem desdenhar das paixões que se aninham, iluminando
enunciações que podem tanto ser como não ser, na possibilidade de somente vir-a-ser em doação constitutiva de
um futuro enunciado.
27
É no poder-ser que se constitui o sujeito da linguagem através de uma primeira relação entre o enunciador e o
enunciatário no discurso, sendo esta uma característica da enunciação.
28
Talvez se possa pensar na relação da enunciação, no caminho das narrativas e descrições com os “atos de fala”
ou “atos de linguagem”, resgatando a potencialidade do dizer/fazer justamente através de um primordial fazer/
dizer.
1-23
Isso se comprova quando escolhi na grade curricular do curso, no Programa
de Pós-Graduação do Doutorado em Educação, a disciplina “O pensamento
sistêmico em Gregory Bateson” ministrada pelo professor Cláudio Baptista
29
. Foi
uma escolha intuitiva, que considero um acaso, entretanto o acaso se tornou
totalmente significativo, pois, a partir de então, me deparei com a obra de Gregory
Bateson
30
, à qual eu me dediquei em minucioso exame, e passei a constituir, através
da concepção da “ecologia da mente”, um terceiro elo necessário à expansão da
estrutura do texto. Com as articulações advindas do pensamento de Bateson, o que
poderia parecer impossível anteriormente, ou seja, a composição de um pensamento
abrangendo um exercício lógico e também uma prática pré-lógica, ou uma evolução
para além da lógica, tornou-se passível de ser construído, e, de certa forma, gerou
aquietação, possibilitando, finalmente, sentar e começar a construir, em registro, o
pensamento.
Quando defendi a proposta em 2006, apresentei um contrato estendido em
precessão por prolegômenos
31
no qual cerquei o objeto de abordagem, definindo
todos os contextos envolvidos, diagramando-os em contensão concêntrica e
equilibrando-os em movimentos centrífugos e também centrípetos. Entretanto, esse
procedimento, em nenhum momento, provocou qualquer aproximação com o objeto,
à exceção da determinação do horizonte em que o mesmo está contido, pois os
limites expostos pelos contextos foram delineados no sentido da emergência do
próprio horizonte.
Nesta direção foi ensejada a denominação da tese “Espiando pelo buraco da
fechadura”, numa alusão ao modo de constituição do objeto, na metáfora de um
olhar que vai-se definindo na limitação e configuração, apresentado por um buraco
de fechadura, determinante da situação do próprio olhar, e definido também como
29
Cláudio Baptista é professor do PPG-EDU UFRGS e coordena o Núcleo de Estudos em Políticas de Inclusão.
É bacharel em Psicologia e mestre e doutor em Educação, dedicando-se à pesquisa comparativa com análises de
Instituições de Ensino em contextos brasileiro e italiano na busca de compreensão de possibilidades de
implementação de processos inclusivos.
30
Gregory Bateson (1904-1980) realizou trabalhos em zoologia, etnologia, antropologia, teoria da comunicação,
psiquiatria e ecologia. Essencialmente transdisciplinar, tem um lugar fundamental no pensamento norte-
americano por ter introduzido a cibernética e o pensamento sistêmico nas Ciências Sociais. Tem várias obras
publicadas, tais como “Naven”, 1936, “Uma Unidade Sagrada”, 1991.
31
Verificar o texto dos Prolegômenos na íntegra no endereço eletrônico
www.ufrgs.br/gearte
1-24
consciência do engendramento da visibilidade que foi produzida pela relação
positivo/negativo, tendo o visível/invisível como princípio constitutivo daquele.
A esta imagem metafórica do buraco de fechadura, que enseja um tipo de
observação característico, aproximo dois referentes artísticos, um, depositário do
pensamento ocidental, e dado como referência para o Paradigma da Arte
Contemporânea, Marcel Duchamp
32
, e outro, Ai Weiwei
33
, artista inserido no
pensamento oriental da atualidade, cujo país de origem, a China, em recente
inserção no sistema neoliberal, vem constituindo passo-a-passo a expansão/
transformação de sua própria cultura, num processo doloroso de mudança, incluindo
as perdas e ganhos que aí estão presentes e constituem o próprio processo.
A multiplicidade de contextos envolvidos cria uma densidade que beira o
tridimensional, implicando uma realidade que pode ser percebida como um objeto
que se assemelha à instalação de arte contemporânea chamada “Template”, do
artista chinês Ai Weiwei, que participou da 1Documenta de Kassel, em 2007 na
Alemanha.
Nesta Instalação, a idéia tradicional de um buraco de fechadura recortado
em um plano bidimensional sofre uma expansão, vindo a ocupar o espaço
tridimensional. Apresenta-se como um espaço vazio moldado por grandes planos
entrelaçados, que funciona como um núcleo formado pela interceptação destes
planos, ou, talvez, também se possa dizer, pela convergência desses, os quais estão
construídos por séries de portas trabalhadas em madeira, que nos reportam à
tradicional arquitetura chinesa (estas portas aparecem em função invertida, pois,
aqui, elas funcionam como uma moldura para a visão de um observador externo, ao
32
Marcel Duchamp (1887-1968) artista que com seus readymades transformou a natureza da arte: afirma
Kosuth que toda arte depois de Duchamp é conceitual (texto de Thierry De Duve de 1988: Kant depois de
Duchamp). Para Duchamp havia sido Courbet o responsável pela transformação da arte em “arte retiniana”
centrada excessivamente no sentido da vista. Apaixonado pela Relatividade e pela Teoria de Rieman (geometria
da linha curva), sua missão foi a construção de uma nova espécie de visão, começando com “O Grande Vidro”,
obra onde o olhar era ambíguo, infindo e aleatório, passando pela “Roda de Bicicleta”, primeira expressão a
receber o nome de readymade e concluindo com o Etand Donnés”, fechando a curva da nova visão, geradora
do visível e do invisível simultaneamente, 2005. www.marcelduchamp.org
33
Ai Weiwei nasceu em 1957, em Beijing, China. É um artista/ curador/ desenhador arquiteto. Filho de um
famoso poeta Chinês Ai Qing. É responsável pela articulação da arte experimental na China. Produz obras
iconoclastas, focalizando a História Cultural da china e as contradições da modernidade.
http://en.wikipedia.org/wiki/Ai_Weiwei
1-25
mesmo tempo em que serve de palco de ação para um observador/ espectador
interno; ao invés de passagem, como possibilidade do acesso do corpo a um outro
espaço; ou seja, as portas passam a constituir o próprio espaço).
Pensando nesta “disfunção” das portas, talvez, ainda se possa dizer que, em
substituição à idéia de núcleo, a configuração central funciona também como uma
espécie de visor que recorta o espaço ao redor, o qual passa a ser redefinido como
um novo horizonte da visão, que o multiplica da mesma forma em precessão,
emoldurando-o a cada posição do observador, e simultaneamente transformando-o
em um novo contexto.
É claro que essa descrição da Instalação de Weiwei é completamente
parcial, a partir de uma visão externa e, além disso, distanciada da realidade por
uma representação fotográfica desta realidade, aliada à capacidade imaginativa que
é própria de todo artista. Entretanto, esse contexto específico, como uma segunda
pele sobreposta à natureza da visão, possibilitado exclusivamente pela imagem
fotográfica, também é significativo e pertinente a este texto
34
.
Figura 01: Imagem da instalação “Template” do artista Ai Weiwei exposta na 12ª Documenta de
Kassel, em 2007.
34
A imagem encontra-se no seguinte endereço eletrônico:
http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,1761751,00.html
1-26
Voltando à idéia corrente que temos de fechadura que, frente à
complexidade da arte contemporânea, se torna aparentemente simples, o buraco de
uma fechadura implica, necessariamente, a presença de uma porta, ou de um plano
a ser transposto, um plano definidor de uma passagem entre dois lugares distintos;
entretanto, na metáfora utilizada, aparece como uma relação anunciada por uma
passagem virtual.
A fechadura aqui está sendo abordada como uma topologia e não como
uma função, e, nesse sentido, está disfuncionalizada, transformando-se em um
visor, que possibilita o acesso ao olhar, embora esse se apresente encarcerado,
limitado pela forma daquela, que, ao retornar a este olhar, passa a circunscrevê-lo
tal como uma chave.
Por outro lado, o funcionamento da fechadura como um dispositivo também
pode-se dar no sentido de possibilitar uma elaboração consciente dos limites
biológicos presentes no próprio globo ocular, em sua realidade de existência,
permanentemente circundado pela pálpebra. A pálpebra, de certa forma, ao fechar,
reproduz uma fechadura, na intermitência do tempo do piscar de olhos, em um
processo necessário de lubrificação do olho, criando um dispositivo único em
interdependência: olho e fechadura, um dispositivo definido simultaneamente na
consciência pela reiteração do limite espaço-temporal do olhar, ou seja, permite que
se saiba que o olhar não é nem onipresente, nem onisciente. Essa autoconsciência
advinda do negativo que diz o que o olhar não é, entretanto mescla no positivo o que
ao que o pode ver, e isso o constitui enquanto aparelho ou instrumento da
visão humana.
Duchamp também percebeu isso há aproximadamente 40 anos atrás, ao
realizar sua derradeira obra durante longos vinte anos (tal como a viagem de
Odisseu): Etant donnés”. Essa obra está construída como uma instalação-objeto
artístico que reúne conceito e experiência na participação de um observador/
espectador, ao disponibilizar, tornando visível, ao mostrar-esconder a visualização
de uma imagem, através de uma porta antiga e muito marcada, onde se encontra
1-27
uma passagem virtual construída como um visor por dois furos colocados na altura
dos olhos, correspondendo à altura de uma pessoa de estatura regular.
Na realidade, a imagem que está do outro lado da porta, disposta pelo objeto
de Duchamp, pode ser acessada pelo “binóculo” construído como porta. Essa
imagem do outro lado da porta representa uma cena que articula alguns referentes
encontrados em obras de artistas representativos da História da Arte, cobrindo um
período que envolve, especificamente, as mudanças implementadas pelo
Renascimento, que mudou a visão de mundo, centralizando a visão no sujeito,
adotando a perspectiva de ponto de vista único, colocando o próprio sujeito como
um “monóculo”. Envolve aas transformações que começaram a se operar na arte,
e também no mundo, no final do século XIX, tendo como polaridade extrema o
realismo de Courbet, e isso, sem descartar a visão renascentista fundada na
perspectiva linear apoiada na “mecânica” da operação efetivada pela retina, senão
na própria exacerbação desta.
Gustave Courbet, Rembrandt van Rijn e Leonardo da Vinci são os artistas
expoentes
35
, que podem ter sido escolhidos por Duchamp, pois constituem com sua
obra referências a estas mudanças, além, é claro, de abrigarem as pistas
apresentadas como imagem. Poderíamos pensar nos três artistas como uma
referência a três mundos: o real, o simbólico e o imaginário respectivamente, e
colocados na imagem construída por Duchamp nesta mesma seqüência e em
sobreposição
36
. Entretanto, por outro lado, a cena retratada pode, simplesmente,
também ser vista como uma imagem erótica, e além de tudo incompreensível, aliás,
o que foi dito por muitos críticos e historiadores de arte, e ainda é repetido na
atualidade. E exatamente isso passa a ser um definidor do saber-poder do sujeito
que vê/não vê e do poder-saber impresso em seu discurso que vai recobrindo a obra
35
Gustave Courbet –1819/1877 artista francês considerado expoente da escola realista; Rembrandt van Rijn
1606/1669 artista holandês considerado representante da era de ouro da Holanda, ápice da cultura holandesa e
Leonardo da Vinci 1452/1519 artista considerado o ápice da completude do homem renascentista, cuja
máxima era o homem como a medida de todas as coisas. Leonardo deixou um legado não da arte, mas do
pensamento, ao transitar por todas as áreas do conhecimento humano.
36
A montagem das imagens foi realizada conforme as instruções de Marcel Duchamp e funcionam como um
Diorama. O Diorama é um dispositivo para a visão que, junto com o Panorama, Visorama, Cineorama e outros,
dissolveu o modelo clássico da Câmara Obscura, onde o modelo era de uma visão passiva e objetiva. Esses
dispositivos surgiram no século XIX e determinaram, a partir do século XX, a visão do homem moderno,
transformando o estatuto da imagem, que se faz imersiva, sensorial ou psicologicamente. Jonathan Crary (1990).
1-28
no tempo através de um ler/não ver mesclado ao ver/não ler, em sucessivos
recobrimentos.
A consciência de estar vendo a partir do visível, quer seja visto/menos visto
ou não visto, vai sendo construída em diversas “molduras” em sobreposição, que
determinam, em seqüência, aquilo que pode-ser visto, tanto quanto, o que quer-ser
visto, ou, ainda, o que deve-ser visto no que faz-ser visto, remetendo, em
recursividade, ao sujeito da visão, e, conseqüentemente, ao que ele sabe-não sabe
do visível.
37
Figura 02: Imagem da obra Etant donnés: 1º) la chute d’eau; 2º) gaz d’éclairage de Marcel
Duchamp, 1946–66. Tradução: Dados: 1º) A queda d’água; 2º) O gás de iluminação. A obra se
encontra no Museu da Philadelphia.
A instalação de Duchamp está constituída por um conjunto que se apresenta
como um diorama: de um lado, uma porta antiga de madeira, tijolos, com dois
buracos para que se veja o que está atrás da porta; de outro lado, vê-se uma
37
Entre a obra mencionada de Duchamp, realizada no século XX, e a de Ai Weiwei, construída no século XXI,
pode-se pensar que resida uma passagem do indivíduo enraizado na arte para um indivíduo enraizado na
cultura. Entretanto, em ambos, é detectado um intenso movimento na tentativa de ultrapassar os limites que os
cerceiam, tanto os limites da arte pela inserção da cultura, presente em Duchamp, quanto os limites da cultura,
pela inserção na arte, presente na proposta de Weiwei.
1-29
imagem construída em planos tridimensionais com veludo, madeira, couro esticado
sobre uma moldura de metal, galhos, alumínio, ferro, vidro, plexiglas, linóleo,
algodão, luz elétrica, lâmpada a gás, motor, conforme a descrição que se encontra
no livro “Marcel Duchamp, A Arte como Contra-Arte”, da Taschen, de 1996.
Perceber os limites é como contemplar uma obra de arte, e poder ampliá-los,
ao fruir sua completude, é redimensionar os sentidos, tornando-os legíveis, abrindo-
os à tradução e, conseqüentemente, ao conhecimento, mesmo que a isso se acople,
em aparente paradoxo, a incompletude. É desta forma que me reporto ao conceito
de experiência, que, necessariamente, também está presente neste momento inicial,
neste “entre-vero” da visão, pois esse conceito, em sua operatividade, funciona
como uma chave de comutação, que transita pela filosofia e pela ciência, criando um
elo com a arte que, por sua vez, funciona como uma metáfora para a chave.
No campo da filosofia seleciono o conceito de experiência, apontando o
sentido que lhe atribui John Dewey ao construí-lo no texto: Art as Experience”,
editado em 1934. E na ciência seleciono o sentido de experiência que foi construído
por Maturana e Varela, 50 anos depois de Dewey, no texto El Árbol del
Conocimiento”, de 1984, numa abordagem biológica do conhecimento, através da
construção de uma estrutura autopoiética que se constitui como um fazer. Tento
construir uma articulação do ser ao fazer através da seleção destes dois sentidos do
conceito de experiência, embora saiba que em Maturana e Varela esta articulação
também está constituída. Pois essa mesma estrutura autopoiética, fundante de um
novo paradigma do conhecimento, é também o princípio de uma rede, em que a vida
é focalizada como conhecimento, não somente como fenômeno a ser conhecido,
articulando o ser biológico à existência cultural do ser humano. E isso se torna
possível através de uma construção que é sempre um fazer na linguagem, como
forma de ser humano e estar no fazer humano, tal como uma circularidade entre
ação e experiência, definida em uma rede que o está no espaço, mas constitui o
próprio espaço.
A experiência construída por Dewey e a construída por Maturana e Varela
me fazem pensar, novamente, na relação entre a obra de Duchamp e Weiwei, e em
como o segundo pressupõe o primeiro, embora, simultaneamente, isso seja negado.
1-30
Entre os dois sentidos construídos pelos pesquisadores nas áreas de conhecimento
correspondentes, filosofia e ciência, considerando o intervalo de tempo que os
separa, também uma mudança radical da sociedade se instaura: um novo
paradigma do conhecimento. Dewey
38
é um representante do Pragmatismo norte-
americano fundado por Pierce, muito embora tenha-se distanciado deste pela
articulação da filosofia ao pensamento social. E, neste desvio, por outras vias,
também se aproximou da experiência da arte, através da definição de experiência,
cujo quadro de referência foi o padrão da completude encontrado na experiência da
arte. Por este aspecto, tendo como modelo o fazer do artista, ele afirma que:
“O trabalho real de um artista é construir uma experiência coerente
na percepção e ao mesmo tempo um movimento acompanhado de
mudança constante em seu desenvolvimento”. (Dewey, 1985, p.
101)
Para Dewey, a experiência única da arte nos permite pensar as relações,
que são a essência da qualidade (identificada como completude), pois as relações
na arte constituem modos de interação, semelhantes à natureza e à vida, entretanto,
enquanto as relações entre os seres humanos podem ser simbolizadas por termos e
estabelecidas em proposições, ainda que continuem existindo como ação e reação,
em que as coisas são modificadas, na arte, a expressão dá-se com uma existência
que somente pode ser percebida diretamente como qualidade.
Pensando nos efeitos de sentido que vão constituindo um percurso
semiótico, o mapeamento do conceito de experiência, significativo a este percurso,
não estaria completo se, no espaço entre a completude da filosofia construída no
pensamento, ao mantê-lo aberto pelas vias da ação (em referência a Dewey), numa
38
John Dewey 1859/1952 partindo do pragmatismo de Pierce chamou sua concepção de pensamento de
“instrumentalismo”, onde o conhecimento é atividade dirigida e parte funcional da experiência, caracterizando,
deste modo, o desenvolvimento de vias de acesso do pensamento teórico aos problemas práticos da vida. Para ele
a inteligência é produto de uma natureza em realização na busca de certa plenitude. Sua inspiração veio de sua
própria experiência de vida, pois participou das transformações operadas na virada do século com a crescente
urbanização, o progresso tecnológico e o afluxo da imigração, enfrentando os problemas advindos das diferenças
sociais instauradas. Seu trabalho na Universidade fez com que ficasse reconhecido como um expoente da
pedagogia, tendo criado a Escola-Laboratório da Universidade, primeira escola experimental da história da
educação, ampliando suas pesquisas sobre a teoria educacional. Para Dewey, pensamento e ação são
indispensáveis. Critica a pedagogia tradicional que mantém a oposição entre ambos, critica também a
especialização em corredores irredutíveis com muros intransponíveis que separam as ciências humanas das
ciências naturais.
1-31
inter-referência ao abstrato, e à autonomia da ciência construída no corpo, ao
mantê-lo aberto pelas vias do pensamento (em referência a Maturana e Varela),
numa inter-referência ao concreto, eu não pudesse apontar, ainda, uma passagem:
uma fresta, na qual as Ciências Humanas estão aos poucos sendo construídas, ao
serem definidas por antropólogos, sociólogos e lingüistas. Nem pensamento, nem
corpo, sendo ambos, pensamento e corpo presentes não mais na sociedade ou na
ação, mas na cultura, tal como as bases lançadas pelo pensamento antropológico
de Gregory Bateson. No texto Mente e Natureza de 1979, encontro um ponto de
passagem, “um buraco de fechadura”, entre a filosofia e a ciência, entre conceitos
constitutivos do pensamento de Dewey e conceitos próprios do pensamento de
Maturana e Varela, em que Bateson afirma a complexidade do pensamento através
da sobreposição de dois conceitos: tautologia do pensamento e ecologia da
natureza, incluindo, nesta, a natureza da mente.
Bateson afirma que a sobrevivência do sistema, ou a manutenção de um
estado constante no decorrer de gerações sucessivas (pode-se estabelecer aqui um
paralelo com a conceituação da experiência da arte, realizada por Dewey, e a
estrutura autopoiética de Maturana e Varela) depende de dois processos
contrastantes, um voltado para dentro, atento às regularidades internas, e outro
voltado para fora, em direção às solicitações do meio. O desenvolvimento interno é
visto como conservador, pois se define como a base da coerência, ao contrário do
mundo exterior em constante mudança. Através dessa dupla face, conservação e
mudança, cada criatura muda a si própria, ou, como Maturana e Varela vão afirmar,
ao construir a Teoria da Autopoiese, bem depois de Dewey e Bateson, o ser vivo
redefine constantemente seus limites, transformando-se estruturalmente, ao manter
a organização que o caracteriza como vivo.
Com Bateson compreendi a chave do pensamento de Maturana e Varela na
construção da autopoiese, principalmente quando nessa construção é articulada a
mudança à conservação, fazendo, desta, a condição necessária daquela, pois, vejo
agora que, de outro modo, não poderia ser vista como mudança. E, sobretudo, esta
compreensão me possibilitou voltar à relação de completude/ incompletude da
experiência da arte, e encontrar um novo significado, ao também compreender a arte
como um objeto essencialmente relacional, dado como experiência. Com o foco na
1-32
relação, gera-se a possibilidade de um novo lugar, que podevir a abarcar tanto a
completude como a incompletude, num acoplamento estrutural definido pelo sujeito
da experiência e a experiência da arte, no qual a própria completude é determinante
da infinita multiplicidade pressuposta pela experiência do sujeito.
Permeando o texto com pequenas ilhas
39
que têm o poder de mostrar em
imagem o que está sendo dito em palavras, eu tento construir mais duas referências
artísticas, que podem ser extremamente importantes para a compreensão da
experiência da arte como objeto relacional, ou essencialmente relação, tal como foi
explicitado acima. Talvez eu devesse antes dizer que esta ilha que disponho através
da obra de dois artistas brasileiros, da década de sessenta, tenta reapresentá-los
como um único quadro referencial, estando um voltado para o exterior, e o outro
voltado para o interior: desse modo Ligia Clark e lio Oiticica passam a ser vistos
como dois referenciais da arte como objeto essencialmente relacional, entretanto,
enquanto a primeira está colocada em uma referência ao espaço privado do
indivíduo, relativo ao espaço interior, o segundo está colocado em uma referência ao
espaço público do indivíduo, direcionado ao espaço exterior.
Bichos” e Parangolés”, respectivamente, definem obras ou conjuntos de
obras dos artistas mencionados que foram realizadas para atender essencialmente à
relação, ou talvez à concretização dessa relação no objeto, pois, muito embora,
nesses, a relação tenha sido iniciada abstratamente pelo olhar, passa
concretamente pelo corpo, através da manipulação dos objetos, proposta pela
primeira, e pelo vestir e revestir como intenção de “conversa fiada”, presente no
segundo. Importa ainda salientar que ambos, estando em sintonia com a vanguarda
de sua época, trazem em suas obras a crítica e a revisão do momento de
transformação da sociedade brasileira em que um estado de exceção político-social
se fez emergir em revolução, no golpe de estado de 1964.
39
As ilhas talvez possibilitem algum tipo de retorno ou sintonia, presentificando em figura ou imagem um estado
anterior, pré-lógico, no qual a mediação ainda não se fazia necessária. Isso me faz lembrar também de Umberto
Eco em “A Ilha do Dia Anterior” (1995), e de Saramago: “O conto da ilha desconhecida” (1998).
http://www.releituras.com/jsaramago_conto.asp
1-33
Lygia Clark. “Bicho”, 1960. Foto: Sérgio Zalis.
Lygia Clark. “Caminhando”, 1967. Fotos: Beto Felício.
Hélio Oiticica. “Parangolés”, 1964 – 1979. Foto: Andréas Valentim.
Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, 1937 – 1980.
Figura 03: As imagens fazem parte de uma publicação da FUNARTE. Instituto Nacional de Artes
Plásticas, intitulada Lygia Clark e Hélio Oiticica; Sala Especial do 9º Salão Nacional de Artes
Plásticas. Rio de Janeiro: 1986/1987.
1-34
De certo modo, as preocupações sociais construídas por Hélio Oiticica, em
uma obra de arte voltada para a realidade social sinalizada exteriormente pelo
coletivo, e as preocupações com a realidade interior do indivíduo manifestada por
Lygia Clark em objetos essencialmente relacionais, numa atuação artística durante
um período de grandes dificuldades político-sociais no Brasil, se equivalem às
preocupações sociais de Bateson, as quais envolvem tanto o indivíduo como o
coletivo. Bateson percebia na política polaridades extremas em processos de
geração e corrupção, e buscava imbricá-la no sistema, do qual, sempre teimava em
se separar, afirmando a respeito dos processos políticos, em Passos para uma
ecologia da mente”, de 1972, que estes não são senão fenômenos biológicos, mas
que os políticos ainda não sabem disso.
Inserido nas mudanças de seu próprio tempo, Bateson, preocupado com a
concretização das transformações culturais que começaram a se anunciar na
década de 60, e, buscando uma passagem entre permanência e mudança que
pudesse abarcar a ruptura, sem o colapso total do sistema, dirige um memorando
aos membros do Conselho da Universidade da Califórnia, divulgado em 1978,
focalizando a desarticulação temporal da Universidade, ao mostrar a defasagem
entre os conteúdos ensinados e as premissas do pensamento, o que também
significava a discrepância entre operacionalização e os novos conteúdos
emergentes. Exorta o “Conselho” a buscar uma perspectiva mais ampla, que possa
sincronizar a rigidez e a imaginação, como um mecanismo necessário à relação de
permanência e mudança, que perpassa as culturas, os sistemas sociais e as
próprias universidades, que se inserem, não no campo do conhecimento, mas
também no campo da cultura.
A intenção de Bateson, com seu procedimento, é buscar um caminho, no
qual não se fique refém: nem de desconformidades ou idiossincrasias individuais
como critérios de mudança social (institucional), e nem de atropelos por “novos
estados de coisas” (aqui é muito clara a referência aos processos culturais
determinantes de mudanças radicais, a exemplo de grandes civilizações, ou mesmo,
de grupos étnicos, que foram dizimados em caminhos ainda não totalmente
esclarecidos, tendo em vista a formação de Bateson e sua ligação com a
Antropologia e a Sociologia, mas, também, pode-se estabelecer uma relação com os
1-35
processos político-sociais na América Latina nesta época e, especialmente, no
Brasil, onde passamos por um difícil período de ditadura). Ou ainda, que possam
esses novos estados, inclusive, decidir eliminações e cortes radicais, que, a seu ver,
seriam determinantes de errâncias ad infinitum”. Afirma ele, ser necessário que as
mudanças não se dêem simplesmente como um “combate”, na dicotomia entre
perder e ganhar, mas que possam abranger a tautologia (agregados ou redes de
proposições definidas em completude) e a ecologia (rede aberta por uma constante
redefinição, confirmando, na reiteração, a incompletude), como uma visão alongada
da sabedoria que vai além tanto do conteúdo como da operacionalização,
constituindo o processo do conhecimento numa abrangência epistemológica para
além do simplesmente lógico.
Um fato acontecido na Documenta de Kassel, 2007, envolvendo a obra de Ai
Weiwei, concorre para ampliar a percepção da arte como um lugar em que a
operacionalidade é constituinte da obra e, deste modo, pode vir a possibilitar que se
possa vê-la como um padrão presente tanto no pensamento de Dewey como em
Bateson, ou ainda em Maturana e Varela.
Durante a montagem das obras em exposição na Documenta, uma
tempestade devastadora na região acabou por colapsar a obra de Weiwei.
Entretanto, o colapso terminou por gerar uma forma extremamente significativa e
totalmente relacionada à própria obra construída, pois os planos que haviam sido
constituídos com as portas centenárias, representativas da cultura chinesa,
acabaram por cair ao solo, ordenando-se em uma única forma espiralada, de certa
forma, uma representação bidimensional da forma anterior, o que também a
explicitou como um signo, sendo totalmente pertinente tanto à obra, quanto ao
desenvolvimento do trabalho do artista. Esse fato acabou por funcionar como uma
revelação de conteúdos, advinda de um signo, e que estavam, reiteradamente,
sendo construídos na obra. Interessante pensar que, como resultante de uma
operacionalidade interna, esta “não obra” gerada pelo colapso da obra também
constitui, de um outro modo, o desenvolvimento do conteúdo formado na obra. O
que pode se constituir também como uma passagem entre dois paradigmas
artísticos: Moderno e Contemporâneo.
1-36
Figura 04: A imagem mostra a obra de Ai Weiwei colapsada e o artista sendo entrevistado tendo a
obra caída ao fundo.
More Beautiful Than Before The Collapse of Ai Weiweis Template. (tradução minha) Mais belo do
que antes – O desabamento da obra Template de Ai Weiwei.
“A severe thunderstorm devastated Ai Weiwei’s sculpture Template, located between the wings of the
Aue-Pavillon. It collapsed spirally in a manner not devoid of a certain aesthetic, as the pictures show.
Fortunately, nobody was hurt. The artist was immediately delighted by the new form brought about by
the destruction, and said it was more beautiful than before.
Accordingly, he decided not to reassemble the sculpture, which consists of the doors and windows of
chinese temples hundreds of years old. This is a solution that could almost be termed logical in the
context of Ai Weiwei’s works, which are frequently concerned with the preservation, disappearance
and destruction of cultural symbols and customs, with the fury of disappearance in modern times. As a
ruin, Template will thus emerge as a new image, indeed as a code for one of the exhibition’s three
leitmotifs:
“Is modernity our antiquity?”“
(20. Juni 2007) Image: Julia Zimmermann, © Julia Zimmermann / documenta gmbH
(tradução minha):”Uma tempestade devastou a escultura Template de Ai Weiwei, localizada entre as
asas direita e esquerda do Pavilhão Aue. A queda espiralada não está desprovida de certa estética,
como a imagem mostra. Por sorte nada ficou quebrado. O artista imediatamente se encantou pela
nova forma trazida pela destruição, e disse ser esta mais bela do que a anterior.
Por conseguinte, ele decidiu não reconstruir a escultura, a qual consiste de portas e janelas de
antigos templos chineses centenários. Esta é uma solução que poderia estar condicionada
logicamente no contexto dos trabalhos de Ai Weiwei, os quais freqüentemente se referem à
preservação, desaparecimento e destruição dos costumes e símbolos culturais, como a fúria
transformadora dos tempos modernos. Como uma ruína, Template ressurge como uma nova imagem,
na verdade como uma chave que nos acesso a um dos três temas da própria exposição: “É a
modernidade nossa antiguidade?”
Neste mesmo sentido, numa alusão a esse universo em constante
transformação, que ainda tem na arte seu principal reduto, e num caminho que se
caracteriza pela busca simultânea à reiterada ampliação do pensamento,
Boaventura de Souza Santos (2003) deixa-se conduzir “Pela o de Alice”
40
,
40
Pela mão de Alice é o título do livro de Boaventura de Souza Santos, em que está reunida uma série de textos
realizados ao longo de cinco anos que abarcam suas reflexões sobre as transformações sociais do final do século
1-37
ficando muito clara a alusão do título de seu livro à inserção do processo de
imaginação no processo do pensamento. Santos, ao fazer uma reflexão sobre o
social e o político na pós-modernidade, enfoca a vinculação da transição de
paradigmas epistemológicos aos modos de organização da sociedade, numa clara
tentativa de expansão operacional do pensamento racional. Sua proposta, no que
diz respeito à instituição universitária, a exemplo de Bateson que viu a
responsabilidade como necessária aos processos políticos que envolvem a
organização social, é claramente expansionista, pois, frente ao desafio enfrentado
pelas universidades nas sociedades contemporâneas, ele propõe a realização de
mudanças estruturais que possibilitem passar do sentido unitário presente na idéia
de universidade para a pluralidade constitutiva de uma universidade de idéias.
Articulando o social e o político, Boaventura observa a complexidade da
situação da universidade, que, no confronto com exigências e restrições próprias do
estado contemporâneo, sente-se perturbada a tal ponto que somente uma profunda
transformação estrutural poderá conservar a perenidade da instituição. De certo
modo, pode-se pensar esta expansão proposta à continuidade da universidade
como um caminho invertido à transformação da arte na contemporaneidade,
considerando que, na arte, o caminho atual de sobrevivência a tem levado
decisivamente à institucionalização, diferentemente da universidade, que precisa
rever, justamente, a radicalização de seu processo institucional, que a caracteriza
desde a sua fundação.
Pensar na proposta de Boaventura, de passar a uma universidade de idéias,
certamente consiste em priorizar a pluralidade da forma no modelo universitário, no
qual têm sido subsumidas as diferenças que o constituem, para alcançar a
diversidade de sua unidade, ultrapassando-a como um lugar utópico, no qual se
afirmava o conhecimento como uno, desprezando, ou amarrando as diferenças,
enlaçadas em acordos forçados, freqüentemente em dissenso, sob o signo da
participação na totalidade do conhecimento que acabou por se fazer totalitário.
Boaventura continua sua reflexão com um levantamento das contradições inerentes
que subjazem no seio da universidade, e, desse modo, a coloca frente a frente com
XX. Entre mudanças paradigmáticas, do epistemológico ao social, formula o que denomina de perplexidades
analíticas na tentativa de enunciar caminhos que possam ser traduzidos em temas de criatividade sociológica.
1-38
três crises simultaneamente detectadas: crise de hegemonia, crise de legitimidade e
crise institucional
41
.
A gravidade da tripla tensão sofrida pela universidade face às
transformações do final de século e também de milênio encontra brechas ao se
pensar no próprio conceito de sistema e na idéia de rede sistêmica emergente e
constituinte da sociedade contemporânea. Como disse Bateson, é necessária uma
sabedoria que ultrapasse o conteúdo e a operacionalidade do mesmo, mas isso
poderia ser também a própria articulação de ambos, o que permitiria construí-los
como uma estrutura autopoiética, tal como a descrita por Maturana e Varela.
Neste caminho no qual vou tecendo um aparente diálogo entre idéias,
conceitos, pensamentos, e me reporto com freqüência aos referenciais
selecionados, vai despontando uma estrutura, que também instaura uma rede
sistêmica. E se percebe que o conceito dessa rede, tal como em Maturana e Varela,
emergente da própria definição da vida, é a transformação, através da constante
redefinição do conhecimento na linguagem, constituído em novo paradigma, dado
pela rede biológica que nos articula a todos como seres vivos. Entretanto, também é
uma rede que possibilita a conservação, pois, como mostrei anteriormente, traçando
um percurso temporal de Dewey a Maturana e Varela, passando por Bateson, é
necessário que o ser-vivo mantenha a organização que o caracteriza como ser, para
possibilitar a redefinição constante dos limites que o caracterizam como vivo.
Esta articulação, que faz interagir o ser biológico com o ser cultural, que
passa por uma redefinição dos limites, ao constituí-lo como ser da linguagem com
uma existência cultural, é um lugar em que se pode também abordar a universidade
perturbada pelo meio, enfocando-a positivamente neste desequilíbrio, ao buscar
semelhanças de seu estado com esta estrutura mínima vital. Desse modo pode-se,
por esse quadro referencial, ver a universidade como um processo autopoiético, que
41
O texto segue sendo construído como um tecido no qual as idéias se entrelaçam em desdobramentos ao se
engendrar a possibilidade de novos significados. Em muitos momentos o texto é auto-referencial, sendo este
recurso utilizado para voltar a alguns temas por outros caminhos ou mesmo para quebrar algumas seqüências
que possam ter uma referência muito coerente, fazendo com que se reveja o que se sabe por um outro ângulo
de visão. Por exemplo: é o caso da inserção do tema da crise das universidades gerada pelas contradições
internas.
1-39
poderá manter sua organização, se ampliar seus limites ao redefinir sua estrutura
no enfrentamento da tripla crise que a tem perturbado
42
.
As três crises da universidade eclodiram na década de sessenta, no período
pós-guerra, com revoluções que rompem o tecido social para a conquista de
transformações culturais. Neste período, sobrevém a contracultura no enfrentamento
da cultura do capitalismo liberal emergente no século XIX, no qual a centralidade da
universidade constituía o lugar privilegiado do conhecimento técnico e científico.
Entretanto, o que era um privilégio da distinção institucional acabou por provocar um
afastamento excessivo da sociedade, separando a universidade das demais
instituições sociais, invertendo a sua posição, que passa a ser vista também na
contramão do movimento construtor dos anseios da sociedade. Desta forma, a
sociedade passa a buscar outros modos e novos lugares de conhecimento,
rompendo a necessidade e a exclusividade universitária. Com essa crise de
hegemonia que coloca em xeque a exclusividade dos conhecimentos que a
universidade produz e transmite, instauram-se dicotomias entre a cultura erudita e a
cultura popular, a educação e o trabalho e, conseqüentemente, entre a teoria e a
prática, abrindo uma fresta que perpassa a cultura, a sociedade e o conhecimento,
onde se instalam ideologias, fixando estados que se manifestam em completo
descontrole tanto em positividade como em negatividade.
Buscando um lado positivo e trazendo esta reflexão para o campo da arte,
no início do século XX, em Weimar, na Alemanha, surgiu uma experiência de
institucionalização da arte, na qual essas dicotomias emergentes da crise de
hegemonia da universidade eram, ao inverso, polaridades constitutivas da própria
especificidade da instituição. Entretanto, essa experiência é, para muitos, ainda vista
como um mito, aliás, como todas as fundações, apesar de ser até hoje um marco
para a inserção da arte na universidade, visto que é um padrão que reside como
fundamento de um dos paradigmas do conhecimento vigentes na arte até a
42
Perturbação é um conceito utilizado por Maturana na Teoria da Autopoiese na construção da estrutura
autopoiética, cuja relação com o meio é determinante para as trocas estruturais necessárias à manutenção da vida
e ampliação dos limites na conservação da organização interna que a caracteriza. Maturana constrói a relação
com o meio externo como uma perturbação ocasionada pelo meio, sendo este o único modo de interação,
descartando a possibilidade de qualquer permeabilidade. Deste modo uma nova relação em aparente contradição
é abarcada pelo sistema autopoiético: autonomia e dependência. Esta relação já foi mencionada anteriormente na
nota 15, desdobrando-se através do conceito de acoplamento estrutural e na geração de um movimento vital no
qual está presente a transformação e a permanência.
1-40
atualidade: o Paradigma Moderno, e, por sua vez, a modernidade ter sido também o
lugar onde a arte soltou-se de seus grilhões, constituindo-se em si somente como
“arte pela arte”. Em 1919 foi fundada por Walter Gropius a Escola de Arte Bauhaus,
analisada por Rainer Wick (1989) como o “entroncamento de correntes
aparentemente contrárias mantidas em equilíbrio tenso e produtivo” pela
organização de seu fundador. A Escola foi também o modelo da pedagogia
reformista (talvez se possa pensar em sintonia com a pedagogia progressista de
Dewey), que a perpassou a partir de 1923, ampliando seus objetivos específicos,
ensejando a reconstrução da unidade da esfera artística e cultural com a
reintegração da arte na vida, articulando-se à utilização da arte como instrumento de
regeneração cultural e social. Entretanto, a história concreta da Escola Bauhaus
começa e termina com a história da república de Weimar, sendo fechada em 1933
sob a pressão do nacional-socialismo alemão.
Pode-se hoje pensar esta relação entre cultura, sociedade e conhecimento
não como uma relação ideológica, mas como um dispositivo topológico, ou seja,
como um processo de construção da experiência entre os três campos, somando-se
a esta a experiência concreta, embora fugaz, desta articulação construída na escola
de Weimar. Deste lugar tópico, acidentado, aberto, unicamente, como uma fresta,
pode-se, na contemporaneidade, voltar ao pensamento de Dewey, que utiliza a
experiência da arte para impulsionar a relação entre o pensamento e a ação, entre a
completude e a incompletude.
Atualizando e transformando o conceito de experiência de Dewey ao
colocá-lo lado a lado com o conceito de ecologia da mente de Bateson, é possível
repensar o conceito de experiência na articulação do lógico e do pré-lógico, ou
ecológico, ou, ainda, se pensar na atual inserção do metalógico. E, acrescentando
as reflexões de Ana Mae Barbosa
43
(2002), que também atualiza o pensamento de
43
Ana Mae Barbosa, Arte-Educadora Brasileira graduada em Direito e doutora em Arte-Educação, foi a primeira
pessoa no Brasil a se doutorar em Arte-Educação, tendo lutado pelo reconhecimento da área e contribuído para a
formação de novos arte-educadores. Foi presidente e vice-presidente da InSea, International Society of
Education trough Art, tendo recebido várias distinções internacionais e nacionais. Também é pioneira no Brasil
da sistematização do ensino da Arte em museus, tendo sido diretora do MAC-USP, Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo. Foi professora do Programa de Pós-Graduação em Arte-
Educação da Escola de Comunicação e Arte da USP. Tem obras publicadas sobre Arte-Educação, desde 1978,
sendo um mero significativo dessas obras organizado a partir de múltiplas visões, numa coleta e
1-41
Dewey, ressignificando-o frente às mudanças ocorridas no mundo na passagem
do segundo milênio, confirma-se a existência de um retorno a essa idéia de
experiência, como experimentação e consciência da ação, necessário para a
compreensão da flexibilidade cultural e dos valores vigentes na atualidade.
Neste resgate do pensamento de Dewey, a atualização que se faz acaba por
gerar novos lugares ou dispositivos, mas que nos colocam num lugar especial: no
entre-lugar. Dessa posição pode-se rever a aparente contradição de seu
pensamento, quando afirma, simultaneamente, o naturalismo (idéias são atreladas
às leis da natureza em encadeamento mecânico voltado ao mundo concreto, sem
intervenção transcendente) e o pragmatismo (idéia de um objeto é constituída de
todos os efeitos atribuídos por nós a este objeto que possam ter um efeito prático
qualquer, semiótica de Pierce) no conceito de experiência, como uma dupla face,
tendo a experiência da arte como padrão.
Em verdade, essa dupla face, apresentada em contradição, articula dois
mundos: o da natureza e o da natureza da mente e parece ter encontrado, na
atualidade, um novo lugar, onde a aparente contradição foi subsumida pela
topologia, colocando a natureza da mente como diferença constitutiva e estrutura
autônoma dentro da natureza. Essa estrutura, especificadora de sua própria
legalidade, tendo como referente esse acoplamento, encontra a referência na arte e
estabelece um campo de relações na experiência, articulando um movimento voltado
para fora, o qual promove suas próprias trocas estruturais frente às perturbações do
meio, ao redefinir constantemente seus limites e conservar a organização, mantendo
a definição interior, embora dinamizada por essas trocas.
Retorno à experiência da Bauhaus, enfocando-a no tempo e verifico que, em
seu breve desdobramento temporal, como afirma Wick (1989), dá-se uma passagem
que ultrapassa a tentativa de resgatar as antinomias históricas, articulando o
pensamento plástico e o ideal do artesanato medieval, e chega a um programa de
construção da forma, tendo em vista as exigências advindas das transformações da
modernidade. Isso acaba por fazer ressurgir a noção de “obra de arte total”,
disponibilização de textos essenciais a própria organização da área do conhecimento sem reduzir a diversidade
que lhe é característica.
1-42
entretanto essa noção aparece desvirtuada de sua origem Medieval e Barroca, que
traz a obra como uma manifestação concreta unitária emergente dos diversos
gêneros que participavam de sua construção. Neste desenvolvimento, a experiência
da Bauhaus reinsere a noção de “obra de arte total”, simplesmente através do
anseio pela unidade como um objetivo utópico, e, neste sentido, a completude da
arte passa a ser uma experiência sem tradução, tal como na experiência da arte de
Dewey.
A impossibilidade de tradução também é vista por Thomas Kuhn (2000) o
teórico das revoluções científicas, cujo pensamento está ligado à construção da
idéia de paradigma. Kuhn constrói a impossibilidade de tradução como resultante da
reflexão sobre o conceito de incomensurabilidade, definida como a falta de medida,
ou de referencial de medida para algo. Essa reflexão funciona como um dos
referentes para a construção da estrutura das revoluções, onde novos paradigmas
passam a construir a experiência vital, muito embora essa construção se dê,
simplesmente, como uma presença de aceitação tácita, ou ainda, simplesmente,
como um substrato.
Voltando à idéia de contradição, em princípio é onde dois sentidos são
vistos, e, aparentemente, entram em choque, impedindo a continuidade do jogo da
linguagem. Entretanto, essa impossibilidade, ou essa perda, permite o ganho de um
novo estatuto produtivo, pois, sempre quando se coloca em jogo a rede de relações
também como campo de experiência, este campo pode vir a ser instaurado como um
campo semiótico, onde as transformações podem ser produzidas pela geração de
sentido: é interessante pensar aqui no significado da expressão “solução de
continuidade” que define justamente a separação das partes de um todo, e se torna
mais significativo se pensamos nesse significado aliado à idéia de solução como um
meio de resolver ou superar um problema; é muito semelhante a um oxímoro
44
,
muito embora sem que o explicite. A relação de contradição constitui-se entre dois
termos de categoria afirmativa e negativa, entretanto, a contradição se estabelece,
sempre, como uma relação de pressuposição, pois a presença de um termo
pressupõe a ausência do outro e vice-versa.
44
Lembrar a epígrafe: Apressa-te lentamente.
1-43
A experiência da Bauhaus na transformação do sentido de uma idéia que
perpassa a realidade concreta emergindo como uma realidade abstrata é também o
que se encontra na transformação do sentido do conceito de experiência construído
por Dewey, tendo como base a experiência da arte. Entretanto, a experiência como
completude, advinda da experiência da arte, na Arte Contemporânea, fundada em
Duchamp, passa a ser possível somente de um modo intermitente, como
possibilidade individual fugidia, pois se dá pelo seu inverso, pela incompletude,
como uma utopia, que a obra de arte, constituída como seu lócus, passa a se
localizar em um novo campo que é o campo da linguagem, recobrindo seu corpo
simbólico conceitualmente, transformando-o num signo, ao absorver o pensamento
racional tautológico, em seu próprio corpo, fazendo da não-arte também uma arte
(um exemplo que, por um outro lado, permite esta experiência é também a arte
colapsada de Weiwei, a qual acabou por explicitar a forma construída anteriormente
através da explicitação do signo que a consistia conceitualmente).
Isso faz voltar à relação da lógica e da semântica, pois, se por um lado, a
obra de arte é o referente de onde advém o eco da esperada completude, por outro,
a arte contemporânea passa a abarcar também um campo expandido onde radica a
complexidade do pensamento proposicional, se abrindo a uma nova produção que
recobre a obra em discurso, abrindo-a na incompletude. Ou seja, a o-arte passa a
ser vista como arte na contemporaneidade. E frente a essa complexidade da arte, a
experiência da arte passa a se constituir na experiência do sujeito, sem que essa
relação se transforme em uma tautologia, sem se reproduzir ao infinito: a experiência
da arte na experiência do sujeito, na experiência da arte, na experiência do sujeito,
na experiência da arte... Pois, nesse caminho, o que possibilita o rompimento dessa
cadeia surge, justamente, na contemporaneidade, como uma solução que é
simultânea ao surgimento do problema, pois é através da diversidade do discurso
que se fundamenta na intradutibilidade da experiência da arte, afastada da estética,
que passa a se constituir a experiência única e irrepetível do sujeito, sempre
constituído como um outro na linguagem através do fazer da própria linguagem
como possibilidade de tornar visível a arte.
1-44
Como princípio desse discurso, definido na semiótica, constituído como um
novo campo, num caminho da comunicação que não desdenha nem da expressão,
nem do conteúdo, cabe recordar de um texto muito simples que possibilita a
compreensão do princípio que fundamenta uma produção de sentido. Enfocando a
enunciação, em detrimento do enunciado, possibilita adentrar na geratividade de
sentido da semiótica, o que está explicitado nesta historieta curta que reinsere, em
“imagem”, a sabedoria no caminho do conhecimento. Esse texto chama-se “Apólogo
dos dois escudos”, de José Júlio da Silva Ramos, e foi utilizado por JoLuiz Fiorin
(2001) em “Elementos para análise do discurso”, no início de seu texto sobre o
“Percurso Gerativo de Sentido”. É um texto que também serve como esclarecimento
à produção atual desse discurso.
Começa assim:
Conhecem o apólogo do escudo de ouro e de prata?
Eu lho conto.
No tempo da cavalaria andante, dois cavaleiros armados de ponto
em branco (=com cuidado, com esmero, completamente), tendo
vindo de partes opostas, encontraram-se numa encruzilhada em
cujo vértice se via erecta uma estátua de Vitória, a qual empunhava
em uma das mãos uma lança, enquanto a outra segurava um
escudo. Como tivessem estancado cada um de seu lado,
exclamaram ao mesmo tempo:
– Que rico escudo de ouro!
– Que rico escudo de prata!
– Como de prata? Não vê que é de ouro?
– Como de ouro? Não vê que é de prata?
– O cavaleiro é cego.
– O cavaleiro é que não tem olhos.
Palavra puxa palavra, ei-los que arremetem um contra o outro, em
combate singular, até caírem gravemente feridos.
Nisto passa um dervis, que depois de pensá-los com toda a
caridade, inquire deles o motivo da contenda.
– É que o cavaleiro afirma que aquele escudo é de ouro.
– É que o cavaleiro afirma que aquele escudo é de prata.
1-45
Pois meus irmãos; observou o daroês, ambos tendes razão e
nenhum a tende. Todo esse sangue se teria poupado, se cada um
de vós se tivesse dado ao incômodo de passar um momento ao lado
oposto. De ‘ora em diante nunca mais entreis em pendência sem
haverdes considerado todas as faces da questão’.
A instauração de um campo semiótico, que é também um campo intensivo
da experiência, dá-se sempre na linguagem, onde poderão se constituir os diversos
níveis de um percurso gerativo de sentido. Fiorin utiliza esse texto como instrumento
para a exposição de um modelo de produção de sentido. No encaminhamento das
posições iniciais, ele afirma que pode ser demonstrada a relação entre
parcialidade e totalidade, ao serem confrontadas com a terceira posição que surge
no texto; entretanto, essa posição representa também o próprio quadro de referência
para a solução da contenda, e isto é particularmente importante para o caminho de
reflexão que tenho trabalhado até aqui.
A solução da questão dá-se sempre na passagem da polêmica para o
contrato, do confronto para o concílio, da perspectiva única ligada a um saber e a
um não saber às múltiplas perspectivas que constituem o objeto na linguagem
através da própria linguagem, compreendida como operatividade constituinte do
objeto semiótico. No percurso gerativo de sentido articula-se o procedimento de
análise, desenvolvendo-se num movimento do concreto para o abstrato, ao
procedimento de produção de sentido, desenvolvendo-se num movimento invertido,
do abstrato para o mais concreto. E isto vai ocorrendo através de uma sucessão de
instâncias descritivas que mostram como se produz e interpreta o sentido, num
processo que se desenvolve do mais simples ao mais complexo, gerando um campo
expandido da significação.
Da experiência da arte, que tem acompanhado o desenvolvimento desse
texto, ao campo intensivo da experiência semiótica, o pensamento se desenvolve
em procedimentos de extensão/intensão que incluem caminhos lógicos de abdução,
indução e dedução, utilizando o primeiro na passagem de uma experiência à outra e
os outros dois na expansão do campo assim gerado. A abdução é um procedimento
que foi amplamente descrito por Pierce (1878, apud ECO, 1991) e se refere à
1-46
própria hipótese, dando origem, juntamente com os outros dois caminhos, dedução
e indução, a diferentes esquemas de inferências lógicas. Para Pierce toda nova idéia
na ciência sempre inicia com a abdução, que se dedica a estudar os fatos e, ao
mesmo tempo, inventar uma teoria para explicá-los, o que a torna originária, pois é o
único tipo de argumento que inicia com uma idéia nova. A abdução está presente na
proposta de geratividade de sentido iniciada por Greimas, pela própria
pressuposição constitutiva de sua teoria, onde a ampliação do campo lógico constitui
o seu quadro de referência, desenhando um sistema de regras para se chegar à
significação que passa a incluir uma meta – lógica, utilizando para isso um quadrado
lógico que, através de metatermos, expande em enunciação o próprio campo da
significação, gerado inicialmente através de um destinador/destinatário, pressuposto
concomitantemente ao enunciador/enunciatário.
Imbuída da idéia de que a semiótica pode abrir um outro caminho pela
enunciação, levando em conta tanto a “comunicação” como a “tradução”, articulando
distintos quadros referenciais na busca pelo sentido, instaurando um campo
geracional, através de uma observação acurada do sujeito semiótico em seu fazer
no percurso gerativo de sentido, sinto-me impelida a retornar à crise de legitimidade
que acomete a universidade.
Verifico, nesse retorno, o papel específico da arte frente a essa crise, assim
como me deparo com as novas áreas do conhecimento advindas da fragmentação
de áreas tradicionais como a Filosofia, que surgem em meio à crise e passam a
fazer parte da instituição num processo de mão dupla que se como uma
ampliação. Se, para estas novas áreas instituídas das Ciências Humanas, tal como a
Antropologia e a Sociologia, a institucionalização deu-se como uma passagem até
certo ponto tranqüila, para a arte não foi assim. É preciso considerar que essas
áreas emergiram da especialização e pesquisa praticada na universidade, pela
expansão da pós-graduação, e, em conseqüência, contribuíram para a expansão do
próprio escopo da universidade. E, talvez, somente agora, com a transformação
radical da universidade, que necessariamente vai aos poucos se inserindo nas
transformações da sociedade da informação e conhecimento, vindo a participar
deste novo mundo informatizado, a institucionalização da arte esteja em vias de
1-47
ocorrer de fato. Aliando-se a isso, encontra-se a crescente participação da arte na
pesquisa, com a recente institucionalização mundial da pós-graduação em arte.
Entrementes é necessário salientar que a participação da arte na
universidade e a própria institucionalização da arte a colocam, também, em
permanente contradição, diferentemente das novas áreas do conhecimento, cuja
institucionalização concorre também para a construção de seu conhecimento, além
da ampliação e aceitação de seu campo de saber. Importa ainda salientar que, na
arte, diferentemente das outras áreas do conhecimento, a institucionalização não é
garantia de seu campo de saber e, talvez, também resida sua solução de
continuidade.
É da ordem de aproximadamente 20 anos o surgimento no Brasil de
programas de pós-graduação em arte. A pesquisa em arte passa a ser construída
como um aprofundamento da linguagem artística, no que se constitui com a
denominação de Poéticas Visuais, resgatando o conceito grego de poiesis que se
identifica e, simultaneamente, se contrapõe ao conceito grego de tecnhé, pois,
enquanto ambos se definem como um modo de criação, no primeiro está implicado
o caminho da transformação abstrata, e no segundo, o caminho da transformação
da matéria concreta. O outro campo da pós-graduação dá-se na História, Teoria e
Crítica de Arte, e, além desses dois campos, inicialmente, foi demarcada certa
separação do Ensino da Arte, empurrando a pesquisa deste campo para a área de
Educação, ou para a recente área que se estabeleceu no entrelaçamento entre a
comunicação e a arte, denominada Comunicação e Arte, ou enfatizando
especificamente a primeira que passou a ser conhecida como Ciências da
Comunicação.
Abro um parêntesis, neste momento, para ressaltar as incoerências internas
à própria área, ou mesmo o fato de o desenvolvimento da área no Brasil dar-se de
uma forma híbrida ou miscigenada, por influências norte-americanas na formação
inicial na graduação, e européias na formação continuada pela pós-graduação. É
plenamente verificável que, com esse estiramento dos programas de pós-graduação,
através de redes internacionais de institucionalização, a arte acabou por absorver
1-48
totalmente a instituição como um procedimento próprio de seu campo de
conhecimento.
Entretanto, essa institucionalização se ensaiava no ensino da arte, desde
a disciplinarização do ensino superior, sendo acentuada em reiteração, através da
disciplinarização do ensino da arte nas escolas, que, talvez, em uma busca
desenfreada de equivalência em semelhança às outras disciplinas, acabou por
constituir o ensino da arte com quatro disciplinas constitutivas, como na experiência
norte-americana chamada “DBAE”, ou Discipline Based Art Education”, e com três
disciplinas constitutivas, no Brasil, com a Metodologia Triangular. É interessante
pensar que não deixa de ser um espelhamento da institucionalização do
conhecimento no surgimento das primeiras universidades na Europa, resgatando um
caminho, entre o novo e o velho mundo, que é uma das chaves do mundo
secularizado, muito embora a arte não o houvesse trilhado, ao acompanhar o
desenvolvimento do mundo ocidental, até o seu ingresso nas universidades.
Soma-se a este quadro, que apresenta, de certo modo, um desmonte da
unidade artística
45
, pela fragmentação ocasionada pela disciplinarização da arte, a
crescente participação em grupos interdisciplinares de pesquisa científica, nos quais
a especificidade de sua “utópica” unidade de sentido e pensamento é focalizada
como um lugar gerador de uma espécie de pensamento divergente, ou, ainda, como
um pensamento transversal necessário, que pode ser utilizado como contraponto ao
excesso de congruência do pensamento científico. Ao excesso de positividade
construída pela ciência é necessário contrapor a negatividade dada em exposição
pela arte. Mas, naquela mesma direção, é compreensível que o entrecruzamento
com a área científica, neste papel particular atribuído à arte, com uma função que
finalmente considera e reconhece a importância e especificidade do pensamento
divergente da arte, tenha também transformado sua utópica unidade de sentido.
Pois é próprio do contemporâneo o descarte do conceito de obra de arte total,
acentuando uma posição que se define não mais em uma restrição somente à
cultura, mas como constitutivo também do político-social.
45
É pertinente pensar que este processo deu-se de certo modo simultaneamente à discussão levantada na obra de
Walter Benjamin, sobre a perda da áurea da arte, que é discutida em seu texto “A obra de Arte na época de sua
reprodutibilidade técnica”, considerado como um dos textos fundantes da reflexão contemporânea da arte.
1-49
A década de sessenta está marcada como um ponto nevrálgico das
transformações que definem definitivamente a sociedade do século XXI. É também
nesse período que a universidade, ao ser abalada, consegue ainda manter a sua
continuidade, passando de seu objetivo único, centrado na investigação, para a
multiplicação de suas funções, que, no desenvolvimento, acabam também por se
constituir como contraditórias. A investigação, o ensino e a prestação de serviços
são as novas funções da universidade que ampliaram as áreas do saber, inserindo
novas áreas, entre elas as Artes, além de expandir o ensino com o aumento do
corpo acadêmico, aumentando o número de docentes e também o corpo discente. É
importante destacar junto a este breve levantamento do “susto de continuidade”
sofrido pelas universidades que a participação da arte na instituição, inicialmente,
dá-se exclusivamente através da ampliação da área de ensino, a qual se encontra
dentre as novas funções em expansão da universidade, e isto é complementado
com a inserção da arte nos currículos escolares concomitantemente à criação dos
cursos de formação em licenciaturas, transformando o “susto de continuidade em
solução de continuidade”.
Por outro lado, quanto à relação das duas crises da universidade apontadas
por Boaventura de Souza Santos, crise da legitimidade e crise institucional, a
conjugação de ambas acaba por ser a possibilidade mesma de saída da própria
crise, principalmente se for considerado o ingresso na sociedade da informação e do
conhecimento, pois, com a informatização, as mudanças acadêmico-administrativas
passam a se constituir como mudanças operacionais radicais, refletindo-se
diretamente em cada área do conhecimento e, por sua vez, também num movimento
invertido, ou seja, a atualização de cada área repercutindo institucionalmente. Muda
a forma de gestão da universidade e mudam também as formas de controle da
universidade. A criação de indicadores como forma de autocontrole, que visam à
otimização dos recursos, além de possibilitar o planejamento a curto e longo prazo, é
um instrumento capaz de gerar um novo sentido da autonomia universitária, que
não sobrevive sem a articulação de seu contrário.
A relação de dependência e autonomia acaba por reinserir a universidade na
teia sistêmica onde seu lugar passa a ser único novamente, entretanto, na
1-50
interdependência do todo, como as demais instituições sociais e políticas da
sociedade e sujeita às responsabilidades determinadas. Com a crise de
legitimidade, a universidade, ao se defrontar com questões de responsabilidade
social ainda considera que a democratização do acesso possibilita que ela
mantenha o seu “estado mínimo”, garantindo a sua “qualidade”, e isto deverá ser
passível de ser quantificado pelos sistemas de avaliação gerenciados pelas próprias
universidades.
Entre as reflexões e os vislumbres imaginativos de Boaventura, ele
apresenta onze teses que, em seu entender, poderão servir de orientação às
estratégias de mudança adotadas pelas universidades. Cabe assinalar aquelas que
são significativas para continuar a tracejar os encontros e desencontros entre arte e
universidade, que é congruente com o objetivo do desenvolvimento desse trabalho:
a primeira é a transformação dos processos de investigação, ensino e extensão
priorizando a racionalidade moral-prática e a estético-expressiva sobre a
racionalidade cognitivo-instrumental, ou seja, em outros termos é o reconhecimento
do lugar das Ciências Humanas e das Letras e Artes na definição da racionalidade
construída na universidade; a segunda é a utilização da posição de excesso de
lucidez característico das universidades como posição privilegiada para a criação de
comunidades interpretativas, pois reconhecer de fato o outro é também assumir que
toda a perspectiva é necessariamente local e restrita, o que é também a legitimação
no seio da universidade de áreas definidas por distintas racionalidades; a terceira é
a reivindicação de autonomia institucional e a especificidade organizacional, a qual
deverá ser constituída de hierarquias nunca sobrepostas, com a possibilidade de
reconhecimento de múltiplos currículos em circulação no interior da universidade,
que se poderia pensar como a semente de uma nova ética relativa a uma aceitação
da diferença em reconhecimento mútuo.
Frente a esses três caminhos que tenho apontado, selecionando-os de um
conjunto de onze caminhos apontados por Boaventura, novamente se verifica a
relação entre os três campos envolvidos na transformação da universidade que
abrange a transformação das relações com a arte: o campo do conhecimento, o
campo da cultura e o campo institucional ou social. É significativo também assinalar
nos caminhos de solução de continuidade previstos para as universidades, incluídos
1-51
nos referenciais do pensamento construído por Boaventura, aqueles aspectos ou
“lados” que anteriormente haviam sido descartados da universidade, ou que, talvez,
tenham ficado simplesmente adormecidos, ou, ainda, tenham sido somente
encobertos pela visão parcial que os constituiu em substrato sem que isto tivesse
sido percebido.
Em meio às diversas crises, são os movimentos de transformação que
sobrevêm, fazendo emergir o que vai sendo transformado, pois a questão o é
somente o questionamento da relevância dos modelos vigentes, mas a inserção de
novos modelos, uma nova sociedade com outra chave de conhecimento. A inserção
de novos modelos de pensamento, através dessa mudança paradigmática, que
perpassa a instituição e contribui para a transformação da sociedade, é, justamente,
o que nos permite tentar percorrer novos caminhos na geração de sentido, cujo
acesso, anteriormente, não era possível.
Com essa permissão, retorno à semiótica de Greimas que tenho apontado
como norte nessa construção. Verifico que, ao selecionar conceitos,
contextualizados em pensamentos e reflexões, realizados por pesquisadores de
áreas distintas, e, também, construídos em diferentes tempos, ao mirar o
emaranhado mapa do pensamento ocidental de onde emerge meu próprio
pensamento, tentando vislumbrar seqüências não pronunciadas, desenvolvimentos
não previstos, cruzamentos formados por uma espessura gerada na dobra do
tempo, ou escaninhos em classificações que não foram ainda sequer realizadas, é o
modo que me afigura como possível de fazer aparecer em entre-vero a fratura inicial,
necessária para que se veja a arte também como constitutiva do pensamento.
Romper a superfície do pensamento ocidental é também espessar, trazendo
o pensamento como um fato da linguagem simultaneamente à reflexão, e, através
da própria linguagem, na busca pelo sentido atualizado na experiência, ao invés de
especificar, buscar na orientação de Greimas uma qualidade própria do mundo
semiotizado, para, talvez, por ressonâncias, ou através das sombras configuradas
por seu “candeeiro”
46
, poder traçar outros percursos. Ainda no eco de Greimas, que
46
A idéia de “Candeeiro” ou a metáfora da iluminação ou da lanterna que permite à visão o conhecer ou o
reconhecer na busca pelo sentido também está presente na obra de Duchamp, mencionada anteriormente, e lá,
1-52
concluiu seu texto De la imperfeccióncitando Goethe, o qual, ao morrer, clamou
por mais luz, resta-me também penetrar no “des-lumbramento”, e desta outorgada
cegueira tentar extrair um novo projeto de sentido, confirmando essa dita
imperfeição, que, no caminho da luz e sombra, tem subsistido ao negativo.
Entretanto, como artista-pesquisadora-professora de arte, na inversão do caminho
de Greimas, ou em seu estofo, eu me vejo defrontada por um espaço gerativo
originário das artes visuais, fundado por um tratado, através de um contrato que,
necessariamente, enfatiza o desenho configurado na sombra, definido por um
percurso que se curva na realização do caminho da luz.
Para começar este jogo de perturbações, onde pode estar sendo
desenhado o invisível, ou o não visível, e onde poderei querer dizer o indizível, ou
até o não dizível, será necessário providenciar alguns dispositivos, velhos
conhecidos da área de artes visuais, que, de alguma forma, reduzem o excesso de
brilho, canalizando ou encaminhando à entrada de luz, ao construir novos recortes,
também contra a luz, tal como Rembrandt
47
realizou em sua busca no caminho da
arte, gerando figuras inesperadas num horizonte aparentemente conhecido.
tem em seu quadro de referência um cruzamento com o caminho de Rembrandt, em sua obstinada busca pela luz,
que, em sua obra, passa de uma construção definida externamente aos corpos a uma construção definida como
constitutiva do próprio interior do corpo humano representado.
47
Rembrandt van Rijn artista holandês que viveu entre 1606 1669. Tendo vivido durante a chamada “Era de
ouro da Holanda”, ápice da política, ciência, comércio e cultura holandesa, Rembrandt deixou um legado
incomensurável na Arte para a Humanidade. Sua obra caracterizou-se por uma pintura desenvolvida numa busca
incansável pelo caminho da luz, explicitando nesse caminho momentos muito diferenciados, onde a cor é
trabalhada como tinta, em planos pretos recortados sobre fundos iluminados, e outros, onde a cor é trabalhada
como luz, em negros densos que se aprofundam no espaço em limites totalmente desmanchados.
1-53
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
(“ALBERTO CAEIRO” in PESSOA, 1980, p. 103).
Ó naus felizes, que do mar vago
Volveis enfim ao silêncio do porto
Depois de tanto noturno mal –
Meu coração é um morto lago,
E à margem triste do lago morto
Sonha um castelo medieval...
E nesse, onde sonha, castelo triste,
Nem sabe saber a, de mãos formosas
Sem gesto ou cor, triste castelã
Que um porto além rumoroso existe,
Donde as naus negras e silenciosas
Se partem quando é no mar manhã...
Nem sequer sabe que há o, onde sonha,
Castelo triste... Seu ‘spírito monge
Para nada externo é perto e real...
E enquanto ela assim se esquece, tristonha,
Regressam, velas no mar ao longe,
As naus ao porto medieval...
(PESSOA, 1977, p. 19)
2-54
2 QUESTÕES DE MÉTODO OU DISPOSITIVOS PARA A CONSTRUÇÃO
SEMIÓTICA DO CURRÍCULO
2.1 O RESGATE DO NEGATIVO NO CAMINHO DA CONSTRUÇÃO DO SABER
SEMIÓTICO
Recuperar os limites anteriores formalmente expressos na proposta
48
, para
de imediato adentrar nos percursos delineados como pressuposto no entre-vero
inicial, manifesta o propósito de redefinição daqueles limites, muito embora fique
claro que eu pretenda manter a organização
49
estabelecida naquele momento como
intenção de tese, enfatizando o nível de estruturação em que me encontro agora, e
sinalizando para o fato de este ser um procedimento que também caracteriza a
estrutura que está sendo construída na tese de doutoramento como uma estrutura
autopoiética.
Este intento me faz voltar a atenção para os contornos esboçados nas
epígrafes
50
, as quais foram apresentadas anteriormente como divisas
51
poéticas,
funcionando como intróito na abertura e no fechamento do texto da proposta de
tese, em que foram reunidas no posfácio e nomeadas como metadados.
Oportunamente passo a renomeá-las como metatermos
52
, confirmando a tentativa
de aproximá-las também da nomenclatura utilizada por Greimas, pois as tenho
48
A proposta de tese pode ser acessada no seguinte endereço eletrônico: www.ufrgs.br/gearte
49
A organização à que me refiro não diz respeito à estrutura explicitada como sumário da proposta, nem à
proposta de sumário presente em sua estrutura, no capítulo intitulado “Descolamento”, mas ao processo de
ordenação que articula forma e conteúdo dessa estrutura, a qual foi articulada em adensamento a partir de uma
polaridade inicial, explicitando o ponto médio ao final, através de uma referência virtual, tal como se apresenta
no esquema inicial da semiótica narrativa de Greimas. Entretanto, esta organização, aparentemente, está sendo
apresentada invertida na tese, pois, com a mudança de nível estrutural, a explicitação desse ponto médio é o que
passa a dar origem às polaridades, que vão se constituindo em adensamento até a concretização final do texto.
50
As duas epígrafes recuperadas da Proposta de Tese, onde haviam sido colocadas antes da Introdução, e no
fechamento do trabalho, introduzindo o Posfácio, estão reapresentadas em seqüência linear, em contigüidade,
como intróito deste capítulo, como um espelho retrovisor, que pode refletir o que se deixa para trás, e, também à
guisa de primeiro adentramento nas vias abertas pelo momento anterior. Percorrê-las, ao construir o texto da tese
depois do entre-vero inicial, significa fixar um elo de ligação com aquele momento, quando a proposta foi
defendida, afirmando o que seria realizado, e com que propósito a pesquisa se efetivaria.
51
Divisas m o sentido tanto de limite, marco, fronteira, como o sentido metafórico de mbio, ou moeda de
troca entre Estados, o que permite compreender seu significado tanto como uma continuidade quanto como uma
solução de continuidade, determinada pela necessária separação do que é contínuo, gerando o seu contrário.
52
O conceito de metatermo, em substituição ao conceito de metadado utilizado anteriormente na proposta, é
definido por Greimas (1979) como os termos-relação que constituem eixos semânticos constitutivos de uma
categoria que comporta pelo menos dois termos, e a relação em si é, por sua vez, tomada também como um
termo, sendo denominado deste modo para distinguir dos termos simples. Metatermos complementares, por
exemplo, são constitutivos de uma categoria de contrários.
2-55
distinguido como referência aos principais eixos semânticos
53
do texto que está
sendo construído nesta tese.
Busco, com as epígrafes, a alusão a uma pré-lógica, participativa da origem
do pensamento e linguagem, e, nessa referência, eu procuro constituí-la como esses
primeiros metatermos. Essa pré-lógica está, de certo modo, direta ou indiretamente,
contida na poesia escolhida na obra de Fernando Pessoa
54
, e, em reverberação,
converge para a categoria de “ecologia da mente”, em congruência à referência
construída no capítulo anterior através dos quadros teóricos referenciais advindos do
pensamento de Gregory Bateson, não obstante a ultrapasse.
Desse modo, através da poesia de Pessoa
55
, posso deparar uma dupla
referência ao sonho, que sendo próprio da imaginação poética, participa da ordem
do imaginário e do simbólico, e acaba por se configurar poeticamente através de
imagens misturadas, numa mescla de visões que também se fazem ouvir, sendo
ambas: visões e audição, distinguidas em relações que ocorrem sempre em
repetição, numa espécie de iteratividade assemelhada a um eco.
Da poesia, também se afirma a vontade de retorno à oralidade anterior,
como essa fonte originária de onde emergem metáforas, que se afiguram como
próprias dessa espessura da linguagem, ou seja, a poesia dá-se também como a
afirmação do desejo de voltar a uma posição, na qual a manifestação era
meramente uma transmissão antes de ser tradução. Nesse sentido, pode-se
também dizer que a transmissão era uma transferência que funcionava diretamente,
como em uma travessia, simplesmente pelo transporte de um ponto a outro, sem
53
Os referentes dos metatermos utilizados foram constituídos em actantes com mundos distintos, denominados
de figuras pelo próprio Fernando Pessoa. As figuras de Pessoa: Alberto Caeiro e o próprio Fernando Pessoa, com
modos distintos de olhar o mundo, conforme esclarece a prosa de Álvaro de Campos através de um diálogo
fictício, onde as três figuras de Pessoa, incluindo ele mesmo, se tornam presentes. O primeiro, como referente
do pensamento pré-lógico, é apresentado pelo terceiro, cujo pensamento é uma referência à Lógica do
Transcendente, o qual se refere a ele mesmo, Fernando Pessoa, como um pensamento fenomenológico, que,
sendo posterior, é dado como um novelo enrolado para dentro.
54
Fernando Pessoa (1888 1935) é considerado ao lado de Camões como um dos maiores poetas de Língua
Portuguesa. Também é considerado por Harold Bloom (1995) um dos cânones do século XX. É conhecido por
sua heteronímia tendo criado vários autores fictícios com produções caracterizadas por diferenças bem
determinadas.
55
Cabe reproduzir o que diz Saramago em seu artigo sobre Fernando Pessoa de 1985, publicado em
http://www.instituto-camoes.pt/ com o título “As máscaras que se olham”. Afirma ser Pessoa um homem de
máscaras que olham máscaras e deste modo produzem uma constelação de sentidos. E diz que: “Cada um de nós
é quem é, mas aquele que em nós faz é outro”.
2-56
implicar ainda a necessidade de construção posterior abstrata, na correspondência a
uma escuta, definida por uma audição ou uma visualidade elaborada em extensão,
tal como a prosa de Álvaro de Campos outra das pessoas de Pessoa ao se
referir às diferenças de seu mestre Alberto Caeiro e de seu criador, o próprio
Fernando Pessoa.
De outro modo, é na impossibilidade de tradução, presente em todo o texto
poético, talvez por ser em si mesmo um transdutor
56
, que eclode a necessidade de
apontar essa pré-lógica anunciada pela poesia na própria poesia
57
. Sendo assim,
inicio este capítulo reapresentando as duas poesias, constituídas como fragmentos
poéticos que participam de dois distintos universos
58
, se bem que tenham sido
criados pelo mesmo poeta; desta vez, as apresento, dispondo-as em uma seqüência
linear.
A definição desta ordenação em continuidade tem o objetivo de fazer com
que o texto poético possa ser visto também como uma estrutura em prolongamento,
que, além de se constituir como uma diferença, pode abarcar a própria diferença, ao
mesmo tempo em que determina a constituição de um único corpo, em
correspondência à obra de Fernando Pessoa, apresentada pela poesia escrita por
seu mestre, Alberto Caeiro, ao lado da poesia do mesmo, que é seu próprio criador.
Este procedimento, aparentemente ingênuo
59
, de, simplesmente, colocar
lado a lado o que se quer ver como “um”, construindo agregados na pressuposição
de completude, me faz lembrar de um texto de Merleau-Ponty
60
, intitulado “A dúvida
de Cézanne”. Embora neste procedimento eu preserve a escala correspondente à
56
Transdutor é um dispositivo capaz de transformar um sinal em outro tipo, possibilitando algum tipo de
controle do fenômeno.
57
Alberto Caeiro é a única figura, heterônimo de Fernando Pessoa, que escreveu somente poesias, todos os
outros se envolveram tanto com a poesia, como com a prosa.
58
Esta afirmação é do próprio Fernando Pessoa, na figura de Álvaro de Campos, tal como está explicitado na
proposta de tese e também será fruto de referência mais adiante na continuidade do texto.
59
Ou talvez artístico, pois o artista ao construir sua obra, frequentemente, coloca lado a lado coisas diferentes em
associações inesperadas, e isso é muito claro, principalmente, ao se considerar a obra de arte na
contemporaneidade onde na mesma se tem resgatado procedimentos mosaicos, anteriores ao consagrado período
do Renascimento, o qual através da perspectiva do ponto de vista único tem ampliado o escopo da arte inserindo-
a também no mundo mental.
60
Merleau-Ponty (1908 1961) publicou o ensaio “La doute de Cézanne” no mesmo ano da “Phenómenologie
de la Percéption”, em 1945. Desenvolveu seu trabalho no caminho da fenomenologia de Husserl, entretanto o
ultrapassa na tentativa de buscar uma nova ontologia.
2-57
dimensão; da mesma forma, ao apresentar dois universos nas duas das “pessoas de
Pessoa”, mestre e criador, em poesias colocadas em seqüência textual, tento
desenhar um estranho eixo pressuposto por essa reciprocidade que se constitui em
escorço
61
ao apontar diferenças em continuidades, e, simultaneamente,
continuidades em diferenças, que acabam por permitir o vislumbre de certa
completude. Entretanto, esse eixo assim constituído é, também, onde as
semelhanças se mostram a partir de um questionamento semântico, que vai
buscar, em outro, a relação que ali se expõe, e termina por explicitar, igualmente, a
incompletude que caracteriza a composição do fragmento, que, deste modo, passa a
poder ser visto, simplesmente, como um “com-junto”.
Nesse texto de Merleau-Ponty são abordados os caminhos e descaminhos
da construção da idéia de arte presente na obra de Cézanne, interpenetrando nessa
abordagem, vida e obra em reciprocidade e necessidade. Essa construção é vista
como um dos padrões do pensamento fenomenológico, ao ser considerado na
completude do horizonte de uma vida inteira dedicada à perseguição de uma única
idéia, onde, nesse modelo, a perda da vida faz do pensamento um corpo, constituído
fenomenologicamente e aberto como obra no tempo, vindo a ser reconhecido na
coerência do conjunto completo das obras realizadas, por mais díspares e diferentes
que essas pareçam ser.
Deste modo, o filósofo procurou restituir o universo sensível à fundação da
verdade, tal como Greimas em seu último livro, muito embora o seu caminho,
diferentemente deste, tenha sido construído como uma transformação da própria
linguagem através de um ato de refundação. Entrementes, esta refundação da
linguagem na articulação do sensível/inteligível pode colocar Merleau-Ponty como
um dos precursores de Greimas, definindo alguns percursos por onde este também
se movimentou.
Contudo, é preciso que se diga que, diferentemente da semiótica, esta visão
de Merleau-Ponty ainda é a visão da filosofia que, com a fenomenologia, alcança os
limiares da linguagem, ao colocar o mundo da vida entre parêntesis e,
61
O escorço representa o desenho bidimensional de um objeto, considerando-o em uma forma reduzida, segundo
a regra da perspectiva que parte da observação do objeto em suas três dimensões constitutivas.
2-58
conseqüentemente, ao colocar o sujeito da enunciação também entre parêntesis.
Por outro lado, esta rememoração da Dúvida de Cézanne”, percebida e reelaborada
por Merleau-Ponty, exatamente do modo como acabei de relatar, como referência
faz parte de uma outra construção, desta vez, dentro da abordagem semiótica com
uma reorientação greimasiana, pois é na linguagem e, ainda, através da explicitação
da própria linguagem, em um caminho de geração de sentido, articulando o
pensamento à ação, resgatando o sujeito da enunciação, que me foi possível
elaborar este aparente retorno a esse momento da filosofia e espiar por essa fresta
da fenomenologia, e, num vislumbre semiótico, construir essa referência à obra de
Merleau-Ponty de um modo significativo a este texto.
Retornando ao principal propósito desta etapa, voltando o foco para este
agregado sensível que construí com os dois poemas de Pessoa
62
, é necessário
mostrar que ali estão confrontadas duas visões heterogêneas que podem ser
compreendidas claramente sem sobreposição ou hierarquia, posto que um poema
esteja dado como sendo da autoria do mestre, e o outro esteja dado como sendo da
autoria do próprio criador
63
. Considerando a forma como está ordenado, embora o
mestre anteceda o criador na linearidade construída, não se pode esquecer que
aquele ainda é fruto da criação deste que é o próprio autor. Entretanto, toda esta
história da relação das pessoas de Pessoa se fica sabendo por um outro
heterônimo, um terceiro que compartilha igualmente dos dois, do mestre e do
criador, embora deles se distancie em forma, pensamento e intenção.
Toda esta trama se torna possível, pois, ao desdobrar a pré-lógica, que está
sendo apresentada com a poesia de Alberto Caeiro, na contigüidade da pré-
consciência, encontrada como temática constitutiva da poesia de Fernando Pessoa,
esta apresentação também torna presente, na própria extensão, a continuidade
lógica anteriormente pressuposta por essa busca semântica no caminho do
62
Heterônimo e Ortônimo, o primeiro é um dos pseudo-autores, mas não somente isto, pois é considerado por
todos os outros, inclusive pelo próprio criador dos heterônimos, como seu mestre. O segundo é o próprio autor,
criador dos heterônimos.
63
Existem algumas tentações que é impossível de resistir, e aqui, é certo que qualquer pessoa ao ler o que está
colocado ficará com a sensação de já ter visto/ ouvido isto, se bem que a forma não tenha sido a mesma. Pois é,
isso me faz lembrar da história do “ovo e a galinha”, onde sempre está recolocada a questão: quem veio
primeiro, o ovo ou a galinha?
2-59
conhecimento, que faz do sujeito um sujeito da linguagem, ao fazer da linguagem
um lugar de criação e também de fundação.
E, ainda, cabe ressaltar que essa busca, por sua vez, tem-se desenvolvido
inicialmente na Lingüística, sendo originada dentro da Filosofia da Linguagem, e
dela, ou delas se separou, vindo a constituir, na Semiótica, o caminho mais
apropriado para a construção da significação, constituindo-a como forma de
conhecer em ato, através da performance do sujeito da enunciação, em substituição
à forma de conhecimento dada pelo enunciado, e enfocando-a não como o sentido
dado, mas como percurso geracional do sentido.
Ainda que isso não tenha sido premeditado, ou dado como inevitável no
caminho a seguir, a construção que começa a surgir com assento no novelável é
própria da situação enrolada de todo discurso presente em um texto
64
. Mas, é certo
que é no tempo que o discurso vai-se fazendo presente, ao percorrer um caminho
sempre entremeado por esquecimentos provocados pelos sonhos da razão,
entretanto, o também desses sonhos que podem, enfim, sobrevir esperanças de
futuras “ad-mirações”
65
. Não obstante, Bateson (1986) tenha asseverado que os
sonhos sejam somente fragmentos da matéria de que somos feitos, a qual, por ser
transparente e imperceptível, não nos é dada a perceber, restando-nos somente as
fraturas e as rachaduras manifestadas como sonhos, histórias e percepções, para
ele, únicos indícios possíveis aos quais temos acesso.
Pois, agora, sem a distância necessária para a revelação, e ainda sem
palavras entre uma e outra manifestação poética, tendo em vista que dessas
eliminei a solução de continuidade, resta ainda a possibilidade de reconstruí-las
como uma imagem, gerando um caminho do sentido, que pode ser metaforizado
através de outra revelação, tal como aquela que faz aparecer, numa chapa
64
A palavra discurso vem do grego e significa mito, lenda, o qual pode ser autorizado pelo sujeito como texto.
(Dicionário Português-Grego/Grego-Português, 1990)
65
“Ad-miração” está sendo utilizado como uma referência à atitude necessária à gica, que se constitui como
um “olhar em separação” do sujeito com o objeto, constituindo esse abstratamente.
2-60
fotográfica, uma imagem latente, engendrando no metal o que ainda não está dado,
para, posteriormente, talvez, vir a “revesti-lo”
66
mais uma vez em abstração.
Esse aparente retorno, construído em retrogradação
67
, significa a assunção,
em princípio, da atitude declarada e atenta de um observador/pesquisador
68
. Essa
atitude define procedimentos que configuram posições não muito confortáveis em
relação ao objeto de pesquisa, pois vão sendo determinados lugares, que, em
linearidade, são implicados pelo visível/legível da linguagem, onde se entrecruza o
ver-não ler, como possibilidade legítima do observador, e o ler-não ver,
correspondente ao pesquisador; além de se entrecruzarem todas as pressuposições
que se encontram em segredo como, por exemplo, as relações entre os
heterônimos e o ortónimo de Pessoa, ou em mentira
69
, tal como a prosa contada por
Álvaro de Campos, outro de seus heterônimos.
E esse é o enredo da enunciação, o qual compromete um estatuto
actancial
70
presumido, onde o sujeito está sendo apresentado por, pelo menos, dois
actantes da comunicação posicionados no discurso enunciado
71
como destinador e
destinatário
72
que são, reciprocamente, pressupostos por uma primeira relação
criadora de efeito de sentido de verdade.
Existe um desconforto nesse lugar que é assinalado por uma perspectiva
dinâmica do sujeito da linguagem, o qual substitui o sujeito ontológico no discurso
66
Revestir está se referindo às múltiplas camadas que podem constituir uma imagem: em veladuras como na
visão clássica, cuja intenção é unir o que está separado, ou no revestimento, que na visão moderna abarca tanto a
intenção de unir o que está separado quanto a intenção de separar o que está unido.
67
A ação de retrogradação está sendo utilizada em relação à possibilidade que uma descrição tem de fazer voltar
o tempo, tornando a história presente, do mesmo modo que o processo fotográfico indicia uma presença, no
produto final e também no desenvolvimento do procedimento fotográfico, na relação de suas etapas.
68
Observador está aqui sendo utilizado como uma relação de presença/ausência também do artista-desenhador
ou do desenhante pressuposto pelo observador. E por outro lado, pesquisador também pressupõe a
presença/ausência do professor, pressuposto mas ausente neste momento.
69
As pressuposições dizem respeito ao quadrado semiótico na relação do ser ao parecer que contém as
categorias do segredo entre o que é, mas não parece ser, e as categorias da mentira entre o que parece ser, mas
não é. E isto ultrapassa as categorias do verdadeiro e do falso, ou entre o ser e parecer, e entre o não ser e o não
parecer.
70
O estatuto actancial define o actante considerando o percurso narrativo manifestado ou meramente
pressuposto, sendo o actante aquele que realiza ou sofre o ato definido como uma unidade formal anterior ao
investimento semântico e/ou ideológico.
71
Acentua-se o caráter de exercício semiótico na instauração do sujeito da enunciação para a produção da
manifestação, evidenciando a produção das semioses no caminho gerativo do sentido do enunciado construído.
72
Destinador e destinatário de um modo geral são os dois actantes da comunicação que remetem à concepção
sintáxica do enunciado articulado em funções, constituem-se como metatermos. Greimas (1979)
2-61
por personagens ou papéis ligados a funções, tal como estes dois actantes da
linguagem articulados ao enunciador/enunciatário. O destinador e o destinatário
passam a se constituir de formas lógicas implícitas ao longo do texto, ou através de
delegações explicitadas em renomeações ocorridas no próprio discurso. Esta é
certamente uma posição incômoda para um observador/pesquisador, principalmente
se for considerado que somente o início está dado e provoca uma intensa
movimentação, ao prever desdobramentos ad-infinitum”, sem possibilidade de
controle, tanto de crescimento, quanto de diferenciação, tendo em vista que esta
observação/pesquisa torna tanto a linguagem quanto a linguagem da arte
73
imprescindíveis à busca.
Fique claro que, por vezes, a escolha desta investida, caracterizada pela
abordagem semiótica do objeto, que proponho descrever através da relação de
distintos saberes, articulados a diversos contextos ligados a diferentes
conhecimentos, levará este sujeito constituído a percorrer alguns caminhos
invisíveis, onde, aparentemente, ele estará dando saltos, ou, ainda, a percorrer
espaços completamente ilegíveis, onde somente de costas será possível prosseguir,
pois são percursos indicados por pistas, que, freqüentemente, se tornam visíveis/
legíveis somente depois de terem sido ultrapassadas.
Apresenta-se ainda um agravante, como se não fosse suficiente o fato de
toda esta “maratona”
74
, ou talvez, como mencionei anteriormente, esta “odisséia”
75
,
73
A relação da linguagem com a linguagem da arte foi desenvolvida por Colingwood (1993) em uma reflexão
filosófica sobre a natureza da arte, revelando-a como fundação da própria natureza da linguagem.
74
“Maratona” é uma palavra originária da Grécia, e designa a cidade onde ocorreu a batalha de maratona em 490
a.C., conhecida como Primeira Guerra Médica, entre os soldados persas, do exército de Dario, que, passando por
uma ponte ligando a Ásia à Europa, invadiram a Grécia; e os gregos, que precisaram unir seus exércitos para
vencer a batalha. É famosa a ponte que acabou por caracterizar os soldados persas como maratonistas, pois foi
construída, simplesmente colocando uma frota de barcos lado a lado, assentando nos barcos uma estrutura que os
conservava unidos, apesar do movimento do mar, possibilitando a passagem de um lado ao outro, na maratona
da ida e da volta após à perda da batalha. Por outro lado é também famosa e histórica a maratona de Fidípedes,
soldado grego que durante a batalha foi enviado à Esparta, e outras cidades gregas que não estavam presentes
com seus exércitos, correndo 220 km a em um curto período de tempo, sendo esta maratona considerada
como o que tornou possível a vitória. Entretanto, conta-se ainda que, com a vitória dos gregos, Fidípedes tenha
sido enviado de volta, por outros tantos km, levando a notícia, e, desse modo, teria caído morto, estafado, logo
após ter dado a informação da vitória.
75
“Odisséia” é a definição da viagem de retorno de Ulisses, ou do rei Odisseu ao seu reino, Ítaca, após a guerra
de Tróia. Na narrativa de Homero, se encontra a construção do tempo através da articulação da narrativa em
tessitura, que se remete à espera tecida por sua fiel esposa, Penélope, que simultaneamente conduz o
amadurecimento de seu filho, Telêmaco. É um dos mitos de origem da fundação da cultura grega, berço do
pensamento ocidental.
2-62
estar em freqüente transformação, transfigurada a cada vez pela divisão de
responsabilidades, necessitando para isso de uma concatenação que é possível
de ser construída com pontes e passagens, como contratos, contraídos ou não,
tornando cada vez mais longo o percurso a ser vencido, ultrapassando o espaço,
incluindo-se também no tempo.
Essa reestruturação faz com que o texto pareça estar muito distante dos
referenciais comumente utilizados na pesquisa científica
76
, e, embora ocorra em
continuidade ao processo de desenvolvimento do pensamento ocidental em que é
subsumida a clausura originária, provoca, simultaneamente, uma fratura nesse
tecido. A nova estrutura formada dá-se no seio de um pensamento que inclui o
resgate da memória do Curso
77
de Lingüística Geral de Ferdinand de Saussure
78
e o
desenvolvimento da Teoria
79
da Linguagem de Louis Hjelmslev
80
, e, entre a
epistemologia e a metodologia da Lingüística instaurada como uma nova área do
conhecimento, a fratura provocada gera uma positividade ao possibilitar a visão a
partir de novos pontos de ancoragem, mas também gera uma negatividade, pois a
construção do não visível e também do invisível necessita da confiança cega
81
pela
pressuposta posição anterior.
76
A investigação científica, afirma Greimas (1979), é uma forma particular de atividade cognitiva caracterizada
por condições de cientificidade para a realização do programa fixado. E o que distingue a pesquisa científica de
outras atividades cognitivas é o conteúdo específico do dever-fazer. Uma das condições de cientificidade
consiste em dar ao discurso uma forma tal que o sujeito instalado no enunciado possa funcionar como um sujeito
qualquer, pondo em jogo uma metalinguagem cujos termos estejam definidos e sejam unívocos. Todas as
precauções, entretanto, para garantir o bom funcionamento do discurso científico, deixam em aberto as relações
entre o discurso da descoberta e o discurso da investigação, entre hipóteses de natureza intuitiva e sua
verificação.
77
É interessante resgatar aqui que a palavra Curso se originou da palavra Currículo, para onde concorre uma
seqüência ordenada e uma totalidade pressuposta.
78
Saussure nasceu em 1857 e muito jovem publicou uma obra que revolucionou a visão do indo-europeu:
“Mémoire sur système primitif dês voyelles dans les langues indoeuropéennes”. Entretanto, foi somente depois
de sua morte em 1913, com a publicação, em 1916, do “Cours de linguistique nérale”, contendo uma revisão
dos apontamentos que vários alunos haviam tomado durante três cursos de lingüística gerais proferidos por
Saussure em 1906 1907, 1908 1909 e 1910 1911, que suas intuições se tornaram conhecidas. Afirma-se a
importância de suas idéias contidas nesse texto, muito embora se confirme que o fato de ter sido um texto
“refeito” por seus alunos possibilitou a fragmentação de alguns pontos do contexto geral e a reelaboração com
diferentes objetivos.
79
Teoria vem do grego e significa a ação de observar, definindo o observador como um espectador, envolvendo
tanto a especulação como a contemplação, ou seja, a análise e a síntese.
80
Hjelmslev nasceu em 1899 em Copenhague e é um dos representantes da Escola de Copenhague, tendo
desenvolvido muito coerentemente alguns aspectos do “Cours” de Saussure. Seu primeiro livro “Príncipes” é de
1928. Entretanto, os resultados de seu trabalho aparecem em sua obra de 1943 “Prolegômenos a uma teoria da
linguagem”. Enquanto para Saussure a língua é um sistema de signos, para Hjelmslev a língua é um sistema de
figuras que ao se combinarem produzem signos.
81
A idéia de confiança cega se articula posteriormente ao compartilhamento do espaço da negatividade com a
arte que tem utilizado outros modos de se movimentar, transformando a “cegueira” na consciência dos limites da
2-63
Todavia uma coisa já está sendo dada como certa: o sentido do negativo
está constituído nesse lugar. E isso o torna ingrato, pois apesar das breves
passagens positivas que acabam por se dar como relâmpagos, o lugar ainda é
aparentemente infecundo: o sujeito ontológico não está colocado e o sujeito da
linguagem aparece desconstruído em actantes, tornando impossível a apropriação
unificada do discurso, o qual passa a se constituir como parte de um universo
semântico, sem condições de ser descrito na totalidade.
Prevenido por essas premissas e entrevendo o polimorfismo no intercurso
dos sentidos, o pesquisador/destinador se percebe em caminhos e descaminhos,
sendo obrigado ao desdobramento, refazendo, de muitos modos, a construção do
percurso na geração do sentido. Entretanto, mesmo em negatividade, na união do
positivo e do negativo, esses desdobramentos que fazem e refazem o percurso
realizam uma complexa linha geratriz, contendo continuidades nas descontinuidades
formadas por fragmentos de planos em interrupção, que apontam para um plano de
significação dispondo-o para um outro, um observador/destinatário, o qual pode vir a
acolhê-lo como se fosse sua própria possibilidade de construção de sentido.
Em meio a todos esses descaminhos, a estratégia que de imediato me
sucede é adentrar, construindo o próximo caminho com os olhos fechados, em uma
total confiança cega. Entretanto, parece inconveniente começar, simplesmente, por
comutar estados contrários, passando de uma ocularidade com aparente excesso de
lucidez, para ir ao seu inverso, no encobrimento total da visão
82
. Frente a essa
necessidade de cegueira voluntária que me acomete, penso numa estratégia
intermediária, e, por perceber ser própria da arte, me entrego, abraçando a
visão que encontra na técnica e na tecnologia a possibilidade de ampliação da ação, restaurando o positivo como
parte da negatividade e remetendo a própria negatividade à reciprocidade da positividade.
82
Esta atitude me remete a Heidegger que passou do ser ao não ser, como um novo princípio da metafísica,
como um novo fundamento do que está para além do ser. E isso se afigura como totalmente inconveniente,
principalmente por recordar que a geração desse pensamento tão distanciado da ação, sem levantar aqui questões
ligadas ao valor da obra do filósofo, mas, lembrando que, tendo desenvolvido este caminho na Fenomenologia,
mesmo após ter retornado ao ser, também aproximou, com seu percurso distanciado da consciência, ações
humanas extremas contra o ser e conseqüentemente contra a própria humanidade. Dessa maneira, em relação à
visão, escolho a redução e o a anulação, e com esta inserção instrumental própria da arte, definida em uma
atitude semiótica, me proponho a tentar trazer “luz” simultânea à consciência orientando-a no sentido ético que
caracteriza todo fazer, sempre como um “fazer com”, que, como afirmam Maturana e Varela, dá-se sempre na
linguagem, onde poderei conscientemente em ampliação e em redução estar em curso ou em excurso,
relacionando os escorços presentes em qualquer das perspectivas escolhidas.
2-64
possibilidade de, no mínimo, servir-me do seguinte procedimento de redução da
visão, o qual me é muito familiar: consiste em apertar os olhos, ambos em
concomitância, para reduzir a entrada de luz
83
. Esse procedimento, ao mesmo
tempo em que confirma meu arbítrio quanto à redefinição do mundo natural, me
insere de imediato num mundo construído e o dispõe como uma imagem para mim,
revelando essa nova identidade como significativa para o processo.
Deste modo, definir um dispositivo como uma primeira estratégia, de
maneira a caracterizar, também, o desenhador/observador, significa apertar os olhos
e, nesse procedimento/instrumento, poder visualizar os planos de cor
84
que se
apresentam em relações análogas
85
, sem que o brilho excessivo da luz elimine as
tênues diferenças em fronteiras quase apagadas, próprias desse espaço de
compartilhamento que se extingue em margens que qualificam as diferenças da
passagem. E esse é um procedimento freqüentemente adotado enquanto
observador/desenhador, em um caminho obstinado de perseguição às
descontinuidades, detectando um leve adensamento ocasionado pela construção de
um tênue degrau numa superfície, gerado na sobreposição da diferença, que a faz,
simplesmente, oscilar.
Esse procedimento pode vir a se tornar um dispositivo essencial para o
desdobramento da tese, visto que essa escolha me faz percorrer o objeto de
pesquisa, em busca de possíveis significados, percebendo novos limites que não
estão dados na definição do objeto. Ou, ainda, poderá permitir encontrar limites que
não foram classificados, ou, talvez, limites que se deixam ficar sujeitados,
encobertos por demarcações consideradas constitutivas da própria natureza do
83
Esse procedimento é descrito no “Tratado da Pintura e da Paisagem Sombra e Luz” de Leonardo da Vinci
(1944) e ainda persiste, atualmente, nas academias para a captura de valores em desenho de observação, quando
este é principalmente realizado a partir de objetos da natureza, entretanto incluindo atualmente objetos da cultura
organizados como uma natureza morta no mundo real.
84
A cor é significativa tanto para a arte quanto para a semiótica, pois na semiótica o eixo paradigmático,
responsável pelas escolhas, implica a substituição de um significante por outro, os quais se dão por
figuratividade. Na retórica, correspondente, de certa forma, à semiótica na atualidade, essas conversões foram
vistas por Roland Barthes (1985, p.83), no livro “A aventura semiológica”, a partir de classes gerais chamadas de
ornamentos e cores, como dois desvios, o primeiro utilizado para tornar a palavra mais desejável (Cícero) e o
segundo para “poupar ao pudor o embaraço de uma exposição demasiado nua” (Quintiliano).
85
Relações de cores análogas são relações entre cores primárias e secundárias que se apresentam em
contigüidade no espectro de cores, definindo certa continuidade na relação: ex: azul e verde, ou vermelho e
laranja.
2-65
objeto, confundindo a estrutura que carrega a especificidade do objeto com aquela
estrutura que se destina ao seu próprio fim.
Esse procedimento torna possível, por exemplo, ultrapassar as estruturas
disciplinares de desenvolvimento semestral, às quais se submeteu a organização
curricular dos cursos de formação superior aproximadamente quarenta anos. As
disciplinas, como constitutivas do currículo, estão em evidência desde a
federalização do ensino superior no Brasil, a partir de uma inspiração advinda do
pragmatismo norte-americano, com forte acentuação da técnica como possibilidade
de reprodução e reconstituição do próprio conhecimento abstrato. Esta evidência
desde a cada de 60
86
define em prescrição a natureza homogênea da opção
formativa; tanto em correspondência às áreas duras das Ciências Exatas, como em
definição da formação correspondente às Ciências Humanas e Sociais, e, ainda, no
extremo dessa classificação, destinado também à formação na área de Letras e
Artes.
A disciplinarização do conhecimento teve origem no final da Idade Média
com a criação das primeiras universidades européias, e acompanhou as
transformações que mudaram a visão de mundo no Renascimento. As disciplinas,
àquela época, foram definidas em sete, em dois grupos: um de quatro disciplinas e
outro de três, o que, de certa forma, abrangendo tanto as disciplinas quanto as vias
de acesso ao conhecimento, tinha a intenção de abarcar nesse universo todo o
conhecimento abstrato.
Para além do significado relacionado ao conteúdo dos conhecimentos
selecionados para serem separados em disciplinas ou em caminhos, como distintos
escaninhos, os quais têm sido, ao longo do tempo, muito focalizados, inclino-me,
86
Mantenho o foco na Federalização do Ensino Superior no Brasil, muito embora seja também significativo para
o escopo deste trabalho o fato de a estrutura disciplinar do conhecimento ter sua origem na primeira
fragmentação do conhecimento advinda da Idade Média com a separação das Artes Liberais, composta de sete
disciplinas, em dois grupos: trivium” e quadrivium”, aos quais cabia ao primeiro a definição das vias, e ao
segundo a definição das disciplinas propriamente ditas: envolvendo no primeiro, através da gramática, a dialética
e a retórica, o falar, o buscar e o colorir as palavras, e no segundo, através da aritmética, a geometria, a
astronomia e a música, o fazer, o calcular, o cultivar e o produzir. Com esta separação das artes livres, ou
liberais, também se separavam métodos e habilidades intelectuais de habilidades ocupacionais. Com as Artes
liberais temos o surgimento das primeiras Universidades na Europa, tal como a de Bolonha em 1088, chamada
Alma Mater Studiorum, que adotava uma seqüência iniciando com o trivium e desenvolvendo-se até o
quadrivium.
2-66
neste momento, exclusivamente, sobre a forma dessa separação. Neste sentido,
com a atenção voltada para o fato de terem sido as disciplinas ordenadas em uma
quantidade especificada por um conjunto de sete elementos, proponho um excurso,
uma livre associação, trazendo a articulação de um percurso extremamente
distanciado, mas que, entretanto, poderá servir de referencial, senão do que
concerne à tese, ao menos de um quadro referencial indiretamente relacionado a
este trabalho. Ou, talvez eu possa dizer que essa referência está, simplesmente,
relacionada ao texto principal em reciprocidade e pressuposição, percebendo que
me determinei também, em alguns momentos, em não separar o que está sendo
apontado pelo conjunto de coisas concebidas em seu conjunto do que ainda não foi
apontado como componente deste mesmo conjunto, e isto, a meu ver, se torna
necessário para viabilizar a visualização do próprio ato de apontar.
Pensando nisso, a princípio, este conjunto de sete disciplinas pode ser
listado junto a um rol ad-infinitum” de agrupamentos em ordenações com sete
elementos; entretanto eu seleciono desse rol três ordenações percebidas em
aproximações de semelhanças, designando-as ad hoc como: três conjuntos
também constituídos de sete elementos, que se aproximam do sentido de
completude presente na disciplinarização ligada ao conceito de currículo que está
sendo construído, pelo fato de ter certa totalidade pressuposta, além de se constituir
em seqüências ordenadas, muito embora isto tudo implique um “para além de”, ou
seja, implique uma incompletude pressuposta. Aponto ainda, nessa escolha, o fato
dos conjuntos selecionados estarem ligados diretamente ao ver-ouvir-fazer, como
definidores de ações que interessam também a um observador/pesquisador,
auferindo alguma utilidade a este caminho da livre associação que está sendo
delineado, visto que participam do quadro de referência onde se encontra a
percepção, a imaginação e a criação, que são processos próprios e correspondentes
à área do conhecimento de abrangência do currículo de qualquer curso superior de
Artes Visuais.
Os conjuntos “ad hoc” que selecionei para colocar junto ao conjunto das sete
disciplinas são os seguintes: 1º. O conjunto das sete cores que compõem o espectro
visível da luz, as quais são definidas por comprimento de ondas que variam de 400 a
700 nanômetros, sendo somente esta a faixa que sensibiliza o olho humano, muito
2-67
embora na atualidade exista uma diversidade de instrumentos e equipamentos
tecnológicos que ultrapassem a visualização desta faixa visível, e a redobrem,
devolvendo-a em uma nova imagem representada e diferenciada
87
em cor ou valor
para a nova apreciação pelo olho humano, redimensionando qualitativamente o
padrão da visão. 2º. O conjunto dos sete sons da escala musical diatônica, que
define uma seqüência ordenada pela freqüência vibratória de sons, do mais baixo ao
mais alto, distribuindo-se em intervalos de tons e semitons, incluindo o “silêncio”
necessário à audição, que, entretanto, não é possível ouvir, pois se situa em uma
faixa acima e abaixo da faixa audível pelo ouvido humano, muito embora, do mesmo
modo que o conjunto anterior, como conseqüência da ampliação do espectro pela
captura de outras faixas de cor, hoje existem equipamentos e instrumentos que
“devolvem esse silêncio” ao ouvido humano, ou talvez, aos sentidos humanos, em
uma outra forma de representação
88
, tal como a representação visual. 3º. O conjunto
dos sete dias da semana, que, coincidentemente, correspondem à ordenação do
tempo, o qual está descrito no livro do gênesis da criação como criação do mundo,
incluindo na forma de criação do mundo tanto o fazer como o descansar, ou o não
fazer, ultrapassando a medida humana da ação, entretanto, reinserindo-a no
universo da criação, onde está implicado o tempo do fazer e do não fazer, cujo
modelo está dado no fazer da arte.
Com este conjunto formado ad hocpor esta seleção de “conjuntos” ver/
não ver, ouvir/não ouvir, fazer/não fazer definido com três elementos, eu
componho um novo conjunto, colocando-o novamente como elemento e associando-
o ainda ao conjunto da disciplinarização, a qual foi dada como um conjunto de
disciplinas fundado em uma articulação de três e quatro disciplinas, perfazendo em
sete disciplinas originárias, correspondendo à totalidade do conhecimento abstrato.
Desse modo obtendo dois novos conjuntos, um formado pelo conjunto ad hoc”, e
outro formado por esse e também pelo conjunto chamado de “disciplinarização”.
Desse novo conjunto, que passo a constituir com o anterior como uma
composição de conjuntos de conjuntos, aparentemente tão distintos, formado a partir
87
Esta nova cor do espectro não visível, quando capturada pelo equipamento, é dita como colorizada por algum
processo de reconstrução do tipo digital, que permite uma palheta de 32000 cores.
88
É muito comum esta outra forma de representação ser dada através da imagem, ver o exemplo do ultra-som,
muito utilizado na gestação, que traduz em imagem a leitura realizada através do som.
2-68
de diferentes contextos, com tênues pontos de intersecção, e, historicamente, sem
nenhum entrelaçamento desenvolvido entre eles, posso definir novas semelhanças.
Essas semelhanças inicialmente não foram percebidas e, na comparação com o
primeiro conjunto, do qual parecia tão distante, coincidentemente, também está
presente certo sentido da disciplinarização que encontro na origem da
universalização dos currículos da universidade, que se define do seguinte modo: as
semelhanças emergentes correspondem a uma seqüência ordenada em valores
completamente equilibrados correspondentes à totalidade pressuposta por essa
harmonia, generalizando nessa relação um modo específico de articular diferenças,
ao fazê-las concorrer em ordenação temporal, e, desta forma, possibilitando o
controle total dos conteúdos desenvolvidos, que passam a se constituir como
institucionalização do próprio conhecimento, classificado tipologicamente em
conteúdos pré-definidos, descartando qualquer desvio, ou mesmo a possibilidade de
outro foco; inclusive excluindo a consciência proveniente do modo de conhecer o
conhecimento, que foi instituído ao ser subsumido totalmente pela referência à
sujeição ou imposição, ou seja, eliminando a autoconsciência que define justamente
a autoria e a responsabilidade pela criação, que o criado é sempre determinado
de fora
89
.
Por outro lado, é interessante lembrar que no Brasil, em pleno regime de
exceção, com um sistema ditatorial que pretendia deter o controle total das
universidades brasileiras, o termo “disciplina”, como ordenador curricular, estava
sobreposto pelo termo “cadeira”, o qual foi fixado anteriormente, fazendo parte
inclusive do texto da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de
1961, que, de certa forma, mesmo como metáfora, traz em seu quadro de referência
o sentido de constituir em si um lugar, resgatando as diferenças originárias
constitutivas das disciplinas.
Entretanto, esta substituição de disciplina por cadeira também foi realizada
em sobreposição, encobrindo o excesso de ordem expresso nos sentidos da palavra
disciplina, que contém definições referentes a hierarquias sobrepostas, em sujeição
89
A semelhança com os primeiros metatermos escolhidos e explicitados através da poesia de Fernando Pessoa é
evidente, uma vez que este excurso foi escolhido e construído para possibilitar a composição da mistura do
positivo e do negativo na formação da metalógica, na articulação da lógica e da pré-lógica.
2-69
ou imposição. E, nesse caminho, substituiu a referência ligada a um sujeito
sujeitado, por uma metáfora anterior em referência a um objeto, que, considerando
o conjunto de seus significados, no qual se encontra também a cátedra como o lugar
da hierarquia do magistrado, pode também abrigar o sentido de repouso, ou de
parada, que é uma qualidade completamente adequada, não como fixação, mas
como ponto de bifurcação ou mudança de nível, tendo em vista que é
comprovadamente necessária a todo processo de conhecimento. (Talvez, este
sentido de repouso possa ser aproximado aqui ao conceito de assimilação,
elaborado por Piaget no caminho da origem da construção do conhecimento na
criança, resgatando as transformações do conhecimento através das pesquisas
elaboradas na modernidade, as quais envolveram o conhecer do conhecer).
A universalização da disciplinarização da estrutura é depositária, por
definição, tanto de um sentido positivo, considerando caminho e completude em
pressuposição mútua, como de um sentido negativo, considerando que abriga
hierarquias sobrepostas em sujeição e imposição, tornando necessária a construção
de modos de interação desses sentidos, ultrapassando tanto um, quanto outro, sem
fixação, alcançando a completude/incompletude e a hierarquia móvel através do
autocontrole em constante redefinição de limites.
Embora eu veja como significativo esse caminho fundacional em que se
encontra a convergência de conhecimento, disciplina e currículo, através de uma
fundação mítica ou ideológica, para compreender a construção da estrutura de uma
forma curricular fixada, dada como aparentemente natural, e, também, para chegar a
permitir a verificação das reais possibilidades de mudança dessa forma, ou mesmo
vir a detectar quando as mudanças realmente ocorrem, ou começam a se
engendrar; é necessário agora, no caminho geracional do sentido, inverter esse
vetor.
Nessa inversão, construindo uma nova vetorização, se processa um fluxo
por um outro caminho, e começa o engendramento de um outro sentido; entretanto,
esse não se através da ampliação dos sentidos dados, tal como foi realizado na
busca do caminho fundacional desenvolvido acima, com um movimento em direção
ao exterior, imprimindo um deslocamento para fora, em busca de origens, fundações
2-70
ou intersecções temporais em metáforas ou em usos metafóricos. Agora, a inversão
redefine uma escala que é anterior, no sentido de ser imediatamente anterior,
embora ainda participe dos limites do próprio objeto através de uma definição inicial
desses limites da abordagem, construindo-os em delimitada redução do olhar, em
um dispositivo cuja característica principal é a realização desta ação a partir de uma
escolha deliberada.
Esta redefinição de limites, limitando aquilo que vai ser observado através da
consciência do instrumento, ou do dispositivo de observação, numa
operacionalidade que selecionei como significativa e correspondente ao modo de
ação da área do conhecimento das artes visuais, possibilita encontrar, nesses novos
limites, um outro modo de construção do currículo, que pode, talvez em segredo,
estar sendo encaminhado.
Neste sentido, passo a redefinir a entrada de luz como um procedimento/
dispositivo na busca de outro caminho de elucidação. E fica claro, por esta nova
escolha, que não quero me afastar do objeto de estudo, mas, ao estar dentro dele,
quero poder olhá-lo como se estivesse também fora, no sentido de poder vê-lo como
um outro, mesclando-o a outras naturezas. Isso precisa ser feito sem que ele deixe
de ser a estrutura curricular na disciplinarização que o define; podendo-se utilizar,
inclusive, esta estrutura na observação dele mesmo, com um outro instrumento para
o olhar. Enfim, neste caminho da redução do olhar, encontro inicialmente um tosco
desenho que oscila em sobreposição àquela perspectiva disciplinar, que,
atualmente, ainda é aceita como a própria natureza curricular.
Esse “redesenho” encontrado, que se sobrepõe ao desenho instituído, de
certo modo, também se opõe aos excessos da disciplinarização, pois faz da
estrutura curricular, assim realizada em desenhos sobrepostos, um lugar significativo
para um observador, que é, simultaneamente, desenhador, e, se não houver outro,
por este motivo, é significativo para um currículo de formação superior em Artes
Visuais. Digo que é significativo não somente a princípio, mas também em
princípio, não só pelo simples fato de significar a um desenhador, mas, considerando
que seja coerente encontrar uma estrutura fundacional, ou um desenho próprio de
um Currículo de um Curso Superior de Artes Visuais, como um paralelo significativo
2-71
à tradição que fez da disciplina de Desenho um eixo temporal de estruturação
curricular. Este eixo é correspondente à especificidade da área de conhecimento
que, até o currículo anteriormente em vigência, constituía internamente a estrutura
curricular, se apresentando de um modo implícito, tal como um segredo.
O desenho, colocado como instrumento estruturador no currículo do Curso
de Artes Visuais, tem enfrentado a disciplinarização, ultrapassando-a desde a
inserção das Artes Visuais na universidade, sem esquecer que a disciplina é
característica da própria institucionalização do sistema universitário, estando ao lado
e acima das outras disciplinas curriculares. É desta maneira que tem sobrevivido até
agora, redesenhando internamente o currículo, ao ultrapassar a redução disciplinar
imposta às outras áreas constitutivas. Do mesmo modo, está sendo percebido o
redesenho externo constituído no currículo em implementação, pois este se encontra
em equivalência àquele eixo interno existente na estrutura curricular anterior, que,
por sua vez, sempre excedeu a definição contida na lei. Esse redesenho também
redefine os limites que mantêm a organização disciplinar institucional, provocando,
com isso, a aproximação do currículo redesenhado à especificidade da área de
conhecimento, correspondendo ao excesso pressuposto pela definição da lei e
estando para além do acabamento apontado na legislação.
Com esta primeira constituição/desconstrução do currículo, envolvendo
diretamente o objeto em sua especificidade correspondente à área de
conhecimento, resgatando continuidades significativas da estrutura anterior
constituinte dessa especificidade, através das diferenças próprias da redefinição dos
limites atuais, eu começo a engendrar, concomitantemente, um novo sentido como
destinador/destinatário em sintonia com o enunciador/enunciatário. Tendo partido
das diferenças constitutivas que se escondiam internamente na estrutura curricular,
evidenciando-as, neste movimento, e reestruturando nesta evidência a segmentação
curricular institucional, a qual ainda é comum a todas as áreas do conhecimento,
apresento-as em redefinição da estrutura disciplinar anterior. Entretanto, a estrutura
disciplinar é, aparentemente, ainda atual, e isso faz com que as duas estruturas
possam ser vistas externamente e em sobreposição, construindo-se quase como um
palimpsesto, ou poderia dizer, semelhante a um desenho cego sobreposto a um
desenho perspectivo, numa mistura que é própria do desenho contemporâneo.
2-72
Enfatizando e confirmando a pertinência dessa primeira estratégia escolhida,
e pensando também em relação aos procedimentos comuns ao desenho
contemporâneo, constato a semelhança com a produção semiótica. Tanto esta como
aquela, ou, ainda, aquele outro cujos procedimentos se aproximam, ao visar à
produção de sentido, desenvolvem um percurso no qual o objeto vai sendo
constituído na mesma medida de sua desconstrução, evidenciando todos os planos
que o compõem. Por fim, apresenta-se um objeto em tal diversidade gerativa, que
este passa a redefinir-se no modo mesmo de sua produção.
Começo o mapeamento do Currículo do Curso Superior de Artes Visuais da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que está regulamentado na Instituição e
em processo de implementação iniciado em 2007, alinhando-o a legitimação do
novo currículo. Este novo currículo vai-se definindo no próprio processo a uma
apropriação diferenciada, tendo encontrado uma continuidade, em relação ao
currículo anterior, na diferença estrutural que o articula como uma organização
própria da área, percorrendo-o através de um caminho geracional de sentido com
dispositivos que entre constituições e desconstruções passa também a redefini-lo
como um objeto semiótico. Esta atitude, própria de uma abordagem semiótica,
provoca e multiplica a atenção, que se redobra frente às sutilezas estruturais
presentificadas pelo objeto, tanto quanto às possibilidades produtivas definidas nas
perturbações dos sujeitos, indivíduos ou coletivos, que o constituem e também são
constituídos como corpos institucionais, muito embora se manifestem como
práticas diferenciadas, enquanto utilização, instrumentalização ou administração.
Desse modo, a atitude baseada na semiótica passa a envolver a ambos, sujeitos e
objeto, como diversidade do mapa que vai sendo construído no delineamento da
estrutura.
Com os olhos apertados, tomo a estrutura curricular em consideração, e isso
me faz perceber que, para além das disciplinas curriculares, e, de certa forma, as
desconstruindo, estão ali constituídos pesos diferenciados por relações temporais
estruturadas entre conteúdos em fluxo de informação. Estes vão definindo etapas
em diferenciada ordem temporal, passando da linearidade da ordem semestral para
uma estrutura em blocos, onde os semestres o aglutinados, em uma
2-73
reestruturação anual ou bienal. No desenvolvimento que corresponde à seqüência
no tempo, caracterizada por assimetria e complementaridade, ocorre uma
transformação radical da etapa inicial, acarretada pelo fluxo de informação que
informa e acrescenta, transformando cada etapa, até chegar à etapa final, muito
embora exista um rebatimento invertido entre o fim e o início da estrutura curricular
correspondente ao curso, que reflete em reciprocidade e complementaridade a
estrutura de entrada na estrutura de saída.
Desse modo, o primeiro bloco define também uma primeira etapa do Curso,
e se apresenta no Currículo como uma inserção na área de conhecimento
90
, que é
evidenciada pela articulação do primeiro e o segundo semestre em disciplinas
obrigatórias. Essas disciplinas se equivalem na distribuição da carga horária,
abrangendo todas as ênfases: conceituais, formais, tecnológicas e histórico-
instrumentais que compõem a área de conhecimento na atualidade. A abrangência e
a distribuição homogênea deste bloco, presentificadas na estrutura curricular,
funcionam como garantia para a equalização do conhecimento específico da área. E
mantêm, nessa equalização, o significado da função do desenho como estruturação
central do conhecimento, embora o desenho esteja sendo utilizado não como um
instrumento, mas sim como uma intenção, transferindo para o pensamento, em
abstração, o delineamento da área, que era antes definido concretamente no traço
dado pelo corpo, quando esse era enfatizado como um instrumento desenhador
91
.
A atitude de um desenhador/pesquisador consciente de sua intenção
artística passa a ser necessária ao aprofundamento enunciado pelo currículo
portador de uma formação superior na área de conhecimento especificada como
Artes Visuais. Neste primeiro bloco, a atualidade e a diversidade da área estão
definidas através da variabilidade de meios que envolvem o pensar e experienciar as
90
No currículo anterior, a primeira etapa correspondia ao primeiro semestre e se caracterizava por uma inserção
na instituição para então encaminhar a área do conhecimento.
91
É interessante resgatar aqui uma imagem que, ao ser colocada ao lado da transformação do sentido de desenho
pode vir a mostrá-lo de uma outra maneira: a imagem que disponho para construir a visibilidade é a da
construção do desenho pela criança como forma de conhecimento. O ponto é exatamente quando da passagem da
garatuja para a primeira definição de fechamento de área, considerada como o princípio da construção do
significado e conseqüentemente fundante da construção do conhecimento pela criança. Pode-se fazer um
paralelo com a garatuja que definia o desenho como a estrutura interna encoberta pela disciplinarização no
currículo anterior, com o “fechamento de área” delineando o bloco inicial do currículo atual como fundante da
construção do conhecimento da área, muito embora se perceba uma relação assemelhada à ideologia da
disciplinarização.
2-74
relações artísticas, mantendo uma intenção comum, ou mantendo um padrão que as
articula, e este padrão de articulação de diferenças dá-se à semelhança do eixo do
desenho no currículo anterior, cuja função tinha o mesmo sentido estrutural. Desse
modo, o desenho como uma estrutura que ultrapassa as disciplinas passa a garantir
um transborder institucional, um excesso, o qual, a exemplo do anterior, ainda
permite a ultrapassagem dada em resistência frente à imposição da estrutura
disciplinar comum a todas as áreas do conhecimento da Instituição Universidade.
O bloco seguinte, compreendendo dois anos, ou quatro semestres, é onde
ocorre o prenunciado aprofundamento, e, conseqüentemente, é também onde
ocorre a maior diferenciação entre tempos e espaços no desdobramento curricular.
Isso se constitui na própria organização interna do bloco, que aponta para um novo
tipo de formação na Graduação, inspirada na Pós-Graduação, composta por séries
de disciplinas alternativas, onde a definição não está dada, sendo possível fazer
escolhas e realizar diversos percursos curriculares dentro de um único currículo.
Aqui a mudança é radical: inverte o tradicional caráter prescritivo, encontrado em
todos os currículos constituídos de disciplinas obrigatórias, ou mesmo, de disciplinas
eletivas, mas que, no modo de organização curricular, acabam também por serem
obrigatórias, pois acabam por definir um percurso totalmente conhecido sem
possibilidade de escolha, ou com uma escolha que foi completamente pré-definida,
elaborada externamente ao ser definida totalmente por um outro.
A mudança se caracteriza pela inversão do foco definidor do
desenvolvimento e dá-se na ultrapassagem do padrão curricular linear e
homogeneamente organizado, possibilitando a definição de um desenvolvimento
curricular diferenciado para cada discente, o qual pode vir a escolher seu próprio
percurso curricular, através de um modo geracional autopoiético. Este, ao tornar
possível a autodeterminação, multiplica os padrões dentro de uma estrutura comum
que oferece todas as possibilidades a todos os alunos sem separação dentro da
área, inclusive gerando uma aproximação máxima entre a licenciatura e o
bacharelado, separados, nesta nova estrutura, a partir do ingresso, atendendo à
regulamentação advinda da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de
1996, que define a separação da formação do professor, determinada
2-75
obrigatoriamente a partir do oferecimento das vagas no processo de seleção da
Universidade.
Esta estrutura com acento na escolha a ser realizada pelo discente, aberta
através da possibilidade de encaminhamento da formação do pesquisador na etapa
de ensino de graduação, concorre para a formação da consciência do discente de
artes visuais como um criador. Ela é necessária a um curso que define sua missão
na formação do artista, simultaneamente à formação do pesquisador, sendo a
articulação de ambos definidora também da formação do professor de arte.
Entretanto, é significativo destacar que, nessa estrutura, a consciência é emergente
desta formação, apesar de dar-se sempre associada à formação da consciência do
pesquisador, mas, diferentemente da pós-graduação, nessa etapa da graduação,
não existe o acompanhamento da formação pela figura de um único orientador,
inclusive, gerando a possibilidade de nenhum, alguns, vários, ou todos os
professores formadores passarem a assumir este papel, que é vago ou inexistente.
Isso se agrava ainda com o fato de a oferta de disciplinas não contemplar somente
linhas de pesquisa dos professores, docentes responsáveis pelo exercício do
currículo, mas classificações gerais dentro da área, contribuindo para submergir ou
esconder a especificidade que corresponde à abordagem de cada professor
formador e, conseqüentemente, escondendo o caminho da pesquisa, que passa a
ter um desenvolvimento individual.
Esta situação, diferentemente da estrutura curricular anterior na qual o
discente cumpria o que estava definido, numa referência ao caráter científico da
instituição, o qual eliminava a possibilidade de escolha, é certamente muito
ampliadora, mas, também, traz em seu centro uma outra problemática. A estrutura,
assim organizada em sobreposição à organização da Instituição, passa a ser
perpassada por questões que estão colocadas no centro da institucionalização da
própria arte. Trazer para o campo da formação artística um campo aberto pelo jogo
das possibilidades de seu fazer-saber individual é, certamente, o modo menos
redutivo de a arte participar da instituição, entretanto também significa abrir essa
formação ao campo artístico e a todas as suas flutuações sociais, afirmativas ou
negativas e ainda contraditórias ao próprio desenvolvimento do conhecimento da
área. Cabe ressaltar ainda que, na atualidade, o campo artístico, ao se constituir
2-76
como instituição cultural acoplada dentro da cultura, onde participa da emergente
sociedade do conhecimento e informação, em mútua perturbação, provoca
redefinição constante de limites, muito embora ainda se sujeite aos desmandos e
jogos de poder aí inscritos.
Este quadro que mostra estes aspectos em relação à realidade externa do
campo da arte é constituído por uma face especular que pode vir a refletir como um
espelho na superfície formada entre esses limites abertos, instaurando conflitos na
academia, que, por um lado, poderão ser o diferencial para o real desenvolvimento
da arte dentro da instituição; e, por outro, poderão vir a ser a origem de uma
provável desconstrução da área de formação na universidade, onde ela poderá
oscilar entre a área de comunicação e a área de arquitetura, instituídas.
Entretanto, se a área de Artes Visuais resistir a essa desconstrução, a própria
sobrevivência à indefinição entre a comunicação e a arquitetura poderá vir a restituir
ambas como constituintes de seu conteúdo, sem que se defina nem por uma, nem
por outra, instituídas na universidade. Esta nova explicitação da negatividade
constituída como corpo criativo de ambas lhe reserva um papel essencial emergente
desta nova face que a colocou dentro da cultura, estando também dentro da
universidade. Na Instituição, seu novo papel passará pela codificação da própria
cultura, que na arte contemporânea vem sendo reapropriada como expressão
construída em seu corpo, e, deste modo, entre comunicação como linguagem e
arquitetura como construção e criação da forma; podendo, também, reverberar em
uma nova arte-educação, que, para além da formação integral do indivíduo, se
constitui como um dos espaços onde a arte, de certa forma, se reorienta em
retroalimentação.
Entretanto, o espaço da arte-educação e da educação para a cultura não é o
único espaço de expansão e retroalimentação da arte, pois é necessário levar em
consideração o avanço da área na pós-graduação, que articula e repercute a
graduação, e passa a gerar uma retroalimentação em recursividade, numa
ampliação conceitual e institucional que não é mais possível conter. Esta
retroalimentação é responsável por um substitutivo do professor de arte ligado à
formação do artista, ao qual, diferentemente daquele que é artista/professor de arte/
pesquisador, caberá uma formação entrecruzada como artista/pesquisador/curador,
2-77
em atenção à nova sociedade da informação e conhecimento. Por sua vez, essa
nova sociedade também está informada pelo recentíssimo sistema das artes, que,
se inserindo na cultura, a constitui em diferença, em acoplamento, e,
conseqüentemente, em constante redefinição, tornando possível uma revisão da
arte a partir desse outro lugar, o qual se deu em emergência do processo de
institucionalização, possibilitando apontá-la em reduções ou excessos ao dizê-la em
discurso curatorial e assumindo, em tutoria, essa aparente incapacidade de
construção de seu próprio conhecimento também como um fazer correspondente à
sua área de ação e conhecimento.
Voltando à observação da estrutura curricular, por fim, detecto um novo
bloco, com a duração novamente anual, definido como o bloco de conclusão de
curso, articulando os dois semestres finais estruturados no currículo, e destinados à
finalização do curso, ou, se poderia dizer, por um outro viés, que corresponde à
profissionalização propriamente dita. Esta nova estrutura anual na qual o curso
alcança o seu termo poderia, a princípio, por sua posição, divergir em uma simples
oposição do padrão do bloco inicial, pois, se não possibilita a inserção profissional,
ao menos sinaliza uma estase no desenvolvimento acentuado pela emergência da
inventividade individual. Mas, o certo é que a relação entre os blocos inicial e final
ultrapassa em complexidade a simples oposição, pois mantém, essencialmente, a
assimetria interna com o bloco inicial, definindo, simultaneamente, uma
complementaridade em reciprocidade, além de apontar para uma oposição não
binária, acrescentada pelo continuum” graduado definido na seqüência dos três
blocos, mantendo as atividades ou as disciplinas ofertadas totalmente
obrigatórias, à semelhança do primeiro bloco, caracterizando uma qualificação final
homogênea.
A “provação” para a qualificação dá-se também à semelhança e
equivalência do bloco inicial, no qual o conhecimento da área foi equalizado, e, de
certa maneira, determina, nesse modo, o controle da homogeneidade definida no
padrão da formação superior. Este último bloco passa finalmente a corresponder ao
objetivo do curso oferecido pela instituição universitária articulando-o à sua missão,
a qual se apresenta em completa sintonia com aquele, acordando com as
2-78
características exigidas a todas as áreas de conhecimento que participam da
Universidade Federal, nesse caso da Universidade Federal do Rio grande do Sul.
Pode-se pensar que essa estrutura, que mantém a linearidade presente no
conceito de currículo, de fato se apresenta linear somente na superfície, pois
concomitantemente, essa superfície contém muitas perfurações que, em
deslocamentos, entrecruzamentos e bifurcações, possibilita um caminho escondido
entre a entrada e a saída, em vias de mão dupla constituídas entre as definições de
sua área e as definições que a classificam junto às outras áreas do conhecimento; e
esse caminho pode-se desenvolver por uma infinidade de percursos próprios.
Entretanto, isso não é totalmente visível, pois a manifestação é oblíqua a esta
aparente linearidade, transformando e qualificando o padrão de profissionalização
do bloco final, definindo a conclusão do curso e a inserção no campo profissional, a
partir da inclusão das escolhas individuais, ou do caminho realizado por cada
discente individualmente.
Frente a este aprofundamento, que se dá tanto em extensão como em
adensamento, os procedimentos finais constituem uma mescla entre a avaliação dos
caminhos escolhidos individualmente para a realização do aprofundamento e uma
atividade classificada como uma residência artística, muito embora se considere a
diferença que reveste esta residência conforme se tenha focalizado a formação do
artista ou a formação do artista-professor de arte. São distintas as duas formações,
pois esse último inclui, também, os estágios realizados como práticas profissionais
instituídas; sendo que a ambos é facultado o desdobramento da formação, tanto
conceitual como instrumentalmente, através do recobrimento dessa formação pela
simultânea formação do pesquisador. Frente a isso temos então a formação do
artista-pesquisador-curador e do artista-pesquisador-professor de arte, pressupondo
e configurando essa formação complexa na própria estrutura curricular.
É importante resgatar a correspondência do bloco de aprofundamento
realizado em dois anos com a formação do pesquisador, enfatizando que se
assemelha em organização aos currículos de pós-graduação; pois, como afirmei
anteriormente, as escolhas que vão sendo feitas são também determinantes da
consciência que vai sendo gerada, caracterizando o perfil do sujeito que constitui a
2-79
sua formação na etapa da graduação também como a elaboração de consciência de
pesquisador, para uma continuidade da formação através da etapa de pós-
graduação.
Com isso, simultaneamente, a estrutura curricular encaminha para uma
formação continuada, em continuidade ajustada aos programas de pós-graduação, o
que se detecta também como uma característica da sociedade da informação e
conhecimento, articulada nas transformações do conhecimento despontadas ainda
no final do século XIX e efetivadas durante o século XX, correspondente ao novo
paradigma que vem sendo engendrado desde o século passado.
Dessa forma, essa estrutura da graduação, articulada internamente por
semelhanças constitutivas, não poderá mais ser considerada uma totalidade, como
era próprio do currículo anterior que se comprazia em formar um especialista, com
um conhecimento isolado em uma determinada área, e que se encaminhava a
passos largos para a incomunicabilidade, fazendo da completude uma negatividade
em relação à diversidade interna à sua própria área do conhecimento na qual a face
do negativo teimava em ser reiteradamente evidenciada. E esta não é uma realidade
que caracteriza unicamente a área artística; esta realidade é comum a diversas
áreas do conhecimento, em seu desenvolvimento especialista institucionalizado,
gerador da fragmentação e incomunicabilidade do conhecimento.
Insistindo na necessidade de continuar a percorrer o currículo com um outro
olhar, não às cegas, mas necessitando, por vezes, do exercício de varredura
imposto pela mudança de escala, vou esquadrinhando a superfície com os olhos
apertados, e, de imediato, a estrutura em blocos se dissolve. Entretanto com a
dissolução, ou através da dissolução, começam a se formar movimentos de texturas
constituídas pela proximidade de temáticas, que, no currículo anterior, eram
invisíveis, e, no currículo em implementação, se tornaram visíveis, ao acentuar
diferenças entre os planos das diversas áreas que atualmente o compõem sem
separações.
Desse modo, não existe mais, como era constitutivo do currículo anterior, a
formação do especialista, separando o escultor, o pintor, o gravador, desenhista,
2-80
ceramista, fotógrafo, ou qualquer outro gênero artístico. E isso se repete para
qualquer das áreas constituídas como gêneros artísticos, que, desde a criação dos
cursos de arte no Brasil, tradicionalmente vinham sendo simplesmente
acrescentadas à formação artística, incluindo uma das últimas áreas a entrar para
este rol, especificamente ligada à construção do pensamento da arte e sobre a arte:
a área de História, Teoria e Crítica de Arte, a qual também foi a origem e o impulso
para o desenvolvimento da atual pós-graduação.
Essas formações isoladas se caracterizavam como uma formação com a
visão do “especialista” construída através de um currículo que tinha uma base
comum no desenho como desígnio, e, ao mesmo tempo, enfatizava-o como um
instrumento impróprio, que “garatujando” se desdobrava em inúmeras habilitações
tracejadas em caminhos solitários.
Pois, são essas mesmas formações que, hoje, estão, finalmente, dando
passagem à construção de uma nova estruturação do conhecimento da área, a qual
está sendo ampliada através de uma atuação expandida, que tem-se desenvolvido
desde a recentíssima construção cultural do objeto da arte a a polêmica
construção institucional da arte como objeto de conhecimento e da cultura,
preservando o corpo que lhe é próprio entre o cultural e o social, muito embora
evidenciando sempre a ultrapassagem tanto de um quanto de outro.
Por outro lado, o que está sendo possibilitado agora é a leitura das
entrelinhas, onde também poderá estar contida a formação especialista e a
ultrapassagem desta formação proposta no próprio currículo, possibilitando
simultaneamente uma formação “generalista”
92
através de movimentos transversais:
em hibridização ou mestiçagens, além das misturas que se tornaram procedimento
comum a partir do final da primeira metade do século XX. Talvez “especialista” e
“generalista” correspondam a classificações que não atendem mais à nova realidade
que as ultrapassa, pois, neste novo percurso, toda disciplina que constitui as áreas
internas ao campo da arte passa a ser transdisciplinar, transbordando e mesclando
formas, matérias e conteúdos ao compartilhar conceitos e significados comuns numa
92
Estes conceitos de “especialista e generalista” estão ligados a área de estudos de currículo, desenvolvida como
uma linha de pesquisa no caminho do desenvolvimento do conhecimento próprio ao campo da Educação.
2-81
interdisciplinaridade que passa a ser dada como própria do campo artístico, fazendo
de todo especialista também um generalista dentro da própria área, mesclando o
fazedor e o pensador da arte.
Em entremeios, detecto novas relações de cores, enfatizando um plano
difuso ou dado a acúmulos, e isso está me parecendo que é tal como ocorre quando
aperto os olhos para observar a estrutura das nuvens no céu, pois sem este
procedimento, pelo excesso de semelhanças em formas e movimentos, é impossível
detectar para onde se dirigem os “ventos”, ou onde se constitui a linha do horizonte,
para a elevação ou a declinação da cor associada ao caminho do sol
93
.
Desse plano difuso detectado, em movimentos alterados ou alternados, em
subida ou em descida, sou levada a perceber, finalmente, as oposições
complementares no jogo de equilibração das cores que se formam no plano do
currículo como desdobramentos perpassados pelos tradicionais papéis de mestre e
discípulo, ou ainda aluno e professor, aqui, renomeados como docente e discente.
Nesse caminho é demonstrado que esses papéis estão constituídos em uma
articulação complexa, formando um dos eixos da formação, observando a
construção do conhecimento considerado no desenvolvimento temporal, da qual
emerge a consciência do novo autor ou criador. Esse eixo está definido
assimetricamente em hierarquia sem sobreposição, como foi visto anteriormente
na relação de autor e mestre presente em Pessoa; ou, por outra via, observada,
agora, através de uma outra metáfora, tal como ocorre na articulação de uma cor
primária com uma cor secundária, gerando uma relação complementar em que se
vislumbra certo sentido de completude, exceto quando as duas cores se encontram
em contigüidade, pois elas instintivamente se repelem, o que difere do que se fez
anteriormente com as poesias de Pessoa para possibilitar a linha da continuidade
textual.
93
O desenho das nuvens, no Renascimento, era uma parte da obra que “escapava” do modelo matemático da
perspectiva linear, dada como forma “natural” de ver o mundo. Sendo assim, por utilizar outros dispositivos para
a visão, deixando-a não exata e imprecisa, acabava por delatar na obra idiossincrasias, ou subjetividades, que
foram resgatados nos períodos seguintes como foco da construção da obra, gerando um caminho para as
transformações do século XX, onde o controle passou a ser uma conquista interna correspondendo à própria arte.
2-82
A impressão que se tem, enfocando o ver/não ler dessa nova metáfora, é
que o espaço entre as cores complementares é necessário, pois é correspondente
ao intervalo onde a cor secundária se desdobra nas duas outras cores primárias que
a compõem. O espaço também possibilita constituí-las através de um acréscimo de
outras relações, onde a cor passa a ser vista como cor terciária, e entretanto, a essa
é dado somente este modo de ser percebida, neste espaço unicamente pressuposto
pelo desdobramento em análise da composição da cor. Com essa informação, se
compreende que a aproximação em contigüidade possibilite tanto a convivência em
harmonia de contrastes entre claros e escuros, ou de expansão/contração entre
cores frias e quentes, como também a total desarmonia, provocando enjôo, além de
repulsa evidenciada por uma disputa na qual se confundem os lugares de cada um,
numa troca intermitente que não chega nunca a um esgotamento.
Por outro lado, atualmente, torna-se visível uma nova relação, uma
articulação especial, considerada a partir do desenvolvimento do conhecimento
potencializado por uma ampliação tecnológica, a qual possibilitou também a revisão
dos conhecimentos anteriores, e em que a transformação da cor vem sendo
construída através das diversas teorias surgidas desde o século XIX, associando-se
ainda às transformações do universo artístico, ocorridas também a partir do final do
século XIX, redefinindo o campo do conhecimento artístico na contemporaneidade,
através da participação tanto da cor tinta, como da cor luz.
Essa nova relação define-se na percepção do comportamento da faixa do
espectro correspondente à cor verde, pois esta cor tem um funcionamento que se
assemelha a uma cor primária na luz, embora mantenha o funcionamento como cor
secundária, que a caracteriza como tinta, gerando, neste pulo, de um lado para o
outro, uma oscilação da luz para a tinta, de primária para secundária, novas relações
complementares em determinações que, por vezes, também invertem as tradicionais
relações, principalmente se considerar a mescla de realidades onde o real e o virtual
se articulam.
E isso, sem contar com os processos de recomposição do todo,
característico da luz branca, dada tanto em adição quanto em subtração, em
processos provocadores de novas inversões. É interessante pensar nessas
2-83
inversões, justamente na relação de mestre e aluno, constituída na relação docente/
discente, onde é muito apropriada a metáfora da complementaridade relacionando a
tinta e a luz, como compreensão também desse momento de transformação
paradigmática que ocorre atualmente, onde a hierarquização entre mestre e aluno
se apresenta freqüentemente invertida pelo próprio processo de atualização da
cultura e da sociedade, transformando todas as hierarquias em hierarquias veis,
em relações de integração e distribuição, vindo a se aproximar com propriedade do
alcance que lhe deu Fernando Pessoa, na articulação mestre, discípulos e autor.
Entretanto, isso não é tudo, para além das formas e cores, também é
possível sentir o aroma das tonalidades que se modelam no currículo como
franjamentos, e esses sim, freqüentemente se mostram em sobreposição, para em
entre-balanços, vez por outra, serem definidos como foco, seja na inserção de novas
tecnologias que passam a apontar novos sentidos nos caminhos de formação, seja
nas transformações paradigmáticas do conhecimento que abalam as estruturas
estabelecidas, levando à redefinição dos limites, inclusive requalificando as relações
mestre aluno ou discípulo, em docente discente, aliada à metáfora que se viu
anteriormente e fixando, outras direções, constituindo, neste caminho, novas
relações através de reiterada equalização e distribuição do conhecimento, a cada
vez reinserindo-nos, a todos, em uma nova sociedade, em constante renovação das
relações que aí se constituem e que são constituídas por ela.
Não obstante, toda esta presença de valor inestimável num currículo, a
riqueza que compõe a totalidade da estrutura é sempre apontada sem fixação, sem
arrogar-se qualquer posse individual, pois um currículo é uma construção coletiva
94
.
É fruto de interações de três corpos instituídos: docente, discente e cnico-
administrativo, que interagem na história e acabam por constituir uma história de
suas próprias interações, passando a gerar perturbações mútuas, motivando novas
redefinições de limites, sendo equivalente significativamente à ampliação do meio
institucional em que o currículo se instituiu.
94
Considero aqui a experiência com o currículo atual do Curso de Artes Visuais da UFRGS, que foi
intensamente debatido internamente durante dez anos até chegar ao momento atual de implementação. Embora a
área de Estudos Curriculares aponte para diferenças bem definidas em Currículos considerados modernos e
Currículos considerados pós-modernos justamente na concepção de controle e poder como determinação externa
institucional. Doll, 1997, e Sacristán, 2000.
2-84
Como garantia desse desapego individual em relação a um currículo, a
ponderação para a realização do inventário, contabilizando o êxito da instituição no
meio social e a influência na construção da cultura em que se insere, abarca sempre
semelhanças e continuidades. Entretanto, arrola também as descontinuidades,
movimentando-se em saltos durante os períodos de transformação, sem que estes
saltos se constituam em sobrevôo, ou sem que sejam responsáveis pela geração de
afastamentos definitivos. São esses movimentos que, com freqüência, estão
constituídos como subterrâneos, ou, vez por outra, se localizam em subsolos, onde
acabam por gerar transformações reais, que começam como exceções à
regulamentação instituída e acabam por atualizar a formação superior
correspondente à área. Isso ocorre através de acordos ou mesmo intervenções,
onde as forças de permanência e mudança voltam a se equilibrar em novos
patamares de ação a partir de novas regras definidas legalmente, ou, simplesmente,
pela legitimação advinda do hábito.
Esse modo de atualização da área pode nos remeter também à exortação
de Gregory Bateson, mencionada no capítulo anterior, em relação à reivindicação de
uma mudança de atitude frente às transformações culturais emergentes na década
de 60, que se caracterizou por um embate entre gerações. Envolvendo permanência
e mudança, veio a confirmar ou radicalizar uma transformação que, de certo modo,
está estruturando-se hoje em um novo patamar cultural que, ao mesmo tempo,
conserva e amplia a área de conhecimento através de uma perspectiva mais ampla.
Por esta via, a nova sociedade da informação e conhecimento acaba
também por provocar mudanças, que se estruturam em imaginativos modos de
transformar as rígidas hierarquias de outrora em hierarquias móveis, e sem
sobreposição, sincronizando a rigidez e a imaginação, como um mecanismo
necessário às novas relações que se criam.
O caminho do observador/pesquisador na descrição do currículo, mantendo
os olhos apertados, acaba por definir uma posição muito condescendente, cedendo
totalmente ao sentido do positivo em relação àquilo que foi sendo percebido, através
da negatividade construída na associação com o negativo presente a esta
2-85
deliberada redução na limitação do olhar. Chegou a gerar, em expectativa, o ato de
maravilhamento, em regozijo ao pensar no prenúncio dos achados que a
abordagem escolhida poderia vir ainda a abrigar, encontrando um diálogo aberto por
transformações paradigmáticas e tecnológicas, em convergência com a
transformação cultural, abrangendo, inclusive, a própria academia.
Nesse sentido, se por um lado, imagino que a busca possa se assemelhar
ao caminho de uma arqueóloga obstinada por pistas que assinalem algum ponto do
terreno na identificação de qualquer possibilidade no reconhecimento de um tempo
já passado, por outro, ela está diretamente relacionada ao desenvolvimento no
sentido do futuro, no aprimoramento de dispositivos que permitem tanto a busca
diferenciada, como a redefinição dos achados, sem que se tenha a certeza da
ordem necessária destas etapas. Com a escavação, própria da arqueologia, se
alternam os momentos nos quais se focaliza a superfície e se realiza um
esquadrinhamento da topologia do lugar, numa atitude que parece “farejar” algo que
ainda não se sabe ou, talvez, alguma ação ainda presente em nossa memória
ancestral, embora muito tempo abandonada ou transformada, passando a ser
redimensionada ou definida simplesmente por uma mudança de paradigma.
Contudo, nesta posição arqueológica, eu sei que, ao descrever e assinalar o
objeto no caminho semiótico escolhido, de certa forma, o sítio de busca também se
tornará visível para posteriores desdobramentos da pesquisa, e essa visibilidade
como fruto da delimitação atual, nos limites ampliados pela utilização do dispositivo e
definidos em seu desenho, torna-se estritamente necessária para a liberação da
apropriação semântica, possibilitando, ao objeto, uma infinitude de significados, que
anteriormente não eram percebidos.
Isso, além de confirmar o observador/pesquisador como um desenhador que
observa o visível ao torná-lo visível, como mencionou Paul Klee
95
a respeito da
95
Paul Klee nasceu em 18 de dezembro de 1879, na Suíça. Em 1911, ele conheceu Kandinsky e outros artistas
do grupo chamado Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul). Encontrou Robert Delaunay em Paris, em 1912,
percebendo que este dava uma importância igual e independente à cor, luz e movimento em seus trabalhos. Klee,
nesta época, estava em contato com a maioria dos artistas experimentais da Europa Ocidental, muitos dos quais
profundamente interessados na questão da cor. Essa preocupação foi fomentada em uma curta viagem à Tunísia
em 1914. Em 1921, mudou-se de Munique para Weimar para assumir seu papel de mestre de forma na oficina de
2-86
especificidade da arte na modernidade, ao contrapor a geração à tradição da
reprodução, remete ao pensador, que faz de seu pensamento a leitura do objeto,
para poder vir a elaborá-lo em releitura na pesquisa. Essa atitude do pesquisador na
construção do legível me traz à lembrança uma metáfora de Bateson a respeito da
construção do pensamento como um campo de trigo, gerando um prado com
múltiplas espécies em interação, que ele afirma, numa nova sobreposição
metafórica, ser tal como uma dança em que a dinâmica da configuração é
impossível de ser localizada. E essa impossibilidade é totalmente pertinente, pois faz
retornar ao exercício do pensamento e verificar que isso acaba por preservar o
campo do pensamento como fonte da função de legibilidade do mundo. E esse
campo do pensamento, ao qual se atribui o legível, pode ser visto em paralelo com o
campo da experiência da arte, que tem na obra de arte um espaço de renovação a
cada interação com um indivíduo como apontou Dewey, e, desse modo, é
preservada na cultura como fonte da função de visibilidade do mundo.
Considerando por este aspecto, talvez as descrições das observações com
os olhos apertados que eu tenho realizado até agora possam, ainda, vir a se
acrescentar de mais detalhes se estiverem articuladas a dispositivos que recuperem
com certa fidelidade a imagem do vivido, semelhantes à fotografia que o indiciam
96
,
envolvendo tanto a presença quanto a ausência do objeto, ou, ainda, através de
representações gráficas ou pictóricas, que, em mimesis
97
, prontamente
reapresentam a área focalizada, delimitando-a ou revestindo-a, gerando,
simultaneamente, em seu desenho, uma nova presença em estreita relação com o
objeto. Sobretudo, tenho certeza que a determinação de achados significativos, de
algum modo, será definida através de demarcações, localizando e mapeando, a
princípio, com os parâmetros dos vários contextos envolvidos, mas sem se furtar a
adentrar pela especificidade detectada.
Isso posto, depreendo que, ao percorrer o Currículo do Curso Superior de
Artes Visuais da UFRGS ao constituí-lo num processo de desconstrução através de
artefatos de vidro. Na década seguinte, Klee lecionaria na Bauhaus. Cores brilhantes e luz forte cristalizavam as
idéias de Klee sobre cor e tonalidades. Morreu em 28 de junho 1940.
96
O conceito de índice foi construído por Pierce na Semiótica.
97
O conceito de mimesis utilizado aqui vem de Aristóteles e foi construído na Poiética.
2-87
semioses, onde os termos constitutivos estão em pressuposição recíproca, quer se
os considere na forma da expressão como na forma do conteúdo, tenho a
possibilidade de vir a detectar o conhecimento da arte que se apresenta,
entretanto, ao caminhar, enfrentando a busca à que havia me proposto, vai ficando
cada vez mais evidente que me é possibilitado apontar, indicando-o em signo,
muito embora eu saiba que, apesar, ou para além dessa performance, a arte
continue indefinível.
Aparentemente o Currículo de um Curso Superior de Artes Visuais é um
texto totalmente denotativo
98
, que se apregoa como auto-explicativo, principalmente
ao se considerar que a regulamentação atual que define as diretrizes e bases da
Educação Nacional determina a constituição dos currículos dos cursos superiores
em congruência com o projeto pedagógico do curso correspondente.
O projeto pedagógico abarca a estrutura conceitual e material do curso
apresentando-se como descritivo, muito embora, freqüentemente, cumpra
meramente um papel prescritivo, que se afigura tal como um dever-ser. Entretanto, é
a partir desse texto que diz com tanta clareza como é ou como deve ser o Curso
Superior de Artes Visuais que estou começando a traçar este percurso na geração
do sentido, e, depois de ter esboçado em entre-vero os referenciais teóricos que
vêm orientando esta jornada, e, ainda, depois de ter ingressado em um caminho
complexo, onde tenho que afirmar o negativo sempre articulado ao positivo, na
negatividade constituída na reciprocidade da positividade, paro e respiro,
lentamente... descansando por um breve momento, e, nessa parada, assustada me
deparo com uma fissura: com grande surpresa percebo um desajustamento ao
próprio nome “currículo”, que se diz como depositário do sentido, além de trazer a
definição dessa estrutura que abriga.
98
O caráter denotativo define um texto em que todas as ocorrências estão subsumidas, cobrindo todas as
definições. Entretanto, para Hjelmslev, conforme Greimas (1979) no Dicionário de Semiótica, tal texto não
existe, pois todo texto é um produto e sendo assim remete a vários sistemas diferentes. Disto resulta que a priori
o texto não é uma grandeza homogênea, uma língua natural não é uma semiótica denotativa, e o discurso remete
a vários sistemas ao mesmo tempo e a língua cotidiana não é um conceito semiótico, mas tomada como
significante seria dotada de um significado transformando-se em semiótica conotativa, ou linguagem de
conotação.
2-88
A denominação de currículo significando aquilo que “corre junto”, que foi
vista anteriormente numa referência à organização e totalidade, é falsa para a área
de Artes Visuais, pois na Formação Superior em Artes Visuais o currículo do Curso
Superior está freqüentemente a ser utilizado como um ponto de chegada ou de
partida, ao invés de caminho de formação, quase como pontos de convergência de
errâncias, ocasionadas tanto por acordos e aceitações, como por desacordos e
competições, isto ao considerar que um currículo não existe em si, mas somente em
seu exercício para a efetivação do que se propõe. Nesse sentido, do ponto de vista,
principalmente, do corpo docente, sem desdenhar do discente, um outro significado
de currículo pode ser resgatado: currículo significando aquilo que “concorre” pode
ser mais aproximado, pois apresenta de imediato tanto um sentido positivo como um
sentido negativo, significando tanto a afluência como a divergência, eliminando o
excesso de positividade presente na concepção anterior.
Pois são exatamente esses pontos, tão polêmicos, embora se apresentem
totalmente entorpecidos, que definem o perfil da formação superior em Artes Visuais
no entrelaçamento do artista, professor e pesquisador, onde as estases enfatizam
ora um, ora outro, sem que se reduza o enlace, buscando um acordo entre eles,
comprometendo-os temporalmente, mas sem evitar a concorrência.
Nesse ponto, ora chegada, ora partida, o projeto pedagógico se define
também como um entrecruzamento de corpo docente, corpo discente e corpo
técnico-administrativo, correspondentes às funções constitutivas do funcionamento
da universidade. E, muito embora estas funções se entrecruzem, adensando esse
sugestivo enlace, aparentemente não se reconhecem diretamente, como se este
entrecruzamento fosse fruto de uma cita interligação das funções, com contratos
anônimos, impedindo os atores de se reconhecerem nesse espaço, e,
conseqüentemente, não reivindicando, nem cumprindo ou fazendo cumprir o que ali
está sendo descrito/determinado.
Sendo assim, o que é transparente e invisível, embora com as relações
evidenciadas, passa a se constituir em imagens sobrepostas, opacidades, com uma
infinidade de camadas em sobreposição, e não pode ser visto totalmente, ficando
sem legibilidade, sendo necessário ser constituído em outra escala, através de
2-89
observações micrológicas, em narrativas e descrições agenciadas por novos
dispositivos, ou ainda orientadas por mapas, onde as relações sejam definidoras dos
lugares aí configurados, os quais freqüentemente entram em processos de mutação
que se reiteram infinitamente.
Depois de ter percorrido como um caminhante/“vidor”
99
cansado, que vai
desfocando tudo aquilo que poderia ser reduzido a um único foco nesse horizonte
inicial do currículo, e, por fim, limitando-se, simplesmente, a delimitá-lo no espaço,
ao redesenhar os lugares que o constituem, sem desprezar os que já o constituíram,
definindo-o como em um palimpsesto; volto-me agora para tentar encontrar um outro
modo de acessá-lo, tomando como referente o tempo.
Nessa matéria misturada, só o apertar de olhos não é mais suficiente, urge a
necessidade de construir outros acessos, passagens, novos instrumentos
específicos de busca, enfim, dispositivos que possam novamente trazer certo
conforto, gerando significados ao dispersar os véus que encobrem esse objeto.
Tornar possível o reconhecimento da estrutura do currículo passa por reprocessá-la
nessa mediação, que poderá vir a produzir novas semioses, necessárias para que
sejam detectados novos signos que possam efetivamente tornar o currículo um
instrumento compartilhado de significativa utilização pela própria diversidade que o
constitui.
Com essa disposição, depois de ter realizado um primeiro procedimento de
redução do olhar para ver o visível/invisível do Currículo do Curso de Artes Visuais,
definindo-o nos grandes planos que o compõem em graduação, e, por fim, tendo
voltado a encontrá-lo entre visão e missão, volto a empenhar-me na construção de
um outro dispositivo, ao qual denomino “olhadura”.
100
Este participa também desses
primeiros passos onde estou a encaminhar a envergadura do trabalho,
99
Vidor está sendo utilizado com o sentido do observador/participante, que na seqüência da observação já olhou,
viu e realizou uma das possíveis leituras, encontrando elementos que desdobram-se num direcionamento que
serve de orientação para sua ação.
100
Foi utilizado o termo olhadura, termo com muito pouco uso na linguagem, no lugar de olhadela, termo mais
comum, para enfatizar a relação de semelhança fônica com fechadura e também pela relação de significado com
a palavra andadura. Ambos, olhadura e andadura significam a consciência da ação participando da própria ação,
com todos os limites que possam daí sobrevir.
2-90
determinando e reunindo inicialmente, em uma primeira caixa, as ferramentas que
me fazem de imediato perceber a necessidade do próprio instrumental.
Com esse novo dispositivo, está garantida a o fixação do olhar, pois o
olho é percebido não somente em uma função de redefinição espacial delimitadora
do horizonte do olhar, como sucede com o apertar de olhos, mas em redefinição
temporal intermitente, que ocorre através do movimento da pálpebra que obriga o
globo ocular ao fechamento
101
. A intermitência do olhar-não olhar define
simultaneamente o ver-não ver, também em intermitência, muito embora o em
concomitância.
Entretempo é com essa primeira espiadela, agora explicitada pelo dispositivo
olhadura que está sendo utilizado, que me foi possível buscar o elo com a proposta
defendida anteriormente, onde acabei por resgatar, nesse enlace, a explicitação da
completude/incompletude intransponível dessa tese, que se faz necessária frente ao
que até aqui já se tem exposto. Essa visibilidade, abarcando o visível/invisível,
funda-se na reapresentação do enunciado sobre as epígrafes, na qual recuperei o
modelo do diálogo entre as pessoas de Pessoa.
Além de introduzir um referencial que, de certa forma, determina um modo
de olhar, a olhadura é um instrumento que, por definição, se constitui como um
detector daquilo que vai sendo encontrado pelo caminho. Semelhante a um
marcador de texto, o instrumento vai assinalando, apontando e selecionando a
“piscadas do olhar”, em intervalos que funcionam como marcas que grifam
passagens, ora pertinentes e próximas do corpo do texto em foco, ora afastadas e
muitas vezes constituídas apenas como garatujas na margem, como comentários
sobre o texto. Ou, ainda, rabiscos que se constituem como breves grafites, nos quais
as figuras se fixam através de uma frustrada tentativa de substituição, quase como
botões ou campainhas de acesso, como lembretes ou chamadas, funcionando como
pontes para outros textos, antes de retornar ao texto de origem.
101
Pode-se pensar este fechamento também à semelhança do obturador de uma quina fotográfica que
funciona como a própria “memória” do aparelho, entretanto através de um processo invertido ao olho humano,
pois é ao fechar que permite a entrada da luz.
2-91
Esse instrumento tem a particularidade de se constituir em total
concomitância à sua utilização. Sendo assim, isso confirma o fato de estar sendo
utilizado desde o início deste capítulo, onde comecei por assinalar o elo de
passagem, engatando o que foi proposto anteriormente com o que está começando
a ser feito. Talvez, o dispositivo olhadura tenha sido responsável pela característica
inusitada da articulação, que começa a ser constituída de um modo inesperado,
imprevisto, pois vira a proposta anterior do avesso, não só começando pelo final,
mas iniciando com a afirmação daquilo que, nesta tese, não poderá ser realizado.
Cuidadosamente, iniciando o caminho através da relação onde a
consciência está construída através da configuração do olhar, o qual se sabe, em
princípio, localizado, ao ser sujeitado a um único ponto de vista, e, ainda, impedido
de sua função por intermitentes intervalos de tempo, eu tenho proposto o reajuste
dos limites da tese. Reduzindo ao máximo o caminho, o venho construindo entre
frestas, somente por passagens, de modo que todo o deslocamento tem
simultaneamente produzido marcas que poderão contribuir para uma determinação,
senão daquilo que se está buscando, pelo menos do próprio mapa que se define na
busca.
E, com a possibilidade de mapeamento assegurada, na expectativa de
revolver o currículo, prometendo deixá-lo como um território completamente
assinalado, ainda me resta levantar a seguinte questão: será justo, adequado ou
verdadeiro, na transformação do objeto, esquadrinhá-lo, fazendo do caminho do
currículo um novo território, para que se possa, nessa passagem, vê-lo de uma
forma mais ampla nesse outro, que em implementação começa a ser definido, e,
nesta definição, necessariamente, resgata o caminho do negativo na construção do
saber em busca do conhecimento da arte, que pode, ali, estar escondido?
2.2 DA ABORDAGEM METODOLÓGICA À RECONSTRUÇÃO MICROLÓGICA
DO TEXTO
Piscar ao reunir em contigüidade as duas epígrafes, aparentemente tão
distintas quanto os dois poemas separados em “pessoas” de Fernando Pessoa, que,
anteriormente, apresentaram o início e o fim da proposta de tese, é detectar e
2-92
revelar a incomensurabilidade presente na metáfora e conseqüentemente na
proposta. É recuperar as epígrafes em uma outra “pessoa” de Pessoa, através da
prosa de Álvaro de Campos: Notas para a recordação do meu mestre Caeiro”, que,
em uma mescla de verdade e mentira, comprova, em narrativa, a distância
intransponível que o separa de seu mestre Alberto Caeiro, além de constatar no
paganismo
102
um significado presente em ambos, manifestado como uma
característica que une todas as pessoas de Pessoa, distinguindo-as em diferentes
pagãos.
Com isso, se obtém a permissão para que se veja o significado originário da
palavra pagão, que, em sua origem grega, se define como hábito, tornando possível,
através do hábito da criação poética, vislumbrar o que une, mas também o que
separa as pessoas de Pessoa, como uma possibilidade de comparação entre todos.
Dentre essas possibilidades de comparação está, inclusive, a que relaciona o
mestre ao próprio autor, a respeito do qual é afirmado, em negação, que também
seria pagão, não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro. Entretanto, é,
na própria forma em narrativa de Álvaro de Campos, nesse movimento introspectivo
de sua narração, que se manifesta em verdade e mentira, ou seja, num estado de
negatividade em que o positivo e o negativo, em tensão, se mantêm em constante
pressuposição, necessariamente semelhante à prosa característica de um autor
qualquer, na qual ele aponta o seu próprio criador.
E, munida deste novo dispositivo o piscar de olhos que chamei de
olhadura que me permite focalizar/desfocar o tempo, abordando-o em seu aspecto
construtivo ao constituí-lo em intervalos como “frames”
103
, eu passo a tratar do
assunto da metodologia. Essa construção do tempo através de frames com a
olhadura significa caracterizá-lo em reversibilidade, ou seja, possibilitar o retorno do
tempo já passado, o qual volta a ser visto ao ser constituído como uma seqüência de
imagens articuladas, muito embora essa característica se instale na
pressuposição simultânea da relação reversível/irreversível, o que faz do retorno do
102
A origem da palavra paganismo compartilha com a palavra pagão o significado de hábito costume, conforme
Isidro Pereira, no dicionário Grego-Português e Português-Grego, de 1990, da Livraria do Apostolado da
Imprensa, Portugal.
103
Palavra utilizada na Cibernética, em inteligência artificial, e também na linguagem cinematográfica, para
indicar esquemas de ação, quadros de imagens que expõem uma ação a partir de uma operação que as articula.
2-93
tempo a visualização de um aparente retorno, o qual também pode ser visto como
uma retrogradação. Por certo, isso também me obriga a retomar o posfácio que foi
colocado no final da proposta de tese, o qual foi construído como advertência, ao
apresentar a prosa de Álvaro de Campos, que possibilitou sinalizar a infinitude da
busca prometida, ao mesmo tempo em que apontou para as duas epígrafes
resgatando-as, e é todo esse conjunto que, agora, tem passado a demarcar o início
desta tese, tal como um quadro referencial.
O texto do posfácio foi construído na proposta como um metassaber
104
, dado
como imprescindível ao entendimento geral do que se projetava fazer, mas já
antevendo a necessária mistura do fazer/dizer. E, na mesma medida, ao tentar dizer,
ao longo do texto, o que poderia vir a ser feito na tese, em pressuposição, foi omitido
aquilo que não poderia ser realizado.
O posfácio, utilizando a leitura da epígrafe colocada no início e a epígrafe
colocada no final da proposta, se apresentou, iniciando com o que segue:
“Fernando Pessoa é para mim como um marco de origem da
expressão do ser da linguagem, que na semiótica, muito depois de
Pessoa, se constitui como ações e estados figurados de actantes.”
Poderia ainda, neste momento, acrescentar àquele início que: “essa
constituição semiótica se deu em Greimas como um modelo actancial, que
representa a estrutura profunda através de um ‘esqueleto” ou esquema narrativo,
conforme a afirmação de Umberto Eco (1994), e ainda: tendo a narratividade como
princípio organizador do discurso e, ao trabalhar sobre representações, busca
resgatá-las em uma nova apresentação.
O “marco de origem” ao qual me refiro no posfácio foi construído como uma
referência da arte, através da representação de Pessoa, que foi colocado numa
composição poética como possibilidade de apontar a origem da expressão do ser da
linguagem. E desse limite, incluído como pré-lógica participativa da ecologia do
pensamento, foi-se expandindo a proposta que está sendo desdobrada neste
104
Greimas (1979) afirma que um metassaber é um saber que um sujeito tem do saber de um outro sujeito.
2-94
trabalho de tese, tomando como metáfora geradora o próprio texto poético de
Fernando Pessoa. Esse foi reapresentado em uma configuração através de um
conjunto misto, como um fragmento, onde o todo está sempre evidenciado em
ausência, mas, simultaneamente, atribuindo a esse fragmento certa completude, ao
apresentá-lo também como uma imagem em um ato de figuração; muito embora se
saiba que na arte a imagem é vista em completude, mas construída sempre como
um fragmento, o qual é definido por sua incompletude.
Para isso, foi necessário abarcar as diferentes pessoas de Pessoa e as
diferenças que as constituem como obra. Neste sentido as reapresentei através de
um novo lugar, onde elas foram mostradas como sendo, por vezes,
“incomunicáveis”, sendo caracterizadas como circunscrições de sistemas de crenças
ou paradigmas de conhecimento distintos, que poderiam ser conhecidos através
de pistas. Nesse sentido, os sinais arremeteram ao tempo sem desdenhar da
presença do próprio conjunto da obra de Pessoa, mas, justamente, através dela, que
é também o lugar onde essas pessoas estão inscritas e se confirmam em remissão,
estando, inclusive, previstas também no tempo.
A compreensão deste limite radical desmedido está presente nessa metáfora
que construí com a ajuda de Fernando Pessoa, onde coloquei em relação de
contigüidade o mestre e o autor, sendo ambos confirmados em prosa por um outro,
criado pelo próprio autor. Isso se comprovou na afirmação daquele que se diz
discípulo do mesmo mestre, o qual é a origem de sua veia poética, entretanto, ao
mesmo tempo, a própria manifestação de elucidação da origem, ao compartilhar da
escrita em prosa, percebida, indubitavelmente, como característica advinda de seu
autor/criador, o confirma como uma outra criação do autor.
De certa forma, essa trama, que se detém na especificidade da relação
construída entre heterônomos e ortónimo
105
, assemelha-se ao estatuto actancial do
ser da linguagem que em estado de enunciação se apresenta inicialmente na
105
Ao ortónimo corresponde o autor, e aos heterônimos correspondem todas as outras figuras construídas pelo
autor, e é interessante que no caso de Fernando Pessoa, que é também o próprio criador do termo heterônimo, o
autor está sempre subsumido, incluindo ele mesmo entre os heterônimos, do qual é dito ter o costume de se
enrolar para dentro, impossibilitando-se de se mexer.
2-95
pressuposição de um leitor desdobrado em dois actantes, em correspondência ao
autor que, por sua vez, também se vê em desdobramento.
E essa complexa experiência que constitui o ser na linguagem também está
presente na constituição do conceito de experiência de Dewey, pois, por um lado, se
remete à experiência da arte, e por outro, explicita a relação de completude que
abarca em pressuposição o completo-incompleto da própria linguagem na qual o
sujeito ontológico não se apresenta.
Essa é a relação constitutiva do escopo desta tese, estando definida na arte,
e sendo afirmada em Dewey como essência da qualidade. É vista como um lugar de
onde sobrevêm, ao mesmo tempo, a coerência da percepção e a mudança
constante, conquistadas através da operação realizada por um artista, na ação de
concretização da obra de arte.
Mas, isso também pode ser visto como uma expansão, e esta pode ser
definida como uma relação que está simultaneamente em constante construção.
Frente a essa compreensão, se pode dizer que: tendo iniciado com um marco de
origem completamente determinado, e tendo avançado anteriormente, tanto no
fechamento quanto na abertura da proposta, até alcançar a incomunicabilidade
anunciada no posfácio, essa relação passa, agora, a ser desdobrada em tese,
posteriormente ao seu início, numa ocorrência manifestada através de um novo
movimento. Este movimento vem sendo elaborado indo ao encontro de uma
polaridade que permita definir, para além da completude, o espaço do texto como
espaço finito/espaço infinito. E é esta a relação: espaço finito/espaço infinito que,
funcionando como uma relação originária, pode também dar origem à significação
construída como um texto semiótico. Greimas (1976) afirma que para apreender um
lugar, ou uma topia, é sempre necessário fixá-lo em relação a um outro lugar; sendo
assim, a sua apropriação se dá pela postulação de uma heterotopia, e, somente
nesta relação, passa o espaço, assim instaurado, a ser um significante
106
.
106
É significativo acrescentar ao trabalho de tese as remissões em semelhança, deste modo é inevitável que seja
possível visualizar a relação entre heterônimos e ortónimo articulada à relação entre heterotopia e topia, também
como possibilidade de confirmação do marco de origem configurado com a obra de Pessoa, no encontro do
esquema actancial do modelo de Greimas.
2-96
Continuando no resgate do posfácio da proposta, onde as epígrafes balizam
essas polaridades e, também, tornam a heterotopia possível, tenho o seguinte:
Escolhi um poema de Alberto Caeiro como epígrafe que apresenta
o estado inicial desta proposta de tese, porém os Poemas
Completos de Alberto Caeiro, (PESSOA, 1980), de onde extraí o
escolhido, me foram apresentados em posfácio por seu discípulo
Álvaro de Campos, que, recordando seu mestre, assim inicia suas
notas:
Conheci o meu mestre Caeiro em circunstâncias excepcionais –
como todas as circunstâncias da vida, e, sobretudo as que, não
sendo nada em si mesmas, hão de vir a ser tudo nos resultados.
Deixei em quase três quartos o meu curso escocês de engenharia
naval; parti numa viagem ao Oriente; no regresso, desembarcando
em Marselha, e sentindo um grande tédio de seguir, vim por terra
até Lisboa. Um primo meu levou-me um dia de passeio ao Ribatejo;
conhecia um primo de Caeiro, e tinha com ele negócios; encontrei-
me com o que havia de ser meu mestre em casa desse seu primo.
Não mais que contar, porque isto é pequeno, como toda a
fecundação.” (PESSOA, 1980, p. 131)
Fernando Pessoa na figura de Álvaro de Campos afirma que seu mestre era
o próprio paganismo e ao compará-lo com Fernando Pessoa, ele mesmo, afirma,
como disse anteriormente, que seria um pagão, não fosse um novelo enrolado
para o lado de dentro. Álvaro de Campos transcreve na seqüência um diálogo a
respeito do infinito e das coisas terem limites, que exemplifica, sem uma definição
melhor, as escolhas dos limites que fiz, demarcando-os através desta relação:
“...V. diz que eles dizem que o espaço é infinito. Onde é que eles
viram isso no espaço?
E eu, desnorteado. Mas V. não concebe o espaço como infinito?
Você não pode conceber o espaço como infinito?
Não concebo nada como infinito. Como é que eu posso conceber
qualquer coisa como infinito?
2-97
Homem, disse eu, suponha um espaço. Para além desse espaço
mais espaço, para além desse mais, e depois mais, e depois mais, e
mais, e mais... Não acaba...
Por quê? Disse o meu mestre Caeiro.
Fiquei num terremoto mental. Suponha que acaba, gritei. O que
depois?
Se acaba, depois não há nada, respondeu.
Este gênero de argumentação, cumulativamente infantil e feminina,
e, portanto irrespondível, atou-me o cérebro durante uns momentos.
Mas V. concebe isso? Deixei cair por fim.
Se concebo, o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem
limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer e, portanto
cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa
é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está
mais adiante?
Nessa altura senti carnalmente que estava discutindo, não com
outro homem, mas com outro universo.” (PESSOA, 1980, p. 134)
A epígrafe final presentifica, indiretamente, através de referência, também o
terceiro actante no tecido que construí: o próprio Fernando Pessoa, que eu tenho
apresentado através de uma poesia em que se expressa em um encontro, num
saudoso retorno, onde aponta para a possibilidade de detectar uma mudança de
estado, que é dito por Álvaro de Campos que o próprio sente as coisas, mas não
se mexe, nem mesmo por dentro”. A referência ao sujeito ontológico, como o autor,
que na linguagem é substituído pelo sujeito da linguagem, onde a autoria é
substituída pela ação dos actantes, está muito clara nesta descrição de imobilidade
do autor, declarada por seu heterônimo.
E, frente a todas as mentiras ou segredos organizados em uma completude
totalmente verdadeira, que mostrei como constitutiva da experiência da arte através
do pequeno fragmento da obra selecionado em Pessoa, eu acabei por concluir a
proposta com a seguinte negação, apresentada em negatividade:
“Dessa forma, procurei, finalizando com estes metadados tomados
emprestados de Pessoa, definir pelo exemplo o que pode ser
2-98
apontado e detectado na linguagem, mas que mesmo assim
permanece indefinível.”
Essa afirmação de indefinibilidade, envolvendo o mostrar/não ver, atribuída
ao objeto para o qual vinha sendo delineada uma estratégia de busca, fechou a
proposta de tese defendida em 2006, mas também a abriu à redefinição da hipótese
inicial por onde eu me havia posto em marcha na busca de uma definição do
conhecimento de Artes Visuais presente no Currículo do Curso de Graduação em
Artes Visuais. E, agora, em 2007, desse mesmo lugar em que cheguei daquela vez,
que foi detectado como um lugar impossível de definir, entretanto com a
possibilidade de ser apontado, reiniciei esta jornada de um novo modo, desta vez,
não em marcha, mas em deambulações, e, resgatando toda a complexidade
presente na intenção, passei a construir o não ver associando-o ao ler, sem
desprezar o olhar/mostrar/ouvir/ver.
Reapresentando o que havia sido prometido, vou, ao mesmo tempo,
mostrando a complexidade do discurso escolhido na semiótica, tendo como quadro
de referência o modelo de Greimas. A visibilidade emergente desse complexo torna
visível a exaustão provocada pelo método escolhido, pois define um percurso aonde
se vai reiteradamente adentrando, de diferentes modos, nos lugares constituídos.
Nessa repetição de lugares, constituindo novos lugares dentro de lugares, é certo
que acabe por incluir, em recursividade, uma, que é a principal prova da
inexorabilidade do tempo: a própria passagem do tempo. Isto pode ser detectado e
relatado, pois no tempo destinado ao fazer, tendo no “fazimento do fazer”
perpassado todo o ano de 2007 a esquadrinhar miríades de outros textos, sendo
que, a maior parte deles havia sido lida anteriormente, agora, ao adentrar em
2008, estando muito próxima da finalização da tese, é que estou passando a
assumir, em definitivo, a redução necessária ao processo da escrita.
Nessa redução, o escopo foi totalmente delimitado, e isso se deu à
semelhança do que havia sido feito na proposta. Mas, desta feita, de modo a
permitir estritamente o acesso que passa a ser realizado somente através da
restrição imposta por dispositivos, que, concomitantemente, vão sendo construídos à
maneira da ciência experimental, em que o laboratório vai definindo o limite da
2-99
pesquisa que acaba por ser dimensionada pelo equipamento utilizado, sem que,
necessariamente, isto seja conscientizado pela própria ciência.
Diferentemente da ciência, sem essa inconsciência
107
instrumental
108
que lhe
é atribuída, e, através de um movimento reflexivo, o qual é próprio da arte, que se
sabe sempre instrumental pela própria natureza que a caracteriza como segunda,
que a arte foi rebuscada na referência construída com Fernando Pessoa, na qual o
mesmo foi dito por um outro como uma natureza enrolada para dentro. Entretanto,
reiteradamente, me reporto em recursividade à filosofia e à ciência, buscando
recursos nos esquemas explicativos da reflexão filosófica e também científica,
absorvida da Filosofia da Linguagem através de um corte semiótico, e, dessa forma,
passo, conscientemente, para o instrumental que vai sendo construído, a
responsabilidade de ir apontando no tempo e determinando em mapeamento o que
está sendo selecionado e construído como um caminho de efeitos de sentido de
verdade, definindo o sentido não no sentido dado, mas na própria geratividade,
através do modo de abordagem escolhido, o qual se abre em busca da significação.
Desta forma, são significativas e completamente compreensíveis as razões
para se voltar a observar a estrutura curricular novamente, e, nesta volta, utilizar o
piscar de olhos da olhadura, acrescentando e complementando a descrição do que
foi visto e desdobrado, anteriormente, em blocos entrevistos com a redução do
apertar de olhos.
Pois, desta vez, com o resgate dos limites poéticos que imprimi também a
este olhar, o dispositivo define uma diferença intransponível entre o bloco inicial,
107
Aqui está sendo usada a palavra inconsciência a partir da idéia de jogo de palavras, separando a palavra
ciência dos dois prefixos que a acompanham, fazendo repercutir no jogo o efeito de verdade do que está sendo
dito. A ciência, principalmente depois da segunda grande guerra, necessariamente, teria de corresponder sempre
a um fazer ético, ou um fazer com um outro (tal como a construiu Maturana e Varela), ou seja, teria de
corresponder a uma consciência, entretanto nem sempre esta se manifesta externamente, como também aparece
no trabalho da autopoiese, o qual foi definido por dois: Maturana e Varela, sem que esta obviedade se torne
visível à luz do conteúdo elaborado. Caindo todo o esquema fundacional em um esquecimento, uma in-com-
ciência, ou uma inconsciência.
108
A inconsciência instrumental de que se fala dá-se na falta de articulação do instrumento utilizado para a
observação do conteúdo, pois, ao primeiro, é atribuída uma falsa neutralidade em relação ao segundo.
Focalizando unicamente o segundo através da eliminação do primeiro na descrição da experiência, a ciência age
à semelhança da filosofia, na construção do pensamento abstrato onde a “escada” construtiva do pensamento é
desprezada no final, restando simplesmente a gica como afirmação do pensamento racional, eliminando a
operação que o construiu.
2-100
correspondente ao momento de inserção do discente na área de conhecimento, e o
bloco final, correspondente ao momento da profissionalização, ou ao ingresso do
discente no mundo profissional. Para usar as palavras de Fernando Pessoa, esses
dois blocos: são mundos distintos”, mas acrescento que, muito embora esta
diferença seja verdadeira, ambos “concorrem” em uma mesma estrutura curricular.
Da inserção do discente na área de conhecimento, onde impera o conhecer
do conhecimento, até a aplicação do conhecimento adquirido pelo discente são dois
mundos distintos, embora estejam articulados como polaridades, definindo o início e
o fim da formação na estrutura curricular, e, apesar de encontrar-se em tensão,
determinada por movimentos que concorrem, tanto quanto por movimentos que
discorrem, estão ambos definidos por uma multiplicidade de direções.
Nesse sentido, frente a essa diferença tensionada, constituída por mundos
distintos, o caminho curricular vem a ser estritamente necessário para construir uma
ponte entre estes dois mundos, o que passa a significar também fazer da tensão que
os separa, ou do espaço entre eles, a própria força que os mantém em ação
109
.
A palavra “olhadura”, que escolhi para nomear o dispositivo, significa uma
das definições de “espiada”
110
, e não é por acaso que esta denominação foi
escolhida, pois reúne em uma única palavra a definição da ação enunciada no título
da tese, congregando a ação e o modo de efetivação da ação, do mesmo modo que
a andadura, que se refere ao andar no próprio modo de andar. Por outro lado,
também a relaciono, indiretamente, à operacionalidade presente em um arco romano
ou ainda à operacionalidade constitutiva de um arco voltaico, tal como foram
109
A esse respeito é interessante pensar na construção dos arcos, particularmente o típico arco romano que antes
de ser utilizado e rearticulado era um tipo de construção restrito somente a subsolos, deixando para o exterior a
técnica de sucessão de colunas para gerar a sustentação. Com os romanos o arco, conhecido hoje como romano,
ganha uma pedra angular que é utilizada como uma chave de sustentação, precisão necessária à articulação da
tensão entre dois movimentos contrários, definida em uma exata localização e tamanho ao encontrar o momento
de equilíbrio relativo a forças contrárias. Entretanto, continuando o desenvolvimento de construção de arcos,
extrapolando o desenvolvimento da técnica, pode-se chegar ao desenvolvimento da ciência, que possibilitou a
construção do arco voltaico, o qual define um arco de luz entre dois eletrodos energizados, sendo utilizado em
lâmpadas desde 1801. Essas lâmpadas constituem canhões de luz para cinema e teatro, pois possibilitam uma luz
extremamente brilhante, e, atualmente, caiu em desuso pela brevidade da duração, entretanto o princípio foi
reaproveitado com outros elementos químicos, passando da matéria sólida do carvão para uma matéria
gaseificada, como o Xenônio, sendo substituído o fio correspondente ao filamento, necessário anteriormente, por
um gás protegido dentro de um tubo de vidro.
110
FERREIRA, Aurélio Buarque. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de janeiro, Ed. Nova
fronteira, 1989.
2-101
explicitados em nota de rodapé anteriormente, pois ambos se constituem na própria
operacionalidade de seu objeto, sendo a própria relação, pois ambos são dados
também como a realização de uma operação de reunião. De certa forma, na
olhadura está reunido o olhar e a fechadura, envolvidos no ato de espiar através de
um buraco, deixando bem claro os reduzidos limites temporais e espaciais
constitutivos do instrumento, e também vislumbrando a amplitude elaborada pela
deliberação e consciência do encarceramento desse olhar.
Apertar os olhos frente ao objeto, como um procedimento que permite ver
as nuanças no amálgama
111
que o constitui e reconstitui, também no tempo, ou
limitar o olhar com um dispositivo que, através de uma mera espiada, a cada
mudança detectada, vê, a cada vez, uma iluminada espinha dorsal, como um arco
em relâmpago constituído do contraste da escuridão, é como venho me reportando
neste texto ao Currículo do Curso Superior de Artes Visuais da UFRGS, para
apontar o conhecimento das Artes Visuais que ali pode ser detectado.
Esta chave, que estou propondo como tese, que limita o olhar, envolvendo o
ver/conhecer e o ler/não ver, ampliada a partir do olhar/saber e ver/não olhar, está
sendo constituída como um novo olhar sobre o conhecimento de Artes Visuais, mas
também poderia dizer, como um outro olhar, pensando nesse olhar instituído/
instituinte, que, com freqüência, somente deixa ver o que foi visto, impedindo ou
reduzindo a visão do que ainda não é conhecido.
Quero trazer este outro olhar, assim constituído em completa delimitação,
ligando-o ao processo atual de institucionalização da arte, pois este envolve atores
individuais e coletivos, que nem sempre se articulam em consenso, apresentando
um dissenso que define uma limitação relativa tanto à docência quanto ao discente,
que, por ser constitutivo da área, é estritamente necessário à riqueza do curso,
necessitando inclusive desse equilíbrio tenso/produtivo, para que ambos se
constituam em impulsão e ampliação. Entretanto, todo esse processo deve ocorrer
simultaneamente, sem que se descuide da manutenção da própria relação, fazendo
com que esses atores assumam reiteradamente novas posições actanciais como
111
Amálgama está sendo utilizado em seu sentido figurado como mistura de elementos que, embora diversos,
contribuem para formar um todo.
2-102
transformadores/construtores daquilo que o arco do currículo prenuncia, ao reunir o
mundo do conhecimento da arte, considerado como uma diferença interna na
própria universidade, ao mundo da cultura, considerado, atualmente, como a
diferença externa, mas que torna possível a reintegração da universidade na
sociedade da informação e conhecimento.
O acesso permitido pela olhadura configura-se, dessa forma, como uma
topologia, e o que caracteriza seu processo de construção na busca pelo sentido é o
percurso gerado através da semiótica, que acaba por constituí-lo como um lugar
sem distinção nem discriminação valorativa, apenas reunindo todos os
apontamentos que vão sendo feitos entre a visibilidade do visível e invisível e a
legibilidade do legível e ilegível, abarcando-os a todos como necessários ao
constituí-los na própria produção de sentido.
Uma topologia semiótica centrada no objeto funda também descontinuidades
em relação ao objeto referente, pois, ao descrever, produzir e interpretar o que
está posto no texto focalizado, passa a apresentá-lo de uma outra forma. E, sendo
este texto sobre o qual me debruço para a geratividade de sentido, o currículo do
curso de formação superior em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, este currículo passa a ser considerado duplamente em sua estrutura
e também em sua efetivação, sem que esta dupla visão, necessariamente, tenha
sido levada a termo na atuação do corpo docente, do corpo discente e do corpo de
apoio acadêmico/administrativo, exatamente do modo que tem construído
significados para esses sujeitos envolvidos em todas estas instâncias, ao inscrevê-
los no sistema institucional. Dessa forma, esse novo currículo como lugar da
significação poderá voltar a constituir algum significado para as instâncias
institucionais que o constituem diretamente, que também poderão vir a utilizá-lo
conscientemente como um instrumento para acessar o conhecimento da arte.
Esse currículo, assim instaurado, passa a ser um significante, e, como
significante, motiva semioses em diversos contextos, assinalando significados que
vão sendo detectados pelos instrumentos que venho construindo, tal como a
olhadura, que, sendo um dispositivo em permanente construção, permite, entre o
olhar/não ver e o ver/não olhar, perceber as pregas que constituem as pálpebras, ao
2-103
fechar o globo ocular e limitar o olhar em relação ao tempo e ao espaço, fazendo
sobrevir à consciência os limites constitutivos do próprio ato de olhar.
Esse limite constituído pelo olhar e no próprio olhar manifesta sempre a
distância a que este se encontra em relação ao objeto, e é assim percebido através
do dispositivo olhadura, que o constitui em séries através da reiteração e
sequenciamento do ato da visão. Entretanto, reúne-se, a esta série da olhadura,
uma outra série em diferenciação, que havia sido anteriormente gerada por um
movimento deliberado das pálpebras, que, semicerradas, ao limitar parcialmente a
entrada de luz, passaram a definir o objeto sem brilho nem pompa: um tosco
desenho onde três corpos ao se articular definem o espaço na contigüidade, que,
em blocos, passam a se orientar no tempo através de acordo e aliança.
Pois é nesse caminho que se diz caminho do saber/fazer, instaurado como
pré-lógico, ou negativo, o qual, estando relacionado ao caminho do conhecimento,
ou do saber/conhecer, visto como lógico ou positivo, articulando o saber/conhecer
ao saber/fazer, que vai-se gerando inicialmente esse percurso metodológico. Mas, é
na semiótica que o caminho é efetivado através de um procedimento em que se
implicam logicamente metatermos como uma “metalógica”, ampliando os acessos,
abrindo-se a vários percursos ao se aliarem também ao negativo do negativo,
através do fazer/saber, onde está implicado o querer/dever/poder/fazer, que se
determina em negatividade. Entretanto, é essa negatividade que torna possível a
rearticulação do positivo, que se pressupõe em reciprocidade na busca que vai
detectando as microdiferenças constitutivas de um campo que se apresentava
aparentemente unificado, traçando um caminho que se desenvolve desde a
instauração da metodologia até a abordagem micrológica, incluindo recursivamente
a varredura instrumental do objeto.
Com a utilização da redução do olhar, venho reconstruindo o texto em
regime actancial, tendo me instalado em um eixo horizontal definido no balanço
entre o ver e o ler, passando pelo não olhar, ao qual é dado o poder de entrever.
Entretanto, é preciso estar certa de ter construído o filtro necessário a cada lance do
olhar; para que, ao apertar os olhos, e encontrar os campos limítrofes que definem
2-104
também um dentro e um fora, freqüentemente em continuidade, possa distingui-los
e, dessa forma, demarcar, inicialmente, o lugar da enunciação.
Esse cuidado com a demarcação do lugar é necessário, pois, como
professora 23 anos do Curso de Artes Visuais da UFRGS, o Currículo do Curso
de Formação Superior em Artes Visuais da UFRGS corresponde, simultaneamente,
ao lugar de que se fala, mas, também, dentro do qual se fala. E é certo que esta
proximidade pode ser tomada como um excesso de luz, e, a exemplo do brilho
intenso do “canhão de luz” gerado pelo arco voltaico utilizado no cinema e no teatro,
pode cegar como uma negativa à visão, como um não querer ver. Por outro lado,
também, pode vir a contribuir para que se veja tudo o que tem que ser visto, e isto é
uma particularidade da arte, que torna visível entre negação e afirmação, sem
escolhas, resgatando a ambos; não mais como uma negativa, tal como a negação
de Platão ao lugar próprio da arte, mas ainda, na atualidade, através da
negatividade da linguagem que tem estado em segredo, suportando em
reciprocidade o lugar do exercício do pensamento em sua desenfreada busca pelo
ser.
Mas, isso poderá provocar uma uniformidade excessiva na descrição do
objeto, e, desse modo, parecer que tudo seja, simplesmente, óbvio e tenha sido
dado a conhecer anteriormente, ou, o inverso, pode provocar uma anamorfose
112
na
continuidade da visão, obstruindo através da deformação a possibilidade da
visualização, ou dificultando a própria visualização; enfim, de qualquer modo, essa
visão pelo excesso, em algum momento, também acabaria por se inverter, e,
necessariamente, teria que passar pelo eixo do segredo, entre o ver e o não ler, ou
ainda pelo eixo da mentira, entre o ler e o não ver, no caminho entre o ser e o
parecer.
Por outro lado, a inclusão dos limites da visibilidade implicada no ver/não ver
provoca a necessidade do outro dispositivo chamado olhadura, que, manifestado
como relâmpagos ou frestas, constitui-se como uma espiada dorsal, ou um arco,
112
Anamorfose é uma representação de um objeto através da construção de uma forma deformada pela
proximidade do observador ao objeto. O sistema perspectivo de uma anamorfose utiliza a linha curva como
referencial de construção e necessita de um “instrumento de decifração”, que freqüentemente é solucionado com
um cilindro espelhado colocado perpendicularmente, no eixo contrário ao plano do desenho.
2-105
configurado no tempo, em flecha ou em tensão, que ao espacializar mostra os
limites temporais que configuram cada experiência em ries constitutivas de
pequenas descrições ou narrativas, abarcando nesse caminho também perigosas
passagens onde se instauram o olhar/não ver e o não olhar/ver, dobrando-se em
intermitências, que tendem a acabar em pressuposta contradição do não visível em
substituição ao invisível, sendo o limite que determina o poder/dizer do próprio
sentido da visão na relação do visível e o invisível.
Articulando o saber/fazer/conhecer ao ver/ler/dizer, os diálogos e as
descrições que passaram a constituir o exercício da escrita se manifestam como
acidentes topológicos definidos através de propriedades comuns, pois, tendo sido
aluna do curso de 1973 a 1978, professora do curso a partir de 1985, e
permanecendo como docente até a atualidade, onde exerci por três momentos
distintos a função de Coordenadora Acadêmica e Administrativa do Curso, tenho
construído ao longo do tempo uma ampla experiência, marcada também pela
vivência do currículo em diferentes tempos, constituído com distintas práticas de
visibilidade e legibilidade nas diversas funções que o constituem e permanecem até
hoje.
As bordas, presentificadas pela instantaneidade do vislumbre, articulando a
um eixo interior os limites voltados para o exterior, configurando e restringindo os
excessos da experiência, justamente quando esta avoca a si a totalidade, a partir da
centralização com a perda de limites, fazem desse impedimento um caminho para a
constituição da topologia do objeto. É nos fragmentos temporais, vistos à luz da
relação mestre/discípulo, na abordagem das pessoas de Pessoa, enfocadas
diferentemente por Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, que se dá o impedimento da
abordagem uniforme através da perspectiva linear do ponto de vista único, o qual
poderia ainda acentuar a uniformidade, ao definir em fixação o observador em um
único lugar.
Desse modo, a inscrição do conhecimento das Artes Visuais dentro do
currículo pode vir a ser apontada inicialmente em diversidade, utilizando os dois
dispositivos criados: a olhadura e a redução do olhar; pois, pela extensão
temporal e a intensidade espacial, determinantes destes, é certo que a investigação
2-106
articulada metodologicamente à descrição semiótica do texto necessita reinventar o
seu objeto, reencontrando a possibilidade de significação através da narratividade
que o constitui, descrevendo-o em narração construída por vezes em diálogos, que
presentificam em diversidade os universos micrológicos que o constituem.
O caminho vem sendo definido através de vários percursos que o compõem
em análise. A análise está caracterizada por um desenvolvimento desde o concreto
até o abstrato, mas dá-se simultaneamente à síntese, que, ao inverso está
caracterizada por um movimento do abstrato até o concreto. Ambas, análise e
síntese se entrelaçam metodologicamente em percursos desenvolvidos como uma
dupla hélice de onde irrompem descrições micrológicas em efeitos de sentido de
verdade até o encontro do ver/ler determinante da estrutura profunda da
narratividade. Nessa estrutura se encontra ainda em esqueleto a ação actancial, a
qual foi fundada como possibilidade de existência na arte, e transferida como
hipótese para ser proferida pelo pensamento. Desse movimento do método, que se
apresenta em desdobramento, penso que o conhecimento da arte poderia se
apresentar no currículo de um curso de formação em Artes Visuais, definindo-se
como um dos lugares onde deveria se apresentar a indicação de caminhos de
concretização da arte, sem eliminação da complexidade e vastidão do universo do
qual é apenas uma parte, nem cair, somente, na trama superficial delimitada
institucionalmente pelo entrelaçamento das diversas instituições que o constituem,
além de poder vir a significar um abrigo seguro para resguardar o acesso, a qualquer
tempo, de todos os paradigmas que definem a amplitude/completude da experiência
da arte.
2.3 DA NARRATIVIDADE ENTRE “FRAMES” E HISTÓRIAS OU UTILIZANDO O
DISPOSITIVO OLHADURA NA ABORDAGEM CURRICULAR
Perquirir o currículo com o dispositivo olhadura e apontar a presença do
conhecimento das Artes Visuais na estrutura curricular, e, ainda assim, poder afirmar
que esse conhecimento se mantém indefinível é também presentificar o limite que se
apresenta e se impõe, simultaneamente, à visão, percebendo que não é parte do
objeto observado, mas é pertinente aos percursos do olhar.
2-107
Com a limitação do olhar é possível descrever o limite através da
consciência elaborada entre o querer-ser e o dever-ser, pois juntos, instrumento e
olhar, constituem a princípio a única e possível mediação que, concomitante ao ato
de apontar, possibilita a constituição de categorias epistemológicas que incluem as
dicotomias em um quadro de pressuposições em reciprocidades. Desse quadro
resulta a complexidade dos discursos ampliados em aparentes paradoxos através da
estruturação de categorias semânticas. Nesse caminho, a composição da chave de
leitura é apresentada em deambulações, na tentativa de encontrar o que pode ser
realmente da mera aparência oferecida à visão.
Isso que se afirma no dizer acima repercute em Greimas (1976) quando este
constata toda a construção como um empobrecimento, considerando que esta
afirmação se refere ao empobrecimento da extensão, a qual é vista como a plenitude
dos objetos naturais e artificiais em relação à necessária construção de uma
semiótica topológica. Mas também e acima de tudo, se confirma esse
empobrecimento, ao ser considerado em relação ao desaparecimento dessas
riquezas da extensão, que vão desaparecendo conforme se a emergência do
espaço como uma forma possível de servir à significação. Entretanto, a construção
realizada anteriormente, tendo como referência o pensamento de Bateson, abriu a
possibilidade de ultrapassar a dicotomia entre o perder e ganhar através da
abrangência da tautologia associada à ecologia, tal como uma visão estendida da
sabedoria que vai além, tanto do conteúdo, como da operacionalização, constituindo
o processo do conhecimento em uma abrangência epistemológica para além do
simplesmente lógico.
Nesse sentido, do mesmo modo pode-se dizer que: aquilo que estava sendo
visto através da limitada olhadura, em simultânea construção operacional, como uma
fundação das origens referente à interrogação sobre as relações que vão sendo
construídas, acabou por inserir uma pré-lógica em referência ao universo poético de
Fernando Pessoa. O foco definido nesse universo poético acabou por remeter à
relação actancial do discurso da enunciação. Por outro lado, foi instalada uma outra
possibilidade de articulação no discurso, abrindo-se, simultaneamente, à
comunicação. Todavia isso se dá pelo fato de ter atribuído a mim mesma o direito de
tomar o espaço do objeto observado e transformá-lo num significante, tornando-o ao
2-108
mesmo tempo um objeto diferente ao constituí-lo através de uma metalógica definida
na busca geracional pelo sentido.
De qualquer maneira, ao construir este texto, estou também fundando
descontinuidades, que, talvez, ainda tenham permanecido invisíveis e necessitem
ser enfocadas. A princípio, o descontínuo está sendo fundado ao fixar um lugar em
relação a outro lugar, e isso me faz ir buscar, com o dispositivo olhadura, a
separação também constituída no tempo, pois, na consciência reiterativa que se
em frames separando o tempo em planos, acabo por provocar a exposição do modo
como está construída aquela aparência de continuidade e linearidade.
Entre separação e contigüidade num caminho que está sendo desdobrado
ao definir um percurso desenvolvido da proposta aa tese, ou seja, da promessa
do que poderia ser realizado até a confirmação elaborada no sentido negativo,
explicitando o que não se poderia fazer ao definir o poder-fazer no fazer-poder,
encontra-se o imite que construí com a ajuda da poesia de Caeiro e de Fernando
Pessoa, ambos vistos em prosa por Álvaro de Campos. E, agora, ao ultrapassar o
enfoque colocado na relação das pessoas de Pessoa, que tornaram presente os
metatermos da atuação actancial, eu redireciono o foco da observação para a
relação entre os mundos evocados por cada um. Posiciono esses mundos na origem
como diferenças fundacionais o mundo do mestre do poeta, o mundo do poeta
como o autor da poesia, e o mundo do outro, criado por ambos; e que os observa e
relata – e volto a reuni-los em relações necessárias tanto à formação como à
especificidade desta formação, em que estão sendo abordadas como processo de
formação superior.
Essa relação entre estes mundos definidos como diferenças fundacionais
também é necessária ao limite da rede sistêmica do Sistema Educacional voltado à
Formação Superior. E, para confirmar essa necessidade, basta que se considerem
as relações de hierarquias não sobrepostas que esse sistema deveria ter por
princípio; mesmo que essas hierarquias sejam vistas em relação às aparentes
simetrias, tal como às áreas do conhecimento e aos docentes de cada área, ou,
ainda, relacionadas às explícitas assimetrias constitutivas tanto em relação ao tempo
que separa formador de formando, como ao espaço que separa funções fim de
2-109
funções meio, ou seja, tanto na relação entre docente/discente como entre corpo
docente/corpo técnico-administrativo.
Por outra via, semelhante à mediação feita por Álvaro de Campos, que
descreve o mestre e o discípulo em mundos “totalmente outros”, ao considerar a
concepção geradora do texto semiótico, que enfatiza as diferenças em semioses ao
definir o Currículo do Curso de Artes Visuais da UFRGS como um objeto semiótico,
eu começo por descrever as relações presentes no objeto em si, o qual passa a ser
entrevisto como plano da expressão que se expõe em suas transformações e
correspondências ao plano do conteúdo, considerando, neste plano, também a
apropriação realizada pelo corpo docente, corpo discente e corpo técnico-
administrativo da universidade que acabam por constituí-lo como lócus da ação que
tem como fim a formação superior.
E, ao auscultar o Currículo do Curso de Artes Visuais do Instituto de Artes da
UFRGS, tenho buscado as mudanças mínimas, simultâneas às grandes
transformações, perceptíveis interna e externamente. Como um sujeito semiótico, eu
tenho me debruçado sobre o objeto no intuito de poder fixá-lo em relação a um outro
lugar, para, desse modo, fazê-lo assumir contornos bem definidos, tornando possível
instaurá-lo como um espaço significante.
Nesse sentido, as condições atuais de mudança curricular contribuem no
delineamento de alguns desses contornos. Primeiro, pelo fato de ser um currículo
que está sendo implementado em 2007, mudando radicalmente o Curso de Artes
Visuais da UFRGS, e isto concomitantemente à construção deste trabalho. Segundo,
por me permitir falar do objeto a partir da experiência institucional anterior, a partir do
currículo que está em extinção, de cuja implementação não participei, embora eu
tenha uma longa experiência como discente e também como docente, além do
exercício da função administrativa.
É importante salientar que a essa experiência do currículo anterior agrega-se
a possibilidade de uma observação geral, incluindo uma visão da área do
conhecimento, desde a inserção da arte na universidade brasileira, na década de
sessenta. Esta observação dá-se em contraponto à expectativa atual de
2-110
transformação da área, evidenciada por esse momento de efetivação relacionado às
eternas discussões que envolvem a própria institucionalização das artes como área
do conhecimento. Por fim, o terceiro motivo é evidenciado pela necessidade de
mapear os novos limites, desta vez, emergentes da formação superior, que se
encontram no próprio texto do atual Projeto Pedagógico do Curso que substitui o
currículo anterior e na disposição dos corpos coletivos institucionais circunscritos e
inscritos nesse texto.
A situação é especial pelo fato do currículo em implementação não ter
formado nenhuma turma, e também por não ter sido realizada a avaliação da
eficácia da mudança, cujo enfoque é dado a partir do sistema interno à universidade,
e, é essencialmente curricular. É preciso ressaltar ainda que a efetivação da nova
estrutura está sendo construída majoritariamente por todo o corpo docente, na
tentativa do cumprimento de seus objetivos, definindo o processo que está em
curso. Esse momento caracteriza um espaço interativo entre os corpos coletivos
envolvidos, que se posicionam, participando abertamente, incluindo participações
individuais tanto em afirmação como em negação ao currículo que está sendo
implementado, sendo que essa participação é determinante para definições a curto
prazo dos ajustes próprios desse período.
Na verdade, é como um desenho invertido que inicio esta abordagem. Tal
como no processo do desenho, os traços são definidos pelos intervalos que
constituem o objeto a partir dos limites exteriores, embora fique claro que este
caminho desenvolvendo uma trajetória pelo “não ser do objeto” é um caminho
necessário a todo o objeto que inclua o desenvolvimento no tempo, definido por um
“vir a ser”. E é evidente a correspondência também com esta etapa de
implementação, em que o novo currículo é parcialmente conhecido, sendo
lentamente descoberto, na mesma medida em que vai sendo utilizado. E, se por um
lado, é ousado, por outro, é tímido, pois os sujeitos envolvidos no processo ficam
divididos entre entusiastas e participantes, desconfiados e temerosos e ainda
contrários e reacionários; sem que haja exclusões, o positivo e o negativo participam
do processo em pressuposição à positividade, pois todos os atores e actantes têm
que dar conta da formação superior na área de Artes Visuais. Somando-se a isso o
fato de que a área de Artes Visuais começa a ter, também, uma visibilidade externa
2-111
à academia, pois vem conquistando um espaço cultural definido social e
politicamente na sociedade brasileira.
O período definido para a implementação do currículo está determinado
institucionalmente no tempo de formação da primeira turma, entretanto, nesse
tempo, é concomitante à extinção do currículo anterior que também está em
processo. Nesse diálogo, se enfrentam início e fim de um modo completamente
inusitado: sem corte brusco, apesar de radical, onde aparentemente se elimina o
conhecido, extinguindo-o passo a passo e, ao mesmo tempo, se investe no
desconhecido. É certo que muitas ações são sobrepostas nessa passagem, muitos
procedimentos são arrolados, e, provavelmente, acabarão por serem levados como
um outro, sendo simplesmente os mesmos, ou vice-versa, mas talvez isso seja
menos evidente, e sem contar, também, com os movimentos de retrogradação,
através dos quais se busca algumas coisas que já passaram, atualizando-as e
reprocessando-as na geração de novos caminhos.
A área do conhecimento de Artes Visuais como espaço instituído conquistou
o direito de participar da Formação Superior a partir da Constituição de 1988; foi
registrada e configurada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira de
1996, em vigência na atualidade, onde, inclusive, tornou-se disciplina obrigatória da
Educação Básica, diferentemente da Lei de Diretrizes e Bases anterior, quando a
área de artes foi articulada ao ensino como atividade.
A definição contida na Lei atual vem-se constituindo em continuidade do
processo de institucionalização da área, entretanto, como toda a transformação, o
processo de mudança é lento e também difícil, e, com alguma freqüência, se
movimenta em recuos e retrocessos, a exemplo das restrições atuais quanto à
finalização dessa regulamentação.
Isto se evidencia no fato de não ter sido definida a resolução sancionando a
regulamentação de funcionamento da formação superior definida no documento
correspondente denominado “Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de
Graduação em Artes Visuais”, definindo a emergente área do conhecimento de Artes
Visuais, a qual atualizou a antiga área de Artes Plásticas. E se agrava pelo fato de
2-112
ter sido publicado o esboço do documento proposto para a definição da
regulamentação correspondente à área na página eletrônica do Ministério da
Educação, gerando a expectativa da futura apreciação e encaminhamento de
institucionalização pelo Conselho Nacional de Educação.
Com isso, finalmente seria definido institucionalmente um perfil do curso,
entretanto, ao longo desse período, foram estabelecidas resoluções que
correspondem somente à atualização das Licenciaturas como área geral, incluindo a
Licenciatura específica da área de Artes Visuais, além de também ter sido criada
uma nova área do conhecimento denominada Design, e classificada em alguns
documentos como correspondente à área de Artes Visuais. O Design, surgido
durante a modernidade, no século XX, na formação superior, esteve em subsunção
ao currículo dos cursos de Artes Plásticas. Na passagem para o século XXI, o
design se liberta da tradicional área de artes plásticas e passa a ser apontado, na
atualidade, na sobreposição à emergente área de artes visuais. As Diretrizes
Curriculares Nacionais do Curso de Design são definidas como regulamentação
suficiente à especificidade da área de Artes Visuais, sendo que as discussões
relacionadas a essa especificidade permanecem, parecendo infinitas e reiteradas,
ou, talvez, infinitas por serem reiteradas.
Na atualidade, tal como tem ocorrido desde a inserção da área de artes na
universidade, a área de Artes Visuais, especificamente, se depara com dificuldades
em sua institucionalização. A definição do perfil profissional e das competências
necessárias à formação enfrenta características intrínsecas à área de conhecimento,
tais como a ausência de regulamentação e a conseqüente ausência de associações
de classe que tenham uma atuação operacional e que possam contribuir para a
delimitação da profissão, ou das profissões, atividades e saberes necessários à
formação. O perfil profissional acaba por ser definido pelas características gerais
institucionais dos cursos de graduação, enfatizando a formação de um bacharel ou
de um licenciado, ligado à produção ou ligado à educação e ao ensino da arte. Por
outro lado, atualmente, ambas as formações são perpassadas pela formação do
pesquisador, agregada a partir das transformações gerais advindas da própria
universidade.
2-113
Entretanto, esta problemática da área não se restringe ao sistema brasileiro.
Um estudo realizado em Portugal, em 2004, pela Doutora Isabel Sabino, no qual
foram analisados os cursos de Artes Visuais das 33 instituições existentes em seu
país, com a finalidade de implementação de um sistema de qualificação e
nivelamento estrutural junto à comunidade do mercado comum europeu, apresenta
um panorama com muitas semelhanças em relação às situações que caracterizam a
área no Brasil. Na Europa, no final do século XX, com a Declaração de Bolonha, 29
países estabeleceram a criação de um Espaço Europeu de Ensino Superior,
definindo objetivos que têm visado, prioritariamente, à adoção de um sistema de
comparabilidade da aprendizagem. Este espaço comum está sendo viabilizado
através de um sistema de créditos que permite a flexibilidade de percursos no
Ensino Superior, com linhas de gestão/certificação da qualidade e reconhecimento
de graus e duração de cursos, promovendo a cooperação através de adoção de
procedimentos que evidenciam indicadores de avaliação compartilhados pela
comunidade do Espaço Europeu de Ensino Superior.
Através dos levantamentos realizados em Portugal, fica evidente e está
declarado no documento que a área enfrenta problemas que se estendem desde a
falta de regulamentação até a insuficiência da preparação do aluno para aceder ao
ensino superior de artes, passando, também por um alerta na especificidade da
formação do professor. Conforme a recomendação presente no levantamento
realizado, essa formação teque contar com uma preparação artística específica,
sendo que no documento é aconselhado o licenciamento do professor de artes
somente após ter sido realizada uma sólida formação artística.
Uma outra constatação que precisa ser assinalada, pois é específica das
transformações emergentes da sociedade atual, é a institucionalização da área de
conhecimento em Artes Visuais em relação à necessidade de competências
interdisciplinares correspondentes às ciências humanas, especificamente no que diz
respeito à área da cultura, gestão e produção cultural.
Em relação ao escopo deste trabalho, hoje, pensar na definição do perfil do
egresso do Curso de Artes Visuais da UFRGS delineado pela estrutura curricular
atualmente em extinção, comparando-a com o perfil do egresso definido no Projeto
2-114
Pedagógico do Curso de Artes Visuais que está sendo implementado a partir da
transformação radical da estrutura curricular, é certamente pensar no significado do
surgimento de um novo sujeito do conhecimento que passa a inserir a arte no
universo da pesquisa em correspondência à idéia de universidade fundada na
investigação e na unidade plural do saber. Essa emergência dá-se
concomitantemente ao desenvolvimento da área de pós-graduação, com a criação
de mestrados e doutorados em artes. Essa transformação do perfil do egresso do
curso de artes, por um lado, significa a efetiva institucionalização da arte e, por
outro, a ampliação da investigação universitária, se estendendo em novas áreas do
saber.
Com a inserção da arte na universidade, cujo enquadramento ocorreu
somente no século XX, os cursos de artes passaram a se constituir por duas vias: a
primeira voltada para a formação do artista, como era a vocação anterior, exercida
em Institutos Livres de Belas Artes; e a segunda voltada para a formação do
licenciado, expressamente ligado a um objetivo social relacionado à
profissionalização e formação integral. A formação do artista e a formação do
professor de artes passam, também, a incluir, na atualidade, a cultura, a qual
envolve a ambos; entretanto, estes dois perfis nem sempre se constituíram em
congruência.
A regulamentação federal no Brasil, através da Lei 4024, datada de 1961,
fixou a necessidade de Currículos Mínimos para o Ensino Superior, e, desse modo,
tentou integrar a legislação que se apresentava fragmentada em diversas Leis
Orgânicas, estaduais e municipais. Com a Lei de Diretrizes e Bases para o Ensino
de e Graus, Lei 5692, além da definição da providência da determinação de
professores especialistas, os cursos de Licenciatura passaram a se constituir a partir
das definições contidas na resolução que definiu um currículo mínimo necessário a
cada formação.
A Licenciatura relacionada à área de Artes Plásticas foi definida como
Educação Artística em articulação às grandes áreas artísticas, e, especificamente na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, se constituiu como Licenciatura em
Desenho e Plástica, correspondendo ao e ao graus respectivamente, numa
2-115
aproximação diretamente ligada a um dos objetivos da universidade de promover a
formação integral. Esta Lei foi revogada pela atual LDB de 1996, sendo trocado o
conceito de Currículos Mínimos pelo conceito de Diretrizes Curriculares e substituída
a nomenclatura e o conceito de etapas de desenvolvimento educativo, anteriores à
Educação Superior, por Educação Básica.
Essa regulamentação anterior, inserida na Política Nacional de Educação,
definindo um Currículo Mínimo, passou a enquadrar as artes no Ensino Superior
brasileiro, caracterizando-as com a nomenclatura de Educação Artística e
classificando-as em uma área de Formação Especial, inserindo-as no complexo de
cursos do campo da Comunicação e Expressão. No texto da regulamentação que
fixa o conteúdo mínimo está preconizada a separação entre a teoria e a prática,
numa menção à substancial unidade do fato artístico, em meio às suas distintas
manifestações.
Esse texto da Lei datado de 1971, elaborado como regulamentação da LDB
de 1961, com a definição dos Currículos Mínimos, declaradamente é um texto que
privilegia a teoria e confirma a direção da racionalidade cognitivo-instrumental no
ensino superior, reafirmando a existência de hierarquias sobrepostas na instituição
universitária, através das quais as diferenças foram subsumidas com aparência de
semelhanças. Isto se refletiu, inclusive, no processo de institucionalização da arte,
pois foram acentuadas várias contradições na área artística pelo excesso de
concessões dadas à teoria, numa área caracterizada pela prática e organizada por
uma racionalidade estético-expressiva.
No início do culo XXI, quando a produção da arte sofre transformações
radicais, que certamente foram influenciadas pela crescente institucionalização,
emerge de seu seio um novo paradigma que a insere no universo do fazer e também
do pensar, e isso ocorre num momento em que as universidades, paralelamente são
também levadas a redefinir seus objetivos e a se adequarem às mudanças que
estão ocorrendo na cultura e na sociedade.
Perceber o que está implicado nesta mudança da área de conhecimento
passa pela transformação atual do perfil do profissional da área de Artes Visuais, em
2-116
que se acentua a interlocução do licenciado e do bacharel, repercutindo educação e
arte na relação do ensino e da produção artística, ao emergir na contemporaneidade
o sujeito pesquisador em arte, o qual não existia anteriormente. Mas perceber esta
emergência é também estar atento ao desdobramento das habilidades necessárias
à formação, que passam a ser definidas concomitantemente a competências,
delimitando novos objetivos a serem desenvolvidos neste período de formação, ao
fazer parte da própria estrutura curricular que constitui o curso.
Formar um pesquisador pode-se dizer que é formar um sujeito que parte de
um não saber como princípio de qualquer desenvolvimento. E isso, de certa
maneira, inverte a concepção de formação como construção de um conhecimento
específico, deslocando essa formação para a busca pelo conhecimento. O foco
deixa de ser o “conhecimento de” para ser o “conhecer do conhecimento”, definindo
o caminho da formação por uma abrangência que envolve o “conhecer o
conhecimento da arte” como essencial para a construção do conhecimento artístico,
ou seja, o metaconhecimento do conhecimento da arte.
Esse novo foco da formação artística faz jus ao paradigma contemporâneo,
no qual a arte está dada como um signo (instituição), que, por sua vez, ultrapassa o
paradigma moderno, em que a arte se constrói e reconstrói reiteradamente como
forma (operacionalidade), sendo que este está sempre em subsunção, ancorado ao
paradigma acadêmico em simultânea afirmação e negação, emergindo como
diferença e multiplicidade em processo de desconstrução. Embora o seu valor tenha
sido definido pela unidade de seu conteúdo (como temática significativa à própria
arte), esse novo foco está articulado por uma perspectiva que corrobora esta
unicidade, mesmo que esta se confirme apenas como um fragmento do todo
correspondente.
Frente a essa estrutura paradigmática iniciada no Renascimento, fundada
pelo desejo, através da vontade de vir a participar do mundo do pensamento, e
tendo se constituído no tempo, ao desenvolver e ser desdobrada em desconstrução
na Modernidade chegando até a Contemporaneidade, a arte não descarta nem
despreza nenhuma passagem deste percurso. Todos os “pontos de parada” o
estases que a fixam e desenvolvem, constituindo-a em adensamento, com capas
2-117
sobrepostas, ou talvez, em palimpsesto
113
; mesmo onde os aparentes descartes são
vistos como participantes da estrutura e importantes para sua definição. Deste
modo, esta característica cumulativa da arte permite que se constitua como o mais
completo quadro referencial do desenvolvimento da própria sociedade, medida por
um específico fazer/saber humano. Tendo como centro o desenvolvimento da
humanidade, a arte -se em um universo antropológico que inscreve o
desenvolvimento do ser humano espelhando-o em seu saber/fazer, como uma
operacionalidade própria de um sujeito constituído como fundamento de uma
linguagem que o expõe como expressão, ao possibilitar simultaneamente a
comunicação.
113
Palimpsesto se refere, segundo o Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa, Edição de 1989, a um
antigo material de escrita, principalmente o pergaminho, usado em razão de sua escassez ou alto preço, duas ou
três vezes mediante raspagem do texto anterior, definindo um manuscrito sob cujo texto se descobre às vezes a
olho nu, mas com freqüência recorrendo a técnicas especiais.
3-118
3 ARTE E RETROVISÃO NA FORMAÇÃO DO ARTISTA
3.1 INSTITUIÇÃO E ACOPLAMENTO DA ÁREA DE CONHECIMENTO
Desde a primeira estruturação deste trabalho, ainda durante a tentativa de
esboçá-lo em um estado de pré-concepção, ao buscar definir um eixo para a
organização, a seguinte questão, reiteradamente, se coloca, perpassando o
desenvolvimento estrutural: “É possível uma abordagem do conhecimento da arte
que, diferentemente, da ‘epistemologia tradicional’
114
, possibilite a geração de algum
tipo de evidência
115
que não acarrete a perda do objeto gerador do conhecimento?”
Ou, dito de um outro modo: “será permitido à construção do conhecimento da arte o
não encobrimento do objeto gerador, possibilitando à epistemologia da arte um
conhecimento sem substituição e encobrimento; e, ainda, ao contrário, provocando a
coexistência do conhecimento da arte e da própria arte em relação de não
encobrimento?”; ou, “seria possível que, mesmo em contigüidade, fosse dado
acesso ao conhecimento da arte através do ‘des-velamento’
116
da arte no
encobrimento de seu próprio objeto gerador, de modo que o conhecimento da arte,
simultaneamente, o ‘re-velasse’
117
, simplesmente indicando-o, ou colocando-o,
permanentemente, como doador de sentido?”.
114
Maria Jo Esteves (2005) define a noção de epistemologia a partir de três momentos significativos nas
transformações do conceito: o primeiro ligando-a à teoria do conhecimento e ao processo de conhecimento
científico, o segundo ligado às proposições científicas ou à linguagem da ciência e o terceiro como filosofia da
ciência, abrangendo a gica, semântica, teoria do conhecimento, metodologia, ontologia, axiologia e ética.
importante perceber nesta posição de Maria José a colocação da Ciência lado a lado com a Filosofia, quando traz
na epistemologia tradicional a teoria do conhecimento e o processo de conhecimento científico).
115
O conceito de evidência refere-se ao estatuto lógico do pensamento racional que articula a necessidade e a
suficiência, mas também ao pensamento científico, emergente da ciência experimental iniciada com a dúvida de
Descartes.
116
O Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1988) traz dois significados correspondentes à dupla origem do
verbo “desvelar”, que interessa aqui registrar por estar diretamente relacionado com a idéia de um
“conhecimento contíguo”, mas também com o sentido atribuído por Greimas. Por um lado, a definição de
desvelar está relacionada ao sentido de dar a conhecer, revelar, mostrar ou retirar o véu; mas por outro lado, a
definição relaciona o verbo ao sentido de acompanhar, zelar, vigiar, diligenciar e cuidar. E “revelar”, que é visto
como sinônimo de desvelar é uma “caixinha de surpresas”, pois ainda é definido com um outro sentido que
ultrapassa os sentidos constituídos pelo verbo desvelar, que é o sentido de manifestação, como dar-se a conhecer.
117
A idéia de “desvelar” e “revelar” está sendo utilizada também em sintonia com o questionamento de Greimas
ao finalizar seu texto no livro De la imperfección, onde, ao responder à pergunta sobre o que nos resta ante a
imperfeição, se e frente a um impasse: retornar a um momento onde homem e mundo eram um, ou vigiar à
espera de uma estesia única. E esta estesia, como um estado do sujeito frente à estética do mundo, é afirmada
como um deslumbramento, constituindo, nesse excesso, um caminho onde não sejamos obrigados a fechar os
olhos, o que pode vir a significar olhar para o mundo ao mesmo tempo em que o vamos descrevendo.
3-119
Em verdade, esses questionamentos estão imbricados
118
e se inter-
relacionam à institucionalização da área de conhecimento das Artes Visuais e às
possíveis perdas acarretadas à arte
119
advindas desta institucionalização como área
de conhecimento. Entretanto, estas questões encontram novas vias de acesso frente
ao acoplamento da área artística ao sistema cultural que também tem ocorrido no
bojo das transformações da sociedade do século XXI, além de estarem relacionadas
diretamente à passagem para a sociedade da informação e conhecimento. Essas
questões se interligam no engate do cultural ao social, considerando a determinação
de responsabilidade social estabelecida por um Estado
120
redefinido, que se
transforma sem deixar de assumir a função de orientador e mantenedor. E vem a se
inserir em um sistema político que assume como herança o papel de mantenedor,
embora tenha redefinido seus limites avocando para si uma nova operacionalidade,
privilegiando a manutenção constituída em retroação
121
pela regulação
122
.
A estes novos limites que tem definido o Estado Brasileiro, no período
posterior à LDB de 1996
123
, coincidindo com a fase das regulamentações referentes
à nova legislação, associa-se o acoplamento da área artística ao sistema cultural
118
No sentido que se sobrepõem parcialmente e, embora esta disposição não seja uma característica de uma
forma construída somente no espaço, é necessário reiterar que a mesma abarca também a formação definida no
tempo.
119
As perdas são referentes à possibilidade de eliminação da ambigüidade necessária tanto à arte quanto ao
ensino da arte, pois, certamente, ambos perderiam muito com a uniformidade imposta pela institucionalização
que tem priorizado a racionalidade técnico-científica. Entretanto, a brecha que se abre para a institucionalização
da arte na atualidade diz respeito ao resgate cultural indispensável a todas as instituições, no que concerne à
responsabilização pelas emergentes transformações sociais, definindo uma nova sociedade da informação e
conhecimento ao colocar lado a lado outras formas de racionalidade, resgatando a racionalidade prático-moral,
com possibilidade de vir a resgatar a racionalidade estético-expressiva na universidade, ao gerar na própria
mudança um novo valor social.
120
O Estado Brasileiro, no qual estou inserida, é também a referência sobre a qual me debruço para realizar esta
reflexão.
121
A retroação é um conceito relacionado à cibernética e se refere ao conceito de feedback: relaciona o
desempenho efetivo ao desempenho previsto, permitindo o controle da máquina, mas as pesquisas relacionadas
aos seres humanos acabaram por ampliar o conceito abrangendo sua complexidade como mecanismos de
causação circular e retroalimentação, os quais incluem a retroalimentação positiva e a retroalimentação negativa.
A positiva aumenta o desvio intensificando os efeitos do processo, e a negativa reduz a amplitude do desvio, não
produzindo mudança qualitativa. Estes reguladores o chamados reguladores de circuito fechado ou
servomecanismos controlados pelo erro, pois só retroagem a partir de uma perturbação.
122
Esta regulação é denominada por Bateson (1970) Ciclo Autocorretivo, que ele caracteriza como uma relação
em que o mais é menos e o menos é mais”, ou ainda como uma transformação onde as próprias diferenças
fazem a diferença (Metálogo com Paul Ryan).
123
Talvez eu pudesse dizer aqui que tenha iniciado com o processo de abertura política, posterior ao estado de
exceção, e a nova Constituição de 1988, entretanto quero direcionar o foco para a questão da educação.
3-120
como um modelo paradigmático
124
. A este novo modelo articula-se outra impulsão
125
direcionada à formação superior do artista, que, em processo de ampliação, passou
a ser definida a partir de um perfil múltiplo, articulando o artista ao pesquisador, bem
como, recentemente, em complementação ao perfil gerado: artista-pesquisador, uma
nova articulação tem sido definida associando-o ainda ao curador
126
.
Este novo perfil do artista vem-se constituindo, a partir de um
redirecionamento advindo da reestruturação institucional do sistema universitário de
formação superior, que atualmente também abriga a formação continuada,
incorporando a pós-graduação ao seu sistema de ensino. Dessa forma, a
universidade passa a se definir como um dos “avatares”
127
do emergente sistema
cultural correspondente à sociedade do século XXI, assumindo concomitantemente
a responsabilidade social que lhe tem sido tributada.
Liderando as transformações e simultaneamente sendo atravessada por
mudanças, a universidade passa a abrigar internamente os desafios e conflitos
constitutivos das fronteiras culturais emergentes do meio social, que a obrigam a se
transformar.
A área de conhecimento, classificada na atualidade como Artes Visuais,
passando a fazer parte da Instituição Universidade
128
, somente a partir do século XX
124
O conceito de acoplamento de certa forma caracteriza o século XX, pois advindo da física, caracteriza a
conexão entre dois sistemas mediante a transferência de energia de um para outro. E isto foi o que possibilitou
as viagens espaciais, como as viagens tripuladas à Lua, inaugurando um novo domínio na natureza humana.
125
O sentido de impulsão está associado tanto à definição presente em impulso como ato de impelir como à
definição de abalo ou estremeção. Mas, também a definição do conceito, advinda da área da Física se apresenta
como um componente definidor muito próximo do significado pretendido: Integral sobre o tempo de uma força
que atua em um corpo; principalmente quando se sabe que uma integral é dada pela diferença entre dois valores,
onde o superior é definido, e o inferior é arbitrário.
126
Interessa pensar aqui que esta multiplicidade torna interdependente a produção, a reflexão e também o
cuidado com os bens materiais e imateriais gerados pela diversidade cultural que constitui a sociedade,
engatando o artista em um projeto sóciocultural tirando-o do que se poderia chamar de uma produção “laissez-
faire”, ou talvez, se possa dizer totalmente arbitrária, incluindo-o em instituições, das quais é “cobrada” uma
responsabilidade social. Eu resgato a relação das racionalidades excluídas anteriormente da universidade,
entretanto com a novidade de trazerem também novas formas de articulação, tal como o acoplamento, que
permite acordos e hierarquias móveis.
127
A idéia de “avatar” está relacionada à transfiguração que a universidade vem realizando no sentido de manter
o seu status frente à nova sociedade emergente, resgatando em si, tal como uma reencarnação divina, os conflitos
gerados no seio da sociedade.
128
Do ponto de vista histórico a institucionalização da arte inicia com a mudança do estatuto do artista durante a
renascença e a formação artística se torna independente a partir da criação da Academia no século XVII,
entretanto essa autonomia dá-se à custa de rígidos cânones, instaurando, de certa maneira, um monopólio do
3-121
veio a ser definida em uma organização que a dispõe através de uma estrutura
curricular de formação superior que tem operado com uma dupla face,
operacionalizando, por um lado, o fazer, e por outro, o pensar.
É com referência a esse saber, em princípio complexo, considerado a partir
das relações estabelecidas entre um saber-fazer e um saber-pensar, o qual tem sido
utilizado como substrato à formação superior em Artes Visuais, que tenho me
deparado com a origem desta preocupação. Frente a essa complexidade percebida
e detectada, mas ainda não reconhecida, tenho procurado diferentes caminhos para
definir ou descrever a natureza, ou as diversas naturezas envolvidas na relação
entre o conhecimento, o conhecimento da arte e a própria arte.
É evidente que a operacionalização deste saber complexo, tal como tem-se
constituído na estrutura curricular do Curso Superior de Artes Visuais da UFRGS,
desde a primeira autorização do Governo Federal em 1941
129
, tem sido realizada,
simplesmente, pela manutenção de um eixo articulado pelo “saber-pensar” e de um
eixo articulado pelo “saber-fazer”. Esses eixos são colocados lado a lado, inseridos
em uma configuração paralela, definida na estrutura através da inserção da
disciplina de História da Arte desenvolvida durante o período de formação, o qual
era, anteriormente, exclusivamente a cargo das práticas artísticas realizadas nos
atelieres de desenho, pintura ou escultura.
Essa configuração da estrutura curricular em dois eixos paralelos mostra a
inserção de uma nova instância formativa, entretanto a insere como um mero
elemento somado à prática artística realizada nos atelieres, evidenciando uma
ampliação estrutural, sem constituí-la como uma possível complexidade no sistema
de formação, ou seja, sem qualquer articulação constituída entre os dois eixos
130
.
ensino. Já no século XIX, essa rígida definição e autoridade passam a ser questionadas, e, no início do século
XX, a arte vem, finalmente, a participar do espaço instituído, compartilhando, junto a outras disciplinas, do
desenvolvimento global da criança, participando da formação inicial, estimulando a imaginação criadora e o
julgamento crítico, com o objetivo de melhorar a formação social. Isso acarretou múltiplas reformas em
diferentes domínios de formação, determinando, inclusive, o ingresso da arte no seio da Universidade, numa
articulação dos diferentes níveis de escolarização, instituindo, desse modo, o ensino da arte como um sistema,
mas também a levando a participar do sistema de conhecimento articulado no seio da Universidade.
129
O Curso Superior de Artes Visuais da UFRGS foi criado oficialmente em 1910, com a denominação de Curso
de Artes Plásticas, obtendo reconhecimento em 20 de maio de 1941, através do Decreto Federal Nº. 7197.
130
É interessante mencionar aqui o depoimento de Charles Harrison, um dos fundadores da Art-Linguage e
professor de história e teoria da arte na Open University, no texto O ensino da arte conceitual apresentado em
3-122
Dessa forma, o currículo foi rearticulado através de dois eixos em caminhos
paralelos, os quais, embora tenham mantido convergências relacionadas
internamente ao conteúdo, o acarretaram a estruturação formal dessa relação,
que, para ser definida como uma relação complexa, teria de abranger tanto os
caminhos como o modo de relacioná-los. Também a articulação paralela e ao
mesmo tempo convergente entre o saber-pensar e o saber-fazer ainda não entrava
em evidência na abordagem do conhecimento da arte, pois, se assim fosse, isso
definiria a passagem da natureza do conhecimento gerado para o status de
conhecimento complexo.
Com o foco em uma estrutura complexa, a qual é emergente na atualidade,
mas, principalmente a partir da própria institucionalização da área de Artes Visuais,
onde as transformações estão sendo definidas em configurações, simultaneamente,
paralelas e convergentes
131
, eu tenho realizado uma reflexão sobre o caminho do
desvelamento do conhecimento, próprio das Teorias do Conhecimento, ou das
epistemologias construídas pelo pensamento filosófico. Semelhante a “Jano”
132
com
duas faces constitutivas de um único corpo apontando para lados distintos, eu tenho
estado revisando as formas de conhecimento também no tempo, buscando
orientações na origem da Filosofia Ocidental, advinda dos pensadores gregos,
especificamente, nas sistematizações apresentadas por Platão e Aristóteles
133
,
2003 no ciclo de conferências Peut-on ensigner l’art aux artistes?”, realizada no Museu do Louvre: afirma que,
no final dos anos 60, dava aulas na St. Martin’s School of Art, em Londres, entretanto não como artista, mas
como história, teoria e crítica incorporada aos trabalhos dos atelieres de pintura e escultura. Diz ainda que,
naquele tempo, era novidade incluir história da arte como disciplina acadêmica, o que havia sido decidido alguns
anos antes por um comitê do governo, definindo que a história deveria ser ensinada a estudantes de arte,
entrando no currículo como estudos complementares. Ao relatar a sua experiência, confirma a dissociação da
história da arte que pretendeu ministrar aos estudantes, tentando envolvê-los em discussão sem resultado algum
até o momento em que incluiu em sua aula a atualidade da arte. (Arte & Ensaios nº. 10 Rio de Janeiro, 2003).
131
A idéia de paralelos convergentes ou convergências paralelas participa da concepção paradigmática de
complexidade onde a objetividade é colocada entre parênteses, os padrões são interconectados, as relações são
transdisciplinares, as estruturas são acopladas, a causalidade passa a ser circular recursiva, constituem-se ordens
de recursão, onde o papel das narrativas passa a ser significativo passando a abarcar também as contradições
onde a atitude passa a ser “e-e” em substituição ao “ou-ou”.
132
Janu, em latim Janus, foi um deus romano que originou o mês de Janeiro. É representado com duas faces
apontando o fim e o começo, ou ainda o passado e o futuro sendo responsável por abrir as portas para o ano, e
é claro uma porta tem sempre dois lados.
133
Para o pensamento filosófico ocidental, Platão e Aristóteles definem duas posições distintas que têm sido
reiteradas ao longo do tempo em dois caminhos construídos em paralelo; de um lado, se estabelecendo os
platônicos, e de outro, os aristotélicos. Entretanto a freqüência na história dá-se de forma intermitente, definindo
ora um, ora outro, nunca se apresentando as duas posições inspiradoras simultaneamente, mas sempre
consecutivamente.
3-123
muito embora essas reflexões tenham sido realizadas em percursos constituídos
sempre como um desvio do caminho de ambos, pois, evidentemente, o instrumental
utilizado, ou seja, o modo de abordagem é sempre contemporâneo.
Parece-me que, neste desvio, me é próprio propor alguma espécie de
“epifania”, ou, simplesmente, de presença em relação àquilo que vou construindo, e
este é também o modo que me afigura como um dos actantes no texto. Este actante
que é artista desenhador, tem-se posto também a desenhar ao coletar imagens
134
e misturá-las à escrita, e, deste modo, a relação entre o “convergente e o paralelo”,
explicitada acima através da referência à ciência da complexidade, pode ser descrita
também através da referência à arte. A referência artística que apresento participa
ativamente da construção actancial onde está implicado o ver-ler, constituindo o
desvelamento relacionado à ordem da visão, relacionada ao dizer/fazer, que carrega
em segredo a ordem da leitura
135
, que, por sua vez, se relaciona ao dizer/pensar.
Neste outro modo de descrever a relação paradoxal entre o convergente e o
paralelo, próprio da arte, faço referência à obra “Convergências Paralelas” do artista
norte-americano Ernesto Klar
136
, que trabalha com som e media em design
tecnológico. Esta obra é uma instalação audiovisual, que tem sido vista em diversas
exposições internacionais, tendo participado, inclusive, em 2008 da mostra File POA
no Santander Cultural
137
, quando pude ter contato diretamente com ela.
Na instalação “Convergências Paralelas”, partículas de poeira são
rastreadas ao passar por um feixe de luz, sendo visualizadas e sonorizadas em
tempo real por um software customizado. A questão que aproxima esta obra/
instalação deste texto é a presença da poética da revelação do intangível,
construída no desenho de traços, sincronizando uma experiência audiovisual.
134
Já se mostra neste modo de “desenhar” através da coleta a presença da mais nova aliança realizada pela área
artística: o curador.
135
Isto também me faz lembrar da técnica do “texto escondido” que passa a ser utilizado na televisão digital, na
atualidade, que tem o objetivo de tornar o veículo mais inclusivo, passando para o século XXI na tentativa de
definir uma abrangência total, atendendo, inclusive, a necessidades especiais.
136
http://www.klaresque.org/
137
File POA_2008. File é Festival Internacional de Linguagem Eletrônica organização cultural com a meta de
desenvolver e divulgar as artes, tecnologias e pesquisas científicas, por meio de exposições, debates, palestras e
cursos. Também constitui uma ponte entre a comunidade internacional de artistas, pesquisadores, instituições e
intelectuais que participam do panorama atual da arte e tecnologia.
3-124
Por outro lado, esta aproximação ultrapassa a manifestação e se aprofunda,
ao ser desvelado que a utilização de grãos de poeira para a construção da imagem
guarda uma referência histórica ao princípio do próprio dispositivo utilizado, fazendo
convergir os conceitos: computar/escrever/desenhar, os quais também se
apresentam em um objeto-instrumento que se relaciona à origem dos três conceitos:
o ábaco.
Considerado também como o primeiro computador, inicialmente, o ábaco
consistia simplesmente de uma superfície coberta por uma fina camada de areia
usada para o delineamento da geometria e da escrita. A partir desta referência,
verifica-se que o movimento da linha se articula ao signo da linguagem e também
como princípio elementar de uma forma desdobrada em arte, que se presentifica
como som no espaço e como uma imagem tornada visível na tela.
Desse modo, são apresentadas convergências referentes à ancestralidade
operacional correspondente a diferentes áreas do conhecimento, que, na atualidade,
simplesmente são percebidas como relações multidisciplinares e interdisciplinares.
Estas diferentes áreas do conhecimento têm sido constituídas freqüentemente tanto
em paralelos quanto em novas convergências e, eventualmente, têm sido
provocadas pela operacionalidade atual que possibilita a “instalação” como um novo
espaço de imbricação, em uma sobreposição que define uma nova forma artística
através da operacionalidade tecnológica.
Figura 05: imagem da instalação “Convergências Paralelas” de Ernesto Klar
138
.
138
Encontrada no endereço eletrônico:
http://www.filefestival.org/site_2007/pop_trabalho.asp?id_trabalho=1829&acao=visualizar&cd_idioma=2
3-125
Este desvio
139
, por onde se pode vir a encontrar nesta tese também a arte
como presença e epifania, tem-se definido claramente por um percurso funcional
140
e segue em busca da explicitação do complexo, prosseguindo no caminho aberto
pelas Teorias Semióticas que emergiram no século XX. Está sendo definido entre a
Teoria da Linguagem e a Lingüística, com o foco na Semiótica do Texto, ao se
construir como um Processo Geracional de Significação, o qual foi fundado nas
Ciências Sociais, tendo em Greimas um de seus principais pesquisadores.
Decorrente desta mesma orientação, eu tenho buscado no último livro de
Greimas, De la imperfección, um outro ponto de entrecruzamento com a arte. Neste
último texto de Greimas, onde a reflexão e a construção do pensamento enunciado
se desenvolvem na busca pelo sentido, a partir de um sentido dado ao se deparar
com a enunciação presente na arte, eu vejo a possibilidade da “entrevisão” de um
modo de conhecimento que reitera o modo oblíquo que, freqüentemente, caracteriza
o acesso ao conhecimento da arte.
Esta reiteração, que também é fruto da confirmação da necessidade de
mediação na construção do sentido, apresenta a arte ao apontá-la como um sentido
dado. E, a partir de um “jogo de espelhos” em sistemas acoplados, constituído como
um processo geracional da significação, acaba por apontar, de certa maneira, a
139
Considero o conceito de “desvio” uma das chaves da abordagem semiótica empreendida nesse texto. Desvio é
um conceito abordado por Greimas em seu Dicionário de Semiótica, 1979, nas páginas 115 e 116, a partir de
quatro referenciais: 1. As reflexões de Saussure sobre a fala, a qual é vista como um conjunto de desvios
individuais, produzidos pelo usuário da língua. 2. As pesquisas de Todorov dos desvios semânticos relacionados
ao controle sintático. 3. A metodologia estatística introduzida na Lingüística, substituindo o desvio estilístico de
caráter intuitivo por desvios significativos objetivamente calculados. 4. A proposta de Merleau-Ponty de
substituição do cálculo dos desvios pelo conceito de deformação coerente das estruturas, a partir do qual seria
possível delinear uma originalidade semântica. É importante salientar que os quatro referenciais nos permitem
vislumbrar um eixo que se desdobra de uma abordagem perspectiva com o foco na representação, resgatando o
negativo como o foco de abordagem, até uma abordagem topológica, onde todas as estruturas envolvidas são
significativas e participam da determinação do objeto. É também importante verificar que a complexidade traz
simultaneamente uma ampliação do desvio, o qual passará de uma situação periférica a uma situação central,
tornando possível a mudança qualitativa.
140
É significativo a este texto buscar o sentido do termo “função”. Esta opção pelo “percurso funcional” está de
acordo com as referências utilizadas por Greimas que a função e o aspecto funcional a partir de três acepções
diferentes: no sentido instrumental ligado à forma, à estrutura e à finalidade; no sentido organicista com
inspiração biológica conciliando função e estrutura, na função sintática como dimensão da organização, nas
funções da linguagem como esferas daão que concorrem para um mesmo fim, nas funções sintagmáticas que
permitem diferentes narrativas e nas funções ideológicas que permitem campos semânticos particulares; e ainda
uma terceira acepção que define uma interpretação lógico-matemática advinda de Hjelmslev considerando-a uma
relação entre duas variáveis em inter-relação recíproca. Para Hjelmslev a função semiótica define uma
pressuposição recíproca entre a forma da expressão e a forma do conteúdo, sendo constitutiva de signos e
doadora de sentido.
3-126
impossibilidade de acesso direto ao conhecimento da arte, sendo que isso se
pelo fato desse acesso ser considerado sempre através de uma relação do
conhecimento com uma via estabelecida, sem curvas, ziguezagues ou
acoplamentos, definida por um caminho que é dito como direto, o qual, dentro do
pensamento ocidental é atribuído à lógica.
A questão que venho desenvolvendo em torno desse modo de abordagem
advém da construção do processo gerativo da significação a partir de um texto ou de
um sentido dado, caracterizado no método investigativo fundado por Greimas; onde
o sentido emerge do sentido, mas apresenta-se, principalmente, na ênfase dada à
própria construção como foco desta abordagem. Enfocando a operacionalidade,
tenho obtido uma área de focagem que se no tempo e também o abrange,
definindo na geratividade da significação advinda de Greimas uma diferença que
caracteriza a busca pelo conhecimento nas ciências humanas, mas a perpassa e
inclui as próprias mudanças do conhecimento ocorridas no século XX.
Nessa direção, o trabalho tem-se processado a partir do Currículo do Curso
de Formação Superior em Artes Visuais da UFRGS, o qual é abordado como um
texto e focalizado como um caminho de transformação, embora defina,
simultaneamente, a permanência através do que se poderia chamar de consolidação
da área artística ao lado das outras áreas do conhecimento na Universidade. O
“modelo da mudança” é apresentado pelo Currículo do Curso, definido no Plano
Pedagógico do Curso, e se encontra atualmente em implementação no Instituto de
Artes da Universidade, caracterizando e também incluindo o estado de
transformação contingente que ocorre concomitantemente a este estudo.
Nesse mesmo sentido, a incompletude presente no texto do currículo que se
evidencia concretamente no primeiro exercício de sua função, ou seja, na
implementação, torna necessário definir formas de construção na geração de sentido
que precisam ser elaboradas por um outro viés. Isso acarreta um processo gerado
na própria heterogeneidade constitutiva da mudança, assaz constitutiva de toda e
qualquer mudança, definindo o currículo como um objeto semiótico abordado em
diferentes operacionalidades, que o apresentam a partir de diferentes regimes de
3-127
visibilidade
141
, e que se constituem em continuidade ao processo anterior a essa
implementação
142
. Definem-se a partir das relações do ver-ler, onde está implicado o
ver-não ler e o ler-não ver que estão sendo construídos como chave de comutação
através de mapas, diagramas e dispositivos.
Ao operacionalizar a mudança através de metáforas e imagens constituídas
em figuras da narrativa, estou também definindo distintos acessos em caminhos
textuais pelos quais a narratividade vai-se instaurando nas diversas posições e
estados do objeto de estudo, e, dessa forma, a estrutura curricular se reconstitui em
um novo corpo, associando essa estrutura a esse corpo que vai sendo gerado no
tempo sem renunciar ao próprio tempo que o constitui, sendo por isso acentuada a
multiplicidade em detrimento da unidade.
Nesse sentido a multiplicidade se apresenta como um conjunto constituído e
articulado em reciprocidade a uma positividade ao se constituir junto ao modo
positivo da unidade, e, justamente, partindo desse conjunto: unidade e
multiplicidade. Esse conjunto é visto como ponto um de abordagem ao resgatar
estados anteriores em composições que passam a se dar como séries infinitas.
Articulando estados atuais aos estados anteriores, o desdobramento semântico vai
reapresentando a unidade, a exemplo do que ocorre na atualidade, em que as
codificações presentes na linguagem da máquina definida como combinações de
zero e um são infinitas, traduzindo a linguagem em diferentes formas, mas,
principalmente, impedindo-a de ser confundida com o uniforme.
A uniformidade também é imediatamente afastada, quando me deparo com
a função de professora formadora, estando investida, ao mesmo tempo, da função
de pesquisadora no caminho escolhido para o desenvolvimento da pesquisa. O fato
141
Regime de visibilidade define a dependência que vai sendo criada entre as palavras ou entre as palavras e as
orações utilizadas nos enunciados. Entretanto, no texto o conceito se estende às relações de dependência entre
naturezas diversas, que incluem figuras e imagens que vão sendo apresentadas no texto, enfatizando um processo
de enunciação, ao enfatizar as relações que tornam dependentes os diversos contextos articulados.
142
O processo anterior se manifesta neste trabalho tanto em relação à legislação e estrutura curricular como ao
exercício do currículo anterior levado a termo pela comunidade acadêmica, definindo um contexto que contém
quase a totalidade do corpo docente e funcional e uma parte significativa do corpo discente, pois a
implementação do Currículo atual dá-se em concomitância ao processo de extinção do Currículo anterior. Nesse
sentido pode-se dizer que a manifestação do processo anterior é, em certa medida, simultânea e anterior ao
processo atual, o que define não somente uma dependência, mas a contaminação da estrutura curricular que está
sendo implementada.
3-128
de saber que minha responsabilidade está definida por um grupo de disciplinas que
são intrínsecas ao currículo torna este saber-conhecer simultaneamente constitutivo
do próprio objeto da pesquisa. Entretanto, é percebendo esta dupla função,
professora-pesquisadora, que tenho a possibilidade de me reportar para fora do
objeto de pesquisa, e me deparar também com a função de curadora, o que me leva
a pinçar, “elencando” ou enlaçando, ou ainda, simplesmente, cuidando e
diligenciando, ao “iluminar” somente as questões que possam significar a esse texto.
Neste sentido, freqüentemente, como pesquisadora professora eu me
reporto à experiência do currículo anterior, descrevendo e estabelecendo quadros de
referência que definem estados comparativos, ou mesmo construindo/
desconstruindo através de modelos operacionais. Desta forma, eu tenho provido
alguns referenciais engendrados em construção semiótica, bem como possibilitado o
desenvolvimento de algumas semioses anunciadas na proposta.
Esta situação que caracteriza o estado da arte da pesquisa, onde me vejo
como professora-pesquisadora, de onde decorre a função de curadora, permitindo
uma mobilidade estendida para dentro e para fora do objeto abordado, alia-se à
necessidade de identificar mais detalhadamente um outro perfil de formação,
definido inicialmente como limite e escopo do Curso de Artes Visuais em que o foco
é a formação do artista.
Este perfil se apresenta nos cursos de Graduação caracterizados atualmente
como Bacharelados, os quais, tradicionalmente, nas Instituições de Ensino Superior,
fornecem a titulação de bacharel
143
, ou graduado, relacionada à especificidade da
área de conhecimento correspondente, categorizada por um sistema curricular que é
significativo a esta formação. Além, é claro, da formação do artista ser a portadora
da origem da área de conhecimento de Artes Visuais considerada como atualização
da modalidade de conhecimento de Artes Plásticas.
143
Bacharel, conforme o Dicionário Aurélio Básico (1988), refere-se ao indivíduo que obteve o primeiro grau de
formatura em faculdade de direito, Bacharelado distingue tanto o grau como o curso para a obtenção do grau.
Sendo assim se utiliza tanto graduado como bacharel em relação ao primeiro grau da formação superior.
Também é interessante trazer à luz o sentido do verbo “bacharelar”, que além de significar colar grau de
bacharel, para os lusitanos significa tagarelar, falar muito e despropositadamente.
3-129
Estar nessa situação e lugar, abarcando o perfil de artista que obtive em
minha própria formação inicial, faz com que eu ultrapasse as metáforas, os
dispositivos, as imagens, as figuras, e tente reunir todos em uma alegoria construída
como uma obra “in situ”
144
como uma referência a essa minha formação superior
inicial, que, para além da especificidade originária do curso, articula a função de
artista às demais funções que venho trabalhando desde o início desta tese.
Igualmente, por essa razão, antes de começar a construção da alegoria
anunciada, busco na arte do artista Robert Irwin
145
uma outra aproximação com o
pensamento de Greimas em uma nova interlocução com a arte. Irwin iniciou sua
caminhada artística modificando o espaço com o objetivo de enfocar a percepção,
pode-se afirmar que sua intenção era “fazer a percepção vir à luz”, e, nessa direção,
acabou por modificar a arte, redefinindo-a no próprio fenômeno para abranger uma
nova percepção.
Desse modo, a experiência da arte também foi redefinida. Esta redefinição
da experiência estruturada no trabalho de Irwin deixa de caracterizar uma relação de
completude/incompletude definida na obra de arte, e passa a definir o limite da
percepção de um lugar ou de uma situação presentificado pelo artista. Com esse
novo universo da experiência da arte, o artista define um quadro de referência
operativo, invertendo a situação anterior contemplativa, diretamente relacionada à
obra de arte, contrapondo e simultaneamente inserindo a presença imediata da arte
na natureza mediada pela arte, passando a trabalhar diretamente na
operacionalidade de uma nova consciência estética.
144
In Situ é um termo latino que significa “no lugar”. Começou a ser utilizado na arte na década de 80, definindo
uma obra que é realizada especificamente para um lugar ou um ambiente. A definição também confirma o
funcionamento de tudo que se apresenta como um sistema, enfatizando uma posição topológica. A arte In Situ é
abordada por Ana Barros, 1999, em “A arte da percepção”. Entretanto é importante frisar que na denominação
In situ” está presente também o paradigma da arte acadêmica, por uma referência ao sistema perspectivo.
145
Robert Irwin é um artista norte-americano, nascido em 1928, na Califórnia, e que acabou por desenvolver um
trabalho que se afasta do expressionismo abstrato de Nova York no pós-guerra. Centra sua investigação artística
na percepção, transformando a arte em um fenômeno, passando a chamá-la de “Conditional Art” correspondendo
a lugares específicos, mas também a situações específicas. A mudança trabalhada pelo artista se define na
experiência da arte, pois esta não se localiza mais no objeto artístico, mas na própria experiência perceptiva,
sendo nesta que o artista vai trabalhar individuando um espaço através da colocação de limites à experiência
perceptiva deste. ( Anna Barros, 1999).
3-130
Figura 06: Filigreed Line, 1980, Instalação de Robert Irwin, in: Ana Barros, 1999, p. 179.
A instalação “Filigreed Line” de Robert Irwin apresenta um plano de metal
marchetado e recortado que reflete e absorve a luz, tornando presente a interação
da luz com o espaço, tal como uma filigrana de ouro e prata, mas, simultaneamente,
evidenciando-a como uma coisa vã, uma ninharia. Para Irwin, ao artista cabe expor/
instalar algo que já está presente na natureza e simplesmente ainda não é percebido
como presença imediata, necessitando, por este motivo, da mediação da arte.
Esse caráter de presença apontado por Irwin na arte está muito próximo do
pensamento de Greimas, embora para Greimas todo e qualquer ser humano teria
seu momento de “percepção estética” sem a necessidade de estetização do mundo,
pois, para ele, somos seres dotados de um sentimento inerente do belo. Este
sentimento definido como estesia é também o estado necessário para o semioticista
compreender como a “experiência sensível faz sentido”, tal como afirmou Landowski
(2005).
Na alegoria que começo a construir como um novo mapa sobreposto ao
desenho do currículo, sintonizada com o estado necessário ao semioticista, me
aproximo do pensamento de Greimas, ao provocar uma fratura no tecido com um
rompimento a partir do encontro de uma presença imanente ao sensível. E, por outro
lado, me aproximo da posição artística de Irwin, pois faço com que esta presença
seja percebida de imediato, redimensionando a exposição do objeto em novos
limites que, embora estejam contidos no próprio objeto, ou seja, no currículo, ao
3-131
operacionalizar um outro modo de perceber o espaço curricular, transformo a
percepção por um caminho que também é estético.
Nesse percurso, através do dispositivo alegórico, surge outra figura
actancial que se constitui, ao ser definida pela posição de um “condutor” no interior
de um veículo em deslocamento por uma via com diversas pistas, enfatizando, a
partir desse lugar, os novos limites necessários à visão. Deste modo, posso afirmar,
como um condutor de um veículo
146
, que estar situado na estrutura curricular do
curso é também estar em deslocamento.
Os limites se transformam, manifestando-se através de um dispositivo
alegórico que “vê” o currículo como uma via com diversas pistas, todas de mão
única. Desse novo lugar, as disciplinas, travestidas de pistas, permitem ao discente
do curso transportes com velocidades diferenciadas em deslocamentos simultâneos,
definindo distintos estados em relação ao conjunto curricular, comprovados pelo
ordenamento
147
do corpo discente, sistematizado a partir da otimização do
aproveitamento semestral das disciplinas computadas e definidas em um Histórico
Escolar individualizado, emitido semestralmente pela Instituição.
As pistas-disciplinas-veículos, além de responder às sinalizações específicas
encontradas na estrutura curricular enfatizadas por súmulas que definem conteúdos
e conceitos como princípios de comportamentos e ações próprias para o trânsito
148
,
considerando cada pista no contexto do Projeto Pedagógico do Curso, se referem
também à possibilidade de deslocamento definido pelo tráfego de distintos veículos
que ali recorrem e se deslocam em diferentes velocidades, correspondendo ao
desenvolvimento das diversas disciplinas.
146
A língua portuguesa tem algumas diferenças nos países de língua lusófona que são verdadeiras pérolas à
espera de serem colhidas: automóvel, hoje ampliado para veículo automotor, abrangendo variados tipos de
motores, em Portugal é chamado de autocarro. Veículo se refere ao meio utilizado para transportar ou conduzir
pessoas de um lugar para outro. Mas no dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1988) ainda está definido
também como significado de veículo tudo aquilo que transmite ou conduz, além daquilo que promove ou auxilia.
147
O ordenamento do corpo discente é um ganho advindo da informatização dos processos administrativo-
acadêmicos da universidade, possibilitando detectar organizações micrológicas relacionadas ao processo de
gestão do aproveitamento curricular dos alunos.
148
Trânsito está sendo utilizado como uma palavra que define tanto o ato ou efeito de passar, passagem, como no
sentido restrito de tráfego ligado à circulação, articulando a movimentação de veículos e pessoas.
3-132
Todo este sistema dá-se em conformidade com a consciência profissional de
seus condutores/professores/docentes do curso, os quais têm que estar em
permanente vigilância, atentos à mecânica do carro e ao sistema coletivo de tráfego,
mas também à especificidade do grupo de alunos que está sendo conduzido: os
discentes do curso de formação superior em Artes Visuais. Estes, com freqüência,
se apresentam como indivíduos/alunos/estudantes que estão, simultaneamente,
sendo guiados, conduzidos por veículos distintos, quer sejam considerados quanto
ao deslocamento que perfazem, ou também quanto à disposição da condução.
E, por fim, todo esse processo é sistematicamente reiterado ou renovado
semestralmente até a conclusão do curso. A conclusão é marcada por certo
esgotamento do processo e está definida transversalmente por uma posição focada
no discente
149
, o qual, reposicionado como formando, expõe o seu trabalho para o
meio acadêmico, defendendo publicamente a nova posição advinda do perfil de sua
formação artística, possibilitando “flashes” do estado da arte do curso a cada
semestre através do controle exercido institucionalmente. A relação transversal, que
define ao final do curso o esgotamento do processo tendo como centro o discente
que, a partir daí será dado como egresso, é uma relação que vai se esboçando ao
longo do tempo de formação.
Considerando a “via curricular” como um complexo sistema de trânsito, é
impossível descartar os cruzamentos desse sistema, pois estes caracterizam
qualquer via, com seus respectivos semáforos e indicadores do trânsito que por ali
circula. Nessa complexidade, é desaconselhável encobrir ou esconder o fato de uma
estrutura curricular, na atualidade, não constituir uma estrutura acadêmica voltada
apenas para o interior da universidade. Principalmente porque isso se revela em
“exposição”, se o foco for um curso de artes, que também caracteriza uma
manifestação do saber/conhecer humano com uma natureza complexa, abrigando
diversas naturezas, sendo algumas mais próximas do senso comum do que do
149
Discente é o antônimo de docente, relacionando aquele que aprende com aquele que ensina, iluminando-os no
processo que os relaciona, quer se focalize um ou o outro são inseparáveis. Já Aluno tem um significado que
explicita um sentido negativo, definindo aquele que não tem conhecimento ou aquele que tem escassos
conhecimentos em uma determinada área. Na relação aluno e professor, os termos não são interdependentes
como na relação docente e discente, pois ao aluno é atribuída a falta, e ao professor, o “excesso”, pois a este está
implícita uma dupla aliança com o ensino e com a verdade (talvez se possa ler esta espessura geradora do
excesso como uma sobreposição de prática e teoria).
3-133
conhecimento cognitivo-instrumental instituído como racionalidade hegemônica no
seio da universidade moderna desdenhando de qualquer outro tipo de racionalidade.
A complexidade da arte acoplada ao sistema cultural faz do currículo do
curso de formação artística uma via com muitos cruzamentos que vão definindo um
desenvolvimento perspectivado pelo grau de formação. Embora sendo realizado
através de inúmeros deslocamentos em distintas velocidades, incluindo pequenas
paradas, existem alguns momentos em que podem ser definidas micropassagens
adicionais, acrescentando à via principal alguns caminhos alternativos. Inclusive, na
atualidade, estes caminhos adicionais ocupam também um espaço definido
curricularmente, com o nome de “atividades complementares”
150
.
Ao pensar nestes acréscimos curriculares, aparentemente mínimos e
insignificantes, determinados por uma legislação nacional, tal como as atividades
complementares”, e relacionar estas atividades ao campo específico da arte,
percebo que podem vir a contribuir para a legitimação do currículo dentro do meio
artístico, e, tal como a inserção de um “motor” em uma estrutura que não tem um
movimento próprio, também contribuir para uma nova transformação curricular,
sendo esta, por sua vez, ao inverso, determinada pela absorção dos conflitos
inerentes à diversidade do sistema cultural.
Do interior de alguns destes veículos, os quais correspondem, nesta
alegoria, às disciplinas que ministro, eu comprovo a necessidade do olhar em
retrovisão, considerando-as em semelhança institucional às outras disciplinas que
compõem o currículo, pois a visão necessária ao docente participante do Plano
Pedagógico do Curso e, conseqüentemente, do Currículo do Curso, se configura
sempre pelo conjunto definido pela estrutura curricular do curso. Desse modo, com a
retrovisão, o mapeamento da posição e do momento é apresentado em
simultaneidade a uma visão frontal que vai sendo perspectivada pelo caminho em
desenvolvimento. Neste sentido a perspectiva da finalização do curso é tão
150
Atividades Complementares, diferentemente do que afirmou Charles Harrison em seu texto “O ensino da arte
conceitual” referido na nota 127, correspondem na Estrutura Curricular do Curso à articulação do aluno ao
sistema cultural ou ao sistema social, prevendo o registro de créditos somados aos créditos disciplinares,
conforme sua atuação efetiva dentro do sistema; prevendo, além da participação em Exposições ou Salões de
Arte, alguns novos papéis como o que se define na atuação em Instituições Culturais ou em Museus ou Bienais
de Arte como mediadores, participando dos projetos educativos institucionais.
3-134
importante quanto a topologia construída a cada etapa, pois os estados não se
constituem separadamente, mas sim em reciprocidade.
A retrovisão
151
advém da inscrição da visão a partir de lugares
caracterizados por um sistema articulado interior/exterior, no qual os deslocamentos
ou transportes são múltiplos e simultâneos e seguem em direção a um mesmo fim. A
retrovisão está definida por um encerramento em um interior especificado como um
veículo que está dado separadamente, em diferença ao meio externo, mas também
se constitui como parte desse meio externo, ao se articular em semelhança com os
outros veículos. Nesse sentido, pode ser afirmado que qualquer professor
constituinte do corpo docente do curso é responsável pela viabilização da estrutura
curricular do curso de formação, sendo participante da formação do discente. E,
também, pode ser afirmado que todo professor do curso é um dos determinantes
efetivos do perfil emergente, compartilhando da construção do perfil artístico de cada
formando e também do estado da arte do curso apresentado em “flash”
152
a cada
final de semestre.
A abordagem da competência curricular do Curso de Bacharelado em Artes
Visuais tem o artista como referência do perfil de formação, entretanto, na
atualidade, como essa formação se multiplica em artista-pesquisador-curador, esta
competência passa também a ser visualizada por meio de um jogo de espelhos
constituídos em retrovisão, permitindo o deslocamento sem desconstruir a
imbricação que ocorre no espaço e também no tempo, permitindo relacionar a
posição e o momento em permutação ou em multiplicação, potencializando a
formação.
151
A retrovisão resgata a visão periférica que foi desprezada pela perspectiva renascentista e esta sendo
construída aqui como uma visão que opera sobre os significados ou sobre os estados, e também sobre as
relações. Está em sintonia com a teoria sistêmica que pressupõe a retroalimentação. A retroalimentação ou
realimentação é o que permite o controle, tendo como base o desempenho efetivo para a realização do
desempenho previsto. É necessário que esse controle ocorra tanto no sentido positivo, como no sentido negativo
ao sistema. A retroalimentação negativa reduz o desvio recuperando a meta final do sistema, e a
retroalimentação positiva conduz à mudança do sistema, a uma ruptura, se o desvio for pequeno, ou a uma
mudança qualitativa, se o desvio for grande, dando um salto qualitativo para novas formas de funcionamento. A
esse conjunto de processos, ditos circulares, se atribuiu um novo campo chamado de Cibernética, cuja palavra
vem do grego kybernetes e significa condutor. Conforme Maria José Vasconcellos, Pensamento Sistêmico, 2005.
152
Tal como um lampejo, um relâmpago, ou ainda um piscar de olhos. O uso da palavra em inglês traz a
referência tanto do brilho como do apagamento presente no significado.
3-135
Esse modo de visão se popularizou no século XX, e a experiência anterior
com a retrovisão decorre de uma referência única, dada exclusivamente pela
narrativa mítica
153
. A atualização da retrovisão dá-se especificamente na
operacionalidade que se torna necessária segundo a criação de veículos
automotores, construídos a partir da revolução industrial no final do século XIX, se
multiplicando no mundo todo a partir do século XX.
Transformando e adaptando constantemente o design desses veículos, em
uma reiterada evolução operacional, atingiu-se um modelo de razoável performance.
Este modelo é definido também por um conjunto de práticas compartilhadas dentro
de um mesmo sistema: basicamente um conjunto articulado de três espelhos, que
permite mapear o espaço que se estende da linha da visão periférica para trás,
abrangendo o espaço à direita, à esquerda e também o espaço posterior, permitindo
a visão, inclusive, daquele que se desloca exatamente atrás, sem a necessidade de
voltar a cabeça. O movimento pode ser realizado unicamente com o deslizamento do
olhar
154
, para visualizar qualquer um destes espaços.
Desse modo, todo o deslocamento presentifica o processo como coletivo,
mesmo que, naquele exato momento, o veículo esteja trafegando sozinho, pois o
acoplamento do sistema de movimentação mecânica ao sistema de observação
estético-orgânico definido com a inclusão do jogo de retrovisores, possibilitando ao
mesmo tempo o ver/não ler e o não ver/ler que determina o mostrar/esconder como
153
O mito referido aqui é contado por Homero e relata a relação de Perseu, que se utilizou de um espelho em
retrovisão para vencer a Medusa. Diferentemente do mito de Narciso, tradicionalmente relacionado ao artista,
que se apaixona por sua própria imagem sendo, por este motivo, eliminado; neste caso, Perseu utiliza o espelho
pressupondo o ver sem ser visto (nem por si mesmo) e o permitir ao outro a visão de si mesmo como um modo
de eliminá-lo. A diferença que está sendo construída em relação à retrovisão mítica foi possibilitada somente a
partir do século XX, com o surgimento de veículos automotores que recobrem o ser humano, permitindo
deslocamentos simultâneos articulados a outros deslocamentos, tal como uma “casa” dotada de mobilidade, ou
um “sobre-corpo”. O corpo, sendo, desse modo, revestido, encontra-se situado em um novo lugar, separado do
meio, mas com a possibilidade de definição externa gerada por seu condutor, sem que ele tenha que deixar o
interior do veículo, simplesmente a partir de um sistema de retrovisão e também de um sistema de sinais
convencionados. A questão então não é mais ver sem ser visto, mas ser visto sem que se mostre, permitindo uma
visão compartilhada como única possibilidade de tráfego, como um sistema que é essencialmente coletivo, sem a
eliminação do outro e principalmente através do outro, como chave de sua própria referência.
154
É claro que para o século XXI este sistema está obsoleto e começa a ser substituído por atualizados
sistemas articulados a GPS, Sistema de Posicionamento Global, cujo posicionamento é dado por satélite norte-
americano, e está sendo utilizado ligando o sistema mecânico do veículo a um sistema computadorizado,
auxiliando o condutor ou mesmo substituindo-o no deslocamento com o veículo, talvez com uma abrangência
impossível para o ser humano, entretanto com um significado que deixa clara a nova natureza híbrida que o
define.
3-136
condição do próprio tráfego, torna evidente os primórdios da sociedade da
informação e conhecimento que compartilhamos e onde passamos todos a um
processo coletivo de desenvolvimento.
Como todos os dispositivos que, de certo modo, funcionam como extensores
do sujeito, o retrovisor possibilita sempre definir uma performance harmonizada com
os demais “veículos dotados de sujeitos condutores” também em deslocamento. É
um sistema que se torna possível pela operação da imagem apropriada pelo sujeito
em retroação sobre a nova imagem, estruturando uma ação do indivíduo sobre o
objeto. Essa ação realizada na apropriação e retroação sobre a imagem estrutura-se
em um caminho que se estende desde as manifestações sensório-motoras até as
abstrações refletidas, num processo contínuo de trocas do nível concreto para o
abstrato e vice-versa, onde idéias passam a operar diretamente sobre idéias. Onde a
operação no sistema de retrovisão é vista como uma operação das imagens sobre
as imagens, tendo como fim a performance, que sempre se como uma ação
compartilhada, abarcando comportamentos e atitudes de toda a comunidade
envolvida.
Esse “trânsito” que vai caracterizando semestralmente o desenvolvimento
curricular é intenso. E a comunidade acadêmica constituinte do curso é totalmente
participante/constituída pelo próprio sistema. A referência para a mobilidade do
sistema dá-se precisamente através de uma articulação do espaço topológico e do
espaço perspectivo, pois o currículo é definido a partir de uma meta estabelecida
como um projeto de formação ocorrido no tempo, projetado no currículo em
prospectiva, mas que, entretanto, somente se concretiza com o cumprimento de
todas as propriedades que são comuns a todos os “veículos”, definindo através da
reiteração a organização e planejamento curricular. Desse modo, entre a topologia e
a perspectiva ocorre, reiteradamente, um salto do concreto ao abstrato, que se
sempre em reversibilidade, podendo em qualquer momento voltar ao concreto, e
assim tornar possível o ver-não ler e o ler-não ver constituído pela simultânea
multiplicidade da direção do olhar.
É essa visão, com um olhar articulado direta e indiretamente, e, sempre em
entrecruzamento, definindo o espaço com uma orientação à frente/atrás e à
3-137
direita/esquerda, tendo como modelo a visão binocular, necessária ao espaço
interno da estrutura curricular significada por um panorama
155
em constante
permanência e mudança, que define o ser-estar-fazer do artista-professor-
pesquisador, participante do corpo docente do ensino superior, atuando na formação
do artista. Nessa alegoria que vai sendo construída, esta visão está sendo figurada
pela função de “condutor”, tendo como veículo uma das disciplinas estruturadas na
grade curricular do Curso de Bacharelado em Artes Visuais, definindo um perfil de
formação através de uma articulação funcional que se em retroalimentação do
artista-pesquisador-curador.
Na direção desse veículo, o condutor encontra-se dentro de um espaço
fechado e vê-se em deslocamento, numa velocidade alternadamente construída e
desconstruída entre ver-saber-ler pelo movimento simultâneo dos outros veículos.
Desse modo, verifica que a todos é assegurado o êxito da performance, e isso se
deve a um sistema que permite o trânsito coletivo, organizando-o por meio de sinais
ou ainda de SINAES
156
. Nesse sistema, as responsabilidades são distribuídas
coletivamente e também individualmente, e os indivíduos envolvidos constituem as
ações compartilhadas, mas também as enquadram, misturando na performance o
sujeito e o objeto.
Desse lugar, investida dessa função, focalizada na abordagem alegórica que
enfatiza a interdependência sistêmica concomitantemente à liberdade individual,
onde a tomada de decisão é feita pelo indivíduo e dá-se sempre em contraposição,
155
A idéia de ilusão e imersão participa do universo perceptivo da arte, e o Panorama é uma forma específica da
arte, embora tenha sido marginalizada, tendo sido realizada comercialmente a partir do século XIX,
apresentando-se sempre associada à construção de uma visão coletiva. Está na origem do cinema atual, imagem-
movimento que articula a imagem no espaço e no tempo. Metáforas como “viagens com o olho” enfatizavam a
essência do Panorama como uma suposição de encerramento através da imersão em um espaço potencializado
por um apelo aos sentidos. Entretanto é interessante pensar que do lado oposto a esta situação, onde
aparentemente o tempo é aprisionado no espaço, está o hábito, onde reiteradamente uma parcela configurada
repete incansavelmente a sua forma. Deste jogo entre o efeito da presença e o distanciamento refletido em
reiteração, ou seja, entre duas funções constituintes da arte: espectador e observador, um enfatizando o
testemunho dado pela presença, e o outro enfatizando o cumprimento presente na repetição; a ação humana tem
se elaborado em atitudes individuais que definem comportamentos coletivos e tem na arte um de seus principais
veículos de exposição do compartilhamento a que estão todos submetidos. Oliver Grau (2007).
156
“Sinais” aqui se referem ao sistema de trânsito e os sinais constitutivos da alegoria que está sendo construída,
mas também se refere ao Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior: SINAES, que de certa maneira
fecha o sistema de Ensino Superior em retroalimentação presentificada pela avaliação, a partir do mesmo
princípio da operacionalidade obtida com um jogo de espelhos que permite a retrovisão. E a eficácia ocorre quer
a operacionalidade seja simultânea, como no desenvolvimento da estrutura curricular, quer seja simultânea/
consecutiva, como no sistema externo avaliativo.
3-138
embora pareça depender unicamente de seu livre arbítrio, seleciono como foco
principal a estrita necessidade de acesso aos espelhos, pois eu defino esse acesso
como condição e possibilidade de ação
157
. O jogo de espelhos de um veículo,
articulado ao visor compreendido pelo “vidro pára-brisa” e o sistema de sinais
luminosos, assegurando a visibilidade e a exposição, protegendo contra a poeira e o
vento, ao permitir a visão lateral, direita e esquerda, e a visão posterior, confirma o
caminho percorrido em concomitância ao caminho a percorrer.
Todavia também assegura que todos os envolvidos no sistema possam
transitar sem que tenham escolhido o mesmo percurso, e, se mesmo assim
ocorrerem sobreposições em algumas etapas, estas poderão ser desdobradas,
fazendo do espessamento uma densidade constitutiva das misturas e hibridizações
da arte que caracteriza a atualidade, desfazendo possíveis choques e conflitos, quer
tenham sido gerados por “engarrafamentos”, “enovelamentos” ou “acidentes de
percurso”.
Não obstante, permite também uma espécie de classificação a todos os que
participam dos diversos processos simultâneos. A inserção na estrutura curricular é
considerada em relação ao tempo de participação, o qual está definido em qualidade
e quantidade, acarretando um lugar único no todo e, deste modo, todos os
participantes passam a ter múltiplos lugares, desdobrando-se concretamente em
distintos actantes.
Encarregada da função de professor-formador do ensino superior de Artes
Visuais, ao considerar o currículo do curso como uma estrutura semelhante a uma
via com diversas pistas de mão única, que mantém percursos diferenciados que
correspondem às disciplinas curriculares, eventualmente interceptadas por distintos
cruzamentos com outras vias de mão única e de mão dupla, verifico que a definição
dos conteúdos das disciplinas está determinada por uma construção que estabelece
as importâncias relativas, relacionando todas as disciplinas. Observo que os veículos
157
É interessante perceber que os espelhos funcionam como o plano de metal recortado que o artista Robert
Irwin colocou na natureza, mudando esteticamente a percepção que se teria daquele espaço específico, gerando
uma interação mais harmoniosa além de responsiva. Entretanto a relação alegórica do currículo como uma pista
e as disciplinas como veículos é da ordem da estesia que se encontra no último Greimas, provocando o
rompimento com o que se costuma ver/ler numa estrutura curricular.
3-139
e seus respectivos condutores são imprescindíveis ao tipo de estrutura que está
sendo focalizado como definidora de um currículo, embora perceba que, igualmente,
ambos necessitem de algum tipo de licenciamento para trafegar, mesmo
considerando que organização/estrutura e função sejam intrínsecos ao curso.
Com certa regularidade, docentes e discentes enfrentam conflitos que
emergem de concepções advindas de usos parciais ou fragmentários, que, embora
já estejam caracterizados em um novo desvio da estrutura curricular, com freqüência
apresentam-se em um processo que se mostra/esconde por um descolamento
veículo/condutor. Isso ocorre eventualmente, quando o currículo é considerado pelo
condutor como uma pista de mão dupla ou uma autopista, definindo um descaso
com o objetivo final em prospectiva, ou mesmo uma projeção excessiva direcionada
a este objetivo, ultrapassando os limites temporais estipulados, além de gerar
sobreposição com outros veículos/condutores. Desse modo, dá-se uma espécie de
esquecimento, eliminando-se da memória o fato do currículo se constituir
simplesmente de uma pista de mão única configurada nos próprios veículos que,
coletivamente e simultaneamente, a definem apontando na direção da formação. O
descolamento faz com que o sistema padeça de concepções muito particulares, pois
elas detonam com a pista (o currículo), além de gerar perdas temporárias ou
definitivas, relacionadas tanto ao veículo (a disciplina) como ao condutor (ao
professor).
No mesmo sentido desta desconstrução, o currículo de um curso de
formação vai-se estruturando também no tempo, e esta estruturação é sempre uma
reestruturação que inicia com a fragmentação de sua unidade, pois, deste modo,
separa também a multiplicidade da unidade que o compõe. Entre desconstrução e
reconstrução, o que era múltiplo no seio da unidade passa a ser visto simplesmente
como diferenças, mais ou menos significativas em relação à unidade, entretanto,
com isso, também se inicia um processo de autotransformação que pode levar
muitos anos até culminar com uma mudança realmente significativa, uma mudança
qualitativa, tal como ocorre com a retroalimentação positiva.
Este processo que emerge da fragmentação da unidade e é muitas vezes
assemelhado ao descolamento que eventualmente ocorre entre pista/veículo e
3-140
condutor, está relacionado ao processo chamado de retroalimentação positiva e vai
aumentando lentamente o desvio em relação à meta. Poderá, inclusive, vir a
transformar os limites do curso, levando a uma ampliação da área de conhecimento,
em um processo semelhante a uma estrutura autopoiética, mantendo a organização
e redefinindo totalmente sua estrutura, sempre reiterando a relação entre
conservação e mudança.
Considerando o caminho de transformações ocorridas na estrutura
curricular, desde o surgimento do Curso de Artes Plásticas no Instituto de Belas
Artes do Rio Grande do Sul até a atualidade, onde a estrutura curricular se insere no
Plano Pedagógico do Curso de Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, correspondendo ao currículo que está
sendo abordado neste texto, seleciono três momentos significativos, colocando-os
como chave de comutação, tendo como horizonte a série de mudanças constitutivas
da área de conhecimento da arte.
O campo artístico sempre se caracterizou pela ambigüidade
158
, recuperando
no tempo paradigmas que se contagiam e que o constituem através deste
contágio
159
. A ambigüidade é também para Carlos Zílio (1994) o desafio didático que
possibilita a eficácia de uma Escola de Arte. É no questionamento dos modelos que
se a abertura polissêmica na qual o excesso de significado amplia e multiplica as
relações estabelecidas, pois a arte dá-se sempre como presença. Deste modo, a
multiplicidade da arte é definida em teorias da arte que não se sobrepõem em
158
A ambigüidade foi afirmada na página 47 da Proposta de Tese, no início do terceiro capítulo, como diferente
do campo dicotômico. Pressupõe uma escolha definindo uma paragem, a qual é sempre um enfrentamento
engendrado por um encobrimento ou uma escavação, através do ato combinatório do perder/ ganhar que se na
construção/desconstrução pressuposta pelo jogo do mostrar/esconder da arte.
159
O contágio é visto por Eric Landowski em seu texto “Sobre o contágio”; In: Landowski, E; Dorra, R;
Oliveira, A. C. (Eds.) Semiótica, estesis, estética. SP: EDUC, 1999, p. 269–278. Landowski parte de uma
comparação com o efeito placebo na medicina, nomeando-o como um “efeito sem causa”, reforçando a crença
na eficácia de encadeamentos deterministas. Na construção da idéia do contágio, mostra que mesmo um texto
que não tenha um estatuto de discurso manifestado, atualizado e reconhecível como tal, poderá evidenciar sua
existência a posteriori, como resultado de efeitos sobre um sujeito que institui um texto soberanamente a partir
da captação operada por um sentido presente, sendo sensibilizado simplesmente por certo caráter de presença. É
importante acrescentar ainda que se trata de uma ordem do sensível que se torna inteligível, respondendo a um
modo próprio de estar no mundo, enfatizando uma consciência individual entre o gosto e o mundo-objeto. Para
Landowski, ainda é o “momento em que o mundo adquire sabor”.
3-141
opacidade
160
, e que acabam por, simplesmente, serem organizadas em paradigmas
que são constituídos por aproximações entre teorias.
Um paradigma, conforme Tomas Kuhn (1962), é um conjunto de crenças e
valores subjacentes a uma prática, sendo essencialmente transdisciplinar. E uma
teoria se define por regras e padrões que correspondem à prática, sendo ambas as
definições – paradigma e teoria – significativas para a área do conhecimento da arte.
Este significado advém do fato destas definições nos fazerem compreender como os
paradigmas artísticos podem ser constituídos por várias teorias que
necessariamente não se sobrepõem. As teorias podem-se constituir em séries, tal
como os paradigmas, que também podem acabar por serem reiterados através da
utilização ou da criação de uma nova teoria, ou ainda a partir da criação de um
tratado que organiza as teorias com a finalidade de ensino, articulando um ou mais
paradigmas
161
.
Para o ensino da arte este contágio paradigmático pode ser um dos fatores
que caracterizam o momento atual. E isso se aproxima mais de seu sentido
verdadeiro, quando a escola de artes vai desdobrando-se em transformações ao
longo do tempo, ao renovar os professores que compõem seu quadro docente, sem
quebrar o acordo que a instituiu, e, ao invés disso, concomitantemente, realizando
novos acordos. Esses novos acordos vão sendo realizados, e, em verdade, não
necessitam de consenso, pois o discenso
162
também é considerado como um fator
de renovação, se apresentando como parte definidora do acordo.
O Curso de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS tem-se
desenvolvido desde o seu surgimento por esse modo de contágio, sendo constitutivo
160
A idéia de sobreposição sem opacidade tem por referência o espaço e se relaciona ao princípio da diferença
que é trabalhada em arte através de processos de construção em transparência presente tradicionalmente em
matérias de específica utilização artística, onde tudo pode ser visto, tanto pelas articulações químicas da matéria
escolhida, como pela reação química entre as matérias utilizadas, provocando a detecção de presença na
totalidade do que é visto; o foco está no processo e se desdobra para a ética das relações humanas, pressupondo
sobreposição sem anulação, tendo em vista inclusive sutis diferenças. Mas também se evidencia tal como se tem
sugerido no meio acadêmico institucional através da construção de hierarquias móveis, constituídas por entre-
lugares, ou lugares interconstituídos. Um dos exemplos é docente-discente no enfoque do processo de ensino-
aprendizagem.
161
Como exemplo: “Tratado da Luz e Sombra” de Leonardo da Vinci.
162
A idéia de um acordo realizado abarcando tanto o consenso como o discenso está em Maturana, no livro “Da
Biologia à Psicologia”, POA: Artes dicas, ed., 1998, e também no livro “Del Ser Al Hacer”, Las Orígenes
de la Biologia del Conocer, de Maturana e Bernhard Pörksen, Chile; 2004.
3-142
de sua espessura atual. E na implementação que está sendo realizada na atualidade
do novo currículo do curso, os paradigmas de ensino, que estruturam e dão sentido
para as performances dos professores participantes do quadro efetivo do corpo
docente, se apresentam em hierarquias móveis, sendo possível compreendê-los
ainda como correspondendo às orientações constitutivas do perfil da formação
artística, próprio da Instituição de Ensino Superior participante de uma Universidade
Pública Brasileira também em processo de transformação.
Para esclarecer a idéia de contágio e a presença atestada por essa
abordagem paradigmática, escolho três momentos significativos da história do Curso
que encontram ressonância, manifestando correspondência aos três paradigmas
que o constituem: paradigma acadêmico, paradigma moderno e paradigma
contemporâneo.
Thierry de Duve em 1994, em uma conferência em Winchester School of
Arts, na University of Southampton
163
, na Inglaterra, uma universidade com ênfase
na cooperação interdisciplinar e na colaboração com a indústria, abordou as
mudanças de paradigma no ensino das escolas de arte da Europa e América.
Enfatizou a presença de três modelos no ensino de arte atual, tratando-os de um
modo simplificado e caricatural. Destacou o modelo acadêmico em oposição a um
modelo modernista da Bauhaus, contudo apostando no surgimento de uma nova
atitude de ensino e conseqüentemente em um novo perfil de artista ainda dentro do
modelo modernista tal como uma pós-imagem. Thierry de Duve afirmou que esse
perfil de artista surgiu no sistema da arte em conflito com o perfil de formação das
escolas, e, por isso, com possibilidade de vir a transformar esse ensino, mas
paradoxalmente implodindo com a própria estrutura que lhe acesso ao sistema.
Enfatizando as diferenças dos modelos existentes no ensino atual, detectou a
presença de três eixos distintos: o primeiro, onde está implicado o
talento/método/imitação, o segundo, a criatividade/meio/invenção, e o terceiro, onde
estaria implicada a atitude/prática/desconstrução.
163
DUVE, Thierry de. When form has become attitude – and beyond. The artist and the academy. Southampton:
University of Southampton, 1994. In: Ferreira, Glória; Venâncio Filho, Paulo; Medeiros, Rogério (org.). Arte &
Ensaios, n. 10, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes da UFRJ,
2003. p. 93-105.
3-143
É visível e também previsível a correspondência dos três modelos/eixos,
trazidos por Thierry de Duve aos três paradigmas mencionados acima: acadêmico,
moderno e contemporâneo; embora este último tenha sido definido como pós-
moderno pelo pesquisador
164
, além de ser construído como parte do modernista.
Essa, evidentemente, é a visão própria da filosofia que se volta para a tradição,
olhando para o passado, sem se voltar para o futuro. Contudo, como artista e
professora formadora em uma escola de arte, com formação artística e formação
continuada na filosofia, eu levanto a seguinte questão em relação à visão de Thierry
de Duve: “Será que o conflito provocado pelo terceiro paradigma, conforme a
previsão anunciada pelo pesquisador, poderia trazer a desconstrução também dos
eixos anteriores, somente no transborder do eixo, onde estão implicados:
atitude/prática/desconstrução?” Ou, ainda, “Será que esta desconstrução constitutiva
do terceiro eixo, entretanto presente apenas como parte do mesmo, o poderia
transbordar, evidenciando, prioritariamente ou inicialmente, um “derramamento”
somente para o interior do próprio eixo, tendo em vista a complexa estrutura tripla do
eixo, permitindo uma mudança na arte, não na forma, mas, desta vez, no estado da
arte?”.
Eu relaciono estes questionamentos diretamente à institucionalização da
arte e ao seu novo lugar na sociedade da informação e conhecimento, onde o
cultural acoplado ao social busca na arte a compreensão da diferença, entretanto,
simultaneamente, permitindo que esta lhe escape
165
. Ainda, busco no texto de
Thierry de Duve, na conclusão, ou no encerramento, apontar uma escapatória do
drástico estado da arte considerada em seu ensino, que foi pintado pelo pensador
com todos os aparentes instrumentos correspondentes. Focalizo em seu texto a sua
recusa de sugerir uma “cura”, se dispondo, sim, unicamente ao oferecimento de um
“diagnóstico”, afirmando que não existe “solução pronta”, ou “ready-made”.
E é esta exatamente que caracteriza a interseção do artista, pois, frente a
esta referência, não tem como não se pensar em Duchamp e em sua solução de
164
Thierry de Duve nasceu na Bélgica em 1944. Lecionou estética e semiologia em Bruxelas, e, a partir de 1992,
foi professor de história da arte contemporânea e de estética na Universidade de Ottawa, e, atualmente, é diretor
do programa do Colégio Internacional de Filosofia, da Universidade da Filadélfia.
165
Penso aqui na diferença que faz a diferença como a interface dos subsistemas.
3-144
continuidade para a arte o também chamado “ready-made” que surgiu ainda
dentro da modernidade, contaminando o paradigma moderno. Entretanto Duchamp
teve uma atitude semelhante à relatada por Homero na Odisséia, pois apesar de sua
“solução estar pronta” retirou-se e esperou vinte anos para o amadurecimento da
idéia que explicitava um novo paradigma artístico
166
. Duchamp em sua atitude se
assemelhou a Penélope que ajudou na formação de seu filho Telêmaco, até que
este pudesse ser “acordadopara a cultura de seu próprio tempo. Durante os vinte
anos em que Duchamp “amadurecia sua obra”, simultaneamente evidenciava a
atitude estratégica característica de um jogador de xadrez. A arte, como o jogo, é
uma área onde os conflitos podem ser dirimidos sem eliminar as diferenças, pois, se
assim fosse, se eliminaria a própria arte e também o jogo, considerando que são as
diferenças que os constituem
167
.
No surgimento do Instituto Livre de Belas Artes do Rio Grande do Sul, no
princípio do culo XX, o paradigma acadêmico se instalou em atribuição a um
status legal e legitimo, tendo o aval tanto do governo quanto da sociedade da
época
168
. Ao Instituto de então correspondia o eixo do talento/método/imitação, que,
de certa maneira, supria tanto a mudança necessária à sociedade emergente no Rio
Grande do Sul, para a qual a arte ainda não havia sido chamada, quanto à
conservação presentificada pelo aval do governo que participou da sua fundação.
Entretanto, concomitantemente, à implementação da Escola de Belas Artes junto ao
Conservatório de Música, se acentuava na escola a idéia de autonomia, também
presente, de certo modo, no paradigma acadêmico, com surgimento das “academias
de arte” criadas na Itália no final do Renascimento.
166
Me refiro aqui à obra de Duchamp mencionada anteriormente Etant donnés: 1º) la chute d’eau, 2º) gaz
d’éclairage” de Marcel Duchamp, 1946–66.
167
Faço uma referência ao jogo-brincadeira da arte enfocado na contemporaneidade por Allan Kaprow,
referindo-se a um artista em transformação próprio da atualidade, que, a partir deste novo perfil, poderia
desnudar o mito da cultura por seus artistas mesmo, utilizando uma paráfrase do título da obra de Marcel
Duchamp: “The bride stripped bare by her bachelors”, “A noiva despida por seus celibatários, mesmo”. Allan
Kaprow é conhecido como o criador do happening, nascido em 1927, estudou com John Cage e trabalhou com
Nan June Paik no grupo Fluxus. Estudou na New York University e desenvolveu durante muito tempo atividades
paralelas de artista e professor de arte. Sendo ainda co-diretor do projeto Other Way, em Berkeley, o qual
consistia da introdução de atelieres de artistas em escolas blicas de nível elementar e nível médio. (Revista do
Instituto de Artes da UERJ – Concinnitas – nº 4 e nº 6 – Rio de Janeiro, 2003/ 2004)
168
Conforme Círio Simon houve um predomínio da tradição no Instituto Livre de Belas Artes, a a
administração de Tasso Corrêa, em 1936, diferindo um pouco de Kern e Pesavento que marcam 1930 e 1932
para este mesmo predomínio, tendo o evento externo definido pela implantação da universidade no Brasil. É
somente com Tasso Correa, em 1936 que passa a se chamar Curso de Artes Plásticas, introduzindo a modelagem
e a escultura e também a História da Arte e a Estética. (In: Revista Veritas da PUC-RS, Volume 39, nº. 156,
Porto Alegre, 1994)
3-145
Por outro lado, é importante verificar que o paradigma acadêmico, no que se
refere à questão da autonomia da arte, a qual passou a ser vista a partir do
Renascimento “como coisa mental” afirmação várias vezes reiterada por Leonardo
da Vinci se fortaleceu no Instituto Livre de Belas Artes quando a Escola de Belas
Artes passou a se chamar Escola de Artes, sendo administrada por um professor do
próprio curso: Tasso Corrêa. Essa administração se constituiu com uma
especificidade, que hoje, no sistema universitário, ainda é chamada de acadêmico-
administrativa, diferindo da político-administrativa, podendo-se pensar na relação
dependência/autonomia. Entretanto a administração acadêmico-administrativa
também foi ultrapassada, se for considerado o reconhecimento nacional do curso.
Para corroborar esta afirmação, concomitantemente, neste período, ocorreu a
inserção do ensino da História da Arte na Escola. Articulando curricularmente este
ensino a um eixo paralelo ao ensino ministrado nos atelieres, junto ao Atelier de
Desenho, ao Atelier de Pintura e ao Atelier de Escultura, iniciou-se, uma primeira e
insipiente relação entre o saber-pensar e saber-fazer próprio do conhecimento da
arte.
A arte vista como parte do mundo mental foi o princípio que preconizou a
futura autonomia da área almejada durante o período do Renascimento. Com o
surgimento das academias de arte, os cânones artísticos foram estabelecidos
através do controle e reiteração. Ambas as características canônicas foram
reapresentadas também por Thierry de Duve em seu modelo articulado em eixos,
dessa vez, como método e imitação, engatados ao talento, estabelecendo um eixo
correspondente ao paradigma acadêmico. Contudo, entre método e controle ou
reiteração e imitação, foi gerado, simultaneamente, o princípio de autonomia da área
artística, porém ao custo de um rígido autocontrole, pois nenhuma expressão que
fugisse ao controle das academias teria lugar na sociedade. Dessa forma, o talento
também ficou definido e limitado a um lugar especificado de antemão.
Na história do Instituto de Artes da UFRGS, a autonomia advém da
autorização legal e legítima, e, também, da presença do pensar, entretanto é
importante apontar que não é o pensar da arte, pois este ficou escondido nos
atelieres. A História da Arte é um pensamento sobre a arte: através de uma dobra
3-146
sobre si mesma, a própria arte deu-se como um outro, um outro pensar, advindo da
inserção e inscrição da Arte na História. Desta forma, o paradigma acadêmico
fundante do Instituto Livre de Belas Artes pode ser percebido através de certa forma
de contágio, que foi sendo desenvolvida internamente, ao dobrar o sentido de
autonomia. Fez emergir o paradigma moderno deste outro pensar que a constituiu,
em que, finalmente, a imitação vai sendo desconstruída, deixando no seu lugar a
invenção, que está colocada no século XX também como motor da história presente
na história da arte
169
. Todavia a desconstrução da imitação não implicou também em
eliminação, passando a conviver a imitação e a invenção, em reiterada
desconstrução da primeira pela segunda.
A arte da academia libertou-se do todo, e com a desconstrução da regra
anteriormente imposta pelos cânones acadêmicos, passou a necessitar de
legitimação, precisando ser recontextualizada pelo meio.
A partir desta necessidade define-se um segundo momento relacionado
diretamente ao paradigma moderno, entre legitimação, contexto e meio, esse se
apresenta como legalização, mas vai além, se consolidando com a inserção da arte
na universidade, onde o curso passa a sofrer restrições externas, ganhando e
perdendo com as regulamentações impostas pela institucionalização.
Aqui inicia e se institui a Escola de Artes do Instituto de Belas Artes o qual
já havia deixado de ostentar a palavra Livre em seu nome – a conexão entre a arte e
a educação. Este elo da arte com a educação é legitimado socialmente no início do
século XX, e acaba por se constituir e se mostrar no currículo do curso através de
uma inspiração interna advinda do modelo “Bauhaus”. Este modelo resgata uma
aliança corporativa, articulando o artista ao artesão, em um retorno anterior ao
Renascimento, que ressurge no início do século XX com a emergência do design,
advindo do processo de industrialização da sociedade iniciado no final do culo
XIX.
169
Para Thierry de Duve já não seria história, mas sim trans-história.
3-147
Como todas as alianças da arte, que também podem ser percebidas como o
processo de secularização da arte, a instituição de arte, antes Instituto Livre de
Belas Artes, passou a ser definida como uma instituição de ensino de arte,
adquirindo uma licença para o seu funcionamento no Território Nacional, através de
uma regulamentação externa advinda do Governo Federal.
Posteriormente, no seio da Universidade, a arte, presente à instituição,
sofre nova delimitação e controle externo pela imposição de uma estrutura curricular
redefinida por um currículo mínimo. Entretanto, esta redefinição de limites ganhou
uma configuração especial no curso, acordada em sua própria história, e passando a
fazer parte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tornando-se um de seus
primeiros Institutos, ao custo também da redefinição de seu próprio nome, passando
a se chamar Instituto de Artes.
Nessa história que particulariza o Curso de Artes Plásticas do Instituto de
Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a concorrência entre o
desenho e a pintura sempre foi evidente, e se apresenta no curso, quer seja
considerado do ponto de vista da formação, quer seja considerado a partir do perfil
do artista egresso do curso conforme sua inserção na sociedade. Esta afirmação se
explicita tanto no número de alunos que tem escolhido ao longo do tempo uma ou
outra modalidade, quanto na estrutura curricular originária, na qual estava definida
uma distribuição eqüitativa da carga horária prevista para cada um dos dois
atelieres.
Entretanto, com o parecer 1284/73 que regulamentou a Educação Artística
no Brasil, a partir da Lei 5692 de 1971, definindo a Licenciatura na área de Artes,
possibilitando quatro habilitações: Artes Plásticas, Artes Cênicas, Música e Desenho.
A mudança da estrutura curricular do Curso foi novamente acordada. Desta vez o
acordo definiu uma mistura na qual se reuniu as Artes Plásticas e o Desenho,
explicitada na própria nomenclatura do curso, Curso de Artes Plásticas,
compreendendo os Bacharelados e a Licenciatura, tendo a Licenciatura assumido a
determinação contida na lei, chamando-se Licenciatura em Educação Artística, mas
com habilitação em Desenho e Plástica. Este conjunto de nomes, construídos em
“caixas dentro de caixas”, foi muito pouco percebido, entretanto nesta espessura se
3-148
definia também uma hierarquização da área de Desenho que se apresentou
estruturada no próprio currículo.
Coincidentemente, é esta hierarquia do desenho que esconde/mostra a
sobreposição dos dois paradigmas acadêmico e moderno. Estes paradigmas
perpassam o currículo anterior e, talvez, aí resida uma diferença
quantitativa/qualitativa em relação ao currículo que está sendo implementado
atualmente. A hierarquização do desenho no currículo anterior está caracterizada
por uma estrutura curricular na qual o desenho é desenvolvido como disciplina
específica do início ao final do curso, passando por uma função de
instrumentalização no início do curso. pouco mais de duas décadas atrás a área
de Desenho passou por uma ampliação, quando o desenho se consolidou como
uma linguagem substantiva. A partir de então, o desenho passa a constituir o
currículo também como uma das habilitações curriculares, sem deixar sua definição
como eixo e substrato para as demais habilitações do curso.
O desenho ao ser definido com uma especificidade própria na estrutura
curricular gerada em sobreposição à instrumentalização, a partir de uma descrição
detalhada da estrutura do curso, passou também a possibilitar a observação do
segundo paradigma (moderno), contagiado pelo paradigma anterior (acadêmico),
entretanto, já com vestígios da presença do terceiro paradigma (contemporâneo).
Esse terceiro paradigma, denominado paradigma contemporâneo, está
sendo definido exatamente na passagem abordada por esta tese, que vem
focalizando as transformações que estão ocorrendo no exato momento em que se
passam. Dizem respeito a transformações da arte, mas estão aninhadas em um
conjunto de transformações que vêm sendo gestadas desde a segunda metade do
século XX. Acompanham as grandes transformações do milênio, em que as
mudanças colocam à mão um novo mundo, mas também, evidenciam um novo
modo de ver o mundo.
Interessa perceber a movimentação ampla desse momento que se passa no
qual um novo paradigma vai emergindo, unindo-se ao movimento de transformação
contingente e localizado em uma área do conhecimento que passa a ser
reconhecida, tornando-se necessária para a continuidade do próprio processo.
3-149
Tornando significativa a articulação desses dois momentos àquilo que nos passa,
tenho inscrito nesse enlace a construção e reiteração do conhecimento da arte que
vai se mostrando na implementação da estrutura curricular do curso superior de
Artes Visuais da UFRGS.
Tecendo os fios da enunciação de um posicionado observador/espectador
que vai buscando dispositivos que o façam, em alguns momentos ver-não ler e por
outras vezes não ver-ler, também tenho passado a assumir as posições de um
sujeito do fazer/conhecer, através de um dizer/fazer, o que, com freqüência, e, em
recursividade, acaba definindo um discurso em que a comunicação se instala. Estes
três momentos se entrelaçam adensando o discurso, e, de certa forma, ligam-se
também aos três paradigmas mencionados, possibilitando diferentes percursos
freqüentemente em discenso, mas necessariamente em acordo, estabelecendo
alianças que vão sendo realizadas, sem desprezar os conflitos de idéias, de
concepções e também de performances, mas a partir dos próprios conflitos,
enfatizando e aceitando as diferenças como uma necessária solução de
continuidade.
Para a reapresentação desta complexa articulação, proponho detectar os
traçados que vão sendo definidos registrando-os em séries e configurando-os como
tentativas aproximativas, que, através de recursivas relações, me levam a esboçar
um desenho, que, pelo caráter de desvio ou errância relacionada à implementação
da nova estrutura, pode vir a ser definido como um mapa, embora este mapa hoje só
possa ser visto como seu próprio território de ação
170
.
3.2 A PERMANÊNCIA/ MUDANÇA OU O MAPA E O TERRITÓRIO
Em uma nova aproximação em torno da estrutura curricular do curso de
artes, para além da função de professor-pesquisador-curador-artista, compartindo
não somente práticas, mas comportamentos e atitudes, como
participante/constituinte de uma categoria denominada corpo docente, a qual está
170
Nesse sentido faço uma referência a Katharine Harmon: “You are here”, Personal Geographies and Other
Maps of the Imagination, 2004. Ela afirma a necessidade de mapas que nós, os seres humanos, temos, e de
nosso instinto de mapeamentos tal como a oposição polegar/indicador, implicada em nossa psicomotricidade
fina. Afirma também que um mapa nos intriga tanto pelo desenho, os limites apresentados, como pelas
convenções implicadas que com freqüência ignoramos.
3-150
definida institucionalmente, encontro à minha disposição as marcas dos diversos
percursos trilhados nos exercícios individuais das práticas compartilhadas a cada
semestre com os demais professores.
Essas marcas se apresentam articuladas às demais marcas de todos os
outros percursos realizados pelos diversos professores que constituem a totalidade
do corpo docente do curso e também da universidade. Tal como rastros, elas
acabam por definir uma imagem do que se passa, relacionando, no presente, o
passado e o futuro. Aonde se re-avalia e aponta para a finalização de um processo
em implementação através desse movimento prospectivo, especificamente, neste
momento de reestruturação curricular. Pois isso confirma, na atualidade, uma
aproximação de todas as áreas do conhecimento, onde cada curso da universidade
realiza uma mudança mais ou menos radical.
Estar como professor/condutor no Projeto Pedagógico do Curso de Artes
Visuais, participando da estrutura curricular do curso em uma disciplina/veículo/pista,
na implementação do novo currículo, compartilhando em deslocamento as pistas/ via
currículo é estar lado a lado com outros 35 condutores que se distribuem em
aproximadamente 90 veículos/pistas que perfazem a totalidade da via. Mas é um
pouco mais complexo do que números definindo quantidades, pois existem
quantidades que diferentemente de uma relação numérica correspondem à escolha
curricular do discente, e outras que correspondem à determinação institucional de
uma seqüência totalmente obrigatória. Isso para o falar ainda de indicadores
gerais do ensino superior que estão tão distanciados da realidade da área de Artes
Visuais, que, em se cumprindo, o resultado registrado indicará exatamente o inverso
da preconizada eficiência/eficácia do ensino no desempenho da responsabilidade
social da instituição.
No período de implementação, a semestralidade é percebida como um
processo ocorrido no tempo, simultaneamente à definição espacial de sua
configuração. O processo de desenvolvimento, do ponto de vista discente, se torna
real em concomitância ao desenvolvimento estrutural das disciplinas.
3-151
Esta situação é totalmente nova, pois, aagora, habitualmente, se definia a
localização exata de cada disciplina, desprezando qualquer tipo de deslocamento,
talvez por separar totalmente a disciplina do professor e também do aluno, em uma
configuração abstrata, definindo aproximações e afastamentos demarcados e
reiteradamente fixados a cada etapa, em hierarquias fixas, enfatizando as
regularidades através de mapas organizados coletivamente pela administração
acadêmica.
Até o momento zero da implementação do novo currículo, esta fixação,
sempre “religiosamente” reiterada, se havia transformado em um bito, e este
tinha sido totalmente automatizado, sendo que, com isso, acabou também se
tornando invisível, até que, finalmente, em algum momento, este procedimento
deixou de ser visto, gerando um espaço para a construção de um novo hábito.
Quem dirige veículos automotores sabe como esta automatização é
necessária. Entretanto, sabe também que ela pode acarretar a perda da visão,
sendo um dos motivos das infrações, que passam a ocorrer a cada vez com mais
freqüência, ao mesmo tempo em que a relação coletiva entra em colapso,
descaracterizando, em uma situação extrema, o próprio sistema, pois se perdem
também os significados, acarretando por fim os acidentes.
A perda da visão com a automação de procedimentos relacionada ao
processo curricular anterior foi sendo gerada em um movimento de encobrimento do
coletivo, onde passou a imperar o não ver-não ler, substituindo totalmente o mapa
coletivo pelo território da ação individual, passando a imperar o “laissez-faire”.
Com essa situação invertida como contexto, onde os diversos territórios da
ação individual estavam sendo dados como um mapa/fragmento do mapa coletivo,
foi iniciada a implementação do novo currículo, o qual passou a atualizar a
necessidade de partilhar inicialmente a nova estrutura, com a finalidade de buscar
como princípio da ação o mapa coletivo que, no currículo anterior, havia sido
esquecido, ao ser dado em substituição.
3-152
De certo modo, para continuar a alegoria: os condutores voltaram a ser
exigidos, através de uma renovação do “contrato”, pois, agora, com a
implementação, novamente, passou a ser necessário o ler-ver. A perda dos limites
definiu também o antigo currículo, no modo como estava sendo apropriado pela
comunidade acadêmica, como um não-lugar ou um entre lugares, abrindo um
espaço para surgimento do novo. A mudança do acordo definindo uma nova
estrutura, trouxe no corpo da estrutura curricular um novo paradigma, e com isso
também exigiu uma nova atitude do antigo artista-professor, que, passando a ser
também pesquisador-curador, assumiu em suas novas funções a presentificação do
paradigma contemporâneo, através da desconstrução dos paradigmas: acadêmico e
moderno, muito embora tenha tornado simultâneas a desconstrução e a construção,
ao ser instituído.
O paradigma contemporâneo traz a desconstrução inscrita na própria prática
e na atitude comprometidas, respectivamente, com a função de pesquisador e
curador. Mas, concomitantemente a essa desconstrução e comprometimento
funcional, o espaço da ação indivíduo/coletivo encontra um conflito que funda e
emerge do espaço institucional, passando a ser um lugar “in situ”, onde o mapa e o
território passam a ter uma existência autônoma, pois, apesar de estarem
sobrepostos, necessariamente, já não se correspondem. O mapa passa a ser seu
próprio território, e, por sua vez, os territórios passam a ser acessados por diferentes
mapas.
Contudo, esta situação não é uma simples desordem, ou seja, não está
isolada, é uma situação que se aninha em séries de situações que caracterizam a
mudança paradigmática na contemporaneidade, e, isto acaba acalentando um
estado onde todos começam a perceber uma outra ordem, ocorrendo um estado
flutuante onde todos se percebem interconectados e permanentemente em
construção/desconstrução, quer esta situação seja vista pelo foco da transformação
da sociedade em que se insere: estruturalmente fechada e definida em sociedade de
informação e conhecimento; quer seja vista pela recursividade determinada por cada
atitude individual, que passa a ser definida em novos padrões interconectados.
3-153
Para além dessa relação ainda contagiada pelas trocas entre o todo e as
partes, mas participando dessa nova situação no qual as mudanças passam a ser
sistêmicas, eu redefino novamente minha participação institucional, colocando-me
agora como constituinte de um corpo participante da universidade em reciprocidade
aos outros corpos acadêmicos. Nessa situação como corpo docente, eu compartilho
com os demais professores da instituição de um estado de transformação cultural
que se apresenta semelhante em todas as áreas do conhecimento, em que os
sistemas interagem e retroagem, e as atitudes o determinantes externamente e
determinadas internamente.
É importante lembrar que essa nova aproximação do Currículo do Curso de
Artes Visuais, que agora vou delineando como parte do corpo docente da instituição,
ocorre em um período que define um momento específico na implementação do
desenvolvimento curricular, constituindo um lugar ainda “em movimento” e por isso
com características internas, embora marque uma passagem que se define em uma
outra operacionalidade, sem perder a continuidade do processo de implementação.
O momento dá-se exatamente na passagem ao 4º semestre, abarcando um
registro do desenvolvimento da etapa inicial do curso primeiro e segundo
semestre, os quais estão organizados por um conjunto de disciplinas obrigatórias – e
o registro da passagem para a etapa de desenvolvimento terceiro semestre, que
está constituído no currículo como uma organização por créditos, possibilitando a
escolha do discente entre séries de disciplinas alternativas. Desse modo, a partir de
uma quantidade substancial e extremamente qualificada de opções, encontra-se
estruturado no currículo a possibilidade real de escolha do discente, ao qual são
oferecidos diversos percursos curriculares diferenciados.
Este momento do currículo é também o momento estrutural que marca uma
mudança qualitativa no modo de construção do conhecimento efetivado pelo
discente, considerando justamente esta disponibilidade dada ao aluno para escolher
os conteúdos curriculares que comporão a sua formação artística. Estes dois
registros constitutivos dos quatro primeiros semestres do curso definem um foco
ampliado da mudança e constituem a metade do desenvolvimento previsto no
projeto de formação.
3-154
Para redefinir a visão, agora como parte do corpo docente do curso
participante do corpo docente da instituição, torna-se necessário fazer uma breve
parada, tornando possível o afastamento do que corresponde à especificidade das
práticas disciplinares e o que compete ao envolvimento com a temporalidade da
estrutura curricular constituída no curso cotidianamente. Mas, talvez não seja tão
drástico e eu deva dizer, simplesmente, que é necessário fazer uma alteração na
escala desse movimento
171
, que, anteriormente, caracterizou a função de professor
formador, o qual foi visto como ministrante das disciplinas e abordado em alegoria
como um “condutor”, como possibilidade de visão e deslocamento em processo
concomitante ao desenvolvimento curricular.
Com esse novo procedimento, eu pretendo viabilizar outra aproximação com
o currículo do curso, voltando o olhar para o conjunto da estrutura que o define, à luz
do que tem sido concretizado até o momento e que está estrategicamente sendo
apontado. Esta aproximação também é compartilhada por todos os professores do
curso, em discenso e consenso, entretanto é definida e acordada sempre em
situação de organização acadêmica, onde o acordo se faz mediante atitudes
construtivas e desconstrutivas, em referência tanto aos sujeitos participantes quanto
aos limites institucionais.
Distintas percepções emergem desta atitude em relação ao currículo, em
manifestações que perpassam a desconstrução do que se acordou em um outro
momento, e são recebidas por todos como uma possibilidade de revisão tanto do
acordo, essencialmente coletivo, como das práticas individuais. Essas
manifestações ocorrem por conta da experiência advinda das mudanças
introduzidas e apropriadas pelos novos alunos ingressantes a partir do ponto zero da
implementação, como também pelos alunos que ainda se encontram ligados à
estrutura do antigo currículo, o qual tem sido redimensionado na experiência
discente em situação de extinção simultânea à implementação do novo.
171
Existem alguns discursos que estão definitivamente engatados às transformações da sociedade iniciadas no
século XX: é o caso das “Seis propostas para o próximo milênio” de Ítalo Calvino (1999) e é impossível deixar
de mencionar aqui, especificamente o seu discurso sobre a Rapidez, onde ele se refere à especificidade das
narrativas com o tempo determinado na duração através de liames ou desenhos em longas curvas ou
ziguezagues. Contra qualquer medição do tempo, se impõe a máxima: “ apressa-te lentamente”.
3-155
Em dois anos de implementação, a mudança foi vivenciada efetivamente
pelo corpo discente. Os alunos ingressantes do novo currículo inicialmente foram
contagiados pelo currículo anterior, entrando em consenso com atitudes do corpo
discente do curso. Este corpo discente de “veteranos” do curso, estando em posição
avançada dentro do curso de formação escolhido pelos “calouros”, passaram a ser
vistos a partir dessa situação privilegiada
172
, muito embora esta posição possa ter-se
enfraquecido, pois foi registrada a partir do contexto de um currículo em extinção.
Por sua vez, o corpo discente do Curso de Artes Visuais correspondente a esse
currículo em extinção, embora tendo acordado com o corpo docente e preconizado a
mudança, se definiu tanto em consenso como em discenso em relação ao currículo
novo.
O exercício da mudança tem definido comportamentos individuais contrários
à implementação do novo, mesclados entre moderados e radicais, além de também
ter evidenciado algumas posições institucionais advindas de atitudes emergentes de
grupos organizados em centros de lideranças acadêmicas posicionados
declaradamente em discenso ao processo em andamento.
Este quadro inicial, no qual se tem ouvido a “voz do discenso”, que está
presente em todos os acordos e busca um espaço de exposição, recuperando-se de
um aparente abafamento pela tolerância do próprio acordo, ocorreu, em maior ou
menor grau, em relação tanto ao corpo discente quanto ao corpo docente. Mas,
talvez isso faça parte de todos os processos de mudança, que sempre compartem a
extinção e o vir-a-ser; entretanto, em alguns se torna tolerantemente visível pelas
múltiplas camadas que constituem a complexidade do processo.
Esse é o caso do processo de mudança da estrutura curricular de um curso
de formação, pois envolve desde práticas individuais em contextos coletivos de
formação compartilhados com os pares, do ponto de vista dos docentes e também
172
É importante lembrar que esta relação abordada aqui, especificamente pelo viés da mudança curricular, é
parte de ritos de passagem que têm se perpetuado na história do ensino superior brasileiro, que são reiterados a
cada novo grupo que ingressa nessa etapa de ensino, e tem sido representado por comportamentos de
subserviência forçada entre calouros e veteranos. Durante o regime de exceção funcionava como uma paródia ao
sistema, entretanto agora revela uma falta de visão dos acadêmicos, que, sem perceber, passaram a assumir as
atitudes para as quais brandiam a sua crítica.
3-156
dos discentes, até os contextos institucionais internos e externos à estrutura, ao
currículo, ao curso e à instituição.
Todo esse processo também pode ser visto como uma forma de
relacionamento entre conservação e mudança e caracteriza a transformação
autopoiética, conforme foi construída por Maturana e Varela (1984). É possível de
ser percebido em contextos institucionais inseridos em contextos culturais em
transformação, como foi, de certo modo, anunciado por Bateson (1979), algum
tempo antes de ser construído por Maturana e Varela.
As transformações são definidas em leis, diretrizes e regulamentações
político-sociais, ou acadêmico-institucionais, entretanto a mudança nos contextos
correspondentes não ocorre por decreto, ela vai-se concretizando na medida do
enfrentamento dos conflitos emergentes dos próprios contextos envolvidos,
redefinindo limites que se determinam através de novos acoplamentos estruturais.
Dessa forma é significativo focalizar a mudança ocorrida na relação do
ingresso anual no novo Currículo do Curso de Artes Visuais. Considerando o
primeiro e o segundo ingresso, a diferença de atitude dos calouros em relação ao
currículo em implementação se apresentou de forma radical entre o discenso e o
consenso, apresentada por uma atitude de rejeição e uma atitude de aceitação.
Essa diferença se manifestou tanto na mudança de atitude do primeiro grupo, na
passagem do primeiro para o segundo ano de curso, quanto no segundo grupo de
ingressantes em relação ao primeiro.
Mas, a mudança também começou a se manifestar entre os alunos
veteranos, que passaram, inversamente, a ser influenciados pelos calouros. Na troca
de informações, os veteranos têm solicitado em proporção crescente a transferência
para o novo currículo, o que demonstra a tentativa de vivenciar integralmente o
espectro da mudança do que está sendo extinto e do que está surgindo.
Esse corpo discente especial, de constituição mista formada entre a antiga e
a nova estrutura, define um “corpo discente de passagem” que funciona como ponte
de uma estrutura à outra, além de incorporar um testemunho positivo da
3-157
conservação necessária ao processo de mudança, trazendo um aspecto positivo do
antigo currículo e defendendo a necessidade de reiteração do mesmo dentro do
novo.
Nesse sistema curricular, que também é parte da estrutura institucional,
onde a unidade e a multiplicidade se constroem mutuamente, através da
desconstrução e da reconstrução, onde as ações não o isoladas, ocorrendo
sempre em compartilhamento, gerando cadeias ou acoplamentos, sempre é
necessário um mapa, pois este possibilita um tipo especial de acesso que é
especificado em funções, permitindo o tráfego. Entretanto, é o trafegar que dá
sentido ao mapa, o qual não substitui o território da ação com seus diversos
movimentos, mas termina por gerar tantos mapas quanto o número de alunos
transportados a cada semestre.
É este mapeamento da formação que faz de cada mapa o seu próprio
território, pois são intransferíveis, inscrevendo os sujeitos em um espaço onde
finalmente as ações foram individualizadas, ao custo de transformá-los todos em
actantes da linguagem que os reúne
173
em processos continuados de formação
superior em contínua enunciação.
Do corpo docente, é esperada sempre a mudança, um desenvolvimento, que
na atualidade vai-se dando de uma forma contínua e micrológica, atendendo a uma
solicitação externa, mas também interna, pois os sujeitos estão inscritos em uma
posição inversa à posição que inscreve o corpo discente no sistema e atuam em
reciprocidade no processo de ensino-aprendizagem. Muito embora somente com a
mudança curricular tenha sido evidenciada a continuidade do processo de formação,
e o ensino tenha incorporado o aprender a aprender, abarcando a autonomia do
aprendizado, se aproximando mais do significado da relação discente docente, e
abrindo, desta forma, também uma brecha para trabalhar o conflito artista aluno,
no desenvolvimento do aluno-artista.
173
Reúne está sendo utilizado em uma dupla referência, individual: referindo-se a um sujeito da linguagem
construído e desconstruído em figuras actanciais, possibilitando simultaneamente a comunicação e o sentido; e
institucional: referindo-se ao Projeto Reúne do Governo Federal que finalmente engata as Universidades
Federais num único projeto, articulando o último elo de um processo de controle e retroalimentação,
possibilitando às universidades um autocontrole e redefinição constante de seus próprios limites, levando a um
crescimento, sem acarretar a perda de sentido dentro do todo do qual são apenas uma parte.
3-158
Essa mudança vem sendo realizada cotidianamente por cada professor-
pesquisador-curador-artista como ação e transformação inscrita na dinâmica de seu
próprio pensamento em um caminho de dupla participação, como a lendária figura
do Colosso de Rodes, que se inscreve como presença em mais de um território, pois
tem cada um de seus pés colocado em uma margem.
Quer o foco esteja voltado para o aluno, evidenciando a formação do artista
na estrutura curricular, quer esteja voltado para a instituição, evidenciando a
formação do pesquisador, o processo sempre põe em evidência a própria mudança,
pois no referencial “arte e instituição” um sentido de renovação está presente e na
atualidade se define tanto em uma como em outra.
Essa posição de mudança está definida em geral como uma vanguarda
individual e sempre em contraposição à permanência institucional definida em
retaguarda, na reiterada estrutura curricular que ocorre a cada semestre, a qual se
efetiva na repetição constituída pela renovação do corpo discente. Entretanto, em
períodos como o que está sendo abordado nesta tese, onde a mudança é radical e
está definida institucionalmente, a tendência é a emergência de um “corpo docente
de passagem”, à semelhança do “corpo discente de passagem”, embora em sentido
inverso. Pois, inversamente ao caminho encetado, “o corpo docente de passagem”
passa a expor uma posição conservadora, mas possibilitando também, tal como o
“corpo discente de passagem”, resgatar através da experiência os elos com o
currículo anterior, levando o corpo docente a um papel acadêmico-institucional que
visa a recuperar institucionalmente parte do que havia sido descartado anteriormente
em prospectiva.
A dinâmica do processo de implementação funda novos lugares,
embaralhando os hábitos muito adquiridos pelo corpo docente, levando á
reconstrução das práticas individuais, o que nem sempre é confortável, mas é
exatamente este desordenamento que torna possível perceber a dimensão da
transformação institucional em ação através dos indivíduos que constituem a
instituição.
3-159
O mapa do currículo de um curso, para além da implementação, está
constituído em múltiplas camadas, e, desde o primeiro momento, expõe seu quase
corpo-mapa, no qual o referente vai-se dando no tempo e na configuração do
percurso realizado anteriormente em narrações, através da oralidade e do
pensamento, que, em abstração pressuposta por uma negação da prática, se
propunha a rearticular as diversas camadas institucionais já em eminente desacordo.
A diferença de um currículo em implementação para um outro com 30 anos
de exercício é a transparência, não como oposição à opacidade, considerada em
relação ao espaço em um sentido positivo, mas em relação ao tempo, como
desaparecimento, apagamento, pois a transparência também tem seu viés negativo.
Quando associada ao tempo, a transparência dá-se como desaparecimento,
ocorrendo como se o currículo fosse se apagando na mesma medida de seu
exercício, e, em algum momento, os indivíduos percebem que ficaram à deriva.
Nesta deriva, os professores acabam por transformar a sua prática em um caminho
tão particular que não possibilita mais o transporte coletivo.
Com a implementação de um novo currículo, este volta a ser percebido
como um mapa, entretanto essa percepção ocorre somente pelas múltiplas
referências que o constituem, pois esta multiplicidade que corresponde ao próprio
corpo docente que o gerou e o está implementando possibilita percursos que
abrangem uma diversidade de caminhos, incluindo os conhecidos e também os
desconhecidos. Mas, justamente, por esse motivo, ao docente sempre deve ser
dada possibilidade de escolha, podendo realizar qualquer traçado, fazendo jus à sua
nova função de professor-pesquisador, pois as marcas inexistem ou ainda são
indeléveis, e estão constituindo-se nesse novo enlace com a pesquisa, ocasionando
uma mudança, a partir da qual deverão começar a produzir os primeiros sulcos, tal
como a preparação de um novo terreno, em múltiplos acessos, como diria Gregory
Bateson, para, quem sabe no futuro, com a diversidade das colheitas realizadas, o
conjunto possa vir a tornar visível novamente o mapa.
Pois é certo que o que nos prende a qualquer mapa é o caráter de
exposição presente nas marcações daquilo que foi escolhido para ser mostrado, e,
pelo mesmo motivo, vai sendo transformado pelo uso, quando nos constituímos
3-160
como protagonistas da ação por este orientada. Esse é o processo de
engendramento constante do instinto de mapeamento presente em cada actante,
independente da posição em que se encontre, tornando visível novamente as bordas
que vão definindo os significados que vão sendo engendrados.
3.3 A MUDANÇA/ PERMANÊNCIA OU O CURRÍCULO COMO UM GPS
Pensar em um currículo de um curso de formação superior em Artes Visuais
na atualidade é também olhar para as transformações que ocorreram no século XX e
que definem e caracterizam o século XXI. E isso diz respeito tanto às mudanças
sucedidas no século passado quanto ao modo como foram implementadas e m
participado do século atual, determinando um “campo expandido”
174
do foco da
mudança ocorrida, ao acrescentar os implementos indispensáveis à sua
concretização.
Dessa maneira, é facultado também focalizar nas mudanças unicamente as
formas de operacionalização e apresentá-las como constitutivas na abordagem
escolhida para o desenvolvimento da tese. Posso indicar com certa ênfase somente
os dispositivos indispensáveis que estão sendo construídos com o objetivo de
provocar aproximações, sem declinar dos afastamentos. Ou ainda, aqueles que têm
174
Eu faço uma breve reflexão sobre o conceito de “Campo expandidoem um texto referente à conferência
proferida no evento “Olhando desenhos”, em 12 de junho de 2000, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, e
revisado em 14 de março de 2006, para adequação à publicação na Internet. Campo expandido é um conceito
utilizado por Rosalind Krauss (1998) em seu livro “Caminhos da Escultura Moderna”. A autora é uma
pesquisadora norte-americana com formação filosófica que atua como crítica de arte. Ela constrói o conceito de
“campo expandido” através da constituição de um pensamento paradoxal, tendo como base a dupla negação,
utilizada a partir do conector lógico “nem, nem”, um conector proposicional de sentenças lógicas, que define
uma situação em que “nem isso, nem aquilo são verdadeiros, muito embora sejam verdadeiros simultaneamente
isso e aquilo”, o qual também foi utilizado por Merleau-Ponty na construção Fenomenológica da Percepção. O
conceito de campo expandido surge a partir da reflexão sobre as mudanças observadas, a princípio, na escultura,
onde é constituído um esquema em substituição à tradicional categoria artística utilizada para abordar o objeto
de arte, o qual passa, então, a ser um objeto da cultura. Esse esquema de pensamento é a tentativa mais
aproximada de fazer uma reflexão que possa corresponder à complexidade do objeto e sua teia de relações. O
esquema é formado por dois tipos de relações contraditórias e duas relações de implicações, que se transformam
em relações de contrários. A leitura simplificada que se faz deste esquema é a seguinte: O campo da escultura,
expandido logicamente pelo pensamento, aceita a ampliação da escultura, a qual passa a ser vista e concebida
como paisagem e arquitetura, embora fique muito claro que a escultura não é nem paisagem nem arquitetura.
Esse pensamento expande seu foco, passando do objeto ao campo, e, por sua vez, é essa passagem pressuposta
pelo sujeito ontológico que permite o surgimento do sujeito da linguagem. É nesse campo lógico expandido em
pressuposição que a semiótica do texto se constitui através de uma nova pressuposição apresentada em
metalinguagem que se abre à multiplicidade significativa do sujeito tensionado em um percurso gerativo da
significação. Eu localizo desde o início de meu texto esta passagem, entretanto no texto eu participo e constituo
“a outra margem do rio”, como construí metaforicamente no início da tese, significando estar no campo
expandido da própria linguagem, abarcando as multiplicidades daí advindas em um perene processo de
enunciação.
3-161
possibilitado a comutação de breves iluminações a oclusões, mas principalmente
ficando na espreita do momento preciso em que é permitido detectar o crescimento,
mas também a diminuição. Enfim, as escolhas têm permitido mapear lugares que se
apresentam simultaneamente em contração e em expansão, que mostram
objetivamente quando essa interação paradoxal é fruto de algum tipo de empuxo, ou
de algum tipo de empurrão, fazendo do próprio dispositivo uma parte constitutiva do
que está sendo abordado.
Nesta perspectiva, que se aproxima tanto do universo topológico, eu
deambulo com meu olhar, buscando mais alguns pontos esquecidos ou encobertos,
que possam presentificar as características mais recônditas do escopo desta tese.
Desse lugar onde estou não tenho mais um único ponto de vista sobre o objeto, e
isso é perfeitamente explicado pela matemática ao colocar lado a lado os
referenciais perspécticos e topológicos, pelo simples motivo dos movimentos do
sujeito serem simultâneos aos movimentos do objeto, provocando e sofrendo
concomitantemente o movimento preconizado por este. Mas, principalmente, por eu
ter escolhido resgatar o campo de visão ao invés do ponto de vista, colocando-me
como um sujeito semiótico, por estar inserida no objeto além de participar
“activamente”
175
de sua dinâmica estrutural em transformação reconstituindo-o na
linguagem.
Primeiro, ao pensar em Artes Visuais, eu me deparo com o amplo universo
da imagem
176
no escopo desta nova nomeação da área
177
. É um universo onde
estamos todos submersos, e isso também contando com o fato de as próprias
imagens constituírem, na atualidade, a expansão de seu universo de atuação para
além da forma visível. Pois, quanto a isso, refiro-me a esta expansão,
especificamente à relação imagem digital/ imagem analógica que pressupõe
concretamente o ver/ ler como constitutivo da elaboração da imagem.
175
Aqui eu faço uma mistura entre a ação de um sujeito ontológico e a ação de um sujeito lógico definida em um
quadro actancial.
176
Imagem em semiótica visual é uma unidade de manifestação auto-suficiente, como um todo de significação,
entretanto destacam-se duas atitudes: como texto-ocorrência e como mensagem icônica (comunicação). Na
semiótica do texto a iconicidade é efeito relativo a determinações culturais, o que acaba por submeter o produtor
de imagens às regras do “faz de conta” cultural. Greimas e Courtés, 1979.
177
Conforme “Dicionário Aurélio sico”, 1988, na “Visualização” está implicada a transformação de conceito
em imagem, real ou mentalmente visível.
3-162
Segundo, ao pensar na formação superior e nos novos lugares dessa
formação, como os laboratórios de pesquisa, e, principalmente, os emergentes
espaços de trocas e compartilhamento da informação, detecto concomitantemente
uma nova expansão. Esta percepção se confirma com a implementação da
formação continuada, redimensionando a formação superior, a qual vem a passos
largos se inserindo em um outro universo formado por redes, que, na atualidade,
ocorrem e também constituem o universo denominado virtual. Hoje, as redes
configuradas tornaram-se imprescindíveis à pesquisa; a exemplo da world wild web,
com linguagens de utilização definidas por seus protocolos especificados
internacionalmente tal como o http, que tem aproximado espaços acadêmicos de
espaços não acadêmicos, por vezes, inclusive, aproximando espaços muito
distanciados da academia, entretanto separados unicamente por uma senha de
acesso e com freqüência prescindindo desta.
Esses novos lugares acrescentam ao universo da imagem um outro mundo:
dito virtual. E acarretam a transformação desse primeiro universo que participa da
atual nomeação da área de Artes Visuais o universo da imagem pois perturbam
exatamente onde esse novo espaço virtual rivaliza e arrebata, tanto o espaço
simbólico, como também o espaço do imaginário. Esta transformação acaba por
redefinir estruturalmente a própria ordem do poético.
Contudo, é importante sublinhar, que todo este “estado de coisas”
transformado está para além das distâncias, e a liberação comunicativa, através da
telecomunicação, vai a cada vez se aproximando mais de uma curva assintótica
onde a própria distância perdeu o sentido. Ou talvez, se poderia dizer que, nesse
caminho sem volta
178
, passe, simplesmente, a reafirmar-se o que foi dito por Barthes
(1987) “o meio é a mensagem”, correspondendo esse meio a esse território
reiteradamente mapeado, entretanto ainda completamente inexplorado.
Terceiro: pensar no Curso de Artes Visuais, dobrando-o “em curso” para
encontrar o currículo em transformação através de uma abordagem significativa,
definindo-o como um desenvolvimento do tempo e também no tempo, levou-me ao
178
A curva assintótica na relação matemática entre variáveis define a tendência ao infinito.
3-163
centro da mudança, acabando por redefinir os limites presentificados na tese, os
quais por sua vez foram sendo mostrados em oscilação entre presença/ausência e
presença total. Contudo, talvez não tenha ficado claro que, para chegar a essa
oscilação, foi necessário pressupor também uma nova tipologia de cursos, incluindo
os cursos de formação superior surgidos no final do século XX, definidos por novas
modalidades, entre as quais se encontram os cursos à distância. Novamente, esta
inclusão pode ser resgatada por uma convergência com a redefinição do universo da
pesquisa. Paradoxalmente, as distâncias são eliminadas quando se definem dentro
desse novo universo informacional, ou seja, ao fazer parte de uma ciência da
informação, pois, ao se mesclarem uma e outra ciência e informação no
tratamento da segunda através dos dispositivos de manipulação da primeira, os
equipamentos e procedimentos especificam e processam simplesmente os “dados”,
ou seja: o universo abordado passa a ser totalmente presente, onde o “não dado”
simplesmente inexiste.
E, quarto, finalmente, totalmente em submersão, detectando as
interrupções e oclusões dentro do próprio paradoxo, tal como tem sido visto/não
visto recursivamente em convergências e paralelos constituindo a idéia de currículo.
Apesar da mudança, tenho conservado a oscilação por essa via apresentada
simultaneamente em convergência ou concorrência, mas também em paralelo, e
inclusive, fazendo desta um caminho que, na impossibilidade de ser traçado, vem
sendo tracejado entre interrupções que atestam ora o princípio, ora o fim
compartilhado.
Estar inserido em um espaço paradoxal poderá, talvez, ser tal como pensar
na própria idéia de estrutura onde o geral e o particular deverão ser enunciados, e
não somente isso, mas deverão ser interdefinidos exatamente naquilo que os
mantém juntos, enlaçando-os em permanente enunciação.
Nos limites deste conceito de paradoxo, é possível que também Maturana e
Varela tenham encontrado a chave da estrutura autopoiética. E talvez com ela
tenham sido levados a engatar o conceito de organização ao conceito de estrutura,
estabelecendo uma relação em que está implicada a permanência e a mudança.
Mas, ainda, em boa hora, talvez tenha sido esta última, a mudança, definida por uma
3-164
total presença ao ser dada como única escolha em um caminho em
desenvolvimento. Essa presentificação pode, finalmente, possibilitar a apreensão
nesse processo, tanto da construção como da desconstrução, ao fazer com que o
caminho não se reporte a um fim como um possível progresso nem a uma origem
como determinante das escolhas, mas sim ao próprio movimento que,
reiteradamente, se encontra em processo de redefinição, definindo-o como uma
nova forma de conhecimento encaixada
179
em uma teoria
180
. Pois assim é na Teoria
da Autopoiese, na qual o redimensionamento dos limites faz do movimento uma
autotransformação, que passa a ser dada como a única e exclusiva finalidade de
conservação. É evidente que toda a escolha, assim realizada, dá-se pelo positivo, e
a inserção do negativo poderá ocorrer se puder compor com a positividade ao
escolher a vida
181
, ou, ainda, é evidente que o positivo corresponde ao ser que
abarca o ser e o não ser dentro da vida em reciprocidade constituída como uma
positividade.
Percorrendo o caminho da mudança que também tem sido obtido através da
permanência, acabo por me aproximar do paradigma contemporâneo da arte no qual
as ações compartilhadas entre artista/ professor/ pesquisador/ curador definem uma
nova forma de funcionamento da arte, a partir de atitudes inseridas culturalmente,
para somente então serem acopladas ao social. Desse modo, ainda se pode falar
dos outros paradigmas artísticos e inclusive acessá-los e recuperá-los neste novo
estado ou estatuto
182
da arte, mediante um novo código de acesso dado pelo
paradigma atual.
179
A idéia de encaixe está sendo utilizada em aproximação à idéia de acoplamento, entretanto neste momento me
interessa enfatizar a idéia de caixas dentro de caixas como uma metáfora do acoplamento, onde na independência
de cada “caixa”, a diferença é dada pela relação de semelhança e dependência na relação de continente-conteúdo
que existe entre elas.
180
Talvez se possa referir como “bioteoria do conhecimento” a “Teoria Biológica do Conhecimento” de
Maturana e Varela, também conhecida como “ A árvore do conhecimento” (1984).
181
Para Greimas/ Courtés, 1979, vida é o termo positivo da categoria vida/ morte, considerada como hipotético-
universal, como uma primeira articulação do universo semântico individual, fazendo contraponto ao universo
semântico social, com a categoria cultura/natureza.
182
Estado ou Estatuto aqui se refere à dupla natureza que constitui a arte, o estado natural e o estado instituído,
mas também joga, brincando com a inversão, que ocorre na arte, da relação entre organização e estrutura,
considerada na biologia humana, pois na arte todos os estados têm sido instituídos, sendo a relação entre o
natural e a lei apenas uma imagem estabelecida simplesmente por uma questão de códigos e regras
simultaneamente próprias e impróprias.
3-165
Desse lugar de observação, me encontro afastada da visão panorâmica,
muito longe da construção do olhar coletivo e dos passeios binoculares simultâneos
ao deslocamento. Vou aos poucos me ensimesmando, e, em absorção, volto o olhar
para a própria estrutura que acesso a esse meu olhar. Esta atitude de tentar
encontrar o olhar do olhar e não a coisa a que este olhar acesso acaba enfim por
desconstruir o próprio olhar, que se apresenta a si mesmo simplesmente como um
código, como um registro inscrito em um mapa individual e intransferível,
concomitantemente, em permanência e mudança.
É com este novo dispositivo que volto a olhar o currículo do Curso de Artes
Visuais da UFRGS, e este dispositivo me “traz à mão” um mapa cujo acesso tem
que ser a cada vez reconstruído por cada um que o “tem à mão”, pois apesar de ser
reiterado como natureza compartilhada por todos, não está acessível ao outro. Mas
que utilidade teria um dispositivo que não serve a mais ninguém a não ser a si
mesmo?
Ao tentar encontrar uma saída para o impasse provocado por esse novo
dispositivo totalmente inútil à construção do olhar, me deparo também com a
ausência/presença do outro, pois este olho que tenho à mão e manipulo na
perspectiva de “meu próprio ponto de vista” simplesmente é um estorvo a qualquer
passeio do olhar. Pois, sendo totalmente presente a si mesmo, acaba por provocar
uma cegueira especial, tal como a metáfora de Saramago no “Ensaio sobre a
cegueira”, onde os limites são perdidos não pela falta, mas por excesso, excesso de
luz
183
. E é esta nova situação que define um novo tipo de contágio, que se não
mais somente por contato, mas também em situação de afastamento, pois a cada
um é dada totalmente a sua própria onipotência. E é frente a este olhar onisciente e
onipotente que tenho empreendido esta odisséia em que a cada etapa eu vou
fechando e encobrindo os olhos, fazendo com que o já visto volte a ser visto,
entrevisto através do visto e não visto conscientemente negociado entre o ver e o
ler, mas principalmente dependente do mostrar.
183
É interessante resgatar no texto de Saramago o fato construído como primeira manifestação da “doença”, que
ocorre justamente em um condutor de um veículo em meio a um intenso movimento do trânsito.
3-166
E, paradoxalmente, nessa nova espécie de contágio, percebo o mapa ao
qual somente individualmente tenho acesso, pois ele servirá enquanto seu
próprio território, ou seja, enquanto informação de si próprio como um outro, o que
também passa a redefini-lo como fundamento de uma linguagem, através de uma
metalinguagem
184
, que, entretanto, é enunciada como metassemiótica
185
, através de
metadados
186
em um constante processo de enunciação.
Mas isso eu tenho tentado construir desde o início deste texto no qual a
linguagem foi me permitindo compartilhar descrições e visões em figuras actanciais.
Figuras que foram mostrando/escondendo estados e posições distintas e sempre
enlaçadas, definindo hierarquias móveis, ao utilizar relações tensionadas em um
quadrado semiótico, articulando o fazer e o pensar em um caminho que tem
perpassado o ver/não ler e o ler/não ver como um instrumento ou dispositivo no
percurso geracional da significação. Tenho movimentado-me em interstícios, entre
os limites precisos de todos os espaços que até agora eu venho tentando
configurar/encontrar/apresentar
187
. Entretanto, somente os metadados relatados em
descrições, ou por vezes em narrações, não foram suficientes, pois parece que a
presença sempre escapava, ao se constituir com o seu inverso. Desse modo, fui
encaixando caixas dentro de caixas, trouxe outros arquivos, alguns, inclusive,
guardados em custódia, também não deixei de criar textos dentro de textos, ou
ainda imagens dentro de textos, chegando ao extremo de utilizar imagens dentro de
imagens, onde acabei, por fim, a introduzir novos textos.
Ainda que desde o início desta tese eu tenha esclarecido a minha situação,
ao tentar tornar claro, recursivamente me voltando sobre a impossibilidade que me
acomete de sair de minha situação de artista/professor/pesquisador, participante,
constituído e constituindo o objeto da pesquisa, isto vai ficando evidente nos
184
Metalinguagem é um termo introduzido pela Escola de Viena e a Escola Polonesa (lingüística) pela absoluta
necessidade de “distinguir a língua que se fala da ngua da qual se fala”. Posteriormente, o conceito foi
adaptado por Hjelmslev às necessidades da semiótica, onde o morfema “meta” serve para distinguir dois níveis:
o de linguagem-objeto e o de metalinguagem.
185
Hjelmslev distingue semióticas conotativas das metassemióticas (ditas científicas) e nestas últimas m-se as
que se referem à própria problemática da metalinguagem, novamente dita como científica, e também as não-
científicas que correspondem à definição de semiótica.
186
Corresponde ao “Metatermo” constituído na semiótica, e apresenta a relação tomada como eixo semântico
constituído como categoria, podendo ser também tomada como um termo contraindo a relação com um outro
termo de mesma natureza, definindo um novo nível de hierarquia superior, ditos metatermos complementares.
187
Correspondentes à artista/pesquisador/professor.
3-167
diversos modos de usar os instrumentos que vou escolhendo e descrevendo no
próprio texto.
Como artista/professor/pesquisador, o sujeito da linguagem, sempre
travestido em figuras actanciais, tem buscado configurar novos instrumentos, sem se
afastar da compulsão da imitação
188
que, por princípio, lhe acomete e, por fim,
revela-se em figuras actanciais constituídas no texto como dispositivos
189
semelhantes aos usados pela ciência. Igualmente, este sujeito da linguagem
também tem dado muitas voltas, de forma a mostrar todas as faces constitutivas dos
dispositivos, e neste caminho também vai tentando encontrar novas maneiras de
utilizar os velhos instrumentos de “domínio público”
190
, conhecidos por seu uso
comum, às vezes falsamente pueris, banais, corriqueiros e cotidianos e,
aparentemente, completamente conhecidos por todos.
Mesmo assim, eu não consegui suprir os buracos que foram surgindo no
texto, chegando ao ponto de parecer que quanto mais eu ia acrescentando
referenciais para as descrições, mais esburacado ia ficando o texto. Mas, com isso
pensei que, talvez, o motivo pudesse residir nas distâncias, pois estas, a cada
expansão, iam sendo inversamente referidas como novas tentativas de aproximação
na busca pela total identificação.
Para culminar, o único momento em que tentei discorrer a respeito da
formação que faz parte de minha prática cotidiana, estando frente à xima
proximidade presentificada pelos hábitos incorporados, estive, simplesmente, a
correr”, inserindo um sistema “ad hoc”, o sistema de trânsito, unicamente para poder
mencionar um outro sistema em acoplamento, interno a este, o sistema retrovisor,
188
Walter Benjamin (1992) em sua obra “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, a qual é
emblemática das transformações da arte no século XX, afirma que por princípio a obra de arte sempre foi
reprodutível. E ainda: “O que os homens tinham feito sempre pode ser imitado por homens. Tal imitação foi
também exercitada por alunos para praticarem a arte, por mestres para divulgação das obras e, finalmente por
terceiros ávidos de lucro.” Talvez aqui se reitere novamente a relação artista/pesquisador/professor, e também se
possa fazer a crítica da inserção da função de curador sobreposta à função de professor e também contraposta
à função de terceiros que, em semelhança ao curador, se definem em direção contrária, confirmada por Benjamin
como ávidos de lucro.
189
É significativo relembrar aqui que em um dispositivo sempre estão sobrepostos o meio e o fim, pois é
definido como um conjunto de meios planejadamente dispostos com vista a um determinado fim.
190
Domínio Público é também o nome de um site onde o Governo Federal disponibiliza obras de arte que já
fazem parte do Patrimônio da Humanidade e podem ser utilizadas sem qualquer tipo de pagamento por direitos
exclusivos de propriedade particular.
3-168
como um dispositivo que está sempre em chave comutativa definida por uma rede
de correlações de um regime de visibilidade que, articulando o visível/invisível,
mostra o saber-ver e o saber-ler.
Entretanto, é exatamente essa idéia de rede de correlações articuladas em
um regime complexo, onde a dependência entre as partes nem sempre está
explicitada, que acaba por fazer do século XX a própria mudança. É responsável
também por uma idéia de falsa autonomia que tem emergido e se fortalecido,
passando a ser compreendida sempre no seio de um universo em transformação;
todavia corresponde a um universo de imagens e representações compartilhadas do
mundo.
Em referência a esse contexto das imagens e representações do mundo, eu
seleciono uma mudança que considero como definitiva
191
para a transformação
radical da visão humana, a qual passou a fazer parte de um modo tácito da imagem
que se constrói do mundo na atualidade. A mudança a qual me refiro é, de certo
modo, correspondente ao dispositivo que, como artista, criei com o sistema
retrovisor que permite a visualização do exterior, estando no interior, e diz respeito à
imagem do planeta Terra visto do espaço. Ou seja, é a possibilidade de ver a nossa
própria morada de fora, ver o nosso lugar de origem e inserção, ver o lugar onde
estamos irremediavelmente inseridos como se fosse um outro, ou, dizendo de outra
maneira, com a visão (ou os olhos) de um outro, embora se permaneça
definitivamente dentro.
A incrível possibilidade de ver o nosso mundo como a imagem de um outro,
se o estou enganada, pois a ilusão também é própria da arte, é algo que a arte
tem, mesmo cativa
192
, se reservado o direito de fazer como escopo e espaço
delimitado de sua ação no seio da sociedade humana, também como um dos
princípios do regime de visibilidade que vimos construindo no tempo.
191
É certo que todas as mudanças são definitivas, mas aqui me refiro a uma imagem prospectiva da própria
mudança.
192
A arte, desde Platão, que em sua “Repúblicatornou inútil sua função na sociedade, excluindo os artistas de
sua sociedade perfeita, tem ocupado as margens da sociedade, ficando em uma posição de “transborder”, como
um processo de encobrimento que acaba por gerar sua total oclusão funcional. Entretanto, isto permite também
o uso do que é próprio à arte em um sentido impróprio, gerando uma inversão nos processos sem a necessária
consciência de retroalimentação, a qual é inserida somente no resgate, realizado no século XX, da complexidade
do mundo em que nos inserimos e simultaneamente partilhamos na atualidade.
3-169
“A Terra é azul” foi o que disse em 12 de Abril de 1961 o Major Yuri A.
Gagarin, aos 27 anos, ao viajar no primeiro veículo tripulado que percorreu o espaço
em torno da Terra. Pois com isso também começou essa reviravolta que nos leva,
na atualidade, à hibridização da definição de nossa posição interna, que hoje
necessita da confirmação externa, dada por um dos satélites artificiais que “orbitam”
o espaço da Terra, conhecido como GPS, Sistema de Posicionamento Global,
conforme explicitei na nota 147.
não concebemos a existência em nosso planeta sem a possibilidade de
dispor de instantâneos de qualquer localização no momento em que nos aprouver.
Além, é claro, desta disposição nos possibilitar a reação, e, através desse controle
visual, facultar o exercício da ação frente aos excessos de uma natureza complexa
ligada à construção/desconstrução e que com freqüência perde seus limites somente
para recuperá-los em um novo estado ampliado, distinguindo-se em uma nova
reconstrução do espaço natural onde se insere.
Mas que relação isto pode ter com a implementação de um currículo de um
Curso Superior de Artes Visuais, em convergência com as transformações da
Universidade, com as mudanças do conhecimento e as mudanças culturais
ocorridas na passagem para o século XXI?
Mudanças paradigmáticas são inauguradas em novos espaços gerados
dentro da realidade, instaurando heterogeneidades desenvolvidas em estruturas
organizacionais definidas por diversos contextos relacionados. Entretanto, a geração
dos espaços inicia sempre com uma perturbação, que gera mudança quando
novos limites são vislumbrados, entremostrados.
Mas, perceber os limites não é perceber onde se está? E perceber onde se
está, quando se está em uma estrutura desenvolvida por um coletivo no tempo, tal
como a estrutura de um Currículo de um Curso Superior de Artes Visuais, não será
também encontrar/mostrar a posição relativa através da articulação dos sinais
configurados em um sistema que nos corresponde, tal como o sistema de espelhos
retrovisor associado aos sinais luminosos e sonoros do veículo visto como uma
3-170
“cadeira” durante o exercício disciplinar coletivo que articula os docentes e discentes
na efetivação de um currículo?
Talvez seja necessário estender a visão com um dispositivo para poder ver
com o olhar de um outro, ou como um outro, o que está perto demais e que, por
estarmos dentro, definimos o próprio limite, entretanto já não o vemos.
Isso me lembra o metálogo de Bateson (1972) com sua filha, intitulado: “Por
que é que as coisas têm contornos?” Neste metálogo Bateson e sua filha passeiam
pelos limites das coisas: redesenhando-as com os artistas, repensando-as com os
cientistas, relendo-as com os escritores e revendo-as como qualquer sujeito
pensador que tenha se apercebido de sua própria existência. Quando param
abruptamente na própria conversa, vendo-a como indefinível em seu próprio
contorno, e isso por simplesmente estar em andamento, sendo impossível de ser
vista sem ter chegado ao fim, pois, por um lado, seria completamente previsível e
não mais corresponderia à nossa natureza misturada. Mas, por outro lado, é como
um outro que s definimos o que as coisas o, pois sempre que fazemos isto,
também lhes damos um contorno.
Desse modo, pensar no que a expansão que o século XX nos proporcionou
como espécie humana, acrescentando ao olhar o olhar de um outro, como um “olho
externo”, foi, certamente, a porta que abriu as novas possibilidades de ampliação de
nossos próprios limites, mas pelas dimensões expandidas em um universo no qual
não nos foi dado o acesso, a semelhança do que venho construindo até aqui, desta
nova porta só nos tem sido permitido espiar pelo buraco da fechadura.
E isso se reporta diretamente tanto às restrições automáticas ou autônomas
que tenho construído em apercepção, como às extensões e ampliações
configuradas como um sistema, que em trânsito é possível através de metáforas
e alegorias. Mas, até esse é um caminho que tem os limites extremos definidos por
essa relação onde se encontram a restrição e a extensão.
Dessa sobreposição, restrição/extensão, surge uma nova fronteira,
interior/exterior, onde está instalado tanto o GPS, permitindo milhões de imagens
3-171
em um contínuo mapeamento do espaço geográfico, como o Telescópio Hubble
193
,
um supertelescópio, ambos instalados ao redor da Terra, um voltado para dentro e o
outro voltado para fora, para os confins do universo. Temos então uma face voltada
para o interior e outra para o exterior sempre a nos possibilitar uma nova redefinição
dos limites, aparentemente um jogo infinito, basta que para isso s tenhamos a
certeza de que a natureza humana permanecerá.
Nessa linguagem geradora e infinita em que estamos inseridos a única
certeza que reiteradamente nos é permitido compartir enquanto seres humanos,
social e culturalmente articulados, é o surgimento, em cada indivíduo, dessa
necessidade instintiva de designar/desenhar/significar/contornar/mapear, o que nos
leva reiteradamente a criar mapas com suas próprias chaves, ou, ainda, metálogos,
que definem narrativas verbais constituídas como seus próprios contornos.
O complexo ver/ler como possibilidade da expansão do quadrado lógico,
como uma metalógica, possibilitando um movimento para além da lógica, é a
odisséia que nos corresponde, pois inclui também a mentira e o segredo. Para
Katherine Harmon
194
(2004) é aos três anos que nasce em cada um de nós esse
“mapeador” ansioso por afirmar o direito por seu próprio território, restringindo-o em
limites acordados a cada dia em estruturas, a cada vez, mais complexas.
E o que se pode ainda dizer/fazer frente à complexidade manifestada nesse
longo caminho trilhado, tendo a natureza complexa da arte se apresentado como o
mapa que possibilita a manifestação de si mesma como outra? Não seria esse o
novo estado da arte, manifestada agora em signo, tal como uma imagem fotográfica,
193
O Telescópio Hubble foi colocado em órbita da Terra em 1990 e somente em órbita que foi descoberta uma
aberração esférica em seu espelho primário (tal como uma miopia), entretanto foi rapidamente aprovada uma
correção óptica que foi realizada com um complexo pacote de cinco pares de espelhos ópticos. Ainda hoje os
cientistas se “comunicam” com o Telescópio Hubble que tem quatro antenas que permitem ser visualizado via
TDRS Tracking and Data Relay Satellite Sistem é um sistema de cinco satélites que estão em vários locais
no céu, na órbita terrestre e no momento que o Hubble entra na linha de visão de algum destes os cientistas
então interagem diretamente com ele.
194
“Personal Geographies and other maps of the imagination” Geografias pessoais e outros mapas da
imaginação. Perpassa a obra de Katherine o que para ela se constitui o nosso maior desejo: entender o mundo ao
nosso redor e encontrar o nosso lugar nesse mundo. E para isso ela elabora um amplo panorama, tendo como
foco a imaginação do artista como o próprio criador de mapas.
3-172
tão próxima da metáfora “Terra” cantada desde 1978 em letra e música por Caetano
Veloso
195
, a qual se mostra/esconde no pequeno fragmento abaixo?
“Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens...
Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?...”
195
Caetano Emanuel Viana Teles Veloso nasceu a 07 de agosto de 1942 em Santo Amaro na Bahia, é um
compositor e cantor brasileiro que tem cantado todas as transformações por que temos passado no século XX e
chega ao século XXI com a mesma fonte inesgotável que o coloca como um dos grandes criadores nacionais.
4-173
4 A VISÃO TELESCÓPICA E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE ARTE
4.1 REGIME DE OBSERVAÇÃO E AUTOCONTROLE DA ARTE
196
Construir ou adequar um dispositivo próprio para a observação, no entanto
impróprio para a visão
197
, tal como o que estou trazendo nesta etapa da tese, como
uma pesquisadora criadora onde se misturam na criação o cientista e o artista, é
também reapresentar o conceito de dispositivo
198
, apresentando-o em
recursividade
199
neste texto. Desta forma, o fato de ter iniciado esta jornada,
algum tempo atrás, com um simples “apertar de olhos” me possibilitou, como artista,
eliminar os reflexos e os brilhos excessivos que se apresentam nas imagens
colocadas em ação, e esta atitude, tendo sido construída como um dispositivo para a
visão/observação, definiu uma organização onde pude começar a vislumbrar
algumas linhas do objeto pesquisado.
Ao percorrer essas linhas, concomitantemente fui configurando caminhos
abstratos que possibilitaram esboçar movimentos em estados actanciais. Nesse
desenho, acabei por engendrar um percurso em geratividade, realizado como um
passeio pela superfície do objeto na busca pelo sentido, onde, por vezes, eu me
deixava conduzir, e, por outras vezes, era eu quem conduzia, escolhendo diferentes
papéis actanciais
200
em figurativizações, na tentativa de tornar visível
201
os
movimentos realizados na linguagem.
196
A idéia de relacionar o regime de observação a um mecanismo de autocontrole da arte advém da relação
intrínseca “arte e ensino da arte”, que, além de ser considerada como princípio da própria ação exercida pela arte
sobre o organismo humano, atingindo-o como uma impressão, reitera esse princípio na organização curricular do
Curso de Artes Visuais da UFRGS, o qual tem conservado esta relação como constitutiva e consecutiva na
definição do perfil do egresso, desde a inserção do Instituto de Artes na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, correspondendo ao foco expandido da abordagem desta tese.
197
A impropriedade da visão à que me refiro contrapõe a visão à observação, no sentido em que na segunda está
implicado o sentido de fazer ver, notar, atentar e replicar, enquanto na primeira está presente simplesmente o
sentido da vista como imagem e como ato de ver.
198
A ênfase colocada no conceito de dispositivo focaliza-o neste capítulo como um instrumento de fazer ver,
incluindo a operacionalidade necessária à ação, definida em um conjunto funcional. É importante resgatar ainda
a questão da operacionalidade como uma articulação da manipulação” e da “operação”, caracterizando-se a
primeira como a ação do homem sobre os outros homens, e a segunda como a ação do homem sobre as coisas;
sendo esta caracterização dada por Greimas (1979).
199
A “recursividade”, segundo Greimas (1979), é uma propriedade das línguas naturais onde uma unidade
sintagmática pode se encontrar em níveis de derivação diferentes. É responsável pela elasticidade do discurso e
também é o referencial onde se pode interpretar os “motivos”, que, por sua vez, apresentam dificuldades por se
constituírem freqüentemente em micronarrativas autônomas.
200
Os papéis actanciais evidenciam um movimento que se dá na linguagem.
4-174
Com essa atitude, eu acabei por me aproximar da arte moderna, realizando
movimentos na linguagem, tal como os movimentos explicitados pela arte, que
constituem o paradigma moderno da arte no século XX. A desconstrução da
imagem figurativa predominante na arte até então, tem-se evidenciado na obra dos
artistas modernos, que, ao invés de se voltarem sobre o mundo, optam por fazer
uma reflexão sobre o próprio meio, e assim reinventam a imagem recorrentemente
em desenhos, pinturas, gravuras, esculturas. Mas, também, essa reinvenção não
despreza novas imagens inventadas em outros meios, que surgem relacionados aos
contextos culturais de sua própria época, como as imagens fotográficas e as
instalações. Assim como na reinvenção da ação através de performances, e, ainda,
colocando em evidência a invenção nas reflexões sobre o meio artístico construídas
em teorias, reflexões pedagógicas e projetos de ensino da arte moderna
202
.
Nesse “entre-meio” deixo-me ser conduzida por Klee, um artista-professor
que definiu um dos parâmetros da arte do século XX, ao almejar a exatidão da arte
na invenção da linguagem concretizada na plasticidade formal da matéria. Para o
artista Paul Klee, a essência da arte gráfica conduz para a abstração, mas, de um
modo especial, onde o esquema e a fábula do imaginário dão-se
concomitantemente, ao serem expressos em precisão. Para Klee, os elementos
formais da arte gráfica são pontos e energias, sendo estas últimas desdobradas em
energias lineares, planas e espaciais. O objeto passa, então, a ser o mundo, mesmo
não sendo o mundo que nos é dado a ver na natureza.
201
Uma das questões da arte, a partir da modernidade, passou a ser “o tornar visível”, convivendo com o
paradigma acadêmico onde a questão da arte é a reprodução do visível: “A arte não reproduz o visível, mas torna
visível”. Esta afirmação foi dita por Paul Klee, artista alemão, filho de músicos, e ele próprio tendo se dedicado à
pintura e à música. Realizou sua primeira exposição individual em 1910, com 29 anos, no Museu de Arte de
Berna e logo a seguir em Zurique. Foi professor da Escola de Artes Bauhaus. Em 1928 publica “Tentativas de
exatidão no campo da arte”. Em 1931 encerra as atividades na Bauhaus, passando a dar aulas na Academia de
Düsseldorf. Entretanto, por constantes ataques dos nacional-socialistas deixa seu posto de professor e emigra
para Berna. No ano de sua morte, 1940, escreve um “currículo” resumido de sua vida e pede a cidadania suíça.
Paul Klee (2001).
202
Tal como as obras do artista-professor Paul Klee: “Sobre a arte moderna” (1924), “Caminhos do estudo da
natureza” (1923), “Livro de esboços pedagógicos” (1925). Entretanto, como artista-professora brasileira, me
reporto também a duas artistas-professoras brasileiras Fayga Ostrower e Lucimar Bello. Fayga, a exemplo de
Klee, estabelecendo relações entre a arte e a ciência, evidenciada nas obras: “Universos da Arte” (1983), “A
sensibilidade do intelecto” (1998), entre outras. E Lucimar Bello Frange com a obra: “Por que se esconde a
violeta?” (1995) incorpora as questões do paradigma moderno, mas acaba por ultrapassá-lo, atingindo o
paradigma contemporâneo através da inserção do eixo atitude-invenção-desconstrução no último capítulo de seu
livro, Capítulo VI, “Asas-Delta para o Êxtase”.
4-175
É exatamente no sentido de tornar visível a arte que se funda a relação
artista-professor, correspondendo a este novo mundo que se torna visível na arte
203
.
E, através desta relação fundacional, posso, enfim, verificar a precisão preconizada
nas reflexões de Klee (2001), quando passo a acompanhar com o professor o
desenvolvimento de um tema por meio da narrativa do artista, o que, talvez, não seja
mais do que uma retroversão, à semelhança da utilização de um espelho retrovisor
que torna a presença do outro visível e necessária, além de constitutiva da própria
arte, agora também manifestada como um sistema
204
:
“Seguindo o traçado de um plano topográfico, façamos uma
pequena viagem à terra do melhor conhecimento. Transposto o
ponto morto, encontra-se o primeiro ato de movimento (linha).
Depois de pouco tempo, uma parada para tomar fôlego (linha
interrompida ou, no caso de uma parada que se repete, linha
dividida). Uma olhada para trás, percebendo o quanto
percorremos (movimento contrário). No espírito avaliar o caminho
para lá e para cá (feixe de linhas). Um rio tenta impedir nosso
avanço e usamos um bote (movimento ondulado). Mais acima no rio
haveria uma ponte (série de arcos).
Do outro lado encontramos alguém que tem o mesmo propósito, que
pretende ir para o lugar onde se pode encontrar o maior
conhecimento. A princípio unidos pela alegria do encontro
(convergência), gradativamente vão surgindo diferenças (orientação
independente de duas linhas). Certa agitação das duas partes
(expressão, dinâmica e psique da linha).
Atravessamos um campo não-cultivado (plano cruzado por linhas),
depois uma floresta densa. Ele se perde, procura o caminho e
descreve então o clássico movimento do cachorro correndo.
203
É interessante resgatar aqui um pequeno trecho da apresentação que Ana Mae (primeira Arte-Educadora
brasileira) faz de Lucimar Bello em seu livro “Por que se esconde a violeta?”: “Você é uma das poucas
professoras universitárias que conheço que tem a coragem de ser artista e arte-educadora”, pois isto ocorreu em
um período em que o “artista-professor” (formador do especialista em arte) estava afastado do “arte-educador”
(formador do especialista em arte-educação, e educador ligado à formação geral), senão em lugares considerados
opostos.
204
A referência à arte como um sistema corresponde à relação fundacional arte-ensino da arte e artista/professor,
focalizando a institucionalização da própria relação, que volta a se reiterar na atualidade na responsabilização
social das universidades, através do pesquisador/curador, tornando possível a pressuposição de um Sistema
Nacional de Educação, através do Sistema Nacional de Avaliação, vinculando a Educação à Formação Superior
em um sistema de formação continuada.
4-176
Também não estou totalmente sereno: na região de um novo rio
há neblina (elemento espacial). Logo volta a ficar claro em torno.
Carregadores de cestos voltam para casa com sua carroça (a roda).
Entre eles, uma criança com cabelos cacheados (movimentos em
espiral). Mais tarde a atmosfera fica carregada e escura (elemento
espacial). Um raio no horizonte (linha em ziguezague). Sobre nós
ainda restam estrelas (reunião de pontos).”
Com a narrativa desse retorno, ou, através dessa retrovisão que recuperei
junto com Klee, onde a imagem parece ter mudado de lugar, em uma nova “ex-
posição”, residindo em algum outro lugar entre o ver/ler e o ler/ver, tornando o
plano/linha e a linha/plano: revejo o percurso que tenho gerado por meio de
descrições e narrativas, expressadas e imaginadas entre comunicações e
produções, como precisas matrizes ou mesmo metáforas, apresentadas em mapas
reais e virtuais. Nessa revisão verifico que cheguei, inclusive, a deambulações
operadas por uma debreagem
205
fundacional, tendo apresentado nessa errância o
Currículo do Curso Superior de Artes Visuais da UFRGS, através de fronteiras que,
possivelmente, não tivessem ainda sido desbravadas.
“Logo chegamos ao nosso primeiro pouso. Antes de adormecermos,
algumas coisas ressurgirão como lembranças, que uma pequena
viagem como essa é carregada de muitas impressões.” (KLEE,
2001).
E, finalmente, nesta etapa do desenvolvimento, percebo que a atuação
prescinde do sincretismo “eu-aqui-agora”
206
que respondeu pela enunciação do
205
Debreagem é um conceito usado em semiótica que corresponde a uma operação pela qual a instância da
enunciação se desprende e projeta fora de si, no ato da linguagem, manifestando os termos ligados à sua
estrutura de base, constituindo os elementos fundantes do enunciado-discurso. Mas talvez seja interessante
apresentar também o conceito de debreagem como um dispositivo mecânico localizado entre um motor e uma
caixa de mudanças que permite comutar ligar/desligar o motor de transmissão por meio de discos de fricção,
com a finalidade de comutar posições, mudando o regime do motor, conforme as diferentes condições de
rodagem, definindo convenientemente os avanços ou recuos considerados como necessários.
206
É importante reiterar aqui o modo de construção em sobreposição que definiu o capítulo anterior, onde eu
me encontrei submersa em uma densidade construída através das seguintes condições: 1. O “eu”: por minha
primeira formação e continuado exercício como artista. 2: O “aqui”: por um exercício profissional de professor
formador de artistas, evidenciando a experiência profissional constituinte e participativa do currículo do curso. 3.
O “agora”: por uma formação continuada evidenciada pela concretização desta tese, como pesquisadora
compartilhando, como aluna, tanto a formação do formador de artistas como a formação do formador de
professores.
4-177
capítulo anterior onde eu me debruçava sobre a formação do artista, e, em completo
assombro, me ocorre que uma grande área, a qual foi, justamente, o eixo
determinante do caminho da proposta de tese
207
, até este momento, ainda não foi
focalizada, a não ser em pequenos relâmpagos, como breves linhas luminosas
aflorando do objeto de estudo em ziguezague.
Tento, todavia, rememorar estas brevidades surgidas como pequenas luzes,
estas que, claramente, invertem a precisão da energia gráfica de uma área
nebulosa, e, por fim, verifico que são estes pequenos pontos de luzes que acabam
por proporcionar um viés para a continuidade do percurso. Evidenciando tanto o
artista como o cientista presente no pesquisador, a solução se configura através da
construção de um novo dispositivo para a visão: a telescopia; evidenciando na
observação telescópica a solução de continuidade
208
para continuar a ver/ler
209
o
currículo como um objeto semiótico
210
.
As mais diversas linhas. Manchas. Pontinhos. Planos lisos. Planos
pontilhados, riscados. Movimento travado, dividido. Movimento
contrário. Entrelaçamento, teia. Traçados de muros, traçados de
escamas. Unissonância. Polifonia. Linha que se perde, linha que se
intensifica (dinâmica).
A alegre simetria da primeira parte do caminho, depois os entraves,
o nervosismo! O temor contido, o alívio do ar cheio de esperanças
sendo aspirado. Antes da tempestade, o ataque dos moscardos! A
fúria, a matança.
207
Refiro-me à “Proposta de Tese” defendida anteriormente como parte obrigatória dos créditos necessários ao
Doutoramento. Na página 37, “Campo dicotômico do ensino da arte”, me coloco em uma situação de
estranhamento (olhar em separado) justamente por ter escolhido abordar inicialmente a formação do professor de
arte. Naquele momento me deixei guiar pela mão de Ana Mae, primeira arte-educadora brasileira, pois a máxima
proximidade com a arte, sem que se confundisse com a mesma, se fazia necessária ao desenvolvimento do texto,
onde eu me colocava como um sujeito por “trás” do texto, ou seja, como um sujeito ontológico.
208
É essencial a reiteração do significado de “solução de continuidade”, que traz em seu arcabouço conceitual a
possibilidade de continuidade na descontinuidade, na separação das partes constitutivas.
209
O ver/ler até agora tem sido utilizado no texto nesta ordem em que está sendo colocado, entretanto neste
capítulo, busco focalizar “ao longe” a inversão da “moeda”, e como se estivesse perto vou definindo a
abordagem também a partir do ler/ver, sob condições especificadas pela ciência. Encontro ressonância dessa
escolha no paradigma moderno da arte.
210
A precisão da energia nebulosa define a exatidão da energia luminosa diferenciada a partir do cálculo do
momento exato de seu surgimento, assemelhando-se ao surgimento de uma supernova.
4-178
As coisas boas como guias, mesmo na escuridão da floresta densa
e durante o crepúsculo. O raio recordava aquela febre que ia
aumentando. Uma criança doente... no passado.” (KLEE, 2001)
A inserção desta nova operatividade define um actante em semelhança aos
artistas modernos, e, de certa forma, reconstrói a atuação conforme o paradigma
moderno em um novo estatuto actancial, pois considera que uma parte significativa
de artistas modernos, sendo também professores, tenha se notabilizado por uma
apropriação de conceitos e procedimentos advindos de outras áreas do
conhecimento definidas como científicas. Embora esta nova operatividade
presentifique o professor e o cientista ao lado do artista, esta ocorrência é
reconstruída em um meio onde a observação passa a ser definida pela “não visão”.
Mas, desta “não visão” decorre também a fresta que permite, agora sem
imbricação
211
, unicamente por fricção
212
, uma passagem para um novo regime de
embreagem dado em simulacro por um “não-ser”, um “não-agora” e um “não-aqui”.
Esta produção do dispositivo telescópio sucede em uma nova parceria,
articulando o discurso da ciência na linguagem. E, através desta parceria,
redefinindo a metalinguagem enquanto um sistema de significação, também é
possível aproximar as microrracionalidades advindas da perplexidade da reflexão
presentes no pensamento de Boaventura de Souza Santos
213
, embora essa
aproximação se através de uma releitura das microrracionalidades que são
reiteradas por fricções holográficas
214
que fazem rever/ampliar alguns conceitos
estabelecidos anteriormente.
211
O conceito de imbricação como um processo que define uma sobreposição parcial, está construído em
semelhança aos dispositivos que trazem a redução parcial da visão, sem reduzi-la em momento algum à visão
monocular, presente, como matriz abstrata, nas tecnologias da razão que passaram a caracterizar o pensamento
racional da modernidade.
212
O conceito de fricção como um processo que define a perturbação sem imbricamento, sendo dado
simplesmente pelo atrito, ou, ainda, pode ser dito: pelas interferências que ocorrem em áreas de franjamentos.
213
Boaventura de Souza Santos é poeta/professor/sociólogo e é através desta densidade constitutiva que fui
buscar as microrracionalidades encontrando-as como propriedades comuns no plano topológico de seu
pensamento reflexivo/contemplativo.
214
Holografia é um método de registro "integral" tridimensional, com relevo e profundidade, em um plano
bidimensional que utiliza a luz para o registro. Os hologramas se caracterizam, especificamente, pela
propriedade de cada parte possuir a informação do todo. Assim, um pedaço qualquer de um holograma terá
informações sobre toda a imagem do mesmo holograma completo, possibilitando a visão integral, entretanto,
sempre a partir de um ângulo estreito. A comparação pode ser feita com uma janela, se a cobrirmos e deixarmos
uma pequena fresta horizontal, permitiremos a um espectador continuar enxergando a paisagem do outro lado, de
4-179
A formação do professor de arte à que me refiro define um perfil
especificado na Licenciatura em Artes Visuais articulando o
artista/professor/pesquisador. Nesta etapa, não estou me referindo mais à
especificidade do professor formador do formador, ou mesmo, ao formador do
artista. Reporto-me ao professor de arte do ensino regular institucionalizado, menos
especialista/mais educador, e em proximidade a esta institucionalização, ainda me
refiro ao educador/curador como um educador/mais especialista.
Este novo educador tem-se evidenciado nas instituições culturais
emergentes na modernidade, além de ter sido apontado em regulamentações
definidas em parâmetros curriculares
215
, os quais alertam para o “cuidado” que se
deve construir como professor de arte em relação a um patrimônio cultural, material
e imaterial, o que também se apresenta no perfil de um curador. Talvez, mais do que
em reiteração, este alerta apareça em substituição a uma construção desgastada
onde se enfatiza a educação para a cidadania, porém concomitantemente se
esconde o subtendido “combate” definido e encoberto na relação político-social que
constitui qualquer governo. E, de certa maneira, é esse educador/mais especialista
que também redefine a sociedade atual, junto à qual a cultura tem-se relacionado
em acoplamento, estando ambos: o social e o cultural estruturados dentro de um
paradigma contemporâneo.
Nesta circunstância é prudente buscar a rigorosa descrição também das
formas de observação, e, desse modo, torna-se necessário constituí-las em regimes
de observação. Esta necessidade advém destas novas escolhas empreendidas, que
acarretam a presença de simulacros dobrando a ão à maneira da ciência como
uma ação simulada para a experiência e passam a ser constituídas através de
regimes de observação. Um regime pode remeter de imediato, a um estado, ou a
um ângulo muito restrito, mas ele ainda verá toda a paisagem. A visão ainda poderá ser feita através da visão
binocular.
215
Os “Parâmetros Curriculares Nacionais” constituem, juntamente com os “Organizadores Curriculares do
Ensino Médio” e os “Referenciais Nacionais para a Educação Infantil”, as regulamentações para a Educação
Básica, complementando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, de 1996.
4-180
um conjunto de preceitos, que definem também temporalmente um sistema, e, nesta
relação, se poderá verificar o que corresponde à arte e o que se definiu pela ciência.
Nesta acepção de sistema, que ultrapassa as topologias do espaço
216
, que
foram redefinidas em precisão e rigor por Klee, mas também as extrapolam para
além de qualquer redefinição, ao incluir e focalizar o tempo em um movimento que
reitera a sua própria organização, eu volto a estabelecer um outro ponto de contato
com Maturana e Varela, desta vez enfocando o interstício vida/ morte
217
, no qual o
conceito de regime encontra um novo significado, passando a ser visto como chave
da mudança, através da indissociabilidade do conceito de organização formulado na
“Teoria da autopoiesis”.
Porém, através desta articulação conceitual onde se encontram os conceitos
de “regime” e “organização”, recupero também o enunciado de Bateson (1972), que,
ao imbricar a política
218
no sistema, manifestou preocupações de caráter
essencialmente social. Afirmando que a política sempre teima em se separar do
social, Bateson diz que sistemas político-sociais não são senão fenômenos
biológicos, mas que os políticos o sabem disso. Sendo assim, a sociedade
relacionada significativamente ao humano é também o lugar onde as mudanças
podem fazê-la perder o seu significado, principalmente se essas mudanças não
estiverem articuladas à permanência daquilo que a faz uma sociedade humana, o
que evidencia também, por outro lado, que, somente a permanência, por si só, não
reflete o que caracteriza a sociedade como o lugar do humano.
Este plano de continuidade do texto que vem sendo construído em
sobreposições e rebatimentos, em avanços e retrocessos, já é também uma imagem
216
É importante lembrar que o Sistema Nacional de Educação na atualidade se torna possível através do
Sistema de Avaliação Nacional, o que, de certa forma, é a inserção do tempo como única possibilidade de
integralização do sistema, quer se considere a duração na avaliação comparativa, quer se considere o anterior e o
posterior na avaliação sistêmica como mecanismo de retroavaliação, para conservação e mudança do sistema.
217
Vida/morte são também para Greimas “unidades mínimas” profundas da significação.
218
Não se pode esquecer que política, para além da relação com regras ou princípios também se refere a uma
ação voltada para um fim. Deste modo, imbricar a política no sistema significa perceber que o sistema dinâmico
criado por Maturana e Varela é também complexo, tendo sempre uma outra face onde se escondem séries de
comportamentos simples, que, por sua vez, podem constituir um novo sistema complexo. Relacionado à
vida/morte, na interação política/biologia, se encontra também em Bateson o conceito de sobrevivência que é
definido por ele como: “a manutenção de um estado constante no decorrer de gerações sucessivas” (1986).
4-181
estendida para além da modernidade
219
, e neste transborder é possível resgatar
novamente o ver/ler, embora agora seja necessário estar voltado para o seu inverso:
o ler/ver. Deste modo, mais uma vez na busca de algum tipo de orientação, eu me
deixo conduzir pela o de Boaventura de Souza Santos
220
(2003) na intenção de
encontrar alguma outra espécie de racionalidade que possa ser subtraída de seu
texto e que auxilie na construção/utilização/definição do dispositivo necessário a
esta etapa.
Ao encontrar uma miríade de minirracionalidades que são defendidas pelo
pesquisador como possibilidade de resistência e transformação ao caráter de
irracionalidade global
221
, sendo este afirmado como, de outro modo, incontrolável, eu
faço, simplesmente, uma leitura das linhas que a seguem, embora nessa leitura as
reinvente, ao reproduzi-las com um caráter holográfico, tendo como modelo as
releituras utilizadas, mais especificamente, pelos professores de arte, a partir do final
do século XX, como um dos procedimentos de “re-apropriação” da imagem artística,
em que alguns elementos se conservam e outros se transformam, gerando novas
possibilidades de comunicação e expressão.
Reproduzo em gravuras
222
holográficas três lugares motivados pelas
perplexidades analítico-reflexivas de Boaventura de Souza Santos, tendo como guia
o ver/ler pressuposto pelo seu inverso, o ler/ver, articulado ao eixo saber/conhecer.
Ao trazer, em segredo ou mentira, contra-saberes nas relações: ler, conhecer, não
ver, não saber, ou ainda: ver, saber, não ler, o conhecer; os eixos pressupostos
como saber ou conhecer poderão ser de grande valia para caracterizar os regimes
de observação, de modo que possam vir a ser compreendidos como regimes de
autocontrole da arte.
219
Tal como o fez Lucimar Bello conforme mencionado na nota 199.
220
Interessante pensar nesse jogo de dobras e rebatimentos: Boaventura se deixa conduzir “pela mão de Alice”
para resgatar microrracionalidades e agora eu me deixo conduzir pela mão de Boaventura para colher essas
microrracionalidades. Isso permite tanto ampliar o que havia ficado para trás, antes do caminho de Alice, quanto
acrescentar ao meu caminho a colheita de Boaventura.
221
Talvez o caráter de irracionalidade global possa também ser comparado ao surgimento de comportamentos
complexos que eclodiram no seio de um sistema que vinha sendo mantido sob controle na tentativa de defini-lo
como um sistema simples.
222
A gravura é um gênero artístico que coloca em foco a impressão como procedimento concreto do meio, pois
está caracterizada como um modo específico de copiar ou reproduzir manualmente ou mecanicamente uma
matriz definida por um suporte no qual foram registradas marcas. O tipo de marca e o modo de reprodução
delata também a matriz e classifica o tipo de gravura.
4-182
A primeira gravura enfatiza o toque, mas não o toque definido pela ponta dos
dedos, como o ato de escolher ou apontar já caracterizado como um signo; e, sim, a
manipulação, o pegar, agarrar, apanhar, mas também o manipular
223
, que, tanto na
arte, como na ciência, se constitui como o cerne do fazer
224
. Esta ênfase é
considerada na arte através de seu próprio sistema de autocontrole, pois nas
instituições artístico-culturais, na disposição/exposição da obra de arte ao público,
este princípio é transformado em uma abstração. Sublimar
225
o toque pelo “tocar
com o olhar” manifesta o imediato que é dado pela obra à visão, e está
presentificado em qualquer “desenho cego
226
”. Entretanto, essa “sublimação” que
implica na passagem da concretude do toque à abstração do olhar movimenta,
concomitantemente, a relação entre o ver e o ler
227
, transformando-a em uma
hierarquia móvel.
Este autocontrole instituído/arbitrado para a arte é também o que torna
possível a resistência ao descontrole proveniente da desregrada manipulação que
se faz de tudo que é aparentemente sólido na atualidade. Pois, sem um autocontrole
223
Importante resgatar dois dos sentidos da palavra manipular, os quais estão expressos por Aurélio (1988), um
mais próximo da arte, significando imprimir forma (a alguma coisa) com a mão; outro, mais próximo da ciência,
definido como fazer funcionar, pôr em movimento, acionar. Resgatando a forma e o funcionamento neste com-
junto: a arte e a ciência aparecem como distintas e articuladas. Mas também é importante resgatar o conceito de
manipulação que envolve, conforme Greimas, a ação de um sujeito sobre outro sujeito, o que nos faz considerar
a arte e a ciência como sujeitos de uma mesma ação, em uma articulação entre o fazer/sofrer a ação.
224
O conceito de cerne presentifica a relação vida/morte de um modo muito particular, trazendo essa relação à
consciência, sendo que a ela tenho feito referência como entre conservação e mudança, desde o início do texto.
Traz a ação do que é vivo (mudança) articulada à presença do que está morto (conservação), constituindo este
como essência ou centro, entretanto, ultrapassando àquele somente na morte. Ou seja, conforme o Aurélio
(1988), “cerne” é uma parte do tronco das árvores formado de células mortas, que não tem mais substâncias
nutritivas de reserva, entretanto, simultaneamente, o cerne é a parte da madeira que, ao ser queimado o tronco,
não queima e, ao ficar submerso na água, não apodrece. Por outro lado, relacionado ao fazer, o “cerne do fazer”
define uma orientação voltada para o que está sendo feito, desprezando o que faz, ou o que possibilita o fazer; ou
seja: descarta a manipulação como uma ação da mão, como um instrumento que utiliza o toque, encobrindo-a
com o objeto que é feito, o qual passa a ser visto através da definição unicamente pela visão, que, por sua vez,
volta a encobrir o não-ver que estava presente na ação. Dito de outro modo é o encobrimento de um sujeito pelo
outro estando centrado no objeto que foi feito e não na ação.
225
Sublimar está sendo utilizado em um sentido metafórico, relacionando a passagem de um estado sólido para o
gasoso com a passagem da concretude do tocar para a abstração do olhar, levando um, diretamente, ao estado de
um outro.
226
Desenho cego é um procedimento muito comum no ensino do desenho que parte da pressuposição da
existência de uma conexão entre o olho e a mão que é construída através da relação da experiência tátil com a
visual. Consiste em olhar para um modelo a ser desenhado, desenhando-o em um percurso linear construído na
tatilidade do olhar, e, simultaneamente, reiterar este percurso com a mão e o lápis sobre o suporte, sem olhar para
o desenho que vai sendo elaborado.
227
Esta condição é especificada na arte, onde o emissor, ou objeto da expressão/exposição mistura sujeito/objeto,
sendo referente e também o portador do signo.
4-183
presente na autopoiesis que caracteriza a arte em reiterada redefinição de limites, e
simultaneamente conservando a sua própria organização, ela poderia vir a se
transformar, simplesmente, em algo totalmente indeterminado, abrindo a
possibilidade de sua própria anulação. Essa indeterminação poderia, por fim,
eliminá-la por uma instauração de um estado de barbárie, onde todos os lugares se
apresentam dissolvidos, desmanchados.
Com o fim da arte, volta-se unicamente a um pensamento abstrato, onde a
possibilidade de retorno se apresenta tendo um “cego” como guia. Tateia-se para
encontrar o lugar, esquadrinha-se perscrutando e fazendo pensar em um indelével,
mas tosco desenho da recordação da recordação, da recordação, da recordação de
uma caverna onde restaram as marcas ou as sombras
228
. Entretanto cabe
ressaltar que, desta vez, em se confirmando a estrita necessidade de retorno, existe
um contraponto que também gera uma nova possibilidade de conhecimento ou
reconhecimento. O contraponto manifesta-se metaforicamente como um outro tipo
de “cego”, como uma “cegueira branca”
229
que acomete momentaneamente aquele
que ousou sair deste mesmo lugar. Esta manifestação evidencia-se como um
confuso e desregrado estado de acomodamento a uma nova situação, que é
possível de transpor se for levado em consideração o caráter indissociável entre
ver/saber/conhecer/ler. Sendo assim, depreende-se que indubitavelmente o
orientador para a passagem será sempre aquele que sabe e vê, entretanto sem se
separar daquele que conhece e não com a restrita possibilidade de leitura que
ocorre durante qualquer transformação e quiçá posterior a todo movimento definidor
de uma passagem.
Considerando a digressão anterior, a “holografia do toque” enfoca o fazer da
arte e da ciência com o claro objetivo de limitar a manipulação que está presente em
ambos, imbricando-a na contemplação/reflexão
230
. Na contemplação está implicada
228
Faço uma referência à caverna de Platão”, relacionando o mito do conhecimento em um caminho
desdobrado desde o conhecimento visto como um fazer na atualidade até o conhecimento visto como uma forma
ideal esperando ser reconhecida.
229
Refiro-me a certa interlocução deste mito de Platão, presente na narrativa de Saramago em seu livro “Ensaio
sobre a cegueira” onde a manipulação desenfreada é gerada por este estado momentâneo de cegueira que se dá
como uma epidemia na sociedade em uma bela metáfora da necessária revisão de nossos mitos de origem frente
ao momento de transformação que se vive.
230
Essa “holografia do toque” me faz lembrar de um curso que fiz com Humberto Maturana: eram mais ou
menos umas trinta pessoas e estávamos sentados em círculo, num momento inicial, ainda todos agitados,
4-184
uma duplicação pela estase, onde uma matéria diversa paralisa o organismo,
provocando o gozo ou a fruição. E, na reflexão está implicado um duplo movimento
que, ao dar uma volta sobre si mesmo, retorna como um outro, provocando o
entendimento na contenda. Talvez, os modelos possam vir a ser uma fita de
Moebus
231
, onde se passa do interior ao exterior e novamente ao interior,
infinitamente, e o complexo presente no apólogo dos dois escudos, ou no “apólogo
do escudo de ouro e do escudo de prata”
232
, que, frente às sobras da contenda,
necessita da orientação de um dervixe.
A segunda holografia da exposição de gravuras constitui-se como a própria
representação, e, sendo assim, apresenta, especificamente, a representação como
uma forma abstrata, constituída unicamente de relações de distâncias, onde, quanto
mais distante
233
, mais próximo do real é o conhecimento, e, conseqüentemente,
mais objetivo. Como exemplo: o paradigma acadêmico e a representação
perspectiva do espaço que, colocando o sujeito para fora do sistema, necessitam
duplamente de uma distância razoável do objeto (referente) e do ponto de fuga
(referência) definido por um longínquo e abstrato horizonte. Mas, por outro lado,
Boaventura resgata não a imagem, mas o fato como arte, e afirma que maior
quantidade de enlaces em acordos totalmente consensuados define também uma
maior clareza.
A proximidade presentifica o contexto situacional e local nos processos de
comunicação, evidenciando o saber pragmático e edificante da oralidade no face a
tentando se acalmar, todos queriam ouvir, mais do que serem ouvidos, quando em silêncio profundo começou a
passar um objeto de mão em mão, vindo de Maturana, como uma preciosidade. Cada um se demorava com o
objeto na mão, apalpavam com a mão fechada em torno do objeto, este parecia totalmente aderido à mão, tinha
se transformado na forma da mão que o acolhia. Eu estava impaciente, muito curiosa, que seria aquilo?
Ninguém falava, mas todos que agarravam o objeto pareciam maravilhados. Quando o objeto finalmente chegou
a minha mão, fiz como os outros, procurei ver e identificar unicamente com a mão. E foi então que reconheci o
objeto que se escondia e me mostrava a minha própria mão pela arte, era a Vênus de Dusseldorf. Essa foi uma
experiência que redimensionou totalmente minha concepção de conhecimento.
231
A fita de moebus é uma topologia matemática de uma única superfície que articula em continuidade dois
lados através de uma única borda.
232
Este apólogo foi relatado na página 42.
233
Cabe recuperar a informação a respeito das deformações, que dentro de universo perspectivo são dadas como
anamorfas, às quais pela proximidade do objeto referente impedem a utilização da linha reta, gerando uma forma
na perspectiva que necessita de uma “decodificação” realizada por um dispositivo constituído por uma superfície
curva espelhada, relacionando de certa maneira o côncavo e o convexo como a mesma superfície, tal como o
“avesso e o direito”.
4-185
face. E o face a face
234
é também o que está na origem do autocontrole instituído
pela arte que se faz a partir da própria transformação da experiência da arte, que
passa a ser a experiência do mundo através da arte, garantindo a continuidade da
arte na inversão da estética, ou seja, na estetização do mundo, ou ainda, na
estetização da existência, como foi preconizado por Joseph Beuys
235
, mas também
tem sido de um outro modo trabalhado por Ernesto Neto
236
. O ato criativo passa a
ser um convite à necessária reinvenção das formas de vida nas sociedades
contemporâneas. Deste modo, a holografia da representação reapresenta o ver/ler
como o ler imagens seguindo “historicamente”
237
imagens e conceitos e ler linhas
seguindo “historicamente” conceitos e pontos
238
, articulando a linearidade e a
narratividade.
Do mesmo modo que fui colecionando figuras que presentificam algumas
questões que podem ser mostradas na arte e, talvez, então compreendidas sem
serem ditas, trago as imagens ou contra-imagens de Beuys, que são ditas por ele
como “apenas cadáveres de sua ação”, como uma experiência da não-arte como
arte. Apresento também as imagens dos “corpos-experiência” de Ernesto Neto. Com
ambos, Beuys e Neto, quero tornar presente a possibilidade da arte de ler/ver
partindo de uma memória corporal ou cultural, e não necessariamente visual,
estabelecendo uma ponte com a imaginação que ultrapassa a imagem e acessa
diretamente a ação.
234
Não se pode esquecer que a comunicação face a face é também a experiência da arte como comunicação de
sua própria face na resposta vista na face do outro. Para corroborar esta relação relembro o fato que a face é
especificamente a parte de nosso corpo que só pode ver a si própria como um outro, quer se considere a
visualização a partir da superfície espelhada que a inverte e planifica, quer se considere a relação de
rebatimentos, confrontos, repetições e inversões que ocorre na face do outro em semelhança à nossa própria face,
no face a face de um processo de comunicação.
235
Artista alemão nascido em Krefeld em 1921, que fez a sua formação na ciência e reiteradamente afirmou que
arte é ciência e ciência é arte. Dizia também que a escultura a ser realizada é a “escultura social”, afirmando que
a estética é o ser humano, confirmou, reiteradamente, a sua máxima, que diz que “cada ser humano é um artista”.
236
Artista brasileiro, nascido no Rio de Janeiro em 1964, com uma atuação nacional e internacional, passou a
constituir dentro da arte a questão do corpo-experiência, possibilitando uma estética sensorial não-visual, através
da estetização do não-visível. Propõe uma habitação estética do mundo. (in Arte Futura, Ernesto Neto e o lugar
da criação, uma publicação de Arte e Cultura, nº. 5, Brasília, 2002).
237
“Historicamente” está sendo utilizado com o significado de linearidade, sem descartar o significado de
narratividade presente no conceito.
238
Talvez para auxiliar a compreensão desta holografia, seja interessante reportar a um conhecimento que com o
advento da informática torna-se público, por estar disposto como programas computacionais de tratamento de
imagem: a relação é entre imagens construídas através de pontos e imagens construídas através de vetores. Na
primeira o trabalho relacionado à totalidade da imagem deverá ser realizado a partir de sobreposição de leyers
(como peles), e, na segunda, o trabalho relaciona-se sempre a uma parte que, entretanto, está inserida
(relacionada e controlada) totalmente em um universo abstrato de planos referenciais.
4-186
Figura 07: As três reproduções acima são “contra-imagens” da obra de Joseph Beuys levada a termo
em 1982, na Sétima Documenta de Kassel.
Para Joseph Beuys
239
a experiência vivida é uma incorporação cultural.
Suas obras são apenas contra-imagens de suas ações. O plantio de 7000 carvalhos
foi definido como uma idéia com raízes, onde cada árvore tem seu preço explicitado
por uma moeda, e finalmente enfatiza e exorta cada ser humano a colocar a sua
pedra em movimento. Quanto à relação da árvore com a pedra, a imagem da ação
realizada registrada em vídeo mostra que uma pedra, aproximadamente do tamanho
de um ser humano, foi também colocada ao lado de cada árvore plantada.
Figura 08: Ovogênesi 2000 e Humanóides 2001 são exemplos de obras vestíveis de Ernesto Neto; no
centro vê-se uma imagem da instalação realizada na 49ª Bienal de Veneza, em 2001.
A obra de Ernesto Neto apresenta-se como esculturas vestíveis e
instalações sensoriais que enfatizam o tato e o olfato. Para o artista a experiência é
sempre uma experiência de interação, onde o ser humano se forma ou transforma,
239
http://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Beuys
4-187
sendo para Neto sempre uma deformação; desta forma o artista propõe uma estética
sensorial do não-visível, evidenciando também uma “re-habitação” estética do
mundo.
A terceira holografia se refere ao ver/ler e saber/conhecer, mas não somente
como um campo expandido do conhecimento, em acoplamentos das diferentes
ordens que o constituem, e sim como um sistema complexo, em uma complexidade
operacional, onde a realimentação positiva e negativa se define como
simultaneamente componente e determinante do sistema. Nessa holografia do
complexo, o conhecimento passa a articular todos os paradigmas que o constituem
como presença, contexto e história, abarcando uma operacionalidade expandida em
retroalimentação.
Esta pequena coleção de holografias que selecionei se refere a um estado
de transformação, “pasmado”, mas ainda não totalmente “plasmado”. E, mediante
esta falta
240
presente na forma, sou obrigada a retornar também à experiência da
arte e ao modo como Dewey (1934) a construiu, colocando-a como chave da
existência humana. Dewey afirma na arte a qualidade que permite a experiência da
existência humana, sendo esta dada como essencialmente social. A comprovação
dessa afirmação dá-se pela indissociação da experiência da arte e da experiência
estética e está articulada ao fato da experiência estética ser, evidentemente, sempre
mais do que a própria estética, e a materialidade dessa experiência estética ser
indubitavelmente social. Dessa forma, Dewey percorre um caminho articulado pelo
ler/ver, e manifestado pelo ver/ler.
Com o conceito de experiência da arte de Dewey, que se fecha na natureza
humana, ao defini-la como um universo fechado reiteradamente aberto pela arte
241
,
eu retorno aos hologramas que foram construídos, e, de imediato, verifico que, ao
240
As faltas podem ser relacionadas a espaços vazios, que, sendo vazios de significado, possibilitam
configurações que incluem o universo particular tanto como escolhas inclusivas, como escolhas exclusivas.
241
Mediante esta relação, o controle da continuidade da sociedade humana, antes exercido pela ciência, passa
agora a ser exercido pela arte, especificamente no que diz respeito à conservação do humano no social, ou seja, o
que a especifica como humana, sendo dado através do autocontrole advindo da arte. É importante compreender
que este autocontrole acaba por se definir pela inserção da arte como padrão de desenvolvimento do
conhecimento advindo da “Teoria biológica do conhecimento” de Maturana e Varela, onde a chave é dada por
uma estrutura autopoiética. Ou seja, o autocontrole esrelacionado à possibilidade de redefinição dos limites,
definindo uma nova estrutura a partir da conservação da organização que constitui a arte, definida pelo modo
como organiza o seu sistema, reinserindo-a desse modo no sistema social, através do acoplamento cultural.
4-188
colocá-los em exposição, eles se mostram a partir de dois sistemas implicados. E,
embora os dois sistemas se apresentem em pressuposição, um sistema não pode
ser inferido pelo outro, entretanto os dois sistemas podem ser acoplados. Um
sistema é finito, fechado e definido por uma superfície, e o outro é infinito e linear.
E é exatamente esse acoplamento que redimensiona o ver/ler da arte em
pressuposição ao ler/ver de Dewey, redirecionando a leitura, onde se poderá
também ver conceitos e ler imagens, seguindo orientações conceituais e orientações
imagéticas. Ou, ainda, se poderá ler conceitos e simular imagens, tomando como
princípio a hierarquia inicial, que torna possível ver imagens e ler conceitos,
relacionando-os às imagens vistas
242
, pois para isso somos dotados de acuidade
visual que, sendo uma capacidade acentuada de diferençar estímulos sensoriais,
permite o reconhecimento de dois pontos, mesmo que eles estejam muito
próximos
243
.
Mas, e quanto à distância? Até onde alcança o teu olhar? O meu é míope
desde os 16 anos, e, conseqüentemente, esta irregularidade tem redefinido desde
então o contorno de meu olhar. Sabe-se que um dos possíveis motivos da miopia é
essencialmente estrutural, pois oftalmologistas são unânimes em afirmar que olhos
muito grandes pouco enxergam, principalmente ao longe. Uma ligeira miopia
estacionária, definida em “1” dioptria
244
em cada um dos olhos, tem redefinido o
alcance do meu olhar, que, desde então, tem, reiteradamente, “borrado” os limites
da visão, tanto para fora como para dentro dos contornos das coisas.
Mas, então: O que olho? Será a minha própria miopia? Ou, de outro modo,
que tenho corrigido minha visão com a medicina em reiteradas consultas ao
oftalmologista desde os meus longínquos 16 anos, serão as lentes divergentes
(côncavas), envoltas em aros que corrigem meu olhar, recolocando a imagem sobre
242
Nesta relação está claramente presumida a ação do artista/professor e também do artista/professor/
pesquisador.
243
Ou talvez se pudesse também acrescentar a essa proximidade a presença do tempo que poderia definir uma
proximidade espacial que faz os dois pontos parecerem estar colados, ou em sobreposição.
244
Dioptria, também conhecida como grau, é a medida de convergência de uma lente definida pelo inverso da
distância focal expressa em metros.
4-189
a retina, restituindo a visão, mas, também, constantemente enquadrando aquilo que
vejo
245
?
E, ao tirar os óculos, o que faço diariamente, o faço como um hábito, me
sentindo “em casa”, como um lugar onde posso perceber/não perceber os contornos,
expandindo tanto as pessoas como as coisas para além delas. É um lugar onde
encontro o conforto do não-ver como uma completude associada a um estado
aliviado, distendido por também não precisar ver a exatidão do limite, podendo ver
para além e aquém dos limites das coisas. Talvez este estado de coisas que,
tanto tempo, acomete o meu olhar, tenha sido o motivo de eu ter priorizado a leitura,
seguindo superfícies bidimensionais como filmes, ao invés de seguir conceitos como
linhas unidimensionais.
A miopia é dada por uma condição em que os olhos podem ver objetos que
estão perto, mas são incapazes de enxergar nitidamente os objetos que estão longe.
A palavra "miopia”
246
vem do grego, significando “curteza de vista”, mas também o
míope é definido como aquele que inclina os olhos para ver melhor, desse modo
chega-se à idéia do "olho fechado", pois as pessoas com miopia, talvez, por terem
olhos maiores, fazem algum tipo de compensação apertando ou inclinando os olhos
para ver.
Também ao artista é dada esta condição de “ser-míope”, correspondendo
externamente a um condicionamento imposto (daquele que está afastado do ver/
conhecer), distanciando-o do inteligível, e, internamente, se definindo por um
“dispositivo” construído por um “mestre”
247
durante o Renascimento, que vem sendo
dado como uma condição própria do ver/saber da arte, aproximando o artista do que
tem-se denominado sensível e tem sido, reiteradamente, construído na “contra-
posição” do inteligível.
245
Wim Wenders, cineasta alemão, nascido em 1945, criador de uma filmografia conhecida no mundo inteiro, no
documentário “Janela da Alma” (Brasil, 2002), de João Jardim e Walter Carvalho, declara que o enquadramento
dado pela armação de seus óculos é indispensável à sua visão, o que também pode ser visto como indispensável
para definir a visão de mundo que faz parte de todos os seus filmes, definindo concomitantemente a
especificidade que constitui a arte como um universo.
246
Conforme Dicionário Grego-Português e Português-Grego de Isidro Pereira (1990).
247
Refiro-me a Leonardo da Vinci que descreve em seu “Tratado da luz e sombra” procedimentos necessários ao
artista em sua empreitada, ao dar a conhecer um mundo em prol da reconstrução do mundo.
4-190
Dessa maneira, essa orientação herdada pelos artistas, em condição ou
tratado, os leva a, simplesmente, apertarem os olhos para ver. Pois, sendo o mundo
dado ao artista como imagem, com este procedimento podem definir com clareza os
valores constitutivos da imagem, eliminando os brilhos refletidos, mas, também,
definindo uma qualidade especial para os limites entre as formas, as quais passam a
se constituir não mais através da inteligibilidade que as separam em seus contornos,
mas através da inter-relação, aguçando e acentuando a percepção das diferenças.
Assim, o “com-junto” passa a ser determinante, e isso tem como referência a
estruturação da totalidade do olhar, que pode ser visto também como limitação e
fechamento do olhar, abarcando diretamente o ver/não ver já no limite, em estendida
mobilidade
248
.
Ao se transpor esta questão para a biologia, enfocando a visão humana, vê-
se a relação do centro com o fundo na qual a área focal se aproxima da área
periférica, e a fóvea se articula com a retina, articulando as células que reconhecem
as cores, mas não vêem as nuances de cinzas, com as células que detectam os
tons de cinza, mas são incapazes de ver as cores.
Ciente desta situação de míope/míope-artista e do que esta pode acarretar
nesta etapa do desenvolvimento da tese, na qual vou focalizar, especificamente, a
formação superior em Artes Visuais, no que tange à Licenciatura em Artes Visuais,
tentarei reduzir/compensar/ampliar, equilibrando os limites da visão, ao utilizar um
dispositivo que permite um movimento para além da condição de artista-professor-
pesquisador.
Pois assim é ao enfatizar o pesquisador/artista-professor-pesquisador, pois
esse é um lugar onde a formação, em uma primeira acepção, também se dobra
sobre ela mesma em um processo continuado, e ainda articula a formação de um
formador especificado na formação do professor do professor de artes visuais. Mas,
acima de tudo, é imprescindível ter o cuidado de perceber que esse é um lugar que
poderá, exponencialmente, levar/trazer o infinito ao olhar. Ou o inverso,
248
A este respeito ver o Metadiálogo ou Metálogo intitulado: “Metametadiálogo das questões que Bateson não
abordou”, realizado em Janeiro de 2006, para a obtenção de créditos adicionais, necessários à obtenção do título
de doutor, correspondentes ao Seminário: Educação, Pensamento Sistêmico e Gregory Bateson; ministrado pelo
prof. Cláudio Baptista.
4-191
principalmente, ao diligenciar o olhar com esse dispositivo, que parece ter origem na
ciência, onde se articulam a lente e o espelho, podendo “fazer ver” em um regime de
encobrimento total do ver/não ver constitutivo do olhar do artista e desdenhando
inteiramente da “não visão” do cientista.
Esse encobrimento do olhar do artista pode ocasionar a perda de sentido,
que tem sido tão bem alardeada desde a modernidade pelos artistas em suas obras,
demonstrando que o autocontrole de agora tem-se manifestado como certa
vigilância na arte que expõe a desmedida sem pudor. E essa manifestação que vem
sendo feita pela arte inclusive a predispôs ao novo status social que a
especificidade autopoiética confere à produção artística na contemporaneidade.
Contudo, todo o cuidado neste momento ainda é pouco. Por mais que eu
tenha, desde o início da tese, dado em testemunho o descaso do poder, tendo
desdenhado o olho onipotente, para ir aos poucos fechando os dois olhos que tão
bem caracterizam a minha visão, até chegar a este momento, onde a ênfase é
justamente a não visão como limite; agora, abrindo um único olho, que pode ser
levado em simulacro ao infinito, em uma simulação da onipotência da visão, posso
perigosamente vir a esquecer o autocontrole da arte. Posso, em um processo de
inversão, próprio de extremos e fronteiras, definir o novo lugar como o lugar da
absoluta visão, com um único olho autorizado a tudo ver. Pode parecer que agora,
com este telescópio colado ao olho, eu esteja tentando incoerentemente buscar o
que havia sido descartado em outro momento anterior. Contudo, esta aparência
pode ser assimilada como uma inacessibilidade momentânea, ou seja, por ter se
mostrado inacessível naquele momento. Além de também poder se evidenciar que a
inacessibilidade tenha se efetivado por não ter sido construído o dispositivo
adequado ao feito.
É uma passagem muito difícil e envolve um processo muito doloroso onde
eu posso não resistir e também ser seduzida a seguir cegamente o caminho aberto
pelo dispositivo que busquei para a observação nesta etapa. Acentua-se ainda a
sedução pelo fato do dispositivo se constituir em segredo também como uma mescla
entre arte e ciência. Frente a isso, mesmo tendo a minha própria formação como
guia, que me levou a colecionar figuras dentro do texto, e até a criar em releitura
4-192
uma coleção de holografias à luz de Boaventura, como mapa a balizar a visão, ainda
tenho que buscar algumas pequenas memórias para complementar a relação.
Vou buscar essas memórias, pois existem passagens que “nos ficam” e é
necessário presentifica-las, pois de outro modo acabam por se constituir em não
lugares que sempre se mostram como vazios. Uma dessas pequenas memórias está
presente/ausente em obra: é a instalação “doador” de Elida Tessler (1999),
artista/professora/pesquisadora/curadora, participante efetiva como docente
integrante da equipe de professores do Curso de Artes Visuais da UFRGS. Nesta
instalação, Elida “cura e limita” a dor dentro da palavra, operacionalizando-a em um
corredor que abriga um “com-junto” doado, onde os mais diversos objetos nos levam
à reflexão sobre o hábito, através de uma contemplação/reflexão da dor da
artista/poeta, que também já havia sido enunciada por Fernando Pessoa, que define
o poeta como um “fingidor”
249
.
Figura 09: Doador, instalação de Elida Tessler, de 1999.
A instalação de Elida Tessler
250
na Bienal do Mercosul em Porto Alegre está
em minhas pequenas memórias como uma espécie de modelo que eu associei à
obra de Duchamp: Etant donnés: 1º) la chute d’eau, 2º) gaz d’éclairage.
Influenciada por esta associação, do mesmo modo que a obra de Duchamp nos
orienta a fazer, eu somente espiei da porta a instalação “O doador”. Entretanto,
nesta, diferentemente da outra, se espia com os dois olhos, mas como se o próprio
quadro da porta fosse um grande visor, ou mesmo uma moldura, e, ainda, com a
particularidade de poder ser acessada dos dois lados. Relatando essas pequenas
memórias, fico pensando: e se “O doador” fosse um grande telescópio que em seu
próprio cone vai inscrevendo todo o universo? Poderia ser um universo
249
“O poeta é um fingidor, e finge tão intensamente que finge a dor que deveras sente.”
250
http://www.elidatessler.com.br/obras/obras.htm
4-193
parametrizado ao mesmo tempo em que vai sendo anunciado pelo “nome e a coisa”,
fazendo de ambos um único “uni-verso”?
Ao abordar a formação do professor de artes visuais em um perfil estendido
abrangendo: artista/professor/pesquisador, estou utilizando exatamente esse
instrumento que permite a aproximação visual do que se encontra distante no
espaço e também, principalmente, no que se refere ao exercício de sua função, a
um distanciamento que corresponde igualmente ao tempo
251
.
Por um lado, é evidente que a definição de qualquer regime de observação
relacionado ao autocontrole da arte esteve sempre, de certa maneira, articulado ao
ensino e, especificamente, ao ensino da arte. E, nessa dependência, ao construir um
regime determinado pela visão, utilizando um telescópio em diligência do olhar, é
possível detectar os limites distantes que têm possibilitado a permanência à arte,
sem eliminar a situação de constante e simultânea transformação. O exemplo do
que se tem detectado na história com este instrumento que tem sido,
reiteradamente, aperfeiçoado, até o século XX, chegando à atualidade como um
supertelescópio, dá-se tal como um “olho teleguiado” e em constante
monitoramento, levando-o a penetrar no espaço e trazer de lá, inclusive, o tempo.
O caminho que tenho apresentado inclui diferentes regimes de visibilidade
constitutivos do Currículo do Curso de Artes Visuais e, até agora, todos podem ser
visualizados, pois se mostram também em processo de reestruturação na
implementação de uma nova estrutura curricular. Com o foco definido na
contingência da mudança, sendo a incerteza uma característica regular que se
apresenta em toda e qualquer mudança, eu tenho focalizado essa incerteza também
como um objeto semiótico, e desse modo, tenho sido levada a criar diferentes
regimes escópicos, utilizando-os como dispositivos de observação nos quais a
251
Reporto-me não somente ao exercício da visão que ocorre no tempo e define instantaneamente o espaço da
imagem, mas também me refiro ao fato da Relatividade ter gerado uma mudança paradigmática onde o tempo
passou a ser considerado como uma constante ao ser relacionado à velocidade da luz, dentro da física do
“infinitamente grande”, construída por Einstein. Ao considerar a velocidade da luz como constante universal,
Einstein acabou também por inter-relacionar o tempo e o espaço em uma curva. O que resultou na famosa
“Teoria da Relatividade Geral” onde se apresenta a sua célebre relação entre a matéria e a energia, sendo a
energia igual ao quadrado da velocidade da luz multiplicado pela matéria. (Hawking, 2001)
4-194
minha participação é simultânea, gerando uma construção textual ao mesmo tempo
descritiva e narrativa.
Por outro lado, nessa embreagem, optar pela utilização de um telescópio a
partir deste momento significa, evidentemente, uma outra aproximação com a
ciência, fazendo-a compartilhar com a arte a função do pesquisador. É significativo
neste universo compartilhado trazer a história da ciência para desvendar o momento
em que este instrumento foi utilizado pela primeira vez por um cientista, que, talvez
naquele momento, já tenha sido apontado também como um pesquisador.
Desta forma, neste caminho pressuposto como o caminho do cientista/
pesquisador que vai do saber ao conhecer, e do conhecer ao novo conhecer, o
cientista, ao utilizar o telescópio pela primeira vez, instaura um caminho do
conhecimento e, nesse sentido, acaba por levar o instrumento a se desprender
unicamente da “visão do combate” como um simulacro negativo do face a face, e
passar ao “exercício continuado do conhecimento”
252
. Entrementes, isso levou o ser
humano a um deslocamento da observação, passando a observação, desde o fim da
Idade Média, do processo de vigiar ao processo de estudar, com o sentido do
pesquisar.
Assim, enquanto o artista começava a reduzir o seu olhar para poder ver, o
cientista passava a estender o seu, ampliando-o com um instrumento para chegar a
ver. E isto em uma extensão que, tendo se deslocado da verificação e determinação
exata da posição dos inimigos na batalha colocados frente a frente e em oposição
pela guerra, levou-os à observação de objetos remotos, e, em realidade, o
visíveis. Hoje, o telescópio ainda vem sendo utilizado nesta acepção, como um
instrumento que possibilita estender a visão humana
253
, atuando como uma prótese
extensora de um único olho em permanente vigia no calculado esquadrinhamento do
céu.
252
O instrumento telescópio com o nome de luneta era utilizado em combates desde a Idade Média.
253
Entretanto é importante destacar que a extensão da visão com um sistema telescópico é também a
multiplicação ao infinito da visão do ponto de vista único, ou da visão perspectiva, onde o sujeito tem um único
ponto de vista imóvel, a partir da visão estendida de um único olho.
4-195
E, sem a presença limitadora e imbricada do outro olho com o qual teria
de acomodar a visão ao espaço ao redor, é um instrumento/dispositivo que faz
sonhar que tudo se pode ver, e, desta forma, acaba por fazer parecer, também, que
tudo pode dominar, como se o cientista estivesse só, como uma grande estrela,
elevando-se acima de todos, sem nada a perturbar a visão.
O telescópio, ou a luneta, como era chamado, foi utilizado por Galileu
Galilei, em 1609, possibilitando, de certo modo, um novo espaço, que, tendo se
configurado na interpolação da dióptrica
254
no seio de um sistema óptico, acabou por
gerar uma interlocução entre o sistema religioso e a emergente exploração científica
através de instrumentos, definindo uma ciência que até aquele momento inexistia,
pois estava constituída como parte da filosofia, a qual, por sua vez, estava
totalmente atrelada à religião.
A definição do sistema cosmológico através de um novo modo de
observação do céu, utilizando um instrumental específico para a descrição dos
astros, sofreu uma mudança definitiva em sua estruturação com a utilização do
telescópio. Esta mudança havia sido antecipada por Nicolau Copérnico em 1543,
que construiu um sistema heliocêntrico, colocando o sol no centro de seu sistema.
De 1543 a 1609, até, definitivamente, 1700, ocorre um processo de descentralização
da Terra no sistema do cosmos, determinado pela confirmação dada através do
novo modo de observação científico-instrumental.
A Terra, antes considerada o centro geométrico do sistema planetário,
construído por Aristóteles e também reafirmado por Ptolomeu, é desviada de seu
centro imóvel e é colocada em movimento, o qual foi confirmado por uma “visão ao
longe”: ou seja, uma “visão telescópica”, descrita por Galileu, ao observar o que, na
atualidade, se define como uma estrela supernova, ou uma explosão estelar.
Considera-se que a invenção do telescópio tenha levado afinal à aceitação
da transformação do sistema geocêntrico, confirmando a percepção do movimento
da Terra e definindo o Sol como o novo herdeiro do lugar que antes lhe era
254
A dióptrica é a parte da física que estuda a refração da luz.
4-196
atribuído, sendo este colocado no lugar daquela, como novo ponto de referência. A
observação acabou por contribuir para a formulação das três leis fundamentais da
mecânica celeste de Johannes Kepler, definindo órbitas elípticas ao invés de
circulares, que, por sua vez, possibilitou a formulação da lei da gravitação universal
por Isaac Newton, que é também o fundamento da mecânica clássica.
Newton aperfeiçoou o telescópio no que se refere à dispersão da luz ao
passar pela lente, embora este já tivesse sido aperfeiçoado por Galileu. Ele usou um
espelho esférico ou parabólico para captar a luz, e a imagem refletida pelo espelho
então é captada por uma lente objetiva definindo, deste modo, um foco. Mas
também no que se refere, especificamente, à visão, é interessante resgatar a
afirmação de Newton quando diz ter enxergado ao longe por estar apoiado em
ombros de gigantes
255
.
Tendo me deslocado do capítulo anterior, desde um jogo de espelhos
retrovisores, que permitem a ação na interação e retroação, justamente por estar
inserida e constituindo o sistema dentro do próprio sistema; até passar ao presente
capítulo, a uma composição articulada em interpolação, utilizando o espelho e a
lente em um sistema telescópico que possibilita detectar uma ação ao longe,
inclusive, aparentemente, sem ter participação alguma em sua constituição, eu
poderia a pensar em realizar nesta etapa apenas uma manifestação virtual,
totalmente simulada.
Mas de onde vem tudo isso? Qual o sentido de identificar uma ação à
distância e como será possível determinar as aproximações necessárias à
construção do significado correspondente? Ou se que, simplesmente, as
distâncias são abstratamente determinadas, equivalendo a um registro da ação em
um processo gerativo de significação, e sem aproximação alguma, em nenhum
momento vislumbrando, ou sequer pressupondo qualquer significado? Ou, talvez,
será que, ainda, tal como foi construído na segunda holografia, o processo é sempre
255
Interessa, para além das questões de poder, que já foram também expressas anteriormente, pensar no
horizonte que se vislumbra a partir desta figura “estar em ombros de gigantes”, e no quanto se perde da inter-
relação com a diferença.
4-197
fruto de acoplamentos determinantes de um domínio dado por referenciais externos
reiteradamente?
Pensando em todas estas questões, verifico que esse instrumento utilizado
por Galileu, pela primeira vez, para a investigação, e, posteriormente, ao ser
aperfeiçoado por Newton com o mesmo objetivo, teria sido mencionado, de uma
outra forma, na Odisséia de Homero, através de sua narrativa que inicia, justamente,
como uma busca do vivido pelas marcas deixadas no tempo
256
.
Homero reconstrói, através da busca de Telêmaco, filho de Odisseu, a
construção de um saber pressuposto pelo ouvir contar, ou seja, o filho vai à busca
do pai, recobrando sua prometida viagem de retorno, em promessa tantas vezes
confirmada pela mãe. Desse modo, a viagem dá-se em uma narrativa da
recuperação dos passos vividos pelo pai, ao ser apontado/contado por terceiros,
sendo esta busca enunciada como o único caminho possível. Manifesta-se como
uma enunciação, como um fazer na linguagem que, a princípio, recupera o
enunciado como um outro, relacionando-o como um enunciado negativo em
pressuposição à manifestação positiva.
De fato, não foi ao descrever as peripécias
257
recordadas por Ulisses ou
Odisseu a respeito de seu difícil retorno à Ítaca, mas, principalmente, na narrativa da
busca implementada pela descendência do herói, ou seja, da busca levada a termo
por Telêmaco
258
, que encontro o referencial para esta busca ao longe. Entretanto, é
importante frisar que é também como uma passagem que esta narrativa se constitui,
pois é o limite da formação de Telêmaco, que se desenvolveu ao lado de sua mãe
Penélope na ausência do pai, durante vinte anos. Viveu na promessa do retorno do
pai, reiterada inúmeras vezes pela mãe, e, por fim, partiu em viagem, vista como
uma transformação, pois a viagem o redefine como um ser adulto, demonstrando,
desta maneira, ter completado a sua formação. A passagem de estado, do
256
A referência à Odisséia é utilizada aqui na tentativa de vislumbrar em um único lugar abordagens tão
diferentes do tempo e também do espaço em descrições que vão mudando o quadro referencial, alterando
totalmente a face das coisas ou a realidade abordada.
257
Peripécia conforme Aurélio, 1988, é um lance de narrativa que altera a face das coisas.
258
Telêmaco significa aquele que combate de longe, talvez em uma referência à continuidade da estirpe de seu
pai Odisseu, rei de Ítaca, célebre por sua prudência e audácia, foi um dos principais heróis de Tróia, cujo retorno
à pátria é o assunto do poema de Homero: Odisséia.
4-198
adolescente para o adulto, dá-se como uma enunciação entre limites, definindo a
mudança da situação como a única possibilidade de permanência.
A busca de Telêmaco é construída como a única solução de continuidade
possível, evidenciando a necessidade desse rompimento, que é apontado como
tendo sido gerado pela perda da visão do fim, o que também pode ser visto como a
perda do domínio externo.
A não-visão apresentada através da visão telescópica, dessa forma, está
também presente na Odisséia. Através de uma revisão de passos vividos por um e
enunciados por outro, é construída uma visão completamente focada, que acaba por
se apresentar como uma constelação de pontos definidos em uma seqüência de
passos muito precisos, embora necessite reiteradamente de orientação externa para
encontrar a via significativa. Mentor
259
é a orientação dada a Telêmaco por Homero
que, como um curador orientado pela justiça, recupera em imagens os feitos do pai e
passa a incorporá-los de um outro modo pela experiência, que também pode ser
vista como um modo de enxergar ao longe, de forma semelhante ao combate
260
que
se faz de longe.
Pensar em Odisseu e Telêmaco é talvez iniciar esta observação telescópica
substituindo o confronto pelo concílio. Deste modo, pode também significar conciliar
a formação do professor de arte com a formação do artista, acordando-as ao mesmo
tempo em uma nova organização curricular, que também é uma forma organizada
no tempo.
Essa nova organização curricular poderá ser percebida no Currículo do
Curso de Artes Visuais a partir da abertura de um caminho de escolhas dado não
somente aos professores, mas também aos alunos, permitindo percursos nos quais
não é mais possível sobrepor o professor ao aluno, e, da mesma forma, o artista-
professor ao aluno, possibilitando finalmente, na própria estrutura, a evidência de um
processo formativo que provoca a emergência do artista-aluno, e, em vista disto,
259
Mentor funciona como um tutor para Telêmaco. Conforme Homero, Mentor seria a própria deusa Palas
Atenas, que, tendo saído da cabeça de Zeus, veio com a missão de trazer a justiça aos homens, através da
orientação de seu pupilo.
260
Combate refere-se ao conflito em uma área restrita, à discussão contestatória ou à oposição.
4-199
gera novos laços, através dos quais se unem artista-professor e artista-aluno em
cooperação, fazendo surgir convergências em interlocuções onde o pesquisador
passa também a ampliar a ambos.
Assim, torna-se possível resgatar tanto os momentos de consenso como os
momentos de discenso como significativos ao percurso, mas, principalmente, pela
aceitação da redefinição dos lugares e movimentos que, anteriormente, se
determinavam como ação/meio/invenção, e agora se transformam, trazendo a
atitude/prática/desconstrução através de um eixo que se configura no tempo, mas
somente na mesma medida em que configura o próprio tempo.
Por outro lado, com esta presença do tempo, posicionar um telescópio em
uma direção que se queira focalizar não é simples, nem tampouco fácil. Pois o
segredo é que só se consegue ver através do dispositivo aquilo que já se sabe muito
bem, demarcando ou definindo o que poderá ser construído, e conseqüentemente
vir a ser conhecido, sendo revisto naquilo que se sabe. Sendo assim, a estabilidade
do olhar ocorre quando reconhece as luminosidades com a mesma nitidez
definida pelas cores que no mundo. Desse modo, o que parece, em um primeiro
momento, uma luta de brilhos pelo foco do olhar, vai aos poucos possibilitando
novos encaixes em um jogo que se desenvolve em rebatimento e interpolação, mas
que inicia dentro mesmo da estrutura do olho, ou talvez, do cone do telescópio.
Percorrer o cone do telescópio ampliando o olho, real e virtualmente, leva o
olhar a saltar da superfície do cone ao encontro do tempo, e isso também o
desestabiliza, pois ainda mantém o hábito de reconhecer as cores que estão
determinadas por seu fotopigmento. Então, lentamente, na continuidade do processo
de observação, a visão vai se arvorando na pressuposição de um tênue
reconhecimento, não mais da cor, mas da luz, sendo esse reconhecimento dado por
algum tipo de acordo entre células fotorreceptoras que, a princípio, têm disposições
distintas para reconhecer a cor e a luz. Talvez ocorra algum tipo de “abraço” que,
articulando a retina à fóvea, permite também reconhecer o céu noturno na detecção
das distintas luminosidades dos astros, em cores que correspondem ao tempo e em
sombras que vão sendo deixadas para trás pela própria descoloração.
4-200
Voltar-me sobre o Currículo do Curso de Artes Visuais munida de um
telescópio focalizando a formação do professor de Artes Visuais, que também é dita
como a formação do licenciado em Artes Visuais, como a formação daquele que
está autorizado ao exercício do ensino das Artes Visuais, é também encontrar em
um espaço remoto as constelações atuais, e, tal como Telêmaco, buscar nos
vestígios as diversidades mínimas que, ao se apresentarem como pequenos pontos
de luz, simultaneamente, apontam para o próprio universo onde a luz tem se
tornado visível.
4.2 A FORMAÇÃO DO LICENCIADO COMO UMA REINVENÇÃO DA ARTE
É diretamente compreensível na própria exploração do instrumento que a
utilização de um telescópio não pode ser feita somente pela manipulação, verifica-se
que é necessário fixá-lo em algum suporte. Obtendo um ponto fixo, a partir de então,
se pode usá-lo como se fosse um imenso braço mecânico, movimentando-o na
direção de qualquer recôndito lugar que se queira esquadrinhar, em um processo de
investigação, buscando o que ainda está escondido.
O esquadrinhamento do u pelos astrônomos é feito, inicialmente, a partir
de triangulações, que permitem determinar a distância de estrelas próximas na
observação da mudança em relação à permanência das estrelas de fundo, enquanto
a Terra gira em sua órbita ao redor do Sol. Entretanto para medir distâncias maiores,
os astrônomos precisam encontrar as chamadas “velas padrão”. Estas são estrelas
ou algum outro objeto cujas luminosidades intrínsecas são conhecidas, e é isso
que permite inferir suas distâncias a partir de seu brilho aparente.
Entre as velas mais confiáveis estão as “cafeidas”, estrelas pulsantes que
brilham e se extinguem em um padrão definido. Essa estrela cintilando em uma
galáxia distante fornece sua luminosidade e distância. Contudo, as “cafeidas” são
muito raras de se encontrar, então o avanço da investigação dá-se por meio de uma
“escala de distância”. Este procedimento de escala dá-se calibrando ou comparando
as estrelas próximas e as usando como medida para calibrar as mais brilhantes,
raras e distantes “velas padrão”.
4-201
É ainda importante resgatar neste passeio astronômico que as “velas
padrão” preferidas da grande maioria dos astrônomos são as estrelas explosivas,
que são conhecidas como supernovas, tal como a observação que deslocou a
própria observação, com a primeira utilização do telescópio como instrumento de
investigação científica.
Finalmente, eu retorno dessa “viagem ao espaço”, mas trago comigo um
novo fazer manifestado por um lado evidentemente próximo do cientista,
principalmente por esta visão telescópica, aparentemente procedente unicamente da
ciência, apesar de utilizar certo procedimento de jogo manifestado nos múltiplos
rebatimentos necessários à sua efetivação. Totalmente impregnada por
procedimentos relacionados à telescopia, posiciono o meu olho em relação ao cone
do telescópio, direcionando-o para o século XX, e noto que no início do século XX
começou um questionamento que, ao defender a necessidade da inserção da arte
no desenvolvimento do ser humano, simultaneamente, definia a importância de
sistematização do ensino da arte no processo da educação institucionalizada. Mas,
esta relação da arte e do ensino da arte, que, a princípio, poderia se pensar
simplesmente em uma decorrência, ou em uma articulação simples e direta de uma
à outra, não foi tão fácil, tendo levantado muitas discussões, chegando ao ponto de
a arte, com freqüência, ser colocada em contraposição à ciência e
conseqüentemente, em oposição à educação institucionalizada.
No entanto, este novo lugar da arte construído na oposição da ciência, mas,
trazendo ambos, como aparentemente dois “fazeres meramente instrumentais”,
acabou por determinar também uma aproximação entre arte e ciência. Essa
aproximação passou a ser construída, ou “calibrada”, com a finalidade de fazer com
que a primeira fosse aceita em um meio que se definia essencialmente pela
dominação da segunda.
A tolerância consentida colocou a arte em um meio no qual o conhecimento
vinha se constituindo através de uma racionalidade definida por uma forma
hegemonicamente técnico-científica, em substituição à racionalidade científico-
instrumental que dominou o pensamento do século XVIII e XIX. Entrementes, esta
4-202
tendência à admissão da diferença da arte como constitutiva do ser humano e
importante para o seu desenvolvimento não se deu de um modo natural e direto, foi
determinada por uma inevitável transformação da sociedade, que, por sua vez,
também havia se tornado essencial a partir de um desenvolvimento econômico
implementado em novas formas de produção.
A mudança implementada por revoluções industriais implicou uma demanda
de conhecimento que não estava dado, teria que ser construído, e, ainda, agravava-
se pelo fato da sociedade precisar ser preparada para isso. Mediante esta demanda,
as discussões sobre o desenvolvimento social passaram a serpentear entre a
necessidade da educação visando ao desenvolvimento do ser humano, e a
necessidade do conhecimento amparando o desenvolvimento da própria sociedade,
tendo em vista um fim que estava sendo dado como um outro, ou seja, como um
desenvolvimento econômico-social.
Isto parece duplamente muito simples e muito complexo, pois, ao mesmo
tempo, vê-se a inserção ou exclusão da arte do processo de ensino como uma
aparente simplicidade, entretanto esta discussão esconde um duplo princípio que
funciona como um motor de desenvolvimento tanto do indivíduo como da sociedade,
e aí reside sua complexidade.
Ao “recalibrar” a relação de permanência e mudança que perpassa o
biológico, o social e agora o cultural, sou levada a enfrentar a emergência do
sistema complexo em reiteradas relações de acoplamento, onde, com freqüência, se
perde a visão do fim.
A partir desse regime de observação constitutivo da visão telescópica, é
claro que a situação detectada ao longe, a partir de um código estabelecido,
definindo-se como “abstrata e objetiva”, se torna, também, próxima, refletindo as
transformações atuais, onde se vive, novamente, a mudança, na passagem da
sociedade industrial para a sociedade do conhecimento e informação, aliando o
conhecimento técnico e o desenvolvimento tecnológico implementado através das
tecnologias da informação aplicadas ao instrumental.
4-203
Talvez, nesse caminho que abarca o surgimento da ciência, desde o
desenvolvimento científico-instrumental, passando pelo técnico-científico da
sociedade industrial e chegando ao momento atual no qual se articulam o técnico e
novamente o instrumental em uma nova sociedade da informação e conhecimento,
algo tenha se perdido que necessite ser recuperado. Pois, ao pensar no eixo deste
“motor”, é evidente que algo o fez perder seu ponto fixo, perdendo
conseqüentemente o serpenteado entre o desenvolvimento da sociedade e o
desenvolvimento do indivíduo.
Com esta perda, temporária ou não, da visão do fim, o século XX chegou ao
fim sem nenhuma dúvida quanto à importância da arte em qualquer etapa do ensino
regular institucional. E esta certeza, conforme notação realizada no início do século,
deu-se, justamente, a partir da diferença que afasta a arte da ciência, colocando-a
como princípio de oposição. Além disso, é essa mesma diferença que a determina
como necessária no controle e limitação do momento atual, fazendo com que passe
a fazer parte do sistema.
Mas, talvez, a arte não tenha voltado a ser vista hoje como necessária à
ciência somente por oposição, e, sim, como complementação, invertendo ou
ampliando a situação que a excluía em relação ao início do século, quando se
evidenciava como oposição, ou talvez, somente olhando pelo outro lado da “moeda”.
A mudança de posição da arte, dada somente pela mudança do momento,
pode ter ocorrido, em primeiro lugar, em oposição ou complementação, por esta ter
definido um pensamento divergente face a um meio convergente e homogêneo.
Desse modo, na articulação com a ciência, onde o excesso de convergência tem
dado provas tanto do maravilhoso como do terrível, e de ambos, na mesma medida,
a arte passa a ser uma relação obrigatória. Em segundo lugar, por ela ser
responsável pela construção de formas particulares de estar no mundo, e, desse
modo, explicitamente, ajudar também a construí-lo em um sistema de autocontrole.
E, em terceiro lugar, por chegar, ao final do século XX, ocupando uma posição que é
externa e interna simultaneamente, definindo uma interface necessária a toda e
qualquer construção de conhecimento, principalmente se considerarmos essa nova
4-204
sociedade do conhecimento e informação, em desenvolvimento neste início do
século XXI.
É interessante verificar que essas diferenças orientam e recolocam os
princípios articuladores do indivíduo/sociedade, ao se constituírem como arte,
reposicionando-os em uma nova relação desdobrada em indivíduo/particular/
público/coletivo/sociedade, a partir de uma interface, onde o público se apresenta
tanto como particular como coletivo, em uma explícita relação com a arte e o ensino
da arte.
Quando a arte passou a ser inserida no ensino secundário, ainda no século
XX, talvez não se imaginasse o quanto esta atitude, definida politicamente, poderia
ser vista no século XXI também como uma “escapatória”, um subterfúgio para a
mudança da arte preconizada no século anterior. Aliás, o secundário foi visto, a
princípio, como a definição da bifurcação social, ao ser definido, por um lado, como
uma passagem para a formação superior; e, por outro, como uma recomposição de
um estatuto social totalmente pré-definido e justificado no mundo do trabalho.
Talvez por isto, o secundário tenha sido a última etapa de desenvolvimento humano
a receber uma atenção especial, de forma a reconhecer a importância da arte como
conhecimento imprescindível para a vida, e o somente como um fim prático e
imediato. E esse reconhecimento se refere tanto ao que diz respeito à arte como
uma área de conhecimento específico, quanto ao que diz respeito à arte como área
de conhecimento transversal, participando da construção do conhecimento das
outras áreas.
No Brasil, é somente com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
de 1996, lei derivada da Constituição de 1988, que regulamenta a Educação
Brasileira, que, finalmente, a arte passou a ser definida como uma disciplina, e,
assim redefinida, passou a ser caracterizada, desde então, como uma área de
conhecimento junto às demais áreas. Isso também incluiu a transformação do ensino
secundário, anteriormente definido como Ensino de Segundo Grau, passando a ser
focalizado como Ensino Médio e abrangendo, nesta transformação, o ensino da arte
como disciplina necessária e constitutiva a esta etapa de desenvolvimento da
4-205
Educação e, pela primeira vez, conseqüentemente, também constitutiva do
desenvolvimento humano.
Atualmente, no Ensino Médio, a área de Artes Visuais, junto às demais
áreas artísticas, faz parte de uma grande área chamada “Linguagens, códigos e
tecnologias”. Nesta grande área talvez se possa encontrar um novo princípio do
ensino da arte em que ela também se defina através de marcas, pois as marcas e os
códigos possibilitam um tipo especial de fazer, que se caracteriza por operações
cognitivas definidas em reversibilidade, articulando lugares em tempos diversos,
através da atualização e mudança de lugares ocupados anteriormente. Por
triangulação, como uma operacionalidade que mistura fazeres manuais e
operacionais, se poderá vir a resgatar o lugar de origem da arte no seio da
sociedade. Este novo/antigo lugar da arte como princípio da cultura marca também
um retorno, que a coloca como herança, sem anular a sua função transformadora,
reassumindo um lugar que sempre lhe pertenceu.
Todo o movimento ocorrido no século XX, levando a essa grande
transformação agora em curso no século XXI, tornou-se viável pelo surgimento de
tecnologias relacionadas principalmente à área da educação. Essas tecnologias
iniciaram com um rastreamento de novas formas de ensino para a criação de novas
pedagogias, e, neste sentido, a arte passou a ser articulada à educação, em um
primeiro momento, também como um princípio dessas tecnologias educativas, e,
posteriormente, como discurso em desconstrução dos cânones de ensino anteriores,
possibilitando a incorporação de novos modelos na linguagem, sem descartar os
paradigmas anteriores.
É interessante pensar no caminho da arte e perceber que existe um caminho
que pode ser significativo, não porque se dirige para um fim que o ultrapassa, pois a
princípio ele mesmo é encetado por uma perda da visão do fim; nem porque se
desenvolveu de algum princípio, o qual o prenunciava e o orientava para aquém
de si próprio, tornando-o plenamente justificável; mas, sim, por que é significativo em
si, em seu próprio desenvolvimento. Um caminho que vai-se construindo a cada
momento no estabelecimento de laços que o determinam o seu sentido
4-206
externamente, mas dão significado ao caminho como formas de sua própria
significação.
Esta é uma das grandes aquisições das tecnologias educacionais que, ao
recuperar/instaurar a arte no ensino secundário, define nessa organização também a
mudança de paradigma da arte, que passa ao eixo da atitude/prática/desconstrução,
anunciado neste texto anteriormente, mas também enunciado na arte por
Duchamp, que, tendo esperado exatamente vinte anos para a “ex-posição” de sua
obra/signo, “Etant donnés: 1º) la chute d’eau, 2º) lê gaz d’éclairage”, recuperou com
ela o “lugar comumda arte, recuperando o clichê no seu corpo, ao recolocá-la no
tecido social como um sistema originário da linguagem, em uma nova mistura,
mesclando os códigos da cultura com as técnicas/tecnologias compartilhadas com a
ciência.
No início do século XX, o ensino secundário ainda foi confundido com o
ensino técnico, uma característica herdada dos cursos essencialmente técnicos,
entretanto, a partir das discussões educacionais com posições divergentes, que ora
excluem, ora incluem essa herança, é somente na década de sessenta que ocorre a
primeira separação entre o ensino técnico e o ensino secundário. Nessa primeira
separação, o ensino secundário passa a se chamar “ensino de segundo grau”, em
uma visível articulação com o ensino superior, também chamado de ensino de
terceiro grau. Mas, definitivamente, é somente no final do século XX que o ensino
secundário encontra sua verdadeira vocação, quando passa a ser definido como
ponto de passagem e transformação, com o nome de Ensino Médio, sem deixar de
ser, simultaneamente, construído como ponto extremo da Educação Básica.
Nesta etapa de desenvolvimento, a arte é construída em bifurcação com
uma forma que mistura o ensino fundamental que a antecede e o ensino superior
que a ultrapassa em completa diferença. A arte se faz presente em continuidade
ao ensino fundamental, entretanto é marcada por uma diferença paradigmática que
passa a inseri-la, também, em um outro campo. Inserida no campo da cultura, a arte
é desenvolvida com as tecnologias que lhe são próprias, entretanto estas se
apresentam perpassadas totalmente por aquelas que agora são próprias da cultura
4-207
deste tempo, trazendo para dentro da arte a perturbação correspondente à
especificidade comportamental desta etapa do desenvolvimento humano.
A atitude, que é sempre a marca do tempo presente, e possibilita que o
jovem concretize a passagem pela adolescência, é controlada em curadoria pela
arte inserida no ensino médio. Dessa forma, a arte incluída e em sua nova posição
apresenta-se também como tutora ou “mentora”, orientando a condução por um
caminho onde o mundo vai sendo desconstruído na mesma medida em que
possibilita o reconhecimento imediato de si próprio como um outro, em uma outra
atitude do indivíduo na sociedade na interface particular/coletivo que reproduz o jogo
social, desconstruindo-o em manifestação tornada visível agora no público
261
.
A passagem pelo público como transformação para o acesso ao Ensino
Superior é também o primeiro passo para a Educação Continuada, sendo esta
definida na atualidade como essencial ao desenvolvimento do Sistema Federal de
Educação, mas, como foi visto anteriormente, sendo a Educação Continuada
também indispensável ao autocontrole da arte.
De certa maneira, o ensino das Artes Visuais no Ensino Médio veio a ocupar
um espaço que ainda não existia na sociedade, possibilitando a integração do
adolescente no tecido social, através da inclusão cultural, resgatando na cultura os
pluralismos constitutivos da sociedade como um lugar onde a arte se insere, mas
também a ultrapassa.
Bateson, em 1978, em atenção à revolução cultural que fez emergir a
contracultura, propunha a “ecologia da mente” como uma chave necessária ao
desenvolvimento da sociedade, através da inclusão da diferença no social, mas
também como um engate do político no social, pressupondo a densidade
conceitual que perpassa o desenvolvimento humano, desenvolvendo-o no tempo e
também no espaço.
261
Público refere-se tanto a agregados diferenciados de pessoas com a mesma opinião, como a um conjunto de
pessoas em efetiva assistência a um espetáculo; mas também poderá ser visto aqui como uma abertura a
quaisquer pessoas, relativo ao governo de um país, sendo de uso comum e, deste modo, relativo à coletividade.
4-208
Mas como isto está constituído no currículo do Curso de Licenciatura em
Artes Visuais da UFRGS? Esta licença que autoriza o ensino das Artes Visuais,
envolvendo tanto o cultural como o social, se encontra definida na estrutura
curricular do curso? E em que interface esta autorização se apresenta: na interface
da arte ou na interface da educação?
Esse questionamento, embora pareça deslocado, ou embora pareça estar
deslocando a discussão da área artística para a área da educação, está, em
realidade, somente reproduzindo as marcas deixadas por um exercício continuado
de uma tutela, exercida em completa fidúcia por uma área que sempre se colocou
como devedora da arte, mesmo quando a escondia dentro de uma aparente
hegemonia acobertada por uma racionalidade técnico-científica.
A estrutura curricular do Curso de Licenciatura em Artes Visuais que está
sendo implementado na UFRGS expõe uma combinação da arte e da educação até
agora sem par no sistema de educação brasileiro. Ultrapassa as discussões técnicas
e as discussões metodológicas, atravessando as diversas práticas, tanto de ensino
quanto da arte, nos diversos espaços públicos e privados de manifestação cultural e
educacional.
A estrutura corresponde ao desdobramento de seu quadro de
artistas/professores em professores que se colocam em formação continuada,
desdobrando a reflexão sobre o conhecimento sobre a arte na História da Arte
transformada em História, Teoria e Crítica da Arte. Mas, também, desdobrando a
reflexão sobre o conhecimento da arte no ensino da arte na licenciatura e na
produção da arte no bacharelado. Esta nova atitude acadêmica é fruto do
desdobramento da reflexão necessária à arte como investigação acadêmica, através
do desenvolvimento de pesquisadores da arte e do desdobramento da reflexão
necessária à esta como investigação da apropriação da arte pelo ensino, no
desenvolvimento dos pesquisadores do ensino da arte.
Esta estrutura, partindo de um plano finito e definido curricularmente por
uma associação mista na organização curricular, que mistura uma organização por
créditos e uma organização por disciplinas, constitui a abertura que caracteriza a
4-209
construção do conhecimento da arte como estrutura no currículo, em uma relação
que reproduz a organização complexa do conceito de experiência da arte construído
por Dewey, e quem sabe, ainda não efetivado concretamente como uma tecnologia
educacional, na qual possa mostrar efetivamente a promoção do desenvolvimento
do conhecimento.
É mister perceber que esta organização não concretiza seu intento de
desenvolvimento do conhecimento do ensino da arte sem a composição da estrutura
curricular do Curso de Licenciatura em interlocução com a área da Educação. É
importante verificar que é neste entrelaçamento que, de certa forma, se reproduzem
os serpenteamentos constitutivos das discussões levadas a termo no século XX,
onde o desenvolvimento do conhecimento vai-se constituindo em um eixo no qual o
indivíduo se contrapõe à sociedade e, simultaneamente, a constitui. Nessa complexa
composição interdefinida em oposição e complementaridade, sobrevêm,
unicamente, as marcas deixadas pelo movimento serpenteado, que, no vai-e-vem,
em reiterada retroalimentação, tem-se definido como um franjamento constituinte do
próprio tecido social.
4.3 A ARTE E AS TECNOLOGIAS DA EDUCAÇÃO EM UM UNIVERSO EM
EXPANSÃO
A arte sempre acaba por ser vítima de uma morte reiteradamente anunciada,
talvez por dar-se em exposição
262
, e também por levar/carregar em seu próprio
corpo todas as séries que a constituem como sobras atualizadas de seus
paradigmas
263
. Na modernidade, a arte foi totalmente destituída de sua aura
264
,
estando muito próxima da aniquilação, chegando, inclusive, a virar clichê, a se ver
262
A arte como linguagem originária, fonte de toda linguagem, é imediatamente exposição e representação de si,
sendo apresentação, e “mediatamente” representação do mundo. E é somente neste sentido imediato e mediado
que ela é também comunicação.
263
Uma das questões que diferenciam arte e ciência é justamente a relação do conhecimento em definição
paradigmática, pois, enquanto na ciência um novo paradigma substitui o paradigma anterior, obscurecendo-o, ao
deixá-lo somente na história; diferentemente, na arte, os paradigmas se ordenam, transformando-se em séries
onde as hierarquias são sempre móveis.
264
Conforme Walter Benjamim “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” (1992).
4-210
imolada em sacrifício, perpassando todas as áreas do conhecimento com as quais
se associou
265
.
Como a arte é uma área onde tudo “está ao sol”
266
, sendo isto que
caracteriza também o seu corpo, este caráter que lhe é próprio provoca um
“engaste” em seu corpo, além de uma apropriação, deslocando-a para um lugar
comum compartilhado pelas demais áreas do conhecimento. Estas se utilizam da
arte como se fosse sua própria caixa-valise
267
, pois é um lugar onde tudo pode ser
encontrado e, deste modo, recuperado, que todos os paradigmas que ali estão
presentes guardam também alguma relação com as outras áreas do conhecimento,
enquanto estas já descartaram os seus.
Assim, sem qualquer tipo de licença, seu corpo vai sendo apropriado para a
exposição na resolução dos problemas das outras áreas, deixando para a arte,
freqüentemente, somente a possibilidade de levantar novos problemas de
exposição. Se, por um lado, nesta situação a arte é reconhecida e legitimada como
fonte, sendo dada como o próprio universo da criação, por outro, esta mesma
situação a faz refém do reconhecimento das outras áreas, que somente em
imbricamento vão tornando seus problemas significativos quando os resgatam como
significativos para além da exposição da arte.
Enquanto a arte alarga seus horizontes abarcando diversos universos
prontos a serem investigados, acessando-os por uma ainda insipiente investigação,
que inicia com a simples confirmação de um não-saber e, por isso, sendo necessário
“ex-por” para vir a conhecer, sendo este caminho dado como próprio de seu
265
Refiro-me aqui também às questões da arte transformadas ou escondidas em clichês, como: “a arte de...” que
evidencia uma espécie de fazer/aparecer específico da arte, mas também como um clicperpassa todas as áreas
do conhecimento, e, também na atualidade refiro-me ao que tem se constituído como o “estado da arte”,
contemplando com a primeira a questão estética da arte, e com a segunda a questão ética da arte, implicando
nestas questões as formas de aparecer e o poder transformador da arte, dados em outros “corpus”, somente como
clichês (como um lugar comum).
266
Em exposição.
267
A caixa-valise como forma da arte foi trazida pela primeira vez por Duchamp em suas séries de “Boîte-en-
valise” que, de certa forma, na atualidade, se reiteram nos pequenos computadores de mão, que virtualizam a
arte, e também virtualizam o museu. Um dos modos de lidar com esta nova realidade da arte é como Peter
Greenaway com uma de suas obras: “Tulse Luper suitcase”, que recobra um aspecto da obra de Rembrandt,
recobrando a história onde a obra está contextualizada, reinserindo-a novamente no universo da cultura atual,
através de um jogo onde arte e cultura se mostram também em conflito.
http://www.petergreenaway.info/mos/Frontpage/
4-211
universo, as demais áreas do conhecimento, ao inverso, vão aos poucos definindo
seus espaços no caminho da resolução de seus problemas específicos. As diversas
áreas de conhecimento definem a sua própria área delimitando o seu saber, e, deste
modo, começa um desenvolvimento especializado através da especificidade de um
conhecimento que vai sendo constituído em lugares cada vez mais restritivos, onde
os “escaninhos do conhecimento” vão ficando, a cada vez, menores e também
menos “visitados” por exigirem uma especialização cada vez aprofundada.
Especialistas de especialistas de especialistas passam a se colocar em torres, a
cada vez em lugares mais longínquos, de onde poderiam voltar a acessar o
mundo munidos, talvez, de um “telescópio”.
Ao contrário das outras áreas do conhecimento, a arte tem ampliado/
espacializado sua área de ação, através de reiterados encobrimentos da visão. E,
tendo chegado ao espelho retrovisor como uma limitação/expansão do foco da
visão, este passa a ser articulado com a emissão de sinais, obtendo a certeza de
que assim não deixará de ser vista por um outro ainda relacionado a ela.
De certa maneira, a arte na modernidade passa a ser dada em uma nova
fundação como arte/ensino da arte, entretanto é somente na contemporaneidade
que esta relação se efetiva como princípio de um sistema cultural. Estando às voltas
com os questionamentos ligados às questões relacionadas tanto ao aparecer como
ao transformar, por um lado, recuperando o paradigma acadêmico anterior, através
da estética, e, por outro, participando da transformação social através da ética.
Nesse caminho, a arte tem construído/desconstruído a tradicional figuração
acadêmica de seu corpo através de questões que se constituem como respostas à
possibilidade de transformação da sociedade no ensino da arte pelas tecnologias da
educação.
Primeiro, a desconstrução tem sido enfocada através do resgate da
expressão, que é definido tendo como parâmetro o universo da criança e a
expressividade infantil. Em uma relação direta com as tecnologias da educação,
através dessa desconstrução, foi possível fazer aparecer os “Jardins de Infância” na
sociedade do século XX, e, especificamente no Brasil, se tornou viável o surgimento
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de “escolinhas de arte”, tendo ocasionado uma clara oxigenação para a futura
abertura do tecido social.
Em um segundo momento, o foco passa a ser a comunicação, que, estando
presente na arte, foi definida na linguagem e acaba por puxar um rosário de textos
relacionados, que passam a constituí-la sendo por vezes constituintes. Se, por um
lado, esses textos tentam condensar a experiência estética em um único lugar dado
como obra de arte, por outro, tentam abrir este lugar através da produção da obra
recuperada pela linguagem da arte.
As tecnologias da educação associam-se a estes dois momentos, expressão
e comunicação, tendo um papel definitivo na institucionalização da arte, ao
aproximar disciplinas da obra de arte, em uma oposição total à expressividade
infantil, definindo no tempo uma inversão considerada em relação à afirmação e
resgate anterior. Esta mudança de posição define-se em relação à “deformação” da
expressividade infantil que, neste momento, havia sido transformada unicamente
em livre-expressão, acabando por ser absorvida totalmente por um ensino que veio
a se definir somente como um não-ensino ou, simplesmente, um “deixar fazer”.
Entretanto, simultaneamente, se realiza uma ampliação da comunicação da
arte e através da arte, aproximado-a do ensino fundamental por meio da linguagem
da arte, imbricando arte e ciência e concentrando a abertura da obra na ampliação
dada pela educação.
Por esta via das tecnologias da educação, surgiu em 1982 o DBAE, nos
Estados Unidos, definindo o ensino da arte com quatro disciplinas distintas
constitutivas: a estética, a história, a crítica e a produção. No Brasil, Ana Mae criou a
“Metodologia Triangular”, sistematizada e testada entre 1987 e 1993 no Museu de
Arte Contemporânea da USP, que foi ampliada em 1989 para “Proposta Triangular”,
através da inserção de uma nova tecnologia da informação e da arte: o vídeo. Essa
“Proposta Triangular” que foi viabilizada em todo o território nacional por uma
pesquisa financiada pela Fundação IOCHPE e coordenada inicialmente por Analice
Pillar, por um lado, ampliando a abrangência, entretanto, por outro lado, a reduzindo,
ao abarcar unicamente três disciplinas: a história, a crítica e a produção, excluindo a
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discussão reflexiva da estética, embora a tivesse retomado como estética da
narrativa, presente na tecnologia utilizada.
Entrementes, é claro que esta ampliação do ensino da arte através de uma
multiplicação disciplinar constitui-se, também, como uma limitação do campo da arte
pela educação, pois, desta forma, limita o campo a um saber especialista,
articulando-o a uma construção de conhecimento construída como alfabetização
visual, na exigência de competência na “emissão” e na “leitura de imagens”, além de
definir um conjunto de habilidades articuladas a estas competências ligadas ao ver-
observar-ler-decodificar, e ao fazer-produzir-emitir.
A nova ampliação/limitação se faz sentir na relação da formação do artista
articulada à formação do professor de arte, distinguindo-os. A ênfase do
conhecimento da área artística enraíza a alfabetização visual no formal, e a ênfase
do conhecimento do ensino da arte passa a focalizar a alfabetização visual como um
relato com raízes no cultural, na formação do professor.
Deste modo através das tecnologias da educação, novamente ocorre um
redimensionamento da área artística pela institucionalização da arte como área de
conhecimento, limitando a arte pela arte/ensino da arte. O novo limite da arte dá-se
no imbricamento com o sistema cultural, investigando a interação da arte com o
social, o político e o estético, em sobreposição, desta vez, do pedagógico através da
pedagogia cultural.
Assim a arte passa também a ser vista pelas outras áreas de conhecimento
através de uma pedagogia crítica, sendo definida como uma maneira sistematizada
de relação com o mundo. E retorna para a arte como uma produção aberta à
investigação, possibilitando também uma investigação criativa, que ultrapassa o seu
sistema de digos e devolve a arte à experiência, como um processo gerativo de
significação.
Finalmente com essa nova posição da arte advinda das tecnologias da
educação, se desloca novamente o foco do ensino da arte, rearticulado agora pela
arte. A arte reapresenta-se na contemporaneidade como um fazer na linguagem
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através da construção da percepção, no resgate da imaginação, situando o ensino
da arte no contexto cultural, através da construção de novos significados, e
simultaneamente, ampliando os espaços educativos, ao estendê-los aos espaços
culturais.
Frente a toda esta transformação, autorizar o Licenciado em Artes Visuais a
uma atuação educativa a partir da formação do artista/professor/pesquisador/curador
é, hoje, certamente, evidenciar a fundação arte/ensino da arte, surgida na
modernidade e, atualmente, própria da arte contemporânea, onde a primeira
desconstrói e é desconstruida pela segunda na mesma medida de sua prática,
sobrevivendo a esse processo uma nova atitude em que a arte passa a se inscrever
também no pensamento, sendo resgatada, posteriormente, pelo corpo.
Com o telescópio montado em um tripé, o dispositivo se transforma em um
“olho corpo” frente ao próprio corpo do artista-pesquisador-cientista e pode, enfim,
encontrar o enquadramento necessário ao reconhecimento das constelações e
nebulosas que possibilitam recobrar o tempo presente também no passado. Como
um errante, o olhar associado a este “olho corpo” parece, em um primeiro momento,
ter perdido o referencial que o faz reconhecer o que sabe, mas não desiste de
procurar, e, aos poucos, entre idas e vindas no esquadrinhamento do céu, vai
encontrando o deslocamento correto, quando, em desalento, acaba por se
deparar com uma visão deslumbrante, nosso “satélite natural”, o qual tantas vezes
tem sido observado e também narrado a olho nu: a lua.
Aos poucos o olhar se acostuma aos tons de cinza e desse modo vai tendo
acesso a formas ainda desconhecidas. A princípio o olhar através do olho-corpo
telescópio, tenta encontrar o plano de significado da descrição, ou, mesmo, o fio da
narrativa que lhe é anterior, para que possa mostrar este universo que está a ser
reconhecido também como um outro. Entretanto, esta tentativa é vã, pois a visão é
tão deslumbrante que torna completamente insignificante qualquer movimento para
abarcar o visto.
Resta ainda esperar pacientemente por algum tipo de transformação, talvez
um eclipse, que, engatando a imagem que é vista em seu próprio contexto, através
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da relação com o que não está sendo visto, poderá, enfim, instrumentalizar o olhar
sem perder a realidade que lhe é própria, a qual é reiteradamente metaforizada no
processo de contemplação. Entretanto, não é qualquer eclipse que poderá servir a
este momento, onde o dispositivo telescópio levou o olhar a ser completamente
absorvido pela ciência, em processo de reflexão da reflexão, tendo, inclusive,
detectado a própria disciplinarização do ensino da arte, em uma total
correspondência e triangulação com a disciplinarização do conhecimento ocorrido
concomitantemente ao início da ciência.
Na espera em constante vigia, vai sendo dado como certo que somente
uma situação de transformação total faria encontrar novos limites. Desse modo, é o
eclipse total da lua que poderá abrir esta nova possibilidade. Ao olhar para a lua, na
exatidão do eixo onde lua, terra e sol se encontram, a vemos como totalmente outra,
e, nesta passagem da sombra da terra que difunde a luz do sol, se vislumbra a
beleza oculta de seu corpo. Deste modo, a sua aparência, agora dimensionada em
redução pela luz difundida pela sombra da terra que, de certo modo, se assemelha à
redução dimensionada no olhar do artista, faz com que o olhar, naquele momento,
despreze o telescópio, pois este foi preparado exclusivamente para capturar a luz,
levando um único olho a se movimentar como uma linha a bordar “brilhos e pérolas”
em sua superfície, para voltar a mirar unicamente com o olhar.
É somente com a imbricação do olho direito e do olho esquerdo que a lua,
em eclipse total na zona de sombra da terra, mostra-se como uma maravilhosa
esfera alaranjada que se impõe à gravidade da Terra. E, em contemplação, absorto,
o olhar assim construído fica na espreita do novo momento de passagem, quando a
luz retorna de seu encobrimento pela Terra.
Nesse retorno, a nova completude que se mostra expõe também a fonte da
experiência do próprio olhar, que permanece colado à imagem que agora se mostra
em luz e cor. Entrementes, simultaneamente, é a própria imagem que o leva ao
infinito a vagar, mostrando que o olhar é seu refém, embora, ao mesmo tempo, se
mantenha inabarcável.
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ZAMBONI, Sílvio. A pesquisa em Arte. São Paulo: Autores Associados, 1998.
6-224
6 APÊNDICE A: SOBRE A ARTE DE ENSINAR A ARTE
6-225
SOBRE A ARTE DE ENSINAR A ARTE
268
METÁLOGO
269
EM DESLOCAMENTO PERIPATÉTICO
270
PELA ACADEMIA
271
Estou me deslocando do prédio do Instituto de Artes, antigo Instituto de
Belas Artes
272
, para o Campus Centro da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul
273
, e, durante o trajeto, num passeio externo do olhar movimentando
internamente o pensamento, eu começo a divagar sobre o estranho lugar desta atual
academia, atravessada pela cidade onde se situa, e se estendendo, de tal forma, a
ponto de tornar o espaço da universidade parte da cidade vizinha. Distribuídos pela
cidade de Porto Alegre, além de situados até onde Viamão alcança, encontram-se
268
Este Metálogo faz parte do conjunto de diálogos docente/discente em referência aos quatro anos de formação
superior em Artes Visuais. O primeiro traz como foco a questão do ensino da arte, levantando alguns mitos
próprios da área artística; o segundo trata do processo de criação e a inutilidade da arte, enfocando o desempenho
individual do aluno-criador; o terceiro versa sobre as transformações da área, expandida exponencialmente num
desdobramento da técnica à tecnologia, aliada à dificuldade de compreensão da implicação do conceito de jogo
presente nesse processo; e o quarto traz o caráter específico de exposição inerente à obra de arte, fechando um
ciclo que se refere à formação superior em Artes Visuais.
269
Metálogo, ou, tal como foi traduzido para o português, Metadiálogo, é a denominação dada por Gregory
Bateson (1972) a um diálogo construído para discutir um problema envolvendo a estrutura da própria conversa
como relevante para o problema. Seus metálogos têm como interlocutores ele próprio e sua filha, num modelo
que nos remete aos diálogos de Platão, onde o conceito de filia, originado na filosofia grega (filos+sofia,
significando “amor ao saber”) é fundante e participante do pensamento ocidental. Os metálogos que constituem a
tese não reproduzem a realidade, são ficções, embora utilizem contextos e referenciais que comportam as
questões-problema em situações acadêmicas reais ou meramente possíveis. As situações enfocadas, entre
docente/discente do curso superior de Artes Visuais da UFRGS, utilizam como substrato minha própria
experiência na Instituição, tendo como base o currículo do curso. Fazem referência a padrões de interação em
situações informais de aprendizagem percorrendo os quatro anos de formação em cada conjunto de diálogos.
270
Peripatéticos é como são conhecidos os alunos do Liceu fundado em 336 a.C. por Aristóteles (filósofo grego,
aluno de Platão, sendo ambos, mestre e discípulo, considerados os fundadores do pensamento ocidental).
Peripatéticos significa “os que passeiam” e é decorrente do hábito de Aristóteles de ensinar ao ar livre, muitas
vezes sob as árvores que cercavam a escola. O Liceu privilegiou as ciências naturais, diferentemente da
Academia de Platão, a qual focalizava o exercício do pensamento para o desenvolvimento do ser humano.
Utilizo a dupla referência como uma articulação do pensar e do fazer próprio da área artística.
271
Nome da escola fundada por Platão, filósofo grego, aproximadamente em 387 a.C. nos jardins localizados no
subúrbio de Atenas, consagrados ao herói Academos. É considerada por muitos a primeira universidade da
Europa. Ainda hoje o ensino universitário é conhecido como ensino acadêmico numa referência à Academia de
Platão.
272
O Instituto de Belas Artes foi fundado em 22 de abril de 1908 por iniciativa de um grupo de intelectuais e
artistas. Inicialmente, contava apenas com o Conservatório de Música. Em 1910, foi criada a Escola de Artes que
compreendia os cursos de Desenho, Pintura e Artes de Aplicação e Desenho Industrial.
273
A Universidade Federal do Rio Grande do Sul iniciou com a fundação de Escolas e Faculdades independentes
no final do século XIX. Em 1934 foi criada a Universidade de Porto Alegre congregando Escolas, Faculdades e
Institutos Superiores, incluindo o Instituto de Belas Artes. Em 1947 passou à Universidade do Rio Grande do Sul
incorporando Faculdades de Pelotas e Santa Maria, as quais deram origem à criação da Universidade de Pelotas
e à Universidade Federal de Santa Maria. Nesta época o Instituto de Belas Artes volta a ser independente,
entretanto busca reconhecimento federal de seus cursos, obtido em 1941. Em 1950, finalmente, ocorre o
processo de federalização transformando a Universidade do Rio Grande do Sul em Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. E, é somente em 1962 que o Instituto de Artes passa a ser reincorporado definitivamente à
Universidade.
6-226
os diversos campi desta Universidade, da qual faz parte, desde 1962, o antigo
Instituto de Belas Artes, em princípio, Instituto Livre de Belas Artes, e,
posteriormente, com a inclusão na UFRGS, vindo a se chamar Instituto de Artes,
tornando-se um de seus Institutos Centrais a partir da reestruturação de 1968. O
Instituto está formado por três Departamentos: Departamento de Arte Dramática,
Departamento de Música e Departamento de Artes Visuais, os quais permanecem
até a atualidade na organização acadêmica e administrativa dos cursos de
graduação das três grandes áreas de conhecimento correspondentes. O prédio
ocupado pelo Instituto guarda a história de sua origem, fundado entre conquistas e
conflitos, ainda anteriores à sua participação na universidade, e, atualmente, faz
parte do Campus Centro da UFRGS, mesmo sem se localizar dentro do campus, tal
como um “braço estendido”, pois está localizado bem no centro da cidade.
O centro da cidade de Porto Alegre é também a sua origem, pois a cidade se
desenvolveu a partir dos limites do Rio Guaíba, exatamente no lugar onde o sol se
põe, e desdobrou-se em múltiplas direções, sendo que uma destas direções deu-se
precisamente num percurso que, de certo modo, inverte o movimento realizado
diariamente pelo sol.
O deslocamento para o leste, até onde a vista alcança levou a cidade a uma
de suas fronteiras, a Viamão, e, neste vale, a Universidade Federal do Rio do Sul
fundou seu maior campus, o Campus Vale. Desde então, do poente ao nascente, a
academia vem se desdobrando na inversão do caminho natural feito pelo sol, como
a confirmar o caminho próprio da cultura e do conhecimento, enfatizando o fato de
ser um caminho construído pelo ser humano. A UFRGS, no percurso definido pelo
desdobramento de seus diversos campi, marca um espaço de construção virtual
inserido no espaço natural da existência humana.
Percorrendo esses caminhos, reais e virtuais, fico imaginando como seria o
espaço da Academia de Platão, com lugares de ensino-aprendizagem e pesquisa
envolvidos em jardins que, à entrada, recepcionavam seus alunos com uma
escultura dedicada a Eros, deus do amor. Não é à toa que Platão é considerado o
pai da Filosofia Ocidental, e que a palavra “filosofia” já contenha a presença do amor
ao saber, que se apresenta no conceito de filia e sofia. A filia é apresentada por dois
6-227
pólos, um que pergunta e outro que responde, os quais se fundem numa nova
unidade que corresponde a ambos, inaugurando, desta forma, a sofia, um novo ato
de saber.
Fico pensando que, de certo modo, no Instituto de Artes, foi seguida a
tradição de recepcionar os alunos com esculturas que presentificam o mito
correspondente ao ensino que se vai desenvolver na escola. Nesse caso, dois
deuses, da Beleza e do Amor, Apolo e Afrodite
274
, acolhem a todos, recepcionando
os que querem ser artistas ou professores de arte.
Saí quase correndo do prédio, mas mesmo assim voltei-me para olhar as
esculturas, isto já é um hábito. Sigo em direção ao Campus Centro e ao atravessar a
rua me deparo com um prédio que é um monumento de nossa cidade: a Santa Casa
de Misericórdia. na avenida em frente ao prédio, olho para o lado, enquanto
espero o sinal para vencer a travessia e vejo um dos primeiros símbolos da
modernização da cidade, o viaduto Loureiro da Silva, que, empilhando ruas, coloca-
as em sobreposição, transformando os cruzamentos, e conseqüentemente
transformando as antigas e estreitas ruas em grandes e contínuas avenidas. Penso
que, nesses cruzamentos, são colocadas obras de arte como grandes murais
artísticos, talvez para compensar a perda do humano em um espaço público que vai,
aos poucos, assumindo a feição da máquina em detrimento do homem.
Gosto de passar por dentro de uma praça que fica exatamente atrás do
prédio da Santa Casa: chama-se Praça Argentina, nome de um de nossos países
limítrofes, que em semelhança e diferença compartilha com o Brasil uma história de
conflitos e de acordos. É uma praça que se desdobra em grandes escadarias
ligando uma parte alta da cidade a uma parte baixa, e sempre que a cruzo fico
emocionada com as árvores que estão são gigantescos plátanos que teimam
em mostrar sua história constantemente em exposição nos seus pictóricos troncos.
Chego à rua de baixo e de imediato faço a escolha de continuar o caminho
por dentro do campus da UFRGS. Gosto do movimento, ora em curvas, ora em
274
As esculturas localizadas no saguão do prédio do Instituto de Artes são cópias do original feitas em gesso.
6-228
retas
275
, que é necessário ao deslocamento entre uma série de prédios, alguns
imponentes, mostrando a sua história e em bom estado de conservação, tal como o
Observatório e o prédio do Direito; outros, incoerentemente, em péssimo estado de
conservação, como o da antiga Engenharia e o da antiga Escola cnica; e ainda
alguns que, certamente, não mereceriam participar deste lugar que,
tradicionalmente, se coloca como continuando uma tradição de 2300 anos.
Ao adentrar no campus, alguém grita me tirando bruscamente das
divagações:
Professora! Que bom que a encontrei professora. Você vai para a
Reitoria?
276
Vai? Então, podemos ir junto, pois tenho algumas dúvidas que gostaria
de compartilhar. Posso aproveitar este caminho para perguntar sobre uma questão
que tem me deixado muito confusa?
Olá, Gabriela! Podemos fazer este percurso juntas sim. E, conversando ao
percorrê-lo, mais uma vez se terá cumprido a função do que costumamos chamar de
academia. (Gabriela
277
é uma aluna do Curso de Artes Plásticas que decididamente
foi fazer o curso para ser professora de arte. Um dia nos cruzamos dentro do IA,
Instituto de Artes, e ela disse que sabia quem eu era e que esperava ser minha
aluna, mas disse também que havia escolhido artes porque queria ser professora e
tinha certa urgência em vivenciar o ensino da arte, pois precisava desta experiência
para melhorar o que vinha fazendo em sua comunidade. Disse isto manifestando
o seu interesse em ser minha bolsista num projeto interdisciplinar de extensão, no
qual eu trabalhava com alguns bolsistas, atendendo a comunidades carentes de
escolas de periferia).
275
O caminho me remete à seguinte citação de Heráclito, filósofo pré-socrático: “O caminho dos pintores, reto e
curvo, é um e o mesmo”.
276
O prédio da Reitoria da UFRGS se localiza no Campus Centro e congrega a administração central da
universidade.
277
O metálogo não é uma reprodução da realidade, apesar de utilizar como referenciais contextos da realidade
onde se insere. Algumas situações como a professora e a aluna são necessárias à própria estrutura do diálogo, da
mesma forma a especificidade da aluna, pois ela não poderia ser um ente abstrato, onde a estrutura pressupõe
uma experiência compartilhada, definindo um conhecimento que é anterior. O conteúdo da conversa é totalmente
fictício.
6-229
Desculpe professora, mas alguns dias tenho estado em completa
perplexidade com a afirmação de um professor que eu admiro e respeito muito; mas
até agora me sinto incomodada com algo que foi dito em aula!
– Ora, o que afinal te deixou tão apreensiva?
O professor afirmou que arte não se ensina, e eu fiquei sem saber o que
eu estava fazendo ali.
Esta não é uma questão simples, pois faz parte de uma longa história que
nós continuamos e da qual, muitas vezes, não é fácil se afastar para poder construir
sua atualização. A idéia de que o artista nasce pronto está ligada à idéia de talento
como uma qualidade inata. Isto faz parte de teorias que perpassaram o pensamento
do século XIX.
Então, na realidade, o que ele quis dizer é que é necessário que o aluno
de artes tenha talento? Mas as provas que são realizadas para ingresso no curso
não avaliam somente conhecimento e habilidade?
Sim, tens toda a razão, Gabriela, entretanto os mitos da tradição são
implacáveis e muitas vezes eles penetram em nosso pensamento, sem que se tenha
elaborado a consciência desta participação. O resultado é justamente este
questionamento: para ingressar é necessário conhecimento e habilidade
278
, mas
para a formação do artista é necessário o talento? E se assim fosse, então essa
formação não necessitaria de uma academia, não é?
É isto mesmo professora, a senhora compreendeu bem minha posição
nesta questão que me deixou tão chocada. E a minha reação acentua-se, ainda,
pelo fato que me custou tanto esforço o ingresso nesta universidade, tendo por isso
a posição do professor me parecido despropositada, além de injusta. Fiquei com a
278
Atualmente, com a reforma acadêmica que partiu da LDB de 1996, a avaliação do conhecimento enfatiza a
avaliação de competências, mesclando o qualitativo com o quantitativo.
6-230
sensação de estar desassistida naquilo que eu tinha determinado, não somente
como a realização de um sonho, mas como a concretização de um projeto de vida.
Vamos tentar encontrar um caminho de abordagem para o teu problema,
Gabriela, iniciando com uma ampla volta, enlaçando nesta relação: a arte, a
universidade e o ensino superior. Sabias que a arte, tendo instaurado um corpo
canônico, declarando uma regra geral que subsumia as diversas técnicas e
procedimentos com a fundação das Academias de Belas Artes desde o século XVII,
na tentativa de ser categorizada junto às “artes liberais”, passou a fazer parte da
Universidade a partir do século XX?
Ora, é claro, no Brasil tudo acontece depois, talvez como em todos os
países subdesenvolvidos.
Não, não falei somente no Brasil. A arte, no mundo inteiro, passou a
fazer parte das universidades no século XX. E, no Brasil, temos uma condição
especial, pois as próprias universidades também foram criadas somente no século
XX. Veja Gabriela, como isto é importante! Este fato pode determinar, na
universidade brasileira, um fator de qualidade que, a meu ver, poderá impulsioná-la
muito mais rapidamente para as transformações da educação superior no culo
XXI.
Ora, acho que não entendi totalmente. Primeiro, compreendi que a arte
tem um papel importante nas transformações que estamos vivendo na passagem do
século XX para o século XXI. Segundo, ainda não captei por que este surgimento,
quase em uníssono, seria essencial para a universidade brasileira do século XXI.
Bem, gostei muito de tua colocação, pois ela te põe no meio do
caminho. A Universidade foi criada articulando a filosofia e a ciência, e a arte sempre
foi desenvolvida em um caminho paralelo, externo à construção do conhecimento.
Era vista como uma atividade relacionada à cultura e não ao conhecimento.
– Isto também não está ligado ao que conversamos outro dia sobre a
mudança de paradigma do conhecimento?
6-231
Bem lembrado, Gabriela. Veja: a ciência, com a objetividade de seu
método científico, em que os fins são essenciais, tem construído um conhecimento
que é reiteradamente reproduzido no processo educativo. A filosofia quase
subsumida pela ciência especificou sua função na busca sempre renovada pelo
próprio ato do pensamento, num caminho que vem fazendo com que os meios sejam
sempre novamente questionados. E a arte, com a malfadada
279
subjetividade que a
caracteriza, ou ficava à margem dos processos de conhecimento, ou assumia a
metodologia científica como sendo o único conhecimento que lhe era permitido.
É, mas mesmo assim eu acho que todo este desenvolvimento que vem
muitas vezes acometendo a nossa civilização é feito sempre de meias-verdades.
É, e talvez estas meias-verdades se devam à meia-razão que a
humanidade vem utilizando mais ou menos 500 anos. Mas, deixando as
brincadeiras de lado, de imediato pode-se pensar em somente uma das muitas
necessidades que se impõem nas transformações operadas na passagem de século
e de milênio, como a necessidade de lidar com as complexidades; esta já nos basta.
– Veja, esta necessidade se justifica, pois o mundo foi se complexificando de
tal modo que passou a engendrar emergências, cujos paradigmas de conhecimento
que nos foram legados dos séculos anteriores não cobrem totalmente. Veja
Gabriela, por exemplo, no século XX, com o crescimento exponencial da tecnologia,
a possibilidade emergente de gerar vida artificial e usar a inteligência artificial para
construir uma quina à semelhança do homem, colocando-a a serviço do próprio
homem, é um fato
280
.
279
Malfadada refere-se ao destino da arte que foi marcado por Platão ao declará-la como desnecessária à
sociedade “perfeita”. A República de Platão prescinde dos artistas e isto acaba por constituir um fado negativo,
ou uma moira, que para os gregos referia-se ao destino personificado, especificamente relacionado ao aspecto
subjetivo que caracteriza a arte.
280
Talvez aqui se passe do mito ao fato, do Golem ao Ciborg, o certo é que a tecnologia atual torna possível a
geração de vida artificial, levando a natureza humana a uma nova fronteira que poderá ser facilmente
ultrapassada. O futuro do humano é responsabilidade do próprio humano. E isto ainda sem que se focalizem as
questões implicadas no desenvolvimento da nanotecnologia.
6-232
Pense, na atualidade, com o desenvolvimento, primeiro da indústria, e
agora, da própria informação, a necessidade da presença do paradigma do
conhecimento da arte se impõe, pois passamos de um mundo, onde a única
máquina que se confundia com a natureza era a “máquina humana”, a um outro
mundo, onde tudo está sendo construído pelo homem.
Observe que esta passagem coloca a arte em uma posição central, como
paradigma da criação artificial, especificidade que sempre a determinou
explicitamente. O homem sempre criou por arte e por técnica ou por ciência, mas
esta última dificilmente foi afirmada como uma criação, pois sempre foi vista como
um caminho natural do desvelamento do mundo, no sentido da descoberta da
verdade existente no mundo.
E agora, em um novo modelo de conhecimento, onde as máquinas
passam a protetizar o homem em uma mescla, onde os percentuais de mistura entre
homem e máquina são cada vez maiores: imagine a importância da arte como um
modelo da afirmação do ser humano como uma criatura que cria um mundo e se
recria nele, e, o somente, como um ser que compreende o mundo em que vive,
transformando essa relação com o mundo, que vem sendo apregoada pela ciência
há pelo menos 500 anos, redefinindo-a através dessa inserção da arte.
– Puxa professora, isso está me parecendo bem apocalíptico.
Pois é, mas não precisamos ir tão longe, podemos voltar para questões
bem próximas. Tu te lembras de como foi difícil trabalhar interdisciplinarmente com
as diversas áreas do conhecimento no projeto de extensão em que participaste?
Sim, é claro que me lembro. Mas, também não posso esquecer de como
percebi a necessidade da arte, ao observar o trabalho que as outras áreas
desenvolviam com as crianças.
Então, é exatamente disso que estou falando. Pense bem, e tente
encontrar: o que a arte possibilitava às crianças, que era tão essencial e necessário,
e que as outras áreas estavam tão distanciadas?
6-233
Não sei se terei a concentração suficiente para definir o que encontrei,
mas sei que encontrei, pois me possibilitou construir e refletir sozinha, e, também,
em conversas com a senhora, sobre o trabalho que eu iria realizar com as crianças.
Mas eu me lembro que não foi fácil, pois no início eu tentei realizar um trabalho
semelhante ao das outras bolsistas das outras áreas, e isto foi determinante para eu
perceber a diferença do caminho a realizar. Claro que essas reflexões e conclusões
foram sempre conquistadas com a ajuda das conversas que nós tínhamos, pois me
faziam perceber aquilo que eu poderia realizar.
– Acho que me destes uma volta, mas tudo bem, pois essa será uma
construção que terás que ir desenvolvendo ao longo do curso, e, talvez, ela não se
conclua nunca, principalmente, se tivermos o foco em sua natureza.
Não, eu acho que a senhora está sendo muito exigente, mas eu gosto,
pois provoca o meu pensamento e me faz buscar a ação, principalmente a ação
reflexiva. Hei! Ora! Acho que é isto. Sim, é isto: a ação reflexiva. Pronto, está a
resposta à questão que você me colocou.
Bem a tempo, chegamos, espera o sinal para atravessar a rua. Pois é tão
importante e necessário olhar para dentro como para fora. E, afinal, podemos voltar
à questão que iniciou nossa conversa.
Sim, mas acho que encontrei a resposta. Será que posso dizer que a
arte é algo que se ensina e que não se ensina?
Vejo que realmente encontrastes a resposta, mas ainda duvidas de teu
próprio pensamento e isto também é muito bom, pois não se deixa simplesmente um
modo de pensar, que vem se desenvolvendo num exercício de 2000 anos para
“vestir” um outro modo, como se fosse possível trocar de pensamento como se troca
de roupa. As necessidades que enfrentaremos neste novo milênio incluem modos
diversos de construção do pensamento, incluindo a arte, a filosofia e a ciência, uma
relação onde cada área terá a sua especificidade, mas também participará do
6-234
substrato que se está a construir e que articula a todas, incluindo modos de pensar
que, definitivamente, são outros modos de organizar o pensamento.
Professora! Ai, não é possível, estou com uma angústia e me sentindo
incomodada novamente.
– Ora Gabriela, é assim mesmo, mas o que te perturba agora?
Não sei como vou conseguir identificar o que deverei ensinar aos meus
alunos para que eles cheguem ao que eu não poderei ensinar.
– Essa é uma outra história e o importante é que você, Gabriela, já a
começou. Tchau, Gabriela, nosso caminho do Instituto de Artes até o Campus
Centro da UFRGS foi reto e curvo, como bem diria Heráclito, ainda antes de Platão.
Até outro dia.
Até, sempre que nos encontramos eu fico me sentindo outra, como se...
Não, não é bem isto, pois eu também continuo sendo a mesma.
Bom dia de estudo e trabalho, Gabriela, e não deixes de desenhar, pois
desenhar é como respirar, necessário para o desenvolvimento deste nosso
pensamento, e é tão produtivo quanto conversar.
Observo Gabriela se afastar e fico pensando em como ela me faz lembrar da
Gabriela de Jorge Amado, a Gabriela Cravo e Canela. Nada sei da origem de
Gabriela, e os livros de Jorge Amado, eu os li quando ainda era adolescente, mas
ainda tenho a sensação de presença de seu personagem como modo de ser do
brasileiro. Um modo que permanece em mim como um espaço de origem da própria
mescla, não uma única, mas como se a cada vez uma nova mescla pudesse
emergir, como se a geração da mistura o constituísse.
Vejo que meu pensamento voltas e acaba sempre se aninhando em um
espaço que me é muito próximo, pois esta divagação sobre o cravo e a canela de
Gabriela me faz também recordar da obra de Ernesto Neto na 5ª Bienal do Mercosul,
6-235
a qual me fez ter consciência do cravo e canela como duas e uma única coisa ao
mesmo tempo. estava sua instalação num dos armazéns do cais à beira do
Guaíba, era um grande espaço vazio com um único fio que o atravessava de um
lado ao outro. Quase ao meio, o fio apresentava um volume que emergia na forma
de um coração, e isto fez com que me aproximasse. Conforme me aproximava do
volume, o cheiro do cravo se fazia sentir, e ficava muito forte, levando a crer que o
volume guardava a especiaria. Estando bem próxima ao volume, se visualizava um
colocado no chão, bem abaixo, em correspondência ao volume suspenso. Isto
me fez, imediatamente, pensar na canela, levando-me inclusive, num impulso, a me
abaixar e tentar verificar se era realmente canela. Não era, era simplesmente uma
areia bem fininha, mas justamente o fato de não ser canela, me fez perceber como o
cravo e a canela sempre andam juntos, nas coisas concretas ou no pensamento que
já os constituiu como um.
Mais uma volta, e os meus pensamentos também retornam às coisas
práticas e aparentemente simples de nosso cotidiano, pois cheguei ao prédio da
Reitoria e preciso procurar o meu cartão de identificação para passar pela roleta que
aceso ao interior do prédio. Verifico o meu cartão e penso que agora sou um
nome, uma imagem e um número que convergem em um pequeno percurso
magnetizado que me possibilitará ingressar no centro administrativo da universidade.
Dobro novamente o pensamento, pois esta observação tal como um espelho me
remete à filosofia que me permite compreender meu nome e também nominar o
mundo; à arte que me possibilita compreender minha própria imagem e, a partir dela,
encontrar a imagem do mundo; e à ciência, que tem me permitido quantificar e
relacionar, definindo, a cada vez, um lugar definitivo para as coisas em sua cabal
organização. Finalmente o cartão libera a roleta e, apressadamente, ingresso no
centro administrativo da universidade, me dirigindo de imediato aos elevadores que
dão acesso às Pró-Reitorias e Secretarias que são responsáveis pela administração
e organização de toda a diversidade que constitui a academia.
7-236
7 APÊNDICE B: SOBRE A NECESSÁRIA INUTILIDADE DA ARTE
7-237
SOBRE A NECESSÁRIA INUTILIDADE DA ARTE
281
METÁLOGO
282
REFLEXIVO EM ASCENSÃO NO ELEVADOR DO INSTITUTO DE
ARTES DA UFRGS
Encontro-me na fila do elevador
283
do Instituto de Artes
284
da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul
285
e, distraidamente, acompanho a movimentação da
comunidade acadêmica. Aos poucos vou percebendo os alunos, professores e
funcionários que entram e saem do prédio em diferentes ritmos, e penso que, quase
sem querer, esta diversidade explicita, de certo modo, também a multiplicidade de
funções, que, articuladas, constituem o Instituto como Instituição de Ensino.
Aparentemente, o movimento de cada segmento se expõe, como a confirmar sua
efetiva participação num cotidiano, que, reiteradamente, é legitimado como espaço
de formação artística.
281
Este Metálogo faz parte do conjunto de diálogos docente/discente em referência aos quatro anos de formação superior em
Artes Visuais. O primeiro traz como foco a questão do ensino da arte, levantando alguns mitos próprios da área artística, o
segundo trata do processo de criação e a inutilidade da arte, enfocando o desempenho individual do aluno-criador, o terceiro
versa sobre as transformações da área, expandida exponencialmente num desdobramento da técnica à tecnologia, aliada à
dificuldade de compreensão da implicação do conceito de jogo presente nesse processo, e o quarto traz o caráter específico de
exposição inerente à obra de arte, fechando um ciclo que se refere à formação superior em Artes Visuais. Os Metálogos
docente/discente são realizados com três discentes do sexo feminino, à semelhança de minha própria condição feminina, e
com um discente do sexo masculino, se contrapondo aos anteriores pela relação de diferença de gênero que estabelece na
interlocução.
282
Metálogo ou Metadiálogo é o nome dado por Gregory Bateson, em 1972, a um diálogo construído para discutir um
problema envolvendo a estrutura da conversa como relevante para o problema. Os metálogos que constituem a tese não estão
sendo desenvolvidos como reproduções da realidade, são ficções, embora utilizem contextos com situações acadêmicas
possíveis, onde os referenciais comportam as questões-problema tratadas. As situações enfocadas, entre uma professora e um
discente do curso superior de Artes Visuais da UFRGS, utilizam como substrato minha própria experiência de ensino na
Instituição, e fazem referência ao padrão de interação docente/discente em situação informal de aprendizagem, tomando
como base o currículo do curso ao percorrer quatro anos de formação através de um diálogo temático correspondente a cada
ano.
283
O elevador do Instituto de Artes da UFRGS guarda resquícios da história do prédio, o qual foi construído em 1941, numa
primeira etapa, e complementado em 1952, com a construção do segundo bloco correspondente aos atelieres de artes
plásticas. Este prédio continua até hoje a história do Instituto de Artes, foi fundado Instituto Livre de Belas Artes em 2008,
passou a Instituto de Belas Artes, participando da Universidade de Porto Alegre, e, finalmente, como Instituto de Artes vem a
fazer parte da UFRGS desde 1962. Construído em duas etapas, foi ampliado com a aquisição do prédio contíguo, e,
atualmente, ainda apresenta essas duas construções lado a lado, as quais têm certa independência, embora possuam um único
acesso da rua, a primeira com oito andares, e a outra, anexada posteriormente, com cinco andares. A primeira construção é
considerada o corpo do Instituto propriamente dito e está estruturada em oito andares, dispondo de dois elevadores que dão
acesso aos andares num movimento que abrange o térreo até o sétimo andar.
284
Instituto de Artes da UFRGS foi fundado como Instituto Livre de Belas Artes em 22 de abril de 1908, somente com o
Conservatório de Música, e foi ampliado em 1910, com a criação da Escola de Artes – Desenho, Pintura e Artes de Aplicação
e Desenho Industrial, passando a fazer parte da UFRGS somente em 1962. Tornou-se um dos Institutos Centrais da UFRGS
com a reforma da Universidade Brasileira de 1968, denominado Instituto de Artes, sendo ampliado com o Departamento de
Arte Dramática, o qual fazia parte da Faculdade de Filosofia antes da instauração da ditadura militar no Estado Brasileiro.
285
A Universidade Federal do Rio Grande do Sul foi instituída em 1934 e federalizada em 1950, está sediada em Porto
Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul.
7-238
Olho em torno e verifico que a fila compartilha de minha espera e,
rapidamente, me ultrapassa indo se desdobrar pelo saguão em frente ao Auditorium
Tasso Corrêa
286
, onde, subitamente, se detém por alguns momentos, parecendo
vacilar, e, finalmente paralisa-se, imóvel, como se estivesse à procura de um
caminho a seguir. Apesar dessa indecisão, a linearidade ainda constitui a fila,
entretanto, nessa altura, a continuidade da linha vai se mostrando em aparente
desfazimento.
A fila torna-se então vacilante, e é desse modo, meio desestruturada, em
vias de bifurcação, que passa a delatar seu dilema: subir ou descer o lance de
escadas que ampliaria o reduzido espaço do saguão? Verifico que permanece a
dúvida, pois a fila mais extática do que estática vai lentamente se desmanchando,
quase configurando uma ciranda, pois em seus “braços” abre-se um círculo que,
ainda não sabendo como dar seqüência à linha, simplesmente se imobiliza sem
escolher o caminho a seguir. Neste êxtase, em absorto rodopio, balança, sem saber
se refaz, de costas, o percurso conhecido, arrastando-se novamente em direção à
saída do prédio, ou se enfrenta, também de costas, o desconhecido, apinhando-se
com algum desequilíbrio nos primeiros degraus da escada, que dá acesso aos
prometidos espaços de construção do conhecimento, aos esperados espaços
acadêmicos que apontam para um futuro, seja ele qual for.
Nesse caminho solitário de meu pensamento, irrompe a necessidade de me
fazer acompanhar, e penso que o espaço da fila passou a ser um dos lugares mais
apropriados no Instituto de Artes para se iniciar uma conversa. Entretanto, percebo
que é justo, para um diálogo ali iniciado, com freqüência se limitar ao tempo de
espera gerado pela disfunção do elevador em seu atual estado: precário e com
reduzidas condições de uso. Pois me parece, a princípio, que toda a conversa que
ali se inicia se apresenta como uma cacofonia, que as falas correm soltas, em
desvelados exercícios de paciência. Igualmente, percebo que, aos poucos, se
instala uma promessa de profundos diálogos, e isso, em razão da longa espera
ocasionada pelas inúmeras idas e vindas do alterado veículo, em promessa de
286
O Auditorium Tasso Corrêa foi projetado em 1941 por Fernando Corona, docente do Instituto de Belas Artes na época da
construção do prédio atual. Tasso Corrêa foi o primeiro professor do Instituto a ocupar o cargo da direção, sendo seu diretor
de 1936 a 1958, foi o responsável pela redefinição da Escola de Artes, que passou a se chamar Curso de Artes Plásticas,
ampliado com a Escultura, a História da Arte e a Arquitetura.
7-239
acesso aos espaços acadêmicos localizados nos diferentes andares do prédio,
rapidamente e sem nenhum esforço físico. Se bem que seja também o tempo que
acaba por tornar a interdisciplinaridade presente, pois a extensão da fila passa a
congregar toda a diversidade constituinte do lugar: professores, alunos e
funcionários das diferentes áreas que compõem a Instituição de Ensino destinada à
Formação Superior em Artes.
Atelieres de artes plásticas, auditórios, salas de música, laboratório de
eletroacústica, laboratório de computação gráfica, biblioteca, pinacoteca, centros
acadêmicos, bar e áreas administrativas tentam equitativamente dimensionar o
espaço físico, definindo a justeza da organização desta quase centenária escola de
artes que atualmente faz parte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O elevador, simultaneamente possibilitando e trancando o acesso ao espaço
interno do prédio, marca, diariamente, uma conquista, concretizada e renovada
durante o tempo de espera nesse expressivo espaço configurado em uma linha
modulada pelo dia-a-dia da Instituição, que se manifesta como um princípio da
convivência democrática da comunidade acadêmica correspondente.
É claro que, pela impaciência ou pelo espírito exploratório, muitos decidem
ascender ao interior do prédio pelas escadas, e esta escolha permite alguns
percursos individuais que perpassam pela fruição do exercício de canto no saguão
do primeiro andar; pela leitura do mural da pinacoteca acompanhado de um breve
passeio à obra em exposição na galeria; pelo acesso ao quadro de divulgação dos
eventos e às notícias sobre a atuação cultural da comunidade artística fixados pela
secretaria de comunicação social; por uma rápida espiada nas informações sobre as
mais recentes aquisições da biblioteca; pelo deleite, ao ouvir o exercício de flauta na
passagem do terceiro andar; pela participação na instalação que, saindo do atelier
de desenho localizado no quarto andar, ganha os corredores interceptando os
espaços de passagem; pelo pregnante cheiro das tintas utilizadas nos atelieres de
gravura, que são três e se localizam todos no quinto andar, fazendo dessa
passagem uma declaração de amor e ódio à gravura, tornando-a uma irresistível
ênfase da área de Artes Visuais; pelo zunzunzun das conversas no saguão do sexto
andar, onde os alunos do curso de pós-graduação sentados num antigo armário,
7-240
com inúmeras gavetinhas, com aparência de um objeto de arte conceitual, vão
trocando suas reflexões em busca de lugares guardados ou ainda nem imaginados
para o desenvolvimento de seus projetos; pela descoberta de espaços escondidos
onde se encontram os laboratórios de música e de artes visuais e pela
resplandecente luz que emerge do vidro da porta do iluminado atelier de pintura do
sétimo andar, além, é claro, de, num último lance, as escadas darem acesso a
preciosidades históricas eternizadas em murais realizados pelos velhos mestres nas
paredes do oitavo andar do edifício.
Atualmente o prédio do Instituto de Artes, localizado na Rua Senhor dos
Passos abrange somente a área de Artes Visuais e a área de Música; as Artes
Cênicas, hoje área do Teatro, tem um prédio próprio, embora compartilhe as áreas
administrativas e a biblioteca localizada no espaço do Instituto. Eu me recordo do
tempo em que vivenciei como aluna
287
a rica convivência das três áreas artísticas:
Artes Visuais, Música e Artes Cênicas; é certo que, nem sempre harmoniosa, mas a
amplitude das trocas interdisciplinares superava qualquer problema. Nessa época
vivíamos, simultaneamente, a profusão da contracultura emergente na década de
60, realidade do cenário internacional, e a recessão política de um Estado Ditatorial,
definida nacionalmente pela ditadura militar do Estado Brasileiro.
O elevador do Instituto de Artes é um ícone desse período, é histórico, no
sentido de ter participado da história do Instituto, mas também por ter feito sua
própria história. Está constituído por dois equipamentos que, freqüentemente, se
reduzem a um, e até ganhou música na década de 70
288
, pelos constantes sustos
em queda livre e pelas estratégicas paradas “interandares”, o que fez, também, com
que sofresse várias reformas. De para cá, quase foi extinto; extinção configurada
por uma modernização, é claro, como freqüentemente se faz quando uma coisa não
funciona mais, seria a obsolescência? Talvez aqui seja o inverso, pois é a
287
Ingressei no Instituto de Artes em 1973. Nesta época, ao passar no vestibular, era necessário cursar um
semestre de um ciclo que se chamou básico, para, ao final, obter a classificação no curso escolhido, que se
iniciava somente no segundo semestre. Concluí a Graduação em Artes Plásticas, habilitação em Desenho e
Pintura, em julho de 1978.
288
Um grupo formado por alunos da Faculdade de Arquitetura e do Instituto de Artes: “Os Almôndegas” fizeram
a música “Elevador”, onde o elevador do Instituto de Artes é um motivo para resgatar a liberdade de falar,
cantando as impossíveis buscas em uma realidade limitada ou cerceada, envolvendo as três áreas artísticas, áreas
consideradas de risco, por ser um espaço de tradicional transgressão. Entretanto, ao mesmo tempo, fonte de
metáforas necessárias à expressão em uma universidade vigiada em plena ditadura militar.
7-241
exacerbação do uso o que acarretaria a substituição por um outro equipamento mais
eficiente e atualizado conforme as demandas o exigem. Em 80 passou por uma
aparente reconstrução total, e, para chegar aos 2000, teve que ser redimensionado,
sendo o espaço interno reduzido em 1/3, restringindo a capacidade para três
passageiros por viagem.
Hoje, novamente, somente um dos elevadores está em funcionamento, e a
fila se perde. Alguém diz que o elevador do Instituto de Artes alcançou o mundo
virtual, tem uma comunidade no orkut
289
chamada “Tenho medo do elevador do IA”;
acessem e confirmem, pois lá, de certo modo, ele está cumprindo corretamente sua
função de dar acesso ao mundo acadêmico.
Decido “dar um tempo” e saio a caminhar pelo saguão, verifico o quadro de
avisos, espio na janelinha da porta do auditório para ver se tem alguém ensaiando,
passo os olhos pela programação, e vejo se informa algum recital nos próximos dias:
pego um informativo semanal e vou até a Galeria Ado Malagoli ver a exposição das
turmas de gravura do semestre em curso.
A Galeria Ado Malagoli
290
é gerenciada pelo Centro Acadêmico Tasso
Corrêa
291
e se localiza na entrada do prédio. Esse espaço acesso aos atelieres
de Cerâmica e de Escultura, facilitando, de certo modo, por ficar ao da rua, a
entrada de alguns materiais específicos, freqüentemente pesados ou volumosos, e,
também, possibilitando rapidamente a saída das obras realizadas.
289
Orkut é uma rede social de relacionamento com comunicação mediada por computadores filiada ao site
Google (site de buscas na Internet criado por alunos da Universidade de Stanford em 1996). Com o objetivo de
ajudar seus membros a criarem e manterem relacionamentos foi criada em 19 de janeiro de 2004 com o nome de
seu projetista chefe Orkut Buyukkokten.
290
Ado Malagoli (1906-1994), artista e professor de pintura do Instituto de Artes da UFRGS, onde lecionou de
1952 até 1976. Organizou o Museu de Artes do Rio Grande do Sul, criado em 1954 pelo decreto 5065, reunindo
o núcleo inicial de obras do acervo. Foi, também, o primeiro diretor do Museu, que passou a se chamar Museu
de Artes do Rio Grande do Sul Ado Malagoli.
291
Centro Acadêmico Tasso Corrêa tem 71 anos, seu primeiro estatuto data de 1937 e define a representação de
todas as áreas que compunham o Instituto de Belas Artes na época de sua fundação. A eleição da primeira
diretoria estudantil ocorreu em 1940 e somente em 1943 foi escolhido o patrono do Centro que definiu o seu
nome que permanece até hoje no centro que corresponde à área de Artes Visuais. Atualmente corresponde
somente à área de Artes Visuais, pois a representação estudantil do Instituto de Artes dividiu-se em três grupos,
correspondendo às três áreas artísticas que compõem o Instituto hoje: Música, Teatro e Artes Visuais, resultando
em três Centros Acadêmicos.
7-242
A exposição se restringe à monotipia, e as gravuras expostas devolvem a
imagem do mundo através de marcas que se apresentam como fragmentos
“frotados”
292
inscritos na tinta. São diversas coleções das mais diferentes marcas
que foram coletadas, mesclando marcas de estruturas da natureza e marcas de
objetos culturais.
Estou absorta, perdida entre as linhas de uma gravura, que identifico como
oriundas de uma estrutura vegetal, marcadas repetidas vezes com a tinta de
impressão, em obsessivos movimentos que, por alguns momentos, me parecem dar
a impressão de estar vendo algum tipo de escrita, decididamente ainda
desconhecida, mas com possibilidade intrínseca de algum tipo de reconhecimento
externo.
Fico pensando que talvez isso se deva ao ritmo, quer considere a
organicidade do movimento da estrutura vegetal, quer observe as medidas
implicadas nos agrupamentos em repetição, e, abruptamente, ainda um pouco tonta
e assombrada, sou resgatada deste estado de contemplação:
– Parece que a senhora está tentando ler o ilegível!
Oh, olá, Ana! Tu me surpreendeste, eu estava completamente tomada por
esta gravura. Esta é a tua turma? Tu estás expondo?
Ana havia sido minha aluna em duas disciplinas do curso. Uma delas, Ana já
tinha cursado alguns anos atrás, era uma disciplina de desenho de observação
que, no currículo do curso de Artes Plásticas
293
, era obrigatória para todas as
292
Frotagem é o nome dado a um procedimento artístico, mais próximo dos processos de gravura,
principalmente das monotipias, pois, frequentemente, possibilita somente uma única cópia. O procedimento foi
divulgado por Max Ernst em trabalhos como a série intitulada “Apontamentos para uma história natural”, e
consiste na “impressão” de formas naturais ou objetos, realizada manualmente mediante fricção de um
instrumento ou material sobre o papel sobreposto ao objeto que se quer “imprimir”.
293
O Curso de Artes Plásticas, com a autorização de funcionamento do Governo Federal de 1941, tem sofrido ao
longo do tempo as transformações e atualizações definidas na regulamentação oriunda da legislação federal.
Com a Constituinte de 1946, atendeu a Lei Federal de nº. 5692 de 1971, que determinou a especificação de
currículos mínimos para compor os currículos dos cursos superiores. Em 2007 implementa transformações que
correspondem à quinta Assembléia Nacional Constituinte no Brasil de 1987 e conseqüentemente à Constituição
de 1988, atendendo à Regulamentação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira de 1996, que atualiza
7-243
ênfases
294
. O currículo antigo, atualmente em extinção, por não atender mais nem às
demandas legais, nem às demandas legítimas correspondentes às transformações
da arte dos últimos cinqüenta anos, é centrado num paradigma modernista, tendo
um eixo na história da arte e outro no desenho. A disciplina de desenho de
observação é uma disciplina instrumental ministrada no início do curso, no segundo
semestre. A outra disciplina que Ana realizou em minha turma havia sido uma
disciplina criativa, da área de desenho, que faz parte de um bloco de disciplinas
ministradas a partir da metade do curso para os alunos que estão cursando o
Bacharelado em Desenho. somente um semestre atrás, Ana cursou esta
disciplina, mas, ao mesmo tempo em que ela fazia esta disciplina da área de
desenho, se envolvia com disciplinas da gravura, disciplinas da cerâmica, escultura,
pintura e fotografia. Talvez, nessa mescla, burlando a organização acadêmica do
curso, Ana estivesse antecipando a proposta pedagógica do novo currículo do
curso de Artes Visuais
295
, que está sendo implementado em 2007.
Quando eu vou a uma exposição de arte, costumo, inicialmente, passear
com o olhar sobre as obras; olho o conjunto, para, então, me deter em algumas,
que, por motivos diversos, tenham se destacado. Talvez, nessas escolhas eu esteja
tentando engendrar o ato da visão no próprio contexto da exposição. E é somente
depois de um tempo de fruição, como fechamento desse ato, que, então, busco a
identificação do nome do autor e o título da obra, como se estivesse a buscar a
autorização do visto. Muitas vezes me surpreendo, pois tenho que refazer o passeio
após o ato de nomeação presentificado pelo título, ou, também, após a identificação
do autor. Mas, estou trazendo isso, neste momento, porque Ana, tendo me
encontrado na galeria, absorvida nesses percursos do olhar pelos espaços
configurados da gravura, me informa que aquela era a sua gravura. Eu fico
pensando que poderia ter vislumbrado algum tipo de reconhecimento, mas sem que
e categoriza a área de conhecimento, inclusive renomeando-a como área de Artes Visuais, implicando na
mudança de nomenclatura do Curso, que passa a se chamar Curso de Artes Visuais.
294
O Curso de Artes Plásticas, em extinção, possibilita a titulação em Bacharelado em Artes Plásticas, com
habilitação em uma das sete ênfases seguintes: Desenho, Pintura, Escultura, Gravura, Cerâmica, História, Teoria
e Crítica da Arte e Fotografia; e a titulação em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes
Plásticas.
295
O novo currículo do Curso de artes Visuais implementado em 2007/1 tem uma estrutura mesclada entre a
seriação linear obrigatória e a seriação por créditos, organizando as disciplinas em módulos alternativo-
obrigatórios, possibilitando a movimentação dos alunos em livre-escolha pelas áreas que correspondem às Artes
Visuais, num processo que promove a hibridização das linguagens plásticas, gráficas, discursivas e tecnológicas.
7-244
tivesse ainda identificado a autoria da obra. De qualquer modo o encontro com Ana
sustou a finalização da apreciação visual da exposição, frustrando a fruição à que eu
havia me proposto.
Eu retorno resignada para a fila do elevador que agora está bem reduzida;
somente duas pessoas esperam sua vez. Finalmente chegam os dois elevadores ao
mesmo tempo, parece que o equipamento que estava avariado voltou a funcionar;
neste momento, ouço um grito vindo dos lados da galeria, pedindo para segurar o
elevador.
As duas pessoas que estão na minha frente na fila, um aluno de música,
com uma caixa protegendo, eficientemente, seu contrabaixo, e uma funcionária da
administração do Instituto, carregando uma série de pastas, contendo processos
administrativos, entram no elevador da direita. E eu entro no outro elevador, naquele
que está à minha esquerda
296
, entretanto me disponho a esperar alguns minutos por
quem gritou solicitando o elevador, pois, certamente, deve ser alguém com algum
objeto ou equipamento de difícil movimentação.
Em seguida aparecem: Chico, funcionário responsável pelo registro e
alienação de bens, no cuidado do patrimônio do Instituto, ajudando Ana, ambos
carregando uma caixa de madeira pintada de branco, aparentemente uma forma
prismática, de base quadrangular, ou, talvez, se possa dizer que o objeto se
assemelhasse mais a um paralelepípedo de grandes dimensões, de
aproximadamente 1,50 m de altura por 0,50 m de profundidade. De qualquer modo,
é certo que, pela aparência e proporções, deveria ser algum objeto artístico.
Entram: Ana, sua caixa e eu no elevador. Ana diz que precisa ir ao atelier de
gravura, no quinto andar, pois o professor a espera para a avaliação final do
semestre, e eu lhe digo que vou ao sexto andar, pois neste semestre estou
ministrando a disciplina Artes Plásticas na Educação I, do Curso de Licenciatura, e
os alunos esperam ansiosamente uma controvertida aula sobre a inutilidade da arte.
296
O elevador da esquerda é o único que pára em todos os andares, o da direita não dá acesso ao primeiro andar.
7-245
O elevador começa a subir, ao som de um indignado e continuado aaaaaaai,
emitido por Ana:
Aaaaaai, não é possível, não acredito que tu ainda aches que a arte é
inútil.
Ora Ana, eu não acho que ela seja inútil não, mas ela é “necessariamente
inútil” para que o artista se aproprie de seu processo de criação. Talvez, aprender a
fazer coisas inúteis seja o cerne do aprendizado da arte. Olha esta instalação
297
que
se expõe, escondendo-se entre os andares, nas paredes internas deste elevador!
Parece nos levar a entrever o espaço de trabalho que nos aguarda em cada andar.
Funciona como se estivesse simplesmente anunciando o andar através do percurso
numérico, que foi graficado para a leitura em dois sentidos: de baixo para cima e de
cima para baixo. Entretanto, a cada número corresponde uma palavra com um único
sentido de leitura, ou seja, o padrão ocidental da leitura da esquerda para a direita,
correspondendo também unicamente a este elevador da esquerda, sem se repetir
no da direita.
Ah, passou, eu não vi, puxa será que está aí há muito tempo? Eu nunca
tinha reparado nela, o que é?
Está aí já há alguns anos. Talvez não tenhas prestado atenção por ser tão
elementar e também por ter sido realizada antes de teu ingresso no curso,
apresentando-se como simplesmente parte do espaço, não se distinguindo dele.
Aliás, é bom lembrar que esta inclusão da arte como constituinte do espaço é uma
das questões da arte contemporânea, é como um mostrar-esconder construído
como obra. Esta instalação é uma escrita graficada com números grandes, que em
seqüência numérica anuncia cada andar, e os números estão escritos nos dois
sentidos: de baixo para cima e de cima para baixo; se fazendo acompanhar de uma
palavra em cada um dos andares, a qual pode nos fazer pensar tanto na articulação
297
Elevador/rodavelE – Intervenção realizada no Instituto de Artes – UFRGS – Cláudia Zanatta – Orientação de
Maria Lúcia Cattani (PÓS-GRADUAÇÃO) 1999. Atualmente Cláudia Zanatta é professora efetiva do quadro de
professores do IA.
7-246
entre si das sete palavras, pois são sete andares, como na relação delas com o
patamar (andar) anunciado, transformando-se em conceitos/palavras.
Penso na semântica
298
da instalação e percebo com interesse que talvez,
para juntar o primeiro ao último andar, se tenha que chegar antes ao “Tom da
Linguagem”, ou, quem sabe, ao se obter o “Tom” que identifica o timo andar, se
possa engendrar a variação correspondente na “Linguagem”, característica do
primeiro andar, como a mostrar que ingressamos num espaço especial. Intuição ou
determinação, de qualquer modo, é um belo jogo, bela brincadeira
299
.
Ah, agora estou vendo, então o primeiro é “Linguagem”, o segundo é
“Conceito”, e o terceiro é “Imagem”. Parece que do primeiro ao terceiro estamos
fazendo um caminho que também é histórico, não é?
É sim Ana, e é interessante que a “Linguagem” esteja na porta de acesso,
pois está uma construção contemporânea, ou seja, uma construção de nosso
próprio tempo, e é evidente que é somente com os “óculos” de nosso tempo que se
pode engendrar o ato da visão.
Ora, professora, você sabe como é difícil para mim, quando eu preciso
falar especificamente na visão, pois a falta da tridimensionalidade que me acomete
ao olhar me permite chegar somente a uma perfeita visão renascentista.
298
fiquei sabendo, por acaso, um ano após escrever o metálogo, quem é o autor da obra. Em uma conversa de
“rodapé” comentei sobre as transformações do Instituto de Artes e a perda de alguns referenciais que constituem
minha tese de doutorado. Imediatamente Maria Lúcia Cattani, artista-professora-pesquisadora, orientadora do
mestrado me informou que havia sido Cláudia Zanatta, sua orientanda, quem havia realizado a obra. Fui procurá-
la e então a artista, também professora do IA atualmente, me passou as seguintes informações:
“Elevador/rodavelE é um projeto para “site specific”: os dois elevadores do Instituto de Artes da UFRGS. No
trabalho foi utilizada a numeração dos andares do Instituto de Artes (1 a 7), relacionando-a a diferentes radicais
(prefixos) da língua portuguesa e palavras: PRÉLEITURA; PÓS – CONCEITO; HIPER – IMAGEM; TRANS
– OBJETO; META – ESTÉTICA; NEO – OBRA; ANTI – TOM; (elevador 1) – (elevador 2). A numeração, os
radicais e as outras palavras foram pintados no poço de cada elevador. Para visualizá-los é preciso o observador
estar dentro dos elevadores, em deslocamento.”
É importante salientar que em momento algum enquanto escrevi este metálogo eu tive acesso a estas
informações. Elas são posteriores a criação do metálogo. A apreciação da obra para mim sempre se deu pela
absorção das palavras/conceitos, os radicais visualmente se perderam e, sendo assim, a aproximação com os
significados acaba sendo intrínseca à própria palavra colocada in situ”. Inclusive é interessante verificar que da
concepção à instalação também teve algumas mudanças: por exemplo, a primeira palavra de leitura foi trocada
para linguagem.
299
A idéia de jogo e brincadeira é utilizada aqui numa referência à idéia de jogo construída no Metálogo de
Bateson: acerca de jogos e de ser sério, 1972. Para Bateson a brincadeira e o jogo são necessários para perceber e
encaixar as idéias em blocos com regras por vezes fixas e por vezes dinâmicas.
7-247
Reparo que Ana sempre ao falar comigo usa um tratamento que se estende
desde o tratamento mais formal como “senhora” a o tratamento mais próximo,
totalmente isento de qualquer hierarquia como o “tu”. Isto me lembra um pequeno
texto de Roland Barthes (1987) reunido com o título “Arredores da imagem”, em que
ele se refere a um pós-maio de 68, quando diz que um estudante tratar por tu um
professor é um signo pleno, e remete tanto à vontade de contestá-lo, quanto à
vontade de gerar um companheirismo. Nesse momento, esse me parece um
pensamento muito adequado à situação da conversa com Ana no interior do
ordinário e inseguro equipamento.
Ana, além de apresentar, na grafia de seu nome, a particularidade da
reversibilidade que possibilita a mesma leitura nos dois sentidos, da direita para a
esquerda e da esquerda para a direita, sem qualquer transformação, representa
também uma referência muito apropriada a um dos paradigmas da arte, que, de
certa maneira, se apresenta em seu corpo como uma limitação física, pois sofre de
ambliopia. Essa limitação se manifesta como uma redução em sua visão por uma
disfunção oftálmica que ocasiona uma redução na visão de um dos olhos sem que
ele mostre qualquer anomalia estrutural, simplesmente pelo desenvolvimento
incompleto da visão foveal, preservando a visão periférica e a acuidade escópica.
Essa disfunção é comumente chamada de olho preguiçoso. A imagem se forma
somente a partir de um ponto focal, permanecendo a visão da profundidade, porém
sem a tridimensionalidade característica da visão binocular.
Antes de seu ingresso no Instituto de Artes e de seu desenvolvimento nas
Artes Visuais, a disfunção no olhar de Ana era vista somente em seu sentido
negativo, unicamente como uma perda da visão do mundo. Ao desenvolver a
linguagem artística, Ana passa a perceber este limite não mais como uma restrição,
mas como uma “moldura” necessária para o desenvolvimento de seu trabalho de
criação.
Para esta mudança de lugar na compreensão do “como eu vejo o mundo”
física e conceitualmente, Ana precisou encontrar seu modo de ver na própria arte e
7-248
compreendê-lo como um princípio de apropriação do mundo e expressão da
linguagem.
Foi no período do Renascimento que se operou esta redução. Foram
construídos, na época renascentista, alguns instrumentos para limitar a visão
binocular: a perspectiva linear, o velô de Alberti e a câmara obscura
300
o alguns
deles. Estes instrumentos transformam o mundo numa imagem bidimensional,
tornando-o possível de ser copiado através da relação de um único olho com um
eixo referencial de medição. De certo modo, todos os objetos criados no período
renascentista têm a função de reduzir a complexidade para facilitar a apropriação da
imagem do mundo. Pode-se pensar que a diplopia do ser humano tenha originado
operacionalidades tanto biológicas como culturais que, ao longo do tempo, tem-se
entrelaçado de tal maneira que é difícil distingui-las.
Ora, Ana, tu sabes muito bem que o teu trabalho passou a se desenvolver
quando tu começaste a dar visibilidade a esta tua visão renascentista, construindo-a
não mais como um instrumento, mas sim como um conceito, ao criar tua obra com
um par de “óculos” contemporâneo em correspondência à contemporaneidade onde
estamos todos inseridos.
É, acho que comecei a ver as faltas, prestando atenção nelas como algo
significativo, e o que era visto apenas como uma limitação passou a ser a moldura
necessária à construção da nova visão. Hiii... Parece que ficamos trancadas no
elevador.
300
A perspectiva surge no século XV, e a primeira explicação escrita de suas regras se encontra no livro
intitulado “De Pictura” de Leon Baptista Alberti, 1404–1472: Alberti afirma ser a perspectiva a primeira base da
arte para os pintores não instruídos. O conjunto de regras parte do princípio de Protágoras que afirma ser o
homem a medida de todas as coisas. Para demonstrar como vemos, Alberti descreve uma pirâmide de raios que
vão desde o olho do artista até os objetos que se desenham. A partir disto propõe a utilização de um plano real,
chamado velô, conhecido como o velô de Alberti, composto de linhas horizontais e verticais dispostas em uma
moldura, pois é necessário o entendimento do conceito de intersecção, ou plano transparente imaginário para
conseguir se desenhar as linhas dos contornos em perspectiva. Tudo isto se dá a partir de uma visão monocular.
Mais tarde com os experimentos da óptica, nos séculos XVII e XVIII, foi desenvolvida a câmara obscura, um
objeto que intercepta os raios luminosos que passam por uma pequena abertura e formam uma imagem invertida
em um plano. A câmara obscura também foi percebida como um perfeito equivalente do caminho da luz no olho
humano, reduzindo mais uma vez a visão à monocularidade, num esquecimento da binocularidade da visão
humana.
7-249
Acho que quando subimos neste elevador isto chegou a me passar pela
cabeça, pois pensei que era justamente este elevador que um pouco antes estava
interditado.
Era o que faltava, eu estou envolvida com este trabalho
aproximadamente um mês e, agora, que está pronto e eu estava indo para a
avaliação com o horário marcado pelo professor, este elevador me impede de
chegar à sala de gravura.
Calma Ana, eu também estou em uma situação restritiva e justamente
quando o tema do seminário é a necessária inutilidade da arte. Vamos ver em que
lugar nós paramos, talvez isto nos ajude. Vamos ver... Aqui está! Veja em que
ponto nós estamos na relação da instalação de que falávamos anteriormente:
chegamos à “Estética”, a qual anuncia o quarto andar, onde se localiza o atelier de
desenho, que, de certa maneira, enuncia o lugar onde as idéias sempre
transbordam, e nesse “transborder” derramam-se graficamente, correndo o risco
pelo saguão. Isto é muito significativo...
É, sabe professora, que foi com o desenho que apreendi o modo como
vejo o mundo, e me surpreendi vendo como esse modo era um delimitador, mas
que, em sendo delimitador, poderia não ter limites.
– O que acabas de dizer não é nada novo. E estás muito bem acompanhada
em tua declaração, pois num artigo sem nome nem data deixado por Mario de
Andrade, e publicado posteriormente no livro “Aspectos das Artes Plásticas no
Brasil”, de 1965, com o título “Do Desenho”, ele afirma exatamente isso a respeito do
desenho: que é um delimitador e, ao mesmo tempo, não tem limites. E diz ainda
que talvez seja este, justamente, o caráter antiplástico do desenho, algo que faz dele
uma espécie de escritura. Desse modo o desenho passa a ser uma sabedoria, mas,
diz ele, ser o desenho, ao mesmo tempo, uma transitoriedade, o que para mim soa
como um espaço de passagem, uma mediação e, desta forma, acabamos por
retornar à estética. Esse retorno marca a compreensão do mundo, tendo como foco
um todo que é sempre estético, o que se dá na tentativa de delimitação de um
7-250
mundo mínimo que nos corresponda tal como a Filosofia do Renascimento se
propôs a construir.
– Ah, lembrei também que a primeira estética foi escrita neste período.
Bem lembrado Ana, foi um filósofo alemão, Baumgarten, no século XVIII,
mais precisamente em 1735, na obra: “Meditações Filosóficas sobre Questões da
Obra Poética”, quem mencionou pela primeira vez a palavra “estética” para designar
a ciência que trata do conhecimento sensorial. Baumgarten especifica o conceito
como uma forma de apreender o belo e se expressar nas imagens da arte, ao
mostrar o mundo de um modo que se contrapõe à lógica como ciência do saber
cognitivo. Afirma, ainda, seguindo a linha de Descartes, que essa ciência pode vir a
funcionar como um estágio inferior do conhecimento. Coube-nos, a partir de
Baumgarten, desenvolver tanto essa “ciência inferior” como instaurar uma nova
forma de conhecimento, confirmando um acesso reiterado aos lugares conhecidos,
mas também abrindo através da arte a possibilidade de acessar o desconhecido, o
que caracterizou muito bem toda a modernidade.
É interessante pensar nisso, pois ficamos presas neste elevador, no
momento que havíamos ultrapassado o quarto andar, percebendo a relação do
desenho e da instalação com o conceito de estética, e nos encaminhávamos para o
quinto andar, que é o lugar onde o professor me espera para a avaliação da obra
que realizei no semestre.
Sim, e você não pode esquecer que não podemos sair daqui, mesmo
tendo parado entre os andares, por causa do tamanho de sua obra que, de certo
modo, nos entalou aqui dentro. Mas afinal, o que tem nesta caixa?
Ora não tem nada que a arte não tenha muitas e muitas vezes
mostrado. Mais conhecido e reconhecido não poderia ser: eu fiz um olho
renascentista olhando para o meu olho contemporâneo, me devolvendo o olhar em
seis olhares buscados, um a um, em cada uma das faces do objeto. Então eu tenho
seis buracos, um em cada face do objeto e a todos corresponde um único olho
centrado que me declara reiteradamente como eu vejo o mundo.
7-251
Puxa, acho que não preciso nem falar de como isso é a própria metáfora
do necessariamente inútil na arte, ou seja, a reiterada construção do ponto de vista
único, a partir de qualquer plano de observação. O olho que espia se depara com a
engenhosidade mecânica da redução do olhar binocular. Talvez, para voltar à
origem do pensamento ocidental, onde Sócrates afirmava que para se saber algo
seria necessário saber que o se sabe, se possa deslocar esta máxima para a
visão: para se ver algo, é necessário se saber cego.
– E a senhora ainda diria que podemos fazer dessa não-visão uma obra?
Ora é dessa inutilidade que eu sempre estive falando, e o quanto ela é o
grande aprendizado para o indivíduo vir a encontrar seu próprio processo de criação,
tão necessário à formação do artista. Ultrapassando isso, caímos na cultura. A obra
passa a ser também informação, fornecendo o tom da conversa. Não se esqueça
que eu estou indo para o sexto andar, tendo ultrapassado a obra enunciada no
quinto andar e passado pelo conceito de informação, palavra anunciadora do sexto
andar.
Aaaaii! Não acredito, parece que essa instalação foi feita especificamente
para esta nossa conversa, e eu fico pensando que a estou percebendo neste
momento, apesar dela estar aí o tempo todo.
– De fato Ana, ela estava aí o tempo todo, mas não tinha nenhum significado
para ti. Nesse momento ela entra em foco, passa a ser reconhecida, encontrando os
contextos de onde foi deslocada e, ao mesmo tempo, se aproximando de novos
contextos, com significados específicos; ela passa a constituir um campo de
significação, mas a surpresa, o espanto e o posterior conhecimento/reconhecimento
ainda não terminaram.
Eu acho que sei do que você está falando, iiiih, a luz se foi, acho que vou
começar a gritar para ver se alguém nos escuta e faz alguma coisa para nos tirar
deste elevador. Parece que é muito fácil ficar esperando, trancada, num elevador até
ser resgatada por alguém, mas com o tempo a sensação que eu tenho é que o
7-252
espaço do elevador vai ficando cada vez menor. E agora, me parece que a
sensação se acelerou com a ausência de luz.
Nesse momento eu já estava quase apoiada na obra/objeto de arte de Ana e
acabei por acionar um pequeno botão que iluminava o interior da caixa, fazendo com
que meu olho, muito surpreendido, procurasse espiar pelo pequeno buraco de luz,
aliás, única luz naquela escuridão toda povoada de vozes que vinham do lado
externo de onde nos encontrávamos. Estranha relação: meu olho olhando para si
próprio num grande close, como única possibilidade de ver alguma coisa, e, ao
mesmo tempo, esta visão estava sendo acompanhada de uma miscelânea de sons
que meus ouvidos não conseguiam selecionar precisamente de onde vinham, não
distinguindo se os sons estavam próximos ou longe, acima ou abaixo. Pois não se
esqueça: nós estamos presas em um elevador, e esse é um equipamento que se
desloca num espaço que funciona como um túnel vertical, como um grande poço
com duas bordas, a de cima e a de baixo, além é claro de todas as outras janelas,
como possíveis intersecções deste túnel a cada andar.
Passou pela minha cabeça a situação dos prisioneiros no mito da caverna
descrito por Platão, mas também lembrei do livro de Saramago “A caverna”, que, de
certa forma, é uma outra versão do mito, onde a situação está mais próxima de
nossa realidade, que a dita caverna se transforma em um grande edifício de
departamentos, tendo à mão toda a tecnologia atual. Pensei que da tecné de Platão
à tecnologia de Saramago, todas as coisas úteis à sociedade podem vir a ser
positivas ou negativas para os indivíduos que a constituem e são constituídos por
ela, mas e as coisas inúteis? O inútil, por definição, é aquilo que não serve para
nada, significando com isso não servir socialmente, e desse modo, se descolando da
sociedade, não sendo intrinsecamente nem positivo, nem negativo. Mas, talvez, a
inutilidade se defina também como algo que tenha a sua utilidade restrita. Fiquei
surpresa com esse pensamento a respeito da inutilidade, pois sempre que abordei a
questão do inútil me restringi ao processo de criação individual e a necessária
inutilidade da obra para que se venha a elaborá-la como um lugar onde todas as
determinações estão contidas, constituindo o que se poderia chamar de autonomia
da obra como o cerne da construção da artisticidade da criação.
7-253
Nós estamos presas, gritou Ana a plenos pulmões, batendo com muita
força na porta interna do elevador.
É uma porta de grade antiga, impregnada por um outro tempo, os áureos
tempos, quando praticamente se “refundou” o instituto com a construção do prédio e
a transformação da Escola de Artes no Curso de Artes Plásticas com a direção dos
professores. Nesse tempo, em plena modernidade, aquele tipo de elevador
constituía-se uma inovação técnica e ainda se acreditava que a técnica levava
unicamente ao progresso.
Fiquei preocupada, pois então percebi o estado alterado de Ana e
procurei imediatamente acalmá-la. Pedi-lhe que me falasse um pouco dessa minha
maravilhosa descoberta de sua obra. Descobri que o objeto era uma dissimulada
caixa de luz, delatada agora por estes pequenos pontos luminosos que, no escuro, a
espacializaram, possibilitando que o objeto fosse percebido do exterior,
especificamente como um espaço interior.
Acho que para mim também está sendo uma surpresa, disse Ana, pois eu
não o tinha visto no escuro. Parece-me que, desse modo, toda a arquitetura
necessária à construção do objeto deixou de existir, subsistindo somente seu
sentido interior, como se isso fosse exatamente o que o objeto é em si mesmo.
– E o que se vê?
– Seu próprio olho lhe devolvendo o olhar. Nada externo ao olho.
– É claro, pois a imagem do olho é a superfície que o recobre.
Fico aqui pensando que todo esse burburinho lá fora, em um determinado
momento, deixa de fazer sentido, e a única coisa que passa a contar é o que está
sendo construído ali, com todos os parâmetros simultaneamente dados
circunscrevendo a própria construção.
7-254
É isso Ana, para se “ganhar” o processo de criação, é necessário se
“perder” momentaneamente todo o significado do que está sendo criado. É como um
jogo, e isso foi enfatizado muito bem por Duchamp
301
. O que se está fazendo não
serve a mais nada além de si próprio. se cria uma obra de arte quando ela se
descola de tudo que a originou, conquista uma autonomia que a liberta inclusive de
seu criador.
– Parece bem radical, talvez por isso seja tão difícil de compreender.
– Não só radical, mas também temporal. É sempre no tempo que reside este
conhecimento. É como se no processo de trabalho do artista, em seu fazer útil, se
abrissem janelas de seu processo de criação, de seu fazer inútil, que podem ser
vistas pelo próprio artista no ato de criação.
Por isso, também, que eu sempre tive tanta dificuldade com o fazer inútil.
Acho que quando as janelas apareciam me negava abri-las, pois também não posso
esquecer que eu venho de uma formação em arquitetura, onde toda a criação
arquitetônica é feita para funcionalizar, justamente, o espaço interno, fazendo dos
inúteis vazios da forma somente coisas socialmente úteis.
Voltou a luz. Veja, acho que não a luz, mas, também, o elevador voltou
a funcionar. Sua avaliação está salva e também a minha discussão no seminário
com os futuros professores sobre a necessária inutilidade da arte.
E eu, professora, acho que o objeto que vou apresentar ao professor de
gravura para a avaliação setambém outro, pois agora eu o estou vendo como um
outro.
Chegamos ao quinto andar, depois de passarmos pela palavra/conceito
“obra” instalada no elevador, e, também depois de, coincidentemente,
301
Marcel Duchamp (1887-1968) funda transformações na arte que determinam um novo paradigma ainda no
século XX, ultrapassa as fronteiras retinianas estabelecidas pela arte, penetrando num campo de ação entre
linguagem, pensamento e visão. Conforme Jasper Johns declarou em 1965 (in: Escritos de Artistas, 2006),
Duchamp alterou o nosso modo de pensar, estabelecendo novas unidades de pensamento, transformando ou
destruindo os quadros de referência que marcaram o paradigma da modernidade.
7-255
redescobrirmos a obra realizada por Ana, durante a situação restritiva e limitadora
que vivenciamos no precário elevador.
Tomo a decisão de descer do elevador junto com Ana, no quinto andar, e
subir um lance pelas escadas para ir ao sexto andar onde a turma de Artes Plásticas
na Educação me espera pacientemente. Ajudo Ana com o deslocamento de seu
objeto até o atelier de Gravura e então sigo para o próximo andar, pensando
exatamente nessa escolha que fiz, a qual, de certo modo, me privou de passar pelo
próximo conceito constituído na obra instalada no elevador.
Minha escolha eliminou a passagem pelo conceito “informação” que anuncia
o sexto andar, e também a possibilidade de ultrapassar o andar de minha sala de
aula e, ao invés de subir, descer um lance de escadas, podendo com isso passar
pelo conceito “tom” que está no sétimo andar: o qual também é o último andar de
acesso do elevador.
Entre subir e descer, estão a “informação” e o “tom” e pensando nestes dois
conceitos, percebo que eles me remetem ao conceito de “linguagem” que está no
primeiro andar, no princípio da instalação, que marcou nossa primeira passagem.
Esse pensamento me faz considerar que, talvez, a “informação” não seja condição a
priori para uma aula sobre a necessária inutilidade da arte, ao contrário, minha
experiência confirma que é primeiramente através da “experiência da arte” que esse
conhecimento poderá vir a ser construído. Isso ocorre por envolver justamente
processos de criação. Entretanto, confiante, não descarto a informação, e mais,
estou certa de poder acessá-la a posteriori, através de um processo coletivo que
dependerá somente de conseguir encontrar o colorido certo que possibilitará o “tom”
inicial da organização correspondente à relação entre os sujeitos participantes, para
encaminhar a conversa com a turma, desencadeando os múltiplos tons, ou mesmo
“contra-tons” que possibilitarão o envolvimento de todos no trabalho do grupo.
Ao subir os últimos degraus da escada, penso na articulação da formação do
artista e da formação do professor de arte e como a construção do conhecimento da
arte passa por lugares comuns às duas formações. Subitamente, paro uma fração
de segundo, e respiro profundamente, penso especificamente nesse lugar que é
7-256
essencial a ambos, pois nos empurra para a descoberta de nosso próprio processo
de criação, porém do qual ainda não temos um mapa que nos permita explorá-lo ou
determiná-lo totalmente, pois, a cada vez que se chega lá, é a própria experiência,
aquilo que se constitui como um mapa. Ao pensar nisso, respiro novamente, desta
vez, profundamente aliviada, pois penso que um mapa que configura a si próprio
como território não dá acesso a nada, a não ser à beleza de seu próprio desenho
302
.
Continuo a subir a escada, rememorando a experiência que selecionei para
introduzir o assunto aos futuros professores de arte: penso que talvez eles ainda não
tenham tido a possibilidade de olhar como uma “célula” a construção que está na
origem do desenvolvimento da expressão gráfica do ser humano, e, desse modo,
vou proporcionar a experiência através de lâminas construídas com uma seqüência
de “micro-imagens” de desenhos infantis, garatujas colocadas “cientificamente” para
serem visualizadas através de um microscópio.
É certo que ver um desenho de criança, os primeiros grafismos, como se
fosse uma célula mãe, como um dado microscópico a ser reconhecido e colocado
para um outro, que também nunca o viu desta forma e, ainda, não sabe nem do que
se está falando, é uma experiência estésica e ao mesmo tempo estética.
E, é certo, também, que provocará uma fratura no real, gerada por um
deslumbramento frente ao reconhecimento da expressão de um ser humano em
formas que são reiteradas por cada um de nós em nosso desenvolvimento, marcado
por uma formação que ultrapassa o biológico, sendo também cultural. E nessa
descoberta todos estarão mais próximos do artístico, se deslocando no caminho
da criação.
Pois é, e nesse jogo de aproximações, que se somente na linguagem,
parece que estamos sempre a brincar, principalmente quando nos aproximamos de
experiências singulares, cujo retorno a elas é impossível, a menos que se as
302
Esta idéia está colocada no texto de Gregory Bateson “Alegoria” sobre o qual realizei uma breve reflexão que
se encontra no seguinte endereço eletrônico: http://seminariobateson.weblogger.com.br/index.htm
7-257
constitua reiteradamente a cada vez como uma outra experiência. Bem, é com essa
experiência
303
que vamos iniciar a difícil conversa sobre a inutilidade da arte.
303
O conceito de experiência que vem sendo utilizado está construído no corpo da tese numa referência ao
conceito em John Dewey, “A Arte como Experiência”, e também numa referência ao conceito de experiência de
Humberto Maturana e Francisco Varela, em “A árvore do conhecimento”, as bases biológicas do conhecimento.
Entre estes dois limites que se constituem no tempo, emerge o conceito de experiência como uma chave de
comutação que transita pela Filosofia e pela Ciência, criando um elo com a Arte, o que está metaforizado na
experiência proposta aos futuros professores de arte, e foi construído como substrato do metálogo “Sobre a
necessária inutilidade da arte”.
8-258
8 APÊNDICE C: SOBRE A MULTIPLICIDADE DA ARTE
8-259
SOBRE A MULTIPLICIDADE DA ARTE
304
METÁLOGO
305
MEDIADO PELA REDE NA FORMAÇÃO DO ARTISTA E DO
PROFESSOR DE ARTE
Existem espaços no Instituto de Artes
306
da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul
307
que são constitutivos da infra-estrutura necessária ao projeto
pedagógico
308
dos cursos de formação superior em arte, e, embora gozem deste
estatuto, guardam uma história de lutas e reivindicações desde o seu surgimento.
Isto ocorre tanto se considerarmos estes espaços a partir de referências internas
relacionadas à comunidade do Instituto, quanto se os considerarmos a partir de
referências externas, relacionadas à comunidade acadêmica da UFRGS.
Mas, por outro lado, estes mesmos espaços, de certo modo, acabam por se
constituir como baluartes das transformações manifestadas na área de
304
Este Metálogo faz parte do conjunto de diálogos docente/discente em referência aos quatro anos de formação
superior em Artes Visuais. O primeiro traz como foco a questão do ensino da arte levantando alguns mitos
próprios da área artística, o segundo trata do processo de criação e a inutilidade da arte enfocando o desempenho
individual do aluno-criador, o terceiro versa sobre as transformações da área, expandida exponencialmente num
desdobramento da técnica à tecnologia, aliada à dificuldade de compreensão da implicação do conceito de jogo
presente nesse processo, e o quarto traz o caráter específico de exposição inerente à obra de arte, fechando um
ciclo que se refere à formação superior em Artes Visuais. Os Metálogos docente/discente são realizados com
três discentes do sexo feminino, à semelhança de minha própria condição feminina, e com um discente do sexo
masculino, se contrapondo aos anteriores pela relação de diferença de gênero que estabelece na interlocução.
305
Metálogo ou Metadiálogo, como foi traduzido na versão em língua portuguesa de Portugal, é a denominação
dada por Gregory Bateson (1972) a um diálogo construído para discutir um problema envolvendo a estrutura da
própria conversa como relevante para o problema. Os metálogos de Bateson têm como interlocutores ele próprio
e sua filha, modelo que remete aos diálogos de Platão, onde o conceito de filia, originado na filosofia grega
(filos+sofia, significando “amor ao saber”) é fundante e participante do pensamento ocidental, com a diferença
que em Platão a construção ocorre entre mestre e discípulo. Os metálogos que constituem a tese não estão sendo
desenvolvidos como reproduções da realidade, são ficções, embora utilizem contextos com situações acadêmicas
reais ou possíveis, em referenciais que comportam as questões-problema tratadas. As situações enfocadas, entre
uma professora e um discente do curso superior de Artes Visuais da UFRGS, utilizam como substrato minha
própria experiência de ensino na Instituição, e fazem referência ao padrão de interação docente/discente em
situação informal de aprendizagem, tomando como base o currículo do curso, ao percorrer quatro anos de
formação, através de um diálogo temático correspondente a cada ano.
306
O Instituto de Artes da UFRGS é um de seus institutos centrais que atuam no domínio do conhecimento
fundamental, destinando-se ao ensino, pesquisa e extensão. Integra a Universidade Federal desde 1962 e foi
fundado como Instituto Livre de Belas Artes em 1908.
307
A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com sede em Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande
do Sul, foi instituída em 1934 e federalizada em 1950. É uma universidade pública que tem por finalidade,
conforme seu estatuto, Título II, a educação superior e a produção de conhecimento filosófico, científico,
artístico e tecnológico, integradas no ensino, na pesquisa e na extensão.
308
A partir da regulamentação da educação superior que complementa a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Brasileira, de 1996, os cursos superiores se estruturam mediante um Projeto Pedagógico onde são definidas as
seguintes dimensões constitutivas: Organização didático-pedagógica, Corpo docente e Instalações.
8-260
conhecimento, pois se apresentam como espaços que acolhem e, simultaneamente,
implementam as transformações.
Sem dúvida que a transformação de uma área de conhecimento está
aninhada em transformações gerais da sociedade, determinadas por mudanças que
aos poucos se configuram como novos paradigmas do conhecimento, e, nesse
processo, em retroação, imprimem certo desequilíbrio à sociedade de onde
emergem. Verifica-se na atualidade esta transformação, vive-se uma situação
semelhante a uma experiência de passagem; configura-se como um trânsito, pois a
sociedade industrial emergente no século XIX está aos poucos sendo substituída
pela sociedade do conhecimento e informação “gestada” no século XX
309
.
Retornando aos espaços de formação do instituto, refiro-me especificamente
ao Laboratório de Arte e Tecnologia da área de Artes Visuais do Instituto de Artes da
UFGRS, hoje conhecido como LAB71
310
. Este laboratório foi fragilmente
implementado quando o curso de artes ainda se chamava Curso de Artes
Plásticas
311
, bastando para seu efetivo funcionamento uma infra-estrutura que
comportava, prioritariamente, atelieres, para as aulas práticas, e miniauditórios para
aulas teóricas. As disciplinas curriculares que necessitavam do espaço do
laboratório eram todas eletivas e funcionavam como uma primeira tentativa de
atualização do currículo frente às novas tecnologias. É claro que, nessa época,
existia o Laboratório de Fotografia
312
, uma presença que, reiteradamente, desde a
309
Sousa Santos no seu Discurso sobre as Ciências (2006), discurso proferido na abertura das aulas da
Universidade de Coimbra no ano letivo de 1985/1986, afirmou que, se “piscasse” verificaria surpreendido que o
campo teórico onde ainda se trabalhava estava estabelecido e mapeado por cientistas do século XVIII aos
primeiros anos do século XX, o que possibilitaria dizer que em termos científicos, estando a 15 anos do ano
2000, vivia-se ainda no século XIX, e que o século XX ainda não começara e culminava dizendo que talvez não
começasse antes de terminar. Com a evolução tecnológica tecendo os limiares de uma nova sociedade da
comunicação, afirmou em seu discurso que o século XXI se faria começar antes de seu início propriamente dito.
310
http://www.ufrgs.br/lab71/ O LAB71 era denominado inicialmente de Laboratório de Computação Gráfica,
com a ampliação em 2005 e a implementação do novo currículo em 2007, passou a se chamar Laboratório de
Arte e Tecnologia, tal como a disciplina de aprofundamento deste campo constituído na estrutura curricular.
311
Conforme tese de doutorado de Círio Simon (2002), “As Origens do Instituto de Artes da UFRGS”, a
denominação Curso de Artes Plásticas data de 1936. Esta mudança foi implementada por Tasso Corrêa, que
acrescentou, ao Desenho e à Pintura, a Escultura, a História da Arte e a Arquitetura, ampliando a anterior Escola
de Artes com um ensino mais técnico e conceitual, além de reforçar as Artes Gráficas com a contratação de
profissionais de editoras locais. Permaneceu com esta denominação até 2005, quando passou a se chamar Curso
de Artes Visuais, dois anos antes da implementação do currículo correspondente às mudanças impulsionadas
pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira de 1996.
312
O Laboratório de Fotografia surgiu com a mudança curricular de 1968/1971 atendendo a duas disciplinas:
Foto I e Foto II; a princípio também componentes curriculares eletivos, do mesmo modo como foram sendo
implementados os demais Laboratórios.
8-261
tímida inserção no curso, serve de alerta sobre o fato de, historicamente, ser a
Fotografia a linguagem artística à qual se creditam os princípios da revisão teórica
do paradigma moderno da área artística
313
.
Walter Benjamin (1992) no texto “A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica” levantou questões relacionadas à técnica e à reprodução
que, fundadas no campo artístico na área de gravura, acabam por encontrar sua
definição final na área da fotografia, e são fundantes do pensamento moderno a
respeito da ontologia e da epistemologia da arte. O texto de Benjamin produziu um
conhecimento que é reconhecido hoje pela arte contemporânea, ou seja, tem um
significado constituído no que consensualmente se define como a atualidade da arte.
Eliseo Verón (1980), discorrendo sobre a produção de sentido na sociedade, afirma
que uma fundação é sempre reconhecida somente a posteriori, referindo-se a um
processo recursivo de uma prática de produção de conhecimento. Funda-se um
sistema de diferenças entre dois sistemas de relações, os quais nada mais são que
relações contraídas entre os discursos e as condições que os sustentam enquanto
produtos de uma prática significante desenvolvida na história. E a forma de
reconhecimento de um novo sentido na sociedade dá-se sempre em um texto ou em
um conjunto de textos, verificando aquilo que foi produzido. Sendo assim, a
mudança radical nos modos de produção implica também em novos discursos
fundantes, aceitos a posteriori, como paragens que definem a diferença entre o
antes e o depois.
No final do culo XX, com os desdobramentos técnicos de produção e
reprodução de imagens, a tecnologia descolou-se definitivamente da técnica quando
passou a interferir em nossa concepção de tempo, atualizando, na experiência
teorias contemporâneas que, ao focalizarem o tempo, o dimensionaram,
313
A Fotografia no currículo do Curso de Artes Plásticas teve um crescimento significativo, pois chegou a se
constituir como uma ênfase do curso. As áreas que foram sendo acrescentadas se constituíram em ênfases ou em
áreas eletivas até 2006, quando foi implementado o novo currículo. O Curso de Artes Plásticas chegou a ser
constituído por oito ênfases, sendo sete Bacharelados e uma Licenciatura. Os Bacharelados eram os seguintes:
Desenho, Pintura, Escultura, Gravura, Cerâmica, Fotografia e História, Teoria e Crítica da Arte, tendo sido
constituídos nesta ordem desde o surgimento do curso.
8-262
transformando-o em um conceito
314
e abrindo novas possibilidades de vir a ser
conhecido
315
.
A mudança operada nos modos de produção da imagem está também na
origem das transformações internas da arte, inclusive influenciando na classificação
da área de abrangência do conhecimento que passa a ser classificada como área de
Artes Visuais, englobando a antiga área de Artes Plásticas, numa referência a um
universo real e a um universo virtual por onde o conhecimento da área se desdobra.
Este “estado da arte” da área de Artes Visuais se reflete na infra-estrutura
necessária à construção do conhecimento da área, que ultrapassa os característicos
atelieres e auditórios, tornando imprescindível o laboratório, como um novo espaço
de construção do conhecimento artístico. É interessante enfatizar que o espaço de
laboratório era, anteriormente, uma característica específica das áreas científicas,
espaço destinado por excelência à pesquisa
316
, definido como um lugar onde se
pode reconstruir a experiência e descrevê-la cientificamente, reconstruindo-a na
prática, podendo visualizá-la, estudando-a conceitualmente. Inclusive, se pensarmos
na fotografia, é possível verificar que ela surge como ciência no século XVIII, e
somente no século XX começa a ser realizada como arte, apesar de ter desde os
primórdios de seu surgimento, ainda nos séculos XVI e XVII, um estreito contato
com a arte através de dispositivos, que, de certa maneira, antecipam o surgimento
da fotografia.
314
Ilya Prigogine no prólogo do livro “O fim das certezas” (1996) afirma que o “tempo está na encruzilhada do
problema da existência e do conhecimento”. E, ainda, afirma que foi a incorporação do tempo na física galileana
o ponto de partida da ciência ocidental. A experiência do tempo, ampliada a partir da Teoria da Relatividade de
Albert Einstein que o constitui na relação espaço/tempo, entra em paradoxo no século XX com a física quântica
trazendo a emergência do paradoxo do tempo. Prigogine fala que Einstein não suspeitou que a sua teoria
implicasse questões que desembocariam na concepção de um universo orientado pelo tempo. Esse universo de
orientação temporal pode ser associado aos contos árabes em que as histórias se encaixam em outras histórias.
315
O surgimento da imagem em movimento no final do século XIX e os desdobramentos técnicos e
tecnológicos, tais como o cinema, a televisão, o vídeo e a animação, desenvolvidos no caminho da imagem
analógica até a imagem digital, foram também determinantes para a mudança da experiência do tempo,
contribuindo para a mudança conceitual do tempo.
316
É importante lembrar que a pesquisa na universidade era privilégio das ciências naturais (em alinhamento
com as chamadas áreas duras), tendo se expandido para toda a área científica, inclusive abrangendo as ciências
sociais; atualmente, em meio a mudanças paradigmáticas do conhecimento e da sociedade, a arte tem ampliado
seu espaço institucional, tendo obtido reconhecimento como área de pesquisa, entretanto a hegemonia das áreas
científicas ainda é determinante do status da formação superior. Esperamos, aos poucos, uma aproximação com a
futura universidade plural, ou como afirma Souza Santos (2003), a realização de mudanças estruturais que
possibilitem passar do sentido unitário presente na idéia de universidade para a pluralidade constitutiva de uma
universidade de idéias.
8-263
Talvez, este cruzamento que hoje ocorre, configurando o espaço do
laboratório como um de seus cenários, seja, simplesmente, a caracterização deste
como um lugar organizado em torno de equipamentos de precisão e controle, o que
pode ter um efeito perturbador, tanto para a arte, que agora também ali se insere,
quanto para a idéia de precisão e controle, que ali tem a sua origem, pois no século
XX, ambos sofrem o abalo com a imprecisão da vida e o surgimento do autocontrole
no seio de um novo paradigma científico. Desse modo, ao olhar pelo viés dos
equipamentos que constituem todos os laboratórios, os quais se apresentam
totalmente informatizados, instaurando um lugar de compartilhamento do espaço
natural da inteligência com o espaço da inteligência artificial, apresentando-se como
a atualização do espaço de construção do conhecimento, independente da área
onde este conhecimento tece seus significados, emerge a tecnologia digital. Esta,
com um novo código, ou uma nova linguagem, permeia todas as áreas do
conhecimento, impregnando-as com transformações radicais.
Um fato muito significativo, em relação ao laboratório tecnológico Norte-
Americano, o Massachusetts Institute of Technology, MIT, confirma essas
transformações. Depois da segunda guerra mundial, em 1945, constituiu equipes
interdisciplinares com obrigatória participação da área artística, que, a princípio,
tinha o objetivo de provocar a inserção de um pensamento divergente no núcleo da
coerência excessiva do pensamento técnico-científico.
Desta relação, engenharia X arte, resulta também uma significativa
participação da arte na informatização da sociedade através do desenvolvimento de
interfaces gráficas com crescentes facilidades de acessibilidade. Isto se pelo
estreito contato que o artista tem com a imagem, pois, através da imagem conhecida
do mundo, um outro mundo desconhecido é trazido à mão do usuário por meio de
um universo digitalizado, característico da sociedade da informação e conhecimento.
Em abrangência que abarca desde a ciência aa própria arte, este novo universo
possibilita a construção de um conhecimento que, até então, era privilégio de um
grupo muito reduzido, o que, de certa forma, pode ser visto como a vulgarização da
ciência pela interface da arte. E remete, por outro lado, a uma aproximação com
processos históricos identificados na História da Arte Ocidental e no
8-264
desenvolvimento das religiões, principalmente se o foco for o Cristianismo
317
, que,
em sua proposta de universalização (hoje diríamos globalização), se apropriou da
arte, ao utilizar a imagem como porta de acesso no caminho da sua expansão.
O pensamento é realmente algo muito complexo, e isto afirmou Edgar
Morin desde a década de 70, quando publicou a coleção “O método”, após a
revolução cultural que caracterizou a segunda metade do século XX. Não temos um
único modelo de pensamento, mas diversos modelos que se cruzam reiteradamente,
e deste cruzamento emergem ainda outros modelos. Esta afirmação funda uma
posição onde o cientista coloca a objetividade entre parêntesis e admite o
multiverso, ou seja, múltiplas versões da realidade em diferentes domínios de
explicações.
É pensando nesse aparente caos do entrecruzamento dos campos de
conhecimento expandidos pelas referências correspondentes, constituídas no
pensamento, onde os mapas são todos virtuais e com possibilidade de mutação
permanente, que estou, algum tempo, tentando abrir a porta para adentrar no
novo Laboratório de Arte e Tecnologia do Instituto de Artes da UFRGS. Olho
novamente para minha mão, e, um tanto perplexa, vejo as diversas chaves que
correspondem a vários cadeados e fechaduras. Verifico que deveria ter,
considerando o número de chaves em minha mão, mais ou menos duas ou três
portas neste vão de entrada. Frente a esta constatação, fico em dúvida se realmente
estou com as chaves certas, pois não me parece que, neste novo laboratório, tenha
se conservado a entrada anterior, onde o acesso era constituído tal como uma
“interface”: por uma porta que dava passagem a quatro novas portas de quatro
distintos laboratórios. Para ter certeza, volto a investir contra as fechaduras,
pacientemente experimentando uma a uma das chaves, e, fazendo isso, penso que
hoje a situação do laboratório está “quase ideal”, mas é claro que este pensamento
está muito além deste contratempo.
317
Para Gadamer (1985) vivemos na consciência de nossa formação os frutos da história da arte ocidental
desenvolvida através da arte cristã na idade média e da renovação humanista da arte grega e romana, o que para
ele é motivo de júbilo, o fato do Cristianismo ter tomado a decisão de dar uma nova significação para a
linguagem dos artistas plásticos e também, mais tarde, às formas de expressão da poesia, trazendo com isto, a
seu ver, uma nova legitimação à arte.
8-265
É, não para reclamar, pois agora está incomparavelmente melhor,
principalmente se levarmos em consideração que, anteriormente, estas portas
davam acesso não a um laboratório, mas a um pequeno espaço de um novo acesso
a quatro outros pequenos espaços que constituíam quatro pequenos laboratórios do
Instituto: Laboratório de Vídeo, Laboratório de Computação Gráfica, Laboratório de
Design de Superfície e Laboratório de “primeiros socorros” da área técnica de
informática. Eram quatro que deram origem a este único, transformado e ampliado, e
não por submissão, mas por evasão, o único laboratório que ficou subsumido por
este foi o de vídeo que inclusive é responsável pela mudança de nome do
laboratório, que agora é Laboratório de Arte e Tecnologia, nome também da
disciplina avançada deste campo curricular. O design de superfície e o atendimento
técnico deslocaram-se para o Campus Central da UFRGS.
Com todos os avanços e retrocessos, pois é claro que estes sempre
acompanham aqueles nas mudanças, mesmo que somente em aparência, estou,
agora, plenamente certa de logo adentrar no espaço do laboratório, pois estou
abrindo o último cadeado que me impede a façanha.
Neste exato momento, sou interrompida por uma voz muito calma e suave,
que parece ter vindo de muito longe, tanto que, num primeiro momento, olho para
dentro do laboratório, imediatamente após o extremo esforço dispendido para
acessá-lo. Vislumbrei o amplo interior que se descortinava, e, somente depois desta
panorâmica, é que voltei a olhar para fora da sala, ainda desconfiada, pois fiquei na
dúvida se não estaria lá dentro a origem daquela voz.
– Posso ajudá-la?
Depois deste fenômeno de reverberação do som, ou talvez, recursividade do
pensamento, eu me virei tal como uma mosca tonta, pois o tinha percebido a
aproximação de Sabrina
318
que, às minhas costas, repetia muito calmamente:
318
Sabrina é uma aluna do curso já formada no Bacharelado em Desenho e atualmente cursando a Licenciatura
em Artes Visuais. Já aproximadamente três anos tem participado de equipes de trabalho, em grupos sob
minha coordenação, para realização de objetos de aprendizagem que articulam interdisciplinaridade entre as
áreas artísticas, a pedagogia e a educação física, participando do Projeto do Centro de Artes e Educação Física da
UFRGS.
8-266
Você precisa de ajuda? Insistiu Sabrina. Às vezes estas portas nos
pregam algumas peças, parecendo não querer dar acesso a lugares aparentemente
inacessíveis.
– Ora, que poética a tua apreciação desta circunstância, e, ao mesmo
tempo, muito perspicaz, principalmente se resgatarmos a história deste espaço
dentro da história de desenvolvimento do Curso de Artes Visuais.
A primeira vez que encontrei Sabrina foi também neste laboratório,
entretanto foi no “um quarto” do espaço que correspondia ao então Laboratório de
Computação Gráfica. Era uma primeira reunião para formar uma equipe de trabalho
para a realização de uma rie de projetos interdisciplinares que articulariam as
Artes e a Educação Física em processos educacionais, utilizando a informática na
construção de dispositivos para o recém-formado Centro de Artes e Educação Física
da UFRGS. O Centro tem a coordenação geral da área de Música, tendo à frente a
professora Helena de Souza Nunes do Departamento de Música do Instituto de
Artes. A minha participação se restringia à coordenação da área de Artes Visuais, a
princípio trabalhando, especificamente, em objetos de aprendizagem com foco na
área de música, cruzando com os processos de alfabetização e letramento, muito
embora os objetos possuíssem a particularidade de serem construídos com uma
programação visual onde o conhecimento artístico se instalava em subsentido de
uma forma tanto tácita como construtiva. É importante salientar também que os
objetos, progressivamente, foram sendo ampliados com instigantes propostas de
reconstrução criativa.
Lembro-me do dia em que conheci Sabrina: foi Rigon, um aluno do
Bacharelado em Artes Visuais, engajado no projeto e que havia participado como
bolsista de outros projetos de extensão e pesquisa, quem me apresentou Sabrina,
que logo foi sentar a um canto e ficou durante toda a reunião somente observando o
andamento das definições do trabalho a ser realizado. Lembro que, na época,
cheguei a pensar se Sabrina se engajaria no grupo ou não, pois fiquei intrigada com
o seu mutismo, entretanto bastou uma segunda reunião para que todas as minhas
dúvidas se dissipassem.
8-267
O silêncio de Sabrina escondia, na realidade, uma grande capacidade de
observação e escuta. E isso se comprovou na seqüência do trabalho, quando foram
discutidas as primeiras manifestações concretas de todos os participantes da
equipe. Os esboços ou ensaios foram apresentados em uma breve produção onde
se podia verificar o entendimento do trabalho a ser realizado, tendo em vista as
múltiplas possibilidades que eu havia levantado na reunião anterior. Lembro-me
como foi surpreendente, pois estava no trabalho de Sabrina: num primeiro esboço
da imagem em movimento, nos rudimentos iniciais de uma animação se
vislumbravam as idéias que podiam ser reconhecidas e continuadas; parecia uma
mágica.
É um disparate eu fazer esta comparação quando sou tão crítica a esse
respeito, entretanto infelizmente a arte apresenta esta face “mágica”, pois quando a
obra está pronta ou esboçada, parece que surgiu por um passe de mágica, e com
a informatização dos recursos, nas obras digitais, esta interface arte/magia fica ainda
mais acentuada. Esta identidade visual de aparente facilidade, e de apreensão
rápida, constituindo certo “domínio público”, por um lado, me deixa contrariada, pois
todo artista sabe que qualquer obra é feita de muito trabalho; entretanto, por outro
lado, é muito gratificante perceber quando o observador externo tem a impressão da
leveza do instante frente a uma boa obra de arte, anulando qualquer percepção de
trabalho imanente à obra.
Olá, que surpresa Sabrina! Eu não tinha te visto e fiquei surpreendida ao
ouvir tua voz, e como estou tão acostumada a te ver sempre junto aos
computadores, a tua “aparição” exatamente no momento em que eu consegui abrir
as portas do laboratório me fez duvidar que a voz viesse daqui de fora. Mas parece
que isto está incorporado em teu trabalho artístico também, pois não estás
trabalhando com lugares e espaços invisíveis
319
?
319
Uma das preocupações de um professor-formador de artistas, professores de arte e pesquisadores é sempre
tornar presente o eixo da criação individual para poder apontar o foco visível desse processo, que funciona
sempre como um orientador para todos os possíveis “deslocamentos” ou buscas pessoais que passam, então, a
funcionar como desenvolvimentos dentro da linguagem da arte.
8-268
Pois é, em meu trabalho artístico, me envolvi com sombras, com cantos
de espaços interiores que se derramavam como sombras figuradas ou desfiguradas,
e agora estou me movimentando para fazer uma exposição focalizando unicamente
fundos, e a intenção é que, embora em “exposição”, eles continuem sendo fundos.
Isto faz parte de uma idéia que venho acalentando relacionada ao questionamento
do que constitui originariamente a nossa visão; meu trabalho parte do invisível, pois
acredito que qualquer coisa para se tornar visível tem que ser sempre construída.
– Ora, esta já é uma caminhada no desenvolvimento da linguagem da arte, e
por lugares bem específicos, onde te vejo articulando a forma e o signo através do
conceito, mas eu verifico que estas tuas escolhas se identificam muito com uma
outra escolha mais pragmática, que desenvolves com muita vontade, que é o
trabalho com a animação digital.
– Ah, é? Não sei, não pensei! Mas pode ser! Vou pensar!
Pense, por exemplo, em como é importante para o animador ter a
consciência de transformação tanto da figura como do fundo onde a figura se insere,
e talvez seja essa uma das diferenças básicas entre o vídeo e a animação. Talvez o
espaço da animação se desenvolva em fluxos, abarcando o vetorial, o projetivo e o
topológico, diferente do vídeo, que, apesar de ter a possibilidade de utilizar também
os três tipos de espaços, não os distribui em fluxos e sim em seqüências lineares.
– Ummm! Talvez, mas não compreendi bem essa idéia de fluxo.
Está certo, normalmente é assim que ocorre na arte, primeiro se utiliza na
obra e depois se conceitualiza; entretanto, parece que no processo artístico
contemporâneo, em algum momento, se instala a dúvida se o modelo mental é
anterior ou posterior à realização do artista e também ao modelo conceitual. E,
talvez, esta dúvida tenha sido inicialmente instaurada por Duchamp.
320
320
Jasper Johns, artista norte-americano do pós-guerra, participante ativo do debate crítico na cena norte-
americana após o Expressionismo Abstrato, menciona em seus escritos (1996) que Marcel Duchamp estabeleceu
um novo campo para a arte onde a linguagem, o pensamento e a visão agem uns sobre os outros, acarretando
uma complexa interação de novos materiais mentais e físicos.
8-269
É, eu acho que muitas vezes tenho que fazer o trabalho, e então eu
consigo compreender o que sempre parece que estava ali, mas que ainda não
tinha visto, nem compreendido.
E nesses momentos, tu tens um modelo de pensamento que ainda não
pode ser conceitualizado, o que vem a ocorrer somente depois de ter sido modelado
pela obra realizada.
Mas nem sempre é assim, pois algumas vezes me peguei perseguindo
um conceito como, por exemplo, o conceito de “vazio”, na tentativa de encontrar uma
idéia, ou algum modelo de pensamento que me auxiliasse a construí-lo no universo
plástico ou no universo virtual.
Me ocorre que talvez seja, de alguma forma, útil a esta nossa conversa a
redefinição científica de superfície como uma interface entre dois meios, com uma
atividade constante manifestada através de uma relação de trocas entre os dois, tal
como Virilio (1993) menciona no texto do livro “O espaço crítico”. E é interessante
que ele vai dizer que a limitação de um espaço torna-se com isso comutação.
Ah é isso! Por isso que eu, mesmo sem compreender a idéia de fluxo, a
tornava sempre presente em meu trabalho, pois a minha ênfase sempre foi os
espaços de mudança, que normalmente são invisíveis para a maioria das pessoas.
É interessante como para ti, tal como se diz no ditado popular: “meia
palavra basta”!
É, não foi bem meia palavra, foi, sim, uma palavra inteira, pois foi falar
em “comutação” que consegui compreender esta chave que se torna um espaço
invisível”, um lugar onde as trocas ocorrem como fluxo, inscrevendo mudanças nos
meios considerados.
E essa articulação com um, aparentemente, perfeito encaixe das coisas
passa para o observador como um passe de mágica numa animação, entretanto é a
8-270
compreensão deste espaço invisível de comutação que, em fluxo, possibilita as
múltiplas combinações.
É também essa a compreensão que eu tenho construído ao longo deste
tempo em que tenho trabalhado contigo. Nestes diversos projetos que vamos
dimensionando em nossas discussões, passei de relações simples de figura e fundo
a relações rítmicas articuladas em inversões definidas em mudanças geradoras de
multiplicidades ordenadas.
Ora, veja que ótima esta definição de fluxo! Esta tua declaração de
passagem me faz lembrar da relação entre objeto e processo mencionada por John
Cage
321
a respeito das mudanças ocorridas na área musical, e a ocorrer ainda no
século XX, quando ele afirma que os compositores não fazem mais estruturas
musicais, mas iniciam processos. Para Cage a estrutura é como uma peça de
mobília, enquanto o processo é como o clima, no qual percebemos as mudanças,
sem ter claro o seu início e o seu final, sendo sempre o agora o lugar onde estamos.
Eu acho que não poderia fazer uma aproximação melhor da idéia de fluxo na obra!
Mas veja só! Que mudança, hem? Sabes que eu ainda não tinha entrado neste
laboratório depois das reformas? Está bárbaro!
322
É, ficou mesmo muito bom, mas, como nós temos trabalhado com
freqüência nos laboratórios do Campus Central, eu também me sinto uma
estrangeira aqui.
Pois pensando neste nosso trabalho, foi muito bom ter te encontrado e, se
tiveres um tempo, podemos antecipar aquela reunião que marcamos para daqui a
dois dias para conversarmos sobre o “objeto desenho”. Eu tenho um tempo agora, e,
321
John Cage, aluno de Henry Cowell e de Arnold Shönberg, é um dos compositores contemporâneos que mais
contribuíram para o diálogo entre a música, dança, teatro e artes plásticas. Uniu-se a Mercê Cunnigham e Robert
Rauschenberg, formando ainda com Jasper Johns um grupo que muito tem contribuído para as reflexões sobre a
intersecção entre as artes. A referência utilizada faz parte do texto “O futuro da música” publicado no livro
“Escritos de Artistas” Anos 60 e 70, organizado por Glória Ferreira e Cecília Cotrim e publicado pela Zahar
em 2006.
322
Bárbaro é um adjetivo que exprime admiração e o utilizo sempre que quero acentuar uma relação de
excelência em um estado avançado de desenvolvimento técnico ou tecnológico humano com um estado natural
ancestral, pré-civilizatório, pois significa também selvagem e inculto. É curioso pensar que certa mudança tão
radical da sociedade possa se equivaler ao princípio da civilização e às mudanças também radicais que foram
experimentadas pelo homem em seu desenvolvimento.
8-271
se puderes, podemos usar este laboratório que hoje, no turno da tarde, não está
sendo utilizado por nenhuma disciplina do curso.
Eu posso sim, estou saindo de uma aula de pintura, onde acabei de
apresentar o meu trabalho, e não tenho nenhuma outra aula agora.
O atelier de Pintura fica no sétimo andar do prédio do Instituto de Artes, na
sala 73, e o laboratório de Arte e Tecnologia fica no mesmo andar, na sala 71. Fico
pensando na distribuição dos espaços educativos no prédio do Instituto e, em uma
reconstituição do tempo, reviso mentalmente o espaço, imaginando a sala do
laboratório quando era utilizada uns trinta anos atrás pelo Atelier de Cerâmica.
Penso nesta ocupação também como um substrato da própria transformação da
área artística, onde, em uma ponta, temos a ancestralidade da arte configurada na
cerâmica, nos fornecendo uma linha pré-histórica, e, na outra, o futuro, determinado
pela mídia eletrônica, prometendo uma renovação que ultrapassa a própria história
atual. E é essa a espessura que constitui este e tantos outros espaços do Instituto.
Bem, vamos ver se além de espaçoso, bem iluminado e bem “temperado”,
esse laboratório atende aos fins que se propõe. Vamos usar um computador para
conversarmos um pouco a respeito do “objeto desenho”? Aquele, se ainda te
lembras, que parece ter ficado trancado em algum cruzamento do caminho que
havíamos escolhido desenvolvê-lo
323
.
Você está com o objeto aí em sua pen drive? Se não estiver não tem
problema, pois eu posso acessá-lo da rede.
Eu o tenho aqui, mas vamos buscá-lo na rede, e, assim, verificamos se
a inserção do Instituto de Artes no sistema de fibra óptica da rede da UFRGS está
funcionando a contento.
323
O Objeto Desenho se refere a um objeto de aprendizagem que estamos desenvolvendo, simultaneamente, ao
“Objeto Pintura”, em projeto de pesquisa ligado ao ensino modalidade Educação à Distância. O Objeto Pintura
está finalizado e pronto para o lançamento editorial, enquanto o Objeto Desenho tem sofrido alguns
impedimentos, tendo em vista a falta de uma equipe de trabalho mais ampliada interdisciplinarmente que
envolva um programador de sistemas.
8-272
– Está bem, podemos usar este computador aqui mesmo.
Enquanto Sabrina realiza os procedimentos de acesso ao equipamento e a
rede, internet e intranet da UFRGS, eu atualizo meu conhecimento do espaço do
LAB71, observando as novas instalações e o seu uso através dos vestígios deixados
na sala; quadros de aviso, organizações específicas de espaço, estado aparente dos
equipamentos e acervos.
– Pronto, aqui está. Este é o ponto em que paramos.
O Objeto Desenho é um objeto de aprendizagem para ser utilizado no
ensino do desenho, e está sendo realizado em um software de animação. Tal como
o Objeto Pintura
324
, ele se constitui como um módulo primeiro de um desdobramento
sobre o desenho e a linguagem gráfica, que parte de alguns materiais característicos
que, inicialmente, articulam o instrumento e a matéria em um único corpo, tal como o
carvão ou o grafite. Este objeto está sendo desenvolvido através da relação entre a
técnica, a linguagem e o conceito, sendo perpassado por uma reflexão sobre a
informação e o conhecimento construído na História da Arte, incluindo o exercício do
desenho contextualizado na obra de arte. A continuidade do objeto foi sustada pela
possibilidade de ampliação do grupo de trabalho com um aluno da área de
computação que poderia auxiliar com a linguagem lógica da máquina, no sentido de
encurtar alguns caminhos, entretanto isto não se concretizou, ensejando que
retomássemos e redimensionássemos o que vinha sendo feito.
Ficamos aproximadamente umas duas horas no laboratório reprogramando
o objeto para dar continuidade ao trabalho. A nossa conversa partiu da comparação
do que se poderia fazer na ampliação interdisciplinar da equipe e do que se pode
fazer a partir do conhecimento e concepção real da equipe atual, a qual infelizmente
não conta com ninguém de outra área de conhecimento. Participar de uma equipe
de trabalho interdisciplinar significa a possibilidade de gerar conhecimento em cada
área participante do processo, diferentemente de equipes disciplinares, as quais se
324
O Objeto Pintura se refere a um objeto de aprendizagem que já foi concluído e aguarda “no prelo” para ser
publicado por alguma editora que se volte para o universo acadêmico. Se refere ao universo pictórico
contextualizado na história e na produção, além de utilizar como referente pedagógico o projeto pedagógico que
compõe o desenvolvimento curricular da área de pintura do Curso de Artes Visuais da UFRGS.
8-273
utilizam de conhecimentos constituídos e padronizados de outras áreas de
conhecimento como instrumentos para a construção do conhecimento em sua
própria área. Pode-se entender isso em um exemplo muito singelo da utilização de
um lápis grafite para a elaboração de um desenho, onde o instrumento lápis vem da
área científica, e o desenho, elaborado como obra de arte, é utilizado como
instrumento de conhecimento da arte e da utilização artística do instrumento pis
como especificidade própria da área. Um novo dispositivo de desenho a grafite
envolvendo a interdisciplinaridade, articulando a ciência e a arte, transformaria tanto
o lápis grafite como o desenho, gerando um novo conhecimento entre as duas
áreas.
Saí de lá, pensando que havia sido muito produtivo o trabalho, entretanto
parecia que alguma coisa não havia sido dita ou não havia sido discutida
completamente.
Saí do Instituto de Artes com este sentimento de incompletude, eu podia
sentir lacunas que esperavam ser completadas, sentia estes espaços vazios e, por
mais que buscasse, verificando em minha memória uma lista de possibilidades que
se encaixavam perfeitamente nas lacunas, não me decidia por nenhuma, pois
parecia que o enunciado havia se esvaecido.
No caminho para casa, fui pensando no objeto que discutimos e no fato de
ser essencialmente artístico o conhecimento proposto e a elaboração mais ampla
depender de um conhecimento específico de uma outra área de conhecimento.
Hoje, com a tecnologia, esta situação é muito comum e se apresenta nos software
de construção, os quais são elaborados por equipes que, com freqüência, definem
os limites do objeto na informática, e não nas outras especificidades que o
constituem.
Reportei-me à própria construção de conhecimento artístico como cerne do
objeto que está sendo realizado, e pensei que o princípio estava salvo, mesmo sem
a participação da outra área do conhecimento; entretanto, o que não se salvaria
seria justamente a complexa multiplicidade a que se poderia chegar a partir dos
cruzamentos entre os diversos planos propostos. Ou seja, a limitação de não
8-274
contarmos com um programador com um conhecimento específico da área de
informática nos deixa impossibilitados de perseguir alguns caminhos imaginados.
Pois a possibilidade de compreender os comandos de ação necessários à
construção do objeto como uma linguagem lógica e a simplificação desta linguagem
lógica quando esta simplificação se faz necessária é uma prerrogativa da própria
área do conhecimento, enquanto a participação da nossa área de conhecimento vai
sempre se envolver com esta linguagem como uma “tradução” que precisa ser feita
para o objeto funcionar. O foco para um e outro são distintos, e é exatamente isto
que torna as equipes interdisciplinares necessárias, mesmo que o conhecimento
geral seja partilhado por todos.
Este pensamento me tranqüilizou um pouco e me fez pensar na técnica que
hoje está sendo substituída pela tecnologia e em como ela vem transformando os
processos de conhecimento artístico, às vezes se confundindo com os próprios
processos. Pensei, quase sem querer, como deste modo fica claro que a técnica é
um dispositivo que reinsere o artista no meio social, legitimando-o junto às outras
áreas do conhecimento. Tentando encontrar um exemplo para esta constatação, me
reportei ao foco do objeto desenho que temos pesquisado: o desenho a carvão, o
qual vem sendo construído através de um desenvolvimento que se reporta ao
Renascimento, quando foi utilizado na arte pela primeira vez, e se desdobra de
para cá, na variabilidade dos meios e na variabilidade do modo de usar o
instrumento/matéria. Entretanto, é somente na contemporaneidade que o repertório
construído com o carvão se multiplica, e esta multiplicação é fruto da inversão do
princípio do processo, ou seja, pela desconstrução do desenho. A desconstrução,
simultânea à construção, se elabora, também, pelo apagamento da matéria do
carvão, e em potenciação, recomeça tudo novamente, toda a variabilidade dos
meios e os modos de usar através deste novo princípio. É muito claro que a
construção, como modo de criar ou produzir algo, é um fenômeno da sociedade
moderna e se iniciou nas mudanças que têm sua origem no Renascimento, e, na
mesma direção, também se compreende como a desconstrução
325
, igualmente como
modo de criar ou produzir algo, é um fenômeno social emergente no pós-guerra,
325
A desconstrução é nomeada como engenharia reversa na área científica e técnica.
8-275
definindo um pós-moderno, que, intrinsecamente ligado ao moderno, caracteriza a
complexidade da sociedade contemporânea.
Estou quase chegando a casa e não consigo deixar de pensar que a
interdisciplinaridade atual acabou gerando um novo domínio, que na arte tem se
chamado de hibridação. É como se tivesse se formado uma superfície com uma face
artística e uma face computacional, isso, é claro, se formos pensar na interface com
as ciências da computação.
Entro em casa e corro para o computador, pois preciso enviar uma
mensagem para Sabrina. Verifico se ela está on line, como não está, opto por
verificar meu e-mail e dali enviar a mensagem, ficando na expectativa de que ela
também tenha ficado com muitas dúvidas em relação ao que conversamos. Abro
minha caixa de entrada e vejo com surpresa que tem uma mensagem de Sabrina.
Acho que os questionamentos quanto à seqüência do trabalho e as dúvidas não são
somente minhas.
Sabrina envia:
Oi! Fiquei na dúvida quanto ao que conversamos, pois eliminar a
possibilidade de alguém da computação vir a fazer parte da construção do objeto
significará sempre traduzir pelo viés da arte o conhecimento da outra área, então é
certo que aí se perderá algo. É isto?
E imediatamente respondi:
Olá, Sabrina! Também fiquei com a sensação de não termos eliminado
nossas dúvidas, entretanto, no caminho para casa, percebi que o que me
incomodava era unicamente o fato de ter que fazer escolhas com a consciência de
que algumas coisas seriam perdidas. Mas, ao se definir limites, não estão implicadas
as perdas, simultaneamente, ao que se ganha? Ou seja, ao se realizar qualquer
escolha, não se perde, mesmo sem que esta consciência da perda tenha sido
elaborada? Pois quando se escolhe, estamos sempre voltados para aquilo que foi
8-276
escolhido, descartando de nossa visão todo o resto, como se não existisse mais
nada, nem mesmo o fundo de onde as coisas emergem!
O mais importante neste projeto é que ele está possibilitando uma discussão
de “fundo”. E isso pode ser essencial para a linguagem artística no desenvolvimento
de processos de criação, ou seja, a consciência de que todo o desenvolvimento é
uma escolha, e que acarreta, simultaneamente, perdas e ganhos, tal como um jogo.
É, e esse é um jogo que se na linguagem, pois não são os jogos da
linguagem a única maneira que temos de descortinar a multiplicidade que a constitui
também como arte?
Abraços, Umbelina.
Envio a mensagem e penso novamente no papel das ciências da
computação e em como a rede está modificando todos os processos sociais e
influenciando nos modos de construir o conhecimento, além de influenciar na nossa
experiência de espaço e também de tempo. Olho para o teclado do computador e
uma nova idéia me assalta: será que ingressamos finalmente na sociedade da
escritura, transformando a oralidade em uma etapa de desenvolvimento a ser
finalmente superada?
Sabrina me responde:
Está OK. Acho que inclusive esta nossa discussão hoje me auxiliou a
definir uma questão pendente para a minha exposição dos objetos invisíveis.
Consegui perceber que todo e qualquer fundo tem o potencial de dinamicidade e
mobilidade para se concretizar em figuras conforme nossas escolhas, e elas definem
o fluxo entre um e outro, que comuta, a cada vez, aquilo que se tornará visível. Eu
sempre tive muita dificuldade de escolher, isto em relação a qualquer coisa, e achei
que, com a exposição dos fundos, eu estaria livre de fazer escolhas, mas agora
percebo que não.
8-277
Abraços; vou dar mais uma olhada no objeto e verificar, pelo outro lado, o
que ganhamos com as escolhas. Sabrina.
9-278
9 APÊNDICE D: SOBRE A IMEDIATA EXPOSIÇÃO DA ARTE
9-279
SOBRE A IMEDIATA EXPOSIÇÃO DA ARTE
326
METÁLOGO
327
EM CURSO, DA ARTE QUE É E ESTÁ SEMPRE NA JANELA
Encontro-me em sala de aula, na Faculdade de Educação da UFRGS
328
,
onde cumpro os créditos necessários ao meu doutoramento como aluna do
Programa de Pós-Graduação. Estamos todos envolvidos em uma produtiva reflexão
sobre o pensamento de Gregory Bateson, quando me surpreendo com um, quase
imperceptível, sinal em meu celular, o qual eu havia deixado no bolso em uma
situação de mutismo quase absoluto. Verifico, pelo horário no visor do celular, que
ultrapassamos o período determinado inicialmente para a discussão, e,
conseqüentemente, esta aula está em vias de ser encerrada, entretanto, espero as
conclusões finais do acalorado debate, ainda em andamento, pois, hoje, o assunto
da aula do professor Cláudio Baptista diz respeito diretamente à minha área de
conhecimento: o seminário focaliza a afirmação de Gregory Bateson, a qual confirma
a unidade Mente-Natureza como necessariamente estética.
326
Este Metálogo faz parte do conjunto de diálogos docente/discente em referência aos quatro anos de formação
superior em Artes Visuais. O primeiro traz como foco a questão do ensino da arte, levantando alguns mitos
próprios da área artística, o segundo trata do processo de criação e a inutilidade da arte, enfocando o desempenho
individual do aluno-criador, o terceiro versa sobre as transformações da área, expandida exponencialmente num
desdobramento da técnica à tecnologia, aliada à dificuldade de compreensão da implicação do conceito de jogo
presente nesse processo, e o quarto traz o caráter específico de exposição inerente à obra de arte, fechando um
ciclo que se refere à formação superior em Artes Visuais. Os Metálogos docente/discente são realizados com três
discentes do sexo feminino, à semelhança de minha própria condição feminina, e com um discente do sexo
masculino, se contrapondo aos anteriores pela relação de diferença de gênero que estabelece na interlocução. O
diálogo em diferença de gênero ocorre na temática que abre as portas do processo de formação artística para a
atuação do profissional na sociedade, papel tradicionalmente ocupado pelo sexo masculino, sendo esta fixação
de papéis um dos focos das transformações sociais que eclodiram no século XX com o movimento feminista.
327
Metálogo, ou, tal como foi traduzido para o português, Metadiálogo é a denominação dada por Gregory
Bateson (1972) a um diálogo construído para discutir um problema envolvendo a estrutura da própria conversa
como relevante para o problema. Seus metálogos têm como interlocutores ele próprio e sua filha, modelo que
nos remete aos diálogos de Platão, onde o conceito de filia, originado na filosofia grega (filos+sofia, significando
“amor ao saber”) é fundante e participante do pensamento ocidental. Os metálogos que constituem a tese não
reproduzem a realidade, são ficções, embora utilizem contextos e referenciais que comportam as questões-
problema em situações acadêmicas reais ou meramente possíveis. As situações enfocadas entre docente/discente
do curso superior de Artes Visuais da UFRGS, utilizam como substrato minha própria experiência na Instituição,
tendo como base o currículo do curso. Fazem referência a padrões de interação em situações informais de
aprendizagem percorrendo os quatro anos de formação no conjunto de diálogos.
328
A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com sede em Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande
do Sul, foi instituída em 1934 e federalizada em 1950. É uma universidade pública que tem por finalidade,
conforme seu estatuto, Título II, a educação superior e a produção de conhecimento filosófico, científico,
artístico e tecnológico, integradas no ensino, na pesquisa e na extensão. Em sua Estrutura definida no Título III,
Capítulo III, o qual versa sobre as unidades universitárias, são apresentados os institutos centrais e as faculdades
e escolas: os primeiros atuando no domínio do conhecimento fundamental, e as segundas nas áreas de
conhecimento aplicado.
9-280
Sou artista plástica com produção regular em desenho, formada em Pintura
e Desenho pela UFRGS, e sou professora do Instituto de Artes da UFRGS, e é
exatamente essa articulação artista-professor o motivo que me levou a fazer o
doutorado na Faculdade de Educação, do mesmo modo, como anteriormente, me
levou a fazer o mestrado na área da Filosofia, enfatizando tanto o artista-
pesquisador como o professor-pesquisador.
Encerrada a discussão, saio apressadamente da sala e, somente neste
momento verifico a mensagem em meu celular: Professora Umbelina: Como
combinamos estou na pinacoteca do IA. Enquanto aguardo, vou apreciar a
exposição, pois no vernissage não foi possível ver nada. César.
Havia combinado uma visita à pinacoteca com um aluno que me pediu para
orientar seu trabalho de conclusão de curso no próximo semestre. Lá, nós
poderíamos, em presença das obras dos formandos, vir a encontrar algumas idéias
para começarmos a entabular a futura orientação de seu projeto.
Saio da aula e, nesse intervalo, entre ser aluna e ser professora, tento
conciliar o prazer da fruição estética na apreciação de uma exposição, com a
possibilidade de realizar um consistente diálogo com um futuro orientando. Desisto
de meu horário de almoço, pois acredito que, talvez, ali possam se enraizar e tomar
corpo, na própria experiência da fruição da arte, tanto as idéias presentes na
intenção do aluno, quanto a minha futura participação a indicar possíveis caminhos
para o desenvolvimento de seu trabalho.
Ser artista, ser professor e ser pesquisador na Universidade Brasileira nem
sempre é confortável, principalmente pela sobreposição das funções, considerando,
ainda, os desdobramentos existentes dentro de cada uma delas; aliás, eu poderia
dizer que, diversas vezes, a espessura formada pela sobreposição das três funções
acadêmico-sociais é incontornável, e me ocorre que, talvez, se pudesse denominar
este amálgama como uma nova função.
9-281
Mas, a abertura entre elas possibilita que se alternem as articulações e se
acrescentem outras novas funções que estão surgindo na atualidade, tal como
encontro no texto de Ricardo Basbaum (2005) “Amo os artista-etc.” Basbaum,
abordando, especificamente, as funções de artista e curador, inicialmente adverte
para a possibilidade de se poder imaginar séries de novas categorias, tanto para
uma, como para outra, acentuando a diferenciação de um artista-curador, ou o
inverso, de um curador-artista.
Basbaum se diz artista-etc. e afirma que artistas-etc. não se “moldam
facilmente em categorias”. Ele compara com uma combinação do artista-intermídia e
o artista-conceitual, o que, para mim, sugere uma articulação entre domínios,
associada a uma articulação entre idéias. Pensar nesta combinação de diferentes
domínios e múltiplas idéias possibilita também uma atuação focada no espaço da
ação discursiva, o qual eu associo com a atuação político-social, da qual todo o
professor de universidade, principalmente de Universidade Pública, não escapa,
quer pela atuação pedagógica, quer pelo simples fato de, em algum momento de
sua vida acadêmica, vir a exercer algum tipo de função administrativa, onde o objeto
da ação depende unicamente do discurso.
Pensando nesse fluxo de funções com as quais os artistas-pesquisadores-
professores-curadores-mediadores-escritores-produtores-etc. têm qualificado o seu
cotidiano acadêmico, hoje resolvi dispor de meu horário de almoço para ir a a
Pinacoteca do Instituto de Artes e olhar calmamente a exposição dos formandos. É
pertinente salientar, inclusive, que a exposição foi organizada por um artista-
pesquisador-professor-curador, o qual assina também o texto curatorial no catálogo
da mostra. Entretanto, simultaneamente, estou me dispondo a dialogar sobre a
exposição ou sobre exposição com César, que, tendo sido meu aluno no Criativo
II
329
, está agora em situação de provável-formando no Curso de Artes Visuais, pois
está prestes a iniciar seu Projeto de Graduação em Fotografia
330
, para o qual
solicitou minha orientação.
329
Criativo II é uma disciplina do Currículo do Curso de Artes Plásticas (atualmente em extinção),
correspondente à etapa de aprofundamento do Bacharelado em Desenho.
330
O Currículo do Curso de Artes Plásticas (em extinção) se desdobra em duas habilitações, Bacharelado e
Licenciatura. O Bacharelado se desdobra em oito ênfases, entre elas, o Bacharelado em Fotografia. Um dos
9-282
Para as Artes Visuais, o espaço da pinacoteca é especial e é muito
significativo saber que este espaço do Instituto de Artes se constituiu inicialmente
graças às doações de artistas locais, além de ter sido ampliado através de
concursos com atribuições de prêmios-aquisição, práticas regulares e tradicionais no
meio artístico e que ainda se mantêm na atualidade.
A exposição de formandos neste espaço funciona mais como um
congraçamento coletivo, pois, anteriormente, os alunos, como parte do processo de
avaliação, fazem uma exposição individual de sua produção acompanhada da
defesa pública do trabalho, com finalidade acadêmico-pedagógica definida como
Trabalho de Conclusão de Curso. Entretanto, é na exposição de formandos, que se
torna possível perceber a real dimensão do curso.
O Curso Superior de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, denominado Graduação em Artes Visuais, compreendendo o Bacharelado e
a Licenciatura em Artes Visuais, tem uma duração de oito semestres
331
, entretanto a
maioria dos alunos ultrapassa o tempo previsto da duração do curso, tanto no
Bacharelado como na Licenciatura, além de, freqüentemente, optarem pela
formação em um, e depois em outro, independente da ordem em que se dê esta
dupla formação
332
. Em alguns casos, se chega ao limite de pensar que, se houvesse
motivos da transformação atual do curso é a necessidade presente na arte contemporânea, e já algum tempo
experienciada pelos alunos, de misturar as ênfases e hibridizar os conteúdos.
331 A duração dos cursos superiores das diversas áreas de conhecimento é determinada na regulamentação do
Ensino Superior Brasileiro definida pelo Conselho Nacional de Educação. Na página do Ministério da Educação
encontramos um breve histórico do surgimento do Conselho e suas atribuições. A idéia de um Conselho Superior
somente seria objetivada em 1911 (Decreto 8.659, de 05/04/1911) com a criação do Conselho Superior de
Ensino. A ele seguiram-se o Conselho Nacional de Ensino (Decreto 16.782-A, de 13/01/1925) ,Conselho
Nacional de Educação (Decreto nº 19.850, de 11/04/1931) Conselho Federal de Educação e Conselhos Estaduais
de Educação (Lei 4.024, de 20/12/1961), Conselhos Municipais de Educação (Lei 5.692, de 11/08/1971) e,
novamente, Conselho Nacional de Educação (MP 661, de 18/10/94, convertida na Lei 9.131/95). As
atribuições do Conselho são normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro de Estado da Educação,
no desempenho das funções e atribuições do poder público federal em matéria de educação, cabendo-lhe
formular e avaliar a política nacional de educação, zelar pela qualidade do ensino, velar pelo cumprimento da
legislação educacional e assegurar a participação da sociedade no aprimoramento da educação brasileira.
Compete ao Conselho e às Câmaras exercerem as atribuições conferidas pela Lei 9.131/95, emitindo pareceres e
decidindo privativa e autonomamente sobre os assuntos que lhe são pertinentes, cabendo, no caso de decisões
das Câmaras, recurso ao Conselho Pleno.
http://portal.mec.gov.br
332
Desde a criação do Curso de Artes Plásticas com a administração de Tasso Corrêa, a partir de 1936, a
prioridade é o Bacharelado, a Licenciatura era posterior com o argumento da necessidade de uma experiência
estética efetiva e a mais completa possível para a formação do professor de arte. Com o ingresso na
9-283
a possibilidade, certos alunos ficariam eternamente “em curso”, principalmente se
vincularmos esta disposição discente ao caráter público e gratuito da Universidade
Federal Brasileira.
Por outro lado, estar “em curso”, especificamente num curso de Artes
Visuais, pode, também, ser um modo de “estar em exposição”. E, neste sentido, se
reveste de positividade, pois esta “janela” ou “vitrine” pode ser vista como uma
maneira de participar ativamente da cultura e do meio artístico local, antes de passar
a constituir um espaço próprio de atuação no meio cultural. E isto sem considerar
ainda, que, na atualidade, no terceiro mundo, se começa a pensar na cultura como
uma efetiva participação no Produto Interno Bruto da Nação, além da cultura ser
redefinida como uma nova fonte econômica, embora ainda timidamente, mas
começando a se espelhar em práticas regulares dos países desenvolvidos.
Frente a esse pensamento, me vem à cabeça o texto de Guimarães Rosa “A
terceira margem do rio”, recentemente revisitado ao ser utilizado como eixo de uma
exposição bienal
333
que sonha ingressar nos circuitos de exposições internacionais
do mundo da arte. Considerando o contexto da Arte Contemporânea, em pleno
processo de globalização nos primórdios do culo XXI, num estado do extremo sul
de um país de periferia, embora gigante, onde o local freqüentemente é preterido em
prol do nacional e do internacional, dificultando a formação do tecido cultural
correspondente à identidade social, penso no personagem principal do texto de
Rosa. O personagem é referido sempre pelos outros: pelos filhos, como um “homem
cumpridor, ordeiro, positivo”, muito embora, certo dia, mande fazer uma canoa e se
ponha a percorrer o curso de um rio, de um lado ao outro, reiteradamente, sem
voltar a se aproximar das margens.
O personagem de Guimarães Rosa é constituído através de sua saga,
questionada pelos que a vêem e a colocam em exposição declarada num relato do
fato que o torna completamente visível. Entrementes, é entre o ser visto e o ser
universidade, as aulas específicas da Licenciatura eram dadas no Instituto de Filosofia e posteriormente
passaram a ser compartilhadas com a Faculdade de Educação.
333
A exposição que está sendo referida é a Bienal do Mercosul, a qual em 2007, em sua sexta edição, utilizando-
se da metáfora constituída pelo texto de “A terceira margem do riode Guimarães Rosa, buscou um processo de
internacionalização do evento, ao constituir sua curadoria por personagens do cenário internacional.
9-284
incompreendido que é construído o protagonista da trama do texto, sendo através
desse entremeio que Rosa, tal como uma renda, vai desenrolando/enrolando a sua
história, colocando o personagem em total exposição, obrigando-o a ser visto por
todos, entretanto, sendo, pelo mesmo motivo, inacessível. Por um lado, o
personagem é totalmente visível por estar enquadrado entre margens, embora sem
se aproximar delas em momento algum; e, por outro, é focalizada a sua ação, a
qual, apesar de completamente visível, é considerada um despropósito, um “sem
sentido” que a qualifica como ininteligível, restando-lhe um status de total
incompreensão.
A visão e a leitura, veículos por excelência de esclarecimento, são desse
modo também motivo de encobrimento, exatamente o seu inverso, ou seja, o
velamento, tornando invisível e ilegível aquilo que é, por um lado, totalmente visível.
Muito embora se explicite em total incomunicabilidade, o velado ou escondido pode
ser visto como uma das especificidades da arte, onde a espessura da veladura é,
também, freqüentemente a possibilidade de resistência ao tempo de exposição e o
acesso à contemplação.
Mas, retornando ao período de formação artística, esse tempo significa estar
em que curso e em que modos de exposição? No Curso de Artes Visuais, passa-se
do primeiro ao último semestre a ensaiar o processo de exposição. No atelier, no
laboratório, na galeria, para o professor, para o colega, para o público restrito ligado
à arte, sempre o que é realizado o é em exposição. Entretanto, muitas vezes, o
aluno chega ao oitavo semestre e ainda não está completamente consciente deste
caráter da obra de arte, de ser sempre, imediatamente exposição. E é assim, desde
a primeira obra criada pelo aluno, ainda no primeiro semestre do curso, sendo
exatamente essa característica expositiva da produção e do objeto de conhecimento
que faz daquele aluno das artes um futuro profissional da área artística,
considerando-se aqui o professor, o pesquisador e o artista.
Um artista é um criador de coisas em exposição, incluindo nestas coisas
objetos e idéias, mesmo que essas coisas em exposição não sejam vistas por
ninguém, e mesmo que estas coisas exponham também, por vezes, o seu próprio
encobrimento, como muito bem metaforizaram vários artistas no século XX.
9-285
Entro no Instituto e me dirijo diretamente à escada que dá acesso ao
primeiro andar, pois é que se situa a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo. nas
escadas, verifico que novamente a exposição de formandos não foi contida pelos
limites da Pinacoteca, pois tanto o acesso ao primeiro andar como o hall foram
plenamente ocupados com instalações, que pela presença explicitam a
formação artística que ali se engendra.
A área de Artes Plásticas do Instituto de Artes, antigo Instituto de Belas
Artes, funda-se na concepção de um espaço composto de um atelier e uma
Pinacoteca
334
, como um espaço de exposição e um acervo necessariamente ligado
a um curso de arte; tal como um auditório faz parte de um conservatório de música e
um teatro constitui as artes cênicas para o ensino da arte dramática ou do teatro, tal
como é a nomenclatura atual. Em se considerando o ingresso da arte na
universidade, em várias universidades do mundo inteiro, a inserção deu-se
efetivamente no conjunto de obras em exposição pelos diversos campi, marcando,
deste modo, a presença em todos os espaços universitários, o que pode ser
percebido como uma forma de legitimar a área dentro do espaço institucional
acadêmico, antes privilégio da ciência. Como exemplo desta presença, vê-se hoje,
no MIT
335
, onde a arte é área de conhecimento integrante somente 60 anos, a
existência de quase sessenta esculturas nos espaços públicos do Instituto,
perfazendo aproximadamente a aquisição de uma escultura por ano, como uma das
inúmeras formas de marcar a sua presença de um modo distinto da ciência!
A Pinacoteca Barão de Santo Ângelo
336
, do Instituto de Artes da UFRGS,
constitui-se hoje como um espaço regimental da Instituição, e compreende o espaço
da Galeria, o Acervo, o Arquivo Documental e o Centro de Conservação e Restauro.
334
A Pinacoteca do Instituto de Artes surgiu como concepção própria da área na fundação do Instituto, pois o
espaço de arte e ensino constituiu-se em seus primórdios já como uma necessária mescla entre a sala de
exposição e o atelier de trabalho.
335
Massachusetts Institute of Technology, reconhecido Instituto Norte-Americano inicialmente, principalmente
dedicado à pesquisa, depois da segunda grande guerra, passou a inserir a Arte nos grupos de pesquisa
interdisciplinares numa tentativa de conter a coerência excessiva do pensamento científico.
336
Manuel José de Araújo Porto-alegre, barão de Santo Ângelo, nascido em Rio Pardo/1806 é a origem da
denominação da Pinacoteca do Instituto de Artes da UFRGS. Homenagem muito adequada a uma pessoa que foi
escritor, pintor, caricaturista, arquiteto, professor, crítico e historiador de arte, mas também, por ser considerado
o fundador da crítica de arte, instituindo a disciplina de História das Belas Artes no Brasil e, principalmente, por
ser o fundador da primeira Pinacoteca Brasileira quando foi diretor da Academia Imperial de Belas Artes.
9-286
O espaço tem funcionado com esta organização desde a reformulação do Estatuto
da UFRGS aprovado pelo Conselho Universitário em 1994. No Capítulo III são
definidas as Unidades Universitárias, com as competências correspondentes, entre
elas, a competência do Conselho da Unidade, ao qual cabe a elaboração do
Regimento Interno da Unidade, com a participação de todos os segmentos, o que é
também reiterado no Regimento Geral da Universidade, quando dispõe a respeito da
estrutura, composição, competências e funcionamento dos diferentes órgãos da
Universidade.
O espaço atual da Pinacoteca data da construção do novo prédio do antigo
Instituto de Belas Artes, inaugurado em 1943 e complementado em 1952 com o
bloco destinado às Artes Plásticas. Em 1992 foi totalmente reformada, e a
reinauguração marcou uma nova etapa na atuação do Instituto de Artes junto à
comunidade acadêmica e artística, consolidando uma posição de espaço produtor e
difusor de conhecimento no Estado do Rio Grande do Sul, e expandido como
espaço da pesquisa em Artes Visuais com a implementação na década de 90 do
Programa de Pós-Graduação, atualmente com reconhecimento nacional.
A Pinacoteca tem um espaço reservado às obras do acervo, para
armazenamento, recuperação e restauro, e um espaço de galeria para exposições e
eventos relacionados à discussão e apreciação da obra de arte. O espaço da galeria
se distribui na forma de um grande L (ele), rebatido verticalmente, com um braço
maior que se esconde da entrada principal localizada no braço menor. A princípio
pode-se pensar em dois espaços bem distintos, embora estejam articulados por um
“córner” que abraça a ambos. Um espaço pequeno que se mostra completamente
à entrada, e um outro muito extenso, que, para ser visto, é necessário estar no
interior da galeria e percorrer, praticamente, quase todo o espaço menor, ou seja, é
necessário que realmente se queira ver a exposição que ali se encontra.
Entro na galeria e de imediato vejo César, parado exatamente no “córner”,
numa posição em completa exposição, que me faz pensar se ele estaria querendo
ver, ao mesmo tempo, algo que, definitivamente, só poderia ser visto em dois
momentos distintos, ainda que articulados. Esta tentativa de César não me causa
nenhuma estranheza, pois penso no curioso percurso acadêmico que ele vem
9-287
fazendo: saído da Matemática, com passagem na Engenharia Eletrônica e cursando,
atualmente, onde parece que está, finalmente, concluindo, o Bacharelado em Artes
Plásticas, Habilitação Fotografia. Mas não digo isto para que se pense em César
como uma pessoa indecisa, sem saber o que quer, e sim para que se perceba a
densidade que o constitui e conseqüentemente constitui suas escolhas nas Artes.
Quando foi aluno da disciplina de desenho, César mostrou uma percepção
aguçada sempre contextualizada na História. Em seu desenho, ele retomava
questões da modernidade em interseção com reflexões contemporâneas. Na
fotografia, onde tem, inclusive, participado de algumas exposições, mostra uma
tendência a buscar os processos manuais, como a protestar contra a excessiva
mecanização, industrialização e informatização dos processos vitais e do mundo em
geral. Mas, apesar destas escolhas de expressão pessoal, ele sempre agiu com
muita desenvoltura entre máquinas e números, pois ao longo do curso
desempenhou por mais de uma vez a função de monitor junto ao Laboratório de Arte
e Tecnologia, auxiliando o professor com o grupo de alunos em interação com as
máquinas, além de auxiliar com o cuidado dos equipamentos em relação aos modos
de uso.
Hã, hã, haá, olá! Eu estava aqui lhe esperando e pensando no
deslocamento do olhar pelo espaço da galeria.
– Olá, César! Como vais?
Estávamos falando ainda de longe, pois eu estava parada à entrada da
galeria, e ele exatamente no ponto em que visualizava a entrada e o fundo do
espaço, localizado no ângulo de 90 graus formado pelos dois braços da galeria,
exatamente no “córner”.
Hã, por favor, professora, você pode vir até aqui rapidamente, pois eu
gostaria de lhe mostrar algo?
Está bem, vamos ver o que estás vendo daí que ainda não posso
compartilhar com o meu olhar.
9-288
Não, não é isso. Não é o que estou vendo, mas sim o ponto exato de ser
visto de qualquer lugar nesse espaço. Venha até aqui que você compreenderá o que
estou tentando dizer-mostrar.
Está bem, tem coisas que, a exemplo da arte, podem mesmo ser
mostradas não é?
– Veja bem, estamos localizados na intersecção dos dois espaços que
constituem a galeria, o que nos uma visão panorâmica. Por sua vez, nossa
imagem é projetada nos dois planos das paredes que formam este ângulo e
compõem os dois espaços que se continuam às nossas costas.
– Então?
Bem, então, pensei que este ponto é, simultaneamente, o que possibilita a
observação do conjunto, mas, também, o que aqui estiver colocado poderá ser
totalmente visto de qualquer ponto do espaço.
– Ora, parece bem interessante esta tua observação, está me parecendo um
ótimo lugar para uma reflexão sobre a arte envolvendo questões específicas da Arte
Contemporânea, mas vamos adiante. Vamos observar na exposição dos formandos
o que está colocado no espaço e, simultaneamente, questiona o próprio espaço?
Ou, talvez, nós poderíamos tentar encontrar algo que, estando em exposição, seria
ampliado pelo simples fato de possibilitar uma visão que tudo abrange ao mostrar a
si próprio? Ora, ora, nossa conversa está parecendo com as charadas de Duchamp,
um jogo de xadrez, ou talvez uma de suas caixas-valises-museus. Quem sabe uma
antecipação de um novo status da arte, uma possível portabilidade da arte na era
cibernética?
Hã, não! Não vamos tão longe, brincadeiras à parte, eu quero ainda lhe
dizer que já elegi duas formas para o desenvolvimento do meu projeto.
9-289
Humm, isto é muito bom, principalmente se elas estão inseridas nestas
tuas primeiras reflexões.
Hum! Sim, estão. Pois apesar de ter origem em duas peças de minha
bicicleta, sendo essenciais para ela, ao mesmo tempo, a ultrapassam totalmente:
escolhi uma engrenagem e uma correia.
Esqueci de dizer que César também é ciclista, participando com freqüência
de corridas, todas com intenção político-social em prol da ecologia e da vida.
Bem, me parece muito significativa esta tua escolha da engrenagem e da
correia como objeto de reflexão, que ambos se destinam à transmissão de
movimento, sendo em si mesmos fixos. Pensando nisto, acho que tu iniciaste a
reflexão relacionando o objeto escolhido ao espaço expositivo. Parece que
encontraste o ponto onde localizar tua engrenagem.
– Hã, hã. Agora penso que, além de totalmente visível, eu também me tornei
transparente, totalmente legível, pois é isto mesmo, era exatamente nisto que eu
estava pensando, quando a senhora entrou e parou lá na porta da galeria.
É isto! Mas, vamos caminhar um pouco, não pelo espaço, vamos andar
pela exposição, vejamos se as obras têm também coisas a nos dizer que estejam
relacionadas a esse contexto. E, mesmo que tu não consigas mais andar, a não
ser com tua “bicicleta”, que se movimenta somente pela articulação coordenada de
tuas pernas, retomando e transmitindo o próprio movimento para as rodas, através
dessas engrenagens, rodando sem parar, em movimentos de encaixe e desencaixe
articulados pelos elos da correia, ainda valerá a pena passearmos pela exposição.
É uma metáfora interessante pensar uma exposição como uma articulação
de imagens encaixadas que realizam plenamente seu significado em função do lugar
que ocupam, seria como uma “paisagem de obras”?
Assim como se as obras se inscrevessem no espaço e inscrevessem o
próprio espaço em seu corpo? É, pode ser!
9-290
Começamos a nos deslocar pelo longo braço da galeria, o braço do Ele”
que não é visto da entrada. Mas é engraçado, pois cada um se voltou para as obras
de um dos lados do espaço, um para a direita, e outro para a esquerda. E assim
caminhamos, atentos, e, em certa medida, contemplativos, a observar as obras em
exposição, sem nada falar até nos aproximarmos da parede do fundo.
Então, como saídos de um transe, ambos, ao mesmo tempo, apontamos o
trabalho colocado perpendicularmente à parede do fundo, pois os últimos trabalhos
colocados nas paredes laterais, de um lado e de outro, remetiam para aquele. É
interessante descrever o que ocorreu, pois ficamos: eu de um lado, a obra disposta
verticalmente, e César do outro lado da obra. E o que eu vi? Ao olhar para a obra,
eu via a cabeça de César através da obra. O trabalho era como um espelho dupla
face, entretanto, no lugar da superfície refletora, havia um buraco vazado, deixando
ver quem se colocasse do outro lado, tal como o reflexo em um espelho.
Fiquei perplexa! Percebi que minha perplexidade era advinda não da
surpresa que a obra causava, mas também pelo fato circunstancial de ser
exatamente a cabeça de César, talvez o aluno com o pensamento mais científico-
matemático que eu tenha tido até hoje, que correspondia, como num espelho, à
minha própria cabeça.
Viu? Era isto mesmo que eu precisava dizer, disse César, apontando
quase em meu nariz, com o braço ultrapassando o plano da obra, adentrando o
espaço do lado onde eu me encontrava.
Não consegui articular nenhuma palavra, acho que não saiu nem um
balbucio. Fiquei totalmente muda olhando a expressão de César, tentando me fazer
compreender que aquele espaço em obra reiterava, especificamente, um espaço
privado, exatamente o inverso do que ele se propunha a fazer.
Em poucos segundos, deparei-me com o fato de ser um aluno do sexo
masculino, aliado à situação de ser um quase matemático-engenheiro-artista, duas
questões que, somadas, me colocaram, de certa maneira, frente a frente com o
9-291
universo da arte e seus cânones, matemático-geométrico, formal e conceitual, além
de me fazer lembrar que as mulheres artistas que ficaram para a posteridade foram
somente uma ou duas num universo masculino onde a imagem da arte é
predominantemente inspirada no universo feminino.
Tomada de assalto por este pensamento, tentei ainda compreender o que
César tentava dizer, apontar, mostrar e que por fim tratou de declarar, pois me via
em um estado quase catatônico, olhando estupefata para ele através da obra de
arte. O mais estranho era que, a princípio, o lugar onde ele se encontrava parecia
exatamente simétrico ao lugar onde eu me encontrava, entretanto não era esta a
minha sensação. Eu sentia como se o lado onde eu me encontrava fosse o lado de
dentro, e o lado em que ele estava fosse o lado de fora.
Achei que o jeito de me livrar daquela sensação seria compreender o objeto
como um todo, e então procurei me movimentar em círculo em torno dele, tentando
encontrar o fio de meus pensamentos.
Por outro lado, César também estava posicionado perpendicularmente ao
objeto e tentava me mostrar que, este, mesmo estando colocado em exposição no
espaço, precisava que se fosse até ele para ser visto, sendo invisível de,
praticamente, quase todos os pontos da galeria.
Ele estava me falando de invisibilidade e exposição, mas tentando me dizer
de sua escolha do visível e superexposição, articulando as diversas exposições,
tanto a exposição final na galeria, quanto a exposição à luz nos processos
fotográficos, como a reexposição à luz do filme articulado a uma máquina em
movimento.
Hã, professora, se você der mais uma volta em torno deste objeto, é com
certeza que vai ficar tonta, mas de qualquer modo esta sua atitude de dobrar-se em
torno do objeto me fez compreender os objetos utilizados como ready-made por
Duchamp. Por exemplo, a roda de bicicleta aparafusada em um banco e voltada
para cima. Ela continua sendo uma roda de bicicleta, mas também passa a ser uma
outra coisa. A roda foi criada para o movimento. A roda no chão se refere ao
9-292
movimento do corpo, e a roda no ar pode se referir ao movimento das idéias. E é isto
mesmo que Duchamp fez. É um transformador das idéias.
Neste momento, eu havia me recomposto da surpresa e conseguia
acompanhar o desenvolvimento do pensamento de César, o que me fez replicar o
que ele estava dizendo, instigando-o a utilizar seus conhecimentos provenientes de
seus outros cursos em convergência à construção de algum tipo de objeto que
pusesse em prática aquelas idéias, dando-lhes um corpo.
Talvez tu possas transformar a roda de bicicleta de Duchamp em alguma
espécie de roda que possa projetar imagens que sejam somente idéias. Alguma
espécie de “capturador” de suas próprias idéias.
Hã, sim, foi isto que pensei. Quando me coloquei no “córner” além de
perceber que ali estava o ponto onde o objeto em exposição poderia ver e ser visto,
pensei também que este braço todo mais longo da galeria seria a metáfora do
próprio interior da máquina fotográfica, ou da câmara obscura/clara.
É interessante esta relação, e também um desafio fazer uma instalação-
máquina ocupando todo este espaço e de um modo convincente para o observador.
Eu tenho um conceito muito próximo à idéia de máquina que certamente
vai me ajudar muito na transmutação deste espaço.
Acho que compreendi o que queres dizer. O conceito mais próximo da
idéia de máquina é o conceito de repetição, pois é o que caracteriza a função da
máquina.
É isto mesmo, vou forrar as paredes com fotogramas feitos em papel
fotográfico em rolo, repetindo a imagem da engrenagem e da correia, numa idéia de
regressão ao infinito, tal como uma tautologia.
Parece que estamos avançando. Adentrando neste universo particular de
sua expressividade, trazendo de lá elementos que passam a ser denominados e que
9-293
poderão vir a ser vistos; aliás, Paul Klee disse pelo menos 60 anos atrás que a
arte não é visível, ela torna visível.
– Hã, isto parece tão simples hoje.
É, tu tens razão. Aliás, também o Ítalo Calvino tem razão em suas
propostas para o próximo milênio, onde ele identifica seis qualidades como virtudes
norteadoras de nossa existência que somente a arte poderá salvar: entre elas a
leveza, a visibilidade e a rapidez. Quanto a esta última, ele cita a máxima latina:
“apressa-te lentamente”, a qual eu considero que lhe “cai como uma luva”.
Neste momento, toca o meu celular e peço desculpas a César, mas verifico
que estamos quase no horário de início das aulas do turno da tarde e tenho que
sair correndo, pois minha turma de desenho me espera no Campus Central da
UFRGS.
Hoje vamos nos reunir para uma saída de campo pela Redenção, para uma
sessão de desenho ao ar livre, onde vamos trabalhar o espaço e estruturas em
desdobramento, focalizando a organicidade do mundo natural.
Despeço-me de César, marcando um outro dia para organizarmos o
cronograma de orientação e solicito que coloque o que conversamos em um texto e
me envie por e-mail o mais rápido possível, para começarmos a orientação de seu
Projeto de Graduação em Fotografia. Sugiro a ele que faça a leitura de um livro de
Anna Barros, chamado “A arte da percepção, um namoro entre a luz e o espaço”, o
qual certamente o ajudará a clarear as idéias para a conversa em nosso próximo
encontro, dando início à orientação. E, também, sugiro que releia o Calvino, desta
vez à luz de sua proposta de projeto, pois certamente sua compreensão será outra.
Saio da Pinacoteca e vou pensando no que ali ocorreu e em minha posição
como artista e professora associada à minha condição feminina frente ao universo
da arte. Este pensamento me remete à série de trabalhos que concluí o ano
passado e que ainda não expus em conjunto. Esta série se chama “Idiotas
artistas/Idiotas mulheres” e foi realizada com o sentimento de que a mulher-artista
9-294
precisa assumir a condição de “não-saber” em relação à condição do feminino na
História da Arte para continuar criando. Acho que ainda não quero colocar este
conjunto de obras em exposição, pois este ano todo trabalhei em uma outra série
denominada “Essas mulheres maravilhosas“, e estou com uma exposição
marcada, tendo optado por expor este novo conjunto de obras.
Paro na entrada do prédio do Instituto de Artes e olho para este espaço
dedicado totalmente à arte, neste umbral da porta de acesso ao prédio, quando os
raios de sol tentam em vão alcançar seu interior, penso o quanto ele tem de feminino
e masculino, o que vejo confirmado nas imagens de Apolo e Afrodite multiplicadas
pelas câmeras de vigilância que simbolizam uma nova era que se pretende ética e
guardiã da justiça entre os homens, através do exercício da visão observado pelo
mecanismo do ser visto.
então, saio em busca do sol, indo ao encontro dos alunos para o
desenho da Redenção.
10-295
10 APÊNDICE E: PANORÓGRAFO
10-296
10-297
10-298
10-299
10-300
10-301
10-302
10-303
10-304
10-305
10-306
10-307
10-308
10-309
10-310
10-311
10-312
10-313
10-314
10-315
10-316
10-317
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