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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
A PRODUÇÃO DE CULTURA E SUBJETIVIDADE NO
ENTRE-LUGARES DA ESCRITA DAS CRIANÇAS EM
PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
SILVANA MARIA BELLÉ ZASSO
PORTO ALEGRE, 2008.
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SILVANA MARIA BELLÉ ZASSO
A PRODUÇÃO DE CULTURA E SUBJETIVIDADE NO
ENTRE-LUGARES DA ESCRITA DAS CRIANÇAS EM
PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
Proposta de tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutora em Educação.
Orientadora: Profª Drª Margareth Schäffer
PORTO ALEGRE, 2008.
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Z38P ZASSO, SILVANA MARIA BELLÉ
A produção de cultura e subjetividade no entre-lugares da escrita
das crianças em processo de alfabetização / Silvana Maria Bellé
Zasso Porto Alegre : UFRGS, 2008.
204 p. : il.
Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação
em Educação , Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008.
1. Educação 2. Alfabetização 3. Escrita 4.Enunciação
I. Título
CDU 372.45
Catalogação na fonte: Roseli Senna Prestes CRB-10/1601
5
Luiz – 2ª Série
Luiz escreve o texto solicitado pela professora...
6
Dedico esta tese a todas as crianças brasileiras,
especialmente aquelas que participaram da
construção deste estudo.
7
AGRADECIMENTOS
Agradeço...
...à Fundação Universidade Federal do Rio Grande – FURG, pela oportunidade.
...ao Programa PICDT/CAPES pelo apoio financeiro.
...ao Programa de Pós-Graduação em Educação – UFRGS, por tudo que me ensinou.
...à Escola Municipal de Ensino Fundamental Prof. João de Oliveira Martins, por
permitir a minha presença.
...à minha orientadora Margareth, pela sua permanente disponibilidade.
...ao Valdir Flores, pela paciência e dedicação nas discussões deste trabalho.
...às minhas colegas e amigas Ivone Regina, Maria Renata e Cleuza Maria, pela
solidariedade nas angústias que esta caminhada impõe.
...ao meu irmão Sergio, pelo acolhimento e inúmeros favores carinhosos que me
prestou nesta fase.
...especialmente à minha filha ANGELINA, pela alegria de cada dia e por me ensinar
que a vida é muito mais que trabalho.
...especialmente ao meu marido JORGINHO, pelo sono perdido nas noites que não
dormi e pelo amor que me ampara.
...especialmente aos meus pais Eliseu e Rosalina, que me ensinaram a ter esperança e
sonhos.
8
RESUMO
Este trabalho tem a escrita por tema de estudo. Investigamos a escrita de crianças em
processo de alfabetização com o propósito de defender que o ato de escrever produz cultura e
subjetividade e é marcado pela singularidade daquele que escreve. Em outras palavras,
mostramos que a escrita vai muito além da aprendizagem e domínio de uma técnica, pois ao
escrever o sujeito diz de si por constituir-se por meio dela, e produz cultura na medida em que
(re)significa a tradição a cada ato enunciativo. Situado no campo pedagógico, recorremos a
algumas contribuições da sociologia da cultura de Bhabha (1998) no que diz respeito ao lugar
de produção da cultura e à lingüística enunciativa de Benveniste (1988, 1989) na busca de
uma proposta que defende a presença do homem na língua em uso. Tais teóricos implicados
ao campo da alfabetização possibilitaram abordar a escrita numa perspectiva de produção
sempre única e irrepetível, a qual destaca a existência de um sujeito singular. A coleta de
dados foi realizada por meio da proposição de oficinas de escrita a um grupo de crianças dos
anos inicias do Ensino Fundamental de uma escola pública municipal. Conclusivamente, este
estudo permite dizer que o ato de escrever é sempre conflituoso pela presença de reflexões,
dúvidas, acertos, erros, etc. sobre a escrita e, pelo fato de o sujeito que escreve constituir-se
num espaço intervalar, não-coincidente, do enunciado com a enunciação.
Palavras-chave
: Escrita; Alfabetização; Enunciação; Cultura; Subjetividade.
9
RÉSUMÉ
Ce travail a pour sujet d’étude l’écriture. Nous nous sommes penché sur l’écriture
d’enfants en phase d’alphabétisation dans le but de défendre que l’action d’écrire produit
culture et subjetivité. L’écriture est aussi marquée par la singularité de celui qui écrit. C’est-à-
dire, nous démontons que l’écriture dépasse l’apprentissage et le domaine d’une technique
car, l‘individu, lorsqu’il écrit, révèle de lui-même puisqu’il s’est formé à travers elle. Il
produit culture (re)signifiant la tradition dans chaque acte d’énonciation. Bien que notre
recherche se rattache à la pédagogie, nous avons également fait appel à quelques contributions
de la sociologie de la culture de Bhabha (1998), en ce qui concerne le lieu de production de la
culture et à la linguistique énonciative de Benveniste (1988, 1989) à la recherche d’une
proposition qui défend la présence de l’homme dans la langue en usage. Ces théoriciens
impliqués dans les champs de l’alphabétisation ont permis d’analyser l’écriture dans une
perspective de production toujours unique, qui ne se répète pas, dans laquelle se distingue un
individu singulier. La collecte de données a été réalisée à partir d’ateliers d’écriture d’un
groupe d’enfants du début primaire d’une école publique municipale. Cette étude nous a
permis de dire, finalement, que l’action d’écrire est toujours conflictuelle en raison de la
présence de réflexions, doutes, réussites, fautes, etc, sur l’écriture elle-même et en raison de
l’individu qui écrit et qui se trouve dans un espace interstitiel, non-simultané, d’énoncés tel
que l’énonciation.
Paroles-Clé: Ècriture ; Alphabétisation ; Énonciation ; Culture ; Subjetivité.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................
9
1. ELEMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DA ESCRITA COMO OBJETO
DE PESQUISA ...................................................................................................
17
1.1 A Trajetória Profissional – a origem do objeto de estudo ................................. 18
1.2 A Trajetória Pessoal – as lembranças/vivências com a escrita ......................... 24
1.3 Problematização do Tema: delineando o campo teórico-metodológico ........... 27
1.3.1 A Escrita na Escola: suas múltiplas faces ................................................ 29
1.3.2 A Escrita na Cultura ................................................................................. 33
1.3.3 A Escrita na Enunciação .......................................................................... 40
2. A(S) FACES(S) DA ESCRITA NA ALFABETIZAÇÃO .............................
44
2.1 A Escrita na Tradição dos Métodos de Alfabetização: em busca de caminhos 50
2.2 A Escrita na Psicogênese da escrita: em busca de teorias ................................. 56
2.3 A Escrita na Visão Sócio-Interacionista de Vygotsky: em busca de teorias ..... 63
2.4 A Escrita no Letramento: em busca da prática social ...................................... 70
2.5 Elaborações/ Derivações para uma perspectiva da escrita como entre-lugares
do enunciado e da enunciação .......................................................................... 80
3. A FACE CULTURAL DA ESCRITA .............................................................
85
3.1 Contextualizando as origens do pensamento crítico pós-colonial .................... 90
3.2 Uma teoria da contingência: as margens deslizantes dos entre-lugares ............ 93
3.3 Elaborações sobre a escrita como o entre-lugares da negociação cultural ........ 99
4. A FACE ENUNCIATIVA DA ESCRITA .......................................................
104
4.1 Justificando e Delineando a Leitura de Benveniste .......................................... 105
4.1.1 Da subjetividade na linguagem ............................................................... 110
4.1.2 As implicações da forma e do sentido no funcionamento da língua ....... 114
4.1.3 O Lugar da Língua entre os Sistemas de Signos – Sua Semiologia ....... 118
4.1.4 A Estrutura da enunciação – Onde se situa a escrita? ............................. 122
4.2 O “olhar” da enunciação sobre a escrita das crianças em processo de
alfabetização ..................................................................................................... 126
11
5. O PERCURSO DA INVESTIGAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DA
METODOLOGIA DA PESQUISA ................................................................
130
5.1 Os Elementos Teóricos na Elaboração da Metodologia da Pesquisa ................ 131
5.2 Aspectos Metodológicos ................................................................................... 132
5.2.1 Sobre a noção de dado ............................................................................ 133
5.2.2 Da coleta de dados .................................................................................. 134
5.2.2.1 Sobre os sujeitos da pesquisa .................................................... 134
5.2.2.2 Sobre o contexto da escola ......................................................... 136
5.2.2.3 Justificativa da escolha dos dados e das estratégias da coleta ... 137
5.2.2.4 Da descrição dos dados .............................................................. 140
5.2.2.5 Apresentação dos dados ............................................................. 141
5.3 Da Análise dos Dados ....................................................................................... 142
5.3.1 Das categorias de análise ........................................................................ 143
6. ANÁLISE ENUNCIATIVA DA ESCRITA DAS CRIANÇAS EM
PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO ............................................................
148
6.1 O ato da escrita evoca imagens/concepções da escrita ..................................... 149
6.2 O ato da escrita está na dependência da oralidade ............................................ 157
6.3 O ato de escrita se faz acompanhar de outros recursos ..................................... 165
6.4 O ato de escrita está na dependência da construção de sistemas de referências
pessoais ............................................................................................................ 169
7. A ESCRITA ENUNCIATIVA DE CRIANÇAS EM PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO .........................................................................................
175
7.1 Olhar a escrita enunciativa de crianças escolares em sala de aula .................... 176
CONCLUSÃO ........................................................................................................
186
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................
191
ANEXOS .................................................................................................................
Questionário
Autorizações
CD
198
12
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem a escrita por tema de estudo. Considerando a multiplicidade de
enfoques hoje dado a ela, pelos diversos campos do conhecimento, se faz imprescindível dizer
de que escrita tratamos nesta tese.
Aqui, investigamos a escrita das crianças em processo de alfabetização,
especificamente, a relação que as crianças escolares estabelecem com ela, isto é, como as
reflexões, dúvidas, afirmações etc.. – elaboradas pelas crianças em cada atividade escrita e nas
expressões orais que têm a escrita por centralidade, apresentam significados e sentidos
singulares a cada ato enunciativo. Nosso propósito é defender que o ato de escrever produz
cultura e subjetividade marcadas pela singularidade daquele que escreve. Em outras palavras,
mostramos que a escrita vai muito além da aprendizagem e domínio de uma técnica, pois ao
escrever o sujeito diz de si por constituir-se por meio dela e produz cultura na medida em que
(re)significa a tradição a cada produção de sentido, a qual se dá em todo ato enunciativo.
Nesta visão de escrita, a história de escritor/escrevente vivenciada tanto na escola como em
outros espaços, marca a vida de todos. Por isso, defendemos que a escola precisa superar o
modelo tradicional de escrita exterior ao sujeito, ainda predominante, na maioria de suas
ações educativas.
Fizemos uma construção teórico-metodológica que sustenta que a aprendizagem da
escrita supõe um sujeito singular que produz. Neste sentido, na sociologia da cultura de
Bhabha (1998) encontramos o conceito de entre lugares como um local intervalar de produção
de cultura, o qual se dá no espaço do aqui e num tempo do agora, isto é, no tempo da
enunciação; na lingüística enunciativa de Benveniste (1988, 1989) uma concepção de língua e
linguagem que supõe um sujeito produtor de significados e sentido, mesmo tendo a língua
uma estrutura determinada. A partir destas idéias construímos uma investigação que toma o
campo pedagógico como pano de fundo de todas as elaborações.
13
Estas elaborações foram sendo construídas no decorrer dos estudos, os quais
permitiram clarear hipóteses e definir objetivos orientadores da investigação. Trabalhamos
com a hipótese geral de que: O ato de escrever situa-se no interstício entre a enunciação e o
enunciado marcado que é pela singularidade daquele que escreve e, como hipótese
específica, que: A singularidade da escrita é relativa à posição referencial que o sujeito
ocupa na estrutura enunciativa do ato de escrever.
Sabemos que num trabalho de pesquisa quando as hipóteses são definidas os
objetivos necessariamente são delas decorrentes ou vice-versa. Assim, tomamos por objetivo
geral: Propor formas de compreensão do ato de escrever como um ato de enunciação que
produz cultura, marcado pela singularidade daquele que escreve e como objetivo específico:
Construir recursos que permitam circunscrever a posição referencial que a criança ocupa na
estrutura enunciativa do ato de escrever no processo de alfabetização.
As elaborações em torno deste propósito de pesquisa estão organizadas em sete
capítulos. Cabe salientar que o primeiro capítulo tem uma função heurística em relação aos
demais, já que é nele que o leitor encontrará o sentido de a escrita ter se constituído em tema
de pesquisa, bem como em um objeto particular de estudo. É em cada item da
problematização do tema que se encontra a razão dos capítulos seguintes.
Assim, o primeiro capítulo apresenta, inicialmente, minha trajetória profissional
onde explicita as diversas questões que ocuparam as atividades de ensino, pesquisa e extensão
e colocaram a escrita na centralidade das reflexões, constituindo-se então em objeto de
pesquisa; em seguida, a trajetória pessoal traz as lembranças familiares e escolares com a
escrita, onde a memória possibilita revivê-las mostrando o sentido e os significados de
pesquisar; neste momento, a escrita nos Anos Inicias do Ensino Fundamental.
O item da problematização do tema apresenta a delimitação do campo teórico-
metodológico do trabalho. Nele situamos a escrita e suas múltiplas faces na escola mostrando
que há uma diversidade vieses de trabalhos; mas ainda hoje, de uma maneira geral, predomina
um trabalho pedagógico que coloca a escrita como algo da exterioridade do sujeito, o que tem
dificultado, muitas vezes, a formação de alunos com autonomia em relação à escrita e à
leitura.
Também compõe este item a discussão da escrita na cultura mostrando a relação
entre o ato de escrever e a produção cultural. Nele se percorreu por vários estudos que
colocam a história da escrita como essencial no desenvolvimento humano e social. Esta foi
uma forma de mostrar as grandes mudanças que ela ocasionou na humanidade e, com isso,
justificar mais pontualmente a vinculação da Escrita à cultura e, por esse mecanismo, à
14
produção de subjetividade. Isto tudo para sustentar uma visão de história e cultura que
suponha a produção das novas gerações, mesmo diante da tradição herdada no nascimento. A
partir deste percurso, optamos por trabalhar com a contribuição de Bhabha (1998) no que se
refere a um local de produção de cultura, e uma posicionalidade referencial que os sujeitos
ocupam em uma determinada sociedade. Esta discussão se constitui no terceiro capítulo da
tese.
Para atender o propósito deste capítulo, qual seja, de justificar a origem da escrita
como objeto de estudo e delimitar uma construção teórico-metodológica particular a ela, foi
necessário trabalhar, ainda, uma teoria da linguagem que considera a existência de um sujeito.
Assim, é especialmente na lingüística enunciativa de Benveniste (1988, 1989) onde
encontramos uma visão de língua e linguagem que supõe produção de significados e sentido
por cada um, ou seja, uma concepção de o homem ser constituído na e pela linguagem. Isso
me levou acreditar ainda mais que a linguagem, na instância escrita, também produz
subjetividade e cultura. Esta perspectiva sobre a presença do homem na língua fizemos no
quarto capítulo.
Na seqüência do trabalho, o leitor se deparará no segundo capítulo com a discussão
acerca das faces da escrita na alfabetização. Ela traz a concepção de escrita presente no
histórico debate brasileiro, que girou em torno da utilização dos tradicionais métodos de
alfabetização e da busca incessante, de uma significativa parcela de alfabetizadoras, por um
método que desse respostas a todas as dúvidas e dificuldades encontradas no processo de
ensinar a escrever e a ler. Atualmente, o debate no campo da alfabetização está muito mais
centralizado na construção de propostas didáticas de alfabetização do que na busca por um
único método de alfabetização. No entanto, o que ainda predomina neste debate é uma visão
de escrita como algo da exterioridade do sujeito.
Além dessa discussão, o capítulo apresenta a escrita na visão da teoria psicogenética,
na perspectiva sócio-interacionista de Vygotsky e no letramento. Embora estas linhas de
pensamento coloquem a existência de um sujeito que produz na aprendizagem da escrita e da
leitura, um avanço diante dos tradicionais métodos de alfabetização, elas não enfocam a
presença da singularidade nesta produção. No entanto, sem dúvida, estas três perspectivas
conduziram e ainda trazem elementos teórico-metodológicos que conduzem o debate em
torno de um projeto que propõe mudança no trabalho com a linguagem na escola brasileira.
No entanto, constata-se neste retrato do debate do campo alfabetização, que a
questão da produção singular na aprendizagem da escrita é ainda incipiente, ou até arriscamos
dizer ausente. Foi também por esta constatação que elaboramos um trabalho que coloca a
15
produção singular do sujeito na centralidade. Em Bhabha (1998) nos deparamos com uma
concepção de história e cultura que defende a existência de um sujeito singular que produz
significados e sentidos a cada ato enunciativo. A sua proposta teórica mostra que precisamos
construir uma visão de mundo que suporte a diferença e a considere como inerente à
constituição de qualquer grupo. Nesta linha de pensamento elaboramos o terceiro capítulo
com a intenção de responder: - Em que medida, ao se considerar a escrita como um entre-
lugares do enunciado e da enunciação, se pode visualizar um espaço de produção do sujeito
como instância do singular?
Assim, encontra-se no referido capítulo a proposta teórica de Bhabha (1998), onde
situamos as origens da perspectiva pós-colonial e o contexto em que ela emergiu na discussão
teórico-política do ocidente, que questiona os discursos totalizantes produzidos pelo poder
hegemônico ocidental, bem como questiona a produção destes discursos para os grupos
minoritários, em geral marginalizados, como forma de inclusão social. A proposta de uma
teoria denominada intervalar coloca a produção de significados culturais juntamente ao
desafio de superar o binarismo teoria e política que tem traduzido já, há algumas décadas,
uma visão que não suporta o movimento dialético nas sentenças como própria de sua
constituição. Esta visão produz posturas políticas autoritárias e contribui para a permanência
de concepções utópicas e totalizantes do Ser e da História. Acredito que estas idéias quase
nada contribuem para a consolidação da democracia e da inclusão de todos com aprendizagem
na escola, uma vez que estes discursos reforçam os estigmas e a segregação social.
E Bhabha faz a crítica aos discursos totalizantes do Ser e da História apresentando
uma proposta que vem contrapor-se à visão preponderante da modernidade que buscou
incessantemente construir estes discursos generalizantes para explicar e homogeneizar os
grupos. A partir desta proposta, tomamos a escola como uma das agências sociais que
favorece a construção de vínculos sociais do sujeito que ingressou no mundo da Escrita, e
podemos considerá-la a partir das elaborações de Bhabha, num “lugar enunciativo”.
A escola passa ter uma outra posição ao considerarmos que a escrita pode ser
concebida como um entre-lugares de “negociação cultural”, pois isso indica que ela é um
espaço que se constitui na heterogeneidade e não mais na homogeneidade, como se acreditou
por muito tempo. Ou seja, o ato da escrita se situa num entre-lugares onde cada sujeito
dialoga com a tradição produzindo significados e sentidos próprios. A partir disso, destaca-se
a produção de cada aluno no processo da alfabetização, isto é, nas reflexões, dúvidas, acertos,
erros, etc., que cada um produz com sentido singular. Desta forma, é preciso que as
professoras-alfabetizadoras atentem mais para estes indicativos das crianças durante as
16
atividades desenvolvidas a cada dia da sala de aula, porque eles indicam quais são as
elaborações singulares que cada um está fazendo sobre o escrever e o ler.
Estudar melhor a relação da criança com a escrita no ato de escrever vai destacar a
presença de singularidade. Neste sentido, são valiosas as contribuições de Bhabha, as quais
nos permitem “enxergar” sob outros “óculos” a escrita no campo da escola, pois
compreendemos melhor que cada criança vai – ao escrever – marcar os significados culturais
contextualizados na comunidade da qual faz parte manifestando sua singularidade no aqui e
no agora, de cada dia de sala de aula.
Bhabha (1998) apóia-se em uma teoria lingüística enunciativa para situar a produção
da cultura e da história num espaço-tempo do entre, ou seja, num espaço intervalar onde o
presente recoloca o passado com outras significações e sentidos. Para construirmos uma
perspectiva de escrita singular coerentemente com a linha de posição e produção cultural de
Bhabha, buscamos uma visão de linguagem e língua que também contempla um sujeito que
produz na irreptibilidade e provisoriedade da enunciação. Disso se constitui o quarto capítulo
do trabalho.
Como anunciado, a teoria da enunciação de Benveniste (1988 e 1989) assumiu
importância neste estudo para sustentar a existência de um sujeito no uso da língua. Ele
defende uma visão de língua em uso que supõe subjetividade e singularidade mesmo na
repetibilidade da estrutura. Neste sentido, tem uma visão de que a enunciação é o ato
individual de utilização da língua, sempre único e irrepetível. Como esta pesquisa analisa
aspectos da dimensão enunciativa da relação das crianças com a escrita, tomamos o texto
escrito como enunciado e situamos o ato de escrever no entre-lugares da enunciação e do
enunciado.
A partir da leitura de Bhabha e Benveniste pensamos que nesse espaço intervalar –
entre a enunciação e o enunciado – é possível constatar formas singulares de inserção do
sujeito na língua. Destacamos que os conceitos de enunciação e enunciado são fundantes
desta tese uma vez que definem metodologicamente a pesquisa e, além disso, permitem a
compreensão da presença da subjetividade na linguagem, do funcionamento da língua e da
estrutura da enunciação.
Foi possível compreender e situar, sob o viés da enunciação, que a escrita refere-se
ao processo mais global da enunciação; o texto escrito, embora traga implícita a enunciação,
se traduz em um enunciado que “diz” da posição lingüística do sujeito que diz de sua
singularidade e o ato de escrever se situa num entre-lugares entre a enunciação e o enunciado
onde se situa a possibilidade da (re)criação humana marcada pela (re)significação de cada um.
17
Esta perspectiva lingüística enunciativa foi definidora na elaboração da metodologia
da pesquisa, já que ela está sempre vinculada ao aporte teórico e ao objeto ora em estudo – a
escrita na alfabetização. Assim, foi no capítulo cinco, onde explicitamos a abordagem
metodológica da pesquisa, bem como as categorias de análise, os índices de enunciação e os
mecanismos utilizados pelas crianças no ato de escrever. Em outras palavras, esta seção
apresenta a coleta dos dados, o contexto da escola e, por fim, a análise dos dados.
Podemos adiantar que numa visão enunciativa um “dado” nunca é dado, pois ele é
construído pelo pesquisador por meio das categorias de análise derivadas dos aportes teóricos
escolhidos, os quais orientam o olhar no campo empírico. Neste caso, a análise do espaço da
sala de aula das oficinas de escrita, proposta para dez crianças dos Anos Inicias do Ensino
Fundamental de uma escola pública municipal situada na periferia da cidade do Rio Grande-
RS, utilizou categorias da teoria intervalar de Bhabha, da proposta enunciativa de Benveniste,
bem como das teorias pedagógicas que pautam o debate atual no campo da alfabetização.
Nestas oficinas de escrita, por meio da utilização da leitura, do contar e do ouvir as clássicas
histórias da literatura infantil, criamos situações de escrita e oralidade. Estas situações foram
filmadas, fotografadas, e os dados considerados significativos para a pesquisa, registrados no
diário de campo.
Assim, fazem parte dos corpora desta tese dados de natureza escrita, oral e
imagética, os quais têm funções diferenciadas na análise dos dados. Eles estão apresentados
em recortes enunciativos que enfocam o ato de escrever. Tais recortes são derivados de
diferentes materialidades, isto é, tem dados escritos, imagens e diálogos descritos a partir das
imagens filmagens. Cabe destacar que a imagem tem uma função ilustrativa da contingência
do ato de escrever, ou seja, de cada ato enunciativo escrito ou oral.
A construção destes recortes enunciativos observou a posição referencial na
estrutura enunciativa do ato de escrever tomando os indicadores da enunciação para constatar
as relações singulares do sujeito na construção da escrita. Indicadores que as crianças
recorrem no momento de escrever, e a visão que elas expõem sobre a escrita por meio da
oralidade e, em alguns casos, pela expressão registrada nas imagens. São considerados
indicadores da enunciação todas as manifestações orais dos alunos que tomam por referência
o ato de escrever. A partir destes indicadores, constatamos quais mecanismos as crianças
evocam no ato da escrita. Observa-se que elas evocam imagens do que é uma escrita correta;
evocam outros recursos para compor o texto escrito, evocam a oralidade para escrever e
constroem sistemas de referências pessoais. Este último mecanismo é o mais importante para
esta tese porque o sujeito cria referência – via ato de escrever – a um mundo que se constrói
18
num discurso contingente, como no caso destes dados, a elaboração de narrativas diferentes
de uma mesma história oral.
No capítulo seis apresentamos a análise dos dados em dois níveis. Isso se deve pela
abordagem enunciativa dada à escrita na alfabetização, sendo que no nível mais geral mostra-
se que a escrita é este entre-lugares de negociação cultural situada entre a enunciação e o
enunciado. Desta forma, o ato de escrever fica situado num lugar intermediário, não-
coincidente, de passagem onde acontece a elaboração das idéias e do sentido dado ao texto, e
o nível mais específico explicita que em cada ato de escrita da criança, isso se marca
diferentemente, ou seja, se apresenta de forma singular. Cabe dizer também que na
perspectiva enunciativa o que qualifica os dados não é a sua quantidade, mas a verificação
dos índices da enunciação a cada ato; neste caso, a cada ato enunciativo que traz a escrita por
centralidade.
Para compor esta trajetória investigativa, o capítulo sete traz de uma forma mais
sucinta as elaborações a respeito da presença de singularidade na relação das crianças com a
escrita. Diante das conclusões gerais formuladas no fim da tese, gostaríamos de destacar,
neste momento, ao menos uma: de que o ato da escrita é conflituoso, pois as crianças
expressam muitas dúvidas e reflexões sobre o escrever. Cada dúvida é singular nesta relação,
pois um “ não sei como se escreve” assume uma multiplicidade de sentidos que só poderá ser
compreendido no ato de sua enunciação – o que mostra que o domínio da escrita vai muito
além do domínio de uma técnica, já que há produção de significados e sentidos. Estes
conflitos se devem ao fato de o autor não conseguir expressar integralmente no enunciado
aquilo que pretende na enunciação. E a diversidade de sentidos confirma, também, a
heterogeneidade como constitutiva dos grupos.
Pode-se concluir, a partir desta pesquisa, que o ato de escrever em qualquer
circunstância se situa neste entre-lugares, instável, fugaz e irrepetível, uma vez que exige de
cada escritor a elaboração, sempre singular, de significados e sentidos.
Assim, pretendemos que cada leitor, após a leitura deste estudo, possa – de alguma
forma – também mostrar em seu trabalho e, especialmente, às professoras-alfabetizadoras de
que é preciso “pintarmos” outra face à escrita nos Anos Inicias do Ensino Fundamental para
que nesta “arte” apareça o sujeito em sua singularidade.
19
Grupo das oficinas de escrita
Grupo de alunos lê as histórias infantis...
20
1. ELEMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DA
ESCRITA COMO OBJETO DE PESQUISA
Este capítulo objetiva, como o título anuncia, apresentar os elementos essenciais que
concorreram para a construção do objeto a ser investigado na presente pesquisa. Em outras
palavras, busca-se explicitar as experiências profissionais, as dúvidas e as indagações que
apareceram nas inúmeras reflexões realizadas durante as vivências de sala de aula, as
atividades de extensão e o trabalho de pesquisa na universidade que colocaram em questão a
escrita
23
das crianças no processo de alfabetização. Também, busca-se mostrar o percurso
realizado em torno da especificidade da escrita como objeto de pesquisa desta tese, tendo em
vista a delimitação de nossa proposta com relação às demais existentes sobre o tema.
Uma vez que a Escrita é abordada em diferentes campos conceituais – lingüística,
educação, literatura, psicanálise, entre outros – o que se pretende, na verdade, é apresentar de
forma clara de qual escrita tratamos e sob qual enfoque teórico-metodológico ela será
estudada. Para tanto, o capítulo está dividido em duas seções principais.
A primeira contextualiza a origem do objeto da pesquisa, sua natureza e os motivos
que proporcionaram sua formulação. Tentamos enfatizar que o tema decorre de várias
experiências profissionais vividas por mim desde a graduação e que foi se impondo como
questão a ser investigada na ação docente no curso de Pedagogia. Além dessas, mostramos
que as minhas vivências familiares e escolares com a escrita também foram definidoras da
investigação que estamos construindo.
A seção seguinte problematiza o tema delimitando o campo teórico e metodológico
da investigação. Está subdividida em três itens: o primeiro situa a Escrita no contexto da
escola, visto ser o campo de coleta de dados e o espaço por excelência da pesquisa; no
23
Devido à ambigüidade que o termo tem em português, podendo significar tanto o ato/processo implicado na
forma verbal, quanto o produto na forma substantiva, optamos por uma diferenciação tipográfica: utiliza-se
escrita para ato de escrever e Escrita para o substantivo.
21
segundo, a intenção é delinear, ao menos em linhas gerais, a concepção de cultura a partir da
qual será realizada parte deste estudo. Nesse momento, o ponto norteador da discussão diz
respeito às formas multifacetadas do ato de escrever que, simultaneamente, produzem cultura
e subjetividade. No terceiro item, discutimos a escrita sob a visão de uma teoria lingüística da
enunciação, a qual defende a existência de um sujeito constituído na e pela linguagem.
Segundo essa linha de pensamento, o sujeito enuncia-se, marca-se, nas diversas formas que a
linguagem se apresenta e, como não poderia deixar de ser, também assim se inscreve na
linguagem escrita que, deve ser entendida como produto de um ato de enunciação. Como diria
Benveniste, trataremos de dar a saber à presença do homem na língua.
Cabe dizer ainda que este capítulo pretende anunciar todos os demais, uma vez que
nele construímos a escrita como objeto particular de estudo. É em cada item da
problematização do tema que se encontra a razão dos capítulos seguintes. De certa forma, o
capítulo tem uma função heurística na medida em que, nele, se delineia o procedimento
pedagógico pelo qual se leva a descobrir as fontes das principais questões norteadoras da tese.
Assim, passamos, em seguida, a discutir a seção que trata da minha trajetória
profissional e a origem da escrita enquanto objeto de estudo desta investigação.
1.1 A TRAJETÓRIA PROFISSIONAL – A ORIGEM DO OBJETO DE ESTUDO
Ao retomar minha trajetória profissional desde o curso de graduação, pós-graduação,
experiências como docente universitária e como coordenadora do Curso de Pedagogia na
universidade, facilmente constato o meu interesse pelas questões culturais presentes no
processo educativo. A dificuldade na articulação dos referenciais teóricos estudados e a
viabilização de ações educativas me levaram a refletir sobre a cultura como constitutiva da
prática pedagógica. Essa temática vem sendo estudada por mim, desde 1988, por meio de
pesquisas que indicam o predomínio da cultura pedagógica advinda da tradição educacional,
nas relações de sala de aula.
22
Nesses trabalhos
24
, foram pesquisadas algumas problemáticas geradas no contexto
escolar, tais como: a falta de clareza do Projeto Político Pedagógico que é efetivado nas
práticas educativas; a existência de um hiato entre a escola e a comunidade; a pertinência de
realizar o debate teórico-metodológico da ação profissional; a existência de uma distância
considerável entre o que é proposto no discurso e a prática pedagógica; a interferência da vida
pessoal escolar das profissionais em suas concepções pedagógicas e, por decorrência, em sua
atuação; o cotidiano do processo de alfabetização de jovens e adultos e, ainda, a importância
de tomarmos por foco de análise a prática pedagógica para a formação docente.
Entre esses trabalhos de pesquisa, aquele que abordou a alfabetização foi o que,
primeiramente, instigou-me a realizar leituras acerca da linguagem Escrita. Soma-se a esse
interesse, o fato de esta temática ter-se tornado foco de meus estudos, quando assumi as
disciplinas de metodologia de alfabetização no curso de formação de professoras-
alfabetizadoras
25
dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e pela ocasião de criação do
Núcleo de Estudos em Educação de Jovens e Adultos – NEEJA
26
.
Essas experiências possibilitaram a constatação de que o discurso pedagógico sobre a
Escrita ainda revelam uma visão tradicional, qual seja, a de uma habilidade a ser adquirida
pelos alunos a partir de atividades mecânicas de repetição e memória. Nessa concepção, a
escrita apresenta-se como um código a ser decifrado. Em decorrência disso, os estudos têm
24
Nestes trabalhos de pesquisa me envolvi como bolsista de iniciação científica, os quais tiveram como título: O
Projeto Político Pedagógico nas Escolas e a Articulação das Atividades Educativas (1988-1989); O Projeto
Pedagógico na Formação do Professor de Séries Inicias: por uma pedagogia em favor da escola como esfera
pública e democrática (1989-1990); Concepção de Conhecimento e Prática Pedagógica Emancipatória (1991-
1992) e a Organização Disciplinar e as Relações Interativas no Processo de Construção do Conhecimento
Escolar (1992-1993). No ano de 1995 iniciei o curso de pós-graduação em nível de mestrado quando
desenvolvi a dissertação que teve como título O Pedagogo e sua Pedagogia. Ao ingressar como docente na
Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), em 1998, iniciei o trabalho como pesquisadora, até o
momento desenvolvi as pesquisas: Alfabetização de Mulheres: construindo um projeto-político-pedagógica-
interdisciplinar a partir das histórias de vida de mulheres não alfabetizadas; Concepções de Aprendizagem no
Discurso e na Didática da Sala de Aula de Professoras de Séries Iniciais da Escola Pública (1998) e Educador
de Jovens e Adultos do Mova: os desafios encontrados no cotidiano da alfabetização (2000-2001).
25
Utilizo o gênero feminino porque neste nível de ensino há um predomínio de mulheres. A expressão
professoras-alfabetizadoras surge da idéia de que a profissional, principalmente da primeira série, carrega uma
carga de responsabilidades que, ao longo da trajetória profissional, construiu uma identidade diferente das
professoras das séries seguintes. Como acredito e defendo que o processo de alfabetização não é restrito ao
primeiro ano escolar, vou utilizar esta expressão, ao longo da pesquisa que toma como campo de estudo os
Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Para saber mais sobre a construção identitária da professora-
alfabetizadora ver tese da Profª Drª Cleuza Maria Sobral Dias intitulada como: Processo Identitário da
Professora-Alfabetizadora: Mitos, Ritos, Espaços e Tempos, PUCRS, 2002.
26
O NEEJA foi criado por mim e a Profª Ms. Ivone Regina Porto Martins, em 2000, no Departamento de
Educação e Ciências do Comportamento (DECC) da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG)
onde atuo como professora. Este Núcleo conta com a colaboração de outros departamentos e é composto de
várias linhas de pesquisas. Dentre elas, a linha de pesquisa em Alfabetização é aquela com que mais tenho me
envolvido por meio de investigações realizadas em escolas da rede pública do município do Rio Grande-RS.
Também, com trabalhos de extensão e com o ensino na graduação. Atualmente, o NEEJA é coordenado pela
Profª Drª Cleuza Maria Sobral Dias.
23
mostrado (FERREIRO, 1991; KRAMER, 2001) que, se por um lado, há – por parte das
professoras – uma incessante busca por “melhores” métodos de alfabetização – outras formas
de ensinar – por outro elas continuam privilegiando o mesmo conceito de escrita.
Além desses estudos, a atuação no curso de Pedagogia – em especial, na formação de
alfabetizadoras e na participação em projetos de extensão
27
, dentre eles os que se realiza a
formação continuada
28
dos educadores de jovens e adultos da região da 18ª CRE e das
professoras-alfabetizadoras da rede pública do Rio Grande-RS – continua denunciando a
ansiedade de uma significativa parcela destes profissionais pela descoberta de um método
mais eficiente e eficaz.
Tomando por base as atividades de pesquisa e extensão antes mencionadas, percebe-
se que, além da busca de “novos” métodos, uma das questões mais suscitada diz respeito ao
lugar da escrita no processo de alfabetização, sua importância simbólica e cultural, pois a
maioria das professoras-alfabetizadoras deixa por meio de seu discurso, transparecer a crença
de que o ensino da escrita e da leitura toma todo o cenário da alfabetização. Ou melhor, que
todo o processo de alfabetização se resume em aprender a escrever e a ler. Isso não deixa de
ser verdadeiro, mas essa crença explicita uma visão muito parcial dos conhecimentos
implicados no processo de alfabetização. Ora, cabe indagar: escrever e ler o quê?
O que quero enfatizar com isso é que as demandas das professoras aparecem, na
maioria das vezes, num discurso que denuncia uma concepção de linguagem segundo a qual
se ensina a escrever na alfabetização sem conteúdo, ou seja, que a escrita é apenas um código
a mais a ser decifrado e transcrito, desprovido de conhecimentos. Nessa perspectiva, parece
que a ênfase é ensinar a criança a memorizar o código alfabético e a recitá-lo, para somente
em seguida trabalhar com a significação dos signos lingüísticos. Uma indagação freqüente
entre as professoras – que é ilustrativa de tal crença – é: “Deve-se ensinar primeiro a escrever
ou a ler?”.
Penso que tal pergunta não pode ser ignorada, pois ela anuncia e reforça pelo menos
duas questões. Por um lado, fala da crença na escrita como uma técnica descolada de
significado e, por decorrência, na idéia de que para se ler na alfabetização não se necessita da
27
Os projetos de extensão são: Alfabetizando Letrando... Um Desafio: proposta de formação de jovens e adultos.
Coord. Profª Dr
ª Cleuza Maria Sobral Dias e a Profª Ms Sabrina das Neves Barreto – Período Jul-Out/2004 –
sem apoio financeiro; Programa de Educação de Jovens e Adultos: formando educadores e letrando jovens e
adultos para o exercício da cidadania. Coord. Profª Dr
ª Cleuza Maria Sobral Dias – Período Nov/2004 -
Nov/2005 – Apoio MEC/PROEX.
28
Mesmo afastada para cursar a pós-graduação em 2004 e 2005, participei de oficinas de alfabetização, para a
formação de educadores de jovens e adultos em nível de alfabetização, da região da 18º CRE (Coordenadoria
Regional de Educação). As oficinas foram oferecidas pelos referidos projetos de extensão do
NEEJA/DECC/FURG.
24
significação. Por outro, diz que escrita e leitura assumem papel central na cena da
alfabetização. Assim, pode-se em termos de síntese considerar que esta visão demonstra: a)
que escrita e leitura são, normalmente, reduzidas a uma técnica memorizada e, por isso, são
algo da exterioridade do sujeito; b) que ensinar a ler e a escrever são os únicos objetivos do
processo de alfabetização e c) que estar alfabetizado significa escrever e ler palavras e frases,
que podem estar desprovidas de significação.
Do ponto de vista desta tese, o processo de alfabetização tem a função de ensinar a
escrever e a ler os conhecimentos das diferentes áreas e de ser mais uma – dentre tantas –
forma de inserção cultural e, ao mesmo tempo, de produção de conhecimentos. Esses
conhecimentos devem possibilitar ao sujeito situar-se no tempo e no espaço da comunidade da
qual faz parte, em sua dimensão local e global.
As questões que aparecem no processo de formação continuada e nas pesquisas a que
referimos anteriormente podem também ser ilustradas pelo teste de leitura, ainda hoje
existente em muitas escolas da nossa região
29
. Esse teste – realizado no final da primeira série
ou ciclo escolar, na maioria das vezes, pela coordenação pedagógica ou supervisora escolar –
é uma prática que demonstra que ainda, para muitos educadores, a alfabetização está restrita
ao primeiro ano escolar.
Diante dessas questões, é possível verificar o lugar de destaque que ocupa a
aprendizagem da escrita, entendida como um processo complexo, na alfabetização. No
entanto, a maioria das professoras-alfabetizadoras, considera-a somente na perspectiva de ser
ela uma tecnologia externa ao sujeito, o que tem dificultado o desenvolvimento de um
trabalho de alfabetização que coloque a linguagem escrita como produtora de sentidos.
Penso que todo o processo de alfabetização exige caminhos e procedimentos a serem
construídos pelas professoras-alfabetizadoras para trabalhar a escrita e a leitura. O que deve
ser colocado em suspenso é a persistência de uma forte crença de que poderá existir um único
caminho a ser seguido por todos os educadores. Sabemos que a formação profissional se faz
no decorrer das experiências de cada educador e que esta trajetória será sempre única e
diversa. Nesse sentido, é preciso insistir na idéia de que se faz necessária a construção de
referenciais com princípios psicológicos, lingüísticos, pedagógicos, sócio-culturais, entre
outros, acerca da linguagem escrita e da leitura para que cada professora-alfabetizadora
encontre caminhos para alfabetizar. O método é o resultado de vários conhecimentos que vão
sendo relacionados e refletidos no espaço de formação no nível médio, superior, pós-
29
A região a que me refiro é composta pelos municípios que pertencem à 18ª CRE (Coordenadoria Regional da
Educação – RS), que são: Rio Grande, São José do Norte e Santa Vitória do Palmar.
25
graduação, bem como no cotidiano da sala de aula com os alunos, onde os conhecimentos
científicos são constantemente (re)significados e reorientados a partir dos acertos, das dúvidas
e das incertezas que permeiam a construção dos caminhos que efetivem o processo de
alfabetização.
Foi a partir destas reflexões que passei a constatar a importância de conceber a
escrita sob diferentes campos de saber. Campos que possam sustentá-la como produtora de
cultura e de subjetividade, em especial, no contexto da escola. Ao considerar que as relações
sociais educativas
30
, subjetivam e produzem cultura, as quais incluem a própria arquitetura da
escola, os tempos e os espaços pedagógicos, as crenças, a oralidade e as alegorias, ou seja, o
currículo como construção social
31
, acredito que também a Escrita pode ser assim concebida.
E a escola, como instituição social responsável por socializar e produzir os conhecimentos em
nossa sociedade, precisa atentar para outra perspectiva de escrita.
Bem sabemos que este assunto não é novo, e se reivindicamos algum ineditismo
neste trabalho, ele reside muito mais na implicação teórica que o sustenta do que
propriamente no tema. Acreditamos que é na interface entre a sociologia da cultura e da
enunciação que podemos dizer algo da escrita relacionado ao sujeito que a produz. A escrita,
desde a década de 1980, vem sendo pesquisada como objeto de conhecimento e como
processo histórico de construção de um sistema de representação. Os estudos também nos
mostram, claramente, que o ato de escrever e ler são atividades conceituais em que intervêm
principalmente habilidades cognitivas e não somente perceptivo-motoras. (FERREIRO, 1998;
30
Foucault (1987), em seu livro Vigiar e Punir, na terceira parte, trata da disciplina como produtora de “corpos
dóceis” por meio de instituições disciplinadoras, dentre elas a escola em sua organização do tempo, dos
espaços vai dominar os corpos e as mentes. O autor afirma que: “Em resumo, pode-se dizer que a disciplina
produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade dotada de quatro características: é
celular (pelo jogo de repartição espacial), é orgânica (pela codificação das atividades), é genética (pela
acumulação do tempo), é combinatória (pela composição de forças). E, portanto, utiliza quatro grandes
técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das
forças, organiza ‘táticas’.” (p. 141). Fundamentados no pensamento foucaultiano, temos os trabalhos dos
espanhóis Frago e Escolano (2001), principalmente no livro Currículo, Espaço e Subjetividade: a arquitetura
como programa, onde discutem “a arquitetura escolar por si mesma como um programa, uma espécie de
discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância
[...]” (p. 26). Além da arquitetura, a análise do espaço na escola como currículo e a disposição dos lugares e dos
objetos na sala de aula e sua relação com os métodos pedagógicos. Esta perspectiva teórica analisa como o
controle do tempo e do espaço produz corpos disciplinados e dóceis e, por sua vez, produz também
subjetividade.
31
Sobre currículo na perspectiva de construção social ver importantes estudos como: Sacristán (1998), Santomé
(1998), Sacristán e Gomes (1998); Silva e Moreira (1995) que mostram a partir da história da sociedade a
função e o papel da educação. Analisam que a seleção de conhecimentos está relacionada a um tempo histórico
e ideológico, destacando que todas as atividades desenvolvidas na escola constituem o currículo, bem como,
todas as relações de poder nela vivenciada. Para exemplificar, poderíamos analisar a distribuição desigual da
carga horária das diferentes áreas do conhecimento e a fragmentação do conhecimento, pois elas explicitam a
valorização de determinadas áreas e a concepção de ciência vigente em um dado momento histórico. Essas
concepções continuam ainda prevalecendo na estrutura organizativa, da maioria das instituições de ensino.
26
OLSON, 1997; PÉREZ e GARCIA, 2001). É possível dizer que o sujeito, ao construir o
sistema de representação da linguagem escrita, (re)significa a sua construção na medida em
que a reinventa através da sua interpretação. O sujeito vai descobrindo as propriedades dos
sistemas simbólicos através de um prolongado processo construtivo (FERREIRO, 2000). A
escrita e a leitura têm um papel importante nas formas de pensar o mundo, diz Olson (1997).
Ao estudar a Escrita na formação da mente, este autor afirma que há diferenças tanto
históricas como culturais nas formas como as pessoas pensam sobre si e sobre o mundo. Isso
mostra que a Escrita é um objeto cultural constituído na e pela cultura.
E, neste processo de produção cultural, existe um sujeito que se subjetiva por meio
dos vários sistemas simbólicos, como a arte, a música, os rituais religiosos ou não, a
arquitetura, entre outras, que o inscrevem na comunidade da qual faz parte. O domínio da
Escrita é mais um desses sistemas simbólicos que produz subjetividade
32
.
Assim, à guisa de encaminhamento, as questões que se colocam de forma
contundente como resultado da minha atuação profissional e que devem conduzir
localizadamente este capítulo e transversalmente a tese em sua totalidade são: como elaborar
implicações teórico-metodológicas que sustentem a escrita como produtora de subjetividade?
O que é preciso compreender a respeito da escrita para fundamentar a idéia de que ao escrever
o sujeito produz cultura e é produzido por ela? Como a professora-alfabetizadora precisa
analisar a escrita para considerar a cultura e a subjetividade nela contida? Estas são questões
que nos acompanharão nesta tese no sentido de construir um trabalho que diga algo diferente
para o processo de alfabetização.
Sabemos que as respostas a tais questões são múltiplas e os meios teórico-
metodológicos de obtê-las são bastante diversificados. A consciência disso impõe a
necessidade de restrição do escopo deste trabalho. E para proceder a esse recorte, vale evocar,
guardadas as proporções, a fórmula utilizada por Foucault no célebre A arqueologia do saber
para explicar o que entende ser um enunciado. A linha de pensamento de Foucault é sugerir
uma resposta sobre o que é o enunciado dizendo o que ele não é. Considera Foucault: “o
enunciado não é uma unidade do mesmo gênero da frase, proposição ou ao de linguagem; não
se apóia nos mesmos critérios; mas não é tampouco uma unidade como um objeto material
poderia ser [...]” (FOUCAULT, 1987, p. 98).
32
Subjetividade será tratada, nesta tese, a partir da teoria lingüística de Benveniste. Nesta teoria enunciativa a
subjetividade é a inserção do homem na língua em uso, ou melhor, a capacidade do locutor se propor como
sujeito cf. adiante.
27
Ora, ao lembrar algumas das palavras que imortalizaram o filósofo não faço mais do
que, por um recurso retórico, pedir emprestado o ponto de vista segundo o qual uma sucessão
de negações pode constituir uma via de acesso ao que se torna o horizonte do dizer negativo.
Assim, esta tese não é a busca, sob outras bases teóricas, de um novo método de
alfabetização, mesmo que a tome como campo empírico de pesquisa; também não se trata de
defender ou propor metodologias para o ensino da escrita e da leitura; tampouco se trata de
estudar o processo de aquisição da linguagem escrita; finalmente, não integram o escopo desta
tese nem as práticas de letramento nas interações das crianças com a escrita e a leitura, nem a
análise das relações entre a oralidade e a construção da leitura.
Minha intenção é, antes, construir uma nova forma de analisar a escrita nos anos
iniciais da escolarização para compreender a produção de subjetividade e de cultura na
linguagem escrita
33
. E, embora tome a escrita das crianças como foco de estudo, pretendo
dirigir a produção de minhas análises, em especial, às professoras-alfabetizadoras. Nesse
sentido, penso que meu trabalho investigativo, mesmo de forma indireta, tem o ensino como
horizonte, uma vez que ao construir esta visão da Escrita provocará discussão em torno do
ensino nos anos iniciais de escolarização.
Trouxe neste item as experiências profissionais que tornaram a Escrita meu objeto de
estudo. A seguir, traremos minhas vivências, as quais vão explicitar a singularidade de minha
relação com ela e contribuíram na opção pelo tema que vem sendo investigado. Dessa
maneira, buscá-las na memória vai permitir revisitar lembranças desde a infância na família e
na escola. Este procedimento pode explicitar, ainda mais, o sentido e significado de estudar a
Escrita. Acredito que essas vivências pessoais constituem minha subjetividade e definiram o
percurso de minha vida pessoal e profissional. E, além disso, pela opção de tomar a escrita por
objeto de estudo.
1.2 A TRAJETÓRIA PESSOAL – AS LEMBRANÇAS/VIVÊNCIAS COM A ESCRITA
Ao suscitar a memória ela lança fragmentos de vida, como se fosse um filme cortado
em que só surgem cenas importantes das nossas histórias. Isso possibilita compor por meio da
implicação de experiências tanto pessoais como profissionais “costurar” sentidos e
significados, onde cada uma delas lança razões que justificam as nossas escolhas. Ao analisar
33
As definições de cultura e subjetividade serão tratadas no capítulo III e IV deste trabalho.
28
o meu interesse de pesquisa constato o sentido da Escrita se tornar objeto de estudo, uma vez
que as lembranças da relação com ela demonstram fascínio e resistência.
Como a maioria das crianças, ingressei na escola. Foi no ano de1974, aos seis anos
de idade que fui matriculada no Jardim da Infância. Minha memória traz à lembrança a sala de
aula com pequenas classes cor verde água dispostas em fileiras; as paredes cheias de cartazes
que mostravam as letras do alfabeto com um desenho que tinha em seu nome a letra inicial
correspondente ao do alfabeto. Cartazes deste tipo ainda são bastante comuns nas salas de
alfabetização.
Lembro da minha decepção por ter ido à escola e não ter podido escrever no primeiro
dia de aula. Afinal, a professora dissera que antes tínhamos de aprender todas as letras para só
depois escrever, mas ainda antes disso, teríamos que fazer vários traçados, ou seja, preencher
linhas conforme o modelo. Este trazia linhas retas, pontilhadas, onduladas etc., que tomava
quase todo o tempo da aula. Além disso, o tema de casa era preencher, além das já realizadas
na escola, uma ou duas linhas de cada um dos modelos indicados. Tenho a imagem clara do
meu caderno e das folhas mimeografadas com estas tarefas. Lembro também que ao fazê-las,
não entendia porque precisava fazer riscos. Afinal, tinha ido à escola aprender a escrever e já
sabia que se escrevia com letras!
Além dessas atividades, havia os desenhos, na maioria das vezes, já prontos
(mimeografados ou carimbados) para serem preenchidos com as cores determinadas. Essas
foram as lembranças dos primeiros dias de escola. Passado algum tempo, já podíamos
desenhar livremente, mas o sentimento e a percepção de imperfeição do meu desenho em
relação aquele dado pela professora, me fazia resistir a desenhar. Jamais conseguiria, por mais
que me esforçasse, fazer linhas tão definidas quanto aquelas “da professora” (acreditava que
os desenhos mimeografados eram desenhados por ela). Desde o primeiro dia, a cada início de
aula, recitávamos o alfabeto em voz alta no coletivo e, às vezes, alguns alunos eram
escolhidos para individualmente recitá-lo. Esta prática foi realizada o ano inteiro para que
memorizássemos as letras do alfabeto.
No ano seguinte, 1ª série, eu pensava: Agora devo estar “pronta” para escrever!
Acreditava que chegara a hora de poder escrever. Nos primeiros dias de aula, ganhamos a
Cartilha da Abelhinha: linda, porque era muito colorida. A professora recomendava muito
pelos cuidados que deveríamos ter com aquele livro “mágico”, pois segundo ela, quando
chegássemos ao final daquela viagem com a abelhinha, estaríamos escrevendo e lendo.
As primeiras atividades da cartilha repetiam o trabalho que havia feito no ano
anterior. Tarefas de traçado de linhas, de letras, encontros vocálicos e famílias silábicas. Outra
29
decepção! Deveria novamente esperar para escrever. Quando começamos a completar
palavras, consideradas de sílabas simples, foi uma grande alegria. Pensava: acho que agora
vou poder começar a escrever! Neste momento, eu já estava lendo e não gostava de completar
as palavras. Tudo já era muito óbvio para mim!
Estes procedimentos para alfabetizar são recomendados pelo Método Sintético
Alfabético
34
, ainda presentes em muitas salas de aula. Esta orientação coloca a determinação
do processo aprendizagem das crianças na professora que determina o momento em que elas
podem aprender qualquer que seja o conhecimento. É como se ela pudesse e conseguisse
segurar o desenvolvimento do pensamento das crianças. Esta postura não tem tido muito
sucesso, no sentido de gerar a aprendizagem da linguagem escrita e, ao mesmo tempo,
atrapalha o desenvolvimento cognitivo das crianças. Lembramos o já histórico índice, em
torno de 50%, de reprovação na primeira série escolar.
Para minha decepção, ainda hoje encontro atividades semelhantes a essas que
vivenciei em meu processo de alfabetização. O que mais me incomoda é quando peço para
uma criança tentar escrever uma determinada palavra e ela exclama: - Esta letra eu ainda não
aprendi! Acredito que esta exclamação revela um dos pontos mais prejudiciais do ensino da
linguagem escrita, uma vez que ela demonstra, por um lado que a aprendizagem de cada letra
é determinada pela professora e, por outro, que a criança já acreditou que sozinha não
conseguirá encontrar a solução, pois precisa da autorização dela. Este último, conseqüência do
primeiro, é muito grave, pois a postura da criança diante do desconhecido mostra que o
espaço da sala de aula não tem possibilitado situações que fazem o aluno acreditar que pode
sozinho buscar alternativas para aprender, ou de outro modo, que ela pode e sabe pensar e
levantar hipóteses que ajudam encontrar explicações à suas dúvidas. Essas situações não têm
contribuído para a formação de sujeitos com autonomia intelectual, mas de pessoas que, na
maioria das vezes, apresentam insegurança ou até bloqueio diante da atividade escrita.
Este tipo de experiência vivenciei novamente, há pouco tempo, com minha
sobrinha
35
que entusiasmada vem me mostrar sua pasta de trabalhos escolares. Ao observar as
atividades solicitadas pela professora lembrei, ou melhor, foi como se eu estivesse vendo as
minhas tarefas de alfabetização, na década de 1970. Isso me faz, cada vez mais, buscar
elementos teóricos e metodológicos que favoreçam a superação de tais práticas, tão
34
No próximo capítulo trabalharemos a tradição dos Métodos de Alfabetização nas salas de aula, onde
discutiremos os seus fundamentos em relação à aprendizagem e à escrita.
35
Minha sobrinha tem seis anos de idade, já matriculada no Ensino Fundamental de nove anos.
30
prejudiciais na aprendizagem da escrita como mais uma forma de expressar significados,
sentidos e emoções.
Fui para a escola porque queria escrever, como fazia a minha avó paterna que tinha
sido professora primária em turma multisseriada. No período da minha infância, ela já estava
aposentada e era muito reconhecida pela comunidade – a via concentrada escrevendo em seus
diários, sentada diante de sua escrivaninha – queria ser como ela; queria ler como meu pai,
que lia na cozinha com aquele enorme jornal do Correio do Povo, também concentrado; eu
não entendia muito bem como ele fazia para ficar tanto tempo ali sentado à mesa, de vez em
quando folheava as páginas. Estas lembranças vivas em minha memória certamente me
constituíram, e fazem hoje eu ser e estar professora dedicada, especialmente na formação de
professoras-alfabetizadoras. Reconheço que foi minha avó e meu pai que me ensinaram a
função social da Escrita e da leitura.
O meu processo de escolarização, embora tenha me ensinado, muito atrapalhou o
processo de aprender a escrever e a ler, pois percebo que voltei a tentar a escrever e aprendi a
ler com significado durante os anos do Ensino Superior. Agradeço aos meus professores da
UNIJUI
36
que criaram situações de produção escrita e não de cópia. Hoje, estruturando este
trabalho que se constitui em minha tese de doutoramento, percebo porque escolhi e delineei
um caminho para investigar a Escrita das crianças em processo de alfabetização, que pretende
defender que ela possibilita a produção de cultura e subjetividade.
Assim, as questões apresentadas no primeiro item se justificam ainda mais pelas
minhas experiências com a escrita nos Anos Iniciais da escola. São elas que me instigam
buscar referenciais tanto teóricos como metodológicos, para sustentar as idéias que vimos
construindo por meio dessa trajetória escolar, dos estudos e das reflexões vividos na prática de
pesquisa e na ação docente.
1.3 PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMA: DELINEANDO O CAMPO TEÓRICO-
METODOLÓGICO
Mesmo sabendo que as implicações teórico-metodológicas vão sendo produzidas no
processo de elaboração de um trabalho – já que a aventura da pesquisa está invariavelmente
situada no princípio de um “não saber” que nos move em direção à produção de
conhecimentos – nesta seção estudamos a problemática do tema da Escrita e das possíveis
36
Cursei na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI, Pedagogia,
Supervisão Escolar e Pedagogia Séries Iniciais (1987-1991).
31
implicações para abordá-lo, situando-o no contexto da escola, campo empírico da pesquisa.
Nessa trajetória há sempre uma “desconfiança” já formulada em relação ao objeto de estudo.
É isso que instiga buscar caminhos, muitas vezes complexos e, às vezes, até mesmo,
desnecessários. É uma aventura ora nebulosa, ora clara, é o próprio fazer da pesquisa. Assim,
os temas tratados a seguir têm a função de delinear os capítulos que compõem a investigação.
São percorridas algumas linhas de pensamento que podem sustentar a questão que elaboramos
sobre a escrita das crianças.
Organizamos a seção em três itens. No primeiro, abordamos a escrita na escola
trazendo reflexões em torno do trabalho educativo que vem sendo realizado, por meio de um
mapeamento dessas perspectivas, como forma de visualizar suas múltiplas faces nas ações
pedagógicas. Tomo a escola considerando os três níveis de ensino e as diferentes áreas
37
. No
segundo, trato da relação entre Escrita e cultura mostrando como estes dois elementos, em
uma sociedade letrada, se constituem e produzem subjetividade. Inicialmente, trago uma
discussão ampla sobre alguns trabalhos que se destacam sobre a temática da Escrita e cultura,
mas ressalto que é nas contribuições de Bhabha (1998), em especial, no conceito de entre-
lugares que busco suporte para pensar a transmissão e a produção cultural, pois no entre-
lugares se situaria a resistência, ou seja, o espaço da produção humana numa perspectiva de
enunciação da diferença cultural. E, finalmente, como forma de encaminhar este capítulo da
construção do objeto da pesquisa, anuncio a lingüística da enunciação, em especial, a teoria de
Émile Benveniste (1988,1989), para fundamentar a presença de um sujeito na linguagem e em
cada ato de enunciação por meio da escrita. É na implicação desses pontos de vista que
pretendo abordar a subjetividade e onde busco elementos para fundamentar e delinear a
metodologia de análise dos dados da investigação, quer dizer, implicar as discussões do
campo da alfabetização no que se refere à concepção de escrita com a teoria intervalar de
Bhabha tomando, principalmente, o conceito de entre-lugares, implicando estes dois aspectos
à questão da presença de subjetividade da linguagem na teoria enunciativa benvenistiana, o
que constituirá o suporte teórico-metodológico deste trabalho investigativo. Assim, passamos
a discutir, primeiramente, as múltiplas faces da escrita na escola.
37
Nestas reflexões discuto, de uma maneira geral, qual tem sido o trabalho da escola em relação à escrita em
seus três níveis de ensino: Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio.
32
1.3.1 A Escrita na Escola: suas múltiplas faces
É preciso demarcar que vamos tomar a escrita escolar por foco de investigação e,
prioritariamente, a escrita das crianças nos primeiros anos da escolarização. Mesmo assim, o
propósito ainda é bastante amplo, já que muitas perspectivas coexistem na escola. Portanto, o
recorte ainda se impõe. Partamos, pois, do geral: visualizar de forma ampla quais as faces da
escrita na escola. Importa lembrar ainda que essas reflexões, que dizem respeito às diversas
formas em que se apresenta a escrita no Ensino Básico, foram sendo construídas a partir da
minha experiência escolar, do debate em torno do ensino da língua materna e de minhas
vivências como professora no Ensino Superior.
De uma maneira geral, pode-se dizer que o ensino da escrita tem, no mínimo, duas
faces, uma lato sensu e a outra stricto sensu:
Lato sensu: entendida como toda e qualquer modalidade escrita onde se incluem
desde aspectos gráficos, ortográficos, gramaticais, estilísticos, textuais
até literários;
Stricto sensu: a escrita como aprendizagem ligada à alfabetização.
Evidentemente, esta divisão é arbitrária e, é importante que se diga, atende a
objetivos específicos que não vão além dos limites por eles circunscritos, estando restrita a
uma tentativa de delineamento da escrita no contexto escolar. Trata-se de uma proposta
condicionada pela natureza da reflexão que se está a fazer e que, por isso mesmo, pode não
ser aceita por outros educadores. O mérito desta divisão está em estender a escrita a todas as
disciplinas da escola, tomando-a como algo que atravessa as diferentes áreas do
conhecimento.
Isso, facilmente, traz à tona a tradição escolar em relação ao trabalho com a escrita,
isto é, uma tradição calcada numa visão consensual sobre o que a escola, em geral,
desenvolve. Podemos afirmar assim que a escola, como uma das guardiãs da Escrita, a tem
como objeto de trabalho que permeia os diferentes saberes. Costumeiramente, lembramos das
disciplinas de língua portuguesa, de literatura, de língua estrangeira como sendo aquelas que
se dedicam essencialmente ao ensino de línguas; no entanto, não podemos negar que todas as
demais áreas também trabalham com a escrita. É evidente que a matemática, a física, a
geografia, a história, as ciências, as artes e a corporeidade tomam a escrita por pressuposição,
33
mesmo que nesses campos ela seja tomada como instrumento ou como ferramenta para a
aprendizagem de seus domínios conceituais.
O fato das diversas disciplinas escolares tomarem a escrita nesta perspectiva
instrumental não é problemático, o que se questiona é a visão estreita reforçada pelas
atividades de ensino propostas aos alunos, ou seja, a maioria delas coloca a escrita reduzida
apenas a uma técnica a ser utilizada para copiar conhecimentos já produzidos. Esta idéia
estreita sobre ela permeia a maioria das ações escolares o que impede, muitas vezes, vivências
por parte dos alunos da escrita enquanto produção de sentidos e significações.
No campo lingüístico, a escola oscila entre um trabalho com referência à norma
gramatical e à ortografia – por meio do ensino da gramática tradicional e das regras sintáticas
com o objetivo de possibilitar o domínio da gramática da língua portuguesa – e uma
abordagem do conteúdo das atividades escolares articulado à produção textual, procurando
ensinar a organização textual interna.
Já no que se refere à compreensão estética da linguagem, há desde o ensino dos
vários estilos literários e da sua história – com conhecimentos que possibilitam aos alunos
perceberem a importância da linguagem na realização humana e também, como mais uma
forma de inserção cultural – até experiências que abordam, além dos conhecimentos estéticos,
a linguagem escrita como produção, ou seja, como mais uma forma de expressão da
singularidade. Cabe ressaltar que, quando este tipo de experiência educativa acontece,
percebe-se o envolvimento dos alunos nas atividades propostas, pois eles percebem a
valorização daquilo que pensam/imaginam.
Porém, mesmo que o incipiente diagnóstico que fizemos acima possa sugerir o
contrário, o que há na escola é a supervaloração de uma visão ortográfica da escrita.
Historicamente a instituição escolar
38
tem trabalhado, principalmente, com um ensino
decodificador da escrita. E isso é bem mais perceptível da Educação Básica. Percebe-se que a
maioria dos profissionais que atuam nesse nível tem em suas ações pedagógicas de sala de
aula, desde o início do processo de escolarização, a idéia predominante do ensino da escrita
padrão – ortográfica e gramaticalmente. Em outras palavras, é exigido da criança que ao se
expressar por ela já domine todos os aspectos do sistema de uma determinada língua.
Entretanto, sabemos que para se chegar a esta forma de escrita, se faz necessário um grande
38
Embora esteja ressaltando um tipo de prática educativa que constituiu a tradição escolar em relação ao ensino
da linguagem, não desconsidero as inúmeras iniciativas de projetos e de ações em sala de aula, que desviam
desta perspectiva. Acredito que em toda e qualquer instituição de ensino existe profissionais com propostas
que se diferenciam do que por longo tempo predominou nas ações didático-pedagógicas em relação ao ensino
da linguagem. No entanto, trouxemos para esta seção um panorama da tradição escolar que, muitas vezes,
ainda tem forte expressão em algumas instituições.
34
percurso de aprendizagens a respeito do funcionamento da língua. Mesmo assim, a escola
expressa este propósito desde o primeiro ano escolar.
A escola tem insistido em trabalhar com um modelo de escrita exterior ao sujeito. Ou
melhor, como se ela fosse apenas uma técnica que precisa ser internalizada por meio da
produção de textos, muitas vezes, mal orientados. Por exemplo, nem sempre se solicita a
busca de informações e de debate sobre o tema a ser escrito, levando as crianças a vivências
pouco produtivas, já que a ênfase, geralmente, é no domínio de uma forma a ser treinada e
não nas idéias e nos sentidos produzidos pelos alunos.
Assim, o domínio desta forma é trabalhado, muitas vezes, por meio de atividades
repetitivas
39
como “passar a limpo” várias vezes o mesmo texto até que fique adequado,
observando aspectos como ortografia, concordância verbal, nominal, coesão, coerência, etc.
Cabe ressaltar que o ato de “passar a limpo” um texto até pode permitir a retomada do sentido
produzido nas idéias expressas, mas o que geralmente se faz é a discussão dos aspectos da
língua de forma isolada, sem o debate sobre as significações elaboradas pelos alunos. De
maneira geral, a produção do texto escrito é considerada, pela maioria dos alunos, uma
atividade que vai somente desvelar os limites de seu conhecimento, uma vez que raramente os
professores tomam por foco de análise as idéias expressas no texto produzido. A ênfase é nas
dificuldades no domínio da gramática da língua.
Penso que ao longo deste item construí, mesmo que parcialmente, um retrato das
faces da escrita presentes na maioria das escolas brasileiras. A partir disso, deveríamos nos
perguntar o que é a escrita para os professores. Em que situações eles escrevem? O que
escrevem? Será que em suas práticas educativas desafiam os alunos a escrever com o objetivo
de descobrirem o prazer de expressar por meio dela seus pensamentos misturados de emoção
e de imaginação, como fazem os escritores em suas histórias?
Estas questões são gerais e sempre se colocam no momento em que se investiga a
escrita na escola. No entanto, como afirmamos, nosso interesse é por estudar a escrita daquele
39
Seria pertinente discutir qual é a visão de aprendizagem que as ações educativas têm explicitado por meio das
atividades propostas. No entanto, a aprendizagem não é foco desta pesquisa, mas acreditamos que como
educadores precisamos conhecer a importante contribuição de Piaget e Vygotsky que dedicaram seus estudos
para compreender o desenvolvimento cognitivo e psicológico do ser humano. Estes dois autores têm vários
pontos de convergências e divergências as quais contribuem para analisarmos o processo aprendizagem dos
alunos. Sobre desenvolvimento e aprendizagem encontramos em Piaget livros como: O Nascimento da
Inteligência (1936), RJ: Zahar, (1974); Psicologia da Inteligência RJ: Fundo de Cultura, (1972) e
Aprendizagem e Conhecimento (primeira parte), RJ: Freitas Bastos, 1974. E na obra de Vygotsky nos livros
El desarrollo de los processos psicológicos superiores, Barcelona: Crítica, 1979; Linguagem,
Desenvolvimento e Aprendizagem, SP: Ícone, 1988 e Pensamento e Linguagem, SP: Martins Fontes, (1993).
Estas são apenas algumas referências sobre o tema.
35
que escreve, especialmente, das crianças dos anos iniciais, buscando situar este ato e
compreender como a escrita subjetiva produzindo singularidades.
A partir do exposto, em linhas gerais, pode-se considerar que a escrita na escola:
9 é produto de ações pedagógicas que apresentam a escrita como um produto
acabado, isto é, como se ao escrever o sujeito precisasse pensar tudo
antecipadamente para, em seguida, apenas transpor ao papel. Ora, ao escrever
percebemos empiricamente o engano, pois pensamos ao escrever e vice-versa;
9 é vista a partir de um modelo considerado correto – o do texto da ciência – pois
os livros que a escola fornece, na maioria das vezes, são os livros didáticos
40
.
Eles se tornam, normalmente, a única referência para pesquisa e para o trabalho
em sala de aula. A ênfase que se dá às “verdades” que estão neles contidas traduz
que escrever certo é o escrever da ciência. Assim, os alunos se deparam com um
tipo de escrita acadêmica que supõe inúmeras aprendizagens e experiências até
dominar tais conhecimentos lingüísticos, mas que a escola se esforça em exigi-
los, desde o início da escolarização. Assim, prevalece a idéia de que dominar a
escrita é saber se expressar pela escrita da ciência, geralmente, do tipo
dissertativo, ou seja, o mais difícil;
9 é vista no domínio do estético/literário como algo produzido por um “ser
iluminado e distante” cuja primazia está na dimensão lúdica da literatura.
Essa realidade demonstra que persiste ainda hoje, reforçada por estas práticas
pedagógicas, a idéia da escrita como algo exterior – como forma – o que deixa explícito
nessas ações descritas acima que o aluno ao escrever não pensa sobre o funcionamento da
língua e sobre as idéias do tema a ser escrito. Enfim, o ensino da escrita tem revelado que
existe um pressuposto nas ações educativas, qual seja, o de que para se autorizar a escrever é
preciso “antes” ter o domínio total da dimensão técnica da Escrita .
Tendo em vista essas constatações, podemos afirmar que a escrita é tomada pela
escola por múltiplos vieses demonstrando uma diversidade de enfoques. Na verdade, ela
sempre estará envolvida no trabalho escolar, pelo fato de que, tradicionalmente, a escola tem
40
Penso que os livros didáticos devem ser um dos recursos utilizados pelos educadores para desenvolver sua
proposta pedagógica, mas não o único. Ele não deve orientar o processo educativo e nem ser a alternativa
principal para buscar os conhecimentos a serem trabalhados em sala de aula. Além disso, muitos destes livros
apresentam textos pobres lingüisticamente e, algumas vezes, têm erros de concordância verbal, ortografia e
acentuação gráfica.
36
reproduzido em suas práticas educativas uma ênfase nas atividades escritas. Isto porque, em
uma sociedade como a nossa, parece que só tem valor o que está escrito. A cultura do escrito
tem predomínio em relação às demais formas de expressão.
Esse breve quadro das práticas educativas na escola revela que existem inúmeras
faces da escrita, isto é, que há uma heterogeneidade de perspectivas de trabalho. Mas, há o
pressuposto de uma concepção predominante de escrita como algo da exterioridade do sujeito.
Temos percebido que, na maioria das escolas, ainda há o predomínio de ações educativas que
efetivam tal concepção. Essa situação nos leva a refletir e analisar mais aprofundadamente as
discussões acerca da escrita no campo da alfabetização. Assim, uma questão importante que
será abordada é: qual(is) é (são) a(s) face(s) da(s) escrita(s) no processo de alfabetização das
crianças na escola?
1.3.2 A Escrita na Cultura
Em continuidade às reflexões em torno da construção da escrita como objeto desta
investigação numa perspectiva de produção de cultura e de subjetividade, se faz necessário
situar a partir de que idéia de cultura construímos este trabalho e como ela se articula com a
escrita. Parece-me que ao fundamentarmos acerca da relação entre o ato de escrever e a
produção cultural poderemos sustentar a indissociabilidade entre as duas, uma vez que elas
estão entrelaçadas na história da humanidade. Temos acreditado que no ato de escrever o
sujeito produz cultura e (re)significa a escrita. E, neste processo, vai, ao mesmo tempo,
produzindo sua subjetividade. É com o objetivo de sustentar essa relação e crença que vamos
trabalhar este item.
Embora no mundo contemporâneo a informação esteja disponibilizada nos mais
variados meios de comunicação, em razão do avanço tecnológico, para muitos a escrita
continua sendo uma das tecnologias
41
mais valorizadas, porque é a ferramenta cultural que
pode permitir ao sujeito transformar informações em conhecimentos. Mesmo que outros
sistemas simbólicos como a arte, a música, os rituais, as alegorias etc., possibilitem
conhecimentos, em uma sociedade letrada como a nossa, a linguagem escrita é a que tem
maior expressão social.
41
Não concordo que a escrita se reduza apenas a uma tecnologia, mas a um sistema de representação que ao
mesmo tempo em que permite a inscrição do homem na cultura também subjetiva aquele que escreve. A
concepção de produção de cultura será desenvolvida e aprofundada no capítulo 3, onde teremos por foco a
face cultural da escrita.
37
Kramer (2000) destaca a importância da escrita dentre as múltiplas linguagens que a
escola precisa desenvolver, mas constata que ela ainda não descobriu o potencial de criação
que a escrita possui, persistindo com um trabalho que enfatiza uma escrita instrumental,
funcional, mecânica, repetitiva e esvaziada de sentido (p. 106). Para ela, grande parte dos
professores infelizmente ainda espera que as crianças dominem as regras gramaticais de
ortografia, concordância, pontuação etc. para que estejam autorizadas a escrever. Ela enfatiza
dizendo que “[...] substitui-se a autoria pela autorização e impede-se que a escrita com
significado seja produzida” (p. 108). Nessa direção, ela diz também:
[...] Dentre todas as possíveis formas de expressão, dentre todos os modos de deixar
marcas e demonstrar o que se pensa, sente, deseja ou crê, a escrita teve e tem um
papel central ainda não aprendido, ainda não exercido na escola, ainda não praticado
por aqueles que fazem a história na e da escola. (KRAMER, 2000, p. 105)
É possível afirmar que a escrita como construção cultural e subjetiva expressa o
pensamento, constituído pelos sentimentos, pelas crenças e pelos desejos dos sujeitos. A
autora também nos alerta que as históricas práticas escolares ainda não conseguiram colocar a
escrita como um objeto de conhecimento que tem função importante na formação de um
sujeito que pensa e imagina. Isto porque as crianças desde muito cedo – arriscamos dizer que
em torno dos três anos de idade – já refletem sobre a escrita, imaginando e testando suas
hipóteses na busca de compreensão da natureza do sistema alfabético. É neste processo de
pensamento permeado pela imaginação que elas (re)significam a linguagem imprimindo a
esse processo singularidade e, ao mesmo tempo, incorporando os elementos culturais.
A linguagem escrita está incorporada de tal maneira em nossas ações do cotidiano,
que nos dificulta pensar sem a sua mediação simbólica. A partir disso, cada criança (re)produz
a cultura a partir de sua singularidade e por esta razão a escrita é um dos sistemas simbólicos
que produz subjetividade.
Mesmo que não esteja entre os objetivos desta pesquisa nem a discussão em torno da
origem da Escrita, nem sua origem histórica na escola, vale trazer alguns pontos da história da
Escrita em nossa cultura para situar as grandes mudanças que ela ocasionou na humanidade e,
com isso, justificar mais pontualmente a vinculação da Escrita à cultura e, por esse
mecanismo, à produção de subjetividade. Na medida em que apresentamos parte do raciocínio
de alguns autores, pensamos poder também delimitar contrastivamente nossa perspectiva de
tratamento da relação cultura e Escrita, a exemplo do que fizemos no item anterior com
relação ao tratamento da escrita no âmbito escolar.
38
Na visão do historiador francês Bottéro (1995) é na história que encontramos as
mudanças que a Escrita ocasionou nas relações do homem com a natureza, com as coisas e
entre si. Ela explicita o caráter cultural da Escrita, bem como a trajetória de seu
desenvolvimento como sistema simbólico. Por meio dela foi possível registrar a memória dos
povos e desenvolver o raciocínio humano. Cabe ressaltar que o homem só realizou tais
transformações pela capacidade de linguagem que possui. Daí decorre a idéia que temos
defendido de que a escrita como linguagem é o lugar da subjetividade onde se constitui e é
constituída pela cultura.
Encontramos importantes trabalhos que ressaltam a constituição cultural da Escrita
nas sociedades. Dentre eles, destacamos os seguintes autores que estudam a Escrita: Pérez e
García (2001) que a concebe como uma ferramenta cultural de aprendizagem; Olson (1997)
que a estuda como um dos sistemas simbólicos que mais interferiu nas formas do pensamento
humano e no surgimento da ciência moderna e Goody (1986) que discute seus efeitos a longo
prazo na organização das sociedades. Podemos dizer que tais perspectivas demonstram que o
domínio da Escrita em uma sociedade letrada é fundamental para a aprendizagem, uma vez
que a maioria dos conhecimentos é socializado e produzido por meio dela e que, nesse
sentido, o surgimento da Escrita provocou inclusive mudanças na organização social.
A visão da escrita enquanto ferramenta sociocultural contribui para construção de
uma perspectiva de alfabetização que não se reduz a proporcionar:
[...] o domínio de determinadas ferramentas de mediação, mas que deve desenvolver
a habilidade de ler e escrever criticamente [...] A leitura e a escrita, assim como o
restante das mediações simbólicas são ferramentas socioculturais que, além de
permitir o acesso à cultura favorecem a recriação cultural. (PÉREZ e GARCÍA,
2001, p. 50)
Embora esta visão, ao considerar a possibilidade de recriação cultural, busque uma
visão mais ampla da escrita daquela que a reduz apenas a um código a ser decifrado, não há
propriamente uma superação da idéia generalizada de ser a escrita apenas uma ferramenta
cultural.
O autor considera a Escrita uma construção cultural, superando a visão de que
escrever se reduz apenas ao domínio do código por meio de atividades mecânicas, pois para
ele escrever é uma atividade prática e intelectual que se aprende num processo dialético. Pérez
e García, dizem que escrever, na interpretação de Giroux (1990, p. 50):
39
[...] não é uma habilidade adquirida de forma inata. Não aprendemos a escrever
lendo livros que sirvam de modelos, nem copiando muitos textos; ao contrário, as
regras do código escrito são aprendidas em um processo dialético, interdisciplinar e
epistemológico, com capacidade de gerar conhecimento crítico sobre uma matéria,
de desenvolver o pensamento lógico e, em geral, de favorecer os processos de
aprendizagem.
É nesse processo de desenvolvimento do pensamento e da aprendizagem que a
criança, ao utilizar a escrita nas diversas práticas sociais, vai (re)produzindo os elementos da
cultura. Pretendo defender neste trabalho que a criança aí vai se constituindo também
subjetivamente, na medida em que produz escritos singulares imersos na cultura. Cabe
destacar que, diferentemente do que proponho fazer, Giroux não discute em suas análises a
escrita como produtora de subjetividade, ou seja, como sendo um dos sistemas simbólicos da
expressão humana que envolve além da racionalidade, a produção de sentido e significados.
Também as pesquisas de Olson (1995) sobre a Escrita, em especial sobre implicações
cognitivas e conceituais dela na mente humana, têm se constituído em uma importante linha
de trabalho. Ele aborda a Escrita e sua relação com o pensamento mostrando que ela é usada
para representar a língua. Para o autor, ela possibilita refletir sobre a língua tomando
consciência dela. Nesse sentido, defende que “[...] ler e escrever tem um papel em relação ao
pensamento”. Na sua visão, ao realizar as duas atividades, tomamos consciência do mundo e
da linguagem (p. 281).
Em outro trabalho Olson (1995) trata da relação entre o papel da imprensa e da
cultura Escrita no surgimento da ciência moderna. Conforme diz, a cultura Escrita, em geral, e
a imprensa, em particular, fixaram o registro dos dados o que tornou possível as comparações.
E conclui afirmando que: “A escrita criou um ‘texto’ fixo original e objetivo; a imprensa
colocou esse texto em milhões de mãos” (p.165). Baseado nos estudos de Stock (1983) o
autor defende que a cultura Escrita não só modificou a ciência como também a religião, na
medida em que se passou a utilizar os documentos escritos, a partir dos séc. XII e XIII, tanto
na justiça como na religião, como forma de substituir a memória e o testemunho oral.
Como vimos, Olson também aborda a Escrita sob um viés diferente daquele que
estamos delineando neste trabalho. Percebemos, de uma maneira geral, que suas pesquisas
giram em torno das implicações da Escrita no pensamento humano; na oralidade e, o estudo
dela como metalingüística, uma vez que para o autor além da metalinguagem oral ela também
faz da língua objeto de reflexão.
Goody (1986) em seu livro A Lógica da Escrita e a Organização da Sociedade
discute os efeitos da Escrita na organização da sociedade. Nesse trabalho, enfoca a influência
40
da sua presença no conceito e no papel da religião, da economia, da política e da lei. Busca
ainda compreender a relação dela com a lógica, com os procedimentos, com as instituições e
com a lei. Goody afirma que:
Ao discutir a religião e a seguir a lei, chamei a atenção para o impulso generalizador
que a escrita tende a dar a estruturas normativas, em parte por causa da
descontextuação relativa da comunicação no canal escrito, em parte por causa dos
agrupamentos sociais mais vastos dentro das quais essa comunicação se verifica.
(GOODY, 1986, p. 198)
Ele mostra que a Escrita propiciou fixar a palavra. Fixada por ela, a palavra se
diferencia do que era no princípio: o verbo. A Escrita trouxe as generalizações e as
normatizações das instituições. Pode-se dizer que a inovação do autor ao estudar a História
Humana foi colocar em suas elaborações o meio e as relações de comunicações como
categoria de análise, diferentemente, da maioria dos pesquisadores da área, que buscam
através dos meios de produção compreender a organização das sociedades.
Em suma, os autores referidos têm uma longa trajetória de estudos tomando a Escrita
como objeto; no entanto, ao investigarem a Escrita sob diferentes perspectivas – cultural,
social, cognitivo e psíquico – diferenciam-se no que pretendemos fazer. Nossa proposta é
construir uma outra abordagem da escrita, qual seja, a de analisarmos a escrita das crianças
dos anos iniciais da escolarização como enunciação. Nesse sentido, ela estaria inscrita numa
linha de pensamento em que produz cultura e subjetividade.
Por esta razão é que buscamos construir uma abordagem sobre cultura que supere a
concepção de pura transmissibilidade da língua, de crenças, de valores e de rituais. Uma idéia
de cultura que acredita na produção das novas gerações. Historicamente impera uma visão de
cultura como “núcleo fixo” passível de transmissão em que o sujeito não tem espaço para
(re)criação. Se observarmos, a escola teve – e ainda tem – o papel de transmitir a cultura,
colocando no domínio da escrita e da leitura as principais ferramentas para realizar tal tarefa.
Embora já seja consenso de que a escola, além de transmitir conhecimentos, precisa também
produzi-los, sua prática tem denunciado que permanece ainda muito presente a perspectiva de
pura transmissibilidade.
Sabemos que, atualmente, em função da informática há, além da escola, inúmeros
espaços que disponibilizam informações as quais necessitam ser transformadas em
conhecimento; quer dizer, essas informações só farão sentido na medida em que tiverem a
função de contribuir para uma melhor compreensão do mundo e das coisas que dele fazem
parte. No entanto, mesmo diante desta disponibilidade de informações, nenhum educador
41
ousa desconsiderar a importância do domínio da escrita e da leitura para a produção do
conhecimento e da cultura.
Como foi afirmado anteriormente, a escola, tradicionalmente, tem trabalhado a
escrita em múltiplos vieses e o enfoque ao ensino das normas gramaticais é o mais freqüente,
propiciando pensar que antes é preciso dominá-las para depois se autorizar a escrever. Neste
sentido nos indagamos: Que idéia de escrita fica consolidada na cultura escolar se as crianças
não podem experimentá-la no sentido de praticá-la e aprimorá-la como fazem ao aprender a
falar? E, em decorrência disso, que idéia de cultura se reforça?
Certeau (1994)
42
, em sua obra A Invenção do Cotidiano: artes de fazer, desenvolve
um capítulo, Economia Escriturística , que trata a escrita como um mito da modernidade. Em
sua visão, na cultura ocidental, esta prática tem sido muito valorizada pela economia
capitalista O autor ressalta que atualmente produzir é escrever, e que o progresso é do tipo
escriturístico (p. 224).
A opinião de Certeau reforça que, embora estejamos num momento de grande avanço
tecnológico, a escrita ainda permanece como poder de produção social. Dessa forma,
pensamos: qual tem sido o papel da escola no projeto da economia capitalista? Será que a
escrita, como espaço privilegiado da socialização e produção do conhecimento, atendeu a este
projeto? Será que deveria tê-lo perseguido? Esses são questionamentos que estarão presentes
no desenvolvimento da pesquisa.
Nesse sentido, Certeau (1994), ao defender na cultura ocidental que o progresso é do
tipo escriturístico, enfatiza que “[...] aqui, trabalhar é escrever ou aqui só se compreende
aquilo que se escreve [...]” (p.224-225). Defende, a respeito do ato de escrever, que existem
três elementos decisivos: a página em branco, a produção do texto e o jogo escriturístico. Para
ele, o sujeito diante da página em branco faz um distanciamento das diversas vozes do mundo
para fabricar o "novo", ela circunscreve um lugar de produção para o sujeito.
O ato de escrever como lugar de produção nos leva a refletir sobre a importância
deste ato enquanto forma de o sujeito escrever a partir de si, ou seja, da valorização do seu
pensamento e da relação singular que ele estabelece com o mundo, expressa na página em
42
Michel de Certeau é um pensador francês, pesquisador da história dos textos místicos desde a renascença até a
era clássica, interessa-se não só pelos métodos da Antropologia e da Lingüística, como também pela
Psicanálise. Os Livros que trazem a sua pesquisa sobre A Invenção do Cotidiano é o esboço de uma teoria das
práticas cotidianas para extrair de seus ruídos as maneiras de fazer que, majoritárias na vida social, não
aparecem muitas vezes senão a título de resistência ou de inércia em relação ao desenvolvimento da produção
sócio cultural. As astúcias dos consumidores compõem a rede de uma antidisciplina. Para Certeau os
consumidores não apresentam uma suposta passividade, mas uma criatividade oculta num emaranhamento de
astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa para si uma “maneira própria” de caminhar
pela floresta dos produtos impostos.
42
branco. Diante disso, pergunto: será que as professoras-alfabetizadoras têm criado condições
para a produção própria das crianças? Que tipo de atividade escrita se tem proposto para as
crianças em processo de alfabetização?
Ao escrever o sujeito registra a tradição do mundo e a sua produção no presente.
Escrever, para Certeau (1994), significa uma série de operações articuladas (gestuais e
mentais) – literalmente é isto escrever – que vai traçando na página as trajetórias que
desenham palavras, frases e, enfim, um sistema (p. 225). E, por fim, realiza um sistema
formalizado que vai delinear o que foi fabricado.
Ao se admitir essa linha de pensamento, a própria produção deste capítulo me coloca
num lugar distanciado das diversas vozes do mundo e de registro do que estou fabricando,
pois a página em branco é um local de passagem como se estivéssemos em uma "ilha" que
recebe e produz. A empresa escriturística carrega em si o que traz do meio e aquilo que
produz. Estas idéias explicitam que o domínio da escrita (re)cria cultura e atualiza a língua no
contexto daquele que escreve.
Assim, o escritor se encontra sempre em um lugar intermediário ou de passagem, que
produz por meio da tradição – entendida simultaneamente como a cultura estabelecida e
produzida pela contemporaneidade e a produção como marca da singularidade de cada um no
processo de fabricar o texto.
Embora tenhamos destacado acima estes importantes trabalhos, acreditamos que a
perspectiva de produção cultural defendida por Bhabha (1998) é a que mais se aproxima de
nossas idéias sobre a escrita enquanto enunciação, a qual contribuirá para uma possível
originalidade a esta tese. Assim, ele será o autor que fundamentará a concepção de cultura
trabalhada no capítulo três desta pesquisa. Os outros autores serão referenciados como estudos
que nos auxiliam delimitar, por meio da negação, o que não é propriamente o que a nossa
investigação enfocará.
A perspectiva do crítico indo-britânico Bhabha (1998)
43
se situa no trabalho sobre a
enunciação da diferença cultural, ele problematiza a divisão binária presente e passado,
tradição e modernidade. Este autor toma a enunciação como sendo o espaço contraditório e
43
Homi Bhaba é um crítico pós-colonialista. Em seu livro o Local da Cultura reflete a sua dupla inscrição
cultural tanto em sua abordagem quanto na escolha das questões discutidas em seus ensaios , que buscam
analisar o discurso colonial a partir de um complexo corpus constituído por romancistas, documentos do
governo britânico na Índia, e sobretudo, pela crítica de Fanon e Said ao colonialismo. Recorre a um repertório
teórico refinado e complexo, que abrange, entre outros, o pós-estruturalismo, a semiótica e a psicanálise. A
partir de suas considerações acerca do conceito de hibridismo, Bhabha propõe o local da cultura como o
entre-lugar deslizante, marginal e estranho, que, por resultar do confronto de dois ou mais sistemas culturais
que dialogam de modo agonístico, é capaz de desestabilizar essencialismos e de estabelecer uma mediação
entre teoria crítica e prática política.
43
ambivalente que produz sempre novos sentidos e diz que “[...] ao significar o presente, algo
vem a ser repetido, relocado e traduzido em nome da tradição, sob a aparência de um passado
que não é necessariamente signo fiel da memória histórica [...]” (p.64-65). Nessa direção, o
texto escrito, enquanto um sistema de significados culturais, jamais vai traduzir um único
sentido, pois ele é atravessado pelo lugar da enunciação que – por esta razão – será sempre
único. É neste espaço da contraditoriedade e da ambivalência que acontece o trabalho
fronteiriço da cultura, qual seja, o da possibilidade de sua produção sem ignorar a tradição,
ressignificando-a no espaço indeterminado da enunciação – denominado por Bhabha de
Terceiro Espaço, um espaço indeterminado em si e contingente, um entre-lugares.
Ao estudar a teoria da enunciação de Benveniste (1988,1989), e ao nos depararmos
com o que Bhabha defende sobre o lugar da produção cultural, parece-nos plausível acreditar
que a produção humana no presente se situaria nesse entre-lugares. Assim, podemos inferir
que o sujeito, ao incorporar a tradição da escrita, também a renova, no sentido de
(re)significá-la no presente e, nesse processo de incorporação e de (re)significação da escrita,
o sujeito se encontra na contingência do entre-lugares, que inova e interrompe o presente,
imprimindo as marcas da cultura e preservando a sua singularidade.
É diante dessas idéias acerca do ato de escrever e do lugar de produção da cultura,
que acredito que a escrita e a cultura se constituem e, ao mesmo tempo, produzem
subjetividade. E, por esta crença, a lingüística da enunciação tem uma importante contribuição
neste trabalho, na medida em que construiu uma linha teórica sobre linguagem que inclui a
produção humana e, no caso desta tese, contribuirá para analisar a relação das crianças com a
escrita – enquanto o ato de escrever - e o texto escrito, com o objetivo de construir uma
perspectiva que busca sustentar a idéia de produção humana, também na linguagem escrita. É
com esta intenção que passo a discutir a teoria lingüística da enunciação, em especial a de
Benveniste.
1.3.3 A Escrita na Enunciação
Como anunciamos, é na lingüística, particularmente, nas teorias da enunciação que
encontramos uma teoria da linguagem que considera a existência de um sujeito.
Especialmente, Benveniste (1988,1989) é um autor da enunciação que defende a idéia da
44
existência de um sujeito na língua
44
, um sujeito constituído na linguagem e, por isso mesmo, é
uma teoria que coloca em relevo a linguagem como produção. Dessa forma, as enunciações
são únicas, infinitas, inesgotáveis pela variedade virtual da atividade humana, porque o ato de
enunciação produz sentido cada vez que é enunciado, mesmo apresentando a repetibilidade da
estrutura da língua. Trata-se de outra concepção de estrutura que comporta o já-dado, mas
sem deixar de se ancorar no sempre-novo. Ao tomar por referência essa teoria da enunciação
indagamos: onde se situa a escrita, na enunciação ou no enunciado?
Na lingüística enunciativa benvenistiana, especialmente, no texto O aparelho formal
da enunciação, encontramos a defesa de que a enunciação é processo e o enunciado é o
produto. O autor enfatiza que “[...] a enunciação é este colocar em funcionamento a língua por
um ato individual de utilização [...]” (p. 82). Nesse sentido, o mais importante é a posição do
sujeito na língua, isto é, a relação que estabelece com ela para compor os enunciados: o
enunciado é o produto da enunciação e a traduz nas marcas que carrega.
E o texto escrito, é ele um enunciado? Arrisco afirmar esta dúvida. Mas e a escrita?
Qual a diferença, se é que ela existe, entre o texto escrito e a escrita? Penso que o primeiro
supõe o ato de escrever, enquanto a segunda seria todo o processo de mobilização da língua
pelo sujeito (enunciação). Disso decorre a última face de minha tese, qual seja, conceber a
escrita das crianças como um ato que se produz no entre-lugares do enunciado e da
enunciação. É esta é a idéia fundante da pesquisa. Na lingüística enunciativa de Benveniste e
nos outros autores dos campos de conhecimentos já anunciados, busco respostas à hipótese
geral deste trabalho: O ato de escrever está situado num interstício entre a enunciação e o
enunciado; o ato de escrever traduz a cultura e a produz, marcada pela singularidade
daquele que escreve.
Para Benveniste, o sujeito não pode falar sem falar de si e, talvez por isso o mais
importante, para a lingüística da enunciação, não é propriamente o dito e o seu conteúdo, o
produto, mas o fato de alguém ter dito, o processo. É isso que diz do sujeito. Este sujeito deve
ser compreendido como “[...] a capacidade do locutor para se propor como sujeito” (p. 286).
Ao escrever, o sujeito tem como condição se posicionar diante da folha em branco pela escrita
que traduz a sua subjetividade e a relação que estabelece com o mundo.
Considerando que as reflexões deste item nos levam diretamente a pensar na
dimensão metodológica da investigação e, especificamente, na questão da análise dos dados,
novas questões se apresentam: Como perceber o irrepetível no texto escrito que supõe a
44
Neste momento não trataremos de mostrar as diferenças entre língua e linguagem. Esta discussão será
realizada no capítulo IV, especificamente, no item 4.1.1 onde será tratada da presença do homem na língua.
45
estrutura da língua? Como identificar a singularidade no texto escrito? Estaria a singularidade
situada no entre-lugares da enunciação e do enunciado? Estas questões serão fundamentadas
no capítulo V o qual toma a metodologia do trabalho por foco de estudo.
Neste percurso do primeiro capítulo, delimitei os campos de conhecimentos que
sustentam o trabalho dando pistas dos caminhos teóricos e metodológicos que percorremos,
com a intenção de construir uma tese sobre a escrita que a analise sob outra perspectiva, ou
seja, uma pesquisa que demonstre a escrita enquanto ato de enunciação que supõe produção
de subjetividade e (re)criação de cultura. Neste sentido, a intenção é de construir uma
referência para debates e reflexões acerca do processo de alfabetização das crianças nas
escolas, no sentido de consolidar a idéia de que escrever é falar de si e, por esta razão
principal, o desejo de que as professoras-alfabetizadoras ao analisar os textos escritos das
crianças, atentem a esta perspectiva de escrita.
E, para a construção de tal perspectiva creio que o percurso que estamos fazendo para
construir esta investigação vai mostrando a singularidade nos recortes do objeto deste estudo
por meio das implicações dos campos teóricos e da delimitação de um contexto de coleta de
dados, os quais farão desta pesquisa original e pertinente ao campo da alfabetização.
Dando continuidade à construção deste trabalho no segundo capítulo, como
mencionamos, faremos a discussão acerca da(s) face(s) da escrita na alfabetização com o
intuito de trazer o que tem sido historicamente discutido, por meio das pesquisas educacionais
sobre a temática da escrita no contexto da alfabetização. Desta forma, situaremos os principais
enfoques dados a ela, os quais nos permitirão compreender melhor o lugar da escrita na cena
dos anos iniciais da escolarização explicitando assim suas faces neste debate. Acredito que a
partir disso, poderemos inferir com mais propriedade, qual é a concepção e o lugar da escrita
na cena da alfabetização.
46
Bruno – 1ª Série (6 anos)
Bruno escreve o seu nome...
2. A(S) FACES(S) DA ESCRITA NA ALFABETIZAÇÃO
No capítulo anterior, situei a temática desta investigação no contexto de minhas
experiências profissionais mostrando como a escrita tornou-se presente em minhas indagações
teóricas e práticas. Delineei um possível percurso teórico para analisar a escrita no contexto
dos anos iniciais da escolarização implicada na cultura e na lingüística da enunciação. Isto
para que possa construir um trabalho que analise sob outra perspectiva a escrita no processo
de alfabetização de crianças.
Nesta construção, refleti acerca da abordagem que predomina historicamente no
trabalho escolar em relação à escrita nos diferentes níveis de ensino e áreas do conhecimento,
o que possibilitou a construção de um panorama que indicou uma multiplicidade de
abordagens. Nesta heterogeneidade apareceu uma ênfase à escrita como algo da exterioridade
do sujeito.
Como o campo empírico deste estudo será nos anos iniciais da escolarização, neste
momento assume importância a alfabetização. A intenção neste capítulo é visualizar as face(s)
da escrita neste nível da escolarização de forma mais aprofundada. A questão que se faz é: -
Qual tem sido a concepção de escrita mais enfatizada nas práticas discursivas sobre a
alfabetização na escola? Acredito que refletir acerca do que tem sido historicamente relevante
nas discussões e nas produções em nosso país sobre o ensinar a ler e a escrever se torna
relevante, uma vez que irei explicitar as concepções de escrita que têm sustentado a cultura
escolar brasileira, mais especificamente no processo de alfabetização nos anos iniciais da
escolarização.
Pela história do ensino da escrita existe a defesa de que “na origem da verdadeira
escrita, encontra-se, uma invenção notável: o fonetismo” (JEAN, 2002, p. 16). A partir disso,
48
os primeiros procedimentos de ensino foram pensados
23
e, vinculada a esta história, o
surgimento das cartilhas marcam a prática do ensinar a ler e a escrever
24
no ocidente. Esta
história foi atribuindo sentidos à alfabetização ao longo do tempo.
Porém, antes de passar à recuperação dessa trajetória, cabem algumas justificações
que, por ora, introduzidas em forma de perguntas, conduzirão parte do que será apresentado: -
Qual a importância de retomar aqui a histórica discussão sobre as cartilhas? Que relação os
métodos de alfabetização mantêm com elas? Qual a validade que têm para pensar a escrita
como produtora de singularidade?
Ora, a história de um fenômeno e/ou de um fato social nos mostra os seus
movimentos e suas abordagens. Nesse sentido, não tomaremos a história como bloco fechado
de um tempo, mas como um movimento que está hoje nas questões do presente. Como diz
Benjamin (1994) “(...) a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo
homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’[grifo do autor]” (p. 229). É com este
sentido da história que buscamos na tradição dos métodos de alfabetização as “agoridades”
das salas de aula, focalizando a concepção de escrita que vem sendo produzida. O tempo para
Benjamin precisa ser compreendido em seu entrecruzamento, do passado, presente e futuro –
quer dizer, que o presente não é um resultado limitado do passado, mas pode sempre ser
surpreendido pela capacidade que o ser humano tem de interferir nas instituições sociais e no
movimento da história. O filósofo alemão diz ainda que:
23
Sobre os primeiros procedimentos de ensino da escrita e da leitura Jean (2002) diz que “na origem da
verdadeira escrita, encontra-se, uma invenção notável: o fonetismo. E a astúcia admirável dos sumerianos,
como também dos antigos egípcios, consistiu em utilizar um procedimento tão simples quanto o jogo um jogo
infantil: o rébus – cartas enigmáticas. Eles tiveram a idéia de usar um pictograma, designando não o objeto
por ele diretamente representado, mas um outro objeto cujo nome lhe era foneticamente semelhante. Como
em nossos bus onde um desenho de um gato (chat) e um desenho de um pote (pot) nada têm a ver com um e
com um recipiente, mas com o conceito (chat-pot), que vale por ‘chapeau’ (chapéu) [grifos do autor]. [...]o
fonetismo desenvolvendo-se por longos períodos, teve uma estrutura muito complexa, a ponto de os escribas
terem de usar símbolos ‘classificadores’ que permitissem saber se o signo evocava um objeto ou um som, e
assim tornar mais fáceis a escrita e a leitura.” (p. 16-17)
24
“Na Idade Média, nos Monastérios, instala-se, por longo tempo, a prática de uma escrita sagrada, intelectual
[...]. Raros são os leigos que dominam a escrita. Por conseguinte, nem Carlos Magno, que foi sem dúvida o
homem mais poderoso da Europa Ocidental nessa época, sabe escrever [...] os monges copistas da Idade
Média européia não criam nem são homens de poder: escrevem, mas não têm poder de criação [...]” (JEAN, p
73-74). Percebe-se que o acesso a escrita ficou restrita por muitos séculos sob o poder da Igreja, onde havia os
escribas e os copistas.
No entanto, pelos estudos históricos de Manacorda (1989) a escola do alfabeto aparece na Grécia antes da
nossa era, ele afirma: “Podemos então dizer que no início do século V a.C. antes da vitória dos atenienses
sobre os persas em Maratona, já existia uma escola de letras (grámmata) ou de bê-á-bá, que é progenitora
direta da nossa escola.” (p. 50). Mas, sabe-se que oficialmente, foi em meados do séc. XIX na França, que se
inicia um processo de educação das massas com o aparecimento da educação pública. Sabe-se, também que
ainda hoje, nem toda a população tem esse acesso garantido de fato ao domínio da leitura e da escrita.
49
[...] a verdadeira imagem do passado perpassa veloz. O passado só se deixa fixar,
como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido
[...] Articular historicamente o passado o significa conhecê-lo ‘como ele de fato
foi’ [grifo do autor]. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo. (BENJAMIN, 1994, p. 224)
Analisar os métodos de alfabetização que fazem parte da nossa tradição é uma forma
de fixar, mais uma vez, em idéias que ainda “relampejam” no cotidiano das salas de
alfabetização e que têm contribuído na produção do fracasso de muitas crianças em nosso
país.
Neste sentido o passado só produz, na leitura benjaminiana de Jobim e Souza (1994)
“[...] quando o vivido elucida, de algum modo, o que ocorreu antes e o que aconteceu depois,
é que ele pode se tornar ilimitado”(p. 155). É nesta perspectiva que tomamos a história, ou
seja, analisaremos o histórico debate sobre o ensino da escrita e da leitura para que as
experiências vividas possibilitem esclarecer acerca das concepções de escrita. Em outras
palavras, explicar quais práticas discursivas de alfabetização das crianças predominam no
Brasil de hoje para que possamos produzir outros conhecimentos. Será num movimento
entrelaçado de conhecimentos produzidos, como um “tecido” constituído pela tradição e pela
produção, que estabeleceremos nesta pesquisa, outra perspectiva sobre a escrita. E, porque
não dizer, de uma produção situada num entre-lugares entre a tradição e um vir-a-ser.
Como anunciamos, do ponto de vista histórico as discussões em relação ao ensinar a
ler e a escrever giram, inicialmente, em torno dos métodos de alfabetização – métodos
sintéticos, analíticos e mistos ou ecléticos (SOARES, 1985; MORTATTI, 2000). A defesa de
determinados procedimentos de ensino, de acordo com cada método, demonstra a crença em
idéias sobre a leitura, a escrita, a aprendizagem e o que é o conhecimento. Por decorrência,
cada método preconiza um papel que a professora-alfabetizadora deve desempenhar em sala
de aula.
Esta busca pelos “melhores” métodos perdurou por muitas décadas no campo da
alfabetização. Atualmente, discussões nesta direção ainda se apresentam, juntamente com o
estudo e a análise de outras contribuições para a alfabetização. Dentre elas destacamos
aquelas que enfocam o desenvolvimento e a aprendizagem humana, o contexto sócio-cultural
da comunidade, a capacidade lingüística das crianças e, também, a discussão mais ampla a
respeito do sentido da alfabetização em uma sociedade tecnológica como a nossa.
Podemos dizer que é a partir da década de 1980, com a publicação das pesquisas de
Emília Ferreiro e Ana Teberosky, que se inicia um deslocamento nas reflexões sobre a
50
alfabetização, uma vez que as pesquisadoras colocaram a criança que aprende como foco da
investigação e tomaram por análise suas construções sobre a escrita para compreender os
sistemas de escrita no desenvolvimento da criança. Estas pesquisas “balançaram” muito as
práticas de alfabetização e, ainda hoje, questionam a utilização dos tradicionais métodos.
Ao debater sobre os pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa realizada pelas
educadoras argentinas, ou seja, quais são seus princípios e suas concepções sobre as diversas
temáticas que estão implicadas no processo de alfabetização, constata-se, por vezes, leituras
equivocadas e ingênuas a respeito, o que têm causado polêmicas nas reflexões e também
dificuldades às crianças em processo de alfabetização.
Neste contexto do debate a respeito da psicogênese da escrita como um referencial
importante para se construir uma proposta para a alfabetização, a qual toma por base teórica o
interacionismo piagetiano, temos também as polêmicas discussões com os educadores
partidários da perspectiva sócio-interacionista elaborada pelo psicólogo russo Vygotsky e sua
equipe (Leontiev e Luria). Estes anunciam, quando se discute sobre alfabetização, que Luria
já teria feito pesquisas que mostram a pré-história da escrita infantil, como de fato fez. Não
podemos desconsiderar a pertinência do estudo para a época em que foi realizado – no ano de
1929. No entanto, temos que observar que foram experimentos diferentes da pesquisa
realizada por Ferreiro tanto teórico quanto metodologicamente, mesmo assim, encontramos
alguns pontos convergentes entre os dois estudos, os quais discutiremos neste capítulo.
Aqui no Brasil temos muitos estudos que tomam o pensamento vygotskyano por
referência. Estes explicitam a pertinência das idéias do autor, bem como demonstram a
repercussão delas na disciplina de psicologia do desenvolvimento e na educação
25
. No caso
deste trabalho, faremos uma breve contextualização sobre as diretrizes gerais desta
perspectiva teórica no que diz respeito ao desenvolvimento e a aprendizagem e enfatizaremos,
prioritariamente, a visão de escrita trabalhada por Luria.
25
Dentre os vários pesquisadores que se filiam a esta vertente teórica, identificada também por linha sócio-
histórica, destacamos neste trabalho as pesquisadoras: Oliveira (1997), Smolka e Góes (1993), Molon (1999)
e Rego (2003). Essas pesquisadoras, embora tratem de conceitos diferentes da obra de Vygotsky e sua equipe,
todas mostram a pertinência desta teoria no que diz respeito ao papel da cultura no desenvolvimento da mente
humana e na aprendizagem por meio das diversas formas em que as mediações simbólicas se apresentam.
Molon (1999) aborda a constituição dos
objetos psicológicos quando apanhados na sua natureza social, uma
vez que os fenômenos psicológicos são relações sociais convertidas no sujeito pela mediação semiótica
(p.142). Ainda sobre constituição subjetiva Rego (2003) mostra a interferência da escolarização na
constituição da singularidade e nas complexas relações existentes entre o indivíduo, a educação e a cultura.
51
Para finalizar este segundo capítulo, traremos a discussão sobre o letramento
26
como
prática social da escrita, que surge no Brasil no início da década de 1990, a qual implica
também a temática de alfabetização. Este tema vem se constituindo em reflexões que
examinam o desenvolvimento social dos usos da escrita, bem como a relação do sujeito com a
escrita na sociedade e as transformações desta em uma sociedade científica e tecnológica.
Neste debate encontramos reflexões que enfocam, por exemplo, quais conhecimentos são
necessários para que o sujeito seja considerado letrado; quais as práticas e níveis de
letramento que as crianças experienciam antes de chegar à escola; qual a relação da oralidade
na construção da escrita, etc. Todas estas problemáticas têm como preocupação compreender
o impacto social da Escrita na vida das pessoas (KLEIMAN, 1995).
Tomando estes enfoques sobre a alfabetização, organizamos o capítulo em cinco
momentos decorrentes de critérios distintos. Em outras palavras, os recortes foram feitos a
partir dos assuntos que mais aparecem nas atuais discussões da alfabetização e, por esta razão,
às vezes dizem de um tema, outras vezes dizem de perspectivas teóricas e, ainda, dizem de
campos de investigação. Fazer estes recortes diferenciados foi a forma encontrada para
mostrar realmente o percurso do debate sobre a escrita na alfabetização. Assim, tem-se:
a) A partir de um prisma temático optou-se, primeiramente, por um recorte que
visualize os métodos de análise. Tais métodos são abordados tendo em vista a
perspectiva histórica de Walter Benjamin. Considera-se que o assunto “métodos
de alfabetização” teve – e talvez ainda tenha – grande influência na constituição
do horizonte teórico-metodológico das professoras envolvidas com o processo de
alfabetização. Assim, busca-se uma espécie de “história das idéias” que subjazem
à ancoragem “metódica” da alfabetização;
26
Existem vários autores brasileiros que atualmente pesquisam sobre o fenômeno do letramento. Destacamos
Tfouni (2002) “Enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de
indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma
sociedade.”(p. 20)
52
b) desde um ponto de vista teórico, foram escolhidas para estudo as perspectivas
que, notoriamente, tiveram mais repercussão no cenário escolar brasileiro, são
elas: a psicogênese da escrita, a visão sócio-interacionista, e o letramento. Juntas,
essas perspectivas – que são objeto de análise nos três momentos subseqüentes –
conduziram um programa de reconfiguração do trabalho com a linguagem na
escola brasileira
27
;
c) e, finalmente, construímos uma discussão acerca das implicações destas
diferentes abordagens teórico-metodológicas da alfabetização para a nossa
investigação, ou seja, aonde se situa o nosso estudo nas faces da escrita nos anos
inicias da escolarização.
Afirmamos no primeiro capítulo que o objetivo deste trabalho é analisar a escrita
como algo que diz da singularidade daquele que escreve e, por esta razão, a sustentaremos
como algo que também produz cultura e subjetividade. Este é o destaque principal da nossa
perspectiva de escrita para a alfabetização.
Embora as discussões mencionadas estejam entrelaçadas no debate da alfabetização,
esta foi uma forma de construir um panorama sobre a visão de escrita que tem pautado o
27
Sabemos pela história educacional brasileira que é a partir da democratização política do país, em meados dos
anos 80, que aparecem, oficialmente, nos cursos de formação de professores as idéias teóricas de Piaget e
Vygotsky, as quais têm por base filosófica uma visão de mundo que defende a democracia e,
conseqüentemente, a participação e a valorização do sujeito na sociedade. Por decorrência desta situação
política nacional é que muitos teóricos, até então censurados no debate educacional, começam a ser
divulgados. Entre os diversos autores, estes dois teóricos se destacam no debate sobre a formação de
professores, especificamente, quando as questões referem-se à aprendizagem. Também, aparecem na
discussão do campo da alfabetização iniciando assim certo distanciamento na busca por um “melhor método
para alfabetizar”. Eles aparecem naquele momento histórico e, balizam, ainda hoje, as discussões em torno da
aprendizagem e do desenvolvimento humano nos cursos de formação de professores.
Considero importante destacar que o debate em torno dos cursos de formação de professores e a defesa de
uma base comum nacional para os cursos de licenciatura e para a Pedagogia acontecem em nosso país,
também no período da democratização política, ou seja, no início da década de 1980 no contexto da
organização das diversas entidades dos profissionais da educação, dentre elas, a ANPED (Associação
Nacional de Pós Graduação em Educação), a ANDE (Associação Nacional de Educação) e CEDES (Centro
de Estudos Educação e Sociedade). Em 1980 aconteceu em São Paulo, a I Conferência Brasileira de Educação
(CBE) onde se instalou o Comitê Nacional Pró Formação do Educador que se transforma, em 1983,
Movimento de Reformulação dos Cursos de Preparação de Recursos Humanos para a Educação e, também,
criada a Comissão Nacional dos Cursos de Formação do Educador que passaram a discutir os cursos de
formação de educadores em três eixos: Base comum nacional, especificidades das licenciaturas na formação
do educador e formas de integração entre as licenciaturas (ZASSO, apud MARQUES, 1998). Esta ressalva
vem no sentido de situar que as mudanças no debate da alfabetização estão situadas em uma conjuntura
nacional em que os profissionais da educação iniciam e fortalecem o debate sobre a especificidade da
profissão docente e a defesa de uma formação teórico-metodológica que a contemple.
53
debate entre os profissionais que se dedicam a esta temática
28
. Assim, passamos a tratar dos
métodos de alfabetização e suas implicações na concepção de escrita expressa na cultura
escolar.
2.1 A ESCRITA NA TRADIÇÃO DOS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO: EM
BUSCA DE CAMINHOS
Tomando o sentido benjaminiano de história, vamos buscar na tradição dos métodos
de ensinar a ler e a escrever as idéias que ainda “relampejam” nas salas de aulas dos anos
iniciais da escolarização – isto para que possamos compreender as concepções de escrita
presentes, ainda hoje, nas práticas discursivas da alfabetização.
Há longo tempo no Brasil que a temática mais controvertida e debatida ao se tratar do
processo de alfabetização foi, e é ainda hoje, aquela que se refere aos métodos de
alfabetização, os quais envolvem as metodologias do ensino da leitura e da escrita. Na
verdade a ênfase gira em torno de quais são os melhores procedimentos de ensino que a
professora precisa adotar para ensinar a ler e a escrever.
Assim, o propósito neste item é mostrar que em cada método de alfabetização tem
uma idéia sobre o que seja a escrita, a qual perpassa as ações educativas. Isso vai possibilitar
elucidar os conceitos que os tradicionais métodos de alfabetização defendem e, ao mesmo
tempo, delinear a construção de outra perspectiva sobre ela.
A pesquisadora brasileira Soares (2004) que tem por foco de seus estudos já há pelo
menos duas décadas a temática da alfabetização
29
, em seu livro Alfabetização e Letramento
faz a releitura de vários artigos seus publicados na última década. Dentre eles, um em
específico enfoca a questão da alfabetização e o questionamento sobre a busca de um método,
todos originários dos métodos sintéticos e analíticos (alfabético, fônico, silábico, palavração,
global, misto, natural...). A autora mostra, através de algumas tabelas, o tema método na
28
Outros estudos encontram-se em Cook-Gumperz (1991) que enfoca a construção social da alfabetização onde
discute o papel das instituições educacionais e a busca pelo acesso a escolarização de forma igualitária,
mostrando por meio de vários trabalhos, que a alfabetização é um fenômeno social e que a escola continua
sendo em poderosa força na transmissibilidade seletiva de conhecimentos. Outro importante trabalho é de
Graff (1994) que em seu livro Os Labirintos da Alfabetização - reflexões sobre o passado e o presente da
alfabetização discute a pesquisa em alfabetização na América do Norte e na Europa, trazendo questões sobre
a relação entre a alfabetização e o avanço sócio-econômico da classe trabalhadora, a criminalidade e o
desenvolvimento escolarizado da leitura e da escrita.
29
Segundo a autora, os dados apresentados são provenientes de pesquisas que m sendo desenvolvidas, desde
os anos de 1980, no Centro de Alfabetização. Leitura e Escrita – CEALE, da Faculdade de Educação da
UFMG.- Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte.
54
produção sobre a alfabetização no Brasil de 1950-1986. Ela destaca “[...] a predominância do
tema método sobre qualquer faceta do processo de aquisição da língua escrita, nos anos 50 e
60 [...]” (p. 86). Este dado demonstra a intensa crença na idéia de que um método poderia
mostrar os melhores procedimentos para um processo de alfabetização eficaz e eficiente, no
sentido de todas as crianças serem alfabetizadas no primeiro ano escolar.
A pesquisa de Soares (2004) também revela uma decrescente queda nas produções
sobre o tema método a partir da década de 1970. Ela demonstra que “nos anos 70 e,
sobretudo, nos anos 80, essa produção decresce acentuadamente: Na década de 70, não mais
que 14% da produção acadêmica e científica sobre a alfabetização voltou-se para a questão do
método, e apenas 4% na primeira metade dos anos 80”. (SOARES, 2004, p. 86)
Esta situação demonstra que houve um redirecionamento nas pesquisas em torno da
alfabetização o qual é atribuído a chegada das pesquisas de Emília Ferreiro e Ana Teberosky,
mencionadas anteriormente, pois há uma mudança conceitual em torno da questão do
processo de alfabetizar. Se até a década de 1980 foi a busca por um melhor método de
alfabetização, a partir de então se colocou um forte questionamento a respeito desta aspiração.
Neste sentido, outro dado que Soares (2004) traz é a influência do referencial teórico
da psicologia na produção sobre a alfabetização. Isso nos auxilia a visualizar melhor o
deslocamento das discussões. Ela destaca a forte influência, nos anos cinqüenta e sessenta, da
tendência do associacionismo e, na década de setenta, da perspectiva skinneriana, que perdura
até os primeiros seis anos dos anos de 1980. Neste início da década, para a autora, houve uma
radical mudança de paradigma, em razão da tendência psicogenética. Ela diz:
É essa influência que representa aquilo que denominei uma radical mudança de
paradigma, nos últimos anos, nos estudos e pesquisas sobre alfabetização e,
conseqüentemente, também na prática da alfabetização. Essa mudança se reflete
com clareza na questão do método de alfabetização. (SOARES, 2004, p. 88)
Como disse, percebe-se um deslocamento nas discussões em razão da importância
colocada pelas pesquisadoras argentinas, de se refletir a partir do ponto de vista daquele que
aprende. Elas indicaram, sobretudo, a necessidade de se explicitar o paradigma de
conhecimento e de aprendizagem que sustentam as práticas de alfabetização e, por sua vez, da
base teórico-filosófica dos métodos sintéticos e analíticos. Penso que toda essa reflexão está
situada num momento de transição de paradigmas da educação, vivido em nível mundial,
principalmente a partir da década de 1980.
Acredito que outra razão do deslocamento das discussões sobre a alfabetização se
55
deve também a um contexto de final de século, quando a maioria dos estudiosos da educação
do planeta questiona o paradigma que tem sustentado as instituições educacionais e a
formação de professores
30
. As questões que se colocam giram em torno de inúmeros temas
importantes que envolvem o processo educacional, dentre eles destacamos os estudos sobre
currículo enquanto construção social, que gerou, em última instância, o debate das finalidades
da instituição escolar. Esta discussão questiona os históricos campos de conhecimentos que a
tradição ocidental adotou, suas fronteiras e isolamentos. Penso que é neste contexto que se
situa também o redirecionamento das produções da temática da alfabetização, as quais
problematizam acerca das práticas alfabetizadora na história da educação brasileira.
Soares (2004) também demonstra que as produções acadêmicas sobre a temática –
proposta didática – aparecem de forma notável a partir de oitenta. Os dados revelam que surge
este tema em decorrência da guinada conceitual mencionada:
[...] o tema Proposta didática, quase ausente nos anos 50, 60 e 70 – período em que
não se cogitava de alternativas metodológicas, na área de alfabetização, além dos
métodos analíticos e sintéticos – tem presença marcante nos anos 80, um quinto da
produção total sobre a alfabetização, nesses anos: a já discutida mudança radical de
paradigma conceitual ocorrida, nos últimos anos, na área de alfabetização, rejeitando
a dicotomia análise/síntese como explicativa do processo de aprendizagem da língua
escrita, rejeita também, coerentemente, os métodos de alfabetização fundamentados
nessa dicotomia. Mas busca outros paradigmas metodológicos [...]. (SOARES,
2004, p. 992)
30
Podemos afirmar que desde a criação da escola pública, em meados do séc. XIX, se tomou por modelo de
conhecimento o mesmo do racionalismo científico para estruturar o seu funcionamento e a própria arquitetura
das instituições de ensino. Neste sentido, a disciplinarização como modelo das áreas fragmentou o
conhecimento e deu origem ao afastamento da realidade tornando o homem, cada vez mais, especialista
dificultando uma visão global e criativa da realidade. No entanto, desde a metade do século XX muitos
estudiosos questionam este paradigma tradicional adotado na educação e buscam uma compreensão de mundo
que conceba o conhecimento numa perspectiva de maior totalidade. Estas perspectivas são denominadas de
diversas formas tais como: multidisciplinar, interdisciplinar, transdisciplinar, holística, de complexidade, de
rede. Dentre eles destacamos um dos trabalhos do filósofo francês MORIN (2000) que no livro A Inteligência
da Complexidade, discute a necessidade um novo modelo de pensamento questionando seus tradicionais
paradigmas, os quais não conseguem das respostas adequadas às questões e aos problemas do homem e do
mundo contemporâneo. Segundo ele existe uma inadequação cada vez maior, profunda e grave entre os
conhecimentos disjuntos, partidos, compartimentados entre as disciplinas e, de outra parte, realidades ou
problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais e globais (p.136).
Neste sentido, para buscar soluções a este momento histórico o autor propõe a necessidade de um pensamento
complexo que implica “[...] não de procurar leis ou um novo sistema, mas um método que ao mesmo tempo
em que é integrado pelo espírito, permitia o desenvolvimento de um pensamento complexo” (p. 137).
No que se refere à formação de professores, MARQUES (2000) diz que neste momento de transição
paradigmática, trata-se de reconstruir o entendimento do coletivo dos educadores sobre o que é para eles a
educação. Ele defende que: “Em se tratando da reconstrução, em novas bases prático-teóricas, dos cursos de
formação de educadores, torna-se necessário, antes ainda, aprofundar o entendimento comum sobre o que seja
a dimensão profissional no mundo de hoje, sobre o que devemos entender por formação profissional em sua
relevância fundante e sobre que linhas temático-conceituais devem embasar-se a formação do profissional da
educação em sua qualidade de coletivo dos educadores” (MARQUES, 2000, p. 39).
56
Outro trabalho de referência no Brasil a respeito dos sentidos da alfabetização em um
longo período da nossa história (1876-1994) realizado no estado de São Paulo é o de Maria do
Rosário Longo Mortatti (2000). Embora o foco de sua pesquisa seja São Paulo, acredito que
os movimentos sobre o ensino da leitura e da escrita possam ser estendidos a todo o país, uma
vez que as orientações, por meio das cartilhas, eram em nível nacional.
Neste minucioso e aprofundado trabalho histórico realizado, principalmente através
da análise de fontes documentais, ela expressa que estudar o período histórico delimitado
demonstrou continuidades e descontinuidades, semelhanças e diferenças, resultando em uma
tensão constante entre a velha e a nova tradição. Ela diz “embora nova, é também tradição,
que permanece como substrato, sobre o qual e a partir do qual se produzem sentidos novos e
uma nova tradição, ao mesmo tempo em que se garante a história e a continuidade da história
[...]”. (MORTATTI, 2000, p. 24)
Assim, tomando também a história como movimento permeado por continuidades e
rupturas, Mortatti registra quatro momentos considerados cruciais no movimento histórico em
torno da questão dos métodos de alfabetização, que passamos a discuti-los.
O primeiro momento que a autora estuda é a divulgação do “Método João de Deus”
para o ensino da leitura, pelo professor positivista Antonio da Silva Jardim (1860-1891)
contido na Cartilha
31
maternal ou arte da leitura a qual aparece como forma de superar os
métodos sintéticos (alfabético, silábico e fonético) já presente no Brasil desde o período
colonial (séc. XVI). Este método apresentava uma inovação nos procedimentos de ensino, em
relação aos métodos que estavam sendo referência na época – os sintéticos – os quais
utilizavam a soletração e a silabação para ensinar a ler; este defendia a palavração como a
melhor forma de ensinar a leitura. Assim, a partir do início da década de 1880, “[...] Silva
Jardim passa a reproduzir as primeiras tematizações brasileiras a respeito do ensino da leitura
e da língua materna, propondo reformas no ensino tradicional praticada até sua época”.
(MORTATT ib.id).
31
Segundo Cagliari (1998), a cartilha da língua portuguesa mais antiga é a de João de Barros (1496-1571). Ele
“[...] escreveu a gramática portuguesa mais antiga, publicada em 1540. Junto com a gramática, publicou a
Cartinha, que é outro diminutivo de ‘carta’, ao lado da ‘cartilha’. O nome ‘cartinha’ ou ‘cartilha’ tem a ver
com ‘carta’, no sentido de esquema, mapa de orientação. A cartinha de João de Barros trazia o alfabeto (em
letras góticas, que eram as da imprensa da época); depois, vinham as ‘taboas’ ou ‘tabelas’, com todas as
combinações de letras, que eram usadas para escrever todas as sílabas da língua portuguesa. Em seguida,
havia uma lista de palavras, cada uma começando com uma letra diferente do alfabeto e ilustrada com
desenhos. Por último, vinham os mandamentos de Deus e da Igreja e algumas orações. João de Barros inclui
também um gráfico que permitia fazer todas as combinações de letras das ‘taboas’” (todos os grifos são do
autor) (p. 22)
57
Percebe-se pelas orientações dos métodos sintéticos a idéia de que a Escrita se reduz
a uma tecnologia que precisa ser decifrada a partir de suas partes – letras e sílabas – por meio
de atividades de repetição que levem a criança à memorização. Será que a Escrita se restringe
apenas a uma tecnologia externa? A memorização das formas (símbolos = letras) produz que
tipo de leitor e escritor?
Ao analisarmos os procedimentos de ensino dos métodos analíticos, percebemos que
eles foram um avanço em relação aos primeiros, uma vez que tomam a palavra, a sentença ou
a “historieta” enquanto ponto de partida para o ensino, o que pode possibilitar refletir sobre as
idéias que os signos lingüísticos representam, mas essa reflexão somente acontecerá se os
procedimentos de ensino da professora-alfabetizadora favorecer tal discussão, ou seja, para
que as crianças percebam as idéias contidas nas palavras, sentenças ou historietas se faz
necessário criar situações em sala de aula por meio de atividades e de discussões.
Na visão desta autora, um segundo momento (1890-1920), seria a disputa entre os
métodos considerados modernos – sintéticos – e, os mais modernos – analíticos que, na época,
eram considerados revolucionários. Este debate movimentou a produção das cartilhas e a
conquista dos alfabetizadores para a utilização desses métodos nas práticas de alfabetização.
Se nos voltarmos ao atual cotidiano da alfabetização, facilmente encontraremos, nos
procedimentos de ensino das professoras-alfabetizadoras, as orientações ora dos métodos
sintéticos, ora dos analíticos, comumente chamados de métodos mistos, pois eles ainda
balizam as discussões contemporâneas em torno da alfabetização, no sentido da defesa de
alguns de seus procedimentos de ensino, encontrados facilmente em cartilhas de
alfabetização.
Penso que esta tensão entre a tradição e o moderno é resultante de toda produção
histórica e será permanente, quer dizer, o sentido da história que Benjamin defende é
justamente de ela ser “como imagem que relampeja” na atualidade. Assim, a produção sempre
traz a tradição como substrato, mas pautada em novos sentidos, o que marca a continuidade da
história. Ao pensar o ato de escrever, tomando a visão benjaminiana de história, parece
plausível concebê-lo como ato de enunciação, uma vez, que sempre produz a tradição e a
singularidade daquele que escreve.
Retornamos ao movimento histórico dos métodos de alfabetização. A partir de
meados da década de 1920, todo o debate do terceiro momento da história dos métodos de
alfabetização estudado por Mortatti (2000) inicialmente, gira em torno da defesa dos métodos
mistos (analítico-sintéticos e sintéticos-analíticos) e os defensores do tradicional método
58
analítico. Em seguida, a tendência crescente foi na relativização da importância do método em
decorrência das novas e revolucionárias bases psicológicas contidas nos Testes ABC (1934),
de Lourenço Filho (p. 26).
Esta perspectiva psicológica marca profundamente o debate sobre a alfabetização, na
medida em que se defendia a idéia de um nível de maturidade psicológica para a
aprendizagem da leitura e da escrita, disseminando a defesa da importância do período
preparatório para a alfabetização como forma de classificar as crianças. É assim que inicia,
segundo a autora, a alfabetização sob medida. A idéia de preparação ainda hoje é presente,
principalmente, no debate sobre o papel e a função da Educação Infantil. Este debate
atualmente ficou, ainda mais, intensificado, pelo aumento de oito para nove anos do Ensino
Fundamental. Isso demonstra que persiste a defesa, por parte de alguns profissionais, desta
idéia da preparação psicomotora e psicológica, formal e sistematicamente, para a
alfabetização.
Na visão de Mortatti (2000), o quarto momento acontece no final da década de 1970,
entre os que acreditam na revolução conceitual proposta por Emília Ferreiro e Ana
Tebrosky
32
, referida como construtivismo e aqueles que mesmo de forma velada, mas
atuantes persistem na defesa “[...] dos tradicionais métodos (sobretudo o misto), das
tradicionais cartilhas e do tradicional diagnóstico do nível de maturidade com fins de
classificação dos alfabetizandos” (p. 27).
No momento atual se colocam novas disputas, agora entre os que defendem o
construtivismo com base piagetiana e aqueles que tomam o interacionismo baseado em L.S.
Vygotsky. Neste contexto de debate sobre a alfabetização também surge a busca pela
consolidação da alfabetização enquanto campo de conhecimento, interdisciplinar por
excelência (p. 27). Cabe destacar também a crescente discussão sobre o letramento como
prática social, a qual tem aparecido descolada das discussões sobre a alfabetização.
Não me parece interessante o distanciamento que percebo entre estes diferentes
enfoques de pesquisa sobre a alfabetização, pois todos têm a aprendizagem da leitura e da
escrita como objeto de estudo, senão como foco, envolvida com o ato de alfabetizar. Neste
contexto, temos os partidários da psicogênese da escrita com base em Piaget – e temos, ainda,
os filiados ao interacionismo de Vygotsky e, finalmente, os que discutem o letramento. Será
neste caminho fragmentário e disputado que produziremos conhecimentos para combater os
altos índices de analfabetismo em nosso país, bem como o alto índice de reprovação nos anos
32
A discussão sobre a psicogênese da escrita será o tema do próximo item deste capítulo.
59
iniciais da escolarização? Por que também as produções acadêmicas apresentam a ideologia
capitalista tendendo a competitividade e a segregações teórico-metodológicas? Não serão
estas competitividades que dificultam consolidar uma base teórica que sustente o processo de
alfabetização? Será que ao construir esta pesquisa estarei reforçando esta mesma lógica? Ou
paradoxalmente: é necessário fragmentar para poder aprofundar a complexidade da
alfabetização por meio de determinados focos de análise? Estas são algumas inquietações que
acompanham a pesquisa.
Vi até o momento que a questão dos métodos sempre pautou as discussões sobre o
processo de alfabetização e, neste percurso histórico, a escrita aparece geralmente em
decorrência da leitura como se situasse num lugar secundário. De uma maneira geral, pode-se
afirmar que a concepção de escrita predominante nessa história é de ela ser algo somente da
exterioridade, ou seja, reduzida a um código a ser decifrado e transcrito e, por isso, a busca
incessante por métodos de ensino cada vez mais eficientes e eficazes.
Como vimos, somente no final dos anos de 1970 que se iniciaram discussões teóricas
acerca do ensino da linguagem escrita pautado na psicolingüística contemporânea e na teoria
genética de Piaget, as quais propiciaram uma guinada nas reflexões em torno da
aprendizagem da leitura e da escrita. Assim, inicia-se um debate onde aprender a ler e a
escrever supõe um domínio que vai muito além da dimensão percepto-motora, pois exige uma
construção conceitual daquele que aprende. Nesta direção, encontramos Ferreiro e Teberosky
como pesquisadoras ícones desta guinada, a qual passamos a tratar logo abaixo.
Diante desta importante guinada teórico-metodológica, a qual não defende um
“novo” método de alfabetização, mas enfatiza os aspectos cognitivos da aprendizagem da
leitura e da escrita, queremos ratificar que também não é a nossa intenção buscar métodos.
Neste percurso, estamos buscando a construção de outra forma de analisar a escrita das
crianças, a qual atente para a produção de cultura e de subjetividade, ou seja, compreender
que a criança ao escrever diz de si também. Neste sentido, este trabalho tem a pretensão de
construir uma perspectiva de escrita para o processo de alfabetização das crianças que mostre
que ela revela a singularidade daquele que escreve.
60
2.2 A ESCRITA NA PSICOGÊNESE DA ESCRITA: EM BUSCA DE TEORIAS
Como mencionamos, as pesquisas sobre os níveis de conceitualização da escrita
realizada por Emília Ferreiro e Ana Teberosky marcaram o início de um debate diferenciado
em torno do processo de alfabetização. Foi no início da década de 1980 que se tiveram outros
elementos teóricos para contrapor a defesa da postura da busca pelo “melhor” método para
alfabetizar. Essas reflexões teóricas colocaram em questão, mais uma vez, a pertinência da
utilização dos métodos tradicionais de alfabetização para ensinar a ler e a escrever.
Considerando este contexto de debate iniciado há duas décadas, nos indagamos: - Em
que a psicogênese da língua escrita contribuiu para superar a visão de que aprender a ler e a
escrever não se reduz à aprendizagem de técnicas e para desmistificar a existência de um
“melhor” método para alfabetizar? Como é concebida a escrita na teoria psicogenética? É com
o intuito de responder a estas questões que tomamos por foco de estudo, principalmente, o
livro A Psicogênese da Língua Escrita (1999).
Este livro apresenta a pesquisa experimental realizada pelas educadoras durante dois
anos com crianças entre quatro e seis anos de idade. O objetivo das pesquisadoras foi o de
analisar o processo, ou melhor, o caminho que as crianças percorrem para compreender as
características, o valor e a função da escrita, desde que esta se constitui objeto de sua atenção
e, portanto de seu conhecimento (p. 17). Toda a pesquisa realizada tomou por foco de análise
o ponto de vista das crianças, ou seja, daquele que aprende. Pode-se perceber, desde já, a
mudança de perspectiva de análise, pois se por muito tempo se investigou sob o ponto de vista
de como ensinar, priorizando então a ação docente, essas autoras inauguram um outro foco de
análise, qual seja, o de como a criança aprende, coletando dados sob a ótica das crianças.
Assim, ao invés de estudar o melhor caminho para ensinar buscaram compreender qual o
percurso que as crianças fazem ao se depararem diante de um enigma – o do funcionamento
do sistema da Escrita – no caso o do sistema alfabético
33
.
É importante dizer que a pesquisa sobre a psicogênese da língua escrita se originou
na preocupação com o fracasso nos primeiros anos escolares, no contexto dos países da
América Latina, bem como do processo seletivo que o sistema educacional adotado por esses
países tem gerado. Já passadas mais de duas décadas e estas preocupações continuam atuais,
33
Ferreiro e Teberosky (1999) realizaram a pesquisa com crianças que falam e aprendem a escrever o espanhol.
No entanto, seus resultados podem ser estendidos às crianças que aprendem a escrever a língua portuguesa.
As autoras se surpreenderam com a progressão das hipóteses das crianças a respeito do sistema da escrita que
tentavam compreender. Elas dizem que “[...] a progressão de hipóteses sobre a escrita reproduz algumas das
etapas-chave da história da evolução da mesma (escrita) na humanidade, apesar de que nossas crianças
estejam expostas a um único sistema de escrita” (p. 293).
61
pois são elas também que nos motivam a desenvolver a presente pesquisa. Todo nosso esforço
está em construir uma abordagem da Escrita que supere a forte crença e apego em uma
concepção que a reduz a técnica. Queremos explicitar a relevância de analisarmos a dimensão
subjetiva que a relação com a escrita supõe.
Ferreiro e Teberosky (1999) afirmam que em relação à aprendizagem da escrita todos
os métodos concordam que:
[...] inicialmente, a aprendizagem da leitura e da escrita é uma questão mecânica;
trata-se de adquirir a técnica para o decifrado do texto. Pelo fato de se conceber a
escrita como a transcrição gráfica da linguagem oral, como sua imagem (imagem
mais ou menos fiel, segundo casos particulares), ler equivale a decodificar o escrito
em som. (p.22)
A constatação das autoras não se distancia daquelas que vimos no item anterior deste
capítulo, pois sejam os métodos sintéticos, analíticos ou mistos, todos partem de um ponto
perceptivo para a aprendizagem da leitura e da escrita, ora visual, ora auditiva, mas não
consideram aspectos fundamentais, os quais dizem da capacidade cognitiva e da competência
lingüística que as crianças já têm e, muito menos da expressão da subjetividade daquele que
escreve.
As autoras argentinas destacam a importância de considerar a competência
lingüística da criança e sua capacidade cognoscitiva na aprendizagem da leitura e da escrita.
Estes são os aspectos principais que elas tomam por referência para investigar o percurso que
as crianças realizam para compreender a natureza do sistema alfabético e que sustentam suas
interpretações analíticas na investigação. Percebe-se, então, a guinada de uma visão
mecanicista e, portanto, técnica da aprendizagem da leitura e da escrita, defendida pela
tradição dos métodos de alfabetização rumo a uma concepção de que ler e escrever são
aprendizagens de um objeto cultural que precisa ser compreendido e (re)significado por todos
aqueles que o aprendem. Por esta razão é uma aprendizagem também conceitual e, por isso, o
sujeito passa a ter um papel ativo em seu processo de aprendizagem.
É importante dizer que a escrita é concebida nesta visão como uma construção
cultural de um sistema de representação da linguagem escrita, quer dizer, como objeto cultural
que traduz o percurso que a humanidade realizou no que diz respeito a sua relação com a
62
natureza, com as coisas e entre si
34
.
Segundo as autoras a psicolingüística contemporânea superou o modelo tradicional
associacionista da aquisição da linguagem, a qual acreditava que a criança aprendia a
linguagem oral por meio da pura imitação e reforço dos sons vocálicos que correspondiam a
determinadas palavras que faziam parte do seu meio social. Atualmente há uma compreensão
radicalmente oposta do papel da criança no processo de aquisição da linguagem, e as autoras
partem de uma concepção ativa daquele que aprende e encontram nos trabalhos do filósofo e
lingüista americano Noam Chomsky (1974,1976) respaldo em sua teoria lingüística na
gramática generativa
35
, para compreender a aquisição da linguagem oral e, mais precisamente
da construção das regras sintáticas das orações. Elas estendem esta teoria lingüística para
analisar a aprendizagem da leitura e da escrita. Neste sentido, defendem que ao invés de uma
visão de que a criança precisa de reforço do meio social para aprender a falar:
[...] aparece uma criança que procura ativamente compreender a natureza da
linguagem que se fala à sua volta, e que, tratando de compreendê-la, formula
hipóteses, busca regularidades, coloca à prova sua antecipações e cria sua própria
gramática (que não é simples cópia deformada do modelo adulto, mas sim criação
original). No lugar de uma criança que recebe pouco a pouco uma linguagem
inteiramente fabricada por outros, aparece uma criança que reconstrói por si mesma
a linguagem, tomando seletivamente a informação que lhe provê do meio.
(FERREIRO; TEBEROSKY, p. 24)
Nesta perspectiva lingüística, muitos dos “erros” cometidos pelas crianças pequenas
em relação, por exemplo, aos verbos irregulares, na verdade são erros construtivos que
demonstram as suas inúmeras tentativas em encontrar regularidades na linguagem oral e de
construir sua própria gramática.
34
Jean (2002) diz sobre a invenção da escrita que: “Existem, há dezenas de milhares de anos inúmeros meios de
transmitir mensagens através de desenhos, sinais, imagens. Entretanto, a escrita propriamente dita, só
começou a existir a partir do momento em que foi elaborado um conjunto organizado de signos e símbolos,
por meio dos quais seus usuários puderam materializar e fixar claramente tudo o que pensavam, sentiam e
sabiam expressar” (p. 12). Segundo este autor, a escrita teve um nascimento humilde. E baseado nos estudos
de Etiemble (1978), Jean faz suas as palavras dele “Embora os homens nasçam e morra há um milhão de
anos, só passaram a escrever há seis mil anos” (p. 11). Estas idéias mostram que a escrita que conhecemos
hoje atravessou séculos até chegar ao conjunto de caracteres que de acordo com seu sistema expressam e
registram idéias e emoções.
35
Chomsky (1976) defende a tese de que o ser humano ao nascer traz consigo uma competência lingüística inata
e, por isso, sua teoria se caracteriza por ser de natureza mentalista, uma vez que se ocupa da dimensão
psicológica da linguagem e – sobretudo -
com a aquisição da linguagem oral das crianças através do modelo
de “princípios e parâmetros”. Este modelo defende que todo humano nasce com os princípios que são os
mecanismos da linguagem e a seguir adquire os parâmetros da língua da comunidade da qual fazemos parte.
63
Juntamente a esta teoria da aquisição da linguagem, as autoras tomaram por base a
teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget para analisar o processo de aprendizagem da
leitura e da escrita. Neste sentido, afirmam que a aprendizagem da lectoescrita supõe uma
apropriação do conhecimento e não aprendizagem de uma técnica. Para explicar o que
significa o processo de apropriação as autoras dizem:
[...] Com tudo o que esta apropriação significa, aqui (neste estudo) como em
qualquer outro domínio da atividade cognitiva: um processo ativo de reconstrução
[grifo das autoras] por parte do sujeito que não pode se apropriar verdadeiramente
de um conhecimento senão quando compreendeu seu modo de produção [grifo das
autoras], quer dizer, quando o reconstituiu internamente (FERREIRO,
TEBEROSKY, p. 289)
Neste sentido, a escrita nas idéias acima referidas assume outra perspectiva, qual
seja, a de ser um objeto cultural e de conhecimento que exige a apropriação pelo sujeito que
aprende. Esta compreensão vai implicar diretamente a postura da professora-alfabetizadora e
a forma como ela pensa e organiza o seu cotidiano de ensino. Pensar o processo de
alfabetização pautado neste referencial teórico exige que a própria profissional construa uma
proposta didático-pedagógica orientada pelas idéias expressas na pesquisa de Emília Ferreiro
e Ana Teberosky. Em lugar de adotar um método prescrito por meio de determinados
procedimentos de ensino, a psicogênese supõe que a educadora, ao exercer uma função
intelectual como a sua e, sendo também ela um sujeito inteligente, construa seu próprio
método de alfabetizar tomando estas e outras referências teóricas para balizar o caminho a ser
percorrido para ensinar a ler e a escrever.
No meu ponto de vista, a psicogênese da escrita explicita de forma enfática que:
a) aprender a ler e a escrever não se reduz à aprendizagem de uma técnica exterior a
ser adquirida;
b) a aprendizagem da leitura e da escrita, embora implique processos diferentes, não
podem ser trabalhadas separadamente, pois a criança só pode ser considerada
com domínio da linguagem escrita se ela produz e lê;
c) o ensino da leitura e da escrita implica ensinar a linguagem escrita e não apenas
seu aspecto gráfico como letras, palavras e frases descoladas de suas
significações, porque o que pode garantir a apropriação deste conhecimento
cultural é a vivência da expressão dos sentidos e das significações que esta
linguagem particular possibilita;
64
d) a criança, ao chegar ao ensino formal, já realizou a aprendizagem de inúmeras
linguagens, sendo que a mais explícita de todas, é o domínio da linguagem oral
Isso significa que ela já tem um competência lingüística inquestionável, o que
facilita a sua relação com a linguagem escrita;
e) muitas escolas não têm desempenhado o seu papel, pois grande parcela das
crianças que chegam a freqüentá-la não tem sucesso na aprendizagem da leitura e
da escrita;
f) finalmente, as professoras-alfabetizadoras precisam, ao invés de buscar um
melhor método, ir ao encontro
36
de referenciais sobre as diversas temáticas que
envolvem este processo complexo que é a alfabetização. Isto para que possam ter
subsídios que sustentem um caminho que gere aprendizagem às crianças.
Acredito que a psicogênese da língua escrita é uma significativa contribuição
para isto.
Como foram visto, os resultados da pesquisa que geraram o livro da psicogênese da
escrita marcou a guinada das discussões acerca da alfabetização e mostrou, por meio das
investigações, como a criança faz o percurso da compreensão da linguagem escrita por meio
dos níveis diferenciados de conceitualização. Neste trabalho, percebe-se que a criança e a
escrita ocupam a cena principal da investigação, diferentemente das discussões sobre os
métodos de alfabetização que priorizam o ensino da leitura, ou melhor, da decifração dos
sinais gráficos da escrita. Como as autoras mesmas afirmam, não podemos separar o ensino
destas duas aprendizagens, porque estão intrinsecamente relacionadas.
Foi na pesquisa sobre a psicogênese da escrita que encontramos o percurso da
construção da escrita pelas crianças como foco principal. Isto deu relevância à escrita,
diferentemente do que a história da alfabetização até então registrava. Por meio do viés
teórico-metodológico adotado pelas pesquisadoras, comprovaram cientificamente que a
escrita não se reduz a uma técnica, porque sua aprendizagem implica também uma
aprendizagem conceitual que exige um papel ativo do sujeito, concebido em sua dimensão
cognitiva e lingüística.
36
Não desconsideramos as atuais condições de trabalho da maioria das professoras-alfabetizadoras para realizar
processos de formação continuada. No entanto, pensamos que diante das possibilidades que se apresentam
devem ter por ocupação a busca em compreender as temáticas que envolvem a aprendizagem da leitura e da
escrita, bem como, o domínio dos conhecimentos das diversas áreas a serem trabalhados nos anos inicias da
escolarização.
65
No entanto, cabe registrar que estamos neste estudo construindo uma abordagem de
escrita diferente da realizada por Ferreiro e Teberosky. Buscamos sustentar uma perspectiva
de escrita que, além da dimensão cognitivo e lingüístico, a considere como sendo algo que diz
daquele que escreve, isto é, que diz da singularidade e da cultura daquele que escreve. Neste
sentido, temos buscado campos que nos auxiliem na sustentação da idéia de que a criança ao
escrever fala de si e de seu contexto e, ao mesmo tempo, produz a si e a cultura
37
.
Como mencionamos no debate sobre a alfabetização, as pesquisas de Ferreiro e
Teberosky provocam inúmeras inquietações entre as professoras-alfabetizadoras, uma vez que
a teoria piagetiana tomada por base de sustentação coloca em evidência o papel ativo de um
sujeito epistêmico. Neste sentido, ela vai indicar mudanças no papel da educadora, a qual
precisa construir seu próprio método, desmistificando a incessante busca por um método
“melhor”.
No meu ponto de vista, o que causa mais insegurança nas professoras-alfabetizadoras
em considerar este referencial para alfabetizar é, principalmente, o fato de que ele orienta para
outra postura diante da atividade profissional, qual seja, de ela mesmo produzir e implementar
sua proposta a partir de idéias teóricas e metodológicas. Isto a coloca num lugar de
“produção” de seu fazer prático e, ao adotar esta perspectiva profissional, significa assumir
todas as dúvidas, conflitos, fracassos e sucessos do processo de alfabetização, o que vai
colocá-las em maior evidência ainda
38
no contexto escolar.
Em meio a estas discussões desencadeadas pela produção das pesquisadoras
argentinas, surge também entre os questionamentos aqueles da pertinência de se tomar por
referência, tanto para pensar o desenvolvimento como para conceber a aprendizagem escolar,
o interacionismo de Piaget ou, se se devem seguir os ensinamentos de Vygotsky, uma vez que
é enfatizado que Luria já teria realizado pesquisa semelhante sobre a pré-história da escrita
infantil. Neste sentido é que alguns educadores, às vezes, aproximam estes experimentos com
37
Sobre a escrita como produção de cultura será o tema aprofundado no próximo capítulo. No capítulo IV deste
trabalho se tratará da escrita no entre-lugares da enunciação e do enunciado enfocando a produção de
subjetividade e da singularidade daquele que escreve.
38
Dias (2002) constata em seu estudo sobre a constituição do processo identitário da professora-alfabetizadora
que “o mito existente em torno do papel de alfabetizar, muitas vezes é reforçado pelos cursos de formação.
Este mito aparece por meio das formas como o currículo trata a aprendizagem da língua materna, pela
ausência de práticas em classes de alfabetização e, por outro lado, pela importância dada ao trabalho nessas
classes, enfatizada pelos professores em seus discursos. Além disso, o mito da alfabetização se deve também
pela forma que é tratada pelas políticas públicas e pelas instituições internacionais que depositam grande parte
da responsabilidade pelo desenvolvimento socioeconômica no sucesso da alfabetização. Todos estes aspectos
interferem na (re)construção da identidade da professora-alfabetizadora, bem como, no mito da alfabetização”
(p. 188-189). Estes elementos sociais dão evidência ao trabalho da professora-alfabetizadora porque elas não
devem falhar em sua tarefa de alfabetizar, o que causa, na maioria das vezes, o medo em assumir tal
compromisso.
66
os resultados encontrados pela pesquisa sobre a construção psicogenética da escrita, não
considerando ela, então, uma novidade para a área. É sobre estas questões que trataremos no
item a seguir.
2.3 A ESCRITA NA VISÃO SÓCIO-INTERACIONISTA DE VYGOTSKY: EM
BUSCA DE TEORIAS
Historicamente no meio acadêmico, mais especificamente nos cursos de licenciatura
e no espaço escolar, Piaget e Vygotsky têm sido os protagonistas ao se abordar as teorias do
desenvolvimento e da aprendizagem. No debate sobre o processo de alfabetização, eles
também ocupam a cena. Nossa intenção aqui não é a de defender um ou outro autor, nem
mesmo encontrar os pontos de convergências e divergências
39
, mas de trazer algumas das
diretrizes do pensamento de Vygotsky sobre desenvolvimento e aprendizagem, como fizemos
no item anterior ao discutir a psicogênese da escrita com Piaget, para mostrar como elas são
concebidas pelo próprio psicólogo russo e sua equipe. Cabe dizer que, em função do tema
desta pesquisa, focalizamos o trabalho de Luria a respeito da pré-história da escrita infantil,
analisando a sua concepção de escrita, bem como as possíveis aproximações ou não com as
principais questões que orientaram a pesquisa sobre o percurso desenvolvido pelas crianças
para compreender o funcionamento do sistema alfabético, realizada por Ferreiro e Teberosky
(1999).
Na obra de Vygotsky e sua equipe encontramos muitas contribuições para a
educação. Eles tomam por pressuposto de trabalho que o homem transforma-se de biológico
em sócio-histórico, num processo em que a cultura é parte essencial da constituição da
natureza humana. Neste sentido, toda a obra é marcada pela relevância da dimensão social no
desenvolvimento psicológico do sujeito e, por decorrência todos os conceitos fundamentais
desta teoria são desenvolvidos a partir disso. Citamos alguns conceitos considerados
fundamentais, tais como: mediação simbólica, pensamento e linguagem, desenvolvimento e
aprendizagem e, o biológico e o cultural.
Como não temos a pretensão de analisar e de tomar por referência teórica a obra de
Vygotsky nesta pesquisa, mas apenas visualizar algumas das concepções que aparecem de
forma intensa nos debates acerca da alfabetização, trataremos de alguns dos conceitos
39
Múltiplas são as divergências e aproximações entre as teorias de Piaget e Vygotsky. No entanto, não temos o
propósito de discuti-las aqui, pois trouxemos os dois teóricos ao debate pelo fato de fundamentarem os
estudos da Psicogênese da Língua Escrita; do Letramento e de Luria (discípulo de Vygotsky) ter um
importante trabalho sobre a pré-história da escrita infantil.
67
expressos, particularmente no livro Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem (1998),
onde encontramos reunidos textos importantes das pesquisas desenvolvidas por ele e seus
colaboradores. Dentre eles, destacamos primeiro aquele que enfoca a aprendizagem e o
desenvolvimento intelectual na idade escolar de Vygotsky e, em seguida, aquele que mostra o
desenvolvimento da escrita na criança pesquisado por Luria.
No referido texto, Vygotsky (1998) faz um rápido panorama das principais linhas de
pensamento que tratam da relação entre o desenvolvimento e a aprendizagem. Mostra três
categorias principais: a) aquela que parte do pressuposto da independência entre estes dois
processos, quer dizer, a aprendizagem é um processo puramente exterior, paralelo, de certa
forma, ao processo de desenvolvimento da criança; b) aquela que afirma que, ao contrário da
primeira, a aprendizagem é desenvolvimento, ou seja, de que existe um desenvolvimento
paralelo dos dois processos, de modo que a cada etapa da aprendizagem, corresponda uma
etapa do desenvolvimento e c) aquela que tenta conciliar os extremos dos dois pontos de vista
anteriores trazendo um aspecto importante, qual seja, uma ampliação do papel da
aprendizagem no desenvolvimento da criança (p. 103-109).
No entanto, Vygotsky abandona estas três teorias e propõe uma “nova e melhor
solução” (grifo da autora) ao problema da relação entre desenvolvimento e aprendizagem. Ele
toma como ponto de partida que: “[...] a aprendizagem da criança começa muito antes da
aprendizagem escolar” (p. 10), argumentando que ela não chega à instituição de ensino
começando num vácuo de desenvolvimento.
Para Vygotsky (1998), o processo de aprendizagem escolar se diferencia do não-
escolar pela sua sistematicidade, mas ninguém pode negar que as crianças chegam à escola
com várias aprendizagens já realizadas, dentre elas, o autor destaca a oralidade, um conjunto
de informações dadas pelos adultos, hábitos, etc. Neste sentido “a aprendizagem e
desenvolvimento não entram em contato pela primeira vez na idade escolar, mas estão ligados
entre si desde os primeiros dias de vida da criança” (p. 110).
Para compreender as características da inter-relação entre aprendizagem e
desenvolvimento na idade escolar, o autor analisa a teoria da área do desenvolvimento
potencial. Para ele é indiscutível a necessidade de se considerar para a aprendizagem o nível
de desenvolvimento da criança, a qual é determinada pelo menos por dois níveis: o
desenvolvimento efetivo e a capacidade potencial. O primeiro refere-se às atividades que as
crianças conseguem realizar sem o auxílio dos adultos e, a segunda, embora realize tais
tarefas necessita do auxílio da imitação da atividade coletiva guiada pelos adultos.
68
Assim, o autor diz que “a diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio
dos adultos e o nível das tarefas que podem desenvolver-se com uma independente define a
área de desenvolvimento potencial da criança” (p. 112). Vygotsky desenvolve a sua teoria a
respeito da existência de uma zona de desenvolvimento proximal onde atuariam os
educadores, pois para este autor: o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento
(p. 114)
Segundo Vygotsky o desenvolvimento das funções psicointelectuais superiores
(ações voluntárias) na criança, próprias do humano, acontece num processo único. Segundo
ele,
Todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do
desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades
sociais, ou seja, como funções interpsíquicas: a segunda, nas atividades individuais.
Como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções
intrapsíquicas. (p. 114)
A concepção do autor demonstra a relevância da dimensão social, pois ele acredita
que as atividades sociais são colocadas em primeiro lugar, ou seja, o desenvolvimento
psicológico acontece da dimensão social para o individual, o que qualifica sua teoria como
sócio-histórica. Outro elemento importante é o desenvolvimento da linguagem, pois nesta
linha de pensamento ela se origina em primeiro lugar como meio de comunicação e depois se
converte em linguagem interna, a qual fornece os meios fundamentais ao pensamento da
criança. Neste aspecto da linguagem e do pensamento, Vygotsky concorda com a visão de
Piaget. Ele diz: “Cremos facilmente na palavra – diz Piaget – mas só no processo de
comunicação surge a possibilidade de verificar e confirmar o pensamento”. Assim, a
linguagem interna e o pensamento nascem do complexo de inter-relações das crianças com as
pessoas e são elas que originam os processos volitivos na criança.
A partir desta visão de linguagem e pensamento com a qual assume importância as
inter-relações pessoais, Vygotsky defende que:
[...] a característica essencial da aprendizagem é que engendra a área de
desenvolvimento potencial, ou seja, que faz nascer, estimula e ativa na criança um
grupo de processos internos de desenvolvimento no âmbito das inter-relações com
outros, que, na continuação, são absorvidos pelo curso interior de desenvolvimento e
se convertem em aquisições internas da criança. (p. 115)
Percebe-se, nesta definição, que todo o desenvolvimento psicológico da criança está
estritamente ligado às aprendizagens que as crianças realizam por meio das atividades
69
sociais. Neste arcabouço teórico, a aprendizagem é concebida como fonte de desenvolvimento
– zona de desenvolvimento potencial (VYGOTSKY, 1998).
Ainda neste texto, Vygotsky vai marcar a diferença da aprendizagem de habilidades
como andar de bicicleta ou aprender a escrever à máquina de outras aprendizagens como
aprender a falar e a escrever. Ele deixa claro que o processo da aprendizagem da escrita “ativa
uma fase desenvolvimento dos processos psicointelectuais inteiramente nova e muito
complexa, e [...] o aparecimento destes processos origina uma mudança radical das
características gerais, psicointelectuais da criança”. (VYGOTSKY, 1998, p. 116)
A partir dessa visão sobre a aprendizagem da Escrita, pode-se acreditar que Vygotsky
não a concebia como sendo apenas uma técnica, pois defendia que esta aprendizagem se
diferencia da que exige apenas habilidades e hábitos, na medida em que ela interfere no
desenvolvimento psicointelectual das pessoas: quer dizer, o sujeito vai alterar o seu modo de
pensar sobre as coisas no mundo. Na equipe dele foi Luria – texto de 1929 – quem se dedicou
a pesquisar sobre a história da pré-escrita das crianças. E encontramos no referido livro um
texto onde o autor mostra os seus experimentos realizados com crianças entre três e seis anos
de idade.
Luria defende que a escrita é uma técnica complexa e, até chegar à escola, a criança
faz um percurso muito importante de aprendizagens de técnicas, adjetivada por ele, como
primitivas que preparam o caminho para ela aprender o conceito e a técnica da Escrita (p.
143-144). Assim, seria importante conhecer as técnicas primitivas utilizadas pelas crianças
neste período da pré-história da escrita infantil, pois isso poderá ser um auxílio importante aos
professores.
Para este autor, “[...] a escrita pode ser definida como uma função que se realiza,
culturalmente, por mediação” (p. 144). Para escrever, a criança precisa de uma condição
fundamental que é o uso de um signo funcional auxiliar, como por exemplo, uma mancha ou
um ponto. Assim, no percurso da aprendizagem da Escrita, a criança vai substituindo uma
técnica por outra, mas não significa que a escrita se desenvolve em uma linha reta, com um
crescimento e um aperfeiçoamento contínuos. “O desenvolvimento, neste caso, pode ser
descrito como uma melhoria gradual do processo da escrita0.” (p. 180)
Nestes experimentos, ele descreve, por meio dos extratos das sessões realizadas com
as crianças, que elas fazem um caminho de gradual diferenciação dos símbolos usados. No
primeiro estágio da escrita, escrever não é um meio de registrar algum conteúdo específico,
mas apenas a imitação do formato da escrita dos adultos que não tem significado funcional;
70
mais tarde se desenvolve um processo de diferenciação onde o símbolo – e sua distribuição no
espaço do papel – adquire significado funcional; quando a criança começa a identificar as
letras isoladamente, faz suas formas externas e faz marcas particulares.
Na visão de Luria, neste estágio de desenvolvimento a criança não compreende como
funciona a Escrita, sua relação é apenas externa, ou seja, com a forma da Escrita. Ela já
compreende que pode usar símbolos para escrever, mas não entende ainda como se faz e por
isso começa usar o desenho para representar, pois descobriu a natureza instrumental da
Escrita. A pictografia serve como signo de mediação para representar um determinado
conteúdo, e não como forma individual de expressão. O autor diz que o período da escrita por
imagens se desenvolve plenamente na criança ao atingir a idade de cinco e seis anos, quando
começa ceder lugar para a escrita alfabética simbólica aprendida na escola. (p. 173-181)
Na primeira fase da escrita simbólica, a criança começa novamente numa fase não
diferenciada pela qual já passara muito antes, na ocasião em que fazia apenas marcas
aleatórias. Assim, neste primeiro momento da escrita simbólica não significa necessariamente
que ela compreenda o processo dela, mas ela já cria seus próprios signos para registrar e
representar coisas que considera difícil de desenhar, isso não acontecia na fase mencionada. A
partir desta compreensão a criança apresenta condições de aprender o sistema da escrita
culturalmente elaborada. Luria (1929) enfatiza que este desenvolvimento vai depender muito
do contexto social em que a criança vive, podendo inclusive não passar de forma igual em
todos os momentos, pois vai depender das experiências de escrita dos adultos que a rodeiam.
Impossível, depois de estudar estes experimentos de Luria, não fazer alusão às
pesquisas de Emília e Teberosky, pois, como mencionamos, é comum no debate da
alfabetização encontrar argumentos que defendem que esta investigação sobre a escrita
infantil já havia sido realizada há algumas décadas, sob outra base teórica, qual seja, a base
vygotskyana. Neste sentido, fomos buscar mais respaldo a respeito das divergências e
convergências entre estes trabalhos. Faremos neste texto referência a algumas delas, pois não
temos o objetivo de fazer paralelos entre os autores, já que o interesse aqui se concentra em
visualizar as concepções sobre a Escrita que têm pautado as discussões em torno da
alfabetização.
Sobre os experimentos de Luria, Ferreiro (1996) diz sobre o conhecimento tardio das
pesquisas deste psicólogo lamentando não ter tido contato durante a sua pesquisa. A
perspectiva teórica de Luria é a mesma de Vygotsky, uma vez que fazia parte de sua equipe,
por esta razão é que em alguns momentos do texto ele ocupará a cena.
71
Ferreiro ressalta a pertinência de muitas idéias de Vygotsky e as aproxima de
algumas que defende, como por exemplo, a concepção dele sobre o ensino da Escrita
trabalhada num texto no qual ele disserta sobre os experimentos de Luria. Vygotsky, diz que
“[...] deve-se ensinar às crianças a língua escrita, não só a escrita de letras” (VYGOTSKY,
apud FERREIRO, 1996, p. 119). Esta visão sobre ensinar a linguagem escrita é uma das teses
mais presentes nos trabalho de Ferreiro, pois ela insiste que não é pelo ensino do traçado das
formas das letras e de sílabas desprovidas de significados, que levarão as crianças a se
expressarem pela escrita. Além dessa idéia, os dois autores (Ferreiro e Luria) acreditam que a
história da escrita na criança acontece muito antes de ela chegar à escola, pois ela tenta
compreender o seu funcionamento desde muito cedo. No entanto, a pesquisadora argentina
ressalta que as questões que orientam a sua investigação e a de Luria são muito diferentes e,
mais ainda, quando se trata da concepção de Escrita. O pesquisador russo a concebe somente
sob a ótica instrumental na medida em que afirma que ele [...] é uma técnica sociocultural
importantíssima que, depois de aprendida, afeta as funções psíquicas superiores (LURIA apud
FERREIRO, p. 152).
Neste sentido, Ferreiro diz que Luria se pergunta sobre como as crianças se
apropriam desta técnica criada pela humanidade para cumprir duas funções principais: a
função mnemônica e a comunicativa. Para ela como as crianças pequenas não têm ainda a
capacidade para cumprir com a função comunicativa por meio da escrita, Luria estuda
principalmente a função mnemônica deste período do desenvolvimento infantil. Ela ressalta
que todo o experimento realizado por Luria toma por foco o ponto de vista do adulto, quer
dizer, ele não “trata de identificar que funções a escrita poderia cumprir do ponto de vista de
um sujeito em desenvolvimento”. Assim, as observações de Luria são de que:
[...] como a criança assume as funções que o adulto atribui à escrita Em outros
termos, como ela chega a utilizar apropriadamente a escrita, em contextos onde
também os adultos a utilizariam para garantir uma recordação exata de uma
enunciação lingüisticamente codificada. O funcional, portanto, está subordinado à
idéia instrumental da escrita. (FERREIRO, 1996, p. 153)
A partir desta leitura do trabalho de Luria, Ferreiro pontua a diferença de enfoque de
sua pesquisa, pois ela não toma a Escrita como técnica, mas “[...] como objeto, como um
modo particular de existência no contexto sociocultural. Quer saber que tipo de objeto é a
escrita para uma criança em desenvolvimento” (p. 153). Desse modo, ela não atribui à escrita
uma visão instrumental ou técnica a priori, uma vez que pretendeu investigar o ponto de vista
72
das crianças sobre este objeto, o qual se coloca inicialmente como um enigma a ser
compreendido por elas.
A autora argentina considera fundamental apontar o fato de Luria tomar uma
perspectiva evolucionista histórica da Escrita, tendência dominante em sua época – e até há
bem pouco tempo – para analisar o desenvolvimento da escrita das crianças. Nesta linha,
acredita-se que toda criança faz um idêntico caminho de substituição que podemos sintetizar:
de um rabisco não-diferenciado a um signo diferenciado; de linhas e rabiscos diferenciados a
figuras e imagens e, por fim estas são substituídas por signos. Nesta seqüência de substituição
“[...] está todo o caminho do desenvolvimento da escrita, tanto na história da civilização como
no desenvolvimento da criança” (LURIA apud FERREIRO, p. 154).
Para Ferreiro, a idéia de substituição, na aprendizagem da Escrita, é oposta à
perspectiva de construção defendida por Piaget, a qual sustenta sua investigação. A idéia de
substituição significa que a criança perde ou descarta as etapas vividas anteriormente; a de
construção, pelo contrário, parte do princípio de que a fase do momento assimilou todas as
anteriores.
A autora reconhece também que está muito marcada pelas referências da história da
escrita, mesmo tendo escrito cinqüenta anos depois de Luria. A partir desta visão
evolucionista, pode-se afirmar, sinteticamente, que a Escrita “[...] vai da pictografia à
fonetização; esta última é iniciada por procedimento de ‘rébus’ [grifo da autora], passa por
sistemas silábicos e culmina no sistema alfabético” (p. 158). Em sua análise, ela e Teberosky
estavam muito influenciadas pelos trabalhos de Gelb, especialmente, pela importância que
este atribui às Escritas silábicas na reconstrução da história do alfabeto. No entanto, a idéia
não é de que as crianças fazem uma “recapitulação” da história cultural, mas do ponto de vista
cognitivo, as crianças fazem esse percurso para ter acesso a uma tomada de consciência de
certas propriedades fundamentais da linguagem (p. 158-159).
De uma maneira geral, podemos dizer que as análises desenvolvidas por Ferreiro
neste texto são importantes por dois motivos. O primeiro porque ela marca as aproximações e
as diferenças teórico-metodológicas entre os trabalhos; o segundo, pela defesa que faz de que
não se trata de optar por um ou outro autor, pois isso seria profundamente anticientífico. Em
sua visão, é necessário considerar as épocas históricas em que foram realizados os trabalhos e
não pressupor uma aplicação das teorias à prática pedagógica, o que seria uma simplificação
dessa complexa relação.
Neste sentido, penso que precisamos persistir na defesa de que as professoras-
73
alfabetizadoras precisam conhecer diferentes referenciais que permitam construir subsídios
para suas análises das situações do cotidiano da sala de aula e que as orientem para a
construção de um caminho metodológico para trabalhar a aprendizagem da língua escrita.
Dessa maneira, temos que contrapor posições que defendem que os educadores precisam fazer
opções teóricas radicais, muitas vezes, sem ter conhecimento das diferentes vertentes teóricas
sobre determinado tema.
De uma maneira geral, podemos dizer que Vygotsky defende – de forma contundente
– o papel da cultura na constituição da psique humana e os demais conceitos (mediação
simbólica, desenvolvimento, aprendizagem...) fundantes de sua teoria foram elaborados em
decorrência desta idéia. Neste sentido, pesquisadores afirmam que Vygotsky teria dado ênfase
ao meio social na constituição psicológica, e Piaget teria dado maior relevância ao papel do
sujeito neste processo. Esta discussão no meio educacional permanece ocasionando dois
grupos: aqueles que acreditam que os dois autores convergem em vários pontos e aqueles que
defendem que, em escolhendo um autor, se está necessariamente descartando o outro.
Neste percurso, para o qual trouxemos algumas das idéias de Vygotsky e sua equipe,
podemos concluir que a Escrita é concebida e caracterizada, principalmente, em sua dimensão
instrumental e técnica. No entanto, Luria reconhece também que a sua aprendizagem se
diferencia das demais aprendizagens por modificar as funções psíquicas superiores. Isso lhe
dá uma diferenciação, quer dizer, aprender a escrever significa modificar o modo de pensar no
mundo. Esta discussão acerca das diferenças entre as pessoas que dominam a Escrita, e as que
não tiveram acesso a este objeto cultural, apareceu – de forma mais enfatizada ainda aqui no
Brasil – no início dos anos noventa quando os estudos sobre o fenômeno do letramento,
embora estejam colocados como campo de pesquisa separado dos da alfabetização, são
inseridos no debate sobre o ensino da leitura e da escrita. Estes estudos sobre as práticas de
letramento enfocam os usos da Escrita e da leitura e, ao mesmo tempo, o impacto social
desses na sociedade e na vida das pessoas.
Assim, traremos, em seguida, para compor o capítulo das faces da Escrita na cena
alfabetização o debate sobre a perspectiva do letramento. Cabe ressaltar, que acreditamos que
há pelo menos duas décadas o sentido desta discussão já faz parte dos estudos da
alfabetização, mesmo sem a utilização do termo. A discussão desta temática também compõe
o que nos propormos construir no início deste capítulo – uma “paisagem” do debate atual
sobre a alfabetização nos anos iniciais da escolarização.
74
2.4 A ESCRITA NO LETRAMENTO: EM BUSCA DA PRÁTICA SOCIAL
Como mencionamos em alguns momentos deste capítulo, o debate acerca do
conceito de letramento torna-se demarcado no meio acadêmico brasileiro no início da década
de noventa
40
do séc. XX, quando se passa a estudar – de forma mais focalizada – os usos da
Escrita e seu impacto social, tema este colocado separadamente dos estudos da alfabetização.
As pesquisas na área da alfabetização são consideradas, por alguns autores como Kleiman
(1995), trabalhos que dão enfoques apenas às competências individuais nos usos e nas
práticas da Escrita. Assim, em contraposição, estariam esses estudos sobre o fenômeno do
letramento, os quais vêm assumindo uma abordagem social por acreditar que este se dá nas
condições do contexto em que os grupos sociais vivem. Cabe indagar então: - Será que todas
as pesquisas realizadas em torno da temática da alfabetização, a partir da década de setenta no
Brasil, não consideraram o contexto em que o processo de alfabetização acontece?
As discussões acerca do fenômeno do letramento estão presentes no debate da
alfabetização desde o momento em que se colocou sob questionamento à busca pelos
tradicionais métodos de alfabetização. Neste percurso, por compreender a complexidade do
aprender a ler e a escrever, passou-se a fazer investigações sobre a capacidade de linguagem,
sobre a inteligência daquele que aprende ocasionando um redimensionamento, pelo menos
teórico, do papel da professora-alfabetizadora e do aluno em sala de aula.
O debate em torno de como se aprende, se ensina e se produz conhecimento é
marcado pela orientação de um novo paradigma à educação que também influenciou os
estudos do campo da alfabetização. Foi a partir da segunda metade do séc. XX que ganha
maior evidência o questionamento em torno do papel da escola no final do milênio e do
modelo de ciência da Modernidade
41
presente em todas as instituições de ensino.
40
Cabe registrar que o termo letramento foi utilizado pela primeira vez no Brasil em 1986 vez por KATO, Mary
no Livro No Mundo da Escrita, São Paulo: Ática, 1986, mas ganhou maior evidência, em nosso país, no
início da década de noventa.
41
A modernidade, compreendida aqui como o momento histórico que provocou transformações profundas na
visão de mundo do período medieval e, por decorrência, na concepção de ciência. O filósofo CAPRA (1982)
diz que “antes de 1500, a visão de mundo dominante na Europa, assim como na maioria das civilizações, era
orgânica [...] A perspectiva medieval mudou radicalmente nos séc. XVI e XVII. A noção de um universo
orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção doe mundo, como se ele fosse uma máquina, e a
máquina do mundo converteu-se na metáfora dominante da era moderna [...] A partir de Bacon, o objetivo da
ciência passou a ser aquele conhecimento que pode ser usado para dominar e controlar a natureza e, hoje, a
ciência e a tecnologia buscam fins profundamente antiecológicos” (p. 49-51) Entretanto, como mencionamos
anteriormente neste capítulo, estamos vivendo uma efervescente discussão filosófica sobre o que seja ciência
colocando em alerta as conseqüências da fragmentação do conhecimento para o campo da educação, bem
como, às demais áreas do conhecimento. Além disso, os riscos que o desenvolvimento desenfreado da ciência
e da tecnologia está causando ao planeta.
75
É unanimidade nas discussões atuais entre os educadores brasileiros que a escola
precisa ser revisitada em seu papel por algumas razões, como: o alto índice de reprovação e
evasão nos anos iniciais da escolarização; a frágil formação de grande parcela dos alunos que
finalizam o Ensino Fundamental (dificuldades na leitura e na escrita) sendo considerados
com baixo nível de alfabetismo
42
; a seleção que o sistema de ensino tem ocasionado entre
aqueles que iniciam a escolarização e aqueles que conseguem completar o Ensino Médio.
Além destes elementos resultantes da prática escolar e da sua tradicional estrutura curricular
organizativa, temos ainda a realidade da revolução tecnológica da informática que
disponibiliza informações de forma rápida e atraente às crianças e aos jovens. Esta situação
também coloca em relevo a importância de ser revisto e redefinido o papel da escola na
sociedade atual.
Podemos afirmar que nos últimos séculos o grande desafio para a educação brasileira
foi a democratização da escola, no sentido de oferecer acesso à escolarização a um número
cada vez maior de crianças. Neste momento, o que se impõe à escola é a permanência dos
alunos no sistema de ensino e a melhoria da qualidade do ensino
43
. Se com o evento da
modernidade, aqui em nosso país, se buscou acesso, hoje se quer qualidade, uma vez que a
escola, além de não ser mais o espaço privilegiado da informação precisa, neste momento,
ensinar o aluno a aprender. Melhor dizendo, ela precisa se constituir num espaço sistemático
de produção de conhecimentos onde as crianças e os adolescentes possam encontrar nela a
possibilidade de elaboração das informações em conhecimentos, os quais permitam o sujeito
42
É importante registrar que RIBEIRO (2004) organiza um livro onde tem várias reflexões a partir do INAF
(Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional) de 2001. O INAF é uma iniciativa do Instituto Paulo
Montenegro – Ação Social do IBOPE e da ONG Ação Educativa. Nestas pesquisas são coletados dados fora
do contexto da escola, ou seja, se busca em outros espaços um levantamento, por meio de uma representação
da população brasileira de quinze a sessenta e quatro anos, sobre habilidades e práticas relacionadas à leitura,
escrita e matemática. Neste trabalho, diferentemente, de outras pesquisas, toma-se por referência uma
concepção de alfabetizado e analfabeto, a qual supera a visão de ser um estado definitivo em relação as
práticas de leitura e escrita, mas mostra que este domínio é processo e, por isso, há variações e níveis
diferenciados de alfabetismo. Assim, foi utilizada a classificação analfabetismo – no sentido tradicional - e
definido três níveis de alfabetismo (1, 2 e 3) para analisar as habilidades em relação a leitura e a escrita. O
nível 1 de alfabetismo corresponde à capacidade de localizar informações, explícitas em textos muito curtos,
cuja configuração auxilia o reconhecimento do conteúdo solicitado, como por exemplo, identificar títulos de
revistas, anúncios, etc.; o nível 2 corresponde àquelas pessoas que conseguem localizar informações em
textos curtos e, por fim o nível 3 de alfabetismo corresponde à capacidade de ler textos mais longos, podendo
orientar-se por subtítulos, localizar mais de uma informação, de acordo com as condições estabelecidas. (p.
17-18)
43
O Presidente Luis Inácio Lula da Silva no dia 06 de fevereiro de 2006, em solenidade no auditório do
Ministério da Educação (MEC), em Brasília, sancionou dois projetos leis aprovados pelo Congresso Nacional,
o que institui o Ensino Fundamental (EF) de nove anos e o que concede bolsas de estudo e pesquisa a
professores da Educação Básica. A partir deste momento, aqui no Brasil as crianças ingressarão no Ensino
Fundamental aos seis anos de idade e os professores terão, a princípio, melhor possibilidade de formação
continuada. (Matéria do Jornal Correio do Povo – RS, do dia 07/02/06).
76
se situar e compreender, cada dez mais e melhor, o mundo do qual fazem parte
44
.
O domínio da Escrita e seus usos se constituem em conhecimentos fundamentais para
o nosso tempo, pois desde a modernidade a idéia de progresso e desenvolvimento social
esteve atrelada ao seu conhecimento. Como mencionamos, embora estejamos vivendo
profundas transformações culturais em função da revolução informática, a escrita continua
sendo um conhecimento indispensável para a aprendizagem humana, pois ela ainda é o
sistema simbólico principal das mediações das aprendizagens, inclusive para o acesso a essas
tecnologias, as quais se constituem, em novos recursos para aprender.
Voltamos às reflexões sobre o impacto social dos usos da Escrita. Enfatizamos
novamente que elas são anteriores à década de noventa nas pesquisas daqueles que se ocupam
da temática da alfabetização. Entretanto, é impossível negar que aqui no Brasil esses estudos
sobre o fenômeno do letramento – enquanto campo de investigação – surgem no início da
década de 1990. Percebe-se que eles partem de uma visão fundamentalmente sócio-histórica
de homem e de sociedade, o que discutimos no item anterior, uma vez que as diretrizes do
pensamento que o perpassa a tomam por orientação para analisar os diversos usos e práticas
de letramento.
44
Como dissemos, a escola historicamente tem sido responsável pelo acesso formal ao mundo da linguagem
escrita. No entanto, é sabido também que em várias práticas sociais de letramento as pessoas podem elevar o
seu nível de alfabetismo, ou seja, as práticas domésticas, o lazer, o trabalho, a religião, a participação social e
política, etc. muitas vezes, possibilitam mudanças em relação as habilidades da escrita e da leitura, foi o que
mostrou a pesquisa do referido INAF 2001. Neste sentido, no Livro, Letramento no Brasil encontramos,
dentre os diversos textos que refletem sobre esses dados do INAF 2001, o das autoras OLIVEIRA e VÓVIO
(2004) que fazem uma discussão enfocando a questão da homogeneidade e heterogeneidade entre sujeitos
pertencentes a grupos de diferentes níveis de alfabetismo. Elas mostram que “[...] para a maior parte dos
sujeitos, a escolaridade mais elevada, fortemente associada a indicadores de sua situação social atual e de sua
situação de origem, notadamente o nível de escolaridade de seus pais, favoreça maior imersão em atividades
mais qualificadas no mundo do trabalho. A experiência no cotidiano do trabalho, associada à escolarização
anterior, poderia então, contribuir para o desenvolvimento das capacidades letradas medidas pelo teste” (p.
159). Entretanto, as autoras analisam relações inesperadas onde há baixa escolaridade dos sujeitos e seus
familiares e, mesmo assim, apresentam alto índice de alfabetismo; também ao contrário, sujeitos com alta
escolaridade com baixo alfabetismo. È interessante apontar, também, que o fato de terem um baixo ou alto
nível de alfabetismo, não necessariamente, permite dizer, de forma homogênea, que os sujeitos têm boa
condição econômica.
Assinalo estas pertinentes análises porque existe uma concepção, ainda presente no debate educacional, que
teria uma relação direta entre, a história de escolarização e a situação econômica familiar com situação do
sujeito analfabeto ou em diferentes níveis de alfabetismo. E, o que OLIVEIRA e VÓVIO (2004) mostram é
que há presença tanto de homogeneidade como de heterogeneidade nas configurações do alfabetismo, ou seja,
em determinadas situações pode-se fazer esta análise direta, mas há casos, que esta explicação não se sustenta
porque o inesperado também se apresenta. Assim, não é mais possível dizer que a escolarização formal
permanece como a única forma de desenvolver níveis de alfabetismo, uma vez que em diversas práticas
sociais este processo pode acontecer.
77
Neste item mostraremos, a partir do trabalho de Kleiman (1995)
45
, especificamente
do livro Os Significados do Letramento organizado por ela, quais os diferentes significados
que o termo letramento assume a partir dos recortes de estudo, buscando sempre ressaltar a
concepção de Escrita que se toma por pressuposto. Baseada em Street (1984), a autora traz a
45
Em notas anteriores fizemos referência a um livro, e também a um artigo que faz parte dele, que apresenta
vários trabalhos importantes sobre letramento. Percebemos a importância de destacar mais alguns dos textos
e, ainda, de acrescentar outros pesquisadores expoentes deste campo, aqui no Brasil.
Cabe explicar que a opção por Kleymann(2004) ao corpo da tese, não significa que a consideramos a
pesquisadora mais reconhecida sobre o tema do Letramento em nosso país. A escolha se deve ao fato dela
apresentar um texto que respondeu ao nosso objetivo, qual seja, o de trabalhar apenas com as perspectivas
fundamentais deste campo de investigação, pois não se trata de um trabalho sobre a temática. Assim,
consideramos que a autora conseguiu em suas análises deixá-las clara. Mesmo assim, citamos autores que
precisam ser estudados por aqueles que pesquisam o fenômeno do letramento, como:
FERRARO, Alceu R. (2004) História quantitativa da alfabetização no Brasil. In: Letramento no Brasil. 2.ed.,
São Paulo: Global, 2004. O autor neste texto analisa os resultados do INAF (Indicador Nacional de
Alfabetismo Funcional) privilegiando duas perspectivas de análise: a primeira a história quantitativa do
analfabetismo com base nos dados censos demográficos e, a segunda, o experimento de definição de níveis de
letramento, construídos a partir da contagem da população em 1996.
OLIVEIRA, Marta K. Letramento, cultura e modalidades de pensamento. In: Significados do Letramento.
Campinas, SP: Mercado das Letras, 1995. A autora discute alguns aspectos referentes às relações entre cultura
e modos de pensamento, particularmente no que diz respeito à situação de grupos culturais “pouco letrados”.
RIBEIRO, Vera (org.). Letramento no Brasil. 2.ed. São Paulo: Global, 2004. A autora organiza vários textos
encomendados que comentam os dados do INAF (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional) onde reúne
a produção de especialistas em letramento, alfabetismo, história da alfabetização, leitura e escolarização.
ROJO, Roxane. Concepções não-valorizadas de escrita: a escrita como “um outro modo de falar”. In:
Significados do Letramento. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1995 O texto analisa algumas concepções
sobre a escrita, as quais são valorizadas como mitologias cristalizadas na prática social em contextos
institucionais como a família, escola e meios acadêmicos.
SOARES, Magda. Letramento em Três Gêneros. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. Trata da origem do
termo letramento e de suas implicações nas práticas sociais.
SOARES, Magda. Alfabetização e Letramento. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2004. A autora faz uma releitura
renovada de seus textos escritos num período de treze anos. Trata de diferentes concepções de alfabetização
incluindo conceitos como alfabetismo e letramento, mostrando o movimento do debate em torno da
alfabetização e da busca incessante pela qualidade.
TFOUNI, Leda V. (2002) Letramento e Alfabetização. 4.ed. São Paulo: Cortez. Apresenta vários trabalhos
produzidos por ela desde 1982, quando começou a pesquisar adultos não-alfabetizados. Seus trabalhos sempre
tiveram uma linha avessa da maioria, qual seja, investiga “[...] o que acontece com os adultos não-
alfabetizados que vivem em uma sociedade que se organiza fundamentalmente por meio de práticas escritas,
ou seja, uma sociedade letrada”. (grifo da autora) (p. 7)
78
discussão de dois modelos deste fenômeno: o autônomo e o ideológico
46
explicitando que o
primeiro é aquele que prepondera nas práticas do letramento da escola e, o segundo, aquele
em que as práticas de letramento mudam segundo o contexto onde são experienciados, ou
melhor, a participação em eventos de letramentos é diferenciada entre as classes sociais,
marcando diferentes usos e práticas discursivas da Escrita. É importante sempre ressaltar que
o propósito neste capítulo é de explicitar as diferentes faces da Escrita na cena da
alfabetização e, como nossa pesquisa será realizada na escola, se faz necessário atentarmos
para as considerações a respeito da perspectiva de letramento preponderante na prática
escolar.
Para Kleiman (1995), o termo letramento ainda não foi dicionarizado pela
complexidade e variedade de estudos que se enquadram neste domínio. Desta forma há uma
polissemia da palavra e por isso precisa-se sempre demarcar qual é a concepção que se está
tomando por referência em razão dos enfoques da investigação que se realiza. Em sua análise,
há um percurso nos diferentes modos de conceber o letramento decorrentes das formas de
enfocar este fenômeno, o qual é delimitado pelo campo empírico e pelo objetivo da
investigação.
Estes estudos se caracterizam em um movimento que mostra as diferenças na
abordagem do fenômeno. Inicialmente eles examinam o desenvolvimento social que
acompanhou a expansão dos usos da Escrita desde o séc. XVI enfocando as mudanças
políticas, sociais, econômicas e cognitivas relacionadas com o uso extensivo dela nas
sociedades tecnológicas; aos poucos esses estudos, descrevem as condições de uso da Escrita,
a fim de determinar como era, e quais os efeitos, das práticas de letramento em grupos
46
Cabe trazer aqui, a indicação de um trabalho de SOARES (2004) que trata da escolarização do sujeito e do
objeto onde ela discute sobre as relações entre Letramento e Escolarização. Ela define o conceito de
alfabetização, letramento e escolarização e defende que há ainda pouca clareza entre as relações da
escolarização com o letramento, o que não é a realidade das relações entre alfabetização e escolarização. Ela
diz que o substantivo escolarização é derivado do verbo transitivo direto escolarizar, que exige um
complemento e pode ser de duas naturezas: pessoa ou “coisa” (grifo da autora). Neste sentido explica que
““[..] não só pessoas são escolarizadas, passam por aprendizado em escola, sendo nesse e por esse processo,
transformadas; também conhecimentos e práticas sociais são escolarizadas, passam a objetos de
aprendizagem da escola, sendo, também eles, nesse e por esse processo, escolarizados. (os grifos são da
autora) (SOARES, 2004, p. 93)
Baseada em Heath (1984) e Street (1884) indica, além dos modelos de letramento autônomo e ideológico, os
quais touxemos ao item deste capítulo por meio da leitura de Kleiman (1995), outros dois componentes
básicos do fenômeno do letramento: os eventos e as práticas de letramento. Estes, segundo a autora, são
conceitos que permitem fundamentar a distinção entre um letramento escolar de um letramento social, este
último, denominado por ela, talvez impropriamente. (os grifos são da autora). “Por eventos de letramento
designam-se as situações em que a língua escrita é parte integrante da natureza entre os participantes e de seus
processos de interpretação [...] Por práticas de letramento designam-se tanto os comportamento exercidos
pelos participantes num evento de letramento quanto às concepções sociais e culturais que o configuram,
determinam sua interpretação e dão sentido aos usos da leitura e/ou da escrita naquela particular situação”
(HEATH, 1982:93; STREET, 1995a:2 apud SOARES, 2004:105)
79
minoritários, ou em sociedades não-industrializadas que começavam a integrá-la como uma
“tecnologia” (grifo da autora) de comunicação dos grupos que sustentavam o poder. Este
enfoque não pressupõe mais efeitos universais do letramento, mas analisa os efeitos
correlacionados às práticas sociais e culturais de determinados grupos que usavam a Escrita;
atualmente os estudos se utilizam de metodologias que permitem compreender os micro
contextos em que se desenvolvem as práticas de letramento, então a definição do ser letrado
vai depender do recorte de análise que o pesquisador assume. Por exemplo, ser letrado para
um estudioso poderá ser aquele que desenvolveu e usa uma capacidade metalingüística em
relação à própria linguagem; poderá ser uma prática discursiva de um determinado grupo
social, que se relaciona ao papel da Escrita, mas que não envolve necessariamente o domínio
da leitura e da Escrita (p. 16-17).
Neste sentido, o letramento assume diferentes conotações em razão dos objetivos e
campos de coleta de dados, mas é interessante ressaltar que a idéia fundamental do conceito
letramento refere-se aos usos e às práticas sociais que tomam a Escrita por referência.
Para Kleiman (1995), também a oralidade é objeto de análise de muitos estudos sobre
letramento, pois muitas crianças que pertencem a certas classes sociais – média ou pobre –
participam de eventos de letramento na oralidade (escuta de leitura de histórias, de trechos
religiosos, etc.); em razão dessas experiências vividas podem ser consideradas letradas e,
assim aprendem práticas discursivas letradas mesmo antes de aprender a ler e a escrever.
Nesta compreensão ser letrado não pressupõe, necessariamente, dominar a leitura e a Escrita,
pois as pessoas podem participar de situações que revelam a função e o papel da Escrita na
comunidade da qual fazem parte sem ter o seu domínio.
Diante destas diferentes abordagens de estudos sobre o letramento, surge a questão
de como a Escrita é concebida. Kleiman (1995) define letramento baseada em Scribner e Cole
(1981) que o defende como “[...] um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto
sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos
específicos” (p. 19).
A partir desta visão, percebe-se o rompimento com a idéia da Escrita restrita ao
trabalho escolar. Ela é analisada a partir das diferentes experiências que os grupos sociais têm
em seu cotidiano de trabalho, de lazer, de religiosidade, etc. Assim, a escolarização, nesta
perspectiva não é a principal referência dos estudos das práticas de letramento; embora ainda
hoje ela continue sendo a principal agência formal do trabalho com a Escrita e a leitura.
Segundo esta autora, a escola trabalha “[...] apenas um [grifo da autora] tipo de prática – de
80
fato dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades, mas não outros, e que determina
uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita” (p. 19).
Kleiman (1995) defende que a escola trabalha com apenas um tipo de prática de
letramento, a alfabetização, não se ocupando da prática social. Esta forma de enfocar o ensino
da escrita e da leitura corresponde ao modelo autônomo de letramento vinculado à concepção
de que a Escrita seria:
[...] um produto completo em si mesmo, que não estaria preso ao contexto de sua
produção para ser interpretado; o processo de interpretação estaria determinado pelo
funcionamento lógico interno ao texto escrito, não dependendo das (nem refletindo,
portanto) reformulações e estratégias que caracterizam a oralidade, pois, nela, em
função do interlocutor, mudam-se rumos, improvisa-se, enfim, utilizam-se outros
princípios que os regidos pela lógica, a racionalidade, ou consistência interna, que
acabam influenciando a forma da mensagem. (KLEIMAN, 1995, p. 22)
É para contribuir na superação desta visão restrita da Escrita trabalhada pela maioria
das escolas que pretendemos outra abordagem dela na alfabetização, na medida em que a
concebemos como um sistema simbólico que enuncia e diz daquele que escreve. Ao escrever,
o sujeito está dizendo a partir de si e este dizer inclui o contexto social do qual ele faz parte.
Concordamos que a escola tem – tradicionalmente – trabalhado com esta visão da Escrita,
enquanto produto em si mesma, na medida em que, como vimos no primeiro item deste
capítulo, os métodos de alfabetização sempre a enfocaram apenas em sua dimensão técnica e
de código, quer dizer, sendo ela apenas algo da exterioridade do sujeito. O que não podemos
desconsiderar é que existem investigações no campo da alfabetização
47
, que têm dado
relevância à Escrita como prática discursiva que considera tanto o contexto em que vivem
como as competências lingüísticas desenvolvidas pelos sujeitos nas experiências com
comunidade onde vivem por meio das atividades de lazer, do comércio, do mundo do
trabalho, da prática religiosa, etc. Estes aspectos da realidade têm marcado presença constante
47
Inúmeros são os estudos no campo da alfabetização que consideram o contexto de usos da escrita e da leitura
como elementos fundamentais para este processo. Dentre eles destacamos apenas alguns, que como todo
trabalho, apresentam limites, bem como, possibilidades e precisam ser considerados, como: CAGLIARI,
(1989 e 1998); FEIL (1987) e SMOLKA (2003).
Também não podemos deixar de considerar os estudos da sociopsicolingüística. Destacamos os trabalhos de
BRAGGIO (1992). Segundo a autora é a partir da década de 60, do século XX, que a sociopsicolingüística se
estrutura como campo de investigação da Lingüística. Nestes estudos se supera uma visão mecanicista sobre a
natureza da linguagem e sua aquisição. Fundamentada na psicologia e na lingüística considera o processo de
alfabetização situado num contexto sócio-histórico. Nesta linha de pensamento, se propõe um modelo
sociolingüístico de alfabetização que aponta para a necessidade de se ““[...] estabelecer as funções e os usos
sociais da escrita numa dada comunidade, a fim de que possam ser incorporados ao ensino da língua materna,
estabelecendo-se, assim, uma congruência entre a situação sociolingüística na comunidade e o ensino da
língua materna. (p.30)
81
no debate sobre o processo de alfabetização, o qual é compreendido por muitos educadores,
muito além do domínio da Escrita e da leitura.
Para Kleiman (1995), o modelo autônomo de letramento é considerado, por muitos
estudiosos, parcial e equivocado por trazer por pressuposto apenas uma maneira do letramento
associada ao progresso, à civilização, à mobilidade social. Neste sentido, ela caracteriza este
modelo como aquele que defende: a correlação entre a aquisição da Escrita e o
desenvolvimento cognitivo; a dicotomização entre a oralidade e a Escrita e a atribuição de
“poderes” (grifo da autora) a qualidades intrínsecas à escrita, e por extensão, aos povos ou
grupos que a possuem (p. 21-22).
A perspectiva de letramento adotada por este modelo, na análise da autora, é perigosa
em razão de:
a) gerar segregações e preconceitos entre os que dominam a leitura e aqueles que
são privados deste conhecimento podendo constituir-se grupos, considerados por
parte de alguns, diferenciados cognitivamente;
b) enfatizar a distância entre a Escrita e a oralidade ao tomar o texto tipo ensaio
como foco de ensino da Escrita, pois as diferenças são bem mais relativas se o
foco for colocado em suas semelhanças demonstrando que a prática social é
constitutiva da linguagem; e
c) continuar fazendo com que se acredite que a aquisição da Escrita acarreta
conseqüências cognitivas por meio da incorporação desse poder transformador de
nossas estruturas mentais sendo atributo intrínseco dela, reforçando o “mito do
letramento” (grifo da autora) que traz a ideologia que vem sendo reproduzida nos
últimos trezentos anos, qual seja, a de conferir ao letramento uma enorme gama
de efeitos positivos, desejáveis, não só no âmbito da cognição, mas também no
âmbito social. Na realidade, pelos estudos já realizados, não há evidência de
correlação entre letramento universal e desenvolvimento econômico, igualdade
social e modernização.
Assim, na visão de Kleiman (1995), este modelo autônomo de letramento
preponderante nas instituições educacionais tem historicamente atribuído o fracasso do
processo de escolarização ao indivíduo e a sua situação de pobreza, o que mostra a presença
de uma determinada ideologia das sociedades tecnológicas, a qual busca sempre uma
82
referência padronizada de linguagem e insiste na idéia da Escrita enquanto produto em si
mesma, apresentando uma lógica de interpretação interna.
Como alternativa a este modelo, apresenta-se aquele que explicita a ideologia do
letramento, quer dizer, aquele que deixa claro “[...] que todas as práticas de letramento são
aspectos não apenas da cultura, mas também das estruturas de poder numa sociedade” (p. 38).
Neste sentido, as práticas de letramento mudam segundo o contexto onde são experienciados;
ou melhor, a participação em eventos de letramentos são diferenciadas entre as classes sociais,
marcando diferentes usos e práticas discursivas da Escrita.
Como mencionamos, segundo Kleiman (1995) tradicionalmente a escola toma por
orientação o modelo autônomo de letramento:
[...] que considera a aquisição da escrita como um processo neutro, que,
independentemente de considerações contextuais e sociais, deve promover aquelas
atividades necessárias para desenvolver no aluno, em última instância, como
objetivo do final do processo, a capacidade de interpretar e escrever textos abstratos,
dos gêneros expositivo e argumentativo, dos quais o protótipo seria o texto tipo
ensaio. (KLEIMAN, 1995, p. 44)
Assim, as crianças que são socializadas em famílias com alto grau de escolaridade
percebem uma continuidade em seu desenvolvimento lingüístico. Entretanto, na maioria das
vezes fica excluído um grupo majoritário de crianças que fazem parte de famílias, às vezes da
classe média, com pouca escolaridade ou provenientes de famílias pobres, uma vez que a
prática de letramento da escola acarreta uma ruptura nas formas de fazer sentido à Escrita
(KLEIMAN, p. 40).
Todas as crianças participam de diferentes eventos de letramento em seu cotidiano,
mas, muitas vezes, não são considerados relevantes pela escola uma vez que ela busca uma
homogeneidade, ou seja, uma padronização na escolarização em que o valorizado são as
construções, desde o início da escolarização, de um texto expositivo abstrato partindo sempre
de uma separação polarizada entre a oralidade e a Escrita.
Estas constatações sobre a perspectiva do ensino da Escrita, já discutidas no primeiro
capítulo deste trabalho, se aproximam daquelas que temos acompanhado em nossas atividades
profissionais atuando tanto nos cursos de formação de professores bem como nas pesquisas
realizadas nos Anos Iniciais escolares. Cabe ressaltar que se percebe, também no campo do
letramento, a preocupação com a existência de uma única referência de padrão de
aprendizagem, de conhecimentos e atitudes reconhecidos e legitimados pela escola. Essas
preocupações não são recentes, pois o debate em torno da ideologia que a escola tem
83
reproduzido ao longo dos últimos séculos tem gerado muita produção acadêmica e
importantes referências para análise do currículo por meio da construção do projeto político
pedagógico
48
das instituições. Este processo auxilia na desconstrução das práticas vividas nas
relações sociais de toda a comunidade escolar (professores, alunos, funcionários e pais) nos
diferentes espaços da escola. Acredita-se que uma das formas de buscarmos uma escola mais
inclusiva que reconheça as diferenças será a de assumir uma análise desconstrutiva da
tradicional prática escolar.
Diante deste quadro construído sobre a concepção de Escrita que o campo de
letramento tem trabalhado, fica mais umas vez reforçada a importância dela ser concebida sob
outras abordagens, pois ainda persiste na prática do letramento da escola uma visão de Escrita
enquanto um produto em si mesmo, que insiste em concebê-la como algo apenas da
exterioridade do sujeito. Esta constatação nos permite seguir na construção de uma pesquisa
que a sustente sob outros referenciais, os quais permitirão analisar no ato de escrever, o
sujeito e suas experiências de vida, tanto sociais como subjetivas.
A partir deste importante debate sobre os tradicionais métodos de alfabetização, a
contribuição da psicogênese da escrita, a influência da visão sócio-histórica no debate sobre o
ensinar a ler e a escrever, bem como os estudos sobre letramento, percebemos que ainda
permanece pouco investigada a questão da relação do sujeito com a escrita em sua
singularidade e da cultura como possibilidade de (re)criação. Assim, no item abaixo
pretendemos circunscrever uma singularidade a este trabalho que viemos construindo.
2.5 ELABORAÇÕES/DERIVAÇÕES PARA UMA PERSPECTIVA DA ESCRITA
COMO ENTRE-LUGARES DO ENUNCIADO E DA ENUNCIAÇÃO
Após esta incursão na história do debate em torno da alfabetização em que
analisamos, especificamente, as concepções de Escrita que o pautaram, podemos perceber que
as discussões dos tradicionais métodos de alfabetização giravam em torno da busca pela
prescrição de melhores procedimentos de ensino para a professora-alfabetizadora ensinar a ler
e a escrever a todos em pouco tempo. Neste momento do debate, o enfoque era no papel da
48
Destacamos os livros organizados por VEIGA (1995, 1998, 2001) sobre o tema Projeto Político Pedagógico.
Neles ela reúne vários artigos que discutem os desafios da elaboração e implementação do Projeto Político
Pedagógico na comunidade escolar, bem como a importância dessa tarefa na organização e funcionamento da
instituição, sendo esta uma das formas de alterar o histórico modelo da gestão centralizadora. Além disso,
trata da possibilidade da vivência de um planejamento participativo por parte de todos aqueles que fazem o
cotidiano da escola.
84
educadora a qual conduzia e determinava todo o processo de aprendizagem, ignorando, na
maioria das vezes, as manifestações das crianças a respeito da Escrita e da leitura, uma vez
que a aprendizagem da Escrita aqui se reduzia a uma técnica a ser interiorizada.
Como uma guinada neste debate, apareceram os resultados das pesquisas sobre a
psicogênese da Escrita que desloca radicalmente a atenção dos educadores, na medida em que
o foco deste trabalho esteve sempre no aluno que aprende e considera todas as aprendizagens
que as crianças trazem quando chegam no processo formal da escolarização. Isto contribuiu
muito para a desmistificação da lógica adultocêntrica que a escola tem primado, pois todas as
determinações tanto organizativas como de aprendizagem são indicadas pelos adultos da
instituição e, porque não dizer, familiar. No entanto, esta pesquisa colocou a capacidade
cognitiva da criança na cena principal do processo da construção da Escrita e do domínio da
leitura. Isto contribuiu muito para redimensionar o papel da professora-alfabetizadora em sala
de aula e o do aluno.
Assim, a psicogênese da Escrita deu relevância ao aspecto cognitivo e lingüístico na
aprendizagem da Escrita e da leitura focalizando a lógica infantil da aprendizagem. Também
demonstrou, pelo percurso que as crianças fazem na construção da escrita, que ela não é
apenas uma técnica, mas um objeto cultural e de conhecimento que pressupõe um domínio
conceitual e não apenas domínio de habilidades percepto-motoras.
Ao mesmo tempo – do debate sobre as contribuições das pesquisadoras argentinas –
encontramos os subsídios da perspectiva sócio-histórica de Vygotsky, bem como, dos
experimentos de Luria sobre a pré-escrita infantil e das investigações sobre o fenômeno do
letramento; elas tomam o socioconstrutivismo por fundamento filosófico e psicológico.
Nestes trabalhos, encontramos a relevância da cultura no processo de transformar o homem de
biológico em sócio-histórico, em que a própria constituição humana é de natureza cultural.
Luria em seus experimentos, embora tenha considerado a Escrita uma técnica, diferenciou-a
das demais aprendizagens, uma vez, que considera que esta modifica as funções psíquicas
superiores, pois aprender a escrever significa modificar o modo de pensar no mundo.
Na linha de análise dos estudos do letramento, a consideração do contexto social – do
qual faz parte o sujeito – é condição para se pensar qualquer processo educacional e – no que
se refere à aprendizagem da Escrita e da leitura – há uma ênfase na importância das
experiências dos usos da escrita na família e na comunidade onde vivem as crianças, bem
como na pertinência da oralidade para a sua construção.
Diante destas perspectivas de análise sobre a aprendizagem da Escrita e da leitura,
85
pode-se concluir que no momento em que houve o distanciamento da busca por melhores
métodos de ensino, todos os estudos enfatizaram aspectos fundamentais deste processo como
a capacidade lingüística e cognitiva do sujeito e a interferência da cultura na aprendizagem,
bem como a cultura como constituidora do sistema da Escrita e da própria natureza humana.
No entanto, a dimensão da singularidade do sujeito e a análise da cultura foram abordadas de
forma diferente da que estamos propondo nesta pesquisa. Aqui, vamos analisar a
subjetividade como inserção do homem na língua e a produção da cultura como criação de
sentidos e significados de cada um, situada num entre-lugares entre a enunciação e o
enunciado. Acreditamos que é nesta contingência onde acontece a (re)criação da existência
humana no tempo presente, ou seja, no ato de escrever.
Assim, queremos ressaltar que o propósito desta pesquisa é de construirmos um
trabalho que considere os usos sociais da escrita e do contexto social daquele que aprende; o
aspecto psicogenético da aprendizagem e a competência lingüística, mas terá por foco de
estudo a análise da presença de singularidade na relação daquele que escreve com a Escrita.
Melhor dizendo, percebemos em todas estas importantes discussões sobre o domínio da
Escrita e da leitura um sujeito que aprende, mas há uma análise diferenciada sobre a
singularidade deste processo, ou seja, existe um sujeito individual que aprende, como é o caso
dos estudos da psicogênese da escrita, mas um sujeito epistêmico, que diz de uma trajetória
comum a todos quanto a conceitualização da escrita. No que se refere aos estudos do
letramento, também existe um sujeito – alfabetizado ou não-alfabetizado – pertencente a um
grupo cultural que aparece em sua singularidade, quando se estuda as diversas práticas sociais
da Escrita e os seus usos, enfatizando assim a experiência de cada um com a Escrita por meio
da história de sua vida.
Nesta pesquisa queremos justamente enfatizar o sujeito singular que – além de ser
constituído pelo cognitivo, lingüístico e cultural – é também fundado por uma singularidade
no ato de escrever. Por esta razão, pretendemos construir uma perspectiva de Escrita situada
no entre-lugares do enunciado e da enunciação que produz subjetividade, ou melhor, uma
investigação que analisa o ato de escrever situado no interstício do enunciado e da
enunciação.
Para sustentar este trabalho, buscamos uma concepção de cultura que suponha
produção cultural e a existência de um sujeito que produz a própria história marcada pelo seu
modo de ver e sentir o mundo. Neste sentido, o conceito de entre-lugares ocupa a cena desta
investigação, pois concebido como sendo um interstício onde se situa o trabalho fronteiriço da
86
cultura vai mostrar a possibilidade de elementos/recursos singulares, no caso desta pesquisa,
por meio da Escrita. A cultura, nesta perspectiva, é colocada na esfera do “além”, ou seja, na
fronteira do presente (BHABHA, 1998, p. 20-27). E, a Escrita enquanto objeto cultural e de
conhecimento, apresenta um potencial de (re)criação que pode ser traduzido no ato de
escrever. Também buscamos uma teoria da enunciação que acredita que todo o ato de
enunciar é único e irrepetível, o que vai marcar uma relação singular do sujeito com a língua e
com o mundo. Estas reflexões acerca da face cultural da escrita constituirão o capítulo III e as
demais a respeito da enunciação serão temáticas do capítulo IV.
87
Da esquerda para a direita: Vítor e Matheus (4ª Série)
Vítor e Matheus lêem as histórias silenciosamente...
88
3. A FACE CULTURAL DA ESCRITA
No capítulo anterior fizemos um percurso pelo debate teórico-metodológico das
últimas décadas a respeito da Escrita na alfabetização, especialmente nos anos inicias da
escolarização e percebemos que, embora se tenha produzido conhecimentos importantes na
área, essas investigações focalizam de uma maneira diferente, da que nos propomos fazer, a
singularidade da relação que o sujeito estabelece com a Escrita e a produção das significações
e sentidos culturais
49
. Neste trabalho estamos trilhando caminhos para fundamentar que a
Escrita e a cultura estão implicadas na produção e constituição da subjetividade.
Em outras palavras, o que queremos defender nesta tese é que a escrita, por meio de
seus registros, produz cultura e também constitui a subjetividade do sujeito que a domina. No
entanto, vimos no capítulo anterior que a escrita na alfabetização vem sendo trabalhada,
mesmo diante dos avanços teórico-metodológicos da área, já por muitas décadas, de forma
bastante questionável por várias razões, dentre elas pelo fato principal de continuar
produzindo um alto contingente de analfabetos funcionais, como nos mostram os dados do
último Censo realizado pelo IBGE em 2003
50
. Eles apontam que o Brasil ainda tem 31,3
milhões de pessoas nesta situação, o que indica que as pessoas chegaram a freqüentar a
49
É importante dizer que, ao nos referirmos à cultura, estaremos sempre invocando a idéia de significados e
sentidos produzidos por cada um. Tomamos a perspectiva trabalhada por Bhabha, que coloca o sujeito da
enunciação num Terceiro Espaço flutuante onde os signos são apropriados, traduzidos, re-historicizados e
lidos de modo diverso. Esta definição será, ainda, mais explicada neste capítulo.
50
Matéria publicada no jornal Correio do Povo – POA/RS, do dia 25/02/05.
89
escola
51
, mas não apresentam o domínio da Escrita como mais uma forma de expressão e de
se constituir, também, em seu aspecto instrumental, um elemento importante para as mais
variadas aprendizagens. Além disso, a persistência dos índices de reprovação na primeira
série do Ensino Fundamental, em torno de 50%, e a continuidade dos índices de evasão e
repetência nas quatro primeiras séries do mesmo nível de ensino, demonstra que a qualidade
neste nível de ensino ainda é preocupante
52
.
Esta situação nacional, e minha atuação profissional, é que instiga a construção de
conhecimentos em campos ainda pouco trabalhados pela pedagogia, como por exemplo, o que
analisa o processo de alfabetização de crianças tomando os conhecimentos da lingüística
enunciativa e da sociologia da cultura. Acreditamos que o resultado destas incursões teóricas
será mais uma contribuição para redimensionar a realidade dos anos inicias da escolarização,
na medida em que estamos aprendendo a analisar a escrita das crianças sob outras
perspectivas de estudos. Como viemos anunciando no decorrer deste trabalho, a nossa
pretensão é a de produzir referências para analisar o processo de alfabetização, mais
especificamente a escrita das crianças a partir de campos que supõem a existência de um
sujeito singular, pois acreditamos que é em sua singularidade que a criança se relaciona com a
escrita e com o mundo. A partir desta compreensão, cada criança vai – ao escrever – marcar
51
Ferraro (2004) tem um trabalho que mostra dados interessantes e, mais detalhados a respeito da situação de
analfabetismo de jovens e adultos no Brasil. Neste artigo, a partir dos dados do INAF (Indicador Nacional de
Alfabetismo Funcional - INAF2001), ele analisa três níveis de letramento ou alfabetismo da população entre
15 e 64 anos de idade, o qual altera este número geral fornecido pelo IBGE, uma vez que foram utilizados
dois tipos de questionários: um contendo vinte tarefas de complexidade variável, relacionada a contextos e
objetivos práticos de leitura e escrita; e outro para levantar dados sobre a situação familiar e educacional dos
respondentes , sobre suas práticas de leitura e escrita em diversas situações e sobre o julgamento que fazem de
suas próprias capacidade (p. 196) Estes dados mostram uma diversidade de situações em relação as práticas
de leitura e escrita, evidenciando uma outra forma de analisar a situação do analfabetismo em nosso país.
Optamos neste momento pelos dados do IBGE porque o nosso interesse aqui é de apenas apresentar um dado
mais geral da situação do analfabetismo no país.
52
Temos conhecimento da pertinência de inúmeros trabalhos que já denunciam esta situação e que propõem
conhecimentos acerca das implicações entre a escrita, cultura e subjetividade O que pretendemos nesta
investigação é abordar a escrita no processo da alfabetização e suas relações com a produção da cultura e de
subjetividade. É importante dizer que na visão de Ferreiro (2001)atualmente inúmeros são os trabalhos sobre
a escrita. Em sua visão “[...] estamos vivendo algo sensacional. Tenho a impressão de que está começando a
ser formado um novo campo disciplinar, sem que se saiba muito bem quais são suas fronteiras ou seus limites.
Começa a aparecer uma literatura antropológica, histórica, lingüística e também psicológica que nos fala da
escrita em outros termos” (p. 43) Neste sentido, a própria Ferreiro tem pesquisado sobre a cultura escrita em
outras ciências. Destacamos dois estudos sobre as implicações da escrita , cultura e subjetividade:
Certeau (1994) trata a escrita como um mito da modernidade. Em sua visão, na cultura ocidental, esta prática
tem sido muito valorizada pela economia capitalista. O autor ressalta que atualmente produzir é escrever e
que o progresso é do tipo escriturístico (p. 24). Ao escrever o sujeito registra a tradição do mundo e a sua
produção no presente.
Pérez e García (2001) concebe a escrita como uma ferramental cultural de aprendizagem, por ser uma
construção cultural. Neste sentido, supera a visão de que escrever se reduz ao domínio do código por meio de
atividades mecânicas, pois para ele escrever é uma atividade prática e intelectual que se aprende num
processo dialético.
90
os significados culturais contextualizados na comunidade da qual faz parte e na sua
singularidade.
Como dissemos em outro momento, consideramos que a Escrita e a cultura estão
entrelaçadas na trajetória histórica que fez a humanidade para chegar aos sistemas de Escrita
53
que conhecemos hoje. Também sabemos dos importantes estudos
54
. Além disso, atualmente
existem inúmeros estudos importantes no campo da Escrita, dentre eles destacamos aqueles
que a abordam em suas implicações sociais e psicológicas, os quais têm se constituído num
dos principais focos de estudo, bem como as pesquisas sobre a interferência da Escrita na
53
É consenso que a invenção da escrita revolucionou a comunicação entre os homens e a qualidade de suas
mensagens. E, que a história da escrita mostra a trajetória das formas de pensamento humano e, por sua vez,
das relações que estabelece com o mundo das coisas e das idéias. No entanto, segundo Georges (2002), nesta
história apaixonante, ainda hoje, faltam páginas e é preciso lembrar que “[...] a escrita propriamente dita, só
começou a existir a partir do momento em que foi elaborado um conjunto de signos ou símbolos que, por
meio dos quais os usuários puderam materializar e fixar claramente tudo o que pensavam, sentiam ou sabiam
expressar” (p. 12).
Bottéro (1995) mostra que foi acerca de 3000 anos, antes da nossa era, descoberta na Mesopotâmia as
primeiras marcas inequívocas de uma escrita, chamada “cuneiforme” que era estilizada nas formas de
“cunhas” e “pregos” (p. 10) [grifo do autor]. Em sua visão, os povos da Mesopotâmia inventaram a sua
própria escrita sem a interferência de fora, pois eles ascenderam da oralidade pura à tradição escrita. O autor
diz que a descoberta da escrita permitiu [...] tirar, por assim dizer, o seu pensamento da cabeça ou da boca e
projetá-lo na matéria, fixá-lo, propagá-lo no espaço e no tempo, a que ponto essa descoberta impressionou seu
espírito, dirigindo-o para uma visão particular do mundo, uma maneira de compreendê-lo, de refletir e de
raciocinar; para uma ‘lógica’, um conjunto de representações, até mesmo de instituições características de seu
sistema cultural, das quais algumas passaram, com ele, à nossa mais velha herança (p. 11).
A escrita possibilitou registrar a memória dos povos e retomá-la para transmiti-la às novas gerações, bem
como, para desenvolver sistemas culturais e o raciocínio humano. Segundo este autor, é inegável a
contribuição da Mesopotâmia para a humanidade, por ter dado à luz a escrita na medida em que ela
possibilitou “[...]substituir as coisas desenhadas pelas coisas extra mentais, preservando a sua identidade,
colocando as palavras escritas no lugar das coisas” (p. 30) [grifo do autor]. A partir destes estudos, pudemos
verificar que a invenção da escrita na humanidade data de 3000 na Suméria e 400 antes de nossa era em
Atenas e, neste percurso até nós muitas são as línguas e as culturas.
54
Destacamos um estudo que analisa a relação da escrita com o desenvolvimento cognitivo, mais
especificamente, as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. Este trabalho é do pesquisador
canadense Olson (1997). Ele desenvolve sua teoria considerando que [...] as diferenças históricas e culturais
na maneira como as pessoas pensam a respeito de si e do mundo tornam-se mais e mais evidentes, e torna-se
cada vez mais urgente procurar compreendê-las. O aprendizado da leitura e da escrita parecem explicações
potenciais óbvias (p. 11-12). A partir desta constatação ele constrói uma abordagem cognitiva em seus
trabalhos buscando então estudar a interferência da escrita no pensamento, na produção do conhecimento e na
maneira de se compreender a si e ao mundo. Para realizar tal estudo, traz o debate sobre a desmistificação do
domínio da escrita apoiado em pesquisas atuais, as quais lançaram dúvidas sobre algumas crenças ou
pressupostos que são profundamente aceitos e amplamente compartilhados, são elas: a) escrever é transcrever
a fala; b) há superioridade da escrita com relação à fala; c) a superioridade tecnológica do sistema de escrita
alfabético; d) a escrita é órgão do progresso social; e) a escrita como instrumento do desenvolvimento social e
científico e, f) a escrita como instrumento de desenvolvimento cognitivo (p.19-24). Olson (1997) mostra os
limites e as possibilidades da escrita em uma sociedade que vive, no mundo do papel.
Outro clássico trabalho no campo da escrita é o de Goody (1986). No livro A Lógica da Escrita e a
Organização da Sociedade discute os efeitos a longo prazo da escrita na organização da sociedade. Ele enfoca
a influência da presença da escrita no conceito e no papel da religião, da economia, da política e da lei
buscando compreender a relação da escrita com a lógica, com os procedimentos, com as instituições e com a
lei. Mostra ainda que a escrita propiciou fixar a palavra. Fixada pela escrita, a palavra se diferencia do que era
no princípio: o verbo. A escrita trouxe as generalizações e as normatizações das instituições. Assim, ele
coloca como categoria de análise o meio e as relações de comunicação ao invés de colocar o meio e relações
de produção utilizada com tanta freqüência nas pesquisas que estudam as História humana.
91
organização e no desenvolvimento das sociedades. Assim a intenção neste capítulo é a de
sustentar a Escrita como um sistema simbólico que produz significados e sentidos culturais
marcados pela singularidade dessa relação no processo de alfabetização das crianças.
Se por um lado nos capítulos anteriores foi possível traçar algumas linhas definidoras
da escrita no campo da escola – percurso que se apresenta como condição necessária para
clarear os recortes que constituem esta tese –, por outro, isso não é suficiente para os nossos
objetivos. Em outras palavras, sendo a escola peça essencial na construção de vínculos sociais
do sujeito que ingressou no mundo da Escrita, e sendo ela parte definidora do que aqui será
chamado de cultura como “lugar enunciativo”, a exemplo do que diz Bhabha (1998), então a
escrita deve ser pensada como um lugar de “negociação cultural” na escola, esta, por sua vez,
vista como um espaço de heterogeneidade. Nesse caso, a pergunta que norteia este capítulo é:
- Em que medida, ao se considerar a Escrita como um entre-lugares do enunciado e da
enunciação, se pode visualizar um espaço de produção do sujeito como instância do singular?
Cabe dizer que, por ora, estamos compreendendo a enunciação como todo o processo
de mobilização e utilização da língua, e o enunciado como a proposição de uma
posicionalidade pelo sujeito. No caso deste trabalho, analisaremos a relação das crianças com
a escrita, como enunciação; o texto escrito, como enunciado. Estes dois conceitos
fundamentais serão mais bem definidos e aprofundados no próximo capítulo onde trataremos
da escrita na enunciação.
Tomaremos, como referenciamos no capítulo anterior, o sentido benjaminiano de
história e cabe dizer que Bhabha (1998) também a concebe nesta visão, qual seja a de ela ser
um objeto de construção no presente em que o novo não é uma ruptura ou vínculo com o
passado, não mais um presença sincrônica, mas a nossa autopresença mais imediata vem a ser
revelada por suas descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias. Neste sentido, Bhabha
analisa que diferentemente da “[...] mão morta da história que conta com as contas do tempo
seqüencial como um rosário, buscando estabelecer conexões seriais, causais [...]” (p. 23) ele
também estabelece uma concepção do presente como o ‘tempo do agora’ (grifo do autor).
Acreditamos, a partir desta concepção de história, que a produção da cultura,
especificamente no caso da relação da criança com a escrita, se dá no tempo do presente e do
agora – no tempo do processo de alfabetização de cada criança, mais especificamente, na
relação com a escrita – situado no entre-lugares do enunciado e da enunciação, entendido
como um interstício onde se situa o trabalho fronteiriço da cultura – no Terceiro Espaço da
enunciação – onde há expressão de singularidade que se explicitam nas desigualdades e
92
descontinuidades de ritmos, de dúvidas, de reflexões em torno da escrita diante do ato de
escrever. Na escola esta produção acontece como ruídos do cotidiano escolar, os quais, na
maioria das vezes, passam despercebidos por muitas professoras-alfabetizadoras, uma vez que
não concebem a produção da Escrita como uma vivência que produz subjetividade e cultura.
È pautada nesta perspectiva de cultura e de produção escrita que iremos construir daqui por
diante tomando – principalmente – a contribuição da crítica pós-colonial de Bhabha (1998).
Para tal propósito, construímos o capítulo da seguinte forma: num primeiro
momento, serão discutidas as origens da perspectiva pós-colonial para entendermos a linha
filosófica deste pensamento, bem como situar o contexto em que ela emergiu na discussão
teórico-política do ocidente. Em seguida, enfocaremos a proposta de Bhabha no que se refere
à produção de significados culturais a partir do desafio de superar o binarismo teoria e política
que tem traduzido já, há algumas décadas, uma visão utópica e totalizante do Ser e da
História. O que o autor propõe é uma teoria intervalar que confunde esta divisão tradicional e
coloca o trabalho da cultura em fronteiras onde a ambivalência e a contradição discursiva
tornam possível o político
55
. Para encaminhar a discussão sobre a produção da cultura e a
relação com a escrita, situaremos o nosso propósito de tese buscando implicar esta perspectiva
de produção de significados culturais e de singularidade ao campo da alfabetização de
crianças.
Este momento da discussão no trabalho é fundante de nossa tese, pois ele marcará
uma concepção de produção de significados culturais e de subjetividade, que “empurra”
qualquer pesquisador a construir uma outra visão sobre a produção da história e de cultura,
uma vez que implica que analise a interferência e a (re)criação humana no fora, no além da
oposicionalidade e dualismo que – tradicionalmente – têm sustentado nossa estrutura de
pensamento e de análise da realidade e, no caso deste trabalho, da análise do contexto escolar,
no que se refere às relações sociais educativas do cotidiano da alfabetização. Assim, para
compreender esta outra maneira de conceber a produção da cultura no processo de
alfabetização, passamos, primeiramente a discutir as origens e o contexto da proposta crítico
pós-colonial.
55
O sentido do político trabalhado por Bhabha é filosófico e não partidário. O político como a capacidade de\o
homem organizar e agir a sua conduta ns suas relações com os outros homens (LALANDE, 1993).
93
3.1 CONTEXTUALIZANDO AS ORIGENS DO PENSAMENTO CRÍTICO PÓS-
COLONIAL
Como anunciado, neste item mostramos as origens e o contexto da perspectiva
teórica construída nos trabalhos do crítico indo-britânico Bhabha (1998) e tomamos por
referência, principalmente, a obra O Local da Cultura onde ele situa a crítica pós-colonial e
uma visão de cultura produzida na contingência como marca de um espaço conflituoso que
produz, sendo esta uma estratégia contra-hegemônica para reconstituir o discurso da diferença
cultural. O autor analisa neste trabalho o discurso colonial por meio de um corpus constituído
por romancistas, documentos do governo britânico na índia e, sobretudo, pela crítica de Fanon
e Said
56
- o que demonstra a complexidade desta obra e, ao mesmo tempo, revela que a sua
dupla inscrição cultural marca a abordagem construída, uma vez que toma o discurso
produzido sobre as minorias como elemento de análise e produção de um outro modo de
pensar e analisar as ambivalências e as contradições da estrutura das sentenças.
Na visão de Bhabha (1998), a linha crítica denominada pós-colonial emerge do
testemunho colonial dos países do Terceiro Mundo e dos discursos das minorias (grifo do
autor), intervindo “[...] naqueles discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma
“normalidade” [grifo do autor], hegemônica ao desenvolvimento irregular e às histórias
diferenciadas de nações, raças, comunidades e povos” (p. 239). O autor defende que para
reconstituir-se o discurso da diferença cultural é necessária não só a mudança de conteúdo e
símbolos culturais, mas uma revisão radical na idéia de temporalidade social para que
histórias emergentes possam ser escritas e, uma rearticulação do “signo” [grifo do autor], no
qual se possam inscrever identidades culturais (p. 240).
Estas proposições surgem do questionamento de Bhabha sobre a visão totalizante do
Ser e da História que tem sido hegemônica na cultura ocidental a qual sempre busca “[...]
transcender as contradições e ambivalências que constituem a própria estrutura da
subjetividade humana e seus sistemas de representação cultural” (p. 43). Neste sentido, ele
nos alerta para a pertinência de analisarmos o Ser e a História tomando a ambivalência e a
contradição como sendo própria de sua estrutura, buscando compreendê-las como sendo o que
56
Frantz Fanon é um psicanalista da Martinica que participou da revolução argelina. Segundo Bhabha (1998) ele
analisa as condições de deslocamento cultural e discriminação social em que os sobreviventes políticos
tornam-se as melhores testemunhas históricas, pois mostram o desejo de reconhecimento de "outro lugar e de
outra coisa”, que leva a experiência da história além da hipótese instrumental (grifos do autor) (p.28-29).
Edward Said é outro psicanalista. Propõe uma semiótica do poder orientalista, examinando os diversos
discursos europeus que constituem “o oriente” como uma zona do mundo unificada em termos raciais,
geográficos, político e culturais (p.111-112).
94
faz o movimento e a produção da cultura no tempo do agora, ou seja, no ponto da enunciação.
Como a estrutura ambivalente e contraditória poderá ser analisada ao tomarmos o processo de
alfabetização por foco? Parece-nos plausível acreditarmos que a criança – ao refletir sobre a
escrita por meio de suas afirmações, dúvidas e reflexões – estará situada num local intervalar
que a desafia a significar e dar sentido à escrita, uma vez que exige dela a significação dos
signos que se apresentam naquele contexto específico de enunciação – o da escola.
Bhabha afirma em sua teorização a respeito desta busca pela transcendência das
contradições e ambivalências que, para não ser acusado de voluntarismo burguês,
pragmatismo liberal e todos os outros “ismos” (grifo do autor), ele reconhece e assume que há
questões relativas ao dualismo no mundo como Ocidente, Oriente, Primeiro e Terceiro
Mundo, as divisões geopolíticas Leste, Oeste, Norte e Sul, que intervêm nos discursos
ideológicos da modernidade. Ao mesmo tempo, ele acredita no potencial das teorias
produzidas, que não necessariamente são coniventes com o papel hegemônico do Ocidente.
Diz estar convencido de pelos menos três situações: de que é legítimo na linguagem da
economia política representar relações de exploração e dominação na divisão discursiva entre
Primeiro e Terceiro Mundo, entre Norte e Sul; de que, nas linguagens da diplomacia
internacional há um crescimento agudo de um novo nacionalismo anglo-americano que cada
vez mais articula seu poder econômico e militar e, de que essa dominação econômica e
política, tem uma profunda influência hegemônica sobre as ordens de informação do mundo
ocidental, sua mídia popular e suas instituições e acadêmicos especializados (p. 44-45).
Segundo o autor, não se tem dúvidas a respeito destas questões político-econômicas.
A questão que não quer calar para Bhabha é se as “novas”(grifo do autor) linguagens da
crítica teórica (semiótica, pós-estruturalista, desconstrucionista e as demais) simplesmente
refletem aquelas divisões geopolíticas e suas esferas de influência, ou melhor, não passará a
linguagem da teoria de mais um estratagema da elite ocidental culturalmente privilegiada para
produzir um discurso do Outro que reforça sua própria equação conhecimento-poder? (p. 45).
Se pensarmos que a escola historicamente buscou a padronização de
comportamentos, valores, crenças, e porque não dizer, de sentido e significados, percebemos
como todas as manifestações diferenciadas foram e, ainda muitas vezes são, silenciadas. A
exigência de silenciar diferentes comportamentos e valores são justificados em “nome” de
uma tradição cultural que traduz a hegemonia dos discursos (principalmente, psicológicos)
modernos unificadores, os quais predominam nas instituições de ensino por meio dos
conteúdos, dos rituais, da arquitetura e, principalmente, da linguagem que busca a todo
95
instante justificar as diferenças e buscar alternativas para a padronização de comportamentos
e aprendizagens..
Para Bhabha (1998), a grande vantagem, embora desestabilizadora, deste discurso
natural(izado) é que ele nos torna progressivamente conscientes da construção da cultura e da
invenção da tradição. Entretanto, a perspectiva pós-colonial – que vem sendo desenvolvida
por historiadores culturais e teóricos da literatura – abandona as tradições da sociologia do
subdesenvolvimento e ou teoria da “dependência” (grifo do autor) e tenta fazer uma revisão
no modo de análise das pedagogias que estabelecem a relação do Terceiro com o Primeiro
Mundo em uma estrutura binária de oposição (p. 241). É este o contexto político que Bhabha
chama atenção e situa seus questionamentos. Ele coloca em dúvida as atuais teorias críticas
que, em sua visão, também produzem um discurso totalizante de raça, de gênero, de
homofobia, de diáspora pós-guerra, de refugiados e assim, por diante. Neste sentido, ele
afirma:
Quero me situar nas margens deslizantes do deslocamento cultural – isto torna
confuso qualquer sentido profundo ou ‘autêntico’ de cultura ‘nacional’ ou de
intelectual ‘orgânico’ – e perguntar qual poderia ser a função de uma perspectiva
teórica comprometida, uma vez que o hibridismo cultural e histórico do mundo pós-
colonial é tomado como lugar paradigmático de partida. [os grifos são do autor] (p.
46)
É o hibridismo cultural e histórico próprio do mundo pós-colonial, um local
deslizante de uma política de identificação (grifo do autor) que mesmo não assumindo
nenhum “objeto” específico de lealdade política – direita, esquerda, trabalhadores, feministas,
– interfere ideologicamente na medida em que, nas palavras de Bhabha as “[...] formas de
discurso [...] produzem mais que refletem, seus objetos de referência”. O autor situa a
existência de sua teoria num espaço discursivo intervalar de contingência e diz: “Ela existe de
certo modo no intervalo entre essas duas polaridades políticas (direita e esquerda) e também
entre as divisões comuns entre teoria e prática política [...] (p. 47)”. Assim, esta teoria que
discute a produção de significados culturais e a superação de polaridades está situada num –
entre-lugares que desliza, se desloca no movimento flutuante dos lugares e tempos da
enunciação. Será possível então pensar a escrita situada num entre-lugares onde desliza as
significações e os sentidos produzidos pelo sujeito?
É esta abordagem complexa que aprofundaremos no item a seguir, por considerá-la
fundamental na sustentação do nosso trabalho que busca superar os discursos totalizantes e
polarizados do Ser e que se “aventura” na construção uma análise da escrita no processo de
96
alfabetização que suponha singularidades vividas em contextos específicos e que se constitui
nas diferenças de significações e sentidos.
3.2 UMA TEORIA DA CONTINGÊNCIA: AS MARGENS DESLIZANTES DOS
ENTRE-LUGARES
Neste momento, de forma mais aprofundada, buscaremos trazer o pensamento desta
teoria intervalar a qual orientará a nossa maneira de conceber o(s) local(is) de produção da
cultura, ao tomar como campo de pesquisa o contexto escolar, enfocando o processo de
alfabetização, especificamente a relação das crianças com a escrita .
Pelo que compreendemos até aqui, esta perspectiva teórica supõe movimentos e
deslizamentos por estar situada na contingência das sentenças, ou melhor, entre a teoria e
prática política – num entre-lugares – que supõe a presença concomitante de ambivalências e
contradições as quais são geralmente negligenciadas nesta relação por confundir a divisão
tradicional entre elas, uma vez que sempre se busca a estabilização de afirmativas por meio de
posições antagônicas. Para Bhabha (1998), esta nova afirmação poderá ser a diferença no
mesmo. O autor diz “[...] tentei indicar algo da fronteira e do local do evento da crítica teórica
que não contém [grifo do autor] a verdade” (p. 47). É neste local que ele situa a sua teoria
onde:
O ‘verdadeiro’ é sempre marcado e embasado pela ambivalência do próprio
processo de emergência, pela produtividade de sentidos que constrói um contra-
saberes in media res, no ato mesmo do agonismo, no interior dos termos de uma
negociação (em vez de negação) de elementos oposicionais e antagonísticos. (p. 48)
O autor esclarece que a visão de negociação não deve ser confundida com uma noção
sindicalista, uma vez que não é esse o nível político de que trata, mas com a palavra
negociação ele quer ressaltar “[...] para a estrutura de iteração [grifo do autor] que embasa os
movimentos políticos que tentam articular elementos antagônicos e oposicionais sem a
racionalidade redentora da superação dialética ou da transcendência” (p. 52). Cabe ressaltar
aqui que Bhabha acredita que não é preciso, a todo o momento, negar posições antagônicas,
mas negociar os sentidos que se apresentam num processo de repetição nos movimentos
políticos, ou seja, nos debates e na comunicação exigida pelo cotidiano das relações humanas.
É neste sentido que Bhabha (1998) analisa que a temporalidade de negociação ou
97
tradução tem duas vantagens na superação da lógica da ideologia opositora: a) ela reconhece a
ligação histórica entre o sujeito e o objeto da crítica sem haver uma oposição simplista e b) a
leitura progressista é crucialmente determinada pela situação antagônica ou agonística em si,
então, a função da teoria no interior do processo político se torna dupla porque ela nos chama
a atenção para o fato de que nossos referentes e prioridades políticas não existem com um
sentido primordial, naturalista, pois só fazem sentido quando são construídos nos discurso do
feminismo, do marxismo ou do que quer que seja, cujos objetos de prioridade estão sempre
em tensão histórica e filosófica ou em referência cruzada com outros objetivos (p. 52).
Em outras palavras, o que Bhabha chama atenção é que precisamos superar esta
racionalidade oposicionista que sempre busca construir um discurso totalizante e, também,
que os discursos do feminismo, da luta de classes, a diferenças de gênero, entre outros, não
são unitários e naturais. Em sua visão, “[...] cada posição é sempre um processo de tradução e
transferência de sentido. Cada objetivo é construído sobre o traço daquela perspectiva que ele
rasura; cada objeto político é determinado em relação ao outro e deslocado no mesmo ato
crítico”(p. 53). Ele evidencia a importância do momento híbrido da mudança política. Sobre o
hibridismo o autor destaca que:
Aqui o valor transformacional da mudança reside na rearticulação, ou tradução, de
elementos que não são nem o Um (a classe trabalhadora como unidade) e nem o
Outro (as políticas de gênero), mas algo a mais, que contesta os termos e territórios
de ambos. Há uma negociação entre gênero e classe, em que cada formação enfrenta
as fronteiras deslocadas e diferenciadas de sua representação como grupo e os
lugares enunciativos nos quais os limites e as limitações do poder social são
confrontados em uma relação agonística. [os grifos são do autor] (p. 54-55)
O autor quer mostrar que, neste momento histórico híbrido, como intelectuais
comprometidos, não podemos mais analisar a representação dos grupos da forma homogênea
como os discursos da modernidade os produziram, uma vez que as fronteiras entre eles variam
de acordo com as posições que são ocupadas, as quais produzem sentidos que são alterados de
acordo com os objetivos. Melhor dizendo, as pessoas ocupam diferentes posições na vida
social e essas se confundem por se situarem em fronteiras que se deslocam, ou seja, ao
tomarmos, por exemplo, homens e mulheres, eles ocupam e desempenham diversas funções e
papéis que os colocam em determinados momentos de forma concomitante como
trabalhadores, desempregados, pais, feministas, refugiados, entre outras. Esses signos da
fragmentação – de classe e do consenso cultural – representam tanto as divisões sociais
históricas como uma estrutura de heterogeneidade. O sujeito nesta heterogeneidade é
98
descontínuo e dividido já que está preso a identidades e interesses conflitantes (p. 55-56).
Acreditamos que esta heterogeneidade demonstra o algo a mais de que trata Bhabha,
o qual não contempla a posição de Um ou Outro, mas um hibridismo de posições que
deslizam e se movimentam – um entre-lugares. Este não pode ser analisado com uma noção
unificadora de classe em si, mas [...] de uma articulação menos piegas do princípio político
(em torno de classe e nação) e uma dose maior do princípio de negociação política. Neste
sentido, a hegemonia não é mais algo da vontade coletiva, mas requer que seja um processo
de iteração e singularidade, ou seja, um bloco simbólico-social não homogêneo (p. 55-56).
Para Bhabha, a negociação é o argumento principal para compreendermos a hegemonia em
sua diferenciação e iteração. Ele diz “A contribuição da negociação é trazer à tona o “entre-
lugar” desse argumento crucial; ele não é autocontraditório, mas apresenta, de forma
significativa, no processo de discussão, os problemas de juízo e identificação que embasam o
espaço político de sua enunciação (p. 57).
Assim, a negociação e a tradução entre política e teoria tornam impossível pensar um
lugar teórico como uma meta narrativa generalizante, pois elas impedem a clausura discursiva
final da teoria. Neste sentido, Bhabha enfatiza que está preocupado, principalmente, com a
estruturação conceitual dos termos – o teórico/o político – que embasam os debates em torno
do lugar e do tempo do intelectual comprometido defendendo certa relação com o saber, a
respeito do que pode ser o objeto da teoria no ato de determinar nossos objetivos político
específicos (p. 58).
Para atingir o propósito de defender uma postura do intelectual comprometido, neste
momento histórico de hibridismo cultural, Bhabha salienta a importância de se fazer uma
distinção entre a teoria crítica da diferença e a da diversidade cultural sustentando a primeira.
Para ele a diferença cultural implica um “[...] processo de enunciação da cultura como
‘conhecível’, legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural”. Já a
diversidade cultural é um objeto epistemológico, ou seja, concebe a cultura como objeto
empírico que se constitui em objeto da ética e da estética por reconhecer os conteúdos e
costumes pré-dados; por manter um enquadramento temporal relativista, dando origem às
noções liberais de multiculturalismo; por representar uma retórica radical da separação de
culturas totalizadas, protegidas na utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva
única e, por emergir como um sistema de articulação e intercâmbio de signos culturais em
certos relatos antropológicos do início do estruturalismo (p. 63).
Neste sentido, Bhabha (1998) reflete sobre os modos como as idéias hegemônicas
99
sobre a diferença cultural foram elaboradas na modernidade e, ao mesmo tempo, mostra um
pensamento diferenciado a respeito de cultura, vista como temporalidade social e o espaço de
criação da humanidade, que, no meu ponto de vista, marcariam a instância singular. Esta
busca por uma compreensão diferente de cultura está pautada na revisão da idéia canônica de
temporalidade social e de signo.
Assim, Bhabha defende que, por meio do conceito de diferença cultural, ele pode
ressaltar o solo comum e o território perdido dos debates críticos contemporâneos, uma vez
que:
[...] todos eles reconhecem que o problema da interação cultural só emerge nas
fronteiras significatórias das culturas, onde os significados e valores são (mal) lidos
ou signos são apropriados de maneira equivocada. A cultura só emerge como um
problema, ou uma problemática, no ponto em que há uma perda de significado na
contestação e articulação da vida cotidiana entre classes, gêneros, raças e nações. (p.
63)
Para o autor, o conceito de diferença cultural concentra-se no problema da
ambivalência da autoridade cultural, pois “[...] é a própria autoridade da cultura como
reconhecimento da verdade referencial que está em questão no conceito e no momento da
enunciação”. O processo enunciativo exige uma quebra em relação à identificação cultural, a
uma tradição, a uma comunidade, a um sistema estável de referência e negação da presente
política como prática de dominação ou resistência. Como o autor defendeu anteriormente um
tempo deslizante, estrategicamente deslocado da articulação política histórica de negociação
(p. 64).
Nesta linha de pensamento, a cultura é concebida “[...] como produção irregular e
incompleta de sentido e valor, freqüentemente composta de demandas e práticas
incomensuráveis, produzidas no ato da sobrevivência social” (p. 240). É no cotidiano das
práticas sociais que as “minorias” produzem sentidos, significados e atribuem valores como
estratégia de sobrevivência. Para Bhabha (1998), é nesta situação de marginalidade social que
transformamos nossas estratégicas críticas, uma vez que elas forçam os intelectuais a
conceber a cultura fora do parâmetro canônico de estética, mas de culturas de sobrevivência.
A proposta de Bhabha é de conceber a cultura como enunciação da diferença
cultural. A enunciação implica significações e sentidos não estáveis, o que coloca em
questionamento as polaridades – direita e esquerda – e a divisão binária de passado e presente,
tradição e modernidade no nível da representação cultural. Ao significar o presente, algo vem
a ser repetido, relocado e traduzido em nome da tradição, em nome de um passado que não é
100
necessariamente um signo fiel da memória histórica. Essa iteração nega a nossa percepção dos
efeitos homogeneizadores dos símbolos e ícones cultura, ao questionar a nossa percepção da
autoridade da síntese cultural em geral (p. 64-65).
Como percebemos, a visão de cultura que Bhabha apresenta supera aquela de um
núcleo fixo, ou seja, um essencialismo que é repassado com as mesmas significações e
sentidos pelas gerações anteriores, mas uma tradição que é (re)significada no cotidiano das
práticas sociais de cada um e que é traduzida como processo enunciativo onde essas
significações e sentidos são negociados como estratégia de sobrevivência e de produção
singular. Neste sentido, “[...] a cultura é jamais unitária em si mesma, nem simplesmente
dualista na relação do Eu e do Outro” (p. 65).
A não existência de unidade e dualismo na cultura se explica mais pelo fato de se ter
uma diferença na estrutura da representação simbólica do que com a variação de atitudes
diante de sistemas simbólicos no interior das diferentes culturas. Desta forma, diz Bhabha:
[...] um texto ou um sistema de significados culturais não pode ser auto-suficiente
em razão do ato de enunciação cultural – lugar do enunciado – ser atravessado pela
différrance da escrita [...]. É essa diferença no processo da linguagem que é crucial
para a produção do sentido e que, ao mesmo tempo, assegura que o sentido nunca é
simplesmente mimético e transparente. (p. 65)
A diferença lingüística que se apresenta na cultura se deve ao relato semiótico
comum da disjunção entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação. Este último não é
representado no enunciado, mas é reconhecido pela sua incrustação e interpelação discursiva,
sua posicionalidade cultural, sua referência a um tempo presente e a um espaço específico.
Nesta perspectiva enunciativa Bhabha adota:
(...) a produção de sentido requer que estes dois lugares sejam mobilizados na
passagem por um Terceiro Espaço, que representa tanto as condições gerais da
linguagem quanto a implicação específica do enunciado em uma estratégia
performativa e institucional da qual ela não pode, em si, ter consciência. (p. 66)
É nessa ambivalência do ato de interpretação, onde o Eu pronominal e o sentido do
enunciado não são literalmente nem um (enunciação) nem o outro (enunciado), que há a cisão
enunciativa do sujeito. Para a análise cultural, Bhabha enfatiza a cisão temporal, uma vez que
“a cisão enunciativa do sujeito da enunciação destrói a lógica da sincronicidade e da evolução
que tradicionalmente legitimam o sujeito do conhecimento cultural”. Neste sentido, destrói a
idéia de unicidade, causalidade, progressão e evolução de idéias-no-tempo. Essa intervenção
101
do Terceiro Espaço da enunciação, que torna a estrutura da significação e referência um
processo ambivalente, destrói esse espelho da representação em que o conhecimento cultural é
em geral revelado como um código integrado, aberto, em expansão (p. 66-67).
Nesta linha de pensamento, a noção de identidade histórica da cultura como força
homogeneizante, unificadora de um passado originário mantido vivo na tradição do Povo é
desafiada. Em outras palavras, é quando se reconhece que a mudança cultural acontece em um
movimento flutuante, num espaço indeterminado dos sujeitos da enunciação – no Terceiro
Espaço – que se percebe o hibridismo cultural do momento histórico e se supera a concepção
homogeneizante de cultura e a binariedade passado, presente no sentido causal e serial da
história. Assim, a teoria da contingência, do entre-lugares, coloca nas fronteiras deslizantes da
cultura, ou seja, no Terceiro Espaço da Enunciação a garantia da não unificação e fixidez dos
significados e símbolos da cultura. Desta forma, também os signos podem ser apropriados,
traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo (p. 67-68).
Assim, a proposta de Bhabha está situada na capacidade produtiva deste Terceiro
Espaço das enunciações. É este espaço-cisão da enunciação que tem a capacidade de abrir o
caminho à conceitualização de uma cultura internacional baseada na inscrição e articulação
do hibridismo da cultura (grifos do autor). Para o autor, é preciso lembrar que:
[...] é o ‘inter’– o fio cortante da tradução e da negociação, o entre-lugar – que
carrega o fardo do significado da cultura. Ele permite que se comecem a vislumbrar
as histórias nacionais, antinacionalistas, do ‘povo’. E, ao explorar esse Terceiro
Espaço, temos a possibilidade de evitar a política da polaridade e emergir como os
outros de nós mesmos. (p. 69)
Diante destas pertinentes construções de Bhabha, apresenta-se o desafio de
compreendermos como a relação das crianças com a escrita no processo de alfabetização pode
fazer “emergir como os outros de nós mesmos”. Entender que a produção da cultura e da
história está situada num espaço intervalar e, se constitui como lugar enunciativo transforma
a nossa análise sobre a escola e, especificamente, a relação da criança com a escrita no
processo de alfabetização. É com o interesse de traduzir estas referências acerca da produção
do sujeito, da cultura e da história que elaboraremos o próximo item deste capítulo.
102
3.3 ELABORAÇÕES SOBRE A ESCRITA COMO O ENTRE-LUGARES DA
NEGOCIAÇÃO CULTURAL
Neste momento, como acenamos, temos por objetivo principal tomar por referência
os conceitos da teoria crítica pós-colonial de Bhabha para elaborarmos contribuições acerca
da produção do sujeito, da história e da cultura ao campo escolar, especialmente, ao da
alfabetização. Acreditamos que a proposta construída muito se aproxima da postura
intelectual que vínhamos buscando enquanto docente do ensino superior que se dedica à
formação de professores e, mais intensamente, na formação de professoras-alfabetizadoras.
Quando estamos diante de um grupo de alunas que aspiram pela formação que as habilitem à
docência, muitos conflitos, contradições e ambivalências ficam em suspensão durante todo o
processo de formação, o que causa uma reação de inconformidade, uma vez que, a maioria
delas demonstra a busca por afirmativas “coerentes” que superem as contradições e as
ambivalências. Esta postura também já foi minha, uma vez que tive uma formação que
polarizou perspectivas teóricas e ensinou a busca pela superação do movimento dialético.
Outro aspecto importante a ser analisado é o que diz respeito à (re)construção das
práticas alfabetizadoras. Quando as professoras-alfabetizadoras estão em processo de
formação em nível superior
57
, ficam ainda mais claras as polaridades e as oposições – uma
vez que seus procedimentos de ensino são discutidos e questionados durante a formação
vinculando-os a referenciais teóricos, muitas vezes, pouco conhecidos pelas docentes. Neste
processo, também fica evidente o interesse por discursos totalizantes que dêem conta de todas
as diferenças e mostram ter por finalidade uma padronização de comportamentos e ritmos de
aprendizagens. Esta tentativa de uniformização se expressa também no espaço das salas de
aulas de alfabetização, quando uma parcela significativa destas professoras-alfabetizadoras
questiona, de forma incisiva, por que determinados alunos não têm o mesmo “rendimento”
que a maioria. Estas situações as deixam preocupadas e mobilizadas diante da busca por
alternativas que superem essas diferenças entre os alunos. Neste sentido, tenho por hipótese
de que todos estes aspectos confirmam que, ao analisarmos a relação das crianças com a
57
Refiro-me à formação de professores em serviço que vem acontecendo desde meados dos anos de 1990 em
todo o nosso país, em decorrência de uma política educacional. Esta política esteve vinculada ao FUNDEF
(Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino Fundamental) e, neste momento, vincula-se ao FUNDEB
(Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica). Como professora de nível superior, tive a
oportunidade de participar na formação de professores em cursos de Pedagogia Anos Inicias do Ensino
Fundamental.
103
escrita, também vamos encontrar, do ponto de vista da professora-alfabetizadora, o mesmo
desejo de comportamento padronizado.
Acredito que todos estes aspectos ratificam o que Bhabha coloca sob
questionamento, qual seja, de que a cultura ocidental na modernidade e os trabalhos dos
críticos contemporâneos produziram discursos totalizantes que expressam as divisões
geopolíticas e a sua hegemonia por meio de suas afirmativas que polarizam e opõem posições.
Neste sentido a escola – sendo uma das agências sociais que favorece a construção de
vínculos sociais do sujeito que ingressou no mundo da Escrita, e se constituindo num lócus
que podemos denominá-la, a partir das elaborações de Bhabha, como um “lugar enunciativo”,
- assume uma outra posição ao considerarmos que a escrita pode ser concebida como um
entre-lugares de “negociação cultural”, o que indica que a escola é um espaço que se constitui
na heterogeneidade e não mais de homogeneidades, como se acreditou por muitos séculos.
Pensamos que estudar melhor as implicações da relação da criança com a escrita vai
nos fornecer mais elementos para compreendermos que o processo de dominá-la produz
subjetividade e singularidade, uma vez que supõe um sujeito. Neste sentido, são valiosas as
contribuições de Bhabha, as quais nos têm permitido “enxergar” sob outros “óculos” a escrita
no processo de alfabetização. Sobretudo a questão que tem orientado a construção deste
capítulo e que buscamos entender mais aprofundadamente tomando por referência este autor:
em que medida, ao se considerar a escrita como um entre-lugares do enunciado e da
enunciação, se pode visualizar um espaço de produção do sujeito como instância do singular?
Podemos dizer que Bhabha deixa claro em seu pensamento a produção de
singularidade no tempo do presente, uma vez que toma a visão benjaminiana de história em
que supera a ótica causalista, progressista e serial, a qual predominou nos discursos da
modernidade sobre a História, bem como, sobre a visão totalizante do Ser. Para Bhabha, a
história é produzida na autopresença do sujeito e não é pura continuidade e nem ruptura com
o passado, mas é o passado relocado por significações e sentidos no agora de um contexto
específico que traduz a referência e a temporalidade daquele que enuncia. Fala-se do tempo
do “agora”.
Neste sentido de história, ao pensarmos o processo de aprendizagem da escrita cabe
considerarmos que, embora ela tenha uma dimensão de código e, por isso, instrumental, o seu
domínio exige que a significação do mundo e a relação da criança sejam traduzidas pelos
sentidos enunciados por meio dela, os quais produzem cultura, nas palavras de Bhabha, no ato
da sobrevivência social. Assim, nesta ótica a cultura é concebida como incompleta de sentido
104
e valor e, por isso, não estável.
Para compor sua proposta, o crítico hindo-britânico propõe a superação da estrutura
binária das sentenças, o que polemiza as polaridades e oposições na relação teoria e política,
uma vez que ele vai defender uma postura intelectual comprometida – não com a direita ou
esquerda; com a produção da teoria enquanto possibilidade de atingir objetivos específicos
que estão fora, no além dos antagonismos. Para tal propósito, vai situar sua teoria num lugar
intervalar – num entre – ou melhor, num espaço discursivo intervalar da contingência e entre
as divisões teoria e política. Neste sentido, sua teoria força os intelectuais a reverem suas
posturas diante dos sistemas teóricos totalizantes que têm defendidos e, ao mesmo tempo,
questiona a própria clausura da produção de suas meta narrativas.
Estas reflexões nos auxiliam a definir melhor como vamos, de agora em diante,
situar-nos diante da produção cultural e histórica num momento de tantos deslocamentos e
hibridismos. Ao invés de defender uma ou outra posição – direita, esquerda – ele vai mostrar
que a diferença está no mesmo, que indica que a “verdade” está ancorada e marcada pela
ambivalência, e que por isso é preciso a negociação, ao invés da negação entre os elementos
antagonísticos. A negociação acontece num processo de iteração das ambivalências que tenta
articular os elementos antagônicos e oposicionistas. Estas reflexões nos servem para
aprendermos que no momento histórico e cultural atual vivemos diante de signos
fragmentários que traduzem as divisões históricas e uma estrutura de heterogeneidades.
Assim, as crianças que freqüentam a escola não podem mais ser situadas apenas em uma
noção determinada de classe social, classe econômica, raça, estrutura familiar, entre outros,
uma vez que esta postura impõe previamente discursos totalizantes daquele Ser e da sua
História, negando que este sujeito participa de situações conflitantes para sobreviver.
Neste sentido, o autor defende uma concepção de sujeito descontínuo e dividido por
estar preso a identidades e interesses conflitantes. Descontínuo porque, em decorrência das
demandas das práticas sociais, desempenha diferentes e conflitantes papéis, os quais têm
interesses diversos; dividido por que há uma cisão em um sujeito da enunciação, ou seja, ele
não está presente nem na enunciação e nem no enunciado, mas está situado num Terceiro
Espaço da enunciação, que torna a estrutura da significação e referência um processo
ambivalente. Isso destrói a idéia de que o conhecimento cultural é em geral revelado como um
código integrado, aberto e em expansão. No Terceiro Espaço, situa-se a compreensão de
cultura não-homogênea e fixada em significados e valores que contemplam a cultura ocidental
privilegiada, mas um local de fronteiras deslizantes que movimentam as significações e os
105
sentidos de cada um em seus contextos específicos. Aqui a cultura não é unitária em si, mas
como enunciação está garantida a não-unificação e fixidez dos significados e símbolos da
cultura. Assim, também os signos podem ser apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos
de outro modo.
Acreditamos que um sujeito concebido nesta perspectiva será percebido no cotidiano
da escola e, especificamente, na relação que ele tem com a escrita de outra maneira. Para
tanto, é imprescindível começarmos a nos atentar para as dúvidas, reflexões, afirmações, etc.
sobre a escrita. Isto vai nos levar a conceber e analisar a produção de sentido como algo
instável, ou seja, o sentido nunca é mimético e transparente já que é na ambivalência do ato de
interpretação onde o Eu pronominal e o sentido do enunciado não são nem um e nem o outro,
que há a cisão enunciativa do sujeito, ou seja, esta cisão destrói a lógica da sincronicidade e
da evolução que tradicionalmente legitimam o sujeito do conhecimento cultural colocando a
produção de sentido num movimento deslizante que não suporta fixidez, unicidade,
causalidade, progressão e evolução de sentido no decorrer do tempo em função das próprias
condições da enunciação. Assim, podemos afirmar que esta perspectiva supõe a produção
singular de subjetividade no tempo do presente.
A partir deste percurso pela proposta de Bhabha acreditamos, cada vez mais, que a
escrita enquanto enunciação produz subjetividade e singularidade nas manifestações de seus
significados e sentidos. E, a cultura passa a ser concebida e constituída sob as
heterogeneidades de cada um e traz no presente as suas produções sobre o mundo e suas
relações. Compreender o sujeito que se faz presente pela enunciação de sua singularidade e
diferença, é o que pretendemos discutir na teoria lingüística de Benveniste, buscando situar,
justamente, a escrita e o ato de escrever nesta perspectiva. Isto é o que trabalharemos no
capítulo que segue com a intenção de encontrar maior respaldo para a elaboração de uma
metodologia de análise de dados para esta proposta de tese.
106
Samara (3ª Série)
Samara escreve a história lida silenciosamente...
107
4. A FACE ENUNCIATIVA DA ESCRITA
Após o percurso realizado no capítulo anterior, para compreendermos a proposta de
Bhabha (1998) que situa a produção da cultura e da história num espaço-tempo do entre, ou
seja, num espaço intervalar onde não há rupturas e nem continuidades na história – mas um
presente que recoloca o passado com outras significações e sentidos – continuamos
acreditando que a escrita sendo um dos sistemas simbólicos mais presente no campo escolar,
se analisada enquanto ato enunciativo, produz subjetividade e singularidade ao manifestar
significados e sentidos produzidos também num entre-lugares , ou seja, no ato de escrever.
Neste sentido, este trabalho analisa aspectos da dimensão enunciativa da relação das
crianças com a escrita. Para tanto, toma o texto escrito como enunciado e situa o ato de
escrever no entre-lugares da enunciação e do enunciado. É nesse espaço intervalar que –
pensamos – é possível surpreender formas singulares de inserção do sujeito na língua.
Como é fácil inferir, os termos enunciado e enunciação, além de fundamentais para o
que queremos aqui mostrar, devem ser mais bem precisados conceitualmente devido à
multiplicidade de definições que recebe no campo heterogêneo da Lingüística da Enunciação
(cf. FLORES; TEIXEIRA, 2005). Tais conceitos são fundamentais tanto para o estudo que
vem sendo delineado como também para a compreensão da presença da subjetividade na
linguagem, do funcionamento da língua e da estrutura da enunciação.
Isso será discutido no presente capítulo. Enfocaremos aqui a teoria lingüística de
Émile Benveniste
58
(1988,89), a qual vai compor o suporte teórico-metodológico até aqui
construído contribuindo para uma concepção de homem constituído na e pela linguagem, bem
58
Segundo Dosse (1994), Benveniste é judeu sefardita (adjetivo dado aos judeus expulsos de Portugal e Espanha
no séc. XV) estudou no Collége de France sob as orientações de Antoine Millet, discípulo de Saussure
instituição na qual, em 1937, torna-se professor. Devido à sua timidez, ele conquistou notoriedade por sua
competência e não pela sua capacidade de relação com as pessoas, uma vez que preferia o isolamento.
Para construir este capítulo, utilizei principalmente, os dois tomos Problemas da Lingüística Geral I e II de
Émile Benveniste. (PONTES, 1988, 1989).
108
como, para definirmos uma metodologia de análise dos dados, uma vez que, esta não está nem
desvinculada do arcabouço teórico, nem do objeto ora em estudo.
4.1 JUSTIFICANDO E DELINEANDO A LEITURA DE BENVENISTE
A escolha de Benveniste não foi aleatória; deve-se ao fato de o lingüista francês
apresentar uma visão de língua em uso que supõe subjetividade e singularidade mesmo na
repetibilidade da estrutura, pois ele diz que “[...] É na instância de discurso na qual eu designa
o locutor que este se enuncia como “sujeito”. É, portanto, verdade ao pé da letra que o
fundamento da subjetividade está no exercício da língua” (p. 288). Neste sentido, a
enunciação é o ato individual de utilização da língua. Embora a língua apresente uma
estrutura que condiciona seu uso, também possui uma elasticidade no agenciamento das
palavras e frases as quais vão expressar uma relação singular do sujeito com a língua por meio
da forma e do sentido. Estas idéias trazem indicativos para uma metodologia de análise para
esta pesquisa; mais bem especificada no próximo capítulo. Vejamos o que diz o autor:
A linguagem está de tal forma organizada que permite a cada locutor apropriar-se
da língua toda designando-se como eu.
Os pronomes pessoais são o primeiro ponto de apoio para essa revelação da
subjetividade na linguagem [...] A linguagem de algum modo propõe formas
“vazias”das quais cada locutor em exercício de discurso se apropria e as quais refere
à “pessoa”, definindo-se ao mesmo tempo a si mesmo como eu e a um parceiro
como tu. [os grifos são do autor] (p. 288-289).
Vemos que o sujeito, ao apropriar-se da língua, se institui individualmente – o que
nos faz acreditar cada vez mais que o domínio da escrita também supõe uma relação singular.
Assim, como estamos nos propondo a estudar a escrita enquanto enunciação, enfocando a
relação que as crianças estabelecem com ela no processo de alfabetização, entender a
subjetividade na linguagem, bem como a noção de pessoa, não-pessoa, referência, as quais
constituem a estrutura da enunciação se faz imprescindível, já que ao situarmos o ato de
escrever num local intervalar – no entre-lugares – nos exige, ao menos na perspectiva que
estamos delineando, pensar sobre a inserção do sujeito na língua.
Neste sentido, acredito que na leitura de importantes seções do fundamento teórico
de Benveniste possamos encontrar subsídios para esboçar um referencial lingüístico
enunciativo para esta investigação. Tomado o conjunto do que se convencionou chamar de
109
teoria da enunciação constante em Problemas de lingüística geral I e Problemas de
lingüística geral II, fazemos um recorte da teoria benvenistiana que, em sintonia com nossos
objetivos, parece dar conta da proposta em construção. Lemos Benveniste em quatro pontos
essenciais:
a) Quanto à formulação de uma teoria da linguagem que comporta o homem em sua
condição dialogal. Será objeto de estudo, em especial, o texto Da Subjetividade
na Linguagem
59
;
b) quanto ao estabelecimento dos termos da relação forma/sentido onde define
aspectos do funcionamento da língua nas dimensões. Será estudado, nesse
momento, o texto Forma e o Sentido na Linguagem;
c) quanto à proposição de uma posição ímpar da língua relativamente aos demais
sistemas de signos. Benveniste preocupa-se em mostrar que o sistema da língua,
além de ter a propriedade recursiva de interpretar a si próprio, é determinante dos
demais sistemas de signos uma vez que pode engendrá-los e interpretá-los.
Enfatizaremos a leitura do texto A Semiologia da Língua;
d) quanto à formulação de uma noção de estrutura que comporta sujeito. Benveniste
dedica-se a desenvolver a concepção de um dispositivo, por ele chamado de
aparelho formal da enunciação, constitutivo universal das línguas que permite
que o sujeito atualize cada sistema e nele se inscreva em condições únicas de
pessoa, tempo e espaço a – eu/tu/este/aqui e agora. Nosso guia aqui será o
célebre texto O Aparelho Formal da Enunciação, um dos últimos trabalhos
escritos pelo autor, espécie de síntese da sua proposta teórica.
Acredito que esta incursão na teoria benvenistiana fornecerá elementos teóricos e
lingüísticos para continuar delimitando o percurso desta pesquisa e, ao mesmo tempo, ir
definindo, juntamente com os demais campos teóricos, uma metodologia de análise dos
dados.
59
Cabe ressaltar que Benveniste não fez uma teoria do sujeito em sua obra. Segundo Normand (1996) “a teoria
da enunciação implica, pois, um sujeito, mas o faz a teoria deste. Ligada à significação, a questão do sujeito
é ao mesmo tempo o que suscita e alimenta a elaboração deste conjunto de noções e que o impede de se
acabar na pseudo-solução do semiótico/semântico [grifo da autora]” (p. 147)
110
Quero ressaltar novamente que um predicativo muito importante para a escolha desta
teoria enunciativa foi ter percebido a crença e a defesa da presença de subjetividade
60
na
linguagem, uma vez que o autor tem uma concepção homem que vai desde uma perspectiva
antropológica até configurar uma visão lingüística, quer dizer, ele coloca a intersubjetividade
como condição da própria existência humana e esta constituída na linguagem. Em sua visão, a
inscrição, ou seja, a marca de uma posição se dá no processo da enunciação e que vai ser
expressa pelas proposições discursivas. Isto se aproxima da idéia que vimos construindo a
respeito da escrita no processo de alfabetização.
Esta visão lingüística do homem vai contribuir muito para esta pesquisa, uma vez que
tenho por objetivo sustentar que a relação das crianças com a escrita em processo de
alfabetização supõe produção de subjetividade e singularidade, as quais se constituem na
linguagem e, no caso deste trabalho, por meio da língua escrita. Neste sentido, cabe-nos
perguntar a respeito da escrita, do ato de escrever e do texto escrito, ou melhor, onde estariam
situados nesta perspectiva lingüística? E ainda, o entre-lugares da escrita estaria situado entre
a enunciação e o enunciado?
Diante deste propósito, vamos aprofundar, neste capítulo, e fundamentar a escrita na
teoria lingüística enunciativa
61
anunciada. Faremos um esforço para dizer algo sobre a
subjetividade e a singularidade na linguagem com relação à escrita. Vale advertir, no entanto,
que isso será feito desde o ponto de vista que me autorizo, qual seja o de uma pedagoga em
busca de uma teoria lingüística que contribua para a compreensão e análise de um objeto de
60
Um filósofo que discutiu muito a presença da subjetividade na linguagem foi Bakhtin (1986). Ele tem o
dialogismo como princípio, entende que ele é resultado da interação de dois indivíduos. Mesmo que o
interlocutor não seja real, ele está presente. Diz ainda a esse respeito que “[...] o mundo interior e a reflexão
de cada indivíduo têm um auditório social [grifo do autor] próprio bem estabelecido [...]” (p. 112-113) A
enunciação em sua visão [...] é produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo
que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual
pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor [grifo do autor]: ela é função da pessoa desse
interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou
superior na hierarquia social se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe,
marido, etc.) (1986, p. 112).
61
Cabe dizer aqui, que existe uma explicação para o uso do termo lingüística enunciativa (no singular). A
referência se faz assim: Flores (2001 apud FLORES & TEXEIRA, 2005) apresenta uma proposta
epistemológica de abordagem para o campo da enunciação, a qual, permite falar em teorias da enunciação
(no plural) que, por sua vez, estariam reunidas na lingüística da enunciação (no singular) e este campo
poderia ser representado por autores como (Bally, Jakobson, Benveniste, Ducrot, Bakhtin, Authier-Revuz,
Antoine Culioli, Kerbrat-Orechioni, entre outros). Isso porque, segundo o autor, existem traços comuns
entre essas diversas abordagens enunciativas. Ele destaca que todas elas, cada uma a seu modo,
problematizam a dicotomia langue/parole (língua/fala), o que significa que todos discutem Saussure;
formulam um domínio conceitual que inclui o termo enunciação; fazem a discussão em torno da
subjetividade da linguagem e instauram relações diferenciadas da lingüística com a filosofia da ciência: as
noções de método e objeto são retomadas para dar lugar à reflexão sobre a enunciação (p. 101).
111
pesquisa próprio da pedagogia, - a da escrita na alfabetização de crianças. Essa ressalva torna-
se importante, neste contexto, porque coloca em relevo que fazer tal incursão não é tarefa
fácil, mas, em compensação, tem possibilitado me aventurar em um campo até então
desconhecido. Essa aventura “traduz”, essencialmente, que ser pesquisadora no campo da
educação é pinçar, em diferentes campos do conhecimento, suporte teórico e metodológico
para compreender o objeto em estudo – um objeto sempre interdisciplinar – isso é o próprio
da educação.
Assim, a lingüística benvenistiana, bem como a sociologia da cultura de Bhabha,
estão aqui convocadas para discutir com a alfabetização no sentido de – ao implicar estes
campos – produzir outras interfaces para analisar o processo de alfabetização. Em outras
palavras, interessa-me compreender, neste capítulo, como esta teoria lingüística pode mostrar
que o domínio da escrita, enquanto mais um dos sistemas simbólicos da nossa cultura, implica
também num processo de subjetivação que se traduz por meio de marcas lingüísticas. Para
tanto, tratarei a enunciação sob dois prismas: o primeiro enquanto ato a fim de aproximá-lo do
ato de escrever; o segundo, enquanto intersubjetividade, princípio do diálogo, o qual supõe a
existência do outro, o que possibilitará uma analogia com a escrita das crianças em processo
de alfabetização. Neste sentido, estou acreditando que no processo de alfabetização tanto o
ato de escrever quanto a escrita se constituem produzindo subjetividade e cultura.
Ora, é consenso no meio acadêmico que a escrita expressa subjetividade e – por sua
vez – singularidade. No entanto, quero compreender como ela precisa ser analisada para que o
sujeito, neste processo, apareça em sua singularidade. Como se deve conceber a escrita para
que não desapareça o sujeito em sua singularidade? Como analisar o ato de escrever para que
este ato seja considerado produtor de subjetividade? Como é conceber o ato de escrever
situado num entre-lugares da enunciação e do enunciado? Como isso pode produzir algo novo
no campo da alfabetização e da educação?
Cabe dizer que, embora sejam questões distintas e que, por sua vez, apresentam
estatutos epistemológicos diferentes por se situarem em campos disciplinares diversos, me
propus implicá-los
62
para que possamos construir uma forma de analisar a escrita nos anos
inicias do Ensino Fundamental. Isto revela – como já disse – que ao produzir conhecimentos
na educação, o objeto ora em estudo, nos leva sempre a constituir campos de interfaces, ou
62
Em meu entendimento, implicar campos significa que iremos trazer campos de conhecimentos diferentes para
explicar e fundamentar o objeto ora em estudo, sem ter a pretensão de estruturar um novo estatuto
epistemológico, mas organizar novas interfaces explicativas, no caso deste trabalho, sobre a relação das
crianças com a escrita no processo de alfabetização.
112
seja, implicações interdisciplinares, as quais exigem sempre que clareamos as questões
envolvidas no estudo.
Desta forma, a primeira questão supõe que no campo da alfabetização, pelo menos
nos séculos XVIII e XIX, prevaleceu a utilização de métodos tradicionais para o ensino da
leitura e da Escrita que não consideravam a existência de um sujeito que produzia
significações e sentidos, ignorando assim a singularidade de cada um. Cabe ressaltar que,
ainda nos dias de hoje, embora tenhamos muitas contribuições teórico-metodológicas que já
questionaram tais métodos, nos deparamos com algumas práticas escolares que persistem com
esta perspectiva de alfabetização. O segundo questionamento refere-se ao desafio que nos
colocamos em encontrar respaldo teórico-metodológico no campo da lingüística para que
possamos construir uma forma de analisar o ato de escrever como ato de enunciação, ou seja,
como um ato que diz daquele que escreve. A terceira questão vai buscar na sociologia da
cultura uma compreensão de produção da cultura que se situa num local intervalar das
sentenças, ou seja, que defende que ela é produzida em contextos específicos onde se recoloca
o passado com outros sentidos e significados, marcando assim singularidades. Isto tudo para
produzir algo que analise a escrita sob outros campos teóricos contribuindo, assim, para a
construção de um referencial teórico-metodológico que considere linguagem, cultura e
produção subjetividades inerentes ao processo de alfabetização e, no caso desta pesquisa, na
relação das crianças com a escrita.
Assim, as concepções de linguagem e subjetividade de Benveniste (1988/89) serão
conceitos “ancoradouros” das idéias sobre língua e sujeito, necessários às idéias que quero
fundamentar, discutindo as teses deste autor, tendo em vista as contribuições que podem fazer
para pensar, em outras bases, o ato de escrever e a escrita das crianças escolares. Pretendo,
neste momento, dar resposta às questões expostas anteriormente pelo percurso da leitura que
fizemos de Benveniste, como anunciamos no início desta seção. No horizonte, temos o
interesse em compreender a enunciação e o enunciado situando a escrita e a presença da
subjetividade na linguagem. Para tanto, iniciei discutindo sobre a presença da subjetividade na
linguagem em Benveniste, pois a enunciação para ele é sempre para um, ou seja, há
singularidade mesmo na repetibilidade da estrutura da língua.
113
4.1.1 Da subjetividade na linguagem
Busco então, neste item, compreender a subjetividade e a singularidade na
linguagem
63
, mais especificamente na língua tomando a escrita como objeto de estudo.
Benveniste, ao apresentar em seu sistema de pensamento o princípio da intersubjetividade,
rechaça uma visão egocêntrica do indivíduo, isto é, de um ser isolado em seu
desenvolvimento. Para ele, não existe o homem fora da linguagem, já que ela é a própria
condição de sua existência. Em sua visão, é a forma como o sujeito coloca a língua em
funcionamento que vai “dizer” do subjetivo e da singularidade de cada um (p.285). Pode-se
inferir que a escrita como uma das formas de manifestação da linguagem vai por meio da
língua concretizar, pelas palavras e frases, a subjetividade do locutor.
Benveniste (1988) diz que embora a linguagem possa, num primeiro momento,
parecer um instrumento de comunicação porque se presta “[...] a transmitir o que lhe confio-
uma ordem, uma pergunta, um anúncio – e, provoca no interlocutor um comportamento, cada
vez, adequado (p. 284)”, ele se contrapõe a esta proposição porque entende que estaríamos
nos referindo ao discurso, ou seja, à língua em ação, pois considerar a linguagem como
instrumento seria opor o homem e a natureza, uma vez que a linguagem está na natureza do
homem e nunca a vimos sendo fabricada.
Neste sentido, Benveniste – em sua teoria – vai defender a presença de subjetividade
na enunciação
64
. Para que esta questão seja compreensível é fundamental precisar alguns
conceitos que ancoram a teoria lingüística aqui convocada, em especial, no que se refere à
constituição da subjetividade.
Na teoria lingüística de Benveniste (1988) encontra-se que a linguagem:
[...] está na natureza do homem, que não a fabricou [...]. Não atingimos nunca o
homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a. Não atingimos
jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do outro.
É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro
homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem. (p. 285)
Essa visão apresenta a linguagem numa dimensão antropológica, na medida em que
sugere que o homem se constitui na – e pela – linguagem, que ela é condição de sua
63
A linguagem aqui é compreendida como tudo que serve e tem a capacidade de expressar idéias, sentimentos e
modos de comportamento; a língua, como todo sistema de signos que serve de meio para viver e não somente
se comunicar, pois, como nos diz Benveniste, é falando que encontramos o homem. A língua pode ser
percebida pelos diversos sentidos: auditivo, visual, gestual, música...
64
Sobre a estrutura da enunciação aprofundaremos mais no item quatro deste capítulo.
114
existência, ou seja, que a linguagem é a possibilidade de inscrição do homem na cultura. No
entanto, Benveniste também deixa claro o princípio da intersubjetividade da linguagem;
importante para pensar a subjetividade na língua e, por decorrência, na escrita das crianças.
Isto nos indica também sua visão lingüística. O lingüista diz:
É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito [grifo do
autor]; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do
ser, o conceito de ego.
A subjetividade de que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se propor como
“sujeito” [grifo do autor] [...]. (p. 286)
A subjetividade em Benveniste não é de ordem psicológica, mas do homem na
língua, ou seja, da representação do sujeito na língua em uso; quer dizer, da
intersubjetividade. Aqui o fundamento da “subjetividade” se determina pelo status lingüístico
da “pessoa” (grifos do autor) (p. 286). Para ele (1988),
A consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste. Eu não
emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha alocução um tu.
Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em
reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa
eu [...]. A linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito,
remetendo a ele mesmo com eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa,
aquela que, sendo embora exterior a “mim”, torna-se o meu eco – ao qual digo tu e
que me diz tu [...]. (p. 288)
Nessa estrutura do enunciado ficam reiteradas tanto a presença da subjetividade na
língua quanto a intersubjetividade como princípio da constituição do sujeito na linguagem. A
categoria de pessoa em Benveniste (1989) própria ao eu e ao tu, entidades lingüísticas da
categoria de sujeito. Para este autor, “[...] a emergência dos índices de pessoa (a relação eu-tu)
não se produz senão na e pela enunciação: o termo eu denotando o indivíduo que profere a
enunciação, e o termo tu, o indivíduo que aí está presente como alocutário” (p. 84).
A relação eu-tu é sempre passível de reversibilidade, pois os dois índices de pessoa
são considerados subjetivos no uso da língua, uma vez que se determinam em cada
enunciação. Benveniste defende que:
[...] Essa polaridade [entre eu e tu] não é igualdade nem simetria: ego tem sempre
uma posição de transcendência quanto a tu; apesar disso, nenhum dos termos se
concebe sem o outro; são complementares [...]. Esta polaridade é única na condição
do homem na linguagem [...]. É numa realidade dialética que englobe os dois termos
e os defina pela relação mútua que se descobre o fundamento lingüístico da
subjetividade. (p. 286-287)
115
Assim, é neste movimento dialético do eu e do tu que se estabelece a passagem de
uma visão antropológica de homem para a definição de um fundamento lingüístico da
subjetividade, ou melhor, é na categoria de pessoa que se situa a visão lingüística de homem
constituído na e pela linguagem.
Cabe destacar ainda que os pronomes pessoais eu e tu não remetem, nem a um
conceito, nem a um indivíduo. Para Benveniste o eu se refere a:
[...] algo muito singular que é exclusivamente lingüístico: eu se refere ao ato de
discurso individual no qual é pronunciado, e lhe designa o locutor. È um termo que
não pode ser identificado a não ser dentro do que, noutro passo, chamamos de
instância de discurso, e que só tem referência atual. A realidade a qual ele remete é a
realidade do discurso. É na instância do discurso na qual eu designa o locutor que
este se enuncia como “sujeito” [grifo do autor]. É, portanto, verdade ao pé da letra
que o fundamento da subjetividade está no exercício da língua [grifo meu]. (p. 288)
Neste sentido, a subjetividade em Benveniste está no ato de colocar a língua em
funcionamento, o que nos leva a inferir que o ato de escrever pode ser considerado uma das
instâncias do discurso que vai expressar no lingüístico o que é singular do eu. Além dos
pronomes pessoais há os indicadores dêiticos – demonstrativos, advérbios, adjetivos – que
auxiliam na revelação da subjetividade e na organização das relações espaciais e temporais
em torno do “sujeito” (grifo do autor) tomado como ponto de referência: “isto, aqui e agora”
(grifo do autor) (p.288).
Assim, a enunciação supõe uma estrutura que comporta o sujeito – a
intersubjetividade, o espaço e o tempo expressos no eu, tu aqui e agora do enunciado. A que
se referem o aqui e o agora?
O aqui da estrutura da enunciação refere-se ao espaço, às condições da enunciação
que são sempre irrepetíveis pela efemeridade em que se dá a relação com a língua a cada novo
ato enunciativo; o agora diz respeito ao tempo da enunciação. Benveniste (1989) acredita que
a temporalidade pode ser considerada um quadro inato do pensamento. Ele assim se refere
sobre a produção da temporalidade:
Ela é produzida, na verdade, na e pela enunciação. Da enunciação procede a
instauração da categoria do presente, da categoria de presente nasce a categoria do
tempo. O presente é propriamente a origem do tempo. Ele é esta presença no mundo
que somente o ato da enunciação torna possível [...] o homem não dispõe de nenhum
outro meio de viver o “agora” e de torná-lo atual senão realizando-o pela inserção
do discurso no mundo. (p. 85)
Nesse sentido, a cada ato de enunciação torna-se possível o tempo presente. Ele é
116
fugaz, mas também possibilita um sentimento de continuidade. Para o autor, é esta
consciência de continuidade que denominamos “tempo” (grifo do autor): [...] continuidade e
temporalidade que se engendram no presente incessante da enunciação, que é o presente, do
próprio ser que se delimita, por referência interna, entre o que vai se tornar presente e o que já
não o é mais (p. 85-86).
A instância do discurso, ou a língua em uso, se caracteriza pela efemeridade e por
isso é na continuidade e temporalidade da relação do homem com a língua que o presente fica
marcado. Já a Escrita marca o tempo presente de forma mais permanente e traduz – por meio
das marcas lingüísticas – a posição do sujeito, considerada, lingüisticamente, como sua
subjetividade. Pelo que foi visto, a estrutura da enunciação
65
em Benveniste comporta um
sujeito; isso singulariza a sua teoria lingüística.
Nesse sentido, penso que o ato de escrever, enquanto uma relação que supõe
intersubjetividade, subjetiva aquele que escreve na medida em que o enunciado escrito traduz
essa relação que o sujeito estabelece com o mundo por meio da posição que ele ocupa no
texto. Esta posição pode ser analisada pelas marcas lingüísticas: marcas da estrutura da língua.
Considerando estas idéias, acredito que, ao escrever, a criança em processo de alfabetização
vai produzindo significações e sentidos que marcam a sua singularidade, ou seja, ela expressa
o contexto específico – o aqui – em que está e o tempo – o agora – em que está vivendo.
Com este propósito, no próximo item, continuarei buscando na teoria benvenistiana
respaldo para a construção de uma análise enunciativa da escrita das crianças. Assim, serão
discutidas as dimensões semântica e semiótica do uso da língua como forma de construir um
caminho para identificar a posição do sujeito e sua singularidade no texto escrito.
Acreditamos que ao compreendermos estas dimensões da língua poderemos encontrar
indicativos para a análise. Neste sentido, nos indagamos: como produzir conhecimento
tomando por estudo um objeto que se situa num lugar instável e intermediário como o ato de
escrever?
65
Percebe-se que a estrutura do presente da enunciação tem uma vinculação com a teoria intervalar de Bhabha
(1998) uma vez que ele toma a idéia de enunciação da diferença cultural, bem como a concepção de história
benjaminiana, a qual insiste e defende a produção histórica no tempo do agora, ou melhor, de um presente que
vai sendo significado em outros sentidos, não de forma mimética e transparente, mas que supõe a produção de
cada um. O que nos desafia - neste momento do trabalho - é encontrar mais elementos neste campo lingüístico
para delinear uma metodologia de análise dos dados para o campo da alfabetização, mais especificamente,
para analisar a relação das crianças com a escrita.
117
4.1.2 As implicações da forma e do sentido no funcionamento da língua
Quero chamar a atenção que Benveniste (1989) não foi um lingüista que passou
despercebido em seu campo de atuação, pois foi um teórico polêmico por buscar respostas a
questões da língua em uso, pouco abordada ou até mesmo ignorada pela maioria dos
lingüistas, segundo ele, por receio de caírem em psicologismos. Além disso, é interessante
assinalar também que, como a maioria dos textos dele, o capítulo que trata da forma e do
sentido na linguagem é fruto de uma de suas palestras
66
.
Duas questões principais acompanharão a leitura deste tema. Que compreensão
precisamos ter sobre o sentido e a forma na língua em uso para que possamos identificar a
presença do sujeito em sua singularidade? Como analisar a instância de discurso como a
escrita, o ato de escrever e o texto escrito das crianças em processo de alfabetização sob a
ótica da enunciação? A compreensão e resposta a estas questões indicarão melhor como
delinear a metodologia; consequentemente, como deverá ser feita a análise dos dados.
De uma maneira geral, pode-se dizer que Benveniste, no referido texto, questiona a
histórica oposição entre a forma e o sentido que muitos lingüistas fizeram em seus estudos e
mostra que o problema que se coloca é o de entender a significação de outro modo; por sua
vez, de conceber a língua como sistema de signo diferenciado dos demais sistemas de signos
existentes, percebendo-se assim o duplo caráter na relação entre a semiótica e semântica na
língua real ou em uso.
Nesta perspectiva, Benveniste (1989) ressalta inicialmente que na tradição lingüística
a matéria – forma e sentido – tem sido abordada em oposição. No entanto, ele busca
reinterpretar esta oposição no funcionamento da língua ordinária, ou seja, da língua comum.
Diz que:
[...] integrando-a e esclarecendo-a (a oposição), ela retoma toda sua força e sua
necessidade; vemos então que ela contém em sua antítese o ser mesmo da
linguagem, pois de um só golpe ela nos coloca no centro do problema mais
importante, o problema da significação [grifo meu]. Antes de qualquer coisa, a
linguagem significa, tal é o seu caráter primordial, sua vocação original que
transcende a explica todas as funções que ela assegura no meio humano. (p. 222)
66
Conforme o Curso Problemas de Lingüística Geral II, este capítulo se constitui da palestra Le Langage II
(Societés de Philosophie de langue française, Actes du XIII Congrès, Géneve, 1966), Neuchâtel, La
Baconniére, 1967, p. 29-40.
118
A idéia fundante de que a linguagem antes de tudo significa, coloca em evidência sua
função vital para o ser humano, uma vez que é ela que possibilita a própria hominização
67
.
Benveniste é enfático nesta idéia quando diz:
[...] eu diria que, bem antes de servir pra comunicar, a linguagem serve para viver
[grifo do autor]. Se nós colocamos que à falta de linguagem não haveria nem
possibilidade de sociedade, nem de humanidade, é precisamente porque o próprio da
linguagem é antes de tudo significar. Pela amplitude desta definição, pode-se medir
a importância que deve caber à significação. (p. 222)
Neste sentido, ele é claro em afirmar que a linguagem é a própria condição do
homem, como vimos no item anterior e, sobre a significação vai dizer que se sabe que a
linguagem significa e por isso a significação não seria nenhum acréscimo a ela, mas na língua
real ela apresenta outro caráter, qual seja:
[..] o caráter de se realizar por meios vocais, de consistir praticamente num conjunto
de sons emitidos e percebidos, que se organizam em palavras dotadas de sentido. É
este duplo aspecto [grifo meu], inerente a linguagem, que é distintivo. Diremos, com
Saussure, a título de primeira aproximação, que a língua é um sistema de signos
68
.
(p.224)
Assim, o duplo aspecto referido pelo autor decorre da concepção de a língua ser feita
de signos; este signo é a unidade semiótica. Em sua visão, é aqui que contém uma dupla
relação: “[..] a noção de signo enquanto unidade e a noção de signo dependente da ordem
semiótica (p. 224)”. Nesta visão, a compreensão e o uso são critérios para identificar os
signos, afinal diz o autor, ‘significar é ter um sentido’ e é pelo uso da língua que o signo
existe.
Benveniste, a partir da concepção de signo de Saussure de que o signo como unidade
bilateral apresenta significante e significado, vai explicitar esses dois aspectos para avançar na
compreensão sobre a semiótica e a semântica da língua. Para o autor, é só na língua em uso
que os signos existem porque significar é ter um sentido, e por isso “O significante não é
apenas uma seqüência dada sons que a natureza falada, vocal, da língua exigiria; ele é a forma
sonora que condiciona e determina o significado, o aspecto formal da entidade chamada
signo. (p. 225)”
67
Hominização foi uma expressão muito utilizada por FREIRE(1996) ao tratar da importância dos processos
educativos para o ser tornar - se, a cada dia, mais humano.
68
No próximo item trataremos da semiologia da língua mais aprofundadamente.
119
Assim, pode-se dizer que o significante vai determinar o significado a cada utilização
da língua, uma vez que o seu aspecto formal se vincula a sua disposição para significar. Neste
sentido, é que não se pode dissociar o sentido e a forma. E, para compreender as diferenças
entre língua e língua em uso precisamos nos atentar para a estas duas dimensões da linguagem
a forma (semiótica) e o sentido (semântica).
Como vimos, Benveniste (1989) defende que existem duas modalidades
fundamentais da função lingüística: a semiótica e a semântica. Tem “[...] aquela de significar
para a semiótica, aquela de comunicar para a semântica.” (p. 229). A partir desta definição, ao
escrever, as crianças – em processo de alfabetização – estariam envolvidas
concomitantemente com estas duas modalidades? Pelo que discuti até aqui, parece que não
posso mais opor estas duas funções lingüísticas, principalmente se tomo a língua em seu uso.
Para precisar melhor a resposta a esta questão, trago o que Benveniste (1989) diz
sobre a semântica ao se referir ao uso da língua:
[...] A noção semântica nos introduz no domínio da língua em emprego e ação;
vemos desta vez na língua sua função mediadora entre o homem e o homem, entre o
homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transmitindo a informação,
comunicando a experiência, impondo a adesão, suscitando a resposta, implorando,
constrangendo; em resumo, organizando toda a vida dos homens [...]. Ora, a
expressão semântica por excelência é a frase
69
. Nós diríamos a frase em geral, sem
distingui-la da proposição, para nos mantermos no essencial, na produção do
discurso. (p. 229)
Esta visão sobre a semântica da língua em uso faz acreditar na possibilidade de
tomarmos o texto escrito – instância de discurso – para análise, pois na definição de
Benveniste ele (o texto) vai traduzir o sentido daquele que escreve. Assim, por meio dele,
poderei visualizar o domínio da língua (estrutura da língua-semiótica) e o seu uso (sentido da
língua-semântica) e, em decorrência disso, a relação daquele que escreve com o mundo
através do sentido impresso na escrita. Além do recurso do texto escrito, as falas das crianças
e as imagens também vão compor o quadro de análise desta pesquisa.
Deste ponto de vista, semântica refere-se ao sentido e a semiótica as formas.
69
A frase no campo lingüístico refere-se a qualquer agenciamento de palavras que forma sentido.
120
Para Benveniste:
O signo semiótico existe em si, funda a realidade da língua, mas ele não encontra
aplicações particulares; a frase, expressão do semântico, não é senão [grifo do autor]
particular. Com o signo tem-se a realidade intrínseca da língua; com a frase liga-se
às coisas fora da língua; e enquanto o signo tem por parte integrante o significado,
que lhe é inerente, o sentido da frase implica referência à situação de discurso e à
atitude do locutor [grifo meu]. (p. 230)
Nessas idéias a respeito das funções lingüísticas, percebe-se que o que vai marcar a
singularidade do sujeito é tanto a forma como o sentido, uma vez que o signo significa de
acordo com a mobilização e o agenciamento das palavras que compõem a frase (o discurso).
Mesmo sendo a palavra a unidade semântica por excelência, ela é:
[...] como unidade mínima da mensagem e como unidade necessária da codificação
do pensamento [...] o sentido da frase é de fato a idéia [grifo do autor] que ela
exprime; este sentido se realiza formalmente na língua pela escolha, pelo
agenciamento de palavras, por sua organização sintática, pela ação que elas exercem
uma sobre as outras. (p. 230)
A partir desta concepção benvenistiana sobre a forma e o sentido na língua em uso
continuamos acreditando, cada vez mais, que – ao escrever – o sujeito estará num lugar
intervalar, usando as palavras de Bhabha (1998), num entre-lugares, onde acontece a
mobilização e a utilização da língua. O sujeito vai, neste ato de enunciação, utilizar as
diversas formas sintáticas para compor o sentido do seu texto escrito. Não podemos deixar de
lembrar que a referência do texto sempre será o próprio sujeito, ou seja, o sentido que ele quer
imprimir naquele momento, ou seja, a sua subjetividade. Como vimos, para Benveniste “a
semiótica se caracteriza como uma propriedade da língua; a semântica resulta de uma
atividade do locutor que coloca a língua em ação” (p. 230).
Esta compreensão demonstra que tanto a forma como o sentido vão permitir
identificar a posição do sujeito que escreve e sua singularidade. Por isso, a lingüística
enunciativa de Benveniste é fundamental e define a nossa metodologia de pesquisa, uma vez
que é a língua em uso que estamos investigando. Quando o autor defende o duplo caráter do
signo – unidade do signo e sua disposição – e a importância da significação na língua, a qual
integra forma e sentido, ele nos indica como analisar o texto escrito das crianças: deve-se
considerar estas duas funções concomitantemente.
O que nos interessa mostrar é que o ato de escrever produz subjetividade e cultura
mesmo tendo que atender a estrutura da língua, neste caso a da escrita. Benveniste, com estas
121
idéias sobre a forma e o sentido, vem confirmar e respaldar o que vimos defendendo, melhor
dizendo, mesmo que a língua tenha uma estrutura a ser atendida; seu uso apresenta
elasticidade a qual permite estabelecer uma relação singular a cada um, já que o uso da língua
é sempre particular. Assim, ao escrever, a criança estará dizendo de si mesmo. Neste sentido,
o processo de alfabetização não poderia deixar de considerar estes aspectos fundamentais na
escrita das crianças. É isso que queremos defender neste trabalho.
Assim, acreditamos que para desenvolver este estudo é preciso ainda conhecer
melhor, além do saber até aqui construído, a semiologia da língua, ou melhor, entender o
lugar da língua nos sistemas de signos aprofundando assim a relação da língua com os demais
sistemas de signos. É sobre isso que tratamos em seguida.
4.1.3 O Lugar da Língua entre os Sistemas de Signos – Sua Semiologia
Na medida em que colocamos, indicado por Benveniste (1989), na própria
identificação do item – o lugar da língua entre os sistemas de signos – já acenamos para o fato
de que é ela a destacada perante os diversos sistemas, inclusive, cabe já dizer, que é ela que
possibilita que todos os sistemas de signos existam em razão de estabelecer relações de
engendramento, de homologia e de interpretância junto aos demais sistemas de signos. Isso é
o que vamos buscar compreender melhor neste item para que continuemos a delinear a base
lingüística enunciativa e, no próximo capítulo, a metodologia de análise do nosso trabalho
investigativo, mais especificamente, de como analisaremos o texto escrito das crianças,
considerando a língua em uso nesta perspectiva teórica.
Sabemos que diariamente lidamos com signos em diferentes situações. Eles nos
organizam mentalmente e possibilitam a comunicação e a vida na sociedade. Podemos citar
alguns deles como exemplo, signos monetários, de trânsito, de cortesia, de culto, da arte.
Enfim, como nos diz o autor, “[...] nossa vida inteira está presa em redes de signos que nos
condicionam a ponto de não se poder suprimir apenas um sem colocar em perigo o equilíbrio
da sociedade e do indivíduo (p. 52)”. Tamanha a importância dos signos em nossa vida que se
impõe uma definição.
Baseado em Saussure, Benveniste – no texto que trata da Semiologia da Língua
discute, dentre outras questões importante para a elaboração da semiologia, o estatuto da
língua em meio aos sistemas de signos, iniciando um exame pelos sistemas de signos não-
122
lingüísticos, como o sistema de sinais de trânsito, a música e as artes plásticas. No entanto,
aqui, como anunciamos, focalizaremos a relação de engendramento, de homologia e de
interpretância da língua diante dos demais sistemas de signos, pois esta especificidade da
língua lhe confere uma diferenciação e a torna fundamental na vida em sociedade. Sobre o
modo de dependência mútua entre língua e sociedade, Benveniste afirma que na relação
semiológica é a língua que contém a sociedade (p. 63).
Antes de trazer tais questões sobre a língua, é importante destacar, primeiramente,
que segundo Benveniste o papel do signo “[..] é o de representar. O de tomar o lugar de outra
coisa evocando-a a título de substituto [...] (p. 51)”. Neste sentido, todos os sistemas de signos
têm a propriedade de significar e é composto por unidade de significância, ou seja, de signos.
Além disso, o signo é “[...] o que ele significa não dá para ser definido. Para que um signo
exista, é suficiente e necessário que ele seja aceito e que se relacione de uma maneira ou de
outra com os demais signos [...] (p. 227)”. As relações entre signos de uma mesma natureza
compõem um sistema de signos. Assim, estes sistemas semiológicos se caracterizam por: seu
modo operatório, seu domínio de validade, pela natureza e o número de seus signos e por seu
tipo de funcionamento (p. 52). Esta definição serve a todos os sistemas de signos.
Certamente o sistema da língua também atende a tais características, mas ela tem
propriedades que a torna diferenciada dos demais sistemas de signos porque, para Benveniste,
“a língua é o interpretante de todos os outros sistemas, lingüísticos e não-linguísticos” (p. 61).
Para ele existem três tipos de relações entre os sistemas semióticos: relação de
engendramento, de homologia e de interpretância.
a) a relação de engendramento significa que um sistema pode engendrar outro. Isso
vale entre dois sistemas distintos, mas da mesma natureza e contemporâneos,
como por exemplo, a língua usual engendra a formalização lógico-matemática; o
alfabeto normal engendra o alfabeto braile. Cabe dizer que o segundo sistema é
construído a partir do primeiro e atende a uma função específica;
b) a relação de homologia estabelece uma correlação entre as partes de dois sistemas
semióticos. Esta relação não está constatada, mas instaurada em virtude de
conexões que se descobre ou se estabelecem entre sistemas distintos;
123
c) a relação de interpretância se refere aquela entre um sistema interpretante e um
sistema interpretado. Nessa relação introduz-se o princípio de que a língua é o
interpretante de todos os sistemas semióticos. Nenhum outro sistema dispõe de
uma “língua” na qual possa se categorizar e se interpretar segundo suas distinções
semióticas. Ela pode tudo categorizar e interpretar, inclusive a ela mesma. (p. 61-
62)
Percebe-se que estas relações entre os sistemas semióticos expressam o lugar ímpar
da língua, uma vez que todos os sistemas dependem dela para poder se constituir. Segundo
Benveniste, a língua é a organização semiótica por excelência porque nos fornece
simultaneamente um sistema semiótico na estrutura formal e no seu funcionamento. Na visão
do autor, ela se diferencia dos demais sistemas semióticos porque:
1º ela se manifesta pela enunciação, que contém referência a uma situação dada;
falar é sempre falar-de;
2º ela consiste formalmente de unidades distintas, sendo que cada uma é um signo;
3º ela é produzida e recebida nos mesmo valores de referência por todos os
membros de uma comunidade;
4º ela é a única atualização da comunicação intersubjetiva. (p. 63)
Assim, para o autor a língua com sua função representativa e seu poder dinâmico a
torna a grande matriz semiótica. Essa propriedade deve-se a um princípio semiológico que a
língua contém:
[...] de que a língua significa de uma maneira específica e que não está senão nela,
de tal maneira nenhum outro sistema o pode reproduzir. Ela é investida de uma
DUPLA SIGNIFICÂNCIA [...] A língua combina dois modos distintos de
significância, que denominamos modo SEMIÓTICO por um lado, e modo
SEMÂNTICO, por outro. (p. 64)
Esta propriedade de dupla significância da língua diz respeito ao modo de
significação semiótico – O SIGNO – lingüístico que o constitui como unidade; e ao modo
específico de significância que é engendrado pelo discurso que se realiza e se divide em
signos particulares – as PALAVRAS. Sobre isto nos referimos no item anterior deste capítulo
quando discutimos o sentido e a forma na língua: a presença desta dupla significação nas
instâncias de discurso, ou melhor, tanto a forma como o sentido são definidoras da
significação.
124
Neste sentido, Benveniste diz:
A língua é o único sistema em que a significação se articula em duas dimensões
(semiótico e semântico) [...] o privilégio da língua é de comportar simultaneamente
a significância dos signos e a significância da enunciação. Daí provém seu poder
maior, o de criar um segundo nível de enunciação, em que torna possível sustentar
propósitos significantes sobre a significância, é nesta faculdade metalingüística que
encontramos a origem da relação de interpretância pela qual a língua engloba os
outros sistemas. (p. 66)
Acreditamos que é pela presença nesta propriedade metalingüística da língua que está
a base da nossa maneira de tratar e analisar os dados dessa proposta de pesquisa. As relações
de engendramento, homologia e interpretância da língua permitirão observar a relação
singular das crianças com a escrita por meio do texto escrito, pois pretendemos interpretar os
textos produzidos pelos alunos, os quais serão um novo sistema engendrado no sistema da
língua.
Benveniste ainda nos diz que é preciso ultrapassar a noção saussuriana de signo
como princípio único para que se possa avançar na semiologia da língua. É necessário tomar o
domínio semântico, o qual é separado do domínio do signo, e construir outro aparelho de
conceitos e de definições (p. 66-67). Segundo ele, isto será feito por meio de análises
intralingüística e translingüísticas que foram assim por ele definidas:
– a análise intralingüística se refere à abertura de uma nova dimensão de
significância, a do discurso, que denominamos semântica, de hoje em diante
distinta da que está ligada ao signo e que será semiótica;
– a análise translingüística dos textos, das obras, pela elaboração de uma
metassemântica que se construirá sobre a semântica da enunciação (p. 67).
Estes dois tipos de análises é que vão contribuir no avanço da semiologia da língua.
Acreditamos que o nosso trabalho será uma contribuição nesta construção, uma vez que
faremos uma análise translingüística dos dados ao tomarmos os textos escritos das crianças
como objeto de estudo o que resultará na construção de uma metassemântica, pois estaremos
focalizando as significações e sentidos dos textos elaborados pelas crianças.
O quadro lingüístico benvenistiano até aqui construído está permitindo definir a
metodologia do nosso trabalho. Já podemos afirmar que a língua expressa subjetividade uma
vez que o seu uso supõe uma relação singular onde o homem se constitui num princípio do
diálogo; numa relação de intersubjetividade. Também, que a forma e o sentido são duas
modalidades lingüísticas, as quais constituem a língua em sua dupla significância: o signo
125
(semiótica) e a, palavra (semântica) sendo que o primeiro se realiza de um modo específico; a
segunda, na composição do discurso, no caso do nosso trabalho, no texto escrito (como
instância de discurso). E, ainda podemos dizer que – por meio de uma análise translingüística
– poderemos verificar as significações e os sentidos expressos na língua em uso elaborando
uma metassemântica sobre a escrita enquanto ato enunciativo. Estas concepções já indicam
uma maneira de analisar a escrita das crianças.
No percurso deste capítulo, estamos discutindo conceitos e definições da teoria
lingüística benvenistiana com o intuito de implicar a escrita e, mais especificamente, mostrar
a face enunciativa dela, como indica a própria denominação. No entanto, até aqui temos
tratado da língua em uso de uma maneira geral mesmo que indiquemos, ao longo da redação,
o texto escrito. Desta forma, é preciso ainda conhecer melhor a estrutura da enunciação
defendida por Benveniste e situar a escrita. É isso que trabalhamos a seguir.
4.1.4 A Estrutura da enunciação – Onde se situa a escrita?
Para poder identificar a relação singular das crianças com a escrita
70
por meio das
significações e sentidos, sendo estes indicadores de subjetividade, é importante aprofundar,
neste momento, a estrutura da enunciação trabalhada por Benveniste (1989) bem como situar
a escrita neste arcabouço lingüístico, já que é ela que me interessa para o desenvolvimento
desta tese que versa sobre a escrita enquanto ato enunciativo.
Mesmo tendo anunciado no primeiro capítulo algumas idéias sobre a estrutura da
enunciação, é necessário retornar a elas para aprofundá-las. No percurso dos estudos
lingüísticos encontrei resposta para o questionamento que me acompanhava, qual seja, de a
escrita se situar na enunciação. Para obter tal resposta, foi fundamental recorrer, ao texto O
aparelho formal da enunciação, porque nele é possível encontrar a defesa de que a
enunciação é processo e o enunciado o produto. Diz o autor:
70
Para saber mais sobre a Escrita como subjetividade, ver o recente trabalho de ENDRUWEIT, M. L. A Escrita
Enunciativa e os Rastros da Singularidade (2006), (tese mimeografada). A autora analisa a produção textual
de alguns alunos de uma turma de 2º ano do ensino médio. Nestes textos mostrou, através dos movimentos
realizados pelo sujeito no momento em que escreve, a Escrita como intersubjetividade, ou seja, que a escrita
enunciativa é da ordem do irrepetível e do singular.
126
A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização.
O discurso dir-se-á, que é produzido cada vez que se fala esta manifestação da
enunciação, não é simplesmente a fala? – É preciso ter cuidado com a condição
específica da enunciação: é ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do
enunciado, que é nosso objeto. Este ato é o fato do locutor que mobiliza a língua por
sua conta. A relação do locutor com a língua determina os caracteres lingüísticos da
enunciação. Deve-se considerá-la como o fato do locutor, que toma a língua por
instrumento, e nos caracteres lingüísticos que marcam esta relação. (p. 82)
Essas idéias sobre a enunciação demonstram que, na fala-discurso
71
, o importante
para analisar a enunciação não é o conteúdo dos seus enunciados, mas o ato individual de
colocar em funcionamento a língua. A partir disso, pode-se pensar que o mais importante é a
posição do sujeito na língua, isto é, a relação que estabelece com ela para compor os
enunciados: o enunciado é o produto da enunciação e a traduz nas marcas que carrega.
Como vimos, o texto escrito é um enunciado que supõe o ato de escrever, enquanto a
escrita seria todo o processo de mobilização da língua pelo sujeito (enunciação). Disso
decorre a hipótese de que: o ato de escrever estaria num interstício entre a enunciação e o
enunciado.
Para Benveniste, o sujeito não pode falar sem falar de si e, talvez por isso, o mais
importante, para a lingüística da enunciação não é propriamente o dito e o seu conteúdo, o
produto, mas o fato de alguém ter dito, o processo. É isso que diz do sujeito. Este sujeito deve
ser compreendido como “[...] a capacidade do locutor para se propor como sujeito” (p. 286).
Na visão de Benveniste, a realização individual da enunciação pode ser definida como:
[...] um processo de apropriação [grifo do autor].O locutor se apropria do aparelho
formal da língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices específicos,
de um lado,e por meio de procedimentos e acessórios, de outro [...] desde que ele se
declara locutor e assume a língua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que
seja o grau de presença que ele atribua ao outro.Toda enunciação é, explícita ou
implicitamente, uma alocução, ela postula um alocutário [...]. (p. 84)
Aqui se vê, claramente, o princípio da intersubjetividade no pensamento
benvenistiano, pois, quando o indivíduo se declara locutor, traz desde sempre o outro diante
de si. Explicita-se também a implicação do sujeito na enunciação. Nesse sentido, pensando o
ato de escrever no processo de alfabetização, percebe-se que ele traduz esta relação do sujeito
com o outro. Ora, quando a criança está construindo a sua compreensão sobre o sistema
alfabético – no caso, o da língua portuguesa – está também traduzindo o outro que a constitui,
71
Na teoria lingüística de Benveniste, a fala é considerada a língua em uso, como enunciado sonoro, gestual e
gráfico. Na conversação, temos uma relação temporal e na escrita uma relação espacial com a língua. Tanto a
fala quanto a escrita são enunciados e, portanto, produtos da enunciação que dizem do sujeito.
127
e faz isso por meio das tentativas de escrever ortograficamente. Tenho pensado que o
processo de aprender a escrever e a ler
72
traz consigo as construções cognitivas daquele que
está se alfabetizando e que essa ação está estreitamente relacionada àquele que diz sobre o que
são a escrita e a leitura, no caso da escola formal, a professora-alfabetizadora.
Seguindo esta linha de pensamento, a singularidade do sujeito em processo de
aprendizagem da escrita e da leitura está em “disputa” incessante com aquele que o ensina. E
por isso é relevante que se perceba a importância da concepção de escrita das profissionais no
processo de alfabetização, uma vez que elas podem intervir diretamente nesta forma de
expressão, tanto na positividade desta relação ou não.
Se considerarmos que, do ponto de vista da lingüística enunciativa de Benveniste, o
sujeito é essencialmente lingüístico e a língua traduz a relação que o sujeito estabelece com o
mundo, o processo de alfabetização passa a assumir outra dimensão no trabalho escolar. Para
o autor:
[...] na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de certa relação
com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua
é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a
possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que faz cada
locutor co-locutor. A referência é parte integrante da enunciação. (p. 84)
Como se vê, para Benveniste, a referência é constitutiva de cada ato de enunciação,
uma vez que ela não se dá com relação ao contexto ou ao conteúdo, mas, sim ao próprio
sujeito, por isso ela é integrante da enunciação. Pensar em uma cena enunciativa pressupõe
considerar “[...] o próprio ato, as situações em que ela se realiza e os instrumentos de sua
realização” (p. 83). Esses elementos da cena enunciativa indicam procedimentos
metodológicos de análise de um campo empírico a ser investigado. Assim, pergunto: em que
cena enunciativa se tem alfabetizado as crianças da escola formal?
Sabe-se que, embora no mundo contemporâneo a informação esteja disponibilizada
nos mais variados meios de comunicação em razão do avanço tecnológico, a Escrita continua
sendo uma das tecnologias mais valorizadas, pois ela apresenta uma dimensão de ferramenta
cultural que permite ao sujeito transformar as informações em conhecimento, ao mesmo
tempo, que produz significados e sentidos num processo de subjetivação daquele que a
domina. E, a escola continua sendo o espaço social privilegiado para trabalhar o
conhecimento, embora ainda se constate que o trabalho com a escrita no processo de
72
Quando me referir ao ato de escrever também vou procurar trazer ao texto o ato de ler por considerar que,
embora sejam processos cognitivos diferentes têm implicações entre si, uma vez que “[...] ninguém escreve
aquilo que não lê”. (FERREIRO, 2000). No entanto, como já foi dito, o meu objeto de estudo é a escrita de
crianças em processo de alfabetização.
128
escolarização nem sempre tem permitido a expressão do pensamento e da imaginação das
crianças.
Essa continua sendo a realidade de muitas escolas, como vimos no primeiro capítulo
deste trabalho: muitos educadores ainda não aprenderam a explorar o potencial de criação da
escrita, apenas insistem em trabalhar com uma escrita instrumental, funcional, mecânica,
repetitiva e esvaziada de sentido. Assim, ela tem sido concebida pela maioria das instituições
de uma forma que, ao invés de possibilitar a expressão do sujeito, tem-no “aprisionado” em
sua estrutura gramatical, dificultando a exposição das idéias e o desenvolvimento do
raciocínio. É importante lembrar que a expressão pela escrita se refere ao ato de enunciar-se
como sujeito.
Como vimos, toda a enunciação em Benveniste é um processo que está ligado ao ato
de utilização e funcionamento da língua e o seu resultado, o enunciado, se traduz na fala –
discurso daquele que a produz.
Essa visão respalda a idéia de que a escrita das crianças em processo de
alfabetização, enquanto uma enunciação, supõe diálogo – intersubjetividade – mesmo antes de
atingirem a forma ortográfica da língua. As crianças expressarão, na escrita, a interação vivida
por elas com a professora-alfabetizadora e também tentarão corresponder à expectativa de
quem está orientando o seu processo de aprendizagem. Por isso, a relevância de se ter uma
concepção de escrita respaldada também em fundamentos lingüísticos que supõe
subjetividade na relação com a língua, pois com isso se pode contribuir para uma metodologia
de ensino que a conceba como mais um objeto de conhecimento que propicia a expressão da
razão, da emoção e da singularidade humana.
Assim, quando escrevemos também estamos num lugar que precede alguém e que se
dirige a alguém. E esse ato está ligado à relação que estabelecemos, enquanto sujeitos
essencialmente lingüísticos, com o mundo e com o interlocutor. Podemos pensar que a criança
ao escrever está situada num espaço intermediário, num interstício entre a enunciação e o
enunciado, já que sempre se escreve a um outro, ou melhor, com alguma intenção. Nessa
direção, podemos inferir que é também na função criativa da língua que se institui a
singularidade, e ao mesmo tempo, a singularidade da apropriação da língua de cada um. A
respeito disso vale perguntar: - Estaria o ato de escrever inscrito na mesma condição da
enunciação?
Enfim, para encaminhar este item sobre a estrutura da enunciação e as relações que
mantêm com a escrita, parte dos objetivos deste capítulo, as idéias de Benveniste nos levam a
129
acreditar, cada vez mais, que o ato de escrever – enquanto fala-discurso – supõe enunciação
situam-se em um espaço intermediário, em um interstício, ou como denomina BHABHA
(1998), num “entre-lugares” – entre a enunciação e o enunciado. Neste lugar, ou seja, num
terceiro espaço se colocaria o sujeito produzindo o “novo” (a singularidade) – a criatividade
da língua – a partir do “velho” (a cultura) – a estrutura da língua – marcada pela singularidade
de cada um.
Nessa direção, é possível inferir que o sujeito, ao incorporar a estrutura da língua e a
tradição da escrita, também as renova, no sentido de (re) significá-las no presente. E, nesse
processo de incorporação e de (re) significação, o sujeito se encontra na contingência de um
entre-lugares, entre a enunciação e o enunciado, que inova e interrompe o presente, ao
imprimir nas marcas da cultura sua singularidade.
Pelos estudos feitos, Benveniste (1988,1989) defende a idéia da existência de um
sujeito na língua, um sujeito constituído na linguagem e, por isso mesmo, é uma teoria que
coloca em relevo a linguagem como produção. Dessa forma, as enunciações são únicas,
infinitas, inesgotáveis pela variedade virtual da atividade humana, porque o ato de enunciação
produz sentido a cada vez que é enunciado, mesmo apresentando a repetibilidade da estrutura
da língua. Trata-se de outra concepção de estrutura que comporta o já-dado, mas sem deixar
de se ancorar no sempre-novo. Está posta a questão da subjetividade na linguagem.
4.2 O “OLHAR” DA ENUNCIAÇÃO SOBRE A ESCRITA DAS CRIANÇAS EM
PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
Neste processo de estudo da teoria lingüística enunciativa de Benveniste (1988,
1989), estou compreendendo que o ato de escrever se situa numa posição de entre-lugares
(BHABHA, 1998), entre a enunciação e o enunciado, e isso, possibilita a (re)criação do
sujeito. A sua produção – o texto escrito – é o enunciado que produz, por meio de uma
posição lingüística, a singularidade de cada um. Como educadora que busca ancoragem para
suas questões neste campo de conhecimento, o que se coloca neste momento é a definição de
um método de análise para como identificar as significações e os sentidos do texto escrito.
Considerando o exposto neste capítulo, quero insistir na pertinência de conceber a
escrita enquanto um objeto de conhecimento que subjetiva e singulariza aquele que escreve.
Para tanto, trouxe as incursões realizadas na teoria lingüística enunciativa de Benveniste para
130
compreender, sob o viés da enunciação, o ato de escrever, o texto escrito e a escrita. Entendi,
a partir dessa teoria, que a escrita refere-se ao processo mais global da enunciação; o texto
escrito, embora traga implícita a enunciação, se traduz em um enunciado que “diz” da posição
lingüística do sujeito que diz de sua singularidade e o ato de escrever se situa num entre-
lugares entre a enunciação e a enunciado onde se situa a possibilidade da (re)criação humana
marcada pela (re)significação de cada um.
Após esta incursão teórica lingüística, visualizo a escrita, o texto escrito e o ato de
escrever deste outro ponto de vista do conhecimento – o da enunciação – o que possibilitou
reforçar, mais uma vez, as idéias que vinha construindo em torno do processo de subjetivação
que o ato de escrever supõe e exige e, da importância da escrita na expressão da singularidade
e no processo de aprender. Estas questões me remetem para a realidade da maioria das
escolas, no que se refere ao processo de alfabetização, mais especificamente, sobre o ensino
da escrita onde se insiste em um trabalho pedagógico mecânico e repetitivo. Nessas escolas se
escreve sem saber por que e para quem. Isso tem dificultado e, muitas vezes, impedido o
domínio da escrita por parte de uma grande parcela das crianças que chegam à escola.
Como referi no capítulo anterior, as pesquisas censitárias realizadas em nosso país
continuam apontando a permanência de um alto índice de analfabetos funcionais. A
diminuição deste fracasso produzido pela escola é de responsabilidade de todos os
profissionais da educação que trabalham na formação de professores da educação básica.
Acredito que a pesquisa que ora estamos delineando vá contribuir para a formação das
professoras que trabalham nos anos iniciais da escolarização e se configure em uma produção
diferenciada para o campo da alfabetização.
Sabemos que o domínio da escrita exige um esforço construtivo conceitual por parte
daquele que aprende, pois explicita a relação que ele estabelece com o mundo traduzindo sua
subjetividade e, por sua vez, a singularidade de cada um. Por isso, a pertinência de nos
atentarmos para a cena enunciativa da escrita vivenciada pelas crianças na escola, uma vez
que a subjetividade é a língua em uso, ou seja, a capacidade de o locutor se propor como
sujeito. Precisamos pensar nos espaços e nos tempos na escola em que se faz uso da língua
com significado, pois nestas experiências as crianças desenvolvem o pensamento lógico, a
capacidade de síntese e de análise. E, acima de tudo isso, é o espaço onde poderiam expressar
seus significados e sentidos de vida.
Como vimos em Benveniste, o sujeito é – por natureza – intersubjetivo. Sendo assim,
seria interessante que a escola, como o lócus principal do conhecimento, se constituísse neste
131
espaço por excelência de interações verbais onde os sujeitos não precisassem “esconder” a sua
singularidade em favor da gramática, melhor dizendo, sem ter que escrever tendo como única
– e principal preocupação – a forma. Como vimos no decorrer do capítulo, a forma e o sentido
são duas modalidades da língua que não devem ser dissociadas. Assim, ao escrever, o sujeito
vai traduzir o sentido do mundo para si, constituído nas interações vividas, tanto na escola
como fora dela.
A concepção de Escrita precisa ser revisitada, pois, ao lembrar as experiências de
escrever na escola, sempre me vinha, e ainda vem, à primeira lembrança, a preocupação com
a forma gramatical e não com as idéias a serem expressas no texto escrito. Hoje, depois de
tantas aprendizagens e buscas difíceis, aprendi que escrever é escrever-se e por isso os textos
escritos serão enunciados sempre únicos e singulares.
E essas referências teóricas têm permitido compreender melhor o objeto ora em
estudo, uma vez que estão me ensinando a analisar a escrita do ponto de vista enunciativo e
sociológico cultural. E, ao enunciar minhas construções, neste diálogo permanente sinto a
insegurança e instabilidade que o ato de escrever supõe e por isso insisto em estudar as
implicações subjetivas da escrita.
É importante registrar, ainda, que todo este percurso teórico que vem compondo uma
trajetória de estudos e descobertas teóricas e metodológicas a respeito da escrita, vai
traduzindo e marcando a minha própria singularidade. Como disse em outro momento deste
trabalho, ele também demonstra a própria “aventura” de pesquisar no campo da educação, o
qual, nos “empurra” e exige a incursão em diferentes domínios conceituais para podermos
contornar o objeto interdisciplinar em estudo.
Prosseguindo nesta “aventura” delinearei no capítulo que segue, do estudado até
aqui, a metodologia de forma mais aprofundada e precisa.. Sem dúvida, trata-se de um estudo
de cunho qualitativo, que tomará o contexto escolar como campo de coleta de dados, mais
especificamente, a relação das crianças em processo de alfabetização com a escrita.
Acreditamos que a metodologia de uma pesquisa está intrinsecamente vinculada aos
referenciais teóricos, uma vez que todo corpus conceitual nos direciona para os aspectos
metodológicos: estratégias de coleta de dados, descrição, categorização e análise dos dados.
Neste sentido, o capítulo que segue terá que se constituir em uma proposta metodológica, a
qual implicará o campo pedagógico, a sociologia da cultura de Bhabha e a lingüística
enunciativa benvenistiana, os quais vão delinear um caminho a ser desenvolvido no campo
empírico.
132
Da esquerda para a direita: Talisson (6 anos) e Bruna (3ª Série)
Talisson e Bruna escrevem a história ouvida...
133
5. O PERCURSO DA INVESTIGAÇÃO E A CONSTRUÇÃO
DA METODOLOGIA DA PESQUISA
Este capítulo tem por função explicitar a abordagem de análise que dada ao nosso
objeto de estudo – a escrita na alfabetização. Nesta seção, discutimos a coleta dos dados, o
contexto da escola e, por fim, a análise dos dados. O capítulo constitui-se de três momentos
diferenciados embora interligados, os quais mostram a proposta metodológica desta pesquisa.
Antes, porém, é importante dizer que no próprio percurso da investigação vamos
descobrindo os caminhos – tanto o teórico quanto o metodológico – porque é nesta busca
incessante de compreender o objeto em estudo e as teorias que produzimos conhecimentos.
Posto isto percebo que já iniciei o trabalho de investigação na medida em que já há algum
tempo faço estudos para delimitar o objeto que ora interessa pesquisar. Importa dizer que a
aventura de pesquisar somente nos possibilita dissertar sobre o seu percurso metodológico, a
posteriori, uma vez que só temos a real dimensão do caminho quando terminamos a
caminhada. Ou, de outra forma, que a metodologia está estritamente vinculada ao objeto em
estudo e ao ponto de vista escolhido.
No entanto, neste momento, podemos refletir sobre o até aqui percorrido,
principalmente no que se refere à delimitação do objeto de estudo e indicar os aspectos
metodológicos que acreditamos ser mais condizentes com a proposta deste trabalho. Nesta
“aventura” da pesquisa, o processo permite perceber algumas especificidades do objeto, as
quais nos indicam modos de como abordá-lo. A seguir passamos a tratar dos elementos
teóricos na elaboração da metodologia.
134
5.1 OS ELEMENTOS TEÓRICOS NA ELABORAÇÃO DA METODOLOGIA DA
PESQUISA
Como dissemos no decorrer do trabalho, a metodologia de uma investigação está
vinculada ao seu objeto, ou melhor, aos estudos conceituais que tomamos por referência para
abordá-lo na análise dos dados coletados. Neste sentido, é importante que situemos
sinteticamente quais são os conceitos ancoradouros desta investigação e, ao mesmo tempo,
quais são as orientações metodológicas que eles nos indicam.
No percurso dos estudos que realizamos, fomos construindo uma concepção de
escrita, de cultura e de história que vem sustentando, cada uma a seu modo, as nossas
argumentações. Assim, penso que posso sinteticamente afirmar que partimos de uma
concepção de cultura que se diferencia da visão que predomina na tradição ocidental, qual
seja, de ela ser constituída por discursos totalizantes do Ser e da História em que sempre
privilegiou uma elite econômica ocidental.
Interessa-nos do referencial construído por Bhabha um ponto em especial: a noção
de entre-lugares e o que, a partir dela, pode-se dizer da posicionalidade do sujeito na produção
da cultura. Isso será aqui tomado no campo da escola, especificamente, na relação das
crianças com a escrita em processo de alfabetização em consonância com a teoria enunciativa
de Émile Benveniste (cf. infra).
Essa implicação teórica (sociologia da cultura e teoria lingüística da enunciação)
deve subsidiar – acreditamos – a construção de um referencial teórico-metodológico que
coloca em relevo a singularidade constitutiva do ato de escrever. A partir disso, pensamos
poder afirmar que singularidade e diferença se constituem num entre-lugares entre a
enunciação e o enunciado – no Terceiro Espaço – produzindo significações e sentidos.
Bhabha e Benveniste, numa relação de implicação mútua, fornecem os princípios
orientadores para contemplar a questão da singularidade, ao menos da forma como a
concebemos. Certamente, isso não significa o esgotamento das possibilidades de abordagem
da instância do singular, já que poderia ser enfocada sob diversos arcabouços teóricos. Melhor
dizendo, o objeto de uma pesquisa é criado a partir da referência teórica utilizada. Isto
explicita que a produção de conhecimento sobre um objeto é inesgotável e faz de cada
pesquisa uma “aventura” diferente.
Embora Bhabha (1998) tenha fundamentado uma idéia de sujeito na enunciação,
buscamos em Benveniste (1988, 1989) (cf. cap. IV), elementos para sustentar, a partir
135
também de uma teoria lingüística, o conceito de intersubjetividade e, por ele, uma perspectiva
de sujeito constituído no uso da língua. Além da noção de intersubjetividade, convocamos do
referencial benvenistiano a reflexão que faz sobre a forma e o sentido das funções
lingüísticas; sobre a dupla significância da realidade semiológica da língua e sobre a estrutura
da enunciação. Estes conceitos foram convocados nas observações do processo da coleta de
dados.
Acreditamos que diante do quadro teórico apresentado nos capítulos anteriores e
sinteticamente aqui retomado, temos indicativos metodológicos para analisar a escrita como
um entre-lugares entre a enunciação e o enunciado produtor de significações e sentidos.
A partir destas incursões teóricas, elaboramos hipóteses e objetivos para este estudo:
Hipótese Geral
¾ O ato de escrever situa-se no interstício entre a enunciação e o enunciado
marcado que é pela singularidade daquele que escreve.
Hipótese Específica
¾ A singularidade da escrita é relativa à posição referencial que o sujeito ocupa na
estrutura enunciativa do ato de escrever.
Objetivo Geral
¾ Propor formas de compreensão do ato de escrever como um ato de enunciação
que produz cultura, marcado pela singularidade daquele que escreve;
Objetivo Específico
¾ Construir recursos que permitam circunscrever a posição referencial que a
criança ocupa na estrutura enunciativa do ato de escrever no processo de
alfabetização.
5.2 ASPECTOS METODOLÓGICOS
A seguir, serão apresentados os procedimentos metodológicos que integram os
corpora desta pesquisa, como forma de elucidar as particularidades e especificidades de um
136
trabalho que toma por orientação teórica os referenciais que concebem a enunciação e a
cultura, situados no movimento dialético das sentenças e na irrepetibilidade das ações, uma
vez que produzem significados e sentidos. Esta perspectiva teórica adotada é definidora da
construção do dado em análise, assim como da coleta, descrição e da análise propriamente
dita.
5.2.1 Sobre a noção de dado
Esta pesquisa, como repetidamente tem-se afirmado, recorre também à teoria
lingüística enunciativa de Émile Benveniste para construir seu instrumental de análise.
Quando se toma o referencial enunciativo como base de análise, é importante lembrar que a
noção de dado se reveste de singularidade, não sendo permutável com noções que o termo
adquire em outros campos do conhecimento. Conforme Flores; Kuhn (2007), “em enunciação
o dado não é jamais ‘dado’”. Com isso, os autores querem enfatizar que o dado é uma
construção que deriva do olhar teórico sob o qual está sendo investigado.
Tal visão é de extrema importância para esta tese, uma vez que os dados que serão
analisados constituem corpora de diferentes naturezas
73
: oral, escrita e imagem (cf. 5.2.2).
Pode parecer estranho, num primeiro momento, que dados de natureza oral e mesmo
de natureza imagética integrem um corpus de análise de uma tese que versa a respeito da
escrita. Certamente, essa heterogeneidade já anuncia aspectos da forma como vislumbramos o
que temos chamado de uma concepção de escrita, cuja existência estaria ligada ao entre-
lugares que a relação enunciação/enunciado anuncia.
Isso será mais bem justificado quando da apresentação dos dados e da análise
propriamente dita. Por ora, basta anunciar dois pontos, ainda conforme Flores; Kuhn (2007),
sobre os quais se assenta a idéia de dado aqui proposta:
73
Evidentemente, dados de diferentes naturezas têm diferentes papéis na análise empreendida (cf. 5.3.1).
137
a) quanto à observação: concebe-se que ela não é teoricamente neutra; sendo,
portanto, já um início de análise. Especificamente, com relação aos dados desta
tese, sua configuração é a de um composto de diferentes materialidades
(gráficas, orais e imagens). Estas, por sua vez, sinalizam um observável que
permite ancorar um tratamento da escrita como um entre-lugares da
enunciação/enunciado;
b) quanto ao recorte enunciativo: trata-se da construção de mecanismos de
explicitação do que foi mencionado no item acima. A esse aspecto pode-se
chamar de recorte enunciativo entendido como uma reunião de mecanismos que
colocam em relevo o entre-lugares da enunciação/enunciado. O recorte
enunciativo se configura no produto de um ponto de vista, o que cria o objeto a
ser analisado. Tais recortes são derivados das diferentes materialidades que
integram os corpora.
5.2.2 Da coleta de dados
Os sujeitos da pesquisa são crianças matriculadas nas diversas séries dos Anos
Inicias da Escola Municipal de Ensino Fundamental Prof. João de Oliveira Martins, localizada
no Bairro Castelo Branco – periferia urbana do município do Rio Grande–RS. A coleta de
dados – orais e escritos – deu-se a partir da utilização de algumas estratégias. Os alunos
participaram de Oficinas semanais de escrita onde utilizamos dinâmicas diferenciadas para
criar situações de escrita, leitura e oralidade. Além do diário de campo e da observação
participante, a filmagem em vídeo cassete foi outro recurso empregado para registrar a
vivência das oficinas. Estas estratégias serão melhor explicadas no decorrer desta secção.
Os dados obtidos foram: textos escritos pelos alunos, imagens das oficinas em
videocassete, fotografias das crianças em atividade de escrita e depoimentos no diário de
campo.
5.2.2.1 Sobre os sujeitos da pesquisa
Os sujeitos participantes foram escolhidos por sorteio. A partir disso, obteve-se um
138
grupo de dez crianças entre seis e dez anos de idade, sendo dois alunos por série dos Anos
Iniciais do Ensino Fundamental, já incluídos, neste caso, os alunos que ingressam com seis
anos de idade na escola. Eles participaram, semanalmente, de oficinas de escrita, do mês de
abril a julho de 2006. Foram propostos 12 encontros de duas horas de duração. Houve
algumas interrupções em função das chuvas
74
, resultando efetivamente em nove (09) oficinas.
Um grupo de crianças alegres, ativas, comunicativas e inteligentes. Provenientes de
famílias de baixa renda e que residem nos bairros da região onde está localizada a escola. São
meninos e meninas que demonstraram curiosidade e participação nos temas que discutíamos a
partir das histórias infantis
75
. Muitas delas já as conheciam, mas a maioria não se lembrava do
seu enredo e ficavam curiosas em ouvir, escutar e ler. Relataram que no turno inverso da
escola, assistem televisão e brincam com os irmãos; algumas ficam com a avó, enquanto os
pais saem para o trabalho, outras são acompanhadas pela mãe.
É pertinente registrar que estas crianças, como a maioria que estuda em instituições
públicas do nosso país, só tem acesso aos livros de histórias infantis na escola. Algumas têm
em casa, mas em pouca quantidade. Elas comentaram que no ano passado podiam pegar livros
e levar para casa, mas nesse ano não tem uma pessoa responsável pela biblioteca, o que
inviabilizou os empréstimos.
Quando questionados sobre a infra-estrutura do bairro onde moram, muitos alunos
revelaram domínio espacial, pois conhecem e localizam os estabelecimentos comerciais, as
igrejas e posto de saúde. Observa-se também que, na informalidade do encontro, todos
apresentam domínio do espaço onde vivem conseguindo se situar em relação à localização da
escola. São crianças espontâneas que, se perguntadas, conversam tranqüilamente a respeito de
diversos temas e acontecimentos recentes da cidade, uma vez que todos têm acesso à
televisão.
Relatam que, quando não estão na escola, a televisão é o maior entretenimento,
inclusive, o acesso a filmes em DVD já é uma realidade deles. Constata-se que assistem
filmes de violência e terror, os quais são recomendados somente para adultos, que demonstra
que não há discernimento entre o mundo infantil e o adulto.
Assim, o grupo participou, sob minha orientação e de uma aluna-bolsista, das
oficinas. A dinâmica das oficinas foi diversificada. Dentre as atividades desenvolvidas, vale
citar algumas: a) a professora e a bolsista fizeram leitura em voz alta de histórias infantis; b)
74
A cidade do Rio Grande está situada no nível do mar. Esta geografia ocasiona dificuldades no escoamento da
água nos dias de chuva, o que impede, muitas vezes, as crianças saírem de suas casas para irem à escola.
75
Utilizamos as histórias infantis clássicas como estratégia para criar de situações de escrita, a qual será
explicada no item 5.2.2.3 deste capítulo.
139
os alunos leram textos silenciosamente e em voz alta; c) as crianças, a partir de leitura prévia
(em casa ou durante as oficinas), relataram as histórias lidas para o grande grupo; d) foram
produzidas histórias escritas com base naquelas narradas oralmente; e) foram produzidos
desenhos dessas histórias.
5.2.2.2 Sobre o contexto da escola
Como foi mencionado, a etapa da coleta de dados deste estudo aconteceu em uma
escola pública municipal de Ensino Fundamental da periferia urbana da cidade do Rio
Grande–RS. A Escola Municipal de Ensino Fundamental Prof. João de Oliveira Martins foi
selecionada para participar da pesquisa porque nela já realizamos outros trabalhos de pesquisa
e extensão. Ela tem uma história importante no bairro onde está situada, pois se constitui num
pólo de referência à comunidade, já que, além das atividades de ensino próprias de uma
instituição escolar, oferece, há vários anos, projetos de extensão e pesquisa
76
para a
comunidade, os quais são elaborados e propostos em parceria com a Universidade, com Ongs
do Município e com a Secretaria Municipal de Educação
77
. Além desse envolvimento da
escola em projetos da Universidade, ela tem uma proximidade geográfica, pois está localizada
num bairro que faz divisa com o Campus Carreiros – FURG, o que facilita o contato com a
instituição.
Como a maioria das escolas da rede pública
78
, apresenta uma infra-estrutura razoável
onde dispõem de pequenas salas de aulas, muitas vezes acolhendo um número de alunos
superior aos das suas dimensões. No entanto, tem um ginásio de esporte coberto que propicia
espaço para as atividades recreativas e desportivas dos alunos. A estrutura da escola é mista,
pois ainda tem salas de aula em madeira, mas o ginásio já foi construído em alvenaria. No
76
O desenvolvimento destes projetos conta com o apoio de pessoas da comunidade, dos professores da
Universidade e de alunos bolsistas de graduação, principalmente, dos cursos de Pedagogia.
77
Dentre eles, destacamos aqueles que estão atualmente em vigência: Projeto Colméia, Projeto Escuna, Projeto
Gênero e Sexualidade. Todos os projetos de extensão envolvem atividades variadas de oficinas
(alfabetização, pintura, restauração de moradias com material reciclado, educação sexual...) com a
participação da comunidade que a escola atende. Além destas atividades, destacamos um projeto de pesquisa
e extensão de formação continuada dos professores dos anos iniciais, que conta com a colaboração do
NEEJA (Núcleo de Estudos em Educação de Jovens e Adultos) por meio da sua Coordenadora Profª Drª
Cleuza Maria Sobral Dias. O referido projeto também é coordenado pela Profª Drª Susana Inês Molon,
ambas do Departamento de Educação e Ciências do Comportamento – DECC/FURG – Apoio CNPq.
78
Em anexo o questionário aplicado na coleta de informações sobre a história da escola e da infra-estrutura
material e humana.
140
entanto, segundo a direção da escola, há demanda ainda por melhores condições físicas e mais
profissionais para atender os alunos portadores de necessidades especiais.
Do total de 43 professores que trabalham na escola, a maioria deles tem curso
superior na área onde atua (39 professores) e apenas quatro têm o curso de Magistério ou
Normal em Nível Médio. Deste grupo de professoras, onze atuam em classes de
alfabetização
79
, das quais sete têm curso de Pedagogia, três possuem curso de Magistério
Nível Médio e um fez curso superior em outra Licenciatura. Grande parte deste grupo de
profissionais mostra-se sempre interessado em participar de projetos de pesquisa e extensão, e
a direção apóia as atividades que ali são desenvolvidas. Percebe-se que a equipe diretiva é
comprometida com a proposta pedagógica da escola, também na busca de alternativas que
minimizem o sofrimento da comunidade causada pelas dificuldades de acesso a bens
materiais e pelo desemprego.
Esta instituição atende a 957 alunos provenientes de vários bairros
80
economicamente pobres, situados nos arredores da escola. A pequena parcela das famílias que
têm emprego fixo trabalha em diversas atividades, tais como no comércio, na indústria de
pescado, como motoristas, como serventes na construção civil, como vigilantes, como
professores; um número expressivo das famílias sobrevive de trabalhos temporários como
biscates, catadores de lixo, faxinas, guarda carros. Cabe ressaltar que a comunidade apresenta
também um percentual significativo de pais desempregados que sobrevive dos atuais
Programas Sociais do Governo Federal, como Bolsa Família.
Neste sentido, a escola tem, historicamente, cumprido um papel social importante
nesta comunidade, uma vez que envolve as famílias, geralmente as mães, em diversos
projetos: alfabetização de adultos, cursos de tricô e crochê, curso sobre gênero e sexualidade,
produção de material para reconstrução das moradias. O bairro onde está situada conta com
um Posto Municipal de Saúde, várias Igrejas e duas associações de bairro. As ruas não são
pavimentadas, não existe sistema de esgoto, pois se pode observá-lo correndo pelas ruelas do
bairro onde, muitas vezes, as crianças brincam e andam descalçadas; o que causa a
proliferação de inúmeras doenças. Este é um breve retrato do contexto da escola onde foi
realizada a etapa da coleta de dados da pesquisa.
79
Nesta escola, são consideradas classes de alfabetização as primeiras séries e as turmas de alunos que
ingressaram aos seis anos de idade no Ensino Fundamental.
80
A escola atende alunos provenientes dos bairros Castelo Branco I e II, Profilurb I e II, Santa Rita de Cássia,
Nossa Senhora de Fátima e Cidade de Águeda.
141
5.2.2.3 Justificativa da escolha dos dados e das estratégias da coleta
Para estudar a escrita, buscamos no campo empírico, além da produção escrita,
imagens e falas. Estas diferentes materialidades dos dados foram definidas pelo próprio
percurso teórico, pois a crença no ato de escrever como ato enunciativo nos levou a criar
situações para que pudéssemos ter o contexto do ato, já que ele é sempre irrepetível e também
pela crença de estar situado num entre-lugares entre a enunciação e o enunciado, o que supõe
deslizamento, movimento e contingência. Como poderíamos registrar a contingência do ato de
escrever? Acreditamos que a imagem nos auxilia nesta tentativa.
Os recortes enunciativos foram selecionados a partir da retomada das filmagens das
oficinas, das fotos, dos textos e dos registros do diário de cada oficina. Neste processo de
rever cada momento, selecionamos alguns atos enunciativos. Cabe dizer que o próprio ato da
seleção já é enunciativo, pois, como pesquisadora, encontro-me também num entre-lugares
que já diz de uma posição de análise. Assim, como já foi anunciado, o dado não é “dado”,
mas criado pelo pesquisador. Essas escolhas também foram produzidas a partir das
construções teóricas que fizemos sobre o objeto estudado – a escrita na alfabetização.
Cabe dizer aqui que a proposta das oficinas de escrita para a coleta dos dados se dá
justamente pela tentativa de cercar o ato de escrever. Sem dúvida, nestas oficinas tivemos que
trabalhar várias questões que envolvem o processo de alfabetização, como por exemplo, a
função social da escrita, as dúvidas de ortografia, da acentuação gráfica, conhecimentos dos
diferentes campos de saber envolvidos nas histórias, valores, noção de tempo e localização
geográfica. Neste sentido, tornamos as oficinas um espaço de aprendizagem onde as crianças
avançaram no domínio da escrita, na oralidade, nos conhecimentos das diversas áreas. Elas
vivenciaram também momentos de fantasia e imaginação através das histórias infantis.
A utilização da literatura infantil constituiu-se em estratégia para criar situações de
produção escrita. Isto se justifica na crença de que ela aguça a imaginação infantil e permite a
discussão de valores a comportamentos produzidos culturalmente ao longo dos séculos. Neste
sentido, encontramos a contribuição de estudiosos da área que nos mostram o papel e a função
que os contos de fadas têm desempenhado na vida da criança e dos adultos.
Alguns pesquisadores da literatura infantil
81
, como Tatar (2004), defendem que os
livros da infância servem não só para conforto, mas como uma maneira de atravessar a
81
Destacamos os estudos de: CORSO, Diana; CORSO, Mário. Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis,
Porto Alegre: Artmed, 2006. E ESTÉS, Clarissa P.Contos dos Irmãos Grimm, Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
Estas pesquisas fazem uma análise da função terapêutica das histórias infantis, bem como da constituição da
nossa subjetividade.
142
realidade, de sobreviver num mundo dominado por adultos. Além disso, as histórias infantis
têm desempenhado uma função importante em nossos comportamentos e em nossa
imaginação mesmo que, por mais que as apreciemos, também as superamos, as abandonamos
e as rejeitamos como coisas pueris, esquecendo seu poder não só de construir o mundo
infantil da imaginação como de edificar o mundo adulto da realidade. Neste sentido, tenhamos
ou não consciência, os contos de fadas modelaram códigos de comportamento e trajetórias de
desenvolvimento, ao mesmo tempo em que nos fornecem termos com que pensar sobre o que
acontece em nosso mundo (p.8-9).
Para Tatar (2004) muitas são as críticas a determinadas histórias infantis no que se
refere à orientação moral, mas ela diz que se os contos de fadas não nos fornecem lições
morais e mensagens adequadas pelas quais – às vezes – ansiamos; elas nos proporcionam
oportunidades para pensar sobre as angústias e desejos a que dão forma: servem para
refletirmos sobre os valores condensados na narrativa e discuti-los e para contemplarmos os
perigos e possibilidades revelados pela história. Hoje se reconhece que os contos de fadas
versam tanto sobre conflito e violência quanto sobre encantamento e desfechos do tipo “e
foram felizes para sempre” (grifo da autora). Isso possibilita uma leitura interativa
possibilitando ao adulto discutir com as crianças sobre várias questões tais como: o que é
importante em suas vidas; o medo do abandono e da morte; as fantasias de vingança e triunfos
que leva a finais “felizes para sempre” (grifo da autora) (p.12).
Percebemos, desta forma, a importância e a interferência das histórias infantis na
vida, ou melhor, na constituição da subjetividade das crianças e dos adultos. Benjamin (1994)
quando trata dos Livros Infantis Antigos e Esquecidos é enfático ao dizer que as crianças têm
um particular prazer em visitar oficinas, onde se trabalha com coisas e onde elas encontram
detritos em que (...) elas reconhecem o rosto que o mundo assume para elas, só para elas. Com
tais detritos, não imitam o mundo dos adultos, mas constroem um mundo só para elas em uma
relação nova e original (...) (p. 238). Para o filósofo alemão, o conto de fadas...
[...] é uma dessas criações compostas de detritos – talvez a mais poderosa na vida
espiritual da humanidade, surgida no processo de produção e decadência da saga. A
criança lida com os elementos do conto de fadas de modo tão soberano e imparcial
como com retalhos e tijolos. Constrói o seu mundo com esses contos, ou pelo
menos os utiliza para ligar seus elementos. (p. 238)
Por acreditar neste papel das histórias infantis na vida das crianças que optamos por
utilizar a literatura infantil como meio de criar situações de leitura e de escrita nas oficinas.
143
Acreditamos que elas propiciam momentos de imaginação e de produção de significados e
sentido aos contos e histórias; mostramos, nestes encontros, a devida importância destes
aspectos imprescindíveis para a aprendizagem e para a produção de conhecimentos, os quais,
muitas vezes, são “esquecidos” nas práticas cotidianas do processo de alfabetização,
principalmente, após o primeiro ano escolar.
Para coletarmos o contexto vivido nas oficinas – a cena enunciativa – nos valemos
também da filmagem e da fotografia, como técnicas que nos possibilitam, a posteriori, rever
todo o processo e os momentos considerados mais expressivos. A fotografia tem, como diz
Dubois (2006), uma força viva irresistível, pois com ela [...] não nos é mais possível pensar
a imagem fora do ato que a faz ser” (p.15). Neste sentido, é conceber a fotografia inseparável
de toda sua enunciação e da implicação do sujeito neste processo. O autor diz:
A foto não é apenas uma imagem [...], é também, em primeiro lugar, um verdadeiro
ato icônico, uma imagem, se quisermos, mas em trabalho, algo que não se pode
conceber fora de suas circunstâncias, fora do jogo que a anima sem comprová-la
literalmente: algo que é, portanto, ao mesmo tempo e consubstancialmente, uma
imagem-ato, estando compreendido que esse “ato” não se limita trivialmente
apenas ao gesto da produção propriamente dita da imagem [...] mas inclui também
o ato de sua recepção e de sua contemplação. (p.15)
No caso deste estudo, a fotografia permite mostrar o processo das oficinas de escrita
onde se enfoca a relação das crianças com a escrita, ou seja, ela permite a análise deste sujeito
em sua enunciação e no enunciado, uma vez que o ato fotográfico já é análise, pois se registra
os momentos que o sujeito que fotografa considera substancial para o seu objetivo. Este ato
também é ato enunciativo.
Utilizamos também um diário de campo onde foram anotadas as expressões orais
mais significativas a respeito da escrita e do ato de escrever, bem como atitudes e diálogos
que consideramos significativos para a investigação. Outra estratégia foi a observação
participante, a qual nos permitirá enfatizar as relações informais do pesquisador no campo,
uma vez que a informalidade aparente reveste uma série de pressupostos teóricos e cuidados
práticos que podem auxiliar ou prejudicar o conhecimento da realidade (MINAYO, 1994, p.
107). Todas estas técnicas e estratégias de coleta dados utilizadas no campo da pesquisa, nos
possibilitam construir o contexto da cena enunciativa em recortes enunciativos, os quais serão
a base de dados para a análise da pesquisa.
144
5.2.2.4 Da Descrição dos dados
Os dados obtidos a partir da coleta caracterizam-se pelos seguintes aspectos:
a) Os textos escritos
Os textos das crianças, uma vez que foram obtidos a partir de histórias contadas e/ou
lidas oralmente, são, em sua maioria, de gênero narrativo, curtos, apresentam diferentes temas
e distintos níveis de letramento.
Integram esses dados tanto os textos que contemplam a totalidade das fases da
narrativa, quanto os que se caracterizam por apresentarem apenas alguma dessas fases (início,
desenvolvimento, fim, etc.).
b) As imagens
Há imagens de duas naturezas: em vídeo e em fotografia. As imagens em vídeo
82
reproduzem a dinâmica das oficinas. Foram filmados oito encontros semanais totalizando oito
horas em vídeo. A câmera focalizou diferentes ângulos do grupo, permaneceu visível a todos
os participantes da oficina e foi operada por um assistente de filmagem.
As fotografias foram feitas pela professora e pela bolsista em câmera digital, durante
as atividades de escrita. As fotografias, em sua maioria, registram o ato da escrita das
crianças.
c) O diário de campo
O diário de campo registra o planejamento de cada oficina, além de observações de
linguagem e de atitudes consideradas significativas para o tema em estudo. Integram este
corpus depoimentos das crianças.
5.2.2.5 Apresentação dos dados
Os dados foram apresentados a partir da seleção de recortes enunciativos (cf. 5.2.1
supra) de filmagens, de textos, de fotos, bem como de alguns depoimentos dos alunos no
diário de campo. O conjunto disso compõe o corpus para a análise.
82
As filmagens foram feitas com a autorização dos pais.
145
A construção de cada recorte enunciativo tem por foco o ato de escrever. Observou-
se a posição referencial na estrutura enunciativa do ato de escrever tomando os indicadores da
enunciação para constatar as relações singulares do sujeito na construção da escrita.
Indicadores que as crianças recorrem no momento de escrever e, a visão que elas expõem
sobre a escrita por meio da oralidade e, em alguns casos, pela expressão registrada nas
imagens.
Os dados estão concomitantemente dispostos em cada recorte enunciativo
83
e,
juntos, constituem uma unidade de análise. Cada unidade de análise está sequencialmente
ordenada em números cardinais com a seguinte notação R (recorte) e o número
correspondente. Em alguns recortes apresentamos a descrição dos diálogos nas oficinas e em
anexo a imagem ilustrativa e, em outros, apenas trouxemos a imagem dos textos escritos,
conforme os exemplos ilustrativos abaixo.
A)
DESCRIÇÃO DOS DIÁLOGOS
ANEXO – IMAGEM CD-1
Quadro 1 – Exemplo ilustrativo de apresentação dos dados
B)
IMAGEM DOS TEXTOS ESCRITOS
Quadro 2 – Exemplo ilustrativo de apresentação dos dados
5.3 DA ANÁLISE DOS DADOS
É importante explicitar – embora os propósitos da pesquisa já revelem – que este
trabalho é de cunho qualitativo uma vez que trata do universo escolar; particularmente, de
questões que integram o fazer pedagógico da alfabetização. Assim, foi no cotidiano da escola
83
Isso não significa que, cada recorte enunciativo, seja constituído sempre pelas três materialidades aqui
trabalhadas. Casos há em que haverá imagens e texto; imagens, textos e extratos do diário de campo.
146
que buscamos os dados, precisamente com a proposição, observação e análise de situações
vividas nas oficinas de escrita. No entanto, esta pesquisa não inclui um trabalho com dados
quantitativos, mesmo admitindo que estes, em muitos casos, se prestam às análises
qualitativas.
Considerando que foi no cotidiano da escola que fizemos a nossa investigação,
focalizando especialmente a relação das crianças com a escrita, é impossível não fazer
também análises pedagógicas nesses recortes enunciativos.
Nesse sentido, a análise dos dados foi feita a partir alguns conceitos de Bhabha
presentes em sua teoria intervalar, como os de cultura e história, que permitiu situar um local
de produção de cultura do sujeito. Esta posicionalidade cultural tem referência a um tempo do
presente – do agora – e a um espaço específico – do aqui. Esta é a idéia de um presente que
produz novas significações e sentidos situados num entre-lugares entre a enunciação e
enunciado. Benveniste é o lingüista do princípio da intersubjetividade e da presença da
subjetividade no uso da língua em uma estrutura enunciativa que é sempre no presente – no
aqui e no agora – por ser única e irrepetível a cada proposição do sujeito pelo fato de
engendrar e interpretar a língua de forma sempre particular.
É a partir desta compreensão que definimos a tese da escrita das crianças como um
ato que se produz no entre-lugares da enunciação e do enunciado,ou seja, num terceiro
espaço que produz significações e sentidos.
Cabe dizer também que a posição de entre-lugares no ato de escrever vale para todos
que escrevem, ou seja, independente do objetivo que se tem, ao escrever cada sujeito vai
situar-se num local intervalar, flutuante e, em movimento.
Já o texto escrito mostra uma posição referencial na estrutura enunciativa do ato de
escrever. Esta posição foi observada a partir da construção de sistemas de referências pessoais
que cada aluno constrói em sua escrita. Temos ainda, como corpus de análise, os dados de
materialidade imagética, que – na análise aqui empreendida – têm caráter ilustrativo e
legitimador das sentenças orais das crianças sobre a escrita, ou seja, sua função é dar a ver, ao
menos parcialmente, a contingência do ato de escrever nas oficinas, uma vez que cada ato
enunciativo é irrepetível e único. Finalmente, as anotações reunidas no diário e os
depoimentos sobre o ato de escrever tiveram uma função fundamental de auxiliar na
explicitação dos indicadores/mecanismos de enunciação, os quais são explicitados pela
oralidade das crianças.
147
5.3.1 Das categorias de análise
Compreendemos na leitura teórico-enunciativa de Benveniste que toda enunciação
está marcada no enunciado e, por sua vez, que ele apresenta indicadores que a traduzem a
cada vez que é proferido de forma singular. Como vimos cada ato de enunciativo será sempre
irrepetível; em outras palavras, a inserção do sujeito na língua é própria de cada um. Por isso,
nesta tese, tomaremos os indicadores da enunciação que se apresentam na oralidade e no texto
escrito. Estes indicadores serão, em seguida, melhor explicados.
Nesta teoria, a forma de inserção de cada sujeito na língua indica subjetividade
porque a enunciação marca uma referência que é o próprio sujeito. Acreditamos que esta
referência vai expressar índices singulares que as crianças estabelecem com a língua no
processo de construção da escrita.
Evidentemente que, a partir desta compreensão enunciativa, construímos alguns
recursos metodológicos para analisar os dados da pesquisa. Neste sentido, não significa que
tomamos a concepção benvenistiana ipsis litteris, mas elas são reconfiguradas no quadro
teórico aqui construído, ou melhor, vamos tomar como indicadores da enunciação as
formulações/perguntas/reflexões orais das crianças dirigidas ao outro acerca do ato de
escrever, ou seja, eles são como índices da enunciação no processo da construção da escrita,
os quais explicitam a singularidade da relação de cada criança com a língua, neste estudo,
com a língua escrita.
Desta forma, constituíram-se categorias de análise os conceitos teóricos esboçados
neste trabalho, as quais nos permitiram constatar alguns indicadores da enunciação, aqui
entendidos como índices que atestam as diferentes relações que o sujeito estabelece com a
escrita como processo de enunciação. Em outras palavras, interessa-nos observar as
indicações que o sujeito dá do processo de construção da enunciação escrita. Tais indicações
são variadas e devem emergir da análise acurada dos dados.
Quanto a isso, o que é possível adiantar é que os indicadores da enunciação nos
dados coletados – e tendo em vista a relação aqui pretendida entre teoria da cultura, teoria da
enunciação e campo pedagógico – revestem-se de particularidades, uma vez que se
apresentaram, normalmente, no cotidiano das oficinas, através das interações verbais orais dos
alunos entre si, dos alunos com a professora pesquisadora e dos alunos com a bolsista.
Dessa forma, foram considerados indicadores da enunciação todas as manifestações
orais dos alunos que tomam por referência o ato de escrever. De antemão, pode-se anunciar
148
que essas manifestações apresentam-se em forma de:
¾ afirmações/reflexões espontâneas sobre o processo da escrita;
¾ considerações sobre dificuldades de diferentes ordens em que a escrita ocupe
lugar central;
¾ narrativas sobre histórias em que a escrita atue como elemento condicionante;
¾ respostas dadas a solicitações de colegas e/ou professor;
¾ pedidos/solicitações a respeito do ato de escrever.
Importa considerar também que esses indicadores não têm entre si nem vínculo de
causalidade – uma vez que não são determinantes um do outro –, nem de temporalidade –
uma vez que não visamos à seqüencialidade entre eles. Os indicadores, da forma como os
concebemos acima, podem ser simultâneos e não têm, necessariamente, um ordenamento
hierárquico.
Finalmente, cabe esclarecer como cada índice sintetiza a implicação teórica aqui
defendida segundo a qual a escrita é um entre-lugares entre a enunciação e o enunciado,
implicação esta derivada das teorias de Bhabha e Benveniste.
O sujeito ao enunciar, e por esse ato, coloca em cena outro ato, cuja existência
integra uma memória cultural da qual só se tem conhecimento na contingência do ato de
enunciação.
Nesse sentido, pode-se já trazer alguns mecanismos como aquele em que o ato da
escrita evoca imagens/concepções da escrita, por exemplo, o sujeito coloca em ato outros
atos. A escrita carrega consigo a história de outros atos de escrever. Isso é perceptível em uma
situação
84
em que uma criança solicita à professora a substituição da folha em que está
escrevendo alegando ter errado por escrever “torto”. Em outras palavras, o ato de escrever,
nesse ato, indica uma visão que poderíamos chamar de “estética” da escrita.
O mecanismo em que o ato de escrita se faz acompanhar de outros recursos, os quais
colocam em relevo a simultaneidade e a semelhança da escrita com outros sistemas. É o caso,
como será visto, dos textos que se fazem acompanhar de ilustrações, das cores, dos
sublinhados. etc.
E, até o momento, aquele mecanismo em que o ato de escrita está na dependência da
construção de sistemas de referências pessoais. Estes índices são os mais importantes para a
tese que se quer aqui defender, dizem respeito à enunciação propriamente dita, ou seja, ao fato
84
Essas situações serão, juntamente com outros recortes enunciativos, apresentadas no capítulo da análise dos
dados que será construído a seguir. Aqui as referidas situações têm apenas o objetivo de exemplificar, como
serão construídas as análises.
149
de o sujeito criar referência – via ato de escrever – a um mundo que se constrói num discurso
contingente. Tais mecanismos podem ser vistos de diferentes formas, como nos casos em que
a criança produz um ponto de vista próprio de atribuição de sentido às palavras proferidas
(casos de narrativas diferentes de uma mesma história oral, por exemplo).
Cabe destacar que o capítulo que segue trata diretamente sobre a escrita enunciativa
das crianças, nele organizamos as análises em dois níveis. Um nível mais geral mostra que a
escrita é este entre-lugares de negociação cultural situada entre a enunciação e o enunciado.
Isto significa que a análise dá a ver que em todo ato de escrever o sujeito fica situado num
lugar intermediário, não-coincidente, de passagem onde acontece a elaboração das idéias e do
sentido dado ao texto; o nível mais específico explicita que em cada ato de escrita da criança,
isso se marca diferentemente, ou seja, se apresenta de forma singular imprimindo significados
e sentido próprio. Desta forma, o que qualifica os dados quando se trata de enunciação não é a
sua quantidade, mas a verificação dos índices da enunciação.
Neste sentido, as análises apresentadas confirmam que a enunciação supõe a
presença de generalidade e especificidade, entendida aqui, como a singularidade constitutiva
do ato de escrever. Esta é uma visão defendida por Flores (20017) que acredita que, de certa
forma, o conceito de enunciação está ligado ao princípio da generalidade do específico.
Explico-me: o aparelho formal da enunciação – expressão cunhada por Benveniste para
designar os dispositivos que as línguas têm para, por um ato singular de utilização, os
locutores se proporem como sujeitos de sua fala – é geral - alguns diriam universal, já que não
se admite língua que não o tenha – e específico, simultaneamente. A especificidade, por sua
vez, se apresenta em dois planos distintos e interligados: a) no plano das línguas, já que cada
língua tem o seu aparelho; b) no plano do sujeito, já que, para este, o aparelho é sempre único
a cada instância de uso (tempo e espaço). (p.05)
Foi a partir desta concepção de enunciação que construímos, no capítulo que segue,
a apresentação da análise dos dados, que situa a escrita num entre-lugares de negociação
cultural marcado pela singularidade daquele que escreve.
Neste percurso do capítulo, acreditamos ter esboçado uma metodologia condizente
com os propósitos da investigação. No entanto, a seguir, no decorrer da análise, nada impede
que se façam alterações quando necessárias, porque o fazer da pesquisa nos exige, durante
todo o processo, “revisitar” os conceitos, as idéias que vimos defendendo no trabalho e,
principalmente, a observação mais precisa dos dados podem mostrar mecanismos, até aqui
ainda não percebidas.
150
Iago (2ª Série)
Iago copia a história...
151
6. ANÁLISE ENUNCIATIVA DA ESCRITA DAS
CRIANÇAS EM PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
Este capítulo apresenta a análise dos dados da pesquisa de campo, realizada na escola
sob forma de oficinas de escrita com as crianças em processo de alfabetização. Ele apresenta
os recortes enunciativos com a contextualização da dinâmica de cada oficina correspondente
a cada um dos recortes e traz as vivências significativas para esta pesquisa e suas respectivas
análises.
As análises, como dissemos, serão feitas tomando, de um lado, a lingüística
enunciativa benvenistiana que tem a intersubjetividade como princípio da linguagem e a
subjetividade como a inserção do sujeito na língua. No caso desta tese será analisada a
linguagem escrita, particularmente aqui o ato de escrever como ato enunciativo que diz
daquele que escreve. A singularidade da relação com a escrita será observada nos indicadores
da enunciação, os quais são explicitados nas interações orais do grupo de alunos.
Denominamos de indicadores da enunciação os índices que subsidiam os mecanismos, alguns
já mencionados. Por outro lado, nos apoiamos também na sociologia cultural de Bhabha para
ancorar essas análises, principalmente, a visão sobre a produção da cultura – situada num
entre-lugares entre a enunciação e o enunciado – neste sentido, o ato de escrever como
inserção cultural do sujeito no contexto escolar mediado, principalmente, pelo sistema
simbólico da escrita.
Certamente essas análises estarão permeadas pelas teorias pedagógicas que vêem
sustentando o histórico debate no campo da alfabetização, uma vez que foi no cotidiano da
escola que os dados foram coletados e os recortes enunciativos construídos. E, além disso,
porque nos interessa e instiga chegar à conclusão deste estudo podendo construir recursos
para que a professora-alfabetizadora possa perceber a presença de singularidade no processo
152
da alfabetização e, assim, propor formas de compreensão do ato de escrever como um ato de
enunciação que produz cultura, marcado pela singularidade daquele que escreve.
6.1 O ATO DA ESCRITA EVOCA IMAGENS/CONCEPÇÕES DA ESCRITA
Este mecanismo mostra que a criança quando escreve ou ao se referir sobre o ato da
escrita evoca, principalmente, por meio das interações verbais, sua concepção e imagens sobre
a escrita. Observemos o recorte enunciativo
85
abaixo:
R1
Recorte Enunciativo - Vídeo 1(em anexo) – Oficina dia 28/04/06 – Aluna da 4ª série
Uma aluna solicita a presença da bolsista em sua classe, no momento em que estava escrevendo a
história do Chapeuzinho Amarelo e pede:
Adriele – Troca a folha?
Bolsista – Que letra bonita! Não gostaste? Queres trocar? Mas podes continuar assim! Mesmo que tu
escrevas assim oh! (a bolsista demonstra na folha com o dedo uma linha torta para baixo). Não tem
problema nenhum! Só se tu não gostaste! Queres outra?
Adriele – Sim!
A bolsista traz outra folha:
Adriele – Posso ficar com esta?
Bolsista – Pode! Muito bonita a tua letra. Parabéns!
R1
85
A apresentação dos recortes enunciativos não segue a cronologia das Oficinas, embora possa haver alguma
coincidência, mas segue os indicadores da enunciação.
153
Este recorte é integrante do primeiro encontro com os alunos. Nesta oficina, depois
de explicarmos sobre o objetivo do projeto
86
, foi lida a história infantil do Chapeuzinho
Amarelo
87
. A atividade solicitada era escrever sobre o que tratava a história e aquilo que mais
tinham gostado. Percebe-se que todas as crianças têm um comportamento de silêncio, o qual é
exigido pela tradição da escola. Importante dizer que, durante o desenvolvimento da tarefa,
não houve perguntas e nem dúvidas sobre a escrita. Cabeças baixas sobre a classe e silêncio
absoluto.
O recorte descrito acima, registrado no CD1 (em anexo), demonstra que a aluna
Adriele, em sua solicitação, explicita uma visão de que ao escrever é necessário seguir uma
determinada espacialização na folha. O pedido de troca de folha vem acompanhado dessa
concepção, uma vez que seu texto estava sendo escrito em linha torta. Embora esta exigência
não tenha sido explicitada, já que oferecemos folhas de ofício, ela traz uma imagem do que
seja escrever certo. Ao mesmo tempo, pede para ficar com o texto que já havia escrito, para
tomá-lo por referência, demonstrando que, na prática da escola, nem sempre é permitida a
substituição da folha e a possibilidade de ficar com a anterior.
No ponto de vista teórico desta tese, este dado confirma que todo ato de escrever traz
a história de outros atos da escrita e, ao mesmo tempo, diz de uma singularidade que se
expressa na contingência do próprio ato. Melhor dizendo, a atitude da aluna em solicitar a
substituição da folha diz da sua singularidade, porque embora outras crianças tenham a escrita
com uma espacialização diferenciada da considerada correta pela tradição da escrita, não
fizeram tal solicitação. Nesta atitude a aluna evoca imagens de outros atos da escrita
explicitando uma visão estética da escrita. Estas expressões singulares são consideradas
índices da enunciação, uma vez que cada criança apresenta diferenças ao escrever no aqui e
no agora de cada ato da escrita. Constata-se que cada ato enunciativo da escrita é único e
irrepetível.
Além, disso, vê-se que neste momento da produção a aluna traz a tradição da escrita
e, ao mesmo tempo, produz índices singulares em seu texto, os quais explicitam uma
determinada relação com a língua escrita. Aqui nesta pesquisa o ato de escrever se constitui
em espaço e tempo de produção cultural. Como nos ensinou Bhabha, o passado é relocado de
modo diverso e sob novas significações e sentido. E, a produção de sentido acontece na
86
As crianças estão acostumadas a participar de projetos de extensão desenvolvidos na escola. Assim, elas
denominavam as oficinas de “projeto”.
87
Chico Buarque é o autor da referida história.
154
contingência do ato, por meio das expressões faladas e escritas no tempo presente e em
espaço específico. Aqui neste estudo, no tempo e espaço da sala de aula.
Observemos outro recorte enunciativo:
R2
Recorte Enunciativo - Vídeo 2– Oficina dia 05/05/06 – Aluno da 2ª série
No início desta Oficina comentávamos sobre quem havia realizado as tarefas de inventar uma história
e pedir para que alguém contasse uma que conhecia. Constatamos que ninguém contou história a eles e
que apenas duas meninas haviam inventado. Sobre inventar história um aluno diz:
Luiz – Nunca escrevi uma história inventada, só de caderno. (refere-se à cópia de histórias)
Professora – Tu não quer experimentar?
Luiz – Ah! Profe, ah tia! Eu vou errar tudo!
Professora – Porque tu achas que vai errar tudo?
Luiz – Porque eu nunca fiz. Eu não sei inventá história de cabeça.
Professora – Pois então é a primeira vez que tu vai fazer. Depois a gente vê. Porque tu achas que vai
errar?
Luiz – Ah! Tudo tia! Porque eu não sei emendá letra, eu não sei inventá história de cabeça tia.
Chega outro colega para participar do grupo.
Professora – Mas voltando a falar Luiz sobre inventar histórias.
Luiz – Eu não sei inventá história da minha cabeça professora.
Professora – Mas tu já experimentou?
Luiz – Eu já fiz uma vez, eu tentei, prá mostrar prá minha professora, mas ela, ela não, ela não mandou
fazer mais, ah! Eu não consegui fazer!
Professora – Então quem sabe tu tenta fazer em casa uma história e na próxima semana tu mostra pra
nós.
Luiz – Eu fiz em casa éh! Vou tentar de novo em casa.
Professora – Traz a história não precisa ser uma história longa, pode ser curta. Aí vocês trazem e lêem
pra gente. Tu tens medo de errar o que?
Luiz – Ah! As letras tia. Tenho vergonha de errar!
Professora – Não faz mal, se tu trocar as letras a gente arruma.
Luiz – Ah! eu tenho vergonha de errar as letras.
Este recorte (anexo CD2) mostra que a criança acredita que a escrita é um produto,
pois o fato de ele ainda não ter compreendido o sistema alfabético não o encoraja a levantar
hipóteses sobre como se escreve as palavras, pois percebe que não sabe e, sozinho, não
imagina que pode pensar sobre este conhecimento. Pode-se inferir que esta crença é uma
decorrência dos procedimentos de ensino preconizados pelo tradicional Método Sintético de
Alfabetização, pois defende o trabalho a partir das partes da palavra, o qual pressupõe que
escrever é a soma de letras e que, num primeiro momento, não precisa a compreensão do
significado de tais signos lingüísticos. Nestes procedimentos a professora-alfabetizadora é que
determina o momento das aprendizagens, ou seja, ela tentar controlar este processo por meio
de atividades fragmentadas, mecânicas que, na maioria das vezes, as crianças não percebem
significado e sentido.
155
Além disso, este método tem uma idéia de que a aprendizagem acontece pela
repetição, por esta razão, propõe atividades de cópia de textos escritos como se referiu o aluno
quando afirmou que “Nunca escrevi uma história inventada, só de caderno”. No entanto,
depois ele lembra que uma vez fez este tipo de tarefa e a professora não mandou fazer mais.
Sua conclusão foi a de que não soube fazer. A partir destes dados, pode-se analisar que a
escrita é trabalhada como se fosse uma estrutura pronta que precisa primeiro ser internalizada,
para só depois a criança ser autorizada a escrever. Outro dado a ser considerado é o fato de a
professora-alfabetizadora não ter dado um parecer sobre o texto que ele elaborou, o que o
levou a concluir que não estava bem feito,ou seja, estava errado. Isto mostra que toda
atividade solicitada aos alunos devem ser corrigidas e comentadas para que eles tenham
pareceres sobre a sua produção.
O Luiz é um menino que deixa explícito nestes enunciados o medo que tem de errar,
confirmando então a idéia da escrita como “algo pronto”. Essa crença não deixa ele tentar
elaborar tais conhecimentos. Pode-se concluir isso porque até o final das oficinas ele não
inventou nenhuma história e, quando solicitado para fazer leitura em voz alta demonstrava
dificuldades, melhor dizendo, ele soletrava as letras e ou sílabas e, na maioria das vezes, não
apresentou compreensão daquilo que leu. Em um determinado encontro chegou a expressar –
“Eu fico até triste de não lembrar de tudo aquilo que leio” – Sabe-se que a leitura em voz alta
é a mais difícil porque exige ritmo, entonação e significado. Por isso, em nossas atividades,
sempre antes deste tipo de leitura os alunos faziam a leitura silenciosamente do texto que seria
lido em voz alta.
Estes dados do R2 explicitam a singularidade de uma relação de resistência com o
domínio da língua escrita e não é forçoso acreditar que o aluno construiu esta singular relação
a partir de suas experiências escolares. Além disso, este recorte também confirma a idéia,
predominante em nossa sociedade de que há um conjunto de conhecimentos que expressam a
cultura e deve ser repassado para as novas gerações. No caso deste estudo, o domínio da
escrita alfabética se configura num destes conhecimentos a serem socializados. E, os
procedimentos de ensino da professora-alfabetizadora expressos pelo relato das experiências
de Luiz em relação à produção de histórias no R2, confirmam tal idéia, ou seja, o aluno
precisa apenas memorizar e repetir as histórias infantis existentes em nossa cultura. Ao
realizar tais atividades que, na maioria das vezes, exigem a pura cópia das histórias, elas
acabam induzindo à crença de que ele não consegue produzir sentidos e significados próprios,
mas apenas é capaz de reproduzir algo que já está pronto. Isto se revela no fato de Luiz não
156
tentar escrever sua própria história.
Neste sentido, constata-se que quando o aluno se encontra diante da tarefa de
produzir individualmente, resiste pelo medo de errar. É importante salientar que é neste ato de
produção que o aluno se encontra situado num local intervalar,ou seja, no entre-lugar do ato
de escrever, sempre contingente. Na perspectiva teórica aqui trabalhada, este é o local da
ambivalência e do movimento flutuante das contradições onde a busca pela superação já não
interessa mais,uma vez que nesta linha de pensamento a História e o Ser são descontínuos e
fragmentados e se constituem na provisoriedade do aqui e do agora da enunciação. Trabalhar
esta perspectiva de sujeito e, por sua vez, de singularidade na relação com a escrita na
formação das professoras-alfabetizadoras é um compromisso.
Conceber o “erro” como constitutivo do aprender e perceber que é na contingência
do ato de escrever que se dá o movimento incessante da aprendizagem da linguagem escrita é
importante para transformar o ato de alfabetizar.
Outro aspecto a ser analisado é aquele que se refere à visão de que o aluno que não
tem o saber do funcionamento do sistema alfabético, em determinado tempo
88
, apresenta um
defeito pessoal impossível de ser contornado. Esta idéia mostra-se determinante do
comportamento e da posição subjetiva do sujeito diante da aprendizagem da leitura e da
escrita. É possível pensar que no caso do aluno Luiz as experiências escolares fizeram com
que internalizasse tal posição diante da aprendizagem, uma vez que sua história de escrevente,
constituída pelas atividades pedagógicas propostas na sala de aula, fizeram com que ele
acreditasse na impossibilidade de escrever histórias “inventadas” e de produzir significados e
sentido próprios. Esta posição dificulta-o avançar na compreensão do sistema alfabético, uma
vez que essas atividades se configuraram em causa e conseqüência de uma posição de
resistência diante do ato de ler e escrever.
Constatamos também que mesmo o aluno tendo vivenciado atividades de cópia
durante o seu período de escolarização, ele sabe a diferença entre copiar e escrever. O recorte
enunciativo abaixo é ilustrativo disso:
88
Determinar um tempo padrão para a aprendizagem da leitura e da escrita é uma atitude que mostra a crença na
existência de homogeneidade em um grupo de alunos. Entretanto, a realidade de qualquer sala de aula
confirma que esta idéia é equivocada, já que a aprendizagem supõe além da razão, a emoção e o afeto que faz
de cada sujeito único. Faço esta ressalva em função das atuais políticas públicas do estado do Rio Grande do
Sul, que vem “aplicando” diferentes métodos de alfabetizar em escolas pilotos determinando um tempo, a
priori, para alfabetizar.No meu ponto de vista, esta é uma política que pouco contribui para a melhoria da
qualidade do ensino, já que não se constitui em uma política permanente de formação continuada às
professoras-alfabetizadores, mas propõe apenas encontros de “treinamento” para aplicação de tais métodos.
157
R3
Recorte Enunciativo - Vídeo 3– Oficina dia 12/05/06 – Aluno da 2ª série
Foram distribuídos livros de diferentes histórias para as crianças lerem silenciosamente. Em seguida
solicitamos para alguns que lessem em voz alta. Após este tipo de leitura todos escreveram sobre a
história que haviam lido. Observo que dois alunos copiam do livro. Um comenta com o colega:
Luiz – To na primeira folha!
Iago – Puxa!
Luiz – Tu ta na segunda? Puxa! A segunda é bastante!
Professora – Tu tá copiando ou escrevendo?
A professora comenta com o grupo:
Professora – A professora pediu para copiar ou escrever?
Grupo – Escrever!
Luiz – Copiando tia! Não me lembro tia! Pode falar, mas depois eu não me lembro nada!
Professora – Não lembra como se escreve ou não lembra do que foi dito?
Luiz – Não lembro como se escreve as coisas!
R3
158
Luiz sabe que existe diferença entre copiar e escrever, mas, mesmo assim, as
experiências escolares vividas até o momento não propiciaram a ele construir a crença de que
pode tentar realizar a segunda tarefa com autonomia, embora já esteja na segunda série. Como
ele ainda não compreendeu o sistema alfabético, a cópia é a única estratégia que encontra para
desenvolver a tarefa, uma vez que quer atender à solicitação feita. Constata-se que o aluno
sabe que para escrever sobre a história lida e ouvida e, mesmo para fazer uma história
“inventada”, precisa de autonomia – e esta ele ainda não tem porque não compreendeu a
natureza do sistema alfabético. A maioria das atividades que lhe foram propostas desde que
freqüenta a escola não propiciaram a construção deste conhecimento e, além disso, o levaram
a acreditar que sozinho não consegue pensar sobre este saber. Neste sentido, pode-se afirmar
que Luiz sabe que: a) não tem autonomia e percebe esta falta no ato de cópia; b) o ato de
escrever supõe esta capacidade e c) o fato de saber disso não é suficiente pra levá-lo a
escrever. Esta compreensão faz com que o aluno assuma uma posição de resistência diante da
escrita, uma vez que se observou em outros momentos das oficinas, que ele quer participar
das atividades, mas a falta de domínio da escrita e o medo de errar o limitam.
Cabe ressaltar que ao nos referirmos ao domínio da escrita não estamos supondo que
o aluno já saiba escrever ortograficamente, mas que o aluno já tenha compreendido como
funciona o sistema alfabético.
Este mecanismo é o mais expressivo nos dados, pois as crianças mostram pela
resistência diante da escrita e da leitura uma concepção de escrita que tem prevalecido, ao
longo de pelo menos cinco séculos na tradição da escola brasileira, qual seja, de a escrita ser
algo da exterioridade do sujeito. Esta concepção é predominante nos dados e aparece nas
manifestações dos alunos, principalmente daqueles que ainda não dominaram a sistema
alfabético. Vejamos no recorte enunciativo abaixo outro dado ilustrativo de tal situação:
R4
Recorte Enunciativo -Vídeo 4 – Oficina dia 30/06/06 – Aluno da 2ª série
No início desta oficina os alunos são questionados a respeito da tarefa solicitada no encontro anterior:
Professora – E o Fábio! Imaginou uma história pra contar? E o Iago? E o Bruno? (Todos gesticulam
com a cabeça que não).
Fábio – hei tia tem aquela história!
Professora – Qual?
Fábio – Aquela que eu trouxe da Vaquinha Mandona.
Professora – Então conta pra nós.
Fábio – Eu te dei!
Professora – Se tu me deste está aqui. (Eu procuro e encontro a história)
Fábio – Mas, eu não quero ler e nem contar tia!
Professora – Ela (a vaquinha) já nasceu mandona né Fábio. Tu queres ler pra nós?
O aluno gesticula coma cabeça que não.
159
R4
Constatamos ao longo da vivência das oficinas, que apenas duas alunas trouxeram
histórias escritas inventadas a partir de fatos ou vivências. O Fábio resistiu à escrita e à leitura
até o final dos encontros. Cabe ressaltar que a história que ele refere no depoimento acima foi
cópia. Nesta oficina fui incisiva em colocá-lo em situação de leitura, uma vez que vinha
observando durante os diversos encontros a sua resistência em realizar as tarefas. Como
vemos é um aluno que já está no segundo ano da escolarização e ainda não apresenta o
domínio do sistema alfabético, embora saiba fazer uma bela cópia.
160
No meu ponto de vista, o fato da prática escolar continuar insistindo em atividades
que excluem o significado e o sentido das produções escritas e da leitura, desde o início da
escolarização, contribuem na efetivação de uma relação de resistência, uma vez que o aluno,
na maioria das atividades que lhes são propostas, não pode expressar suas idéias, porque são
tarefas que exigem apenas repetição e memória. Assim, o predomínio deste tipo de atividade
pedagógica leva o aluno a acreditar que não sabe pensar sozinho, ou seja, não consegue fazer
as tarefas sem o auxílio de um modelo.
Como analisamos, isso acontece porque a tradição da escola tem privilegiado, na
maioria dos processos de alfabetização, o ensino de letras e não da linguagem escrita. Ensinar
a linguagem escrita supõe a experimentação pelo aluno, ou seja, a sua prática supõe dúvidas e
erros, os quais fazem parte de um processo mais amplo da aprendizagem desta nova forma de
expressão. A trajetória de trocas de letras e ou suprimento delas; a utilização da acentuação
gráfica e o uso das diversas pontuações integram o processo de alfabetização. É preciso saber
que para que estas aprendizagens sejam dominadas os alunos têm que ter a prática da leitura e
da escrita no cotidiano da sala de aula.
Além disso, a ênfase da escrita em detrimento da oralidade das crianças se constitui
em mais uma dificuldade para tal domínio. Esta cisão entre a oralidade e a escrita foi
perceptível nos dados e se constituiu em um outro mecanismo importante do ato de escrever.
6.2 O ATO DA ESCRITA ESTÁ NA DEPENDÊNCIA DA ORALIDADE
Este mecanismo foi observado em todos os encontros, apresentando-se de forma
disseminada em determinados comportamentos e atitudes da maioria das crianças que
participava do grupo. No entanto, nem sempre a imagem conseguiu focalizar tais dados, mas
eles foram registrados no diário de campo.
Constatou-se que a oralidade em sala de aula não tem ocupado a cena da
alfabetização, mas que há uma primazia às atividades de escrita. Isso dificulta o processo de
aprendizagem da língua escrita, uma vez que a oralidade é fundamental para tal domínio.
No decorrer das oficinas fomos observando que quase a totalidade das crianças não
se predispunha contar histórias ouvidas ou lidas e nem a relatar o texto escrito. Aqueles que
sabiam ler optavam por tal procedimento e, os outros, se negavam a fazer a tarefa. Mesmo
sendo desafiados em diversos momentos a realizar tais atividades, a maioria delas se
161
“encolhia” na cadeira para não atender à solicitação. No entanto, quando falávamos sobre
temas do cotidiano como a localização de suas casas em relação à escola, regras de
brincadeiras e jogos, relato de filmes que assistiam, programas de TV, músicas que ouviam
em casa, atividades que faziam no turno inverso da escola, etc., todos apresentavam uma
oralidade espontânea e clara. O mais interessante é que aqueles que quase não atendiam a
maioria das atividades propostas nas oficinas, eram muito presentes nestes bate-papos
informais.
Esta situação me fez acreditar que o ato da escrita depende da oralidade, ou seja, as
atividades de escrita precisam supor a oralidade. E, na realidade, o que a escola tradicional em
geral propõe nem sempre exige a oralidade e, muitas vezes, até nem valoriza a fala da
comunidade onde está situada. Ela acredita que para ensinar a escrita padrão precisa negar a
oralidade, já que ela apresenta variações dialetais e lingüísticas. Esta linha de pensamento
situa-se em tendências tradicionais que dicotomizam e polarizam fala e escrita.
Os estudos da área de lingüística aplicada , geralmente, tratam da relação entre a fala
e a escrita. Dentre eles destacamos o de Marcuschi (2007), que defende que há entre a fala e a
escrita uma relação fundada num continuum e não numa dicotomia polarizada. Nesta
perspectiva, defende a visão de a língua, seja na sua modalidade falada ou escrita, apresentar
propriedades intrínsecas e uma não tem superioridade em relação a outra. Elas “são modos de
representação cognitiva e social que se revelam em práticas específicas” (p. 35) e, por isso,
não é uma relação homogênea e nem constante.
Assim, a relação falada e escrita precisa ser vista fora da visão dicotômica, pois o
autor constrói um ponto de vista sócio interacional onde mostra a heterogeneidade de relações
que há nos diversos gêneros textuais entre a modalidade escrita e falada. Em sua análise há
um continuum de variações tanto na escrita como na fala, ou seja, tanto a escrita como a fala
variam dependendo das condições de produção. Há aqui uma compreensão de língua em uso,
a qual “(...) se realiza essencialmente como heterogeneidade e variação e não como sistema
único e abstrato” (p. 43). Neste sentido, precisa-se analisar a língua em uso e não a partir da
noção de sistema, para então constatar as diferenciações contínuas e ou graduais entre a
modalidade escrita e falada. Estas podem ser trabalhadas em atividades de retextualização
que, neste caso, supõe a passagem da fala para a escrita, mas isso não significa passagem do
caos para a ordem e sim de uma ordem para outra, as quais apresentam diferenciações.
Acreditamos que a concepção de Marcuschi (2007) em consonância com a teoria
enunciativa de Benveniste nos indica a pertinência de conceber e analisar a língua em seu uso,
162
uma vez que ela apresenta variações singulares em cada ato enunciativo, seja na modalidade
escrita ou fala. Isto porque a subjetividade de que trata Benveniste consiste no ato individual
de utilização da língua.
Mesmo são sendo objetivo desta pesquisa analisar a posição da professora-
alfabetizadora, pudemos inferir alguns procedimentos de ensino por meio das falas das
crianças a respeito da escrita e da leitura. Constatamos nos dados que a polaridade escrita e
fala ainda se manifesta nas atitudes de muitas professoras-alfabetizadoras. Pode-se verificar
isso por meio do comportamento de resistência das crianças em narrar oralmente as histórias
lidas, já destacado no R2 e R4. Como vimos, tradicionalmente a oralidade é considerada
concreta, caótica e simplificada – enquanto a escrita abstrata, ordenada e complexa. Se
adotada esta visão, ela desvalorizará e intimidará a oralidade do grupo. A oralidade a qual me
refiro é a espontânea da sala de aula entre os alunos; entre professora e aluno, bem como
aquela em que as atividades de escrita que lhes são propostas poderão exigir. Em outras
palavras, atividades escritas que supõem a oralidade tanto para realizá-la como para socializá-
la.
Podemos observar no R4 que Fábio foi incisivo ao se negar a ler e a contar (narrar).
No entanto, ele é extrovertido e adora conversar com os colegas. Além disso, foi sempre
muito participativo no jogo das Cinco Marias
89
, demonstrando raciocínio rápido, muita
destreza física e uma oralidade notável, ou seja, fala muito.
Observa-se também que, quando propomos em uma oficina que as crianças lessem
histórias infantis silenciosamente e depois contassem ao grupo, aquelas que têm maior
domínio da escrita mostraram maior destreza oral, mesmo apresentando-se com timidez. No
entanto, aquelas que ainda não dominam o sistema alfabético, se propunham a ler a história,
ou seja, queriam soletrar as sílabas e palavras; alguns buscaram a estratégia da leitura da
imagem, já que não liam com significado e, outros ainda, se negaram a contar a história.
Podemos observar no R5 abaixo fragmentos ilustrativos de tais constatações:
89
No final de cada encontro reservamos um tempo para jogar, ouvir música e dançar. Os alunos podiam levar
jogos, brincadeiras e músicas. Eu e a bolsista levamos o jogo de Cinco Marias.
163
R5
Recorte Enunciativo - Vídeo 5 - Oficina dia 12/05/06 – Atividade de contar história
As crianças lêem silenciosamente as histórias infantis.
A professora explica a diferença entre ler e contar (narrar) para a aluna Adriele:
Professora – Ler é ler tudinho o que está no livro. Contar, tu vai contar aquilo que tu lembras da
história. João e Maria, então tu vai contar pra nós?
Adriele conta a história até o ponto que lembra. O colega Bruno complementa a história porque já
havia ouvido. A professora questiona sobre alguns fatos da história. Em seguida:
Professora – E a Bruna! Depois tu conta! Vais contar agora. Qual a história?
Bruna – Soldadinho de Chumbo.
Professora – Conta alto para que todos possam ouvir.
Bruna conta a história com timidez. Em seguida, a professora questiona quem ouviu e quem
conhecia a história fazendo uma síntese.
Luiz – Posso ler tia? Tia eu quero ler tia!
Professora – Ler? Vai lendo baixinho pra ti e depois tu conta.
Luiz – Tia eu quero ler agora!
Professora – Não. Eu não quero que tu leia. Hoje está todo mundo contando e não lendo.
Luiz – Eu quero ler tia!
Professora – Quem é que vai contar agora? Rafael? Pode ser?
Rafael – Posso professora! Eu quero contar!
Professora – Tu leste duas né? Então escolhe uma e conta.
Rafael conta a história do Aladim.
Em seguida eu indico para Iago o título da história no livro e pergunto:
Professora – A Galinha dos Ovos de Ouro! O que tu entendeu da história? Conseguiste ler Iago?
Ele afirma gesticulando a cabeça.
Professora – Conseguiu. O que conta a história da Galinha dos Ovos de Ouro?
O aluno fica pensativo. Abre o livro, olha uma página. Fecha o livro e debruçado sobre ele diz:
Iago – Não me lembro quase nada!
Fica pensativo e apreensivo. Ao lado de Iago está Fábio também debruçado sobre a classe.
Professora – E o Fábio?
Os dois alunos ficam debruçados sobre a classe. Fábio não responde.
Professora – E o Luis?
Quando chamo Luis, Fábio levanta o corpo da classe e demonstra alívio e diz:
Fábio – E aí Luis?
Professora – A tua história é a do Bambi? Qual é o nome da história?
Luiz – É Bambi tia!
Professora – Então conta pra nós até aonde tu leu. O que tu entendeu.
O aluno identifica a página no livro
Luiz – É que ela nasceu, nasceu da mãe dela né? E ela saiu pra passear.
O aluno folheia as páginas do livro lendo as imagens.
Luiz – E aí, foi atrás do primo dela. Aí deu uma tempestade.....
O aluno segue lendo as imagens como estratégia de leitura , uma vez que não lembra pra contar. Na
seqüência, sugiro que continue a leitura silenciosa.
164
R5
165
R5
166
R5
É fato que o domínio do sistema alfabético é pressuposto para poder, no caso desta
atividade, contar a história que leu – mas também é verdadeiro que não existe relação entre o
domínio da escrita e destreza oral, isto é, uma pessoa não alfabetizada apresenta domínio oral
comunicando-se de forma eficaz e também faz atividades de retextualização em seu
167
cotidiano, uma vez que compreende a língua da comunidade da qual faz parte.
Neste sentido, insistimos que para aprender e ensinar a escrita é necessária a
oralidade, embora ambas possuam particularidades diversas entre si. O que se quer ressaltar é
que se precisa muito desta união – oralidade e aprendizagem da linguagem escrita – desde o
início da alfabetização. Sabemos que historicamente há em nossa sociedade um privilégio da
cultura escrita em detrimento da cultura oral. E isto se manifesta no cotidiano da escola
quando se percebe que as crianças em sala de aula quase não falam mais. Refiro-me a
propostas de atividades que enfatizem a oralidade e a escrita, uma vez que, embora distintas, a
aprendizagem da escrita supõe relação com a oralidade para que possam, neste processo,
perceber analogias e diferenças entre estas duas modalidades de uso da língua.
O que não se pode é ignorar que uma criança ao chegar à escola já traz uma
competência lingüística que foi construída na comunidade da qual faz parte, apresentando
domínio de regras gramaticais da língua falada. Uma competência lingüística complexa,
sofisticada e correta
90
. Este conhecimento é fundamental para compreender o sistema da
escrita que a criança aprenderá, já que é nativo falante da língua. Assim, em um grupo de
alunos sempre haverá diferenças dialetais e de vocabulário, mas todos se comunicarão com
eficiência e o contexto de suas vivências determinará o sentido e as interpretações por eles
produzidos.
Como vimos, os dados do R5 ilustram a resistência das crianças em contar as
histórias lidas. Mesmo aqueles que já lêem demonstram certa timidez nesta tarefa, o que nos
faz inferir que a escola tem persistido na dicotomia escrita e oralidade. Pode-se constatar que
aquelas crianças que se dispunham a relatar ou ler o seu texto, mesmo manifestando
vergonha, eram os que apresentavam maior domínio da escrita. Constata-se que apenas o
Rafael narra oralmente a história que não havia escrito naquele momento, pois ele leu
silenciosamente a história de Aladim e escreveu um texto sobre os malefícios do cigarro.
Observe também no recorte enunciativo R7 (item 6.4) quando solicitei que as alunas
lessem seus textos ficaram constrangidas, mas em outras atividades que não são comuns da
prática escolar são envolvidas e desinibidas, como por exemplo, relatar filmes que assistem,
brincadeiras que conhecem, jogos, e mesmo ao contar as histórias que conhecem.
90
FRAGO (1993) critica em um de seus trabalhos a perspectiva de alfabetização cultural e funcional que
ignoram as bases orais do pensamento e da linguagem por acreditarem erroneamente “[...] que o saber
imobilizado por escrito assegura significados e interpretações universais independentes do leitor e do contexto
em que se lê” (p. 27). Para saber mais, ler a obra do referido autor: Alfabetização na Sociedade e na História:
vozes, palavras e textos. [Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Álvaro Moreira Hypolito e Helena Beatriz M. de
Souza] Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
168
Acreditamos que um ensino que trabalhe a oralidade e escrita como duas instâncias
do uso da língua, marcando as semelhanças e diferenças, contribuirá muito para o domínio da
língua em sua expressão escrita, uma vez que a criança poderá expressar as suas
interpretações (significados e sentidos) produzidas nas atividades de leitura e escrita sem
medo de “errar”. Elas perceberão que há a possibilidade de, ao desenvolver as atividades
escolares, explicitar suas dúvidas, elaborações e respostas oralmente. Neste sentido, o
pensamento e a imaginação dos alunos são fundamentais na aprendizagem, ou seja, os
procedimentos pedagógicos partirão da idéia da existência de um sujeito que produz
significados e sentidos.
Aqui neste estudo, o sujeito ao escrever situa-se num entre-lugares de produção de
cultura. O aluno ao incorporar a escrita, como mais um sistema simbólico, a ressignifica
marcando sua singularidade naquilo que escreve. Em outras palavras, a subjetividade
compreendida como o ato individual de utilização da língua se expressa em todo ato
enunciativo, seja falado ou escrito. E, aqui, neste trabalho, compreende-se que há uma
disjunção do sujeito da enunciação em cada ato enunciativo, uma vez que o enunciado escrito
dirá de uma posicionalidade cultural, de sua referência a um tempo presente e a um espaço
específico. Assim, é no cotidiano da sala de aula que cada criança se constitui subjetivamente
na relação que estabelece com o uso da língua, seja na modalidade falada ou escrita.
Assim, uma proposta pedagógica que una oralidade e escrita se torna fundamental ao
processo de alfabetizar, pois as crianças ao dizerem de seus cotidianos, no aqui e agora de
cada ato enunciativo da sala de aula, retextualizarão seus contextos específicos de vida, com
significado e sentido. Desta maneira, o aluno perceber-se-á capaz de produzir suas próprias
interpretações em meio às dúvidas e incertezas que o processo de aprender supõe e exige.
6.3 O ATO DE ESCRITA SE FAZ ACOMPANHAR DE OUTROS RECURSOS
Este mecanismo se fez presente também no R1 analisado acima. Observa-se que no
texto entregue pela aluna há, juntamente com a escrita, outro recurso que acompanha – ou
seja, o texto se apresenta com outro sistema de signos, pois ela pintou cada palavra de seu
texto. Esta é uma singularidade da Adriele que, ao escrever, busca outro sistema para compor
sua produção, demonstrando ter uma visão particular do que seja um texto bem apresentável:
ela traz outros atos para seu ato de escrever, manifestando uma visão estética da escrita.
169
Observamos que a maioria dos alunos utiliza a pintura e o desenho como recursos que
acompanham a escrita. Os três textos do R6 foram escritos na mesma oficina e escolhidos
aleatoriamente. A tarefa neste dia era de cada aluno escrever um final para a história do Barba
Azul
91
, pois ela havia sido contada pela bolsista.
R6
91
História de Charles Perrault. Paris, Barbin, 1967. In: Contos de Fadas. TATAR, Maria. Rio de Janeiro: Zahar,
2004.
170
R6
171
R6
Nos dados do R6 há singularidade na forma de como cada aluno utiliza os recursos,
neste caso, desenho, pintura e bordas, tanto no que se refere à organização espacial da folha,
como na escolha das cores e dos elementos desenhados. É importante salientar que mesmo
172
desafiados a escreverem o seu final para a história, foram fiéis à elaboração do autor. Este
dado confirma a crença de que o final criado pelo autor é o correto.
6.4 O ATO DE ESCRITA ESTÁ NA DEPENDÊNCIA DA CONSTRUÇÃO DE
SISTEMAS DE REFERÊNCIAS PESSOAIS
Esta é o mecanismo de maior importância de nossa tese, já que vimos construindo a
idéia de que há singularidade na relação das crianças com a escrita. Neste percurso de análises
constatamos nos índices de enunciação os elementos singulares.
Podemos afirmar que os índices de enunciação constituem a construção de sistema
de referências pessoais – a referência como sendo o próprio sujeito. Um sujeito fragmentado
que se faz numa História que acontece no aqui e no agora. Em outras palavras, é a cada dia da
sala de aula e na contingência do ato de escrever de cada atividade pedagógica que o sujeito
marca a sua singularidade.
Neste sentido, em todas as atividades desenvolvidas nas oficinas de escrita
constatam-se as referências pessoais das crianças. Os três mecanismos acima constituem o
sistema de referência construído pelas crianças. No entanto, cabe dizer que estas análises não
esgotam a possibilidade de outros índices, mas pode-se dizer que as concepções, os recursos e
a oralidade são elementos que indicam a subjetividade do sujeito. Assim, conforme nossa
tese, o aluno se singulariza em sua história de escrevente ou escritor que se faz num aqui e
num agora situados num entre-lugares entre a enunciação e o enunciado, neste caso, na
contingência do ato de escrever de cada atividade pedagógica.
Podemos afirmar que as produções escritas e as interações verbais das crianças, ao
mesmo tempo em que mostram a repetibilidade de elementos da cultura na relação com a
escrita, indicam singularidade. Constatamos no R6 que as crianças escreveram o mesmo final
da história do autor, mas criaram suas próprias referências na medida em que cada um
produziu um texto com significados e sentidos irrepetíveis e únicos, próprios da enunciação e
da contingência do ato de escrever.
A singularidade da relação das crianças com a escrita pode-se observar também no
recorte enunciativo a seguir:
173
R7
Recorte Enunciativo - Vídeo 6 – Oficina dia 05/05/06 – Alunas da 3ª série
Como referimos, na primeira oficina desafiamos os alunos a escreverem histórias inventadas ou
contadas pelos familiares ou outras pessoas. No entanto, apenas duas meninas realizaram a tarefa. Elas
transformaram em texto o fato de a prefeitura da cidade, no dia 24 de abril ter incendiado. Elas
contextualizam a escrita do texto antes de ler e demonstram vergonha em realizar tal tarefa:
Professora – Bruna ou Samara. Quem quer começar? (leitura)
Demonstram vergonha na expressão corporal.
Professora – Tem vergonha? Ah! mas não precisa ter vergonha. Vocês inventaram uma história do
incêndio ou relataram o incêndio?
Bruna – Não sei dizer!
Professora – Então lê prá nós!
As duas alunas se entreolham envergonhadas.
Professora – Vocês fizeram juntas?
Bruna – Não!
Professora – Quem foi que fez? Tu fizeste Bruna? Cada uma fez a sua? Então lê pra nós! Estão com
vergonha!
Rafael – Não precisa ter vergonha!!!
Bruna decide ler primeiro.
Professora – Vamos ouvir então! Bah! Escreveu um monte deve ter coisa linda aí!
Bruna – Escrevi assim óh! Sabe a pessoa que mais ou menos ajudou a escrever. O marido dela, o todo
marido dela trabalhou no incêndio. Faz quase vinte anos que ele trabalha lá. E, assim o caminhão e as
mangueiras já estavam rasgadas. E o texto é mais ou menos sobre isso.
A aluna faz a leitura do texto.
Professora – Muito bem! Parabéns! Palmas para a Bruna! Agora a Samara então.
Sâmara – Eu inventei!
Professora – Tu inventou! Ótimo! A Bruna uma pessoa ajudou a escrever. Foi tu que escreveu ou a
pessoa?
Bruna – Não fui eu!
Professora – A pessoa foi falando e tu escrevendo?
Bruna – Não ela só me deu umas idéias.
Professora – Ah! ela te deu umas idéias. E, depois tu podes me dar este texto? Então tá. E tu inventou
o texto. Vamos lá!
A aluna Samara faz a leitura do seu texto.
174
R7
175
R7
Como vemos neste recorte (CD6 em anexo) tanto a Bruna como a Samara
contextualizam a escrita dos textos, isto é, contextualizam o fato explicando e justificando
176
qual foi a referência que tomaram para escrever a história sobre o incêndio na prefeitura.
Sabemos que a referência em enunciação é o próprio sujeito e, por isso, cada produção traz
consigo elementos que contextualiza um espaço e um tempo determinados pelo sujeito, o que
lhe confere singularidade. Foi isso que as duas alunas demarcaram quando argumentaram
como foi escrito o texto.
Esta contextualização sobre o texto demonstra que as alunas já apresentam uma
metalinguagem sobre a escrita, o que indica um domínio maior dela. Outro índice de
enunciação se refere à forma como cada uma delas aborda o mesmo tema, ou melhor, como
cada uma enuncia o fato de forma diferente, ou seja: a Samara narra o fato elaborando uma
história e a Bruna relata o fato como uma notícia. Assim, constroem o texto em gêneros de
escrita diferenciados.
Os dois textos demonstram a irrepetibilidade e singularidade da enunciação, uma vez
que cada uma delas criou referência diversa para abordar o mesmo fato, e ao escrever
produziram significados e sentidos próprios sobre o tema marcados por um tempo presente e
um espaço específico. Os textos dizem da relação única que cada uma delas teve com o fato
de a Prefeitura ter incendiado, pois Bruna enfatiza que tinha uma pessoa conhecida que
trabalhava nos bombeiros. Isso permitiu que ela trouxesse ao texto idéias determinadas pelas
suas relações pessoais no momento em que o fato ocorreu. Da mesma maneira, Samara obteve
informações sobre o fato por meio de uma pessoa que lhe “deu umas idéias” sobre o incêndio,
isso também singularizou sua produção.
Cabe a ressalva que a singularidade de cada texto não reside apenas no fato de as
duas alunas, coincidentemente, terem obtido informações de pessoas de suas relações, mas
está no sentido produzido por meio das relações infinitamente variáveis a cada sujeito no
momento em que se propõe escrever. Além disso, a irrepetibilidade do espaço-aqui e do
tempo-agora de cada ato enunciativo comprova o movimento incessante e provisório do
sentido, sempre elaborado na contingência de cada ato vivido e, aqui nesta pesquisa, no
cotidiano da sala a cada ato de escrever.
Como já dissemos, o ato enunciativo é sempre fugaz! Por isso, analisando o ato de
escrever enquanto um ato situado num entre-lugares contingente constatamos que são
inesgotáveis tais análises, justamente por serem sempre irrepetíveis e únicas. O que
conseguimos demarcar são índices da enunciação no enunciado, os quais comprovam a
singularidade de um sentido elaborado na contingência de um presente num contexto
específico.
177
Fábio (2ª Série)
Fábio tenta escrever a história ouvida...
178
7. A ESCRITA ENUNCIATIVA DE CRIANÇAS
EM PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
Quando chegamos nesta fase do estudo temos a certeza que muitas questões ficarão
sem encaminhamentos. No entanto, elas só surgiram porque respondemos outras que nos
instigaram na “aventura” desta pesquisa. Isso faz parte da produção do conhecimento, ou
melhor, as questões que ficam em aberto originarão futuros trabalhos, pois jamais diremos
tudo... sempre ficarão restos!
Propus-me a estudar a relação das crianças com a escrita no processo de
alfabetização, ancorada em experiências profissionais do ensino superior e escolar,
principalmente, naquelas vividas nos Anos Inicias da escola. A escrita e a cultura destacaram-
se em minhas reflexões, tornando-se, assim, tema de estudo.
Como o título deste capítulo sugere, a escrita das crianças é enunciativa no processo
de alfabetização. Esta afirmação vai de encontro ao questionamento de a escrita ir além de
uma técnica, visão defendida neste percurso de pesquisa. Este capítulo tem por propósito
responder aos diversos questionamentos que foram sendo elaborados durante o estudo, bem
como fazer considerações em torno do objetivo de construir uma interface teórica que sustente
uma concepção da escrita das crianças como um ato que se produz no entre-lugares do
enunciado e da enunciação. Em decorrência disso, que o ato de escrever está situado num
interstício entre a enunciação e o enunciado e, o ato de escrever ressignifica a cultura e a
produz, marcada pela singularidade daquele que escreve.
É importante dizer que este capítulo tem, em primeiro lugar, uma função analítica,
pois na medida em que respondermos às diversas dúvidas e reflexões elaboradas na trajetória
do estudo anunciaremos as construções teóricas elaboradas na interface construída para
abordar a escrita. O fazer da pesquisa se caracteriza por, muitas vezes, só conseguir responder
179
determinadas dúvidas no a posteriori. Em segundo lugar, ele apresentará, de forma concisa, as
constatações e as análises dos dados da pesquisa.
Em suma, este capítulo se constitui numa sinopse da tese. Aqui o leitor terá, de certa
forma, acesso à integralidade da pesquisa de maneira que compreenderá quais os propósitos
da investigação e a interface teórica elaborada. Ele se apresenta como uma espécie de síntese
constituída no tempo da enunciação. É porque fizemos o percurso anterior que podemos falar
dele aqui. Sua função na tese é a mesma que exerce o dêitico na linguagem cotidiana. Um
dêitico tem sentido quando referido ao momento em que fora proferido. Um “hoje” e um
“agora” delimitam um tempo que coincide com o tempo em que são falados. Fora dessa
relação, são apenas palavras em estado de dicionário. Assim é este capítulo, um dêitico cujo
sentido depende da referência à sua enunciação, ou seja, ao percurso teórico que o precede.
7.1 OLHAR A ESCRITA ENUNCIATIVA DE CRIANÇAS ESCOLARES EM SALA
DE AULA
Para construir uma interface teórica sobre a escrita de crianças escolares em sala de
aula elaboramos implicações de campos, diferentes daqueles normalmente investigados na
alfabetização. Convocamos duas bases teóricas para realizar tais construções, além da
pedagogia – campo de origem do tema e “pano de fundo” de todas as elaborações – a
Lingüística Enunciativa de Benveniste e a Sociologia da Cultura representada por Bhabha.
Neste sentido, partimos de uma visão de linguagem que considera a presença de subjetividade
no uso da língua e de uma base explicativa que coloca a cultura na esfera de produção. Em
outras palavras, implicamos uma concepção de linguagem e de cultura que embora
considerem a estrutura da língua e a tradição, supõem produção de significados e sentido por
cada um, num tempo presente, situado em determinado contexto, ou seja: em uma estrutura de
enunciação do eu, tu, aqui e agora. Cabe dizer, também, que a enunciação foi abordada sob
dois prismas: o primeiro enquanto ato a fim de aproximá-lo do ato de escrever; o segundo,
enquanto intersubjetividade, princípio do diálogo, o qual supõe a existência do outro, o que
possibilita uma analogia com a escrita das crianças em processo de alfabetização. Estas
concepções foram “pilares” fundamentais para a elaboração desta interface que justifica a
escrita como produtora de subjetividade e de cultura.
Aqui se quer sustentar que a escrita – sendo um dos sistemas simbólicos mais
180
importantes na inscrição do homem na cultura e a escola, como o lugar socialmente
referendado para tê-la como objeto de trabalho – precisa perseguir uma abordagem que inclua
a existência de um sujeito que produz no processo de aprender a escrever e a ler . Isto porque
ter o domínio da escrita supõe produção de conhecimento e de subjetividade num determinado
quadro cultural. De uma maneira geral, podemos dizer que, ainda, nos Anos Inicias, a escrita
tem assumido a cena principal em razão de ter o seu ensino como objetivo fundamental.
Constata-se, também, que prevalece na maioria das práticas de alfabetização, crença da escrita
reduzida a uma técnica a ser memorizada e repetida pelas crianças. Essa situação contribui
para um ensino de letras e não de signos lingüísticos contextualizados em uma rede de
significados e sentido, elaborada em um determinado ato enunciativo. Estas históricas práticas
alfabetizadoras contribuem para que os altos índices de repetência e evasão, neste nível de
ensino, ainda seja uma realidade. Além das experiências profissionais e pessoais, esta
realidade escolar nos instigou construir esta pesquisa.
Como é na escola que se dá a construção de vínculos sociais do sujeito que
ingressou no mundo da escrita, ela é definidora na história de escritor/escrevente de cada
criança, isto é, do tipo de relação que cada aluno estabelece com ela – seja uma relação de
fascínio ou de resistência. Isto vai interferir na história pessoal e escolar de cada um.
A escola nesta pesquisa foi compreendida como o “lugar enunciativo” da cultura e a
escrita pensada como um lugar de “negociação cultural” que se apresenta como um espaço de
heterogeneidade. Cada dúvida, reflexão, certeza e “erro” acerca do escrever – seja expressa na
modalidade escrita, seja na falada – se constituíram em indicadores de enunciação que
“dizem” de uma singularidade. Todas as cenas do ato de escrever em sala de aula de
alfabetização aqui analisadas, mostram que as questões que colocam a escrita como
centralidade trazem singularidade na relação com a língua em uso. È importante destacar que
somente foi possível perceber o irrepetível no texto escrito por meio destes indicadores de
enunciação, pois são eles que marcam a singularidade na escrita através dos mecanismos
utilizados pelas crianças na composição do texto. O irrepetível se refere justamente à marca
singular daquele que escreve. É sobre esses dados que trataremos a seguir.
Como dissemos, no construto teórico que propomos, um “dado” jamais será dado.
Ele vai sendo construído na aventura de cada pesquisa em que o aporte teórico nos faz olhá-lo
sob seu viés. É o que aprendemos a cada investigação de forma diversa, ou seja, a cada tema
estudado novas elaborações, reflexões e vários questionamentos nos levam a construir o
“dado” a ser analisado. Os dados apresentados no capítulo anterior são ilustrativos da escrita
181
como um entre-lugares entre a enunciação e o enunciado, já que não se trata de fazer uma
análise exaustiva, uma vez que em enunciação cada ato é irrepetível e único. Isso caracteriza a
infinidade de análises que poderiam ser construídas em uma única oficina, pois cada ato
enunciativo exigiria uma análise particular em função da singularidade de cada um, o que
tornaria redundante porque não se trata, neste aporte teórico, de discutir o conteúdo de cada
ato, mas o fato dele apresentar singularidade. Melhor dizendo, cada ato enunciativo ilustra
que a singularidade é constitutiva do ato de escrever. Por esta razão não importa a quantidade
de atos, mas sim explicitar os indicativos de enunciação.
Neste estudo, os índices de enunciação foram expressos por meio de alguns
mecanismos utilizados pelas crianças nas interações verbais e nos textos escritos. Para atender
esta particularidade do dado, fizemos recortes enunciativos, os quais registraram tais
mecanismos.
A presença de singularidade em cada ato enunciativo confirma a heterogeneidade de
um grupo, no caso aqui pesquisado, de uma sala de aula. Esta constatação impõe às
professoras-alfabetizadoras “enxergarem” que por trás de uma escrita – desde o início do
processo de alfabetização – há um sujeito que imagina sobre “como se escreve e como se lê” e
que se inscreve na escrita a partir desse imaginário. Este processo é sempre conflituoso!
É importante perceber que os textos analisados – na nossa definição os enunciados
quando referidos aos índices que elegemos para a análise – a enunciação – contradizem a
idéia de que os alunos passam, todos, pelas mesmas “fases” no processo de entendimento da
escrita. Cada sujeito apresenta singularidades de construção desse processo. O professor
atento a isso dará mais atenção ao processo da escrita do que propriamente ao produto.
Isso não significa, no entanto, que se possa estabelecer uma relação direta e
unilateral entre o enunciado e a enunciação. Na verdade, esses índices funcionam
diferentemente em cada situação e em relação a cada sujeito. Um “não sei como se escreve”
dito por uma criança no processo de produção da escrita tem sentido absolutamente diferente
se comparado ao mesmo dito por outra criança, em outra situação. A sinonímia é apenas
aparente.
Também não acreditamos que esses índices possam ser tomados como marcas de
uma espécie de “verdade” sobre o sujeito. Elas são sempre parciais e referentes a um dizer
que vai se fazendo no “fio do discurso”, para usar uma expressão de Authier-Revuz. A relação
enunciação/enunciado não é nem unilateral, nem unívoca. Em outras palavras, a produção do
sujeito acontece num interstício do qual o enunciado retém apenas indícios da enunciação.
182
O que nos cabe é ressaltar que a escrita precisa ser considerada como expressão de
singularidade que se evidencia a cada ato enunciativo. E este se constitui sempre num
processo que apresenta dúvidas, erros, acertos e reflexões acerca da escrita. É importante ter
claro que o sujeito só escreve neste movimento flutuante que busca incessantemente produzir
um sentido. Acreditamos que esta tese sinaliza de forma incisiva a esta visão de escrita.
Como já dito, este capítulo sobre a escrita enunciativa das crianças apresentou as
análises em dois níveis. Um nível mais geral mostrou que a escrita é este entre-lugares de
negociação cultural situada entre a enunciação; e o enunciado em um nível mais específico
explicitou que em cada ato de escrita da criança isso se marca diferentemente, ou seja, se
apresenta de forma singular imprimindo significados e sentido próprio
Pode-se afirmar que constatamos em todos os mecanismos utilizados pelas crianças
a presença do princípio da intersubjetividade na linguagem, como vimos. Por exemplo, no
item 6.1 em que o ato da escrita evoca outros atos e imagens sobre a escrita. Isto se confirma
em R1, quando aparece a visão de que ao escrever é necessário seguir uma determinada
espacialização na folha. Isso supõe, utilizando as palavras de Bhabha, uma negociação
cultural, isto é, a criança estabelece uma dialogicidade diante da página onde escreve
qualificando uma determinada imagem da escrita como correta. Já a atitude da aluna de pedir
a troca de folha, além de vir acompanhada de imagens e concepções sobre o que é escrever
“certo”, indica sua singularidade ao solicitar a troca da folha. Este processo não se dá de
forma tranqüila, pois o sujeito está produzindo em meio a muitas dúvidas e incertezas sobre o
que estará certo e/ou errado. Isso porque a escrita coloca o sujeito neste lugar de produção que
supõe tensão e dúvidas em relação ao que realmente o outro solicitou, no caso, a aluna quer
atender à solicitação da professora de forma correta.
Constatamos ainda no item 6.1 a singularidade de uma relação de resistência com o
domínio da língua escrita expressa em R2, pois o aluno Luiz parece não acreditar que tem
capacidade para pensar sobre o funcionamento da escrita, bem como não se autoriza escrever
histórias inventadas.
A partir dos dados do R2 não é forçoso acreditar que o aluno pode ter construído
esta relação com a escrita, em suas experiências escolares, uma vez que o recorte enunciativo
faz inferir alguns procedimentos da professora-alfabetizadora, quando o aluno Luiz, ao se
referir à criação de histórias inventadas, diz: Eu já fiz uma vez, eu tentei, prá mostrar prá
minha professora, mas ela, ela não, ela não mandou fazer mais, ah! Eu não consegui fazer!
Mesmo que nossa análise não tenha enfatizado o lugar da professora-alfabetizadora
183
no processo de construção da escrita das crianças, este dado possibilita inferir que a maneira
como a professora considerou a sua produção, o fez acreditar que não tinha conseguido. Além
disso, em seguida afirma que: Ah! eu tenho vergonha de errar as letras. Esta ratificação sobre
o erro indica um sentido de proibição do erro no processo de aprender a escrever. A partir
disso, pode-se deduzir que houve, na história escolar do Luiz, primazia de uma crença na
escrita como produto e de cultura como umcleo fixo a ser repassado aos alunos, que não
supõe a prática do erro.
Mas, para além desses aspectos, o que nossa análise deixa transparecer é que o
sujeito deixa rastros de sua relação com a escrita, tais rastros são aqui tomados como índices
de uma configuração específica, singular. É isso que nos possibilita afirmar que a escrita está
no entre-lugares da enunciação com o enunciado como um espaço móvel e próprio de cada
sujeito.
Também os exemplos R1 e R6 confirmam a escrita situada neste entre-lugares, neste
local intermediário de produção de cultura, uma vez que a cada ato de escrita as crianças
negociam concepções, imagens e buscam recursos compondo suas produções. Como
mencionamos, este processo de negociação não é sem conflito, pois as crianças, muitas vezes,
querem escrever e ler, mas nem sempre conseguem se expressar no enunciado. Exemplo deste
conflito foi também expresso pelo aluno Luiz, que em alguns momentos disse: Eu fico até
triste de não lembrar de tudo aquilo que leio; Não lembro como se escreve as coisas!
Estes dados explicitam que o sujeito da enunciação não é onipotente, pois algumas
experiências vividas, às vezes, impedem a elaboração no enunciado. Não se trata de dizer que
apenas aqueles alunos que ainda não sabem escrever e ler vivenciam o conflito. Esta luta
constante diante das dúvidas e reflexões acontece a todos aqueles que escrevem, ou seja, há
uma cisão entre sujeito da enunciação/sujeito do enunciado.
Os dados constataram que este interstício entre enunciação e enunciado como lugar
de produção é não-coincidente. Neste entre-lugares da escrita, entendido aqui como um
interstício onde se situa o trabalho fronteiriço da cultura – no Terceiro Espaço da enunciação
– é onde há marcas de singularidade que se explicitam nas desigualdades e descontinuidades
de ritmos, de dúvidas, de reflexões em torno da escrita diante do ato de escrever.
Cabe ressaltar, ainda, que é na ambivalência do ato de interpretação, onde o Eu
pronominal e o sentido do enunciado não são literalmente nem um (enunciação) nem o outro
(enunciado), que há a cisão enunciativa do sujeito. Isso gera conflitos àquele que escreve, uma
vez que, mesmo tendo por objetivo escrever e ler corretamente, realiza tal propósito sempre
184
com insegurança porque não tem certeza de ter conseguido reter, nas palavras, o sentido a que
se propôs formular, uma vez que a contingência de cada ato enunciativo gera instabilidade.
Esta cisão do sujeito da enunciação e do enunciado é que destrói a lógica da
sincronicidade e da evolução que tradicionalmente legitimam o sujeito do conhecimento
cultural. Neste sentido, destrói a idéia de unicidade, causalidade, progressão e evolução de
idéias-no-tempo. Ao invés desta perspectiva de cultura, acredita-se juntamente com Bhabha,
naquela de ela ser elaborada a cada ato enunciativo, em circunstâncias sempre irrepetíveis e
únicas. De outra forma, a produção da cultura acontece na elaboração, sempre conflituosa, de
significados e sentido por cada um, a cada ato enunciativo.
Os dados mostraram que neste processo conflituoso da produção escrita as crianças
fazem permanentemente relação com a oralidade, o que possibilita perceber as semelhanças e
diferenças entre as duas modalidades da língua.
Conforme apresentamos no item 6.2, constatamos nos dados a importância da
oralidade para a aprendizagem da escrita, em várias atitudes das crianças:
a) Todas as crianças apresentaram subvocalização no ato de escrever;
b) todas as crianças apresentaram uma oralidade espontânea clara, mas poucas se
propuseram a narrar ou relatar as histórias lidas ou ouvidas. Apenas duas (Adriele e Bruno)
daquelas que já dominavam o sistema alfabético, se propuseram a contar as histórias
trabalhadas nas oficinas;
c) nenhuma criança inventou histórias; e
d) apenas as crianças com maior domínio da escrita se propunham a ler em voz alta
os seus textos e ou textos dos livros.
Queremos ressaltar que esta atitude de não se autorizar a contar, relatar e/ou
descrever uma história lida ou ouvida, revela que embora tenham o conhecimento do
funcionamento do sistema alfabético não apresentam um nível de leitura que os encoraja
distanciar-se do livro e ou lembrar-se da história para narrá-la. Pode-se inferir ainda que eles
não tinham autonomia, naquele momento, para realizar tal tarefa. Isto nos indica também que
a escrita ainda não se constituiu em mais uma forma de expressar os seus significados e
sentido; e, embora apresentem uma oralidade espontânea clara não se “arriscam” e/ou não
conseguem oralizar as atividades escolares com tranqüilidade. É possível pensar que, de uma
maneira geral, expressam a tradição da cultura escolar, qual seja, nas tarefas escolares é a
185
escrita que “vale”. Na escola é o lugar da escrita!
No meu ponto de vista, isto demonstra a importância da oralidade no domínio da
linguagem escrita, uma vez que terá uma boa expressão escrita aquele que consegue oralizar o
que aprendeu. No entanto, mesmo não sendo objetivo deste estudo, constatou-se durante as
oficinas que há indícios da existência de uma primazia da escrita em detrimento da oralidade
dos conhecimentos trabalhados na escola. De uma outra maneira, pode-se inferir por meio
destes recortes enunciativos, que ainda há um predomínio de práticas alfabetizadoras que
primam por atividades exclusivamente escritas, o que gera resistência, em boa parcela das
crianças, em oralizar aquilo que elaboram em sala de aula, dificultando o desenvolvimento da
expressão oral dos conhecimentos aprendidos na escola, bem como o aprimoramento da
escrita .
Realizar um trabalho pedagógico que articule a oralidade no ensino da escrita se
torna imprescindível quando se concebe a escrita, como um conhecimento que produz cultura
e subjetividade num tempo presente e num contexto específico. Em outras palavras, um
conhecimento elaborado por cada criança que participa da heterogeneidade de um grupo –
série – e, de uma escola situada em uma comunidade determinada; esta também constituída
pela heterogeneidade dos sonhos e das crenças de cada familiar.
Cabe destacar, novamente, que o ato de escrita supõe a vivência de inúmeros
conflitos, já que os enunciados se apresentarão sempre com lacunas, as quais o escrevente vai
a todo instante buscar encobri-las com retificações a respeito do sentido pretendido naquele
ato enunciativo. A professora-alfabetizadora precisa se atentar que é neste processo
heterogêneo que há produção do sujeito, ou seja, que o processo da produção escrita é mais
importante do que o seu resultado, porque é a relação que cada criança estabelece com ela que
vai dizer da sua compreensão sobre a escrita e de sua singularidade.
Esta visão da escrita coloca a heterogeneidade como constituinte de um grupo e
confronta-se diametralmente com aquelas idéias que defendem turma padrão e tempo
determinado para aprendizagem da linguagem escrita. Com isto não estamos indicando a
abolição de objetivos e propostas para as séries escolares, mas colocamos em suspenso a
determinação prévia de um tempo para a aprendizagem da escrita a todos os alunos, uma vez
que estamos convencidos que a produção escrita acontece num processo conflituoso e
efêmero onde o sentido é gerado a cada ato enunciativo.
Utilizando as palavras de Flores (2007) para explicar melhor: “A atividade
lingüística se apresenta para o sujeito, do ponto de vista do sentido, como uma constante
186
tentativa de direcionar o sentido. Para usar uma metáfora, a enunciação é uma espécie de
“funil” por onde o sujeito faz passar a língua na tentativa de assegurar um sentido (...)” (p. 08)
Seguindo esta linha de pensamento, as crianças ao escreverem e fazerem atividades de
retextualização do texto estarão sempre buscando preencher o sentido pretendido, naquele
momento efêmero que faz o sentido sempre “escapar”.
No item 6.3, em que o ato da escrita supõe a utilização de outros recursos ilustra,
também, uma visão estética da escrita, ou seja, todas as crianças buscam outros sistemas de
signos para acompanhar a escrita, como nos dados do R6 – onde os textos apresentam-se com
recursos variados. Esta atitude confirma que, ao escrever, cada aluno dialoga com a visão que
tem sobre o que seja um texto de boa aparência ratificando a intersubjetividade no uso da
língua.
Como foi dito, a escrita, na interface teórica aqui elaborada, acontece num local
intervalar que flutua e se movimenta permanentemente na produção de significações e sentido
num tempo do presente – no agora – num lugar específico – no aqui e numa relação
intersubjetiva – eu – tu. Foi esta estrutura de enunciação que orientou nossas análises.
Nesta perspectiva de escrita, escrever é escrever-se. Por isso, a relação com a escrita
no processo de alfabetização assume uma dimensão diferenciada nos primeiros anos
escolares, já que a relação que cada criança estabelece com ela é singular. Constatou-se,
especialmente nos dados do item 6.4, que o ato de escrita está na dependência da construção
de sistemas de referências pessoais. Como vimos no R7 as duas alunas escreveram textos
sobre um incêndio que houve na prefeitura da cidade, mas cada uma delas referenciou a
situação em suas próprias vivências, o que conferiu singularidade a cada produção. Isso
demonstra que a escrita não é um código que se reduz à técnica, mas um sistema simbólico
que implica o sujeito que escreve, ou seja, a escrita sempre diz daquele que escreve porque
explicita significados e sentidos únicos e irrepetíveis. Assim, defendemos neste trabalho que a
história de escrevente/escritor de cada criança, vivenciada na família e na escola, interfere
diretamente na constituição da subjetividade de cada um ao estabelecer relações de resistência
e/ou de fascínio com a escrita.
Os dados da pesquisa constataram que toda a relação com a escrita oscila entre o
enunciado, aquilo que efetivamente aparece no papel, o dito; e o dizer, a enunciação, aquilo
que ela representa desse ato (FLORES, 2007). Nesta direção, há sempre uma não-
coincidência entre o enunciado e a enunciação que é constitutiva do ato de escrever. Por isso a
crença de que a escrita se situa neste entre-lugares entre a enunciação e o enunciado.
187
No entanto, podemos inferir a partir de alguns dados expressos pelas crianças que na
maioria das práticas alfabetizadoras que vivenciaram até o momento houve poucas atividades
educativas que colocam a produção escrita como um momento de expressar seus
pensamentos, misturados de emoção e de imaginação, como fazem os escritores em suas
histórias. O que apareceu, na maioria de suas falas e atitudes, foi, de uma maneira geral, o
predomínio de atividades de cópia, o que pode ser a razão da resistência que apresentaram em
realizar as atividades propostas nas oficinas, qual seja, tarefas que exigiam a exposição do que
pensavam e imaginavam. Como vimos nos dados do R2, R4 e R5, os alunos deixam claro que
a escrita e a leitura não são algo que lhes dá prazer, ao contrário, lhes causa medo e
constrangimento de errar. Pode-se dizer que a possibilidade de cometer erros em sala de aula
os amedronta.
Estas constatações reforçam que:
a) A idéia ainda predominante de escrita na alfabetização é de ela ser algo da
exterioridade do sujeito;
b) a memorização das formas (símbolos = letras) produz este leitor e escritor “preso”
a um modelo a seguir, ou seja, um sujeito que, na maioria das vezes, não tem autonomia
intelectual para acreditar em suas idéias e imaginação;
c) a aprendizagem da escrita não permite experimentação, como faz toda criança ao
aprender a falar; e
d) o conflito não aparece como inerente ao processo de aprender, mas como
dificuldade pessoal do aluno em aprender a escrever e a ler.
Muitos desses dados analisados fizeram rememorar minhas experiências nos
primeiros anos da escola. Como se discorreu no primeiro capítulo, elas também me instigaram
a realizar este estudo sobre a escrita. E, depois desta trajetória investigativa, ficou ainda mais
presente a sua importância, pois algumas crianças expuseram nas oficinas as angústias que
também foram vividas por mim na relação com a escrita, principalmente as que demonstraram
fascínio e, ao mesmo tempo, resistência, como aquelas exemplificadas nas palavras do Luiz.
Embora eu tenha compreendido o funcionamento do sistema alfabético no final do
primeiro ano escolar, eu percebia que não sabia escrever e ler, justamente porque nas poucas
vezes que tinha de produzir, não conseguia, pois ficava presa a algumas estruturas de frases
que conhecia da cartilha. Frases pobres lingüisticamente, como por exemplo: “O gato é
188
bonito; A árvore é grande; O dia está lindo, etc.” Isso me impossibilitava imaginar histórias
com fatos e situações originais. Quando tinha de ler, decodificava, mas não sabia o que lia
naquele tempo.
Acredito que estas dificuldades impossibilitaram muitas aprendizagens porque só
consegui me colocar num lugar de produção diante da escrita depois de muitos anos, já na
universidade. Lembro do desespero diante da página em branco! Minha memória traz de
forma límpida um trabalho que precisava fazer para uma disciplina da faculdade, o qual exigia
a produção de um texto sobre a leitura que realizáramos na matéria. Eu tinha um sentimento
de fascínio e, ao mesmo tempo, de resistência pela escrita, ou melhor, desejava construir
aquele texto. Enfrentei muitas dificuldades! Busquei ajuda e consegui superar muitos limites.
Mesmo assim, ainda hoje a escrita me causa estes sentimentos. Percebo que ao escrever sinto
prazer e medo que se misturam na mesma intensidade. Na verdade, nem sempre consigo dar
lugar a minha imaginação. Isso dificulta deslanchar o texto, porque fico presa à forma das
frases e às idéias que busco nos autores.
Acredito que estas experiências vivenciadas por mim poderiam ter sido diferentes se
a proposta pedagógica dos anos iniciais tivesse sido pensada a partir de uma concepção que
toma escrita como lugar de produção de significados e sentido, uma vez que nesta direção
toda criança tem espaço para imaginar ao escrever porque vai escrever signos lingüísticos
contextualizados culturalmente, isto é, situados na comunidade da qual faz parte.
A construção desta tese é mais uma tentativa de consolidar uma outra visão de
escrita ao processo de alfabetização de crianças. Neste sentido, conceber a escrita como
produção supõe acreditar na idéia de que ao escrever cada escrevente está num lugar de pleno
conflito e dúvidas, uma vez que, a cada ato enunciativo, estará “filtrando” um sentido que
pretende ao texto. No entanto, este é sempre fugaz por se tratar de enunciação sempre vivida
em circunstâncias efêmeras, próprias do tempo. O que marca o presente é o momento do ato
e, em seguida, já se refere a um passado. Esta compreensão é fundamental para
redirecionarmos a visão de escrita que ainda prevalece na cultura escolar.
Como esta tese constatou-se que a relação com a escrita é sempre singular e isso
vale a qualquer escritor. Assim, se pensarmos, ainda no campo da alfabetização, que cada
profissional que trabalha com a escrita também é escrevente, o que implica uma singularidade
na relação com ela, abrimos outro foco de investigação. Este poderá se constituir em novos
trabalhos de pesquisa.
189
CONCLUSÃO
Elaborar estas implicações teóricas entre a Pedagogia, a Lingüística Enunciativa de
Benveniste e a Sociologia da Cultura de Bhabha foi uma trajetória que me custou muita
persistência e superação – isso porque eram teóricos desconhecidos por mim, o que me exigiu
muita dedicação e estudo.
Queria desde o início do Curso de Pós-Graduação estudar a escrita. De qual escrita
eu queria tratar? Sabe-se que há hoje um campo de pesquisa que tem a escrita como objeto,
apresentando uma multiplicidade de enfoques a ela dado, como vimos no primeiro capítulo
deste trabalho. Delimitar o tema e escolher a abordagem sempre é a tarefa mais exigente que
se impõe a todo pesquisador. Comigo não foi diferente!
Sempre assumi que queria pesquisar a escrita numa perspectiva de produção de
subjetividade e de cultura, mas não sabia muito bem situar qual escrita queria tratar. O contato
com a teoria intervalar de Bhabha foi definidor no que se referia à perspectiva de cultura
trabalhada pelo autor, pois ele respondia às minhas inquietações sobre a possibilidade de cada
sujeito produzir cultura mesmo sendo inscrito, ao nascer, em uma determinada comunidade,
ou seja, encontrei respaldo teórico para a crença sobre a possibilidade de cada sujeito elaborar
significados e sentido próprios. Isso me deu caminhos para prosseguir na construção da
trajetória teórica desta tese.
Ao ler Bhabha me deparei com a Lingüística Enunciativa, buscada pelo autor, para
explicar a produção da cultura. Cabe dizer que já desconfiava que esta teoria enunciativa
pudesse subsidiar a defesa de uma visão de escrita numa linha de pensamento que defende a
existência de um sujeito no uso da língua. Precisava de uma teoria da linguagem que supunha
um sujeito, especialmente a existência de um sujeito singular no uso da língua, em sua
modalidade escrita.
190
Até chegar ao encontro da Sociologia da Cultura e da Lingüística Enunciativa foi
uma trajetória ora nebulosa, ora clara e, porque não dizer, como em todo percurso de
delimitação de um objeto de pesquisa, angustiante. Acreditei que poderia implicar Bhabha e
Benveniste porque, como mencionei, constatei que Bhabha já havia recorrido a ele para tratar
da enunciação da diferença cultural. E depois, ao estudá-lo, encontrei respostas às questões
importantes sobre a presença da subjetividade no uso da língua, fundamental para desenvolver
a pesquisa pretendida.
Assim, a implicação dos dois autores permitiu construir uma visão de cultura e uso
da língua, neste caso, na linguagem escrita – que supõe a produção do sujeito num presente e
num espaço específico, ou seja, em uma estrutura de enunciação do – eu- tu – aqui- agora
proposta e defendida por Benveniste. Esta estrutura pressupõe a reversibilidade da categoria
de pessoa – eu-tu – e a contingência do ato enunciativo – aqui-agora. Esta maneira de abordar
a enunciação possibilitou pensar na implicação entre o conceito de entre-lugares de Bhabha,
como local de produção da cultura, e o princípio da intersubjetividade na linguagem; em
decorrência disso, elaborei a idéia da singularidade ser constitutiva do ato de escrever. Estas
categorias teóricas orientaram a construção da metodologia da análise, isto é, possibilitaram
enxergar os indicadores da enunciação em sala de aula nas interações verbais e na escrita das
crianças, bem como constatar quais os mecanismos utilizados por elas na construção do texto
escrito.
Foi a partir desta visão que selecionamos os dados das oficinas. E, diante desses
dados analisados, é possível que o leitor questione o porquê das nove oficinas realizadas
construímos um quadro analítico que apresentou um número inferior do que elas poderiam
subsidiar. Sobre isso, é pertinente dizer que esta forma de abordar os dados se deve à escolha
do aporte teórico enunciativo, o qual trabalha com a contingência do presente, ou seja, o dado
pode ser tomado a cada enunciação do sujeito. Por esta razão, foi necessário eleger alguns
atos enunciativos, considerados mais expressivos à temática do estudo. Esta é uma forma
diferente de tratar dado.
Quando, por exemplo, utilizamos a entrevista como recurso de busca do dado,
trabalhamos geralmente com o seu conteúdo na íntegra; mas aqui o que nos interessava das
oficinas não era o conteúdo das enunciações, e sim assinalar a presença de singularidade na
contingência do ato de escrever e isso não implicava quantificar enunciações, mas analisar os
atos enunciativos que se relacionavam à escrita e ao ato de escrever.
Na coleta de dados o diário de campo, a observação participante e a fotografia foram
191
recursos importantes. Os dois primeiros nos subsidiaram no registro de depoimentos
significativos, tanto em sala de aula como fora dela, os quais indicaram o caminho para
selecionar as cenas das filmagens – pois posteriormente foram descritos os diálogos e
definidos como vídeos para aqueles recortes enunciativos que trazem imagens. O segundo,
teve uma função ilustrativa do ato de escrever, ou seja, a fotografia serviu também para
registrar os atos de escrita nas oficinas. Sabe-se que o ato de fotografar já supõe análise,
porque se registra os momentos que o sujeito que fotografa considera substancial para o seu
objetivo. Neste sentido, ela é uma ilustração analítica da temática que versa a tese e fez parte
da composição do relatório deste trabalho.
Acredito que, mesmo não tendo sido possível trazer todos os dados no relatório, os
recortes enunciativos apresentados expressaram e confirmaram que há singularidade na
relação com a escrita no processo de alfabetização, uma vez que a imagem e os diálogos sobre
a escrita ratificaram que cada sujeito estabelece uma relação única com ela, e esta interfere
diretamente na história de escritor/escrevente durante toda a sua vida. E, por esta razão, é
preciso observar e intervir na relação que cada aluno estabelece com a escrita durante o
processo de aprender a escrever e ler.
Depois desta trajetória, considerei que a construção teórica elaborada foi pertinente
na medida em que consegui responder questões importantes a respeito da escrita na
alfabetização, principalmente, por ter conseguido implicar dois campos teóricos que me
permitiram enxergar a aprendizagem da escrita com um espaço de constituição do singular e
de produção de cultura. Esta interface teórica pode subsidiar os estudos da escrita em outros
níveis de ensino.
Creio que o ato de escrever em qualquer circunstância se situa neste entre-lugares,
instável, fugaz e irrepetível, uma vez que exige de cada escritor a elaboração, sempre singular,
de significados e sentido. O processo da escrita é sempre conflituoso, pelo fato de o autor não
conseguir expressar integralmente no enunciado aquilo que pretende na enunciação.
Assim, esta interface pode subsidiar outras análises, como por exemplo, a da escrita
das professoras-alfabetizadoras, com o propósito de conhecer a relação que elas estabelecem
com o ato de escrever e suas implicações no ato de alfabetizar. Isso pode se constituir numa
alternativa de formação continuada e como forma de intervenção na proposta pedagógica da
sala de aula. Além deste tipo de estudo, a elaboração teórica aqui empreendida dá subsídios
para qualquer trabalho que queira situar a escrita numa linha de produção de significados e
sentido. Ela pode ajudar a escola, em especial, na desconstrução das propostas
192
alfabetizadoras, no sentido de instigar o debate a respeito do lugar que o sujeito ocupa na cena
da alfabetização dos Anos Iniciais.
Confio que estas reflexões podem contribuir na melhoria da qualidade do ensino
porque enfatizam a produção do conhecimento pelas professoras-alfabetizadoras e por todas
as crianças. Ela ressalta a necessidade das profissionais observarem que a relação com a
escrita pressupõe, além da compreensão do funcionamento do sistema alfabético, a construção
de conhecimentos vinculados aos conteúdos propostos pelos signos lingüísticos
(temas/palavras), bem como constitui a subjetividade daquele que escreve.
Além disso, a contribuição desta tese ao campo da lingüística reside especialmente
no fato de expor as categorias lingüísticas enunciativas ao campo da alfabetização,
especificamente, à relação de cada criança com a escrita. Acredito que a análise construída
aqui talvez se constitua na originalidade deste trabalho, para qual foi solicitada a Enunciação
de Benveniste e a Sociologia da Cultura de Bhabha. Sabemos que inúmeros são os trabalhos
que recorrem à lingüística aplicada para ancorar trabalhos do campo da alfabetização.
Estudam-se aspectos relativos à aquisição da linguagem, à aquisição da escrita, da produção
do texto etc. Há, ainda, aqueles que abordam a alfabetização a partir de uma implicação entre
a lingüística e psicanálise, colocando também, a exemplo do que fizemos, o sujeito no centro
da discussão.
No entanto, na interface por mim proposta, o enfoque dado à presença da
singularidade na relação com a escrita é de outra natureza. De um lado, ele não se fecha a
outros campos do conhecimento, na medida em que supõe que a relação enunciativa é sempre
intervalar. Assim sendo, há sempre um terceiro elemento que constitui a relação.
Evidentemente, a análise alcançada está na dependência desse terceiro. Analisa-se
diferentemente a relação enunciado/enunciação no processo de constituição da escrita das
crianças se, para isso, se convocar uma teoria psicanalítica ou uma teoria marxista, por
exemplo.
De outro lado, a construção teórica aqui proposta revestiu-se de uma generalidade
que é própria do tipo de implicação construída. Em outras palavras: consideramos que há
índices específicos que permitem visualizar a relação do sujeito com/na sua escrita. Tais
índices podem ser explicados por referência a diferentes quadros teóricos, o quadro aqui
escolhido foi o da sociologia da cultura de Homi Bhabha. Assim, a análise dos indicadores da
enunciação – do dizer dos alunos que toma por referência o ato de escrever – sintetiza, na
proposta que fizemos, a implicação teórica segundo a qual a escrita é um entre-lugares entre
193
a enunciação e o enunciado. Dessa forma, as afirmações/reflexões espontâneas sobre o
processo da escrita, as dificuldades apontadas pelos alunos, as narrativas de cada um; as
respostas dadas às solicitações de colegas e/ou professor, entre outros índices, revelam a
relação, nem sempre pacífica, da enunciação com o enunciado .
Foi isso que me permitiu considerar que o sujeito ao enunciar, e por esse ato, coloca
em cena outro ato, que integra uma memória cultural da qual só se tem conhecimento na
contingência do ato de enunciação. Esse ato é complexo porque o sujeito que se configura no
enunciado não é um fiel espelho do sujeito da enunciação. Entender esta relação exige o
reconhecimento de uma posicionalidade cultural, da referência ao tempo presente e a um
espaço específico.
Enfim, a elaboração desta pesquisa não teve a pretensão de ampliar as bases teóricas
explicativas, mas apenas implicar dois campos diversos, por mim até então desconhecidos.
Neste processo, buscamos ancorar as análises dos dados construídos em concepções
importantes sobre linguagem e cultura, os quais permitiram situar o ato de escrever num lugar
de produção de subjetividades e cultura. Foi isto que possibilitou uma abordagem própria à
escrita tomada na singularidade de cada um.
194
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201
A N E X O S
202
ANEXO 1 –
QUESTIONÁRIO DE LEVANTAMENTO DE DADOS SOBRE A
ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO FUNDAMENTAL Prof. JOÃO DE OLIVEIRA
MARTINS – 28/04/3006
Responsável: Profª Msc. Silvana Maria Bellé Zasso
I- Endereço:
Rua: Bairro: Data:
Data da Criação da Escola:
II- Infra-estrutura
2.1 Nº. de salas de aula ( )
2.2 Tipo de espaço para recreação e atividades esportiva
____________________________________________________________________
2.3 Tipo da construção do prédio
_____________________________________________________________________
2.4 Considerando a infra-estrutura atual da instituição, o que poderia melhorar?
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
III- Organização Curricular
3.1 Identifique o tipo de organização curricular adotado pela escola nos Anos Inicias do
Ensino Fundamental
( ) Séries
( ) Ciclos
Como estão organizados____________________________________________________
( ) Outras. Especifique_____________________________________________________
203
IV- Recursos Humanos
4.1 Nº de Professores-
4.2 Formação dos Professores – Colocar nº de professores e nível de formação
( ) Curso Magistério ou Normal Nível Médio ( ) Ensino Fundamental Completo
( ) Curso superior na área em que atua ( ) Ensino Fundamental Incompleto
( ) Curso superior ( ) Ensino Médio Completo
( ) Médio Incompleto
4.3 Nº de Alfabetizadoras que atuam na 1ª Série do Ensino Fundamental ( )
4.4 Formação destas alfabetizadoras ( ) Curso Superior – Pedagogia
( ) Curso Superior – Licenciaturas
( ) Curso Superior – Outros
( ) Ensino Fundamental Completo
( ) Ensino Fundamental Incompleto
( ) Ensino Médio Completo
( ) Médio Incompleto
( ) Magistério ou Normal Médio
4.5 Equipe Diretiva
( ) Diretora
( ) Vice- Diretora
( ) Coordenadora Pedagógica para os Anos Inicias do Ensino Fundamental
( ) Supervisão Escolar
( ) Orientação Educacional
4.6- Funcionários
( ) Secretária
( ) Merendeira
( ) Serviços Gerais de Limpeza
( ) Serviço de Vigilância
V- Alunos da Escola
5.1 Nº de Alunos ( )
204
5.2 Quais os bairros que a escola atende?
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
5.3 Qual a ocupação ou trabalho das famílias?
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
VI- Infra-estrutura do Bairro onde a escola está situada
( ) Posto de Saúde
( ) Igrejas
( ) Sindicatos
( ) Associação de Bairro
( ) Outros. Especificar_____________________________________________________
6.1 Tipos de estabelecimentos comerciais
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
6.2 Tipos de moradia
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
6.3 Situação do Saneamento Básico dos bairros que a escola atende
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
VII- Projetos Desenvolvidos Atualmente na Escola – Identificação, Coordenação,
Instituição(s) responsável(s) e vigência,
7.1 Projetos de Extensão:
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
205
7.2 Projetos de Pesquisa
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
VIII- Projetos Sociais
8.1 Identifique os Programas Sociais do Governos Federal e o nº de famílias vinculadas
à escola que participam?
Nº de famílias ( ) Programa_______________________________________________
Nº de famílias ( ) Programa_______________________________________________
Nº de famílias ( ) Programa_______________________________________________
Nº de famílias ( ) Programa_______________________________________________
Nº de famílias ( ) Programa_______________________________________________
206
ANEXO 2 – AUTORIZAÇÃO DA ESCOLA
AUTORIZAÇÃO
Prezada Diretora
A pesquisa intitulada O Entre-lugares da Escrita das Crianças: entre o enunciado e
a enunciação – atende a uma das exigências do Curso de Pós-Graduação – Nível de
Doutoramento do Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGEDU da UFRGS
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Como é de seu conhecimento, estamos
realizando a coleta de dados na Escola Municipal de Ensino Fundamental Prof. João de
Oliveira Martins, instituição onde atualmente ocupas a função de gestora.
Conforme autorização dos pais poderei utilizar as imagens e fotografias das crianças
no trabalho. Neste momento, solicito autorização para identificar a escola na pesquisa que
vem sendo construída, bem como para utilizar as suas imagens e fotografias feitas no período
da coleta de dados para os fins desta tese e em cursos de formação de professores.
Rio Grande, 19 de Maio de 2006.
________________________________
Profª. Msc. Silvana Maria Bellé Zasso
Pesquisadora – FURG/UFRGS
Autorização:
__________________________
Profª. Jania Maria Prado da Hora
Diretora da Escola
207
ANEXO 3 – Autorização dos Pais
ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO FUNDAMENTAL
PROF. JOÃO DE OLIVEIRA MARTINS
AUTORIZAÇÃO
Srs. Pais
Solicitamos autorização para que o aluno ___________________________ participe
de uma atividade a ser realizada na escola depois do horário da aula, todas às sextas-feiras a
partir do mês de abril até as férias de julho deste ano. Esta atividade será filmada e
fotografada para fins de pesquisa. Neste sentido, pedimos também autorização para que as
imagens e as fotografias possam ser utilizadas para a finalização de curso de pós-graduação e
em cursos de formação de professores .
________________________________
Assinatura dos Pais ou Responsáveis
Rio Grande, 12 de Maio de 2006.
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