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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
A EMERGÊNCIA DA
PSICOPEDAGOGIA NO BRASIL
Karyne Dias Coutinho
Porto Alegre – RS
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
A EMERGÊNCIA DA
PSICOPEDAGOGIA NO BRASIL
Karyne Dias Coutinho
Orientador: Alfredo Veiga-Neto
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Educação da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito à
obtenção do tulo de Doutora em Educação. Linha
de Pesquisa: Estudos Culturais em Educação.
Porto Alegre – RS
2008
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3
Poderia algo nascer do seu contrário? Por exemplo, a verdade do erro?
Ou ainda o desejo de verdade do desejo de engano? A ação altruísta do
egoísmo? Poderia acaso a contemplação pura e resplandecente do sábio
nascer da cupidez? Essas origens são impossíveis. Qualquer que admite
isso é tolo ou coisa pior. As coisas de valor elevado devem ter outra
origem, uma origem própria – não podem derivar deste mundo efêmero,
enganador, ilusório e mesquinho, deste labirinto de erros e desejos! Ao
contrário, é no íntimo do ser, no imperecível, na divindade oculta, na
‘coisa em si’ que deve encontrar-se a sua razão de ser, e não em
qualquer outra parte!”
Tal processo de avaliar constitui um preconceito típico, pelo qual se
reconhecem perfeitamente os metafísicos de todos os tempos. [...] A
crença nas oposições de valores é a fundamental dos metafísicos.
Nem aos mais avisados dentre eles ocorreu levantar dúvidas logo no
início, quando teria sido mais necessário. Efetivamente, pode-se
perguntar, em primeiro lugar, se de todo oposições e, em segundo
lugar, se aquelas avaliações e oposições populares, consagradas pelos
metafísicos, não serão talvez apenas avaliações superficiais,
perspectivas provisórias, projetadas mais do fundo de um recanto, talvez
de baixo para cima [...]. Independentemente do valor que se atribua ao
verdadeiro, ao verídico, ao desinteressado: seria possível que o que
constitui o valor daquelas coisas boas e respeitadas consistisse
exatamente no fato de serem de maneira insidiosa aparentadas, ligadas e
entrelaçadas e talvez mesmo idênticas a estas coisas más, aparentemente
opostas? Talvez! No entanto, quem está disposto a ocupar-se de tão
perigosos talvez?!
(Nietzsche, 2002, p.34)
4
AGRADECIMENTOS
É certo que devo a elaboração dessa Tese a muitas pessoas: ao meu orientador e
nosso grupo, aos meus familiares, ao meu amor, às minhas amigas e amigos, às minhas
professoras e professores, aos colegas de estudo e de trabalho, às minhas alunas e alunos...
Algumas pessoas fazem parte da maioria desses grupos, outras não fazem parte de nenhum
deles, pois é impossível classificá-las. Reconhecendo isso, agradeço a todas e todos vocês,
sem citar seus nomes: não por medo de esquecer alguém, mas porque sei que mantenho
com cada um de vocês uma relação singular e especial, que não cabe em palavras. Talvez
caiba num olhar ou num abraço... A vocês, que sabem do que eu estou falando, sou muito
grata, e é dessa forma que agradecerei a cada um, pessoalmente. As palavras que tiverem
que ser ditas, assim o serão, ao do ouvido, com todo carinho, atenção e exclusividade
que cada um de vocês merece... Mas ainda continuo achando, tal como escrevi nos
agradecimentos de minha Dissertação de Mestrado, que “é no silêncio que quero
agradecer, exatamente porque é no silêncio que as coisas mais bonitas e mais sinceras
podem ser sentidas”.
Mas um nome que quero citar e a quem quero muito agradecer em especial, já
que não vou poder fazer isso pessoalmente, pelo menos por enquanto... À minha
professora e amiga Deborah Thomé Sayão (in memorian), por, mesmo sem saber, ter
definido os rumos que minha vida tomou. Deborah, quando uma aluna vem me perguntar
alguma coisa, pedindo a minha orientação, eu me sinto ainda um pouco tua aluna,
pensando na forma como tu me orientavas e me encorajavas: tento ser para elas um
pouquinho do que tu foste para mim; se eu conseguir isso, já estou feliz. Obrigada!
5
SUMÁRIO
7 RESUMO
8 ABSTRACT
9 PRIMEIRA PARTE – OS CONTORNOS DA PESQUISA
10 CAPÍTULO I – PARA COMEÇAR
12 Minhas histórias e as inquietações com o campo psi
21 Minhas escolhas e as lentes teórico-metodológicas
32 SEGUNDA PARTE – A EMERGÊNCIA DA PSICOPEDAGOGIA
33 CAPÍTULO II – SOCIEDADE(S) E PEDAGOGIA(S)
37 Dispositivos de soberania, disciplinar e de seguridade
44 Modernidade vista com lentes da Pedagogia
51 Articulando e construindo idéias
53 CAPÍTULO III – INFÂNCIA E O PAR PSICOLOGIA-PEDAGOGIA
53 Estudos da criança, invenção da infância e elo entre Psicologia e Pedagogia
61 Produção dos escolares anormais
68 Dos anormais aos normais: a criança como centro da ação educativa
80 Psicologia do Desenvolvimento como regulação governamental
6
91 TERCEIRA PARTE – A EMERGÊNCIA DA PSICOPEDAGOGIA NO BRASIL
92 CAPÍTULO IV – O MOVIMENTO DA ESCOLA NOVA NO BRASIL
96 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
101 O livro Introdução ao Estudo da Escola Nova
110 O texto Por que “Escola Nova”?
119 CAPÍTULO V – PRÁTICAS ESCOLANOVISTAS BRASILEIRAS
119 A Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte
139 O Instituto de Educação do Rio de Janeiro
158 QUARTA PARTE – A PSICOPEDAGOGIA NO CENÁRIO ATUAL
159 CAPÍTULO VI – NORMALIZAÇÃO, RISCO SOCIAL, APRENDIZAGEM
163 Psicopedagogia envolvida no processo de normalização
171 Psicopedagogia envolvida na gestão do risco social
177 Psicopedagogia envolvida no deslocamento do ensino para a aprendizagem
191 CAPÍTULO VII – PARA NÃO CONCLUIR
204 REFERÊNCIAS
214 ANEXOS
7
RESUMO
COUTINHO, Karyne Dias. A Emergência da Psicopedagogia no Brasil. – Porto Alegre,
2008. 213 + Anexos. Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, 2008.
A partir das lentes teórico-metodológicas dos Estudos Foucaultianos, essa Tese
lança um olhar genealógico sobre a emergência da Psicopedagogia no Brasil,
problematizando as condições que a tornaram possível. Para tanto, faz a análise de uma
série de práticas (incluídos os discursos), entendidas como portas de entrada que
permitiram o surgimento do campo da Psicopedagogia. Inicialmente, são apresentadas
condições mais amplas que transcendem o caso brasileiro, afirmando que as primeiras
possibilidades para a construção do solo psicopedagógico foram dispostas pelas relações
entre os estudos da criança, o elo entre Psicologia e Pedagogia e a invenção da infância
anormal, bem como por práticas de Maria Montessori, Ovide Decroly, Edouard Claparède
e Jean Piaget. Em seguida, são apresentadas condições de possibilidade da Psicopedagogia
mais especialmente no Brasil, por meio do exame de três documentos e duas instituições
brasileiras de ensino que estiveram envolvidos com a disseminação e recriação de
preceitos escolanovistas. Nessa parte, destacam-se as práticas de Fernando de Azevedo,
Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Helena Antipoff. Por fim, analisa as relações da
Psicopedagogia com processos de normalização, com a gestão do risco social e com o
deslocamento do ensino para a aprendizagem. Como um dos principais resultados dessa
pesquisa, tem-se que a troca de ênfase do dispositivo disciplinar para o dispositivo de
seguridade, estudada por Foucault em Seguridade, Território, População, foi
possibilitada, na instância educacional, por práticas que se envolveram com a atribuição de
um caráter científico ao campo da Educação, fundamentando-o especialmente na Biologia
e na Psicologia e operando com um processo que se pode chamar de governamentalização
da escola – condição fundamental para a emergência da Psicopedagogia.
Palavras-chave: 1. Psicopedagogia – Brasil. 2. Escola nova. 3. Foucault, Michel.
8
ABSTRACT
COUTINHO, Karyne Dias. A Emergência da Psicopedagogia no Brasil. – Porto Alegre,
2008. 213 + Anexos. Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, 2008.
Through the Foucauldian Studies theoretical and methodological lenses, this thesis
has a genealogical gaze upon the emergence of Psychopedagogy in Brazil, problematising
the conditions enabling it. For this, it does an analysis of a series of practices (including
discourses) taken as new horizons for the emergence of the psychopedagogical field. At
first, we have provided wider conditions far beyond the Brazilian case, suggesting that the
earlier possibilities to establish the psychopedagogical ground were arranged by the
relationships between children studies, the link between Psychology and Pedagogy, and
the invention of abnormal children, as well as practices by Maria Montessori, Ovide
Decroly, Edouard Claparède and Jean Piaget. Then we have provided conditions for the
possibility of Psychopedagogy especially in Brazil, by assessing three documents and two
institutions of higher education involved in disseminating and recreating the New School
principles. In this part, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Helena
Antipoff have arisen to prominence. At last, it assesses Psychopedagogy relationships with
the normalising processes, social risk management and teaching-to-learning displacement.
As one of the key results, the change of the emphasis on the security rather than discipline
device, Foucault studied in Security, Territory and Population, was enabled in education
by practices relating to giving to the Educational field a scientific character, especially in
Biology- and Psychology-grounded, and working with a process that may be called school
governmentalisation a fundamental condition for the emergence of Psychopedagogy.
Keywords: 1. Psicopedagogia – Brazil. 2. New school. 3. Foucault, Michel.
9
PRIMEIRA PARTE
OS CONTORNOS DA PESQUISA
10
CAPÍTULO I
PARA COMEÇAR
Existe em muita gente, penso eu, um desejo semelhante de não ter
de começar, um desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro
lado do discurso. (Foucault, 1999a, p.6)
O começar a escrever traz consigo as dificuldades de expressar o que se pretende
fazer ou dizer, ou pelo menos da forma como se pretende. O bom seria, como diz Foucault
(1999a), sermos envolvidos pela palavra, falada ou escrita, e por ela levados bem além de
todo começo possível. Os começos são difíceis, solenes, ritualizados, mas foram feitos
necessários, pelo poder e pelo perigo que carregam.
Também por isso sei que, ao começar esta Tese, não posso ir direto à
Psicopedagogia – campo que elegi para pesquisar no curso de Doutorado. Prefiro – porque
essa me parece a forma mais fácil neste momento começar dizendo como cheguei a esse
campo, o que me fez querer cercá-lo, investigá-lo, problematizá-lo; que fatos me levaram
a tal interesse dentre tantos temas possíveis na área da Educação e a partir do lugar de
onde pretendo falar.
É então que percebo o quão ambíguos podem ser os começos. Por um lado, paira,
no espaço e no tempo de minha escrita, uma estranha sensação de que nada escreverei que
não tenha sido dito, que não tenha sido contado sobre mim e sobre minha pretensão
de realizar uma pesquisa de Doutorado estudando questões relativas à Psicopedagogia. Por
outro lado, mesmo com uma série de posições por mim assumidas, mesmo que eu saiba
(ou tenha a pretensão de saber) onde esta Tese está situada, onde meu trabalho acadêmico
11
e profissional tem se situado desde o curso de Mestrado, mesmo assim as palavras se
mostram insuficientes. Eis um problema que parece não poder ser solucionado, pelo
menos por mim: os fatos acadêmicos e profissionais da minha história estão
demasiadamente enredados em teias de relações que eu estabeleço com as pessoas e coisas
que me cercam e, mais ainda, uma teia de relações que eu estabeleço comigo mesma: em
que regulo e modifico a experiência que tenho de mim mesma o que Foucault chama de
experiência de si (Larrosa, 1999b).
Daí que, ao escrever os caminhos que me levaram à Psicopedagogia, estarei,
inevitavelmente, produzindo-os de novo: explicando-os e categorizando-os novamente.
Embora eu assuma uma minha materialidade (impossível de ser negada), sei que os
sentidos que dou a essa materialidade e o que com ela aconteceu/acontece podem ser
construídos pela linguagem, que tem a ambivalência como sua condição normal (Bauman,
1999) e o babelismo como seu companheiro permanente (Larrosa e Skliar, 2001). O meu
“eu” não está, pois, por trás da linguagem: é o que existe na linguagem (Veiga-Neto,
2003a). No limite, “eu”, em essência, não sou: sou na medida em que, pela linguagem,
falo sobre mim; e me descrevo, me interpreto, me traduzo... A linguagem é, portanto,
condição necessária para que “eu” exista, e para que existam os fatos e os caminhos que
me trouxeram até aqui.
A seguir, começo contando o que comigo aconteceu; e, ao fazer isso, estarei
inventando partes da minha história de novo. Resta dizer que minha preferência por
começar desta maneira talvez se deva a uma quase-necessidade de colocar em operação
certos mecanismos de autoconhecimento (para que também os outros me conheçam) e
autodescrição (para que também os outros me descrevam), que devo ser
simultaneamente atriz e autora desta Tese. Pensando bem, nenhuma novidade até aqui.
Como “boa” aluna que sempre fui das “boas” escolas públicas por que passei, acostumei-
me quase naturalmente a me ver, me expressar, me narrar, me julgar, me dominar
(Larrosa, 1999b). Nesse sentido, os dispositivos pedagógicos de visibilidade, dizibilidade,
reconhecimento, julgamento e confissão minha para comigo mesma foram/são, até certo
ponto, constitutivos da minha subjetividade, daquilo que penso e digo que sou, das formas
como me observo, me decifro, me interpreto, me descrevo. E mais: essa relação que eu
estabeleço comigo mesma, por meio desses e de outros dispositivos, uma vez aprendida e
constituída, pode ser sempre e de novo transformada, numa interminável produção de
auto-regulação.
12
Talvez seja isso o que eu estou fazendo com o começo que segue ou o que este
começo está fazendo comigo: dado que já fui suficientemente ensinada a me autoproduzir,
o início desta Tese constitui-se numa prática no interior da qual eu estou modificando a
experiência que tenho de mim mesma.
Se faço tais considerações, é exatamente para reconhecer a produtividade e a
positividade dessa incansável tentativa de auto-entendimento e de auto-explicação; e até
mesmo para reconhecer a importância disso tudo num mundo em que nos deparamos com
a necessidade de assumir o desmantelamento e a construção nunca completa de nossas
identidades individuais. É preciso, pois, que contemos nossas histórias, para tentarmos
preencher e ocultar o vazio existencial tão característico de um mundo em que fracassam
os esforços modernos de composição do indivíduo uno, coerente, integral...
E é para dar um (novo) sentido a mim mesma às minhas escolhas, às minhas
atividades acadêmico-profissionais, à minha Tese de Doutorado que passo, então, a
selecionar em minha memória certos fragmentos que serão por mim encadeados numa
narrativa mais ou menos progressiva, mais ou menos seqüencial, mais ou menos coerente,
para tentar remontar minha trajetória até aqui, com certo grau de periodicidade e exatidão
apesar de saber da presença sempre constante de uma certa ambivalência e de um certo
babelismo...
Minhas histórias e as inquietações com o campo psi
Talvez não sejamos outra coisa que um modo particular de
contarmos o que somos. (Larrosa, 1999b, p.22)
Hoje percebo que meu interesse em estudar questões relativas à Psicopedagogia foi
sendo construído em diferentes momentos da minha trajetória acadêmica e profissional.
Isso não significa que a intenção fosse a de investigar este tema desde que optei por me
formar professora; mas penso que certos episódios da minha vida acadêmica foram, aos
poucos e não sistematicamente, direcionando a escolha deste tema hoje, especialmente, no
início, pelo forte viés psicologizante dos cursos de Magistério e Pedagogia que freqüentei.
13
Com dezesseis anos de idade, ao final do curso de Magistério, fui estagiar numa
turma de crianças de segunda série de uma escola pública de minha cidade
1
. Foi então que
me dei conta de que eu tinha sido preparada para realizar um trabalho puramente técnico
que pouco tinha a ver com a profissão. Qual problema havia comigo que não permitia que
eu desenvolvesse tudo o que eu tinha aprendido no decorrer dos três anos de curso e da
forma como havia sido rigorosamente programada? A previsão do comportamento infantil
que havia sido estudada nas disciplinas de Psicologia parecia, antes da prática de ensino,
manter tudo sob controle. Mas, durante o semestre do estágio, percebi que em todas
aquelas certezas não havia espaço para a diferença, porque elas se referiam a um modelo
ideal de criança e de infância, que não foi o que encontrei na minha primeira experiência
como professora. Rapidamente concluí: o erro, é claro, era “meu”: quem mandou não
estudar mais profundamente as etapas do desenvolvimento infantil?
Veio daí a escolha pelo curso de Pedagogia? Acredito que, em parte, sim. Era
preciso provar para mim e para as outras pessoas que eu podia ser uma boa professora; e,
desse modo, podia também continuar a ser tudo aquilo que “sempre” tinha sido: boa aluna,
que se empenha em estudar, para entender e decifrar as crianças com as quais eu tinha
começado a trabalhar.
Assim, no ano de 1995, ingressei como aluna do curso de Pedagogia da
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). E, para minha alegria que então eu
teria nova chance de estudar e reparar meu erro no Magistério –, a graduação que escolhi
era constituída por uma série de disciplinas relacionadas à Psicologia: Psicologia Geral,
Psicologia da Educação I, II, III e IV, Dificuldades de Aprendizagem, Psicofisiologia,
Psicomotricidade I e II, Psicopedagogia do Adulto.
Cursando Pedagogia, percebi que, no campo pedagógico, os preceitos da
Psicologia são geralmente apresentados como exclusivos, definitivos e suficientes: foram
constituídos a partir de extensas investigações que, ao colocarem a criança como objeto de
observação do adulto, afirmam descrever o comportamento infantil. Na esteira disso,
minha formação pedagógica foi atravessada por uma vontade de entender a criança,
explicá-la, capturá-la. De forma geral, na trajetória acadêmica e profissional das
professoras, projeta-se a busca de descrições que expliquem as crianças em sua
“profundidade”, a fim de encontrar elementos que permitam às professoras “descobrir” a
1
Escola Estadual de Ensino Fundamental Nossa Senhora Medianeira, na cidade do Rio Grande, RS.
14
melhor forma de educar os alunos. Trata-se de uma tentativa de desvendar o sujeito
infantil, como se este fosse dotado de uma essência suscetível de ser descoberta e descrita.
Para tanto, lança-se mão de fundamentos teóricos produzidos em especial pela Psicologia,
que servem como explicações e demonstrações capazes de guiar o trabalho das
professoras. Exatamente por se tratar de “conhecimento científico”, as formulações
psicológicas carregam consigo certa legitimidade. O que se procura, ao recorrer às
fundamentações, são justificativas para a prática pedagógica e não para as explicações,
visto que estas, por si só, supostamente se bastam. A idéia de que as “verdadeiras”
convicções epistemológicas não necessitam ser justificadas perpassa boa parte da
formação e da prática em Pedagogia.
Passados três anos de curso, após inúmeras e frustradas tentativas de fazer dos
meus alunos de cinco anos de idade o meu laboratório das teorias psicológicas, s da
escola onde eu trabalhava para me envolver com a política estudantil universitária
(Diretório Acadêmico de Pedagogia e Diretório Central de Estudantes da FURG). No
mesmo semestre, fui selecionada para uma bolsa de iniciação científica do Núcleo de
Estudo e Pesquisa em Educação de Zero a Seis Anos (NEPE), também da FURG.
Foi como bolsista desse Núcleo que comecei a ler diferentes autores e autoras que
começaram a me apresentar visões bastante diferentes daquilo que eu entendia por
educação. Passei a enxergar outros pontos de vista a partir dos quais também se pode
compreender isso a que chamamos realidade e, mais ainda, passei a experimentar outros
lugares de ver. Em meio a tantas atividades novas para mim, comecei a desconfiar de que
meus “desacertos” profissionais, desde o curso de Magistério, poderiam, quem sabe, não
ser exatamente culpa minha.
Em setembro de 1999, ainda cursando o último semestre de Pedagogia, participei
da 22ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(ANPEd), realizada em Caxambu, MG. Fui para ouvir pessoalmente os autores que eu
tinha conhecido, confusa e recentemente, apenas por seus textos e livros incômodos,
desconcertantes, que me pareciam ora trágicos, ora duvidosos, ora incompreensíveis, mas
de alguma maneira bastante atraentes. Enquanto a maioria dos participantes daquele
evento estava preocupada com a escrita de Projetos, Dissertações e Teses, meu principal
interesse era o de tentar entender a lógica, muitas vezes caótica aos meus olhos, daquelas
15
pessoas sempre tão imersas em seus assuntos de pós-graduandos”: objeto de estudo,
metodologia de pesquisa, trabalho de campo, coleta de dados, qualificação, dia da defesa...
Ao retornar para Rio Grande, decidi fazer a seleção para o curso de Mestrado na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, em março de 2000, mudei-me para Porto
Alegre e iniciei meus estudos no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS,
sob a orientação de Alfredo Veiga-Neto.
Lembro que no início do curso de Mestrado, concluído em dezembro de 2001, eu
já havia expressado o interesse em estudar questões relativas à Psicopedagogia, talvez para
acertar as contas com as certezas da área psi (quando aplicadas ao campo pedagógico),
que perpassaram boa parte da minha formação acadêmica, mas que nunca se encaixaram
perfeitamente na minha vida profissional como elas próprias prometiam. No entanto,
dentre os possíveis estudos a serem realizados, optei, com o auxílio de meu orientador e
do grupo de pesquisa, por adiar o tema Psicopedagogia, para ser investigado em outra
ocasião considerando os limites impostos para a realização do curso de Mestrado, em
especial os que se referem ao curto tempo de que se dispõe para sua conclusão.
Em minha Dissertação, discuti as condições de possibilidade da criação de espaços
infantis em dois shopping centers da cidade de Porto Alegre, RS, Brasil (Coutinho, 2002).
Interessou-me ver, também, que funções desempenhavam tais espaços. Com a pesquisa,
verifiquei que, inicialmente, os espaços infantis foram instaurados nos shoppings para
executar apenas a função de “guardar” e divertir as crianças por um curto período de
tempo. Acontece que, a partir do momento em que as famílias começaram a retornar ao
espaço infantil com suas crianças, seguindo certa regularidade, aquele mesmo espaço foi
reorganizado para que pudesse desempenhar, além de sua função inicial, também uma
função, digamos, educacional. E, para minha surpresa, dois dos três fatores que
evidenciaram a incorporação de uma função educativa estavam, de alguma maneira,
envolvidos em preceitos da área psi.
Um desses fatores refere-se à adaptação realizada no quadro de funcionárias que
atuavam diretamente com as crianças, tornando-se obrigatória a contratação de
recreacionistas formadas ou em formação, preferencialmente nos cursos de Magistério e
Pedagogia. Percebi que junto com essas profissionais vinha também um discurso
tipicamente pedagógico o da Psicologia do Desenvolvimento –, que orientava práticas
recreativas consideradas como facilitadoras do desenvolvimento infantil.
16
O outro fator, conectado ao anterior, refere-se à adaptação de alguns brinquedos,
brincadeiras, atividades e materiais que compunham o espaço infantil: tudo o que era
realizado naquele espaço passou a ser classificado, de acordo com o aconselhamento
pedagógico, quanto à importância que exerceria no desenvolvimento geral da criança. E a
criança passou, então, a receber a orientação das atendentes, no sentido de fazê-la circular
entre os brinquedos e materiais, a fim de realizar diferentes atividades, para que fossem
trabalhados diferentes aspectos do desenvolvimento dessa criança.
Ao final da pesquisa, embora a temática estudada no Mestrado tenha sido outra
bem diferente da intenção inicial, que era a Psicopedagogia deparei-me novamente com
questões que há muito vinham me incomodando: a intensa presença das certezas
psicológicas nas práticas pedagógicas.
E não foi muito diferente em minhas outras experiências acadêmicas e
profissionais que seguiram. No mês seguinte à defesa da Dissertação, fui contratada pela
FURG para ministrar a disciplina Metodologia das Séries Iniciais, para duas turmas do
curso de Pedagogia, na cidade de Santa Vitória do Palmar, RS
2
. De volta à FURG, agora
como professora, pude verificar o ainda forte viés psicologizante nos programas de ensino
das disciplinas daquela graduação. Imersa em teias discursivas bastante difíceis de serem
desfeitas, por mais que eu tentasse problematizar, pôr em suspeição, eu não encontrava
modos muito diferentes de falar das metodologias sem recorrer aos fundamentos teóricos
da área psi, pois eram eles que deveriam guiar meus argumentos, enquanto professora
daquela disciplina.
Ao voltar para Porto Alegre, comecei a trabalhar na Escola Estadual Monsenhor
Roberto Landell de Moura, como professora de uma turma especial de primeira série
3
.
Considerando o fato de eu ter passado pela experiência do Mestrado, voltei à escola
com outros olhos, e penso que isso só fez intensificar as minhas incertezas teóricas.
2
Trata-se do curso de Formação de Professores Leigos de Santa Vitória do Palmar, naquela época
coordenado pelo professor Luís Fernando Minasi, do Departamento de Educação e Ciências do
Comportamento, da Universidade Federal do Rio Grande (DECC/FURG).
3
Trata-se de uma escola que, de forma geral, atende a uma clientela de classe sócio-econômica bastante
desfavorecida. A turma foi considerada especial porque era, em sua totalidade, composta de alunos
repetentes, que estavam pelo terceiro ou quarto ano consecutivo matriculados na primeira série, de onde
“não conseguiam” sair. Ou seja, os alunos daquela turma não foram diagnosticados, por meio de laudo
médico, como deficientes físicos ou mentais. No entanto, a turma era considerada especial, que, nas
escolas, de forma geral, a não-aprendizagem é também vista como uma necessidade educativa especial
(NEE). Fui nomeada, naquela escola, para o cargo de professora, vinculada à Secretaria da Educação,
através do boletim n.º1502, do Diário Oficial de 5/3/2002. Concurso Público CPR 01/01.
17
Trabalhar com aquela turma de primeira série foi, sem dúvida, muito mais difícil do que
trabalhar como professora da FURG. Não porque passei das aulas para adultos às aulas
para crianças, mas sim porque foi a escola que desacomodou o meu lugar e que, de certa
forma, me fez relativizar o que eu até então tinha estudado, escrito e o que eu tinha dito
para as minhas primeiras alunas de Pedagogia.
Estar alfabetizando vinte e duas crianças numa turma como aquela, participar de
reuniões docentes em que se discutiam intermináveis problemas escolares, ver-me
intensamente envolvida com as operações realizadas naquela (e por aquela) escola e
encontrar-me, de repente, tentando justificar os meus atos, apoiando-me em determinados
discursos educacionais fez-me sentir, na pele, o quanto somos absorvidos por essa
máquina que é a instituição escolar. De professora universitária que estava ensaiando suas
primeiras formas de desconstruir os discursos educacionais psicologizantes e redentores,
passei a ser uma professora que se viu diante de alunos repetentes que supostamente
seriam recuperados de suas precárias condições de existência se, antes de tudo,
conseguissem finalmente se alfabetizar. E eu era a alfabetizadora. Por isso, o que de mais
interessante ficou para mim dessa experiência foi a forma como a escola conseguiu me
capturar. “Eu” comecei, de novo, a fazer parte de um determinado “nós”. E o fato era que
“nós” – professoras que nos dizíamos realmente comprometidas com a educação de nossos
alunos e que nos entendíamos como agentes de uma suposta transformação lutávamos
contra o fracasso escolar, mas sequer chegávamos a levantar a questão em torno do que
significa dizer que a escola pública tem fracassado.
Ainda me esforçando em olhar pelo “lado de fora” dos preceitos educacionais que
se pretendem exclusivos, suficientes e definitivos, reconhecia que eu era parte integrante
de um ambiente de trabalho em que circulam formulações que se situam dentro de
determinados enquadramentos; formulações que, de forma prática, serviam de apoio,
justificativa e segurança a tudo o que eu dizia e realizava dentro da escola. E novamente
inquietava-me a repetição constante de discursos psi (que, naquela escola, eram
chamados de psicopedagógicos), seja nas reuniões das professoras, seja nos livros que
estudávamos na escola, seja nas explicações apresentadas às famílias, quando era preciso
legitimar as ações do grupo docente.
Em julho de 2002, pedi minha exoneração no concurso do Estado porque fui
contratada pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), como professora do curso de
18
Pedagogia. Da escola novamente à Universidade. E estava eu, diante das disciplinas
Psicologia da Educação II e III, e Metodologia da Educação Infantil I e II.
Foi como professora de Psicologia da Educação que decidi passar algumas de
minhas inquietações adiante e compartilhá-las com minhas alunas. O grande desafio
estava em conseguir dar conta do conteúdo programático da disciplina e, ao mesmo
tempo, desconstruí-lo, tentando problematizar a idéia de que não a verdade psicológica
em si, senão que ela é sempre histórica e, portanto, deve ser analisada a partir de uma
ampla compreensão daquilo que é valorizado em tempos e lugares diferentes. Minha
intenção não era negar, para minhas alunas, as verdades da Psicologia, mas discutir essas
verdades, entendendo que elas foram fabricadas em conexão com aspectos econômicos,
políticos, sociais, culturais; e que utilizar o conhecimento da Psicologia sem considerar
sua inserção na episteme de uma época seria fazer uma aplicação e um uso imediatista dos
conceitos produzidos por este campo do saber. Desde esse ponto de vista, tratar da
Psicologia como uma prática isolada seria operar com um reducionismo, com uma
associação apressada e simplista.
Se essa tentativa foi difícil para mim, imagino o quanto de confusão eu causei nas
certezas de minhas alunas, que vinham para as aulas com discursos prontos e fechados
advindos de outras disciplinas cujos programas seguiam uma clara tendência, de novo,
psicologizante. E eu que pensava que só na FURG acontecia isso...
Passados três semestres letivos, assumi a docência de uma disciplina que se chama
Pesquisa: a Criança da Educação Infantil e dos Anos Iniciais, e foi então que vislumbrei a
possibilidade de, agora mais livremente, praticar outras análises com minhas alunas,
examinando a Psicologia no interior de diferentes formações discursivas.
Nas aulas de Pesquisa, passamos a realizar breves investigações em livros que
apresentam sugestões de atividades a serem desenvolvidas na Educação Infantil e
verificamos que o enfoque nos níveis de desenvolvimento infantil acaba por enquadrar as
crianças em esquemas classificatórios que impedem a circulação de outros conhecimentos
que não aqueles baseados nos códigos evolutivos, cognitivos, maturacionais e
desenvolvimentistas da Psicologia. De forma geral, antes de sugerirem as atividades, os
livros pedagógicos apresentam uma caracterização das fases de desenvolvimento
piagetianas. A partir disso, seguem-se descrições de atividades para se trabalhar esquema
corporal, lateralidade, coordenação visomotora, relação espaço-temporal, percepção,
19
conhecimento lógico-matemático, entre outros. Chegou-se à conclusão de que várias
tarefas de investigação de Piaget foram transformadas em conteúdos escolares; e mesmo
em áreas do conhecimento consideradas menos importantes do que a lógico-matemática e
a da linguagem (como na Educação Artística, Educação Física ou Educação Musical),
utiliza-se a base teórica desenvolvimentista para organizar o trabalho pedagógico com as
crianças, seja pela detalhada classificação que fazem das atividades, seja pelo uso de
conceitos psicológicos ao sugeri-las: embora sendo de outras áreas, justifica-se a
realização das atividades quase sempre por meio de teorizações da Psicologia.
Além disso, temos discutido na Pesquisa e em outras disciplinas que ministro,
como, por exemplo, Metodologia do Ensino de Ciências Sociais e Humanas, Organização
do Trabalho Pedagógico e Estágios Supervisionados na Educação Infantil e nos Anos
Iniciais a própria idéia de currículo escolar, que traz consigo a diferenciação das
crianças por suas idades na medida em que classifica e seleciona saberes correspondentes
à faixa etária e ao respectivo nível de desenvolvimento intelectual. Dessa forma,
discutimos o fato de as teorias do desenvolvimento constituírem-se em discursos que
naturalizam os conhecimentos matemático e científico como capacidades individuais que,
assegurando-se ambientes apropriados, supostamente se desenvolvem de forma
espontânea.
Após ter trabalhado com a disciplina de Pesquisa em várias turmas do curso de
Pedagogia e ter envolvido a mim e as minhas alunas, expressa e publicamente, em análises
que colocam em questão os significados transcendentais do pensamento psi, eis que a
Instituição responde de modo irônico: fui convidada a integrar o corpo docente do curso
de Especialização em Psicopedagogia com Ênfases Institucional e Clínica, da ULBRA,
para ministrar as disciplinas Fundamentos da Psicomotricidade e Metodologia do Ensino
e da Pesquisa.
Com isso, minha aproximação ao tema Psicopedagogia tornou-se cada vez mais
acentuada e, estando posicionada no lado de dentro de um curso que forma
psicopedagogas, tive a oportunidade não apenas de conhecer melhor os argumentos e
preceitos psicopedagógicos, como também de questionar o programa curricular daquela
Especialização. Dessa forma, foi solicitado pela Instituição que eu fizesse alterações no
projeto original do curso, para que fossem revistos o quadro das disciplinas, suas ementas
e conteúdos, bem como a bibliografia básica e as linhas de pesquisa oferecidas. Diante de
20
uma tarefa como essa, que julguei ser um grande desafio para mim, passei a me inteirar
intensamente de questões jurídicas, acadêmicas e institucionais relativas à Psicopedagogia:
a produção de suas teorias, a realização de suas pesquisas, a formação de seus
profissionais, a regulamentação da profissão de psicopedagogo, etc.
Em novembro de 2004, a coordenação do curso de Especialização em
Psicopedagogia da ULBRA solicitou que eu representasse o corpo docente deste curso no
XIII Encontro Estadual de Psicopedagogos promovido pela Associação Brasileira de
Psicopedagogia compondo, junto com representantes de outras Universidades, a mesa
redonda intitulada A Formação do Psicopedagogo na Sociedade Contemporânea
4
. Para
aquela ocasião, elaborei uma breve apresentação, cujo objetivo foi o de minimamente
responder à provocação feita pela comissão organizadora do evento, qual seja: o
psicopedagogo deve estar preparado para...
O envolvimento que passei a ter com as discussões da área possibilitou-me, entre
outras atividades, a coordenação de dois projetos de pesquisa, desenvolvidos na
Universidade Luterana do Brasil: um sobre o reconhecimento legal da Psicopedagogia
como campo independente do saber e outro sobre as formas pelas quais a Psicopedagogia
vem sendo debatida por militantes da área. Tais projetos resultaram na publicação e
apresentação de dois trabalhos, em 2004, no V Fórum de Pesquisa Científica e
Tecnológica e X Salão de Iniciação Científica da ULBRA/RS
5
.
Em meio a tais atividades, propusemos eu e outras professoras da ULBRA a
alteração do projeto do curso de Especialização em Psicopedagogia daquela Instituição,
prevendo um quadro curricular composto por disciplinas capazes de problematizarem a
emergência da Psicopedagogia, sua especificidade e conceituação, bem como sua
metodologia de ensino e de pesquisa, e sugerindo formas diferenciadas de intervenção
psicopedagógica. Mesmo não estando em vigor, penso que a reformulação do projeto
tensionou algumas convicções psicopedagógicas do corpo docente do curso e, com isso,
4
O Encontro aconteceu em Porto Alegre, na PUC/RS, nos dias 5 e 6 de novembro de 2004. Além de mim,
as professoras que compunham a Mesa Redonda, representando suas respectivas Universidades eram: Neusa
Hickel (UniRitter), Gilca Lucena Kortmann (UniLasalle), Jane Batista (FAPA) e Maria Beatriz Ramos
(PUC/RS).
5
Os resumos dos trabalhos foram publicados nos Anais deste evento, com os seguintes títulos: “A
disciplinaridade jurídica na Psicopedagogia” e “O controle da desordem ou o descontrole da ordem: a
Psicopedagogia entra em cena...”.
21
senti estar, dessa vez um pouco mais, frente a frente com minhas principais inquietações
advindas do campo psi.
Minhas escolhas e as lentes teórico-metodológicas
Diante dessas histórias de insatisfação com a presença constante do campo psi nas
práticas pedagógicas, vi o curso de Doutorado como uma possibilidade de acertar as
contas com o tema da Psicopedagogia. Mas este acerto de contas não sugere, de modo
algum, pôr em xeque os conceitos psicopedagógicos, dialogar com eles, verificá-los,
criticá-los, destruí-los ou confirmá-los. O acerto a que me refiro não pretende saber se o
conhecimento produzido pela Psicopedagogia é verdadeiro ou falso, mas saber como ele
foi considerado verdadeiro ou falso em uma determinada época; por quais mecanismos e
instâncias foi realizada essa distinção; quais técnicas e procedimentos foram utilizados
para isso; e em que circunstâncias e por quem (representantes de que áreas, de que
saberes).
Nesse sentido, não pretendo responder à questão o que é a Psicopedagogia?, mas
como a Psicopedagogia veio a se tornar o que hoje dizemos que ela é? A sutil diferença
entre essas duas questões assume grande importância, na medida em que há, de acordo
com Veiga-Neto (1995), pelo menos duas vertentes diferentes de investigação: a vertente
que realiza análises do tipo internas, situadas no “lado de dentro” de sua própria
racionalidade e a vertente que realiza análises do tipo externas, situadas externamente em
relação ao pensamento que analisam.
Na pretensão de realizar uma investigação do tipo externa, parto do entendimento
de que o saber psicopedagógico não é algo exclusivo da Psicopedagogia e não é
independente de outros discursos valorizados na época de sua criação: este saber é
historicamente datado e geograficamente localizado; por isso, está situado num tempo e
num espaço onde existem outros discursos, de outras áreas, que, combinados, constituem
uma lógica que acaba por regular as relações estabelecidas entre as pessoas deste tempo e
deste espaço. Isso significa que as verdades psicopedagógicas emergem não no
estabelecimento de uma Psicopedagogia universal, mas no interior de uma série de
enunciados, práticas, instituições que configuram as formas culturais de uma sociedade.
22
Esse ponto a partir do qual dei início à minha pesquisa de Doutorado me foi
possibilitado pelas lentes teórico-metodológicas oferecidas pelo campo dos Estudos
Foucaultianos. A forma como este referencial entende a questão do sujeito é central para a
investigação que me propus a realizar. Os Estudos Foucaultianos não partem do
entendimento de sujeito como aquele que simplesmente realiza e organiza as suas práticas,
mas entendem que essas práticas que os sujeitos realizam e organizam estão envolvidas
com a própria construção dos sujeitos e com a formação de suas maneiras de ser.
Tal entendimento me faz pensar na construção da Psicopedagogia a partir de seu
envolvimento com relações de poder. De acordo com Foucault (1995, p.243), o que define
uma relação de poder é um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre as
pessoas, mas que age sobre a ação das pessoas. Como diz este autor, “uma ação sobre a
ação, sobre ações eventuais ou atuais ou futuras ou presentes”. Para Foucault, o poder:
é imanente a qualquer relação simplesmente porque em qualquer
relação sempre existe um diferencial entre aquilo de que uma
parte é capaz (de ser, ter ou fazer) e “aquiloutro” de que a outra
parte é capaz (de ser, ter ou fazer). Assim, o poder deve ser
compreendido e analisado em movimento. Deve ser analisado nos
movimentos que acontecem ao longo das malhas da rede social,
em cujos nós se situam os indivíduos que, ao mesmo tempo em
que se submetem ao poder, são capazes de exercê-lo. (Veiga-
Neto, 2006, p.24)
Nesse sentido, este estudo partiu do entendimento da Psicopedagogia como uma
prática envolvida com (e situada no interior de) relações de poder, como uma prática que
age sobre a ação das pessoas. Isso não significa que eu tenha feito um estudo de recepção,
que tenha se preocupado em examinar os efeitos diretos da efetivação de práticas
psicopedagógicas em instituições e sujeitos alvos da Psicopedagogia.
O que pretendi fazer foi lançar um olhar genealógico sobre a constituição da
Psicopedagogia. Acredito que a compreensão da Psicopedagogia como uma prática
cultural, problematizando algumas das condições que a constituíram, permitiu, também, a
compreensão das formas pelas quais ela age sobre a ação das pessoas, preferencialmente
no que se refere aos efeitos mais gerais que a prática cultural da Psicopedagogia acaba
tendo na organização de instituições como a escola, por exemplo, cujos discursos e
modalidades de funcionamento estão passando por processos de re-configuração; e, por
23
extensão, também no que se refere à constituição dos grupos de indivíduos chamados de
psicopedagogizados.
Dito de outra maneira: mesmo que este estudo tenha permitido uma análise da
utilização de saberes psicopedagógicos em práticas escolares, por exemplo, não foi desta
utilização que a pesquisa partiu. Se, desde o início, esteve claro, para mim, que a
Psicopedagogia não é dada, mas produzida, ela constituiu, portanto, o objeto da análise e
não sua premissa ou seu ponto de partida. Dessa forma, acredito que o próprio exame dos
modos como a Psicopedagogia emergiu acabou apontando para as formas como ela age
sobre ações, mostrando, assim, seu envolvimento com relações de poder.
A idéia central foi a de que, nessa perspectiva, eu não tenho como analisar a
inserção da Psicopedagogia em práticas sociais, devido ao entendimento de que ela não é
simplesmente inserida em determinadas práticas: ela nasce, se faz e se refaz nas próprias
práticas. Não se trata de algo que seja criado primeiro teoricamente, para, depois, ter seus
saberes introduzidos e aplicados em alguma instância social.
Daí que não descartei, no decorrer da pesquisa, a possibilidade de ter que descrever
e analisar práticas psicopedagógicas isoladas as formas como elas são recebidas,
construídas e trabalhadas com certos grupos, em certas instituições. A diferença esteve no
modo como abordei tais descrições.
E não sabendo, de antemão, as possibilidades com as quais iria me deparar, fiz uso
de um breve histórico das práticas psicopedagógicas, mas não para compreender o
fenômeno Psicopedagogia em uma sua suposta universalidade, descrevendo cronológica e
evolutivamente sua formação e seu desenvolvimento. Assim, uma suposta seqüência
evolutiva deu lugar, neste estudo, a uma análise das rupturas, dos deslocamentos, das
descontinuidades, das contingências da fabricação da Psicopedagogia e de sua colocação
no interior dos aparatos políticos, econômicos, administrativos...
No que se refere à metodologia, e considerando que esta pesquisa se movimentou
no campo dos Estudos Foucaultianos, ficou um tanto difícil estabelecer a priori uma linha
metodológica, em função de que a escolha das práticas de pesquisa depende sempre das
questões que são feitas e nesse sentido nenhuma metodologia em especial pôde ser
privilegiada nem eliminada antecipadamente. Mas é claro também que foi preciso apontar
alguma direção metodológica no início do estudo. Frente a esta exigência, preferi delimitar
o que este estudo não pretendia ser, para que, eliminando certas possibilidades, eu pudesse
24
esboçar algumas formas de realização da pesquisa. Então, desde o início, este estudo não
pretendeu:
ser uma descrição de como a Psicopedagogia es sendo introduzida e efetivada
nas escolas, apesar de ter feito algumas dessas descrições no seu decorrer para que
conta de uma análise que seja sensível às práticas sociais no interior das quais
os mecanismos psicopedagógicos se efetivam;
envolver-se numa análise que esteja preocupada com qualquer tipo de avaliação,
em termos epistemológicos, dos conhecimentos expressos pelos saberes
psicopedagógicos; com alguma suposta deficiência desses conhecimentos ou de
sua aplicação em práticas educacionais; com o julgamento das verdades cognitivas
sobre Psicopedagogia: algo como apontar erros e acertos na fabricação, na
organização ou no funcionamento da Psicopedagogia; ou algo como (apontados
erros e acertos) sugerir melhores formas de efetivação dos saberes e das práticas
psicopedagógicas;
envolver-se numa análise que esteja preocupada em fazer algum tipo de denúncia
política com relação aos saberes e às práticas psicopedagógicas ou com alguma
suposta falsidade neles implícita. Ou então, num outro pólo, tampouco este estudo
pretendeu envolver-se numa análise que esteja preocupada em ressaltar a validade
e importância dos saberes e das práticas psicopedagógicas para uma suposta
libertação dos indivíduos.
Assim, como referido, o que pretendi foi lançar um olhar genealógico sobre a
constituição da Psicopedagogia: um olhar genealógico no sentido de Foucault, que faz
uma filosofia histórica, mas não transcendental, e para quem a genealogia significa
conduzir a análise a partir de uma questão presente. Foucault entende que a história da
humanidade é uma série de interpretações que querem impor uma vontade sobre outra e
que se desenha em função de lutas. Daí que a genealogia, para Foucault, opera por
perspectivas, inclusive reconhecendo sua própria interpretação como uma entre outras
(Dreyfus e Rabinow, 1995; Veiga-Neto, 1996).
Explicando melhor: lançar um olhar genealógico não significa necessariamente
fazer uma genealogia; isso, sem dúvida, exigiria condições de tempo e de dedicação quase
exclusiva ao estudo, que geralmente estão bastante distantes das condições com que se faz
pesquisa hoje no Brasil, pelo menos no campo da Educação. Portanto, meus objetivos
25
foram bem mais modestos: tratou-se de uma tentativa de mostrar algumas condições em
determinados momentos em que surge a necessidade de outros saberes para fundamentar
as práticas escolares; saberes que se envolveram na re-definição de conceitos típicos da
Pedagogia como ensino e aprendizagem, professor e aluno, etc.; e que foram solidificando
o terreno para a construção do edifício psicopedagógico.
Com relação ao corpus analítico da pesquisa para que esta fosse sensível ao olhar
genealógico que pretendi lançar sobre a emergência da Psicopedagogia no Brasil, é
preciso referir que ele foi sendo composto ao longo da investigação e tomou rumos
bastante diferentes daqueles que foram apresentados na ocasião da defesa da Proposta de
Tese, em dezembro de 2006. Minha idéia inicial, apresentada na Proposta, era compor o
corpus de análise a partir da combinação de alguns dos documentos que seguem, ou com o
conjunto deles:
Revista Psicopedagogia. Trata-se de uma Revista da Associação Brasileira de
Psicopedagogia, com ISSN, indexada na IBICT e CENP, que tem por objetivo
publicar artigos inéditos na área da Psicopedagogia, em especial resultados de
pesquisa de caráter teórico-empírico, revisões críticas da literatura de pesquisa
educacional (temática ou metodológica) e reflexões críticas sobre experiências
pedagógicas que ampliem e aprofundem o conhecimento na área. A Revista é
quadrimestral e sua tiragem é de 3.000 exemplares por número.
Informativo Psicopedagogia On-Line, um Boletim criado e gerenciado pela
Associação Brasileira de Psicopedagogia, com mais de vinte e três mil e-mails
cadastrados e um milhão e duzentas mil visitas ao mês. Trata-se da divulgação do
primeiro portal dedicado à Educação e Saúde Mental, no Brasil, que serve de fonte
de referência para outros sites e mídias. Este portal publica variadas produções e
estudos científicos como artigos, trabalhos, entrevistas e pesquisas atuais de
autores e/ou profissionais da Educação e Saúde Mental, do Brasil ou do exterior.
Propõe atuação voltada à melhoria da qualidade do ensino e dos profissionais que
atuam nestas áreas, oferecendo-lhes informações atualizadas. Todo o acervo é
disponibilizado gratuitamente e sem restrições, eleito como um dos maiores
centros de pesquisas e conhecimento para estudantes universitários e profissionais
da área. Promove intercâmbio com entidades brasileiras e estrangeiras
representativas da Educação e Saúde Mental. Dispõe de espaço (Fórum) para
26
discussões e troca de experiências e constitui-se numa associação totalmente
gratuita.
Eventos promovidos e/ou organizados pela Associação Brasileira de
Psicopedagogia, preferencialmente os periódicos e itinerantes, como Seminários,
Encontros, Congressos, Reuniões, etc. (análise dos anais, dos programas, dos
temas escolhidos para cada ano, das parcerias que estabelecem, dos trabalhos
apresentados, dos catálogos ou outras publicações derivadas dos eventos).
Currículos e respectivas ementas dos cursos de formação em Psicopedagogia, no
nível da Especialização (vigentes no Brasil desde a década de 1960) ou até mesmo
da Graduação (inaugurados no Brasil no ano de 2002, formando bacharéis em
Psicopedagogia Clínica e Institucional).
Preocupada com o fato de que tais materiais e fontes, apesar de bastante
instigantes, talvez não me possibilitassem a problematização da emergência da
Psicopedagogia, cheguei a sugerir, na Proposta de Tese, a análise dos pareceres do
Conselho Nacional de Educação, em especial aqueles anteriores à década de 1990. Minha
hipótese era de que tais pareceres pudessem indicar os caminhos pelos quais a
Psicopedagogia passou a operar no Brasil, analisando-se em que situações, épocas e
contextos os pareceres passaram a referir o termo Psicopedagogia ou as preocupações em
torno dessa área, mesmo que ela não estivesse literalmente anunciada.
No entanto, ao considerar mais detidamente o objeto desta investigação, percebi
que nenhum desses materiais poderia fornecer dados minimamente suficientes para
discutir a emergência da Psicopedagogia no Brasil, que o conjunto dos documentos
acima destacados é bastante recente. O fato é que vi, diante da minha pretensão de estudo,
uma série de acontecimentos e situações (des)conectadas entre si Associação Brasileira
de Psicopedagogia, formação de psicopedagogos, regulamentação da profissão, práticas
psicopedagógicas efetivamente acontecendo em escolas, empresas, hospitais, clínicas, etc.
Todos esses acontecimentos, de alguma maneira, também se configuram em condições
para que a Psicopedagogia se recrie e se fortaleça no Brasil, mas percebi que não daria
conta de analisar sua emergência.
Com relação a isso, faço minhas as palavras de Costa (2002, p.19), quando esta
autora diz que: “sempre que se produz um novo conhecimento também se inventa um
novo e peculiar caminho. Quando olhamos para trás é que nos damos conta disso”. Os
27
estudos que desenvolvi posteriormente à defesa da Proposta foram me mostrando que o
olhar genealógico que eu pretendia direcionar à Psicopedagogia implicava a análise de
materiais bastante anteriores à constituição desse próprio campo. Foi assim que um outro
conjunto de textos apresentou-se neste estudo como uma das possibilidades de re-
composição do corpus de análise que, na intenção de problematizar a emergência da
Psicopedagogia no Brasil, ficou assim constituído, entre alguns outros documentos, textos
e livros secundários que não serão listados aqui, mas cuja análise foi sendo também
desenvolvida no decorrer da investigação que ora apresento:
Analisados especialmente na segunda parte da Tese: Didática Magna (Comenius,
2002), Emílio ou Da Educação (Rousseau, 2004), Mente absorvente (Montessori,
s/d), Pedagogia Científica: a descoberta da nova criança (Montessori, 1965), A
escola sob medida (Claparède, 1973), A educação funcional (Claparède, 1940), O
julgamento moral na criança (Piaget, 1977).
Analisados especialmente na terceira parte da Tese: Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova (Azevedo et.alii, 1932), Introdução ao Estudo da Escola Nova
(Lourenço Filho, 2002), Por que “Escola Nova”? (Teixeira, 1930), Aspectos
americanos de educação (Teixeira, 1928), Reorganização do Ensino Normal e sua
transposição para o plano universitário (Teixeira, 1932), Ideais e interesses das
crianças de Belo Horizonte e algumas sugestões pedagógicas (Antipoff, 2002a), O
desenvolvimento mental das crianças de Belo Horizonte (Antipoff, 2002b),
Arquivos do Instituto de Educação (publicados nos anos de 1934 e 1936),
especialmente o texto A escola de Professores do Instituto de Educação (Lourenço
Filho, 1934).
No que se refere à seleção e problematização desses textos, pretendi, tal como
sugere Fischer (2002, p.43),
olhar o corpus de análise como um conjunto de textos associados
a inúmeras práticas sociais, analisá-los igualmente como práticas
que são, como constituidores de sujeitos e corpos, de modos de
existência não de pessoas como de instituições e inclusive de
formações sociais mais amplas. [...] textos vistos na sua
materialidade pura e simples de coisas ditas em determinado
tempo e lugar.
28
Considerando essa afirmação, quero chamar a atenção para os usos que fiz dos
textos que compuseram o corpus analítico: na intenção de não considerá-los de modo
estrito, pretendi entendê-los sempre como partes de determinadas políticas de verdade, que
se reforçam, se ampliam, se excluem, se transformam e se propagam na época em que são
culturalmente construídas e veiculadas. Como bem afirma Foucault (1999a, p.35), “é
sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem; mas não nos
encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘política’ discursiva que
devemos reativar em cada um de nossos discursos”.
Nesse sentido, e com a pretensão de lançar um olhar genealógico sobre a
emergência da Psicopedagogia no Brasil, organizei a Tese em quatro partes.
A primeira parte da Tese – a menor delas, intitulada “Os contornos da pesquisa”, e
que acabou de ser desenvolvida aqui tratou de mostrar, nas duas seções que compõem
este Capítulo I, como foi se constituindo, na minha trajetória acadêmica e profissional, a
aproximação que tive com o tema da Psicopedagogia; também explicou certas questões
metodológicas, situando este estudo como uma investigação do tipo externa, de inspiração
foucaultiana.
A segunda parte da Tese intitulada “A emergência da Psicopedagogia” está
organizada em dois Capítulos: II e III.
O Capítulo II apresenta os três estudos que me serviram de bases para a construção
da Tese: Foucault (2006), Noguera-Ramírez (2008) e Varela (2000). Este Capítulo é
composto por três seções: a primeira seção faz uma revisão da aula de de fevereiro de
1978, do curso Seguridade, Território, População, de Foucault (2006); e esclarece acerca
da mudança na argumentação central desta pesquisa, desde que ela foi proposta. A
segunda seção refere os estudos de Noguera-Ramírez (2008) e Varela (2000) como
análises que discutem as lógicas sociais por meio das lentes da Pedagogia. A terceira
seção trata dos pontos de conexão dos três estudos entre si e deles com a investigação
proposta nesta Tese, anunciando que, com base nesses pontos de conexão, foram
selecionados quatro focos de análise, entendidos como portas de entrada para a
emergência da Psicopedagogia.
O Capítulo III, então, organizado em quatro seções, desenvolve, em cada uma
delas, os quatro focos de análise, ou seja, as quatro portas de entrada que selecionei para a
análise das condições mais amplas de emergência da Psicopedagogia enquanto campo
29
específico do conhecimento. A primeira seção faz uma discussão sobre os estudos da
criança e, após referir Comenius e Rousseau, sugere que a partir da diferenciação entre
homem natural e homem social (feita por Rousseau) dá-se a produção e disseminação de
vários discursos que contribuem para a formação da idéia de um sujeito infantil
naturalizado, destacando em especial os discursos advindos da Psicologia, e afirmando
que o elo entre Psicologia e Pedagogia (constituído em meio à emergência dos estudos da
criança) dispôs as primeiras possibilidades para a construção do solo psicopedagógico. A
segunda seção discute a idéia de que uma das condições fundamentais de possibilidade
para a emergência do que hoje se chama Psicopedagogia situa-se no movimento em favor
da normalização da infância anormal, constituído na França, no final do século XIX. A
terceira seção trabalha com as idéias de três principais representantes do Movimento da
Escola Nova: Montessori, Decroly e Claparède; refere especialmente as idéias de
centralidade da criança na ação educativa, auto-educação e disciplina, entendendo-as
como representativas de como se arraigaram, entre os pedagogos, as inquietudes
psicopedagógicas da época. A quarta seção trabalha com as idéias de Piaget, mais
especialmente com o preceito psicológico do estado de autonomia individual, destacando
que ele está em sintonia com os traços gerais do dispositivo de seguridade, estudados por
Foucault (2006), e mostrando as relações entre a lógica da gestão governamental e as
teorizações da Psicologia do Desenvolvimento.
A terceira parte da Tese intitulada “A emergência da Psicopedagogia no Brasil”
– está organizada em dois Capítulos: IV e V.
O Capítulo IV tece considerações sobre a chegada dos princípios escolanovistas no
país, especialmente nos períodos que, na História do Brasil, ficaram conhecidos como
Primeira e Segunda República. Para tanto, refere a criação da Associação Brasileira de
Educação e as principais reformas de ensino, especialmente de abrangência estadual, que
aconteceram nas décadas de 1920 e 1930. Este Capítulo está organizado em três seções. A
primeira seção analisa o texto Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, lançado ao
povo e ao Governo brasileiro em 1932, redigido por Fernando de Azevedo e assinado por
vinte e seis intelectuais brasileiros que tomaram posição de vanguarda da renovação
educacional no Brasil. A segunda seção analisa o livro Introdução ao Estudo da Escola
Nova, escrito por Lourenço Filho e publicado pela primeira vez em 1930. A terceira seção
analisa o texto Por que “Escola Nova”?, escrito por Anísio Teixeira e publicado também
em 1930.
30
O Capítulo V, organizado em duas seções, discute duas das principais portas de
entrada para a Psicopedagogia no Brasil. A primeira seção trata da Escola de
Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte, criada em 1927, por meio da qual foi
introduzido, no Brasil, o pensamento de Claparède, através de Helena Antipoff e das
pesquisas que ela passou a realizar, naquela Instituição, sobre o desenvolvimento mental e
sobre os ideais e os interesses das crianças mineiras. A segunda seção trata do Instituto de
Educação do Rio de Janeiro, criado em 1932, destacando em especial as atuações de
Anísio Teixeira e Lourenço Filho e analisando o programa curricular da Escola de
Professores daquele Instituto.
A quarta parte da Tese intitulada A Psicopedagogia no cenário atual” está
organizada em dois Capítulos: VI e VII.
O Capítulo VI sugere que as investigações e práticas psicopedagógicas têm se
legitimado na mesma proporção em que cresce o debate em torno da constituição da
Psicopedagogia como campo independente do saber. Nesse sentido, trabalha com três
pontos de análise, imbricados entre si, e que podem ser entendidos como mantendo uma
relação direta com as condições de possibilidade não apenas de emergência da
Psicopedagogia (tanto de forma ampla quanto mais especificamente no Brasil), mas
também do seu caráter de veridicidade que lhe conferiu a legitimidade de seu
funcionamento no interior das práticas escolares. Assim, este Capítulo é composto por três
seções. A primeira seção trata do envolvimento da Psicopedagogia com o processo de
normalização, na medida em que os saberes psicopedagógicos constituem estratégias para
reinserção e readaptação dos alunos desviantes e, simultaneamente, legitimam a
permanente necessidade de intervenção junto a esses alunos, situando-os a uma certa
distância do conceito de normal. A segunda seção trata do envolvimento da
Psicopedagogia com a gestão do risco social, destacando o fracasso escolar como a
materialização, no campo da Educação, do risco social. A terceira seção trata do
envolvimento da Psicopedagogia com o deslocamento do ensino para a aprendizagem,
retomando o conceito de fracasso escolar primeiro na pedagogia curativa e depois nos três
enfoques que orientaram os discursos e as práticas psicopedagógicas: organicista,
cognitivista e terapêutico.
31
O Capítulo VII, que não se divide em seções, faz algumas considerações finais
relativas à pesquisa que ora apresento, destacando que a conclusão da própria Tese sugere
o início de uma série de outras investigações acerca da Psicopedagogia no Brasil.
32
SEGUNDA PARTE
A EMERGÊNCIA DA PSICOPEDAGOGIA
33
CAPÍTULO II
SOCIEDADE(S) E PEDAGOGIA(S)
É bastante comum a afirmação de que se vive um tempo de algumas importantes e
rápidas transformações na organização política, econômica e cultural das sociedades
ocidentais. Dentre os principais deslocamentos operados na (e pela) Contemporaneidade, a
emergência das tecnologias digitais tem sido enfatizada como responsável por alterar
profundamente os modos de se perceber, significar e viver isso a que se chama realidade.
A “universalização da informação e do pensamento” (Lévy, 2005) permite o
agenciamento de processos globalizadores que têm transformado as formas racionais de
ordenação da vida social, a partir principalmente da relação que estabelecemos com os
espaços e os tempos. Para Harvey (2003), o funcionamento das tecnologias digitais
possibilitou uma síntese do espaço e do tempo: o que este autor chama de compressão
espaço-temporal. Pode-se dizer que um dos principais efeitos dessa compressão é a
efetivação de práticas culturais intensamente híbridas, complexificando a forma como se
experimenta o mundo nos seus aspectos global e local. É nesse sentido que Lemert (1997),
Hall (1997), entre outros autores, dizem que se quisermos melhor entender o mundo
contemporâneo é para a cultura que devemos olhar, não porque ela seja superior às outras
instâncias sociais, mas exatamente porque hoje, de forma mais acentuada, tudo o que diz
respeito ao social é atravessado pela cultura.
É fácil ver o quão importante é isso para uma discussão sobre o campo
educacional, já que a escola, desde seu surgimento, esteve associada à idéia de transmissão
cultural, sendo entendida e tratada como uma instituição (ou melhor: como a instituição)
capaz de recuperar crianças, jovens e adultos de suas precárias condições de existência.
34
Trata-se de um entendimento elitista da cultura (letrada, acadêmica) como o melhor que se
pensou e se disse no mundo. Munidos de “cultura”, por meio da educação, os sujeitos
supostamente estariam livres dos constrangimentos dos males sociais, livres da barbárie,
da incivilidade e da ignorância. Foi sobre tal concepção de cultura, e alimentando essa
mesma concepção, que a escola moderna foi edificada, produzindo e disseminando uma
preocupação, digamos, sanitarista (limpar a sujeira do mundo) e salvacionista (tirar os
sujeitos da menoridade, da selvageria, da inépcia, da rudeza).
Conectadas a tal preocupação, encontram-se as idéias de disciplinamento e de
normalização. Como bem demonstrou Michel Foucault (1987), o advento da Modernidade
está intimamente imbricado com o funcionamento de dispositivos disciplinares de poder,
que passam a atravessar o que esse autor chama de instituições de seqüestro: a fábrica, a
prisão, o quartel, o manicômio e, também, a escola. Tais dispositivos funcionam em
situações em que o tempo depende de uma rotina rígida e inflexível, realizada num espaço
fixo, que põe em confinamento tanto os que impõem a rotina quanto os que são
submetidos a ela. Ainda que em posições diferenciadas, ambos são capturados pela
disciplina: ambos permanecem presos ao lugar, que sugere um tempo e um espaço
racionalmente organizados. Por isso, as sociedades disciplinares – que emergiram na
constituição da Modernidade são conhecidas por fazerem circular dispositivos de poder
que operam a partir da delimitação de um espaço fechado, distribuindo os corpos no
espaço, ordenando o tempo, compondo uma relação produtiva entre espaço-tempo.
O século XVIII marca o que se pode chamar de passagem da primeira para a
segunda Modernidade, em que estão imbricados, numa relação imanente, a revolução
industrial, o Iluminismo, o transcendental kantiano, a idéia de futuro como progresso, a
fisiocracia e o liberalismo, a economia política, a emergência das sociedades de gestão
governamental, o funcionamento do dispositivo de seguridade (Foucault, 2006), entre
outros. Nesse sentido apesar de o poder disciplinar seguir atuando ativamente na nova
lógica característica da segunda Modernidade –, a mobilidade pode ser entendida como o
ponto chave da diferença (de percepção e uso do tempo e do espaço) que entre as
formas de ordenação tipicamente disciplinares e as formas de ordenação que começaram a
se instituir no século XVIII, em imanência com o Iluminismo, e que se intensificaram no
século XX, junto à revolução tecnológica.
35
A título de explicação, estou referindo-me aqui a dois casos: sociedades
disciplinares e sociedades contemporâneas a emergência destas últimas pode ser
encontrada nas sociedades de governamentalidade, estudadas por Foucault (2006). É certo
que, em qualquer dos dois casos, o movimento tem sua organização racionalizada com
base na eficiência, de forma que se obtenha o máximo de produtividade e resultados
esperados, no menor prazo de tempo possível. A diferença é que, no primeiro caso, o
movimento é muito restrito e pode ser realizado apenas – e somente apenas – dentro de um
espaço de fixas fronteiras e limites intransponíveis. Soma-se a isso o fato de que, nesse
espaço, não são permitidos quaisquer movimentos, mas apenas e somente apenas os
movimentos pré-estabelecidos pela rotinização do tempo. Ou seja, a disciplina exige,
necessariamente, uma disposição reticular, em que o espaço é lugarizado em muitos e
diferentes lugares. Diferentemente, no segundo caso, os dispositivos de poder não
precisam de delimitação espaço-temporal, não porque deixam de dar importância ao
espaço e ao tempo, mas exatamente porque, em função da rapidez de movimentos com
que são operados, se estendem instantaneamente a todos os espaços.
Este segundo caso pode ser entendido como característico do que Deleuze (1992)
chamou de “sociedades de controle”, cujo suporte é fornecido pelas telecomunicações e
pela informática. A integração dessas duas tecnologias em dispositivos denominados
“telemáticos” potencializa infinitamente o controle. E é claro que, como salienta Veiga-
Neto (2002b), não se trata tão somente de uma vigilância visual, mas também de um
“controle documental”, em que cada um pode ser mapeado, escrutinado e acompanhado
em imensos bancos de dados. Dessa forma, as relações de poder são estabelecidas quase
que instantaneamente, o que dispensa as rotinas. Se o tempo não precisa ser rotinizado
para que os dispositivos de poder funcionem, faz-se desnecessário manter as pessoas em
confinamento. Isso é o que chamei, num outro lugar, de formas atualizadas de panoptismo,
também expressas pelo aviso: “Sorria! Você está sendo filmado” (Coutinho, 2002).
Formas extraterritoriais: quanto maior sua mobilidade, maior a eficácia do poder que
engendram. Quanto mais o tempo torna-se instantâneo no maior espaço possível, de forma
a abolir o próprio tempo e o próprio espaço, mais eficazes serão os mecanismos de
controle.
Entre as principais transformações nas percepções e usos do espaço-tempo, estão: a
aceleração do movimento, a flexibilização do tempo, a lugarização, a presentificação, a
fragmentação espacial, a desterritorialização, a porosidade das fronteiras (Saraiva, 2006).
36
Tais transformações têm impacto (com maior ou menor intensidade) sobre quase todas as
formas de organização do mundo ocidental, criando novas demandas de vida que se fazem
prementes aos sujeitos contemporâneos. Demandas em sintonia com um mundo cuja
direção está sendo (ou foi?) cedida aos mercados globais de massa, acelerando os tempos
de giro do capital e, conseqüentemente, acelerando o ritmo do consumo: consumo de bens,
cada vez mais instantâneos e descartáveis; consumo de serviços, cada vez mais volátil e
efêmero (Coutinho, 2003). As modificações espaciais e temporais podem ser encontradas
em várias práticas do nosso cotidiano, num processo crescente e intenso de
desregulamentação e privatização da ordem de outrora, o que Bauman (1998) chama de “a
nova desordem do mundo”. Para Lipovetsky (1983, p.51), tal desordem culminou na
constituição de uma “sociedade da sedução”, caracterizada principalmente por ser uma
sociedade de serviços, como nova forma de regulação da conduta humana.
A compressão espaço-temporal levada às suas últimas conseqüências é entendida
por Harvey (2003) como um fenômeno pós-moderno. Apesar disso, as formas atuais de
ordenação ainda que se apresentem diferentemente, adaptadas para se equivalerem às
transformações de um mundo que, de acordo com Lipovetsky (1983), vem (não
sistematicamente) estendendo seus limites e reduzindo relações autoritárias conservam
algo daquelas outras formas tipicamente modernas. E se isso acontece, então é porque não
se pode descartar a possibilidade de que as formas contemporâneas de ordenação não
deixam de também ser modernas. Tratando-se mais especialmente da regulação das
pessoas, é possível dizer que mudaram certas estratégias, dispositivos, mecanismos. Mas
não podemos deixar de levar em conta que, independente das formas que histórica ou
recentemente organizamos para regularmos a s mesmos e aos outros, o fato de que a
regulação deve existir nas nossas sociedades (ou modernas, ou pós-modernas, ou do que
mais quiserem chamá-las) não desaparece. Portanto, não estou assumindo a posição de que
as sociedades contemporâneas são pós-modernas. Basta olharmos para a insistente
permanência da escola, apesar da desconfortável, mas ainda poderosa posição que ocupa
atualmente, para percebermos a impossibilidade de uma classificação das práticas
(intensamente híbridas) de nosso tempo, exatamente porque, na coexistência do
disciplinamento com o governamento, há um emaranhado de relações entrelaçadas numa
teia muito refinada, que acaba por engendrar as formas culturais contemporâneas, e que ao
mesmo tempo é resultado e promotor de um conjunto de deslocamentos, variações e
alterações dos modos de percebermos o mundo em que vivemos.
37
A breve introdução que acabei de fazer a este Capítulo II reuniu, de forma talvez
um tanto apressada, uma série de discussões, com base em diferentes autores que tratam
de questões contemporâneas. Ao fazer isso, minha intenção foi assentar o terreno para que
eu possa explicar o que chamei de mudança na argumentação central desta pesquisa de
Doutorado, desde que ela foi proposta em dezembro de 2006. Tal mudança aconteceu,
sobretudo, em função das ferramentas analíticas das quais passei a me utilizar nas
investigações posteriores à defesa da Proposta de Tese, em especial a partir do estudo que
fiz do curso que Michel Foucault ministrou no Collège de France em 1978, intitulado
Seguridade, Território, População. Assim, passo, na próxima seção, a fazer uma breve
revisão da aula de de fevereiro de 1978 do referido curso, para, em seguida, nessa
mesma seção, comentar a mudança na argumentação central da pesquisa, considerando
que os conceitos trabalhados por Foucault (2006) especialmente os de dispositivo de
soberania, dispositivo disciplinar e dispositivo de seguridade foram incorporados na
minha pesquisa e passaram a constituir não apenas as perguntas que eu me fazia, como
também os caminhos que percorri para respondê-las.
Dispositivos de soberania, disciplinar e de seguridade
Na aula de de fevereiro de 1978 do curso Seguridade, Território, População,
Foucault (2006) afirma que esteve interessado, naquela ocasião, em fazer o que chamou de
história da governamentalidade. Nesta aula, ele trata de algo que eu vejo como central para
as análises que proponho neste estudo: o desbloqueio da arte de governar. Este autor nos
mostra que a problemática geral do governo colocada a partir do século XVI era a
seguinte: “como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que
métodos” (Foucault, 2006, p.111)
6
.
6
Talvez seja mais acertado dizer “problemática geral da governamentalidade”, nos sentidos que Foucault
(2006) dá a esse termo. Não foi exatamente à problemática do governo, mas mais especificamente à
problemática do governo dos Estados pelos príncipes. Isso deve ficar bastante claro, já que o termo governo
(antes de ser capturado pela Economia Política) significava ação ou ato de governar. Com relação aos termos
governo e governamento, de acordo com Veiga-Neto (2002a), Foucault usou duas palavras diferentes, de
uso corrente nas línguas francesa, espanhola e inglesa: gouverne e gouvernement. Na língua portuguesa,
estes dois termos são expressos por uma única palavra: governo. No entanto, trata-se de um duplo
entendimento: 1) a instituição do Estado: o Governo da República, o Governo Municipal, o Governo do
Estado; 2) a ação de governar: uma casa, almas, crianças, uma província, um convento, uma ordem religiosa,
uma família, etc. Neste segundo sentido, governo significa “práticas múltiplas, na medida em que muita
gente pode governar: o pai de família, o superior do convento, o pedagogo e o professor em relação à criança
e ao discípulo; há, portanto, muitos governos, em relação aos quais o do príncipe governando seu Estado é
apenas uma modalidade” (Foucault, 2006, p.117). E é neste sentido, quando Foucault se refere a uma ação
38
Tomando O príncipe, de Maquiavel, como exemplo, Foucault explica que foi
contra o foco na conservação do principado na relação de exterioridade e de
transcendência que o príncipe mantém com seu principado, nos laços de violência e de
tradição que os ligam – que aparece uma vasta literatura anti-Maquiavel. Analisando
alguns textos desta literatura, Foucault (2006, p.119) destaca a idéia da existência de
diferentes formas de governo: de si mesmo, da família, do Estado; formas diferentes mas
que, por se cruzarem, há entre elas uma continuidade essencial apresentada de duas
maneiras, a ascendente e a descendente:
Continuidade ascendente no sentido em que aquele que quer
poder governar o Estado deve primeiro saber se governar,
governar sua família, seus bens, seu patrimônio. [...] Continuidade
descendente no sentido em que, quando o Estado é bem
governado, os pais de família sabem como governar suas famílias,
seus bens, seu patrimônio e por sua vez os indivíduos se
comportam como devem. [...] Nos dois casos, o elemento central
desta continuidade é o governo da família, que se chama de
economia.
Importa dizer que a questão a ser problematizada por essa literatura refere-se a
“como introduzir a economia isto é, a maneira de gerir corretamente os indivíduos, os
bens, as riquezas no interior da família [...] ao nível da gestão de um Estado?” (id.). Esta
questão fazia sentido porque as relações de soberania conheciam apenas duas instâncias
distintas e separadas: por um lado, a instância da economia, própria da família, própria da
forma de governar a casa; por outro lado, a instância da política, própria do Estado,
relacionada aos problemas de governo por parte do príncipe, do soberano, ou seja,
relacionada à questão de como fazer os súditos obedecerem às leis soberanas.
Dessa forma, no quadro conceitual da época, não fazia sentido falar em Economia
Política nem em economia doméstica termos extensamente utilizados atualmente para
designar, respectivamente, o bom gerenciamento do Estado e o bom gerenciamento da
de governar, que Veiga-Neto (2002a) sugere que se use o termo governamento, porque o termo governo está
associado, de forma geral, a uma instituição centralizadora de poder, vinculada ao Estado. Sobre o uso das
expressões governo, governamento e governamentalidade, ver Veiga-Neto (2002a).
39
casa que havia um grande abismo entre as instâncias da economia e da política e
que, também, tudo o que fosse econômico era doméstico por definição
7
.
Portanto, diante do abismo entre, por um lado, o pai de família e a sua casa e, por
outro lado, o Estado e o soberano, o problema recorrente da literatura anti-Maquiavel
examinada por Foucault (2006) era saber como se poderia introduzir o modelo da
economia (familiar) para gerir um Estado inteiro. Apesar desta problemática, a arte de
governar permaneceu bloqueada, na medida em que as instituições de soberania
continuavam a ser as instituições fundamentais, ou seja, na medida em que o exercício do
poder continuava a ser pensado como exercício da soberania, tanto como questão teórica
quanto como princípio de organização política. Mas como se deu, então, o desbloqueio da
arte de governar?
Segundo Foucault (2006), tal desbloqueio somente se tornou possível a partir da
percepção dos problemas específicos da população, que puderam ser isolados,
sistematizados e calculados fora do quadro jurídico soberano. Foi com a emergência da
noção de população – como um corpo múltiplo que tem uma regularidade própria: número
de mortos, de doentes, regularidade de acidentes, etc. que se pôde utilizar a economia
para gerir um Estado inteiro: daí a expressão Economia Política. O autor destaca três fatos
cuja combinação se constituiu em condições de possibilidade para o tal desbloqueio da
arte de governar, quais sejam: 1) a família passa a ser secundária em relação à população,
dada a impossibilidade de esta se reduzir àquela. Portanto, a família aparece como
elemento interno à população. Não mais como modelo, mas como instrumento de
governo; 2) sendo a população sujeito de necessidades e, ao mesmo tempo, objeto nas
mãos do governo, ela passa a aparecer como objetivo final do governo; 3) em torno da
rede de relações entre a população, o território e a riqueza produz-se um saber que permite
a formação de uma razão de Estado, para que o governo se dê de forma racional e
planejada.
7
Uma breve referência à etimologia das palavras economia e doméstico pode nos auxiliar a melhor entender
tudo isto. O termo economia vem do grego óikonomia (óiko = casa; nomo = medida). Em seu sentido de
origem, economia refere-se, pois, às medidas da casa à arte de bem administrar as coisas relativas à casa.
O termo doméstico vem do latim domus (= casa, domicílio). Domus designa a casa como símbolo da família.
É relativo ao lar, habitação, moradia, residência e é relativo, também, à vida particular de uma pessoa ou de
uma família, àquilo que (lhe) é privado. Caso não tivéssemos atribuído novos códigos de significação à
expressão economia doméstica, tal expressão certamente nada mais seria do que uma grande redundância, na
medida em que economia do grego e doméstico do latim têm, nas origens, o mesmo significado.
40
Daí, então, a constituição da Economia Política como ciência do governo, que tem
a família como instrumento, a estatística como técnica e a população como objeto e
objetivo
8
. Família e política deixam, portanto, de ser dois pólos sociais reciprocamente
exclusivos. O gerenciamento caseiro ascendeu para o domínio político e o Estado tomou
para si parte das funções de manutenção da vida e sobrevivência da espécie, antes
exclusivamente da família. Isso permitiu “a entrada da vida na história isto é, a entrada
dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder no
campo das técnicas políticas” (Foucault, 1993, p.133). Trata-se da operacionalização de
uma tecnologia de poder centrada na vida, o que Foucault (1999b) chama de biopolítica: a
estatização (ou a publicização) do biológico, que põe em ação, por meio da medição
estatística, um poder regulamentador da vida.
O Estado passa a intervir nos processos populacionais de natalidade, mortalidade e
longevidade; passa a se preocupar com as relações da espécie humana e seu meio de
existência; passa a intervir em problemas como acidentes, enfermidades e anomalias
diversas. E passam, também, a aparecer
mecanismos mais sutis, mais racionais, de seguros, de poupança
individual e coletiva, de seguridade, etc. [...] A biopolítica vai se
dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem
numa população considerada em sua duração. [...]. E trata-se
sobretudo de estabelecer mecanismos reguladores que, nessa
população global com seu campo aleatório, vão poder fixar um
equilíbrio, manter uma média. (Foucault, 1999b, p.293)
Mas não se trata, como observa Foucault (2006, p.135), de substituir uma
sociedade por outra: da sociedade de soberania para a sociedade disciplinar e desta para a
sociedade de governamentalidade; trata-se de um triângulo: “soberania, disciplina e gestão
governamental, uma gestão cujo alvo principal é a população e cujos mecanismos
essenciais são os dispositivos de seguridade”.
Todo o curso de 1978 intitulado, como referi, Seguridade, Território, População
–, e mais especialmente a aula de de fevereiro deste curso, me levou a perceber a forma
interessante como Foucault teoriza, por meio de problematizações de suas próprias idéias:
o caráter nômade de seu pensamento, apesar de incômodo num primeiro momento, parece-
8
Em O contrato Social, no Capítulo intitulado Dos sinais de um bom governo, Rousseau (2002, p.83)
afirma: “o governo sob o qual [...] os cidadãos multiplicam e povoam mais, infalivelmente é o melhor;
aquele onde o povo diminui e se arruína é o pior. Calculadores, agora vos pertence contar, medir, comparar”.
41
me muito fecundo e, nesse sentido, penso que eu, enquanto pesquisadora na área da
Educação, tive e ainda tenho muito a aprender com ele, não apenas no que se refere aos
conceitos, às ferramentas teóricas, mas também aos procedimentos de investigação. Venho
me valendo de bocados das teorizações foucaultianas desde o curso de Mestrado, numa
tentativa de ver nessas teorizações algumas possibilidades de leituras a que elas se abrem.
Nesse sentido, tenho procurado fazer um uso do pensamento de Foucault não como
demonstração, mas como uma amostra, operando com recortes interesseiros e interessados
de minha parte no que se refere aos cruzamentos possíveis de se fazer com as questões da
Educação, da Pedagogia, da escola...
Acontece que, ao conhecer e estudar o curso de 1978, e a partir das discussões que
foram sendo travadas com o grupo de pesquisa do qual participo, coordenado pelo
Professor Alfredo Veiga-Neto, percebi um deslocamento operado no próprio pensamento
de Foucault, em suas teorizações feitas em torno das lógicas sociais e das formas de
racionalidade política, especialmente a partir das sociedades de soberania. E tive que
interpretar de novo o que eu já havia lido do próprio autor, quando este afirma que
devemos compreender as coisas não em termos de substituição de uma sociedade pela
outra. Embora isso tivesse sido por mim significado na época em que realizei minha
pesquisa de Mestrado, naquela ocasião meu movimento foi o de observar em especial as
rupturas e a troca de ênfases entre uma sociedade de soberania para uma sociedade
disciplinar
9
. Daí que me foi possível, na ocasião do Mestrado, estabelecer algumas
relações e situar as práticas escolares tal como as conhecemos hoje na Modernidade,
entendendo-as como disciplinares e, portanto, modernas. Cheguei a fazer, na Dissertação,
alguma breve distinção entre práticas soberanas, práticas disciplinares (que eu entendia
como modernas) e práticas que, na época, chamei tão-somente de contemporâneas,
valendo-me especialmente das discussões de Deleuze (1992) sobre as sociedades de
controle. E, apesar de eu ter falado em poder disciplinar (que se dirige ao homem-corpo) e
biopoder (que se dirige ao homem-espécie) e apesar também de eu ter aprendido, com
Foucault (1999b), que o poder disciplinar (século XVII) se desenvolveu antes do biopoder
(século XVIII) meu entendimento era o de que ambas as formas de poder estavam
9
Isso se deu a partir da leitura e do estudo de alguns livros e textos de Foucault, publicados no Brasil, tais
como: Vigiar e Punir (1987); Microfísica do Poder (1992) – em especial os textos “Soberania e Disciplina”,
“Verdade e Poder”, “A Governamentalidade” e “O Olho do Poder” –; História da Sexualidade I (1993) – em
especial o texto “Direito de Morte e Poder Sobre a Vida” –; A Verdade e as Formas Jurídicas (1996) em
especial as “Conferências IV e V” ; e Em Defesa da Sociedade (1999b) em especial a “Aula de 17 de
Março de 1976”.
42
conectadas às sociedades disciplinares e se colocavam a serviço delas. Nesse sentido, eu
passei a entender, junto com Foucault, que o elemento que circulava entre essas duas
diferentes (mas articuladas) formas de poder era a norma. Desse modo, não cheguei a
pensar em nenhuma distinção fundamental entre sociedades disciplinares e sociedades de
normalização, cujas gicas me pareciam conectadas e fazendo funcionar o que eu
entendia como sociedades modernas. Portanto, e sabendo que não se tratava de substituir
uma coisa pela outra, eu desenvolvi meus estudos de Mestrado (e também o início de
meus estudos de Doutorado) a partir do entendimento de que, desde a Idade Média, havia
três formas de racionalidade (política, econômica, cultural, social, etc.), que funcionavam
por meio de lógicas próprias e que estariam dispostas em: sociedades de soberania,
sociedades modernas e sociedades de controle; cujas formas de dominação seriam,
respectivamente, a violência, o poder disciplinar + o biopoder, e o controle. A questão era
que Foucault me serviu, na Dissertação, para marcar as posições soberanas e as posições
disciplinares; marcar, por um lado, a lógica soberana e, por outro lado, a lógica disciplinar;
tendo ficado em suspensa uma análise mais refinada sobre a sociedade de controle, cujo
conceito foi utilizado a partir do pouco que eu havia estudado de Deleuze.
Entretanto, estudando o curso que Foucault ministrou em 1978, e acompanhando o
próprio deslocamento operado no pensamento desse autor, passo a entender
diferentemente as lógicas de ordenação social, a partir da idéia de que a grande virada não
se deu necessariamente da soberania para a disciplina, mas desses dois tipos de sociedade
para o que Foucault (2006) chama de sociedades de gestão governamental, que colocam
em operação o dispositivo de seguridade. Nesse sentido, e deixando para trás o pouco que
sei de Deleuze, passo ao entendimento de que, desde a Idade Média, três formas de
racionalidade, dispostas em: sociedades de soberania, sociedades disciplinares e
sociedades de gestão governamental (ou de seguridade), cujas formas fundamentais de
dominação são, respectivamente, a violência, o poder disciplinar, e o biopoder (ou
governamentalidade liberal). Mas é preciso enfatizar que se trata de lógicas e que, por isso
mesmo,
não sucessão: lei, logo disciplina, logo seguridade; esta última
é, antes de tudo, uma maneira de somar, de fazer funcionar, para
além dos mecanismos disciplinares propriamente ditos, as velhas
estruturas da lei e da disciplina. [...] A tecnologia de seguridade
faz seus e põe em funcionamento, em sua própria tática,
elementos jurídicos e elementos disciplinares e, às vezes, chega a
multiplicá-los. (Foucault, 2006, p.24-26)
43
E foi a partir destes entendimentos que o tal “desbloqueio da arte de governar” fez
(um novo) sentido para mim. No momento em que as artes de governar mesmo sendo
tematizadas já no final do século XVI – se vêem bloqueadas, emergem as disciplinas. É no
lento deslocamento do século XVI para o século XVIII (ou seja, da soberania para a
gestão governamental) que surgem e se desenvolvem as disciplinas (no século XVII). Mas
as artes de governar, que são condições de possibilidade para as sociedades de gestão
governamental, não puderam se desbloquear, embora elas tenham sido a grande
preocupação no final do século XVI. Daí surgem as monarquias administrativas (típicas
das sociedades disciplinares), envoltas em questões de como governar. Nesse sentido, não
existem necessariamente três momentos um após o outro. Mas existe um deslocamento
entre soberania e gestão governamental. Nesse deslocamento, emergem as disciplinas que
puderam ir desbloqueando, ao longo de um século (XVII), as artes de governar. Portanto,
hoje, uma articulação de outros mecanismos (de soberania e de disciplina) dispostos
como o dispositivo contemporâneo, de seguridade, de gestão governamental. Ou seja,
houve uma governamentalização do Estado administrativo soberano, entre o final do
século XVI e o início do século XVIII. Enquanto essa governamentalização acontecia,
enquanto aconteciam as transformações referentes ao desbloqueio (do bloqueio ao
desbloqueio), e como parte desse processo, surgem e atuam as disciplinas muito bem
descritas por Foucault (1987), em Vigiar e Punir.
O novo modo como passei a entender as lógicas de ordenação social acabou
redirecionando os rumos desta minha pesquisa. Explico: na ocasião da defesa da Proposta
de Tese que aconteceu antes de eu realizar o estudo do curso Seguridade, Território,
População argumentei em favor de um possível descompasso entre escola moderna e
sociedade atual. Diante do que eu estava entendendo como descompasso, a
Psicopedagogia seria “o elo, a conexão, a teia que reconfigura as práticas escolares
[entendidas como modernas] à luz das transformações sociais elas próprias sendo
intensificadas e novamente produzidas quando em contato com os saberes
psicopedagógicos” (Coutinho, 2006, p.107)
10
. A hipótese não estava de todo errada; mas o
desenvolvimento da pesquisa evidenciou que este possível descompasso é, no caso
específico da Psicopedagogia, em parte apenas aparente. Digo isso porque o desenrolar da
investigação fez emergir certas continuidades antes não previstas.
10
O próprio título da Proposta de Tese resumiu em si o argumento central defendido; a Proposta foi assim
intitulada: No descompasso entre escola moderna e sociedade atual: a Psicopedagogia entra em cena...
44
Como salientei antes, iniciei os estudos de Doutorado marcando especialmente
dois diferentes dispositivos de poder-saber: de soberania e disciplinar. A escola moderna
estaria situada no segundo grupo (disciplinar). A sociedade atual estaria em sintonia com
um possível terceiro grupo de dispositivo que ainda me faltava caracterizar, mas que eu
estava entendendo tão somente como contemporâneo. Daí a possibilidade de descompasso
entre escola moderna e sociedade atual, e a emergência da Psicopedagogia como
alternativa para um encaixe da escola às práticas contemporâneas.
No entanto, o desenvolvimento dos estudos me permitiu refinar o entendimento
das gicas sociais, marcando três dispositivos: de soberania, disciplinar e de seguridade.
Considerando que esse último dispositivo complica, em si mesmo, tecnologias dos outros
dois, pude re-significar o conceito de escola moderna, situando-a então tanto no segundo
quanto no terceiro grupo de dispositivos. E este terceiro grupo também passou a dispor as
condições de possibilidade para a própria Psicopedagogia. Talvez esse tenha sido o motivo
pelo qual eu não consegui definir, na Proposta de Tese, a natureza do próprio
descompasso
11
. Penso que isso se deu exatamente porque me faltava entender, para além
das rupturas (que caracterizariam o descompasso), as continuidades. Ou seja, a seqüência
dos estudos e o refinamento das ferramentas analíticas me possibilitaram perceber que a
escola moderna não pode ser entendida no singular: há pelo menos duas escolas modernas:
uma posicionada na lógica disciplinar, outra posicionada na lógica da seguridade. Ou
então, melhor ainda: considerando que a incorporação de novos elementos não faz
desaparecer os anteriores, mas os desloca e re-significa seu papel, pode-se dizer que a
própria escola também foi governamentalizada. E a governamentalização da escola foi
dispondo as condições de possibilidade para a emergência da Psicopedagogia: eis a
continuidade essencial entre escola moderna e Psicopedagogia. É isso que pretendo
mostrar nas seções e Capítulos que seguem.
Modernidade vista com lentes da Pedagogia
Pode-se pensar na possibilidade de fazer a análise dessas três formas de
racionalidade, de que falei na seção precedente, usando-se lentes da Pedagogia, ou seja,
11
Essa foi uma consideração do professor Mariano Narodowski, que compôs a banca examinadora de minha
Proposta de Tese, defendida em 4 de dezembro de 2006. Em seu parecer, Narodowski afirmou: “lo que me
parece que falta definir com más agudeza es, justamente, la naturaleza del ‘descompasso’”.
45
noções conceitos, problemas, teorias e práticas pedagógicas. Nesse sentido, destaco dois
estudos o de Noguera-Ramírez (2008) e o de Varela (2000) por considerá-los
instigantes e profícuos para a ampliação das discussões no campo da Educação, e mais
especialmente aos propósitos desta Tese.
Ao propor o estudo das tradições pedagógicas modernas em oposição ao
entendimento de Pedagogia moderna, entendida no singular –, Noguera-Ramírez (2008,
p.9) defende a hipótese de que a Modernidade “tem uma profunda marca pedagógica” e
que pode ser analisada por meio desta marca. Nesse sentido, o autor sugere a possibilidade
de três movimentos.
O primeiro movimento “virada instrucional” teria acontecido na passagem da
Idade Média para a primeira Modernidade. Caracteriza-se pelo deslocamento da
preocupação com a aprendizagem e com o estudo para a preocupação com o ensino, com a
instrução. Na base desse movimento estariam “as relações entre a formulação da utopia
pampédica, a constituição da Didática e a aparição do que Foucault chamou de dispositivo
disciplinar” (Noguera-Ramírez, 2008, p.11). O Homo docilis (o homem disciplinável ou
ensinável) é, segundo o autor, a forma de subjetividade correspondente a esse
deslocamento.
O segundo movimento “virada pedagógica” teria acontecido na passagem da
primeira para a segunda Modernidade. Caracteriza-se pelo deslocamento da preocupação
com a instrução, com o ensino, para a preocupação com a formação, com a educação
12
. Na
base desse movimento estariam “as relações entre o desbloqueio da arte de governar [...], o
processo de governamentalização do Estado e a emergência de práticas e de um discurso
chamado, ‘com todas as letras’, pela primeira vez, de ‘pedagogia’”(Noguera-Ramírez,
2008, p.11).
O terceiro movimento “virada psicopedagógica” estaria acontecendo na
passagem da segunda para a terceira Modernidade. Caracteriza-se pelo deslocamento da
preocupação com a formação, com a educação, para a preocupação com a aprendizagem.
Na base desse movimento estariam as relações entre a governamentalidade liberal e “a
12
Instrução entendida “como aprendizado de conteúdos, habilidades, saberes, conhecimentos” e educação
ou formação entendida “como produto da ação individual para atingir a virtude, a moralidade, no marco das
novas idéias de cidadania” (Noguera-Ramírez, 2008, p.11-12).
46
constituição de uma nova forma de subjetividade, o Homo discentis (o homem que
aprende)” (id.).
Apresentando a possibilidade destes três movimentos, e utilizando-se de
ferramentas foucaultianas para sua problematização, o autor sugere que uma clara
diferença entre a didática e as tradições pedagógicas modernas, que passaram a se instituir
no segundo movimento – o da “virada pedagógica”:
A didática fez parte do que Foucault chamou de “sociedade
disciplinar”; nas suas bases, encontram-se fundamentalmente
técnicas disciplinares. Pelo contrário, as “tradições pedagógicas”
surgiram como parte daquele processo que Foucault chamou de
“governamentalização do Estado” e, nas suas bases, encontrar-se-
ia o problema da regulação do indivíduo e da população. A partir
das elaborações de Rousseau e de Kant, foi possível o
desenvolvimento de três correntes, tradições ou culturas
pedagógicas diferentes, com pretensões de cientificidade, as quais
construíram seus próprios conceitos e problemas segundo
tradições particulares: assim, poderíamos falar de uma tradição
francófona, de uma tradição germânica e de uma tradição
anglófona da pedagogia, desenvolvidas desde as idéias de
Rousseau e Kant sobre a base do pensamento utilitarista anglo-
saxônico. (Noguera-Ramírez, 2008, p.12)
Ainda no sentido de apontar as diferenças entre a didática e as tradições
pedagógicas modernas, Noguera-Ramírez (2008, p.15-16) salienta as relações entre a
lógica disciplinar e o sujeito da didática inventada por Comenius:
esse sujeito [da didática comeniana] capaz de dirigir-se a si
mesmo, capaz de converter-se em senhor de si mesmo, não é o
sujeito auto-governável, regulado, que descreveram os pedagogos
ativos dos primórdios do século XX [...]. Trata-se, como já se tem
dito, de um sujeito disciplinado, isto é, dócil e obediente, que se
deixa (e se deve) guiar, conduzir, ensinar. [...] O sujeito da
didática era, assim, um sujeito um tanto passivo; ainda que a
criança levasse “o germe” do homem, precisava ser guiada do
exterior para que pudesse desenvolver aquilo que tinha oculto
dentro de si.
Nesse sentido, pode-se dizer que assim como o sujeito da didática está para as
sociedades disciplinares, o sujeito da Pedagogia está para as sociedades de gestão
governamental. Com relação às condições para a aparição das tradições pedagógicas
modernas, o autor (2008, p.20) refere-se a dois acontecimentos:
47
um deles tem a ver com as elaborações de Rousseau (sobre a
natureza infantil e a educação natural) e de Kant (sobre a
dimensão moral da educação); o outro, com aquilo que Foucault
chamou de desbloqueio da arte de governar, fato ligado ao
surgimento do problema da população (Foucault, 2006). [...]
Entretanto, a didática pareceu estar ligada à constituição de um
indivíduo dócil e obediente através da maquinaria escolar (mestre,
métodos, saberes). As tradições pedagógicas modernas
necessitaram de outro tipo de sujeito, um sujeito regulado (auto-
regulado), ou seja, não um sujeito controlado de fora, pelo mestre,
mas um sujeito movimentado por seu próprio interesse ou desejo.
Enquanto a disciplina prescrevia, vigiava e punia, a nova arte de
governar (a governamentalidade, como diz Foucault) deixava
fazer (laissez-faire).
A maior relevância do estudo de Noguera-Ramírez (2008) está, sem dúvida, na
possibilidade de se perceber e considerar a centralidade da Educação na constituição das
lógicas modernas de ordenação social.
Um outro estudo de que podemos nos utilizar para entender a Modernidade com
lentes da Pedagogia é o de Varela (2000). Penso ser extremamente interessante e útil ao
campo da Educação, e de forma particular a esta Tese, o modo como a autora discute,
organiza e apresenta o cruzamento entre espaço, tempo, poder, saberes e sujeitos no
interior das instituições escolares, destacando três modelos pedagógicos, sob a forma de
tendências educativas, produzidas em períodos históricos distintos. Vejamos por quê.
Em seu estudo, Varela (2000) analisa três formas de pedagogia que historicamente
constituíram os processos de socialização escolar. São elas: as pedagogias disciplinares,
cujo cenário foi composto por humanistas, filósofos, reformadores e moralistas do século
XVI e XVII; as pedagogias corretivas, protagonizadas por Binet, Simon e pelos
representantes do Movimento da Escola Nova, como Montessori e Decroly; e as
pedagogias psicológicas, destacando-se em especial os nomes de Freud e Piaget.
Para essa autora, as pedagogias disciplinares são configuradas na segunda metade
do século XVI, a partir da preocupação dos reformadores e humanistas pela civilização da
infância. Desde as definições de infância assinaladas por católicos e protestantes até as
modernas concepções desta fase como sendo especial e inocente, dotada de características
próprias, foram previstos programas de ensino que alteraram o uso dos espaços e dos
tempos nas instituições educativas formais, possibilitando a interiorização dessas
categorias por parte dos colegiais, e tendo como efeitos a produção social do indivíduo e o
48
disciplinamento dos saberes. As novas formas de perceber o espaço (a partir da
redistribuição e localização precisa dos indivíduos) e de organizar o tempo (organizando
as atividades a partir de um esquema de séries ltiplas, progressivas e de complexidade
crescente) “faz com que o espaço escolar funcione como uma máquina de aprender [eu
diria, de ensinar] e ao mesmo tempo possibilita a intervenção do mestre em qualquer
momento para premiar ou castigar e, sobretudo, para corrigir e normalizar” (Varela, 2000,
p.84-85).
Referindo-se ao impacto que a obrigatoriedade escolar teve nos modos de
educação das classes trabalhadoras, a autora apresenta uma das condições centrais para a
constituição de um novo modelo pedagógico (o modelo corretivo), cuja aparição se deu na
seqüência das pedagogias disciplinares, embora não as tenha excluído.
Numerosos filantropos, economistas e reformadores sociais, ao
aceitar a teoria segundo a qual a ontogênese recapitula a
filogênese (Lei de Haeckel), vão estabelecer toda uma rie de
analogias entre a criança, o selvagem e o degenerado. Deste
modo, se fará corresponder o estágio de selvageria com o da
infância. As crianças, e especialmente as crianças das classes
populares, se identificam com os selvagens. Civilizá-los e
domesticá-los constitui o objetivo dessa escola pública obrigatória
na qual seguirão reinando as pedagogias disciplinares. (Varela,
2000, p.88)
A constituição da chamada infância anormal possibilitada pelos casos de
inadaptação às práticas do modelo das pedagogias disciplinares –, os sistemas de
classificação de Binet e Simon, e as novas técnicas e métodos de ensino criados pelos
pioneiros do Movimento da Escola Nova fizeram emergir o que Varela (2000) chama de
pedagogias corretivas, direcionadas em especial para as crianças que apresentavam
problemas de conduta.
Neste outro modelo, que surgiu à sombra das crianças ditas anormais, faz-se a
crítica ao uso do tempo, do espaço e dos saberes nas formas tradicionais de ensino,
defendendo a idéia de que a criança, com seus interesses e tendências naturais, deve estar
no centro da ação educativa. É partindo deste princípio geral que Montessori e Decroly,
por exemplo, apesar de divergirem em alguns aspectos, concordam em valer-se dos
preceitos psicológicos (primeiro os da Psicologia Experimental e em seguida os da
Psicologia Genética) para fundamentar cientificamente seus sistemas teóricos.
49
Trabalhando inicialmente com as recém constituídas crianças anormais, e opondo-
se ao controle exercido pelo mestre no ensino tradicional (por meio da programação das
atividades e dos exames), estes novos pedagogos, procedentes da área da saúde, propõem
a autodisciplina, supondo “a possibilidade de uma socialização universal, individualizada,
válida para qualquer sujeito, desligada das classes sociais e do contexto histórico e
legitimada por códigos chamados experimentais” (Varela, 2000, p.94).
As pedagogias corretivas estiveram intensamente envolvidas num deslocamento de
exercício do poder: do poder disciplinar (sobre o qual se organizaram as instituições
escolares que colocavam em prática as pedagogias disciplinares) para o psicopoder, que,
no que se refere às práticas educativas, cria uma relação diferenciada entre crianças e
adultos, posicionando de modos diferentes o aluno e o mestre. As novas concepções de
uso do tempo, do espaço e dos saberes defendidas pelos representantes da Escola Nova
abrem a possibilidade para a diversificação do campo da Psicologia escolar, convertendo-o
no fundamento de toda ação pedagógica que aspirasse a ser
científica. Uma vez mais, a gestão da anormalidade converteu-se
em ponta de lança do governo das populações mais amplas. Nesse
sentido, a infância anormal, que parecia uma população residual e
secundária, serviu, na condição de objeto de tratamento e de
técnicas, de laboratório de experimentação de novos saberes e
poderes com desejo de expansão. (Varela, 2000, p.97)
Desse modo, são as próprias pedagogias corretivas que fazem emergir um terceiro
modelo pedagógico implicado no governamento da infância: as pedagogias psicológicas,
que têm Piaget e Freud como principais representantes. Apesar de piagetianos e
psicanalistas apresentarem sistemas teóricos diferentes, ambos concordam tanto entre si
quanto com as pedagogias corretivas no que se refere a situar a criança no centro do
processo educativo. O que difere as pedagogias psicológicas das corretivas é a forma de
controle exercido sobre os alunos, que, num enfoque psicológico, se esforça cada vez mais
em ser menos visível. Se as pedagogias corretivas priorizavam a autodisciplina em
contraposição à disciplina rígida das pedagogias disciplinares, agora as pedagogias
psicológicas preocupam-se, sobretudo, em fortalecer ainda mais o controle interior. Para
tanto, colocam o enfoque das práticas escolares não tanto na organização do meio (como
queriam os representantes da Escola Nova), mas sim na programação e vigilância do
chamado desenvolvimento correto, com base nos estágios de desenvolvimento infantil.
50
Poder-se-ia dizer sem dúvida que, como por ironia, esta criança
foi vigiada e controlada muito mais do que nas “velhas
pedagogias”, porque não apenas se requeriam dela as respostas
corretas, mas também agora era necessário que mesmo seu
verdadeiro mecanismo do desenvolvimento fosse controlado. Os
alunos têm assim cada vez um menor controle sobre sua própria
aprendizagem, que apenas os mestres, e sobretudo os
especialistas, podem conhecer os progressos ou retrocessos que
realizam. [...] Sofrem, portanto, um processo de expropriação
cada vez mais intenso que constitui a outra face da intensificação
de um estatuto de minoria que, além dos cânticos à criatividade, à
liberação e à autonomia, supõe dependência e subordinação cada
vez maiores. (Varela, 2000, p.99)
As críticas, vindas em especial da Psicanálise, ao controle exercido pelas práticas
pedagógicas sobre a criança, com base nas leis de desenvolvimento, fazem emergir certos
discursos sobre a idéia de cada aluno ter um ritmo próprio, que deve ser considerado pelo
professor nas situações de aula que ele programa e coloca em funcionamento. A idéia de
ritmo individual prioriza uma Pedagogia centrada na atividade do aluno para que ele se
expresse “livremente” – em detrimento das normas de desenvolvimento infantil. Para além
do sujeito epistêmico de Piaget, dá-se visibilidade agora ao sujeito psíquico, que possui
desejos, pulsões, sintomas e a quem se deve oferecer uma educação livre de coações. E,
dessa forma, há uma intensificação da ação pedagógica psicologizada, na medida em que,
reforçando-se a imagem de cada aluno, supostamente permite-se que ele exerça um
trabalho sobre si mesmo: processo que Lipovetsky (1989) chamou de personalização.
Recapitulando: na própria constituição dos espaços e tempos modernos, estão as
pedagogias disciplinares; para os que não se adaptaram a elas, surgem as pedagogias
corretivas, configurando o que se passou a chamar de infância anormal. Aos que não se
adaptam ao controle excessivo do meio, característico da tendência corretiva, sugere-se
um modelo pedagógico centrado na liberdade de expressão do aluno. A questão é que,
ainda assim, exatamente por estarem envolvidos em relações de poder que implicam
necessariamente relações de resistência –, os modelos educativos apresentam brechas,
fendas, fissuras, que fazem aparecer os inadaptados como se fossem falhas do sistema
pedagógico.
51
Articulando e construindo idéias
Faço comentários extensos acerca dos estudos de Foucault (2006), Noguera-
Ramírez (2008) e Varela (2000) porque acredito que a emergência da Psicopedagogia está
no cerne das questões discutidas pelos autores. No que se refere à articulação entre eles,
está claro que uma relação entre os estudos de Noguera-Ramírez e Varela com os
estudos de Foucault, na medida em que os dois primeiros autores utilizam as ferramentas
foucaultianas para realizarem suas problematizações no campo da Educação. E tratando-se
da possível articulação entre os estudos de Noguera-Ramírez e Varela, embora com
diferenças de ênfases, e apesar das particularidades próprias de cada uma das duas
análises, pode-se destacar a possibilidade de três relações: a) relação entre as análises
feitas por Noguera-Ramírez sobre a didática comeniana, com ênfase na instrução e no
ensino, constituindo o homo docilis da primeira Modernidade, e as análises feitas por
Varela sobre as pedagogias disciplinares; b) relação entre o que Noguera-Ramírez chama
de virada pedagógica, com ênfase na formação e educação, constituindo o homo
educabilis da segunda Modernidade, e as pedagogias corretivas; c) relação entre o que
Noguera-Ramírez chama de virada psicopedagógica, com ênfase na aprendizagem,
constituindo o homo discentis da atualidade, e as pedagogias psicológicas estudadas por
Varela.
Nesse sentido, os pontos de conexão desses três autores com a investigação desta
Tese podem ser assim apresentados: é na passagem das sociedades disciplinares para as
sociedades de gestão governamental (Foucault, 2006) que se podem situar certas
continuidades e certos deslocamentos que acabaram permitindo o surgimento e a ascensão
da Psicopedagogia. O terreno para a consolidação psicopedagógica foi sendo preparado
em meio ao exercício das pedagogias disciplinares, corretivas e psicológicas (Varela,
2000), em especial no deslocamento que houve entre a segunda e a terceira tendência
educativa. O funcionamento e a intensificação das práticas escolares psicologizantes, e
especialmente a visibilidade que recai sobre todos aqueles cujos comportamentos escapam
a esse modelo, foram dispondo as condições para a instituição da atual configuração
psicopedagógica, não exatamente como uma outra tendência educativa, mas como uma
prática complementar que, tal como um circuito, intenta produzir-identificar-eliminar os
possíveis desvios. A “virada psicopedagógica” (Noguera-Ramírez, 2008) consolida a
legitimação da Psicopedagogia como instituição cultural, cujas condições de possibilidade
já vinham sendo dispostas desde a “virada pedagógica”, com o estabelecimento das
52
tradições pedagógicas modernas, situando o governamento e a (auto) regulação dos
sujeitos como problemas centrais.
Com base nas idéias desses três autores (e nos pontos de contato dessas idéias),
selecionei quatro focos de análise, entendidos como portas de entrada para a análise da
emergência da Psicopedagogia, quais sejam: 1) as relações entre invenção da infância,
estudos da criança e o elo entre Psicologia e Pedagogia; 2) a produção dos escolares
anormais; 3) dos anormais aos normais: a criança como centro da ação educativa; e 4) a
consolidação da Psicologia do Desenvolvimento como uma forma de regulação
governamental. Eis meu propósito no próximo Capítulo.
53
CAPÍTULO III
INFÂNCIA E O PAR PSICOLOGIA-PEDAGOGIA
Invenção da infância, estudos da criança e elo entre Psicologia e
Pedagogia
Para uma discussão acerca dos estudos da criança que emergiram e se
intensificaram em meio às transformações sociais, políticas e econômicas que estiveram
envolvidas na constituição dos tempos e espaços modernos reporto-me, inicialmente, à
análise de Varela e Alvarez-Uría (1992) sobre a maquinaria escolar. Os autores atentam
para o fato de que, mesmo antes de a infância ser delimitada como uma etapa
cronologicamente precisa, foram atribuídas a esta parte da vida algumas características,
que se constituíram em condições de possibilidade para o moderno sentimento de infância.
Tais características foram definidas por católicos (Erasmo, Vives, Rabelais) e protestantes
(Lutero, Calvino) que, apesar de divergirem quanto aos estágios da infância e quanto ao
momento certo de ensino das letras aos pequenos, concordavam com a necessidade de que
a aprendizagem da fé e dos bons costumes deveria iniciar desde muito cedo.
Em geral, as características que vão conferir a esta etapa especial
da vida são: maleabilidade, de onde se deriva sua capacidade para
ser modelada; fragilidade (mais tarde imaturidade) que justifica
sua tutela; rudeza, sendo então necessária sua “civilização”;
fraqueza de juízo, que exige desenvolver a razão, qualidade da
alma que distingue ao homem dos animais [...]. (Varela e Alvarez-
Uría, 1992, p.71)
54
Apoiando-se nestas características e ao mesmo tempo fortalecendo-as, intensifica-
se uma ação educativa institucional em colégios, albergues, casas de doutrina: espaços
onde se iniciam as graduações por idade. Conectado a isso, tem-se a ação educativa da
recém estreada família cristã, para quem se dirigiram tratados que assinalam os papéis do
homem e da mulher em relação aos seus filhos, de onde advêm as idéias de amor natural
entre pais e filhos e de verdadeira mãe, agora reclusa ao lar. Uma terceira forma de ação
educativa juntar-se-á às ações institucionais e familiares: trata-se de práticas de
recristianização, de vigilância multiforme dos jovens no que se refere à sua direção
espiritual, à linguagem que devem usar, ao que podem ou não ler, fazer, vestir, etc.
Deste modo, chega-se ao século XVIII, com uma infância
inocente [...] E se Rousseau pode redefinir a infância como idade
‘psicológica’, com etapas às quais correspondem necessidades e
interesses, e em conseqüências suscetíveis de uma educação
diferenciada, deve-se, sem dúvida, a todas essas orientações e
direções sofridas anteriormente pelos jovens. (Varela e Alvarez-
Uría, 1992, p.74)
Portanto, ainda que as condições para o estudo da criança remontem a épocas
anteriores, pode-se dizer que desde alguns pensadores do final do século XVIII, como
Rousseau, Kant e outros, tem-se constituído um extenso acervo de estudos sobre o
comportamento infantil. Ao destacar a obra Um esboço biográfico de um infante, de
Charles Darwin, como pioneira deste movimento, Walkerdine (1998, p.167) salienta:
Formaram-se Sociedades de Estudo da Criança e a prática de
observar crianças se tornou bastante generalizada. Os corpos das
crianças eram pesados e medidos. Estudavam-se os efeitos da
fadiga, bem como seus interesses; imaginações; idéias religiosas;
atitudes em relação às condições atmosféricas, aos adultos;
desenhos; bonecas; mentiras; idéias e seus estágios de
crescimento. [...] [Esses discursos] eram extraídos da Biologia, da
Topografia e do senso comum da vida cotidiana.
Os estudos realizados, envolvidos com a invenção da infância, acabaram por
definir as idades de cada fase da vida e, na esteira disso, definiram também as próprias
pessoas (de acordo com a fase em que se encontram), o que acarretou uma caracterização
do que se espera enquanto comportamento normal em determinada idade.
É nessa direção que as crianças foram (e continuam a ser) submetidas a
determinadas caracterizações, com a finalidade de garantir a delimitação da infância e,
55
assim sendo, também garantir a delimitação das demais fases da vida, porque diferentes
entre si. Delimitação que, antes da constituição dos chamados tempos e espaços modernos,
praticamente não existia se levarmos em consideração as formas pelas quais os sujeitos de
diferentes idades se relacionavam e organizavam o cotidiano de suas vidas.
Em seu estudo sobre a história social da criança e da família, Ariès (1981) aponta
que, antes do século XVII, o período da infância era muito reduzido e a passagem de
criança (basicamente os recém-nascidos) a adulto jovem era operada de forma imediata,
ou seja, não existiam outras fases pelas quais os seres passavam até atingirem a adultez.
Os cuidados e afetos hoje dispensados às crianças (enquanto algo sublime e naturalmente
aceito, senão por todas, pelo menos pela grande maioria das pessoas) não eram nem
valorizados, muito menos necessários ao equilíbrio das relações familiares e em
sociedade. Com a emergência das sociedades industriais, e a invenção das chamadas
“fases da vida”, uma significativa separação entre crianças e adultos, o que resulta em
novas práticas e sentimentos familiares, culminando no enclausuramento das crianças,
processo que Ariès (1981) chama de escolarização.
Para Narodowski (2001a), é com Rousseau que a infância surge delineada em seus
aspectos mais puros e claros. Em Émile, a criança é nomeada como um não-adulto, ser
carente de razão e de juízo; ser ingênuo e inconsciente; portanto, dependente, que
necessita ser conduzido, amado, protegido pelos completos, os adultos. “Com base
nessa dependência, surge um incontrolável desejo epistemológico: vontade de saber a
respeito das zonas inexpugnáveis do corpo infantil. Como não conhecer o que vai se
proteger?” (Narodowski, 2001a, p.37). Descrevendo a criança como um ser sobre o qual é
preciso exercer uma ação educativa adulta que considere as condições naturais da própria
infância, Rousseau a nomeia de duas formas distintas, mas complementares: a criança é
apresentada ao mesmo tempo como um ser inacabado e como um ser naturalmente capaz
de aprender. A heteronomia e a capacidade de aprendizagem são definidas como
características infantis a partir do critério etário: daí que “a idade passa a constituir o eixo
observável e quantificável sobre o qual se posiciona boa parte da produção a respeito do
normal e do patológico e do correto e incorreto [...]” (Narodowski, 2001a, p.38).
Os tipos de educação que passaram a ser desenvolvidos com base no discurso
rousseauniano estiveram envolvidos com a produção de subjetividades. No que se refere a
isso, pode-se argumentar que não nada de novo na idéia de que a escola opera com
56
modos de subjetivação, afinal, desde Comenius (com seu ideal pansófico de ensinar tudo a
todos), o conhecimento pode ser analisado como um meio e não como um fim, que foi
organizado para, entre outras coisas, tirar o indivíduo da barbárie. Está certo: desde as
pedagogias tradicionais pedagogias disciplinares, diria Julia Varela (2000) o
conhecimento tem funcionado como um meio. Acontece que, para Comenius (2002), na
esteira do pensamento judaico-cristão, os indivíduos nascem do pecado original e,
portanto, não possuem uma essência boa ou má. Nesse sentido, a educação proposta na
Didática Magna deve aproximar o indivíduo do bem, tal como o batismo também o faz,
livrando-o do pecado original. E, para tanto, a educação comeniana é basicamente
centrada no ensino, na instrução (Noguera-Ramírez, 2008) e não está preocupada com a
forma como as crianças aprendem; está preocupada com a forma como os professores
devem ensinar, para aproximá-las do bem.
As frases a seguir, que cito longamente publicadas na Didática Magna, em 1631
são ilustrativas do peso conferido por Comenius (2002, p.71-72) à instrução, ao ensino,
para formar até mesmo a essência do homem:
Que ninguém cuide ser realmente homem se não tiver aprendido a
comportar-se como homem, ou seja, se não tiver sido formado nas
coisas que fazem o homem. Isso torna-se evidente pelos exemplos
de todas as criaturas que não podem ser usadas pelo homem,
ainda que a ele tenham sido destinadas, se para tal não forem
capacitadas pelas nossas próprias mãos. Por exemplo, as pedras
foram-nos dadas para servirem à construção de casas, torres,
muros, colunas, etc.; no entanto servirão se forem talhadas,
limpas e esquadradas pelas nossas mãos. [...] Os animais podem
parecer auto-suficientes porque dotados de vida e de movimento,
mas para que possam servir ao uso para o qual foram concedidos,
será preciso primeiro adestrá-los. [...] O homem, por ser dotado de
corpo, é feito para trabalhar, e no entanto vemos que não tem de
nascença nada mais que simples aptidão: será preciso ensiná-lo
aos poucos a sentar-se, a ficar ereto, a andar, a mexer as mãos
para realizar uma operação. Como, então, nossa mente poderia ter
a prerrogativa de ser perfeita, em si e por si, sem preparação? É
lei para todas as criaturas ter início do nada e desenvolver-se
gradualmente, seja quanto à essência, seja quanto às ações.
E Comenius (2002, p.73) continua:
Sabe-se também que, antes do pecado, havia no Paraíso uma
escola preparada para o homem, na qual, pouco a pouco, ele
poderia progredir. Embora desde o princípio não faltassem a Adão
57
e Eva movimentos, palavras e raciocínio, fica claro, do diálogo
entre Eva e a serpente, que lhes faltava o conhecimento das coisas
que nasce da experiência; de fato, se Eva fosse mais experiente ao
manter aquele diálogo, não teria acreditado com tanta ingenuidade
que aquela criatura fosse dotada de palavra e teria percebido que
estava sendo enganada. Tudo isso será ainda mais verdadeiro no
estado de corrupção, a fim de que, se algo para ser sabido, que
seja aprendido: pois uma vez que temos a mente nua como uma
tábua rasa, que não sabemos fazer, dizer ou entender coisa
alguma, tudo deverá começar dos fundamentos. Isso é certamente
mais difícil do que teria sido no estado de perfeição, visto que
agora as coisas se tornaram obscuras para nós, as nguas se
confundiram [...] e, aliás, até os vernáculos se tornaram mais
complicados, e nada nasce conosco.
Mais adiante, finalizando o Capítulo VI da Didática Magna, que se intitula O
homem, para ser homem, precisa ser formado, Comenius (2002, p.75-76) conclui:
Quem pode duvidar que a educação seja necessária para que os
estúpidos vençam sua estupidez? Mas na realidade as pessoas
inteligentes têm mais necessidade ainda da educação, porque a
mente aguda, se não estiver empenhada em coisas úteis, ocupar-
se-á com as inúteis, extravagantes, perniciosas [...], sendo causa
de sua própria ruína. [...] A todos os que nasceram homens a
educação é necessária, para que sejam homens e não animais
ferozes, não animais brutos, não paus inúteis.
13
Com essas passagens, além de muitas outras da Didática Magna, pode-se perceber
que a idéia de que há uma essência natural nos indivíduos é posterior a Comenius: tal idéia
entra na história no culo XVIII, especialmente a partir da infância inventada por
Rousseau, para quem a criança é naturalmente boa. Essa “natureza natural” das crianças
tem a ver com a inocência e com o interesse delas em aprender.
Ao pensar num plano mais subjetivo da educação, em contraposição à objetividade
priorizada pelos pensadores que o precederam, Rousseau instaura um novo modo de
entender não apenas a criança mas também a prática educativa designada para ela. Com o
filósofo, foi possível se pensar na idéia de que a criança não aprende porque o professor
ensina, mas porque ela age com as coisas princípio que se deduz da “educação das
coisas”, proposta por Rousseau (2004) em Emílio, publicado originalmente em 1762. Ou
13
Para uma discussão mais específica sobre as relações entre Comenius e a educação, ver Narodowski
(2001b).
58
seja, não se precisa ensinar à criança o que é certo ou errado, é na relação das crianças
com as coisas que ela aprende tal distinção.
Suponhamos que, enquanto estudo com meu aluno o curso do sol
e a maneira de se orientar, de repente ele me interrompe para me
perguntar para que serve tudo aquilo. Que belo discurso irei fazer-
lhe! De quantas coisas aproveitarei a oportunidade para instruí-lo
em resposta à sua pergunta [...] A política, a história natural, a
astronomia, a própria moral e o direito das gentes entrarão em
minha explicação, dando ao meu aluno uma grande idéia de todas
essas ciências e um intenso desejo de aprendê-las. Quando tiver
dito tudo, terei feito uma exibição de verdadeiro pedante, da qual
não terá compreendido uma única idéia. Ele teria como antes
vontade de me perguntar para que serve orientar-se, mas não ousa,
temendo aborrecer-me. Prefere fingir que entendeu o que o
forçaram a escutar. Assim se fazem as belas educações. [...]
Busquemos uma solução mais grosseira; meu aparato científico
não vale nada para ele. (Rousseau, 2004, p.236-237)
A educação é entendida, assim, como um processo natural e espontâneo. “Se, em
vez de colar uma criança aos livros, eu a ocupar numa oficina, suas mãos trabalharão em
prol de seu espírito; tornar-se-á filósofa acreditando ser apenas uma operária” (Rousseau,
2004, p.231). Dirigindo-se ao preceptor, aconselha: “raramente cabe a vós propor o que
ele [aluno] deve aprender; cabe a ele desejá-lo, procurá-lo, encontrá-lo; cabe a vós [...]
fornecer-lhe os meios de satisfazê-lo” (id., p.235). E continua: “não gosto das explicações
em forma de discurso. Os jovens prestam pouca atenção nelas e não as retêm. As coisas!
As coisas! Nunca terei repetido suficientemente que damos poder demais às palavras”
(Rousseau, 2004, p.236)
14
.
Bujes (2002) utilizando-se do referencial foucaultiano, e concordando com a
idéia de que Rousseau inaugura a distinção entre homem natural e homem social – salienta
que as transformações nos modos de ver e de tratar as crianças foram produzidas no
interior de relações de poder típicas dos tempos e espaços modernos: a autora nos mostra
que a alteração dos mecanismos de poder (que deixam de se exercer pela ameaça da morte
e passam a exaltar a vida), associada ao funcionamento do poder disciplinar e do biopoder,
colocam as “condições para que adulto e criança se diferenciem e se distanciem, numa
operação que constitui a justificativa para a intervenção familiar e para a prática da
educação institucionalizada” (Bujes, 2002, p.35). Neste contexto, um intenso
14
Para uma discussão mais específica sobre as relações entre Rousseau e a educação, ver Streck (2004).
59
investimento sobre a vida das crianças, que se tornam alvo de uma série de estudos que
intentam “conhecê-las” em detalhes, observando e descrevendo seus comportamentos com
a finalidade de “descobrir” sua “natureza”.
É por esse viés que, imersa num emaranhado de invenções modernas, a criança
tornou-se, cada vez mais, foco de estudo da ciência. Tomando a infância como objeto de
análise, os saberes científicos passam a dizer” as verdades sobre ela e a estabelecer
determinados tipos de cuidado e de educação que correspondam a esses discursos tidos
como verdadeiros. Mas foi também nas práticas educacionais e nas relações que
começaram a se estabelecer cotidianamente com as crianças que novos saberes e novas
verdades foram sendo produzidas. Tratava-se, sobretudo, de um duplo processo que
consistia, por um lado, em extrair das crianças saberes constituídos por elas em suas
recentes experiências infantis, readaptando estes saberes a novas normas; e, por outro
lado, em observar, classificar, comparar as crianças, registrando e analisando seus
comportamentos. Portanto, um processo que permite, ao mesmo tempo, um saber da
criança e um saber sobre a criança. É assim, por exemplo, que “a Pedagogia se formou a
partir das próprias adaptações da criança às tarefas escolares, adaptações observadas e
extraídas do seu comportamento para tornarem-se, em seguida, leis de funcionamento das
instituições e forma de poder exercido sobre a criança” (Foucault, 1996, p.122).
Os sujeitos infantis que eram submetidos ao olhar científico passam a ter suas
características, seus comportamentos e sua conduta esmiuçados, o que torna possível sua
maior diferenciação. O caráter deficitário que é atribuído às crianças relativamente aos
adultos faz com que elas sejam ainda mais envolvidas em minuciosos estudos, que
permitem o estabelecimento de hierarquias, estágios, etapas pelas quais as crianças têm
necessariamente que passar para que se “encaixem” em formas desejáveis de
desenvolvimento infantil. Como resultado, dá-se a produção de vários discursos, de
diferentes campos do conhecimento, que contribuem para a formação da idéia de um
sujeito infantil naturalizado. Dentre tais discursos, destacam-se em especial os advindos da
Psicologia.
Com relação aos discursos psicológicos, é preciso considerar que a área da
Psicologia não constitui uma unidade. Exatamente por ter se tornado um campo
extensamente disperso e valorizado, a Psicologia vem progressivamente estendendo seus
limites e propiciando uma ampliação dos estudos e das práticas (algumas vezes bastante
60
contraditórios) realizados sob a égide da psique. Elevada à categoria de disciplina
independente, a Psicologia foi, aos poucos, se desligando das manifestações filosóficas e,
sob as influências do evolucionismo de Darwin e do Positivismo de Comte, passou a se
aproximar da Fisiologia, da Neurologia e da Anatomia. Com a Lei de Fechner
15
para a
qual a ligação existente entre mente e corpo (entre físico e psíquico) é uma relação
matemática, quantitativa e que, portanto, pode ser mensurada e com o primeiro
laboratório para pesquisas psicológicas fundado por Wundt
16
, a área da Psicologia passa a
ser estruturada como uma ciência autônoma. Dessa forma, começa-se a delimitar seu
campo de atuação, a determinar seu objeto e seus objetivos, a enunciar os seus princípios e
os seus problemas, a estabelecer seus métodos de estudo e, a partir destes, a formular suas
próprias teorias
17
.
Referindo-se aos âmbitos que prepararam o terreno para a consolidação
psicopedagógica, Calvo (1998, p.317) destaca a repercussão que tiveram as idéias de
Herbart acerca da cientificidade da Psicologia sobre os estudos de Fechner e Wundt,
culminando, em meio aos avanços da física e da química e aos descobrimentos em
neurofisiologia, na “publicação de um texto de Wundt, considerado como a primeira
contribuição importante no campo da Psicologia Experimental, intitulado, precisamente,
Elementos de Psicologia Fisiológica”. As respostas a Wundt aproximaram-no, e também a
Titchener, do estudo sobre a “origem e a associação das idéias desde o campo da
experimentação” (id., p.318). Como parte importante das investigações que se seguiram
disso, Calvo (1998) destaca ainda a distinção de Wolf entre Psicologia empírica e
Psicologia racional, estabelecendo o caminho para a idéia de medição em Psicologia; os
estudos de Brentano sobre os atos e os processos psíquicos, definindo a Psicologia como
ciência da alma; e as reflexões de representantes da Psicologia filosófica, como Bergson,
contribuindo para a consolidação da Psicologia científica e a conseqüente ampliação de
suas investigações.
15
Lei apresentada e discutida na obra Elementos de Psicofísica, publicada em 1860, na Alemanha, por
Gustav Theodor Fechner (Freire, 2002).
16
O laboratório para pesquisas psicológicas foi fundado em 1879, em Leipizig, Alemanha, por Wilhelm
Wundt, autor de Elementos de Psicologia Fisiológica, publicado em 1864 alguns anos antes da criação do
laboratório, cujas pesquisas vieram complementar e testar o que já havia sido dito na referida obra (Freire,
2002).
17
O Funcionalismo de James, o Estruturalismo de Titchner e o Associacionismo de Thorndike podem ser
considerados como as primeiras abordagens psicológicas, seguidas principalmente do Behaviorismo, da
Gestalt e da Psicanálise (Bock, 1997; Carvalho, 1996).
61
O investimento nos estudos psicológicos possibilitou a ramificação da Psicologia
em escolas, cada uma reunindo um grupo de tendências específicas e formando, assim,
sistemas que se pretendiam fechados. No entanto, a diversificação dos conteúdos de
pesquisa das escolas psicológicas tornou impossível a manutenção do conhecimento de
cada uma dessas escolas em grandes sistemas fechados, o que acarretou a desagregação da
área psi, caracterizada, a partir daí, por sua abertura e tolerância aos diversos caminhos de
pesquisa, levando às especializações e à formação de micro-sistemas.
E com relação ao elo entre Psicologia e Pedagogia dispondo as primeiras
possibilidades para a construção do solo psicopedagógico –, pode-se dizer que ele foi
constituído na própria emergência dos chamados estudos da criança, que posicionaram a
infância no centro das discussões da ciência, da moral, da religião, da família e que
estiveram enredados numa teia por meio da qual se colocaram as condições para o
surgimento da educação escolarizada e do sujeito pedagógico (Bujes, 2002). Nesse
sentido, a própria Pedagogia nasceu no interior da noção de uma seqüência normalizadora
de desenvolvimento infantil característica dos estudos psicológicos –, ajudando a
produzir a criança como objeto de seu olhar.
Produção dos escolares anormais
Ao analisar as relações existentes entre as teorias psicológicas e a sociedade
francesa do final do século XIX, Muel (1991) afirma que a invenção da infância anormal
esteve conectada a um triplo processo
18
.
O primeiro refere-se à institucionalização da educação de crianças consideradas
anormais, processo relacionado aos discursos e às práticas institucionais da época que,
preocupados com a ordem social e com o controle da desordem, definem as imagens de
cidadão ideal e expõem os imperativos do sistema de produção econômica. É neste cenário
que aparecem as primeiras referências à inclusão dos anormais em práticas educativas
institucionalizadas, no sentido de assegurar a própria sociedade dos males que,
futuramente, esses anormais, se não ocupados, poderiam causar. A finalidade desta
educação é assim descrita, num documento datado de 1903: “dar a estes enfermos a
18
O interesse de Muel (1991), como ela bem expressa em seu estudo, não é o de fazer uma crítica interna
das primeiras teorias psicológicas à luz dos recentes descobrimentos da Psicologia da criança, mas o de
discutir as relações existentes entre estas teorias e a sociedade e a época em que elas surgiram.
62
capacidade de fazer um trabalho cujo produto compense seus gastos” ou “máximo de
educação prática e mínimo de instrução escolar” (Séguin e Sollier, respectivamente, apud
Muel, 1991, p.125).
O segundo processo refere-se à “criação de um corpo de especialistas inventores ao
mesmo tempo de termos classificatórios e de um corpo científico, e que exercem suas
funções nas margens da escola primária” (Muel, 1991, p.129). São estes especialistas que
estão envolvidos com uma nosografia psiquiátrica responsável por classificar as crianças
inadaptadas em instáveis, atrasadas e débeis.
O terceiro processo refere-se à instauração de uma nova divisão do trabalho,
resultando também no aparecimento de juristas profissionais, que se encarregaram, entre
outras tarefas, de legislar em favor da instrução obrigatória para crianças anormais. Uma
justificativa para isso é apontada numa lei escolar de 28 de março de 1882 (apud Muel,
1991, p.134):
Até agora de 30 a 40.000 crianças foram deixadas fora das escolas
a cargo da assistência pública e da beneficência privada. Estes
esquecidos têm uma desgraça comum: não puderam ser instruídos
junto com as outras crianças, necessitam de uma pedagogia
particular. Tem-se o costume de designá-los com um termo
coletivo: as crianças anormais.
Com a atuação dos juristas, a institucionalização da educação de crianças
anormais, que já estava acontecendo, assumiu, então, um caráter obrigatório – embora isso
tenha causado muita discussão entre médicos, psicólogos e educadores. Entre os
especialistas, alguns defendiam a idéia da escola pública para todos, independente das
necessidades individuais, enquanto outros se opunham a isso, afirmando que:
Enquanto a instrução não era obrigatória, estes refratários ou
incapazes passavam desapercebidos: expulsavam-se os
indisciplinados, relegavam-se os atrasados, ignoravam-se os
vagabundos. Mas na atualidade não se pode fazer o mesmo:
todo refratário, por bem ou por mal, tem de ser conduzido à
escola, e nela se encontra mal, pois a escola primária não foi feita
para os escolares de sua espécie. (Boncour apud Muel, 1991,
p.134)
Conectada a esse triplo processo, aparece uma preocupação com as famílias das
crianças consideradas anormais, no que se refere à falta de vigilância dos pais; à
63
brutalidade exercida por eles sobre seus filhos; à influência moralmente negativa dos pais;
a problemas dos pais como alcoolismo, sífilis e tuberculose, responsabilizados pela
degeneração das crianças; à dissolução dos laços matrimoniais. Os discursos sobre o tema
da “família anormal” condenam todo um estilo de vida e suas pressões fazem com que
seja criada uma lei de supressão da autoridade paterna, assegurando que os “pais
desnaturados” não atrapalhem o trabalho de médicos e educadores em suas tentativas de
transformação da criança anormal.
Outro tema importante na constituição da infância anormal refere-se à criação da
idéia de transitoriedade das anomalias, produzindo e legitimando estratégias de
recuperação dos anormais. A proliferação dos discursos sobre as taxonomias infantis,
tornando muitas vezes contraditórias as discussões entre os especialistas, dá origem a todo
um movimento de delimitação de fronteiras conceituais, resultando na separação entre os
anormais de hospício e os anormais de escola, mais ou menos com base no que segue: “a
utilização social de um sujeito qualquer está na razão inversa ao seu grau de atraso, e se
pode determinar a partir dela a linha fronteiriça entre os anormais de hospício e os
anormais de escola” (Vaney apud Muel, 1991, p.133). Dessa forma, começam a ser
definidos, também, os campos de atuação de cada especialista. Ao educador, foi atribuída
a tarefa de distinção entre o anormal que não pode permanecer na escola e o escolar
indisciplinado, tornando possível o aparecimento da noção de anomalia transitória, por
meio da qual se entende que não havia tantas características distintas entre os escolares
mentalmente anormais e os escolares normais, mas que aqueles estavam tão somente
situados alguns escalões antes do que estes. Instaura-se, assim, a idéia de continuum,
fazendo-se referência pela primeira vez à noção de subnormalidade: “o anormal de escola
não deve estar de todo modo demasiado louco, deve sem dúvida estar suficientemente
louco para ser localizado através de uma ação médica encaminhada a detectar a
enfermidade oculta: alguns falam inclusive de subnormais” (Muel, 1991, p.133).
Percebe-se, pois, que essa versão da dicotomia normal/anormal não foi construída
e operada para funcionar num campo de pura oposição, mas de gradação do anormal para
o normal. A oposição é, sim, instituída, mas não para simplesmente opor um elemento a
outro, senão para estabelecer um caminho pelo qual o elemento que se situa próximo ao
pólo negativo possa ir, gradualmente, aproximando-se do pólo considerado positivo
sempre, é claro, em nome de melhor gerir e governar a vida das populações.
64
Ao estudar as possibilidades de uma história da Psicopedagogia, intimamente
conectada ao tema da infância anormal, Calvo (1998, p.319) destaca também três
processos por meio dos quais a consolidação do entorno psicopedagógico foi se
produzindo e se estruturando. “O primeiro é constituído por contribuições dos médicos
para a prática educativa, no marco da higiene escolar, da psiquiatria infantil e da pediatria.
O segundo se desenvolve a partir das contribuições dos pedagogos que adotam os
postulados que vão produzindo a nova educação, a investigação psicológica e a
psicopatologia infantil”. Com relação a esses dois processos, o autor salienta duas vias de
acesso do médico à instituição educativa. Uma delas é a própria medicina escolar, que
estreitou os laços entre pedagogos e médicos, por meio da contemplação da saúde como
um bem pessoal e social. Ao mesmo tempo em que a medicina escolar foi se tornando
uma área cada vez mais importante no campo profissional dos médicos, a escola passou a
exercer a inspeção sanitária como uma de suas principais funções. Referindo-se ao início
do século XX, Calvo (id.) afirma:
o composto médico-pedagógico se usa profusamente neste
período. Ambos coletivos lutaram por uma educação integral para
as pessoas; e a higiene, a fisiologia, a antropometria ou a
educação física formaram parte durante anos de um discurso
comum (não alheio à polêmica), constituindo um discurso
obrigatório tanto para os mestres quanto para os médicos, e um
tema de discussão em importantes reuniões e congressos.
A orientação psicométrica é apontada como a outra via de acesso do médico à
escola. “A psicometria, primeira contribuição da nascente psicologia experimental às
escolas, veio a complementar as práticas antropométricas desenvolvidas pelos mestres”
(Calvo, 1998, p.320).
Com relação a essa via destacada pelo autor, é preciso referir aqui Alfred Binet,
que publicou, em 1905, junto com Theodore Simon, uma escala métrica de inteligência,
inaugurando as classificações dos escolares desde um ponto de vista psíquico, com a
justificativa de que era preciso localizar aqueles que se mostravam intransigentes com a
disciplina escolar. No início do século XX, ao ser o principal articulador do processo
seletivo de crianças para o recém criado ensino especial francês, Binet (junto a seus
colaboradores) realizou investigações sobre o desenvolvimento corporal das crianças
buscando indícios que apontassem para um atraso correlato no desenvolvimento mental
delas. “O exame e medida do desenvolvimento físico de crianças não têm somente um
65
interesse para a pedagogia; todas estas questões, quando bem compreendidas, ultrapassam
os interesses próprios da escola e tomam uma verdadeira importância social, pois colocam
em jogo o futuro da nossa raça e a organização da nossa sociedade” (Binet apud Ferreira,
2008, p.1956). Com isso, ao analisar o que ele chamou de sinais de degenerescência, Binet
envolveu o campo da Medicina em suas pesquisas, explicando, em sua obra As idéias
modernas sobre as crianças, que:
Nós não fazemos aqui medicina, mas pedagogia psicológica [...] o
estudo do estado de saúde pertence não ao professor, mas ao
médico. Somente que, como o professor está sempre em sala, e
tem as crianças sob uma vigilância contínua, ele tem melhor
oportunidade de fazer constatações que escapam ao médico, e
para as quais pode advertir este último. (id.)
O terceiro processo apontado por Calvo (1998, p.319) como possibilidade para a
Psicopedagogia é entendido pelo autor como o mais característico neste primeiro período
de consolidação psicopedagógica, que consiste nas “contribuições de pedagogos,
médicos, juristas e outros profissionais que, animados pelo ideal filantrópico, intentam
influir, conscientizar ou trabalhar em temas como a educação especial, a erradicação dos
males sociais, a proteção à infância ou a educação social”.
Nesse sentido, também se pode dizer que a invenção da infância anormal manteve
uma relação imanente com a constituição das sociedades de gestão governamental,
estudadas por Foucault (2006), que colocam em funcionamento o dispositivo de
seguridade. Os estudos de Muel (1991), Varela e Álvarez-Uría (1991) e Calvo (1998)
mostram que a infância em perigo, procedente das classes pobres da população, ocupou
um lugar central nas preocupações que impulsionaram o movimento em favor da infância
anormal. As associações de patronato, responsáveis por abrigar os menores pobres, foram
deslocando, em seus objetivos, o conceito de caridade para o conceito de previsão, aliando
à beneficência a idéia de preservação social. Tratou-se de um movimento amplo, forjado
pela criação de revistas, leis, clínicas de neuropsiquiatria infantil, centros de internação,
congressos de assistência pública, instituições diversas, etc. “A localização e seleção dos
anormais estão associadas em todos os discursos ao tema da seguridade (sobre a vida), ou
mais amplamente a tudo o que supõe uma garantia contra os riscos imprevistos do futuro”
(Muel, 1991, p.129). O Boletim da União Francesa pela Salvaguarda da Infância (apud
Muel, id.), publicado em 1891, no Capítulo intitulado A criança, é bastante claro com
66
relação a isso: “ajudando a sociedade do Patronato da infância, fazeis um bom negócio,
um bom investimento ao mesmo tempo que um ato de caridade. Pagueis de certo modo
um prêmio de seguro contra o roubo”. E estas eram também as recomendações dos
especialistas da época. Na obra As anomalias mentais, publicada em 1905, Boncour e
Philippe (id.) afirmam:
Por falta de clarividência no que se refere à atribuição destas
crianças a um especialista, deixa-se passar a época mais favorável
para sua cura, com o grave prejuízo de seu futuro e o da
seguridade social [...]. Muitas crianças que não seriam mais que
atrasados ou instáveis na escola se convertem, em contato com as
ruas, em vagabundos e inclusive ladrões. O fato é bem conhecido
dos magistrados: é sobretudo freqüente em Paris.
Nessa mesma direção, Binet e Simon (id.), em As crianças anormais, obra
publicada em 1907, referindo-se ao dever social das pessoas com relação às crianças
consideradas anormais, afirmam:
este dever é ademais exigido por nosso maior interesse que se,
num determinado prazo de tempo, não se dá satisfação ao que tem
de legítimo as reivindicações dos 9/10 da sociedade [...], pode-se
prever uma revolução violenta na qual os que possuem não terão
muito o que ganhar, e que transtornaria de baixo para cima a
organização atual da sociedade.
Assegura-se o futuro das crianças para assegurar a própria sociedade. A infância
operária, comparada à selvageria, à animalidade e à loucura, foi alvo de estudos e
intervenções, ficando a cargo do Estado, com o auxílio de diferentes especialistas, a
criação de programas de ortopedia moral, para cuidar da vida dos filhos dos pobres, então
entendidos como os futuros proletários. Mas “cuidar significa corrigir, tratar, psicologizar
em função da estreita analogia que se estabeleceu entre a criança, o louco e o criminoso”.
(Varela e Álvarez-Uría, 1991, p.212). Dessa forma, não é de se estranhar que a proteção à
infância integre um movimento mais amplo de fundação das sociedades protetoras de
diferentes grupos. A proteção de animais, crianças, mulheres, loucos, criminosos e
operários é a base em que se assenta o Estado tutelar que, assegurando proteger esses
gêneros e espécies, os incapacita para assim governá-los melhor, ou seja, para evitar que
decidam por si mesmos o governo que os convém” (id., p.217). Nesse sentido, é possível
dizer que o tratamento da infância delinqüente e anormal serviu de trampolim para a
patologização das multidões.
67
A obrigatoriedade escolar multiplicou (e fez aparecer ainda mais) o mero de
crianças anormais, na medida em que foram considerados delinqüentes todos aqueles que
“preferem a fascinação da rua e o tumulto urbano ao silêncio disciplinar e à imobilidade
da aula” (Varela e Álvarez-Uría, 1991, p. 219). Nessa mesma direção, Muel (1991, p.139-
140) mostra que os alunos que compuseram os internatos e as classes especiais foram
recrutados exclusivamente das escolas públicas das grandes
cidades. [...] estudam-se os resultados do censo de anormais das
escolas públicas colocando-os em relação com um plano da
cidade para determinar se existe uma relação entre a proporção de
anormais e a natureza dos bairros correspondentes. As proporções
elevadas correspondem com exatidão aos bairros da cidade
habitados por uma população que ignora a higiene e se entrega
cada vez mais ao alcoolismo e à tuberculose. [...] Diante dessas
crianças que são em seus corpos os representantes da miséria
social, os mestres das classes especiais acometem um trabalho
civilizador.
Tirar as crianças de seu ambiente e submetê-las a um eficaz tratamento, tal como
se fez com os loucos: a isso se chamou proteção à infância. Na esteira disso, surgiu o que
se chamou de infância anormal:
é que em todas as escolas existem crianças rebeldes, incorrigíveis,
turbulentas, desordenadas, inadaptadas, que contagiam seus
companheiros e rompem a ordem da classe. Frente aos
desdobramentos da insubmissão, a autoridade magisterial, junto
com o poder médico, em uma santa aliança, elaborou o
diagnóstico tranqüilizador da anormalidade. (Varela e Alvarez-
Uría, 1991, p.224)
A infância anormal crianças atrasadas, turbulentas, desrespeitosas, abúlicas,
indóceis, distraídas, desatentas, atordoadas, inquietas, inadaptadas, instáveis, débeis e
deficientes foi separada em laboratórios de observação onde as técnicas
psicopedagógicas, com seus instrumentos de medição e classificação, eram elaboradas e
aplicadas. Na medida em que as técnicas se tornaram generalizáveis às escolas, estas se
converteram em laboratórios de investigação das causas da anormalidade e, ao mesmo
tempo, em espaços de tratamento terapêutico, higiênico e educativo, conduzidos não mais
somente por educadores, mas também por médicos e, posteriormente, por uma infinidade
de especialistas que ocuparam a nova configuração do território escolar. Com a ampliação
68
do campo das anormalidades, “só um olho clínico perspicaz é capaz de distinguir os
signos escondidos do desvio psíquico” (Varela e Alvarez-Uría, 1991, p.231).
E aqui se pode perceber toda a importância das análises sobre a invenção da
infância anormal para o trabalho analítico desta Tese: a intensificação das práticas
psicologizantes, mediada pela preocupação com a infância anormal no interior das escolas,
colocou em funcionamento um conjunto de saberes e práticas psicopedagógicas, que
começou a se formar em torno dos anormais ao mesmo tempo em que contribuía ainda
mais para a consolidação e difusão dos discursos sobre a anormalidade.
Nesse sentido, uma das condições fundamentais de possibilidade para a
emergência do que hoje se chama Psicopedagogia situa-se exatamente no movimento em
favor da normalização da dita infância anormal, constituído na França, no final do século
XIX. Embora o campo da Psicopedagogia não tenha sido assim nomeado naquela época,
pode-se afirmar que os desdobramentos das ações sobre os anormais foram dispondo as
condições para que o discurso psicopedagógico se desenhasse e refinasse. Dessa forma,
apesar de não estar organizada, institucionalizada e regulamentada como um campo do
conhecimento particular, a Psicopedagogia começou a existir e a funcionar desde que a
docilidade física se converteu, na escola, em docilidade moral e, junto com isso, desde que
as técnicas fabricadas expressamente para a infância anormal foram generalizadas a quase
todas as crianças (mesmo as consideradas normais), de quase todas as escolas (mesmo as
regulares), a partir também de estudiosos que passaram a figurar no cenário que se
compunha, como os pioneiros do que se denominou de Movimento da Escola Nova.
Dos anormais aos normais: a criança como centro da ação educativa
Entre os principais representantes do Movimento da Escola Nova, oriundos
especialmente da Medicina, destacam-se Maria Montessori, Ovide Decroly e Edouard
Claparède, que inicialmente estiveram envolvidos no estudo de crianças anormais. As
pesquisas realizadas por tais estudiosos em laboratórios de observação que foram
substituindo as instituições destinadas à infância em perigo introduzem novas
concepções pedagógicas que se constituíram não apenas em mais uma maneira de
organizar as práticas escolares, mas também e principalmente numa forma diferenciada de
conceber o processo educativo, em seus mais diversos aspectos: o papel do professor e do
69
aluno, a organização do espaço, a distribuição do tempo, o planejamento das atividades, a
avaliação, etc.
E essas novas concepções pedagógicas foram ampliando o campo das teorias
educacionais a partir da idéia de que as necessidades e os interesses infantis devem ser a
preocupação central da Pedagogia. Os representantes da Escola Nova “aceitam as teorias
pedagógicas rousseaunianas, situam a criança no centro da ação educativa, são partidários
da aprendizagem através da ação, já que a atividade da criança constitui o centro de um
processo de auto-educação” (Varela, 2000, p.91).
Maria Montessori foi uma das representantes da Escola Nova responsável por
situar a criança no lugar de protagonista da ação educativa, dando mais ênfase à auto-
educação da criança do que ao papel do professor como eixo do ensino. Ao falar das leis
de construção psíquica, reveladas nos dois primeiros anos da vida de uma pessoa, a
estudiosa afirma, na obra Mente absorvente:
a criança tem uma mente capaz de absorver conhecimentos e o
poder de se auto-instruir [...]. A criança parece seguir, fielmente,
um rígido programa imposto pela natureza, e com uma exatidão
tal que nenhuma escola, por mais sabiamente dirigida, agüentaria
um confronto. [...] No íntimo de cada criança existe, por assim
dizer, um professor atento que sabe obter os mesmos resultados
de cada criança, não importa em que país ela se encontre. [...]
Existe uma força psíquica que ajuda o desenvolvimento da
criança. (Montessori, s/d, p.14)
Mas a centralidade da criança no ato educativo supõe, necessariamente, a
programação prévia e rigorosa, por parte dos mestres, de situações de aprendizagem
capazes de libertar as crianças dos espartilhos típicos da escola tradicional. Nesse sentido,
Montessori (s/d, p.16) afirma que a educação:
não é aquilo que o professor transmite, mas sim um processo
natural que se desenvolve espontaneamente no indivíduo humano;
não é adquirida escutando-se palavras, mas em virtude de
experiências realizadas no ambiente. A tarefa do professor não é
falar, mas preparar e dispor uma série de motivos de atividade
cultural num ambiente preparado exatamente com este objetivo.
Como se pode perceber, a preparação do ambiente e os fatores de ordem material
desempenham um papel muito importante no método montessoriano. Concordando com
Rousseau na idéia de que a criança deve ser respeitada em suas particularidades infantis e
70
em seu crescimento continuado, Montessori afirma que todo o mobiliário e os objetos do
ambiente escolar devem estar de acordo com a estatura e as capacidades das crianças e que
os materiais pedagógicos (com ênfase no lúdico) devem ser adequados aos períodos de
desenvolvimento delas
19
.
Estudiosa das idéias, primeiro, de Jean Ittard e, depois, de Edouard Séguin –
figuras envolvidas com a psicopatologia infantil, aliando o tratamento médico à educação
dos anormais –, Montessori defendia a tese de que os anormais precisavam mais de um
bom e preparado ambiente pedagógico do que de clínicas, internatos ou casas de saúde.
Enfatizava a necessidade de construção de escolas especiais, onde se aperfeiçoassem, por
meio da observação cotidiana, as teorias e os métodos médicos. Nesse sentido, não é o
professor que deveria trabalhar nas clínicas, mas os médicos que deveriam migrar para as
escolas, entendidas ao mesmo tempo como laboratórios de observação, espaços de
tratamento e locais de formação de bons professores. Diante dos resultados do trabalho
com as crianças anormais, Montessori chegou à conclusão de que as escolas regulares para
crianças normais estavam mal organizadas. Fundou em 1907 a primeira Case dei Bambini
(Casa das Crianças) e neste mesmo ano mais duas foram inauguradas na Itália (Silva,
1991). Com o trabalho realizado nas Casas, Montessori pode confirmar sua hipótese de
que seu método (inicialmente destinado às crianças anormais) teria sucesso quando
aplicado junto às crianças normais.
Bem mais do que uma verdadeira escola a nossa é uma ‘Casa das
Crianças’, isto é, trata-se de um ambiente preparado
especialmente para a criança, onde esta assimila qualquer cultura
difundida no ambiente sem necessidade de ensinamento. [...]
Somente após repetidas experiências chegamos à certeza de que
todas as crianças, indistintamente, possuem esta capacidade de
‘absorver’ a cultura. (Montessori, s/d, p.16)
Disso seguiu-se a difusão imediata e aplicação do método Montessori às escolas
elementares
20
.
19
Acreditando que a criança está sempre e naturalmente predisposta ao jogo, Montessori criou uma série de
materiais didáticos e pedagógicos, como, por exemplo, o conhecido material dourado, que permitiria o
estabelecimento de relações de graduação e de proporções, auxiliando na contagem e no cálculo.
20
Primeiro na Itália e em seguida na Suíça, na Argentina, nos Estados Unidos, em Paris e na Inglaterra;
atualmente, há escolas Montessori em todo o mundo (Silva, 1991).
71
A partir da premissa de que a vontade de aprender é inerente a todos os seres
humanos, Montessori propôs um método fundamentalmente biológico, deslocando o
enfoque educacional do ensino para a forma de pensamento.
Sustento que qualquer reforma da educação deve basear-se sobre
o desenvolvimento da personalidade humana. O próprio homem
deveria se tornar o centro da educação [...]. Se agirmos segundo
este princípio, havemos de nos deparar com uma criança que não
é mais considerada como um ser sem força, praticamente um
recipiente vazio que deveremos encher com a nossa sabedoria;
[...] mas como o construtor de nossa inteligência, como o ser que,
orientado por um professor interior, trabalha infatigavelmente
com alegria e felicidade, segundo um programa preciso, para a
construção daquela maravilha da natureza que é o Homem. Nós,
professores, podemos apenas auxiliar a obra concluída como os
servidores ajudam o patrão. (Montessori, s/d, p.17)
No desenvolvimento de seus estudos, a médica concluiu que as crianças passam
por estágios, denominados por ela de “períodos sensíveis”. Em todos eles, a preparação de
ambientes apropriados é de fundamental importância para o progresso intelectual da
criança.
A perspectiva desenvolvimentista das teorias montessorianas possibilitou duas de
suas principais idéias: a educação pelos sentidos e a educação pelo movimento. Esses dois
tipos de educação dependem de uma proposta diferenciada de organização da sala de aula,
dispondo mesas, cadeiras e materiais de modo a possibilitar o livre movimento das
crianças. Tal organização é, para Montessori (1965, p.44), “um sinal de liberdade e um
meio de educação”. E esse sinal de liberdade traz consigo a idéia de disciplina,
conceituada pela médica italiana não como imobilidade, mas como domínio de situações e
respeito à liberdade própria e a dos outros. Na obra Pedagogia Científica, a autora (1965,
p.50) explica: “Nosso objetivo é disciplinar a atividade e não imobilizar a criança ou
torná-la passiva”.
Montessori destaca a concentração da criança como um fator importante no
trabalho com os materiais. Para que a criança se concentre, é preciso que trabalhe
individualmente o que facilita sua autocorreção e auto-avaliação e que escolha
livremente as atividades que deseja realizar. A intenção da pesquisadora foi mostrar que a
liberdade permitida às crianças era capaz de revelar suas qualidades. O princípio básico é
o de que estando em condições favoráveis no interior de um ambiente previamente
72
planejado e organizado, que proporcione atividades correspondentes a cada etapa do
desenvolvimento mental – a criança aprende fazendo.
Em Mente absorvente, ao relatar algumas descobertas que fez observando as
experiências na Case dei Bambini, Montessori (s/d, p.222) afirma ter verificado nos
momentos em que as crianças concentravam-se em suas atividades o que ela chama de
disciplina espontânea. De todas as constatações derivadas do trabalho nas escolas
montessorianas, a autora diz que a existência de uma disciplina espontânea foi um fato que
a impressionou mais do que qualquer outro:
A disciplina na liberdade parecia solucionar um problema que, até
então, tinha parecido insolúvel. A solução consistia em obter a
disciplina oferecendo a liberdade. Estas crianças que andavam
buscando trabalho em liberdade, cada qual concentrada num tipo
diverso de ocupação, mas ainda assim unidas num grupo,
davam a impressão da disciplina perfeita. Isto demonstra que,
colocadas num ambiente que lhes oferece a possibilidade de
desenvolver uma atividade organizada, elas [as crianças]
manifestam este novo aspecto [a disciplina espontânea]. (grifos da
autora)
Mas para que isso aconteça, adverte Montessori, não se pode confundir liberdade
com independência aos laços repressivos, ou seja, com uma permissividade abundante
como forma de compensar alguma repressão anterior. De acordo com a autora (s/d), era
comum que o tratamento de crianças difíceis fosse feito oferecendo-lhes um ambiente
repleto de atividades e livre de qualquer controle adulto, deixando-as livres para
escolherem jogos e brincadeiras e fazerem o que desejassem. No entanto, depois de
aparentemente curadas, quando inseridas novamente nos ambientes das escolas
tradicionais, as crianças difíceis tornavam a apresentar o que Montessori (s/d, p.226)
chama de “desvios da normalidade”.
Resultam disso, então, crianças desorganizadas porque a ordem
tinha sido imposta pelo arbítrio dos adultos, crianças ociosas
porque o trabalho lhes fora imposto pelos adultos, crianças
desobedientes porque a obediência tinha sido uma necessidade
obrigatória. A liberdade é, ao contrário, uma conseqüência do
desenvolvimento [...]. O desenvolvimento é ativo, é a construção
da personalidade conseguida através do esforço e a experiência
próprios; é o demorado trabalho que deve realizar cada criança a
fim de se autodesenvolver. Todos podem comandar e reprimir
uma pessoa fraca e submissa, mas ninguém pode “desenvolver”
uma outra pessoa. Não se pode ensinar o “desenvolvimento”.
73
Considerando isto, o que se pode e se deve fazer, na perspectiva de Montessori, é
com base numa educação calcada na Psicologia do Desenvolvimento infantil organizar
um ambiente repleto de motivos adequados para despertar a atenção e o interesse das
crianças, entendidos como elementos necessários e indispensáveis à organização mental e
à conseqüente coordenação dos movimentos. Estes dois últimos aspectos auxiliam na
concentração que, “uma vez alcançada, liberta as ações da criança e leva-a à recuperação
de seus defeitos [...] Nas nossas escolas, essa recuperação não é o ponto de chegada como
acontece nas clínicas das crianças difíceis, mas é o ponto de partida, depois do qual a
liberdade de agir consolida e desenvolve a personalidade” (Montessori, s/d, p.226). Em
todo esse processo, figura sempre um ponto principal: a aplicação ao trabalho; “um
trabalho interessante, escolhido com liberdade, que tenha a virtude de concentrar, ao invés
de cansar, aumenta as energias e as capacidades mentais e proporciona o domínio de nós
mesmos” (id., p.227).
Nesse sentido, por meio da liberdade de movimentos e de escolha das atividades, o
autocontrole e a capacidade de decisão são os principais objetivos da aprendizagem, para o
aperfeiçoamento do indivíduo: “a criança tornada senhora de seus atos mediante um
exercício prolongado e repetido, satisfeita pelo emprego de sua atividade motora, que
aprendeu a utilizar de modo agradável” (Montessori, 1965, p.91). Dessa forma, a estudiosa
acredita que é possível se obter uma excelência disciplinar, pois se trata de uma disciplina
que tem origem dentro da própria criança e não imposta de fora, que as condições
externas favorecem o trabalho individual, a concentração, a iniciativa, a escolha, e uma
considerável margem de liberdade que, para ela, se constitui no fundamento de uma
“liberdade real”.
Outro bom exemplo do papel central conferido à criança na ação educativa é o
método de trabalho que Ovide Decroly denominou de Centros de Interesse
21
. Este método
foi sendo elaborado a partir das experiências realizadas pelo médico numa instituição de
ensino fundada por ele em 1901, destinada ao atendimento de crianças com retardo
mental. O trabalho realizado naquela instituição propunha uma educação voltada para os
interesses destas crianças, no sentido de satisfazer o que Decroly entendia como a
curiosidade natural das crianças, estimulando-as a pensar e colocando-as em contato com
21
De toda a vasta obra de Decroly, o livro O Método Decroly, escrito pelo próprio autor, pode ser apontado
como um dos principais. Publicado originalmente em 1922, o livro inicia com o prefácio de Edouard
Claparède. No Brasil, a segunda edição foi publicada em 1934, pela Editora Briguiet.
74
a realidade física e social. As experiências realizadas levaram o médico belga a concluir
que tais princípios se adequavam a qualquer criança e suas idéias foram estendidas
também às chamadas crianças normais (Marques, 2008).
Ao discutir as relações entre hereditariedade e meio, Decroly insiste na idéia de
que a educação deve agir sobre traços hereditários que fornecem as bases para edificar a
personalidade e as aptidões. Como sugere o próprio nome do método inventado por ele, a
noção de interesse é fundamental. Para Decroly, os seres humanos possuem naturalmente
quatro necessidades básicas, que são: comer, abrigar-se, defender-se e produzir. Cada uma
dessas necessidades gera interesse e só este leva ao conhecimento. Eis a idéia criada por
Decroly de que a vida intelectual de cada indivíduo é determinada por suas necessidades
básicas, por meio do interesse. Daí o método educativo proposto pelo médico belga: os
Centros de Interesse, que têm como base as etapas da evolução neurológica infantil e a
convicção de que as crianças entram nas escolas dotadas de condições biológicas
suficientes para procurar e desenvolver os conhecimentos de seu interesse (Marques,
2008).
Estabelecidos os quatro principais Centros de Interesse necessidade de
alimentação; necessidade de lutar contra as intempéries; necessidade de defesa contra
perigos e inimigos; e necessidade de agir, trabalhar, descansar e divertir-se Decroly
propôs que no trabalho com cada Centro, por meio dos quais deveria fluir toda a prática
docente, fossem respeitados três tipos de experiências ou atividades da criança, entendidas
como fases, como passos do método a serem considerados pelo professor: a observação, a
associação e a expressão.
A observação é entendida como um exame pessoal e pode ser realizada de forma
direta, fazendo-se com que o aluno observe e analise sua realidade seus objetos, família,
escola, bairro, plantas, animais, pessoas que o rodeiam, etc. –, ou de forma indireta, por
meio do exame de lâminas, desenhos, gráficos, figuras, imagens e outros, a fim de evocar
dados ou situações da realidade, ou imaginar, levantar hipóteses sobre como ocorrem
fenômenos ou como são os objetos.
A associação é entendida como um exame de objetos distantes no tempo e no
espaço. Para Decroly, a habilidade de fazer associações resulta da análise, do
estabelecimento de relações e da organização mental de dados (fatos, situações) que foram
coletados a partir da observação.
75
A expressão é entendida como uma atividade natural e espontânea da criança, mas
que deve ser estimulada pelo professor, durante as atividades de observação e associação.
Nesse sentido, para que o método se complete, devem ser dadas aos alunos todas as
oportunidades de expressão verbal, plástica e gestual (Carvalho, 2007).
Além de Montessori e Decroly, outro nome a ser destacado na oposição à educação
tradicional é o de Edouard Claparède, que, ao defender a tese da Escola Ativa, também
afirmou a necessidade de se considerar o interesse da criança no processo educativo
22
. Tal
como para os dois outros estudiosos, para ele, a escola deve estimular a independência
intelectual da criança, fazendo com que atue sobre aquilo que aprende.
Claparède defende a idéia de que a educação deve ser funcional: ao conferir o
caráter biológico à infância, enfatiza que a ação educativa deve se ajustar às manifestações
naturais das crianças. Nesse sentido, são as crianças que devem estar no centro da
educação, em torno do qual devem gravitar os métodos e os programas escolares (e não o
contrário). Para tanto, o estudioso suíço propõe uma mudança de ponto de vista, traduzida,
antes de tudo, pelas seguintes reformas:
substituição da obediência passiva pela atividade e iniciativa da
criança em vez de reprimir sistematicamente os instintos e os
gostos naturais da criança, neles se enxertará o ensino; na
instrução, substituição dos métodos baseados na lógica do adulto,
pelos métodos fundados na psicologia da criança; na educação,
substituição dos trabalhos puramente individuais pelo trabalho
coletivo, organização das escolas segundo o tipo de instituições
democráticas, pondo em jogo os instintos sociais: auto-educação,
substituição da doutrina exterior pela interior. (Claparède, 1973,
p.195, grifo meu)
Neste trecho, pode-se ampliar o sentido do termo auto-educação: a terceira edição
brasileira da obra A escola sob medida (Claparède, 1973) utiliza este termo como tradução
de self-government. Sendo mais fiel à expressão utilizada pelo autor, no original, pode-se
referir que se trata de um certo tipo de auto-governamento, o que evidencia, na obra de
Claparède, a utilização de um vocabulário que está em sintonia com as preocupações em
torno das formas de governamento, típicas de uma gica mais ampla da época em que se
situam as teorizações do autor. Logo após falar em self-government, Claparède explica:
22
Uma das principais obras de Claparède chama-se Psicologia da Criança e Pedagogia Experimental,
publicada em 1905. Sete anos depois, criou o Instituto Jean-Jacques Rousseau, onde passaram a ser
realizadas pesquisas na área da Psicologia infantil e suas aplicações na educação (Cobra, 1997).
76
substituição da doutrina exterior pela interior. Neste caso, considerando as discussões
foucaultianas sobre o deslocamento da disciplina para o governamento-seguridade, pode-
se ler esta frase de Claparède como imersa no jogo imanente dessa troca de ênfases. Ou
seja, a substituição da doutrina exterior (disciplina) pela interior (governamento do ser por
si) parte desse deslocamento operado em diferentes instâncias sociais e, ao mesmo tempo,
acaba por configurar, na instância educacional, o próprio deslocamento.
Na seqüência, Claparède resume numa idéia todas as reformas às quais se refere
no trecho citado: “em vez de ser educada, a criança estará colocada em condições tais que
se eduque, ela mesma, o mais possível” (Claparède, 1973, p.195). Referindo-se ao
conjunto das reformas que propõe, o autor afirma que o papel da escola e do mestre devem
ser necessariamente transformados. Com relação à escola, explica:
Em vez de destruir, como o faz, as mais das vezes, tudo o que é
infantil na criança, criando espécies de curtos-circuitos, que
destroem fases necessárias sua função será, daí em diante,
prolongar a infância, ou ao menos explorar-lhe os caracteres
próprios, as potencialidades genéticas, a curiosidade nativa, a
tendência a experimentar. (Claparède, 1973, p.196, grifos no
original)
E o autor continua, referindo-se agora à transformação do papel do mestre:
O educador, em vez de ser um plasmador de almas e de espíritos,
tornar-se-á um estimulador de interesses: em vez de ficar no meio
do palco (onde muitas vezes pontifica, sem outros resultados
tangíveis, a não ser a satisfação de suas tendências autoritárias),
deverá, daí em diante, permanecer nos bastidores, de onde disporá
e organizará o meio da maneira mais favorável ao despertar das
necessidades intelectuais e sociais da criança e ao início de suas
andanças intelectuais, de sua atividade, de seu esforço. (id.)
A escola deve ser, assim, um laboratório e não um auditório. Como bom seguidor
das principais idéias de Rousseau, Claparède afirma que a instituição deve evitar ao
máximo que o trabalho escolar seja detestado: a criança deve estar na escola porque tem
interesse pelas atividades, porque deseja estar ali, e não porque tenha medo dos castigos
ou queira obter uma recompensa.
O médico e psicólogo suíço “é considerado um dos pioneiros no estudo da
psicologia da criança, a partir de um enfoque interacionista sobre a gênese dos processos
cognitivos” (Nassif e Campos, 2005, p.92). Na sua obra intitulada A educação funcional,
77
Claparède (1940) esclarece que o pensamento é uma função biológica a serviço do
organismo humano; essa é a premissa da lei do interesse momentâneo, formulada pelo
autor: “em cada momento, um organismo age segundo a linha do seu maior interesse”
(p.79). Isso está conectado a mais duas leis formuladas por ele: da necessidade e do
interesse. Semelhantemente às idéias de Decroly, Claparède também afirma que o
interesse nasce de uma necessidade. Ou seja, toda atividade desenvolvida pela criança é
sempre suscitada por uma necessidade a ser satisfeita e pela qual ela está disposta a
mobilizar energias. Para o estudioso, as principais necessidades da criança são: agir,
construir e desenvolver-se atuando e construindo. Assim, ao entender o lúdico como
essencial à natureza da infância, o pesquisador suíço destaca o jogo como o elemento
central que circula entre essas três necessidades. Nesse sentido, o jogo é, então, o melhor
meio de despertar o interesse da criança pelo trabalho escolar. Cabe ao professor colocar o
aluno na situação adequada para que seu interesse seja despertado, permitindo que ele
adquira o conhecimento. O professor é entendido, pois, como um “estimulador de
interesses”.
O conceito de disciplina é, para Claparède, bastante próximo da concepção que tem
Montessori: a disciplina é algo que vem do interior, que, sendo o interesse o motor da
educação, esta não poderá se configurar em castigos ou recompensas, mas em adequação
entre o que se de fazer e o sujeito que faz (Zacharias, 2008a). No lugar da motivação
exterior e da disciplina imposta, o pesquisador suíço preferia a motivação interior e a
autodisciplina.
Mas essas qualidades dependem das condições criadas pelo professor. Claparède
(1940) chegou a essa conclusão, a partir da lei (formulada por ele) da adaptação funcional,
segundo a qual “a ação se produz quando é de natureza a satisfazer a necessidade ou o
interesse do momento” (p.79). Isso significa que para fazer um indivíduo agir devemos
colocá-lo nas condições próprias ao aparecimento da necessidade, cuja ação que se deseja
suscitar tem por função satisfazer. Do ponto de vista pedagógico, essa lei pode ser
considerada a mais importante, na medida em que determina o papel do professor e do
aluno na ação educativa. Claparède defende a idéia de que é preciso que a criança não faça
nada que não seja por ela desejado. Mas isso não quer dizer deixar a criança fazer o que
bem entende, ou seja, não se trata de deixar livre a natureza da criança. Sendo assim, é
preciso que o próprio desejo seja criado, dispondo-se as condições necessárias para isso.
Trata-se, na lei da adaptação funcional, de governar as relações do ser-consigo.
78
Percebe-se, assim, a influência bastante clara que o pesquisador teve das idéias de
Rousseau. Se trouxermos para algumas passagens de Emílio, evidenciam-se as
semelhanças. Vejamos. Referindo-se aos tratados de educação, Rousseau (2004, p.140)
diz:
Tomai com vosso aluno o caminho oposto; que ele sempre
acredite ser o mestre, e que sempre o sejais vós. Não sujeição
mais perfeita do que a que conserva a aparência de liberdade;
assim se cativa a própria vontade. A pobre criança que nada sabe,
que nada pode, que nada conhece, não está à vossa mercê? [...]
Sem dúvida, ela deve fazer o que quer; mas deve querer o
que quereis que ela faça; ela não deve dar um passo sem que o
tenhais previsto; não deve abrir a boca sem que saibais o que vai
dizer.
Analisando esta passagem de Rousseau, Donald (2000, p.71) diz: “a educação que
Rousseau recomenda envolve não coerção ou instrução, mas o artifício e a manipulação de
uma ‘liberdade bem-regulada’. Esta regulação exige a definição de uma autoridade externa
à qual a criança está sujeita e que, contudo, a autoriza a agir como um agente livre”.
Referindo-se à idéia rousseauniana de que é preciso preservar a natureza infantil, Bujes
(2002, p.51) salienta: “é o conhecimento da natureza da criança que permite ao mestre pôr
em ação a disciplina capaz de emancipá-la”.
Seguindo as idéias de Rousseau, o que Claparède fez foi comprovar, com as lentes
da Psicologia científica, as necessidades naturais das crianças em cada idade, para que,
dessa forma, conhecendo-se os estágios do desenvolvimento infantil, tenha-se a
possibilidade de criar as condições apropriadas para a educação das crianças, fazendo-as
agir segundo seus interesses. Mas nunca é demais lembrar: tais interesses são criados pelos
próprios estudos psicológicos acerca da infância, os quais, no caso de Claparède,
utilizaram-se de métodos denominados por ele de extropecção e introspecção
23
. O caráter
científico dos estudos legitima as “descobertas” sobre a natureza da criança e determina os
tipos de intervenção pedagógica mais adequados a cada idade. Passa-se, assim, de uma
23
Claparède distingue três estágios de evolução dos interesses e a cada um deles corresponde um
agrupamento de interesses: 1) estágio de aquisição ou de experimentação, caracterizado pelos interesses
perceptivos (no primeiro ano de vida), pelos interesses glóssicos (no segundo ano), pelos interesses
intelectuais gerais (dos três aos sete anos) e pelos interesses especiais e objetivos (dos sete aos doze anos); 2)
estágio de organização ou de apreciação, caracterizado pelos interesses sociais ou éticos (dos doze aos
dezoito anos); 3) estágio de produção, caracterizado pelo período do trabalho (idade adulta) (Nassif e
Campos, 2005).
79
educação rígida, coercitiva e puramente instrucional a uma educação cujo centro é a
própria criança, entendida em suas formas de pensamento e aprendizagem.
Na esteira disso, Claparède criticou o modelo de escola vigente em sua época e
sugeriu, especialmente no seu livro A escola sob medida, que esta instituição deveria
considerar a potencialidade (dos alunos) de reestruturação de suas condutas pessoais. Ou
seja, na impossibilidade de haver uma escola para cada criança ou para cada tipo de
inteligência, o sistema mais próximo disso seria o que permitisse a cada aluno reagrupar o
mais livremente possível os elementos favoráveis ao seu desenvolvimento. Assim, a
educação escolar deve ser organizada de forma a contemplar as diferenças individuais
entre os alunos.
Com tais idéias, Claparède pode ser considerado um dos primeiros pesquisadores a
defender veementemente a idéia de que a Pedagogia precisa ser ancorada na Psicologia
Experimental.
Para realizar uma reforma que se imponha, são necessárias duas
coisas, antes de mais nada: 1. Intensificação das pesquisas
científicas relativas à criança e ao desenvolvimento mental; 2.
Preparação especial dos futuros educadores, e isto sob duplo
ponto de vista: primeiro, para conservá-los cientes dos resultados
das pesquisas psicológicas e das novas normas decorrentes para a
educação e a instrução; e, em segundo lugar, para dar aos próprios
educadores, tanto quanto possível, o espírito científico [...].
(Claparède, 1973, p.196)
Nas principais obras de Claparède, fica expressa a idéia de que o sucesso da ação
educativa depende sobretudo dos conhecimentos que o professor tiver da Psicologia da
criança, devendo utilizá-los na proposição das tarefas de aprendizagem, para que haja uma
adequação entre elas e os fenômenos mentais da criança.
Como se pode perceber, Decroly, Montessori e Claparède, cada um ao seu modo,
introduziram novas formas de se entender e tratar o trabalho educativo. Mas apesar das
diferenças de suas idéias e métodos, pelo menos uma convicção comum que perpassa
as propostas dos três estudiosos: a convicção de que era preciso se colocar contra o
marasmo da escola tradicional, que, de acordo com os pensadores, não respeitava as
necessidades e os mecanismos evolutivos do desenvolvimento da criança. Daí a
formulação de uma série de propostas pedagógicas inovadoras, preconizando a
globalização do ensino, reorganizando-se a sala de aula e as atividades a serem
80
desenvolvidas, modificando-se a relação professor-aluno e, em especial, os modos de
significar e trabalhar com os conteúdos escolares. Mas é preciso dizer também que as
novas formas de conceber o processo educativo passaram, antes de tudo, por um modo
diferenciado de conceber o sujeito desse processo, entendido como um ser singular,
biológico, cujo interesse por aprender é subjetivo, natural e espontâneo entendimento
legitimado pelas pesquisas da ciência psicológica. E as idéias defendidas e disseminadas
pelos pioneiros da Escola Nova são bons exemplos de como se arraigaram, entre os
pedagogos, as inquietudes psicopedagógicas da época.
Psicologia do Desenvolvimento como regulação governamental
À medida que os campos do conhecimento foram se tornando mais elaborados – ou
seja, foram sendo enquadrados numa normatividade que se adjetivou de positivista
aumentaram consideravelmente as preocupações com a definição de objetivos e métodos
que supostamente fossem capazes de garantir o caráter de cientificidade das pesquisas
sobre as crianças. A Psicologia do Desenvolvimento nasceu, assim, no interior dessa
preocupação positivista expressa nos estudos sobre a maturação humana, com enfoque
biológico-evolucionista, originário das ciências da natureza e da Medicina.
E é nessa direção que foram se colocando as bases para o trabalho teórico
empreendido por Jean Piaget, no qual se destacam as seguintes questões: “a questão da
hereditariedade e do ambiente, do caráter ‘natural’ do desenvolvimento da racionalidade; a
preocupação com uma solução para os problemas da ordem social numa ciência do
indivíduo [...]; e a idéia da ‘criança’ como um objeto legítimo tanto da ciência quanto dos
aparatos de normalização” (Walkerdine, 1998, p.166). Para a autora, são essas as
condições que “forneceram a possibilidade de uma ciência e de uma Pedagogia baseadas
no modelo de um desenvolvimento que ocorria naturalmente e que podia ser observado,
normalizado e regulado” (id.).
De certa forma, desde que se começou a discutir se a Pedagogia deveria ser
definida como a “ciência da educação”, – com seus princípios próprios, suas regras
determinadas, seus métodos particulares pode-se perceber o peso e o papel conferidos à
Psicologia como fundamento científico. Sendo a educação considerada como “o
desenvolvimento harmonioso de todas as faculdades, então é a Psicologia o instrumento
81
fundamental de conhecimento dessas faculdades. A Pedagogia deve se desenvolver, assim,
como uma aplicação da ciência psicológica” (Warde, 1999, p.297).
É mais ou menos nessa direção que os saberes produzidos pela Psicologia invadem
a cena pedagógica, outorgando-lhe as bases nas quais a Pedagogia viria a se assentar. “A
Pedagogia como ciência ver-se-á reforçada de modo inusitado, graças à entrada cada vez
mais intensa da Psicologia no campo educativo, influência que tem servido, pelo menos,
para dotá-la de uma ‘dupla cientificidade’, mais difícil de pôr em questão” (Varela e
Alvarez-Uría, 1992, p.91).
Desse modo, o monitoramento do desenvolvimento individual, possibilitado
principalmente pelas pesquisas psicológicas que pretendiam uma racionalidade científica,
acabou por naturalizar não apenas o sujeito infantil, mas a própria Pedagogia, cujas
práticas passaram a ser entendidas e efetivadas por meio de um ensino individualizado, em
oposição ao ensino prioritariamente dirigido à classe.
O que se seguiu foi uma série de experimentos em pedagogia que
eram também considerados experimentos psicológicos. Isto é, a
observação e o monitoramento do desenvolvimento infantil
tornou-se uma pedagogia de direito próprio porque se supunha
que aquelas compreensões que eram consideradas como
subjacentes à aquisição do conhecimento estavam baseadas numa
fundação ‘natural’. A nova noção de uma pedagogia
individualizada dependia totalmente da possibilidade de
observação e classificação do desenvolvimento normal e da idéia
de aprendizagem espontânea. Foi a ciência da Psicologia do
Desenvolvimento que forneceu os instrumentos necessários para
isso, tarefa na qual o trabalho de Piaget está particularmente
envolvido. (Walkerdine, 1998, p.177-178)
Os estudos do epistemólogo Jean Piaget tiveram forte influência na cultura
pedagógica do século XX. Após concluir seu doutorado em Biologia, Piaget trilhou um
caminho que o levou ao estudo da evolução do pensamento humano, na intenção de
entender os processos mentais que o indivíduo utiliza para captar o mundo. Inicialmente,
trabalhou como psiquiatra em uma clínica, atividade que lhe permitiu combinar a
Psicologia Experimental – cujo estudo é formal e sistemático – com métodos informais de
Psicologia: entrevistas, conversas e análises de pacientes. Em seguida, trabalhando no
laboratório de Alfred Binet, iniciou seus estudos experimentais sobre o desenvolvimento
das habilidades cognitivas. Em 1921, foi admitido como diretor do Instituto Jean-Jacques
82
Rousseau e deu continuidade ao trabalho de Claparède sobre o desenvolvimento do
pensamento na criança (Zacharias, 2008b).
Embora Piaget não tenha criado nenhum método de ensino, os resultados da teoria
do desenvolvimento cognitivo, formulada por ele, levaram a diversas interpretações que
culminaram em propostas pedagógicas responsáveis pela intensificação da psicologização
da ação educativa. Suas teorias o giram em torno do que e como ensinar, mas das
formas como os sujeitos aprendem. Desse modo, as pesquisas do epistemólogo suíço
legitimaram ainda mais a idéia de que os conteúdos escolares devem ser entendidos como
instrumentos que servem ao desenvolvimento evolutivo natural, e não como fins em si
mesmos. A aprendizagem é entendida como um processo interno de reorganização
cognitiva e que depende do nível de desenvolvimento do sujeito. Como uma das principais
implicações deste entendimento, tem-se a cristalização da idéia antes possibilitada e
disseminada pelos pioneiros do Movimento da Escola Nova de que os objetivos
pedagógicos devem estar centrados no aluno (em suas formas naturais de pensar e
aprender) e, portanto, que a escola deve colocar mais ênfase nos processos de
aprendizagem do que nos métodos de ensino.
Para Piaget (1977), o desenvolvimento cognitivo acontece em etapas, pressupondo
que os seres humanos passam por uma série de mudanças ordenadas e previsíveis. Ele
distingue três estados: anomia, heteronomia e autonomia. O estado da anomia é
característico da fase em que a consciência do indivíduo está focalizada apenas nele
mesmo; trata-se do egocentrismo. Nesta fase de imaturidade intelectual e afetiva, a
inteligência está calcada em atividades motoras, centradas no próprio indivíduo: a criança
joga consigo mesmo e não precisa compartilhar com o outro. O estado da heteronomia
começa a emergir quando, na complexificação das ações e reconhecendo a existência do
outro, o indivíduo passa a perceber a necessidade de regras. É a fase da aceitação de
normas e pressões externas ao indivíduo, em que ele desloca a relação de si para o outro,
de forma unilateral. O estado da autonomia surge na medida em que o indivíduo, em
cooperação progressiva com os outros, torna-se capaz de tomar decisões por ele mesmo,
decidindo qual o melhor modo de agir, considerando os diferentes pontos de vista e não
apenas o seu.
Na medida em que os indivíduos decidem com igualdade
objetivamente ou subjetivamente pouco importa –, as pressões
que exercem uns sobre os outros se tornam colaterais. E as
83
intervenções da razão, que Bovet tão justamente observou, para
explicar a autonomia adquirida pela moral, dependem,
precisamente, dessa cooperação progressiva. De fato, nossos
estudos têm mostrado que as normas racionais e, em particular,
essa norma tão importante que é a reciprocidade, não podem se
desenvolver senão na e pela cooperação. A razão tem necessidade
da cooperação na medida em que ser racional consiste em “se”
situar para submeter o individual ao universal. O respeito mútuo
aparece, portanto, como condição necessária da autonomia, sobre
o seu duplo aspecto intelectual e moral. Do ponto de vista
intelectual, liberta a criança das opiniões impostas, em proveito da
coerência interna e do controle recíproco. Do ponto de vista
moral, substitui as normas da autoridade pela norma imanente à
própria ação e à própria consciência, que é a reciprocidade na
simpatia. (Piaget, 1977, p.94, grifos meus)
Esse trecho, retirado do livro O julgamento moral na criança, deixa claro que a
passagem para o estado de autonomia depende da consolidação do sujeito moral.
Enquanto no estado da heteronomia o sujeito é governado pelos outros, no estado da
autonomia o sujeito é governado por si próprio. Para Piaget, se o aluno é passivo
intelectualmente, não consegue ser livre moralmente e vice-versa. Nesse sentido, o
objetivo principal da educação é a autonomia individual, pela atividade em grupo. A
educação é entendida, assim, como um processo de socialização. E considerando que,
nessa perspectiva, a aquisição individual das operações pressupõe necessariamente a
cooperação, socializar é, então, criar condições de cooperação, permitindo equilíbrio nas
relações interindividuais e ausência de regulador externo. Trata-se da criação de condições
que possibilitem a superação da coação dos adultos sobre o comportamento das crianças.
Mas elas não conseguem adquirir suas estruturas mentais mais essenciais sem a
intervenção do exterior. Por isso, a educação é condição formadora ao desenvolvimento
natural do ser humano. Deve possibilitar que os educandos elaborem uma disciplina, cuja
necessidade é descoberta na própria ação, ao invés de ser percebida inteiramente pronta
antes que possa ser compreendida.
A discussão piagetiana sobre a inseparabilidade do sujeito cognitivo e moral pode
ser entendida também com as lentes políticas da governamentalização do Estado,
analisada por Foucault (2006). O desbloqueio da arte de governar teve sua face
pedagógica ancorada no discurso da autonomia individual, adquirida por meio da
educação, para que os sujeitos aprendam a governar a si próprios ou seja, para que o
84
governo dos sujeitos (operado de forma exterior, o que caracterizaria a heteronomia
descrita por Piaget) seja desbloqueado, permitindo aos alunos o governo de si mesmos.
Nesse sentido, os sujeitos heterônomos podem ser associados, no discurso
piagetiano, aos sujeitos das pedagogias disciplinares: sujeitos passivos, cujos corpos
devem ser dóceis, úteis, obedientes; pedagogias que, de acordo com Piaget, não dão conta
da formação de sujeitos autônomos.
O estado da heteronomia, de acordo com Piaget, deve ser superado, por meio da
educação, até que os alunos atinjam o estado da autonomia individual. E este último
estado pode ser entendido como mais característico das sociedades de gestão
governamental, compostas por sujeitos que, se educados porque educáveis são
autogovernados, auto-regulados; sujeitos ativos (da pedagogia ativa), que se movimentam
a partir de seus interesses.
Dessa forma, o preceito psicológico do estado de autonomia individual, alcançado
através da educação, está em sintonia com a lógica do dispositivo de seguridade. Nesta
lógica, o objetivo final do governo é a população. “A população é pertinente como
objetivo e os indivíduos serão simplesmente instrumento, relevo ou condição para obter
algo no plano da população” (Foucault, 2006, p.63). Trata-se de, também por meio da
educação, constituir indivíduos autônomos para que se componha uma população
governável. Nesse sentido, o discurso da pedagogia ativa está envolvido com a criação de
condições favoráveis a “comportamentos que levam a cada um dos indivíduos a funcionar
adequadamente como membro, como elemento do que se quer manejar da melhor maneira
possível, a saber, a população” (Foucault, 2006, p.64).
Referindo-se aos traços gerais do dispositivo de seguridade, característico das
sociedades de gestão governamental, Foucault (2006) faz a análise da relação do governo
com o que ele chama de acontecimento, trazendo, para isso, o problema da escassez,
entendida como um tipo de acontecimento que se deve evitar. Para melhor compreender
esse dispositivo que os economistas do século XVIII conceberam com respeito à escassez,
Foucault (2006, p.68-69) fez a comparação deste dispositivo de seguridade com os
mecanismos disciplinares. Uma das diferenças apontadas é a seguinte:
O mecanismo disciplinar codifica de forma permanente o
permitido e o proibido ou, melhor dito, o obrigatório e o proibido.
O ponto ao qual se aplica o mecanismo disciplinar, então, não é
tanto o que não se deve fazer, mas o que se deve fazer. Uma boa
85
disciplina é a que nos diz a todo o momento o que devemos fazer.
[...] no sistema de regulamento disciplinar, o determinado é o que
se deve fazer, e por conseguinte todo o resto, ao ser
indeterminado, está proibido. No dispositivo de seguridade, trata-
se justamente de não adotar nem o ponto de vista do que se
impede nem o ponto de vista do que é obrigatório, e tomar, ao
contrário, a distância suficiente para poder captar o ponto de onde
as coisas vão se produzir, sejam desejáveis ou indesejáveis. Em
resumo, intentar-se-á apreendê-las no nível de sua natureza ou,
melhor dito, no plano de sua realidade efetiva. E o mecanismo de
seguridade vai funcionar a partir dessa realidade, ao tratar de
utilizá-la como ponto de apoio e fazê-la atuar, fazer atuar seus
elementos em relação recíproca. (grifos meus)
Ao trazer a longa explicação de Foucault (id.) para essa discussão, não tenho a
intenção de fazer um uso apressado e utilitarista da argumentação do autor, que estava se
referindo claramente à situação econômica da escassez nos séculos XVII e XVIII.
Acontece que, exatamente por se tratar das funções do dispositivo disciplinar (sociedades
disciplinares) e do dispositivo de seguridade (sociedades de gestão governamental), a
lógica explicada por Foucault com respeito ao problema da escassez parece ser a mesma
no caso das práticas educativas, apesar das peculiaridades de cada uma das duas situações.
Se pensarmos, por exemplo, no que Varela (2000) chama de pedagogias
disciplinares e no que Noguera-Ramírez (2008) chama de didática do século XVII,
podemos perceber funcionando o mecanismo disciplinar descrito por Foucault na citação
acima. É esse mesmo mecanismo disciplinar que regulamenta todos os atos dos sujeitos
na escola, sejam eles alunos, professores ou diretores; não deixa escapar nada; prescreve
todos os detalhes; normatiza e controla os alunos a partir de normas externas que os
pioneiros da Escola Nova colocam em suspeição, denunciando-o como tradicional,
ultrapassado. Como resposta a esse tipo de sistema, os discursos das psicologias da criança
– mais sintonizados com a lógica governamental – propõem que o desenvolvimento
humano é natural e espontâneo e se colocam, por meio das teorias que biologizam o
indivíduo, a uma certa distância do que é obrigatório ou proibido. Sob essa perspectiva, o
que vai determinar o que se pode ou não fazer não são exatamente as práticas educativas
entendidas como regulamentação externa, mas sim a evolução progressiva das funções
psicológicas dos sujeitos, evolução não valorada em si mesma como boa ou má, mas
aceita como processos necessários e inevitáveis, processos da natureza no sentido lato. E a
regulação dos comportamentos, por meio do dispositivo de seguridade, irá funcionar
86
apoiando-se nesses processos (Foucault, 2006). São as teorias do desenvolvimento,
entendidas como representativas da realidade, ou seja, daquilo que ocorre dentro mesmo
do sujeito, que irão determinar os tipos de intervenção pedagógica e regular os
comportamentos.
A lei proíbe, a disciplina prescreve e a seguridade, sem proibir
nem prescrever, e ainda que eventualmente se alguns
instrumentos vinculados com a interdição e a prescrição, tem a
função essencial de responder a uma realidade de tal maneira que
a resposta a anule: a anule, a limite, a freie ou a regule. Esta
regulação no elemento da realidade é, creio, o fundamental nos
dispositivos de seguridade. (Foucault, 2006, p.69)
No caso da educação, esse tipo de regulação governamental pode ser percebido nas
teorizações da Psicologia do Desenvolvimento. Mas não se trata aqui de dizer que as
pesquisas psicológicas traduzem, em si, a realidade, seja lá o que isso signifique... Trata-se
de entender que elas criam uma determinada realidade (sobre o desenvolvimento infantil)
da qual falam e sobre a qual agem, naturalizando-a como verdade indiscutível. Isso nos
leva a supor que se a própria infância é uma invenção, os estudos que sobre ela se realizam
inserem-se num conjunto de práticas que definem a episteme de uma época. Como
referido, ao termo Psicologia correspondem certos conjuntos de significados que são
continuamente negociados e que estão – ainda que descontinuadamente – em conexão com
uma série de outros enunciados tidos como verdadeiros por uma determinada sociedade
em um determinado período histórico. As investigações psicológicas sobre as crianças
criam saberes; e o saber de uma época deve ser apresentado no quadro conceitual que lhe é
próprio.
O interessante de ser problematizado aqui se refere exatamente ao objetivo que se
coloca a Psicologia, que é o de explicar os fatos do desenvolvimento: fazendo isso, ela não
explica apenas o que considera fato, mas cria esses próprios fatos; e, com eles, fabrica os
sujeitos dos quais fala: “É a própria Psicologia do Desenvolvimento que produz a forma
particular de desenvolvimento naturalizado das capacidades como seu objeto. As práticas
de produção devem, pois, ser compreendidas como produtivas das próprias posições de
sujeito” (Walkerdine, 1998, p.157). Dessa forma, as crianças descritas, suas atitudes, suas
condutas não são inerentes a uma natureza infantil suscetível de ser decifrada, como quer a
Psicologia, mas foram e são construídas, fabricadas em meio a condições históricas,
87
econômicas, políticas, sociais e culturais, das quais as próprias palavras da Psicologia
fazem parte.
Desde seu início, a Psicologia do Desenvolvimento estipulou como um de seus
objetivos centrais descrever as funções psicológicas das crianças em diferentes idades,
para entender como tais funções mudam com a idade, ou seja, saber quando e como cada
tipo de comportamento vai aparecendo. Com isso, ao longo do tempo, as pesquisas sobre a
criança, realizadas a partir deste referencial, estabeleceram normas de desenvolvimento
para vários comportamentos, como, por exemplo, tabelas de desenvolvimento motor (que
indicam quando uma criança consegue levantar o queixo, sentar-se, engatinhar, andar,
pular num , etc.); tabelas de desenvolvimento da linguagem (pelas quais se sabe de
quantas palavras é composto o vocabulário de uma criança aos 18 meses, aos 24 meses,
etc.). também descrições bastante claras do desenvolvimento cognitivo, sexual, moral,
etc. (Barros, 1995).
Para esta parte da Psicologia, considera-se necessária a descrição das tendências
etárias do desenvolvimento, de como este ocorre, antes de se atingir o outro de seus
objetivos centrais, que é explicar o desenvolvimento, saber por que ele ocorre. Nessa
tentativa, são utilizados métodos de observação e de experimentação comuns a todas as
áreas da Psicologia e, mais especialmente, os métodos longitudinais e transversais, que são
específicos das pesquisas realizadas sob a égide da Psicologia do Desenvolvimento
24
.
Independente dos métodos utilizados, a pesquisa realizada a partir desse
referencial, “admitindo que seu principal objetivo é a explicação dos fatos do
desenvolvimento humano, parte do pressuposto de que estes não são entidades produzidas
socialmente, mas sim decorrências de fatos naturais” (Jobim e Souza, 1997, p.40). E são
esses fatos naturais que irão determinar, no caso das práticas educativas, as formas de
governamento das populações infantis.
Com relação à idéia de que o dispositivo de seguridade trabalha na realidade
mesma criada em virtude e através de toda uma série de análises e disposições
específicas” – Foucault (2006, p.69-70) afirma que
24
Os métodos longitudinais caracterizam-se por observações realizadas sobre um mesmo sujeito ao longo de
sua infância e juventude, tomando-se um período de tempo bastante extenso. Os métodos transversais, que
são os mais usados atualmente, exigem um tempo menor, porque realizam as observações sobre vários
sujeitos de diferentes idades (Barros, 1995).
88
o ponto essencial e no qual estão comprometidos todo o
pensamento e toda a organização das sociedades políticas
modernas [é] a idéia de que a política não deve estender até o
comportamento dos homens o conjunto de regras que são as
impostas por Deus ao homem [sociedade da lei] ou resultam
necessárias pela mera existência de sua índole [sociedade
disciplinar]. A política tem que atuar no elemento de uma
realidade que os fisiocratas chamam precisamente física [...].
Assinalam essa realidade que é o único dado sobre e com o qual a
política deve atuar. Não se situar nunca senão nesse jogo da
realidade consigo mesma: isto é, creio, o que os fisiocratas, os
economistas e o pensamento político do século XVIII davam a
entender quando diziam que, de toda maneira, permanecemos na
ordem da física e que atuar na ordem da política é atuar todavia na
ordem da natureza.
Considerando isso, pode-se dizer que o princípio fundamental das sociedades de
gestão governamental (o princípio do jogo da realidade consigo mesma), é condição para
que – desde Rousseau (2004) e seus postulados: “observai a natureza e segui a rota que ela
vos traça” (p.24); “deixai a natureza agir bastante tempo antes de resolver agir em seu
lugar, temendo contrariar suas operações” (p.119) apareçam e se solidifiquem os
discursos (de Montessori, Decroly, Claparède, Piaget e tantos outros) sobre a natureza da
criança, sobre o desenvolvimento natural dos seres humanos e, na esteira disso, os
discursos que colocam a criança no centro do processo educativo, afirmando que é preciso
deixá-la agir livremente, escolher livremente as atividades que deseja realizar, entendendo
que a liberdade permitida às crianças é capaz de revelar suas qualidades.
E é muito clara a sintonia entre esses discursos e as formas de organização política
e econômica das sociedades de gestão governamental. Ao falar do jogo da realidade
consigo mesma, Foucault (2006, p.70) o relaciona com o jogo do liberalismo: “deixar que
as pessoas façam e as coisas passem, que as coisas transcorram; deixar fazer, passar e
transcorrer significa essencial e fundamentalmente fazer de tal sorte que a realidade se
desenvolva e marche, siga seu curso, de acordo com as leis, os princípios e os mecanismos
que lhe são próprios”. Para Foucault (2006, p.71), a liberdade, entendida como “a
possibilidade de movimento, de deslocamento, processo de circulação das pessoas e das
coisas, [...] não é outra coisa que o correlato da introdução dos dispositivos de
seguridade”.
A idéia de um governo dos homens que pense antes de tudo e
fundamentalmente na natureza das coisas e já não na índole
89
dos seres humanos, a idéia de uma administração das coisas que
considere em primeiro lugar a liberdade dos homens, o que estes
querem fazer, o que estão interessados em fazer, o que pensam
fazer, tudo isso, são elementos correlativos. (grifos meus)
Para Foucault (2006), esse traço geral do dispositivo de seguridade não foi
concebido como uma ideologia, mas como uma tecnologia de poder: “um poder que se
pense como regulação somente capaz de produzir-se através da liberdade de cada um e
com apoio nela” (p.71). Trata-se de uma lógica que a partir do século XVIII, com o
Iluminismo, a revolução industrial, a fisiocracia, a economia política, o transcendental
kantiano, o futuro entendido como progresso, a população entendida em sua naturalidade –
passou a funcionar em diferentes instâncias sociais. Na educação, a premissa de que é
preciso deixar fazer evidencia-se quando os discursos enfatizam uma educação voltada
para os interesses das crianças, posicionando o professor no lugar de quem está ali apenas
para estimulá-los.
Nessa perspectiva, a liberdade e a atividade “natural e
espontânea” da criança funcionam como “reguladores” que, por
sua vez, agem sob a forma de uma economia do ensino, isto é,
como um processo no qual o desdobramento do ensino, do
método e do mestre da didática se desloca, sob critérios de
eficiência e eficácia, para o interesse, entendido como a
disposição mais favorável para a aprendizagem. (Noguera-
Ramírez, 2008, p.32)
Noguera-Ramírez (2008) sugere que a mudança no entendimento da noção de
interesse operada inicialmente pelos trabalhos de Dewey, Stanly Hall, Decroly,
Montessori e Claparède foi central na virada do ensino para a aprendizagem. Segundo o
autor, antes das psicologias da criança, o interesse especialmente nas formulações de
Herbart – é entendido como algo plural, múltiplo. Portanto, não se tratava “de interesse em
termos subjetivos: o interesse múltiplo não é característico de um indivíduo, é uma
característica própria do espírito humano em geral” (Noguera-Ramírez, 2008, p.31).
A aparição das psicologias da criança e da aprendizagem no final
do século XIX consolidou o “interesse” como peça chave da nova
“pedagogia científica” [...] O interesse biologiza-se e, assim,
converte-se em algo “natural” e “espontâneo”, próprio do sujeito
infantil. [...] A proposta herbartiana e as reflexões sobre o papel
moral e ético da pedagogia serão consideradas “tradicionais” e
abandonadas na perspectiva da observação e experimentação
“científica”. Aprender não será mais o resultado do ensino, sua
90
conseqüência óbvia: aprender é, segundo essas perspectivas, a
conseqüência da livre e espontânea atividade da criança. (id.)
O professor não ensina, apenas facilita: eis a máxima que, desde Rousseau e
especialmente com o Movimento da Escola Nova tem predominado nos discursos
educacionais, orientando as práticas escolares tanto no dia-a-dia das escolas quanto nos
cursos de formação de professores. É a partir disso que se pode situar o enfoque prioritário
nos processos de ensino-aprendizagem, na auto-aprendizagem da criança, na sua formação
(que é diferente de instrução) carregada por um componente ético-moral muito forte,
constituindo a aprendizagem como a veia educacional dos novos tipos de regulação
governamental que estrearam no início do século XIX e que, desde então, foram dispondo
as condições de possibilidade para a emergência da Psicopedagogia.
91
TERCEIRA PARTE
A EMERGÊNCIA DA PSICOPEDAGOGIA NO BRASIL
92
CAPÍTULO IV
O MOVIMENTO DA ESCOLA NOVA NO BRASIL
Como anunciado no título, esta terceira parte, que inicia neste Capítulo IV, trata
das condições de possibilidade da Psicopedagogia, especialmente no Brasil. O fato de eu
ter organizado a Tese de forma a problematizar somente aqui, nesta terceira parte, a
emergência da Psicopedagogia no caso brasileiro não significa que a pesquisa tenha se
desenvolvido de forma linear: primeiro discutindo este campo de conhecimento de modo
geral e somente depois tratando dele no Brasil. Ao contrário, o que motivou a pesquisa,
desde o início, foram exatamente as práticas e os discursos psicopedagógicos brasileiros.
E foi por aí que passei a cercar o tema da investigação.
Acontece que, sem eu saber de antemão aonde o estudo chegaria, a própria
pesquisa foi rumando por caminhos que me levaram a quatro focos de análise, entendidos
como portas de entrada para a análise das condições mais amplas de emergência da
Psicopedagogia enquanto campo específico do conhecimento. Tais portas de entrada, que
compuseram o Capítulo III, foram assim definidas por mim: 1) Estudos da criança,
invenção da infância e elo entre Psicologia e Pedagogia; 2) Produção dos escolares
anormais; 3) Dos anormais aos normais: a criança como centro da ação educativa; e 4)
Psicologia do Desenvolvimento como regulação governamental.
Como ficou evidente na segunda parte da Tese, todas as questões discutidas
especialmente no Capítulo III transcenderam o caso brasileiro. Agora, então, analisadas o
que chamei de quatro portas de entrada para a emergência do campo da Psicopedagogia,
passo, nesta terceira parte do estudo, a apresentar e discutir algumas condições para a
consolidação do entorno psicopedagógico brasileiro.
93
Inspirada nas análises que eu tinha realizado sobre as relações entre o discurso
escolanovista e a emergência da Psicopedagogia análises apresentadas na segunda parte
da Tese, referentes às teorizações de Alfred Binet, Theodore Simon, Maria Montessori,
Ovide Decroly, Edouard Claparède e Jean Piaget – selecionei como duas importantes
portas de entrada da Psicopedagogia no Brasil a Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico
de Minas Gerais e o Instituto de Educação do Rio de Janeiro, na medida em que tais
instituições deram visibilidade e colocaram em funcionamento as principais idéias dos
referidos estudiosos, ao mesmo tempo em que foram responsáveis, no Brasil, pela
produção de uma série de outras idéias e práticas sobre o par Psicologia-Pedagogia,
claramente embasadas no pensamento escolanovista europeu e americano.
Por serem duas instituições criadas em lugares diferentes, em anos diferentes e por
pessoas diferentes, meu primeiro movimento foi perceber que havia uma série de
descontinuidades nos trabalhos da Escola de Aperfeiçoamento e do Instituto de Educação.
Nesse sentido, passei, no decorrer desta pesquisa de Doutorado, a desenvolver estudos que
me levassem a mostrar os modos pelos quais essas duas instituições, de formas distintas,
dispuseram as possibilidades iniciais para os discursos e as práticas psicopedagógicas
brasileiras. No entanto, a própria pesquisa foi me mostrando, no seu desenrolar, uma
continuidade fundamental na Escola de Aperfeiçoamento e no Instituto de Educação:
ambos, de maneiras diferentes, estiveram envolvidos com a disseminação e recriação, no
Brasil, dos princípios do Movimento da Escola Nova.
Dessa forma, abriu-se, para a minha investigação, a grande porta de entrada da
Psicopedagogia no Brasil, qual seja: a introdução das idéias escolanovistas no país,
traduzidas especialmente pela aplicação dos conhecimentos científicos da Psicologia na
construção de um sistema escolar que se pretendia moderno e eficiente.
Diante de tal continuidade, foi preciso reorganizar a escrita do texto da Tese: antes
das análises que intentam mostrar como a Escola de Aperfeiçoamento e o Instituto de
Educação, cada um a seu modo, assentaram o terreno prático-discursivo para a
Psicopedagogia, optei por discutir algumas questões que compõem o contexto mais amplo
no qual se movimentaram as referidas instituições. Assim, passo, neste Capítulo, a tecer
considerações sobre a chegada dos princípios escolanovistas no país, especialmente nos
períodos que, na História do Brasil, ficaram conhecidos como Primeira e Segunda
República.
94
O Movimento da Escola Nova se tornou conhecido no Brasil após a Primeira
Guerra Mundial, especialmente a partir da cada de 1920, caracterizada por um conjunto
de reformas educacionais.
No que se refere a esse conjunto, para além das reformas de ensino de abrangência
nacional, é preciso referir as reformas que aconteceram no período entre 1920 e 1930, em
vários estados brasileiros São Paulo, Ceará, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro,
Pernambuco impulsionadas por pensadores e educadores motivados pela disseminação
de novos métodos educativos inspirados na Psicologia (métodos criados e praticados nos
principais países da Europa e da América)
25
. De acordo com Nagle (1990), é por iniciativa
principalmente dos estados, e não tanto da União, que a reorganização da escola brasileira
começa a ser pensada e efetivada, no que se refere à administração escolar; à ampliação da
rede e da clientela; às pesquisas sobre o perfil dos estudantes; e ao uso de instrumentos de
planejamento, como, por exemplo, os recenseamentos escolares.
Como um dos importantes acontecimentos diretamente relacionados à
disseminação das idéias escolanovistas no Brasil, destaca-se a criação da Associação
Brasileira de Educação, fundada em 1924 por um grupo de engenheiros e médicos,
composto em seguida também por educadores brasileiros (pre)ocupados com as reformas
de ensino em diferentes estados do país
26
.
25
Dentre as reformas educacionais de abrangência estadual, destacam-se: Reforma Sampaio Dória, realizada
em São Paulo, em 1920; Reforma Lourenço Filho, no Ceará, em 1923; Reforma Anísio Teixeira, na Bahia,
em 1925; Reforma Francisco Campos e Mário Casassanta, em Minas Gerais, em 1927; Reforma Fernando
de Azevedo, no Distrito Federal (atual Rio de Janeiro), em 1928; Reforma Carneiro Leão, em Pernambuco,
em 1928. Além disso, embora não tenham se constituído sob o nome de Reformas, é preciso destacar a
atuação de José Augusto Bezerra de Menezes que, no período entre 1925 e 1928, levou o movimento de
renovação educacional ao Estado do Rio Grande do Norte, e também a atuação de Lisímaco Costa que, em
1927, deu continuidade ao movimento no Estado do Paraná (Lemme, 1984; Niskier, 1993). Para uma síntese
das principais reformas educacionais de abrangência nacional, desde a proclamação da república brasileira
até o período do Estado Novo, ver anexo 1.
26
Entre os fundadores da Associação Brasileira de Educação, destacaram-se, primeiro, sob a liderança de
Heitor Lira da Silva, os engenheiros Fernando Laboriau, Dulcídio Pereira, Amoroso Costa, Isabel Lacombe,
Alice Carvalho de Mendonça, Paulo Carneiro, Venâncio Filho, Edgard Süssekind de Mendoça, Everardo
Backeuser, Álvaro Alberto, Menezes de Oliveira, o médico Amaury de Medeiros e o advogado José
Augusto. À expressiva maioria de engenheiros, uniram-se os médicos Fernando de Magalhães, Roquette
Pinto, Artur Moses, Gustavo Lessa, Carlos Sá e Miguel Couto.
Após a predominância de engenheiros e médicos que levantaram a bandeira da educação como direito de
todos os brasileiros foram se chegando à Associação professores de todos os graus e níveis de ensino, tais
como: Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Consuelo Pinheiro, Paschoal Lemme, Juracy
Silveira, Franklin Botelho de Magalhães, Basílio de Magalhães, entre muitos outros (informações obtidas no
site da Associação Brasileira de Educação:
http://www.abe1924.org.br). Apesar de extensas, considero que
tais informações são importantes especialmente para que fiquem aqui registradas as participações pioneiras
de outros profissionais que não os professores na criação de um órgão especificamente educacional.
95
Dentre seus principais propósitos, estava a promoção de debates acerca das
questões educacionais que rodeavam as reformas de ensino. De acordo com Lemme
(1984, p.169), a Associação Brasileira de Educação “assumiu a liderança de todos esses
movimentos de renovação da educação e do ensino no país, apoiando-os e promovendo a
realização de palestras, debates, cursos e conferências, convocando para isso autoridades e
especialistas, nacionais e estrangeiros”. Os eventos mais conhecidos da Associação eram
as Conferências Nacionais de Educação, sendo a primeira realizada em Curitiba, no ano de
1927, cujas discussões e propostas tiveram ampla repercussão entre os professores de todo
país, influenciando, inclusive, a criação de decretos e leis educacionais posteriores.
Das atividades de trabalho promovidas pela Associação, destaca-se a IV
Conferência Nacional de Educação, realizada no Rio de Janeiro, em 1931, cujo tema era
As grandes diretrizes da educação popular. Da discussão acerca dos problemas de
educação, ensino e cultura no Brasil, realizada naquela Conferência, resultaram duas
principais iniciativas.
Uma delas foi a assinatura do Convênio Estatístico entre o Governo Federal e os
estados, a fim de “adotar normas de padronização e aperfeiçoamento, das estatísticas de
ensino, em todo país, até então reconhecidamente muito precárias, o que dificultava a
elaboração de estudos e pesquisas” (Lemme, 1984, p.171). Pode-se dizer que tal Convênio
Estatístico serviu como mola propulsora para que, posteriormente, a Associação
incentivasse a criação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), fundado em
1938, sob a direção de Lourenço Filho. Alguns anos depois, também por intermédio da
Associação, foi criada a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, principal órgão de
divulgação do INEP, cujo primeiro número foi publicado em 1944.
A outra iniciativa que resultou da IV Conferência iniciativa para a qual quero
chamar a atenção consistiu na elaboração de um documento que traçava as diretrizes
para uma política nacional de educação e de ensino, abrangendo todos os seus aspectos,
modalidades e níveis. A elaboração do documento havia sido solicitada pessoalmente por
Getúlio Vargas a Francisco Campos (então Ministro da Educação e Saúde Pública).
“Apesar das divergências políticas internas da ABE e dos conseqüentes conflitos
provocados por tal pedido, um grupo se articulou dentro da Associação e, após dois meses,
o documento foi lançado” (Mate, 2000). Tal documento ficou conhecido como Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova.
96
Foi num contexto de intensa discussão acerca, principalmente, dos altos índices de
analfabetismo no Brasil que aconteceu essa série de reformas de ensino, possibilitando
várias ações e a adoção de diversas medidas no campo da Educação.
Para os propósitos desta Tese, selecionei alguns acontecimentos envolvidos com as
relações entre a disseminação dos preceitos escolanovistas e a criação da Escola de
Aperfeiçoamento de Belo Horizonte e do Instituto de Educação do Rio de Janeiro.
Primeiro, destaco: a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, a
publicação do livro Introdução ao Estudo da Escola Nova, e a publicação do texto Por
que “Escola Nova?”. Em seguida, destaco: a criação do Ministério da Educação e Saúde
Pública, a reorganização do Ensino Secundário e da Educação Superior, a instituição de
um estatuto para as universidades brasileiras, e a criação do Conselho Nacional e dos
Conselhos Estaduais de Educação
27
.
Neste Capítulo, farei comentários apenas sobre os três primeiros acontecimentos
que destaquei, que os seguintes podem ser entendidos como parte da materialização
dessas produções iniciais.
Selecionei esses três acontecimentos (as três publicações) dentre tantos outros;
mas, como se poderá perceber ao longo do Capítulo V, não me ative apenas a eles de
modo estrito, o que significa que uma série de outras possibilidades de análise do
Movimento da Escola Nova no Brasil, diante também da profusão de textos escolanovistas
que passaram a circular especialmente nas décadas de 1920 e 1930. Portanto, o critério
geral que orientou a seleção que fiz foi a relação de proximidade que se pode estabelecer
entre essas três publicações Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, Introdução ao
Estudo da Escola Nova, Por que “Escola Nova?” e o que chamei de duas importantes
portas de entrada para a Psicopedagogia no Brasil: a Escola de Aperfeiçoamento
Pedagógico de Belo Horizonte e o Instituto de Educação do Rio de Janeiro.
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova foi lançado à sociedade brasileira
em 1932, com divulgação dos principais órgãos da imprensa do país e da Revista
27
Esse segundo grupo de acontecimentos que destaquei teve seu início com a Revolução de 1930 e a atuação
de Getúlio Vargas como presidente provisório, que nomeou Francisco Campos como o primeiro ministro do
recém criado Ministério da Educação e Saúde Pública.
97
Brasileira de Estudos Pedagógicos e com ampla circulação em âmbito nacional (Niskier,
1993). Sob a redação de Fernando de Azevedo e com o título A Reconstrução Educacional
no Brasil ao Povo e ao Governo, o documento foi assinado por vinte e seis intelectuais
que tomaram posição de vanguarda da campanha de renovação educacional no país, quase
todos filiados à Associação Brasileira de Educação
28
.
A primeira frase do documento já expressa o “tom” geral do Manifesto: “Na
hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da
educação” (Azevedo et alii, 1932)
29
. Desenvolvendo tal idéia, o texto está organizado em
doze subtítulos, que abordam, de forma geral: 1) as finalidades da educação; 2) o papel do
Estado diante da educação, enfatizando a importância e necessidade das relações entre
família e escola, da escola para todos, e do ensino público, laico, gratuito e obrigatório
entendendo a educação como direito do indivíduo e dever do Estado; 3) as funções
educacionais, destacando-se, por um lado, a unidade dessas funções em todos os níveis
escolares e, por outro lado, a descentralização da educação, considerando as condições
geográficas do país e a adaptação da escola às exigências regionais, e destacando-se,
também, a autonomia do sistema escolar por meio de um fundo especial constituído de
patrimônios, impostos e rendas próprias e aplicado exclusivamente no desenvolvimento da
obra educacional; 4) o processo educativo, apresentando o conceito de educação nova e
seus fundamentos; 5) o plano de reconstrução educacional, sugerindo as linhas gerais e a
estrutura do plano, e discutindo o problema universitário no Brasil, com destaque para a
organização de Universidades, oficialmente criadas apenas um ano na época da
publicação do Manifesto; e, por fim, 6) a formação de professores, sugerindo que seja feita
preferencialmente em nível universitário.
De forma mais ampla, o texto é organizado de modo a conduzir o leitor a três
idéias, claramente expressas nessa ordem: primeiro, ao falar das finalidades da educação,
trata de questões da Biologia; depois, ao falar das bases da educação nova, trata de
questões da Psicologia; por fim, ao falar do papel da escola, trata de questões da
28
A autoria do documento, por seus vinte e seis signatários, é de: Fernando de Azevedo (redator), Afrânio
Peixoto, Sampaio Dória, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Frota Pessôa, Julio de Mesquita
Filho, Raul Briquet, Mario Casassanta, Carlos Delgado de Carvalho, Antonio Ferreira de Almeida Jr.,
Fontenelle, Roldão Lopes de Barros, Noemy da Silveira, Hermes Lima, Attilio Vivacqua, Francisco
Venâncio Filho, Paulo Maranhão, Cecília Meirelles, Edgar Sussekind de Mendonça, Armanda Álvaro
Alberto, Garcia de Rezende, Nóbrega da Cunha, Paschoal Lemme e Raul Gomes.
29
Todos os trechos retirados literalmente do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova serão aqui
referenciados sob a autoria de Azevedo et.alii (1932).
98
Sociologia. De tudo o que é apresentado, discutido e sugerido no documento, passo, a
seguir, a considerar alguns pontos.
Enfatizando a fragmentação das sucessivas reformas de ensino desde o início do
regime republicano brasileiro, a reivindicação central do Manifesto gira em torno da
necessidade de atribuir e efetivar um caráter científico à educação no Brasil. A
desorganização do aparelho escolar e a desarticulação das iniciativas de mudança foram
explicadas pela ausência “da determinação dos fins de educação (aspecto filosófico e
social) e da aplicação (aspecto técnico) dos métodos científicos aos problemas
educacionais” (Azevedo et alii, 1932). De acordo com o documento, essa ausência
impedia a unidade e a continuidade de pensamento nos planos das reformas.
Nesse sentido, o que os signatários do documento propõem é que se definam as
bases capazes de darem uma direção comum à ação educativa, seja no que se refere às
propostas políticas ao campo da Educação, seja no que se refere às práticas pedagógicas
realizadas nas escolas. Isso levaria governantes e educadores à possibilidade de recorrerem
“a técnicas mais ou menos elaboradas e dominarem a situação, realizando experiências e
medindo os resultados de toda e qualquer modificação nos processos e nas técnicas, que se
desenvolveram sob o impulso dos trabalhos científicos na administração dos serviços
escolares” (id.). Referindo-se ao movimento renovador educativo de alguns países
México, Uruguai, Argentina e Chile o texto questiona por que os métodos brasileiros de
educação teriam de continuar tão prodigiosamente rotineiros, se, desde aquele movimento,
se despertava a consciência de que, para dominar a obra
educacional, em toda a sua extensão, é preciso possuir, em alto
grau, o hábito de se prender, sobre bases sólidas e largas, a um
conjunto de idéias abstratas e de princípios gerais, com que
possamos armar um ângulo de observação, para vermos mais
claro e mais longe e desvendarmos, através da complexidade
tremenda dos problemas sociais, horizontes mais vastos.
(Azevedo et alii, 1932)
Desse conjunto de idéias e princípios a que se refere o documento, as convicções
biológicas e psicológicas são as mais enfatizadas como necessárias.
Por um lado, o Manifesto afirma que a educação deve ter fins gerais que assinalam
a natureza em suas funções biológicas porque, para a renovação educacional, é preciso
oferecer as mesmas oportunidades de educação a todos os grupos sociais, independente de
classe, sexo ou raça; ou seja, é preciso reconhecer “a todo o indivíduo o direito a ser
99
educado até onde permitam as suas aptidões naturais, independente de razões de ordem
econômica e social”. Mais adiante, reafirma: “Nenhum outro princípio poderia oferecer ao
panorama das instituições escolares perspectivas mais largas, mais salutares e mais
fecundas em conseqüências do que esse que decorre logicamente da finalidade biológica
da educação (id.)”. Nesse sentido, a educação deixaria de constituir um privilégio e
passaria a constituir uma necessidade, assumindo um caráter biológico.
Com relação à idéia de aptidão natural nos indivíduos, o documento acaba por
substituir uma seleção baseada na hierarquia social (de privilégios) por uma seleção
natural baseada na hierarquia das capacidades. Todo cidadão deveria ter, de acordo com o
documento, o direito à educação: o que iria fazer a diferença entre eles eram suas aptidões
naturais.
Por outro lado, esclarecidos os fins educacionais, o Manifesto afirma que a
educação deve estar baseada numa doutrina científica capaz de fundamentar os processos
educativos por meio dos quais esses fins serão alcançados. Com relação a isso, o
documento é bastante claro:
A nova doutrina, que não considera a função educacional como
uma função de superposição ou de acréscimo, segundo a qual o
educando é “modelado exteriormente” (escola tradicional), mas
uma função complexa de ações e reações em que o espírito cresce
de “dentro para fora”, substitui o mecanismo pela vida (atividade
funcional) e transfere para a criança e para o respeito de sua
personalidade o eixo da escola e o centro de gravidade do
problema da educação. (id.)
Uma das características centrais dessa doutrina científica é que ela considera os
processos mentais como funções vitais e não como processos em si mesmos. Nesse
sentido, o que marca as diferenças entre escola tradicional e escola nova é a
predominância, em todos os trabalhos escolares, “do fator psicobiológico do interesse, que
é a primeira condição de uma atividade espontânea e o estímulo constante ao educando
(criança, adolescente ou jovem) a buscar todos os recursos ao seu alcance” (Azevedo et
alii, 1932). E essa doutrina, constituída por uma série fecunda de pesquisas e experiências
que traça os princípios da educação nova, é de acordo com o documento formulada
pela ciência da Psicologia, cujos estudos contribuem para o ajustamento entre os fins da
educação e os processos colocados em operação para que tais fins sejam atingidos.
100
É certo que, deslocando-se por esta forma, para a criança e para os
seus interesses, móveis e transitórios, a fonte de inspiração das
atividades escolares, quebra-se a ordem que apresentavam os
programas tradicionais, do ponto de vista da lógica formal dos
adultos, para os pôr de acordo com a “lógica psicológica”, isto é,
com a lógica que se baseia na natureza e no funcionamento do
espírito infantil. (id.)
Considerando os trechos citados, fica claro que o elo entre as questões biológicas e
as questões psicológicas discutidas no documento é o caráter natural atribuído ao
indivíduo. Se o fator biológico das aptidões naturais é apontado como princípio geral para
que os fins educacionais fossem estabelecidos, ou seja, se a educação deve se basear na
seleção dos alunos pelas suas aptidões naturais, e se todas as escolas devem garantir o
desenvolvimento pleno dessas aptidões, então, a determinação de uma normalidade das
aptidões será realizada pelos estudos psicológicos, encarregados de estabelecer as medidas
dessa seleção entendida como natural e, assim, garantir a cientificidade da educação,
tão aclamada nos discursos de renovação educacional. O princípio do direito biológico de
cada indivíduo à sua educação não se sustentaria sem todo um conjunto prático-discursivo
(da Psicologia) capaz de fazer conhecer esse sujeito natural da aprendizagem e prever suas
reações. Sobre isso, vale referir que, de acordo com Mate (2000), “as revistas de educação
publicadas em São Paulo [revista Educação, revista Escola Nova] traziam várias sugestões
de testes para seleção de classes com esse objetivo [de seleção dos alunos por meio das
aptidões naturais]”.
Como se vê, a discussão do Manifesto tinha ressonância nas reformulações
pedagógicas vigentes, que se assentavam em conceitos de progresso e desenvolvimento,
por meio de um movimento de renovação escolar, identificado, a partir de estudiosos
europeus e norte-americanos, como “Escola Nova” ou “Escola Ativa”. Tal movimento
“baseava-se nos progressos mais recentes da Psicologia infantil, que reivindicava uma
maior liberdade para a criança, o respeito às características da personalidade de cada uma,
nas várias fases de seu desenvolvimento, colocando o ‘interesse’ como o principal motor
de aprendizagem” (Lemme, 1984, p.167).
E aqui se podem perceber as relações entre o que é proposto no Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova e as idéias defendidas por Montessori, Decroly, Claparède,
entre outros representantes do Movimento da Escola Nova, discutido na segunda parte da
Tese. Se, como desenvolvi antes, tal Movimento pode ser entendido como um dos
101
principais responsáveis por colocar em funcionamento, no campo da Educação, o
dispositivo de seguridade ou seja, se tal Movimento está associado ao que se pode
chamar de governamentalização da escola então, no Brasil, esse processo passou a ser
operado também pela circulação de discursos e práticas acerca da renovação educacional
que tinham por base a atribuição de um caráter científico à educação, fundamentando-a na
Biologia e na Psicologia, cujos preceitos propunham deslocar a ênfase educacional de uma
disciplina exterior (característica do dispositivo disciplinar) para uma disciplina interior ou
governamento do ser por si (característico do dispositivo de seguridade).
Como bem observou Mate (2000), referindo-se ao Manifesto de 1932:
A escola tradicional baseada na disciplina exterior deveria ser
substituída pela escola nova, pedagogia pela qual a aquisição da
disciplina interior (autodisciplina) seria obtida pela organização
do ambiente pedagógico de modo a estimular o desenvolvimento
das aptidões. Para isso, os espaços escolares deveriam ser
racionalmente organizados de modo a alcançar o máximo de
eficiência nos seus resultados: autodisciplina, autocontrole,
desenvolvimento das aptidões direcionadas às novas necessidades
do mundo moderno. (grifos da autora)
Nesse sentido, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova constituiu-se não
apenas como um importante instrumento de circulação dos preceitos escolanovistas, mas
também, por meio disso, como uma prática através da qual a instituição escolar brasileira
pôde ir sendo governamentalizada – o que se configura como condição fundamental para a
emergência da Psicopedagogia no Brasil. E essa dupla importância do Manifesto foi
potencializada pelos esforços da Associação Brasileira de Educação que seguiu
debatendo amplamente o tema da Escola Nova e também por uma série de artigos e
livros que vinham sendo publicados em torno do assunto. Entre eles, destaca-se
Introdução ao Estudo da Escola Nova.
O livro Introdução ao Estudo da Escola Nova
O livro Introdução ao Estudo da Escola Nova foi escrito por Lourenço Filho,
conhecido como um dos pioneiros de maior expressão, no Brasil, do Movimento da Escola
Nova. Sua primeira edição começou a circular no ano de 1930 e foi considerada por
Lemme (1984, p.169) como “um verdadeiro marco na divulgação de todas as correntes
102
renovadoras da educação que nos chegavam da Europa e dos Estados Unidos e também
sobre as realizações brasileiras na matéria”. Para Lopes (2006, p.12), Introdução ao
Estudo da Escola Nova “tornou-se a cartilha do movimento, leitura obrigatória nos cursos
normais e pedagógicos do país, embora fosse muitas vezes criticado por sua visão técnica
e reducionista sobre o movimento”.
30
Atualmente, Introdução ao Estudo da Escola Nova é considerado um clássico na
literatura em Psicologia e Educação no Brasil. Segundo Campos, Assis e Lourenço (2002,
p.17-18), desde a primeira publicação, o livro “tornou-se a mais importante fonte de
divulgação das bases científicas e filosóficas da perspectiva escolanovista em ngua
portuguesa [...] e influenciou intensamente a organização dos estudos de educadores
brasileiros em pedagogia e em psicologia ao longo do século XX”.
Na terceira edição, publicada em 1933, Claparède assim se refere à obra: “Este
formoso livro expõe, de maneira admiravelmente clara, os princípios da ‘escola activa’, e
uma visão de conjuncto do estado actual do assumpto, que o torna precioso para todos
os educadores e estudiosos de pedagogia” (Claparède apud Campos, Assis e Lourenço,
2002, p.22).
Em 2002, a Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro publicou a
décima quarta edição do livro. Comentando a primeira publicação, os editores da décima
quarta referindo-se ao que Claparède chamou de “revolução copernicana em educação”
– enfatizam que a obra de Lourenço Filho, a partir de 1930:
viria a constituir uma espécie de “Bíblia” para os educadores
brasileiros. A proposta da Escola Nova era extremamente
revolucionária, quase que, em Educação, equivalente à
reformulação do Sistema Solar de Copérnico e Galileu: o aluno
passa a ser o centro do processo educativo, protagonista do
30
No contexto dessa publicação de Lourenço Filho, podem ser referidas outras obras cuja preocupação
central era o caráter científico da Pedagogia e que compuseram o movimento de renovação educacional no
Brasil. Assim, destacam-se os livros: Educação (1909), O Brasil e a Educação (1917) Pela Educação
Profissional (1917), Pela Educação (1919), Os deveres das novas gerações brasileiras (1923), todos esses
escritos pelo pernambucano Antonio Carneiro Leão; A Escola Nova (1932), escrito pelo carioca Jonathas
Serrano; Técnica da Pedagogia Moderna (1934), escrito pelo carioca Everardo Backheuser. De todos esses,
entre vários outros, o maior destaque é dado ao livro Novos caminhos e novos fins, a nova política de
educação no Brasil (1932), escrito pelo mineiro Fernando de Azevedo. Trata-se de uma obra que reuniu os
trabalhos publicados pelo autor durante a elaboração da reforma de ensino que ele efetivou no Rio de
Janeiro, em 1928, considerada por Lemme (1984, p.168) como a mais importante das reformas educacionais
que ocorriam no país: “dela resultou a elaboração de um verdadeiro código moderno de educação [...]. A
Reforma incentivou também o aparecimento de toda uma literatura especializada de autores brasileiros e
estrangeiros, dos mais conceituados”, entre os quais estava Lourenço Filho.
103
processo ensino-aprendizagem, construtor do próprio
conhecimento. (Jacó-Vilela et.al., 2002, p.11)
O livro Introdução ao Estudo da Escola Nova é organizado em três partes
31
.
Na primeira parte do livro, intitulada As Bases, Lourenço Filho (2002) discute as
bases históricas e técnicas da Escola Nova, destacando, entre essas últimas, as
contribuições da Biologia (com ênfase na pedologia), da Psicologia (com ênfase nas
possibilidades da Psicologia à renovação escolar, por meio da discussão dos conceitos de
motivação, aprendizagem e personalidade) e dos Estudos Sociais (com ênfase na
morfologia e na dinâmica social).
Na segunda parte do livro, intitulada Os Sistemas, Lourenço Filho (2002) trata do
que ele chama de sistemas didáticos. Primeiro, apresenta a importância do estudo dos
sistemas, advertindo que a confrontação entre eles servirá aos educadores apenas na
medida em que não sejam entendidos como doutrinas a serem meramente repetidas; nesse
sentido, o autor solicita que a análise que propõe sobre os sistemas seja compreendida
como uma possibilidade de os educadores repensarem suas idéias e os procedimentos que
empregam no seu trabalho pedagógico, desenvolvendo “espírito de autocrítica”. Em
seguida, Lourenço Filho apresenta e discute diferentes sistemas, afirmando que todos
foram formulados por pensadores influenciados pelas idéias de Rousseau. Iniciando a
apresentação e discussão dos sistemas, refere-se brevemente a Basedow, Pestalozzi e
Froebel; continuando, refere-se, agora com mais detalhes, a Herbart (instrução educativa).
Na seqüência, um Capítulo todo é dedicado a Montessori (princípios de liberdade,
atividade e individualidade) e a Decroly (Centros de Interesse). Finalizando a segunda
parte do livro, estão mais dois Capítulos: um que trata do Sistema de Projetos e outro que
trata do Sistema de Unidades de Trabalho, ambos destacando idéias de vários pensadores,
mas principalmente de Dewey, Kilpatrick e Morisson.
31
Pode-se dizer que há duas versões de Introdução ao Estudo da Escola Nova: uma versão que foi
apresentada da primeira à sexta edição, no decorrer das quais Lourenço Filho acrescentou vários
comentários, mas apenas em notas de rodapé; e outra versão que vai da sétima à atual décima quarta edição.
Isso porque, na ocasião da sétima edição, em 1961, o autor ampliou algumas discussões, no corpo do próprio
texto: “o tema da necessidade de renovação escolar ganhou nova elaboração, mais filosófica, com base na
experiência adquirida pelo autor” (Campos, Assis e Lourenço, 2002, p.21). A edição da qual trato nesta Tese
é a décima quarta, que não sofreu alterações desde a sétima; portanto, analiso, aqui, uma versão mais
ampliada do que aquela publicada em 1930. Em todo caso, pelo menos as discussões dessa versão que
selecionei para analisar aqui não são muito diferentes das apresentadas na primeira versão; nesse sentido,
apesar de eu citar a segunda versão, permanece a idéia de que o livro constitui-se também como integrando a
principal porta de entrada da Psicopedagogia no Brasil: a introdução dos preceitos escolanovistas no país.
104
Na terceira parte do livro, intitulada A Problemática, Lourenço Filho (2002)
discute o que ele chama de as grandes correntes do pensamento filosófico (idealismo,
realismo, pragmatismo e instrumentalismo, personalismo, humanismo, supernaturalismo),
com ênfase nas relações entre a Filosofia e a Pedagogia.
Com relação à primeira parte do livro, chamo a atenção para as considerações do
autor sobre as contribuições da Psicologia, feitas no Capítulo IV, intitulado A psicologia e
seus grandes constructos atuais.
32
O Capítulo é organizado em quatro itens: 1) a
motivação; 2) a aprendizagem; 3) as teorias de aprendizagem; 4) a personalidade. A
discussão que se desenvolve ali acaba por introduzir no Brasil novas possibilidades de se
pensar as práticas pedagógicas, a partir de novos modos de se entender os escolares e o
que com eles acontece não tanto quando o professor ensina, mas principalmente quando
os alunos aprendem. Vejamos algumas questões centrais
33
.
Referindo-se à motivação, no primeiro item do Capítulo IV, Lourenço Filho (2002)
afirma que ela está mais conectada à responsabilidade moral do que a reguladores
externos. Para desenvolver essa idéia, o autor explica, na p.143, alguns conceitos. A
necessidade é por ele entendida como “estado de tensão que se revela pela impulsão, é
interna ou intrínseca ao organismo”. Nesse sentido, a motivação, entendida como “aquilo
que faz mover”, está conectada à necessidade. “O incentivo, ao contrário, é externo”.
Apesar de tais definições, o autor salienta que o incentivo pode ter também um caráter
motivador. E é que se situam os conceitos de interesse e atenção. O interesse é
entendido como a relação de conveniência que se estabelece entre o incentivo externo que
32
É preciso dizer que as contribuições da Biologia e da Sociologia são também bastante desenvolvidas pelo
autor na primeira parte do livro. Ou seja, Lourenço Filho (2002) reconhece a importância de outros fatores,
que não somente os psicológicos, para a compreensão do processo educativo. Portanto, o fato de eu destacar,
aqui, apenas as discussões do livro que se referem à Psicologia considerando os propósitos desta Tese
não significa que o autor atribua menor relevância aos estudos biológicos e sociais, embora as análises
empreendidas por ele a partir da Biologia e da Sociologia também sejam, ao meu ver, um tanto
psicologizadas, na medida em que a perspectiva funcional da educação é uma marca das reflexões de
Lourenço Filho. Isso fica claro quando o autor, ao discutir as contribuições da Biologia, seleciona algumas
categorias crescimento, maturação, adaptação, contingente hereditário e condicionamento endócrino
entendendo-as como incluídas num mais largo e complexo conceito: o do desenvolvimento. Ou então,
quando o autor, ao discutir as contribuições dos Estudos Sociais, vale-se de fundamentos da Psicologia,
especialmente da Psicologia Social, para explicar como, por suas condições, se passam as coisas sociais,
com ênfase na interação entre os indivíduos, em diferentes instituições, em especial nas educativas. Para
maiores detalhes sobre a análise feita pelo autor acerca das contribuições da Biologia e da Sociologia à
educação, ver Lourenço Filho (2002).
33
Mais uma vez, é preciso esclarecer: das discussões que Lourenço Filho (2002) faz sobre motivação,
aprendizagem e personalidade, selecionei somente as questões que mais interessam às análises que aqui
desenvolvo. Isso significa que as idéias apresentadas pelo autor são bem mais desenvolvidas e
pormenorizadas, entre as quais refiro aqui apenas algumas.
105
uma criança recebe e sua impulsão original revelada por uma necessidade ou motivação.
Por fim, ligada a tudo isso, a atenção é entendida como “a forma geral de adaptação do
comportamento”:
A criança tende para os sinais de antecipação daquelas coisas ou
situações que lhe satisfaçam necessidades, alivie ou extinga
tensões produzidas por um motivo original. Aliás, a palavra
interesse, pela sua origem (inter, esse, estar entre, estar de
permeio), elucida a relação que em cada caso se vem a criar. Nada
é interessante por si só. Para que o seja, será preciso que um
motivo exista e, assim também que, pela experiência anterior, se
tenha criado uma relação de conveniência entre ele e o incentivo.
(Lourenço Filho, 2002, p.143, grifos do autor)
Para exemplificar, o autor (id.) continua:
Coisas, pessoas ou situações, ligadas à obtenção do alimento, são
incentivos poderosos quando se tem fome; serão neutros, ou
mesmo aborrecidos, quando se esteja saciado. Um brinquedo, por
mais atraente que nos pareça, será interessante para esta criança
tal seja a situação do momento e sua experiência anterior, não
necessariamente para todas as crianças, ou para uma mesma
criança a qualquer momento.
Segundo Lourenço Filho (2002), tais entendimentos são necessários aos
professores para que estes melhor compreendam um dos princípios gerais escolanovistas,
o de que se deve agir de acordo com os interesses próprios a cada idade: admite-se que
haja uma sucessão ou evolução cronológica dos interesses, mas não que eles preexistam à
experiência individual. Feito isso, o autor passa a desenvolver explicações sobre algumas
situações em que a criança interage com pessoas, tais como as situações nas quais estão
imbricados as atitudes, os desejos, os propósitos e os valores da criança. Toda a discussão
posterior que Lourenço Filho desenvolve destina-se a explicitar com maior clareza a
questão do interesse, ou seja, das relações estabelecidas entre impulsão e incentivo.
34
Referindo-se à aprendizagem, no segundo item do Capítulo IV, o autor afirma que,
de modo geral, ela “se caracteriza como variação do comportamento por efeito da
experiência” (2002, p.154). No terceiro item deste mesmo Capítulo, são apresentadas e
discutidas três diferentes teorias de aprendizagem: aquela mediante condicionamento (com
34
E, tal como referi com relação ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, podem-se estabelecer as
relações entre o que é desenvolvido no livro Introdução ao Estudo da Escola Nova e as análises realizadas
na segunda parte da Tese.
106
base especialmente em Watson), aquela por ensaio e erro (com base em Thorndike),
aquela mediante apreensão de formas ou configurações (com base na Gestalt). Ao final da
apresentação desses três modelos, Lourenço Filho (2002, p.166) afirma: “Em todos os
casos, o papel da motivação aparece como decisivo. Hoje, sabe-se que os três grandes
modelos explicativos não são excludentes, mas convergentes: o que cada qual destacava
era o exame de aspectos gradativos de um mesmo e único processo”.
O importante a ser observado aqui é que toda a explicação que Lourenço Filho
(2002) faz em torno da aprendizagem leva a supor que ela não está vinculada à pura
fixação de idéias ou à simples aquisição de conhecimentos, tal como a aprendizagem era
entendida antes das teorizações mais específicas da Psicologia acerca deste conceito. Para
o autor, seguindo as pesquisas psicológicas realizadas especialmente no início do século
XX, a aprendizagem deve ser pensada como mais ampla, relacionada à motivação. Ambas
aprendizagem e motivação são aspectos essenciais de um processo de ajustamento
individual, do qual faz parte uma série de questões, tais como: “as atividades perceptivas,
as da imaginação, abstração e generalização, ou as do pensamento, em geral” (id., p.167).
“O processo de aprender não se mostra como um jogo de reações mecânicas e
automáticas. Não é também uma aquisição de rígidas informações sobre propriedades do
mundo exterior. [...] Isso significa que cada pessoa organiza um sistema de relações
funcionais que lhe é próprio, ou que a distingue de todas as demais” (Lourenço Filho,
2002, p.170).
Referindo-se à personalidade, no quarto item do Capítulo IV de seu livro, o autor
afirma que o estudo dessa variável passou a se fazer necessário ao campo da Psicologia, na
medida em que, embora se tivessem dados gerais de motivação e aprendizagem de uma
pessoa, não se poderia prever com exatidão como ela reagiria numa determinada situação.
Assim, o estudo da personalidade, que possibilitaria conhecer as formas de ajustamento
pessoal, foi a peça que faltava à Psicologia para que ela pudesse melhor compreender os
padrões ajustativos, normais e anormais, dos sujeitos.
Para o autor, os estudos objetivos da Psicologia sobre a personalidade permitiram
mostrar que as pessoas não podem ser entendidas e descritas através do que ele chama de
par de atributos antagônicos, tal como o fazem as opiniões do senso comum que
categorizam os sujeitos por suas qualidades opostas, como: inteligentes e não-inteligentes,
emotivas e não-emotivas, introvertidas ou extrovertidas, dóceis ou agressivas, etc. Nesse
107
sentido, de acordo com Lourenço Filho (2002, p.172), os estudos psicológicos mostraram
que as características das pessoas apresentam variações graduais, em valores contínuos.
Quando substituímos nossos julgamentos subjetivos por dados
operacionais, isto é, obtidos mediante provas de rendimento,
questionários, escalas cotadas, ou mesmo testes especiais de
personalidade, então somos levados a reformar as impressões
qualitativas, muito vagas, por outras, tendentes a fornecer-nos
noções quantitativas. Verificamos que os indivíduos da faixa dos
valores médios, ou eqüidistante das posições extremas são mais
freqüentes e que, portanto, esses é que deverão ser tomados como
representativos do grupo que se considere.
Com relação aos atributos biológicos e psicológicos das pessoas, o autor enfatiza
que eles são muito numerosos: “honestidade, paciência, coragem, impulsividade, ternura,
agressividade, rapidez, desinteresse, sagacidade, emotividade, concentração, reserva e a
lista poderia continuar quase interminavelmente, sempre acrescida também de nomes
contrários” (2002, p.172). Isso dificultaria o estudo da personalidade; daí a necessidade de
reduzir os atributos, de duas maneiras: por meio da apuração da sinonímia de muitos deles
e por meio do emprego de métodos estatísticos adequados. Essa segunda possibilidade é
apontada por Lourenço Filho (id.) como mais eficiente: “atributos existem com constante
associação, ou correlação entre si, de tal modo que, observando-se a uns, a observação de
outros poderá ser dispensada”.
Para explicar a idéia que vem desenvolvendo, o autor destaca as pesquisas de
Cattell, que ao apresentar uma tabela com apenas dozes atributos ou dimensões
primárias da personalidade – afirma:
Pelo confronto de resultados obtidos num indivíduo com as
normas de grupos bem caracterizados, é possível traçar perfis de
personalidade, úteis para diagnóstico geral, e às práticas de
orientação educacional e profissional, seleção de empregados,
problemas gerais de ajustamento [...] Se considerarmos honesta,
eficiente e laboriosa uma pessoa, com isso afirmamos alguma
coisa de seus interesses, propósitos e valores. (Cattell apud
Lourenço Filho, 2002, p.173)
108
Em seguida, Lourenço Filho (2002, p.173) apresenta
três modelos pelos quais se classificam indivíduos quanto a
atributos da personalidade. No primeiro, admitem-se dois
tipos extremos, de introversão e extroversão, por exemplo.
No segundo, reconhece-se a existência de um termo médio,
no caso a ambiversão. No último, aceitam-se expressões
gradativas, segundo uma curva de distribuição normal”.
Apresentando o terceiro modelo como mais evoluído
em relação aos dois primeiros, o que o autor faz é reforçar,
no discurso educacional brasileiro, a idéia de que há um nível
médio nas normalidades. Esse terceiro modelo permite a
classificação dos sujeitos não apenas como normais ou anormais: os sujeitos são
classificados segundo sua distribuição na curva. Isso está em sintonia com a lógica da
gestão governamental por meio do dispositivo de seguridade, estudada por Foucault
(2006), na medida em que o processo de normalização em tal dispositivo acontece
enquadrando-se os sujeitos de uma determinada população dentro de uma faixa de
normalidade. A dicotomia pura e simples entre normal e anormal, apresentada no primeiro
modelo da figura que classifica os indivíduos quanto à personalidade, pode ser entendida
como característica de como a norma opera no dispositivo disciplinar, por meio do qual
primeiro se cria a norma e depois se examina a multiplicidade. Diferentemente, no
dispositivo de seguridade primeiro se examina a multiplicidade e depois se estabelece a
norma; dessa forma, nesse dispositivo a norma trabalha com as gradações, buscando
identificar os sujeitos que estão abaixo do patamar de normalidade para aproximá-los da
média desse patamar. Assim, pode-se entender o terceiro modelo apresentado por
Lourenço Filho (2002) como operando com uma “análise mais fina que permite de certo
modo discriminar as distintas normalidades” (Foucault, 2006, p.83), através de uma
distribuição normal dos casos.
35
A conclusão a que chega Lourenço Filho (2002) é que a personalidade, para além
da enumeração de elementos estáticos, deve ser entendida por meio de uma visão
funcional. De acordo dom o autor, tal conclusão interessa especialmente aos educadores,
35
A discussão sobre o funcionamento da norma no dispositivo disciplinar e no dispositivo de seguridade
será retomada e melhor desenvolvida na primeira e na segunda seções do Capítulo VI desse trabalho.
109
na medida em que, conhecendo-se como a personalidade se constrói, pode-se definir o
principal objetivo da educação: a formação da personalidade do aluno.
Podem-se enumerar, é certo, componentes gerais da
personalidade, tais como constituição física, temperamento,
inteligência, aptidões, cultura adquirida. Não é, no entanto, por
simples justaposição desses elementos que a personalidade se
constitui, mas por uma estruturação funcional de todos e pelas
condições de equilíbrio entre essa estruturação e o ambiente.
Admite-se, portanto, que a personalidade dinamicamente se
organize, como também assim se desenvolva e se afirme. É essa a
razão que leva a dizer que o objetivo central da educação é formar
personalidades, desenvolvê-las e aperfeiçoá-las. (Lourenço Filho,
2002, p.174, grifos do autor)
Nos três principais conceitos analisados pelo autor no seu Capítulo IV
motivação, aprendizagem e personalidade –, uma idéia geral que perpassa todas as
discussões: apesar de apresentar as diferenças e especificidades dos estudos psicológicos,
Lourenço Filho (2002) os entende como neutros no que se refere à “valoração social e
moral e à reflexão filosófica”. Isso significa que os estudos são entendidos e tratados como
limitados à descrição de condições e efeitos, ou seja, à descoberta de relações entre
condições e efeitos. “Ao analisar a motivação e a aprendizagem, por exemplo, a psicologia
não aponta os motivos que devam ser preferidos, nem os conteúdos de aprendizagem a ser
adotados. Em relação a cada um desses setores, apenas nos informa como as coisas se
passam, não como se deverão passar(id., p.171, grifos do autor). Essa frase de Lourenço
Filho expressa claramente que as “descobertas” da Psicologia são entendidas por ele como
verídicas e tomadas como ponto de partida para suas análises sobre a escola e a educação.
Para o autor, a Psicologia não define que objetivos, conteúdos e métodos de aprendizagem
devem ser estipulados e utilizados nas práticas escolares; o que ela faz é tão somente
informar cientificamente o que acontece “naturalmente” com os sujeitos para que
aprendam ou não aprendam. Nesse sentido, se os educadores se valerem dessas verdades
psicológicas terão a oportunidade de atribuir cientificidade à educação e, em função disso,
otimizar as intervenções docentes de modo a obter resultados mais satisfatórios e
condizentes com as novas “descobertas”. Eis, pois, a idéia geral que o autor faz circular
entre os discursos educacionais vigentes.
110
O texto Por que “Escola Nova”?
O texto Por que “Escola Nova”? foi publicado em 1930 no primeiro Boletim da
Associação Bahiana de Educação, com a autoria de Anísio Teixeira
36
. Alguns meses
depois, sua publicação foi feita também na recém criada Revista Escola Nova, do
Departamento de Educação do Estado de São Paulo. Os dois periódicos tiveram, na época,
grande repercussão nacional, diante do ideário educacional escolanovista que se vinha
debatendo no Brasil no decorrer da década de 1920.
Como sugere o próprio título, o texto Por que “Escola Nova”? expõe uma série de
motivos, adjetivados pelo autor de “sociais”, para a renovação escolar. Anísio Teixeira
(1930, p.2) explica, na epígrafe, que sua intenção era discutir as razões pelas quais se fazia
necessária, no contexto social da época, a Escola Nova, ou seja, “por que não satisfaz, nem
pode satisfazer, a ‘escola velha’?”.
Para responder à questão, Teixeira (1930) organizou o texto em onze subtítulos,
dos quais comentarei aqui apenas os argumentos que interessam a esta Tese.
No primeiro subtítulo
37
, o autor trata das transformações ocorridas na civilização,
que permitiram que ela fosse caracterizada como moderna. A principal discussão feita
nesta primeira parte do texto gira em torno da noção de progresso. Para Teixeira (1930), é
no progresso que se resume o caráter da civilização moderna. E o progresso, de acordo
com o autor, foi possibilitado pela aplicação da ciência à civilização humana, e está
conectado a duas grandes transformações.
Uma delas é a transformação material do mundo, que o autor descreve, segundo o
imaginário social, como: casas maiores e mais confortáveis, transporte mais pido e
36
Anísio Spínola Teixeira nasceu em 1900, numa família de fazendeiros de Caetité, Bahia. Em 1922,
formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais no Rio de Janeiro. Aos 24 anos de idade, foi nomeado Inspetor
Geral de Ensino do Estado da Bahia. Em 1925, passou quatro meses na Europa, período em que observou os
sistemas escolares de países como Espanha, Bélgica, Itália e França. Ainda nesse mesmo ano, transformou
em Lei (n.1.846, de 14 agosto de 1925) o Projeto de Reforma do Ensino na Bahia, de sua autoria, no qual
defendia a escola de educação integral, que contemplava o desenvolvimento de qualidades cívicas, morais,
intelectuais e de ação. Passou dez meses estudando em Nova Iorque, entre 1928 e 1929, onde conheceu John
Dewey. Naquele período, foi aluno de Kilpatrick no Teachers College, da Universidade de Colúmbia, e
recebeu o título Master of Arts. Retornou ao Brasil em 1929 e redigiu um balanço da Reforma de Instrução
na Bahia. Em 1931, com a ascensão do Interventor Pedro Ernesto no Distrito Federal, Anísio Teixeira foi
nomeado Diretor Geral de Instrução do Rio de Janeiro. Uma de suas principais iniciativas no cargo foi a
redação do Decreto 3.810 (aprovado em 19 de março de 1930), que transformou a Escola Normal do Rio de
Janeiro em Instituto de Educação, onde atuou como professor de Filosofia da Educação. Para maiores
detalhes da trajetória de Anísio Teixeira nas décadas de 1920 e 1930, bem como os anos que se seguiram,
ver Vidal (2005), Lopes (2006) e Santos (2007).
37
Motivos sociaes da renovação escolar.
111
mais barato, ruas mais bonitas, diversão mais interessante e mais acessível, luz e água
mais fáceis e melhores, jornais e publicações mais numerosos e mais bem feitos” (id., p.2).
Mais adiante, explica: “materialmente, o nosso progresso é filho das invenções e da
machina. O homem conseguiu instrumentos para luctar contra a distancia, contra o tempo
e contra a natureza” (Teixeira, 1930, p.3).
38
A outra transformação, derivada da primeira, é de ordem social e moral. O autor
enfatiza que, com a ciência, passa-se de uma situação estável e permanente a uma situação
dinâmica. As constantes mudanças e a ausência de alvo fixo permitiram ao homem pensar
o mundo e sua vida em função dessa mobilidade. “Tudo que elle [homem] faz é um
simples ensaio. Amanhã será differente. Elle ganhou o habito de mudar, de transformar-se,
de ‘progredir’, como se diz. [...]. E cada vez elle é mais poderoso, nesse armar e desarmar
de toda uma civilização” (id., p.4).
Com a nova civilização material, feita e governada por elle
[homem], começou a velha ordem social e moral a se abalar.
Mudou a família. Mudou a comunidade. Mudaram os habitos do
homem e os seus costumes. E raciocinava-se. Se em sciencia tudo
tem o seu porque e a sua prova, prova e porque que se encontram
nos resultados e nas consequencias dessa ou daquela applicação;
se em sciencia tudo se subordina à experiência, para, à sua luz, se
resolver, – porque também não subordinar o mundo moral e social
a mesma prova? E é nisso que está a maior transformação de
nossos dias. (Teixeira, 1930, p.5)
Diante de tal transformação, o autor atribui à escola a responsabilidade de preparar
o homem para que ele possa, por si só, indagar e resolver os seus problemas. Trata-se,
assim, da formação de um homem novo para uma sociedade nova: e apenas uma “escola
nova” poderia realizar tal feito. Segundo Teixeira (1930), continuar perpetuando as
práticas da escola tradicional supõe preparar homens “com os mesmos habitos moraes, as
mesmas docilidades à autoridade e o mesmo sentimento de permanente dependencia às
cousas que o governavam e o dirigiam” (p.5), posturas que, para o autor, não
correspondem às transformações do progresso e da ciência. Referindo-se ao novo homem,
Teixeira (id.) afirma: “a velha ordem, pre-estabelecida, e que lhe era dictada pela
autoridade, seja ella religiosa ou tradicional, não lhe merece já respeito”.
38
Todas as passagens aqui citadas conservam a grafia do texto original.
112
No segundo subtítulo do texto
39
, o autor discute o que ele entende serem as três
grandes tendências da civilização moderna, que marcavam as linhas gerais por onde a
evolução estava se processando.
A primeira tendência refere-se a uma nova atitude espiritual do homem, assim
explicada por Teixeira (1930, p.6): “a velha attitude de submissão, de medo e de
desconfiança na natureza humana foi substituída por uma attitude de segurança, de
optimismo e de coragem diante da vida”. E essa nova atitude foi possibilitada, segundo o
autor, não necessariamente pelas conclusões da ciência – que podem ser e são falíveis, em
função do caráter eminentemente transitório de toda verdade – mas pelo método científico:
“o methodo é sempre digno de confiança” (id.).
Para o autor, é o método científico que garante um novo senso de segurança e
responsabilidade ao homem moderno esclarecido. O senso de segurança está relacionado
à possibilidade que o homem passa a ter de governar a natureza e ordenar seus elementos:
“temos ainda inimigos, somos ainda vencidos ahi temos as moléstias e os cataclysmas
mas sabemos porque somos vencidos e temos esperança de dominar e de conquistar, um
dia, esses últimos obstáculos” (id., p.7, grifo meu). O senso de responsabilidade está
relacionado à idéia de que, diante da possibilidade de se mudar as coisas, o homem passa a
saber que é ele quem deve realmente mudá-las e se torna, assim, responsável por essa
mudança: “o homem antigo podia ser um irresponsável. A ordem em que elle vivia lhe era
dictada por auctoridade superior” (id., p.8). Mas, de acordo com o autor, o homem novo,
que tem o método científico a seu dispor, toma para si a responsabilidade de seus atos.
Após toda a explicação sobre a nova atitude espiritual do homem moderno,
Teixeira (1930) chega ao seu argumento principal: cabe à escola a tarefa de preparar essa
atitude, ou seja, formar esse novo homem: independente, seguro e responsável. E apenas
uma escola nova seria capaz disso.
A segunda tendência da civilização moderna a que se refere o autor é o
industrialismo: “a indústria está integrando o mundo inteiro em um todo inter-dependente.
Não a matéria prima, mas a idéia e o pensamento hoje são propriedades communs de
todo o homem” (id., p.8). Ao explicar o que ele entende ser a segunda tendência, Teixeira
(1930) aponta a desintegração da família e do trabalho, afirmando que “muitos problemas
têm de ser resolvidos e mais uma vez se de exigir do homem mais liberdade, mais
39
Tendencias da civilização do nosso tempo.
113
intelligencia, mais comprehensão [...]. E todos esses problemas, são problemas para a
educação resolver” (id., p.10). Em outro trecho, o autor enfatiza: “o homem deve ser
preparado [pela escola nova] para ser um membro responsável e intelligente desse novo
organismo [sociedade]” (id.).
A terceira tendência da civilização moderna é, para Teixeira (1930), a democracia:
“o respeito pela personalidade humana é a idéia mais profunda dessa grande corrente
moderna [...]. Personalidade e cooperação são os dois pólos dessa nova formação humana
que a democracia exige” (id., p.11). E, tal como nas outras duas tendências apontadas pelo
autor, é a escola nova que deverá se encarregar da formação dessas qualidades humanas.
Após a explicação do que o autor entende serem as três tendências do mundo
contemporâneo, sempre atribuindo à escola um papel central, Teixeira (1930) desenvolve
o terceiro, quarto e quinto subtítulos do texto
40
. Ao analisar o conteúdo desses três
subtítulos, percebi que a discussão, em todos eles, gira em torno da necessidade de se
substituir a função disciplinadora da escola tradicional por uma função governamental da
escola nova. Isso fica evidente, por exemplo, no trecho a seguir, em que Teixeira (1930)
propõe à escola o
desapego aos velhos systemas autoritários do passado [...]. A
noção actual de liberdade envolve, caracteristicamente, essa
capacidade de se orientar exclusivamente por uma autoridade
interna. Nenhuma autoridade exterior é hoje acceita. As idéias e
os factos são examinados nos seus méritos e resolvidos de
accordo com as luzes da razão de cada um. (p.12, grifo do autor)
A escola tradicional é caracterizada como uma instituição estática, preparatória e
suplementar que consiste em ensinar o homem a seguir e obedecer; local onde estudar
resumia-se em aprender uma lição: aprender significava aceitar e fixar na memória ou no
hábito um fato ou uma habilidade, e ensinar significava uma doutrinação de fatos ou
conceitos. Nas palavras de Teixeira (1930, p.15): “O alumno bom era o mais dócil a essa
disciplina, aquelle que melhor se adaptava a esse processo livresco de se preparar para o
futuro” (grifo do autor). A escola nova, para o autor, deve assumir uma outra finalidade:
“preparar cada homem para ser um individuo que pense e se dirija, por si(id., p.13), que
tenha as qualidades de um líder: pelo menos a si elle tem que guiar, e o tem que fazer
40
O terceiro, quarto e quinto subtítulos são assim nomeados, respectivamente: A escola e a sociedade; A
escola tradicional e seus pressupostos; A indispensável renovação escolar.
114
com mais intelligencia, mais agilidade, mais hospitalidade para o novo e o imprevisto, do
que os velhos líderes autoritarios de outros tempos” (id., p.14, grifos meus).
Isso implicava trazer a vida para a escola, oferecendo aos professores e aos alunos
um sentido de independência e de direção de si mesmos, que, para o exercício da
democracia livre, são precisos, na visão do autor, homens conscientes, informados e
capazes de resolverem seus próprios problemas (morais e humanos). Referindo à escola,
Teixeira (1930, p.18-19) fala de suas novas responsabilidades: “educar em vez de instruir,
formar homens livres em vez de homens doceis”. E questiona: “como pode ella obter tudo
isso pelo velho systema de disciplina e licções?”
No sexto e sétimos subtítulos do texto
41
, o autor trata das novas concepções de
aprendizagem, explicando suas leis, com base nos estudos científicos da Psicologia. Para
contrapor a idéia de que aprender era memorizar fórmulas e decorar livros ou, ainda, fixar,
compreender e exprimir verbalmente um conhecimento, Teixeira (1930, p.20-21)
apresenta o que entende por aprendizagem:
Apprende-se uma idéia ganhando um novo modo de proceder ou
agir. Nós apprendemos quando assimilamos uma cousa de tal
jeito, que chegado o momento opportuno nós sabemos agir de
accordo com o apprendido. [...] Não apprendi uma idéa quando
apenas a sei formular, mas quando o fiz de tal modo minha, que
ella passa fazer parte do meu organismo e exigir de mim, quasi
automaticamente, uma reacção ou uma serie de reacções
especiaes. Logo, não se apprende sinão aquillo que se pratica.
Apprender é um processo activo de reagir a certas cousas,
seleccionar as reacções appropriadas e fixal-as depois em nosso
organismo. Não se apprende por simples absorpção.
Duas leis da aprendizagem são destacadas no texto: 1) Lei da prática e do efeito,
pela qual a aprendizagem de se na prática e causa certos efeitos. Isso significa, nessa
perspectiva, que são aprendidas apenas as reações satisfatórias, que tendem, então, a se
repetir; as reações não satisfatórias não se repetem e, portanto, não são aprendidas. 2) Lei
da inclinação, cuja premissa básica é: quando um indivíduo está inclinado a agir de certo
modo, agir satisfaz e não agir aborrece; ao contrário, quando um indivíduo não está
inclinado a agir de um certo modo, não agir satisfaz e agir aborrece.
41
Respectivamente: Motivos pedagógicos da renovação escolar; As leis da aprendizagem.
115
As leis da aprendizagem permitem ao autor concluir que o ato de aprender depende
de duas coisas: de uma situação real de experiência, por meio da qual não se aprende
somente idéias ou fatos, mas também atitudes e apreciações; e do propósito do aluno,
que ele só aprende aquilo que lhe dá prazer e satisfação. Nesse sentido,
a nova psychologia da apprendizagem obriga a renovar a escola
em um centro onde se prepara para viver [...] O desejo do alumno,
o seu interesse, para usar a palavra consagrada, orienta o que se
vae apprender. [...] Vemos como a velha escola, onde as crianças
iam para fazer aquillo que não queriam, com uma disciplina semi-
militar, está profundamente inadequada não para a sociedade
presente, como para a própria concepção moderna da
apprendizagem. (Teixeira, 1930, p.22-24, grifo do autor)
Diante de todos os motivos sociais e científicos expostos pelo autor, os últimos
quatro subtítulos do texto
42
são dedicados a apresentar mais sistematicamente as
características da escola nova, com base especialmente nas teorizações de Dewey e
Kilpatrick.
A escola nova é caracterizada como uma escola de vida e de experiência, onde os
alunos são ativos, tendo a possibilidade de escolher as suas atividades, e onde se
desenvolvam projetos que formem a unidade do processo de aprendizagem: “só uma
actividade querida e projectada pelos alumnos pode fazer da vida escolar uma vida que
elles sintam que vale a pena viver” (id., p.25). Para o autor, essa escola nova é totalmente
diversa da escola tradicional, que não se trata mais de simplesmente receber tarefas e
sofrer “uma ordem imposta externamente. [...] Em vez da velha escola de ouvir, a nova
escola de actividade e de trabalho” (id., p.26).
Para a nova escola, as matérias são a própria vida, distribuída por
“centros de interesse ou projectos”. Estudo é o esforço para
resolver um problema ou executar um projecto. Ensinar é guiar
o alumno na sua actividade e dar-lhe os recursos que a
experiência humana obteve para lhe facilitar e economizar
esforços. (Teixeira, 1930, p.27)
Apesar de toda a argumentação do autor, desde o início, estar claramente embasada
em teorizações de pensadores pioneiros do Movimento da Escola Nova, Teixeira (1930)
42
Respectivamente: A escola nova; Escola de vida e de experiência; Alumnos activos; Os mestres da nova
escola.
116
refere-se explicitamente a tais pensadores apenas nos quatro últimos subtítulos de seu
texto. Eis algumas passagens:
Cabe-nos commentar as bases da escola nova, traçadas por
Kilpatrick e que, em substancia, são as mesmas que traçam os
diversos reorganizadores modernos da escola. (p.26)
O phenomeno educativo, na phrase de Dewey, é a reconstrucção
da experiência, à luz das experiências passadas, para melhor e
mais rico controle da situação. Diante dessa concepção,
confirmada pela presente psychologia, o processo educativo se
opera em uma situação real de vida. (p.27)
É indispensável, como diz Claparède, que as crianças se não
fazem tudo que querem, queiram tudo que fazem. (p.29)
Afirmando que toda educação tinha sido até então autocrática, Anísio Teixeira
reforça a idéia de que é preciso oportunizar ao aluno que ele pense e julgue por si mesmo,
ou seja, é preciso permitir-lhe liberdade de pensamento para que ele seja, então, um sujeito
livre. encaminhando o final do texto, e preocupado em explicar um pouco mais a
proposta de formação de sujeitos livres, que atravessa toda sua argumentação, Teixeira
(1930, p.30) esclarece:
Não passe pela cabeça de ninguém que isso seja completa
anarchia. Tão habituados estamos a impôr as nossas formulas, que
parece que o dia em que ellas desapparecerem, desapparecerá a
ordem. Lembremos que estamos passando de uma civilização
baseada em uma autoridade externa, para uma civilização baseada
na autoridade interna de cada um de nós. (grifos do autor)
Essas últimas frases de Teixeira (1930) são bastante representativas de como se foi
introduzindo, no campo da Educação no Brasil, o deslocamento da ênfase na disciplina
para a ênfase no governamento que opera por meio do dispositivo de seguridade, tal como
pretendi mostrar na segunda parte dessa Tese, quando tratei, com base em Foucault
(2006), das sociedades de soberania, das sociedades disciplinares e das sociedades de
gestão governamental.
Claramente se identificando com a vertente norte-americana do Movimento da
Escola Nova, o que Teixeira (1930) faz, de forma geral, em todo esse seu texto? Ele situa
o (auto) governamento e a (auto) regulação dos sujeitos como problemas centrais da
escola. Ele apresenta os motivos pelos quais a escola nova se fazia indispensável na
formação do novo homem a partir do argumento central de que a autoridade interna que
117
orienta o homem livredeveria ser entendida e tratada (principalmente pela escola) como
o tipo de conduta humana exigida pelas transformações sociais da época, porque inerente a
elas.
O fio que conduz toda a argumentação do autor no texto Por que “Escola Nova”?
havia sido tematizado por Anísio Teixeira, ainda que de forma não tanto articulada, em
outros textos publicados antes desse. É o caso, por exemplo, do livro Aspectos americanos
de educação, escrito por Teixeira em 1928 e que circulou especialmente, no início, no
Estado da Bahia. Na primeira parte desse livro, seguindo as idéias de Dewey, Teixeira
(1928, p.9) afirma que a educação significa “uma libertação e não uma compulsão. O acto
educativo liberta e dirige forças que o indivíduo possue para o seu adequado exercício”.
Devem os methodos de educação ser inspirados em um espírito de
disciplina, de formação do sentido de dever e de esforço, ou
devem elles ser dominados por um sentido de interesse? O
trabalho escolar, visando a formação das virtudes básicas da vida
humana, deve basear-se num critério predominante de valor
disciplinar ou deve, para ser efficiente, prender-se ao educando
por um constante laço de interesse? (Teixeira, 1928, p.9, grifos do
autor)
O autor se coloca a favor da segunda opção, afirmando que a educação pelo
interesse – em que não se exige da criança mais que o trabalho que ela aceita e quer – deve
ser a finalidade da escola. O autor justifica sua escolha salientando que no primeiro caso
(disciplina) o aluno é apenas um expectador, indiferente ao que sucede; no segundo caso
(interesse) o aluno se torna um agente ou um ator, ligado ao curso dos eventos, intervindo
e agindo de modo a assegurar os bons e evitar os maus resultados: “a palavra que define
essa attitude é interesse, a pessoa que assim age ou procede está interessada em um certo
fim ou em certos resultados” (Teixeira, 1928, p.9).
Interesse, etymologicamente, significa estar entre. Se a atividade
escolar é realmente correscta e appropriada, o interesse se
despertará, naturalmente, como um resultado da posição da
criança relativamente ao objecto em apreço. Estudado, assim, o
sentido do interesse poderemos ver que em nada pode elle collidir
com a applicação de disciplina ou treino da vontade em educação.
(id.)
A funcção da educação é fazer o alumno descobrir e
comprehender os interesses legítimos e verdadeiros de sua vida,
usando constantemente a intelligencia e a razão no seu
julgamento. Esse lúcido typo moral que não procede na vida por
118
uma obediência subserviente a dictames cegos de moral, mas por
uma nítida e exacta comprehensão de superioridade dos legítimos
interesses e deveres da vida, deve ser uma das mais felizes
conquistas da educação. (Teixeira, 1928, p.10)
Com as afirmações do autor, percebe-se que o seu pensamento tanto em textos
anteriores à publicação de Por que “Escola Nova”? quanto neste, de forma mais
sistematizada é fortemente influenciado pelas formulações pioneiras do Movimento da
Escola Nova, tanto da Europa quanto da América do Norte: cientificidade da educação;
processo de aprendizagem explicado por leis criadas pela Psicologia; formação moral do
sujeito ativo, livre e responsável ao invés do sujeito passivo e dócil; substituição do
sistema educativo disciplinar e autoritário (orientado pela autoridade externa) por uma
educação pelo interesse do aluno (orientado por sua própria autoridade interna); etc.
Trata-se de formulações que foram trazidas para o Brasil por Anísio Teixeira,
Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Helena Antipoff, entre tantos outros, por meio da
tradução e publicação de textos e livros, de pesquisas realizadas a partir das premissas
escolanovistas, e da criação de instituições que passaram a funcionar de modo a colocar
em operação essas premissas e a produzir muitas outras sintonizadas com elas,
constituindo as bases para a emergência da Psicopedagogia no Brasil.
119
CAPÍTULO V
PRÁTICAS ESCOLANOVISTAS BRASILEIRAS
Todas as considerações do Capítulo anterior sobre o Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova, sobre o livro Introdução ao Estudo da Escola Nova e sobre o texto Por
que “Escola Nova”? foram feitas no sentido de enfatizar que tanto a Escola de
Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte quanto o Instituto de Educação do Rio de
Janeiro estão envolvidos com esses acontecimentos que foram compondo o cenário
educacional da época e, com maior ou menor intensidade, solidificando o terreno para a
construção do edifício psicopedagógico brasileiro.
Apresentados e discutidos esses três textos que selecionei dentre tantos outros
passo, agora, a tratar mais especialmente daquilo que eu chamei de duas importantes
portas de entrada para a Psicopedagogia no Brasil: a Escola de Aperfeiçoamento
Pedagógico de Belo Horizonte e o Instituto de Educação do Rio de Janeiro.
A Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte
A criação da Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte fazia parte
da reforma de ensino proposta pelos educadores Francisco Campos e Mário Casassanta,
que aconteceu em 1927, no Estado de Minas Gerais. Para Campos (2003), tal reforma
pode ser entendida como “uma das mais importantes iniciativas de apropriação do
Movimento da Escola Nova ocorridas no Brasil” e, entre suas proposições,
previa a implantação de uma Escola de Aperfeiçoamento de
Professores, dedicada à formação de normalistas que viriam a
120
assumir a efetiva transformação do ensino fundamental na rede de
escolas primárias que foi rapidamente ampliada. No projeto da
Escola, uma grande ênfase foi dada ao ensino da psicologia, então
considerada, entre as ciências da educação, como a mais
fundamental. (Campos, 2003)
Foi especialmente com a implantação da Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico
que o pensamento e a obra de Claparède chegaram ao Brasil. Ao ser convidado a vir a
Minas Gerais na época da reforma de ensino daquele Estado, Claparède enviou em seu
lugar a sua assistente no Laboratório de Psicologia na Universidade de Genebra que
também era professora de Psicologia da Criança, no Instituto Jean-Jacques Rousseau
Helena Antipoff
43
.
Seguidora da principal idéia de Claparède de que o estudo da Psicologia era o
que permitiria conhecer o aluno e, dessa forma, melhor organizar o ensino voltado para ele
–, Antipoff chegou ao Brasil em 1929, para implantar o Laboratório de Psicologia da
Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico, em Minas Gerais, dando início ao estudo e à
pesquisa em Psicologia da Educação no âmbito da Reforma (Campos, 2003).
No início de suas atividades em Belo Horizonte, Antipoff desempenhou três
funções complementares: docência na Escola de Aperfeiçoamento, lecionando a cadeira
de Psicologia no curso de formação de professoras que trabalhavam no sistema de
ensino público de Minas Gerais; coordenação do Laboratório de Psicologia, implantado
com a colaboração dela e equipado com aparelhos clássicos da Psicologia Experimental; e
assessoria ao sistema de ensino do Estado, especialmente no que se refere à aplicação de
testes de inteligência. Esta última função “visava subsidiar a organização, nas escolas
públicas, das chamadas classes homogêneas’ por vel intelectual, e também das classes
especiais previstas na legislação da reforma de ensino” (Campos, Lourenço e Antonini,
2002, p.21).
43
Helena Antipoff nasceu na Rússia e em 1908 mudou-se com sua família para Paris, onde passou a
participar de seminários, na Sorbonne e no Collège de France, com ênfase em Psicologia. Em 1909,
começou a estagiar no Laboratório de Psicologia da Universidade de Paris, participando dos ensaios de
padronização dos testes de vel mental de crianças, elaborados por Binet e Simon. Formou-se psicóloga e
especializou-se em Psicologia da Educação. “Sob a orientação de Edouard Claparède e após seguir um
seminário sobre o método educativo adotado por Montessori na Case dei Bambini, na Itália, Helena Antipoff
fez parte do primeiro grupo de professoras da Maison des Petits, escola experimental anexa ao Institut
Rousseau (denominada por Claparède ‘Centro de Educação Funcional’). Participou, ao mesmo tempo, dos
estudos sobre os processos educativos que viriam a resultar, no início dos anos vinte, na proposta conhecida
como Escola Ativa” (Campos, Lourenço e Antonini, 2002, p.15). Após sólidas atividades profissionais
realizadas no Brasil, que se iniciaram em 1929, Antipoff obteve cidadania brasileira, no ano de 1951.
121
O curso de formação de professoras da Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico
constituiu-se num ambiente onde se deu a introdução no Brasil, por parte de Antipoff, das
pesquisas sobre a inteligência realizadas por pesquisadores norte-americanos e europeus,
tais como Binet e Simon, mas principalmente Claparède. O curso tinha a duração de dois
anos, nos quais as normalistas eram preparadas para a docência em escolas, recebendo
aulas teóricas em Psicologia acompanhadas de demonstrações no Laboratório.
No primeiro ano do curso, focalizavam-se noções gerais dos
métodos psicológicos, da psicologia experimental e da psicologia
da criança. No segundo ano predominavam as pesquisas,
privilegiando-se a utilização do papel auto-educativo da
psicologia experimental, na medida em que as alunas, por meio da
prática, faziam o estudo da psicologia geral através da auto-
observação. (Campos, Lourenço e Antonini, 2002, p.21)
O curso, que aconteceu por duas décadas na Escola de Aperfeiçoamento
Pedagógico, teve grande importância para a disseminação dos discursos e das práticas em
Psicologia na área da Educação, na medida em que, transcendendo a própria formação das
alunas normalistas, o curso inaugurou no Brasil uma nova forma de pensar e realizar o
trabalho pedagógico, servindo de exemplo seguido por professores não apenas de Minas
Gerais, mas de todo o país.
Durante o último semestre do curso, as alunas realizavam
trabalhos práticos nos grupos escolares e nas escolas normais da
cidade, onde era feita uma análise psicológica dos estudantes,
acompanhada de análise psicossocial das escolas. Após o estudo
nas escolas, relatórios eram elaborados contendo informações
sobre aspectos da personalidade, do desenvolvimento físico e
social de cada aluno, além de um levantamento do rendimento
escolar e seus fatores determinantes. A fim de registrar tais
experiências, foi criado um acervo de documentação na Escola de
Aperfeiçoamento nomeado “Museu da Criança”. (Campos,
Lourenço e Antonini, 2002, p.21)
44
Os procedimentos e os resultados dos testes realizados com as crianças pelas
normalistas da Escola de Aperfeiçoamento, sob a orientação de Antipoff, iam sendo
divulgados por meio de artigos escritos pela estudiosa (alguns com a colaboração de suas
44
O Museu da Criança, criado por Antipoff em outubro de 1929, “incluiu em seu programa o estudo
minucioso e aprofundado da criança brasileira” (Antipoff, 2002a, p.133).
122
alunas) e publicados na Revista de Ensino e em Boletins da Secretaria da Educação e
Saúde Pública de Minas Gerais
45
.
Num artigo publicado em 1930, no Boletim nº 6 da Secretaria do Interior de Minas
Gerais (Inspectoria Geral da Instrucção), Antipoff (2002a) publicou os resultados iniciais
da pesquisa, na época em andamento, sobre os ideais e os interesses das crianças de Belo
Horizonte, apontando algumas sugestões pedagógicas. A autora começa o texto
justificando a relevância e a necessidade do estudo para o qual dirigiu suas atenções
iniciais:
Ninguém que se preocupe com a infância e com os meios de
educá-la porá em dúvida a importância que em perscrutar os
interesses infantis, esse aspecto tão precioso da vida mental das
crianças. Conhecemos o valor que a moderna psicologia atribui ao
interesse e às aspirações espontâneas da criança: muitas vezes
descobre neles os sintomas das necessidades físicas e espirituais,
funcionalmente ligadas ao crescimento do indivíduo e à formação
de sua personalidade. Seguir a natureza, dela tirar as regras de
conduta para educá-la de acordo com o ideal pedagógico tal
seria o método da escola ativa e da educação funcional. (Antipoff,
2002a, p.133)
Aceitando a tarefa, proposta pelo Governo de Minas Gerais, de promover
investigações entre os alunos, a fim de estabelecer as normas de seu desenvolvimento
físico e mental, a pesquisadora optou por fazer, primeiro, uma averiguação global acerca
dos interesses e ideais das crianças, postergando a pesquisa das aptidões especiais por
meio de escalas métricas de inteligência. Para tanto, escolheu o inquérito, considerado por
ela como o método incontestavelmente mais simples em Psicologia:
exige menos prática, a intervenção do experimentador é mínima e,
na maioria dos casos, os próprios experimentados escrevem sua
resposta no questionário impresso. A função do experimentador
consiste simplesmente em enunciar a senha previamente
composta, e fazer com que o trabalho se processe em uma
atmosfera de perfeita disciplina. (Antipoff, 2002a, p.133)
45
Os principais textos de Antipoff, escritos por ela ao longo da vida – nos quais ia apresentando os
resultados de suas pesquisas sobre as relações entre cultura e desenvolvimento humano, sobre o
desenvolvimento afetivo e social de crianças e adolescentes, psicologia do excepcional e educação especial,
psicologia e comunidade, métodos de pesquisa e de exame psicológico foram, no ano de 2002, reunidos
numa publicação, por iniciativa do Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff. A obra é
organizada por Regina Helena de Freitas Campos (2002), então presidente do Centro.
123
Como se vê, a simplicidade do método é apontada pela pesquisadora como o
principal motivo de aplicação do inquérito como meio de dar a partida às atividades de
pesquisa. Enquanto os testes de inteligência como, por exemplo, a escala Binet-Simon
necessitavam ser aplicados por entendidos em Psicologia, o inquérito, segundo Antipoff
(2002a, p.134), era “recomendável para as iniciações, sobretudo aos pedagogos
profissionais”. E isso vinha ao encontro das exigências do trabalho de Antipoff (id.):
“tendo como colaboradoras alunas da Escola de Aperfeiçoamento, eu era obrigada não
somente a ter em vista o fim científico, de interesses para o Museu, como também o fim
prático de iniciar e preparar minhas alunas nos métodos da psicologia experimental”.
O método do inquérito, quando aplicado pelo pedagogo, seria, de acordo com a
psicóloga, uma oportunidade de fazer com que o mestre assumisse uma postura mais
passiva diante dos alunos, reprimindo menos os seus pensamentos, deixando que os alunos
se expressassem por si mesmos.
O pedagogo muitas vezes desconhece a criança exatamente
porque não lhe deixa a palavra suficientemente emancipada do eu
do mestre ele próprio. A melhor falta que a criança comete, à
menor incoerência na opinião do pedagogo, intervêm o mestre,
que desvia o pensamento próprio da criança. Mas, antes de reagir
e de corrigir a criança, cumpre deixá-la exprimir-se livremente a
fim de lhe conhecer a mentalidade, a estrutura psicológica.
(Antipoff , 2002a, p.134)
Apesar de sugerir que o inquérito poderia ser aplicado por pedagogos – e de
alguma maneira incitando-os a tal feito Antipoff (2002a) é bastante clara quanto ao
caráter de sondagem deste método psicológico, na medida em que ele, por si só, apenas
prepararia o terreno para as futuras investigações sobre o desenvolvimento mental das
crianças brasileiras, por meio de testes mais complexos, estes sim devendo ser aplicados
por psicólogos ou profissionais mais experientes em Psicologia: “todas as conclusões que
[o inquérito] sugere podem ser consideradas como hipóteses que um método mais
delicado e mais perfeito deve ainda estudar e verificar [...]. Ficaríamos contrariados se
assim não fosse” (Antipoff, 2002, p.134). Com esta ressalva, a pesquisadora, embora
convide e autorize os pedagogos a conhecerem e utilizarem-se das técnicas e dos saberes
da Psicologia, conserva esta área do conhecimento no seu devido lugar. Ao sugerir e
permitir uma apropriação, por parte dos mestres, do método psicológico, também
124
estabelece as fronteiras de um e outro campo (Psicologia e Pedagogia), indicando até onde
os pedagogos podem ir em suas investigações.
A primeira pesquisa realizada sob a orientação da psicóloga russa com o método
do inquérito foi composta por dez perguntas realizadas para 760 crianças dos dois sexos,
alunas do último ano primário
46
. As análises de todas as respostas foram desenvolvidas no
texto de Antipoff (2002a), que também descreveu em detalhes os procedimentos da
investigação, afirmando ser necessário multiplicar o número de crianças para participarem
da pesquisa e, em seguida, “individualizar o inquérito com certo número de crianças,
orientando-o para o ‘método clínico’, preconizado por J. Piaget, de Genebra” (id., p.134).
Naquele primeiro estudo, fica evidente a influência que as teorizações de
Claparède tiveram sobre as pesquisas iniciais de Antipoff no Brasil. Nas palavras da
pesquisadora (2002a, p.135): “a determinação dos interesses e dos ideais pode ser incluída
no grupo das investigações psicológicas, chamadas psicotrópicas. Tomamos de
empréstimo ao nosso mestre Edouard Claparède este termo, aplicando o sentido que ele
lhe deu. Queira ele perdoar-nos de plágio”. Com base no livro de Claparède, intitulado
Como diagnosticar as aptidões nos escolares mais especialmente no Capítulo A
fisionomia mental –, a pesquisadora explica o conceito de psicotropia, entendida como a
orientação geral da personalidade. Considerando isso, Antipoff (2002a) esclarece que o
primeiro estudo no qual estava envolvida no Brasil tratava-se de um caso particular da
psicotropia, pois sua preocupação não era, naquele momento inicial, com a orientação
geral do espírito, mas com a orientação intelectual do espírito; ou seja, tratava-se, como
preferiu chamar (também com base em Claparède) de nootropia.
Como quer que seja, o relevante a ser enfatizado aqui é que as teorizações de
Claparède acerca da determinação de necessidades, gostos, interesses e aspirações dos
indivíduos ou de uma coletividade inteira foram tomadas como ponto de partida para as
primeiras investigações que passaram a ser realizadas sobre o desenvolvimento mental das
crianças brasileiras. A premissa básica era a seguinte:
a psicotropia, deslocando-se na escala das idades, marca um
caminho determinado: os interesses e os ideais das crianças se
sucedem numa certa ordem; a ordem encontrada no inquérito de
46
As perguntas eram: 1ª) Qual o trabalho que prefere na escola? 2ª) Qual o trabalho que prefere em casa? 3ª)
Qual o seu brinquedo preferido? 4ª) Qual o livro ou a história de que você mais gosta? 5ª) Com que pessoa
queria você parecer-se? 6ª) Por quê? ) Quando for grande, o que quer ser? 8ª) Por quê? 9ª) Que presente
queria receber no dia de seu aniversário? 10ª) Se você tivesse muito dinheiro, que faria dele?
125
um país se repete grosso modo no inquérito de outro. Essa
semelhança ministra à psicotropia uma base funcional relativa ao
crescimento da criança. (Antipoff, 2002a, p.135)
Os preceitos da Escola Ativa também se fizeram presentes tanto nas premissas a
partir das quais foi iniciada a investigação de Antipoff, quanto nos resultados a que ela
chegou. Um bom exemplo disso está nas conclusões acerca da primeira pergunta do
inquérito, qual seja: “Qual o trabalho que você prefere na escola?”. A análise dos dados
evidenciou, de acordo com a pesquisadora, uma atração geral das crianças por matérias
escolares cujos conteúdos e formas de ensino haviam sido renovados e concretizados,
apresentando-se mais “vivos”, com mais narrativas atraentes para as crianças e exigindo
delas uma atitude mais ativa: em primeiro lugar a aritmética, seguida pela língua pátria. As
matérias que ocuparam os últimos lugares entre as preferências dos alunos eram aquelas
que ainda permaneciam estáticas, consistindo no armazenamento, através da
memorização, de nomes, datas, classificações, etc. Isso levou a pesquisadora a concluir
que:
A atração geral das crianças pela aritmética, evidenciada pelos
inquéritos, explica-se, em grande parte, pela atitude ativa da
criança: a do indagador em frente dos exercícios do cálculo; dadas
as condições do problema, é a própria criança que procura a
solução dele. Sua atividade, provocada naturalmente pela
pesquisa, mantém-se enquanto a solução não é encontrada. Esse
espírito de pesquisa, que vemos tão apreciado pelas crianças, e
que representa um dos mais preciosos fatores dinâmicos na
educação, não deverá estender-se ao ensino de todas as matérias
escolares? (id., p.139)
Ainda com relação a isso, Antipoff (id.) afirma:
O inquérito sobre os ramos preferidos pelos alunos tem, segundo
Claparède, uma grande importância pedagógica. Ele aconselha a
cada diretor que o faça na sua escola. O inquérito esclarecerá a
respeito dos gostos das crianças, os quais mudam com a idade, a
respeito do modo de ensinar mais consentâneo com a idade das
crianças, a respeito dos tipos mentais do aluno em face das
matérias ensinadas.
Interessante de destacar aqui é que, ao referir o aconselhamento de Claparède aos
diretores de escolas, é a própria Antipoff que, valendo-se das sugestões de seu mestre,
também aconselha às escolas brasileiras que façam o mesmo com seus alunos.
126
Outra sugestão é feita com base na quarta pergunta do inquérito: “Qual o livro ou a
história de que você mais gosta?”. A análise dos dados revelou, segundo a pesquisadora, a
limitação das crianças no que se refere aos seus gostos literários. Diante disso, evidenciou-
se a necessidade de ampliar as bibliotecas escolares, além de “criar bibliotecas circulantes
para a mocidade; organizar clubes que teriam a cargo ensinar as crianças a ler os livros, a
compreendê-los e a amá-los; outra medida consistiria em multiplicar as edições baratas
para a mocidade e traduzir e adaptar as obras-primas da literatura mundial” (Antipoff,
2002a, p.154). Tais sugestões foram justificadas pela autora em função de que a pesquisa
também manifestou os defeitos do ensino da escola primária. Contestando o tipo de escola
vigente, que foi evidenciado por meio da análise de várias perguntas do inquérito,
Antipoff (id.) diz:
Não, a escola ativa, a educação funcional se propõe outra
finalidade, e as suas ambições são muito mais vastas. Está longe
de limitar sua atividade e formar apenas a técnica, a ensinar a
técnica da leitura, especialmente. Trata-se, antes de mais nada, de
despertar a necessidade de ler e desenvolver o gosto pela leitura.
Uma vez provocado o interesse, todas as funções apropriadas, a
atenção, a observação, a memória e o juízo, a reflexão e a
imaginação, serão para isso ótimos colaboradores, que
desempenharão sua tarefa toda a vida, deixando disso traços
indeléveis. A escola tem por objetivo educar a criança e
desenvolver-lhe a personalidade. Ora, o nível da personalidade,
entre outros, se mede pelo teor de seus gostos, de seus interesses e
dos ideais a que ela aspira.
Referindo-se ao psicólogo Ernst Meumann, envolvido com a Pedagogia
Experimental através de inquéritos com crianças alemãs, Antipoff cita uma declaração
dele, que consiste no seguinte:
O valor geral de investigações semelhantes não se limita apenas a
fornecer-nos os meios de estudar um dos aspectos mais
importantes da vida mental da criança: o conhecimento dos ideais
da criança nos serve igualmente de medida preciosa para ajuizar a
respeito de todo nosso sistema de educação e a respeito da
capacidade de nossas diversas escolas para criar seus ideais. [...]
Como não temos base alguma para atribuir esses defeitos ao
professor, devemos procurar a explicação no próprio sistema de
ensino: muita energia é despendida para aquisição dos
conhecimentos e muito pouca para o desenvolvimento da
personalidade. (Meumann apud Antipoff, 2002a, p.155)
127
Além de todas essas considerações sobre a relação entre os resultados do
inquérito e as limitações escolares –, mais algumas podem ser destacadas nesse sentido:
“Por que é que as crianças belorizontinas deram um resultado inferior? A explicação em
parte pode ser dada pela menor escolaridade das crianças” (Antipoff, 2002a, p.155). “Seria
desejável que a duração da escolaridade se aproximasse da que se estabeleceu como
necessária para a maioria dos outros países” (id.). Em função da impossibilidade de
resolver o problema “do dia para a noite”, sugerem-se remédios parciais:
achando-se a educação pública em Minas reduzida, não podendo
essa redução deixar de influir nocivamente nos resultados
escolares, no nível do desenvolvimento mental das crianças [...],
trata-se de compensar a falta, de uma parte, pela intensificação do
trabalho escolar, e de outra, pela sua orientação para fins mais
educativos: a formação da personalidade e a preparação da criança
para a vida. (id.)
Sugere-se também que sejam realizados encontros semanais extraclasse com todos
os alunos, nos quais os professores direcionassem atividades de diferentes ordens, para
habituar as crianças à literatura infantil, aos trabalhos manuais, ao teatro, aos filmes, às
artes, às belezas da natureza, a fim de “aproveitar o tempo nas diversas reuniões sociais
próprias para desenvolver o ‘self-government’[...]” (id., p.156). Mas ao sugerir encontros
extra-escolares, a psicóloga adverte que as atividades propostas não devem sobrecarregar
as crianças de trabalho cansativo, evitando, então, deixá-las assentadas docilmente em
seus bancos: a idéia era a realização de atividades lúdico-pedagógicas, tais como
dramatizações, jardinagem, oficinas, excursões (a sítios pitorescos, cinemas, usinas, etc.).
De acordo com Antipoff, tudo isso contribuiria para aproximar mestres e alunos de modo
mais cordial, e para aflorar traços interessantes do caráter, que não têm oportunidade de se
manifestarem na vida restrita da escola: “não se educam os instintos mediante a repressão;
a educação tem a seu serviço processos conhecidos, sob o nome de canalizações, desvios,
sublimações, objetivações, que provam melhor que os da disciplina autoritária(Antipoff,
2002a, p.156).
Ao dar visibilidade aos resultados das pesquisas psicológicas apresentados por
Antipoff, o que pretendo é mostrar as implicações pedagógicas das suas “descobertas”:
implicações permitidas também por toda a série de sugestões oferecidas pela pesquisadora
aos professores, diretores, escolas, enfim, ao próprio sistema público de ensino,
128
constituindo a teia que enredava cada vez mais a Psicologia e a Pedagogia, por meio da
qual também a instituição escolar foi sendo governamentalizada.
De forma geral, as investigações de Antipoff sobre os ideais e interesses das
crianças de Belo Horizonte permitiram a circulação de quatro principais formulações: a
simplicidade do método de pesquisa em Psicologia conhecido como inquérito (que poderia
ser aplicado por pedagogos); as diferenças dos resultados obtidos, considerando-se dois
critérios (o etário e o socioeconômico); a necessidade de complementação do inquérito
(com observações diretas sobre os brinquedos, as ocupações, as leituras, as despesas da
criança); e a necessidade de difusão das pesquisas (estendendo-as a um grande número de
crianças). Tais formulações serviram de alavanca para que se instalasse entre os
professores o desejo de testagem de seus alunos, depositando na pesquisa psicológica a
possibilidade de uma renovação pedagógica, tão extensamente solicitada num contexto de
reformas educacionais que se propagavam por todo o país.
Os estudos que deram seqüência aos do inquérito foram tema de um outro artigo
publicado em 1931, no Boletim 7 da Secretaria da Educação e Saúde Pública de Minas
Gerais em que Antipoff (2002b) divulga os resultados iniciais das pesquisas sobre o
desenvolvimento mental das crianças de Belo Horizonte, agora realizadas utilizando-se
escalas métricas de inteligência. No texto, antes de apresentar os resultados das pesquisas,
a psicóloga fez longas considerações sobre a aplicação dos testes, explicando em detalhes
no que consistiam e como eram realizados
47
.
Ao descrever e explicar os testes, também eram enfatizadas as funções mentais e as
aptidões que cada teste possibilitava verificar a fim de se chegar a conclusões sobre o grau
de desenvolvimento intelectual das crianças testadas. A determinação deste grau, nos
diferentes testes, passava pela testagem das crianças no que se refere à linguagem,
vocabulário, memória, observação visual, coordenação motriz, indução matemática,
noções de número, operações simples, cálculos diversos, diferença entre as dimensões
(como grande e pequeno, por exemplo), analogia, síntese, etc. Os testes respondiam,
apenas para citar alguns exemplos: “Sendo desenhada a mão esquerda, em que idade
47
Entre os testes de inteligência descritos por Antipoff (2002b), destacam-se: Teste de Goodenough, criado
pela psicóloga norte-americana Florence Goodenough e que consiste em uma única prova sobre o desenho
da figura humana; Teste de Dearborn, criado pelo psicólogo norte-americano Dearborn e constituído de 17
exercícios nomeados “jogos e problemas desenhados”; Teste de Ballard, composto por 100 questões de
ordem geral, citadas na íntegra por Antipoff (2002b). Os testes foram adaptados pelo Museu da Criança para
serem aplicados junto às crianças mineiras.
129
saberá a criança desenhar, ao lado, a mão direita, e dar corretamente, por escrito, o número
dos dedos nas duas mãos, conjuntamente?” (Antipoff, 2002b, p.104); “Quando é que a
criança começa a distinguir caro e barato?(id., p.106); “Em que idade sabem as crianças
ver a hora no relógio?” (id., p.108). A cada pergunta dessas, entre uma série de muitas
outras, eram apresentados percentuais para que os medianos e as médias aritméticas
pudessem ser formulados. Cito, aqui, apenas dois dos muitos exemplos:
Aos 7 anos a criança, na maioria dos dois sexos, um número
exato dos dedos, apenas 15% de meninos e 11% de meninas darão
o número inexato 3, 4, 6 ou mais dedos. É aos 8 anos que as
crianças saberão dar por escrito o número 10, correspondente aos
dedos das duas mãos. (id., p.104)
É na idade de 8 anos que as crianças, na sua maioria, resolvem
este teste [das moedas]: aos 7 anos, apenas 60% marcam
corretamente todos os 3 selos de 200 réis, e apenas 50% marcam
os 100 réis. A soma de todos os selos nessa idade é indicada
apenas por 44%. Aos 8 anos, ¾ das crianças distinguem
corretamente os dois valores, e 70% sabem calcular corretamente
a soma de 9. Quanto à escrita dessa soma, apenas 49% de
crianças que sabem fazê-la exatamente, na idade de 11 anos (a
última idade que examinamos na escola primária). Vejamos agora
como as crianças realizam a divisão, por metade da dezena [...].
(id., p.106-107)
De posse dos percentis fornecidos pelos dados, a pesquisadora e suas
colaboradoras (algumas normalistas da Escola de Aperfeiçoamento) criavam tabelas,
gráficos, escalas, quadros comparativos e curvas normais, em que eram feitos cálculos e
comparações de dados, geralmente para marcar três distintas posições nas quais as
crianças eram situadas: as menos desenvolvidas (evidenciando um retardo no
desenvolvimento); as mais desenvolvidas (evidenciando um avanço no desenvolvimento)
e as medianas (para as quais a idade mental correspondia à idade real).
A descrição dos testes também incluía instruções pormenorizadas para o
examinador que, de acordo com Antipoff (2002b), deveriam ser rigorosamente
observadas – sobre como aplicar cada técnica.
A divulgação de todas essas informações, relativamente novas no contexto
educacional brasileiro, passou a chamar a atenção de educadores de todo o país para a
possibilidade de testagem psicológica de seus alunos, a fim de assegurar um melhor
rendimento escolar. O mais importante de ser observado é que, para além das descrições e
130
dos resultados dos testes, os artigos faziam circular certos discursos sobre inteligência
(partindo das teorizações de Binet e Simon), apontando a Psicologia infantil como
primordial à solução de problemas da educação e do ensino, tais como inadaptação e
fracasso escolar.
Naquele mesmo artigo publicado em 1931, a pesquisadora explica:
O Teste de Dearborn foi aplicado pelas professoras-alunas da
Escola de Aperfeiçoamento. Desde o mês de novembro de 1929
até o mês de abril de 1930, em 2.464 crianças de Belo Horizonte,
na idade de 6 a 16 anos. No total de crianças examinadas, 54
fazem parte do Jardim da Infância, 1.974, das escolas primárias e
490 são meninas entre 11 e 16 anos do curso de adaptação e do
preparatório da Escola Normal. (Antipoff, 2002b, p.97)
A autora enfatiza que o número reduzido de crianças matriculadas em creches e
jardins-de-infância dificultava a construção de uma escala completa de idades mentais.
tendo feito experiência nas escolas primárias, não pudemos ter
crianças abaixo de 6 a 7 anos. Ora, seria mister começar com as
crianças muito jovens para ter os desenhos mais primitivos; mas,
onde encontrá-las em Belo Horizonte, essas crianças de 2, 3, 4
anos? Não creches, e os jardins-de-infância são raramente
freqüentados pelas crianças de menos de 4 anos. (id., p.93)
Na seqüência, a pesquisadora explica que, em função da falta de material, foi
preciso organizar um padrão de percentuais com os dados disponíveis: “esse padrão não
permite julgar acerca da idade mental ou do Q.I. das crianças, mas permite entretanto
comparar tal criança entre a idade de 7 a 11 anos com uma porção de outras crianças da
mesma idade, e etc.” (Antipoff, 2002b, p.93). Nesse sentido, os estudos psicológicos ao
serem realizados a fim de atingirem os objetivos da própria pesquisa sobre a inteligência
da criança mineira – serviram também para pôr em evidência a quantidade de crianças que
freqüentavam a escola, desencadeando uma caracterização geral do sistema público de
ensino de Belo Horizonte, que havia sido sugerida desde a pesquisa do inquérito. Ou
seja, os estudos tinham repercussões diversas, chamando a atenção para outros fatores, tal
como o da oferta de vagas nas escolas, por exemplo.
Outro fator importante para o qual acabaram apontando os estudos refere-se à
situação econômica e social do meio em que as crianças testadas viviam. Vejamos.
131
As comparações possibilitadas pela análise dos dados coletados nos testes eram
geralmente realizadas em três níveis: 1) comparação das crianças de Belo Horizonte,
diferenciando comportamentos de meninas e de meninos; 2) comparação entre as crianças
de Belo Horizonte e as de outros estados brasileiros, como as de Recife, por exemplo,
onde os testes passaram a ser aplicados por Ulysses Pernambucano
48
; 3) comparação entre
as crianças de Belo Horizonte e as de outros países, onde os mesmos testes haviam sido
aplicados: Estados Unidos, Inglaterra (Londres), Bélgica (Bruxelas) e Suíça (Genebra).
Em função das diferenças intelectuais às vezes bastante acentuadas, tais comparações
passaram a colocar em evidência as diferenças sociais, o que levou a estudiosa russa a
estabelecer correlações entre o meio socioeconômico e o desenvolvimento mental.
A primeira escalonagem que fizemos deste teste [de Dearborn],
deduzindo-o de todos os 2.464 resultados individuais, nos
forneceu normas muito baixas em relação às de Genebra; além
disso, a curva dos pontos obtidos com os resultados médios de
cada idade nos surpreendeu pela sua grande irregularidade [...],
fato que não se observa geralmente nas curvas de
desenvolvimento da inteligência geral. Tentando compreender
esse fenômeno, capacitamo-nos de que a maioria das crianças era
duas, três, quatro vezes repetentes. A maior parte delas pertencia a
um meio miserável vivendo em condições de extrema penúria,
crianças que não freqüentavam muito regularmente a escola, que
se matriculavam tarde e que mudavam freqüentemente de escola.
(Antipoff, 2002b, p.98)
Com o desenrolar de suas investigações no Brasil, a pesquisadora passou a
esclarecer extensamente em seus textos que a inteligência geral é diretamente dependente
do meio em que a criança se forma, da educação e da instrução; ou seja, o
desenvolvimento mental jamais deve ser considerado fora das condições sociais e
pedagógicas. E que as pesquisas da Escola de Aperfeiçoamento eram realizadas apenas
em função da idade das crianças, a equipe não conseguia encontrar uma homogeneidade
na marca do desenvolvimento mental. Na tentativa de solucionar esse problema, a equipe
limitou o cálculo de idade mental, selecionando para a pesquisa apenas as crianças de
escolaridade regular: dos 2.464 alunos examinados por meio do Teste de Dearborn, foram
48
Ulysses Pernambucano de Melo Sobrinho, médico psiquiatra, é considerado um dos pioneiros da
Psicologia no Brasil. Ao longo de sua carreira, entre várias outras atividades, envolveu-se com estudos sobre
a criança, sob os aspectos biológico, antropológico e psicológico. Em 1923, fez a reforma do Ensino Normal
do Estado de Pernambuco. Como suas principais ões, destacam-se as fundações, no Brasil: do primeiro
ambulatório psiquiátrico público, da primeira escola especial para deficientes mentais e do primeiro Instituto
de Psicologia (Theophilo, 2008).
132
considerados, nas análises, somente 960 alunos, todos regulares no que se refere à
instrução. “Com essa restrição quanto à qualidade das crianças em relação com a sua
escolaridade, conseguimos obter uma curva de desenvolvimento mental mais regular e
mais conforme com o que nos ensina a psicologia da inteligência geral” (Antipoff, 2002b,
p.101).
Referindo-se ao padrão mais ou menos normal estabelecido ao final das análises
dos dados das 960 crianças, a psicóloga enfatiza:
Estabelecido sobre uma média dos escolares regulares, ele [o
padrão] será indubitavelmente um pouco elevado para o conjunto
de alunos de Belo Horizonte, pois as crianças regulares não
representam aqui a maioria da população escolar. Nossa norma,
embora seja real e não teórica, pois que se baseia nos resultados
reais das crianças, não caracteriza a totalidade dos alunos das
escolas de Belo Horizonte no ponto de vista mental, mas um
grupo de crianças normais no ponto de vista escolar. Cremos que
amanhã, quando as condições de trabalho escolar forem mais
regulares, quando se tornarem mais homogêneas em relação ao
modus vivendi das famílias belo-horizontinas (hoje suas
diferenças são realmente muito acentuadas), nossas normas
estarão mais de acordo com a maioria da população escolar. (id.,
grifos meus)
Do que vem sendo dito até aqui e especialmente desse trecho citado, quero chamar
a atenção para dois pontos.
O primeiro ponto refere-se ao fato de que, ao restringir a pesquisa apenas às
crianças em situação regular de ensino, a média final obtida por meio dos cálculos
comparativos – embora também restrita a uma determinada população – acaba servindo de
modelo normal de desenvolvimento para todas as crianças.
As crianças pobres, cujas condições socioeconômicas foram consideradas como
não adequadas para a testagem da inteligência, as que não eram assíduas à escola, as que
apresentavam casos de repetência escolar, entre outras consideradas em situação irregular,
ficaram fora dos resultados finais da pesquisa e, portanto, fora da média; de modo mais
amplo, ficaram fora daquilo que foi estabelecido como normal. E assim se constroem os
anormais. Em outras palavras: se a média da inteligência infantil foi construída
desconsiderando a existência dessas crianças, elas conseqüentemente se afastam da média.
Mas isso não significa que sejam colocadas para fora da norma: elas estão fora do que foi
considerado normal. Nem se chega a falar delas nos resultados finais das pesquisas; para a
133
análise dos dados, elas não existem e isso fica claro na afirmação de Antipoff sobre os
números: das 2.464 crianças testadas, os dados de apenas 960 crianças entraram nas
análises que deram origem à média. No entanto, ficando fora da média e fora do que é
considerado normal, ainda assim são incluídas na norma criada, na medida em que a
norma inclui, dentro de si, normais e anormais. Mesmo que não se tenha considerado a
existência das crianças em situação irregular ou exatamente em função disso elas
passam a fazer parte da norma, na condição daquelas que o correspondem à média
estabelecida; ou seja, na condição de anormais.
Portanto, ao serem excluídas das análises dos dados das pesquisas, essas crianças
irregulares foram automaticamente incluídas na própria pesquisa. E, assim como em
alguns casos se pode falar em incluir para excluir, neste caso talvez se possa falar em
excluir para incluir. Seja como for, inclusão e exclusão são dois lados de uma mesma
moeda. Ambas são operadas no processo de normalização. E, no que se refere ao
desenvolvimento intelectual das crianças primeiro as mineiras e depois as brasileiras de
modo geral, já que as normas foram estendidas a vários estados do país – pode-se perceber
esse processo de normalização sendo construído, no Brasil, inicialmente pelo trabalho
desenvolvido na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte.
Não está em questão aqui se as intenções da pesquisadora eram essas ou não. É
bastante claro, nos textos, que a pesquisadora está ciente de que as médias foram
construídas apenas para uma determinada população eleita por suas qualidades. Antipoff
(2002b) registra isso em várias passagens de seu texto, numa parte cujo subtítulo é O
desenvolvimento mental e o meio social: “a ocorrência de crianças muito inteligentes é
cerca de 3 vezes maior que a dos pouco inteligentes, no meio privilegiado; no meio
modesto, nas famílias de operários e artífices, a relação é justamente inversa” (p.118); “O
quociente tão alto de associação entre o meio e a inteligência parece apoiar nossa opinião
de que os testes de inteligência geral medem precisamente a inteligência civilizada e não a
natural” (p.119); “Os testes destinados a medir a inteligência ‘natural’ nos revelaram que
este conjunto de faculdades intelectuais é de alguma sorte predeterminado por fatores de
ordem social” (p.119); “Para levar a efeito essas comparações, seríamos obrigados a
submeter aos mesmos testes todas as crianças de uma população determinada, ou a
escolhê-las bem de acordo e proporcionalmente com as diferentes camadas sociais dessa
população” (p.120).
134
Estes trechos indicam a preocupação da pesquisadora com a inexatidão das
pesquisas, que o desenvolvimento intelectual era estudado em função da idade das
crianças e o meio social não entrava como uma variável. Acontece que para que fossem
atingidos os objetivos da pesquisa sobre o que Antipoff chama de inteligência natural
seria necessário escolher uma população que não variava, ou seja, uma população regular
em seus hábitos e comportamentos. A escolha feita, como se vê, foi pela população de
crianças escolarizadas, regularmente matriculadas e freqüentando as classes escolares e
em situação socioeconômica favorável. Estas eram as condições consideradas satisfatórias
para que as crianças pudessem revelar suas reais potencialidades intelectuais. E a média
que resulta disso, com base nessa população específica, uma vez construída e
cientificamente estabelecida, tornou-se representativa da realidade no que se refere aos
níveis de inteligência, servindo de modelo correto de desenvolvimento para todas as
crianças.
Portanto, sendo ou não intenção inicial da pesquisadora, suas pesquisas (em seus
efeitos) estiveram envolvidas com um processo de normalização. E isso não é
propriamente de Antipoff como pesquisadora, mas do campo de conhecimento no interior
do qual ela realizava seu trabalho: a Psicologia. Antipoff escolheu aquela determinada
população infantil para ser o mais fiel possível aos preceitos e métodos desse campo. Mas
a dificuldade de articulação entre a variável do meio e as pesquisas psicológicas que
pretendiam a análise da natureza infantil aparece como uma inquietação constante em seu
trabalho: “Estamos aqui, nessas questões relativas à inteligência e ao meio, diante de um
famoso círculo vicioso” (Antipoff, 2002b, p.119). Ao finalizar um outro texto, ela diz:
Quando se quer seguir literalmente os princípios da educação
moderna construir o trabalho pedagógico guiando-se pela
natureza da criança, orientá-lo em relação às suas necessidades,
seus interesses e suas aspirações não chegamos às vezes a um
impasse e não nos arriscamos a cair num círculo vicioso? Se a
tese de Rousseau: “tudo é bom ao sair das mãos do Autor das
coisas, tudo degenera nas mãos dos homens”, era inteiramente
acertada; se o meio, as condições materiais, a educação, a moda
passageira da época e mil outras influências tão difíceis de
determinar, se tudo isso não imprimisse um cunho tão forte no
indivíduo como chegar a conhecer o verdadeiro homem, a
criança autêntica, a sua natureza? Como distinguir o que é próprio
do que é deformado, se seguirmos o método empírico, as
observações feitas na criança viva, no seu procedimento
quotidiano? (Antipoff, 2002a, p.156)
135
Na seqüência de seus questionamentos, a autora afirma:
O dever mais importante da educação é criar o meio propício, o
ambiente harmonioso e diferenciado, no qual diversos tipos de
crianças encontrassem uma aplicação adequada à sua natureza.
Envidando um cuidado especial em organizar esses ambientes
harmoniosos e variados, o pedagogo arranja para o psicólogo os
meios e as condições necessárias para a sua observação. (id.,
p.157)
Nesses trechos, a autora deixa evidente que a pesquisa sobre o desenvolvimento da
inteligência natural poderia ser realizada em condições consideradas satisfatórias; desse
modo, ela também justifica sua escolha por aquela determinada população infantil para
compor as análises das pesquisas sobre a inteligência da criança mineira.
Interessante de ser observado, nisso tudo, é que os saberes da Psicologia são
chamados à Pedagogia para que, de algum modo, auxiliem na resolução de certos
problemas educacionais. A própria Antipoff foi convidada a lecionar na recém instituída
Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico, na condição de psicóloga, para implantar e
coordenar o Laboratório de Psicologia daquela Escola. E isso tudo integrava, na época,
uma reforma de ensino; portanto, tratava-se de solucionar questões educacionais. Mas
como a Psicologia poderia resolver os problemas da escola se exclui das suas pesquisas os
chamados casos-problema? A Psicologia não chega ao coração do problema da repetência,
da inadaptação escolar, porque, para que se cheguem a supostos resultados exatos, as
pesquisas psicológicas podem ser realizadas em condições ideais, condições descritas
por Antipoff como “meio propício”, “ambiente harmonioso”, onde as crianças possam
encontrar “uma aplicação adequada à sua natureza”. Na tentativa de responder aos
problemas da escola, a Psicologia acaba por multiplicá-los: o que ela faz é solicitar à
Pedagogia que se resolva para que as pesquisas psicológicas possam ser realizadas. Afinal,
quem deveria resolver o problema de quem? Com relação à solicitação que a Psicologia
faz à Pedagogia, vejamos o que diz Antipoff (2002a):
Estabelecendo-se um certo estado de coisas, é à pedagogia que
incumbe prestar-lhe, desde logo, ouvido atento e buscar, em
seguida, os meios de melhorar a situação. (p.155)
Num meio rico de estímulos variados, as reações das crianças
também se diferenciam: a escolha espontânea permitirá realmente
o estudo dos gostos e dos interesses, em condições normais, e não
exclusivas e monótonas, em que poderia ser feito o estudo da
verdadeira natureza da criança; aliás, o estudo psicológico
136
encontrava uma imagem deformada. Quem terá a idéia de estudar
as formas do corpo humano, observando-o num espelho curvo
num ou noutro sentido? (p.157)
Comecemos, pois, por organizar esse meio harmonioso e
suficientemente variado; demos às crianças a possibilidade de se
manifestarem segundo a inclinação e as aptidões respectivas e
então a observação psicológica chegará a determinar a natureza
própria da criança e poderá fornecer à pedagogia indicações
eficientes. (p.157)
Ainda no que se refere às crianças consideradas em situação irregular, vale
destacar aqui uma expressão não muito comum no Brasil antes da chegada de Antipoff,
em torno da qual girou grande parte de sua preocupação investigativa posterior. Trata-se
da expressão: excepcional. Com os resultados da aplicação dos testes de inteligência, a
pesquisadora passou a chamar de excepcional a criança que se situava longe da zona de
normalidade. A preferência pelo termo excepcional, em substituição ao termo retardado,
foi justificada na medida em que, frente à estigmatização contida no segundo termo, o
primeiro previa a possibilidade de reversão do distúrbio, desde que fossem adotadas
medidas psicopedagógicas adequadas
49
. A continuação dos estudos levou a pesquisadora a
diferenciar duas categorias de excepcionais: “os excepcionais ‘orgânicos’, portadores de
distúrbios de origem hereditária, e os excepcionais ‘sociais’, isto é, aqueles cujas
condições de vida familiar ou social impediam uma adequada estimulação” (Campos,
Lourenço e Antonini, 2002, p.22). Nesse sentido, e atuando enfaticamente na defesa da
contribuição da Psicologia às propostas educativas da sociedade brasileira, Antipoff
sugeriu às escolas “a adoção de programas de ‘ortopedia mental’ visando equalizar as
oportunidades para as crianças de baixa renda que não obtinham resultados satisfatórios
nos testes” (id.).
Este foi o primeiro ponto para o qual quis chamar a atenção: a determinação da
média como modelo normal de desenvolvimento para todas as crianças, embora as
análises das pesquisas tenham sido feitas apenas com uma população infantil bastante
específica.
O segundo ponto, conectado ao primeiro, refere-se à afirmação de Antipoff, já
citada anteriormente, de que a norma criada pelas pesquisas é uma norma real e não
49
Interessante perceber que as medidas adequadas já eram adjetivadas por Antipoff de psicopedagógicas,
apesar de eu encontrar tal adjetivo referido uma única vez em todos os textos que analisei da pesquisadora.
137
teórica, pois se baseia nos resultados reais das crianças. Isso está em perfeita sintonia
com um processo de normalização tipicamente governamental
50
. Conforme desenvolverei
mais detalhadamente no próximo Capítulo, uma diferença entre normatização
disciplinar e normalização governamental: no primeiro caso, trata-se de normatizar a partir
de modelos ótimos de perfeição; ou seja, cria-se a norma, observa-se o indivíduo e, com
base nessa mesma norma, classifica-se o indivíduo. No segundo caso, trata-se de
normalizar por meio de dados (estatísticos) retirados da população; ou seja, observa-se a
população, determina-se a norma e intervém-se com base nela.
Nesse sentido, percebe-se claramente que as pesquisas psicológicas sobre o
desenvolvimento intelectual realizadas na Escola de Aperfeiçoamento operam com um
tipo de normalização característico das sociedades de gestão governamental. E penso ser a
isto que Antipoff se refere quando diz que a norma criada é real e não teórica, o que acaba
por legitimar ainda mais a própria norma, na medida em que é a população infantil que
serve de parâmetro para o estabelecimento da norma e, ao mesmo tempo, como alvo de
uma regulação com base na norma.
Ainda sobre esse segundo ponto, pode-se destacar a idéia de que, tal como a
normatização disciplinar lida com modelos ótimos de perfeição, a normalização
governamental também necessita de modelos ótimos, na medida em que pode fazer
surgir os resultados exatos sobre o desenvolvimento natural se este for analisado em
condições quase perfeitas: como vimos antes, quanto mais perfeitas forem as condições,
mais supostamente exatos serão os resultados das pesquisas. Acontece que os tipos de
modelos ótimos são diferentes nos dois casos: na norma da disciplina, o que é normal, o
que é ótimo, é dado aprioristicamente; na norma governamental, quando baseada em
estudos estatísticos, o ambiente deve ser ótimo, de modo a poder isolar a variável a ser
estudada esse é um pressuposto das ciências experimentais. Ou seja: na disciplina, o
sujeito deve ser ótimo; na governamentalidade, o ambiente deve ser ótimo.
Explicitados os dois pontos, é preciso dizer, antes de finalizar esta parte, que a
combinação das três principais atividades desenvolvidas por Antipoff na Escola de
Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte docência da cadeira de Psicologia,
coordenação do Laboratório de Psicologia e assessoria ao sistema de ensino de Minas
50
Reitero que o que chamo de normalização governamental é colocado em movimento por um dispositivo
de seguridade.
138
Gerais –, conectadas às pesquisas que passou a realizar com crianças mineiras, tiveram
grande repercussão para o campo da Pedagogia no Brasil, culminando em diversas ações,
tais como os programas de educação compensatória e os programas de reeducação para as
crianças recusadas pelo sistema de ensino, que a pesquisadora passou a chamar de
excepcionais tanto orgânicos quanto sociais. Ou melhor: para além de chamar as
crianças (recusadas pelo sistema) de excepcionais, as investigações de Antipoff criaram,
de um determinado jeito, os próprios excepcionais e, ao fazerem isso, propuseram modos
educativos direcionados para eles. No entanto, ou exatamente em função disso,
os procedimentos que [Antipoff] havia sugerido para a
organização das classes homogêneas e o tratamento das crianças
com dificuldades de aprendizagem estavam se voltando contra as
próprias crianças que se pretendia ajudar. As classificações por
nível intelectual, realizadas no início do ano escolar,
transformavam-se, nas mãos da tecnocracia educacional, em
verdadeiras ‘profecias auto-cumpridas’, selando o destino de
muitas crianças com base em prognósticos baseados em
resultados de testes de Q.I. Para um grande número de crianças, o
fracasso nos primeiros anos de escolaridade tornou-se a
experiência mais freqüente. (Campos, Lourenço e Antonini, 2002,
p.24)
Nesse sentido, as críticas ao trabalho de Antipoff passaram a argumentar que as
classes especiais, para as quais a psicóloga havia sugerido os programas de ortopedia
mental, não funcionavam como o esperado, em função do excessivo número de alunos
diagnosticados como necessitando freqüentá-las. Além disso, as professoras delas
encarregadas tinham pouco prestígio no sistema” e “as escolas públicas, em sua ação
concreta, não acompanhavam o Laboratório de Psicologia na confiança nas possibilidades
das crianças” (Campos, Lourenço e Antonini, 2002, p.24).
À primeira vista, a polêmica que se instaurou em torno das alternativas
psicológico-pedagógicas propostas por Antipoff ao sistema de ensino pode ser entendida
como um descrédito na Psicologia enquanto solução aos problemas da Pedagogia. No
entanto, as críticas feitas, ao invés de enfraquecer o hífen Psicologia-Pedagogia, acabaram
139
por dar mais visibilidade às relações entre estes dois campos, contribuindo para a
fecundidade inventiva deste par, em suas relações
51
.
Considerando todo o trabalho realizado na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico
de Belo Horizonte e todas as repercussões que resultaram dele, essa instituição é apontada,
nesta Tese, como porta de entrada da Psicopedagogia no Brasil, na medida em que se
constituiu como uma das principais vias de acesso da Psicologia à Pedagogia no Brasil. E
é uma porta de entrada não apenas por ter sido a primeira instituição de ensino superior na
área da Educação rapidamente se tornando instituição modelo na formação de
educadores do país –, mas principalmente por ter possibilitado, através do trabalho
desenvolvido por Helena Antipoff, um extenso programa de pesquisa sobre o
desenvolvimento mental e bem ao modo de Claparède e de tantos outros pioneiros da
Escola Nova sobre os interesses das crianças mineiras, a partir da idéia central de que
era preciso “conhecê-las” (pode-se ler também: “inventá-las” de um certo modo) para
melhor educá-las.
O Instituto de Educação do Rio de Janeiro
O Instituto de Educação teve sua origem na Escola Normal do Rio de Janeiro
(antigo Distrito Federal), transformada em Instituto em 1932.
No que se refere às possibilidades dessa transformação, é preciso destacar a
reforma educacional realizada na capital da República em 1928, pelo então Diretor de
Instrução Pública Fernando de Azevedo. Condicionando o êxito da reforma à preparação
de novos professores, Azevedo empreendeu uma modificação na estrutura da Escola
Normal, introduzindo o estudo obrigatório da disciplina de Psicologia, que até então era
considerada facultativa. O novo programa do curso de preparação profissional da Escola
Normal previa a cadeira de Psicologia Geral como parte do terceiro ano (do ciclo
propedêutico) e a cadeira de Psicologia Experimental como parte do quarto ano (do ciclo
profissional). Conforme consta no próprio Programa (apud Accácio, 2006, p.9), a
obrigatoriedade do estudo da Psicologia permitia à Escola Normal organizar-se como um
51
Apenas como uma das muitas possibilidades que se abriram, refiro aqui a criação, em 1932, da Sociedade
Pestalozzi de Belo Horizonte, instituída por um grupo de médicos, educadores e religiosos, sob a presidência
de Helena Antipoff, na intenção de buscar soluções para o problema da exclusão no ensino regular.
140
centro de pesquisas pedagógicas e preparar suas diplomadas como “aplicadoras
conscienciosas e verificadoras autorizadas” dos princípios ditados à educação da criança.
Estariam teoricamente abertos os caminhos para a psicologização
do ensino por meio da divulgação dos testes contidos no estudo da
Psicologia Diferencial ou pela ligação com a cadeira de
Pedagogia. Entretanto, não esta ênfase no ensino na Escola
Normal do Distrito Federal durante o período Fernando de
Azevedo, seja pela não incorporação imediata por professores e
alunos de modelos estrangeiros, seja pelo maior relevo dado aos
aspectos sociais, seja pela organização na Diretoria de Instrução
de uma comissão para estudar mais detidamente o assunto antes
da introdução dos testes na escola. (Accácio, 2006, p.10)
O cargo de Diretor de Instrução Pública do Distrito Federal passa a ser ocupado,
em 1931, por Anísio Teixeira, que dá continuidade ao trabalho de Azevedo e sanciona um
Decreto transformando a Escola Normal em Instituto de Educação
52
. De acordo com
Lopes (2004), uma primeira mudança significativa proposta no projeto de criação do
Instituto refere-se à sua estrutura: para além da preparação de professores da antiga Escola
Normal, o Instituto estava organizado de modo a funcionar como um complexo educativo,
composto por Jardim-de-Infância, Escola Primária, Escola Secundária e Escola de
Professores. Dessa forma, as escolas pré-primárias e primárias (anexas ao Instituto)
serviam também como laboratórios de observação e prática de ensino para as alunas da
Escola de Professores.
Ao expor os motivos dessa transformação, Anísio Teixeira adjetiva de
indispensável a preocupação com a preparação intelectual e profissional dos mestres,
afirmando que “acima do número de escolas e do número de alumnos matriculados,
importa a qualidade do mestre, o seu preparo cultural e thecnico” (Teixeira, 1932,
p.110)
53
.
A pessoa a quem vamos confiar as nossas crianças por varias
horas durante o dia e a quem vamos pedir, o que as guarde
sòmente, mas que as eduque, acompanhando e animando o seu
desenvolvimento intellectual e moral, a par e passo do seu
desenvolvimento physico, deve possuir um coração e uma
intelligência superiormente formados, o conhecimento
52
Decreto nº. 3.810, de 19 de março de 1932, que, entre outras disposições, propõe que a formação para o
magistério, no Brasil, se dê em nível superior (Vidal, 2005).
53
Como referi em nota anterior, as citações que aqui faço das frases de Anísio Teixeira conservam a grafia
do texto original.
141
aperfeiçoado do seu mister e uma visão social larga e harmoniosa.
(Teixeira, 1932, p.111, grifos meus)
O trecho acima faz parte do documento que o então Diretor de Instrução enviou a
Pedro Ernesto (Interventor Federal no Rio de Janeiro), e que acompanhava o Decreto de
transformação da Escola Normal em Instituto de Educação, para aprovação do Interventor.
Interessante observar que, na exposição dos motivos deste Decreto, Anísio Teixeira utiliza
expressões recém introduzidas (também por ele) no discurso educacional brasileiro para
compor suas explicações. Como se pode ver no trecho citado, ele explica a necessidade da
formação dos professores, na medida em que estes devem assumir, por meio de um
conhecimento aperfeiçoado, a tarefa relativamente nova no Brasil de acompanhar o
desenvolvimento intelectual e moral das crianças.
Num outro trecho do mesmo documento, o autor afirma que deve haver uma
diferenciação dos programas da Escola de Professores, respeitando os diversos tipos e
graus de professores que se pretende formar. Ou seja, a preparação dos professores deverá
ter programas específicos a depender também da idade dos alunos com quem os mestres
irão trabalhar. E isso se faz necessário, segundo ele, não apenas porque o ensino dos três
primeiros anos da escola primária “tem características especiaes de methodo e de
objectivos”, mas principalmente porque “ahi se limita um estagio da idade infantil
apreciavelmente diverso do que se segue, de 10 a 12 annos” (Teixeira, 1932, p.113, grifos
meus).
A formação differenciada do mestre para os gráos chamados
primarias do ensino (1º, e annos) e do mestre para os gráos
chamados intermediarios (4º e annos) se impõe, não sòmente
como uma necessidade da organização escolar, diversa em um e
outro periodo, como ainda pela transição psychologica e de
desenvolvimento physico dos alumnos. (id., p.114, grifos meus)
Referindo-se agora à Escola Secundária do Instituto de Educação, Anísio Teixeira
fala em unidade e flexibilidade dos cursos, apontando tais características como inovadoras
em relação a outros institutos de instrução secundária, nos quais, segundo ele, “a extrema
divisão e independencia das matérias faz do ensino um conjuncto de conhecimentos
fragmentários e isolados. Para obviar semelhante defeito de organização escolar,
agruparam-se as matérias por secções(id., p.111). Ao descrever o modo como o ensino
secundário estava organizado no Instituto de Educação, o autor afirma que tal ensino
142
“visa, acima de tudo, a formação integral da personalidade do adolescente(id,. p.112,
grifos meus).
Ao citar os trechos do referido documento e grifar algumas de suas partes, minha
intenção é a de mostrar o envolvimento do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, desde
sua criação, com preceitos escolanovistas. Os enunciados que Anísio Teixeira utiliza para
compor sua argumentação acompanhar o desenvolvimento intelectual e moral das
crianças, caracterizar de modo especial os métodos e os objetivos de ensino, conhecer e
considerar a diversidade de estágios das idades infantis, respeitar a transição psicológica
dos alunos, agrupar as matérias escolares por seções, formar de modo integral a
personalidade do adolescente são, como pretendi mostrar na segunda parte da Tese,
próprios do Movimento da Escola Nova.
Nesse sentido, de tudo o que pode ser enfatizado com relação ao Instituto de
Educação do Rio de Janeiro, quero chamar atenção para a idéia de ele ter funcionado,
desde seu início, como um dos mais notáveis centros irradiadores dos princípios do
movimento escolanovista no Brasil. E, como se poderia supor, as possibilidades dessa
irradiação estavam sendo dispostas por uma série de acontecimentos que, combinados,
permitiram ao Instituto a materialização de propostas pedagógicas consideradas
inovadoras para o cenário educacional da época
54
.
Constituindo-se, na época, como o maior núcleo de formação de professores do
país, e sendo considerado por Anísio Teixeira (1932) como laboratório de experimentação
e ensaio para o aperfeiçoamento progressivo da preparação de professores brasileiros, o
Instituto de Educação do Rio de Janeiro tornou-se terreno fértil para o desenvolvimento de
propostas da Escola Nova na medida em que sua preocupação central era a preparação de
novos profissionais da educação para a nova escola que se almejava.
A conexão entre preceitos escolanovistas e o Instituto de Educação fica ainda mais
evidente se referirmos que o primeiro diretor geral do Instituto, convidado por Anísio
Teixeira a exercer o cargo, foi Lourenço Filho
55
. Após ter se envolvido com reformas de
54
Alguns desses acontecimentos já foram discutidos no início deste Capítulo.
55
Manoel Bergström Lourenço Filho cursou a Escola Normal de Pirassununga, interior paulista,
transferindo-se para a capital do Estado, onde concluiu os dois últimos anos na Escola Normal da Praça. Em
1918, ingressou na Faculdade de Medicina, para cursar Psiquiatria, mas abandonou o curso no segundo ano.
Em 1919, matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo. Atuou como professor primário e como
professor das Escolas Normais de Piracicaba e de São Paulo, na cátedra de Psicologia e Pedagogia. Em
1922, foi convidado pelo Estado do Ceará para realizar sua reforma de ensino, tal como seu professor
143
ensino no Ceará e em São Paulo, Lourenço Filho encontrou no Rio de Janeiro mais uma
sólida possibilidade de desenvolver suas pesquisas e, de certa forma, proceder com a
aplicação de rias idéias contidas no seu livro, publicado, Introdução ao Estudo da
Escola Nova.
Referindo-se aos inventores do Instituto e lembrando que os três eram signatários
do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, lançado exatamente no mesmo dia de
promulgação do Decreto 3.810 que transformou a Escola Normal em Instituto de
Educação –, Venâncio Filho
56
(apud Accácio, 2006, p.14) afirma:
A obra de estrutura orgânica que Anísio Teixeira concebera e
fixara em lei, instalada no prédio amplo e harmônico que
Fernando de Azevedo sonhara e transferira para a realização
arquitetônica, ia encontrar em Lourenço Filho o formador e o
criador. O Instituto de Educação representa, assim, uma síntese
dos três maiores líderes do movimento de renovação educacional
do Brasil. (grifos meus)
Sob a direção geral de Lourenço Filho, o Instituto de Educação do Rio de Janeiro
funcionou, desde o início, tal como um “laboratório de práticas e pesquisas educacionais”
(Lopes, 2005, p.48), que passaram a ser divulgadas na revista Arquivos do Instituto de
Educação, criada por Lourenço Filho
57
. Esse periódico “destinava-se a divulgar os
relatórios das atividades administrativas e relatos de práticas pedagógicas e culturais,
contando com a colaboração de professores dos vários cursos mantidos pelo Instituto e
alguns alunos da Escola de Professores que se dispunham a narrar experiências e
pesquisas ali realizadas” (id., p.45).
O primeiro número dos Arquivos do Instituto de Educação, publicado em 1934,
contém um artigo em que Lourenço Filho fala sobre a organização da Escola de
(Sampaio Dória) havia feito em São Paulo. No Ceará, exerceu o cargo de Diretor de Instrução até 1924.
Exerceu esse mesmo cargo também em São Paulo de 1930 a 1931 e, naquela ocasião, empreendeu uma
reforma das Escolas Normais. Atuava como chefe de gabinete de Francisco Campos no Ministério da
Educação e Saúde Pública encarregando-se do projeto de uma Faculdade de Educação, Ciências e Letras –
quando foi convidado pelo Interventor Pedro Ernesto e por Anísio Teixeira para assumir a direção do
Instituto de Educação do Rio de Janeiro (Lopes, 2006; Santos e Leal, 1999).
56
Venâncio Filho também era signatário do Manifesto e, mais tarde, foi professor da Escola de Professores
do Instituto de Educação do Rio de Janeiro.
57
Ao longo de sua trajetória profissional, e preocupado em “legitimar o projeto de reconstrução do país pela
educação e dar-lhe maior visibilidade” (Lopes, 2005, p.47), Lourenço Filho criou três revistas, em
momentos e locais diversos de sua carreira: Revista Educação, criada em 1922, em Piracicaba, SP; Arquivos
do Instituto de Educação, criados em 1932, no Rio de Janeiro; e Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos,
criada em 1944 e vinculada ao INEP.
144
Professores do Instituto. nas primeiras frases, o autor enfatiza o caráter de novidade da
formação de professores realizada na Escola, no que se refere aos modos como esta vinha
sendo realizada até então no Brasil:
A Escola de Professores, criada no Distrito Federal pelo Decreto
3.810, de 19 de março de 1932, e instalada no mesmo mês e
ano, representa a primeira iniciativa, no País, para prover à
formação do magistério, em nível de estudos superiores ou
universitários. Mais do que isso, talvez, assinala uma experiência
de preparação de mestres primários, em novas bases e mediante
processos ainda não sistematicamente utilizados nas escolas
brasileiras. (Lourenço Filho, 1934, p.15)
O texto que Lourenço Filho inicia com essas frases é intitulado A Escola de
Professores do Instituto de Educação e está organizado em quatro subtítulos, dentre os
quais comentarei aqui os três primeiros.
No primeiro subtítulo, o autor apresenta um breve histórico da formação de
professores no país, analisando o funcionamento das Escolas Normais brasileiras a partir
de 1834, e salientando a precariedade e brevidade dos cursos: “o exíguo preparo dos
alunos e a inadequação dos processos de ensino, principalmente nas matérias de cunho
técnico, têm impedido que essa preparação se tenha podido fazer de modo cabal”
(Lourenço Filho, 1934, p.15). Parece-me que, ao fazer esse histórico, Lourenço Filho
pretendia justificar a forma como o Instituto de Educação que dirigia estava organizado,
numa tentativa de mostrar a relevância das transformações operadas.
Numa outra passagem desse mesmo subtítulo, o autor afirma: “Nossas escolas
normais, inclusive a da capital do País, continuavam a manter até há muito pouco tempo, o
tipo tradicional, que as fazia institutos de ensino propedêutico e profissional, a um tempo”
(id.). A proposta defendida por Anísio Teixeira e Lourenço Filho era a de que esses dois
modos de ensino (o geral ou propedêutico e o profissional-pedagógico) fossem separados
e organizados sob grades curriculares diversas, que correspondessem às novas exigências
científicas assinaladas nos discursos escolanovistas. Nesse sentido, o autor explica como
ficaram dispostos os cursos do Instituto de Educação, sob sua direção:
A parte propedêutica, do antigo programa normal acrescentado de
poucas matérias, mas desenvolvido em todas, segundo o padrão
do ensino secundário federal, deu a Escola Secundária do Instituto
de Educação. O ensino profissional pedagógico, concebido em
bases inteiramente novas, veio constituir a Escola de Professores.
145
A esta se anexaram dois estabelecimentos de demonstração e
prática de ensino o Jardim-de-Infância e a Escola Primária (de
aplicação) existentes , e previu-se o funcionamento da Escola
Secundária também como instituto de demonstração para os
cursos de formação do magistério secundário. (Lourenço Filho,
1934, p.17, grifos meus)
Justificada a escolha pelas formas de disposição do Instituto, o autor inicia o
segundo subtítulo do texto apresentando a organização geral da Escola de Professores e
destacando os critérios de admissão – só ingressam na Escola de Professores as alunas que
tenham cursado a Escola Secundária do próprio Instituto:
A admissão se regula pela verificação de condições de idade,
saúde, inteligência e personalidade. A necessidade de verificação
das últimas destas condições permite compreender por que se
exige que os estudos secundários sejam, desde o início, feitos no
próprio Instituto. À Escola Secundária cabe, assim, função
seletiva e vocacional [para possível ingresso na Escola de
Professores], acentuada especialmente nos últimos anos de seus
estudos. (Lourenço Filho, 1934, p.18)
Ao falar de sua preocupação com a formação tanto profissional quanto cultural de
professores, o autor enfatiza o caráter articulador da proposta, já que previa um ensino não
fracionado por diferentes cadeiras autônomas, mas especificado apenas por seções,
orientadas por um professor-chefe e por outros professores e assistentes, quando
necessário. Com relação à definição das seções, Lourenço Filho (1934, p.18) esclarece que
os cursos da Escola de Professores versavam, tão-somente, matérias que interessem à
formação profissional: “por elas não compreendemos apenas o aprendizado de técnicas,
modos ou processos de ensino. Isso seria altamente perigoso. [...] O que se quer significar
como matérias que interessem à formação profissional é o ponto de vista com que todo
material de estudo deve ser tratado”. E esse “ponto de vista” do qual fala o autor, como se
pode perceber em vários de seus trabalhos, está diretamente relacionado à idéia de
cientificidade da educação, especialmente por meio de estudos e pesquisas de cunho
biológico e psicológico, que levam a marca da Escola Nova.
Em todo esse segundo subtítulo do texto fica claro que o objetivo final do Instituto
de Educação, nas suas diferentes Escolas e cursos, é a formação para o magistério, cuja
organização era “muito diversa da das escolas normais comuns” (Lourenço Filho, 1934,
p.18). Nesse sentido, a Escola de Professores assume um lugar central no Instituto. O
146
Jardim-de-Infância, a Escola Primária e a Escola Secundária funcionavam de modo a
possibilitar aos alunos da Escola de Professores a ampliação de seus estudos e a realização
de observações e experiências docentes e científicas.
No terceiro subtítulo do texto, o autor trata especificamente do curso de formação
do professorado primário, organizado em dois anos: o primeiro, de fundamentos, que o
autor entende como sendo a parte teórica; o segundo, de aplicação, entendido como a parte
essencialmente prática do ensino. No final do primeiro e início do segundo ano, eram
realizados “estudos de caráter intermediário, pelos quais os princípios da teoria e os
problemas da prática são considerados ao mesmo tempo” (Lourenço Filho, 1934, p.21).
O primeiro ano era dividido em três trimestres: em cada um acontecia o que o autor
chamou de curso intensivo: “estudam-se poucas matérias teóricas de cada vez, mas,
profundamente, com aulas e exercícios práticos diários” (id.). O programa foi organizado
de modo que a cada um dos três trimestres correspondessem, respectiva e sucessivamente,
estudos intensivos de: 1) Biologia Educacional, 2) Psicologia Educacional, 3) Sociologia
Educacional. O estudo de História da Educação acontecia no decorrer de todo ano,
paralelamente aos estudos de cada trimestre
58
.
O que quero destacar, ao referir o programa da “parte teórica”, é a direta relação
que se pode estabelecer entre o conteúdo dos três estudos intensivos realizados no
primeiro ano do curso e o conteúdo da primeira parte do livro Introdução ao Estudo da
Escola Nova, intitulada As Bases
59
. Naquele livro, cuja primeira edição havia sido
publicada dois anos antes da criação do Instituto de Educação, Lourenço Filho (2002)
discute o que ele chama de bases técnicas da Escola Nova, analisando as contribuições:
primeiro da Biologia, depois da Psicologia e, por fim, da Sociologia. Nesse sentido, pode-
se perceber a clara relação entre a estrutura curricular do curso de preparação de
professores primários e as teorizações próprias do movimento escolanovista, constituindo
o Instituto de Educação como um meio pelo qual foram introduzidas, na formação de
professoras brasileiras, os fundamentos que pretendiam atribuir cientificidade à educação.
58
O primeiro trimestre era aberto com uma disciplina de Introdução ao Ensino, que oferecia um panorama
geral das questões que seriam discutidas, enfocando a “função da escola e qualidades do professor”
(Lourenço Filho, 1934, p.21). Além disso, os cursos de Artes e Educação Física também eram oferecidos no
decorrer de todo o primeiro ano.
59
O conteúdo do referido livro já foi apresentado e parcialmente analisado neste Capítulo.
147
Tratava-se de instituir a formação docente no âmbito de uma ciência pedagógica, com
base nas formulações da Biologia, da Psicologia e da Sociologia.
Segundo Vidal (2005), Introdução ao Estudo da Escola Nova, de Lourenço Filho,
era o livro mais indicado nos programas das diversas disciplinas da Escola de Professores
do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, seguido do livro Vida e Educação, de John
Dewey, traduzido para o português por Anísio Teixeira, em 1930 a edição publicada
pela Editora Melhoramentos trazia também um estudo inicial de autoria do próprio Anísio
Teixeira. Além desses, também se destaca como solicitação dos programas das disciplinas
o livro Educação Progressiva, de Anísio Teixeira, publicado em 1933 pela Cia. Editora
Nacional.
Referindo-se à utilização da biblioteca como estratégia pedagógica dos cursos da
Escola de Professores, Vidal (s/d) chama a atenção para a ampliação do acervo
bibliográfico do Instituto de Educação, por meio da aquisição de diversas obras acerca da
“Pedagogia moderna”. Na mesma direção, Silveira (1959, p.76) afirma que, incentivadas
pela nova exigência do mercado, as livrarias passaram também a responder à demanda:
As livrarias, para corresponder à lei da procura, expunham em
suas vitrinas e balcões mais centrais as últimas novidades
recebidas. Decroly, Ferrière, Claparède, Piaget, Pierón,
Kerschensteiner, Kilpatrick, Dewey, Gates chegavam até os
professores no original ou em versão nacional ou espanhola.
Introdução ao Estudo da Escola Nova, Testes ABC, de Lourenço
Filho; Escola Progressiva, Em marcha para a democracia, de
Anísio Teixeira; Para novos fins, novos meios, de Fernando
Azevedo, foram os best-sellers” do momento. Não havia
professor que não os possuísse, não procurasse, em suas páginas,
informações para suas dúvidas, e sugestões e recursos técnicos
para o seu trabalho.
Para os propósitos dessa Tese, o que quero mostrar é que o Instituto de Educação
foi um dos locais por onde os conhecimentos da Psicologia passaram a ser incorporados à
Pedagogia no Brasil, apesar de não terem sido considerados de forma isolada, que a
Biologia e a Sociologia também ocuparam lugar de destaque na Escola de Professores.
Com relação a isso, cabe referir aqui o estudo de Lopes (2005) que, ao investigar a grade
curricular da Escola de Professores, analisou outros documentos além dos textos que
148
compõem os Arquivos do Instituto de Educação. Num desses documentos
60
, que se chama
Estrutura do Instituto de Educação, pode-se perceber a
privilegiada carga horária que os fundamentos biopsicológicos da
educação desfrutavam na matriz curricular da Escola de
Professores: Biologia (7h) e Psicologia (12h) em detrimento das
outras disciplinas, como História da Educação (4h), Sociologia
(6h) e Filosofia (4h). Na verdade, Psicologia era oferecida nos três
trimestres do ano, dividida em Psicologia da Criança (4h/a no
trimestre) e Psicologia Educacional (6h/a no 2º trimestre e 2h/a
no 3º trimestre). (Lopes, 2005, p.60)
De qualquer modo, ocupando a Psicologia maior ou menor carga horária, a
incorporação dos estudos psicológicos teve, como se pode deduzir, efeitos bastante vastos:
conhecer e estudar as verdades da Psicologia – que carregavam consigo o rótulo de
científicas significava também passar a agir com base nessas verdades. E mais: as
teorizações estudadas não eram incorporadas de forma estática, senão que elas permitiram
uma série de outras investigações que passaram a ser realizadas no Brasil – como passou a
acontecer no amplo complexo do Instituto de Educação. Ou seja, elas permitiram a
invenção de outras verdades sobre o ensino, os professores e os alunos brasileiros –
verdades que também foram dispondo as condições de possibilidade para a
Psicopedagogia no Brasil.
Voltemos à caracterização do curso de preparação de professores primários, a fim
de dar visibilidade a outros elementos envolvidos com a argumentação que venho
compondo nessa seção.
Tal como no primeiro, o segundo ano do curso também era organizado em três
trimestres: em cada um aconteciam, respectivamente, as seguintes atividades: 1)
observação; 2) participação; 3) direção de classe. Esse segundo ano era definido como a
parte prática, mas considerada também como atividade científica, na medida em que,
como afirmava Lourenço Filho (1945, p.36), a prática de ensino “representa um grande
campo de aplicação para o qual tudo deverá confluir”:
Não fórmulas a aplicar que se separem do conhecimento dos
objetivos da matéria a ensinar; de seu histórico; de seus
fundamentos psicológicos e sociais; de sua verdadeira
60
Localizado no Arquivo de Lourenço Filho. CPDOC / FGV. Série Temática LF / Instituto de Educação,
pasta II.
149
“metodologia”. Mas esta, por sua vez, mal se compreenderá se os
alunos não tiverem antes adquirido as noções essenciais de
biologia, da psicologia, dos estudos sociais, de certos princípios
gerais de organização escolar, que a esclareçam na recomendação
que possam fazer de meios experimentados e julgados idôneos.
Sem esses fundamentos (biologia, psicologia e sociologia) e sem
o estudo intermediário do que se convencionou chamar matérias
de ensino, não haverá prática de sentido técnico perfeito. (grifos
do autor)
Nesse sentido, as alunas eram, no decorrer do primeiro ano, cuidadosamente
preparadas para as diferentes atividades de observação, participação e direção de classe,
que compunham o segundo ano do curso.
Para as atividades de observação, realizadas no primeiro trimestre do segundo ano,
as alunas eram organizadas em pequenos grupos, e passavam a observar, em diferentes
salas de aula do ensino primário, o que Lourenço Filho (1945, p.37) chamou de “situação
geral da classe, nos seus aspectos material e de expressão humana, vida psicológica e de
vida social”. De acordo com Vidal (2005, p.299), “uma série de aulas da cadeira de
Psicologia Educacional havia sido dedicada, previamente, a disciplinar esse olhar, através
do ensino da técnica de observação da atividade infantil. Consistia em exercícios práticos
realizados com o auxílio da projeção cinematográfica”:
Depois de assistirem a uma pequena cena, limitada a dois ou três
minutos, anotavam as alunas os fatos observados. Nos primeiros
ensaios, poucas conseguiam registrar toda a seqüência dos
acontecimentos. Insistíamos, durante várias aulas, na prática de
ver e anotar a atividade infantil em rios graus do
desenvolvimento. O cinema nos dava a vantagem da correção.
(Marinho apud Vidal, 2005, p.299)
A preparação cuidadosa e persistente para a técnica da observação, realizada nas
aulas de Psicologia do Desenvolvimento, permitia às alunas iniciarem o primeiro trimestre
do segundo ano realizando a mesma técnica, mas agora repetida na própria Escola
Primária.
O segundo trimestre dessa parte prática era dedicado às atividades de participação
no ensino. Após entrevista com a professora-regente da classe na qual atuaria a professora-
aluna, esta participava como uma substituta ocasional, assumindo a regência da classe
150
num período de 20 a 30 minutos. Enquanto isso, os demais membros da turma observavam
sua atuação.
Para isso, distribuíam-se um questionário mimeografado,
contendo perguntas sobre a atitude geral do praticante (gestos,
voz, linguagem, domínio da classe); reação dos alunos (interesse,
desinteresse, excitação, temor, naturalidade); andamento da aula
em seu conteúdo (motivação inicial, coordenação com a
aprendizagem anterior, aproveitamento das situações de
interesse, desenvolvimento, consecução real dos objetivos
prefixados, verificação); e, enfim, do processo mesmo adotado,
da seqüência de suas fases e de seu aproveitamento. (Lourenço
Filho, 1945, p.38, grifos do autor)
Feitas as atividades de observação e participação, cujos resultados eram
vastamente discutidos em reuniões organizadas especialmente para este fim, as alunas
realizavam, então, no terceiro trimestre do segundo ano, a última atividade, de direção de
classe: “eram as turmas primárias entregues à responsabilidade total do aluno-mestre por
duas horas e, mais tarde, por todo o dia escolar. A professora-regente poderia mesmo
ausentar-se, sem qualquer inconveniente” (id.). Ao invés dos questionários utilizados nas
duas primeiras atividades, nesta eram solicitados relatórios, que deveriam ser redigidos
tanto pela professora-aluna, quanto por suas colegas que a observavam. No sentido de
atingir o objetivo do curso de vinculação entre teoria e prática, os relatórios deveriam ser
produzidos com base nos fundamentos estudados no primeiro ano. “Para a prática, tudo
confluía, mas, também da prática tudo refluía [...] Bem distantes estávamos da prática dos
velhos tempos...” (Lourenço Filho, 1945, p.42).
Essa última frase do Diretor Geral do Instituto de Educação do Rio de Janeiro
denota que a Escola de Professores daquele Instituto esteve envolvida, especialmente no
período de sua direção, de 1932 a 1937, com a materialização das idéias embasadas no
Movimento da Escola Nova que começaram a circular no Brasil e que eram partilhadas,
em maior ou menor grau, pelas reformas empreendidas nas décadas de 1920 e 1930.
A organização da grade curricular do curso de formação do professorado primário,
tanto na parte teórica quanto na parte prática, também vinha ao encontro das preocupações
de Anísio Teixeira. Num texto publicado em 1934, no periódico Boletim de Educação
Pública, intitulado Como ajustar os “cursos de matérias” na escola normal com os
151
“cursos de prática de ensino”, Anísio Teixeira afirma que, nas escolas normais, as
matérias devem ser ensinadas do ponto de vista da profissão do magistério:
Se o grau do magistério é o primário, os cursos de matérias serão
cursos especiais em que se ministre o conhecimento da matéria
apropriada às crianças da escola primária, e o conhecimento das
dificuldades dessas crianças em aprendê-la, dos métodos especiais
de organizá-la, dosá-la e distribuí-la para o ensino e, sempre que
possível, da história do seu desenvolvimento e da sua função na
educação da infância. (Teixeira apud Lopes, 2005, p.51)
A preocupação de Anísio Teixeira com esse tipo de organização curricular, que foi
colocado em funcionamento no Instituto de Educação, aparecia em textos escritos por
ele antes da criação do Instituto, nos quais se percebe grande influência das idéias de
Dewey e Kilpatrick. Um bom exemplo disso é o livro Aspectos americanos de educação,
publicado em 1928, no qual Anísio Teixeira relata sua excursão de estudos aos Estados
Unidos, estabelecendo relações entre a situação educacional brasileira e o que ele chama
de moderna civilização norte-americana. No quarto Capítulo, intitulado A reconstrucção
do curriculum escolar, o autor, ao se referir às diretrizes de uma teoria de educação que
seja moderna e científica, aponta o currículo como problema central da reorganização
escolar. Para Teixeira (1928), a importância da discussão em torno do currículo estava em
duas coisas: “adaptal-o à criança, cujas leis de crescimento e desenvolvimento a sciencia
vem revelando” (p.14) e adaptá-lo à sociedade moderna.
Para desenvolver a argumentação de seu relato, Teixeira (1928) salienta a teoria do
interesse como um elemento central da discussão. Por um lado, o autor entende que a
teoria do interesse auxilia o professor no descobrimento das diferenças individuais,
possibilitando um ajustamento da educação ao indivíduo.
A moderna theoria educativa está convergida para as necessidades
da criança e as suas peculiaridades. A actual psychologia chegou
a um conhecimento mais perfeito da infancia e a escola deve
prover um ambiente adequado ao seu crescimento. Dahi a
emphase actual nas actividades infantis e na independência
infantil e em um “enriquecimento de sua experiência” por meio de
processos vitaes de ensino. (Teixeira, 1928, p.15)
Por outro lado, o autor adverte que a teoria do interesse é algumas vezes usada de
modo a se obter uma excessiva reverência à infância, a partir da idéia de que é a própria
criança quem deve organizar o currículo escolar. “A excessiva consideração de uma escola
152
perfeitamente adequada às necessidades e aos instinctos da infancia leva muitas vezes a
uma concepção educativa cuja fraqueza se pode caracterizar pela sua superficialidade e
desprezo dos interesses intellectuais” (id.).
Considerando essas duas visões de reorganização do currículo na escola americana,
Teixeira (1928) aponta três fatores que devem ser conciliados na reorganização da escola:
a criança, suas necessidades e seus instintos; a atual ordem social; e as aquisições
intelectuais da humanidade. Trata-se, para ele, de um “problema de descobrir a variante
orientadora desse systema convergente de forças” (p.15). Nesse sentido, e bem ao modo
de Dewey, Teixeira (id.) afirma: “o conceito social de educação significa que, cuide a
escola de interesses vocacionaes ou interesses especiaes de qualquer sorte, ella não se
educativa se não utilizar esses interesses como meios para a participação em todos os
interesses da sociedade”.
E foi isso que, de certa forma, Anísio Teixeira propôs para as grades curriculares
das Escolas do Instituto de Educação, tanto como Diretor de Instrução do Rio de Janeiro
cargo que lhe permitiu intervir politicamente em favor da organização curricular do
Instituto –, quanto como professor de Filosofia da Educação na Escola de Professores.
Em 1932, considerando suas experiências e seus textos anteriores e considerando
também a recente transformação da Escola Normal em Instituto de Educação, Anísio
Teixeira escreveu um pequeno texto intitulado Orientação aos professores do Instituto de
Educação para o preparo de programas, em que apresentava pressupostos de
reorganização curricular baseados em Dewey e Kilpatrick texto cujas idéias foram, mais
tarde, desenvolvidas no seu conhecido livro Educação Progressiva: uma introdução à
Filosofia da Educação.
Para Anísio Teixeira, “a nova pedagogia deveria privilegiar a organização
psicológica da criança, de caráter generalista, contrapondo-se à organização gica do
especialista. Sob essas novas bases, o ensino deveria ser ministrado através de projetos [...]
organizados em harmonia com os interesses, tendências e capacidades das crianças”
(Lopes, 2005, p.52). Nas palavras do próprio autor:
A escola deve ter por centro a criança e não os interesses e a
ciência do adulto; o programa escolar deve ser organizado em
atividades, unidades de trabalho ou projetos; o ensino deve ser
feito em torno da intenção de aprender da criança e não da
intenção de ensinar do professor; a criança, na escola, é um ser
153
que age com toda sua personalidade e não uma inteligência pura,
interessada em estudar matemática ou gramática; essas atividades
devem ser reais, semelhantes à vida prática, e reconhecidas pelas
crianças como próprias. (Teixeira apud Lopes, 2005, p.52)
No sentido de ampliar o programa de formação de professores que levasse em
conta todos esses preceitos escolanovistas divulgados e re-criados, no Instituto de
Educação, especialmente por Anísio Teixeira e Lourenço Filho –, a Escola de Professores
foi organizada de modo a oferecer não apenas os cursos de preparação do professorado
primário e secundário, mas também uma série de outros cursos, tais como esses explicados
por Lourenço Filho (1934, p.25-26): a) cursos de especialização, com duração de um ano
e que preparavam “professores de Saúde, de Desenho e Artes Aplicadas, de Música, de
Educação Física e de Jardim-de-Infância”; b) cursos de aperfeiçoamento, com duração
variável, cuja principal finalidade era a “formação de especialistas em princípios e
técnicas modernas de educação (diretores, orientadores de ensino, inspetores)”; c) cursos
de extensão, geralmente livres e gratuitos, que admitia qualquer interessado, inclusive
pessoas estranhas à Escola de Professores; seus dois principais objetivos eram propagar
“as modernas doutrinas e técnicas de educação” e disseminar “as novas correntes de idéias
nas artes, nas ciências e nos estudos político-sociais”; d) cursos extraordinários,
organizados para “atender a professores dos Estados, que sejam comissionados pelos
respectivos governos, para especialização, aperfeiçoamento ou continuação dos estudos
pedagógicos em geral”
61
.
Considerando o envolvimento de seus criadores com o Movimento da Escola
Nova, o Instituto de Educação fazia funcionar o pensamento escolanovista nas grades
curriculares de todas as suas Escolas, com seus diferentes cursos.
Dessa forma, pode-se dizer que o Instituto de Educação materializava as idéias
escolanovistas de Anísio Teixeira e de Lourenço Filho, ao mesmo tempo em que se
consolidava como terreno para a constituição de novas idéias, na medida em que serviu
como local de pesquisas que passaram a ser realizadas sobre diferentes temas ligados ao
ensino e à educação. Apesar de versarem sobre temas diferentes, os estudos e as pesquisas
realizadas por professores do Jardim-de-Infância, da Escola Primária e da Escola
Secundária do Instituto e por professores e alunas da Escola de Professores tinham algo
61
De acordo com Lourenço Filho (1934), no ano de 1933 o Governo do Maranhão comissionou vinte
professoras, o Governo do Ceará comissionou dez, e o Governo da Bahia comissionou três professoras que
participaram de cursos extraordinários oferecidos pelo Instituto de Educação do Rio de Janeiro.
154
em comum: todas as investigações se embasavam em princípios da Escola Nova ao
mesmo tempo em que apresentavam resultados que reforçavam e re-criavam tais
princípios.
Algumas pesquisas foram publicadas nos Arquivos do Instituto de Educação. Uma
delas, iniciada em 1933 por Orminda Marques que atuava como professora assistente de
Prática de Ensino da Escola de Professores e como diretora da Escola Primária foi
intitulada Contribuição para o ensino da escrita nas escolas primárias (Marques,
1934b)
62
. A experiência, sob orientação de Lourenço Filho, baseou-se nos pressupostos
teóricos de psicólogos americanos (como Lister e Thorndike) e foi realizada por três anos
consecutivos nas turmas da Escola Primária do Instituto, através de exercícios caligráficos
diários. De acordo com Vidal (1996, p.249), a pesquisa “propiciou a edição, entre 1940 e
1960, de vários cadernos de caligrafia adaptados às diferentes séries da escola elementar
[...] Partindo de uma tiragem de 11 mil exemplares em 1944, a série alcançou em 1952 a
tiragem de 250 mil exemplares”. Como se vê, os efeitos dessa pesquisa (de iniciativa do
Instituto de Educação) foram bastante vastos, estendendo-se a várias partes do país e por
um longo período de tempo.
Outra pesquisa publicada nos Arquivos foi realizada por Ondina Marques
também professora assistente de Prática de Ensino e intitulada Como melhorar a
freqüência escolar (Marques, 1934a)
63
. Nesse estudo, o valor educativo da assiduidade às
aulas foi analisado do ponto de vista moral, ou seja, a infreqüência foi explicada, na
maioria dos casos, em função das tentações da vida moderna. Dessa forma, o estudo
sugeriu que as atividades escolares fossem adaptadas aos interesses das crianças, a fim de
que elas desejassem estar na escola e que sensibilizassem suas famílias para isso.
Além dessas, destacam-se mais duas pesquisas também publicadas nos Arquivos e
realizadas, em parceria, por duas professoras: Helena Mandroni (1936), cuja investigação
foi intitulada Como ensinei a ler uma classe “forte”; e Nair Freire (1936), cuja
investigação foi intitulada Como ensinei a ler uma classe “fraca”, ambas orientadas por
62
Pesquisa publicada duas vezes em Arquivos do Instituto de Educação. A primeira publicação se deu em
junho de 1934 (n.1, v.1, p.57-87) e a segunda publicação se deu em junho de 1936 (n.2, v.1, p.233-238). Tal
pesquisa acabou resultando no livro A escrita na escola primária, de autoria de Orminda Marques,
publicado em 1936, pela Cia. Melhoramentos, de São Paulo.
63
Pesquisa publicada em Arquivos do Instituto de Educação, n.1, v.1, p.91-98, jun.1934.
155
Lourenço Filho
64
. Para a realização das pesquisas, 156 crianças foram submetidas, no ano
de 1934, a testes iniciais (Testes ABC) e, em função dos resultados, foram organizadas em
duas turmas: uma delas foi composta apenas por crianças cujos resultados foram
considerados satisfatórios (classe forte) e a outra foi composta por crianças que haviam
apresentado rendimento não tão satisfatório nos testes (classe fraca). A intervenção de
Lourenço Filho, auxiliando a professora pesquisadora, se deu mais diretamente junto à
classe fraca. A experiência de selecionar classes fortes e fracas por meio dos Testes ABC
continuou a acontecer na Escola Primária até o final da gestão de Lourenço Filho, em
1937. De acordo com Vidal (s/d), as pesquisas possibilitaram reformulações no texto do
livro Testes ABC, de Lourenço Filho, que dizia estar, com as investigações, cumprindo o
seu papel de atuar na revisão da pesquisa pedagógica nacional.
65
Considerando a organização da Escola de Professores, a estrutura de sua grade
curricular e as investigações que eram realizadas, pode-se dizer que o movimento de
renovação educacional que tomou corpo no Instituto de Educação especialmente no
período da gestão de Lourenço Filho (1932-1937) implicava, de modo combinado, a
reformulação dos programas de ensino, a reorganização dos espaços e dos horários
escolares, a utilização de dados estatísticos para justificar as novas medidas, a realização
de diversos estudos e pesquisas, etc. E, ao criar uma política de profissionalização docente
que pretendeu servir de modelo, as práticas do Instituto de Educação acabaram por criar
também estratégias para administrar e reformar o ensino não apenas nas escolas do
Instituto, mas em grande parte da rede escolar do Rio de Janeiro, influenciando, também –
por meio dos diferentes cursos que oferecia –, a reorganização das redes escolares de
várias cidades brasileiras.
Com a criação da Universidade do Distrito Federal, a Escola de Professores
transformou-se, em 1935, em Escola de Educação, vinculada à UDF
66
, mas ainda sob a
administração central do Instituto. Em 1936, por uma série de razões que extrapolam os
objetivos dessa Tese, foi aprovado o Decreto 156 que extinguiu a exigência do curso
64
Pesquisas publicadas em Arquivos do Instituto de Educação, n.2, v.1, p. 239-246 e 247-264
(respectivamente), jun.1936.
65
Além desses estudos, destaco aqui, apenas como exemplo, mais algumas pesquisas publicadas nos
Arquivos do ano de 1936, tais como: O ensino de História Natural na Escola Secundária (Werneck, 1936);
O ensino de Física na Escola Secundária (Oliveira, 1936); O ensino de Matemática na Escola Primária
(Souza, 1936); Execução de um “projeto” (Campos. 1936).
66
A Universidade do Distrito Federal foi criada por iniciativa de Anísio Teixeira, tendo como primeiro reitor
Afrânio Peixoto. Foi extinta em 1939, durante o Estado Novo (Santos, 2007).
156
superior para a formação de mestres da escola primária
67
. Dessa forma, o Instituto de
Educação foi, aos poucos, empalidecendo sua função de escola-laboratório (Vidal, 1996).
Apesar do desmonte da Escola de Professores tal como havia sido concebida
especialmente por Lourenço Filho e funcionado no período de 1932 a 1936 – e apesar das
questões políticas que estiveram envolvidas nisso –, as condições para a naturalização da
Psicologia como fundamento da Pedagogia haviam sido dispostas. Nesse sentido, uma
série de outras pesquisas sobre as relações entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento
infantil continuou a ser desenvolvida no Instituto de Educação, mesmo após o Decreto
156/1936 e mesmo com a saída de Lourenço Filho em 1937.
Em função de a prática da pesquisa ter se tornado uma das principais atividades do
Instituto, houve a consolidação, junto a ele, do Centro de Pesquisas da Criança
68
. Heloísa
Marinho
69
, como coordenadora do Centro e como professora adjunta de Psicologia
Educacional no Instituto de Educação, envolveu-se em investigações sobre a linguagem
infantil, culminando em estudos sobre o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita,
com base na Psicologia do Desenvolvimento
70
.
67
Para uma discussão sobre as tensões nas relações profissionais entre Anísio Teixeira e Lourenço Filho,
principalmente no período após 1935, quando a Escola de Professores se transformou em Escola de
Educação da Universidade do Distrito Federal (com as disputas decorrentes disso), ver Lopes (2006), que,
entre outras coisas, faz uma análise das correspondências trocadas entre Anísio Teixeira e Lourenço Filho e
também entre esses e Capanema, Fernando de Azevedo e Frota Pessoa.
68
O Centro de Pesquisas da Criança havia sido criado por Lourenço Filho. Doze anos depois de seu
afastamento do Instituto, criou-se, em 1949, o Curso de Especialização Pré-Primária, que consolidou o
Centro de Pesquisas da Criança também como um espaço de formação de professores especializados. Em
alguns documentos, é também chamado de Centro de Estudos da Criança (Kuhlmann Jr., 2000; Leite Filho,
2000).
69
Heloísa Marinho graduou-se em Filosofia e Psicologia, na Universidade de Chicago. Em 1934, ingressou
no Instituto de Educação como professora assistente de Lourenço Filho, na cadeira de Psicologia da
Educação, na Escola de Professores. Em 1938, foi nomeada professora adjunta de Psicologia Educacional da
Faculdade de Educação da UDF. No contexto do movimento de renovação educacional brasileiro, Heloísa
Marinho é considerada referência na área da educação pré-primária. Seu pensamento foi fortemente
influenciado pelas idéias de Froebel e sua atividade docente sempre esteve ligada à pesquisa.
70
Em 1938, Heloísa Marinho desenvolveu no Instituto, com a orientação de Lourenço Filho, a pesquisa O
Teste ABC e o desenvolvimento da linguagem e do pensamento na idade pré-escolar. Um ano depois,
iniciou uma de suas principais pesquisas, que possibilitou uma série de outras investigações posteriores, que
foi intitulada A linguagem na idade pré-escolar, realizada com a colaboração das alunas de Psicologia
Educacional da Escola de Professores do Instituto de Educação, então vinculado à Universidade do Distrito
Federal. Essa pesquisa “teve continuidade nos anos 50 e 60 com as alunas do curso de Pedagogia Especial
do IERJ [...]. A pesquisa utilizou crianças das classes da escola maternal e do jardim de infância [...].
Centenas de crianças são observadas e acompanhadas em sua evolução, quase que dia a dia. É um estudo
longitudinal. São estudadas crianças de 5 meses a sete anos” (Leite Filho, 2000, p.7). Entre outras pesquisas
realizadas por Heloísa Marinho, e vinculadas ao Instituto de Educação, destacam-se: O vocabulário da
criança de sete anos, realizada em 1942; Métodos de ensino da leitura, realizada em 1944; Lógica e
desenho, realizada em 1945; A escrita na escola primária, realizada em 1947; Prova de avaliação da idade
157
A análise de uma série de textos – em especial os do periódico Arquivos do
Instituto de Educação (Lourenço Filho, 1934; Marques, 1934a; Marques, 1934b;
Mandroni, 1936; Freire, 1936) e também os textos Reorganização do Ensino Normal e sua
transposição para o plano universitário (Teixeira, 1932), Aspectos americanos de
educação (Teixeira, 1928), Prática de Ensino (Lourenço Filho, 1945) e o estudo de
outros textos sobre O Instituto de Educação do Rio de Janeiro Accácio (2006), Lopes
(2004; 2005; 2006), Vidal (s/d, 1996, 2005), Silveira (1959) permitem a afirmação de
que, entre outras coisas, as práticas do Instituto de Educação do Rio de Janeiro
funcionaram, especialmente na década de 1930, como porta de entrada da Psicopedagogia
no Brasil, na medida em que possibilitaram a circulação de idéias escolanovistas no País e,
ao mesmo tempo, consolidaram o terreno para a produção de uma série de outras
pesquisas fundamentadas naquelas idéias; pesquisas cujos resultados estiveram envolvidos
na constituição de verdades sobre as formas de ensino e aprendizagem nas escolas pré-
primárias, primárias e secundárias; verdades que, apoiando-se nos preceitos da Psicologia,
recriavam esse próprios preceitos nas práticas escolares, constituindo cada vez mais a teia
que enredava o par Psicologia-Pedagogia: teia fundamental para a emergência da
Psicopedagogia.
Nesse sentido, e para concluir essa terceira parte da Tese, é possível dizer que as
práticas (e aqui estou entendendo os discursos também como práticas) realizadas no
Brasil, especialmente nas décadas de 1920 e 1930, por psicólogos, educadores e
estudiosos da Psicologia e da Pedagogia tais como Fernando de Azevedo, Lourenço
Filho, Anísio Teixeira, Helena Antipoff, entre vários outros que de algum modo se
envolveram no movimento brasileiro de renovação educacional foram, não
sistematicamente, dispondo as condições de possibilidade para a emergência da
Psicopedagogia no Brasil, tal como pretendi mostrar ao longo dos Capítulos IV e V.
Feito isso, passo, na última parte desse trabalho, a discutir o que eu entendo ser
apenas alguns dos muitos efeitos da Psicopedagogia no cenário atual; efeitos que mantém
uma relação direta com as condições de possibilidade não somente da emergência da
Psicopedagogia, mas também da legitimidade de seu funcionamento.
gráfica, realizada em 1956; Escala do desenvolvimento físico, psicológico e social da criança brasileira,
realizada em 1957.
158
QUARTA PARTE
A PSICOPEDAGOGIA NO CENÁRIO ATUAL
159
CAPÍTULO VI
NORMALIZAÇÃO, RISCO SOCIAL, APRENDIZAGEM
Quero iniciar este Capítulo relatando uma experiência que tive como alfabetizadora
de uma escola estadual. Na turma de primeira série da qual fui professora, havia um aluno
que se diferenciava de todas as outras crianças da classe. Ainda que todas as crianças
fossem consideradas por mim como diferentes entre si, elas, de forma geral, apresentavam
determinados comportamentos, atitudes e rendimentos que eram, digamos, comuns à
turma inteira. R. – o aluno de que falei – fugia por completo dessas “semelhanças”
apresentadas e seguidas pelo restante de seus colegas. Tão logo percebi essa acentuada
“diferença” traduzida principalmente por determinadas dificuldades de caráter
cognitivo
71
minha (pre)ocupação com esse aluno aumentou relativamente à
(pre)ocupação que eu tinha com as demais crianças sob minha responsabilidade; e isso me
fez sair em busca de informações complementares sobre R. Conversando com outras
professoras, com a orientadora educacional e com a diretora da escola, fiquei sabendo que
R. tem seis irmãos que estavam todos matriculados nessa mesma escola, em turmas
diferentes, e que todos eles também apresentavam uma série de dificuldades de
aprendizagem. Meu próximo passo foi, então, localizar em que turmas estavam
matriculados os quatro irmãos e as duas irmãs de R. e saber de suas professoras de que
forma elas estavam lidando com as dificuldades das referidas crianças. Minha
71
Algumas das dificuldades apresentadas pelo aluno R., nessa turma de primeira série: R. não reconhecia as
letras, não escrevia seu nome corretamente, não fazia a correspondência entre numerais e quantidades (nem
mesmo tratando-se de numerais mais simples, de um a nove), não ligava formas geométricas iguais, trocava
o nome das cores, entre outras. Importante destacar que essas eram operações realizadas com facilidade pelo
restante dos alunos dessa turma e são operações consideradas necessárias para que um aluno prossiga no
processo de alfabetização.
160
movimentação nesse sentido fez com que a diretora da escola convocasse (mais) uma
reunião com a mãe desses alunos; uma reunião para que cada professora fizesse um
“balanço” dos rendimentos das crianças na escola; e, principalmente, uma reunião para
que mãe e professoras, juntas, pudessem encontrar meios que permitissem a essas crianças
obterem melhores resultados.
Eu e minhas colegas, que trabalhavam com os irmãos e irmãs de R., fomos
orientadas pela orientadora educacional (especialista em Psicopedagogia) a aplicarmos
alguns testes com essas crianças antes de a reunião acontecer. Com isso, salientou a
orientadora, teríamos documentos (os testes) que dariam respaldo a nossas observações e
comentários referentes aos sete irmãos. Foi dessa forma que começamos a aplicar, junto a
essas crianças, alguns trabalhos de cunho avaliativo e a elaborar, a partir desses trabalhos e
das observações realizadas por nós em aula, pareceres descritivos sobre cada um dos sete
alunos em questão.
É importante salientar que nossa intenção era tão somente a de resolver o problema
das dificuldades apresentadas por esses alunos. Eles estavam sendo colocados sob
avaliação porque não atingiram a média mínima exigida pela escola para a progressão
escolar fato que sempre nos preocupava muito enquanto professoras. No entanto, foi
depois que “o circo já estava armado” que percebi que os testes estavam sendo aplicados
às crianças não simplesmente em função do seu insatisfatório aproveitamento cognitivo,
mas, principalmente, para que pudéssemos apontar as causas, as origens do próprio caráter
de “falta” que essas crianças apresentavam. Ao invés de tão somente estarmos avaliando o
desempenho dos alunos, nós estávamos, antes de tudo, tentando dizer quem eles eram, de
que maneira eles agiam, quais eram seus comportamentos, suas condutas. E foi em direção
a essas coisas, muito antes do que ao insatisfatório aproveitamento cognitivo em si, que os
testes foram aplicados e que os pareceres foram escritos. O que nós estávamos fazendo
era, em primeiro lugar, constituir o baixo rendimento escolar de cada uma daquelas
crianças como um traço individual.
E foi exatamente assim que, na reunião com a mãe, nós professoras, orientadora
educacional e diretora: especialistas na área da Educação e, portanto, pessoas legitimadas
a enunciarem determinados valores educacionais colocamos em questão não
precisamente o baixo rendimento, mas as condutas irregulares, apontadas como o ponto de
partida das faltas que as crianças apresentavam. Todas as sete crianças dessa família foram
161
consideradas “desatentas”, “preguiçosas”, “teimosas”, “imaturas”, “bagunceiras”, “mal-
educadas” e algumas delas ainda foram consideradas “debochadas” e “violentas”. Além
disso, foi dito que essas crianças: “faltam muito às aulas”, “quando vão, geralmente
chegam atrasadas na escola”, “não realizam as tarefas de casa”, “atrapalham o andamento
da aula”, “implicam com os colegas”, “não sentam adequadamente, nem para o lanche,
nem para as atividades de sala de aula”, e “não mantêm um bom relacionamento com o
grupo de forma geral”.
E mais ainda: o que estava em questão eram as condutas irregulares não apenas das
crianças, mas também da sua família, que não estava suficientemente cumprindo seu papel
na tão necessária articulação família-escola
72
. Nesse sentido, também foi apontado na
reunião que a família dessas crianças nesse caso representada pela mãe
“provavelmente não esteja estimulando os filhos a realizarem as tarefas de casa”,
“provavelmente não verifique regularmente os cadernos de seus filhos”, “provavelmente
não esteja orientando os filhos quanto a suas condutas junto a outros colegas e à
professora”, “provavelmente não esteja salientando a importância de se ir à escola
diariamente, respeitando os horários de chegada”. Tais formulações foram, de fato,
confirmadas pela mãe das crianças, justificadas pelos seguintes argumentos: “os pais das
crianças não são presentes”
73
, “eu trabalho fora o dia todo”, “os filhos menores ficam sob
a responsabilidade dos maiores”, eu não tenho dinheiro para o material escolar” e “todos
eles ainda estão matriculados, por causa da bolsa-escola”.
De acordo com a diretora, isso havia sido discutido, mais ou menos da mesma
forma, nas outras reuniões que a equipe educacional realizou com essa mãe. Escola e mãe
tinham combinado que, juntas, resolveriam, ou ao menos amenizariam, alguns dos
referidos problemas. Para tanto, ficou sob a responsabilidade da escola oferecer todo o
material de que os sete alunos precisariam, oferecer algumas passagens escolares para o
transporte das crianças e oferecer, também, a merenda diária para elas, além de dar a
bolsa-escola correspondente às sete matrículas. A parte da mãe nesse acordo era a de fazer
com que todos os seus filhos fossem efetivamente às aulas, nos horários corretos, e a de
cobrar das sete crianças a realização de todos os temas de casa ficou acertado, também,
que as professoras sempre passariam tarefas de casa a esses alunos, de forma que quando
72
Para uma discussão sobre a aliança entre família e escola, ver, entre outros, Klaus (2004) e Narodowski
(1999, 2001b).
73
Nem todos os irmãos são filhos do mesmo pai.
162
os filhos respondessem “hoje não tarefa”, a mãe saberia que o filho não realizou o
tema.
Portanto, dois principais fatores salientados como os mais importantes nesse
acordo entre a escola e a mãe: criar nas crianças o hábito de estudar na escola e também
em casa, tendo horários direcionados especificamente para isso (por isso os temas diários)
e fazer com que as crianças percebessem que a escola e a mãe estavam trabalhando em
conjunto (fazê-las perceber que a mãe sabia das atividades propostas pelas professoras e
que as professoras sabiam das cobranças feitas pela mãe).
Como enfatizou a diretora, isso tudo havia sido discutido em outras reuniões e o
fato era que, apesar de a escola estar cumprindo sua parte no acordo, a mãe efetivamente
não cumpria com a sua. Isso levou as professoras, a orientadora e a diretora a concluírem
que se trata de uma mãe “mentirosa” e “irresponsável”, o que faz seus filhos também
serem “mentirosos” e “irresponsáveis”. Em suma, a “mentira” e a “irresponsabilidade” da
mãe e, por conseqüência, a “mentira” e a “irresponsabilidade” de suas crianças foram
consideradas como mola propulsora para todas aquelas dificuldades de caráter cognitivo
apresentadas pelos sete alunos: dificuldades que, de início, motivaram a discussão. Todas
essas descrições comportamentais (relatando procedimentos, manifestações, reações,
episódios) fizeram funcionar determinadas justificativas morais, sociais e culturais no
campo educacional – como, por exemplo, “é irresponsável”, “é pobre”, “convive em
ambiente culturalmente limitado”, “não reconhece o valor social da escola”, então, “não
aprende”. A ênfase no fato de que a escola e a mãe já haviam estabelecido um acordo e
que este não tinha sido cumprido pela mãe da outra vez, tornou essa mãe ainda mais
moralmente culpada e justificou, por assim dizer, toda a culpa das crianças em não
aprenderem como aprendia o restante de seus colegas.
Iniciei este Capítulo com o relato dessa minha experiência porque a considero
ilustrativa das preocupações e dos interesses que os psicopedagogos manifestam
atualmente. São eles os inadaptados, os sujeitos do fracasso escolar, os alunos com
problemas de aprendizagem que figuram no centro das investigações e das práticas
psicopedagógicas. E parece que estas investigações e práticas têm se legitimado na mesma
proporção em que cresce o debate em torno da constituição da Psicopedagogia como
campo independente do saber.
163
Ao contar essa história da qual também participei posicionada no lugar de quem,
por sua formação, estava legitimada a sentenciar quero chamar a atenção para três
pontos de análise, imbricados entre si, e que podem ser entendidos como mantendo uma
relação direta com as condições de possibilidade não apenas de emergência da
Psicopedagogia, mas também do seu caráter de veridicidade que lhe conferiu a
legitimidade de seu funcionamento no interior das práticas escolares. Eis os três pontos de
análise: Psicopedagogia envolvida no processo de normalização; Psicopedagogia
envolvida na gestão do risco social; Psicopedagogia envolvida no deslocamento do ensino
para a aprendizagem.
Psicopedagogia envolvida no processo de normalização
O primeiro ponto de análise refere-se à idéia de que a normalização é um processo,
ao mesmo tempo, de inclusão e de exclusão. No caso relatado, por mais que pensemos que
a inclusão estivesse acontecendo pelo simples fato de as crianças estarem matriculadas na
escola, o olhar que direcionávamos a elas acabava por excluí-las de um processo que se
pretendia igual para todos os alunos. O fato de nos reunirmos para discutir a situação
específica dessa determinada família criou um espaço diferenciado para ela dentro da
escola. E as formulações que passaram a circular no ambiente escolar, como resultado de
mais essa reunião, contribuíram para que o espaço diferenciado no qual a família em
questão foi situada fosse construído negativamente. Um espaço criado por meio da
detecção de supostas falhas, fraquezas e incapacidades dos membros dessa família,
perpassada pelas idéias de inferioridade, pobreza, instabilidade, irregularidade, enfim,
fracasso.
Tal família tornou-se, dessa forma, um objeto a ser corrigido e sobre esse objeto
recaiu uma série de técnicas de reinserção, com a intenção de (re)adaptá-lo e foi a esta
família que o processo de normalização recaiu muito mais intensamente. Mais ainda: essa
reinserção teve como ponto de partida a “identidade cultural” atribuída a cada um dos sete
irmãos, já que para eles foram elaborados relatórios detalhando o perfil de criança, de filho
e de aluno que cada um deles tem.
Desde as pedagogias corretivas, com a constituição da infância anormal, instaura-
se, ou melhor, dá-se maior visibilidade à dicotomia entre crianças normais e crianças
anormais, sendo que como desenvolvi na segunda e terceira partes da Tese foi com
164
estas últimas que os pioneiros do Movimento da Escola Nova se ocuparam inicialmente.
Acredito que desde então foram se colocando as condições de possibilidade para a
emergência de um sistema de saberes psicopedagógicos que teve facilitado o seu ingresso
nas práticas escolares com as novas revisões da dicotomia entre crianças normais e
anormais no interior das ações pedagógicas contemporâneas, considerando a tendência
educativa psicologizante dentro mas também fora do contexto escolar.
Bobbio (2001) salienta que a instauração de uma dicotomia dá-se quando a
possibilidade da divisão de um universo em duas partes que abrangem a todos (dando
lugar a todos os entes daquele universo, ou seja, compreendendo tudo e todos, de forma
que nada e ninguém seja excluído, não havendo, portanto, terceira opção) e que, ao mesmo
tempo, eliminam aqueles já estabelecidos em uma das duas partes (excluindo de uma parte
o ente que está compreendido na outra). Isso significa que todos os entes de um universo
dicotômico devem necessariamente estar de um lado ou de outro, mas jamais de um lado e
de outro.
Além disso, ainda de acordo com Bobbio (2001), a instauração de uma dicotomia
depende de, pelo menos, duas situações: a) ou os dois termos são definidos
separadamente; b) ou somente um dos termos é definido, restando ao outro uma definição
negativa. Pode-se dizer que a dicotomia normal/anormal se encaixa nos dois casos: no
primeiro, porque, tratando-se de práticas educativas, há definições para normal e
definições para anormal; no segundo caso, porque não raramente se define apenas o
normal, enquanto que o anormal é entendido como o não-normal.
Tal discussão nos remete à idéia de que os termos são definidos um em relação
ao outro; por mais que possam ser entendidos separadamente, a existência de um termo
depende necessariamente da existência do outro. Nesse sentido, os dois termos da
dicotomia não podem ser identificados com alguma suposta classificação naturalmente
aceita sobre a qual se deve tomar alguma posição, que não nada inerentemente
normal ou anormal nas condutas dos alunos. Os normais jamais existiriam sem os
anormais, o que equivale a dizer que uma pessoa ou um comportamento é considerado
normal em sua relação com uma pessoa ou um comportamento presumivelmente anormal
(e vice-versa). Cada elemento da oposição binária é, pois, fabricado um em comparação
com o outro e só ganha significado quando colocado frente a frente com seu opositor.
165
Acontece que a cada um desses elementos não se atribui o mesmo juízo de valor. A
um deles atribui-se uma força positiva, indiscutível, evidente, privilegiada, restando ao
outro um significado negativo, rejeitado, proibitivo, contraproducente. A colocação dos
sujeitos na primeira posição pode variar, dependendo do lugar de onde se fala e da gica
predominante a partir da qual as práticas escolares estão organizadas. Quase sempre,
nesses binários, o primeiro elemento é o positivo e isso decorre não de uma sua suposta
“natureza intrínseca”, mas do arbitrário do ato de quem nomeia. Ou seja, uma das
principais características da instauração de uma dicotomia é a assimetria das relações de
poder com que opera. Como explica Veiga-Neto (2001a, p.234), “quem parte e reparte
fica com a melhor parte”.
Foucault (1987) chama a atenção para a idéia de que aquilo que se convencionou
chamar de normal ou anormal são categorias que estão sob um mesmo quadro de
referência: a norma, que é uma referência do indivíduo não com ele mesmo, mas em
relação com o universo mais amplo dos indivíduos. A norma organiza, dispõe os
elementos de uma população. Daí que não há conceito de norma sem conceito de
população entendida como um corpo múltiplo, que tem uma regularidade própria. Se
não há norma sem população, então a norma não é algo natural, algo que seja da natureza,
algo próprio: ela é sim estabelecida arbitrariamente e sua emergência está envolvida na
histórica transformação dos processos de individualização dos sujeitos.
Referindo-se a tal transformação, Foucault (1991;1995) fala em duas formas de
individualização: a ascendente e a descendente.
A individualização ascendente é característica das sociedades de soberania, nas
quais os sujeitos eram tão mais individualizados quanto maior fosse seu privilégio e
prestígio social, seja pelos papéis que exerciam enquanto indivíduos, seja por feitos que
realizavam e que eram considerados grandiosos, seja pela família de tradição a qual
pertenciam; enfim, pela detenção de domínios diversos, mas exclusivos dos soberanos. A
principal estratégia de individualização característica da Idade Média era a dominação
violenta: tratava-se sobretudo de domesticar e escravizar os sujeitos para dominá-los e
submetê-los aos soberanos (senhores feudais, padres, clero, entre outros). Daí que esta era
uma estratégia de individualização do tipo ascendente: quanto mais se detinha domínio
sobre outros, mais individualizado se era.
166
A individualização descendente é característica das sociedades disciplinares, nas
quais se visibilidade a todos os sujeitos, exercitando seus corpos, dotando-os de
capacidades, aumentando suas habilidades e suas forças de trabalho, ao mesmo tempo em
que torna estes corpos obedientes e úteis. A principal estratégia de individualização
característica do início da Modernidade passa a ser o poder disciplinar (anônimo e
funcional): trata-se agora não de dominação violenta e apropriação dos corpos, mas de
disciplinamento desses corpos, dando muito mais destaque a eles do que ao poder que se
exerce sobre eles. Nesse sentido, esse tipo de individualização, ao se estender a todas as
pessoas, tende a produzir seus efeitos mais intensamente naquelas pessoas sobre as quais o
poder se exerce ainda mais sagazmente: quanto mais o poder disciplinar for arguto, sutil,
refinado, maior será a individualização das pessoas a quem ele se dirige. Nas palavras de
Foucault (1987, p.160), “as disciplinas marcam o momento em que se efetua o que se
poderia chamar a troca do eixo político da individualização”; a individualização deixa de
ser “ascendente”, para se tornar uma “individualização descendente”:
Num sistema de disciplina, a criança é mais individualizada que o
adulto; o doente o é antes do homem são; o louco e o delinqüente
mais que o normal e o não delinqüente. É em direção aos
primeiros que se voltam todos os mecanismos individualizantes; e
quando se quer individualizar o adulto são, normal e legalista,
agora é sempre perguntando-lhe o que ainda há nele de criança,
que loucura secreta o habita, que crime fundamental ele quis
cometer. (id., p.161)
Nesse sentido, os alvos das tecnologias disciplinares de poder são, principalmente,
as pessoas que estão nas margens da sociedade: são essas as pessoas que devem ser, antes
de tudo, recuperadas e trazidas para o centro. Está aí uma das principais cartadas deste tipo
de individualização: é a partir de seu processamento que os sujeitos tornam-se indivíduos
detalhadamente caracterizados, e, assim, é a partir daí que se podem identificar as margens
e que se podem distinguir as pessoas que devem ser recuperadas daquelas que estão no
centro. A individualização tem, assim, uma função singularizadora: ela atribui a cada
sujeito determinadas características que passam a ser próprias dele, determinadas marcas e
traços que passam a pertencer somente a ele, lhe confere determinados sinais que passam a
ser únicos e particulares, aponta minuciosamente suas peculiaridades, enfim, coloca em
evidência o caráter de exclusividade de cada sujeito em especial, tornando-o indivíduo
singular. Esse processo permite que os elementos que compõem as massas possam ser
167
divididos em partes, para melhor serem examinados, esquadrinhados, conhecidos no
detalhe e, enfim, codificados. O múltiplo é devidamente decomposto e analisado, para,
logo em seguida, transformar-se em classes, categorias, grupos que quanto mais
organizados forem, melhor. Trata-se de ordenar a multiplicidade. Para isso, faz-se das
pessoas, objetos: que podem ser classificados, categorizados, agrupados. E a massa é,
então, composta novamente; torna-se uma massa homogênea formada por elementos
individualizados (Foucault, 1987).
Na troca dos processos de individualização, deu-se um deslocamento do poder
judiciário (lei) para o poder da norma (regulamento). A lei era utilizada como instrumento
das relações de soberania, que faziam seus discursos valerem somente enquanto vontade
soberana, baseada em códigos jurídicos. Nas relações disciplinares, a norma é que passa a
ser utilizada como instrumento; mas não significa que o poder jurídico deixe de existir ou
perca completamente a sua força: acontece que ele deixa de ser o centro do sistema de
controle social. Em outras palavras: a lei é uma sedimentação da norma: isso quer dizer
que a norma não extingue a lei, mas a transcende. A norma é muito maior do que a lei; se
já está legalizado é porque a lenta curva de sua emergência já estava sendo formada. Nesse
sentido, os códigos legais continuam atuando ativamente na sociedade disciplinar, mas, ao
invés de serem baseados na relação soberano-súdito, passam a ser sustentados pela norma,
que tem por referência a massa populacional, é estabelecida pelos discursos e medida pela
estatística (Foucault, 1987; 1992b; 1992c; Barret-Kriegel, 1990).
Todo esse movimento implicou, também, uma ruptura epistemológica. A
Sociedade da Lei é, em suma, fundamentada numa lógica do “tudo ou nada”. Nessa lógica,
apenas para dar um exemplo, existe o estado da loucura e o estado da não-loucura. Com a
ciência moderna, surge o conceito de continuum que, para voltar ao exemplo da loucura,
permite que apareça o conceito de doença mental, que vai da loucura total à ausência total
da loucura, de forma que não haja mais nenhuma diferença extremamente radical entre o
louco e o não-louco. Para estabelecer esse caminho da loucura à não loucura são
produzidos diversos saberes principalmente da área psi, a fim de corrigir os “loucos” e
trazê-los de volta à normalidade. Trata-se de uma recuperação ou, para usar o termo de
Foucault (1987, p.161), trata-se de uma ortopedia. “Todas as ciências, análises ou práticas
com radical ‘psico’ têm seu lugar nessa troca dos processos de individualização”. Isso
possibilita inverter a lógica do “tudo ou nada”, dando lugar à idéia de “gradiente”, que é
organizada em torno da norma e baseada numa epistemologia da continuidade.
168
No curso Seguridade, Território, População, ao tratar da passagem das sociedades
disciplinares para as sociedades de gestão governamental que colocam em operação o
dispositivo de seguridade, Foucault (2006) nos possibilita refinar o conceito de
normalização. A partir das discussões feitas pelo autor, fica mais clara a idéia de que o
poder da norma funciona, sim, tanto nas sociedades disciplinares quanto nas sociedades de
gestão governamental; mas, na medida em que estas últimas reativam e complicam
mutuamente (nelas mesmas) a lei e a disciplina, o poder da norma também se transformou.
Nesse sentido, a norma não pode ser entendida tão somente como o elemento articulador
entre os dispositivos disciplinar e de seguridade, senão que ela funciona de modos
diferentes num e noutro dispositivo.
O dispositivo disciplinar opera com normas externas, que ocorrem a partir de
modelos ótimos de perfeição, ou seja, uma partição binária entre normal e anormal que
é criada a partir da norma; nesse caso, a norma é anterior às noções de normal e anormal:
cria-se a norma, observa-se o indivíduo e, com base nessa mesma norma, classifica-se o
indivíduo. Em outras palavras: trata-se de normatização; ou seja, a produção da norma
antecede a produção do normal.
O dispositivo de seguridade, diferentemente, opera com dados que são anteriores
às próprias normas; dados (estatísticos) retirados da população, que criam as normas e
estas então passam a funcionar como elementos para uma intervenção: observa-se a
população, determina-se a norma e intervém-se com base nela. Em outras palavras: trata-
se de normalização, processo de enquadrar dentro da faixa de normalidade. Interessante
nesse último caso é o fato de que, deduzindo-se a norma a partir de dados prévios a ela,
pode-se legitimá-la com mais facilidade do que se fazia na lógica disciplinar, na medida
em que é a própria população que serve tanto como parâmetro para o estabelecimento da
norma quanto como alvo de uma regulação com base na norma. Portanto, desde o
surgimento da biopolítica, característica das sociedades de gestão governamental e do
dispositivo de seguridade, não se cria o normal e o anormal a partir da norma: a norma é
criada a partir do que se determina como normal, legitimando tal feito com base no
argumento de que este normal é extraído do interior de uma população – e encobrindo seu
caráter arbitrário.
Em suma, a norma classifica, mede, avalia e hierarquiza os sujeitos, seus
comportamentos e suas capacidades: seu poder estabelece a noção de normalidade e,
169
concomitantemente, ao definir o que é normal, determina também a anormalidade
74
. Os
processos de normalização funcionam como um mecanismo para tornar o caos e a
diferença inteligíveis: processo arbitrário, de lutas, de poderes, de arena interna, mas que
recobre a si mesmo, legitimando-se, tornando-se verdadeiro e naturalizado.
Portanto, a norma não é um conceito ético construído através de um acordo feito
por discussão coletiva; a norma é o resultado de um processo de comparação,
hierarquização, homogeneização e in/exclusão fazendo com que todos se posicionem no
interior dela. A norma homogeneíza porque coloca todos dentro dela: nesse sentido, trata-
se de incluir. Mas quando, homogeneizando, marca normalidades e anormalidades, a
norma exclui (Foucault, 1987). Como diz Veiga-Neto (2001b, p.105): “incluir para
excluir”. Ou, como salienta Lopes (2007, p.11):
Inclusão e exclusão estão articuladas dentro de uma mesma matriz
epistemológica, política, cultural e ideológica. Todo o espaço
determinado por uma determinada ordem é delimitado e
governado pela norma. Norma esta que classifica, compara,
avalia, inclui e exclui.
No contexto dessa análise, o mais importante a ser enfatizado é que a normalização
é também um processo de exclusão. Ela homogeneíza para excluir; o que equivale a dizer:
ela inclui para excluir. Nesse sentido, talvez seja possível dizer que a própria iniciativa
governamental de incluir a todos na escola (tão solicitada pelos discursos educacionais)
acaba vindo ao encontro de operações que excluem. Isso significa, por mais contraditório
que pareça, que incluir a todos na escola torna-se uma das principais condições de
possibilidade de algumas próprias formas de exclusão social
75
. Fazer a norma descer sobre
o conjunto dos alunos escolarizados, por exemplo, significa, também, excluir os alunos
que não se adaptam às práticas escolares e que, em função disso, são classificados como
anormais ou como normais desviantes em relação à média de uma normalidade.
Bauman (1998, p.27) chama a atenção para o fato de que cada sociedade produz
seus próprios estranhos: “pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou
estético do mundo num desses mapas, em dois ou em todos três”. Da mesma forma que
74
Um bom exemplo de funcionamento do poder da norma, no dispositivo de seguridade, por meio dos
saberes psi, é a pesquisa realizada por Antipoff (2002b) sobre o desenvolvimento mental das crianças de
Belo Horizonte, que analisei na primeira seção do Capítulo V.
75
Para uma discussão sobre as assim chamadas políticas de inclusão dos inadaptados em práticas escolares,
ver Veiga-Neto (2001b).
170
os conceitos de normal e anormal, o conceito de estranho também não é ontológico, ou
seja, não é de propriedade de quem é definido como tal: trata-se de uma propriedade
relacional, que se atribui a alguém. A diferença é que, enquanto normais e anormais estão
inseridos numa norma, os estranhos estão na exterioridade selvagem: sobre estes últimos
não saberes. Nesse sentido, uma vez detectados os estranhos, faz-se necessário operar
com sistemas de saberes capazes de trazer os estranhos para dentro da norma: primeiro
como anormais, depois, se possível, como normais.
É na esteira disso que a escola produziu e continua produzindo também os seus
inadaptados, que permanecem estranhos até que algum discurso inclusivo consiga capturá-
los. No contexto deste estudo, pode-se pensar na possibilidade de que a Psicopedagogia
criou um conjunto de discursos inclusivos para conhecer aqueles que representam as
falhas das tendências educativas da atualidade, tornando-os então anormais (sobre os quais
se têm conhecimento), na tentativa de trazê-los para o interior das relações de sala de aula.
No momento em que os saberes psicopedagógicos identificam e nomeiam os seus sujeitos,
então eles passam a estar na norma. Nesse sentido, a Psicopedagogia coloca em
funcionamento um conjunto de operações orientadas à captura daquilo que causa
estranhamento, configurando-se, assim, numa máquina ótica (engendrada pela vontade de
poder e saber sobre o aluno) que permite a visibilidade dos alunos que não conseguem
incorporar em seus gestos, seus movimentos e suas atitudes as marcas que constituem a
identidade escolarizada atual. Máquina que permite não apenas a visibilidade destes
alunos, mas que, tornando-os visíveis, permite também o posicionamento deles em um
seletivo grupo, o dos escolares anormais: aqueles que trazem a marca do fracasso, da
incompetência, da deficiência, da desqualificação; em todo caso, da anormalidade. Trata-
se, pois, da produção de anormais, tirando-os da condição de estranhos. Dito de outra
forma: a escola produz os seus estranhos, mas, ao mesmo tempo, luta contra eles. A
Psicopedagogia faz parte dessa produção e dessa luta contra os estranhos da escola
contemporânea, ao mesmo tempo em que necessita deles para sua permanente oxigenação.
Nesse sentido, é possível dizer que a Psicopedagogia, em conexão com todo um
aparato discursivo em torno dos déficits educacionais, está enredada com as formas de
operação desse processo (in/exclusivo) de normalização, na medida em que os saberes
psicopedagógicos constituem estratégias para criação, reinserção e readaptação dos alunos
desviantes e, simultaneamente, legitimam a permanente necessidade de intervenção junto
a esses alunos, situando-os a uma certa distância do conceito de normal. Trata-se de um
171
movimento bastante dinâmico possibilitado também pela Psicopedagogia que tem
como princípio a existência de uma zona de transição na qual os alunos desviantes
circulam, mediados pelos saberes psicopedagógicos que os constituem como mais ou
menos próximos da normalidade média, mas a uma distância segura dela, configurando,
assim, o caráter excludente da inclusão e garantindo o caráter necessário da intervenção, o
que acaba por fortalecer a própria área da Psicopedagogia.
Psicopedagogia envolvida na gestão do risco social
O segundo ponto de análise deste Capítulo, que iniciou com a experiência que
relatei, consiste na idéia de risco social que, no caso da educação institucionalizada, é
materializado também na forma de fracasso escolar.
A própria obrigatoriedade da educação e a idéia da aprendizagem como eixo
educativo fizeram emergir um dos fenômenos mais temidos das práticas educacionais: o
fracasso escolar, produzido como uma “patologia”, como um risco social, em meio à
rápida transformação do mundo do trabalho em sociedades cada vez mais tecnicizadas.
Conectada à instauração da escolaridade obrigatória, inicia-se uma pressão social que
acaba por cristalizar os problemas de aprendizagem, a repetência e a evasão escolar como
distúrbios que se inscrevem de forma singular na história de cada um.
Para Cordié (1996), a criança inadaptada diante das dificuldades que enfrenta e
dos rótulos que lhe são atribuídos – ou reage por meio de distúrbios de comportamento ou
aceita o seu fracasso. No primeiro caso, para compensar seu fracasso, a criança procura se
fazer notar por condutas consideradas desviantes, que, ao se perpetuarem, acentuam a
rejeição. No segundo caso – de aceitação – a criança passa a se identificar com os
conceitos de fracasso, o que a faz ser rotulada como débil. Essa debilidade, que não era
senão um mau enganchamento no início, cola-se à pele: são essas crianças que ficam
jogadas” na reeducação em classes de recuperação.
Tanto no primeiro quanto no segundo casos, a principal questão feita por
educadores e pelas famílias das crianças fracassadas é: “por que a criança não pode
aprender?”. Daí seguem-se explicações do tipo: a criança tem vontade, é preguiçosa,
ou seja, “ela poderia se quisesse”. Conectado a isso, tenta-se saber o motivo da suposta
debilidade do aluno, encaminhando-o para um exame psicológico, cujos laudos e as
172
orientações que resultam deles encerram o aluno numa engrenagem da qual ele
dificilmente consegue sair.
Mas esse aluno está incluso na escola, e essa é a questão: diante do risco de que
esse aluno siga fracassando, a Psicopedagogia nasce e se legitima como um campo
específico do conhecimento, a partir de um viés marcadamente terapêutico. Ou seja, ela
nasce e se legitima como mais uma alternativa de superação das dificuldades
educacionais, cujo sucesso dependerá não somente de intervenções externas, mas
dependerá, por meio delas, do próprio aluno. Sob esse ponto de vista, é preciso que cada
sujeito escolar efetue ações sobre si, com a orientação psicopedagógica, para sair da
condição de anormalidade – em maior ou menor grau; ou, como queiram, de normalidades
desfavoráveis – rumo ao sucesso escolar.
Uma observação importante: ao dizer que a Psicopedagogia nasce diante do risco
de que o aluno siga fracassando ajudando a produzir o próprio risco do fracasso não
significa que ela emergiu como única solução possível, como se estivesse isolada. Ela faz
parte de uma ampla rede discursiva em torno do risco do fracasso; rede atualmente
constituída, por exemplo, pelo discurso da escola para todos, que faz funcionar o princípio
da inclusão; rede composta por aquilo que acontece nos serviços de apoio pedagógico, nos
centros de recuperação de alunos com dificuldades; enfim, rede que opera por meio de
todo um sistema de normalização que funciona em torno da não-aprendizagem.
E este segundo ponto de análise me leva a entender as intervenções
psicopedagógicas como sendo, na escola, correlatas às práticas sociais contemporâneas.
Vejamos por quê.
Na lógica atual de ordenação das sociedades ocidentais, parece haver um esforço
no sentido de construir estratégias preventivas para que o risco social não venha a se
materializar. Para tanto, lança-se mão de uma série de procedimentos e instrumentos que
intentam conter o risco social. O risco tem a ver com a probabilidade e pode-se lidar com
ele basicamente de duas maneiras: ou se previne que ele aconteça; ou se compensa depois,
na possibilidade de ele vir a acontecer, como é o caso, por exemplo, dos seguros (de vida,
de acidente, etc.).
A emergência deste estado de coisas pode ser situada nas sociedades de gestão
governamental, que funcionam por meio do dispositivo de seguridade. Para Foucault
(2006), a noção de risco é própria dos processos de normalização governamental.
173
Examinando-se os bons e maus resultados (na educação, por exemplo, os êxitos e
os fracassos escolares) e calculando-se as eventualidades, pode-se operar com uma
distribuição de casos, cuja análise poderá indicar, com referência a cada indivíduo ou cada
grupo individualizado, qual é o risco de cada um, seja de apresentar dificuldades de
aprendizagem, repetir o ano letivo ou, no limite, evadir da escola; seja de recuperar-se, por
meio de algum tipo de intervenção. E os riscos são determinados para cada aluno, segundo
sua idade, suas condições cognitivas, seu histórico familiar, seu histórico escolar, o lugar
onde vive, etc. Além disso, se algum aluno apresenta alguma dificuldade, poder-se-á
determinar quais são as chances que ele tem de se recuperar, em quanto tempo, com quais
procedimentos. Nesse sentido, a idéia de grupos de risco fica empalidecida e passa a dar
lugar à possibilidade de todos estarem em risco, embora uns mais outros menos. Em outras
palavras: apesar de ser coletivo, cada um corre risco de sofrer algo: o risco unifica a
população e identifica o indivíduo; o risco é para todos, mas alguns têm mais chances de
sofrer seus efeitos. Como bem explica Foucault (2006, p.81), ao se referir ao problema da
varíola, o:
cálculo dos riscos mostra em seguida que estes não são os
mesmos para todos os indivíduos, para todas as idades, em todas
as condições e em todos os lugares ou meios. Há, portanto, riscos
diferenciais que manifestam, de algum modo, zonas de maior
risco e outras, ao contrário, onde este é menor, mais baixo. Dessa
maneira, então, se podem identificar as características perigosas.
Considerando que a curva normal, como referido anteriormente, é estabelecida
com base no estudo das normalidades o risco assinala as normalidades mais
desfavoráveis, ou seja, as que mais desviam da curva normal. A partir dos dados prováveis
de risco, poder-se-á proceder com intervenções que reduzam os índices de normalidades
desfavoráveis, a fim de que eles sejam assimilados ao nível médio das normalidades.
Para a visualização de como isso acontece no caso da escola, por exemplo, cito o
estudo realizado por Arnold (2006), que investigou a produção dos sujeitos com
dificuldades de aprendizagem na escola inclusiva. Ao analisar pareceres de
encaminhamento de alunos a um serviço de apoio escolar, e ao ler os dados estatísticos
sobre a situação da repetência escolar desses alunos, a autora descreveu três categorias de
sujeitos a corrigir: os próximos da média, passíveis de serem corrigidos com alguma
facilidade, denominados de ainda não...; os marcados por um suportável desvio em
174
relação à média, denominados de em estado permanente de corrigibilidade; e os
localizados muito abaixo da média, que se situam à beira da anormalidade, denominados
de sem condições.
Com relação ao primeiro grupo, a autora explica que sua denominação deve-se à
recorrência dos enunciados
sobre alunos que ainda não... conseguem ler e escrever, que ainda
não... sabem falar corretamente, que ainda não... têm sua
motricidade fina desenvolvida, que ainda não... se concentram e
tantos outros ainda não... que aparecem relacionados ao
desenvolvimento considerado básico para que a aprendizagem se
efetive e possibilite o avanço nas séries ou nos ciclos de estudo.
Mesmo apresentando muitas “faltas” no desenvolvimento da
aprendizagem, são sujeitos que ainda não... aparecem como sendo
repetentes. (Arnold, 2006, p.135)
A incidência da não-repetência acontece especialmente na Educação Infantil e no
primeiro e segundo anos do Ensino Fundamental. Apesar de os sujeitos a corrigir
(classificados nesta primeira categoria) ainda não terem reprovado na escola, a detecção,
por parte dos professores e das famílias, do risco da primeira reprovação justifica o
encaminhamento desses alunos a especialistas dos serviços de apoio pedagógico.
Os sujeitos em estado permanente de corrigibilidade, que constituem o segundo
grupo, têm um histórico de reprovação escolar (de uma a quatro repetências) e
permanecem na escola regular, mas freqüentando assiduamente o serviço de apoio
pedagógico.
O estado de corrigibilidade surge [...] quando se percebe o esforço
voltado para a recuperação das dificuldades, materializado em
aulas de reforço, atendimento psicológico, encaminhamento a
serviços de apoio, busca de ajuda clínica, tanto por familiares e
escolas quanto por instituições sociais, como o Serviço Social de
prefeituras e o Conselho Tutelar. São ações que colocam o sujeito
em permanente exercício em busca da diminuição de suas
dificuldades na escola, que acabam se apresentando sempre de
novo. (Arnold, 2006, p.139)
A recorrência desses alunos no atendimento especializado ao longo de sua
trajetória de vida escolar aponta para uma relação de dependência recíproca entre a escola
e os serviços de apoio pedagógico, fazendo funcionar diferentes estratégias de prevenção
175
do risco de que esses sujeitos em estado permanente de corrigibilidade venham finalmente
a evadir da instituição.
O terceiro grupo é constituído por alunos que têm cinco ou mais repetências na
escola, que, de acordo com Arnold (2006, p.142), estão ainda mais “afastados da zona de
normalidade. Geralmente, trata-se de sujeitos que apresentam problemas considerados
biológicos, mais especificamente, neurológicos, que os tornam dependentes de tratamento
clínico do sistema nervoso central e do uso de remédios”. (id.)
Ao trazer os dados deste estudo, minha intenção é a de mostrar que a distinção
entre normais e anormais não é tão simples quanto às vezes parece, senão que um nível
médio na própria normalidade. Ou seja, os sujeitos não são apenas classificados como
normais ou anormais: outras classificações dentro dessas categorias. No interior do
grupo dos normais, por exemplo, os sujeitos são classificados segundo sua proximidade
com a média. Opera-se, como diz Foucault (2006, p.83), com uma “análise mais fina que
permite de certo modo discriminar as distintas normalidades”, por meio de uma
distribuição normal dos casos.
Isso pode ser percebido nas três categorias de sujeito a corrigir, criadas por Arnold
(2006). Os sujeitos ainda não..., os em estado de permanente corrigibilidade e os sem
condições são todos considerados normais, mas algumas normalidades são mais
favoráveis que outras. Esses tipos de normalidades são identificados segundo a
proximidade que os sujeitos mantêm com a média escolar. E apesar de os laudos
diagnosticarem que os sujeitos do terceiro grupo não têm condições (de sucesso escolar),
porque beiram à incorrigibilidade, é sobre esses sujeitos que recairá uma intervenção ainda
mais aguda, que desempenha uma dupla função: situar esses sujeitos o mais próximo da
normalidade média; e, na impossibilidade disso, seguir certificando sua incapacidade em
relação aos demais. Essa segunda função não sugere que uma vez certificados de
incapazes, poder-se-á desistir desses sujeitos: ao contrário, é preciso que eles existam e
que sobre eles recaia uma série de investimentos, no sentido de seguir demarcando as
diferenças e refinando cada vez mais a análise das normalidades. Dessa forma, a
intervenção far-se-á tão mais necessária e rigorosa quanto maior for a distância dos
sujeitos em relação à média.
Portanto, o risco não está situado apenas no grupo dos anormais: todos estão em
risco, é claro que uns mais outros menos, mas o risco se estende a todos os alunos, que,
176
mesmo sendo considerados normais, não se encontram fixados numa e noutra
classificação, pois a qualquer momento o risco de eles deslizarem em relação à própria
normalidade. Daí a necessidade de observação constante e tipos permanentes de
intervenção junto a todos os alunos, para assegurar que todo trânsito que ocorre na zona de
normalidade seja conhecido e então regulado.
Nesse sentido, a escola ao operar com intervenções (também do tipo
psicopedagógicas) que intentam reduzir os índices de normalidades desfavoráveis
continua sendo um local importante para o controle do risco social: prova disso é a
iniciativa (recente no Brasil, mas bastante tempo em voga na Europa e nos Estados
Unidos) de se legislar em favor do aumento do tempo de escolarização obrigatória no
Ensino Fundamental, o que pode ser entendido também como uma estratégia preventiva
do risco social, para o governamento de crianças e adolescentes e, por extensão, da
população de forma geral.
E mais uma vez se pode perceber a escola atual como funcionando por meio do
dispositivo de seguridade (e também produzindo os modos escolares do próprio
dispositivo), que um dos principais traços desse dispositivo é ser inclusivo, ou seja, ele
vai inserindo novos elementos para intervir nas situações de risco (no que se refere tanto à
prevenção quanto à compensação). Este parece ser o caso também das formas como a
escola passou a lidar com o fracasso escolar, mais especialmente nos fins do século XIX,
buscando pareceres de diferentes profissionais para intervenção: além de professores,
orientadores e supervisores, também médicos, nutricionistas, psicólogos e, mais
recentemente, psicopedagogos.
Ao trazer essa discussão para o texto, minha intenção é mostrar o que eu entendo
ser mais uma das condições de possibilidade para a emergência e o exercício da
Psicopedagogia, que oferece um conjunto de estratégias, procedimentos e instrumentos
para criar e lidar com as dificuldades de aprendizagem dos alunos e para criar e conter o
risco do fracasso escolar
76
.
76
O conceito de fracasso escolar será retomado na próxima seção.
177
Psicopedagogia envolvida no deslocamento do ensino para a
aprendizagem
O terceiro ponto de análise consiste no deslocamento do ensino para a
aprendizagem, cuja emergência foi tratada na segunda parte da Tese. Começarei
discutindo aqui esse deslocamento, voltando ao caso que relatei no início deste Capítulo,
sobre o aluno R. e sua família, por ser ilustrativo da sensação atual (ou talvez seja melhor
dizer: do fato atual) de inconsistência profissional dos professores, traduzida pela
parcialidade de sua atuação junto às supostas dificuldades de aprendizagem dos alunos.
Como relatei, os déficits de caráter cognitivo do aluno R. justificaram uma série de
ações realizadas por mim e por minhas colegas de trabalho, incluindo outras professoras, a
orientadora educacional e a equipe diretiva. Dentre essas ações, destaca-se a reunião
realizada com a mãe do aluno para falar sobre os seus sete filhos matriculados na escola.
Pensando sobre a natureza e o conteúdo da conversa, percebe-se que o que estávamos
fazendo, com mais aquela reunião, era questionar outra coisa do que o próprio motivo pelo
qual a reunião havia sido convocada. Ou seja, questionávamos não propriamente o baixo
rendimento escolar das crianças, mas os comportamentos, as atitudes, o caráter, a conduta
moral da mãe e de seus filhos
77
.
Com este caso que se repete recorrentemente em várias escolas pode-se
perceber o quanto nós, profissionais que atuamos na escola, somos mais competentes para
identificar nos sujeitos escolares os comportamentos que eles apresentam do que para
identificar quais conhecimentos possuem e quais precisam ser trabalhados. Esse
exercício de pensamento nos põe frente à pergunta: como chegamos a ter mais condições
de falar sobre os comportamentos e as condutas do sujeito escolar e menos sobre seus
conhecimentos?
77
Sobre uma discussão acerca das formas pelas quais as práticas pedagógicas podem ser descritas e
analisadas em termos de uma educação moral, ver Larrosa (1994, 1996, 1999a). Este autor propõe uma
perspectiva de análise a partir da qual a Pedagogia é vista como o lugar em que tanto um sujeito moral
pedagógico quanto um domínio moral pedagógico são construídos. Referindo-se à visão pragmática que a
abordagem foucaultiana sugere aos estudos sobre educação moral que vem realizando, Larrosa (1999a, p.49)
afirma: “ela dirige a análise para o conjunto particular de práticas sociais (práticas pedagógicas, neste caso)
que constituem a experiência que o sujeito tem tanto da sociedade como uma ordem moral quanto de si
próprio como um agente moral”. Seguindo a mesma linha de análise, Larrosa (1996, p.155) salienta o caráter
produtivo dos discursos morais operados na escola, como estando imbricados com determinadas formas de
subjetivação: “o discurso moral cria os limites e as possibilidades para nossa constituição como sujeitos
morais”.
178
Uma possibilidade de resposta a essa questão pode estar situada na idéia,
discutida no Capítulo III, de que a ênfase pedagógica deslocou-se do ensino (métodos)
para a aprendizagem (as formas como as crianças aprendem). E voltamos aqui a um
conceito que tem destaque nesse deslocamento: o conceito de fracasso escolar, cuja
invenção está conectada ao conceito de aprendizagem disseminado especialmente pelo
Movimento da Escola Nova. Pode-se dizer que até o culo XIX não havia
necessariamente uma preocupação com o fracasso escolar; tratava-se de outra coisa: o
absentismo da escola, a resistência à escolarização, a desobediência às regras escolares,
etc. Nesse sentido, o campo pedagógico enfatizava mais especialmente os métodos de
ensino. Na medida em que o problema da aprendizagem foi colocado no centro da
educação, com as teorizações psicológicas atuando no campo pedagógico, instaura-se a
idéia de fracasso escolar, contribuindo ainda mais para deslocar a ênfase nos métodos de
ensino para os processos de ensino-aprendizagem. Acredito que, desde então, foram se
colocando as condições para a criação, a legitimação e a atuação também da
Psicopedagogia, como uma outra área do conhecimento psi que promete combater, por
meio de um processo de personalização, o então temido fantasma da escola: o fracasso
escolar.
Considerando que o fracasso escolar, por meio dos problemas de aprendizagem, é
o foco central da Psicopedagogia, será preciso – para que se possa mostrar o envolvimento
dessa área com o deslocamento do ensino para a aprendizagem desenvolver
minimamente uma discussão sobre o próprio deslocamento a partir dos três principais
enfoques que historicamente orientaram as práticas psicopedagógicas, quais sejam: o
enfoque organicista, o enfoque cognitivista e o enfoque terapêutico tal como passo a
fazer aqui.
O fracasso escolar tem se configurado numa das principais preocupações explícitas
das sucessivas reformas de ensino efetivadas desde as pedagogias corretivas, que se
ocuparam de institucionalizar e confinar a diferença dentro de um quadro patológico.
Semelhantemente ao que Varela (2000) chama de pedagogias corretivas, Mery
(1985) fala em pedagogia curativa, expressão empregada por Debesse a partir de 1950,
que inicialmente designava
toda ação educativa exercida com as crianças que têm distúrbios
de comportamento de origem física ou mental, com vistas a uma
melhoria de seu estado. Toda criança que apresenta um problema
179
ao educador, ou que sofre de uma anomalia e necessita cuidados
especiais prolongados é, por definição, passível de uma pedagogia
curativa tomada num sentido amplo. [Estende-se, pois,] a todas as
áreas de desadaptação infantil ou de deficiência infantil. (Debesse
apud Mery, 1985, p.11)
Até o final do século XIX, a pedagogia curativa era direcionada sobretudo a
deficiências sensoriais e debilidade mental. A virada do século marcou uma guinada
decisiva sobre o conceito e o trabalho da pedagogia curativa, que, influenciada pelas
correntes psicológicas da época, passou a se interessar pelos problemas pedagógicos da
inadaptação, utilizando-se dos sentidos de patologia e terapêutica e modificando a atitude
dos pedagogos graças também ao desenvolvimento da Psicanálise.
Envoltos na corrente da reforma do ensino após a Segunda Guerra Mundial e com
a aproximação cada vez maior entre Pedagogia e Psicanálise, Boutonier e Mauco fundam
em Paris o primeiro centro psicopedagógico, que desempenhou desde o início uma dupla
função: médica e pedagógica. O objetivo deste centro era o de “vir em auxílio das crianças
que têm dificuldades de comportamento em suas atividades e relações, tanto na escola
como na família [...] Esta cooperação psicologia-pedagogia permitirá atingir esse
conhecimento total da criança e de seu meio” (Mery, 1985, p.12). Bastaram apenas dois
anos mais para que fosse inaugurado o segundo centro psicopedagógico, em Estrasburgo,
e, logo em seguida, a Associação dos Centros Psicopedagógicos.
Com tais feitos, o conceito de pedagogia curativa foi re-elaborado com um sentido
mais preciso e restrito do que antes, como sendo o “tratamento de crianças ou adolescentes
inadaptados que, embora inteligentes, têm maus resultados escolares” (Debesse apud
Mery, 1985, p.13). Passou a se chamar, então, pedagogia curativa escolar, para ajudar
crianças em situação de fracasso escolar, utilizando-se de “métodos que favorecem a
readaptação do aluno num quadro pedagógico já existente, por uma intervenção individual
junto àqueles que têm dificuldades de inserir-se neste quadro” (id.). Para Debesse (apud
Mery, 1985, p.13), “a pedagogia curativa (bem como outros tipos de reeducação) situa-se
no interior daquilo que chamamos hoje em dia de psicopedagogia”
78
.
Bossa (2000, p.37), ao se referir à trajetória da Psicopedagogia, salienta que a
preocupação com os problemas de aprendizagem teve origem na Europa e cita a
78
O “hoje em dia” desta frase refere-se ao ano de 1954, na França.
180
consolidação do capitalismo industrial, o positivismo científico e a Teoria Evolucionista
de Darwin como fatores fundamentais para o nascimento da Psicologia Experimental
que passa a medir e controlar em laboratório o comportamento humano, na tentativa de
comprovar que a capacidade intelectual é fruto de aptidões naturais e humanas, herdadas
geneticamente. “No que tange à escola, os testes procurarão explicar as diferenças de
rendimento dos alunos e o acesso diferenciado aos diversos graus de escolarização”. Nesse
sentido, o primeiro enfoque que orientou médicos, educadores e terapeutas na definição
dos problemas de aprendizagem foi o organicista:
Nesta concepção, nascida no início do século XX no bojo do
grande desenvolvimento das ciências médicas e biológicas,
especialmente da psiquiatria, são estimulados os estudos
neurológicos, neurofisiológicos e neuropsiquiátricos,
desenvolvidos em laboratórios junto aos hospícios e que
classificam rigidamente os pacientes como anormais. O conceito
de anormalidade, aos poucos, foi sendo deslocado dos centros
psiquiátricos para as escolas. A criança que não conseguia
aprender era taxada como “anormal”, devido à interpretação de
que a causa de seu fracasso era atribuída a alguma anomalia
anatomofisiológica. (Bossa, 2000, p.37)
Os problemas de aprendizagem (ícones do temido fracasso escolar) passam, então,
a ser explicados como distúrbios causados por uma disfunção do sistema nervoso central
ou por uma disfunção neurológica não detectável em exame clínico, chamada Disfunção
Cerebral Mínima (DCM). Rótulos como “retardado” ou “limítrofe-médio-inferior” são
atribuídos aos alunos considerados incapazes de aprender com a mesma facilidade com
que faz a maioria. Assim, instaura-se, nas práticas pedagógicas, a crença da inteligência
fixa, disseminando a idéia de que a posição que o indivíduo ocupa numa distribuição
grupal de Q.I. permanece constante em diferentes momentos de seu desenvolvimento, e a
crença de que a inteligência segue um desenvolvimento pré-determinado, ou seja, o
repertório de comportamento do indivíduo surge, automaticamente, à medida que as
estruturas anatômicas amadurecem. Disso resulta, com base nas teorias inatistas, o
descrédito na eficiência da estimulação cognitiva e o entendimento de que inteligência é
algo que o indivíduo tem ou não tem, em função da qual pouco se pode fazer. Dessa
forma, culpabiliza-se o aluno pelo fracasso que a ele foi atribuído, construindo o seu baixo
181
rendimento escolar como um traço individual
79
. A intervenção psicopedagógica de
enfoque organicista prioriza a reeducação, avaliando o processo de aprendizagem em
função dos seus déficits.
Com o deslocamento de ênfase do ensino para a aprendizagem (junto a todas as
suas condições e efeitos), sobressaem-se as críticas feitas ao enfoque organicista. Dessa
forma, outros discursos psicopedagógicos começam a ganhar força, enfocando-se agora
não mais as explicações orgânicas, mas as cognitivas (Lopes, 2003). O aluno deixa de ser
visto apenas como um organismo e passa a ser visto como cognoscente, que se constrói na
sua adaptação ativa ao meio. A incapacidade de aprender é entendida agora como uma
perturbação do processo cognitivo e dissemina-se a crença de que maturidade é algo que
acontece de dentro para fora do indivíduo e que depende basicamente da passagem do
tempo. Enfatiza-se o conceito piagetiano de “prontidão”: pré-requisitos
comportamentais para a aprendizagem de novas habilidades mais complexas que
dependem basicamente das oportunidades anteriores de aprendizagem; é preciso que o
sujeito esteja maduro, pronto, para que opere com sua progressão intelectual.
Neste enfoque cognitivista, consideram-se os processos centrais do indivíduo
(dificilmente observáveis): organização do conhecimento, processamento de informações,
estilos de pensamento. Para Piaget (1978), o sujeito se desenvolve por fases que se inter-
relacionam e se sucedem até que se atinjam estágios de inteligência caracterizados por
mobilidade e estabilidade. Trata-se do sujeito epistêmico, aquele que retrata o que em
comum em todos os sujeitos, a despeito de variações individuais. Em todos os sujeitos,
considera-se que seu desenvolvimento é determinado por quatro elementos e condições: 1)
pelas maturações internas do organismo: complexificação biológica ligada à maturação do
sistema nervoso; 2) pelas aquisições vinculadas a experiências físicas e lógico-
matemáticas, que implicam em ações sobre os objetos de forma a descobrir suas
propriedades, inicialmente, e de abstraí-las logo em seguida; 3) pela estimulação ou
imposição do meio externo social: interações realizadas entre os indivíduos e apropriação
de regras, valores e signos sociais; 4) pelas equilibrações processadas nas reestrutrações
internas, ao longo da construção seqüencial dos estágios.
79
Segundo Lopes (2003, p.39), “os discursos organicistas vêm se sofisticando com o passar dos anos: criam-
se novas categorias como dislexias, disortografia ou, como atualmente é muito comum, TDAH Transtorno
de Déficit de Atenção e Hiperatividade”.
182
A ênfase cognitivista dos discursos psicopedagógicos foi sendo, aos poucos,
deslocada até um enfoque terapêutico, de base psicanalítica, entendendo-se o sujeito como
dotado de uma pulsão epistemofílica, ou seja, um desejo de saber, uma necessidade de
conhecer. A curiosidade e o prazer da descoberta permitem, assim, a aquisição de
conhecimentos. Dessa forma, a intervenção psicopedagógica de enfoque terapêutico
entende que a não-aprendizagem é carregada de significados e o é oposta à
aprendizagem.
Para grande parte dos discursos psicopedagógicos terapêuticos, a inibição desta
pulsão epistemofílica, que consiste na suspensão dos investimentos cognitivos, invertendo
a própria pulsão, pode estar no cerne das questões de inadaptação e fracasso escolar. O
“nada saber” equivale ao “nada comer” do anoréxico. A razão mais freqüente de tal
inibição deve ser procurada do lado da demanda esmagadora do Outro, seja o “coma” ou o
“aprenda”. É através das demandas que a criança toma consciência de que é parte
interessada dos fantasmas e dos desejos de seu pai e de sua mãe: coma (agora), faça
(cocô), seja (limpa, bonita, gentil, trabalhadora, etc.). A criança pode satisfazer, por muito
tempo, a demanda do Outro (satisfazendo-se também), sem que isso contrarie a construção
do seu ser imaginário. As coisas se complicam quando a demanda muda de registro,
quando o Outro passa do “coma, seja comportada” ao “aprenda, seja bem-sucedida”, pois
o aprender implica um desejo, um projeto, uma perspectiva.
É por isso que, para os psicanalistas, de forma geral, a aprendizagem acontece por
meio da livre expressão e, portanto, as práticas pedagógicas devem estar centradas muito
mais na atividade da criança, no seu ritmo individual, nas relações interpessoais que ela
estabelece com o grupo do que nas leis que regem seu desenvolvimento, como quer o
enfoque cognitivista. Nesse sentido, grande parte dos casos de fracasso escolar é explicada
pelas pressões sofridas pelos alunos na escola, que sufoca a criança com seus métodos de
ensino e suas formas de organização do tempo e do espaço. A mecânica da pulsão
epistemofílica emperra no momento em que a criança passa da aprendizagem pelo jogo às
formas de saber oferecidas pela escola obrigatória. Disso resultaria uma recusa
inconsciente de aprender, de entrar em um novo sistema de aquisição de conhecimentos.
No enfoque terapêutico, apontam-se também outros fatores envolvidos nos casos
de fracasso escolar, como, por exemplo, a qualidade das trocas lingüísticas e afetivas e a
estimulação oferecida pelas famílias e pelo meio social mais amplo em que a criança está
183
inserida. Além disso, salienta-se a crise edipiana, que consiste em renunciar a sua posição
de criancinha protegida, garantida pelo meio familiar, e se tornar um ser social
confrontado à lei do grupo. A separação (castração) implica um trabalho de luto, um
doloroso trabalho psíquico de remanejo das posições subjetivas, e que nem todas as
crianças conseguem realizar sozinhas.
O que em comum nos principais enfoques que historicamente orientaram as
práticas psicopedagógicas (organicista, cognitivista e terapêutico) é o fato de que todos os
três estiveram envolvidos na busca de soluções para os problemas de aprendizagem e, na
esteira disso, para o fracasso escolar. E todas as explicações que os três enfoques dão ao
fracasso escolar acabam por atribuí-lo ao próprio aluno, ao que com ele acontece orgânica,
cognitiva ou psiquicamente. Mas é o último enfoque (o terapêutico) que mais intensifica a
idéia de aprendizagem em detrimento da idéia de ensino, na medida em que, para este
enfoque, são as formas de saber oferecidas pela escola que inibem a mecânica da pulsão
epistemofílica, ou seja, inibem o prazer natural que a criança tem de descobrir e aprender.
Outro ponto em comum dos três enfoques é que todos eles estão envolvidos na
produção e regulação do aluno, do “sujeito aprendente”, que, diante de uma dificuldade de
aprendizagem, deve passar, junto com sua família, por um processo de recuperação. Mas é
de novo o terceiro enfoque (terapêutico) que mais intensifica a idéia de que essa
recuperação não é simplesmente processada por meio de uma ação externa ao aluno com
dificuldade de aprendizagem, ou seja, não se trata tão somente de uma prática
psicopedagógica que, objetivando modificar o comportamento desse aluno, age sobre ele.
Em outras palavras: não se trata apenas de operar com uma modificação que, vinda do
exterior, transforma a conduta do aluno, feito, nesta hora, objeto (nesse caso a
subjetivação praticamente se reduziria a uma sujeição). Mas se trata, sim, e sobretudo, de
uma modificação do aluno para consigo mesmo. Vejamos por quê.
É certo que a Psicopedagogia preocupa-se, a partir de determinadas intervenções,
em modificar os comportamentos indesejados. Mas, para isso, parece que a ão
psicopedagógica opera, antes, com transformações que se referem à relação que o aluno
estabelece de si para consigo. Isso significa que, para se atingir o sucesso escolar, não
bastaria modificar aspectos relativos à organização da vida escolar desse aluno, senão que
é preciso modificar o próprio aluno.
184
Penso que a Psicopedagogia, enquanto um campo de saber, insere-se numa lógica
cartesiana, na medida em que compartilha da idéia de que o aluno é naturalmente capaz de
aprender tão somente porque é um sujeito de cognição. Mas esse sujeito supostamente
capaz de cognição não obteve êxito ao tentar acessar as verdades educativas. Daí que se
instaurou nele uma dificuldade de aprendizagem. E é isso exatamente o que justifica a
necessidade da intervenção psicopedagógica: a detecção de uma dificuldade. A
intervenção psicopedagógica auxiliará o aluno (que é capaz de conhecimento) a conhecer.
Eis o paradoxo da própria prática psicopedagógica: ao mesmo tempo em que pressupõe
que o aluno é naturalmente capaz de aprender, parece-me que ela insere esse aluno
(supostamente capaz de verdade) numa série de técnicas e procedimentos que acabam,
quem sabe, transformando a relação que esse aluno tem consigo mesmo, para, somente
então, inseri-lo numa nova tentativa de acesso ao conhecimento. Ora, se o aluno, tal como
ele é, é naturalmente capaz de aprender, por que ele precisaria se transformar, se
modificar, se deslocar, tornar-se outro, por meio da intervenção psicopedagógica, para ser
bem sucedido em sua aprendizagem?
Sobre isso, trago alguns textos que podem ser lidos como exemplos do que venho
comentando.
O trechos do texto a seguir, intitulado Avaliação e ação psicopedagógica nas
dificuldades de alfabetização, apresentam o relato de um projeto de extensão realizado
pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, junto a Vila
Cruzeiro do Sul, Porto Alegre, RS.
O projeto atende alunos multi-repetentes de série com história
de dificuldades persistentes, que vão ao CAEP Centro de
Atendimento e Estudos Psicopedagógicos, para atendimento
psicopedagógico no turno oposto ao da escola, duas vezes por
semana. Tem como objetivo auxiliar as crianças visando
melhorias nas suas dificuldades de aprendizagem e auto-estima.
São apresentadas as diversas etapas do trabalho, incluindo as
atividades de avaliação, formação dos grupos e ações
psicopedagógicas desenvolvidas. O trabalho sugere uma reflexão
sobre o que está por trás do “não-aprender” destes alunos,
procurando destacar o interjogo de fatores presente no processo
de aprender. Assim, procura-se fugir de uma visão simplista e de
uma perspectiva linear de causa e efeito. São apresentados os
princípios norteadores que embasam o projeto e as características
formativo-pessoais indispensáveis para o profissional que atua
diretamente com as crianças. O projeto tem apresentado
resultados animadores, uma vez que as crianças que freqüentam o
185
CAEP de forma sistemática apresentam progressos na área de
leitura e escrita como também avanços na área sócio-afetiva. Os
resultados animadores acabaram por motivar a criação, a partir de
2000, de um novo projeto de continuidade, voltado para a
manutenção e solidificação das aquisições obtidas, buscando o
fortalecimento das funções cognitivas e sócio-emocionais dos
alunos para que estejam mais aptos a enfrentar os desafios da
série. (Corso, s/d)
Percebe-se, nesse texto, que é o aluno multirepetente quem coloca a necessidade de
criação do projeto acima apresentado, aluno cujas dificuldades de alfabetização persistem.
A turma regular de série que este aluno freqüenta também está preocupada com sua
alfabetização; afinal, tal como o sistema de ensino brasileiro está organizado, este é o
motivo de existência de uma série. Mas, constatando-se dificuldades de alfabetização, e
não somente isto, mas ao persistirem as dificuldades, é preciso que o aluno seja
encaminhado ao Centro de Atendimento e Estudos Psicopedagógicos. A preocupação
deste Centro continua sendo a alfabetização, tal como na turma regular. No entanto,
parece-me que, no Centro, se busca o sucesso escolar por outra via: pela via da auto-
estima. As dificuldades de aprendizagem são o carro-chefe desta intervenção. Mas, ao que
me parece, elas não podem ser acessadas sem estarem vinculadas, agora, à questão da
auto-estima.
Sobre isso, é interessante perceber que os sentidos correntes para auto-estima
referem-se, sobretudo, àquilo que uma pessoa pensa sobre si mesma, e não tanto o que os
outros pensam sobre ela. É claro que o que os outros expressam sobre a pessoa influi nessa
construção que ela faz de si mesma; no entanto, o conceito de auto-estima, embora
constantemente atravessado pela presença do outro, não se constrói como interiorização do
olhar alheio, mas se constrói a partir das formas como a pessoa se vê, que não precisam
ser necessariamente as formas como os outros a vêem. Tem-se, pois, a idéia de que a auto-
estima é produto da competência de uma pessoa em se experimentar. Quando a pessoa
está com baixa auto-estima, esta competência, dizem os discursos psi correntes, deve ser
devidamente trabalhada pela própria pessoa e isso implica dedicação, preparação,
aprendizado e disposição para a experiência. o como aumentar os níveis de auto-
estima sem um trabalho sobre ela. É preciso perseverar na construção da alta auto-estima.
O desempenho positivo favorece a auto-estima que por sua vez favorece o desempenho
positivo. Eis, sob essa perspectiva, uma das peças chave para o sucesso escolar.
186
Daí que o referido texto, ao apresentar o projeto desenvolvido no CAEP e enfatizar
seus resultados animadores, propõe-se também a apresentar as diversas etapas do trabalho,
incluindo as atividades de avaliação, a formação dos grupos e ações psicopedagógicas
diversas. Com relação a isso, destaca-se a anamnese (com suas técnicas extensamente
detalhadas, que a Psicopedagogia toma emprestado da Medicina, seguindo sua intenção
“interdisciplinar”) e uma das variações dessa prática, que é o diagnóstico. Tais
procedimentos, junto com as atividades lúdicas orientadas ou não (consideradas como
espaços de experimentação infantil, como espaço de transição entre o mundo interno e
externo), constituem práticas centrais da intervenção psicopedagógica.
Mas, de tudo isso, o que mais chama a minha atenção no texto Avaliação e ação
psicopedagógica nas dificuldades de alfabetização é o convite feito pelo psicopedagogo
ao aluno com dificuldade: um convite ao trabalho de si mesmo, por meio de uma série de
técnicas, detalhadamente descritas, e que mudam de “tom” no decorrer do tratamento
psicopedagógico. Inicialmente, essas técnicas são aplicadas ao sujeito pelo psicopedagogo
e sempre com sua supervisão. À medida que o tratamento vai evoluindo e que os
resultados vão apresentando saldos positivos, a supervisão do psicopedagogo passa,
gradativamente, a limitar-se a fornecer estímulos, a encorajar o aluno a lidar com suas
dificuldades, para saná-las. Ou seja, o aluno vai, pouco a pouco, tomando conta de seu
próprio tratamento; e ele sabe disso, que é preciso que ele queira isso para seguir
adiante (caso contrário, o tratamento ainda ficará centrado na figura do psicopedagogo).
Ou, em outras palavras: o aluno vai sendo produzido como um empresário de si, o que está
em sintonia com a racionalidade política neoliberal.
Portanto, o sucesso escolar dependerá não somente da estimulação externa
oferecida pelo psicopedagogo, nem somente do olhar que o aluno dirige para si (da
atenção que presta em si mesmo), nem somente de se perceber em tratamento, mas
sobretudo do trabalho intenso e regrado que o aluno realiza consigo, por meio de um
domínio de atividades, com procedimentos e objetivos claros. O sucesso escolar
dependerá, para usar um termo de Foucault (2004), de um cuidado de si, que “designa
sempre algumas ações, ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos
assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos.
Daí uma série de práticas que são, na sua maioria, exercícios” (p.14).
187
Embora o papel desempenhado pelo psicopedagogo passe a ser o de quem
estimula, o trabalho por parte do aluno não pode cessar. Portanto, diante dos resultados
animadores do projeto desenvolvido no CAEP, abre-se a possibilidade de criação de um
projeto de continuidade, “voltado para a manutenção e solidificação das aquisições
obtidas, buscando o fortalecimento das funções cognitivas e sócio-emocionais dos alunos
para que estejam mais aptos a enfrentar os desafios da 2ª série” (trecho do texto citado).
Vejamos mais um fragmento de outro texto, intitulado Odeio Matemática!, que
trata da validade e necessidade da relação entre o ensino da Matemática e a
Psicopedagogia:
Tanto sob o ponto de vista institucional, quanto clínico, percebe-
se que, após uma intervenção psicopedagógica, essas pessoas
surpreenderam-se por terem tido dificuldade com essa disciplina
[...]. Possibilitar processos de revisão da Matemática inicialmente
sobre o aspecto textual em que ela se insere, e igualmente sob os
aspectos emocionais e cognitivos, quer seja em trabalhos
institucionais, quer clínicos, são caminhos que renovam e
ressignifcam a auto-imagem, o papel do aprendiz e as
repercussões sociais desse aprendizado. (Parolin e Salvador, s/d)
Cabe destacar que a decisão de se empreender o referido estudo (sobre a
necessidade de vinculação entre a prática psicopedagógica e o ensino da Matemática)
deveu-se, inicialmente, de acordo com suas autoras, à recusa dos alunos a essa disciplina e
às manifestações negativas de adultos que expõem suas frustrações relativamente às aulas
de Matemática que freqüentaram. De forma geral, as más experiências são diretamente
conectadas não ao conteúdo da Matemática em si, mas aos procedimentos, às
metodologias de ensino dessa disciplina por parte de certos professores que apresentam a
matéria como se ela fosse “um mistério indecifrável”. É diante da constatação de uma
carência pedagógica que os alunos são encorajados, pelo psicopedagogo, a revisar a
Matemática sob vários aspectos, entre eles os emocionais, a olharem mais atentamente
para o que se passou consigo, para se aperceberem como despossuídos de determinado
saber, para ressignificarem a sua auto-imagem, o seu papel de aprendiz e as repercussões
sociais dessa sua aprendizagem.
Trata-se, neste caso, de um determinado olhar que o aluno deve dirigir a si mesmo;
trata-se, pois, de converter o olhar, de conduzi-lo do exterior, dos outros, do mundo, para
si mesmo. Ou, recorrendo mais uma vez a Foucault (2004, p.14), trata-se de um cuidado
188
de si, que “implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no
pensamento”. “A necessidade do cuidado de si inscreve-se no interior do déficit
pedagógico” (id., p.48).
Percebe-se, com estes dois exemplos, o viés marcadamente terapêutico de algumas
práticas psicopedagógicas, fabricando novos lugares para os sujeitos que fracassam na
escola (tanto alunos quanto professores). Com a produção e circulação de discursos como
esses – dentre muitos outros produzidos pela área médica e especialmente pela área psie
numa tentativa de dar conta das questões de fracasso escolar, tem-se constatado uma
especialização infinda em várias áreas e a valorização dos especialistas que, no caso da
educação, são chamados a participarem do cotidiano da escola. É bastante comum
atualmente, pelo menos no Brasil, a idéia de que os professores são profissionais
incompletos que necessitam de novos saberes como os da Psicopedagogia, por exemplo
– para entender o que os alunos de hoje precisam para aprender. As narrativas dos próprios
professores são repletas dessa sensação de despreparo; portanto, são eles mesmos que
passam a se ver nessa condição e solicitam a orientação de especialistas de diferentes áreas
para que os ajudem a solucionar as dificuldades de aprendizagem de seus alunos, a partir
de encaminhamentos para serviços de apoio, para a recuperação, para atendimentos
individuais ou projetos fora de sua responsabilidade. Mas, ao serem indagados sobre tais
dificuldades, os professores, de forma geral, tendem a explicá-las com descrições bastante
amplas, tais como: “os alunos são fracos em Português” ou “são fracos em Matemática”,
não situando necessariamente o ponto central da dificuldade que detectaram nos alunos
80
(Fabris e Lopes, 2005). Essa é uma situação cada vez mais comum nas escolas atualmente:
desde a massiva psicologização dos discursos e das práticas pedagógicas, e hoje de forma
mais acentuada, parece estarmos vivendo um paradoxo: na chamada sociedade do
conhecimento o que menos conta é o conhecimento. E isso pode ser explicado, em parte,
pelo fato de que o foco do ensino passou (também nas instituições universitárias que
formam professores) dos conhecimentos para os processos processos que as crianças e
os jovens devem viver nas escolas. Sendo assim, as escolas atuais passaram a ser e
entendidas e tratadas (também nos cursos de formação de professores) mais como um
80
Esta é uma das conclusões de uma pesquisa que vem sendo realizada na Universidade do Vale do Rio dos
Sinos, intitulada “Cultura, diferença e educação: a inclusão no currículo das escolas públicas do município
de São Leopoldo”, cuja pesquisadora responsável é a Dra. Maura Corcini Lopes, com a colaboração da Dra.
Elí Terezinha Henn Fabris e da Ms. Mirian Dolores Baldo Dazzi.
189
espaço de convivência – cuja ênfase recai sobre as capacidades, as competências, a
socialização – do que como um espaço onde se aprendem conhecimentos
81
.
O fato de os professores sentirem-se (e/ou estarem) despreparados para lidar com
as aprendizagens de seus alunos justifica ainda mais a necessidade dos saberes
psicopedagógicos, não apenas aos profissionais da área psi, mas aos próprios professores.
E este estado de coisas está em pleno acordo com o caráter inclusivo das práticas
contemporâneas, na medida em que é preciso que também os professores estejam munidos
de saberes relativos agora não tanto aos métodos de ensino, mas às formas de observação
dos (e intervenção em) processos de aprendizagem. Incluem-se mais saberes necessários
aos professores, assim como também os professores são inclusos em funções antes
exclusivas de especialistas. Com relação a isso, vale atentar para as considerações de
Veiga-Neto (2001b, p.117):
assim como o conhecimento especializado da área psi estendeu-se
sobre todos nós a partir do século XVIII – ainda que estivesse nas
mãos de experts –, em termos profissionais esse tipo de
conhecimento poderá ser cada vez mais exigido a mais e mais
pessoas; nesse caso, especialmente aos professores e às
professoras. Em outras palavras: isso não corresponde ao
alargamento do campo de atuação da Psicopedagogia? Pergunto
se esse não é o caso de, entre outras coisas, estar em movimento
uma vontade de saber, sempre ativada por uma vontade de poder,
tão mais eficiente quanto menos aparente for, tão mais ardilosa
quanto mais nos capturar através de estratégias de tradução e
simplificação.
81
Mas é preciso também fazer uma distinção entre os tipos de escolas a que estamos nos referindo: falar
simplesmente em escola contemporânea não significa muita coisa. Apesar de, atualmente, o quadro
conceitual pedagógico centrar-se na idéia da educação construtivista de base interacionista-cognitivista
uma pluralidade de práticas escolares que se constroem em conexão com este quadro, a depender das
posições de sujeito que estão em jogo nas diferentes escolas. Assim sendo, mesmo envoltas pelo discurso
construtivista, não é difícil perceber que, de forma geral, as escolas particulares (em especial aquelas cujos
valores da mensalidade são bastante altos) colocam ênfase, sim, nos conteúdos e nos conhecimentos
socialmente considerados válidos, diferentemente da maioria das escolas públicas de massa (para ficarmos
apenas nesses dois exemplos), cuja ênfase recai sobre a valorização dos saberes locais, transformando-os em
conhecimento útil e satisfatório para os sujeitos que as freqüentam. O processo parece ser inverso quando se
trata do ensino superior: talvez isso explique o fato de que grande parte das vagas em universidades federais,
no Brasil, é preenchida por estudantes oriundos de escolas particulares, enquanto que aos alunos
freqüentadores de escolas públicas de massa – que os “socializaram” de um determinado modo restam, no
caso de chegarem à conclusão do Ensino Médio, as altas mensalidades das universidades privadas. Se assim
for, tratar-se-ia, então, de escolas que têm objetivos e interesses (e, portanto, práticas) diferentes, mas com
alguma coisa em comum, a saber: a produção de subjetividades, que se trata de formar sujeitos de um
certo tipo, a depender também das posições que desde cedo são ensinados a assumirem pelos grupos sociais
dos quais fazem parte.
190
Ao se constituir nesse espaço de hibridez entre especialmente a Psicologia e a
Pedagogia, a Psicopedagogia põe em ação um alargamento das duas áreas traduz e
simplifica não necessariamente em profundidade, em conhecimento, mas no que se
refere à ampliação das relações de saber-poder. A Psicopedagogia ocupa-se de sujeitos
que não precisam estar na clínica de Psicologia, já que podem estar (e estão) na própria
escola. Tampouco se trata somente da atuação de professores, pois se pretende a
intervenção dos especialistas (os psicopedagogos), mesmo que, na ausência de um
profissional exclusivo para o trabalho psicopedagógico, os próprios professores acumulem
essas duas funções. Ou seja, com a Psicopedagogia, parece haver um alargamento das
funções do psicólogo (até a escola) e do pedagogo (até os casos antes resolvidos
exclusivamente na clínica), embora isso não signifique uma maior compreensão dos
fenômenos que buscam investigar. Dessa forma, as pedagogias psicológicas (e, na esteira
delas, a Psicopedagogia) servem mais aos processos do que ao conhecimento, ocupam-se
mais dos processos do que do conhecimento.
É como se as instituições escolares que funcionam com
pedagogias psicológicas se afastassem nas primeiras etapas de
formação da função explícita da transmissão de saberes, como se
a paixão pelo conhecimento e a compreensão dos mundos da
natureza e da cultura se vissem relegados ou quase excluídos em
detrimento de um processo de formação de personalidades apenas
encoberto mediante referências ao lúdico-tecnológico, a processos
de simulação de problemas, a jogos na “realidade virtual” que
fazem de muitas destas escolas verdadeiros parques de alucinado
entretenimento. (Varela, 2000, p.103-104)
Talvez isso nos ajude a entender por que a Psicopedagogia, em meio a esse
contexto escolar, tem se tornado um discurso tão vigoroso, atual e sedutor e, ao mesmo
tempo, por que ela não pode ajudar na qualificação da escola, sob a ótica dos
conhecimentos. Mas, diante dessa espécie de esvaziamento dos conteúdos e de
fragilização dos conhecimentos tanto nas escolas onde os professores lecionam quanto nas
universidades onde são formados, e já que os enunciados educativos focalizam as formas
como os alunos aprendem, é bastante comum atualmente que as professoras expressem
seu desejo em procurar formação em Psicopedagogia, na intenção de saberem como
ensinar, o que acaba por conferir a esta área uma posição ainda mais privilegiada,
considerada importante e necessária.
191
CAPÍTULO VII
PARA NÃO CONCLUIR
Se quisermos analisá-lo [o discurso] em suas condições, seu jogo
e seus efeitos, é preciso, creio, optar por três decisões às quais
nosso pensamento resiste um pouco [...]: questionar nossa
vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de
acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante.
(Foucault, 1999a, p.51)
Na intenção de lançar um olhar genealógico sobre a emergência da Psicopedagogia
no Brasil, selecionei alguns focos de análise entendidos como portas de entrada que
possibilitaram o surgimento desse campo.
Para tanto, iniciei destacando condições mais amplas, apresentadas em quatro
portas de entrada (desenvolvidas na segunda parte da Tese) que transcendem o caso
brasileiro, mas sem as quais eu dificilmente chegaria a ele. Nessas quatro portas, sugeri
que as primeiras possibilidades para a construção do solo psicopedagógico foram
dispostas pelo elo entre Psicologia e Pedagogia, constituído na própria emergência dos
estudos da criança, que posicionaram a infância no centro das discussões da ciência, da
moral, da religião e da família, através de pesquisas psicológicas que produziram a criança
como objeto de seu olhar. Ao discutir a produção dos escolares anormais como outra das
possibilidades de emergência da Psicopedagogia, sugeri que a intensificação das práticas
psicologizantes, mediada pela preocupação com a normalização da infância anormal no
interior das escolas, colocou em funcionamento um conjunto de saberes e práticas
psicopedagógicas, que começou a se formar em torno dos anormais ao mesmo tempo em
que contribuía ainda mais para a consolidação e difusão dos discursos sobre a
192
anormalidade. Em seguida, mostrei que as práticas (incluídos os discursos) de Maria
Montessori, Ovide Decroly, Edouard Claparède e Jean Piaget ao defenderem a
necessidade de escolas que funcionassem ao mesmo tempo como laboratórios de
observação, espaços de tratamento e locais de formação de professores, onde se
aplicassem e aperfeiçoassem as teorias e métodos médicos e psicológicos propuseram a
substituição de uma doutrina exterior (disciplina) por uma doutrina interior (governamento
do ser por si) e, também em função disso, estiveram envolvidas com um processo de
governamentalização da instituição escolar.
Com relação ao que desenvolvi na segunda parte da Tese, mais especialmente no
que se refere aos estudiosos cujos textos serviram de corpus de análise dessa parte da
pesquisa, quero retomar alguns pontos, no sentido de apontar algumas conclusões desse
trabalho.
Apesar das diferenças entre Montessori, Decroly, Claparède e Piaget, uma série
de idéias, conectadas entre si, que atravessam o pensamento dos quatro estudiosos, dentre
as quais se podem destacar as seguintes:
a criança é um ser singular, biológico (cujo interesse por aprender é subjetivo,
natural e espontâneo) e por isso deve estar no centro da ação educativa, em torno
do qual devem gravitar os métodos e os programas escolares (e não o contrário);
assim, os métodos não se justificam por si mesmos, nem pela instrução ou pelo
ensino dos conteúdos, mas se justificam em função das formas como as crianças
aprendem;
82
o interesse da criança, que nasce de suas necessidades naturais, é o motor da
educação (só o interesse leva ao conhecimento) e deve ser despertado pelo trabalho
escolar, dispondo-se condições necessárias para isso no ambiente e nas atividades
propostas;
82
Quero esclarecer que as idéias aqui listadas são resultado de uma série de investigações realizadas, de
modos diferentes, pelos referidos autores e constituem-se, no seu conjunto, como o fio que envolve e mescla
as teorizações dos autores. Isso significa que não se trata, aqui, de assumir tais idéias como verdadeiras ou
falsas, mas de problematizar tal como pretendi ter feito ao longo dessa Tese como elas chegaram a ser
consideradas verdadeiras. Para ser mais objetiva: ao listar essas idéias, não significa que eu concorde com
elas ou que as esteja propondo.
193
a disciplina é algo que vem do interior, ou seja, tem origem dentro da própria
criança e, sendo assim, não pode se configurar em castigos ou recompensas, não
pode ser imposta de fora;
o principal objetivo da educação é a criação de situações de ensino-aprendizagem
ajustadas às manifestações naturais das crianças e que sejam capazes de libertá-las
dos espartilhos típicos da escola tradicional, de modo a formar e incentivar: a
iniciativa, a autodisciplina, o autocontrole, a auto-educação, a capacidade de
decisão, a autonomia, enfim, o que os referidos estudiosos chamam de self-
government.
Pode-se ler esse objetivo, bem como esse conjunto de idéias que atravessam o
pensamento de Montessori, Decroly, Claparède e Piaget, como imersos no jogo imanente
da troca da ênfase na disciplina (educação rígida, coercitiva e puramente instrucional,
chamada pelos autores de educação tradicional) para a ênfase no governamento do ser por
si (educação cujo centro é a própria criança, considerando-a em suas formas de
pensamento e aprendizagem, chamada pelos autores de educação nova). Nesse sentido,
pode-se dizer que o deslocamento do dispositivo disciplinar para o dispositivo de
seguridade estudado por Foucault (2006) com relação à governamentalização do Estado
– teve sua face pedagógica ancorada também nas práticas desses estudiosos.
Lendo essa série de idéias a partir dos estudos de Foucault (2006), pode-se afirmar
que, em todas elas, se trata de governar as relações do ser-consigo. Nesse sentido, é
possível dizer que a gica do governamento do ser por si (característica do dispositivo de
seguridade) foi possibilitada, no campo da Educação, também por meio dos modos
educativos propostos por esses quatro estudiosos, cujas teorizações enfatizam a
necessidade de os sujeitos aprenderem a governar a si próprios. Em outras palavras: as
teorizações podem ser lidas e entendidas como defendendo a idéia de que o governo dos
sujeitos, quando operado de forma exterior (o que é típico do dispositivo disciplinar), seja
desbloqueado, por meio da formação de alunos ativos, que se movimentam a partir de seus
interesses e que, se assim educados porque educáveis –, são capazes do governo de si
mesmos (o que é típico do dispositivo de seguridade). Nesse sentido, o próprio dispositivo
de seguridade é colocado em funcionamento, na instância educacional, também por essa
série de idéias que atravessam os discursos aqui analisados. E é a isso que me refiro
quando digo, no Capítulo II, com base em Noguera-Ramírez (2008), que é possível ver a
Modernidade com as lentes da Pedagogia.
194
Após analisar as condições mais amplas para a emergência da Psicopedagogia
enquanto campo específico do conhecimento (condições discutidas na segunda parte da
Tese) passei a discutir (na terceira parte) as condições para a consolidação do entorno
psicopedagógico no Brasil, destacando duas portas de entrada: a Escola de
Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte e o Instituto de Educação do Rio de
Janeiro, entre as quais há, apesar das diferenças de seu funcionamento, uma continuidade
fundamental que me serviu como uma porta de entrada maior: a disseminação, no Brasil,
dos princípios do Movimento da Escola Nova.
Assim, iniciei a terceira parte analisando três publicações: o documento Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova, redigido por Fernando de Azevedo; o livro Introdução
ao Estudo da Escola Nova, escrito por Lourenço Filho; e o texto Por que “Escola
Nova”?, escrito por Anísio Teixeira. Em seguida, passei a tratar da Escola de
Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte, analisando o trabalho investigativo
desenvolvido por Helena Antipoff; e do Instituto de Educação do Rio de Janeiro,
analisando a forma como a formação de professores no Brasil foi pensada e efetivada na
década de 1930, especialmente por Anísio Teixeira e Lourenço Filho.
Como referi, as reformas educacionais que aconteceram no período entre 1920 e
1930 impulsionadas, após a Primeira Guerra Mundial, pela disseminação, no Brasil, de
métodos educativos inspirados na Psicologia foram o cenário mais amplo no qual os
referidos educadores se movimentaram, em meio à efetivação de uma série de ações e à
adoção de várias medidas no campo da Educação no Brasil. Nesse sentido, tais educadores
estiveram envolvidos, cada um a seu modo, com a reorganização da escola brasileira, no
que se refere à administração escolar, à ampliação da rede e clientela, às pesquisas sobre o
perfil dos estudantes, à formação de professores, etc.
Retomando alguns pontos do que foi desenvolvido na terceira parte, é possível
dizer que também há, entre os textos que serviram de corpus de análise dessa parte da
pesquisa, um conjunto de idéias que atravessam as práticas de Fernando de Azevedo,
Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Helena Antipoff, dentre as quais, destaco:
a o-determinação das finalidades da educação e a não-aplicação de métodos
científicos aos problemas educacionais geram desorganização do aparelho escolar
e desarticulação das iniciativas de mudança e impedem a unidade e a continuidade
de pensamento das reformas de ensino no Brasil; portanto, é preciso definir bases
que sejam capazes de darem uma direção comum à ação educativa, no que se
195
refere tanto às propostas políticas ao campo da Educação quanto às práticas
pedagógicas realizadas nas escolas;
83
as bases da educação, para que consigam operar com o ajustamento entre as
finalidades da educação e os processos operados para que tais finalidades sejam
atingidas, deverão ser estabelecidas a partir da Biologia, da Psicologia e da
Sociologia;
o direito à educação deve ser garantido a todo cidadão brasileiro. O que justifica e
determina esse direito é a condição biológica do indivíduo e não a hierarquia social
de privilégios. Se a finalidade da educação é baseada na Biologia (em função da
idéia de aptidão natural dos indivíduos), a determinação de uma normalidade das
aptidões será realizada pela Psicologia, cujos estudos, ao investigarem o que
acontece naturalmente com os sujeitos para que aprendam ou não aprendam,
estabelecem as medidas dessa seleção e garantem, assim, a necessária
cientificidade da educação.
a ciência da Psicologia é primordial à solução de problemas da educação e do
ensino no Brasil, porque, entre outras coisas, permite: conhecer as crianças em
suas diferentes fases de desenvolvimento, em todos os seus aspectos; melhor
organizar os modos e os ambientes educativos voltados para elas; melhor organizar
as instituições escolares, ordenando as classes por nível intelectual; e melhor
organizar o sistema de ensino de modo geral. Considerando isso, há necessidade de
difundir as pesquisas realizadas a partir da Psicologia, estendendo-as a um grande
número de crianças;
a escola tradicional é uma instituição autocrática, estática, preparatória e
suplementar, que limita a atividade do aluno e o ensina a seguir e obedecer ordens
impostas externamente; portanto, trata-se de uma instituição na qual o aluno é
apenas um expectador, indiferente ao que sucede;
a escola nova é uma instituição que funciona de acordo com os interesses próprios
a cada idade, por meio de projetos que assegurem a unidade do processo de
aprendizagem, formando o aluno para que pense, julgue e se dirija por si mesmo;
portanto, trata-se de uma instituição cuja finalidade é a educação pelo interesse, em
83
Idem à nota anterior.
196
que não se exige do aluno (entendido como um agente ou um ator, ligado ao curso
dos eventos) nada mais que o trabalho que ele aceita e quer;
a escola tradicional deve ser substituída, no Brasil, por uma escola nova; o que
marca as diferenças entre as duas escolas é a predominância, em todos os trabalhos
escolares, do fator psicobiológico do interesse, o estímulo constante à criança, o
respeito à sua personalidade, colocando-a como eixo da escola e como centro de
gravidade da educação;
as crianças se interessam mais por matérias escolares cujos conteúdos e métodos
são renovados e atraentes, exigindo delas uma atitude mais ativa;
a aprendizagem não está vinculada à fixação de idéias, aquisição de
conhecimentos, armazenamento e memorização de fórmulas, nomes, datas,
classificações, ou mera absorção e aceitação de doutrinas, fatos ou conceitos; a
aprendizagem deve ser pensada como mais ampla, relacionada a uma situação real
de experiência e aos propósitos de quem aprende, relacionada à motivação e a um
processo de ajustamento individual, a um processo ativo de reagir a certas coisas e
selecionar as reações apropriadas, a um sistema de relações funcionais que é
próprio a cada pessoa e que a distingue das demais;
a formação de professores deve estar solidamente ancorada na perspectiva
escolanovista, por meio de programas específicos a depender da idade dos alunos
com quem os mestres irão trabalhar, para que as fases do desenvolvimento humano
sejam amplamente conhecidas, consideradas e respeitadas; portanto, as grades
curriculares dos cursos de formação devem atender às exigências científicas
assinaladas nas investigações sobre as formas como os sujeitos agem e aprendem;
Como se pode perceber pelo conjunto dessas idéias que atravessam as práticas de
Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Helena Antipoff, as teorias e os
métodos das pesquisas realizadas por estudiosos europeus e norte-americanos,
representantes do Movimento da Escola Nova, são o ponto de onde partem e chegam as
investigações brasileiras sobre as crianças e o ensino. Preocupados em atribuir e efetivar
um caráter científico à educação no Brasil, as discussões realizadas pelos referidos
educadores brasileiros tal como o proposto por Montessori, Decroly, Claparède e Piaget
– giram em torno da necessidade de se substituir a função disciplinadora da escola
tradicional por uma função governamental da escola nova; ou seja, as discussões
197
realizadas no Brasil também situam o (auto) governamento e a (auto) regulação como
problemas centrais da escola.
Nesse sentido, os autores e pesquisadores brasileiros, cujos textos compuseram o
corpus de análise da terceira parte desse trabalho, não inventaram, por assim dizer, o
empreendimento científico no qual estão inseridos: tal empreendimento existia. O que
eles fizeram foi desenvolver em uma determinada direção o trabalho de uma tradição que
já estava firmemente enraizada entre e pelos pioneiros do Movimento da Escola Nova.
Eis, assim, as relações que se podem estabelecer entre a segunda e a terceira parte
da Tese: as preocupações de Maria Montessori, Ovide Decroly, Edouard Claparède, Jean
Piaget, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Helena Antipoff estão,
apesar das diferenças que em suas proposições, em sintonia com uma lógica mais
ampla das épocas em que se situam suas teorizações: a lógica das sociedades de gestão
governamental, que funcionam por meio do dispositivo de seguridade, estudada por
Foucault (2006), com relação à governamentalização do Estado. Ou melhor: para além de
estarem em sintonia, tais preocupações partem dessa lógica e, ao mesmo tempo, de modo
circular e imanente, configuram, na instância educacional, o próprio deslocamento de
ênfase do dispositivo disciplinar para o dispositivo de seguridade, envolvendo-se, assim,
com um processo que se pode chamar de governamentalização da escola.
Em outras palavras: ao proporem, de modos diversos, a substituição do sujeito
dócil pelo sujeito que guia a si mesmo, as investigações aqui analisadas (dos estudiosos
europeus e brasileiros) se movimentaram no interior de uma racionalidade que direcionava
as preocupações e práticas políticas das sociedades ocidentais, cuja lógica priorizava o
governamento do ser por si. Isso não significa que as preocupações e práticas políticas
causaram as investigações dos referidos estudiosos; em vez disso, uma implicação
mútua entre as investigações e as preocupações e práticas políticas, tornando-se
reciprocamente possíveis, embaralhando-se e formando um nexo a uma vez
educacional e político. E é nesse sentido que se podem entender tais investigações como
envolvidas com as possibilidades de governamentalização da instituição escolar. Ou seja,
uma lógica de funcionamento das sociedades de gestão governamental da qual a escola
não escapa: a escola é ao mesmo tempo produto e produtora dessa mesma lógica. Nesse
sentido, a própria escola foi sendo governamentalizada. E essa é a condição fundamental
de possibilidade para a emergência da Psicopedagogia. O que pretendi fazer aqui foi
198
mostrar como a escola foi sendo governamentalizada, por meio de práticas que se
envolveram na atribuição de um caráter científico ao campo da Educação, fundamentando-
o especialmente na Biologia e na Psicologia.
Nisso tudo, é preciso referir que a caracterização e a análise que fiz das práticas
desses estudiosos não pretende servir, de modo algum, como um exame minucioso de suas
teorizações como um todo. A intenção foi tão somente a de mostrar que os bocados dessas
práticas integram em maior ou menor medida, com mais ou menos intensidade um
conjunto de condições que as tornaram possíveis no interior de um corpo particular de
formulações que se pretenderam científicas, cujo principal efeito foi a
governamentalização da escola. É a lógica de funcionamento das sociedades de gestão
governamental que ajuda a explicar como o trabalho desses estudiosos veio a assumir uma
posição de destaque no campo da Educação, ao mesmo tempo em que seu posicionamento
reforça e reproduz essa própria lógica.
A partir da análise das condições de possibilidade de emergência da
Psicopedagogia tanto de forma ampla quanto mais especialmente no Brasil (segunda e
terceira partes da Tese) –, a pesquisa foi mostrando que a própria emergência da
Psicopedagogia estava enredada, para além de todas aquelas portas de entrada que
selecionei, com determinados problemas e questões educacionais contemporâneos que,
entre outras coisas, contribuíram para conferir o caráter de veridicidade à Psicopedagogia,
possibilitando a legitimidade de seu funcionamento no interior das práticas escolares. Foi
desse modo que selecionei e analisei três principais pontos, que compuseram a quarta
parte desse trabalho: 1) Psicopedagogia envolvida no processo de normalização; 2)
Psicopedagogia envolvida na gestão do risco social; 3) Psicopedagogia envolvida no
deslocamento do ensino para a aprendizagem.
A análise desses três pontos pretendeu mostrar que a Psicopedagogia, enquanto um
campo de conhecimento inventado sob a lógica das sociedades de gestão governamental,
está envolvida com processos e práticas que funcionam por meio do dispositivo de
seguridade, ao mesmo tempo em que intensificam os efeitos do próprio dispositivo,
colocando-o sempre e cada vez mais em funcionamento.
Como referi, os saberes psicopedagógicos constituem estratégias para criação,
reinserção e readaptação dos alunos com problemas de aprendizagem e, simultaneamente,
legitimam a permanente necessidade de intervenção junto a esses alunos, situando-os a
199
uma certa distância da normalidade média. Trata-se, pois, do envolvimento da
Psicopedagogia com processos de normalização relativamente aos problemas de
aprendizagem, criados e entendidos como um risco social que precisa ser gerido (também
pela Psicopedagogia). E a gestão desse risco é operada por meio de estratégias e
procedimentos, especialmente terapêuticos, que reforçam o que havia sido iniciado
pelas práticas escolanovistas (que dispuseram as possibilidades para a emergência da
Psicopedagogia): o deslocamento do ensino para a aprendizagem.
Eis, assim, as relações que se podem estabelecer entre a segunda, a terceira e a
quarta partes da Tese: se os problemas de aprendizagem (ícones do fracasso escolar) são
atualmente objeto de investigação, atuação e normalização da Psicopedagogia, pode-se
dizer que, no Brasil, eles foram inventados por uma série de pesquisas e pela circulação de
uma série de discursos pesquisas realizadas e discursos disseminados por figuras como
Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Helena Antipoff, entre outros –,
claramente inspirados em médicos, psicólogos e estudiosos da Psicologia, tais como Maria
Montessori, Ovide Decroly, Edouard Claparède, Jean Piaget, também entre outros.
Ao iniciar meus estudos de Doutorado, eu não fazia idéia das inúmeras
possibilidades de análise que o tema da Psicopedagogia poderia me oferecer. A sensação
que tenho, ao concluir esta pesquisa, é a de que muitos outros caminhos poderiam ter sido
percorridos e muitas outras relações poderiam ter sido estabelecidas. E é exatamente por
isso que este Capítulo final se intitula Para não concluir, na medida em que o término
desta Tese abriu, para mim, um vasto leque de possibilidades para a realização de futuras
investigações, tendo por base esta que ora apresentei. E isso se torna ainda mais visível
quando penso na quantidade de material relativo à Psicopedagogia que examinei ao longo
do curso de Doutorado e que, em função das escolhas que tive de fazer, acabou ficando
fora do texto final desse trabalho. Olhando para trás, percebo o quanto foram se
modificando os modos iniciais de investigação apresentados na ocasião da defesa de
Proposta de Tese, em dezembro de 2006. De para cá, embora a intenção central de
pesquisa tenha permanecido a mesma problematizar a emergência da Psicopedagogia no
Brasil –, este texto da Tese pouco contém do texto da Proposta: trata-se, praticamente,
como já referido, de dois documentos distintos.
Hoje percebo que talvez esta tenha sido a melhor forma de percorrer o caminho até
aqui. Explico por que: na medida em que minha intenção sempre foi, desde o início,
200
problematizar a emergência da Psicopedagogia no Brasil, meu primeiro movimento foi o
de cercar este tema a partir dos discursos e das práticas que atualmente circulam sobre ele
em nosso País. Nesse sentido, o texto da Proposta apresentou um extenso Capítulo
84
composto por uma série de considerações relativas às discussões mais recentes que
abrangem a Psicopedagogia no Brasil, tais como:
As áreas de atuação em que este campo foi se especializando Psicopedagogia
Clínica, Psicopedagogia Escolar, Psicopedagogia Hospitalar, Psicopedagogia
Empresarial;
A criação e o trabalho da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp),
fundada em julho de 1986 durante o II Encontro de Psicopedagogos de São Paulo,
bem como o funcionamento das catorze seções e dos oito núcleos dessa
Associação, espalhados pelo Brasil, que intentam aproximar profissionais e
militantes da área em todo país em torno de objetivos comuns ao campo da
Psicopedagogia, proliferando ainda mais as discussões relativas ao perfil, à
formação, à atuação e ao reconhecimento de psicopedagogos brasileiros;
A reivindicação pela regulamentação da profissão de psicopedagogo (ainda não
oficializada), que implicou pelo menos duas coisas: a elaboração, em 1992, do
Código de Ética da ABPp; e a extensão da Psicopedagogia, que da liderança
acadêmica ampliou-se até uma liderança política, tornando-se pauta da Câmara dos
Deputados Federais e aprovando dois Projetos de Lei considerados como
propulsores da discussão cada vez mais intensificada acerca do reconhecimento
legal da profissão de psicopedagogo
85
;
84
Trata-se do Capítulo III, intitulado Psicopedagogia: algumas considerações, p.47-90 (Coutinho, 2006).
85
Os dois Projetos de Lei, aprovados respectivamente em setembro de 1997 e abril de 2000, são: Projeto de
Lei 3.124/97, que cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicopedagogia e regulamenta a
profissão do psicopedagogo, mediante certificado de conclusão de curso de Especialização em
Psicopedagogia; e Projeto de Lei 128/2000, que estabelece a implantação de assistência psicológica e
psicopedagógica em todos os estabelecimentos públicos de ensino do Estado de São Paulo, abrangendo os
níveis de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. Para a aprovação desse segundo Projeto
de Lei, defendeu-se a idéia de que o fracasso escolar representado pela evasão e pela repetência, provoca
atraso na formação do jovem para o mercado de trabalho e gera maior custo para o Estado. Tal Projeto foi
transformado na Lei 10.891, em 20 de setembro de 2001, que aprova e amplia o Projeto que lhe deu
origem, porque autoriza o Poder Executivo a estender a implantação de assistência psicológica e
psicopedagógica em escolas públicas do Estado de São Paulo a escolas públicas de todo país, com o objetivo
de diagnosticar e prevenir problemas de aprendizagem. Para uma ntese da legislação e dos documentos de
referência produzidos na área da Psicopedagogia no Brasil, ver anexo 2.
201
A abertura e o funcionamento de cursos de formação de psicopedagogos, em
universidades brasileiras, desde a década de 1960, bem como a inexistência em
função do não-reconhecimento legal da profissão de um órgão que normatize e
fiscalize o planejamento e desenvolvimento dos cursos, tarefa atualmente
desempenhada pela ABPp, que emite diretrizes e eixos temáticos para a orientação
dos cursos, mas que, como órgão de classe, não tem o poder de emitir
regulamentações
86
.
Como grande parte dos episódios envolvendo a Psicopedagogia no Brasil foram,
na medida em que aconteciam, apresentados e discutidos na Revista Psicopedagogia,
minha idéia inicial era, como referi no Capítulo I, fazer dessa Revista o corpus de análise
da pesquisa. Em seguida, vislumbrei a possibilidade de ampliar o corpus, compondo-o a
partir da combinação dos seguintes documentos: Revista Psicopedagogia, Informativo
Psicopedagogia On-Line, anais de eventos promovidos ou organizados pela Associação
Brasileira de Psicopedagogia, ementas dos cursos de formação em Psicopedagogia.
Diante da possibilidade de tais materiais não darem conta de uma pesquisa sobre a
emergência da Psicopedagogia, decidi protelar sua análise. E, como salientei, é
exatamente por isso que esse Capítulo final se intitula Para não concluir, na medida em
que a conclusão da própria Tese sugere o início de uma série de outras investigações
acerca da Psicopedagogia no Brasil, a partir de todos os materiais cuja análise foi
temporariamente adiada, em função das escolhas que tive de fazer.
Um primeiro exame dos materiais que ficaram em suspenso evidencia que o atual
cenário psicopedagógico brasileiro demanda, cada vez mais, a criação de saberes para e
sobre o adjetivo psicopedagógico; saberes que atuarão no sentido de delegar poderes ao
próprio adjetivo, a bem de este ser reconhecido, aceito e continuar legitimamente
funcionando. A complexidade disso está no fato de que a produção dos saberes para e
sobre a materialidade das coisas relativas à Psicopedagogia deriva de uma vontade de
poder. Está certo que saber confere poder; mas, antes disso, o saber nasce de uma vontade
de poder. Portanto, a base do poder está no próprio poder e não num saber que
supostamente daria origem ao poder. “Os saberes se constituem com base numa vontade
86
Por ser isenta de capacidade normativa, a ABPp limita-se a sugerir um currículo mínimo, e propôs num
documento produzido em 2002 e considerado como um guia norteador de caráter abrangente ementa,
conteúdos e bibliografia, recomendando que todos os cursos se organizem em torno do tripé “teoria-prática-
formação pessoal do futuro psicopedagogo”. Para uma síntese dos cursos de Psicopedagogia no Brasil,
distribuídos por Estados e Regiões, ver anexo 3.
202
de poder e acabam funcionando como correias transmissoras do próprio poder a que
servem” (Veiga-Neto, 2003b, p.141).
O poder que os saberes, ao serem produzidos, atribuem à Psicopedagogia nada tem
a ver com violência, negatividade ou repressão. Trata-se de um poder positivo, que,
exercitando-se no interior da produção de saberes, incita a continuação dessa produção,
num movimento bastante complexo, entrelaçando três elementos (práticas, poderes e
saberes) que, combinados, fazem emergir o que se costuma chamar de fundamentos
científicos. Em função da própria dinâmica de emergência e subsistência, os fundamentos
são sempre nômades, móveis, ágeis, escorregadios, fugitivos, autocriativos, mas que, em
bloco, e a depender da força dos artefatos culturais que os legitimam, podem ir se
cristalizando e se transformando em verdades mais ou menos transcendentes. No afã de
explicar o objeto que lhes constituiu, os fundamentos acabam, assim, por servir de
justificativa para toda uma série de categorizações que vão se naturalizando. Nesse
sentido, os fundamentos funcionam de forma a camuflar a idéia de que foram inventados a
partir da prática (denominada de psicopedagógica), e passam a ser entendidos como
anteriores à própria prática, supostamente construindo-a e explicando-a. Um dos efeitos da
legitimação dos fundamentos é a tendência em se entender a Psicopedagogia como um
fenômeno que se desenvolveu cronológica e evolutivamente, seguindo as características
de universalidade, integralidade e completude.
A Tese que ora apresento pretendeu mostrar que a colocação da Psicopedagogia no
interior de aparatos políticos, econômicos e administrativos é expressa por um movimento
de idas e vindas de uma série de discursos que, na maioria dos casos, não tiveram a
Psicopedagogia como o motivo de sua criação; nesse sentido, pode-se dizer que ela
emergiu em forma de episódios e passou a adquirir graus diferenciados de importância, a
depender das situações e das discussões que eram realizadas, em momentos e contextos
diferenciados. Isso talvez nos auxilie a compreender a idéia de que a Psicopedagogia não
foi (e não está sendo) constituída a partir de uma unidade indissolúvel e fixa, mas a partir
de práticas algumas vezes isoladas e disformes; outras vezes contínuas e regulares. Ou
seja, emergiu como materialidade, como acontecimento aleatório, tal como pretendi
mostrar a partir do exame dos diferentes textos que compuseram o corpus final de análise
desta Tese, embora muitas outras portas de entrada poderiam ter sido (e, em outras
oportunidades, ainda poderão ser) analisadas.
203
A formulação de novos discursos e novas práticas produz também novas
subjetividades. Diante disso, concordo com Johnson (1999, p.72), quando diz que: “é
porque sabemos que o estamos no controle de nossas próprias subjetividades que
precisamos identificar suas formas”. Nesse sentido, o estudo sobre a emergência da
Psicopedagogia (por meio da análise das condições que a possibilitaram), bem como a
ampliação desse estudo (por meio da análise de seus efeitos) torna-se não apenas
necessário, mas bastante útil ao campo da educação, na medida em que pode nos ajudar a
responder à velha e sempre atual pergunta de Nietsche: “o que estamos fazendo de nós
mesmos?”.
Sendo a Psicopedagogia um discurso que atualmente possui sua própria ordem, e
estando a Psicopedagogia na ordem de alguns outros diferentes discursos, o estudo de sua
emergência poderá contribuir para uma análise dos procedimentos reguladores dos
discursos psicopedagógicos, procedimentos atravessados por relações de poder e que estão
em constante deslocamento, “que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando
uma grade complexa que não cessa de se modificar” (Foucault, 1999a, p.9).
Eis, assim, minha pretensão em toda esta Tese: lançar um olhar genealógico sobre
a Psicopedagogia através da análise de um conjunto de textos e práticas (entendidas como
tecnologias), para tentar saber como foi se constituindo o discurso psicopedagógico, por
meio, apesar ou com o apoio dos procedimentos que o regulam; quais foram suas
condições de aparecimento, de crescimento, de variação e de validação. Examinar a sua
formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular, entendendo-o enredado numa
complexa trama de signos que compõem (e se intersecionam com) outros conjuntos
discursivos. Analisar o discurso psicopedagógico naquilo que ele tem de mais material:
seu próprio acontecimento.
204
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[on-line]. Disponível em http://www.centrorefeducacional.com.br. Acessado em 31 de
janeiro de 2008.
214
ANEXOS
215
ANEXO 1
REFORMAS EDUCACIONAIS NACIONAIS
(da proclamação da República até o período do Estado Novo)
87
Reforma Benjamim Constant (1890) Princípios orientadores: liberdade e laicidade do
ensino e gratuidade da escola primária. Principais intenções: transformar o ensino em
formador de alunos para os cursos superiores e não apenas preparador; substituir a
predominância literária pela científica. Foi criticada por positivistas (com o argumento de
que não respeitava os princípios pedagógicos de Augusto Comte) e por defensores da
predominância literária (com o argumento de que houve um acréscimo de matérias
científicas às tradicionais, tornando o ensino enciclopédico).
Reforma Epitácio Pessoa (1901) Inclui a matéria de Lógica e retira as de Biologia,
Sociologia e Moral, acentuando, nas instituições oficiais de ensino superior e secundário, a
ênfase literária em detrimento da científica.
Reforma Rivadária Correia (1911) Retoma a orientação positivista, estabelece o ensino
livre e retira do Estado o poder de interferência no setor educacional. Pretensão geral:
tornar o curso secundário formador do cidadão, deixando de ser simples promotor a um
87
Anexo elaborado com base em Niskier (1993).
216
nível educativo seguinte. Defende a abolição do diploma em troca de um certificado de
assistência e aproveitamento. Transfere os exames de admissão ao ensino superior para as
faculdades.
Reforma Carlos Maximiliano (1915) Re-oficializa o ensino no Brasil, sob o argumento
de que a Reforma anterior estava tendo resultados desastrosos para a educação brasileira.
Reforma Rocha Vaz (1925) Introduz a cadeira de Instrução Moral e Cívica, a fim de
combater os protestos estudantis contra o governo do presidente Arthur Bernardes.
Reforma Francisco Campos (1931) Organiza, por meio de Decretos sancionados pelo
governo provisório, o ensino secundário e as universidades brasileiras, ainda inexistentes.
Reforma Capanema (1942) – Regulamenta, por meio de Decretos-Leis, o ensino industrial
e o ensino comercial, e cria o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI),
primeiro dispondo sobre a obrigatoriedade de os estabelecimentos industriais empregarem
um total de 8% correspondente ao número de operários e matriculá-los em escolas do
SENAI; e depois compelindo que as empresas oficias com mais de cem empregados
mantivessem, por conta própria, uma escola de aprendizagem destinada à formação
profissional de seus aprendizes. Apesar de já ter acontecido a criação da União Nacional
de Estudantes (UNE) e do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), fica
marcada a distinção entre trabalho intelectual (para classes economicamente favorecidas) e
trabalho manual, com ênfase no ensino profissional (para classes economicamente
desfavorecidas).
217
ANEXO 2
LEGISLAÇÃO E DOCUMENTOS DE REFERÊNCIA
PRODUZIDOS NA ÁREA DA PSICOPEDAGOGIA NO BRASIL
LEGISLAÇÃO
1997 2000 2001
Projeto de Lei n° 3.124/97
Regulamenta a profissão de
psicopedagogo e cria o Conselho
Federal e os Conselhos Regionais de
Psicopedagogia.
Projeto de Lei n°128/00
Estabelece a implantação de
assistência psicológica e
psicopedagógica em todos os
estabelecimentos públicos de ensino
do Estado de São Paulo.
Lei n° 10.891
Autoriza o Poder Executivo a
implantar assistência psicológica e
psicopedagógica em todos os
estabelecimentos de ensino básico
públicos.
DOCUMENTOS DE REFERÊNCIA
1980 1992 2002
Criação da Associação Estadual de
Psicopedagogia de São Paulo, que
posteriormente deu origem à atual
Associação Brasileira de
Psicopedagogia (ABPp).
Criação do Código de Ética da ABPp,
documento em que constam os
princípios norteadores da profissão e
as responsabilidades dos
psicopedagogos.
Criação do documento que sugere
ementário e bibliografia para o estudo
e a prática da Psicopedagogia, que
serve como guia norteador aos cursos
de formação de todo país.
218
ANEXO 3
CURSOS DE ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOPEDAGOGIA NO BRASIL
Distribuição dos cursos de Psicopedagogia por Região
REGIÃO IES
88
INSTITUIÇÃO
89
TOTAL
Região Centro-Oeste 9 3
12
Região Nordeste 19 7
26
Região Norte 4 1
5
Região Sudeste 75 14
89
Região Sul 27 7
34
TOTAL BRASIL 134 32 166
88
Estão incluídos na categoria IES (Instituição de Ensino Superior): as Universidades, as Faculdades e os
Centros e Institutos de Ensino Superior.
89
Estão incluídos na categoria Instituição: as Fundações Educacionais, os Institutos de Educação, os Centros
de Estudo e Desenvolvimento, os Centros e Associações de Ensino Unificado, os Centros Psicopedagógicos
de Atividades Integradas, os Centros de Pesquisa e outras instituições.
219
Distribuição dos cursos de Psicopedagogia por Estado
ESTADO IES INSTITUIÇÃO TOTAL
Alagoas 1 1
2
Amapá 1 0
1
Amazonas 1 0
1
Bahia 4 2
6
Ceará 7 0
7
Distrito Federal 2 2
4
Espírito Santo 3 1
4
Goiás 1 0
1
Maranhão 1 2
3
Mato Grosso 5 1
6
Mato Grosso do Sul 1 0
1
Minas Gerais 9 0
9
Pará 1 0
1
Paraná 15 3
18
Pernambuco 3 0
3
Piauí 1 2
3
Rio de Janeiro 21 6
27
Rio Grande do Norte 1 0
1
Rio Grande do Sul 11 1
12
Rondônia 1 0
1
Roraima 0 1
1
Santa Catarina 1 3
4
São Paulo 42 7
49
Sergipe 1 0
1
TOTAL BRASIL 134 32 166
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo