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Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-graduação em Psicologia Social - Nível Doutorado
A MILITÂNCIA EM MOVIMENTO: AMIZADE E MAQUINAÇÃO DE
MODOS DE EXISTÊNCIA NO MST
Jáder Ferreira Leite
Doutorando
Dra. Magda Dimenstein
Orientadora
Natal/RN, outubro de 2008
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Jáder Ferreira Leite
A MILITÂNCIA EM MOVIMENTO: AMIZADE E MAQUINAÇÃO DE
MODOS DE EXISTÊNCIA NO MST
Natal/RN, outubro de 2008
2
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social Nível Doutorado
- da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
sob a orientação da professora Dra. Magda
Dimenstein, como requisito parcial para obtenção
do título de Doutor em Psicologia Social.
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-graduação em Psicologia Social - Nível Doutorado
FICHA DE AVALIAÇÃO
A tese "A militância em movimento: amizade e maquinação de modos de
existência no MST", elaborada por Jáder Ferreira Leite, foi considerada aprovada
por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, nível doutorado, como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor em Psicologia Social.
Natal, RN, ___ de ____________ de 200____
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Dr. Genaro IenoUniversidade Federal da Paraíba
__________________________________________________
Dr. Antonio Wladimir Félix da Silva – Universidade Cooperativa Banco do Brasil
__________________________________________________
Dra. Clarisse Carneiro – Universidade Potiguar
___________________________________________________
Dra. Rosângela Francischini - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
___________________________________________________
Dra. Magda Dimenstein – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(Orientadora)
3
Todo mundo, sob um ou outro aspecto, está tomado por um devir
minoritário que o arrastaria por caminhos desconhecidos caso
consentisse em segui-lo. Quando uma minoria cria para si
modelos, é porque quer tornar-se majoritária, e sem dúvida isso é
inevitável para sua sobrevivência ou salvação (por exemplo, ter
um Estado, ser reconhecido, impor seus direitos). Mas sua
potência provém do que ele souber criar, e que passará mais ou
menos para o modelo, sem dele depender
Gilles Deleuze (2000)
4
DEDICATÓRIA
Aos militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, em
especial aos antigos alunos do curso de Pedagogia da Terra (UFRN), hoje pedagogos e
profissionais em seus assentamentos e áreas de atuação. A paixão de aprender e o
modo entusiasmado que imprimem à luta do MST me contagiam e me dão fôlego para
crer em novas liberdades.
A Erivan Hilário, militante, educador, amigo e protagonista do acontecimento-
MST. Por viver dentro, fora, entre e nas margens do movimento, está sempre à espreita
para não se deixar perder a ternura.
5
AGRADECIMENTOS
À professora e orientadora deste trabalho, Dra. Magda Dimenstein, pois sem a
sua parceria, a viagem pelo mundo dos saberes e dos sabores que, desde 2001 (ano em
que a conheci) permeiam minha formação, seria tarefa insípida. Sua vida intensa e
comprometida com uma existência libertária tem sido tempero forte!
Ao professor Genaro Ieno, pela disponibilidade de participar da leitura e
avaliação deste trabalho, mas não por isso. Mais ainda por ter sido, na minha
formação profissional, uma importante referência de entusiasmo, sensibilidade e
dedicação com os trabalhadores rurais por meio de uma Psicologia que rompe com uma
histórica e hegemônica escolha pelas classes urbanas abastadas. Sua vida me
possibilitou ver que o mundo abriga bem mais que isso.
À professora Rosângela Francischini, por aceitar o convite de participação na
avaliação da tese e pela maneira doce e amiga com que me acolheu quando cheguei a
Natal e que, a partir de então, seguimos compartilhando músicas, poemas, livros,
histórias...
A professora Clarisse Carneiro, companheira de trabalho em uma das
universidades que leciono, por sua presença meiga e seu modo dedicado e apaixonado
de trabalhar coletivamente.
Ao educador, pai-avô, amigo, poeta, psicopedagogo Wladimir Félix, pelas
discussões em torno dessa tese desde a sua gestação, pelas sugestões de leitura, pelo
modo contagiante com que me incentiva a alma. E por muito mais!
Aos meus colegas e amigos da base de pesquisa Mariana, Danilo, Fred, Kaline,
Rafael. Especialmente a Alex, Karenina e João Paulo, pelas discussões calorosas, pela
escuta deste trabalho desde a sua versão de projeto e pela amizade que entre nós
encontrou uma das suas formas potentes de expressão e de invenção, muito obrigado!
6
Ao Programa de Doutorado em Psicologia Social da UFRN, pelo auxílio para
que pudesse realizar esta pesquisa, especialmente em divulgá-la em congressos
científicos.
Aos colegas de trabalho da Universidade Potiguar. Especialmente Roberta
Barzaghi e Cândida Dantas, por terem se tornado incentivadoras da minha formação e
por não medir esforços para que eu pudesse concluir a contento este trabalho.
Aos colegas de trabalho da Faculdade Câmara Cascudo, em especial Diva Sueli
e Isabella Mendonça. Por sempre me fazerem ‘lembrar’, depois do almoço e do
cafezinho, que havia uma tese para ser produzida (Risos!). Muito obrigado pelo cuidado
e afeto!
Aos meus alunos e alunas de ambas as instituições que leciono por me
permitirem, em alguns momentos, tratar e discutir alguns temas da tese em sala de aula.
Principalmente a Magda Lavínia e Francisca Lucinara por terem aceitado, sob minha
orientação, a sugestão de discutir o tema da Amizade em seus trabalhos de conclusão de
curso
1
.
À Secretaria Municipal de Saúde de Natal-RN, por ter me concedido
afastamento temporário de atividades na instituição para que eu pudesse me dedicar ao
doutorado. Tal apoio foi fundamental para o desenvolvimento deste trabalho. Agradeço,
destacadamente, aos colegas de trabalho da Unidade de Saúde da Família da África por
terem sido, desde o início, compreensíveis e incentivadores.
À minha família: meu pai Antonio Senhor, minha mãe Maria Luiza (memória),
minhas irmãs Raquel e Fátima, meus irmãos Moacir e Idelano e meus sobrinhos Maria
Luiza (Malu) e Richard. A presença deles em minha vida permitiu escrever essa tese
com tesão...
1
Santos, F. L. e Silva, M. L. (2007). O Exercício da Amizade em “Diários de Motocicleta”. Monografia
de graduação em Psicologia não-publicada, UNP, Natal: RN.
7
A Arnaldo Carneiro, companheiro, pela cumplicidade, pelas incontáveis
momentos de incentivo e de encorajamento para que pudesse realizar este doutorado,
pela sua doce e cálida presença em minha vida.
Às pessoas integrantes do MST com quem, de um modo ou de outro, tive
contato (foram muitas!!!) e contribuíram, ao seu modo, com este trabalho,
especialmente aos integrantes do MST do Estado do Rio Grande do Norte e de
Pernambuco por me acolherem todas as vezes que os procurei, enfim, por me terem
feito um amigo do MST.
Finalmente, a Erivan Hilário, pelas inúmeras ocasiões em que discutimos este
trabalho, pelas observações, comentários, esclarecimentos e pelo respeito por esta
investigação. Pela amizade que se produziu em nosso encontro: partilha e singularidade!
8
SUMÁRIO
LISTA DE SIGLAS 11
LISTA DE IMAGENS
RESUMO
ABSTRACT
12
13
14
1. Introdução
1.1. As questões centrais da pesquisa
2. Cartografando a militância e a amizade no MST
2.1. Paisagem Um: O curso de Pedagogia da Terra (INCRA/UFRN/MST)
2.2. Paisagem Dois: O X Encontro Regional de Educadores (as) do MST/Sertão
(MST/Pernambuco)
2.3. Paisagem Três: V Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
2.4. Paisagem Quatro: Mobilizações e atividades culturais do MST
15
15
32
35
36
36
38
3. MST: uma nova ordem político-subjetiva no meio rural brasileiro
3.1. Breve percurso histórico de surgimento do MST
3.2. O MST no cenário das lutas atuais
3.3. O MST e suas investidas de subjetivação
40
40
47
63
4. A militância em movimento: entre a identidade e a singularidade
4.1. A fabricação de uma ordem identitária
4.1.1. A trajetória dos participantes da investigação na paisagem MST
4.1.2. O processo de formação militante
5. O exercício da amizade na militância do MST
5.1. As formas históricas de Amizade
5.2. Da massa à multidão
5.3. (Des)fazendo gênero na luta pela terra
5.4. Diversidade sexual na militância do MST
77
93
93
100
124
124
137
152
158
6. Considerações Finais 166
9
7. Referências
8. Apêndices e Anexos
171
178
10
LISTA DE SIGLAS
ALCA – Associação de Livre Comércio das Américas
CEBs – Comunidades Eclesiais de Base
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPT – Comissão Pastoral da Terra
FMI – Fundo Monetário Internacional
FSM – Fórum Social Mundial
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
NAFTA – Acordo Norte-Americano de Livre Comércio
OMC – Organização Mundial do Comércio
ONGs – Organizações não-governamentais
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PE – estado de Pernambuco
PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
RN – estado do Rio Grande do Norte
UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
11
LISTA DE IMAGENS
Imagem 01 - Atividade pedagógica durante o V Congresso Nacional do MST (2007)
Brasília/DF.
Imagem 02 - Grupo musical se apresentando para as crianças da Escola Itinerante Paulo
Freire, durante o V Congresso Nacional do MST (2007) – Brasília/DF.
Imagem 03 - Marcha do MST – V Congresso Nacional do MST (Brasília, 2007).
Imagem 04 - Marcha do MST – V Congresso Nacional do MST (Brasília, 2007).
Imagem 05 - Oficina com crianças durante o V Congresso Nacional do MST (2007)
Brasília/DF.
Imagem 06 - Marcha dos Sem Terrinha durante o V Congresso Nacional do MST
(2007) – Brasília/DF.
Imagem 07 - Marcha dos Sem Terrinha - X Congresso Estadual dos Sem Terrinha
(2007) – Recife - PE.
Imagem 08 - Mística realizada pelos alunos da turma de Pedagogia da Terra, durante
comemoração dos 15 anos do MST – RN.
Imagem 09 - Praça de Alimentação - V Congresso Nacional do MST (Brasília – DF).
Imagem 10 - Frevo no Planalto Central: noite de apresentações culturais no V
Congresso Nacional do MST (Brasília – DF).
Imagem 11 - um cartógrafo e uma paisagem psicossocial: V Congresso Nacional do
MST (Brasília – DF).
Imagem 12 - Militantes segurando a bandeira do MST.
Imagem 13 - Preparo de alimento para trabalhadores - Comemoração dos 15 anos do
MST – RN.
Imagem 14 - Fotografia de Trabalhadores Sem Terra em manifestação.
12
RESUMO
Leite, J. F. (2008). A militância em movimento: Amizade e maquinação de modos de
existência no MST. Tese de doutorado não-publicada, UFRN, Natal, RN.
Este trabalho se debruça sobre duas questões, a saber: os processos de produção de
subjetividade e o exercício da amizade junto à militância política do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. A amizade é aqui entendida como uma prática
social com potencial tanto para questionar certos modos de relações estabelecidas
socialmente quanto para tornar-se um exercício político. o fenômeno da militância
política é aqui problematizado a partir da perspectiva da produção de subjetividade.
Assim, a presente pesquisa tem por objetivo compor uma cartografia dos processos de
produção de subjetividade junto a militantes políticos do MST, bem como destacar
pontos em que o exercício da amizade potencializa o surgimento de processos de
singularização no âmbito dessa militância. A cartografia como método investigativo
permite apontar as forças tanto macropolíticas quanto micropolíticas que interferem
numa paisagem psicossocial, a exemplo do MST. Os participantes do estudo são um
grupo de integrantes do MST que integraram um curso de Pedagogia coordenado pelo
Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e pelo
MST estadual. Os demais participantes são militantes que estavam envolvidos nas ações
de formação política, tanto da base social, quanto de demais instâncias do MST,
especialmente nos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Ceará, Minas
Gerais e Paraná. Os resultados estão ligados, principalmente, a uma oscilação entre a
incorporação do modelo identitário do Sem Terra, através de um conjunto de estratégias
disciplinarizadoras postas em prática nas ações de formação política junto à sua
militância, bem como da produção de linhas de fuga a tal modelo, na medida em que
demandas novas e formas de investimento de desejo para além do objeto-terra são
incorporadas ao MST. Ressalta-se, ainda, que tais processos singulares se dão, na
articulação com um modo de exercício político da amizade em três eixos: multidão, em
que se abre a possibilidade do MST compor um novo coletivo social; relações de
gênero, onde se redimensiona os lugares socialmente destinados ás mulheres e;
diversidade sexual, em que o tema provoca o MST a seguir, cada vez mais, em sua
potência de questionar modos de vida vigentes e hegemônicos. Considera-se, com isso,
uma grande oportunidade para o MST situar-se como um importante mediador de lutas
sociais e políticas no contexto da contemporaneidade
Palavras-chaves:
Psicologia social - Produção de subjetividade - Movimentos sociais MST - Militância
política – Amizade.
13
ABSTRACT
Leite, J. F. (2008). Militancy in movement: friendship and the machinery of modes of
existence in the MST. Unpublished doctoral thesis, UFRN, Natal, RN.
This study focuses on two issues, the process of subjectivity production and the exercise
of friendship alongside political militancy in the Landless Rural Workers Movement
(MST). Friendship is here understood as the social practice with the potential to
question certain modes of socially formed relationships as well as their becoming a
political exercise. The political militancy phenomenon is problematized based on the
subjectivity production perspective. The objective of the study was to construct a
cartography of the subjectivity production processes with political activists of the MST
and to highlight the points in which the exercise of friendship enhances the appearance
of singularity in the context of this militancy. The cartography is a research method that
permits the identification of macro political, as well as micro political forces that
interfere in a psychosocial context, such as the MST. The participants were members of
an MST group that participated in a Pedagogy course coordinated by the Department of
Education of the Universidade Federal do Rio Grande do Norte. The other participants
were militants involved in political formation activities at the social base, as well as in
the other levels of the MST in the states of Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
Ceará, Minas Gerais and Paraná. The results are linked to the oscillate incorporation of
the landless identity model that occurs as a group of disciplinary strategies are put in
practice in the political formation activities with militants, as well as the ways of model
evation are formed. This occurs to the extent that new demands and forms of invested
desires beyond the land object are incorporated in the MST. Such singular processes
happen in three areas of the political exercise of friendship articulation: the masses,
where there is a possibility for the MST to construct a new social collectivity; gender
relations, where the socially destined space for women is redimensionized and; sexual
diversity, which provokes the MST to follow its potential in questioning the actual
hegemonic living modes. It is therefore considered that the MST has a great opportunity
to become an important mediator of contemporary social and political struggles.
Key words: social psychology subjectivity production social movements MST
political militancy – friendship
14
1. INTRODUÇÃO
Vem teçamos a nossa liberdade
braços fortes que rasgam o chão
sob a sombra de nossa valentia
desfraldemos a nossa rebeldia
e plantemos nesta terra como irmãos!
Vem, lutemos punho erguido
Nossa Força nos leva a edificar
Nossa Pátria livre e forte
Construída pelo poder popular
Braços Erguidos ditemos nossa história
sufocando com força os opressores
hasteemos a bandeira colorida
despertemos esta pátria adormecida
o amanhã pertence a nós trabalhadores!
Nossa Força regastada pela chama
da esperança no triunfo que virá
forjaremos desta luta com certeza
pátria livre operária camponesa
nossa estrela enfim triunfará!
2
As questões centrais da pesquisa
O cenário atual das lutas sociais no Brasil, desde a abertura política no início dos
anos 1980, vem sendo marcado por um movimento social que goza de relativa força
política dada a sua trajetória de lutas e conquistas: o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra - MST.
Oriundo da luta pela terra no campo brasileiro e, especialmente para denunciar e
combater os efeitos do avanço do capital no meio rural (Martins, 2000; Graziano da
Silva, 1981), o MST vem mantendo uma agenda de reivindicações em diversas frentes:
negociações com órgãos federais para fins de desapropriação de terras improdutivas,
instalação de assentamentos rurais e sua infra-estrutura (casas, estradas, saneamento,
energia elétrica, escolas, postos de saúde etc.), criação de linhas de crédito
especialmente para assentados da reforma agrária, implantação de uma proposta
2
Hino do Movimento Sem Terra. Letra composta por Ademar Bogo e música de Willy C. de Oliveira.
15
pedagógica voltada para o contexto do meio rural nas escolas dos assentamentos,
inclusão destes como territórios de atuação do Programa Saúde da Família, entre outros.
Com isso, a envergadura política do MST permitiu que se constituísse num
importante movimento que impulsiona a condução política dos governos federais e
estaduais no tocante à distribuição de terras para fins de reforma agrária no país.
Além disso, tornou-se alvo de inúmeras investigações dentro e fora do Brasil
voltadas para o conhecimento e a análise de um conjunto de aspectos que o constituem,
a saber: econômicos (Navarro, 1998), políticos e sociológicos (Martins, 2000;
Esmeraldo, 2004; Falkembach, 2006), culturais (Chaves, 2000; Gaiger, 1994) e
psicossociais (Lacerda Júnior & Guzzo, 2006; Prado & Lara Júnior, 2003).
Percebemos como os aspectos de ordem cultural e psicossocial foram se
ampliando e trazendo consigo destaque para temas pouco tratados no âmbito do
movimento, tais como relações de gênero, formação cultural, processos de socialização
política.
Nessa linha de investigação, realizamos pesquisa em nível de mestrado (Leite,
2003), em que buscamos investigar um aspecto ainda em fase inicial de reflexão: os
processos de produção de subjetividade no contexto de luta pela terra, tomando como
campo de pesquisa um acampamento coordenado pelo MST, no Rio Grande do Norte
3
,
dando destaque para o modo como a base social do movimento (trabalhadores e
trabalhadoras acampados) era afetada pelos discursos e práticas produzidos pela sua
militância
4
.
Identificamos, em tal investigação, o acampamento como um território
privilegiado de subjetivação, na medida em que se configurava uma espécie de porta de
entrada para o movimento. A produção da existência para os acampados estava
3
Acampamento Garavelo II, localizado no município de Pureza. Posteriormente, com a desapropriação da
área reivindicada, constitui-se o assentamento que beneficiou 48 famílias, número bem maior que o de
famílias acampadas na época da pesquisa (16 famílias).
4
Para maior detalhamento dessa investigação, ver: Leite e Dimenstein (2006; 2003).
16
atravessada pela tentativa de efetivação dos princípios organizativos do MST
5
, tendo no
desenvolvimento de práticas disciplinares
6
um ponto-chave de incorporação de uma
subjetivação consoante com o programa do movimento (modelo de organização
baseado na coletividade, práticas de mutirão, comportamento exemplar como não-
consumo de bebidas alcoólicas, participação em mobilizações e atividades de formação
política, obediência e respeito às normas internas do acampamento).
Por outro lado, ao acompanharmos as práticas cotidianas dos trabalhadores e
trabalhadoras acampados, percebemos como o grupo também produzia formas de
resistência ao modelo subjetivo proposto pelo MST: formas de proteção a quem
burlasse as diretrizes do movimento, práticas emergenciais ligadas à sobrevivência no
acampamento, como conseguir alimentos com autoridades políticas locais, uso de parte
da área ocupada para plantações e criação de animais de pequeno porte (a despeito
dessas práticas não terem apoio dos militantes do MST).
A tentativa de implantação de um dispositivo disciplinar tem, a nosso ver, uma
das principais formas de subjetivação, fato destacado por Foucault (1984) ao
empreender uma análise sobre a sociedade disciplinar, indicando como nela foi se
constituindo um sujeito de tipo moderno, docilmente político e economicamente
produtivo. No caso do acampamento em questão, os princípios disciplinares eram
justificados pela militância do movimento como uma forma de legitimação da luta, de
reconhecimento da organização do grupo e de superação de uma imagem negativa que a
comunidade local tinha do acampamento.
No referido estudo identificamos ainda o lugar central ocupado pela figura do
militante como emblemático para composição dessa passagem dos acampados a
integrantes do MST. Tendo sido inseridos nos princípios organizativos do MST,
5
Os princípios organizativos do MST referem-se às posições políticas e ideológicas (Stédile e Fernandes,
1999) que orientam sua atuação e funcionamento interno. São eles: Direção coletiva, Divisão de tarefas,
Disciplina, Realização de estudos, Luta de massas e Vinculação com a base social do movimento.
6
A disciplina é tida como “um princípio que tem como objetivo guiar-se pelas decisões tomadas no
movimento, submetendo-se à sua organização interna” (Leite, 2003, p. 81).
17
caberia aos militantes garantir também que os acampados pudessem ser socializados no
seu regime político-ideológico. Nesse ponto, chamava-nos atenção a extrema dedicação
de boa parte dos militantes no tocante à luta que empreendiam, o modo ofensivo com
que atuavam na defesa dos princípios do movimento e a habilidade de mobilização das
pessoas com quem atuavam (trabalhadores da base).
7
A partir de então, algumas indagações surgiram e passaram a nos mobilizar,
embora não fazendo parte naquele momento de nossos objetivos para o referido estudo:
de onde vinha essa dedicação? Como se dava o processo de constituição da militância?
De que maneira os militantes tinham suas vidas afetadas por tal experiência?
Diante do convívio com membros do MST, seja por motivos de amizade
pessoal, seja por motivos profissionais
8
, a militância, sua disposição para lutar, sua
firmeza apresentada diante da base do movimento e sua dedicação disciplinar causaram
profunda impressão.
Por outro lado, percebíamos como a figura do militante tinha uma capacidade de
mobilização de outras pessoas, militantes ou não, inaugurando assim, novas relações e
sociabilidades no próprio movimento. Tal fato se dá, em parte, pela freqüência com que
os militantes se deslocam para inúmeras regiões onde sejam convocados, bem como seu
papel de mobilizar as pessoas para a luta do movimento.
Esses fatos foram trazendo algumas inquietações, promovendo novas questões e
reflexões até surgir a possibilidade de tratá-las no âmbito da presente investigação.
Assim, este trabalho se debruça sobre duas questões centrais, ao mesmo tempo
complementares, quais sejam: pensar os processos de produção de subjetividade junto à
militância política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST e, por
7
Esses aspectos passaram a nos chamar atenção não somente no acampamento em que realizamos a
pesquisa, mas no conjunto das esferas do MST por nós observadas (mobilizações, outros acampamentos,
assentamentos etc.).
8
Tive, por dois momentos, contato profissional com o MST na qualidade de professor do curso de
Pedagogia da Terra (Convênio INCRAUFRN – MST). Também tenho sido convidado pelo movimento
para ministrar cursos para jovens que estão em processo de formação no MST.
18
reconhecermos os militantes políticos como personagens que inauguram e estabelecem
múltiplas formas de sociabilidade, investigar qual o lugar que a amizade ocupa entre
esses mesmos militantes.
A amizade é aqui entendida como uma prática social com potencial tanto para
questionar certos modos de relações estabelecidas socialmente (Vincent-Buffault,
1996), quanto para tornar-se um exercício político (Ortega, 2000, 2002, 2004), uma vez
que realizada no espaço público, na polis, pode destacar-se por valorizar a pluralidade
de idéias, formas de pensamento e de expressão, portanto de intensos debates e
conflitos, quer dizer, de vivência da alteridade.
Ortega (2000) destaca que a amizade foi um tema pouco freqüentado por
cientistas sociais e mesmo filósofos até os anos 1970. Para aqueles, não se configuraria
uma categoria de análise consistente e, para estes, tida como uma experiência da ordem
do elogio e exaltação.
No entanto, o autor comenta que vem crescendo um interesse pelo assunto,
que para alguns estudiosos a amizade poderia se configurar numa experiência de
sociabilidade e de vinculação social alternativa em face de modelos tradicionalmente
instituídos de liame social (família, profissão) que apontam para uma vivência de crise e
descrédito, no âmbito da modernidade e pós-modernidade.
Ortega (2004, 2000) denuncia que houve, na tradição política e filosófica
ocidental, um esvaziamento da amizade enquanto categoria política em favor de situá-la
num âmbito pré-político, quer dizer, uma forma de sociabilidade muito próxima do
parentesco, do familiar, do doméstico, ou mesmo uma concepção de amizade que a
valoriza enquanto experiência privada, de saturação do universo da intimidade. Do
contrário, interessa-nos vislumbrar, no âmbito do MST, quais as chances ou as
condições de possibilidade para um exercício de amizade que a reconstrua enquanto
prática política.
19
o fenômeno da militância política é aqui problematizado a partir da
perspectiva da produção de subjetividade.
A discussão acerca da subjetividade e do sujeito tem sido parte integrante da
própria história da ciência psicológica e, no entanto, sua forma de tratamento tem sido
de um lado, situar a subjetividade e o sujeito no plano de uma experiência de
universalidade e interioridade psicológica profunda (a exemplo da Psicanálise) e, por
outro lado, de apontar que os sujeitos nada mais são que reflexos de uma ordem social,
portanto meros produtos de interações ambientais, como foi o caso da Psicologia Social
americana, de inspiração positivista e que teve no Behaviorismo uma de suas principais
escolas teóricas.
Diferentemente, neste trabalho, ao propormos uma perspectiva de entendimento
das subjetividades pela via de sua produção, damos destaque para o seu caráter
polifônico, processual e maquínico. Assim, autores como Gilles Deleuze, Félix Guattari,
Michel Foucault apresentam uma concepção radicalmente crítica às visões deterministas
e essencialistas da experiência subjetiva.
Inspirado nos autores acima descritos, Moraes (2002) apresenta o seguinte
entendimento para o termo subjetividade:
Trata-se de um conceito que busca articular o universo
semiótico humano em seu agenciamento maquínico com
as tecnologias produtivas, artísticas, cognitivas, temporais
e os mecanismos de poder de determinado período
histórico. Através do agenciamento entre códigos
lingüísticos, tecnologias produtivas e de mecanismos de
poder as subjetividades e os desejos são produzidos.
Subjetividade inclui, então, não apenas o modo de pensar
das pessoas, mas também o seu modo de agir, se portar,
desejar, fazer, sonhar, revoltar. Além disso, a
subjetividade não está dentro da pessoa, mas as atravessa,
visto que não é produzido nas pessoas, mas nos encontros
entre elas e delas com os aparelhos de poder (p. 14).
Guattari (Guattari e Rolnik, 1986) destaca que, diante do processo maquínico e
produtivo das subjetividades no âmbito do capitalismo contemporâneo, são possíveis
20
identificar duas importantes variações da experiência subjetiva: a singularidade e a
identidade. Enquanto a primeira ressalta a fabricação social de um território existencial
ou de modos de vida que tanto podem se expressar numa escala pessoal quanto coletiva,
com destaque para a produção singular desses modos, a segunda é destacada enquanto
uma permanência das subjetividades em determinado território, como que congelando a
experiência subjetiva num padrão identitário (Guattari, 2000, 1999, Guattari e Rolnik,
1986).
Por essa perspectiva, a fabricação de territórios existenciais implica em uma
superação da dicotomia interioridade-exterioridade, ou seja, de um lado, um mundo
psicológico, com seus conteúdos tanto de natureza consciente quanto inconsciente e de
outro, uma realidade externa que subjuga o sujeito e o conforma por constrangimentos
sociais e/ou ambientais.
A fabricação das subjetividades dá-se por uma articulação de inúmeras
instâncias que, segundo Guattari (2000) não apresentam primazia ou determinação
única nesse processo de produção. Se tomarmos o exemplo do saber psicológico,
uma variedade de discursos que centralizam a constituição do sujeito ora em dinâmicas
familiares, ora na linguagem, ora no seu desenvolvimento maturacional, ora nos seus
processos inconscientes etc. A esse respeito, o autor observa: “A subjetividade não é
fabricada apenas através das fases psicogenéticas da psicanálise ou dos ‘matemas do
Inconsciente’, mas também nas grandes máquinas sociais, mass-mediáticas, lingüísticas,
que não podem ser qualificadas de humanas” (p. 20).
Como se apreende dessa observação, Guattari (2000) opera uma
descentralização de componentes de uma interioridade psicológica, auto-fundante ou
mesmo fundada pela essencialidade dos complexos familiares, tão cara ao saber
psicológico, ou mesmo por determinismos sociais em favor de uma noção dotada de
complexidade, nos termos de considerar uma multiplicidade de vetores (lingüísticos,
21
institucionais, sociais, culturais, arte e mídia) passíveis de nos criar num campo
existencial de auto-referência.
Desse modo, nossa investigação visou ‘marchar’ com um ator social produzido
no cerne das estratégias de intervenção de uma máquina social do espectro do MST
junto a seus integrantes: o militante político, materializado na figura do Sem Terra
9
.
Assim sendo, pretendemos conduzir uma discussão partindo de alguns
pressupostos que, a nosso ver, encontram aporte teórico-conceitual no campo da
Psicologia Social, mas também em outras áreas como a Filosofia e as Ciências Sociais.
São eles:
1. Considerar a produção/fabricação social e histórica das categorias amizade
(Ortega, 2004, 2000, 2002, 1999; Vincent-Buffault, 1996, Arendt, 2004;
Passeti, 2004, 2003a, 2003b; Konstan, 2005), identidade e singularidade
(Woodward, 2004; Castells, 2006; Pelbart, 2003; Guattari, 2000, 1999;
Guattari e Rolnik, 1986; Rolnik, 1997, 1989).
2. Situar o MST como um regime de subjetivação, ou seja, portador de uma
economia subjetiva, que faz circular, distribuir e promover o consumo de
uma ordem imaterial, simbólica (Esmeraldo, 2004; Leite e Dimenstein,
2006) alimentada na figura do militante.
3. Vislumbrar, ainda, o MST como um jogo de forças que atua em dois
regimes: extensivo e intensivo (Neves, 2004). No primeiro caso, tais forças
se configuram nas suas modalidades de intervenção (dentre elas, apontamos
as práticas educativas e a formação política do Sem Terra) junto aos
integrantes, na tentativa de implantação de seus princípios organizativos. Por
9
uma distinção ortográfica e conceitual entre o termo sem-terra (com hífen) e Sem Terra (sem hífen).
O primeiro “corresponde uma categoria de trabalhadores que, embora tenha tido acesso precário à
terra, na condição de morador, parceiro, posseiro ou arrendatário, passou por um processo de
expulsão/expropriação e, após uma experiência como assalariado bóia-fria, residente em vilarejos rurais
ou periferias urbanas se organiza e resolve lutar para reaver o direito de retornar à terra e a ter acesso a
um pedaço de chão” (Moreira, 1997, p. 31). O segundo faz alusão a uma referência identitária do
trabalhador que incorpora os princípios do MST (Caldart, 2000). Essa distinção será adotada neste
trabalho.
22
meio dessas modalidades, o MST inaugura uma ordem identitária e
programática que fixa objetivos, programas e linhas de ação, visibilidade
às suas estratégias de luta através de ações coletivas (ocupações de terra,
marchas, realização de congressos, negociações com o poder público). Cria,
assim, lugares de luta socialmente definidos: Sem Terra, Sem Terrinha,
militantes, dirigentes, membros da base do movimento, aliados e
simpatizantes e, do outro lado, latifundiários, opositores e burgueses. No
segundo caso, damos destaque aos aspectos que redesenham essa tentativa
de definição de lugares sociais em função da heterogeneidade que marca o
movimento. Essa heterogeneidade é pensada pelo fato de que seus
integrantes vêem de universos subjetivos diferentes, participando com
investimentos singulares de desejo na composição do movimento. Tal
diversidade de modos de participação na luta pela terra e, conseqüentemente,
de inserção do MST, foi por nós identificada (Leite e Dimenstein, 2006) na
medida em que a força que orientava a resistência no acampamento advinha
de ligações variadas do desejo com a conquista da terra: para alguns
trabalhadores, liberdade de uma histórica forma de exploração pelo trabalho,
conquista da autonomia e de um pedaço de chão para trabalhar e morar e, no
caso de algumas mulheres, pela superação de relações de gênero marcadas
por violência e dominação masculina.
Partindo desses pressupostos, entendemos que o MST é atravessado por duas
ordens de enfrentamento. Primeira ordem de enfrentamento: garantir a consecução de
seu objetivo central de lutar pela reforma agrária, promovendo um combate incisivo no
modelo concentracionista de terras resultante do processo de desenvolvimento do
capitalismo no meio rural brasileiro, na década de 1970 (Fernandes e Stédile, 2000).
23
Aliado a esse objetivo, os dirigentes do movimento vêm defendendo o fato de
que não a distribuição de terras seria suficiente para produzir justiça social, mas sim
todo um reordenamento do modo de organização da sociedade capitalista, marcada pela
profunda desigualdade social, exploração da classe trabalhadora assalariada (urbana e
rural), precarização das relações de trabalho e produção, exclusão de um considerável
contingente da população de condições dignas de existência (falta de moradia,
educação, saúde, saneamento, trabalho etc). Daí Fernandes (2000), um dos destacados
teóricos do movimento, afirmar que a luta do MST é uma luta contra o capital.
A sociedade brasileira tem acompanhado a atuação do MST e tido por ela
posições contrárias, uma vez que optou por ações de luta baseadas, em grande parte, no
confronto e na desobediência civil, como é o caso de ocupação de propriedades
improdutivas, órgãos públicos e instituições bancárias, bloqueio de rodovias e
realizações de marchas de milhares de trabalhadores sem-terra. Com isso:
O MST firmou-se ao colocar na agenda do Estado o tema
da reforma agrária e da necessidade de sua realização. É
um movimento que vem se destacando, desde então, pela
sua força de mobilização dos trabalhadores, como
também por exercer pressão junto aos governos
(municipal, estadual e federal) no sentido de denunciar os
efeitos sócio-econômicos da modernização no campo, do
desenraizamento por ela provocado e da legião de
excluídos que criou (Leite, 2003, p. 24).
Segunda ordem de enfrentamento: afeta diretamente as subjetividades dos seus
integrantes e desdobra-se em duas: de um lado promover um fortalecimento ou unidade
entre seus membros por meio de uma simbologia como é o caso da presença marcante
de elementos simbólicos (hinos, canções, místicas, bandeiras, instrumentos de trabalho
etc.) e, por outro lado, de acolhimento da heterogeneidade de integrantes que marcam o
MST.
Inúmeras das ações do Movimento (reuniões, cursos de formação, mobilizações,
marchas, congressos, ocupações de terra etc.) acontecem com uma forte presença de
24
rituais que envolvem cantos, celebrações, evocação de figuras históricas que tiveram
participação importante em contextos de luta social, adoção de palavras de ordem e de
objetos que carregam um peso simbólico como o uso dos bonés, camisas e bandeiras.
Tais rituais buscam acessar e fazer mover uma dimensão dos integrantes do MST que
escapa do mero aspecto de tomada de consciência de sua condição social, esperando
com isso um envolvimento ou sentimento de pertença ao grupo pela ordem dos afetos,
das emoções, das sensibilidades. Desse modo, tais ordens são convocadas a seguirem
uma via identitária, com vistas à criação de um sujeito coletivo em uníssono com as
proposições do movimento: o militante Sem Terra.
Aqui, trata-se de empreender um modo de luta social por meio de uma política
de identidade, no sentido de demarcar no campo social a especificidade de um grupo
que opera enfrentamentos com uma versão contemporânea do capitalismo que traz
como dispositivos centrais uma nova ordem social que é assim compreendida por
Castells (2006):
A revolução da tecnologia da informação e a
reestruturação do capitalismo introduziram uma nova
forma de sociedade, a sociedade em rede. Essa sociedade
é caracterizada pela globalização das atividades
econômicas decisivas do ponto de vista estratégico; por
sua forma de organização em redes; pela flexibilidade e
instabilidade do emprego e a individualização da mão-de-
obra. Por uma cultura de virtualidade real construída a
partir de um sistema de mídia onipresente, interligado e
altamente diversificado. E pela transformação das bases
materiais da vida o tempo e o espaço mediante a
criação de um espaço de fluxos e de um tempo intemporal
como expressão das atividades e elites dominantes (p. 17).
Assim, algumas tentativas de reivindicação que inauguram sujeitos e práticas de
subjetivação, por parte de uma série de movimentos sociais na atualidade se revestem,
de acordo com Castells (2006) de “expressões poderosas de identidade coletiva que
desafiam a globalização e cosmopolitismo em função da singularidade cultural e do
controle das pessoas sobre suas próprias vidas e ambientes” (p. 18). Por outro lado, o
25
MST opera com uma tentativa de “acolhimento” da heterogeneidade que marca seus
integrantes.
Essa diversidade pode ser expressa pelas relações de trabalho (trabalhadores
assalariados rurais e urbanos, trabalhadores de aluguel, arrendatários, meeiros, pequenos
agricultores, moradores, bóias-frias), pelas relações de gênero (maior participação de
mulheres e em menor escala, de homossexuais), pelo nível de escolaridade e de idade
(inclusão de crianças e jovens), de orientação religiosa (católicos, protestantes e de
cultos afrodescendentes). Desse modo, a diversidade de integrantes do MST lança ao
próprio movimento demandas de luta que até então não vislumbrava, fazendo dele um
intercessor para pô-las em marcha.
Assim, muitas das demandas se convertem em autonomia de trabalho, luta
contra a desigualdade de gênero e por outros modos de exercício da sexualidade e das
relações amorosas, acesso a serviços de educação e saúde etc.
Durante a investigação de mestrado, identificamos entre mulheres acampadas
uma aproximação com o MST em função da tentativa de construção de uma autonomia,
em que elas pudessem conduzir suas vidas sem a dependência econômica de seus
antigos companheiros, com quem mantinham relações marcadas pela desigualdade de
gênero em que muitas vezes eram vítimas de violência (Leite, 2003; Leite e Dimenstein,
2006).
Nessa mesma investigação, colhemos depoimentos de trabalhadores que diziam
preferir estar acampados (reconhecendo a condição de precariedade que isso implicava)
do que submeter-se a ordens de patrão em terras alugadas ou arrendadas.
É a partir dessa última ordem, sem isolá-la das demais que produzimos nossa
questão investigativa. Em encontros contínuos com participantes do movimento desde
pesquisa de mestrado temos acompanhado uma constante eclosão de questões feitas
muitas vezes pelos próprios militantes ou por nós, que se colocam para além das
26
reivindicações e princípios conhecidos do movimento e que afetam as existências e as
subjetividades desses militantes. Algumas dessas questões se situam no plano das
relações de gênero, ao se questionar as formas hegemônicas de distribuição de papéis
sexuais masculinos e femininos, do exercício da sexualidade tanto por mulheres quanto
por militantes gays inseridos no movimento, da busca por um projeto de educação que
incorpore uma formação continuada e voltada para a realidade dos integrantes do
movimento, dos dilemas vividos entre a incorporação e o questionamento de certos
princípios do MST, especialmente do seu modelo disciplinar, etc.
Reconhecemos que muitas dessas afetações são sentidas em parte pela vivência
que o MST lhes proporciona, especialmente na aplicação dos princípios organizativos
junto ao cotidiano de seus integrantes. Um dos aspectos destacados como propulsores
de afetações no âmbito no MST são as atividades de leitura e de estudos de textos que,
por apresentarem uma visão crítica da sociedade, permitem às pessoas novas visões de
mundo, novos modos de relação com os regimes de verdade (Foucault, 2007) que
atravessam suas vidas.
Outro ponto que dinamiza a militância são os inúmeros deslocamentos e viagens
realizadas que possibilita o encontro com culturas variadas, militantes de outros estados
do país, a troca de idéias e experiências com realidades bastante distintas.
Diante dessa paisagem, resta-nos indagar de que maneira esse plano de afetações
repercute na estrutura do movimento e de como este o acolhe. Aqui, a idéia de
pluralidade e de heterogeneidade que é gerada pelos inúmeros encontros e demandas no
âmbito do MST permite-nos trazer outra idéia que a fortalece: a amizade. A amizade
exatamente como forma de liame que dialoga com a diferença, que inaugura diálogos,
que acolhe a diversidade.
Sendo os militantes personagens estratégicos do movimento, que modos de
relação estariam tendo eles com essas diversidades e como eles mesmos a estariam
27
vivenciando em suas existências? De que maneira o seu processo de formação dentro do
movimento opera: valorizando ou restringindo tais acolhimentos? Em suma, que
exercício da amizade estaria se dando entre esses atores?
Desse modo, nossa investigação tem por objetivo compor uma cartografia dos
processos de produção de subjetividade junto a militantes políticos do MST, tendo a
amizade como categoria co-extensiva a esse processo.
Para tanto, tivemos como participantes de nossa pesquisa um grupo de
integrantes do MST que integraram um curso de Pedagogia coordenado pelo
Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e
pelo MST estadual/RN. Os demais participantes da investigação foram militantes que
estavam envolvidos nas ações de formação política, tanto da base social, quanto de
demais instâncias do MST, especialmente nos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba,
Pernambuco, Ceará, Minas Gerais e Paraná.
Para tanto, atentamos algo que é próprio da cartografia (Rolnik, 1989):
direcionar um olhar para o campo da micropolítica, ou seja, destacar pontos em que o
exercício da amizade potencializa o surgimento de processos de singularização
(Guattari, 2000) no âmbito da militância, bem como vislumbrar o campo da
macropolítica, quer dizer, os pontos em que tais práticas são capturadas e passam a
reproduzir formas de vida social dominantes: identidades, reificações (Guattari e
Rolnik, 1986).
Nesse sentido, opera-se um deslocamento deixando de ter como foco, em muitas
das práticas do movimento, o projeto original de aquisição da terra, sendo atravessado
por inúmeros devires e convocado a problematizar as questões anteriormente citadas.
Entendemos que essa forma de tratamento teórico-conceitual nos possibilita
superar um dualismo que vem marcando as análises e um pensamento comum acerca do
MST e sua atuação: de um lado, tomado apenas como fruto de uma forte paixão
28
militante de grupos sociais que se utilizam dos excluídos do campo para gritar suas
reivindicações e, de outro, entendido como um equívoco que se estabeleceu no cenário
da reforma agrária no Brasil, desvirtuando o projeto político e social dos trabalhadores
rurais sem terra, especialmente pelo modelo de organização e gestão da produção.
Esperamos, por meio dessa reflexão, ressaltar a riqueza de acontecimentos que o
MST promove, os efeitos daí desencadeados numa extensa rede social, política e
subjetiva, por meio de suas provocações, lançando-se, de modo complexo, como uma
possibilidade de luta num tempo em que a vitalidade das forças constituintes parece
capturada pelo capital. Não se trata, aqui, de romantizar o movimento e de fazer dele
uma espécie de representante de um ideal a ser atingido, mas de ressaltar a
complexidade que o mesmo comporta em função do jogo extensivo e intensivo de
forças que o atravessam, pelos movimentos de ruptura, mas também de normatização
que nele se geram. Pensar o MST para além das visões dicotômicas a ele endereçadas
talvez permita-nos afirmar, através de Pelbart (2003): “quando o poder toma de assalto
a vida, a resistência invoca o poder da vida e de suas múltiplas forças” (p. 32).
Com a finalidade de apresentarmos e discutirmos tais questões, organizamos o
presente texto do seguinte modo:
Um capítulo onde apresentamos a condução metodológica do estudo, pela
perspectiva cartográfica, por compreendermos que a mesma permite apontar as forças
tanto macropolíticas quanto micropolíticas que interferem numa paisagem psicossocial.
Nesse capítulo, apresentamos os inúmeros encontros do pesquisador com a paisagem a
se cartografar: o MST e suas diversas formas de experimentação (o cotidiano dos cursos
de formação política, de mobilização, de reuniões e de eventos, bem como de circulação
de sua militância).
No capítulo terceiro, intitulado MST: uma nova ordem político-subjetiva no
meio rural brasileiro”, tratamos de situar a historicidade, as condições de possibilidade
29
e os eixos teórico-metodológicos de constituição do MST, bem como sua aposta em
produzir uma unidade política interna. Buscamos, ainda, contextualizar a complexidade
do cenário atual das suas lutas a partir de um conjunto de questões que inspiram os
movimentos sociais na atualidade e de como tais questões imprimem novos desafios e
reordenamentos na condução das lutas contra o capital, especialmente por exigir uma
atuação em rede, ou seja, de produzir um espaço de partilha entre os diversos
movimentos sociais que alcance uma escala nos termos mesmos que o capital construiu
para si sem, contudo, comprometer as singularidades que tais lutas apresentam.
No capítulo seguinte, A militância em movimento: entre a identidade e a
singularidade”, apresentamos uma cartografia de um campo de tensão que recai sobre
os processos de produção subjetiva da militância política do MST: de um lado, investe-
se na fabricação identitária do Sem Terra e, de outro, na possibilidade das
experimentações desviantes a tal identidade que a singularidade comporta. Para tanto,
resgatamos observações, entrevistas e afetos por nós vivenciados em campo que nos
permitiu reconstruir” uma trajetória dos militantes com quem tivemos contato, bem
como compreender o processo de formação política que os mesmos vivenciaram ao
longo de sua trajetória no movimento.
Ao discutirmos, no capítulo cinco, intitulado “O exercício da amizade na
militância do MST”, destacamos como a valorização dos militantes do MST pelos
temas de ordem pública aproxima-os da possibilidade de inaugurar uma via política nas
suas relações de amizade. Para isso, apresentamos um breve recorte histórico-conceitual
da amizade e de como a esfera pública pode promover seu exercício político. Trazemos,
finalmente, três formas de registro em que a amizade comparece como uma
experimentação política entre os militantes do MST: a multidão, as relações de gênero e
a diversidade sexual.
30
31
2. CARTOGRAFANDO A MILITÂNCIA E A AMIZADE
NO MST
“Não é a morte. É a vida. É a vida o que dentro do corpo abre o
mistério, a eternidade e a finitude. Todas as interpretações e todos os deuses.
O corpo é um sacrário onde cabem todos os males, todos os absolutos, onde se
entulham todas as oferendas, e onde se multiplicam mistérios infinitamente”
10
‘Seguir os passos’ do militante. ‘Marchar’ com os integrantes do MST.
Visualizar o lugar da amizade na militância política. Registrar os modos e efeitos da
construção/desconstrução subjetiva do personagem-emblema do MST. Ressaltar a
emergência dos modos de subjetivação que escapam ao modelo identitário do Sem
Terra: a cartografia como operador de investigação destaca, em linhas gerais, a
possibilidade de registro da modificação da paisagem psicossocial (Rolnik, 1989) em
função das afetações nela ocorridas, especialmente pela vida que habita ou passa por
essa paisagem (Mairesse, 2003), como também aponta para os modos que os sujeitos
percebem, experimentam e contam da passagem do tempo em suas vidas (Kirst,
Giacomel, Ribeiro, Costa e Andreoli, 2003).
Kastrup (2007) destaca que a cartografia tem por objetivo não levantar uma
representação de um dado objeto, mas de acompanhar seu processo de produção. Nesse
sentido, afirma: “a atitude investigativa do cartógrafo seria mais adequadamente
formulada como um “vamos ver o que está acontecendo”, pois o que está em jogo é
acompanhar um processo, e não representar um objeto” (Kastrup, 2007, p. 20).
10
Daniel, H. (1991). Anotações à margem do viver com AIDS. In A. Lancetti (Org.), SaúdeLoucura, 3,
2ed. São Paulo: HUCITEC, 03-20.
32
Para Deleuze e Guattari (1996), a cartografia apresenta a possibilidade de
acompanhar o movimento de dois modos de composição do campo social: a
macropolítica e a micropolítica.
O plano da macropolítica atua em termos de demarcação a priori dos territórios
existenciais em formas de “oposição binária do tipo homem/mulher, burguês/proletário,
jovem/velho, branco/negro” (Rolnik, 1989), portanto de fixação de identidades, em que
uma sobrecodificação atua em relação aos processos de singularização, capturando-os
numa segmentaridade molar (Deleuze e Guattari, 1996) aportada no pertencimento a
uma classe social, a um sexo, a uma organização política e legitimada por grandes
máquinas sociais como o Estado, a Instituição, a Família, o Partido com vistas à
conservação de formas sociais vigentes (Esmeraldo, 2004).
o plano da micropolítica atua em termos não das identidades, mas de
intensidades não nomeadas, “afetos não subjetivados” (Rolnik, 1989). Nesse caso, tais
intensidades se afirmam como rotas dispersas a um poder central, a uma lógica de
captura. Nas palavras de Deleuze e Guattari (1996, p. 94): “do ponto de vista da
micropolítica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que são moleculares.
Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações binárias, ao aparelho de
ressonância, à máquina de sobrecodificação (...)”, um destaque, portanto, para as
singularidades.
Cartografar a amizade no contexto da militância política é, desse modo,
acompanhar os encontros intensivos que promovem devires, que traçam linhas de fuga
ao plano binário da identidade cristalizada (explorado, excluído, Sem Terra), é aportar
no exercício de uma amizade que dê passagem para o convívio com as diferenças.
Para Rolnik (1989):
A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo
tempo em que o desmanchamento do mundo sua perda
de sentido e a formação de outros: mundos que se criam
33
para expressar afetos contemporâneos, em relação aos
quais os universos vigentes tornam-se obsoletos (p. 15).
Assim, a cartografia apresenta a possibilidade de diálogo, tanto com as
subjetividades produzidas no plano da macropolítica, quanto da micropolítica,
identificando onde e em que movimento específico territórios existenciais se
desmancham e/ou são recriados. Por esse modo é que ressaltamos o caráter temporário
e, portanto histórico desses territórios, haja vista concordarmos com Cardoso Jr. (2003),
para quem:
Toda subjetividade é uma forma, mas essa forma é
simultaneamente desfeita por processos de subjetivação;
enquanto a forma-sujeito é captada pelos saberes e
poderes, a subjetivação é um excesso pelo qual a
subjetividade mantém uma reserva de resistência ou de
fuga à captação de sua forma (p. 344).
No contexto da investigação, nossa disposição de cartógrafo
11
buscou registrar,
na tentativa de efetivação do modelo de militância, os pontos em que esse modelo cria
territórios existenciais e os pontos em que, no confronto com esse modelo, a própria
militância redimensiona sua subjetividade em função das práticas de amizade. Com
isso, buscamos mapear as mutações da paisagem (Rolnik, 1989) que compõe o
movimento, tendo como possibilidade para tal, situar a amizade como uma
experimentação co-participante nesse processo de mutação.
Tomamos o MST como essa paisagem a se cartografar, a ter nela o ponto de
partida em que o processo de subjetivação militante e o exercício da amizade se
recortam como processos a serem acompanhados. No recorte de tal paisagem, inserimo-
nos em alguns acontecimentos do movimento que foram por nós eleitos como campo da
investigação. Esses acontecimentos foram: o curso de Pedagogia da Terra (realizado no
11
Em alguns momentos do texto, faço uso do pronome nós por entender que algumas idéias veiculadas
neste trabalho expressam uma autoria para além de mim enquanto escritor (idéias discutidas em
orientações, na literatura consultada para subsidiar a investigação. No entanto, em outras situações uso o
pronome eu mais para indicar as vivências em campo, os desdobramentos ocorridos na execução da
pesquisa em termos de encontro com os participantes, das entrevistas e observações realizadas, bem como
para narrar algumas das intensidades vividas no cotidiano com os grupos participantes da investigação.
34
Rio Grande do Norte, através de convênio entre INCRA/UFRN/MST); o X Encontro
Regional de Educadores (as) do MST/Sertão, no estado de Pernambuco; o V Congresso
Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Brasília e mobilizações e eventos
culturais do MST, especialmente no Rio Grande do Norte.
2.1. Paisagem Um: O curso de Pedagogia da Terra
(INCRA/UFRN/MST)
Encontros do pesquisador com um grupo de militantes do MST que durante
quatro anos se reuniram semestralmente nas cidades de Nova Cruz e Ceará-Mirim, para
cursarem, em nível de graduação, a formação em Pedagogia, denominada de Pedagogia
da Terra. Trata-se de um convênio entre a UFRN, o MST e o Instituto de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) e que teve esta turma concluída sua formação em agosto de
2006.
A cada semestre, o grupo de 54 alunos freqüentou as disciplinas do curso,
durante um período de cinco a seis semanas, ficando alojados inicialmente no campus
universitário da UFRN na cidade de Nova Cruz e, posteriormente, no Centro de
Formação Patativa do Assaré
12
, em Ceará-Mirim.
Os integrantes desta turma eram oriundos de todos os Estados do Nordeste e do
estado do Pará. Trata-se de militantes que assumem função de professores em áreas de
acampamentos e assentamentos, de coordenadores de setores do MST, especialmente o
de Educação, de lideranças regionais, dirigentes estaduais e de filhos e filhas de
trabalhadores acampados e assentados.
12
O referido centro ocupa o espaço que anteriormente foi a Escola Agrotécnica de Ceará-Mirim. A antiga
escola encontrava-se desativada e teve seu espaço ocupado por integrantes do MST/RN. Recentemente, o
MST conseguiu, junto ao Governo do Estado, a formalização da área para a efetivação do centro de
formação.
35
Acompanhamos algumas etapas de encontro do grupo (janeiro e julho de 2004,
janeiro e julho de 2005; janeiro e julho de 2006). Nesse período, o contato com o grupo
deu-se na condição de professor das disciplinas Dimensão psicológica do Homem e
Dimensão Psicológica da Aprendizagem.
2.2. Paisagem Dois: O X Encontro Regional de Educadores(as) do MST/
Sertão (MST/Pernambuco)
Encontro do pesquisador com integrantes da coordenação estadual e regional do
Setor de Educação do MST/PE e educadores de áreas de acampamento e assentamento
do estado de Pernambuco, do período entre 18 a 21 de abril de 2006, na cidade de Santa
Maria da Boa Vista/PE. A convite de membros do MST/PE, participei do evento
ministrando oficina de Relações de Gênero e Sexualidade para educadores do MST que
atuam na região do Sertão do Vale do São Francisco.
Os elementos destacados nesse acontecimento e balisadores de nossa pesquisa
foram: a) a atuação de alguns militantes no tocante ao seu trabalho de formação de
educadores que atuam nas áreas do movimento e, b) a observação da execução de uma
série de tarefas que estavam ligadas à condução do evento e realizadas pelos militantes.
No primeiro caso, buscamos acompanhar um processo de investimento da
militância em fazer ressoar nos educadores um modelo de atuação nas salas de aula, por
meio do que estamos chamando de fabricação de um educador-militante.
No segundo caso, ao acompanharmos a execução de tarefas, buscamos
compreender em que medida sua realização segue os princípios organizativos do
movimento ou dele escapam.
36
2.3. Paisagem Três: V Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra
Participação do pesquisador no evento realizado entre os dias 11 e 15 de junho
de 2007, na cidade de Brasília DF, que tinha como tema “Reforma Agrária: por
justiça social e soberania popular”.
Essa talvez tenha sido a inserção em campo que mais me provocou enquanto
pesquisador uma série de afetações, em função de fazer-me encontrar com uma
dimensão do MST até então não experimentada. Ali, podia-se sentir sua pujança, sua
força de expressão e de invenção, numa profusão de cores, sons e odores que parecia
nada faltar.
Foi possível ver, ouvir e “cheirar” um MST em sua magnitude: dezenas de
barracas de lona enormes e tantas outras de pequeno e médio porte que abrigavam uma
série de atividades, desde “dormitórios” a cozinhas, banheiros, salas de aula, refeitórios.
Para dizer com um militante, uma cidade de lona” que abrigava cerca de 20 mil
pessoas e atraiu um contingente de trabalhadores ambulantes para o local (Complexo
Educacional Wilson Chaves), promovendo uma grande feira livre.
A destacar a diversidade regional que integra o MST (está presente em quase
todo território nacional, com exceção dos estados do Amazonas e Acre), era possível
produzir uma cartografia dos cheiros, se assim o quiséssemos, tamanha era a variedade
e diversidade culinária presente na “praça de alimentação” do evento.
No contexto do V Congresso, houve duas marchas, atividade histórica e
simbólica do movimento. A primeira foi realizada com a participação de “Sem
Terrinha” no próprio espaço de acontecimento do congresso e a outra, que reuniu cerca
de 15 mil trabalhadores e dirigiu-se até a Praça dos Três Poderes da capital federal,
passando em frente a Embaixada do governo norte-americano.
37
A experimentação e a afetação provocadas nesse encontro com um “MST”
diverso, plural, em que se podia vislumbrar tanto sua força de unidade quanto sua
potência criativa, tornou-se o elemento central de problematização e de produção de
dados nesse recorte da investigação, recorte inclusive que vazava pelos seus limites,
convocando a mim como pesquisador a ultrapassar suas fronteiras perceptivas.
2.4. Paisagem Quatro: Mobilizações e atividades culturais do MST
Encontro do pesquisador com a “família MST”, em que foi possível estabelecer
um contato informal com alguns integrantes do movimento. Como esse contato se dava
informalmente por ocasião das circunstâncias (festejos, rodas de conversa, bailes), eu
marcava um encontro para uma conversa posterior com o (a) militante. Como em alguns
desses momentos, a possibilidade de reencontro era remota, eu provocava curtas
conversas que, pela sua natureza, apresentavam-me questões mais de situações gerais do
movimento e de sua atuação no contexto do qual o militante fazia parte.
Dessas atividades, registros tanto escritos quanto fotográficos, sendo que
estes passaram a ter um lugar importante no nosso campo de pesquisa, uma vez que por
meio da fotografia, é possível captar em imagens tanto a riqueza simbólica do
movimento - seus símbolos de cor atraente como a bandeira, os bonés, camisetas e
adereços - bem como mobilizações e práticas cotidianas que denotam o caráter massivo
do movimento.
Em todos esses campos de inserção da pesquisa fiz uso de observações de
situações seja do cotidiano da militância, seja de atividades e ações que, a meu ver,
apontavam as linhas rígidas e as linhas de fuga que envolviam a efetivação de um
modelo de militância e da possibilidade de inauguração de novas sociabilidades, de
novos encontros e de um exercício de novas amizades.
38
Realizamos também entrevistas em todos esses recortes (16 ao total) na tentativa
de recompor, através de uma conversa, as paisagens que vão se sucedendo na trajetória
de alguns militantes do movimento, tendo sido registradas em gravador com autorização
prévia dos participantes.
As conversas que mantivemos com essas pessoas foram orientadas de forma a
deflagrar quatro questões que consideramos importante na composição cartográfica: a
trajetória que vai da inserção no MST ao tempo de vida atual, o processo de formação
militante, o lugar que a amizade vem ocupando nessa trajetória e a experiência do curso
de Pedagogia da Terra (para os militantes que dele fizeram parte).
Buscamos, por meio da escuta dos participantes, ressaltar as linhas que tecem
suas histórias contadas e narradas numa conversa que, embora toquem essas questões,
possam saltar para uma dimensão que indique a mutabilidade ou como o território
existencial vai se perfilando à medida que tais questões vão se materializando não só em
fatos, mas em afetos que vão recompondo essas histórias e apontando novas paisagens.
Como assinalam Mairesse e Fonseca (2002)
Contar uma história pode vir a ser um movimento de
desdobramento, deixando vir o “de dentro” para “fora”,
libertando aquele que se refugia nos entres das
envergaduras, agenciando no sujeito uma nova
configuração do ser. Em sua pluralidade, infinitas vozes
dialogam, disparando um novo processo, um devir de
diferença; um sujeito mais livre enquanto em movimento
de devir, enquanto em processo de singularização, em
entrelaçamento, junção e disjunção de si com os outros (p.
113).
Num sentido aproximado, Gaulthier (2004) aponta que os sujeitos ao trazerem o
que costumamos convencionar como dados de pesquisa, por meio de suas enunciações,
o fazem carregados de uma polissemia que os arrastam para uma experimentação de
variabilidade que combina regimes de signos diferentes.
39
3. MST: UMA NOVA ORDEM POLÍTICO-
SUBJETIVA NO MEIO RURAL BRASILEIRO
“O MST coloca-se como um barco sobre as ondas dessas correntes
migratórias, apontando o destino para aqueles que já não têm
destino; e orientando onde deve ancorar cada ser desamparado pelo
capital nessa onda excluidora”.
Ademar Bogo (2003, p. 18)
3.1. Breve percurso histórico de surgimento do MST
Diversos movimentos sociais emergiram no Brasil tendo como foco a questão
agrária. Suas formas de atuação deram-se por meio de um embate ao caráter
concentracionista de terras que, com o avanço do capitalismo no campo nos anos 1960-
1970, agravou ainda mais tal concentração, promovendo o que Martins (2000) declara
como uma aliança entre terra e capital.
A partir da segunda metade do século XX, podemos destacar três mediadores
sociais que tiveram intensa penetração junto à diversidade de categorias de
trabalhadores rurais no país no que se refere às suas lutas por terra: as Ligas
Camponesas, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, o MST.
O primeiro surgiu no nordeste brasileiro no início dos anos 1950, teve forte
apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e deu à questão agrária uma conotação
política, quer dizer, a luta por terra passou a ser tratada e colocada no centro das
questões sociais do Brasil, com participação de diversos setores da sociedade civil e do
Estado (Bastos, 1984)
13
.
13
Até então as lutas por terra carregavam componentes de ordem religiosa, especialmente de um
catolicismo popular ou messiânico, como foi o caso de Canudos (no estado da Bahia) e do Contestado
(em Santa Catarina) ou ainda através de disputas familiares por terra, em que temas como vingança e
40
Já a CPT, que teve participação decisiva na formação do MST, emergiu segundo
Martins (1986, 2000), como uma nova forma de luta desenhada pelas mãos da Igreja
Católica, em meados da década de 1970, em conseqüência da política
desenvolvimentista e de modernização do campo (Graziano da Silva, 1994), levada a
termo pelos governos militares, que exerceram intensa repressão aos movimentos
sociais e levaram à expulsão e à exploração do trabalho de inúmeros habitantes da
floresta amazônica (posseiros, seringueiros e índios), especialmente nas regiões norte e
centro-oeste do país.
Assim, autoridades religiosas ligadas à CNBB tomaram a iniciativa de constituir
a CPT com vistas a combater o fenômeno da violência no campo, adotando uma
referência doutrinária baseada na Teologia da Libertação, que de acordo com Fernandes
e Stédile (1999), trata-se de uma:
Corrente pastoral das Igrejas cristãs que aglutina agentes
de pastoral, padres e bispos progressistas que
desenvolvem uma prática voltada para a realidade social.
Essa corrente ficou conhecida assim porque, do ponto de
vista teórico, procurou aproveitar os ensinamentos sociais
da Igreja a partir do Concílio Vaticano II. Ao mesmo
tempo, incorporou metodologias analíticas desenvolvidas
pelo marxismo (p. 20).
Tal perspectiva permitiu, portanto, uma leitura diferenciada da realidade em que
questões e dilemas sensíveis à vida camponesa (exploração do trabalho, concentração
fundiária, violência no campo) passaram a ser abordados junto aos mesmos, num
trabalho que visava à tomada de consciência de tal realidade e, com isso, criar a
possibilidade de mobilização e engajamento para uma luta social, com vistas à
superação desses dilemas.
‘limpeza’ da honra eram presentes, como no caso do Cangaço (Fernandes, 2000).
41
O trabalho pastoral da Igreja, estruturado a partir das CEBs
14
e organizados em
diversos contextos comunitários brasileiros (rurais e urbanos), permitiu uma
aproximação entre as condições de opressão da vida dos indivíduos com a palavra de
Deus, possibilitou a ampliação da CPT por todo o país e abriu um novo momento de
luta dos trabalhadores do campo, através de um componente social e cultural marcante,
para além do ideológico e partidário, até então presentes nessas lutas (Martins, 2000).
Passou, inclusive, a influenciar um conjunto de movimentos populares convertendo-se
numa potente forma de enfrentamento da ditadura militar.
De acordo com Poker (1997):
Por intermédio da alquimia entre ingredientes diversos,
como elementos religiosos combinados com experiências
de vida de pessoas simples, as CEBs conseguiram uma
fórmula de ‘conscientização’ de resultados muito
superiores à metodologia usada pelos partidos de esquerda
naquele contexto. Tanto que o PT (Partido dos
Trabalhadores) teve em sua base de criação um grande
contingente de pessoas ligadas as CEBs (p. 80).
Desse modo, a valorização do componente religioso nas ações das CEBs
permitiu uma grande aceitação no meio popular (Gohn, 1997), em função da
valorização que tal metodologia dava às diversidades sociais e culturais dos grupos que
assessoravam.
Falkembach (2006) lembra da importância dessa ‘virada’ dada pelas igrejas
cristãs no tocante às formas de lidar com as injustiças sociais e com os pobres,
especialmente do campo. Virada essa que teve a CPT como agente que colocou setores
da igreja a serviço dos oprimidos. Uma igreja que fazia sua escolha pelos pobres e
explorados, pelos injustiçados e, por meio dessa escolha, a palavra de Deus - o
Evangelho - passou a ser lido, escutado e aproximado aos dilemas das pessoas simples.
14
Grupos de pessoas que, reunidos pela identificação religiosa e, geralmente com a assessoria de
autoridades eclesiásticas, promoviam discussões e organizavam ações em torno de questões ligadas à
realidade do grupo ou comunidade, também inspiradas na Teologia da Libertação, tiveram forte atuação
durante o regime militar.
42
Desse modo, pôde-se estabelecer uma relação mais estreita entre e os
problemas sociais: “E não é que atenha mudado. É que no confronto com os fatos da
vida ela se revigora, se desdobra e se mostra tal como é: fermento de libertação” (Boff,
2005, p. 260).
Aliada a essa dimensão religiosa destacou-se, ainda, uma vertente proposta pelo
educador Paulo Freire, a Educação Popular, em que o trabalho de conscientização por
meio das ações de alfabetização e de reunião dos grupos incorporou uma profunda
crítica aos saberes e lugares sociais hegemonicamente constituídos, valorizando os
saberes locais, próprios da cultura camponesa. O trabalho, no nível dos grupos reunidos
visava, portanto, a desnaturalização desses lugares, uma visão crítica da realidade
cotidiana de dominação e, com isso, a possibilidade de tomada de consciência desse
jogo de poder (Poker, 1997).
Freire (2000), ao propor um método de alfabetização, construiu algumas bases
teórico-metodológicas que podemos dizer estarem muito próximas da postura de
valorização das diversidades socioculturais dos trabalhadores do campo e da cidade
empreendida pelas CEBs e CPT. Para o educador, a tarefa de ensinar se desvela por
meio de um conjunto de práticas que, concomitantemente à aquisição do código escrito
ou do conteúdo curricular, permite ao indivíduo uma tomada de consciência de sua
realidade, no sentido de identificar jogos de poder, relações de dominação, modos
culturalmente estabelecidos de exploração do homem pelo homem.
Esse exercício iniciado pelas CEBs deu fôlego, portanto, ao trabalho e ao
desenvolvimento das metodologias de ação propostas pela CPT.
Como forma ilustrativa do uso desse instrumental, podemos apontar a atuação
dessa agência pastoral numa histórica luta por terra no Rio Grande do Sul ao início dos
anos 1980, que teve repercussão nacional na época, tornou-se uma importante referência
43
de atuação da CPT bem como um marco histórico da luta por terra da região sul do
país
15
que culminou, em seguida, com o surgimento do MST: trata-se da constituição do
Acampamento Natalino, localizado numa rodovia entre os municípios Passo Fundo e
Ronda Alta.
Segundo Marcon (1997), tal acampamento não se iniciou de modo articulado,
mas resultou da ausência de perspectiva para um conjunto de trabalhadores sem-terra
que não foram contemplados com as ações de desapropriação para fins de reforma
agrária em fazendas da região. Tais desapropriações ocorreram para tentar resolver o
dilema de inúmeras famílias de agricultores que haviam sido expulsos da reserva
indígena de Nonoai.
O autor ainda afirma que, diante da ausência de um movimento social ou
entidade de luta que pudesse assessorar as famílias acampadas, a CPT passou a realizar
um acompanhamento direto das famílias por meio de orientações políticas, celebrações
religiosas e criando uma sistemática de organização interna do acampamento, como o
trabalho em comissões responsáveis pela alimentação, segurança, saúde, estudos, de
cantos de animação e de reza, leitura de trechos bíblicos que associavam a luta pela terra
com a idéia da terra prometida (livro bíblico do Êxodo), bem como o desenvolvimento
de um espírito comunitário, de comunhão das vivências através das ações de mutirão e
da sistemática de reuniões em comissões e assembléias para discussão de problemas que
surgiam no cotidiano.
O impacto da atuação da CPT foi sentido de forma qualitativa no acampamento
que passou a chamar a atenção dos meios de comunicação, uma vez que seus habitantes
passaram a conduzir a luta por terra de modo diferenciado. Tal postura foi incorporada
em função do conjunto de reflexões realizadas pelos agentes pastorais:
15
As lutas de terra no Rio Grande do Sul, nesse contexto, estavam muito ligadas à presença de grandes
latifúndios, aos empreendimentos desenvolvimentistas através da instalação de usinas hidrelétricas, fato
que expulsava enorme contingente de trabalhadores rurais de suas terras e da ocupação de reservas
indígenas por trabalhadores sem-terra (A esse respeito, ver: Falkembach, 2006; Marcon, 1997; Fernandes,
2000).
44
Tomando como ponto de partida o princípio de que “a
terra é um dom de Deus para todos”, a CPT ajudou a
deslegitimar o conceito de propriedade privada, utilizado
para justificar a concentração da terra e do latifúndio (...).
A orientação metodológica da CPT pautou-se no sentido
de que os próprios acampados assumissem a luta como
sujeito do processo, enfrentando as negociações com o
governo, com o Incra e a imprensa, nas campanhas de
conscientização e nas coletas de alimentos. Ao mesmo
tempo, contribuiu para o estabelecimento de novos
pressupostos éticos, com base no direito e na legitimidade
de acesso à terra (Marcon, 1997, p. 72-73).
Foi, no entanto, a presença de elementos religiosos e místicos (celebrações,
cânticos, romarias, uso de símbolos como a cruz) que permitiu uma espécie de unidade
ao grupo, favorecendo a resistência na luta. Esses elementos passaram, como veremos
adiante, a ter forte presença nas ações coletivas do MST.
Pude acompanhar a forma de atuação de um grupo de agentes da CPT numa
experiência enquanto técnico da área social de um projeto de assistência técnica para
áreas de assentamento de reforma agrária, denominado PROJETO LUMIAR
16
, entre os
anos de 1998 e 2000, quando trabalhei em áreas de assentamento no sertão paraibano
que eram assessoradas pela equipe da CPT da cidade de Cajazeiras – PB.
Visualizei como se operavam tais metodologias, como se dava a valorização
pela dimensão religiosa dos trabalhadores rurais com a organização de eventos em datas
religiosas, romarias, o modo comunitário de organização do assentamento via mutirão,
incentivo ao plantio em áreas coletivas, ao mesmo tempo, resgate dos saberes próprios
da comunidade, apoio ao projeto de uma agricultura familiar que partisse das bases
potenciais do próprio assentamento, exercício de escuta das famílias no que dizia
respeito aos propósitos que tinham para o desenvolvimento do assentamento.
Entendemos que, apesar dos dilemas que emergiam da relação entre a equipe da
CPT, as famílias assentadas e nós da equipe de assistência técnica, era visível uma
aceitação dessa agência junto aos mesmos, uma vez que seu modo de atuação se
16
Para maiores detalhes sobre o Projeto Lumiar, ver: Ieno (2005).
45
aproximava do universo sociocultural dos assentados. Tal fato permitiu, inclusive, a
construção de parcerias entre a equipe técnica do projeto LUMIAR, membros da CPT e
assentados, bem como para nós da equipe de assistência, possibilitou um exercício de
trabalho conjunto pela incorporação de uma variedade de saberes que estavam em jogo
naquela realidade: os saberes históricos dos assentados, o referencial teológico da CPT e
o saber da equipe técnica.
O encontro com tal diversidade levava a mim, especialmente, a reconhecer a
legitimidade e a experiência exitosa do modo como os agentes pastorais atuavam e da
dedicação com que pensavam e sonhavam, com os assentados, formas de vida mais
autônomas e menos opressoras
17
.
Nessa experiência foi possível uma aproximação com a tão marcante
dimensão mística que permeava as práticas dos agentes pastorais e que, alguns anos
depois pude reencontrar, com devida variação, no MST. Tal variação, avalio, está mais
ligada ao caráter racionalizador que o uso dessa dimensão comporta no MST.
18
Enquanto a CPT atuava valorizando as diversas expressões do mundo camponês
com sua diversidade social e cultural, grupos da esquerda renovados com a abertura
política ao final dos anos 1970 passaram a defender uma unidade entre os trabalhadores
do campo, acreditando a partir daí, numa unidade de classe que daria às lutas do campo,
associadas às da cidade, uma forte dimensão política não alcançada pela CPT em função
de seus limites enquanto pastoral.
Com a abertura democrática ao fim da década de 1970 e com apoio da CPT,
floresceu no campo brasileiro o MST. Tido como um dos mais destacados movimentos
sociais da atualidade na América Latina, suas características principais são: denunciar
17
Tal experiência me aproximou do referencial da denominada Psicologia Social Comunitária (Campos,
2002) e contribuiu para que pudesse efetivar uma crítica ao saber psicológico enquanto uma esfera de
conhecimento alimentada por um forte especialismo cientifico, técnico e profissional.
18
As ões envolvendo elementos místicos são bastante valorizadas no MST, mas num nível de
racionalização que as aprisionam em atividades rotineirizadas, circunscritas na divisão de tarefas e com
tempo determinado para realização. Em suma, uma espécie de disciplinarização da mística. Esse
aspecto será mais discutido adiante.
46
os efeitos perversos da modernização no campo (Stédile e Fernandes, 1999) e adotar
práticas de confronto ao Estado e aos latifundiários, por meio da ocupação de terras
improdutivas (Poker, 1997).
3.2. O MST no cenário das lutas atuais
O MST vem se constituindo como um movimento que goza de ampla divulgação
internacional, provavelmente por produzir o que Novaes (1998, p. 178) chama de “(...)
eventos, nova palavra para ‘fatos políticos’”
19
. A autora apresenta, em linhas gerais, o
MST como portador de um sonho moderno ou pós-moderno, ao mesmo tempo marcado
pela tradição e por componentes judaico-cristãos, em meio à sua simbologia, rituais,
místicas e ainda expressões próprias a um catolicismo popular. Alimenta-se também de
ideais típicos de esquerda, com forte inspiração leninista e, por fim, apela para um forte
“marketing social” (Novaes, 1998, p. 178).
Palhano Silva (2004) aborda o MST como um movimento social que atua em
rede, tendo se expandido por praticamente todos os estados brasileiros (apenas os
estados do Acre, Amazônia e Amapá não têm representação do movimento) e se
mantido articulado a outros movimentos e instituições como partidos políticos, Igrejas,
bem como organizações não-governamentais e entidades dentro e fora do Brasil, a
exemplo da Via Campesina
20
.
O avanço do MST é guiado pela superação de um isolamento “para uma fase de
atuação ampliada” (Palhano Silva, 2004, p. 18), que em sua pauta de reivindicações é
visível a integração e conexão com questões que extrapolam interesses de lutas
localizadas para uma dimensão em escala planetária (combate às sementes
19
Dentre os inúmeros “eventos” causados pelo MST, destacamos a “inexplicada” ocupação da fazenda da
família do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, no ano de 2002. Tal fato teve
intensa repercussão na mídia internacional.
20
Movimento internacional de pequenos e médios camponeses de mais de cinqüenta países e que
congrega centenas de organizações, entidades e movimentos de lutas sociais. Para mais detalhes, ver:
http://viacampesina.org.
47
geneticamente modificadas e a incorporação de uma agenda de lutas em torno do
desenvolvimento sustentável, da agroecologia, da biodiversidade, da educação, saúde,
produção, luta contra o aquecimento global etc.).
Podemos assim dizer que o MST encontra-se numa nova fase de luta, que
mudou alguns de seus objetivos em relação a quando se constituiu movimento social.
Na avaliação de alguns teóricos do movimento, tal mudança tornou-se necessária pela
alteração da natureza da reforma agrária (MST, 2007).
Entendida em termos clássicos, a reforma agrária convoca a uma alteração na
estrutura da propriedade de terra com vistas a democratizar o seu acesso e, desse modo,
tornar os camponeses consumidores internos e, assim, alavancar o desenvolvimento
industrial do país (MST, 2007). Foi o caso de alguns países como França, Estados
Unidos e Inglaterra.
o caso brasileiro mostra historicamente como a questão agrária deu-se num
caminho oposto, ou seja, as políticas implantadas facilitaram ainda mais a concentração
de terras em mãos de uma elite agrária especialmente no regime ditatorial - e a terra
passou a ser vista como mercadoria de especulação (Martins, 2000).
Ademais, uma nova versão do capitalismo sustentada no processo de
acumulação de riquezas a partir das empresas multinacionais e do sistema financeiro
passou a não necessitar mais da figura do camponês para continuar acumulando
riquezas.
Desse modo, os principais dirigentes e teóricos do MST entendem que a luta
pela reforma agrária passa pela luta contra um modelo econômico e político. Afirmam:
Nosso debate em torno dos desafios da reforma agrária,
que foi debatido ao longo dos últimos dois anos, revela
que agora, para a reforma agrária avançar é necessário,
em primeiro lugar, derrotarmos o modelo econômico
neoliberal e o imperialismo. Ou seja, nossos inimigos não
são apenas os latifúndios atrasados (MST, 2007, p. 90).
48
Esse aspecto de ampliação da luta contra não mais um “inimigo”, mas todo
um modo de gestão e condução da vida pelo capital, levou o MST a agregar-se a outros
importantes atores sociais de luta que viram também esse modelo econômico como
adversário.
Ademais, com as conquistas dos assentamentos, novas demandas surgiram para
o próprio MST: escolas e estradas de qualidade, serviços de saúde, saneamento, acesso a
créditos para condução dos lotes e aquisição de equipamentos e insumos. Provocado por
tais questões, o movimento concluiu pela necessidade de ampliar sua luta para além do
acesso à terra.
O surgimento dessas demandas levou o MST a ir criando paulatinamente uma
estrutura organizativa em que uma série de atividades que vinham sendo realizadas por
sua militância nos âmbitos municipais, estaduais e federais foram institucionalizadas.
Daí a criação dos chamados setores que respondem por um conjunto de ações e
atividades realizadas por grupo de pessoas e que apresentam demandas específicas. De
acordo com Fernandes (2000):
Na construção da forma de organização do MST, o termo
setor tornou-se uma denominação final, num processo de
nomeação das atividades que se utilizou de termos como:
comissão, núcleo, equipe, coletivo etc. Desse modo,
foram nomeando as atividades na construção da forma de
organização do Movimento. Geradas pela necessidade da
luta, foram sendo modificadas até se estabelecerem (p.
173).
os setores de Frente de Massas, de Formação, Educação, Saúde, Produção,
setor de Gênero entre outros.
Encontramos no documento produzido pelo MST para discussão durante o V
Congresso Nacional realizado em junho de 2007, na capital federal, os principais
desafios ligados não só à luta pela terra, mas a uma luta política maior. São eles: acabar
com o modelo neoliberal; situar a reforma agrária como uma conquista que beneficiará
49
não os trabalhadores rurais, mas toda sociedade; fortalecer a formação de sua
militância como condutores de uma luta necessária; produzir veículos de comunicação
que sejam administrados pelas organizações populares a fim de acabar o monopólio dos
meios de comunicação; costurar uma unidade com inúmeras organizações populares nos
níveis municipal, estadual e nacional e a disseminação de um debate que proponha um
novo modelo de sociedade pautada nos interesses populares (MST, 2007).
A preocupação do movimento com todas essas questões pôde ser bastante visível
durante o referido congresso. A programação do evento não incluía uma pauta de
discussão em torno de temas como a educação, saúde, produção e comercialização, bem
como uma série de atividades estavam voltadas para atender tais temas, a exemplo da
instalação da Escola Itinerante Paulo Freire, onde foram desenvolvidas atividades
educativas e pedagógicas com cerca de mil crianças e adolescentes:
Imagem 01: Atividade pedagógica durante o V Congresso Nacional do MST (2007) – Brasília/DF.
50
Imagem 02: Grupo musical se apresentando para as crianças da Escola Itinerante Paulo Freire, durante o
V Congresso Nacional do MST (2007) – Brasília/DF.
É importante também destacar que, entre as inúmeras barracas que compunham
a estrutura do congresso, havia uma destinada às entidades nacionais e internacionais de
apoio ao MST
21
. Essa barraca mantinha uma agenda de discussão que englobava temas
que são da ordem do dia e que em todos uma inserção do MST como debatedor e
propositor de idéias consoantes com seu projeto político (desenvolvimento sustentável
do planeta, criminalização dos movimentos sociais, globalização, unificação das formas
de luta social etc.).
Uma frente de luta do movimento que vem ganhando proporções, inclusive
internacionais, trata-se do combate ao agronegócio. Para o MST, essa forma de inserção
do capital no meio rural é extremamente danosa para uma agricultura sustentável e põe
em risco a soberania alimentar dos países vítimas desse modelo de desenvolvimento
agrícola.
21
No site do MST (www.mst.org.br), um link para os denominados amigos do MST: entidades civis e
religiosas, voluntários, e estudantes espalhados em países como Inglaterra, Espanha, Suíça, Itália, Suécia,
Alemanha, Bélgica, França e Portugal.
51
O agronegócio surge quando empresas transnacionais financiadas pelo sistema
financeiro (bancos em especial) passaram a operar na agricultura, tornando as diversas
empresas do setor um conglomerado que passou a interferir numa série de processos de
produção agrícola (MST, 2007). Assim, os processos de produção e comercialização de
alimentos, de fabricação de insumos agrícolas, de desenvolvimento de produtos
químicos para as lavouras, de modificação genética de alimentos foram concentrados
em um número reduzido ou mesmo em uma única empresa. Com isso, um profundo
controle nos processos de produção agrícola por parte dessas empresas, tornando muitas
vezes inviáveis formas outras de produção agrícola que são sufocadas por esse modelo,
como a agricultura familiar.
Essa forma de domínio da agricultura pelo agronegócio, resume o documento do
MST (2007), dá-se pela internacionalização das ações dessas empresas, pelo controle de
preços de produtos, serviços e do mercado consumidor, controle das sementes
transgênicas que traz em si domínio tecnológico e leis de patentes para comercialização
do produto, padronização dos alimentos, controle da biodiversidade, exploração em
forma de monocultivo entre outros.
Como a expansão do agronegócio obedece escala planetária, diversos
movimentos sociais de luta passaram a se articular para que a forma de combate
também pudesse se dar nessa mesma escala. Essa parece ser uma bandeira de luta
bastante atual do movimento, fato que, inclusive o coloca num novo lugar social ao
levantar questões que extrapolam o universo clássico de sua gênese: a luta pela terra e a
reforma agrária
22
.
um conjunto de autores que empreenderam uma série de análises acerca da
atual configuração do capitalismo, dando destaque para as sucessivas mutações que tal
22
A titulo de ilustração, lembro que no decorrer da etapa de campo de minha pesquisa de mestrado
cheguei a visitar um acampamento de trabalhadores sem-teto que estava sendo acompanhado também
pelo MST, pois estava em companhia de um militante que, antes de me levar a um assentamento rural,
passou no referido acampamento.
52
modelo econômico incorporou, bem como acentuando as suas atuais características.
Concomitantemente, pensam as transformações que os movimentos sociais vão
sofrendo em função da necessidade de se atualizarem no enfrentamento das forças
capitalistas.
Guattari (1999, 2000) dedicou-se a pensar uma face atualizada do capital, por
meio do que denomina de Capitalismo Mundial Integrado, forma de desenvolvimento e
sustentação do capitalismo contemporâneo que se apóia num profundo avanço das
máquinas tecnológicas e atua em duas frentes: uma de ordem extensiva, porque seu
modelo de organização econômica disseminou-se por todo o planeta, atingindo
territórios e culturas até então não açambarcados pelo capital (a exemplo do
agronegócio, como citado anteriormente), e outra de ordem intensiva exatamente por
este modelo econômico buscar atingir o plano das subjetividades, dos desejos, operando
um movimento de conversão dessas mesmas subjetividades a fim de torná-las
mercadorias prontas para serem postas em circulação, distribuição e consumo. Ressalta
a homogeneidade e a modelização como características importantes dessa subjetividade-
mercadoria. Comenta:
A esse respeito, convém, particularmente situar a
incidência concreta da subjetividade capitalística
atualmente, subjetividade do equivaler generalizado, no
contexto de desenvolvimento contínuo do mass mídia, dos
Equipamentos Coletivos, da revolução informática que
parece chamada a recobrir com sua cinzenta monotonia os
mínimos gestos, os últimos recantos de mistério do
planeta (Guattari, 2000, p. 34-35).
Esse parece ser um aspecto importante, a nosso ver, do pensamento do autor:
vislumbrar uma indissociabilidade entre uma economia política e uma economia
subjetiva. Ambas forças se entrelaçam, pois, na produção da vida social.
Alinhada ao pensamento acima, Rolnik (1997, p. 19) afirma:
A globalização da economia e os avanços tecnológicos
especialmente a mídia eletrônica, aproximam universos de
toda espécie, situados em qualquer ponto do planeta,
53
numa variabilidade e numa densificação cada vez
maiores. As subjetividades independentemente de sua
morada, tendem a ser provocadas por afetos dessa
profusão cambiante de universos; uma constante
mestiçagem de forças delineia cartografias mutáveis e
coloca em cheque seus habituais contornos.
A autora adverte que, no entanto, esse processo não implica necessariamente a
irrupção de universos subjetivos singulares, mas pode, do contrário, emergir modos
subjetivos circunscritos ao plano dessa ordem planetária e cita como exemplo a criação
e disseminação de formas subjetivas laminadas pelo capital, o que nomeia “kits de
perfis-padrão” (Rolnik, 1997, p. 20), espécie de subjetividades-produtos prontas para
serem consumidas pelos indivíduos e grupos, independente do contexto que estejam. A
fabricação e o consumo desses perfis subjetivos passam a ser, nesses termos, uma
poderosa forma de controle da vida.
Foucault (2004, 2007), ao refletir sobre as formas de dominação vigentes e o
lugar que o capital nelas ocupa no Ocidente, buscou um modo de fazê-lo liberando-se
de um pensamento em que grandes blocos teóricos fossem utilizados em suas análises
sobre a vida social (Estado, classe social, centralidade do pensamento econômico,
grandes instituições).
Sem negar o peso que essas instâncias exercem nas formações sociais, no
entanto, o autor buscou superar noções clássicas e, com isso, deu outra possibilidade de
visualização das relações de poder e dominação. Por exemplo, ao tratar da questão do
poder, Foucault (2004, 2007) rompeu com uma concepção clássica que o associava a
uma força repressiva ou uma forma de comando unilateral por parte do Estado e seus
aparelhos sobre todo um conjunto social. Diferentemente, o poder é tido por seu caráter
relacional, não-localizável numa instância (Estado, grupo ou indivíduo), mas exercido
no espaço do ‘entre’. Destaca:
O que faz com que o poder se mantenha ou seja aceito é
simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz
não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao
54
prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-
lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo
social muito mais do que uma instância negativa que tem
por função reprimir (Foucault, 2007, p. 8).
Foucault visou, assim, liberar do poder uma concepção jurídica dominante em
que é tratado como uma entidade proibitiva. Do contrário, o autor está mais interessado
por aquilo que faz do poder uma força produtiva, promotora de práticas, discursos e
sujeitos.
Assim, o poder, não tendo um lugar central de onde seria emanado, pode ser
encontrado em inúmeros campos da vida, desde o nível das relações mais amplas
(classes sociais, instituições, grupos) até o nível das relações cotidianas, menores
(famílias, indivíduos, práticas profissionais). Daí Foucault (2007) tratar de uma
microfísica do poder, de preocupar-se com sua mecânica, suas formas de exercício,
aspecto segundo ele negligenciado nas análises macroeconômicas ou nos debates sobre
os regimes políticos.
O autor empreendeu uma análise sobre uma modalidade de poder que
denominou de disciplina. Identificou na sociedade disciplinar uma série de aparelhos
sociais, especialmente, no século XVIII e XIX, a exemplo dos exércitos, das escolas,
dos hospitais e, em especial, das prisões como campos de materialização de relações de
poder baseadas em hierarquias, condicionamentos, exames, adestramento das condutas,
confinamentos, organização e distribuição dos indivíduos em função do tempo e do
espaço.
A sociedade disciplinar surge para atender demandas de ordem econômico-
políticas, como o crescimento das populações e a preocupação com o controle de sua
saúde, de sua circulação nos espaços, de sua classificação social (sadios, normais,
loucos, doentes, delinqüentes) e também da necessidade de controle da força corporal
dos indivíduos enquanto trabalhadores das fábricas e indústrias capitalistas (Foucault,
1984; 2007).
55
Longe de destruí-los ou aniquilá-los, os produz numa nova racionalidade,
individualizada, porque seu meio de atuação incide individualmente sobre os corpos,
emergindo aí, nova figura de sujeito como efeito dessas relações de poder-saber. Cabe,
aqui, associar um desses efeitos de poder ao que Rolnik (2007) nomeou de kits-padrão
subjetivos.
A disciplina trata de uma forma de exercício do poder que tem como alvo o
corpo humano (Machado, 2007), na busca de talhar comportamentos, pedagogizar seus
atos, imprimir uma docilidade política e uma produtividade econômica e social. A
respeito da relação poder-corpo, Araújo (2000), a partir de Foucault, sintetiza:
O corpo sempre foi tomado pela violência, castigo e
dureza do trabalho. foi escravizado, o que ele produziu,
foi-lhe retirado, e sofreu até voluntariamente privações
como nas práticas ascéticas. Mas a sociedade disciplinar
exerce um domínio e constrangimento sobre o corpo
tomado individualmente (grifo da autora) para dele extrair
o máximo de utilidade e docilidade. A prisão o faz, e
também o exército, a escola, as fábricas, os hospitais que
funcionam como máquinas poderosas para esquadrinhar,
desarticular e compor as forças corporais (p. 76).
Machado (2007) sintetiza as principais características dessa modalidade de
poder: organização dos espaços, quer dizer, de classificação, distribuição e de
individualização dos corpos nos espaços institucionais (o quarto de hospital, a cela da
prisão, a sala de aula, os quatros da casa); controle do tempo, em termos de gerar uma
racionalização e máxima agilidade do uso do tempo e dos equipamentos de manipulação
(ferramentas ou máquinas de trabalho) tanto no aprendizado quanto na execução de
atividades produtivas; vigilância, como uma forma destacada de visibilidade do poder,
produzindo em quem é vigiado a ininterrupta sensação de estar sendo visto, gerando em
si próprio uma regulação de seus comportamentos, gestos e pensamentos; produção de
saber, na medida em que os indivíduos e seus corpos estão sob o olhar da vigilância,
passa-se a conhecê-los, a registrar informações a seu respeito, gerando conhecimentos
56
que, por sua vez, vão alimentar essas mesmas relações de poder. A esse respeito,
Foucault (2007) enfatiza:
O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi
possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de
um conjunto de disciplinas militares e escolares. É a partir
de um poder sobre o corpo que foi possível um saber
fisiológico, orgânico (p. 148-149).
Foucault ressalta que, paulatinamente ao controle da vida dos indivíduos pela
ordem da disciplina empregada nos espaços institucionais, foi surgindo outra
modalidade de poder que agora tinha como alvo não mais o corpo individualizado, mas
as populações, que essa passou a crescer, multiplicar e se deslocar em função de
profundas transformações ocorridas por meio das revoluções industriais e políticas na
Europa ocidental. Ao conjunto da forma de controle empreendida sobre as populações e
suas questões (nascimento, mortalidade, saúde, longevidade, emprego, deslocamento,
habitação) Foucault nomeou-a de biopolítica.
Pelbart (2003) comenta que Foucault, ao tratar dessas duas tecnologias de
investimento do poder sobre a vida, ou seja, a disciplina incidindo sobre os corpos
individuados nos espaços institucionais e a biopolítica agindo por meio do controle das
populações, passou a compreendê-las como estratégias que englobam o que nomeou de
biopoder, espécie de engenharia que dita modos de gestão da vida, seja ela na sua
particularidade corporal seja ela expressa por meio de um conjunto (os grupos humanos,
as populações, as massas).
Assim resume Pelbart (2003) acercas das teses de Foucault sobre o biopoder:
Se as disciplinas se dirigiam ao corpo, ao homem-corpo, a
biopolítica se dirige ao homem-vivo, ao homem-espécie.
Se a disciplina, como diz Foucault, tenta reger a
multiplicidade dos homens enquanto indivíduos sujeitos à
vigilância, ao treino, eventualmente à punição, a
biopolítica se dirige à multiplicidade dos homens
enquanto massa global, afetada por processos próprios da
vida, como a morte, a produção, a doença. A uma
57
primeira “tomada de poder” sobre o corpo feita sob o
modo da individualização, lembra Foucault, segue-se uma
segunda tomada de poder, desta vez massificante,
totalizante (pp. 57-58).
Ao analisar o biopoder como essa modalidade de poder inscrita sobre a vida,
Deleuze (2000) atualiza seu pensamento na medida em que reconhece uma série de
elementos presentes na atualidade que redefinem o capitalismo e as suas formas de
controle.
Uma dessas redefinições é, certamente, a crise que um conjunto de aparatos
institucionais passaram a sofrer a partir da Segunda Guerra. Conforme Deleuze (2000),
se esses interiores institucionais (família, fábrica, escola, hospital etc) eram
responsáveis, via disciplina, por exercerem um controle da vida dos indivíduos, com seu
enfraquecimento, uma nova investida vem se produzindo sobre o corpo social: a
chamada sociedade de controle.
Para o autor, essa nova engrenagem do biopoder apresenta os requintes próprios
das máquinas tecnológicas de última geração porque é, inclusive por meio delas, que o
controle advém (máquinas informacionais, redes de computadores, internet, sistema
eletrônicos de vigilância como as câmaras de vídeo e as pulseiras eletrônicas etc).
Dentre as características da sociedade de controle, Deleuze (2000) elenca:
inscrição de aparatos tecnológicos no cotidiano da vida das pessoas, transferência das
formas de controle dos sistemas fechados aos sistemas abertos, criando uma espécie de
vigilância ao ar livre, implementação de um conjunto de reformas sociais para
adequação das instituições ao controle, a exemplo da criação de penas alternativas, de
novos modelos de formação educativa, de políticas de saúde que evitem a
hospitalização.
Embora as formas tradicionais de controle operadas pela vigilância e pelo
confinamento não tenham desaparecido, no entanto, parecem caducas se pensarmos
58
como certos tipos de controle se dão com o auxílio de recursos tecnológicos a exemplo
daqueles empregados no marketing, espécie de laminador das subjetividades, de
produtor de determinados modos de ser, agir, pensar e sentir em franca sintonia com
modelos hegemônicos de legitimação do individualismo e do consumismo, valores em
alta na cultura capitalista contemporânea. Basta pensar, aqui, como uma propaganda
negativizada a respeito do MST e de suas ações coletivas acaba gerando uma espécie de
antipatia nacional que encobre a possibilidade de se questionar os fundamentos de sua
existência, bem como de sua legitimidade enquanto movimento social.
Deleuze (2000) adverte para a dominância que essa modalidade do poder via
controle impõe sobre nossas vidas: por alterar radicalmente a relação tempo-espaço
anteriormente circunscrita nos aparatos institucionais, o controle desconhece, portanto,
fronteiras, ganha imaterialidade.
Por ter no marketing um poderoso aliado, os modos de subjetivação
legitimadores da onda neoliberal e ilimitada do capitalismo circulam como um gás,
que impregna todas as formas de mídias, que incita as mais variadas expressões de
singularidade, que invadem nossas casas diariamente por meio de programas e
comerciais televisivos, pelas inúmeras imagens distribuídas na paisagem da cidade
(outdoors, outbus, revistas, jornais etc.). Nesses termos, cabe-nos indagar que formas de
resistir cabem nesse contexto?
Lembremos com o próprio Foucault (2004) para quem as relações de poder estão
atravessadas pela possibilidade marcante de resistência, de uma força contrária que
tensiona as formas de exercício desse mesmo poder, abrindo campos de batalha, modos
de insurreição.
Se por um lado, um nível das relações de poder, denominado pelo autor de
estados de dominação, em que a possibilidade de sujeitos livres é comprometida, dado o
caráter extremamente reduzido ou mesmo inexistente para margens de negociação, por
59
outro lado, há, em certas relações, um caráter plástico, instável e reversível das posições
no jogo de poder (Foucault, 2004).
Nesses termos, Neves (2004) denuncia que uma espécie de ideologia de
desencantamento ou de uma apatia das formas contemporâneas de resistência ao
domínio imposto pelo capital sobre as mais variadas formas de vida. A autora contra-
argumenta lembrando que temos acompanhado o surgimento e a consolidação de uma
infinidade de lutas que apresentam, em seu bojo, exatamente uma denúncia contra os
efeitos perversos de tal modelo econômico.
Movimentos de natureza popular, de inspiração ecológica, de princípios
religiosos, movimentos de luta por reconhecimento das identidades de gênero, étnica,
por educação, moradia e pelos direitos humanos surgem e se articulam para combater a
tentativa desterritorializante e massificadora do projeto neoliberal sobre as mais
variadas partes do planeta.
Um exemplo paradigmático desses movimentos de contra-fluxo às investidas do
capital financeiro é o Fórum Social Mundial (FSM), do qual o MST faz parte. O FSM é
composto por inúmeras ONGs e movimentos sociais integrantes de vários países que
discutem temas ligados aos mecanismos da globalização e seus efeitos, possibilitando a
criação de canais de comunicação entre atores de luta e gerando propostas alternativas a
tal modelo econômico .
O FSM apresenta, assim, uma característica importante no cenário atual: apontar
uma convergência de embate, embora suas singularidades sejam muitas, diante da
totalização do capital, convergência essa que alça escala também global.
Com o intuito de também situar que formas de luta se compõem diante de uma
ordem econômica e política generalizante, Castells (2006) faz um mapeamento de
alguns movimentos sociais, dentre eles o Movimento Zapatista mexicano, o Movimento
60
Patriótico nos Estados Unidos
23
, movimentos ambientalistas em várias partes do mundo
e movimentos de minorias sexuais que apresentam oposição a um inimigo comum: os
protagonistas de uma ordem global que, ao impor uma mundialização das formas de
governo, promove a perda da soberania de culturas, povos e nações.
No entanto, o autor atenta para o fato de que tais movimentos podem representar
ideologias e projetos políticos bastante diversos e contrastantes, a depender do seu
contexto cultural, econômico e institucional. Desse modo, nem todos esses movimentos
podem ser considerados emancipadores ou revolucionários, que alguns operam por
uma lógica muitas vezes conservadora, reacionária e violenta, como é o caso do
Movimento Patriótico.
Castells (2006) destaca que diante dessa nova ordem de dominação, formas de
resistência se inauguram em várias partes do planeta com características que oscilam em
função de suas especificidades históricas, políticas e culturais, portanto dotadas de
heterogeneidade.
Tal pensamento permite o autor considerar que os movimentos sociais que
emergem em tais recortes podem, assim, apresentar aspectos ora conservadores, ora
revolucionários, que se conformam em determinadas identidades.
Castells (2006) chega a propor uma terminologia para designar os componentes
que marcam a identidade de alguns movimentos sociais da atualidade. São eles:
Identidade legitimadora (que visa expandir sua dominação ao conjunto dos atores
sociais, culmina na formação da sociedade civil); Identidade de resistência (posição de
determinadas ações coletivas que se opõem ou propõem princípios outros ou mesmo
contrários aos dominantes na condução da vida social e institucional) e Identidade de
23
Tal movimento, que se desenvolveu na década de 1990, apresenta como principal objetivo combater
uma ordem global que seria responsável pela perda da soberania dos Estados Unidos, já que este país teria
sucumbido a interesses mundiais de ordem econômica e política e, com isso, comprometido suas
instituições religiosas e sua liberdade (Castells, 2006).
61
projeto (criação, através de artefatos culturais, de novas identidades que redefinem seu
lugar social).
Nesses termos, a identidade coletiva parece uma categoria potente
24
, conforme o
autor, para um entendimento da ação dos movimentos sociais numa nova ordem
mundial, exatamente em que a noção de referência e estabilidade são profundamente
ameaçadas pelo avanço da máquina capitalista.
Melucci (2001) também empreende uma reflexão a respeito dos movimentos
sociais na atualidade em função do que nomeia sociedades complexas ou
contemporâneas. Assim resume o autor:
De uma parte, as sociedades contemporâneas, fundadas na
informação, produzem recursos crescentes de autonomia
para os atores individuais e coletivos. Os sistemas
complexos podem funcionar somente se a informação
produzida circula no seu interior e se seus atores estão em
condição de recebê-la, interpretá-la, transmiti-la. De
outra, os sistemas complexos exigem formas de poder e
de controle que asseguram a sua integração e devem
avançar ao nível mais íntimo no qual se forma o sentido
do agir individual e coletivo. Não é suficiente controlar a
ação manifesta, mas interferir nas suas raízes
motivacionais, cognitivas, afetivas; é preciso manipular a
estrutura profunda da personalidade e da própria estrutura
biológica (p. 09).
Nessa ótica, compreende que as ações dos movimentos sociais se orientam por
uma apropriação, por parte de seus integrantes, das suas formas de agir, pensar e
desejar, que é nesse âmbito que os sistemas de controle atuais operam. Como tais
redes de informações ou fluxos se dissipam por todo o planeta, a heterogeneidade
desses movimentos sociais torna-se marcante, daí afirmar o autor que essas formas
vigentes de luta são “múltiplas, variáveis e atingem diversos níveis do sistema social”
(Melucci, 2001, p. 23).
24
Adiante, ao discutirmos a formação política da militância o MST, abordaremos mais detidamente a
questão da identidade.
62
O autor destaca os conteúdos culturais e as redes de solidariedade como fortes
componentes dos movimentos sociais atuais, bem como uma efetiva participação em
diversas esferas do sistema social. Por essa via, podemos acompanhar como o MST
vem, passo a passo adentrando em tais esferas, na medida em que avança sua luta para
temas além do acesso à terra, conforme apontado anteriormente. A esse respeito,
Chaves (2000) resume o processo de evolução da luta do MST: da luta por terra à luta
por reforma agrária, desta à luta por transformação social” (p. 128).
Desse modo, a possibilidade de pensar o MST por meio de sua atuação
expandida ou em rede diz respeito à própria atualidade dos movimentos sociais
(especialmente dos movimentos de trabalhadores do campo em diversos países reunidos
pela Via Campesina, movimento de educadores, ecológicos) em função de um contexto
em que profundas mudanças vividas na ordem mundial (avanço do capital sobre o
campo, integração dos mercados, avanços tecnológicos, criação e difusão de novas
redes de comunicação, aproximações e dominações de ordem cultural, política e
econômica) acabam por convocar ou provocar novos arranjos nas formas de luta social.
3.3. O MST e suas investidas de subjetivação
Uma importante pensadora do MST no campo da educação, Caldart (2000)
propõe uma leitura do movimento a partir de sua dimensão cultural, destacando
exatamente a força que os elementos de ordem simbólica ocupam na formação e
consolidação do movimento. Sugere o que chama de três “idéias-força” que promovem
um novo olhar acerca do mesmo:
63
A constituição histórica do MST “pela força de seus gestos, pela postura de seus
militantes e pela riqueza de seus símbolos” (Caldart, 2000, p. 31).
Esse elemento, segundo a autora, valoriza a trajetória do movimento na
composição de novas identidades que vão sendo incorporadas pelos sem-terra no
transcorrer da luta e que seus elementos simbólicos têm uma participação marcante
nesse processo, uma vez que carregam marcas da história de seus integrantes ao mesmo
tempo em que vão sendo ressignificados pelos valores que vão surgindo no decorrer da
luta;
A abertura do MST para uma maior visibilidade perante a sociedade nacional e
mesmo internacional.
Conforme a autora, um novo olhar da sociedade passou a identificar a
importância do MST e suas lutas carregadas de símbolos, a despeito das imagens
construídas pela mídia em que se identifica claramente uma postura ofensiva ao
movimento. Caldart (2000) advoga que em função da consolidação de uma identidade
cultural, o MST pôde, então, tornar-se mais público e compreensível para a sociedade;
Um olhar do próprio MST para sua dimensão cultural, através de uma reflexão em
torno da valorização da memória e da mística da luta social, de uma melhor
compreensão de sua base e um investimento na formação dos valores e posturas
pessoais dos sem-terra.
A escolha de determinados símbolos seria uma forma de dialogar com a base do
movimento e de contribuir na sua formação, uma vez que tais símbolos e místicas
carregam elementos do universo sociocultural dos seus integrantes, em especial da base
do movimento.
64
Juntamente com outros pensadores do movimento, Cadart (2000) aposta numa
investida cultural como forma de fortalecer a luta do MST. Bogo (2003), por exemplo,
fala de uma revolução cultural ou nova cultura a ser semeada entre os sem-terra. Tal
revolução passa pela incorporação de novos padrões culturais, da aquisição de novos
valores e hábitos diante da sociedade. Defendem, assim, o caráter profundamente
pedagógico e formador que o movimento empresta aos seus integrantes. Caldart (2000)
destaca:
Observando mais atentamente a dinâmica interna deste
Movimento, é possível identificar algumas ações ou
vivências
25
que, pela força de atuação sobre as pessoas
que delas participam, podem ser compreendidas como
processos socioculturais que possuem componentes
educativos ou formadores na constituição da identidade
dos sem-terra do MST, mesmo que por vezes sejam até
negadas nas escolhas morais cotidianas que cada
trabalhador ou trabalhadora sem-terra tenha de fazer ao
longo de sua vida, seja na condição de acampado,
assentado ou militante da organização (p. 65).
Bogo (2005) e Pizetta (2005), a propósito, alertam a militância para alguns
desvios e vícios históricos (personalismo, individualismo, autoritarismo) presentes na
formação cultural e nas relações travadas pelos integrantes do movimento e da
necessidade de, ao compreendê-los, tornarem-se vigilantes e buscar formas de superá-
los por novas condutas condizentes com os princípios coletivistas do movimento.
A partir desse ponto, gostaríamos de retomar uma proposição que foi feita por
nós anteriormente (Leite, 2003; Leite e Dimenstein, 2006, 2007a), qual seja, tratar o
MST enquanto um potente regime de subjetivação. Tal entendimento pressupõe que as
ações coletivas e o processo de formação postos em curso pelo MST desembocam num
25
A tais vivências, a autora se refere como sendo a vida no acampamento, a organização do assentamento,
o pertencimento ao MST e a ocupação dos espaços escolares.
65
modo de subjetivação militante que atinge tanto os seus quadros
26
quanto sua base
social
27
.
Esse modo destaca-se por promover um processo de formação política dos
trabalhadores sem-terra, ou seja, de produção de uma conformação subjetiva militante -
o Sem Terra, figura-chave que condiciona seu projeto de vida pessoal ao de seu grupo,
portador de valores de coletividade e solidariedade (Gaiger, 1994), politicamente
formado e dedicado ao movimento, uma subjetividade outra que vai de encontro ao
modelo de indivíduo produzido pelo capitalismo.
O que os teóricos do MST entendem por investida cultural ou por busca de
superação de padrões de comportamentos nocivos à luta, é por nós compreendidos
como um modo de produção subjetiva que visa engendrar sujeitos consoantes com o seu
programa político-ideológico.
Nesses termos, adotamos uma concepção de subjetividade que a insere no
âmbito de sua produção ou de sua fabricação social e histórica, na qual diversas
instâncias postas em conexão (relações de saber/poder, institucionais, lingüísticas,
culturais, econômicas, tecnológicas), se articulam para gestar diversas formas
subjetivas, que tanto podem se exprimir numa escala pessoal, quanto coletiva (Guattari,
2000), em constante processualidade.
Tradicionalmente, o tema da subjetividade e do sujeito tem comparecido, no
campo da Psicologia e das ciências humanas em geral, atrelado a uma concepção que os
relaciona com uma noção substancializada, idealizada, universal, a-histórica. Doel
(2001) a esse respeito comenta que “convencionalmente, supõe-se que o sujeito é
idêntico a si mesmo; ele é o ponto o lugar no mapa que perdura. Ele é o centro da
identidade, estável e inabalável” (p. 86).
26
Lideranças, dirigentes, coordenadores e seus setores de trabalho: educação, gênero, produção, saúde
etc.
27
O impacto desse processo de subjetivação junto à base social do MST foi por nós investigado em
dissertação de mestrado (Leite, 2003), por meio de um estudo realizado em um acampamento do MST no
município de Pureza/RN.
66
Para o autor, essa concepção decorre em duas funções para o sujeito: a
universalização, já que o mesmo é tomado por sua abstração e por onde se inicia sua
humanização; e a individuação, na medida em que essa mesma universalização da
experiência subjetiva necessita de uma materialidade para sua expressão, um corpo e
um rosto:
O sujeito só existe em seus efeitos, na subtração de seus
efeitos; sem um corpo ou um rosto através dos quais
passar, o sujeito não pode cumprir sua função de
universalização. Daí a complementaridade e o paradoxo:
o sujeito exige a individuação a fim de expressar a
universalização (Doel, 2001, p. 87).
Podemos afirmar que o processo de individuação a que o autor se refere tem sido
produzido como objeto de preocupação de algumas correntes da ciência psicológica, a
exemplo da Psicologia Social clássica ou da Psicanálise, de modo a converter-se num
plano de interioridade do humano em oposição à sua vida social, expressa na
exterioridade de suas relações. Domènech, Tirado e Gómez (2001) apontam que essa
dicotomia entre uma realidade interior e outra exterior - onde na primeira coexistem
pensamentos, idéias e conteúdos mentais autônomos em relação à segunda, lugar da
matéria e da mecânica - tem profundas raízes tanto em concepções cristãs quanto no
pensamento de Descartes.
Desse modo, aportar uma versão crítica a esse referencial permite destacar como
as subjetividades vão se engendrando em conformações sociais e políticas específicas
possibilitando vislumbrar sua força processual e cambiante.
Nesses termos, reconhecemos na figura da militância do MST um processo de
produção subjetiva ancorado num determinado contexto histórico, social, cultural e
político, fazendo com que se apresente enquanto um ator social ligado a seu tempo, a
seu espaço, representando uma síntese dos jogos de poder que o atravessam enquanto
um modo provisório de subjetivação.
67
Tal pensamento aproxima o MST daquilo que poderíamos nomeá-lo de um
agenciamento coletivo de enunciação (Guattari & Rolnik, 1986), expressão utilizada
por Guattari para descentralizar a subjetividade de uma noção individualizada ou de um
sujeito abstrato ou mesmo de uma interioridade psicológica cercada em si mesma. Para
o autor, “o agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade individuada
nem a uma entidade social predeterminada” (Guattari & Rolnik, 1986, p. 39). Ele
apresenta a possibilidade de por em ligação diversas instâncias (de natureza
extrapessoal e extra-individual e de natureza infrapessoal e infrapsíquica) que se
arranjam para a produção das subjetividades.
De acordo com Gaulthier (2004), um agenciamento coletivo de enunciação tem
por característica ser portador de uma profusão de discursos e falas com potencial para
orientar na produção de determinadas subjetividades, possibilitando a conexão de signos
de diferentes ordens. Tais regimes de signos podem se configurar para a criação de
existências bastante territorializadas ou sobrecodificadas, operando uma formação
identitária para essa subjetividade, mas podem também operar por uma
desterritorialização ou desestabilização na conformação de determinados signos,
levando a modos subjetivos singulares, que pode se dar na forma de resistência ou de
criação de territórios existenciais heterogêneos.
A nosso ver, o que comumente é entendido na linguagem do movimento como
um processo de conscientização ou formação de sua militância, diz respeito a algo que é
mais complexo, que não se restringe a um plano exclusivo da consciência na
produção de outros modos de existência, ou para dizer com Guattari e Rolnik (1986),
trata-se de um processo que não se resume a uma egologia, mas convoca ou mobiliza
instâncias outras (sociais, políticas, inconscientes, afetivas) que promovem um
redimensionamento nos modos de agir, sentir, relacionar-se. Nesse sentido, a profusão
de elementos de enunciação que atravessam o MST, como a denominada matriz
68
religiosa e sua simbologia, a sua origem camponesa e sua oposição ao neoliberalismo
complexifica seu modo de atuação junto aos seus integrantes.
Ademais, a própria expansão da luta do MST para além do argumento-terra
constrói relações mais complexas internas ao movimento, bem como dinamiza e torna
mais heterogêneos seus integrantes. Essa expansão da luta por terra por um projeto de
transformação social mais amplo acaba acessando diversos indivíduos ou grupos
portadores de uma dimensão subjetiva também de resistência ou contestação que vêem
no MST um intercessor capaz de acolhê-los.
A esse respeito, Caldart (2000) argumenta:
(...) Quanto mais o MST avança em sua trajetória de
organização social, mais é possível perceber como a
entrada de pessoas no Movimento não pode ser
compreendida apenas pelo motivo da busca de um pedaço
de terra. As pessoas, em especialmente as mais jovens,
estão em busca de um sentido para sua vida, um espaço
social que lhe tire a angústia da desorientação e da falta de
pressentimentos de futuro. Talvez seja por isso que
também outras pessoas que não os trabalhadores e
trabalhadoras sem-terra busquem fazer parte do MST (p.
130).
Desse modo, um aspecto digno de nota na busca de efetivação do modelo de
uma subjetivação Sem Terra obriga-nos a indagar como esse modelo ou essas
proposições coletivistas atravessam os corpos (Rolnik, 2006) dos seus integrantes ou
que aspectos de suas vidas são atingidos e afetados com tais vivências. Depreende-se,
aqui, uma postura que nos leva a um caminho próprio de um cartógrafo, qual seja, ao
identificar as estratégias de subjetivação empreendidas pelo MST, ir perguntando, ao
mesmo tempo, pelos afetos e intensidades que são produzidos nessa trajetória de
formação sempre em movimento.
Podemos a partir daqui, resgatar um pensamento por nós apresentado na parte
introdutória deste trabalho: compreender o MST como um campo que atua em dois
69
regimes: extensivo e intensivo. Explicitando melhor: entendemos que, ao operar pelos
discursos e práticas que visualizam um personagem embebido na identidade do Sem
Terra, os referidos teóricos do MST privilegiam uma ligação com um regime extensivo,
molar, que dão destaque para os momentos de pausa das forças que pululam no
próprio movimento (forças essas advindas de sua heterogeneidade), pausas que se
materializam na criação de territórios delimitados, identificados emformas(militante,
Sem Terra, dirigente), segmentos (Setores de educação, de gênero, de saúde,
formação etc.), de séries causais
28
(acampados, assentados), designando lugares,
dizeres e fazeres para cada identidade forjada.
Neves (2004) argumenta que essas pausas identitárias podem ter um objetivo
programático para certas lutas sociais, no entanto adverte para o fato de que:
Estas pausas, que constituímos ao longo de nossa
existência, podem ser capturadas em armadilhas que,
afastando-nos dos movimentos de variação contínua da
vida e do socius levam-nos a lidar com eles com base em
uma mega programação disciplinada e convergente de
interferências a seres aplicadas “sobre”; por outro lado,
essas pausas também podem funcionar para novas
proposições e outros modos de existência, caso em que
podemos pensá-las como pausas tensas. A diferença entre
as pausas disciplinadoras e as pausas tensas é que a
primeira prende o movimento em uma configuração ou
programa arborescente, fazendo saltar um transcendente
(programa partidário, manuais de auto-ajuda, bíblias etc.),
enquanto a segunda está aberta e porosa às potências de
virtualização que estes movimentos portam (p. 07).
Tanto Caldart (2000) quanto Bogo (2005, 2003) descrevem um processo em que
a diversidade de formas de inserção no MST vai se configurando num sujeito unificado,
portador de um novo regime identitário, forjado num processo de tomada de consciência
em que vai substituindo paulatinamente seus modos de subjetivação anteriores pela
subjetivação nascente de Sem Terra. Tal subjetivação nascente encontra, pois,
28
Os elementos forma, segmento e série causal são apontados por Neves (2004) como modos de
atualização de um acontecimento de natureza intensiva.
70
ancoragem nessa matriz modelizadora, programática e laminadora, inscrevendo o MST
enquanto um regime de subjetivação que opera de modo extensivo.
Assim sendo, podemos concordar com críticas dirigidas ao MST em alguns
modos de condução de sua luta. Martins (2000), por exemplo, aponta para uma
ideologização e uma partidarização que o movimento sofreu, na medida em que
imprimiu um formato de luta que, de movimento social se converteu numa organização
política, com quadros definidos, estrutura hierarquizada, muito mais próxima dos
aparelhos partidários, criando espécies de funcionários da reforma agrária.
Percebemos como esse aspecto compromete, portanto, uma valorização dos
diversos modos de expressão que possam se integrar ao MST e nele ganhar
legitimidade, a menos que tais expressões sejam redirecionadas para uma captura
institucional.
Um dos aspectos que geralmente geram choque entre integrantes e dirigentes do
MST diz respeito ao âmbito da organização da produção no espaço do assentamento.
Como o movimento opera por uma matriz coletivista, acaba por insistir num modelo de
produção baseado em princípios cooperativistas que, muitas vezes, não corresponde ao
ideário do agricultor familiar. Em uma visita feita com um militante do MST a um
assentamento no município de João Câmara, no Rio Grande do Norte, ele lamentava
que os assentados não tivessem aderido ao projeto do MST para aquela área, pois dela
queria fazer um assentamento modelo das proposições do movimento, especialmente no
campo da produção.
Dentre as matrizes orientadoras dos princípios organizativos do MST,
destacamos os denominados autores clássicos do pensamento materialista histórico e
dialético que, segundo Bogo (2005c), tiveram papel preponderante para a organização
das classes trabalhadoras, bem como dotaram os partidos políticos de natureza
revolucionária. Pensadores como Karl Marx, Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo e
71
Vladimir Lênin são citados pelo autor como expoentes que criaram bases teóricas e
metodológicas de composição de uma classe trabalhadora que se fazia representada por
um partido político revolucionário, organizado e estruturado em instâncias, comitês,
assembléias, com profundas divisões de tarefas. Cita, por exemplo, Lênin, uma das
principais fontes de orientação do modelo de organização política do MST e afirma:
Lênin é, de certa forma, quem representa o marco divisório
entre a teoria política da organização e sua vinculação com
a prática. Ele próprio desenvolveu a teoria do partido
político da classe trabalhadora, dando-lhes a definição de
‘forma superior de organização’. É através dele que a classe
trabalhadora tem o poder de autodeterminar o seu destino;
para isso, precisa formular um programa, estratégias e
táticas para chegar ao objetivo final (Bogo, 2005c, p. 16).
Vemos operar, aqui, um pensamento que trata de processos de natureza
macropolítica, portanto de inscrição de um regime extensivo em que estruturas molares
são convocadas para reduzir a complexidade do socius: classe social e luta de classes,
partido político, organizações político-partidárias, de programas políticos com fins
preconcebidos.
Tais empreendimentos pedem, de acordo com Gaião (2001), uma concepção de
sujeito histórico total, portador de ação consciente e revolucionária, que luta por uma
sociedade de iguais, sem opressores e oprimidos, conquistas essas alcançadas pela
organização política que guia as massas para a direção necessária, insinuando uma ação
militante pautada especialmente pelo nível da racionalidade e da consciência, concepção
essa central no pensamento moderno ocidental de supervalorização da razão, de um
discurso da consciência como ferramenta imprescindível de inteligibilidade do real.
Com isso, jargões muitas vezes são emitidos com vistas à formação de sujeitos
conscientes com vistas a alcançar tal perfil militante. Lembro-me de uma visita a um
acampamento em que me impressionavam as duras condições a que estavam
submetidos o conjunto dos acampados (enorme calor debaixo das lonas, escassez de
72
alimentos, estrutura física precária, semblantes de profundo desânimo em boa parte das
pessoas) e, logo depois, um pequeno grupo de militantes chegou ao acampamento para
uma rápida reunião. Um deles passou a proferir um discurso que, para aquele grupo de
pessoas, dada suas condições de existência e sua recém inserção no movimento,
dificilmente teria alguma ressonância. Termos como burguesia, luta de classes,
revolução socialista pareciam palavras tão sem sentido para os acampados quanto o
foram para mim.
Desse modo, indagamos se a insistência numa ordem macroestrutural consegue
captar a complexidade e a heterogeneidade na qual está imersa o MST, bem como se
consegue contemplar as variações e as forças cambiantes que para ele são arrastadas em
função dos regimes intensivos que a ele se conectam.
Apostamos, pois, que para além desse aspecto extensivo, molar, que se fazer
necessário destacar as interferências de natureza intensiva (Neves, 2004) da qual o MST
é portador. A nosso ver, são essas possibilidades de incorporação de uma variabilidade
de formas de luta que são atraídas pelo MST (conforme descritas anteriormente) que
possibilitaram sua atuação ampliada e conectada com questões de ordem planetária e
que permitiram se produzir gestos de concordância com sua luta, de ações de apoio aos
seus integrantes, que fazem do MST um acontecimento inaugurador de contágios, que
atrai demandas variadas e permite, portanto:
Fazer o acontecimento ressoar sua potência disruptora,
cintilando um conjunto indeterminado de perspectivas que
não o esgotam, mas se dispersam e nos lançam em uma
miríade de problemas, de sentidos, de transrelações
desestabilizadoras que agitam partes do estado de coisas,
arrastando-o para novos acontecimentos e composições
(Neves, 2004, p. 07).
Obviamente que tratar o MST pelo atravessamento de regimes macro e
micropolítico convoca-nos a superar uma concepção de sujeito político e militante
73
totalizado por determinismos ou categorias de pertencimento a classe social, ancorado
em projetos utópicos de longa duração no tempo da história, evoluindo de uma
subjetivação alienada a uma subjetivação revolucionária, como que acumulando ganhos
históricos e uma nova consciência como o querem seus teóricos.
Aqui, a dimensão processual e produtiva das subjetividades faz pleno sentido e
ganha força teórica na medida em que comparece para exatamente apontar como o MST
engendra seus discursos e práticas sociais com vistas a atingir seus objetivos.
Se se tratam de sujeitos históricos não o são por razão de que cumprem uma
longa trajetória revolucionária pela aquisição de uma síntese cultural” ou pela
libertação de “antigos vícios” que os impregnavam e os impossibilitavam de uma
evolução, como defendem Caldart (2000) e Bogo (2005), mas sua historicidade reside
no fato que são subjetivações circunscritas a um regime de verdades
29
que infligem certa
identidade a um conjunto heterogêneo de desejos e devires.
A nosso ver, o caráter integrador do MST e sua potência de ‘acumular’
conquistas sociais (assentamentos, projetos de desenvolvimento em diversas áreas como
educação, saúde, produção, rompimento com certas formas de assujeitamento, seja pelo
trabalho, pelas relações de gênero, pelo campo da sexualidade, pela vivência dos afetos)
não estão unicamente na construção de sua unidade, mas por mobilizar elementos de
natureza intensiva em seus integrantes e demais grupos sociais que o apóiam,
especialmente num contexto em que as lutas sociais parecem ter sofrido uma espécie de
desencantamento (Neves, 2004).
A força política do MST está, em grande medida, pelo que lhe escapa enquanto
ordem identitária, pelo que nele se produz pela via das singularidades.
29
Foucault (2007) define o regime de verdades como um conjunto de discursos que uma sociedade adota,
tomando-os por legítimos e que servem tanto para explicar a realidade, como para justificar ações,
apresentam uma dimensão moral, em termos de destacar o que é certo e errado, desejável ou não para
cada corpo social. O autor destaca alguns modos históricos de circulação de um regime de verdades:
através das instituições científicas e econômicas, bem como é alvo de debates no campo político e social.
É nesse campo que se dão, por exemplo, os embates entre movimentos sociais e Estado.
74
É nesse sentido que o contexto da contemporaneidade ou pós-modernidade tem
sido desafiador para um movimento que opera com matrizes modernas. Segundo Gaião
(2001), essa modalidade de sujeito empreendido pelo MST entra em dissonância com as
formas subjetivas pós-modernas, não identitárias, fragmentadas, não estruturadas em
componentes de classe, gênero ou religião. Nesse caso, torna-se problemático
reivindicar identidades ou modelos estruturantes em tempos que pontos de ancoragem
essencialistas desmancham-se cotidianamente.
Perlbart (2004), ao destacar o pensamento de autores como Jameson, Guattari e
Foucault acerca da contemporaneidade, resume a pós-modernidade com as seguintes
características:
Descontextualização dos objetos, privilégio da superfície,
império do simulacro, fim das hermenêuticas de
profundidade, sejam da essência e da aparência, do latente
e manifesto, e com isso, da própria idéia de repressão,
sejam dos pares autenticidade e inautenticidade, alienação
e desalienação categorias que orientaram nossa cultura
marxista, freudiana, existencialista e suas diversas
hibridações. Ao mesmo tempo, fim do sujeito centrado,
ou do ego burguês, bem como das psicopatologias desse
ego, esmaecimento dos afetos, desbotamento da grande
temática do tempo, da memória, e do passado, irrupção de
um eterno presente de fascinação com seu efeito
alucinógeno, desistoricização generalizada etc. (p. 31).
O autor sintetiza um conjunto de balizadores que foram e, ainda são, em escala
menor, cruciais na condução de nossas existências, tanto em matéria de vida cotidiana,
quanto em termos de compreensão científica das subjetividades ocidentais. Desse modo,
resta pouco para uma concepção a priori de sujeito, na medida em que essa categoria
que se expressava eminentemente por meio, ou de uma classe social, ou de uma
religião, de um inconsciente, de um ego, ou de uma pertença identitária.
No capítulo seguinte, veremos como a concepção moderna de sujeito visualizada
pelo MST por meio de seu modelo de subjetivação, imprime um conjunto de práticas
75
disciplinares para os seus militantes e como estes, afetados pelo regime disciplinar do
MST, fazem funcionar suas singularidades, sua força intensiva.
76
4. A MILITÂNCIA EM MOVIMENTO: ENTRE A
IDENTIDADE E A SINGULARIDADE
“Sou Sem Terra, sou Sem Terra eu sei, essa
identidade é a mais bonita que ganhei”
30
A partir do cenário anteriormente colocado, quer dizer, nesse embate que se
estabelecem, de um lado, formas vigentes de assujeitamento e, de outro, resistências que
podemos situar uma importante forma de subjetivação que consiga dar materialidade a
uma luta que supere os valores individualistas e competitivos da sociedade capitalista
em prol de um novo projeto político para as sociedades: trata-se dos militantes políticos
como atores que aportam desejos, sonhos e projetos a partir de sua inserção nos
movimentos sociais.
Nessa perspectiva, Prado e Lara Júnior (2003) compreendem a militância a partir
do envolvimento de inúmeras pessoas em causas que passam a ter interesses comuns,
levando-as a uma disponibilidade de energia e de tempo e gerando uma participação
contínua em movimentos e ações coletivas com vistas a enfrentar ou denunciar as
intermitentes formas de opressão que se exercem na atualidade.
Numa visão tradicional, o militante corresponde a um sujeito de princípios
coletivistas, um “revolucionário burocrata, abnegado, totalmente dedicado à causa,
disciplinado, que secundariza totalmente a vida pessoal” (Manfroi, 1997, p. 266). Ou
ainda um indivíduo que, ancorado no mito da revolução, faz desta uma imaculada
verdade que os operários e os eleitos do partido ou ‘grupelhos’ podem reconhecer:
basta seguirem à risca o programa” (Rolnik, 1989, p.37).
Essa concepção cristalizada da militância é ainda bastante presente em nosso
imaginário e, inclusive no seio de movimentos sociais, partidos políticos de esquerda,
30
Palavra de ordem proferida pelos trabalhadores rurais Sem Terra em suas mobilizações.
77
movimentos sindicais etc. Vinadé e Guareschi (2007), ao comentarem esse fenômeno,
descrevem uma imagem quase 'arquetípica' do militante:
Quando falamos em militância, muito provavelmente o
leitor formará a seguinte imagem em sua cabeça (ou algo
que não fique muito longe disso): um homem, barbudo,
jovem, sisudo, que fala de política em todos os
momentos da vida, que não relaxa, não tem vida social e
familiar, de chinelo de dedos e sem muita preocupação
com a estética (mesmo sem abrir mão de uma camiseta
com a foto de Che Guevara) (p. 69).
Essa imagem da militância corresponde a um modo de atuação no interior dos
movimentos sociais que nos reportam a uma lógica binária em que as metanarrativas
ocupam um lugar privilegiado na orientação teórica desses movimentos e seus discursos
e práticas se pautam por maniqueísmos: ou se é de uma classe social ou de outra, ou se é
contra ou a favor, ou se é ‘alienado’ ou ‘consciente’, ou se é de esquerda ou de direita.
Tal modelo tece, ainda, um sentimento que por muito tempo se fez presente e
ainda aparece no âmbito das esquerdas, qual seja, uma espécie de ressentimento e de
amargura como forma de mover a luta, de fazer do militante um incessante perscrutador
da justiça social através de uma desconfiança contínua dos afetos e desenvolvendo uma
racionalização profunda dos mecanismos de luta e dos encontros com os demais
militantes do movimento ou do partido.
Talvez jargões utilizados por militantes políticos como companheiro ou
camarada’, mesmo que tendo uma finalidade de combater os personalismos que
rondam os movimentos, podem inaugurar também relações entre seus membros bastante
racionalizadas, na medida em que opera uma espécie de homogeneização, igualando
todos aqueles que defendem princípios igualitários e coletivistas, movidos por um ideal
racional de democracia típico das sociedades modernas (Silva, 2004).
Questionamos se tais referenciais que norteiam a imagem tradicional da
militância encontram acolhimento na cena das lutas contemporâneas, uma vez que a
diversidade de formas de embate, a infinidade de reivindicações que extrapolam a
78
variável ‘classe social’, bem como o afrouxamento de um série de relações sociais
(família, trabalho, partido político, pertença religiosa) já não permitem nos guiar
unicamente por uma referência identitária que nos cola a determinadas estereotipias.
Já vimos como o modo de operação das forças dominantes pautadas na premissa
da sociedade de controle não se mais exclusivamente em torno do que Hardt (2000)
nomeia de um “conflito central, mas em uma rede flexível de microconflitualidades” (p.
371), suscitando formas de dominação variadas, híbridas e cambiantes, portanto um
movimento em que o capitalismo contemporâneo cria e recria de modo incessante as
formas de integração das infindáveis formas de resistência ao seu modelo biopolítico de
gestão da vida.
Assim sendo, concordamos com Vinadé e Guareschi (2007) para quem se torna
impossível operar com uma concepção de militância que a tome como uma “unidade
fixa” (p. 69). Se compreendermos que na atualidade os vetores de subjetivação agem de
forma múltipla para os conjuntos sociais, não como pensar que o fenômeno da
militância não possa ser incluído nessa trama.
Podemos citar dois exemplos de como a presença marcante de uma instância
atual de subjetivação como a mídia e seu atualíssimo arsenal tecnológico podem
reconfigurar as ações dos movimentos sociais. O primeiro trata-se do movimento
Zapatista e do lugar de destaque que os meios de comunicação tiveram neste
movimento, conforme destaca Castells (2006).
A luta dos índios e camponeses mexicanos, especialmente da região de Chiapas,
contra as duras condições de existência geradas pelas sucessivas políticas de
desenvolvimento agrícola que não os contemplavam, bem como as medidas
governamentais de instauração do NAFTA nos anos 1990, agravou ainda mais o cenário
de exploração e descaso com a população agrícola, especialmente daquela região,
culminando no Movimento Civil Zapatista.
79
Grande parte do sucesso do movimento deu-se, conforme Castells (2006), pelo
uso que se fez de recursos informacionais, especialmente a internet, permitindo zonas de
comunicação entre os Zapatistas e uma série de movimentos sociais de várias partes do
país e do planeta que não só acompanharam e manifestaram apoio à luta que se
desenrolava no México, como também a legitimaram, tornando-a pública e com isso,
refreando o governo mexicano na adoção de ações repressoras contra o movimento.
Tal episódio criou uma onda de simpatia internacional pelos Zapatistas,
valorizando a imagem de sua militância e, com isso, atraindo uma rede de solidariedade
ao movimento. A máquina midiática ocupou, nesse contexto, um lugar bem diferente do
que comumente costuma servir: as estratégias de subjetivação da sociedade de controle.
Por sua vez, o MST tem uma imagem bastante paradoxal junto aos meios de
comunicação, especialmente, a televisão e meios impressos, como é o caso da Revista
Veja
31
. Em ambos meios informacionais, o movimento é alvo de inúmeras críticas,
ataques, é criminalizado, contribuindo para a disseminação de uma opinião bastante
negativista em relação ao MST.
Ao dar destaque às ações de desobediência civil, as manchetes veiculadas criam
uma espécie de antipatia nacional pelo movimento, desqualificando-o
32
ou, do contrário,
romanceando-o como no caso de uma novela veiculada no ano de 1996 pela Rede
Globo de Televisão, intitulada “O Rei do Gado”.
Ao escolher determinadas formas e imagens de divulgação do MST e sua luta, a
mídia acaba deslegitimando uma série de ações do movimento que apresentam
conquistas significativas para seus integrantes, como o acesso a terra, educação, saúde,
31
Revista semanal de circulação nacional no Brasil.
32
Em conversa com uma professora colega de trabalho, a mesma narrou-me um fato em que discutia em
sala de aula o tema dos movimentos sociais e, ao dar o exemplo do MST, uma jovem aluna que cursava o
primeiro ano do curso de Psicologia comentou que se tivesse em mãos uma metralhadora no momento em
que visse uma mobilização do MST, mataria a todos. A meu ver, pensamentos e desejos dessa natureza se
produzem na medida em que os indivíduos são atravessados por agentes de subjetivação que fazem
circular idéias dominantes sobre alguns movimentos sociais, especialmente o MST, pela via de sua
desqualificação.
80
políticas de comercialização da produção, moradia etc., bem como ignora o
reconhecimento que o movimento tem por parte de organismos internacionais em
função de sua luta e de seus resultados, especialmente no campo da educação de jovens
e adultos
33
.
O que identificamos, portanto é que, embora o contexto da contemporaneidade
faça explodir por todos os lados as referências e os territórios fixos, o MST, por sua vez,
pauta a formação de seu quadro militante nessa perspectiva que carrega as grandes
narrativas, os grandes blocos de identidade, o engajamento e o reconhecimento de
pertença a uma classe social, a um padrão cultural, a despeito de identificarmos, por
outro lado, um conjunto de provocações feitas ao próprio movimento pela sua base e
por sua própria militância a essa tentativa de modelização dos seus integrantes (um eixo
crescente que identificamos ao longo da investigação e que será detalhado a seguir trata
da presença de minorias sexuais - gays e travestis no MST, fato que tem forçado o
movimento a produzir uma discussão e um posicionamento sobre o tema).
A figura do militante Sem Terra insere-se no que Gaiger (1994) nomeia de
práxis coletiva do MST. Tal práxis guia-se por princípios organizativos de contestação
do modelo hegemônico de organização da sociedade capitalista, assim como aborda um
tipo de militância que tece críticas a esse modelo, adotando práticas de “solidariedade,
fidelidade e firmeza na luta” (Gaiger, 1994, p. 185), incorporando suas aspirações
pessoais ao projeto maior demandado por seu grupo social.
No âmbito do MST, essa forma de luta carrega alguns elementos bastante
circunscritos que dizem respeito ao seu projeto político de transformação social que,
segundo Gohn (2000) está atravessado pelas aspirações clássicas da esquerda e que tem,
portanto, sua militância envolta de um perfil que compreende a sociedade e os
33
Em 1999, o MST foi premiado pelo seu trabalho de Educação de Jovens e Adultos no campo pela
agência ITAÚ-UNICEF Educação e Participação. No ano de 1991, o MST, juntamente com a CPT,
recebeu o Prêmio Nobel Alternativo, concedido pela Fundação The Livelihood Awards, no parlamento
sueco, além de diversas medalhas e homenagens concedidas por entidades nacionais e internacionais de
luta pelos direitos humanos.
81
indivíduos em termos estruturais, visando uma mudança radical no modo de
organização da sociedade como um todo, tomando os sem-terra como uma classe social
que precisa avançar para um modelo coletivista de sociedade.
Tal concepção tem sido alvo de críticas de alguns pensadores, a exemplo de
Martins (2000, 2003) e de Navarro (1998), haja vista que tem gerado equívocos por
parte do MST em termos da condução da luta por reforma agrária.
Navarro (1998, p. 182), por exemplo, destaca que a “retórica radical de seus
líderes” não encontra muito eco junto à base social do movimento uma vez que não
reflete seu “imaginário político”. Aponta ainda que, no âmbito interno, o MST
estrutura-se de forma pouco democrática. Isso, talvez, em função de que algumas de
suas características como formação de quadros políticos e princípios organizativos
bastante circunscritos o aproximam mais de uma organização política do que
propriamente um movimento social.
Amado, Freitas, Ieno & Camino (apud Lacerda Júnior & Guzzo, 2006)
identificaram, na estrutura interna no MST, grupos que se subdividem em trabalhadores
da base (têm participação basicamente em ocupações), ativistas informais (que atuam na
mobilização e organização de acampamentos e assentamentos) e ativistas formais
(ligados formalmente ao MST e apresentam ligação mais forte com o movimento,
inclusive desenvolvendo suas atividades com auxílio financeiro).
Os autores apontam que essas diferenças entre os integrantes acontecem em
função não exclusivamente dos papéis desempenhados, mas por outros aspectos como:
“grau de escolaridade, idade, experiências no campo e na cidade, além da existência de
diferentes representações e posturas político-ideológicas sobre as atividades do MST”
(Lacerda Júnior & Guzzo).
Paiva (2003), a partir de uma investigação sobre a formação política de
militantes do MST no estado do Rio Grande do Norte, identificou uma distinção entre
82
os integrantes do movimento conforme sua forma de inserção. Assim, denomina os
militantes como:
Membros das coordenações dos setores, das direções
estaduais e regionais. Dedica grande parte do seu tempo
às demandas do MST, encaminhando as decisões
coletivas, participam dos mais variados cursos e
encontros, dependendo do papel que assumem na
estrutura do movimento e de suas habilidades e
capacidades (p. 81).
Um tipo de militante encontrado pela autora trata-se da figura do dirigente, que:
É também um militante, cuja atribuição é diferenciada,
que participam das instâncias de direção e decisão e
compõe os coletivos nacionais e regionais. A dedicação
ao movimento é total. A formação política é realizada de
forma intensiva, através de cursos e encontros em que são
discutidos os princípios da organização, as normas e a
filosofia do movimento (p. 82).
Os militantes são, de acordo com Paiva (2003), os integrantes mais atingidos
pelo trabalho de formação política uma vez que, através de tal formação, irão
desempenhar as funções de organizar e multiplicar os princípios do MST à sua base
social.
Nesse empreendimento, o movimento vai se perfilando em torno de algumas
especificidades consoantes com seus propósitos. Assim podemos, a partir de Castells
(2006), vislumbrar no MST um modo de construção identitária em que inicialmente
voltada para uma identidade de resistência, nos termos de operar uma profunda
resistência ao modelo de dominação exposto pelo capital internacional, constrói
concomitantemente uma identidade de projeto, entendida em termos de propor uma
identidade outra, pautada em princípios coletivistas, combativos aos vícios históricos
gerados pelo capitalismo e o individualismo, portadora de uma disciplina marcante que
faça frente ao cotidiano de luta, garantindo sua unidade (Bogo, 2005b).
83
Assim, podemos insinuar que um processo de subjetivação em torno de sua
militância compõe um conjunto de dispositivos, estratégias que nos seus territórios e
espaços de atuação operam práticas e discursos de valorização dessa unidade. Relações
de poder se estabelecem no sentido de fazer exercer modalidades subjetivas consoantes
com seu projeto político (Leite, 2003).
Partindo da perspectiva de poder e das formas de seu exercício a partir de
Foucault, Fonseca (2003) destaca que o mesmo tem por objetivo a gestação de uma
determinada modalidade subjetiva e que o sujeito, nesses termos, é talhado em meio a
“estratégias, manobras, táticas e técnicas postas em funcionamento na medida em que se
exerce sobre os menores espaços da vida individual e social” (p. 33), daí ser tratado
como um poder que não reprime, mas faz produzir.
Compreendemos que o aspecto produtivo do poder e sua relação com a gestação
de dada ordem subjetiva são elementos visíveis na composição do MST: a identidade
que constrói para si enquanto movimento vai sendo diluída e pulverizada em todo o seu
corpo de integrantes, desde seus quadros até a base social, seja através das inúmeras
ações coletivas realizadas pelo movimento, passando pelos cursos de formação, pelos
estudos, pelos congressos, encontros locais, regionais e nacionais. É nesses contextos
que os elementos simbólicos fazem sua aparição de maneira marcante.
A esse respeito, Caldart (2000) destaca:
Ao mesmo tempo que mantêm o jeito dos pobres do
campo, os sem-terra do MST vão construindo um jeito
diferente, que se transforma, se pensa e se recompõe a
cada passo da trajetória que lhes afirma como
trabalhadores da terra e como sujeitos da luta de classes.
Os sem-terra do boné vermelho carregam em si os sem-
terra do chapéu de palha, embora não sejam os
mesmos. Da mesma forma que os primeiros sem-terra
encarnaram em si os milhares de trabalhadores sem terra
(sic) que justificaram sua constituição como lutadores
sociais e que transformaram aquilo que era uma condição,
sou sem terra (sic), em um nome próprio, uma identidade,
sou Sem Terra, sim senhor!
84
A autora nos apresenta um ponto que marca uma espécie de passagem do
trabalhador sem-terra ao integrante do movimento Sem Terra, dando conta de um
processo em que efeitos de poder atuam para a positivação de tal ordem identitária,
levando inclusive os indivíduos nela se reconhecer.
O que, no entanto, a autora não problematiza ou deixa à margem é que esse
processo que culmina na figura do Sem Terra não ocorre do modo tão pacífico como
seu argumento pretende, mas desvela a problemática das relações de poder, por meio da
criação de campos de tensão, negativas, dúvidas, inquietações em torno da incorporação
ou não dessa unidade/identidade.
Duas situações ilustram essa tensão entre a busca de implementação de uma
identidade Sem Terra e o modo como ela é apreendida: durante a pesquisa do mestrado,
em conversa com um trabalhador acampado, ele fez questão de destacar que se
considerava sem terra, mas não como os sem terra da televisão, que guardavam como
característica um enfrentamento muito marcante com a polícia, com as ações de
desobediência civil.
Outro trabalhador com quem conversava durante uma ação de mobilização e de
instalação de um acampamento na cidade de Natal, em frente à sede do INCRA/RN
(abril de 2006), dizia-me estar impressionado com a agilidade “dos Sem Terra” que, em
pouco tempo, interditaram a rua, levantaram uma barraca e improvisaram um fogão à
lenha para preparar o jantar do grupo acampado. Em seguida, ao observar um prédio ao
lado que estava em construção, indagou-se se poderiam estar precisando de alguém para
trabalhar naquela obra que ele tinha experiência com construção. A impressão que
seu comentário me dava era a de certo distanciamento de si com o conjunto daquelas
ações do movimento, embora estive fazendo parte dele.
Esse raciocínio talvez possa ainda ajudar a compreender o sentimento de
estranhamento vivido por mim durante participação no V Congresso Nacional do MST,
85
em junho de 2007, em Brasília, quando acompanhava uma marcha realizada por cerca
de quinze mil trabalhadores, do local do evento (Complexo Esportivo Nelson Chaves)
até a Praça dos Três Poderes
34
:
Imagem 03: Marcha do MST – V Congresso Nacional do MST (Brasília, 2007)
Fiz parte do percurso junto com a delegação do estado do Rio Grande do Norte,
vestido com uma camisa branca sem inscrição alguma (forma de me proteger do sol) e,
ao desligar-me do grupo para fazer algumas fotografias da marcha e de outras
delegações, encontrei-me com um militante de Pernambuco, com quem tenho uma
relação de amizade e me entregou uma camisa do movimento (vermelha, com o desenho
e o tema do congresso) para que eu a usasse (em sua quase totalidade, os trabalhadores
estavam com camisa, boné e bandeiras vermelhas símbolos fortes do MST). Vesti-a,
34
Identifiquei que esse estranhamento foi e é também vivido por integrantes do movimento,
especialmente no seu momento de inserção no MST ou em situações em que a necessidade ou o desejo de
vivenciar experiências de outra ordem pedem uma flexibilização identitária em relação ao movimento.
Essa questão será tratada adiante.
86
mas fui tomado por certo incômodo, pois o uso da camisa implicaria, a meu ver, mais
do que reconhecer a minha simpatia ao movimento, uma ligação identitária, que
extrapolava para além de mim e ressoava nos transeuntes, pedestres, policiais, e demais
pessoas que acompanhavam a passagem da marcha. Eu seria, a partir de então,
identificado como um Sem Terra.
Imagem 04: Marcha do MST – V Congresso Nacional do MST (Brasília, 2007)
E, embora a camisa não me fizesse um Sem Terra, mas foi interessante ver e
sentir o olhar que as pessoas dirigiam a mim. Elas me olhavam atravessadas pelas
imagens que têm do movimento e isso era claro na maneira como me observavam (ora
com acenos de apoio, ora com desdém).
Ao final da marcha, voltando sozinho para o hotel onde estava hospedado, um
rapaz que vinha em minha direção e falando ao celular, disse: “estou atrasado porque os
vagabundos e desocupados dos sem-terra estão atrapalhando o trânsito”. Chegando ao
hotel, um dos funcionários veio em minha direção com expressão estranha até que me
reconheceu e cumprimentou-me.
87
Vivi, numa curta experiência, aquilo que desde um tempo venho colocando
como questão para mim mesmo e para os membros do MST: como esse movimento de
conformação identitária vai se dando nos indivíduos que nele integram e em que medida
tais imagens e mediadores simbólicos são incorporados?
O meu incômodo aqui pode ser tomado por um conjunto de afetos que operaram
diante daquela situação: discordância em relação às identidades-clichês, tanto em
relação àquelas de como a sociedade percebe o MST, quanto em relação à própria idéia
que o MST faz dessa identidade por seu caráter racionalizador, molar. Ademais, vivi
um medo de sofrer os efeitos que se dão com o tratamento a tais identidades: medo da
polícia e do confronto com a mesma, caso alguma situação de tensão surgisse durante o
percurso da marcha.
Inclusive esse aspecto desde minha inserção no MST como pesquisador ou como
professor me incomodava, pois a maneira como percebia os militantes, como me sentia
por eles tratados estava muito ligada a essa imagem molar, a esse plano identitário-
clichê, o que me causava certo mal-estar.
Posteriormente, ao vislumbrar outras possibilidades de lidar com aquela
realidade, bem como pelas afetações que as sucessivas aproximações com os militantes
me causavam, fui paulatinamente dessubjetivando o meu olhar identitário para com os
mesmos, acontecimento que me possibilitou acessar um campo de intensidades, de
singularidades presentes na vida e na luta de integrantes do MST.
Acredito que tenha sido, nesse acontecimento, que o interesse em tratar do tema
da amizade teve início, ou seja, no momento mesmo do nascimento de relações de
amizade com integrantes do movimento. Foi possível, semelhantemente ao que
vivenciei nesse acontecimento, identificar tal estranhamento em integrantes do
movimento quando tratamos, por meio das entrevistas, de sua trajetória de inserção do
MST.
88
A construção de uma identidade bastante circunscrita encontra ressonância nesse
ator social (o militante Sem Terra), fabricado num intenso e persistente trabalho de
formação, talvez uma das mais destacadas formas de intervenção do MST junto aos
seus participantes. Formação que se orienta pelo uso de categorias macroeconômicas
nas análises de conjuntura que os militantes aprendem a efetuar, na preocupação de
trabalhar com uma ‘conscientização’ dos trabalhadores e trabalhadoras e num destaque
para a organização social nos acampamentos e assentamentos por meio de “(...) práticas,
estratégias prescritivas, subjetivantes em função de uma proposta de vida para seus
moradores” (Silva, 2004, p. 276).
Dessa forma, a identidade se aproxima de uma concepção associada a um sujeito
histórico e genérico. Woodward (2004) comenta que o surgimento dos chamados novos
movimentos sociais, especialmente na década de 1960, promoveram outra forma de
entendimento da identidade, que passou a contemplar elementos de ordem cultural
referentes a grupos que empreendem lutas específicas, a exemplo do movimento
feminista, negro e de liberação sexual, problematizando, com isso, a classe social como
categoria marcante de tratamento do tema.
Segundo a autora, esse deslocamento é conhecido por meio do uso da expressão
“política de identidade” (Woodward, 2004) e que a mesma “concentra-se em afirmar a
identidade cultural de pessoas que pertencem a um determinado grupo oprimido ou
marginalizado. Essa identidade torna-se, assim, um importante fator de mobilização
política” (p. 34).
Contudo, a autora adverte para os riscos que a reivindicação de identidades
culturais pode gerar, especialmente em produzir essencialismos e, com isso, apagar a
dimensão histórica de produção dessas mesmas identidades.
Refletindo esse aspecto, Guattari (Guattari e Rolnik, 1986) reconhece que nos
novos movimentos sociais uma tentativa de produção de modos de subjetividade
89
“originais e singulares” ou “processos de singularização subjetiva” (p. 45). Isso quer
dizer que esses grupos estão na posição de redimensionar as relações de força social, no
sentido de promover novos arranjos e novas formas de existir que escapem a
modelizações provenientes da máquina capitalista.
O autor também alerta para os perigos que a idéia de identidade pode conduzir.
Assim, desconfia dos traços de reificação subjetiva e aponta a Identidade como um
conceito referencial, que circunscreve modos de ser, sentir e agir a um quadro de
referência identificável, como que congelando esses modos, colando o indivíduo a uma
etiqueta.
Em oposição, destaca a singularidade como um conceito existencial, que faz
alusão à maneira ímpar como nos relacionamos com os variados acontecimentos no
campo da economia, política, artes, literatura etc.
O autor opõe aos traços identitários reivindicados por muitos movimentos
sociais os processos transversais, que assinalam as reivindicações desses grupos para
além de suas demandas setoriais, gerando não só uma conexão com o conjunto maior da
sociedade, como também possibilitando processos de singularização. Faz uso da idéia
de ‘devir’ como a possibilidade que esses processos têm de manterem-se singulares ou
não.
Aqui, retomamos as observações de Guattari (Guattari e Rolnik, 1986) para
quem os movimentos sociais poderiam, atuando por meio dos devires, promover o
agenciamento dos mesmos, buscar sua conexão, um apoio mútuo entre tais devires que
estariam em condições de realizar mutações das subjetividades para além das
segregações identitárias, que se encontram legitimadas pelo modelo de funcionamento
das sociedades capitalistas.
Assim, valorizamos a idéia de que o campo social e suas expressões diversas
(coletivos, indivíduos, grupos, instituições) são tomados, segundo Deleuze e Guattari
90
(1996), ao mesmo tempo, por uma segmentaridade molar e outra molecular que mantém
entre si distinções em função da natureza diversa de suas multiplicidades e correlações,
mas inseparáveis, pois uma atravessa a outra. Tais autores resumem: “Em suma, tudo é
político, mas toda política é, ao mesmo tempo, macropolítica e micropolítica (Deleuze
e Guattari, 1996, p. 90). Há, portanto, entre esses planos uma relação de co-
extensividade, própria dos agenciamentos maquínicos.
Orientados por esse pensamento, a nossa proposição é de que a materialização
do universo sociocultural empreendido pelo MST via atuação da figura do militante,
não se de modo linear, mas encontra ressonâncias várias no conjunto dos indivíduos
a ele relacionados.
O cotidiano dos espaços e territórios conquistados pelo MST vai se perfilando
em meio a uma multiplicidade de conexões que permitem uma re-apropriação, mesmo
que precária, desse universo (Leite e Dimenstein, 2006). Assim sendo, o ambiente
sociocultural do MST acaba encontrando focos de tensão, reorientando as ações dos
seus participantes e problematizando esse perfil de sujeito militante. Conforme Rolnik
(2000):
Todo ambiente sociocultural é feito de um conjunto
dinâmico de universos. Tais universos afetam as
subjetividades, traduzindo-se em sensações que
mobilizam um investimento de desejo em diferentes graus
de intensidade. Relações se estabelecem entre as várias
sensações que vibram na subjetividade a cada momento,
formando constelações de forças cambiantes. O contorno
de uma subjetividade delinea-se a partir de uma
composição singular de forças, um certo (sic) mapa de
sensações (p.64).
É no estabelecimento desse campo de forças interno ao movimento que uma
‘resistência dentro da resistência’ começa a traçar uma ‘nova marcha’: processos de
singularização (Guattari, 2000; Guattari e Rolnik, 1986).
91
Nesses termos, supomos que a condição de produção da subjetividade militante
desloca-se de um traçado hierarquizado e se articula a fatores heterogêneos que, de
forma transversal e não-hierárquicos, se arranjarão para secretar novas formas
subjetivas (Guattari e Rolnik, 1986).
Para Guattari, a articulação dessas diversas instâncias se dá no registro do social.
Este, por sua vez, não pode ser tomado como um amontoado de indivíduos que se
somam para compô-lo, mas, segundo o autor, trata-se de um “entrecruzamento de
determinações coletivas de várias espécies, não sociais, mas econômicas,
tecnológicas, de mídia, etc.” (Guattari, 2000, p. 34).
Nesses termos, abre-se aos indivíduos a possibilidade de estabelecerem uma
relação singular com as proposições do movimento, especialmente no sentido de
promoverem agenciamentos que façam conexão com seus investimentos de desejo,
contagiando o MST com a possibilidade de uma expansão reivindicatória incorporada
ao objeto-terra, como o caso de mulheres acampadas que acabam tensionando formas
tradicionais de relações de gênero (Leite, 2003), ou dos jovens que passam a estabelecer
uma conexão com a contemporaneidade de modo a aproximar meios até então tratados
de forma dicotômica como rural e urbano.
Com isso, o slogan tão caro à esquerda de “tomada de consciência de classe”
desliza para um campo de abrangência outra e o que seria uma luta específica de um
segmento social incorpora todo um modo de maquinação do social.
Nessa ótica, não soa estranho observar como em algumas das manifestações do
MST são visíveis diversas bandeiras de luta, como movimentos contra o FMI, ALCA,
movimentos gays, de mulheres, sem-teto, etc. Ademais, uma série de movimentos
imperceptíveis a um olhar macro começa a minar no dia-dia dos acampamentos,
assentamentos, salas de aula, marchas e atividades do MST (Leite e Dimenstein,
2007b). Os seus integrantes sentem-se atraídos pela potência que o mesmo tem de por
92
em movimento toda uma forma hegemônica de orquestração do campo social, político e
subjetivo. Como assinala Lins (2004):
Ao praticar a arte do aparecer/desaparecer, militantes do
MST encontram refúgio e se organizam no âmbito de
inúmeras redes labirínticas e multidimensionais
compostas por uma militância pirata no seio do próprio
movimento aspirando ao institucional e a uma certa (sic)
“ordem burguesa”, fabricando, minoritariamente o devir
é sempre minoritário um povo por vir, numa espécie de
piratagem intersticial própria das zonas tribais autônomas
(p. 12).
Desse modo, as subjetividades encontram-se possibilitadas de seguirem linhas
outras para além da segregação identitária, singularizando formas de expressão, de
experimentação, constituindo universos existenciais para além de um plano molar,
binário (Deleuze e Guattari, 1996).
Trataremos, agora, a partir do campo de pesquisa por nós produzido, os
elementos que se ligam, especialmente, ao processo de subjetivação militante e as
tensões que daí decorrem.
4.1. A fabricação de uma ordem identitária
Conforme dito anteriormente, um dos principais aspectos de investimento do
MST na consecução de seu projeto político e social trata-se da produção de sua
militância. Passaremos, agora, a acompanhar esse processo de produção a partir de dois
aspectos por nós explorados em campo: a trajetória de alguns participantes da
investigação na paisagem MST e o seu processo de formação.
4.1.1.A trajetória dos participantes da investigação na paisagem MST
93
O percurso de inserção de alguns militantes do MST e de sua trajetória no
movimento foi acessado por nós principalmente por meio de conversas que buscamos,
nos diversos campos de nossa entrada, acompanhar como vão se subjetivando e de que
maneira contam desse processo de envolvimento, seja identificando e reconhecendo o
surgimento de uma subjetivação militante, bem como dos estranhamentos por essa
vivência provocados.
Pudemos identificar três principais formas dessa inserção em nosso estudo. A
primeira trata de pessoas que já eram moradores de alguns povoados rurais exercendo
atividades como educadores ou de lideranças comunitárias e passaram a ser visitados
por dirigentes do MST, na tentativa de organizar nessas localidades processos de luta
por terra, de modo que algumas das áreas próximas desses povoados se converteram em
acampamentos e assentamentos, de onde saem muitas pessoas para o exercício da
militância.
A segunda forma diz da ligação de alguns militantes com movimentos
religiosos, especialmente grupos de jovens que, de algum modo, conheciam a
doutrina cristã ou tinham ligação com setores da Igreja (Pastorais). Tal doutrina, bem
como a metodologia das pastorais, especialmente a da terra, tiveram uma forte
influência nos princípios do MST, conforme visto anteriormente.
E, por último, educadores municipais concursados que eram deslocados para
escolas rurais de assentamentos organizados pelo MST.
Paiva (2003) encontrou em sua investigação formas de ligação com o MST
semelhantes: militantes que tiveram experiência em outros movimentos sociais,
pastorais e sindicatos e trabalhadores que participaram de ações de ocupação de áreas.
Nesse último caso a autora comenta que se um novo integrante se destaca tanto pelo
cumprimento das tarefas quanto pela articulação de sua fala, acaba por ser convidado
para assumir a liderança do grupo e iniciar um processo de formação política.
94
Esse percurso de entrada no movimento é narrado pelos militantes, em geral,
como um divisor de águas em suas vidas, atua como uma espécie de “chamado” para se
comprometerem com as ações de luta do movimento. Inicialmente são tomados por um
estranhamento dada a natureza de desconhecimento em relação aos objetivos do
movimento, bem como por estarem atravessados por uma visão do mesmo de acordo
com a veiculação da mídia. Posteriormente, vão entrando em contato com o universo
organizativo do MST, fato que vai reverberando nas subjetividades.
Em entrevista, L. (35 anos) comentou de seu choque inicial por ter de
trabalhar num acampamento do MST e descreve como vai, paulatinamente, sendo
afetada pelos dilemas que marcam a vida de seus moradores: condições de vida
precárias, dificuldade com alimentação e ao indignar-se com tais condições, passa a dar
legitimidade à luta empreendida pelo movimento:
“(...) E (no acampamento) tive a oportunidade de
participar da convivência diária daquele povo, a questão
das reuniões, as assembléias e aquilo assim... me fazia
refletir muito: puxa, esse povo não é nada do que a mídia
tá mostrando, eles tão aqui... é justa a luta deles, eles estão
reivindicando apenas um pedaço de terra para trabalhar,
pra viver dignos como seres humanos, aí, então, comecei
a me apaixonar pela causa do Movimento Sem Terra.” (L,
35 anos, em entrevista no dia 21/04/2006, Pernambuco).
Embora num momento inicial situe os membros do acampamento em termos
de “aquele povo” ou esse povo”, portanto num lugar subjetivo diferenciado, seu
envolvimento vai tomando formas mais aprimoradas e passa a nomear-se membro do
movimento, a sentir-se ligada ao mundo de seus integrantes, a freqüentar as suas
mobilizações e grupos de estudo. Situa, hoje, o MST como uma referência de vida e
aponta sua “identidade de Sem Terra” forjada nas inúmeras experiências e vivências que
descreve como “fortes”.
95
Em dado momento de sua fala, informa da necessidade de sair da área de
acampamento por motivos pessoais, mas acrescenta que, mesmo morando na cidade,
mantém vínculo com o movimento e fala da conquista da área ocupada e,
especialmente, na conquista da escola como fazendo parte desse processo:
Vim morar na cidade, mas não consegui me desligar da
escola
35
, a área foi conquistada, com o passar do tempo
conquistamos a escola, eu digo conquistamos porque
como educadora também fiz parte do processo de luta
pela escola e ai então não consegui sair porque sabia que
poderia contribuir ali na área com a educação enquanto
professora (L., 35 anos, em entrevista no dia 21/04/2006,
Pernambuco).
Alguns moradores das novas áreas de acampamento e assentamento
geralmente são convidados para contribuir com a luta seja na sua própria área, seja
participante de cursos de formação mais específico, como foi o caso de M., 28 anos, que
teve, a convite do movimento, a possibilidade de fazer um curso de nível médio em
Técnico Agrícola, numa universidade pública da Paraíba. M. descreve como decisiva
essa formação porque ela, estando coordenada e organizada conforme os princípios do
MST, proporcionou-lhe outra forma de organizar sua vida, já que a experiência do curso
imprimiu a valorização de uma ordem coletiva, da vivência em grupo pautada pela
dinâmica do MST que, segundo aponta, alterou especialmente suas relações familiares e
a necessidade de construção para si de um projeto vida inspirados em ideais coletivos.
Um dos aspectos que são unânimes nessa trajetória e que contam fortemente
para a continuidade dos entrevistados no MST são as ações de enfrentamento que
passaram a vivenciar. As vivências narradas são geralmente aquelas que designam ações
de confronto, típicas do movimento, como ocupações de áreas improdutivas,
“confiscos” ou saques de cargas de alimentos em rodovias e enfrentamento de forças
35
Grande parte das escolas nos acampamentos funciona em barracas confeccionadas para tal fim ou são
aproveitados espaços da área ocupada, como casas, galpões abandonados. Pode acontecer também de seus
integrantes serem matriculados em escolas das imediações da área.
96
policiais. Passam a narrar como esses fenômenos marcam a sua trajetória de formação
militante.
As primeiras participações nessas ações de confronto ou mobilizações são
destacadas como uma espécie de momento crítico. As narrativas produzidas pela
maioria dos entrevistados apontam para o que poderíamos nomear de uma espécie de
‘conversão subjetiva’, pois é ali onde sua aspiração a militante, sua vivência com as
diretrizes do movimento, sua disponibilidade para com a luta do grupo é posta à prova e
esse momento, por apresentar um caráter disruptivo, ao invocar do integrante uma
modalidade subjetiva ainda não territorializada, reverbera por meio de intensidades não
nomeadas, por afetos não subjetivados (Rolnik, 1989):
“Foi minha primeira experiência prática, assim... dentro
do movimento, a participar de um despejo, onde a gente
foi..., a gente saiu sem almoçar, sem nada, quando
chegamos eram vários policiais, era o triplo de policial
para um pequeno grupo de assentado (grifo nosso) que
tava lá e a gente chegou para dar um apoio aos acampados
que tava sendo despejados e assim ... foi uma experiência
muito marcante porque nunca tinha participado de uma
experiência tão marcante, porque assim ... aquilo me dava
arrepio ver (...) E os policiais xingavam as pessoas sem
ver e sem pra quê, com arma, cacetete. (J., 30 anos, em
entrevista no dia 05/08/06, Pernambuco).
“Quando a gente chega em frente à área, ali é como ... é
uma emoção tão forte, tão grande que a partir daquele
momento é como você fosse começar uma nova vida e
emoção maior se na hora de cortar o arame, porque
se juntam as vozes, os gritos de ordem, de canções, de um
viva à liberdade, de um viva à vida. Quando corta-se o
arame, que a gente entra do outro lado da terra é uma
emoção singular na vida de uma pessoa (G., 27 anos, em
entrevista no dia 11/082006, Ceará).
M., ao ser indagado por mim qual fato ou fatos marcou ou marcaram sua
vivência no MST, passou a contar de um episódio em que teve de ir com demais
integrantes do MST para uma ocupação de área e chegando, constatou a criticidade
97
da situação, que um grupo de policiais estava pronto para impedi-los e, portanto,
estabeleceu-se um confronto entre os trabalhadores sem-terra e os policiais, fato que o
deixou profundamente assustado a ponto de pensar em “deixar a luta”:
“Uma segunda situação foi mais complicada na minha
vida, essa acho que foi a que tive mais medo na minha
vida. A gente fez uma ocupação, estava no sertão central,
em São José do Belmonte e aí, uma cidade muito
pacata e a gente faz uma ocupação e a gente é recebido na
bala, né? Por mais que a sociedade coloca que sem terra
não pode ter cartão de crédito, mas por pura ironia do
destino os cartões de crédito salvou um bocado de vida,
salvou a minha, a de um dirigente, porque os caras
atiraram e algumas balas colaram nas carteiras, nos
cartões, outras colaram no bolso, uma caneta desviou um
tiro e na segunda reação a gente acaba entrando na
fazenda né, e eu vi uma proprietária da fazenda pegar um
pote de um acampado e quebrar, a gente tava... no meio
do mato, numa vala e eu pensando:“amanhã se eu
amanhecer vivo, eu abandono a luta, no outro dia, eu
disse: agora tou pronto prá ir prá casa caçar outro meio de
vida e os assentados disseram: nós estamos prontos prá ir
prá outra e não me senti covarde prá deixar esse povo
lá. Situação que mais me deu perspectiva de luta. tinha
a vida, o sonho (M., 28 anos, em entrevista no dia
21/04/06, Pernambuco).
Numa situação parecida de confronto em função da ocupação de uma área por
um grupo de trabalhadores sem-terra, no interior do Rio Grande do Norte, Lu, 53 anos,
disse ter vivenciado esse momento com um grande temor, pois ainda não estava
inteiramente decidida em relação à luta. Em suas palavras: “Eu não tava ainda com
aquela vontade de dizer: ou ficar ou morrer” (Lu, 53 anos, em entrevista no dia
10/08/06, Rio Grande do Norte).
O enfrentamento com forças opostas, o ato de corte da cerca ou o corte do
arame (como também é chamado o momento de ocupação de uma área) parecem
promover também um corte subjetivo e, por assim dizer, o arame arranha as
subjetividades, que dessubjetiva e ressubjetiva os corpos, dando-lhes uma nova
98
composição, que se descreve inicialmente em forma de medo, anseio ou indignação
diante de uma vida que tenta se refazer pelas margens, não das rodovias acampadas
(Leite e Dimenstein, 2006), mas do campo social e político.
A indignação, o desejo de produção de um projeto de vida diferente, a busca
de saída de condições adversas, seja do militante, seja de seu grupo próximo e,
posteriormente de todos os demais integrantes do movimento parecem se configurar,
desde o início, uma das formas de sustentação da militância no próprio movimento.
Essa trajetória que incorpora nova composição subjetiva no movimento, no
entanto, não inaugura uma ordem existencial estanque, alimentada exclusivamente pelos
princípios do movimento, pois se as subjetividades encontram dispositivos vários de sua
produção, não seria diferente no contexto da militância do MST. Por outro lado,
consideramos pertinente apontar os acontecimentos que esse novo território existencial
traz consigo, que promovem rotas dispersas da trajetória vivida pela militância
anteriormente à sua inserção no movimento.
Quando indagados dessas rotas dispersas que a inserção no MST provocou em
suas vidas, os participantes da investigação trouxeram histórias que os tornam diferentes
em um conjunto de aspectos de seu cotidiano, aspectos que vão se aproximando, em
alguns casos, de um ideal de militância:
Veja só: eu particularmente é... Eu acho que mudou o
modo de enxergar o mundo, eu acho que mudou o modo
de enxergar a vida familiar, o modo de respeitar o
próximo como tal, como idéia, respeitar a idéia do outro e
o outro também respeitar minha idéia também, né? Ou
seja, Isso foram uma das ... foram as aprendizagens que
mais me fortaleceu. Como ...como outras coisas também
como por exemplo, é... eu primeiro pegava, chupava um
bombom e jogava o papel né, é... eu começava a notar
nessas coisas, jogava no meio da rua, jogava e num tava
nem não, né? Hoje depois da minha inserção no
movimento, eu hoje não tenho coragem de pegar um
papel de bombom e jogar no meio da rua, fico
preocupado, boto no bolso e fico esperando uma lata de
lixo para depois eu colocar. Das primeiras coisas que eu
99
começo a aprender que o movimento começa a trabalhar
isso... essa consciência no ser humano, essa consciência
nas pessoas, você pode ver a grandeza que o movimento
tem. Vamos dizer que tem as suas dificuldades, tem,
porque nós somos lotados de preconceitos, de desvios de
coisa e tal que o mundo capitalista, que essa sociedade
capitalista impreguina na gente e que isso não é assim,
num ano, dois, três, cinco anos que isso vai despreguinar
da gente porque nós tamos inseridos nesse meio e esse
meio faz parte do nosso processo né? Então acho que isso
o movimento trabalha com delicadeza, trabalha com
cuidado prá que todos os seus militantes, todos os seus
assentados, acampados estejam enxergando isso com
outro olhar, vendo isso com outro olhar (...) (J., 30 anos,
em entrevista no dia 05/08/06, Pernambuco).
M., 28 anos, por exemplo, acompanhou uma série de mudanças, especialmente
nas suas relações familiares em que conta ter de sair de uma postura de quase menino ou
um garoto mimado e sem autonomia para alguém que precisou ganhar o mundo,
desenvolver uma autonomia diante da série de questões que o movimento passou a lhe
mostrar, como formação de um pensamento crítico, adoção de posturas coletivas,
superação de valores burgueses, de engajamento na luta etc.
Lu, 53 anos, por sua vez conta como se sentia uma pessoa triste, sem força nos
seus argumentos, com uma ânsia de liberdade em sua vida, mas que não conseguia pô-
lo em marcha e diz ser justamente a vivência no movimento e com seus companheiros o
elemento disparador ou potencializador de seus desejos de modo que se sente confiante
em poder comunicá-los e defendê-los.
No entanto, essas vivências, essas novas rotas precisam ser afirmadas e
reafirmadas cotidianamente e a forma que acreditam assim ser possível é um processo
constante de incorporação da ‘alma militante’. Essa alma passa a ser talhada nos
caminhos da formação, questão que passamos a abordar no próximo item.
4.1.2. O processo de formação militante
100
Paiva (2003) aponta que o tema da formação tem sido tratado pelos movimentos
sociais como um fator importante para a conquista da emancipação e liberdade humana,
tornando os sujeitos construtores de sua história.
A autora encontra essa concepção no campo das esquerdas políticas e nas
práticas pedagógicas, especialmente no século passado e cita duas correntes que tiveram
forte influência nas lutas da esquerda brasileira: uma européia, em que essa influência
deu-se principalmente nas práticas educativas, na luta pelo acesso à educação de setores
menos favorecidos, visando assim a sua tomada de consciência política. Em suas
palavras:
No campo da política, realça a utopia da emancipação e
transformação social, destacando a revolução como
método para eliminar as estruturas obsoletas que criam
obstáculos para o processo de emancipação social. Para
este fim, a esquerda apropriou-se da concepção marxista-
leninista de que é necessário promover o esclarecimento
das massas para realizar os fins determinados, este papel
foi atribuído ao grupo de direção, a chamada vanguarda
(Lechner, 1985; Hobsbawm, 1995) (Paiva, 2003, p. 56).
A outra corrente, resume a autora, trata-se do pensamento de Gramsci, pelo
realce dado por esse autor ao lugar que a cultura e os intelectuais têm na emancipação
das camadas populares, por meio da “construção de um bloco histórico, classes e grupos
sociais interessados na mudança social” (Paiva, 2003, p. 56).
Medeiros (1993), a esse respeito, lembra que muitas das tentativas dos
movimentos sociais rurais brasileiros visavam (a exemplo das Ligas Camponesas e do
próprio MST) exatamente tornar a diversidade de categorias de trabalhadores do campo
em uma unidade que pudesse se converter numa espécie de classe social para se fazer
protagonista da luta contra os efeitos que o capital trouxe ao campo brasileiro. Essa
estratégia visava inclusive aproximar trabalhadores rurais e operários urbanos.
A formação da militância no MST segue, assim, linhas políticas circunscritas
numa perspectiva denominada pelos dirigentes do movimento de marxista/socialista,
101
conforme discutido anteriormente, com vistas a superar as contradições da sociedade
capitalista marcada pela exclusão de um grande contingente da população. Bogo (2007)
destaca que esse processo é materializado pelo reconhecimento da denominada luta de
classes e pelo seu enfrentamento.
O referido autor argumenta que as organizações de luta social atuam por meio de
modos específicos de investimento de sua militância política dependendo de seus
objetivos ou formas de enfrentamento, o que requer uma formação para tal. Resume:
Para cada tipo de estrutura haverá também uma política de
formação. Então a filosofia da organização combina-se
com o perfil dos quadros de que ela precisa. Ou seja, se a
filosofia for pacifista, os quadros terão o perfil da
acomodação e sempre utilizarão táticas não-ofensivas. Se
a ideologia for reformista, os quadros tenderão a se
dedicar às negociações e a fazer concessões. Porém, se a
filosofia for revolucionária, os quadros tendem a se
empenhar em fazer a revolução. As lutas se tornam
ofensivas e as idéias cada vez mais críticas, porque a
convicção é socialista (Bogo, 2007, p. 79).
Nesse sentido, as práticas e os discursos que visam formar ou tornar os
trabalhadores sem-terra em militantes políticos seguem essa matriz teórica e
metodológica. Aqui, mais uma vez, um dos mais produtivos teóricos do MST recorre ao
modelo tradicionalmente disposto às esquerdas brasileiras como balizador da formação
de seus integrantes.
A composição da militância no MST foi por nós apreendida num duplo
movimento: enquanto uma tentativa de circunscrição de um padrão identitário, ou seja,
o personagem ‘Sem Terra’ e, por outro lado, num movimento outro que aponta uma
diversidade de acontecimentos que reconstroem esse padrão.
Na exposição desse processo, utilizaremos as observações feitas durante o X
Encontro Regional de Educadores (as) do MST/Sertão (MST/Pernambuco) e alguns
momentos de encontro com a turma do curso de Pedagogia da Terra (Ceará - Mirim).
102
Trataremos também de algumas questões levantadas pelos participantes da investigação
durante as entrevistas, onde reconstroem o seu processo de formação militante.
Num primeiro momento, ao associarmos a formação militante com a busca de
uma subjetivação circunscrita no modelo Sem Terra, identificamos um conjunto de
estratégias e práticas consolidadas pelo MST que visam inscrever no cotidiano de
formação da militância um modelo de luta social definido por meio de uma lógica
binária: classe social, burguês/explorado, dominante/dominado.
Tal perspectiva pode ser compreendida de acordo com Gohn (2000) ao assinalar
que aspirações clássicas da esquerda têm orientado o projeto político do MST. Desse
modo, sua militância atrela-se a um perfil que imprime uma concepção de sociedade e
de indivíduo em que os termos de uma macroestrutura se colocam como pano de fundo
para suas análises, pautando sua atuação inspirada num modelo estrutural, que visa
uma mudança radical no modo de organização da sociedade como um todo, tomando os
sem-terra como uma classe social que precisa avançar para um modelo coletivista de
sociedade.
Pizetta (2007), um dos teóricos da formação dos militantes do MST, recorre a
esse modelo ao afirmar que no jogo da luta de classes, a formação da militância cumpre
o importante papel de combater “os resquícios da ideologia burguesa que está alojada na
consciência dos militantes e dirigentes, que está alojada na consciência da organização,
principalmente dos camponeses” (p. 88).
As inúmeras etapas de estudos, os cursos de formação que se envolvem visam
promover essa concepção. Ademais, o modo de operacionalização dessas ações
acompanha um conjunto de elementos que se repetem em âmbito nacional. Por
exemplo, o encontro regional de educadores em Pernambuco desenrolou-se dentro de
uma ritualidade típica de outros eventos coordenados pelo movimento: um ambiente
preparado com uma ornamentação que valorizada os símbolos do movimento
103
(bandeiras, cartazes, sementes, faixas com palavras de ordem) para receber cerca de 90
educadores.
A abertura das atividades sempre era marcada por uma atividade inicial a
mística – que, nesse contexto, trazia como tema a luta pela educação, o canto do hino do
MST, a abertura dos trabalhos pelos coordenadores do movimento
36
, as orientações
sobre o dia de trabalho e a divisão de tarefas, tanto entre os organizadores, quanto entre
os participantes do evento. Essa divisão de tarefas implica desde a arrumação e limpeza
do espaço até os trabalhos de relatoria, de estudos e leituras. Também aconteciam
reuniões de planejamento onde se avaliava o dia de trabalho e a preparação para o dia
seguinte.
Aos participantes do encontro era orientada a divisão de grupos de trabalho,
divisão essa que obedecia a localidade de origem dos educadores. Esses grupos eram
denominados de brigadas e cada brigada foi identificada com o nome de alguma figura
histórica para o movimento (Paulo Freire, Rosa Luxemburgo, Chico Mendes etc.). Nos
momentos de início das atividades, cada brigada construía uma palavra de ordem a ser
dita na plenária, ou seja, na reunião de todas as brigadas (P.ex.: Se o campo não
planta, a cidade não come”).
Os temas de trabalho envolviam basicamente a formação do educador para o
contexto dos assentamentos rurais, em que se refletia não sobre uma adequação em
relação ao calendário escolar com o contexto rural, mas uma adequação de conteúdo
com os processos agrários, com uma concepção de educação pautada pela proposta
pedagógica do MST. Essas discussões foram realizadas por integrantes do MST/PE e
por professores universitários convidados.
Pelo exposto, foi perceptível como os dirigentes do movimento tentaram
recompor naquele contexto a sua dimensão identitária, seja através do apelo à
36
Dirigentes regionais e estaduais do setor de Educação do MST/PE.
104
simbologia, à lógica de trabalho coletivo e de divisão de tarefas, à eleição de temas que,
no campo da Educação, são diretrizes nacionais do movimento.
No evento em particular, contudo, alguns dos educadores não eram militantes e
para outros era o primeiro contato formal com o movimento. Grande parte desses
educadores são funcionários públicos municipais concursados que foram designados
para os assentamentos. O evento tinha justamente uma preocupação em inserir tais
educadores na proposta pedagógica do MST
37
.
A educação tem sido um dos principais aspectos explorados pelo MST e sua
preocupação vai desde a alfabetização de jovens e adultos, passando pela formação
técnica de nível médio até os cursos de graduação e pós-graduação. Desse modo, o
MST inaugurou uma série de ações e atividades que visam desencadear um processo de
formação social e política de seus integrantes. A esse respeito, destaca Caldart (2000):
(...) Olhar para a formação dos sem-terra é enxergar o
MST também como um sujeito pedagógico (grifos da
autora), ou seja, como uma coletividade em movimento
que é educativa, e que atua intencionalmente no processo
de formação das pessoas que a constituem (...). É através
de seus objetivos, princípios, valores e jeito de ser, que o
Movimento intencionaliza suas práticas educativas
(p.199).
Como teórica do campo educacional do MST, a autora geralmente aborda uma
visão do processo de formação dos sem-terra com certa ausência de tensões, como se o
processo do que denomina de uma 'síntese cultural' feita em tal formação tivesse uma
natureza evolutiva ou fosse unanimemente incorporada pelos seus integrantes.
É visível, portanto, nessa visão, um ideário que faz dos dirigentes do movimento
uma espécie de vanguarda que 'liberta' o oprimido da sua secular história de exploração
e alienação.
37
Sobre a proposta pedagógica do MST, ver: Caldart, R. S. (2000).
105
A forte presença do MST no terreno da educação como um campo de formação
e o sucesso que advém com esse trabalho pode ser compreendido, em parte, por uma
ausência histórica dos movimentos sociais nesse contexto, seja no campo das teorias
pedagógicas, seja como sujeitos educativos ou proponentes de reflexões sobre a
educação, como destaca Caldart (2000).
Assim sendo, o MST favorece um debate sobre a educação no campo, de modo a
fazer minar um modelo tradicional e reproduzido nas escolas rurais completamente
espelhado nas salas de aulas urbanas. Ademais, a própria concepção de espaço
educativo ganha transposição e a sala de aula ou escola será um entre tantos outros
ambientes de formação para o MST. Uma desterritorialização desses espaços se efetiva,
na medida em que as praças, as marchas, as beiras de estrada, as agrovilas, as
universidades públicas, as cooperativas agrícolas, os lotes dos assentados se configuram
como territórios de veiculação da pedagogia do movimento.
A deflagração de um processo de subjetivação militante no contexto da
Educação parece ser bem visível nesse caso, uma vez que naquele evento de formação
de educadores presentificava-se uma busca de efetivação de uma proposta político-
pedagógica em relação às demais existentes no campo da educação básica e ensino
fundamental, que as áreas de assentamento são regidas pela educação pública e, com
isso, ligadas às diretrizes do Ministério da Educação.
A oficina de trabalho com um dirigente do MST apresentou um intuito bem
voltado para esse projeto, ao sugerir aos educadores que em suas reuniões com o poder
público pudessem questionar a padronização do modelo escolar urbano para o contexto
rural, que pudessem valorizar os conteúdos juntamente com as atividades simbólicas
com as crianças, explorando a bandeira do movimento, criando palavras de ordem,
organizando cirandas, cantando o hino do movimento.
106
Vimos um forte investimento dos coordenadores do Setor de Educação do MST
no sentido de construir, para e com os participantes, um tipo educador-militante que
teria ou deveria ter como prática levar para a escola rural uma proposta pedagógica que
atendesse os princípios do movimento.
Esboçou-se um confronto entre territórios existenciais que norteiam as
práticas pedagógicas desses profissionais que, contratados e tendo vínculo empregatício
com instâncias públicas municipais, foram convocados a uma atuação profissional outra
que, a nosso ver, implicaria numa espécie de conversão subjetiva, já que uma adesão
voluntária, por exemplo, em explorar os aspectos simbólicos do movimento, como
cantar e ensinar às crianças o hino do MST e incorporar esses conteúdos no dia-dia da
sala de aula requereriam mais do que mera simpatia do educador com os propósitos do
movimento.
Em conversas informais com alguns desses educadores, especialmente nos
momentos de intervalos, os mesmos afirmaram sentir-se confusos com a diversidade de
orientações para sua prática em sala de aula (ora vindas da Secretaria Municipal de
Educação, ora vindas do Setor de Educação do MST).
Aqui se faz pertinente destacar o jogo de poder que se estabelece, à medida que
forças políticas menores”, como as atividades cotidianas de uma sala de aula, são
postas em confronto e convocam os educadores a se redefinirem enquanto sujeitos
dessas práticas.
Esse momento trazia uma prática bastante marcante do movimento que, dito
anteriormente, parece ter participação especial nesse processo de formação militante: o
uso de estratégias que convocam o plano do sensível, dos afetos dos indivíduos. As
místicas e sua forma metafórica de expressão, as falas dos educadores que integram o
movimento muitos anos e os depoimentos de militantes que passaram por momentos
críticos na luta dão um testemunho de uma grande dedicação ao MST, dedicação essa
107
que não se restringe ao plano individual, mas de todo um desejo de comunicá-la e
expandi-la. Esse aspecto é também bastante explorado na formação da militância: dar
exemplo à base do movimento pelos comportamentos individuais do militante, servindo
como uma espécie de espelho ou exemplo a ser seguido pela massa.
Por ocasião do encontro, os coordenadores planejaram uma noite cultural em
que puderam homenagear os primeiros educadores do MST no sertão pernambucano,
uma vez que dez anos esse evento se realizara. Essa atividade possibilitou um modo
de acesso às subjetividades: espécie de potência na fala do militante e de como vai
recompondo para o público, por meio dessa fala, as marcas de sua passagem pelo
movimento, espécie de cartografia de uma “subjetividade em movimento” que visa
publicizar essas marcas, trazidas em palavras, gestos largos, voz entrecortada, lágrimas,
um corpo convocado em quase toda sua totalidade.
O relato das dificuldades vividas nas áreas acampadas, o confronto com as
forças policiais, a resistência e a luta em contextos e condições extremamente adversos,
as conquistas, os avanços e recuos eram narrados pelos militantes nessa ocasião com
intenso afeto, na medida em que rememoravam situações-limite, em que se viam diante
da possibilidade de resistir ou de retroceder.
Uma das educadoras homenageadas relembra ter ouvido inúmeras vezes de um
policial, na época em que estava acampada, ameaças de morte: “vocês não têm terra, eu
vou dar terra prá vocês”. Outra educadora, ao tratar de sua relação com o movimento
em mais de dez anos e que tendo sido presa algumas vezes, afirmava que os Sem Terra
são uma família onde quer que esteja, em qualquer situação, mas destaca que é preciso
sentir-se movimento Sem Terra.
Essas falas, a sua forma de realização, provocavam as pessoas de inúmeras
formas, inclusive a mim: algumas se emocionavam, outras aplaudiam num gesto de
identificação com os discursos proferidos. Desse modo, a fala do militante foi algo que
108
passou a me provocar enquanto elemento explorado na sua formação. Percebi que esse
uso da fala é feito por militantes que já têm uma posição destacada no movimento e que
sua imagem goza de certo respeito perante os demais.
Esses militantes têm uma penetração “decisiva” junto aos demais integrantes no
momento em que fazem uso da fala. Uma fala que emociona, que empolga, que
denuncia, que chama a todos a uma missão revolucionária e que, no militante mesmo
que a profere, mobiliza seu corpo em gestos contundentes e fortes, dando à sua voz um
tom emocionado e exaltado
38
.
O corpo, nessa experiência de falar com a voz do movimento e em movimento,
comparece com uma potência que circunscreve uma modalidade identitária para esse
mesmo militante. A escolha da fala pública do militante para ser problematizada na
presente investigação vem inspirada na idéia de Foucault (apud Cardoso Jr., 2003),
segundo o qual a subjetividade pode ser tratada a partir do corpo, que é ele a forma
mais imediata de relação do sujeito com o mundo, sendo esse corpo não meramente um
organismo, mas enquanto uma experiência tanto de captura pelo poder quanto de uma
experiência de transformação e de resistência de sua potência.
Há, nos manuais de formação da militância do MST, orientações de como
conduzir uma fala para o coletivo. No Caderno de Trabalho e Organização Popular
(Pizetta, 2005) estão apontados alguns passos que os militantes podem seguir na sua
exposição pública: emocionar o público, apelar aos interesses diretos do auditório,
apresentar um problema, fazer referência a acontecimentos destacando lugar e
momento, fazer referência a personalidades e pensadores importantes para o
movimento, recorrer a fontes conhecidas de informação e recorrer à própria personagem
do orador.
38
Durante a solenidade de formatura da turma de Pedagogia da Terra, pude acompanhar algo semelhante
ao escutar uma representante do MST, que dirigia sua fala para os formandos e convidados em geral.
109
Explicita uma preocupação com a estruturação do texto e do seu conteúdo,
sugerindo que se observe em haver uma estrutura lógica, que os eventos sejam
explicitados, manter a atenção do público e escolher temas que interessem ao público
ouvinte. Apresenta, ainda, um modo de como se pode encerrar uma fala, atentando para
alguns aspectos, tais como: resumir os principais pontos do que foi falado, destacar as
tarefas objetivas que o público terá de desempenhar em função do que foi orientado na
fala, elaborar um encerramento com a citação de um trecho marcante de um pensador
ou figura de referência que possa emocionar a platéia.
Pizetta (2005) segue seu texto elencando alguns cuidados que se deve ter, por
exemplo, com a voz. Segundo o autor, “o que importa aqui é falar com entusiasmo, com
convicção, com auto-estima, com alegria ou com raiva, colocando o coração naquilo
que se fala” (p. 64). Em relação ao corpo e sua postura, sugere que alguns gestos sejam
feitos, pois ajudam a reforçar o que está sendo falado e adverte para que não se fale de
braços cruzados ou posto para trás, sugere: “ponha todo o corpo em atitude dinâmica”
(Pizetta, 2005, p. 65).
Percebemos, então, como uma série de expressões e modos de ação vão sendo
tomados pelos indivíduos na composição de um arranjo subjetivo de característica
identitária que se esboça no processo de formação militante.
Outro contexto por nós acessado em que um processo de formação militante se
colocava em prática tratou-se da turma de Pedagogia da Terra, na cidade de Ceará -
Mirim. O acompanhamento de tal experiência foi bastante significativo, uma vez que
nela identificamos elementos fortes que envolvem a formação militante, bem como a
produção de uma forma de convívio pautada pelos princípios organizativos do MST
(tarefas do cotidiano, estudos e leituras, cursos de formação política, uso da disciplina).
Esse modelo de convivência inspirado em princípios coletivistas não obstante era
110
colocado em questão por integrantes do grupo, seja de forma aberta em reuniões ou em
práticas cotidianas observadas e entrevistas realizadas.
Acompanhamos algumas etapas de encontro do grupo (janeiro e julho de 2004
39
,
janeiro e julho de 2005; janeiro e julho de 2006). Durante esses momentos, fizemos uso
de observações
40
que estavam voltadas para os militantes e algumas atividades por eles
realizadas, especialmente aquelas pautadas pela lógica organizacional do MST: desde
algumas tarefas que respondiam pela operacionalização dos alojamentos, do refeitório e
da área externa do centro (grupos de limpeza e manutenção, distribuição dos alimentos
no refeitório
41
, lavar e passar roupas), da preparação das atividades do dia seguinte,
como a mística de abertura dos trabalhos do dia e a execução do hino do movimento,
bem como da organização dos grupos de estudo. Algumas mulheres ainda dividiam o
tempo com suas crianças pequenas que eram levadas consigo para as etapas de estudo.
O cotidiano do grupo foi marcado tanto pelas atividades acadêmicas (aulas
teóricas, de campo, realização de atividades e trabalhos gerados nas disciplinas,
seminários), quanto de atividades ligadas ao movimento: grupos de estudo, de discussão
e de análise de conjuntura, atividades culturais e participação em algumas ações da
equipe do MST no estado do Rio Grande do Norte.
De forma semelhante ao X Encontro de Alfabetizadores do sertão
pernambucano, as atividades em sala de aula obedeciam a formação de grupos (também
denominados brigadas que apresentavam no início das atividades palavras de ordem e
que tinha também nomes que homenageavam figuras históricas do movimento).
39
Nesse período o contato com o grupo deu-se na condição de professor das disciplinas Dimensão
psicológica do Homem e Dimensão Psicológica da Aprendizagem).
40
As observações do grupo foram registradas de forma escrita e muitos dos momentos fotografados.
41
Embora houvesse uma equipe de pessoas externas aos estudantes responsável para preparar as
refeições, estes revezavam diariamente nas tarefas de servi-las aos demais colegas, de lavar os utensílios e
de limpar o refeitório.
111
Diariamente, no início do dia, cantava-se o hino do MST com o hasteamento das
bandeiras do Brasil e a próprio movimento.
Como o grupo passava cerca de quatro a cinco semanas alojado no centro de
formação para cursar as disciplinas modulares, a primeira semana era geralmente para
atividades de formação política (estudos, reuniões, palestras como dirigentes nacionais,
planejamento e encaminhamentos para o mês de trabalho).
Durante dois módulos do curso, tive contato com o grupo na qualidade de
docente e impressionou-me ver o modo disciplinado como conduziam as atividades, de
forma que o grupo se organizava internamente para manter o horário, efetuar as leituras
em sala de aula, entregar em tempo hábil as atividades por mim solicitadas e, nos
intervalos, realizar tarefas ligadas ao movimento, num uso bastante racional do tempo.
O acompanhamento das atividades acadêmicas por parte dos alunos era
“monitorado” pelos demais colegas que passavam a cobrar sua presença em sala de
aula, estimulando-os a estar atento e participativo às discussões
42
.
Quando alguns membros da turma começavam a demonstrar cansaço ou a
dormir em sala, um pequeno grupo imediatamente levantava-se e entoava palavras de
ordem com o intuito de “trazer de volta o companheiro” para a sala de aula. Havia,
portanto, uma forma de controle e vigilância do comportamento dos colegas, exercícios
de poder num espaço menor com vistas a garantir a unidade do grupo.
Essa forma de controle dos comportamentos chegava inclusive a mim. Nos
momentos de intervalo, quando acendia um cigarro, era comumente interpelado o
porquê de estar fumando se essa prática punha minha saúde em risco e havia até quem,
na justificativa de me pedir um trago, tomava o cigarro de minhas mãos e o jogava no
chão.
42
A preocupação com a disciplina e o cumprimento das tarefas eram tão efetivos que cheguei a comentar
com a turma, em tom de brincadeira, que eles eram os alunos que todo professor gostaria de lecionar.
112
Desde minha inserção no MST como pesquisador mediante o mestrado e como
eventual colaborador, tanto em cursos de formação como professor da referida turma,
sentia uma espécie de intolerância de alguns militantes por condutas e hábitos que não
correspondessem aos apregoados pelo movimento, fato que me inquietava
sobremaneira, pois me perguntava como um movimento que luta contra a cerca do
latifúndio empreendia outras formas de cerceamento.
Num curso de formação de militantes em que fui convidado para ministrar uma
oficina com jovens de áreas de acampamento e que era o primeiro curso que
participavam, presenciei momentos em que a própria música que se tocava nos
intervalos era controlada pelos dirigentes do movimento para que se evitasse escutar
música de cunho “burguês” ou “alienada”.
Identifico, com o passar do tempo, que uma mudança de postura tem se dado no
âmbito da militância e penso que pautada, inclusive, por orientação do próprio MST,
pois tenho identificado em algumas entrevistas com dirigentes, uma espécie de
orientação para que se respeite, ou seja, tolerante com as diferenças de pensamento e de
expressão.
Os ambientes do centro de formação dos estudantes de Pedagogia da terra (sala
de aula, refeitório) eram decorados, ressaltando alguns símbolos do movimento,
cartazes, pinturas de lideranças do movimento e de pensadores que inspiram o seu
ideário (Karl Marx, Paulo Freire, Lênin entre outros).
A organização e limpeza dos alojamentos eram combinadas pelos seus
ocupantes e algumas atividades como lavar e passar roupas estavam previamente
definidas na agenda de trabalho do grupo (geralmente feitas aos sábados, domingos ou
intervalos do almoço).
Havia em funcionamento uma sala de atividades educativas para as crianças
filhas das alunas do curso. Como não tinham com quem deixá-las ou delas se
113
ausentarem pelo tempo de um mês, o movimento proporcionava uma forma de que as
crianças pudessem acompanhá-las. Assim, havia uma ‘escolinha’ para essas crianças
denominada pelo MST de ciranda. Na ciranda, as crianças também eram introduzidas
numa subjetivação voltada para as diretrizes do movimento, o planejamento das
atividades refletia esse propósito: os conteúdos voltados para o contexto rural, o resgate
de elementos da cultura popular por meio do estímulo de alguns desenhos, canções de
roda, confecções de brinquedos de sucata e a leitura de historinhas. A ciranda também
servia de campo de observação e de intervenção pedagógica por parte dos alunos da
formação em Pedagogia.
O investimento na formação de crianças no âmbito do MST tem sido uma de
suas principais ações nos últimos tempos. Foi criado e difundido internamente o
conceito de Sem Terrinha, para designar os filhos da luta por terra e que desde cedo
está posta a possibilidade de uma subjetivação militante.
O Congresso Nacional realizado em Brasília contou com uma programação
especialmente voltada para as cerca de mil crianças que foram com suas famílias ao
evento. Foi montada, num conjunto de barracas, a Escola Itinerante Paulo Freire, em
que dezenas de educadores e monitores se revezavam em uma programação voltada
diretamente para o público infantil do congresso.
As barracas dividiam as crianças por faixa etária e as atividades pedagógicas
eram variadas: contação de história, oficinas de produção de texto, de fabricação de
brinquedos a partir de material de sucatas, havia diversas apresentações teatrais, teatro
de bonecos que contavam a história do educador Paulo Freire, oficinas de atividades
circenses:
114
Imagem 05: Oficina com crianças durante o V Congresso Nacional do MST (2007) – Brasília/DF.
Imagem 06: Marcha dos Sem Terrinha durante o V Congresso Nacional do MST (2007) – Brasília/DF.
No Estado de Pernambuco, há dez anos, vem se realizado um congresso voltado
para as crianças e adolescentes do MST:
115
Imagem 07: Marcha dos Sem Terrinha - X Congresso Estadual dos Sem Terrinha (2007) – Recife - PE.
Foto: Erivan Hilário
Essa postura referenda o caráter massivo da luta do movimento, que aposta na
ampliação do envolvimento de seus integrantes (homens, mulheres, jovens, crianças)
nas suas ações de luta. Assim, cria condições para que as mulheres, por exemplo, não
fiquem ausentes da possibilidade de inserção direta nas ações de formação e de direção
de alguns setores do próprio movimento.
O conjunto dessas tarefas apresentava como eixo comum um exercício dos
princípios coletivistas do movimento, sendo, em sua maioria, realizadas em mutirão,
estando aí, a nosso ver, um importante momento do processo de formação dos
integrantes no sentido de adoção do modelo de militância do MST. Ademais, um fator
que me chamou atenção em tal experiência e que se configurou num aspecto importante
de eleição do grupo de estudantes de Pedagogia da terra para investigação tem ligação
com a convivência que tais militantes passaram a ter com a experiência do curso e de
sua característica modular. Tal característica os levou a uma maior convivência em
116
função do tempo de alojamento e, com isso, ter em outros militantes a referência de
sociabilidade durante as etapas do curso.
Com isso, os militantes eram provocados a uma convivência que no desenrolar
do cotidiano, passavam a conhecer outras dimensões dos seus colegas para além do
aspecto identitário ou de unidade do grupo.
O grupo, formado por 54 pessoas, apresentava uma heterogeneidade em vários
aspectos: idade, religiosidade, tempo de participação no movimento, lugar e funções
que nele ocupa, grau de apreensão de conhecimentos em geral (adquiridos com os
estudos no movimento). Desse modo, era possível e esperado que alguns pontos de
tensão se estabelecessem no grupo, especialmente quando alguns comportamentos
“desviavam” do esperado.
Esses desvios estavam ligados, basicamente, ao não-cumprimento dos horários
(tanto para as atividades em sala de aula, quanto de escapadas noturnas” do centro de
formação para a cidade) e das tarefas designadas pelo coletivo (limpeza da área,
arrumação do refeitório, cumprimento das atividades acadêmicas realizadas em grupo),
dos fumantes etc.
Uma participante do curso comentou da sua inquietação e inconformidade ao
saber que, no grupo, uma pessoa casada estava tendo um relacionamento com outro
colega da turma. Abordou tal assunto cobrando que ela deveria atender os princípios da
organização e definindo que práticas dessa natureza são de encontro ao exemplo que a
militância deve adotar. Posteriormente e com a ajuda de companheiros passou a ver a
situação de outra forma, mas no sentido de entender que seria necessário um processo
formativo para que as pessoas pudessem tornar-se militantes e que cada um tinha um
percurso particular.
Aqui, entendemos ser pertinente a proposição de Foucault (2007) ao defender
formas de exercício de poder numa escala microfísica, pois não se tratava de grandes
117
equipamentos sociais exercendo controle sobre os comportamentos dos militantes, mas
de seus próprios pares e em situações quase invisíveis do cotidiano, a exemplo de um
cochilo em sala de aula ou do atraso para uma reunião ou da ausência no momento de
servir a refeição do grupo.
Estava clara para nós a possibilidade de acompanhar, num espaço do
movimento, os desdobramentos que tal experiência teria em termos de deflagrar
processos de subjetivação que se dariam no cruzamento dos princípios organizativos do
movimento, do processo de formação acadêmica do grupo e da experiência de convívio
de uma natureza coletiva que reduzia fortemente um universo de ordem privada em
função de um cotidiano aberto ao contato continuado com a diferença, seja ela apontada
pelo outro militante, pelo docente, pelo espaço e sua lógica de funcionamento, pela
tentativa de incorporação dos princípios do movimento naquele ambiente ou pelo
confronto com tais princípios.
Nesse entrecruzamento de vetores subjetivantes, a disciplina se colocava num
plano de destaque. Dentre as questões levantadas pelos entrevistados no que se refere à
convivência com os demais colegas no curso de Pedagogia e o modo de funcionamento
das atividades, da organização do espaço físico do refeitório, da sala de aula e dos
dormitórios do alojamento, o cumprimento de algumas tarefas era imprescindível para a
manutenção de certo funcionamento do grupo.
Uma das entrevistadas chegava a identificar uma espécie de ‘militância militar’
nesse processo:
Fui convidada pelo movimento a ir participar desse curso
(Pedagogia da Terra), fui e foi muito difícil pra me
adaptar àquela realidade, porque todo dia tinha horário
determinado para aquela atividade e eu não tinha minha
vida organizada, não tinha, nunca conseguia, consegui
agora a partir do curso e então um dia eu comecei a
chorar e disse: isso aqui não é curso para militante, é para
militar
43
. Também, no mesmo dia que falei isso pela parte
43
nesse momento de escuta da entrevistada, foi que me dei conta da proximidade que em tais
palavras.
118
da manhã, à tarde eu via que era diferente, que tinha
que ser daquela forma. A gente tava ali sendo preparado
para ser educador, mas também preparado para ser
militante e... a questão de organizar o tempo, a questão de
participar das atividades como, por exemplo, eu achava
muito interessante, a gente assistia o Jornal Nacional e
tinha de fazer dois ou três comentários com relação ao
que foi dito no jornal, então eu sentia uma dificuldade tão
grande porque não tinha uma visão crítica, política a
respeito do jornal e eu não gostava do Jornal Nacional”
(L, 35anos, em entrevista no dia 21/04/2006,
Pernambuco)
Interessante notar que em momentos posteriores de sua fala, L. continua se
referindo, mesmo que involuntariamente, aos militantes como “militares”, espécie de
ato falho em que aponta a força que o exercício da militância pode assumir enquanto
uma existência rígida no cumprimento das diretrizes do movimento. Essa mesma
entrevistada é a que demonstrou, posteriormente, preocupação por uma de suas colegas
estar namorando uma pessoa casada. É perceptível, assim, acompanhar as linhas de
composição que a confronta ou conforma com os princípios do MST: ora resistindo, ora
concordando, linhas essas (duras, flexíveis e de fuga) que vão promovendo territórios
existenciais provisórios em sua vida.
outro entrevistado, M., que não participou da turma de Pedagogia, enuncia
uma espécie de tipologia de uma militância dispersa em relação aos seus desígnios
originais. Assim diz haver o militonto (aquele que não entende nada, que demonstra
deficiência em apreender as informações dadas pelos dirigentes), o militantos (aquele
que assume muitas tarefas e não executa nenhuma), o milifone (tenta resolver tudo pelo
telefone), o miligato (realiza ações muito rápidas nas áreas de acampamento ou
assentamento sem uma maior interação com a base do movimento).
Essa variação discursiva em torno da identidade militante é algo que para M.
precisa ser combatida, pois entende que a característica principal que legitima um
militante é sua ligação consistente com a base do movimento e, para tanto, o militante
119
precisa ser alguém disciplinado, em suas palavras: saber chegar e sair de um
assentamento. Isso implica num cuidado com suas vestes, com seu aspecto físico (como
evitar cabelos grandes e uso de brincos, para evitar maiores choques culturais com a
base) e disciplina para cumprir suas tarefas.
As demais conversas também apontaram para uma profunda relação entre a
sustentação da militância em atividades de ordem teórica como estudos, mas também de
uma continuada ação em termos práticos, naquelas ações que simbolizam uma espécie
de renovação dos votos do militante com a luta. Essas ações como ‘corte do arame’,
mobilizações, marchas, ocupações são imprescindíveis para M. porque segundo ele a
prática fortalece a alma do militante”.
Para outra integrante do movimento, a atuação prática desenvolveu um papel
importante na sua formação:
essa formação me foi é... foi acesa né? Pela... pela ... pelo
convívio que a gente tinha diariamente com as reuniões
que a gente tinha, as assembléias, com o próprio povo,
com a própria convivência de você estar no local, é uma
ocupação, onde você tem que fazer as barracas, você tem
que construir o fogão, onde você tem que procurar a
alimentação, a partir daquele momento você estar ali
sobrevivendo e essa formação foi se dando através do dia-
dia, da vivência de uns com os outros. Uma formação que
a gente ouvia: “sou sem terrinha”, uma formação que a
gente falava em ocupação, ocupar a terra (pausa longa) e
como fui percebendo como o movimento era rico nessa
questão de construir essa organização (...) (Lu, 53 anos,
em entrevista do dia 08/08/2006, Rio Grande do Norte).
Um dos aspectos bastante explorados na formação militante trata-se da
valorização de um espaço para a coletividade, para as vivências que implicam a
construção de uma dimensão que as pessoas se integrem e se articulem em torno dos
objetivos da organização e a experiência do curso de Pedagogia representou um marco
nessa formação para alguns militantes, por promover um confronto entre o modo como
120
os integrantes tratavam essa dimensão e como a dinâmica interna do MST a faz
funcionar:
“A vivência coletiva, quer queira, quer não, é complicada
né? O movimento defende o trabalho coletivo, defende a
vivência coletiva, mas vamos ser sincero que é
complicado porque cada um tem sua particularidade, seu
individual, né? Mas que também é gostoso, é prazeroso
viver em coletivo. De início, é um pouco doloroso, um
pouco machucante, é um pouco... Se você não tem um
auto-controle, entra em certas situações que podem te
prejudicar, né? Durante esses anos, a gente começou a
vivenciar esse processo, até então eu não tinha
conhecimento de vivência coletiva, só na família e tal. (...)
Se você se deixar, se você num for se fechar pra você, se
abrir pras pessoas, pro coletivo, você começa a vivenciar
isso como realmente é, e interessante e até então... Eu tou
começando a ficar triste porque ta acabando o nosso curso
(J., 30 anos, em entrevista no dia 05/08/06, Pernambuco).
A dimensão coletiva trouxe consigo uma série de conflitos para os integrantes
nela inseridos, mas também inaugurou formas de encontro com a diversidade e com a
diferença de modo importante. Tais encontros foram valorizados e provocaram seus
participantes. Assim, algo se produziu para além do plano da consciência e do aspecto
formal de defesa da coletividade.
Imagem 08: Mística realizada pelos alunos da turma de Pedagogia da Terra -
15 anos do MST - RN
121
Por outro lado, tais experimentações atingiram as sensibilidades, promovendo
novos olhares sobre as diferenças culturais, regionais, pessoais, havendo uma
valorização e uma luta para que fossem respeitadas. Uma expansão, por assim dizer, da
subjetividade em direção ao comum, ao público. O próprio entrevistado acima destaca a
importância de uma abertura para a experimentação do coletivo, ou seja, de uma
valorização das coisas de ordem comum, em detrimento de um encapsulamento da
subjetividade, exercício esse primordial para a construção de amizades em sua potência
política (Ortega, 2004).
Os elementos apontados pelos entrevistados no tocante a uma emoção conjunta,
construída no encontro de diferentes e que situaram o objetivo desse encontro num
empreendimento que ultrapassasse as individualidades, abriu espaço para forças de
ordem singular, de um campo micropolítico, marcado pelas misturas, pelo “prazer de
defender a vida” (G., 27 anos, em entrevista no dia 11/082006, Ceará).
Podemos, portanto, sintetizar que o investimento na militância, ao ser posta em
curso no âmbito dos processos de formação como os aqui descritos (formação
educativa, política, disciplinarização do corpo, busca de superação das ideologias
privativistas em prol de modos comunitários e coletivizados de vida) permite
coextensivamente a criação de linhas identitárias concernentes aos propósitos dos
dirigentes do MST e as linhas de singularidade, fazendo mover e por em marcha a
heterogeneidade que lhe é peculiar.
A nosso ver, nesse campo tenso entre o sonho de uma identidade reificada e de
forças singulares que se redesenham, floresce uma força política importante e uma
possibilidade de exercício da amizade em seu modo libertário: a criação e a
experimentação de modos de vida que não se envenenam no individualismo e no
privativismo que ameaçam o tecido social do cenário pós-moderno.
122
O mundo com suas aflições, os humanos com suas precariedades, as
desigualdades com sua versão excludente e a injustiça com sua face opressora são os
temas que interessam e que mobilizam a militância, temas, portanto, que não se
circunscrevem a um universo privado, mas denunciam toda uma maquinação das forças
de dominação que reverberam no cotidiano. É da inauguração desses campos de embate,
das composições feitas a fim de enfrentar os modos dominantes de assujeitamento que
trataremos no capítulo seguinte, tendo o exercício político da amizade como potência
que se inscreve na vida, dentro e fora do movimento.
123
5. O EXERCÍCIO DA AMIZADE NA MILITÂNCIA DO
MST
“(...) E nada basta, nada é assim de natureza tão casta que não
macule ou perca sua essência ao contato furioso da existência”
44
5.1. As formas históricas de Amizade
O tema da amizade comparece com uma variabilidade de tratamento conceitual a
depender dos contextos históricos, sociais, culturais e políticos em que é abordado.
Nesse sentido é que trataremos de apontar, nessa seção, esse caráter histórico e
dinâmico que o fenômeno da amizade assume na medida em que tais contextos se
refazem e se recriam, buscando, ainda, destacar como podemos aproximá-la ao âmbito
da militância do MST a partir de uma perspectiva que introduza uma concepção política
a tal fenômeno. Daí a necessidade de sua historicização.
Para tanto, discutiremos principalmente dois trabalhos que, embora tivessem
objetivos um tanto distintos, percorreram passagens semelhantes da história ocidental
com vistas a tratar da amizade, não como uma forma de relação entre os humanos
dotada de essencialismos ou que sofreu evoluções de um modo primitivo a um modo
ideal de ligações, mas de situá-la justamente nas suas formas heterogêneas. Trata-se de
Konstan (2005) e Ortega (2002) que tomaram o período grego desde Homero (séc. VIII
a.C.) como ponto de partida. No primeiro caso, segue-se até a época cristã, no século IV
d. C. e no segundo caso, o autor segue adiante e aborda a amizade até o período da
modernidade.
44
Drummond, C. D. Relógio do Rosário. In:
http://www.geocities.com/michelato/carlos/obras/obras.htm.
Acessado em 07 de março de 2007.
124
Konstan (2005) busca desenvolver em seu trabalho uma tese que visa destacar a
amizade como uma forma de relação pessoal predominantemente baseada na
generosidade e afeição e não como normalmente é entendida pela via de uma profunda
institucionalização desse tipo de relação, em que formas de obrigação social lhe davam
um delineamento bastante circunscrito.
O autor insiste na importância de tratamento da amizade pela sua historicidade,
na medida em que a identifica como um modo de relação conquistado e não atribuído,
sendo este último caso característica de outras formas de ligação social, como a família
ou parentesco, as relações de trabalho, religiosas, étnicas etc.
No entanto, o autor reconhece recortes históricos que identificam formas de
exercício da amizade baseadas em marcadores sociais, como no período homérico. Em
suas palavras: “em Homero a reciprocidade obrigatória tem mais valor que o sentimento
nas relações interpessoais” (Konstan, 2005, p 05).
Ortega (2002) apresenta pensamento semelhante ao destacar que a Grécia de
Homero apresentava as ligações de amizade fundamentadas no parentesco e, portanto,
recobertas por rituais, códigos institucionais, sobrando-lhes pouco para um exercício de
escolha livre e desinteressada do amigo.
O atrelamento da amizade a um modo instituído de liame tem fundamento,
segundo o autor, na necessidade de uma codificação a fim de garantir a segurança do
próprio corpo social, na medida em que essa sociedade vivia de forma descentralizada,
evitando a dispersão de seus membros. Por meio desse modelo de amizade,
desenvolviam-se funções, papéis e a exigência de seu cumprimento, ou seja, certo
exercício de amizade com objetivos pragmáticos.
Ao defender a amizade por sua variabilidade histórica, Konstan (2005) propõe
que, para além dos elementos que a aproxima a coações ou constrangimentos sociais,
reconheça-se seu caráter autônomo, quer dizer, de afeição pessoal deliberada, como
125
identifica na experiência moderna, embora chame a atenção para as particularidades de
cada época. Afirma:
Mas ambas as sociedades, talvez por razões inteiramente
distintas, produziram um espaço para a simpatia e o
altruísmo sob o nome de amizade, que permanece como
uma alternativa a formas estruturadas de interação
baseadas em parentesco, identidade civil ou atividade
comercial (p. 8-9).
O autor ainda adverte para o fato de que sob o termo philía (comumente
traduzido por amizade), uma variabilidade semântica de seu uso nos textos gregos,
cabendo uma compreensão do contexto de sua aparição. Assim, o termo philía tanto
pode aludir a modos de relação com membros familiares, concidadãos ou habitantes da
mesma cidade, quanto com o amigo propriamente dito.
Essa possibilidade de associar a amizade e a figura do amigo a um campo de
escolhas e descolado de coerções sociais tornou-se possível, conforme Ortega (2002) a
partir do advento da polis, na medida em que por meio de sua cultura urbana, da
mobilidade em torno dela e de sua conseqüente diversidade étnica, houve uma
ampliação do espaço de circulação dos indivíduos, possibilitando-lhes novos encontros
e o estabelecimento de vínculos que não mais os meramente familiares ou de
vizinhança.
O estatuto das relações passou a ter na experiência da amizade um ponto forte,
podendo os cidadãos dirigir seus interesses de relacionamento de modo mais livre e
baseado na afeição. O surgimento da polis passou, desse modo, a destacar o espaço
público por meio da possibilidade de ampliação e vinculação social e afetiva entre os
homens
45
. Por essa mesma via, Konstan (2005) aponta que dentre as formas de relação
45
Ortega (2002, p. 22) destaca que uma das mais duradoras formas de agrupamento de amigos na Grécia
antiga tratava-se da heteria, tipo de vínculo entre os homens também identificada como uma forma de
amizade, mas com uma inscrição institucional e política muito forte de sustentação da polis e que se
caracterizava como “uma relação política de camaradagem militar, uma fraternidade em armas, um ‘clube
político’, no qual os homens da mesma idade e camada social ingressavam na juventude e ficavam até a
velhice.
126
entre os indivíduos na polis, a amizade era uma das que apresentava níveis mais
elevados de sociabilidade e de profundo respeito pelo seu aspecto íntimo.
Arendt (2004) identifica na vivência da polis um aspecto importante para se
refletir sobre a relação público-privado e como tal relação passou a ter contornos
específicos com o seu aparecimento. Destaca que uma vida pública e o seu exercício
estavam em franca delimitação com uma vida privada, doméstica. Como assinala:
O ser político, o viver numa polis, significava que tudo
era decidido mediante palavras e persuasão, e não através
de força ou violência. Para os gregos, forçar alguém
mediante a violência, ordenar ao invés de persuadir, eram
modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da
vida fora da polis, característicos do lar e da família, na
qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e
despóticos ou da vida nos impérios bárbaros da Ásia cujo
despotismo era freqüentemente comparado à organização
doméstica (p. 35-36).
O universo doméstico grego era regido por uma ordem das necessidades e
carências alimentares. O arranjo familiar era, portanto, guiado pelas limitações
biológicas, daí justificada a violência como uma das formas de exercício nessa esfera,
uma vez que era a manutenção da vida que estava em jogo. Compunham essa esfera,
portanto, o cidadão grego, sua esposa e os escravos. A figura feminina, nesse contexto,
dotava-se de um baixo estatuto” (Ortega, 2002, p. 25), abrindo espaço para uma
relação mais livre, afeiçoada e com conteúdos emocionais entre os homens.
Esse domínio privado ou doméstico, ao subjugar a existência das mulheres e
escravos ao homem adulto, cidadão da polis, imprimia uma relação de dominação tal
que as condições de possibilidade de uma vida afetiva e livre de desigualdades se
tornavam possíveis entre estes no domínio da vida em comum. De acordo com Ortega
(2002):
A ausência de fortes vínculos maritais e de amor conjugal,
assim como a separação estrita dos sexos designando
lugares específicos para cada um -, levou na polis clássica
127
a concentrar a paixão e a ternura nas relações entre
homens. O baixo estatuto da mulher e da sua reclusão na
esfera privada e doméstica (o oîkos), teve como
conseqüência o privilégio do culto da amizade e do amor
masculino. As relações entre homens eram marcadas pela
afeição e pelo significado emocional (...). Onde não
existia nenhum encontro público entre homens e mulheres
e a mulher se encontrava em uma relação de domínio e
submissão diante do homem, e onde necessidade,
violência, dominação e desigualdade eram os conceitos
que melhor definiam a vida doméstica (único ponto de
encontro entre ambos os sexos), não se pôde desenvolver
uma relação erótica. Pois essa pressupõe a liberdade dos
indivíduos envolvidos, expressa no jogo da sedução, na
possibilidade de dizer não e na recusa do cortejo, como
sabemos da história do amor no Ocidente. homens
livres rapazes e adultos podem ser destinatários dessa
relação erótica (p. 25-26).
Assim, a esfera pública tinha como princípio um exercício de liberdade entre
iguais; tal igualdade e liberdade eram expressas através do controle das necessidades e
da não submissão a formas de comando ou como resume Arendt (2004, p. 42): mover-
se numa esfera onde não existiam governo nem governados”.
Nesses termos, já podemos destacar que a amizade materializava-se num vínculo
interpessoal por endereçar, mesmo que concorrendo com formas institucionalizadas, um
sentimento à figura do amigo. Ortega (2002) aponta como a amizade era dotada de um
importante caráter político, público, de exercício de liberdade entre os cidadãos da polis
e Konstan (2005) comenta como os laços de amizade tinham algum poder na condução
de assuntos políticos da polis, na medida em que os grupos de amigos tanto tinham
participação nas discussões desses assuntos bem como decisões eram antecipadas
informalmente entre si.
Em alguns casos, destaca o autor, antes que um assunto que dissesse respeito a
um cidadão fosse ter julgamento nas instâncias formais da polis, um amigo mais
experiente era convocado por este para agir como uma espécie de juiz informal que
pudesse orientá-lo e aconselhá-lo.
128
Se na experiência grega a amizade era, em certa medida, reportada a um outro
concreto, real, interlocutor de idéias veiculadas na polis, reconhecidamente tomado por
um vínculo afetivo, com o advento do Cristianismo, a amizade se conformou a partir de
uma lógica de apagamento desse modo de exercício da amizade. Nas palavras de Ortega
(2004):
A philia é rejeitada pelo seu caráter egoísta e
instrumental, enquanto o agape representa a amizade
verdadeira, pois ela não forma uma atração interpessoal.
A amizade natural, isto é, a atração individual não é uma
virtude, porque se baseia em valores efêmeros e terrenos.
Transformar-se-á em uma virtude quando se encontrar ao
serviço do amor de Deus e da credibilidade (...) A philia
torna-se, assim, a caritas christiana, o amor de Deus que
une todos os homens (pp. 58-59).
Há, nesse caso, uma forte aproximação da amizade com a fraternidade, uma
amizade de irmãos. Tanto Ortega (2002) quanto Konstan (2005) observam como, a
despeito de alguns escritores cristãos
46
, o termo amizade em sua origem grega e latina (e
mesmo quando do uso dos termos latinos, seu sentido sofria profunda alteração) era
preterido por grande parte dos autores religiosos ao comentarem de uma forma de
ligação entre os homens não mais com a marca da secularidade, mas por aquilo que a
insere no plano do sagrado: “O amor de Jesus representa um apelo, uma ordem para
sermos seus amigos, a qual devemos obedecer incondicionalmente. Desaparece, com
isso, todo o elemento de afetividade na exortação de Jesus, tornando-se um vínculo de
total compromisso com a verdade divina” (Ortega, 2002, p. 57).
Konstan (2005) registra um movimento de afastamento da experiência da
amizade como pertencente a um mundo pagão e de um amor cristão (caritas, agape)
como forma religiosamente valorizada. Nesse último caso, o aspecto de livre escolha e
afeição dirigida aos amigos passagem a uma compreensão da amizade como um
sentimento universal, dirigido a qualquer um que seja identificado com o projeto divino.
46
Agostinho, Paulino de Nola e Ambrósio.
129
Assim, o jogo lingüístico endereçado aos amigos passa a identificá-los com um
vocabulário semelhante ao do parentesco. Expressões como “irmãos em Cristo”, “filhos
de Deus” ainda hoje estão em voga na tradição católica, fazendo dos cristãos e católicos
uma família universal.
Ortega (2002) alerta que essa aproximação da amizade com o parentesco
destituiu seu caráter exclusivo, afetivo e concreto na medida em que o outro cede lugar
para o próximo, mas esse próximo é difuso. Comenta que essa tradução da amizade pelo
viés familiar ainda hoje é marcante, de modo que costumamos associar a figura dos
amigos à de irmão. Esse aspecto tem um papel fundamental na medida em que localizar
a amizade no universo familiar é retirar-lhe o componente político, que a esfera
familiar tem lugar social distinto do espaço de exercício da vida política.
Ao defender um lugar de exercício político da amizade, o autor, em oposição a
uma lógica fratenalista-universalista, advoga em favor da coexistência das diversidades
culturais, étnicas, políticas, regidas pelo respeito às diferenças em detrimento de uma
igualdade ilusória que o conceito de fraternidade busca alcançar.
O advento da modernidade inaugurou uma ordem marcada, segundo Ortega
(2004, 2000) pelo exercício da amizade como experiência privada, de saturação do
universo da intimidade, de profunda psicologização da esfera pública, onde os
problemas do homem se resumem ao seu contexto de vida privada, interior à família, ao
casal, aos filhos, aos aparentados. A amizade, portanto, como exercício de uma
sociabilidade entre iguais e prenhe de garantias e conforto psicológico, protegida da
alteridade, do estranho, do alheio, do perturbador.
A instituição familiar no seu modo de organização nuclear é enaltecida e passa a
ser modelo de irradiação para outros vínculos sociais, especialmente a amizade que,
gozando de um lugar de centralidade em outras épocas e contextos, vê-se capturada pelo
modelo intimista que a família nuclear promove.
130
Vincent-Buffault (1996), ao compor um estudo acerca do exercício da amizade
entre os séculos XVIII e XIX, a partir de diários íntimos e publicações da época, aponta
movimentos que lançaram a amizade na sombra do universo familiar ou de seu
mergulho em instâncias psicológicas. Ao analisar um desses registros, afirma:
Faguet define a amizade essencialmente não como uma
paixão que deriva de nossa vontade de poder, mas como
um prazer, um gosto originário da busca do semelhante,
do horror à solidão e da necessidade de comunicação e
efusão. Essa concepção se funda em uma psicologia do eu
que não tem precedentes, pois nela se associam ao mesmo
tempo a afirmação de si e a parte de ignorância que
permite viver de ilusões relativas” (p. 95-96).
Passetti (2003) comenta um duplo jogo em torno da experiência da amizade no
âmbito da modernidade: de um lado, privatiza-se e o amigo é referido como um igual,
íntimo de si e horizontal em seu universo relacional, confortante e prestativo. Em
termos públicos, passa a ser contemplada como a forma de relação que garantiria a paz e
a harmonia intentada pelo Estado. Nas palavras do autor:
Na modernidade a amizade apresenta duas facetas. A
privada contempla a existência de cada um, seus amigos e
intimidades. A pública se volta para a permanência do
Estado, suas relações amistosas com outros parceiros,
guerras, ideal de paz perpétua e dúvidas constantes nas
oscilações dos inimigos. A amizade se encontra cindida
entre o público e o privado, mas em cada uma destas
facetas são esperados aperfeiçoamentos em busca da
realização do ideal (Passetti, 2003, p. 9).
Por essa via, o diálogo que desejamos estabelecer com o tema da amizade busca
superar uma concepção em que a mesma se volta tanto para uma categoria universalista,
bem como para uma atitude moral dotada de extrema interioridade e de apagamento das
diferenças sócio-culturais e políticas.
131
Interessa-nos pensar a experiência da amizade naquilo que a torna uma categoria
política, ou seja, de situá-la no jogo das relações da vida pública, dos embates travados
no campo social, portanto, capaz de relançar no mundo as coisas de ordem pública,
fortemente esvaziadas na contemporaneidade gerando, em contrapartida, uma
hipertrofia da esfera privada.
Torna-se necessário, então destacar que por vida pública, estamos seguindo o
pensamento de Arendt (2004) que a entende enquanto um mundo comum. Ou seja,
Um mundo que “(...) antes tem a ver com o artefato
humano, com o produto de mãos humanas, com os
negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo
feito pelo homem. Conviver no mundo significa
essencialmente ter mundo de coisas interposto entre os
que nele habitam em comum (...).(p. 62)
Jovchelovitch (2000) comenta a importância e o realce que a filósofa alemã à
esfera pública, por valorizar fortemente esse domínio que responde pela superação dos
privativismos e, portanto de destaque à pluralidade que marca a existência humana.
É visível, na atualidade, o fato de que tal pluralidade é tratada em termos de
diferenças ameaçadoras e de como o espaço público vem sendo associado ao lugar do
perigo e do risco. Em consonância com essa linha de pensamento, Sennett (1995)
assinala como o intimismo ganha fôlego à medida que o âmbito público vai sendo
abandonado, com reflexos, inclusive no uso dos espaços e nas arquiteturas que passam a
desenhar e projetar os ‘novos’ modos de circulação.
O autor toma, portanto, como exemplo o espaço urbano, em que sua
racionalidade contemporânea es a serviço de uma privatização cada vez mais forte da
vida. Temos visto claramente atuar uma arquitetura em prol desse movimento:
disseminam-se os condomínios fechados, os shopping centers, os complexos de lazer,
todos veiculando uma espécie de garantia protetora do risco que a rua, as praças, enfim
os espaços abertos promovem.
132
Assistimos um profundo desinvestimento em temas que, mesmo que digam
respeito ao destino de uma coletividade, mesmo que imbuído de toda sua força política,
para um reinvestimento de questões que animam a vida privada, que retratam universos
intimistas. Essas experiências passam a ocupar um lugar central nos meios de circulação
da vida em comum
47
.
Podemos destacar que, embora vivamos numa espécie de culto às
individualidades historicamente gestadas na modernidade (Jovchelovitch, 2000), é
também verdade que formas de resistência a esse modelo, bem como manifestações de
reiteração da importância de um domínio público se fazem atuantes.
O nosso posicionamento é de que alguns movimentos sociais da atualidade,
citados neste trabalho, participam dessa tentativa de retomada da cena pública e o MST,
a nosso ver, destaca-se como um ator importante nesse processo no cenário das lutas
brasileiras. Suas ações permitem aparecer um novo investimento na vida pública,
tomando-a como uma das mais importantes formas de experimentação de seu projeto,
bem como um potente campo de atuação para sua militância, fato que, para nós, abre a
possibilidade de recolocar a questão da amizade no exercício mesmo dessa militância.
Identificamos como no MST se opera uma riqueza na criação de espaços e
instâncias em que essa dimensão pública é valorizada em detrimento de um campo
privado, sendo este inclusive alvo de questionamentos. Os cursos que têm participantes
de todo o país, os congressos nacionais, estaduais e regionais, as mobilizações e
marchas põem em contato uma série de integrantes que vão, passo a passo, construindo
laços, afinidades, preferências, ampliando níveis de sociabilidade, mas que, no entanto,
tais aproximações não comprometem as demandas mais gerais do movimento.
47
A título ilustrativo, podemos destacar o crescimento espetacular das chamadas literaturas de auto-
ajuda, que passaram a ter lugar especial nas livrarias, dada sua grande procura e sua exaustão discursiva
em torno da dimensão privada e intimista das subjetividades, portanto de despolitização das ações dos
indivíduos. Há, nesse material, uma farta promessa de sucesso pessoal na medida em que o sujeito passe a
colocar-se como centro racional de sua vida, por meio de pensamentos positivos e persistentes, motivados
e direcionados para seus sonhos ou projetos de vida.
133
Um de nossos entrevistados (J., 30 anos, em entrevista no dia 05/08/06,
Pernambuco) comentou de sua experiência no curso de Pedagogia da Terra, ressaltando
como o espaço do coletivo mobilizou um exercício em que a dimensão de comum é
muito presente. Afirmou que a turma conseguiu aprender a viver em coletivo, conseguiu
perceber o outro de modo a identificar seus sinais ou expressões afetivas de alegria,
tristeza, indignação, já que essas trocas são marcantes em alguns militantes. Destacou
que é preciso haver uma disposição do militante para enxergar esse processo ou nas
suas palavras: Se você se deixar, se não se fechar para o coletivo, vive essa riqueza”
(J., 30 anos, em entrevista no dia 05/08/2006, Pernambuco).
Encontramos nas formas de relação estabelecidas entre a militância uma
variação em que o termo amizade apresenta uma polifonia que tanto a qualifica com
uma gramática familiar, ao supor o MST como uma grande mãe” e que os militantes
fazem parte de uma família postiça” (M., 28 anos, em entrevista no dia 21/04/2006,
Pernambuco), como também de um exercício em que a convivência com a diferença se
torna atrativo e enriquecedor, seja pela troca de experiências, seja pelo contato com
pessoas de estados e culturas diferentes (Lu., 53 anos, em entrevista do dia 08/08/2006,
Rio Grande do Norte).
Há, por um lado, uma identificação da amizade como uma forma importante de
relação entre os militantes, na medida em que ela parece possibilitar trocas afetivas,
cumplicidades, clima de confiança mútua e certa intimidade, fato que para alguns é
preciso ser dosado quando do exercício da militância. Esse modo de ligação dos
militantes, tanto entre si quanto junto à base, é alimentado por uma participação
continuada no cotidiano dos demais integrantes do movimento.
Os militantes chegam a ficar dois, três meses em alguns acampamentos e
assentamentos, compartilham do seu cotidiano, vivem em conjunto as mesmas
dificuldades e enfrentam questões semelhantes, aproximando-os cada vez mais do
134
universo em que se inserem, daí desenvolver laços espontâneos e afetivos com demais
integrantes do movimento. Não raro são os casos em que os militantes oriundos de
regiões distintas do país acabam se estabelecendo em alguns lugares por mais tempo
porque lá se casam e têm filhos.
Embora em algumas entrevistas, fosse apontada uma relação muito próxima e
não excludente entre amizade e militância, no entanto esta última, ao ser exercida,
deveria considerar certo ‘afastamento’ para que se evite uma familiarização ou confusão
de papéis e o lugar do militante são seja posto em questão.
Em uma dessas entrevistas, um militante chamou a atenção para o fato de que
uma amizade profunda pode atrapalhar. Assinalou que antes ou após as reuniões,
abraços, beijos, pode-se aceitar convite para se hospedar na casa de algum assentado ou
na barraca de um acampado, mas que essas expressões de afeto não podem
comprometer os interesses maiores do movimento. Contou, inclusive, que numa reunião
que estava coordenando, agiu diante de seu pai “como assentado e não como meu pai”
(M., 28 anos, em entrevista no dia 21/04/2006)
48
. Sua fala apontou para uma
necessidade de especificar papéis junto ao grupo, mesmo que seu exercício adote certa
flexibilidade.
A preocupação de M. com um cuidado na maneira de como um militante deve se
relacionar pode ser compreendida pelo fato de que se essa relação é vivida num modelo
intimista, acaba por fazer dos interesses comuns secundários, e o que seria de interesse
de uma esfera coletiva perde seu vigor para outras formas de relação que não
comportam as questões públicas.
A abertura para esses espaços coletivos e os modos de seu uso leva os militantes
a viver um dilema que diz respeito a toda uma maneira como suas subjetividades estão
arranjadas. Identificamos com isso, uma tensão público-privado, em que os militantes se
48
Na entrevista, relata que o ponto de divergência estava ligado à forma de administração de um crédito
para investimento no assentamento.
135
reconhecem num processo ininterrupto onde experimentam uma alteração às vezes
radical no que seria algo de uma ordem privada e de uma ordem pública.
A amizade, assim cultivada no âmbito público, tem sido por nós pensada
enquanto modo de relação que vai permitindo, no cruzamento com a militância,
inaugurar laços que a potencialize enquanto prática de reconhecimento da alteridade, de
valorização dos assuntos e temas de ordem comum, de incitação de modos de
subjetivação que produzam nas pessoas interesse por uma vida compartilhada e,
portanto capaz de acolher projetos de natureza ético-estética.
A nosso ver, essa compreensão da amizade e da militância como um fenômeno
que a ela se agencia se torna possível na medida em que lançamos um olhar sensível
para os movimentos menores, para os gestos pequenos e para as palavras curtas que se
produzem nos encontros entre militantes, mas também nos embates políticos e nas
formas várias de mobilização, nas conversas informais, no cotidiano de um grupo que, a
despeito de se ver à mira de uma subjetivação disciplinarizadora, molar e binária, acaba
concomitantemente produzindo variações e dissonâncias e assim segue exercitando
formas de liame que vazam por muitos lados, que permitem a composição de campos de
natureza micropolítica capazes de inaugurar novos jogos de força nas relações
cotidianas que, embora gestados no espaço interno do movimento, adquirem fôlego para
espalhar-se pelas demais esferas da vida.
Ao longo de nossa investigação, três desses campos provocaram nosso olhar na
medida em que sentíamos neles a possibilidade de produzir uma articulação entre os
modos de subjetivação militante e a amizade enquanto exercício político. São eles:
A) Os encontros e eventos que reuniram militantes e demais integrantes do
MST, especialmente quando se configuravam em ações coletivas (marchas,
mobilizações, eventos culturais, de confraternizações e o congresso nacional do MST).
Esse campo está por nós denominado: Da massa à multidão.
136
B) O campo das relações de gênero, mais detidamente, no tocante aos
atravessamentos da experiência da militância entre mulheres integrantes do MST. A
esse campo nomeamos: (Des)fazendo gênero na luta pela terra.
C) Por fim, tratamos do campo da sexualidade, especificamente do tema das
minorias sexuais na esfera da militância política. Esse campo intitulamos: Diversidade
sexual na militância do MST.
Buscamos, ao atentar para esses recortes, vislumbrar como cada um, ao seu
modo, possibilita experimentações deflagradoras de sensibilidades, intensidades e afetos
que pedem passagem e que lutam para se recompor em novos territórios existenciais.
Acreditamos que a viabilização desses territórios pode se intensificar na medida em que
laços de amizade vão se desenhando na perspectiva de valorização da heterogeneidade
produzida no interior desses campos.
5.2. Da massa à multidão
O propósito desse campo é desenvolver uma articulação entre o cenário de
expressões coletivas do MST (marchas, mobilizações, eventos, congressos) e sua
relação com o exercício da amizade, tomando como referência o conceito de multidão
proposto por Hardt e Negri (2005) e Negri (2003).
No âmbito da Psicologia Social tradicional, o fenômeno das multidões foi
identificado como uma espécie de manifestação patológica empreendida por um
coletivo que agia de modo irracional. Foi por essa perspectiva que Gustave Le Bon,
considerado importante psicólogo social francês do final do século XIX e início do
século XX, tratou da questão.
Vale ressaltar que as condições promotoras dessa visão ligavam-se a um
conjunto de eventos sociais, econômicos e políticos vividos por alguns países europeus
137
(França e Inglaterra
49
, especialmente) em decorrência dos efeitos das revoluções
econômicas (Revolução Industrial inglesa, por exemplo) e políticas (Revolução
Francesa) que consolidaram o capitalismo naquele continente. Portanto, os movimentos
operários e suas formas de protesto que fizeram emergir um sujeito coletivo (Chaves,
2003) como forma de questionamento do modelo econômico e político em curso eram
vistos como perturbadores da ordem social, daí a produção de uma concepção que
aproximava a multidão e as massas de um estado patológico profundo.
Assim, para Le Bon (apud Silva, 2005), as multidões, diferentemente de serem
pensadas como um fenômeno que revelava as profundas contradições do regime político
e econômico liberal da Europa de final de século XIX
50
, foram tomadas de modo
bastante conservador que deveriam ser responsabilizadas por desajustes sociais e
quebra da ordem vigente, devido seu caráter subversivo, cabendo aos governos medidas
que pudessem contê-las, por serem caracterizadas de modo impulsivo e ameaçador.
Necessitavam, ainda, de um líder, um mentor que pudesse conduzi-las, pois sua
dimensão irracional não permitia discernimento para sua autodireção. De acordo com
Silva (2005):
Essas subversões assinalariam os riscos de ruptura do
modelo social em vigor, modelo este que deveria qualquer
preço ser preservado. Para Le Bon, as multidões não
evocariam o apelo de uma classe explorada e, ao mesmo
tempo, essencial às engrenagens da máquina capitalista.
Elas seriam apenas uma massa nebulosa, imprevisível e,
portanto, ameaçadora (p. 57).
49
Guimarães (1982/2008) destaca alguns fatores vinculados à Revolução Industrial inglesa: intensa
migração da população rural para áreas urbanas em função da incorporação de novas tecnologias que
dispensavam o trabalhador agrícola, bem como a concentração fundiária e o empobrecimento dos
pequenos produtores; a ausência de empregos e condições degradantes de vida geradas, em parte, pela
exploração do trabalho ou pela marginalização dos que não tinham emprego. Tais fatores permitiram um
conjunto variado de modos de protesto que iam desde os furtos, assaltos e crimes até a composição de
sindicatos, entidades trabalhistas que, por meio de greves e negociações passaram a ter, no âmbito da
legislação inglesa, alguns direitos trabalhistas conquistados.
50
Silva (2005) resume que tais contradições vividas pelos Estados europeus nesse contexto estão
basicamente ligadas a um regime político democrático, em que no plano das idéias estava posto um
discurso de igualdade entre os homens e, por outro lado, a presença de um regime econômico gerador de
profundas desigualdades sociais e exploração de um grande contingente de trabalhadores.
138
A multidão aparece, aqui, como uma massa amorfa e unitária, totalizada numa
visão caótica e passível de controle pelas forças do Estado, que poderiam
desestabilizar, por meio de sua carga emocional irrefreável, a estrutura social vigente.
Chaves (2003) lembra que as multidões eram consideradas, nesses termos,
desprovidas de uma vontade própria, deixando vazar seus instintos e podendo agir sob o
comando de um líder que poderia incitá-las a uma ação irrefreada e extremada. As
individualidades que compunham as massas se despersonalizavam, de acordo com Le
Bon (apud Chaves, 2003), abrindo caminho para uma entidade coletiva (a multidão)
regida não pelo crivo da razão, mas por uma instintividade ameaçadora do tecido social.
Hardt e Negri (2005) ao comentarem o pensamento do autor francês, afirmam
que este não vislumbrava nas massas uma possibilidade de racionalidade do
pensamento, mas do contrário, “uma voz indiferente e irracional” (p. 328) que, de modo
inconsciente e suscetível, comandava gestos e atos irrefreáveis.
Ainda hoje essa concepção é flagrante, especialmente num pensamento
midiático, em que muitas vezes determinadas manifestações sociais são interpretadas ou
entendidas como expressão de um aglomerado desgovernado e perigoso. Esse,
inclusive, é um entendimento compartilhado pela mídia acerca das ações do MST:
espécie de um amontoado de sujeitos que agem munidos de foices e facões,
promovendo violência e seguindo de modo hipnótico ordens e comandos de um grupo
minoritário dominante.
Ao divulgarem as ações de mobilização e manifestação do MST denominadas de
“Abril Vermelho”
51
, a revista semanal Veja e alguns jornais televisivos têm insistido
numa relação do termo ‘vermelho’ a ações violentas e criminosas praticadas pelo MST
e seus dirigentes. A revista descreve em uma de suas matérias os sem-terra como uma
turba comandada por líderes que os incitam a práticas criminosas (Ver anexo 01).
51
Conjunto de manifestações e protestos realizados pelo MST a cada mês de abril para relembrar à
sociedade e pressionar autoridades públicas por justiça em relação ao massacre promovido pela polícia do
Estado do Pará que matou 19 trabalhadores sem-terra, em Eldorado dos Carajás.
139
Negri (2005) adverte como, em geral, as notícias veiculadas sobre a ação de
movimentos sociais relatam basicamente os episódios de violência que envolve suas
manifestações e cita como exemplos os protestos de manifestantes de várias entidades
durante as reuniões de corporações internacionais como o Banco Mundial e o FMI,
assim como da OMC, ocorridas em cidades como Seattle (Estados Unidos, em 1999).
Por outro lado, a própria estrutura interna do movimento leva-nos a identificar
que há, entre alguns dirigentes do movimento, concepções que se assemelham a essa
visão de que há uma massa mal informada que precisa ser liderada e comandada. Existe,
dentre os setores ou núcleos organizativos do movimento, um que é denominado de
Setor de Frente de Massa que atua baseado nessa concepção: de um lado os militantes e,
de outro lado, uma base social que precisa ser conscientizada e dirigida pelos líderes da
organização, já que carregam vícios históricos que impedem a ação revolucionária.
É de modo bastante diferente que o conceito de multidão comparece na obra de
Hardt e Negri (2005) e Negri (2003). Do contrário, tais autores aportam uma visão das
multidões sob um enfoque bastante potente para se pensar as formas de lutas políticas
esboçadas na contemporaneidade.
Para tanto, advertem que o termo distancia-se da noção de povo, por entenderem
que este último carrega uma forte idéia de unidade populacional que guarda direitos e
deveres sob a gerência de um Estado, garantindo a si uma identidade que faz apagar as
singularidades e as diferenças sociais e fazendo do povo uma “unidade indiferenciada”
(Hardt e Negri, 2005, p. 139), vivendo sob a égide de que governantes e governados.
Segundo os autores:
A multidão designa um sujeito social ativo, que age com
base naquilo que as singularidades têm em comum. A
multidão é um sujeito internamente diferente e múltiplo
cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou
na unidade (nem muito menos na indiferença), mas
naquilo que tem em comum (Hardt e Negri, 2005, p. 140).
140
É importante ressaltar que o entendimento de comum não designa consenso ou
unidade em torno de uma figura soberana de representação dos governados, mas como
alerta Negri (2003) diz de uma experiência de associação e disseminação de atividades
criativas produzidas em redes de cooperação.
Ao esboçarem o conceito de multidão, os autores articulam-no com o modo a
partir do qual o capital lança, de um jeito renovado, seu exercício de dominação na
contemporaneidade, por meio de uma associação entre especulação financeira
internacional e utilização de recursos poderosos de natureza tecnológica e midiática.
Como apontado anteriormente, essa configuração globalizada de incursão das
forças capitalistas sobre os mais recônditos espaços do planeta, alterando a velocidade e
o espaço de suas conquistas para um patamar impessoal, implica no surgimento de
novos modos de controle e de exploração que também passa a ocorrer com o mesmo
ritmo.
Para Hardt e Negri (2005), o capital muito extrapolou o chão das fábricas e
expandiu-se a ponto de não se reconhecer “um lado de fora do capital, nem tampouco
um lado de fora da lógica do biopoder” (p. 142). Daí destacarem a multidão como uma
força múltipla que deve também agir de modo a superar os particularismos e encontrar
um campo de luta comum.
As formas criativas e cooperativas das multidões são importantes ferramentas de
aglutinação na luta, também globalizada, de enfrentamento do capital. Caiaffo, Silva,
Macerata e Pilz (2007) assim resumem essa relação de embate: “Como o próprio
Império, a multidão também é imediatamente mundial e seu poder é ascendente,
proliferando entre as redes do Império, como um conjunto de partículas soltas no seu
próprio mecanismo” (p. 31).
Um dos aspectos consideráveis nessa abordagem é como ela coloca em questão
o conceito tradicional de soberania a partir da qual um corpo político invariavelmente
141
obriga a existência de governados, comandados e por outro lado, governantes,
soberanos que exercem seu domínio sobre aqueles. Para os autores, embora a
multiplicidade seja uma marca da multidão, ela mesma apresenta potencial para se
governar por meio de uma ação comum, daí concluírem ser esse um grande desafio para
as multidões, pois liberadas de um representante que as conduza, teriam a possibilidade
de realização da democracia.
Negri (2003), ao conceituar a multidão, elenca três aspectos: a) a multidão como
imanência, b) como um conceito de classe e c) como conceito de uma potência.
A multidão como imanência
No primeiro caso, o autor reforça o desligamento da experiência da multidão
com um plano transcendente, ou seja, como uma imagem abstrata como se definiu
conceitualmente o povo ou as massas, ambos unidades homogêneas regidas por um
soberano.
O argumento de que a ausência dessa transcendentalidade e com ela a figura do
soberano desembocaria na vivência de uma espécie de caos social reflete, segundo
Negri (2003), uma concepção idealista que povoa fortemente a modernidade e teve
importantes filósofos como Rousseau, Hegel e Kant como seus defensores. Do
contrário, propor uma imanência à multidão é valorizar o fato de que ela não necessita
de tal abstração representada na figura do governante para expressar-se, pois assim seria
golpear as singularidades constituintes da multidão e negar a possibilidade que tais
singularidades têm de falar por elas mesmas. Se, no pensamento político moderno
hegemônico, como lembra o autor, as singularidades da experiência humana foram
negociadas em troca do direito de propriedade, nesse caso: não é de indivíduos
142
proprietários que se trata, mas de singularidades não-representáveis” (Negri, 2003, p.
163).
A multidão como conceito de classe
Definir a multidão como um conceito de classe é um dos termos mais discutidos
pelos autores, pois aqui revisitam o pensamento de Marx e sua teoria acerca da luta de
classes sob a égide da acumulação capitalista e introduzem uma nova indicação de que a
categoria classe pode ser visualizada para além do seu traço exclusivamente econômico
e que, portanto, não se limita aos proletários e operários explorados pelas relações
capitalistas de produção.
Parece que uma das opções dos autores pela associação da multidão com a classe
é ressaltar que ambas são produtivas e exploradas. No entanto, enquanto no conceito
tradicional de classe tanto a produção quanto a exploração incidem essencialmente
sobre os trabalhadores das fábricas e indústrias ou sobre um corpo social idealizado a
massa de trabalhadores operários –, no caso da multidão a exploração e produção se dão
de modo indefinido sobre as singularidades que a compõem, especialmente pelas
formas biopolíticas de gestão da vida.
Com isso, o que esses autores desejam ressaltar é que uma profusão de
formas de vida que exercem atividades produtivas sob os impositivos do capital e, por
isso mesmo, visam formas de recusá-lo. Nesses termos a multidão incorpora uma
multiplicidade de modos produtivos que não determinam prioridade política, como no
caso da classe operária. Assim destacam os autores: “todas as formas de trabalho hoje
em dia são socialmente produtivas, produzem em comum e também compartilham um
potencial de resistir à dominação do capital” (Hardt e Negri, 2005, p. 147).
143
Para uma compreensão de uma produção e de uma exploração indefinidas no
âmbito da multidão, Negri (2003), Hardt e Negri (2005) e Lazzarato e Negri (2001)
lançam mão de um conceito que repõe o lugar do trabalho no processo produtivo: o
trabalho imaterial como uma forma contemporânea importante de produção social pelas
multidões.
Compreendido, em linhas gerais, como uma modalidade de trabalho que, mais
do que nunca, mobiliza intelecto e cognição, emoções e afetos, abertura de canais
variados de comunicação (interpessoais, midiáticos) e atividades simbólicas e gera
como fruto ou produto pensamentos e idéias, imagens, símbolos, sensações de bem-
estar, paixões, enfim, modos de subjetivação, o trabalho imaterial responde, segundo
Hardt e Negri (2005), como uma das mais imperiosas formas de relação dos homens
com a vida na atualidade. Daí aproximarem-no com o dispositivo biopolítico porque em
sua concepção são as dimensões variadas da vida até então compreendidas como
separadas (econômica, política, cultural, subjetiva) que se aproximam cada vez mais na
realização do trabalho imaterial.
Um conjunto variado de realização dessa modalidade de trabalho é identificada
nas atividades de prestação de serviço, no campo da educação e da formação
permanente dos profissionais, da saúde, nos modos de relacionamento incentivados nos
ambientes de trabalho, na estimulação das atividades em equipe onde se exerce uma
busca constante pela inovação e criação de idéias e atitudes, mobilizando os sujeitos e
suas paixões, seu engajamento pleno nas ações de planejamento, de execução, de
envolvimento emocional com as tarefas e com os colegas de trabalho.
Um elemento que se redefine no âmbito do trabalho imaterial diz respeito ao
tempo de execução de uma tarefa, fazendo com que a lógica de exercício de um poder
disciplinar assuma os efeitos de um poder baseado no controle (Deleuze, 2000). Se o
trabalhador de fábrica tem uma jornada de trabalho rígida que acaba com o final do
144
expediente, agora, tendo como produto e as ferramentas para atingi-lo o campo dos
afetos, a variável tempo é extrapolada:
Quando a produção tem por objetivo resolver um
problema, no entanto, ou criar uma idéia ou uma relação,
o tempo de trabalho tende a se expandir para todo o tempo
de vida. Uma idéia ou uma viagem vem a nós não
somente no escritório, mas também no chuveiro ou nos
sonhos (Hardt e Negri, 2005, p. 154).
Uma importante contribuição dessa abordagem, a nosso ver, diz respeito ao
modo como as variadas formas de vida social são pensadas não em termos de se
posicionarem de modo excludente das formas produtivas atuais. Do contrário, são
situadas no cerne da produção social.
Ao refletirem sobre os pobres, os desempregados, os trabalhadores informais, os
sem-terra e sem-teto, os autores apontam como tais classes participam ativamente da
vida social, abandonando a idéia de que são dela expurgo ou descarte. Assim, como
nova modalidade, a produção biopolítica envolve a todos. No caso dos pobres, é visível
sua participação seja como alvo de investimento social pelas inúmeras políticas
públicas, seja em atividades de prestação de serviços turísticos, no trabalho imigrante,
nas atividades comerciais informais (um gritante exemplo disso é a venda de produtos
pirateados), seja ainda na produção de atividades altamente criativas como forma de
produção de vida.
O nosso país, parece, é possuidor de uma criatividade impressionante em matéria
de atividades produtivas que coexistem com o trabalho assalariado: desde catadores de
latinhas de cerveja e refrigerante, vendedores de churrasquinho (forma consagrada de
consumo e lazer entre certos segmentos da população) a ambulantes que oferecem os
mais variados tipos de produto, passando por massagistas, cartomantes e conselheiros
espirituais de toda sorte que circulam pelas praças e praias.
145
Além disso, os autores advertem como se torna cada vez mais impreciso
estabelecer limites entre os empregados e desempregados, entre assalariados e não-
assalariados na medida em que a flexibilização do trabalho mina com identidades fixas
como a de trabalhador ou funcionário efetivo.
São esses elementos que vão possibilitando uma partilha para um conjunto de
singularidades que faz das variadas formas de vida uma multidão, dotando-a de uma
característica importante para os autores: não somente como forma singular e partilhada
de produção, mas também de resistência (Hardt e Negri, 2005).
A multidão como potência
Esse parece ser o elemento em que a multidão é mais tratada pelos autores como
um projeto em experimentação que pode realizar-se na medida em que resiste aos riscos
da representatividade que capturou historicamente os grupos humanos sob a idealização
de um povo e de uma massa, bem como de modos de gerir esse povo, através do
contrato social e das formas de governo.
A potência da multidão está em poder considerar a cooperação das
singularidades que a constituem, fazendo de si um “ator vivo de auto-organização”
(Negri, 2003, p. 166), vivendo modos de subjetivação que escapem às incursões de um
poder que queira nomeá-la e governá-la.
O autor aponta como as singularidades presentes na multidão podem dotá-la de
uma potencialidade que não a esgote,que é por meio dessas singularidades que ela se
renova enquanto partilha. Ao refletirem sobre a possibilidade que tais singularidades
têm de esboçar a partilha e o comum pela via do trabalho e, inclusive pensando as lutas
por terra no Brasil, Hardt e Negri (2005) destacam:
146
Desse modo, a tendência da figura do camponês a tornar-se
hoje em dia uma categoria menos separada e distinta é
indicativa da tendência geral de socialização de todas as
formas de trabalho. Assim como a figura do camponês
tende a desaparecer, o mesmo ocorre com a figura do
operário industrial, o trabalhador da indústria de serviços e
todas as demais categorias separadas. E por sua vez as lutas
de cada setor tendem a transformar-se na luta de todos. As
lutas mais inovadoras dos agricultores hoje em dia, por
exemplo, como as da Confederação Camponesa na França e
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
no Brasil, não são lutas fechadas e limitadas a um único
setor da população. Elas abrem novas perspectivas para
todos, em questão de ecologia, pobreza, economia
sustentável e na realidade em todos os aspectos da vida (p.
170).
O nosso contato com as instâncias coletivas do MST permitiu ler entrelinhas que
o aproxima das proposições dos autores acima abordados para a experiência da
multidão. Se partirmos, inicialmente da díade singularidade e partilha, é visível como as
diversas formas de inserção no MST nos alertam para a impossibilidade de
homogeneizá-lo.
Se investimento na luta pela conquista da terra, também investimento em
conquista de políticas voltadas para as especificidades do trabalho rural, para a
educação em seus diversos níveis, na formação profissional de educadores,
trabalhadores da saúde, engenheiros e técnicos em agronomia, advogados,
comunicadores, intelectuais etc.
Esse tipo de investimento inaugura, portanto, uma gama de atividades imateriais
que formam boa parte dos integrantes do MST como profissionais que não executam
exclusivamente o trabalho agrícola, mas a sua inserção num conjunto de atividades em
que os elementos que qualificam o trabalho imaterial estão bastante presentes (criação
de redes de comunicação, prestação de serviços, investimentos afetivos, sensação de
bem-estar, produção de um sonho de esperança). ainda investimento na articulação
147
do próprio movimento com outras organizações que denunciam formas de
assujeitamento (movimentos étnicos, de minorias sexuais, ecológicos etc.).
Um desafio que toca o MST, como toca as multidões, está, a nosso ver, na
criação dessa rede de cooperação, de um agir em comum, de definir esse campo da
partilha diante de tantas singularidades que a ele se aglutinam. Talvez esteja, aí, um
exercício de experimentar o próprio MST e as demais formas de luta contemporânea por
meio da potência que o cerca.
Imagem 09: Praça de Alimentação - V Congresso Nacional do MST (Brasília – DF).
Parte dessa potência, acreditamos, está na propositividade de muitas ações do
movimento que se convertem em trabalho imaterial e que inaugura redes de cooperação.
Podemos ilustrar como o MST em parceria com outros movimentos (CONTAG, CPT)
vem se organizando para ampliar tais redes, por meio da consolidação de cursos em
nível de graduação e pós-graduação para seus integrantes.
Através de convênios com o PRONERA
52
, o MST tem buscado construir
parcerias com instituições públicas de ensino superior que possam oferecer tais cursos.
52
O PRONERA é coordenado e executado pelo INCRA e conta com uma comissão composta de
representantes de movimentos sociais rurais, representantes do governo federal e profissionais do campo
da Educação, geralmente ligados a instituições de ensino superior.
148
Nesse momento, inicia-se um debate entre de um lado, o movimento social e de outro,
servidores públicos, com vistas à efetivação de um projeto de formação profissional,
uma zona de comunicação, um ponto em comum entre o projeto de cada um desses
atores sociais, sem que haja sufocamento das singularidades que compõem cada um
desses atores.
Ao acompanhar o curso de Pedagogia da Terra, no Estado do Rio Grande do
Norte, como professor, e ter participado inicialmente de uma comissão para a criação de
um curso de Psicologia na perspectiva do PRONERA, percebi a atuação dos integrantes
do MST muito voltada para a abertura de redes de cooperação que pudessem viabilizar a
realização do curso.
No segundo semestre do ano passado, foi realizado, na Escola nacional de
Florestan Fernandes, o principal centro de formação do MST, na cidade paulista de
Guararema, um curso destinado a militantes de vários movimentos sociais da América
Latina (Brasil, Peru, Colômbia, Bolívia, México, Venezuela, Cuba etc.), proposto pelo
próprio MST.
Segundo E. (23 anos, em conversa informal, Pernambuco), participante do curso,
que durou dois meses, com aulas e discussões diárias coordenadas por palestrantes e
intelectuais convidados de várias partes da América Latina e Europa
53
, um de seus
principais objetivos era o de construir formas coletivas e ampliadas de combate ao
capital, de buscar pontos de integração entre os povos a fim de resistirem e combaterem
as formas de assujeitamento levado a termo pelas forças capitalistas.
Combinação entre trabalho imaterial e produção de redes de cooperação, o MST
insiste por meio de ações como essas por uma recriação subjetiva na forma de um
grande coletivo social. Se sua mística e subjetivação militante respondem por uma
forma de produção social imaterial que busca como produto uma ordem identitária, por
53
Uma dessas atividades, em forma de debate, chegou a contar com a participação do sociólogo
português Boaventura de Souza Santos.
149
outro lado, terá de reconhecer e dar legitimidade a outras possibilidades de subjetivação
que vai se deparando quando do encontro com os outros atores dessas redes.
Um elemento que pode ser elucidativo desse argumento é uma imagem guardada
durante minha participação no congresso nacional do movimento, em junho de 2007,
em Brasília. Em dado momento, encontrei-me com alguns militantes que tinham sido
alunos do curso de Pedagogia da Terra (inicialmente três), posteriormente foram se
aproximando outros militantes, de regiões variadas do país, que conheciam os militantes
com quem eu estava conversando em função de uma pós-graduação que estão cursando
no Paraná. Ainda depois chegaram à mesa integrantes de organizações não-
governamentais da Suíça e França e um mexicano que, tendo anos atrás vindo visitar o
MST, acabou ficando no país e trabalhando com o movimento.
Aquela profusão de sotaques, de rostos e feições, de idéias, de experiências
narradas pelo grupo, de histórias de suas áreas de assentamento, acampamento, de
investidas numa luta que se desenha para além do território nacional, chamaram-me a
atenção. A informalidade do encontro deixava ainda mais espontâneas as conversas, as
risadas, as discussões e a alegria do reencontro.
A imagem do rizoma
54
caberia perfeitamente naquela ocasião: se integrantes do
movimento vieram de todos os estados do Nordeste para o curso de Pedagogia da Terra
e isso já abria uma rede de contatos, com a pós-graduação no Paraná, outra rede se
configurava e assim sucessivamente. Singularidade e partilha numa noite que
apresentava no palco ao lado talentos culturais de diversos assentamentos do país. Uma
imagem bem distinta, por exemplo, da marcha realizada no último dia do evento até a
Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional: a sisudez da militância ecoando
54
A imagem do rizoma, resgatada por Deleuze e Guattari (1995) da Botânica, aponta uma proposta de
compreensão de que há, entre os elementos (linguagem, desejo, subjetividade, coletivo, minoria,
multidão, corpo, movimento social), relações não-estratificadas ou hierarquizadas. Para esses autores, os
fenômenos deveriam ser tomados pelo “meio”, assim como um rizoma que, não tendo uma raiz-pivô,
pode ser tomado por qualquer de suas partes, sem começo nem fim. O seu oposto é, justamente, o modelo
de raiz única, arborescente. Assim, uma compreensão dos fenômenos os mais variados tomada pelo
modelo arborescente impede a possibilidade de vislumbrar a sua complexidade e de destacar os inúmeros
vetores que concorrem na configuração do fenômeno.
150
palavras de ordem, a ortopedia das fileiras em marcha e a uniformidade das cores e
vestimentas divergiam de um MST múltiplo, pleno de singularidades como presenciei
naquela mesa.
Mais do que um corpo unitário, encontrei ali singularidades que buscam projetos
comuns: agricultores, professores, religiosos, intelectuais, estudantes, desempregados
urbanos, militantes. Um MST habitado por formas de vida social variadas: um MST
multidão.
Imagem 10: Frevo no Planalto Central: noite de apresentações culturais no V Congresso
Nacional do MST (Brasília – DF).
Nesses termos é que apostamos na amizade como fenômeno que negocia as
singularidades e a partilha. Exercício político que faz as inúmeras subjetividades
presentes no movimento acamparem num terreno prenhe de alteridade, espécie de polis,
de singularidades que não merecem sua destruição em prol de um alisamento, mas do
contrário, de habitar um território em que muitas noites como aquela que vivi possam
devir.
151
Imagem 11: um cartógrafo e uma paisagem psicossocial: V Congresso Nacional do MST (Brasília – DF).
Foto: Rodrigo
5.3. (Des)fazendo gênero na luta pela terra
As relações familiares e, consequentemente os papéis de gênero no interior
familiar são um aspecto digno de nota na presente investigação, na medida em que são
fenômenos profundamente alterados quando do confronto com certa subjetivação
militante.
Tanto a vivência coletiva nos cursos de formação quanto os conteúdos deles
apreendidos passam a reconfigurar os lugares anteriormente estabelecidos no interior do
casal e do lugar na família. O público e o privado passam a dialogar com o
atravessamento de uma esfera na outra e a ação militante tem uma função importante
nesse processo.
J. (30 aos, em entrevista no dia 05/08/2006), por exemplo, narrou como o
processo de formação política com seus conteúdos e vivências de natureza coletivista
redimensionaram suas funções domésticas, em que passou a dividir tarefas com a
esposa, como cuidar dos filhos e cozinhar ou usar o tempo em casa para estudar e fazer
leituras, tarefas presentes no cotidiano dos cursos de formação do MST. Chegou a
perceber como foi diminuindo uma mentalidade machista que tinha anteriormente e de
152
como foi produzindo uma reflexão em torno de suas práticas diárias a fim de notar
sensível diferença, fato que chamou atenção, inclusive de familiares e amigos
55
.
No caso das mulheres, esse aspecto se torna mais gritante, pois um dos pontos
mais fortes da atuação da militância são os inúmeros deslocamentos para outras áreas de
trabalho ou para freqüentar os cursos de formação que podem custar três meses de
ausência do lar. Isso gera, segundo algumas entrevistadas, uma questão para a relação
familiar, na medida em que sua ausência faz vibrar um modelo tradicional de família
que reservava a esfera do lar para as mulheres com toda sua disposição para os afazeres
domésticos e cuidados dispensados para as crianças e o esposo.
Em conversa com uma militante (R., Rio Grande do Norte, em conversa
informal), ela destacou que as sucessivas saídas do ambiente familiar, composto por seu
esposo e dois filhos, para coordenar algumas ações do movimento ou para cursos de
formação - ações essas que levavam dias ou meses inicialmente geravam muitos
conflitos devido sua ausência no lar, fato que acabou forçando o seu marido a assumir
algumas das tarefas domésticas. Contou que: “ao chegar em casa,, encontro a casa bem
arrumadinha e meu marido às vezes brinca comigo: ‘prá onde é a próxima viagem?’”
L. (35 anos, em entrevista no dia 21/04/07, Pernambuco) lembrou em sua fala
das inúmeras vezes que o retorno ao lar e à sua família depois de prolongados tempos
ausentes demandava-lhe uma série de tarefas e funções que a inserem nesse lugar
tradicional. Os filhos e o esposo pedem mais atenção, as atividades domésticas se
acumulam e, no entanto, ela se recusa a largar a luta do MST.
Ela parece desejar é mesmo um movimento que põe em marcha a possibilidade
de experimentar outros territórios existenciais que não o já socialmente destinado de
mulher-dona-de-casa e disse seguir firme no seu projeto de dedicação ao movimento,
sentido falta do mesmo quando passa “muito tempo em casa”.
55
Essa mesma preocupação J. demonstrou certa vez quando convidei a ele e um grupo de alunos do curso
de Pedagogia da Terra para um almoço em minha casa. Ao término da refeição, prontamente propuserem
realizar a tarefa de lavar e secar a louça.
153
Rolnik (2006) compôs uma cartografia de um movimento de forças vivido,
principalmente por mulheres brasileiras no contexto dos anos setenta e oitenta. Segundo
o próprio título da obra, a autora buscou por meio de uma cartografia sentimental captar
uma paisagem psicossocial em que o desejo comparece mutante na cena
contemporânea, especialmente para o universo feminino, que se percebe oscilando entre
territórios existenciais secularmente configurados para sua existência, mas também de
novos espaços de circulação de um desejo de ruptura com essas identidades, aquilo que
a autora vai demonstrando como alguns desses processos de subjetivação se
converteram em identidades às vezes provisórias, às vezes duradouras como as
noivinhas, as hippies, as militantes, formas essas de relação do desejo das mulheres com
o campo social.
Para algumas mulheres militantes do MST, identificamos como esse processo de
confronto com outras linhas de subjetivação é inevitável, não havendo outra forma a
não ser vivenciá-lo. Nesse sentido, por parte do MST certo investimento nessas
novas experimentações, de modo a incentivar e a estimular a participação das mulheres
em suas instâncias de decisão e de direção, seja criando condições para que as mesmas
invistam em seu processo de formação - a exemplo da criação das cirandas para que as
crianças também possam estudar enquanto acompanham suas mães em viagem ou
articulando pessoas da comunidade de origem para que possam cuidar de seus filhos,
tarefa que os maridos também vão aprendendo a assumir.
Atualmente, é visível uma maior participação de mulheres em atividades de
direção e de militância no MST e não raro são afetadas pelos atravessamentos que
entram em cena para disputar formas antigas e novas de subjetivação feminina, levando-
as a experimentações diversas que tanto as convocam para a esfera tradicionalmente
definidora do lugar das mulheres e, por seu turno, para a possibilidade de configurar
novos territórios existenciais, configuração essa que arrasta as fronteiras dos demais
154
lugares socialmente desenhados: o lugar do homem e sua histórica dominação, o lugar
dos filhos e de quem deles cuida.
Em algumas situações, foi perceptível acompanhar como esse desmanche
existencial é marcado por uma profunda vivência de angústia, pois nem se reconhece
numa subjetividade nem noutra. Foi o caso de M. (33 anos, em entrevistas no dia 20/07,
Pernambuco), ao relatar que estava sentindo-se profundamente confusa em relação à sua
própria vida, pois tanto aquilo que a identificava com um arranjo subjetivo tradicional
(esposa, dona-de-casa, mãe) estava sem sentido, não se reconhecendo nos momentos
que tinha de assumir esse arranjo. Por outro lado, a ação militante também não a
seduzia, sentindo-se desestimulada a continuar como militante do MST, fato que a
levou pedir afastamento temporário da função que exercia no movimento.
Em outras situações, a experimentação de formas novas de exercício da
feminilidade parece responder por ganhos qualitativos na vida de algumas mulheres. As
conquistas que alcançam com a entrada no movimento parecem ser promotoras de um
novo gás para suas vidas, anteriormente apagadas por formas cristalizadas e arraigadas
de dominação masculina
56
.
mencionamos como no âmbito das vivências do acampamento os papéis de
gênero tendem a uma direção que redesenha o lugar dominantemente dado às mulheres
(Leite, 2003). Numa pesquisa que visou identificar o lugar social das mulheres no
contexto dos acampamentos e assentamentos paraibanos, Miele e Guimarães (1998)
refletiram que:
A situação de ameaça vivida no acampamento extrema-se
de tal forma que enfraquece a introjeção dos papéis sexistas
masculinos e femininos, remetendo homens e mulheres à
sua condição básica de seres humanos. Obrigados pela
situação, mulheres e homens assumem tarefas distintas das
usualmente assumidas no dia-dia. Criam-se, então novos
56
alguns meses atrás, um jornal televisionado divulgou uma matéria em que uma trabalhadora rural
assentada conseguiu que o INCRA incorporasse o nome de sua namorada como beneficiária dependente
do lote em que é cadastrada.
155
espaços, novas possibilidades, verdadeiras cumplicidades
para que todos se expressem e experimentem o papel de
liderança, inclusive as mulheres (pp. 208-209).
A nosso ver, as mutações vividas na paisagem psicossocial no tocante ao
território ‘gênero’ por nós cartografadas lançam-nos, por assim dizer, no registro dos
regimes que marcam o MST: o extensivo e intensivo conforme visto na introdução deste
trabalho. De um lado, ainda a valorização de um modelo familiar estruturado na relação
composta por um casal heterossexual (vide o desenho exposto na bandeira do
movimento e nas místicas encenadas em que costuma ter aparição uma família
geralmente composta por um homem e uma mulher com seu pequeno filho no colo),
modelo esse que responde pela lógica binária e molar de organização familiar
dominante e, por outro lado, modos intensivos de desvio desse modelo pela abertura de
forças heterogêneas que minam tal conformação identitária:
Imagem 12: Militantes segurando a bandeira do MST.
Num plano micropolítico, linhas tangenciais se desenham a despeito dos modos
seculares de definição de como essas mulheres deveriam agir, linhas essas que
permitem formas outras de discurso e de ação para o feminino, em que se busca uma
156
liberação da dominação masculina, seja pelo acesso à terra, seja pela possibilidade de
autoria de conduzir suas próprias vidas, seja por um lugar que legitime seu desejo diante
do outro.
Aqui, um MST que pode ser visto não por sua ordem macropolítica, mas como
uma força propulsora que contagia seus integrantes com alternativas de seguirem
ocupando territórios existenciais onde se exercitem a alteridade, onde se vislumbrem
experimentações para além do que socialmente está exposto em matéria de papéis de
gênero.
A abertura desses territórios, a nosso ver, enseja um exercício de composição de
forças em que exatamente se pode apostar num exercício político para as relações de
amizade, na medida em que a alteridade, a possibilidade de outros modos de vida são
ensaiados, valorizados e acolhidos. E o são justamente porque não acontecem de modo
isolado ou num caso particular, mas se propaga por todas as instâncias do movimento.
É, portanto, nesse campo da micropolítica que podemos nos aproximar de uma
dimensão histórica e processual dos modos de subjetivação, na medida em que
flagramos versões variadas para o que denominamos de sujeito, haja vista podermos, a
partir do universo das relações de gênero, cartografar os movimentos que produzem
determinadas fissuras num modo hegemônico de confabulação de um suposto universo
feminino, apontando o efeito político que tais movimentos podem gerar no MST, que
extrapolando a esfera familiar, ganha a esfera pública.
Abre-se aqui, portanto, um espaço para pensarmos que o sujeito não se sustenta
enquanto uma experiência essencial, substantivada e que é depositário de uma verdade
sobre si mesmo: a verdade da mulher diante da verdade de seu oposto: o homem. Do
contrário, trata-se de daquilo que Gros (2006), a partir de Foucault, aponta: “o sujeito
não é separado dele mesmo por um desconhecimento fundamental, mas entre si e si
mesmo, abre-se a distância de uma obra de vida a ser realizada” (p. 135).
157
Imagem 13: Preparo de alimento para trabalhadores - Comemoração dos 15 anos do MST – RN.
5.4. Diversidade sexual na militância do MST
Mota (2008), ao problematizar o tema da cidadania junto aos movimentos de
minoria sexual no Brasil, aponta que a luta de tais movimentos são guiadas pelo embate
a um modelo heterocêntrico disseminado em nossa sociedade que prima pela defesa da
conjugalidade, parentalidade e afetividade no universo heterossexual.
A centralidade e predominância desse universo têm uma constituição histórica
tão forte que acaba sendo vivido em nosso cotidiano com extrema naturalidade e
alimentado, no caso do Ocidente, por uma série de dispositivos socializadores como a
família, a escola, as religiões, os meios de comunicação, os equipamentos de saúde, a
literatura científica etc.
Desde a eclosão dos movimentos de minoria sexual, nos anos 1960 nos Estados
Unidos e no Brasil nos anos 1980, é que o tema da diversidade sexual tem se colocado
de modo impositivo na agenda de discussões em inúmeros movimentos sociais,
entidades religiosas, ONGs, partidos políticos e até mesmo em algumas esferas do
Estado, exemplo do Ministério da Saúde no caso brasileiro, em que muitas das ações
158
desses movimentos e entidades de defesa dos direitos das pessoas homoafetivas são
apoiadas pelo Estado.
57
As lutas empreendidas por pessoas gays, lésbicas, travestis dentre outros,
inauguraram, de certo modo, um novo ritmo nas lutas sociais e incorporaram novas
demandas para além das tradicionalmente postas, especialmente de natureza econômica.
Trata-se da luta por identidades culturais, como já discutimos a partir do tema dos novos
movimentos sociais (Woodward, 2000).
As principais demandas dos movimentos de minoria sexual estão ligadas, em
grande parte, à busca de legitimidade social, cultural e política da vivência da
sexualidade em suas variadas possibilidades de exercício, especialmente de garantir sua
expressão por meios políticos e jurídicos.
Para Mota (2008), a luta pelo exercício da sexualidade em sua polissemia acaba
adentrando o campo da cidadania, na medida em que os pleitos desses movimentos se
ligam a reivindicações para que, no conjunto das garantias sociais, políticas e jurídicas,
a diversidade sexual também encontre sua legitimidade, fato que, historicamente tem
sido negado, a exemplo do direito à adoção e união civil entre pessoas homoafetivas,
direito à herança, pensão etc.
Grande parte dessa luta tem buscado quebrar o imaginário social de
centralização dos padrões heterossexistas e sua força normativa que recai como modelo
legítimo e de direito das relações afetivas e sociais.
Na nossa aproximação inicial com o MST, essas questões não faziam parte do
projeto de investigação. No entanto, elas foram se tornando mais visíveis na medida em
que buscávamos aqueles pontos deflagradores de singularidades diante das
normatividades impostas pelo modelo identitário do movimento. Chamou-nos a atenção
57
Muitas ações no campo da prevenção e promoção da saúde sexual e reprodutiva acontecem em parceria
entre o Ministério da Saúde, movimentos sociais e ONGs (cursos de capacitação para integrantes desses
movimentos, ações de conscientização, mobilizações em grande escala como tem sido o caso das paradas
gays em várias cidades brasileiras).
159
esse fato por considerarmos, de certa forma, uma lacuna de reflexões em torno do
mesmo no âmbito do MST e por assim poder também vislumbrar como um movimento
social, alimentado por princípios identitários muito fortes no que diz respeito a valores
tradicionais como família e religião, poderia estar lidando com o tema da diversidade
sexual, mais especificamente com a presença de militantes gays.
Gaião (2001), ao abordar as tecnologias de subjetivação de militantes do MST
num assentamento do Estado da Paraíba, destacou como esse empreendimento se
ancora num modelo viril, fálico, produzindo uma militância masculinizada em seus
gestos, posturas e no modo de pensar e sentir a luta pela terra. Recai, aqui, um
imaginário social falocêntrico e heteronormatizador (Albuquerque Jr., 2006) sobre um
conjunto social no seu processo de formação política.
O autor empreende uma análise dos elementos simbólicos explorados pelo MST,
identificando como a simbologia reforça um padrão dominante pautado nos artefatos
que culturalmente respondem pela virilidade, masculinidade, reforçando formas
consagradas de valorização da dominação masculina, mesmo que suas discussões em
torno das relações de gênero sigam no sentido contrário. Ao discutir tais simbologias
presentes na bandeira do MST, afirma:
Podemos ver que tais símbolos buscam construir um lugar
de sujeito militante masculino e viril através das cores e
símbolos da bandeira. É assim que temos no vermelho a
representação da vitória; no preto a representação da
homenagem aos que tombaram na luta; no mapa do Brasil
o lugar organizado e nacional do movimento; no casal a
representação da importância da família, mas cujo modelo
o homem teria a força, conforme podemos ver na postura
do cabal; e finalmente o facão que representa a ferramenta
de luta do militante (Gaião, 2001, p. 46).
Esse comparecimento da virilidade como atributo da militância é bem
perceptível, por exemplo, nas estratégias de subjetivação em que o corpo, como
mencionado anteriormente, comparece. A postura do militante em seu momento de fala
160
traz um grau de firmeza, de força e eloqüência, de expressões corporais como punhos
cerrados, braços estendidos firmemente e agressividade na fala. Essas características,
por sua vez, têm representado, historicamente em nossa cultura, uma franca associação
com o universo masculino dominante.
Outro momento de visibilidade dessa presença masculinizada entre os militantes
trata-se do hasteamento da bandeira e execução do hino do movimento, fato que
comumente ocorre durantes os seus eventos. Na ocasião, a postura retilínea, braços
fortes e punhos erguidos”, como sugere a própria letra da canção evoca, mais uma vez,
ação viril.
Imagem 14: Fotografia de Trabalhadores Sem Terra em manifestação.
Foto: Sebastião Salgado.
Junte-se a tal imaginário que identifica o militante como um personagem
masculinizado, a própria idéia consagrada socialmente do mundo rural ou do homem do
campo como representante ideal desse modelo. Um exemplo de reforço desse
imaginário veio da literatura, na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha (2004) onde,
por meio da descrição que faz do sertanejo, o autor alimentou ou mesmo produziu uma
imagem que associa o homem do sertão como sendo dotado de uma energia
impressionante. Do seu raquitismo brota um Hércules, com toda pujança para superar as
intempéries que a vida dura do sertão impõe.
161
Por outro lado e cada vez mais, esse imaginário vem sendo problematizado pelo
comparecimento de integrantes no MST que m questionando e criando tensões nesse
modelo. A presença de militantes gays em algumas áreas de acampamentos e
assentamentos tem forçado e incomodado esse lugar dominante de masculinidade do
movimento
58
.
Alguns militantes têm provocado discussões em assembléias, reuniões sobre o
modo tradicional e conservador de como o tema da sexualidade e seus modos de
exercício vêm sendo tratados no âmbito do MST. E., dirigente do MST, informou-me
que durante sua participação num curso de formação de militantes, em âmbito nacional,
sentiu-se bastante discriminado em função de sua orientação sexual, fato que o levou a
denunciar, em uma assembléia, as formas de exclusão que vinha sofrendo pelo grupo.
Afirma que, desde então, vem buscando refletir em diversas instâncias do
movimento as múltipas formas de preconceito que identifica no cotidiano do MST,
questionando como um movimento social produz “excluídos dentro da exclusão” (E., 22
anos, entrevista em 12 de junho de 2007, Brasília).
A inserção de militantes gays no movimento e as mobilizações que os mesmos
têm feito para inserir na sua pauta de discussão o tema da diversidade sexual é, a nosso
ver, um grande desafio, pois contrasta com uma imagem predominante de
masculinidade e de virilidade da qual os militantes são portadores. Por outro lado, o que
identificamos foi uma participação atuante e destacada de militantes que se dizem
assumidamente gays na coordenação de setores importantes do MST, a exemplo de
coordenações estaduais, de setores de educação, de gênero, de coordenação de núcleos
de cultura em assentamentos.
58
Ao comentar sobre esse fato com colegas de trabalho e nas oportunidades para discussão da pesquisa,
geralmente as pessoas são tomadas por uma surpresa, acreditamos que, justamente por terem como
referência um imaginário que reforça as relações tradicionais de gênero num movimento que se destaca
por ter trabalhadores rurais erguendo foices e adotando ações viris como enfrentamento à polícia e
ocupação de terras.
162
Esse ponto nos chamou atenção por ver, concomitantemente, militantes que, no
cotidiano de suas ações, denunciam o preconceito de que são vítimas e conseguem
respeito e reconhecimento por sua atuação militante.
Um aspecto importante que podemos refletir por meio dessa aparente
contradição é como o próprio lugar da militância é utilizado para provocar nos demais
integrantes do movimento uma reflexão sobre o tema da diversidade sexual e de como o
processo de formação militante pode fortalecer esse posicionamento.
Em entrevista, H. (28 anos, entrevistado em 13/06/07, Ceará) comentou que o
seu processo de formação militante abriu caminhos para que pudesse lidar com a sua
orientação sexual de modo mais tranqüilo e menos ameaçador. Foi por meio das etapas
de estudo, das leituras do referencial teórico adotado pelo movimento como o
materialismo histórico e alguns textos de filosofia, que passou a relativizar os papéis
sexuais tradicionalmente concedidos e, a partir de então, emergiu em si uma
compreensão de que poderia viver sua sexualidade sem a marca de uma normatização
que lhe impunha um modo certo e errado de experimentá-la.
Diz ter conquistado com o MST a possibilidade de adquirir uma visão crítica da
cultura, da sociedade com seus mecanismos de exclusão para além das relações de
exploração econômica, mas também dos modos de vida em torno da educação, da
coletividade e da sexualidade. Se a formação política age, na produção da militância,
para legitimar modelos dominantes de masculinidade, também concorre para promover
em alguns integrantes um debate, também de natureza política, sobre a discriminação e
a intolerância diante da homossexualidade. Há, nesses termos, um encontro entre os
investimentos de desejo de uma militância minoritária, desejo que se movimenta para
encontrar legitimidade nas proposições políticas do MST.
Ao se apropriarem das proposições políticas e revolucionárias do movimento,
como igualdade de direitos, combate à exclusão social, vivências de natureza coletiva e
163
respeito ao próximo, os militantes gays obrigam o próprio MST a responder até onde
vão essas proposições.
O que acompanhamos é que a ampliação dessas proposições para o campo da
diversidade sexual vem se dando de modo não-linear, conflituoso, mas não negado, mas
não impedido em sua totalidade, já que muitos desses militantes ocupam espaços e neles
lançam questões, propõem desafios e vencem o silêncio.
Arena de conflitos, o MST, por mais um tema que o atravessa, vem cumprindo a
possibilidade de gestar uma experiência de acolhimento da alteridade, de dialogar com a
multiplicidade de vetores que compõem a vida social. Berço potente para laços de
amizade que superem os igualitarismos e faça emergir a diferença, por mais ameaçadora
que pareça.
Acreditamos que a incorporação dessas questões vai se efetivando na medida em
que o movimento vai ampliando seu espectro de luta, como tratamos anteriormente.
O MST vai, paulatinamente e não-raro de modo forçoso, abrindo caminhos para que
uma diversidade de temas, de demandas e de agendas de lutas ganhem campo de
expressão.
Por fim, buscamos, por meio desses três eixos (multidão, gênero e diversidade
sexual), explorar as potencialidades do MST em deflagrar debates, em suscitar questões,
em promover diálogo com os variados projetos de construção de modos de vida menos
opressores, mais libertários e que, passa, necessariamente, pelo reconhecimento e pela
legitimidade que tais lutam m, pelo esforço que impele o próprio MST a refletir seus
gestos, suas posturas, seus discursos e práticas sob pena de estancar o que mais lhe
vida: movimento. Movimento esse que encontra nas relações políticas de amizade um
potente recurso para seguir marchando, para seguir com calorosos e intensos debates,
destinando a cada interlocutor dessa ação dialógica legitimidade, valorizando o que lhe
164
escapa enquanto movimento, promovendo alianças, incorporando as singularidades e
reconhecendo o poder disruptivo que elas apresentam.
165
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma etapa que se supõe final num processo investigativo, embora saibamos que
nunca o é, aparece como uma espécie de encruzilhada. É um momento que nos força
voltar ao que se produziu, ao que se acumulou, aos saltos, recuos, avanços, encontros e
desencontros, involuções que se efetuaram contra ou a favor do movimento de produção
de conhecimento.
Nosso percurso com esta pesquisa configurou-se assim: recheado desses
movimentos de idas e vindas, de pausas estratégicas, outras forçosas, de limites, de
possibilidades, de vazios, lacunas, conquistas. Nosso percurso tomou a própria dinâmica
dos atores sociais que elegemos para interlocução: movimento puro.
Esta, talvez, tenha sido nossa busca principal: fazer aparecer os movimentos que
dão ao MST vitalidade pura, mesmo que para isso, precisamos apontar o que busca
identidade, molaridade, modelos majoritários que contracenam com devires, com as
singularidades que o enriquecem, com a heterogeneidade que vaza por todos os lados da
paisagem psicossocial por nós cartografada.
Vimos, por um lado, forças de natureza extensiva produzindo e reproduzindo
modos de subjetivação ancorados na estabilidade: um MST identitário, rosto que
aparece mostrando sua intencionalidade, seus gestos, seus contornos. Vimos, no
processo de formação militante como esse rosto é produzido, como ele, por meio de
estratégias disciplinares e jogos de poder/saber vai ganhando expressão nos corpos da
militância.
Os inúmeros espaços de passagem e de estadia dos integrantes do MST (cursos
de formação, capacitações, mobilizações, etc.) vão moldando um rosto-identidade, com
feições combinadas, com corpos que seguem alinhados com a imagem rostificada.
166
Essa função identitária cumpre papel importante na perspectiva dos dirigentes do
movimento: dá-lhe unidade, coesão, estabilidade, fortalecimento, enfim, ganhos
estratégicos de condução da luta empreendida. Tal identidade tem respondido
enormemente pela projeção do MST em nível nacional e internacional, tem garantido
uma agenda de lutas, de ações internas e externas ao movimento, tem dado
reconhecimento em sua capacidade e habilidade em mobilizar grandes grupos em ações
coletivas, em manifestações que impressionam por sua envergadura.
Ao recompormos a trajetória de inserção de integrantes ao MST e o seu processo
de formação militante, vimos o investimento nessa ordem identitária tomando conta de
um cotidiano em ações menores, em contextos de sociabilidade sempre alimentados por
tal ideário.
Mas nosso olhar não foi identitário. Buscamos, com ele, enxergar outros rostos,
outras formas de expressão e de criação subjetiva que caminhassem ao lado, por fora, na
margem e nas dobras do tão almejo personagem Sem Terra. Como lembra
sensivelmente Albuquerque Jr. (2006, p. 97): (...) o segredo dos sujeitos é a
multiplicidade das máscaras”.
Foram muitas as máscaras encontradas. Lembramos que o sentido da palavra
máscara, aqui, não se baseia na idéia de senso comum que nos remete a uma experiência
de ocultamento da verdade do sujeito, de que ao ser arrancada, o sujeito expõe sua mais
profunda verdade. Do contrário, as máscaras são pura expressão da polifonia que
reverbera nas subjetividades, provisórias, únicas, singulares. Diante de um rosto
estabilizado, codificado, expressões outras, sorrisos e gracejos múltiplos puderam ser
notados em nossos encontros com a paisagem MST.
A diversidade cultural, as muitas formas de inserção e de interpretação dos
integrantes ao projeto político do MST, os múltiplos desejos que a ele se agenciam
arrasta para este importante movimento social o privilégio de fazer dele uma potente
167
forma de enfrentamento da laminação social, econômica, política, cultural e subjetiva
que o capitalismo em sua versão mundializada vem promovendo.
Daí a urgência em trabalhar e reforçar, a nosso ver, o plano das singularidades, o
reconhecimento de que são elas que garantem fôlego, que inauguram novas vias, que
arejam as idéias, os projetos e os sonhos do movimento. Mas para que isso se efetive, é
preciso que essas singularidades sejam escutadas, que a elas seja dada a possibilidade de
construir seus fluxos no conjunto das relações dentro e fora do movimento.
Dentro do movimento, implica em não fazer do modelo identitário de Sem Terra
uma verdade absoluta, um personagem ideal, uma utopia única de alcance da ‘terra
prometida’. Implica em possibilitar o manejo, sempre delicado, de abertura para o novo,
para as diferenças, para uma cuidadosa escuta dos devires. Talvez seja desse zelo pela
escuta e pela fala que Ieno (2007) nos lembra ao refletir sobre sua experiência de
trabalho com agricultores de áreas de assentamento, no Estado da Paraíba:
A produção de espaços democráticos de expressão e debate
das mais variadas concepções e expectativas é condição
necessária para que os campos de disputa que emergem de
processos de mudança do que está dado historicamente
possa transformar a tensão dos conflitos em energia
produtora de experimentação e avaliação de alternativas. Os
espaços democráticos são condição necessária para que os
enfrentamentos possam fluir, seja no âmbito interno dos
grupos e comunidades que se dispõem a serem sujeitos
sociais desses processos, seja nas relações que estabelecem
com os demais grupos e instituições com quem interagem
(p. 53).
Fora do movimento, implica na abertura, cada vez mais, de redes com outros
atores sociais, com outros movimentos que, a despeito de suas especificidades, podem
encontrar zonas de um contato caloroso, de trocas positivadoras para a incorporação de
estratégias, de discussões que possam enriquecer o MST.
168
Essa experimentação de abertura para pontos de contato tem sido bastante forte
no MST. O mesmo tem conseguido construir uma série de articulações com entidades
dentro e fora do país, com ONGs, setores do governo; de aproximações e de
partilhamento de projetos e proposições que vêm encontrando aliados ao longo de sua
trajetória.
Buscamos uma compreensão desse jogo identidade-singularidade costurada a
partir de alguns recursos teóricos, a nosso ver, bastante coerentes com o próprio
dinamismo da cambiante paisagem MST: a questão da produção de subjetividades e o
tema da amizade como exercício político.
No primeiro caso, a coerência do grupo de autores por nós abordados permite
afastar o fantasma do sujeito essencializado e universalizado, promove uma concepção
que adota a complexidade da trama social, das infinitas produções discursivas e práticas
do que se experimenta como sujeito. Pensar no caráter produtivo das subjetividades é,
em última instância, pensar na possibilidade de criar espaços de liberdade para sermos
os sujeitos que desejamos ser: provisórios, precários, mas ‘livres’.
a introdução do tema da amizade permitiu-nos uma costura com o conceito
anterior: em que medida a dimensão da singularidade pode dialogar com a amizade
enquanto exercício de valorização das relações que confabulam sobre as coisas de
interesse comum, público, por temas da ordem do dia que não sucumbem a caprichos
pessoais nem se perdem em universos narcísicos, mas que valorizam e resgatam uma
dimensão coletiva, por isso mesmo conflitivas algumas vezes.
Pudemos acompanhar campos férteis em que essa versão política da amizade
dialoga com as singularidades emergentes dos encontros travados no âmbito do MST: o
seu interesse em temas de natureza pública, sua capacidade de agregar outras demandas
de luta e sua disponibilidade de conexão com outros movimentos sociais, fazendo-nos
reconhecer nele como parte do que Negri e Hardt (2004) nomeiam de multidão.
169
Vimos, ainda, mais dois campos propícios para a inauguração de relações de
amizade política entre a militância: as transformações no que se denomina de universo
feminino provocadas pelo processo de militância, fato que algum tempo tem sido
disparador de discussões em torno do tema das relações de gênero no MST, e, de modo
mais recente, a busca por incorporação nas suas discussões da questão da diversidade
sexual, pela presença de militantes gays.
Ambos os campos apresentam uma riqueza surpreendente, a nosso ver, de abrir
experimentações democráticas no jogo de lidar com a alteridade, com a diferença,
levando o próprio movimento a uma potência dele mesmo em diferir.
Certamente que alguns desses processos podem ter sido conduzidos, na presente
investigação, com alguns limites. Questões que foram emergindo e nos atravessando
acabaram ficando de lado em função das limitações de tempo, de espaço e do próprio
pesquisador para conduzir um processo investigativo a contento.
Nesse sentido, uma das grandes lacunas percebidas na pesquisa diz respeito a
como pensar e vislumbrar essas questões aqui trazidas para o cotidiano dos
assentamentos rurais, por exemplo. Como essas áreas têm vivenciado a produção de sua
existência e como esses elementos (formação política, subjetivação militante, encontro
com a diferença) têm interferência nas famílias e grupos assentados é uma questão
digna de um estudo posterior.
Por fim, esperamos ter contribuído com uma reflexão que possa lançar
pensamentos e formas de intervenção renovados no cotidiano do processo de formação
daqueles que, de modo apaixonado muitas vezes, entregam suas vidas para a conquista
de um projeto de vida que extrapola suas individualidades e ganha o espaço mágico da
multidão.
170
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