Download PDF
ads:
Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Comunicação e Expressão
Curso de Pós-Graduação em Literatura
Anita Prado Koneski
Blanchot, Levinas e a arte do estranhamento
Florianópolis
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Anita Prado Koneski
Blanchot, Levinas e a arte do estranhamento
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Literatura da Universidade
Federal de Santa Catarina, na área de
Teoria Literária, como requisito para a
obtenção do tulo de doutora em
Literatura.
Orientador: Dr. Sérgio Medeiros
Florianópolis
2007
ads:
Houve um tempo de coincidência.
Enquanto minha filha gestava seu bebê, eu gestava a tese.
A meu ver, gestávamos uma conversa infinita com a vida,
meus diálogos com Blanchot e Levinas se entrelaçavam com o mistério da vida
gerada no ventre de minha filha.
Ambas gestávamos... um bebê... uma tese... uma infinita conversa.
Ao Pedro
AGRADECIMENTOS
Agradeço à instituição na qual trabalho, Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC-CEART), por ter me proporcionado a oportunidade do doutoramento.
Aos meus alunos, pelo respeito com que sempre trataram meu modo de ver, de
pensar e de sentir a arte. As lembranças de nossos debates foram sempre o maior
incentivo para a presente pesquisa.
Ao meu orientador, professor Dr. Sérgio Medeiros, pelas conversas e pelas
leituras empreendidas ao longo da elaboração da tese.
Aos professores membros da banca de qualificação, Professor Dr. Marcos Müller
Granzotto e professor Dr. Raúl Antelo.
Dedico um especial agradecimento ao professor Dr. Marcos Müller Granzotto, pela
disponibilidade de, após a banca de qualificação, discutir questões que foram
fundamentais para que a tese assumisse um "outro rosto".
À professora Dra.Tânia Ramos, pela acolhida sempre pontual durante os anos que
estive na Pós-Graduação de Literatura, desde o mestrado.
À Elba Maria Ribeiro, chefe de expediente da Pós-Graduão em Literatura, que
com seu incentivo e profissionalismo esteve, durante todos esses anos, sempre
muito presente.
Ao meu irmão Idro Antônio Prado, pelas leituras e conversas que mantivemos ao
longo da elaboração da tese.
Ao meu mestre, professor Dr. Alfredo Fernandes, cuja leitura e análise da tese
resultaram na confiança que eu necessitava para levá-la à banca de defesa final.
Ao meu esposo. Meu grande incentivador. Meu sempre amado companheiro.
Aos meus filhos, Igor, Ivan e Carolina, nos quais sempre encontrei apoio.
Enfim, sou grata à Energia Maior, que faz com que as coisas adquiram força quando
elas devem acontecer, Deus.
RESUMO
O presente ensaio busca pensar as questões relacionadas à leitura da obra plástica
contemporânea diante da dissolução dos fundamentos tradicionais destinados à
interpretação da arte. Para tanto, oferece uma possibilidade de refletir sobre as
obras contemporâneas através dos conceitos de Emmanuel Levinas e Maurice
Blanchot. Os conceitos de “Outro”, “Vestígio”, “Rosto” e “Há”, de Levinas, e de
“Neutro”, “Fora” e “Desobra”, de Blanchot, passam a ser centrais para essa
discussão. Daí resulta que, em vez de termos com a arte um contato revelador,
vivenciamos o “impossível”: a arte como umabsolutamente Outro”.
Palavras-chave: Arte contemporânea; Infinito; Rosto; Neutro; Fora.
ABSTRACT
This essay intends to discuss some of the issues related to contemporary plastic arts,
facing the dissolution of their traditional foundations. For this purpose, it offers a
possibility of thinking about contemporary works of art using concepts coined both by
Emmanuel Levinas and Maurice Blanchot. In other words, Emmanuel Levinas,
“Otherness”, “Trace”, and Maurice Blanchot's “Neutral”, “Outside”, “Infinite”, play a
central role in this discussion. As a result, instead of having a revealing encounter
with art, we deal with the “impossible”, art as a complete other.
Keywords: Contemporary arts; Infinite; Trace; Neutral; Outside.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................9
1.1 Definindo o problema ............................................................................................9
1.2 O “estranhamento” como sintoma da perda dos fundamentos............................24
1.3 Blanchot e Levinas: referencial teórico................................................................31
1.4 Maurice Blanchot e Emmanuel Levinas: proximidade de uma amizade “infinita”36
1.5 Sobre os artistas citados.....................................................................................44
2 BLANCHOT E LEVINAS: O INFINITO COMO LUGAR DO ESTRANHAMENTO 49
2.1 O estranhamento: a queso é escapar do ser ...................................................49
2.2 Totalidade e Infinito.............................................................................................77
2.3 A metáfora do “Rosto” para Levinas....................................................................88
2.4 A ética do “Outro” em Levinas.............................................................................97
2.5 A questão do ser: Levinas, Blanchot e Heidegger.............................................102
2.6 O tempo Infinito de Levinas e de Blanchot........................................................116
3 ENSAIOS SOBRE UMA ESTÉTICA DO “FRACASSO”.....................................123
3.1 Arte: esse “Outro do mundo”.............................................................................123
3.2 “Infinita” Assemblage: Farnese de Andrade......................................................132
3.3 A “outreidade” no Êxodo: fotografias de Sebastião Salgado.............................144
3.4 O corpo “impossível”: fotografias de Andrés Serrano........................................152
3.5 “Estranhamento” na morte: plastinizações de Gunther Von Hagens.................167
3.6 Contemplação “impossível”: pinturas de Antoni Tàpies.....................................178
3.7 “Outramente que ser”: as obras de Cindy Sherman..........................................193
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................200
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................217
ANEXOS .................................................................................................................231
Anexo A - Farnese de Andrade...............................................................................231
Anexo B - Sebastião Salgado..................................................................................232
Anexo C - Andrés Serrano ......................................................................................233
Anexo D - Gunther von Hagens ..............................................................................234
Anexo E - Antoni Tàpies..........................................................................................235
Anexo F - Cindy Sherman .......................................................................................236
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Hiroshima (1966-72) - Assemblage de Farnese de Andrade .................134
Figura 2 - SemTítulo (1996) - Assemblage de Farnese de Andrade......................141
Figura 3 - Mostra Êxodo e Retratos de Crianças no Êxodo - Fotografia de Sebastião
Salgado..................................................................................................147
Figura 4 - Mostra La Morgue - Fotografia de Andrés Serrano................................166
Figura 5 - Exposição Body Worlds (2005) - Plastinizações de Gunther von Hagens
...............................................................................................................175
Figura 6 - Infinit (1988), técnica mista sobre madeira - Obra de Antoni Tàpies......190
Figura 7 - Sem Título, fotografia em cores, 1989, 170x142 cm - Obra de Cindy
Sherman.................................................................................................194
9
1 INTRODUÇÃO
1.1 Definindo o problema
Assim, a arte é o lugar da insatisfação e da insegurança.
Ela tem um nome: destruição de si mesmo, desagregação infinita,
e um outro nome: ventura e eternidade.
Blanchot, 1997
A presente tese coloca-se diante de uma pergunta que inferimos como ponto
inicial para nossas reflexões: como pensar as questões envolvendo a arte hoje de
modo que ela se apresente como um “absolutamente Outro”, uma estranha em
nosso meio e que institua uma relação paradoxal de estranhamento e fascínio? Será
basicamente através dessa pergunta que moveremos as nossas investigações no
campo da arte contemporânea centrada especialmente nas artes plásticas.
Porém, encontrar, buscar, responder a essa indagação não significaaqui
empreender a busca da verdade ou inferir uma verdade, mas, como diz Blanchot
(2001, p. 63-64), girar em torno”, fazer um movimento circular sem nenhuma idéia
de finalidade. Não haverá um centro para atingirmos, ao contrário, um abandono
do centro para arriscarmos fazer valer a caminhada errante, a impossibilidade e a
inversão de nossos hábitos. Blanchot (2001, p. 64) diz que
A busca seria então da mesma espécie que o erro. Errar é voltar e retornar,
abandonar-se à magia do desvio. O desencaminhado, aquele que saiu da
proteção do centro, gira em torno de si mesmo, entregue ao centro e não
mais cuidado por ele.
Digamos que estamos diante de uma pergunta que em sua posição de
pergunta não implicará necessariamente os elementos de sua resposta. Dessa
10
forma, a nossa busca gira em torno da produção plástica contemporânea como
produção que carrega em si mesmo uma vocação enigmática diante da qual nos
vemos frente a uma experiência de estranhamento com o que é um absolutamente
Outro”.
Falar de um “absolutamente Outro” é falar de uma experiência com o sublime,
com o abjeto, com o estranhamento, com o incomensurável. Porém, é intenção
primeira da presente reflexão ir ao encontro de um estranhamento ou de um
“absolutamente Outro” que se configura primordialmente no pensamento levinasiano
como um estranhamento ético, por ser um “Infinito”, e no pensamento blanchotiano,
como “Neutro”, “Fora”, conseqüência de uma infinitude radical, embora em alguns
momentos nos permitamos aproximar os conceitos levinasianos e blanchotianos de
conceitos como “sublime” e “abjeto”.
Mesmo estando amparados pelos conceitos levinasianos e blanchotianos,
devemos deixar especialmente claro que não se trata de aplicar tais conceitos, mas
de fazer uma inversão dessa possível instrumentalização dos conceitos a partir da
própria arte contemporânea, identificando-a como a realizadora em potencial do
“Infinito” que lemos nos referidos teóricos.
A proposta da presente tese está, então, no desafio, de pensar a arte através
de um conceito não-canônico, tal como “Rosto”, ou seja, dizer que na arte dá-se o
estranhamento como propriedade essencialmente sua, pensar uma leitura da arte
que realiza a possibilidade de uma relação com o “absolutamente Outro”, com o
“Infinito”, com o que nunca pode ser dito. Trata-se de dizer que, se na filosofia
levinasiana e blanchotiana temos uma gama de conceitos elaborados, na arte eles
estão instaurados de tal forma que podemos ter uma mesma experiência dessa
teoria. É, portanto, na relação com a arte que podemos ter a experiência da falta de
11
luminescência, da passividade do ser, enfim, do que é o Infinito” blanchotiano e
levinasiano. Por isso partiremos da arte como expressividade do que se faz “Rosto”,
conceito esse que encontramos em Emmanuel Levinas.
Nas leituras realizadas para a presente tese, não encontramos no
pensamento levinasiano o conceito de “Rosto” pensado ou discutido diretamente
para a arte como o fazemos aqui. Ou seja, não há um texto específico em que a arte
é tratada como Rosto” ou como um “absolutamente Outro”. O texto de Levinas
(2001a), provavelmente o mais específico destinado à arte, La Realidad y su
Sombra, o confere a ela o conceito de “Rosto”, ou melhor, não a trata como tal,
mas a define como sombra da realidade. Porém, não parecemos nos distanciar do
pensamento levinasiano se aproximarmos o conceito de sombra de Levinas ao de
“absolutamente Outro”, desde que a sombra é a passividade do ser em uma idéia.
Ou seja, a oposição entre realidade e imagem é a sombra, um espaço denso e
obscuro. A realidade está sempre acompanhada de sua sombra. Daí podemos inferir
que, diante da realidade, representada surge o Rosto” obscuro da expressão: o
“Infinito”. O Rosto” na arte surge das sombras, o que quer dizer que a imagem
neutraliza a relação com o real. Trata-se, portanto, de uma distância ontológica e
fenomenológica entre a forma e o seu suporte. Conferir à arte contemporânea a
idéia de Rosto” e este como lugar do “Infinito” é uma possibilidade pensada como
marco inicial desta tese e proposta a ser desenvolvida. O referido conceito para
pensar a arte contemporânea surge como probabilidade a ser tratada em nossa
pesquisa a partir das perguntas elaboradas por Levinas na obra Entre Nós (1997, p.
27), na qual se delineia mais claramente, a nosso ver, essa abertura para a arte
como “Rosto”. Na obra supracitada lemos:
12
Podem as coisas tomar um rosto? A arte não é uma atividade que confere
rosto às coisas? A fachada de uma casa não é uma casa que nos olha? [...]
Pergunto, contudo, se o estilo impessoal do ritmo não se substitui na arte,
fascinante e mágica, à socialidade, ao rosto e à palavra?
No referido texto, Levinas lança esses questionamentos sem desenvolvê-los
para a arte. O Rosto” é o rosto do outro homem, do próximo. Daí inferimos que a
arte essencialmente “Rosto”, irredutível à interpretação, lugar do “Infinito”, do “Fora”
e do “Neutro”, vislumbra questões possíveis de serem desenvolvidas no âmbito da
arte contemporânea. Tal inferência ocorre não somente a partir dos conceitos
levinasianos e blanchotianos, mas da constatação de que a arte contemporânea em
si mesma tem se apresentado como incomunicabilidade radical na realização de
suas formas. Para os contempladores de arte, instrumentalizados pela carga de
cânones disponibilizados ao longo dos tempos pela teoria e pela história da arte, a
arte parece não mais fazer sentido desde que os antigos instrumentos tornaram-
se obsoletos.
Levinas foi um grande admirador das iias de Blanchot para a arte. Ele
dedicou ao amigo textos importantes em que fala com admiração sobre a arte
blanchotiana do Infinito”. Nos textos La Mirada del Poeta, La Sierva y su Amo e
Ejercicios sobre La Locura del Dia, Levinas (2000c) reflete sobre as obras de
Blanchot e expressa a proximidade entre a sua filosofia e o pensamento do amigo.
Ainda que Levinas não tenha desenvolvido um mero significativo de textos
a respeito da arte, não nos parece correto afirmar que seu pensamento sobre arte
consista de uma simples parte de sua filosofia. A questão do ser na arte está
essencialmente ligada ao movimento de sua filosofia. Ou seja, no artigo datado de
1948, La Realidad y su Sombra (2001a), o filósofo confere ao ser da arte um espaço
próprio tanto quanto confere ao ser do “Outro” a medida de um “absolutamente
Outro”. A partir daí podemos pensar a arte contemporânea como a que mais
13
radicalmente realiza a passividade do ser, em que a idéia de contemplação se dá
“fora do ser”, ou seja, em que percebemos, com nítida sensibilidade, a derrocada
dos paradigmas da arte.
Observamos que a partir de um determinado momento os paradigmas que
vinham sendo firmados ao longo dos tempos para a produção das artes plásticas
foram contestados. É, então, com base nesse procedimento que podemos
vislumbrar a fecundidade dos pensamentos de Levinas e de Blanchot com mais
correspondência para a reflexão que nos propomos realizar. Certas práticas da arte
ficaram por muito tempo marginalizadas por paradigmas dominantes e, a partir de
então, podemos falar de uma produção em arte como “Rosto”, como manifestação
do “Infinito”, em contraponto a uma totalidade que se instalava a partir de cânones
fundadores para a leitura da arte. Citamos, por exemplo, os ready mades, as
performances, as fotomontagens, as instalações, as assemblagens, a body art, a
introdução do corpo como objeto da arte, os quais ficaram à margem com o domínio
da estética modernista, que, na crítica realizada por Greenberg (2002), eram
consideradas produções que não se enquadravam na classificação de “arte maior”.
Greenberg (2002), que se apoiava em Kant, considerou a arte do modernismo
como a arte da “maioridade”. Citamos Greenberg (2002) como marco desde que,
como teórico da arte e promotor da arte moderna, teve grande influência na arte do
século XX. Ele institucionalizou o expressionismo abstrato e promoveu a arte
americana dos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, porém, marginalizou a
arte pop, o surrealismo e a arte conceitual. O referido crítico, na verdade, nunca
escreveu um livro especifico sobre as suas idéias, e muitos de seus artigos que
defendiam a arte moderna foram compilados por volta de 1961 em um livro chamado
Arte e Cultura. Seu ensaio Pintura Moderna foi publicado pela primeira vez em 1960,
14
em que ele sustenta que o que define a arte moderna é a autocrítica (GREENBERG
2002).
Dessa forma, como trabalharemos com uma definição de arte fora dos moldes
da tradição, será propriamente através de uma arte que se permite estar fora de uma
leitura institucionalizada de arte que teceremos nossas reflexões. Vamos inferir a
arte após a década de sessenta como espaço de nossas indagações. Digamos que
o período após a década de sessenta represente com propriedade, através da
postura tomada pelos artistas e dos objetos por eles realizados, os conceitos
levinasianos e blanchotianos. A década de sessenta, segundo Belting (2006, p. 197),
marca a derrocada da vanguarda que representava de maneira triunfal a imagem
histórica da modernidade no curso de como a arte moderna era narrada, época em
que o progresso era procurado apenas na progressão de uma nova estética
artística. Diz Belting (2006, p. 197-198):
Houve grande agitação quando, por volta de 1960, a direção do progresso,
nesse sentido unilateral, tornou-se incerta e com isso desabou
ruidosamente pela primeira vez o modelo corrente de progresso, como se
não houvesse nenhuma alternativa para ele.
O referido autor relata o fim da possibilidade da arte fiel aos fundamentos que
a mantinham como uma narrativa progressiva. Havia uma produção em arte que não
mais pertencia à seqüência da narrativa, e essa produção apresentava como função
a ausência de função. Um bom exemplo a ser citado, entre outros, é o interesse que
a produção artística dedica ao corpo humano mesmo quando faz dele seu objeto,
apresentando-o como um “não-lugar” semântico, como um enigma, como problema,
como lugar de testemunho, como espaço da dor, da morte e da catástrofe, e s o
vemos diante de uma arte que não está preocupada com a autocrítica.
15
A partir de meados do século XX, muitas manifestações artísticas
encontraram a sua expressividade na Segunda Guerra Mundial e em tudo o que ela
acarretou como reflexão diante da catástrofe e como modo de narrar a modernidade.
A partir de então, a história humana teve que ser narrada de “outra” maneira, com
uma linguagem capaz ao mesmo tempo de render contas aos feitos acontecidos e
de dar testemunho sobre o “murmúrio” do horror ocorrido, da catástrofe como
estética que ficara nas memórias dos sobreviventes. A Segunda Guerra Mundial
marca igualmente, significativamente, os pensamentos de Levinas e de Blanchot,
como observaremos ao longo de nossas reflexões.
A arte, por sua vez, apresenta-se como fundadora de sua própria realidade e
atribui a essa realidade um caráter especificamente ambígüo, obscuro e enigmático.
Ela passa a ser promotora do que chamaremos de estranhamento, essa sensação
de que se prefere falar de um lugar que está além ou à margem do mundo. O que
nos interessará sobremaneira não são as mudanças nas estruturas formais da arte
(embora elas tamm contem, pois não podemos separar a forma do conteúdo).
Nosso maior interesse é a experiência que essas estruturas fundam, ou seja, a
experiência como relação com o desconhecido, com o que de “absolutamente
Outro”, que se traduz no estranhamento e na interrogação sobre o limite,
substituindo a busca da totalidade pela transgressão. Eis, , o espaço obscuro de
nossas reflexões.
O estranhamento” ao qual nos referimos e cujos conceitos vamos buscar em
Blanchot e em Levinas faz a sua morada no enigma que obtém força na tensão
interrogativa que gera e, portanto, que nos leva a afirmar que o caráter essencial da
obra-de-arte está justamente no enigma. Como estranhamento na arte
contemporânea, o enigma renuncia a interpretação da obra nos moldes de
16
“contemplação” conforme a tradição. Falamos, então, de um estranhamento, de um
enigma que remonta à Grécia arcaica, em que, como afirma Perniola (2006, p. 27),
não nada de negativo. Contudo, falar de tal enigma significa mencionar palavras
importantes, dignas da máxima atenção e que na Grécia arcaica poderiam ser
assimiladas depois de ampla experiência e de longa meditação. Pretendemos
resgatar esse enigma, resgatar o estranhamento como positividade para uma arte
que se funda nos escombros, fruto de um enigma que jamais poderá ser
desvendado, que flexiona uma outra possibilidade de pensar a verdade e que institui
uma outra maneira de pensar a contemplação. Queremos resgatar esse enigma
para uma arte que se predispõe a ser errante e reivindica uma dimensão filosófica
quando supera a oposição entre secreto e revelação, e abre o horizonte de um lugar
onde existe a possibilidade de que “algo” pode nem se revelar nem se esconder. O
enigma é, aqui, a coincidência dos contrários: algo se revela, porém, sem se revelar.
Para Levinas, o enigma é expresso através do conceito do “Há”, e em Blanchot ele
se define no conceito de “Neutro”. O que o enigma indica torna-se traço, rastro,
vestígio, mistério.
Dessa forma, partimos da constatação de que na arte um traço do
“desconhecido”, extremamente delimitado, com características próprias de nosso
tempo, que nos convida a partilhar a sua expressão, partilhamento esse fundado no
gesto que transgride. O objeto de arte é um objeto “Outro” porque é o próprio
estranhamento. Constatamos ao longo do século XX uma arte que aos poucos vai
se caracterizando por rupturas sucessivas, desconstruções e transgressões de todos
os modelos que a precederam, chegando a ponto de colocar em questão a própria
prática artística. A crítica do conceito de modernidade, principalmente a sua ligão
com a idéia de progresso da arte que empreende uma caminhada para a conquista
17
da totalidade, abre para a produção em arte caminhos nunca antes pensados. A
desconstrução dos limites entre arte e vida, por exemplo, tem causado uma
confusão de critérios que levam a arte à radicalidade do estranhamento. O
abandono do objeto artístico, a arte multimídia, seja como instalação ou vídeo, a arte
de ações efêmeras, a inserção do corpo como arte e a exploração publicitária na
arte são questões inteiramente novas com as suas estruturas materiais e temporais
que não cabem no discurso habitual da história da arte.
Diante dessas questões, já não nos parece mais possível falar de arte no que
se refere a “leitura” ou “contemplação”, ou perguntar pela arte considerando a sua
essência. A leitura se na impossibilidade de funcionar como meio crítico bem
como os movimentos e as teorias críticas tornam-se obsoletos para definição da
arte. Os fundamentos da arte são, na contemporaneidade, obsoletos. A arte segue
gicas exponenciais, estratégias fatais e acontecimentos extremos. Vemos a arte se
fundir com a moda, ao mesmo tempo que se desintegra em múltiplos estilos. Para
Baudrillard (2001), a arte contemporânea renuncia totalmente a função simbólica e,
com isso, destrói a possibilidade da ilusão. Segundo o referido autor, a arte tem
alcançado um estado de indiferença radical, uma metalinguagem da trivialidade”.
São questões como as enfatizadas por Baudrillard (2001) que nos levam a investigar
uma outra possibilidade de pensar a arte, de vislumbrá-la como realização radical,
como expressividade do que é um Infinitodentro do pensamento de Levinas e de
Blanchot.
Em Maurice Blanchot e Emmanuel Levinas encontramos as reflexões mais
instigantes para pensar essa questão da arte vocacionada para a resistência do ser,
para o estranhamento, ou a arte contemporânea de que se quer total
“estranhamento”, consciente de saber de si como umabsolutamente Outro”.
18
A idéia de estranhamento será, portanto, tratada a partir dos conceitos de
Maurice Blanchot, trico da literatura, e de Emmanuel Levinas, filósofo do “Outro”,
como um “absolutamente Outro”, como inerente à arte contemporânea. Ou seja,
tratar-se-á a arte como promotora de uma experiência outra” fundadora de relações
predestinadas a produzir um murmúrio indiscernível, um fascínio que nos faz
desejosos da experiência com o inominável. Ou, ainda, a arte pensada como “Rosto”
do “absolutamente Outro”, da qual não é mais possível fazer nenhuma afirmação
crítica fundamentada nem nenhum juízo estético e muito menos plasmar a verdade,
arte vocacionada à impossibilidade de dizer-se, mas que, contudo, diz-se. Para
pensar essa relação de impossibilidade de interpretar ou de representar o que se
como objeto artístico, recorreremos aos conceitos de “Fora” ou de Neutro”, de
Maurice Blanchot, e de “Infinito”, “Rosto”, “Vestígio” e “Há”, de Emmanuel Levinas.
Serão esses conceitos que nos darão suporte teórico ou argumentos para, como diz
Blanchot (2001, p. 64), fazer uma caminhada que não abre nenhum caminho e não
responde a nenhuma abertura”.
Os pensadores escolhidos, a nosso ver, abrem espaço para um novo
pensamento crítico a partir das artes plásticas, embora Blanchot tenha se dedicado
exclusivamente à literatura e Emmanuel Levinas ao “Outro” como ser humano.
Partimos da crença de que tais conceitos não se restringem apenas ao espaço ao
qual foram destinados originalmente pelos autores citados, motivo pelo qual os
veremos como amplos e fecundos para outros campos, no caso as artes plásticas da
atualidade.
Em seus escritos Levinas não tratou a arte como “Outro”. “Outro” ou “outrem
foram termos que o filósofo dedicou como discussão para o ser humano. Na
presente tese, ampliaremos esse conceito para as artes plásticas e, assim, ao longo
19
de nossos escritos, trataremos a arte como “Rosto”, pura expressividade do que é
“Infinito e como significância ética, visto que o “Infinito” nos vem à idéia na
significância do “Rosto”. Ou seja: a arte é tratada como presença do “Outro” na sua
essencial radicalidade.
O conceito de estranhamento, portanto, está no que Levinas (2000, p. 13)
define como experiência com o “Infinito”, isto é, com o que extravasa sempre o
pensamento, em que o extravasamento produz a sua própria “infinição”. Assim,
abordar a arte como estranhamento é falar dela como estrangeira, lembrando que
ser estrangeira também significa ser livre, pois não podemos poder sobre uma arte
que se apresenta como “passividade total do ser”, essa recusa radical de o ser vir à
luz. Não podemos poder porque ela escapa a qualquer domínio. Num aspecto
essencial, não temos com essa estrangeira um conceito comum, pois a sua
produção o tem conosco uma relação de totalidade, mas sim de transcendência,
uma exterioridade absoluta. O transcendente é desejo, é inadequação.
É lugar-comum na reflexão da arte atual a observação de que não mais
podemos pensar a arte com os mesmos referenciais do passado. Baudrillard (1990,
p. 82), por exemplo, diz que uma parte da arte contemporânea “concorre para um
trabalho de dissuasão, para um trabalho de luto da imagem e do imaginário, para um
trabalho de luto estético, a maior parte do tempo fracassado”. O filósofo afirma que
talvez devamos considerar a arte contemporânea como um conjunto de uso ritual,
pensando mais na sua função antropológica e sem referência a nenhum juízo
estético. Dessa maneira, é inútil procurar para essa arte uma coerência ou um
destino estético, visto que diante dela estamos condenados à indiferença. Fruto
dessa diferença, segundo o autor, nasce o campo do transestético, da simulação,
que faz aparecer um dilema para se pensar a produção contemporânea: ou não
20
nada além da simulação, nem mesmo um acontecimento, o que nos colocaria diante
da banalidade absoluta (niilismo definitivo), ou então há, de todo modo, uma arte da
simulação, uma “qualidade irônica que ressuscita cada vez as aparências do mundo
para destruí-las” (BAUDRILLARD, 1990, p. 88). Essa destruição não é um
aniquilamento. É necessário que a desaparição permaneça viva, é esse o segredo
da arte da sedução. No pensamento blanchotiano essa arte da desaparição que
pleiteia Baudrillard (1990) participa, a nosso ver, dos conceitos de “Neutro”, de
“Fora” ou da visão da arte como “o Outro do mundo”.
Para Baudrillard (1991, p. 89), somos criadores de imagens nas quais não
nada, absolutamente nada para ver. Somos iconoclastas modernos não por quebrar
imagens, mas por fabricá-las em excesso. Por trás delas, no horizonte da simulação,
ou seja, no fingir ter o que não se tem, o que desapareceu não foi apenas o mundo
real, mas a própria questão da sua existência, que o tem mais sentido, como
afirma o filósofo. Estamos, portanto, diante do mesmo problema da iconoclastia
bizantina. A questão que se apresentava pode ser resumida na pergunta: está o ser
da divindade encarnado nas imagens sacras? Ou tais imagens não passavam de
simulacros? Ou, ainda, esses simulacros não seriam substitutos da idéia pura e
inteligível de Deus? Que coisa temiam os iconoclastas?
Os simulacros tinham, segundo Baudrillard (1991, p. 11), uma onipotência.
Assim, os iconoclastas sabiam que esses simulacros podiam apagar a imagem de
Deus da consciência dos homens. A verdade que os simulacros deixavam entrever
era a “de que no fundo Deus nunca existiu, que nunca existiu senão o simulacro e
mesmo o próprio Deus nunca foram senão o seu próprio simulacro”. Isso fazia dos
iconoclastas, conforme aponta Baudrillard (1991), os primeiros modernos. A arte na
contemporaneidade vive este dilema: ou acredita que por trás das imagens uma
21
essência, um ser, uma realidade invisível, sendo o visível do invisível, ou a arte não
passa de mero simulacro ou simulação, finge ter por trás algo que não tem. Se os
iconoclastas acreditassem que por trás das imagens sacras existisse a idéia de
Deus, se eles fossem platônicos, não haveria motivos para se oporem, mas, ao
contrário, eles alegavam que tais imagens nada ocultavam. As imagens eram
simulacros perfeitos com fascínio próprio. Antes elas significavam a morte de Deus,
a descrença em Deus. Ao contrário, os iconólatras acreditavam que as imagens
eram reflexos de Deus e as veneravam como tal. As imagens eram para eles o
visível da invisibilidade da divindade. Os que acreditam que por trás das imagens
existe algo são os iconólatras da modernidade, os quais esperam algo delas,
acreditam que as imagens m uma função determinada em nosso meio, que um
ser por trás da sua representação.
A linha do pensamento que permeará a reflexão na presente exposição
concorda que a arte atual da simulação e do simulacro, usando os conceitos de
Baudrillard (1991), foge da representação para ser apresentação. Ou seja, ela
constitui a própria realidade travestida de arte (daí o “Outro do mundo”), simulacros
autônomos, imagens que representam a si próprias. Essas imagens não são mais
intermediadoras da realidade, em que o signo remete à profundidade do sentido e
pode trocar-se pelo sentido. A imagem não remete mais a nenhuma realidade
porque ela é, como diz Baudrillard (2001), simulacro puro: ela é do domínio da
simulação. Para Baudrillard (2001, p. 72),
se o real está desaparecendo, não é por causa de sua ausência ao
contrário, é porque existe realidade demais. Esse excesso de realidade
provoca o fim da realidade, da mesma forma que o excesso de informação
põe um fim na comunicação.
22
Tal exposição por parte de Baudrillard (2001) vem ao encontro ao Infinito”
levinasiano e blanchotiano na medida em que esse conceito se configura como um
“para alémde qualquer possibilidade de representação por ser um excesso. Isso
para Blanchot se caracteriza como desastre, algo com proximidade da morte, ou
mais especificamente como uma produção em arte que obedece a regras e formas
que não entendemos nem jamais entenderemos. A “arte do desaparecimento”,
assim chamada por Baudrillard (2001), é uma arte “absolutamente Outra”, é a arte
do estranhamento devido a carregar em si um excesso de realidade, um excesso de
pensamento, um excesso de catástrofe em que nenhuma verdade representa a
menor espécie de solução.
Dessa forma, a acusação de Baudrillard (2001) centra-se no fato de que
desapareceu na arte o caráter simbólico o que resta é uma proliferação de signos
ao “Infinito”. A arte anulou todos os critérios de julgamento e de prazer, está em
desordem (a perda total dos fundamentos). A arte lança mão dos artefatos e os
transforma em objetos de arte, não nos põe mais nem em contato com o belo nem
com o feio, mas nos coloca diante da impossibilidade de qualquer juízo de gosto.
Estamos, como aponta Baudrillard (1990), condenados à indiferença, à anestética
total ou à transestética.
Blanchot, por sua vez, pensa para a literatura a “estesia” como fascínio
quando considera que ela não está centrada na ausência de reação, pois ante o que
é um “Infinito” a nossa relação é de desejo, gerado pelo estranhamento e pela
passividade do ser (ausência total do ser). Dessa forma, temos essa anestética tanto
em Blanchot quanto em Levinas como fecundidade da arte atual, principalmente
porque no pensamento levinasiano o “Infinito” é umInfinito ético”. Como veremos ao
longo de nossa exposição, a rebeldia do ser é ética, segundo Levinas, porque não
23
sucumbe aos poderes do “Mesmo” (Eu). Para tanto, em nossa exposição, a arte
contemporânea não sofre de ausência de comunicação, mas de um outro modo de
comunicação com o qual não estamos habituados. Trata-se de uma arte que, de
acordo com Blanchot (1997, p. 14), afirma-se pela negação, “uma vez que é negada,
ela existe; uma vez que não está ali, está presente”. Essa afirmação pela negação é
o que a faz um “absolutamente Outro”.
Em A Transparência do Mal, Baudrillard (1990) desenvolve toda uma
alteridade do impossível, da indestrutibilidade do Outro”, da fatalidade indestrutível
da alteridade. O problema se define quando aparece a diferença. O “Mesmo”, na
consciência da diferença, submete o “Outro” aos seus poderes, resgatando a
totalidade, aniquilando o que o “Outro” carrega de “Infinito”. Segundo Baudrillard
(2004), os que pensam a diferença acreditam-se superiores. Para Blanchot e para
Levinas, essa superioridade do “Mesmo” sobre o Eu” constitui-se numa violência.
Para ambos, não respeitar a alteridade radical que se impõe através do que se
apresenta como um “Rosto” é uma ação fomentadora da catástrofe.
Pensar a arte contemporânea como expressividade máxima do pensamento
de Levinas e de Blanchot é ir ao encontro não do que se mostra, mas do que se
esquiva. É ver perdurar o mistério, pois esse se apaga ao iluminar-se e se degrada
quando o veneramos. O mistério, conforme aponta Blanchot (1997, p. 59),
Não é contra-senso, já que é estranho ao senso; não é ilógico, que a
lógica não lhe diz respeito; não é secreto, pois está fora do gênero de
coisas que se mostram ou não se mostram. O que ele é? Talvez nada.
Porém, uma pergunta dessas já o excede em tudo.
Assim, o primeiro capítulo da presente tese visa expor ao leitor o pensamento
filosófico e a teoria literária dos pensadores Emmanuel Levinas e Maurice Blanchot.
24
O terceiro capítulo tenta mostrar a arte como expressividade radical desses
pensamentos através da reflexão das obras-de-arte.
1.2 O “estranhamento” como sintoma da perda dos fundamentos
O que trataremos como perda dos fundamentos faz referência aos discursos
mais recentes sobre o fim da época moderna e o espaço que se delineia
posteriormente, observado como promotor da experiência de estranhamento em
todos os âmbitos da vida humana. Segundo Vattimo (1996, p.169-190), nossas
reflexões sobre a crise dos fundamentos devem partir de Nietzsche, em suas obras
Sobre a Atualidade e o Dano dos Estudos Históricos para a Vida (1874), Humano
Demasiado Humano (1878), Aurora (1881) e Gaia Ciência (1882). Nas referidas
obras, Nietzsche trata da impossibilidade de nossa relação com o passado, pois ele
já não tem mais nada a nos dizer. Ou seja, não vale mais a pena carregarmos esse
pesado fardo que é a história e todos os seus fundamentos, pois eles não mais
funcionam. Na metáfora a morte de Deus”, Nietzsche anunciava a morte dos
valores absolutos instituídos pela longa tradição que os rememorava um após o
outro. Sem os fundamentos, anunciava Nietzsche, deveríamos acolher o erro, o
que não significa pensar o não-verdadeiro, mas perceber o ser da realidade como
múltiplo e perceber as falsas” construções que os fundamentos vinham ao longo
dos tempos instituindo como verdades absolutas, com relação à moral, à religião e à
arte. A arte ocidental, por sua vez, foi por longo tempo regida pelos fundamentos.
Para tal, basta ver os renascimentos pelos quais passou, sempre inspirados por
retomadas do clássico, do desenrolar-se contínuo da força do fundamento na
história.
25
A crise dos fundamentos (que concorre para fazer da arte “essa estrangeira”)
põe em discussão a noção de qualquer pensamento que se destine ser fundante
para dizer a arte ou que tenha procedimentos perpetuadores do discurso fundante,
ou, ainda, que faça uma crítica aos fundamentos em nome de outro pensamento ao
qual se atribua mais verdade. Assim, quando definimos o problema com base na
crise dos paradigmas modernistas da produção nas artes plásticas, refletimos a
partir de um momento em que parece não ser mais possível pensar a arte como
antes, seja como pensamento do moderno ou do passado clássico. Dessa maneira,
temos de rever nossa herança, fundada nas estruturas estáveis do ser, e passar a
pensar a partir da precariedade desse ser desde que o fundamento como um valor
absoluto para dizer como as coisas devem ser não mais parece funcionar e a
verdade como tal o mais subsiste. Sem fundamentos, estamos diante de um ser
errante, sem rumo, que dá ênfase à morte e ao abismo. O real se dissolve, a história
tem sua continuidade, porém sem qualquer relação com uma verdade fundante.
Queremos discutir, na presente tese, a fecundidade da errância, dado o mal-estar
que causa hoje pensar a arte por meio de conceitos herdados do passado.
Descrever a experiência da arte e do belo com os conceitos herdados da tradição
não é mais possível, e com isso nos vemos frustrados. Como pensar a arte como
bela, como aquela que é manifestação sensível da idéia e que e em operação a
verdade? Como pensá-la dessa forma quando tudo o que nos constrange é a
sensação de que estamos diante de um estranho objeto que não tem absolutamente
nada a ver com a nossa existência, pois não mais parece definir um mundo
histórico?
Falar de arte e de estranhamento hoje também não significa negar que a arte
do passado, de toda sorte, não tenha sido motivo de estranhamento. Porém, trata-se
26
de conferir à arte atual um estranhamento maior” ou de dizer que a arte hoje, mais
do que em outros tempos, realiza com mais fervor as reflexões propostas nesta tese.
Ou seja, reafirmamos que pretendemos mostrar a arte contemporânea como
realizadora do que a Filosofia tece como pensamento nas reflexões de Blanchot e
de Levinas. Não pretendemos afirmar que apenas na arte contemporânea
encontramos esse estranhamento, pois não como esquecer Platão (1959),
na tradição, mais especificamente na obra A República, que não permitiu que as
artes, principalmente as artes plásticas, fizessem parte da polis grega, por perceber
nela o aberto da poética como um lugar de desamparo, onde nada mais pode ser
respaldado pela razão, motivo pelo qual as artes eram causa de estranhamento. Na
relação entre a arte e a Filosofia, a arte nunca se deixou dizer definitivamente pela
razão. Para o filósofo, a arte fala sem nada falar, parece que pensa, mas nada diz, é
perigosa aos que o estão prevenidos. Observamos que a arte havia, portanto,
sido vista por Platão como afinada com a ordem do diferente, do estranhamento, ou
podemos arriscar a dizer que Blanchot não tratou o “estranhamento” como novidade.
Platão, com outras intenções, ou seja, como crítica aos prejuízos que a arte poderia
causar aos que com ela se deleitassem, já havia dito o mesmo. A impossibilidade de
respostas por parte da arte é, portanto, uma observação antiga.
Assim, Platão (1959) voz à Sócrates, na obra A República, e aconselha a
nos separarmos o mais distante possível da arte, como quem se afasta de uma
doença muito perigosa, sendo salutar nos mantermos na verdadeira linguagem, isto
é, a linguagem falada, e nunca na linguagem poética, ou, como define Merleau-
Ponty (2002), a linguagem falante. A arte é, portanto, incapaz de dizer a verdade,
ou, toda verdade lhe é completamente exterior. Mas Platão nunca deixou de
reconhecer o fascínio que a arte provocava nos homens, dos conselhos para dela
27
se distanciarem. A verdade como um “para além da verdade”, essa verdade imediata
ou nua à qual nos referimos se expõe como paradoxal, ou seja, como fascínio e
como estranhamento. O fascínio arrasta o olhar e o “absorve num movimento imóvel
e para um fundo sem profundidade. [...] o fascínio é a paixão da imagem”.
(BLANCHOT, 1987, p. 23). Segundo o autor, o que exerce fascínio sobre nós e “nos
arrebata o nosso poder de atribuir um sentido, abandona a sua natureza ‘sensível’,
abandona o mundo, retira-se para aquém do mundo e nos atrai, já não se nos revela
e, no entanto, afirma-se numa presença estranha”. E o que vemos pertence, então,
ao mundo indeterminado da fascinação.
Dessa maneira, a perplexidade de Platão diante do estranhamento que ele
observava ser inerente à palavra e à imagem poética pode ser resumida no que
buscamos indagar aqui, ou seja, perguntar pela palavra ou pela imagem, perguntas
essas que não oferecem nenhuma garantia para os que desejam buscar a verdade.
Observamos, então, que a arte, mais especialmente a palavra poética, desde o
momento em que passou a ser objeto de reflexão, delineou-se como estranhamento,
como a impossibilidade de dar respostas atestadamente verdadeiras aos que
perante ela se colocassem com essa expectativa. Talvez a arte sempre tenha pedido
para que nos colocássemos diante dela da mesma maneira como os humanos se
colocavam diante dos oráculos na Grécia Clássica, ou seja, prontos para usufruir do
mistério e da fascinação do enigma.
Porém, isso por um longo tempo esteve fora de nossa expectativa e desejo,
pois, para que a arte se enquadrasse em referenciais servidores e pudesse tornar-se
propulsora de verdade, nos tempos da Grécia Clássica e nos posteriores, foram
atribuídos a ela fundamentos que diziam como ela deveria ser a fim de cumprir as
suas funções sobre a verdade. Assim, cada época destinou à arte seus cânones
28
para que ela se comportasse como fiel servidora em seu meio. Amordaçada pelos
fundamentos, a arte nada mais fez por um longo tempo senão fortalecer
fundamentos firmando-os sempre a partir de sua origem, construindo assim um
grande e poderoso relato. Dessa forma, chamaremos de arte contemporânea a arte
que torna problemático o âmbito dos valores a ela atribuídos e ultrapassa todos os
seus limites, ou seja, põe em discussão o seu estatuto, a exemplo do que expõe
Vattimo (1996, p. 42-43),
como ironização dos gêneros literários, como reescrita, como poética da
citação, como uso da fotografia entendida não como meio para a realização
de efeitos formais, mas em seu significado puro e simples de duplicação.
Em todos esses fenômenos, presentes a diferentes títulos na experiência
artística contemporânea, não se trata apenas da auto-referência que, em
muitas estéticas, parece constitutiva da arte, mas sim, a meu ver, de fatos
especificamente ligados à morte da arte no sentido de uma explosão do
estético que também se realiza nessas formas de auto-ironização da própria
operação artística.
O grande relato ao qual estava predestinada a arte seguia os esquemas
impostos, destinados a serem bons vigilantes a fim de que ela não sobrevivesse
apenas como fascínio. O perigo estava no seguinte ponto: se a arte pode existir
apenas como fascínio, perderemos o ofício da diatica, da argumentação, da
representação, ofício este que mantém o fundamento primeiro, o que sempre se
apresentou como um problema a ser extirpado. Aqui está a principal questão que
nos leva a refletir sobre os pensamentos de Levinas e de Blanchot. A arte como
desejo é fascínio e, portanto, fica impossibilitada de qualquer representação, ou
seja, qualquer interpretação, desfazendo dessa forma a força da dialética. Impor tal
força é preservar a arte como uma fonte de verdade. O enfraquecimento da
representação e da dialética elege um conceito de arte que tem a liberdade de
fundar uma experiência apenas centrada no fascínio e no estranhamento, e nunca
na busca da verdade, conforme aponta Blanchot (1987, p. 70) a respeito de
29
Mallarmé quando diz que o referido poeta não buscava a verdade: “a verdade não
tem que ser conhecida nem descrita, ela não pode sequer conhecer-se a si mesma,
do mesmo modo que a salvação terrena exige ser cumprida, não interrogada nem
figurada”.
Um esquema possível para a relação entre a arte e o pensamento filosófico
relativo à verdade nos foi dado por Badiou (2002), o qual faz um interessante
apanhado da caminhada da arte que ilustra o que acabamos de dizer. Trata-se,
segundo ele, do didatismo, do classicismo e do romantismo. No didatismo, de
acordo com Badiou (2002, p. 15), “a arte está sob a vigilância educativa de seu
destino extrínseco ao verdadeiro”. A arte está, portanto, a serviço do povo e para tal
é submetida aos princípios que a fundamentam, apontados para um fim único.
Podemos incluir aqui o platonismo e o marxismo, em que a arte assume a verdade
extrínseca de dirigir o povo. No romantismo a arte na sua finitude material realiza
toda a educação subjetiva da qual é capaz a infinidade filosófica da idéia. A arte
tem como fundamento a promessa de realizar um mundo melhor. No classicismo a
arte capta o desejo dos homens e os coloca em forma material para serem
contemplados. Assim, a arte dispõe os conhecimentos de maneira que a verdade
possa se estabelecer. Para Badiou (2002, p. 18), todos esses esquemas estão
saturados. A arte a serviço do povo não faz mais sentido, as promessas que são
conferidas a ela não nos entusiasmam. Perdemos a nos fundamentos e nos
grandes relatos que dizem como a arte deve ser vista.
Para Danto (2001), existe uma real perda de no grande relato que faz da
arte uma seqüência de iias que determine como ela deve ser. A perda desse
pensamento fundante define os limites entre o moderno e o contemporâneo. Assim,
apoiados no pensamento deste autor, adotaremos um conceito de arte
30
contemporânea para o presente ensaio: a arte com determinada estrutura de
produção nunca antes vista e que escolheu como destino o abismo, a morte, o ruído.
Segundo Danto (2001), estamos vivendo o período da arte após o fim da arte”, ou
seja, o fim da arte entendida com toda a carga da tradição. Faz sentido o
pensamento de que uma mudança radical se efetuou na arte após a década de
sessenta no que tange à sua produção, que já não pertence mais a um grande relato
inscrito em algum lugar de nossa consciência. Essa consciência começa a aparecer
para o autor em meados dos anos setenta, porém na cada de sessenta ela já
começava a se delinear quando os artistas começam a se servir da arte do passado
para o uso que bem quiseram dar, sem nenhum critério a priori.
O que aqui chamaremos de arte contemporânea define-se, portanto, a partir
de uma estrutura de produção que assume o ruído como vocação, que não está
preocupada com um relato ligado à verdade nem carrega qualquer preocupação
quanto a se libertar das amarras do passado. Não vislumbra nenhum conteúdo ao
qual tenha de se ajustar, ao mesmo tempo que o passado lhe serve como
reordenação constante de suas formas através da apropriação. Faz eco nessa
relação uma constante de informações fragmentadas, recortes da realidade, uma
condição perfeita de entropia estética.
Tudo isso, a nosso ver, faz da arte hoje um objeto instigante para o exercício
do pensamento reflexivo e fascinante para uma contemplação Outra”. Assim, a arte
é um objeto real, uma coisa, uma estrutura. Porém, o que nos fascina é o que nela
faz ruído e, a partir de então, não estamos mais diante de nenhum objeto real,
nenhuma estrutura formal porque o que vemos não pertence ao mundo da
realidade, mas ao meio indeterminado da fascinação” (BLANCHOT, 1987, p. 23). A
31
distância entre nós e a estrutura não se desfez, mas se tornou enorme, constituindo-
se, como aponta Blanchot (1987, p. 23),
na profundidade ilimitada que está por trás da imagem, profundidade não
viva, não manusvel, absolutamente presente, embora não nada, onde
soçobram os objetos quando se distanciam de seus respectivos sentidos,
quando se desintegram em suas imagens.
1.3 Blanchot e Levinas: referencial teórico
Uma vez delimitado o lugar da problemática que desenvolveremos, ou seja,
pensar a arte contemporânea essencialmente como “estranhamento”, fruto da queda
dos fundamentos, avancemos mais uma etapa de nossa exposição a fim de deixar
clara a proposta da presente tese, agora definindo o referencial teórico escolhido.
Pensar a arte contemporânea como estranhamento é pensá-la como
realizadora de conceitos, tais como: absolutamente Outro”, “Rosto”, Neutro”,
“Fora”, “Há” e “Infinito”, conceitos esses que encontraremos nos pensamentos
blanchotiano e levinasiano. E, a partir dos referidos conceitos, pensar essa arte é
fazer uma pergunta muito semelhante à que fez Merleau-Ponty no seu texto O Olho
e o Espírito (2004, p. 15) quando ele questiona a respeito do pintor (do artista) e de
sua arte: “Qual é, pois, essa ciência secreta que ele possui ou que ele busca? Essa
dimensão segundo a qual Van Gogh quer ir ‘mais longe’?”
Uma vez acolhidos os referidos conceitos, ir mais longe é, então, ir para
além”, para um porvir que todo artista nunca sabe onde encontrar, mas que procura
incessantemente. O que busca essa arte senão o “Infinito”, um mundo “por dizer”, ou
seja, um mundo sempre por vir, um mundo nunca dito. Nessa busca, o artista está
ligado ao erro, ao acaso. Ele vai em busca, tateia e apalpa o mundo. Faz um
movimento que Merleau-Ponty (2004) chama de secreto, pois busca o incessante e,
32
nessa busca, percebe-se dono de um ofício “Infinito”. Blanchot (2005, p. 137) diz que
todo artista está vinculado “con un eror con el qual tiene una relación particular de
intimidad”. Esse erro é que permite que a arte contemporânea deixe de ser uma
afirmação comum, uma tranqüila maravilha coletiva, para ser o improvável. Como
afirma Blanchot (2005), constatamos isso em outros tempos e atestamos a partir do
que vemos hoje. Para o autor,
un artista no podría equivocarse demasiado, ni ligarse demasiado a su error,
mediante un contacto grave, solitario, peligroso, irreemplazable, en donde
choca, con terror, con placer, con esse exceso que, en si mismo, lo conduce
fuera de sí y quizá fuera de todo (BLANCHOT, 2005, p. 138).
Esse é, então, o fracasso que se faz êxito e que permite a Merleau-Ponty
(2004) se referir a uma ciência secreta, tal qual a dos oráculos na Grécia Antiga.
A proposta teórica da presente tese está especialmente centrada nas leituras
de Emmanuel Levinas e de Maurice Blanchot. Nos referidos autores encontramos o
que se apresenta como estranho, como promotor do ruído que faz eco em nossas
vidas na experiência da ausência do ser. O Outro” que nos fascina o faz pela
diferença imensa que entre mim e Ele. O “Outro” é estrangeiro, e a arte realiza
essa estrangeiridade” mais do que qualquer coisa. A arte contemporânea toma
corpus nas nossas discussões como uma estrangeira. Apenas para definir
didaticamente um período, iremos delimitá-lo como após a década de setenta, a
partir da qual se passaram a rever todos os fundamentos atribuídos à arte ou,
digamos, quando alguns artistas passaram a realizar essa “ciência secreta” nos
moldes que se refere Merleau-Ponty (2004). Ou quando os artistas passaram a
insistir na radicalidade absoluta. Ou, ainda, quando a paixão pelo erro foi radical. O
limite que inferimos não desconhece que, no final do século XIX e no início do
33
século XX, artistas tais como Cézanne, Duchamp e tantos outros empreendiam
uma busca diferente para as artes, que soava bastante estranha para a época.
O estranhamento é para Levinas e para Blanchot uma rebeldia do ser que se
faz ética a fim de não permitir que o invadamos através da representação. Daí
podemos falar de uma insistência no erro, na busca pela errância como ética, porque
o ser é persistência no erro, é passividade e se faz obscuridade. Na sua evasão o
ser se faz pura exterioridade, não se submete ao jogo do claro e do escuro
heideggeriano e funda a sua morada na obscuridade total que resulta no
estranhamento. Levinas e Blanchot transformam a evasão total do ser em fascínio
quando salvam nele o seu “vestígio”, o rastro que o faz enigma e mistério do que é o
“absolutamente Outro”. Resta a s, “contempladores” de arte, a experiência do
“diferente” no espaço do que Blanchot chamade “Fora” ou “Neutro” e que Levinas
pensará como “Há”, conceitos que as artes expressam com singularidade plena.
Depois de percorrer as leituras de Levinas e de Blanchot, não podemos deixar de
pensar a experiência levinasiana e blanchotiana da evasão do ser sem considerar as
suas experiências com o hitlerismo. Todos os comentadores lidos e citados ao longo
da tese fazem menção a essa queso. Ser judeu é ser “diferente”, é ser o Outro”.
Daí o fato de o “Outro” para Levinas ser esse lugar do estranhamento, o lugar do
abismo, da morte, da solidão. Todos os questionamentos após o acontecimento de
Auschwitz passam pelo pensamento de Levinas e de Blanchot através da noção de
“Outro como um “absolutamente Outro” e da noção de representação como
violência, pois os judeus foram, no delírio nazista, representados como inimigos.
Essa representação se legitima a priori como verdade legítima à violência. Através
do Shoah, Levinas e Blanchot interrogam a cultura que permitiu a catástrofe. Após o
Shoah já não podemos mais falar de arte a partir dos pressupostos da tradição.
34
Como representar o inominável? Diante do horror ao qual a humanidade foi exposta
nas incinerações em massa, nas valas comuns, nas experiências médicas
desumanas desenvolvidas pelo nacional socialismo, na autoridade total do “Mesmo”
sobre o “Outro”, passamos a conhecer um modo totalmente “Outro” de sermos
humanos, ou seja, de ver, pensar e sentir o mundo, um “absolutamente Outro
humanismo” ou o duplo do humanismo, o monstruoso. Fomos expostos ao
“impossível”, à impossibilidade total de qualquer representação.
Assim, de maneira geral, a realidade e a arte estariam na contemporaneidade
marcadas por essa impossibilidade tanto para Blanchot como para Levinas. Ou,
ainda, estariam marcadas pelo processo infindável de se tentar dizer o indizível. É,
portanto, como se após as atrocidades do Shoah a arte continuasse dando
testemunho da impossibilidade de dizer o indizível, mesmo que ela se encontrasse
diante do impasse de nunca poder dizê-lo e de, ao mesmo tempo, nunca poder
deixar de dizê-lo. Segundo Blanchot (1987), a literatura faz muito bem isso, ela
parece ter como missão marcar terminantemente esse lugar de impasse a fim de
testemunhar a indizibilidade do horror, ou seja, a impossibilidade que se faz um
“absolutamente Outro”. É a partir daí que, para Blanchot (1987), falar sobre literatura
é falar sobre o “Infinito” e falar sobre a experiência que temos diante da literatura é
falar sobre o “Neutro” ou o Fora”. Falar sobre a arte é falar sobre essa sombra da
realidade que se instala em toda a arte hoje e que faz dela um “Infinito”. É na
sombra, especialmente, que se a experiência artística, uma experiência com o
“Neutroblanchotiano que faz dessa experiência reserva, que é o que diferencia a
arte da comunicação midiática e da instituição artística ditadora de regras. A arte
realiza um real irredutível a qualquer movimento dialético, o que não podejamais
35
ser dito. Digamos que na arte hoje se a evasão completa do real, daí o fato de a
arte ser o “Outro do mundo”.
O ser na arte, após o desastre, nega-se a aparecer à luz, pois não é
expressão baseada no conhecimento e tampouco é conhecimento do absoluto.
Contrasta com o conhecimento porque é obscuridade, ou melhor, porque é o próprio
acontecimento da obscuridade, uma invasão da sombra. Se o nacional socialismo
fez de tudo para apagar qualquer vestígio do extermínio contra o povo judeu,
Levinas e Blanchot falam dessa impossibilidade no resgate de um ser que fica muito
mais forte à medida que se torna vestígio, ou seja, que o ser balbucia o inexplicável.
É, portanto, aqui, e não na representação, que o ser mostra a sua fecundidade e
cumpre o seu estado de ético desde que a representação, pensando em dizer a
verdade, faz dele puro esquecimento transformando-o no “Mesmo”. Dessa forma,
podemos dizer que o nacional socialismo deixa de ser o crime perfeito quando seu
relato resiste à compreensão, quando se torna o incomensurável e faz com que não
esqueçamos o ruído da catástrofe, a qual por si mesma atesta, na sua obstinação de
extermínio, o “Outro” como diferente. O ser do “Outro” se realiza na presença que é
ausência. A arte que emerge da catástrofe realiza o “desastre” imanente e se faz
“Rosto”. Isso faz com que, depois de Auschwitz, a arte não seja mais a mesma.
Ela é o lugar singular onde o ser realiza essa perda total do lugar em que possa
apresentar-se. Para Levinas e Blanchot, depois de Auschwitz, todos os conceitos
que havíamos firmado como verdades absolutas em diversos âmbitos de nossa
existência deveriam ser repensados, pois o hitlerismo despertou em nosso tempo
sentimentos elementares que, como tal, “Expresan la actitud primera de un alma
frente al conjunto de lo real y a su próprio destino. Predeterminan o prefiguran el
36
sentido de la aventura que el alma correrá en el mundo” (LEVINAS, 2001b, p. 7). Ou
seja, o hitlerismo põe em questão os princípios de toda uma civilização.
1.4 Maurice Blanchot e Emmanuel Levinas: proximidade de uma amizade
“infinita”
Entre este ‘outrem’ e ‘eu’, a distância é infinita e, no entanto, ao
mesmo tempo, outrem é para mim a presença mesma, a presença
do infinito. Presença desviada de todo presente, aquilo que existe
então de mais desamparado e de menos protegido.
Blanchot, 2001
Blanchot e Levinas teceram durante suas vidas uma amizade de infinitude. A
urdidura das tramas dessa amizade foi um legado de obras que guardam os
vestígios de uma conversa infinita. O “Infinito” é o que de mais expressivo e
comum entre os dois pensadores. Nas obras de Blanchot ou de Levinas é inevitável
não apontar as equivalências, embora cada qual marque o seu espaço com a sua
especificidade no modo de expressar o seu pensamento. Tem-se falado de uma
proximidade divergente entre os pensamentos de Blanchot e de Levinas. Para
Cuesta Abad, que faz a introdução da obra Emmanuel Levinas: Sobre Maurice
Blanchot (LEVINAS, 2000c, p.12), essa afinidade tem uma encruzilhada em que
cada um chega por vias diferentes onde
los discursos fenomenológicos y ontológico confluyen fundiéndose y
diluyéndose en lo que podría llamarse una fenomenologia de la inaparición.
La opacidad de la palabra y la imagen implica a Blanchot y a Levinas en una
indagación paralela que se enfrenta al fenomeno de la intransparencia, cuya
manifestación desprovida de espesor pero intransible no es una entre
otras, ni siquiera cabe decir que sea una manifestación. Pues en el
fenómeno de la intransparencia aparece ya la intransparencia del
fenómeno.
Blanchot pensa o conceito de “absolutamente Outro” na linguagem, ao passo
que Levinas pensa-o para o ser humano. Se a linguagem pertence ao humano, não
37
podemos mais separar ambas as coisas; a linguagem é esse estranho que reside no
homem. O “Outro” é a palavra nunca “dita”, pois é infinita. Blanchot e Levinas falam
de um mesmo lugar como modo de habitar o mundo, ou seja, de um desejo de tecer,
através do pensamento, ummodo Outro de ser”, uma “proposta outra” de se
relacionar com a arte e com o próximo. Ambos se expressam de um sem-lugar” do
ser humano e elegem a “exterioridade” como o lugar mais fecundo para o
pensamento. Ambos tamm confiam o seu pensamento ou a sua escritura a uma
palavra e a um silêncio que se fazem estranhamento. São pensadores que discutem
questões essenciais para a Filosofia cssica bem como para a teoria da arte.
Resistem ao poder e ao saber como única forma de adquirir conhecimento e
instigam a inúmeras perguntas a respeito de seus conceitos de “Rosto”, “Fora”,
“Neutro”, “Infinito" e “Vestígio”. A partir dos conceitos citados, podemos perguntar: se
a arte não é mais conhecimento sobre o mundo, se não é mais contemplação desse
mundo, como pode se dar como experiência? Essa pergunta envolve uma série de
questões complexas, as quais se constituem como busca neste ensaio.
Blanchot, crítico literário que faz uma das reflexões mais radicais da
experiência artística ao explorar o espo solitário da literatura, afirma que a palavra
poética permanece fora do mundo, porém, paradoxalmente, nela o mundo não
cessa de falar. O mundo “murmura” e, então, é quando a linguagem fala por si
mesma, quando nada é dito por ela. A linguagem é a impossibilidade mesma, a não-
identidade. Ambos, Levinas e Blanchot, falam da não-identidade, de um “não-
Mesmo”, o qual pode ser definido como transconceitual, ou seja, que não se deixa
reduzir à identidade ou a uma “mesmidade” qualquer.
A amizade entre esses dois pensadores contemporâneos acarretou
proximidade não porque um tenha influenciado o outro, mas porque ambos
38
vasculhavam o campo do Infinito” e estavam em busca de um discurso não
regulado e não pré-escrito. Provavelmente podemos falar de uma o-simetria nas
discussões entre Blanchot e Levinas, mas nunca de uma o-convergência nas
suas questões filosóficas. Assim, se Levinas estava em busca de uma exterioridade
radical, Blanchot buscava o “Fora” ou o “Neutro”, os quais não podemos dizer que
são sinônimos a fim de não desrespeitar a singularidade de cada um desses
conceitos. Tanto Blanchot quanto Levinas leram Husserl e Heidegger.
Levinas viveu seu ciclo universitário (1928-1929) na Alemanha junto a Husserl
e a Heidegger, e foi o responsável pela introdução da Fenomenologia na França. Em
1930, Levinas publicou a Teoria da Intuição na Fenomenologia de Husserl; em 1932,
Martin Heidegger e a Ontologia, texto incluído em Descobrindo a Existência com
Husserl e Heidegger, de 1967. Tanto Levinas quanto Blanchot devotaram a Husserl
e a Heidegger uma admiração incondicional, ainda que a partir dos conceitos deles
tenham desenvolvido a sua crítica. Levinas nunca deixou de reconhecer Heidegger
como um grande mestre, embora assumisse o seu desassossego e a sua
incompreensão pelo envolvimento de Heidegger com o nacional socialismo. Para
Levinas, os primeiros ensaios de Blanchot sobre a essência da arte e da literatura
até a obra O Espaço Literário (BLANCHOT, 1987) têm participado, em certa medida,
do impulso dado pelo pensamento do último Heidegger, até mesmo na forma como
Blanchot elege os textos de Rilke e de Hölderlin. Levinas (2000c, p. 32), diz que “El
ente y el ser son distinguidos y, aunque Blanchot medite sobre un Mallarmé que vio
mistério y tarea por cumplir en la pequeña palabra es”, el acento con el que se
pronuncia la palabra ser es heideggeriano”. Segundo Levinas (2000c, p. 32), as
referidas obras de Blanchot apareceram na França numa época em que o último
Heidegger era totalmente desconhecido pelos heideggerianos. Blanchot acolheu
39
mais do que qualquer outro o pensamento heideggeriano tardio quando o logos que
ilumina a verdade do ser e transcende na história não é a palavra essencial. Levinas
sugere que Blanchot tenha intuído no pensamento heideggeriano algo que o próprio
Heidegger já tivesse previsto em sua ontopoética: a palavra poética num espaço fora
do mundo consolidado pela linguagem cotidiana.
O caminho que domina a última filosofia de Heidegger, segundo Levinas
(2000c, p. 41-142), consiste em interpretar as formas essenciais da atividade
humana, ou seja, arte, ciência, cnica e economia como modos de verdade. A
marcha em busca da verdade se adentra no pensamento heideggeriano pelos
caminhos da errância; o erro é contemporâneo da verdade, a revelação do ser é de
imediato a sua dissimulação, que, segundo Levinas, em comparação ao
pensamento blanchotiano uma proximidade muito grande entre a noção de ser e a
realização da irrealidade, essa presença da ausência, essa existência do nada que a
obra-de-arte deixa dizer. Mas, segundo Levinas (2000c, p. 41-42), “para Heidegger
la verdad un desvelamiento primordial condiciona toda errancia y es eso por lo
que todo humano puede decirse al fin y al cabo en términos de verdad, describirse
como “desvelamiento del ser”. Em Blanchot, como afirma Levinas (2000c, p. 42), a
obra “descobre um descobrimento” que não é verdade, descobre uma obscuridade.
A questão primordial para Blanchot está na linguagem como “Outroou nas
artes, em geral, como um absolutamente Outro” que significa o Infinito”. Assim, se
a questão para Blanchot está em salvar a linguagem da retórica, para Levinas está
em salvar a relação com o “Outro” de qualquer discurso previamente estabelecido. A
excentricidade da linguagem, de ser sempre um “não dito” ou um fragmento, e nunca
um todo, é parte central do pensamento blanchotiano. Se Levinas tem no
pensamento da exterioridade uma busca infinita por um sentido “Outro” do humano,
40
a literatura de Blanchot realiza a filosofia levinasiana do “Outro” em suas obras:
Pena de Morte (1991), A Conversa Infinita (2001) e Thomas el Oscuro (2002a).
Essas obras abriram diálogos com bifurcações labirínticas, infindáveis e inconclusas,
sempre em suspenso. Ambos os autores abrem um espaço para que o “Outro” tenha
a liberdade de ser esse “absolutamente Outro” sem que forcemos a sua adequação
a qualquer “Eu”. Para Levinas, aquele que sofreu a solidão diante da morte, no
espaço dos campos de concentração nazista, pode se colocar no lugar no qual é
possível estabelecer essa relação com o “Outro”. Tanto Blanchot como Levinas
vivem e sentem que vivem como sobreviventes. Para Blanchot, ser judeu é primeiro
ser o “Outro”, é assumir essa distância que separa o homem do homem quando está
em presença do próximo.
Levinas sugere uma “não-indiferença” diante do estrangeiro e nos faz
perceber a responsabilidade ética que o “Outro” exige como “Rosto”. Não se trata de
ser refém do “Outro”, mas de ser responsável por ele, tendo essa responsabilidade
como algo inerente ao ser humano, pois o “Outro” é sempre umOutro” e umEu”. O
negro é o Outro” do branco, e o branco, o “Outro” do negro; o palestino é o “Outro
do israelense, e o israelense, oOutro” do palestino. O “Outro” é sempre essesem-
lugar”, esse mistério, essa duplicidade paradoxal.
O que Levinas realiza no campo filosófico, Blanchot pensa para o espaço da
escritura. Para Blanchot, na literatura não existe a “fala do ser”, mas sim uma fala
estrangeira que vive da impossibilidade de deixar falar o ser. O escritor é aquele que
é atravessado pelo “Outro”. A impossibilidade de chegar ao Outro”, que é crucial
para a ética de Levinas, também o é para a noção de escritura no pensamento
blanchotiano. Em O Olhar de Orfeu, Blanchot (1987) diz que Eurídice é obscuridade,
ela não pode vir à luz, ela não se faz representação, ela é o que escapa ao ser.
41
Eurídice é uma boa metáfora para a arte. Ela é o ponto profundamente obscuro ao
qual Orfeu desce e para o qual a arte parece tender: Ela é o instante em que a
ausência da noite se aproxima como outra noite” (BLANCHOT, 1987, p. 171). É
nesse sentido que a arte é a evasão do ser. Assim como o “absolutamente Outro” de
Levinas, a arte torna-se evasão para salvar a sua “eticidade” ou o seu direito de ser
uma estrangeira diante de s. Essa é a noção de literatura para Blanchot. Orfeu
pode descer à obscuridade para procurar Eurídice, não pode olhá-la de frente.
Deve desviar-se dela, pois no desvio ele pode salvá-la. Para salvar a arte é
necessário aceitar a dissimulação, visto que insistir em vê-la na clareira é arruiná-la,
é perdê-la, tal como Orfeu perde Eurídice. Ele deve ver Eurídice não quando ela
está visível, mas quando está invisível, e não como a intimidade de uma vida
familiar, mas como a estranheza do que exclui toda intimidade, não para fazê-la
viver, mas ter viva nela a plenitude de sua morte” (BLANCHOT, 1987, p. 172).
A relação de impossibilidade tanto em Blanchot como em Levinas se
assemelha à relação de Orfeu com Eurídice. Ele se submete a vê-la na sua
invisibilidade, “em sua ausência de sombra, nessa presença velada que o
dissimulava a sua ausência, que era a presença de sua ausência infinita”
(BLANCHOT, 1987, p. 173). Eurídice é a obra de Orfeu, porém esta deve submeter-
se à lei da obscuridade. Trazê-la à luz seria o mundo”, o “ocultamento” de Eurídice,
a terra” do pensamento heideggeriano. O olhar de Orfeu respeita a lei da
obscuridade porque o seu desejo não é ver Eurídice na luz, mas na noite. É na noite,
na obscuridade que Eurídice é desejada. Ele não quer fazer visível o invisível. Para
Blanchot, o invisível é o incessante que se faz ver (que se como vestígio). Como
Orfeu, que não pode responder à exigência da razão de trazer Eurídice à luz,
42
Levinas não responde à exigência da Filosofia de expor o Outro” à luz, e o
resguarda da representação e da presença. O mesmo faz Blanchot com a escritura.
Blanchot se diferencia como crítico porque fala da obra literária no centro dela
mesma. Segundo Perrone-Moisés (2005), isso ocorre tanto em suas obras de ficção
quanto em suas obras críticas. Para o autor, “a obra literária tornou-se impossível,
com a morte dos deuses (a obra nunca será Obra), a obra crítica é (onde falha o
escritor falha tamm o crítico)” (PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 97). Em Blanchot, a
obra-de-arte sempre encontrará a barreira do silêncio e da morte. As formas e a
linguagem são vistas como autodestruição. Dizer alguma coisa sobre a arte é,
portanto, passar por um infindável redizer. É o que fazem os críticos e o próprio
artista, segundo Blanchot. Fazer arte é um objetivo sem caminho. O artista tem,
como afirma Blanchot, uma única alternativa: perseguir infinitamente esse objetivo
sem caminho. A obra o quer que nos preocupemos com ela, quer ser buscada
incessantemente. A relação que Blanchot nos propõe para com a obra é de
negligência, pois o objetivo da obra é o Nada”. Blanchot (1987) afirma que foi o
“Nada” que perseguiu grandes escritores como Kafka, Mallarmé, Rilke, Hölderlin,
Rimbaud, Artaud e Bataille. Todos eles foram fascinantes porque construíram as
suas obras sobre o “Nada”. Porém, trata-se de um “Nada” que não é o vazio ou o
“Nada”, mas que murmura, faz ruído. A proposta que encontramos nesses
pensadores e poetas é empreender sobre a obra-de-arte uma caminhada sem
objetivos.
A impossibilidade e o Infinito” fazem parte essencial do pensamento tanto de
Levinas quanto de Blanchot. Dessa forma, como afirmam Gil e Bonvecchi (2004, p.
251), se quisermos estabelecer uma proximidade essencial entre os dois
pensadores, podemos dizer que:
43
la impossibilidad se halla en el alma de la ética del primero y en el corazón
de los relatos del segundo. La distancia estética, la mirada órfica
blanchotiana, obsesión de sus narradores, es la responsabilidad infinita de
Levinas, esa locura de ser por el Otro nunca satisfecha.
Em Blanchot não veremos a busca por um sentido “Outro” do humano, mas
essa noção torna-se muito próxima no pensamento da literatura como “Fora”, como
“Neutro”, como “Morte”. Em Blanchot e em Levinas vamos encontrar uma reflexão
radical sobre a morte. Levinas evoca a retidão extrema do “Rostodo “Outro” como
retidão ética; uma exposição à morte, sem defesa”. A morte não é uma
possibilidade do ser humano, o que está em jogo é a morte do “Outro”. O “Rosto” é
essa impossibilidade de reduzirmos o “Outro” ao “Nada”.
A amizade entre Blanchot (1907-2003) e Levinas (1906-1995), que será
frutífera até a morte desse último, teve início na Universidade de Estrasburgo, onde
os dois se encontraram. Ali Blanchot entrou em contato direto com as leituras de
Husserl e de Heidegger. Blanchot leu Heidegger com a preocupação filosófica
acerca da fundamentação de suas idéias, questionando a noção de espaço como
lugar próprio de acontecimento e a ênfase do ontológico sobre o ôntico (do ser sobre
o ente). Em Estrasburgo, Levinas e Blanchot encontraram Bataille e, apesar das
diferenças ideológicas, mantiveram com ele uma profunda amizade, que durou aa
sua morte. Em 1944, Blanchot escreveu para a revista Actuali, dirigida à época por
Bataille.
Assim, observamos Blanchot e Levinas transitarem por toda a tradição
filosófica e, mais especificamente, pela fecunda matriz filosófica que representa a
Fenomenologia, tão decisiva para a filosofia européia do século XX. Porém, ambos
escolhem falar de um lugar específico, um lugar “marginal”, ou seja, “para além” de
Husserl, de Heidegger e de Hegel.
44
1.5 Sobre os artistas citados
O poeta é aquele que, pelo seu sacrifício, mantém
em sua obra a questão aberta. Em todos os tempos, ele vive o
tempo da aflição, e seu tempo é sempre o tempo vazio em que tem
de viver, é a dupla infidelidade, a dos homens,
a dos deuses, e também a dupla ausência dos deuses, os que já
não estão e os que ainda não estão.
Blanchot, 1987
A escolha dos artistas que “emprestaram” as suas obras para a presente
reflexão, mais especificamente no terceiro capítulo da tese, deu-se por meio das
leituras que existiam sobre essas obras ou pelo fato de a pesquisadora conhecer
tais obras através de exposições ou em discussões nos grupos de estudos, enfim,
através de um interesse pessoal pelas obras e pelos artistas. A lembrança de trazê-
las à reflexão, a nosso ver, foi incentivada pelas leituras dos textos de Blanchot e de
Levinas em que as obras comentadas parecem se situar com propriedade.
Para apresentar Cindy Sherman (nascida em 1954, vive e trabalha em New
York), é importante saber que nos anos setenta a Arte da Performance e a Arte do
Corpo recorriam aos meios ilustrados, especialmente a fotografia. Em parte, seus
trabalhos artísticos devem a sua técnica a esse meio, além do prazer que a artista
tem em fazer uso do disfarce. Seu trabalho é expor estruturalmente o aspecto
voyeurista do olhar, como em Untitled Film Still Número 2 (cena de filme sem título).
A própria Cindy é a personagem de suas fotografias. A série Centerfolds (páginas
centrais), realizada em 1981, apresenta mulheres que foram fotografadas para uma
revista pornográfica. Essas mulheres parece retirarem-se do campo visual da
câmara num sentido de ausência, próprio da fotografia pornográfica, mas que nos
trabalhos de Cindy perdem essa conotação. Seus corpos também se perdem para
45
além das margens da fotografia de forma a o serem visualmente compreensíveis
como figuras completas. De 1988 a 1990, Cindy concebe retratos ao estilo dos
grandes mestres, mostrando-os de forma perturbadoramente alterada. Em Sex
Pictures (Fotografias Sexuais, 1992), Cindy apresenta o corpo feminino envolvido
em cenas de horror e fragmentação, e atras de forte fetichismo erótico. Cindy
Sherman é também cineasta. Em seu primeiro filme, Assassino de Escritório (1997),
a personagem, uma mulher assassina, amontoa cadáveres em sua cave, como
Cindy amontoa coisas em seu estúdio. Na década de setenta, Cindy Sherman usou
bonecos e membros artificiais em suas fotos. Na cada de oitenta foi designer,
elaborando anúncios de moda grotescos, em que seus personagens usavam dentes
falsos, tinham cicatrizes e faziam caretas, apresentavam as partes do corpo
deformadas e um comportamento pouco recomendável para o mundo da moda.
Como designer, fez ainda a série Fairy Tales (Conto-de-Fadas), em que explorava
os conto-de-fadas dos irmãos Grimn, colocando o observador em confronto com
cenários estranhos, desconfortáveis, que longe das histórias infantis não traziam
nenhuma promessa de felicidade. O trabalho de Cindy Sherman tem a forte
característica de causar impacto e estranhamento aos nossos olhares de
contempladores, pois carrega uma carga imensa de ambigüidade com uma certa
vocação à paródia, ao enigma.
Farnese de Andrade é um artista brasileiro natural de Araguari, interior de
Minas Gerais. Segundo Cosac (2005), as obras de Farnese de Andrade
permaneceram desconhecidas durante algum tempo. Foi por volta do período de
1945 e 1965 que suas obras começaram a chamar a atenção do eixo artístico do Rio
de Janeiro e de São Paulo. As obras de Farnese de Andrade são o que costumamos
chamar em arte de assemblage. Farnese usa cabeças de bonecas de porcelana
46
adquiridas em antiquários, imagens sacras, ex-votos, oratórios, móveis de roca,
gamelas, fotos de família, carrilhões, relógios de parede, pernas mecânicas
encontradas no lixo, mesa de açougue, tábuas de corte, bonecas incineradas ou
não, ou totalmente fragmentadas, das quais utilizava os membros.
Farnese fez inúmeras obras em que aparecem objetos que ele encontrava em
suas longas caminhadas, a exemplo de pedaços de madeira gastos pelo tempo,
fragmentos de barcos ainda com as suas pinturas originais, troncos de árvores
retorcidos e mandíbulas de animais. Nesses objetos ele fazia fendas e incrustava
pregos e ferro. A característica que Farnese imprimia nesses materiais era a
mutilação e a fragmentação. A resina, por sua vez, foi o material mais singular nas
mãos de Farnese e, segundo Cosac (2005), foi por meio desse material que o artista
realizou plenamente o seu exercício fetichista. Dentro da resina ele colocava as
cabeças de bonecas encontradas, fotografias da família, santos, ossos e tantos
outros objetos. Na resina, seus objetos “flutuam numa transparência reservada e
misteriosa. Na obra Ofélia (1985), por exemplo, o cabelo da boneca parece estar
imerso na água. A técnica da resina dá às obras de Farnese uma sensação de
paralisação, um visível desconforto na estaticidade das coisas, na paralisação do
tempo ou na instituição de um Outro tempo”, o “tempo sem tempo”, o tempo que
parou de passar.
Andrés Serrano, fotógrafo, nasceu em New York no ano de 1950 e é um
artista que insiste em examinar temas controversos e pouco agradáveis aos nossos
olhos. Como tema de suas fotografias estão as representações religiosas, as
exibições dos fluidos do corpo, como, por exemplo, fotografias que descrevem a
trajetória do esperma em ejaculação), gente sem casa e os membros da Ku Klux
Klan, membros do corpo com cortes.
47
Fotografias mais recentes de Serrano mostrando cadáveres criaram
interrogações no mundo das artes ligadas à relação entre a arte e a provocação.
Suas fotografias sempre geram polêmicas. O fotógrafo apresenta em suas obras a
religião, os mitos do poder, o sexo. Entre as suas obras mais polêmicas estão: A
História do Sexo (1994), que muita gente viu como pornográfica, La Morgue,
fotografias de jovens mortos prematuramente por enfermidades ou mortos
violentamente; Orina Cristo, em que vemos um crucifixo mergulhado em urina. A
série La Morgue (1992), objeto de reflexão na presente tese, é composta das
seguintes fotografias: Queimado vivo, Pneumonia por afogamento, Suicídio por
raticida e Pneumonia infecciosa. Serrano diz que La Morgue es un templo secreto
donde a poços se les permite ingresar” (REVISTA DO OCIDENTE, 1998).
Antoni Tàpies nasceu em Barcelona, em 1923. Este artista criou um
vocabulário plástico singular em que a experimentação tem sido constante em sua
carreira. Sua pintura é gestual, espontânea e, ao mesmo tempo, reflexiva, visto que
foge das ordens e dos regulamentos estabelecidos. Suas primeiras obras (1940)
mostram um forte caráter primitivista vinculado ao dadá e à arte infantil dos enfermos
mentais e, portanto, muito perto da art brut. Porém, na cada de cinqüenta
observamos em suas obras um forte caráter abstrato que depois iadquirir uma
característica especialmente sua, a qual recebe o nome genericamente de pinturas
matéricas. Com essa característica, os materiais deixam de ser simples meios
submetidos à experiência de uma idéia para converter-se na própria idéia. Daí se
produz uma identificação completa entre matéria e forma, entre conceito e
linguagem. Tais obras advêm de superfícies opacas, muros onde o artista escreve
seus grafites, e adquirem formas de objetos ou pessoas (MUSEU..., 2005).
48
Tàpies desenvolve um grande interesse pela filosofia oriental, e isso tem
importante repercussão em suas obras e em seus escritos. As obras dos últimos
anos de Tàpies constituem-se em uma reflexão sobre a dor tanto física como
espiritual, ambas entendidas como parte integrante da vida. Contata-se em suas
obras mais recentes a repercussão de alguns acontecimentos dos últimos tempos,
como, por exemplo, a guerra na antiga Yugoslavia, os assassinatos e as
deportações de Ruanda. Assim, nas suas últimas obras aparecem imagens de
corpos mortos e feridos.
Desde 1947, Tàpies tem desenvolvido uma intensa atividade no campo da
obra gráfica, e ele conta com a colaboração de poetas e escritores como Alberti
Bonnnefoy, Du Bouchet, Brodsky, Brissa, Daive, Dupin, Foix, Frémon, Gimferrer,
Jabès, Mitscherlich, Paz, Zambrano, entre outros. A obra de Tàpies se constitui num
corpus estético e discursivo.
Gunther von Hagens, que possui formação de médico, apresenta cadáveres
submetidos à técnica desenvolvida por ele mesmo como plastinização. Trata-se de
um processo meticuloso e caro por meio do qual o corpo humano fica livre de
odores, tem as cores dos tecidos realçadas e pode ser conservado indefinidamente.
Hagens é responsável pela exposição Body Words (Mundo dos Corpos), que está
sendo vista pelo público desde 1996. São obras realizadas com cadáveres de
indigentes ou doadores, as quais têm a pele retirada para que revelem os órgãos, os
nervos e os ossos.
49
2 BLANCHOT E LEVINAS: O INFINITO COMO LUGAR DO
ESTRANHAMENTO
2.1 O estranhamento: a questão é escapar do ser
Posso eu dizer que sou este trabalho
que faço com minhas mãos, mas que me escapa não somente
quando o concluo, mas antes mesmo de o haver encetado? [...] Qual
é, pois, a relação e a difícil interdependência entre o ser e o
pensamento? Que é o ser do homem, e como pode ocorrer que esse
ser, que poderia tão facilmente caracterizar pelo fato de que “ele tem
pensamento” e que talvez seja o único a possuí-lo, tenha uma
relação indelével e fundamental com o impensado?
Michel Foucault, 2000
Emmanuel Levinas e Maurice Blanchot, pensadores com os quais
dialogaremos ao longo de nossas reflexões a fim de construir um possível ensaio
sobre a arte de nosso tempo, mais especificamente no âmbito das artes plásticas,
centram grande parte de suas indagações na questão do ser. O ser é, sem dúvidas,
o centro do estranhamento na sua radical recusa de vir à luz, e ele faz do “Outro” um
“absolutamente Outro”. Para Levinas, a questão está em se pensar “um ser de outro
modo”. Em ambos os pensadores, o ser como errante e impossibilitado de se fazer
presente reveste-se de grande importância para o nosso estudo. Essa questão e
seus desdobramentos formam o centro de nossa reflexão.
Levinas desenvolve uma crítica à fenomenologia husserliana e à ontologia
heideggeriana, as quais são para ele pensamentos da imanência e da auto-
suficiência. O mundo, conforme aponta Levinas, é para esses autores um acordo
entre o pensamento e o pensado. As teses da filosofia de Heidegger, segundo
Levinas, resumem-se na legislação do ser relativamente ao ente, da ontologia
relativamente à metafísica, e afirmam uma tradição em que o Mesmo” domina o
“Outro”, em que a liberdade (mesmo que idêntica à razão) precede a justiça. O que
Levinas realiza é um abalo das certezas de toda uma tradição alicerçada na busca
50
ontológica pelo ser como fonte de todo sentido, indo ao que é excedente e que
transborda as enunciações e significações que podemos ter acerca do ser. Não é
nosso propósito desenvolver exaustivamente as críticas realizadas por Levinas a
respeito de Husserl, Heidegger ou Hegel, mas verificá-las apenas à medida que
entendemos serem necessárias à compreensão na caminhada das reflexões
realizadas, as quais se destinam a especular as possibilidades oferecidas pelo
pensamento levinasiano em relação à arte hoje.
Assim, parece-nos importante citar que Levinas, além de tomar a
Fenomenologia como ponto de partida para as suas críticas, trilhou um longo
caminho através dela para posteriormente se distanciar e ter outras perspectivas
para pensar a questão do ser. Para ele, as perspectivas abertas pela
Fenomenologia foram valiosas para as suas conquistas. O que aconteceu, segundo
o filósofo, é que as questões relativas ao ser, conforme enfocadas pela
Fenomenologia, tornaram-se insuficientes para um manejo adequado à nova
realidade humana, que se delineou no âmbito social a partir dos acontecimentos que
se desenrolaram de 1933 a 1945, época em que o saber não pôde evitar nem
compreender as catástrofes sociais que abalaram a humanidade. Os problemas
surgidos com as guerras vivenciadas pelo século XX são, para Levinas, a expressão
profunda de um sistema de saber que não soube conviver com a diferença. Isto é,
esses problemas assinalam a incapacidade de uma consciência que aprendeu a
conviver com “os outros em si mesmos” e nunca com o “outro em si mesmo”. Pesam
aqui, ainda, os envolvimentos pessoais que retrataram o próprio pai da ontologia,
Heidegger. Razões dessa ordem acabaram sendo significativas para uma nova
compreensão da estrutura da consciência. No pensamento de Levinas veremos
implodir qualquer interação entre o “Mesmo (Eu) e o “Outro”, entre o “Ditoe o
51
“Dizer” irredutível, a partir de uma crítica feita sobre a presentificação temporal do
Logos na nomeação e mostração ontogica.
O “Dizer” é o que nenhum “Eu” pode abarcar. No Dizer” não estamos
implicados com o mundo da totalidade ou com o mundo do conhecimento e da
realização das experiências simplesmente cotidianas. No “Dito” estamos na ordem,
no mundo, estamos presentes ante nosso igual. No Dizer”, ao contrário, somos
arrancados dessa ordem. É no “Dizer” que a não coincidência com o Outro”
acontece, em virtude da impossibilidade de estarem juntos em uma simples
simultaneidade e de assumirem o tempo como irreduzível diacronia, que não é uma
temporalidade vivida, mas uma temporalidade marcada por uma ausência de tempo
entendido como presente pleno de projeto cujo transcorrer se vive como passado e
futuro desse presente. No Dizer” levinasiano, estamos, passivamente, na relação
com o “Outro”, no limite de toda paciência, pois desaparece o poder do “Eu”.
Em seu segundo livro mais importante (depois de Totalidade e Infinito), ou
seja, Autrement qu’Être ou-delà de l’Essence, Levinas faz distinção entre o “Dizer” e
o “Dito” em função de que, como ele mesmo confessou, os questionamentos feitos
por Derrida em Violência e Metafísica lhe atormentavam. Segundo Derrida, Levinas
vivia uma contradição, pois não conseguia se libertar de uma linguagem ainda
ontológica quando o seu desejo era justamente escapar da ontologia. Dessa forma,
em De Otro Modo que Ser lo más allá de la esencia (2003), Levinas afirma que o
“Dizer” é ético e o “Dito” é ontológico. O “Dizer”, o ato de nos expormos corporal e
sensivelmente aoOutro homem, a nossa incapacidade de resistir ao encontro com
o Outro”, é uma atuação verbal e não-verbal cuja essência não se pode captar em
proposições verificáveis. É um fazer performático que não se deixa reduzir a uma
descrição proporcional. O “Dizer” é o conteúdo de nossas palavras quando dirigidas
52
ao Outro”. A obra de Levinas De Outro Modo que Ser pensa o problema de como
conceituar os dizeres ético e ontológico. Para Simon Critchley, que fez a introdução
da obra Difícil Libertad (LEVINAS, 2004, p. 28), isso pode ser chamado do giro
desconstrutivo de Levinas: “es cuestión de explorar las diversas formas por las
cuales el dicho puede ser desdicho, o reducido, dejando así que el decir circule
como residuo o interrupcn dentro de lo dicho”. Para Levinas, o filósofo deve
empenhar-se em reduzir o “Ditoao “Dizer” e romper continuamente o limite que
separa o ético do ontológico. Ele diz que é necessário desconstruir a ontologia do
seu domínio conceitual.
A acusação central de Levinas ao modo como o ser vem sendo abordado no
pensamento ocidental é que esse ser se desinteressa do “Outro” como “Outro”,
sobrepondo-se à alteridade das coisas e dos homens, e fazendo residir a
racionalidade. Levinas busca um sentido “Outro” do homem e introduz uma ética
centrada no “Outro” como “Rosto”. A subjetividade moderna, para Levinas, não
necessita de nenhum tu”, ela se configura no “eu-pensamento” de Descartes, no
“eu-angústia” de Pascal e no “eu-corpo” de Montaigne. No pensamento levinasiano a
subjetividade vai se configurar no “Outro” como princípio primeiro da ética, um
“Outrocomo Infinito”. Para Levinas a preocupação com o “Outro” surge a partir de
sua experiência vivenciada com o hitlerismo. Segundo o filósofo, o absurdo e as
atrocidades do hitlerismo pertencem ao ser “Mesmo” do homem. Portanto, é
necessário pensar em um conceito de humano que inclua esses horrores, pois as
guerras, os genocídios, o terrorismo, o ódio dos homens por seus semelhantes e o
desrespeito às diferenças o tarefas árduas para o pensamento e não devem ser
menosprezadas. Não como reparar o passado. Não como reparar o
irreparável.
53
O judaísmo nos dá a mensagem magnífica do remorso, essa expressão
dolorosa da impotência radical de reparar o irreparável que anuncia o
arrependimento como gerador do perdão: “El hombre encuentra en el presente con
qué modificar el pasado, cómo borrarlo. El tiempo pierde su irreversibilidad misma.
Se postra nervioso a los pies del hombre como un animal herido. Y lo libera” (GIL;
BONVECCHI, 2004, p. 14). Em seu texto Algunas reflexiones sobre la filosofia del
hitlerismo (2001b), Levinas diz que, mais do que um contágio e uma loucura, o
hitlerismo é um despertar de sentimentos elementares próprios do ser humano. É
um mal elementar para o qual a filosofia ocidental não estava suficientemente
preparada. Assim, para Levinas, o nacional socialismo não é uma anomalia
contingente da razão humana, mas é parte mesmo do seu ser, daí a necessidade de
se pensar “um ser de outro modo”. O despertar desse sentimento, portanto, não é
apenas ideologia ou posição política, porém é muito mais amplo: trata-se de pensar
um conceito de homem. A realidade humana é, conforme aponta Levinas, densa,
pesada, e a razão e o idealismo não suportam a missão que a ela delegamos.
Levinas (2001, p. 87) afirma que “El retorno eterno del idealismo no resulta de una
predilección caprichosa de los filósofos por la teoria del conocimiento. Reposa sobre
sólidas razones que fundam el privilegio del Mismo respecto al Otro”. Dessa forma,
quando a meta é conhecer o “Outro”, se renuncia a alteridade. A questão está na
densidade do ser. O ser é, para Levinas, algo que está completamente à margem de
nós. Lacoue-Labarthe e Nancy (2002) completam essa idéia quando afirmam que a
razão civilizada não é mais que uma “fortificação limitada e frágil”. Para além dela,
escondem-se o ódio e a fúria, os quais o vêm de outra parte, de partido ou de
uma raça imaginada como inumana senão da essência do próprio homem. Conhecer
essa possibilidade do humano é questionar a razão.
54
Para Levinas (2000), como judeu não há como deixar de pensar em um “estar
em comum”. de se permitir, portanto, um apego a uma tradição filosófica
venerável da hegemonia do “Mesmo”, pois seu reinado prolonga a guerra e o poder
do “Mesmo”. Sobretudo, Levinas (2001a, p. 88) diz que
la libertad que se instaura en el Mismo se encuentra prisionera del Mismo.
La libertad se busca entonces en la relación con el absolutamente Otro,
inconvertible en ya conocido. No le basta que el Transcendente remita su
sentido a posteriori, en la perspectiva de una historia que se coagula en
destino y en la que se integra pese a su movedad. La libertad reducida a la
identidad del Mismo no sabría reprimir el Deseo de lo absolutamente otro.
Segundo Levinas (2001a, p. 88), o “Outro” pode resistir ao nosso poder não
pela extensão e obscuridade do tema que nos oferece, mas pela resistência de
entrar em um tema, de submeter-se ao poder pela eminência de sua epifania. O
mesmo confirma Bauman (1998a, p. 10) quando diz:
Percebi que o Holocausto foi não apenas sinistro e horrendo, mas também
absolutamente nada fácil de compreender em termos habituais, ‘comuns’.
Foi escrito em seu próprio código, que tinha de ser decifrado primeiro para
tornar possível a compreensão.
Conforme aponta Levinas (2000), esse digo está inserido na idéia de
“Infinito”, ou seja, no para além” de qualquer possibilidade de decodificação. É
então a partir daí que, para Levinas, surge a iia de “Outro” como um
“absolutamente Outro”, ou seja, a idéia de “Outro” como “Infinito”. No Holocausto se
confirma a impotência de algo que pudesse impedir o seu acontecimento, a sua
impotência da significação e da verdade. Como pensar a nobreza da Filosofia e a
beleza da arte em tempos de fúria? Os sentimentos elementares estranham a
Filosofia e a beleza. Os sentimentos elementares “expresan la actitud primera de un
alma frente al conjunto de lo real y a su próprio destino. Predeterminan o prefiguran
el sentido de la aventura que el alma correrá en el mundo” (LEVINAS, 2001b, p. 7).
55
Após Auschwitz, não era mais possível pensar o humano como antes. Surge uma
nova concepção de homem e do destino humano, e outras possibilidades antes
nunca reveladas foram abertas. Não era mais possível pensar o mundo como antes
e, igualmente, pensar a arte como uma produção humana restauradora do mundo e
integradora da humanidade numa universal totalidade. Para Levinas, era necessário
julgar o hitlerismo a partir de uma estrutura mais profunda, para além das
superestruturas ideológicas, para se dar conta de seus horrores. A filosofia ocidental
não estava suficientemente preparada para esse mal elementar, como afirma
Levinas (2001b, p. 23) em seu postscriptum. Assim, o hitlerismo como expressão
dos sentimentos elementares questiona os princípios da civilização.
É, então, a partir daí que podemos dizer que a obra-de-arte vai se converter
em produto da dissolução do “Eu” individual, como afirma Blanchot, que concebe a
escritura como aquele espaço no qual o escritor se perde, em que a obra questiona
a si própria. A obra é absoluta, anula o “Eu” e a si mesma como parte do mundo. A
solidão essencial, segundo Blanchot, é o final do próprio escritor. Assim, é na morte
do sujeito como experiência que algo essencial surge, é nela que escrever não
permite mais uma relação com o ser entendida em primeiro lugar como certeza,
verdade, ordem. O escritor escreve para se perder. O ser da obra é, então, um ser
que murmura. Ao ser faz parte uma barreira insuperável que leva ao monstruoso, ao
absurdo, a uma negatividade desoladora. Esse é o lugar do ser blanchotiano e do
ser levinasiano, um ser que questiona a si mesmo e se faz para tanto de outro modo
que ser.
A solidão essencial”, que faz parte do ser, da busca do poeta de que fala
Blanchot, é a mesma do espaço silencioso, aterrorizante, do ser invisível que gemia
(o Neutro”) nos campos de concentração do nacional socialismo. Uma indústria
56
para matança de humanos que tinha métodos eficientes para tornar invisível a
própria humanidade das vítimas, como afirma Zevi (2002). Para este autor, o
Holocausto foi uma indústria que anulou qualquer laço com a socialidade ou com
uma divindade que fizesse com que os humanos mantivessem uns com os outros
uma obrigação recíproca de cuidados. Assim, sem qualquer respeitabilidade ficou
muito fácil tornar invisível a humanidade das vítimas. Levinas, o filósofo do
Holocausto, como às vezes é chamado, constrói uma filosofia do “absolutamente
Outro” e faz todas as suas reflexões a partir desse lugar, o lugar onde a
representação do ser já não mais é possível.
Para Blanchot, foi através de Levinas que a Filosofia falou de maneira mais
grave ao nosso tempo:
Contestando corretamente nossas maneiras de pensar e até nossa fácil
reverência à ontologia, somos chamados a tornar-nos responsáveis por
aquilo que ela essencialmente é, acolhendo, com o brilho e a exigência
infinita que lhes são próprias, precisamente a idéia do Outro, quer dizer, a
relação com outrem (BLANCHOT, 2001, p. 98).
Com Levinas, segundo Blanchot, a Filosofia encontra um novo ponto de
partida e nos convoca a dar um salto, um outro modo de ver, de sentir e de pensar o
nosso estar no mundo. A partir de Levinas (2001a, p. 90-91) torna-se fundamental
encontrar um novo ponto de partida, e daí o seu esforço, desde que o acontecimento
filosófico, segundo o filósofo, parece suprimir
la multiplicidad, por consiguiente, la violencia. La violencia se apega, en
efecto, a la oposición, es decir, a la escisión del ser en Mismo y en Otro. La
filosofía, como diria André Lalande, assimila todo Otro al Mismo. Pero la
similación se produce en la filosofía en tanto que la filosofia es
fundamentalmente una búsqueda de la verdad. Pues la verdad significa, de
un modo general, la adecuación entre la representación y la realidad
exterior. [...] El Yo del conocimiento es, en efecto, a la vez el Mismo por
excelencia, el acontecimiento mismo de la identificación y el crisol donde
todo Otro se transmuta en Mismo. Es la piedra filosofal de la alquimia
filosófica.
57
Para Blanchot, não se trata de dizer que o pensamento do “Outro” seja novo.
Segundo o filósofo, essa idéia aparece em um lugar mais ou menos privilegiado na
filosofia contemporânea. De maneira geral,
quase todas a filosofias ocidentais o filosofias do Mesmo, e quando elas
se preocupam com o Outro, este não passa de um outro eu mesmo, sendo,
no melhor dos casos, igual ao Eu e procurando ser reconhecido por mim
como Eu (assim como eu por ele) (BLANCHOT, 2001, p. 98-99).
Em Levinas, como afirma Blanchot, somos conduzidos a uma experiência
radical; o “Outro” é irredutivelmente “Outro”, é o que nos ultrapassa absolutamente.
A relação com o Outro” é uma relação transcendente, ou seja, uma distância
infinita e, em certo sentido, intransponível entre o Eu” e o Outro”. O Outro” em
Levinas pertence à outra margem. O “Outro” é puro mistério. Ele o pertence ao
nosso horizonte (BLANCHOT, 2001, p. 98-99).
Portanto, para Levinas e Blanchot, encontramos em Husserl a consciência
com função constituidora do sentido da realidade e estruturada pela
intencionalidade. Se, por um lado, a intencionalidade tem o seu lado benigno de
superar o dualismo objetivista na relação sujeito–objeto, por outro lado, segundo
Levinas, não é positivo o fato de que esta, no âmbito da ontologia, tenha o ser
dominando os fenômenos. Dessa forma, o saber constitui-se como adequação do
ser, sempre visível a uma clareira, num jogo de esconde-esconde (HEIDEGGER,
1990).
Segundo Levinas (2000b), Husserl coloca o ato intuitivo como indispensável
para a compreensão das coisas, visando sempre o objeto como façanha da
consciência intencional. Levinas parte da análise da intencionalidade e propõe o fim
da correlação, estabelecendo uma relação diversa entre objeto e conteúdo vivido.
58
Observamos no pensamento de Levinas uma intencionalidade não representadora
1
,
desvinculada da ontologia, sem pretensão ao saber. Enfim, trata-se de uma
intencionalidade ética do Outro” que se caracteriza por uma consciência fora de si
mesma e de sua atividade. Tal consciência é fruto do desejo de investigar se a
consciência não tem outra possibilidade de realizar façanhas para além da teoria e
com outra pretensão que a do conhecimento e a conquista da verdade” (SOUZA,
2003, p. 292). Para Levinas, a questão primordial é perguntar: o aberto pela
intencionalidade da consciência não caracteriza também os limites de seu
intencionar ou seu consolo por não ter dado conta do que a transcende? Levinas
oferece-nos uma consciência estruturada de outra forma que não a intencional,
mesmo reconhecendo o legado da fenomenologia de Husserl. Porém, segundo Gil e
Bonvecchi (2004, p. 30), a obra de Levinas Totalidade e Infinito (2000a) constitui
uma fenomenologia, ainda que não admita a consciência, o “Eu” puro e muitas
categorias husserlianas. As referidas autoras afirmam tamm que a obra de
Levinas De Outro Modo que Ser configura-se como mais uma ontologia do ser que
fala de si mesmo, de sua linguagem entendida como responsabilidade diante do
“Outro”. A questão não está, a nosso ver, em discutir se Levinas permanece ainda
ou não na Fenomenologia, mas perceber qual é o lugar do ser no seu pensamento.
Ou, para sermos mais justos, pensar em como se a ausência do “aparecer” do
ser no pensamento levinasiano, que se torna antes um aparecer pelo que se faz
vestígio, pelo que murmura. Essa impossibilidade da “mostração” do ser é primordial
1
Para Levinas (2000b), a “intencionalidade da fruição” pode descrever-se por oposição à
intencionalidade da representação, desde que esta consista em ater-se à exterioridade. Dessa forma,
o “Outro”, conforme o autor, não é fenômeno, mas enigma, o que não aparece no mundo. Ele é,
melhor dizendo, a interrupção desse mundo. O autor diz que a Filosofia tem sido a compreensão do
ser, ou ontologia ou Fenomenologia. Aqui, na intencionalidade da fruição, o homem que frui mantém-
se irredutível e anterior ao conhecimento do mundo (Idem, p. 115). A sensibilidade se satisfaz com o
dado, não é descrita como um momento da representação, mas como o próprio ato da fruição, ou
seja, a sua intenção não vai ao sentido da representação. A sensibilidade é da ordem da fruição, e
não da ordem da experiência, ”a vida sensível se vive como fruição” (Idem, p. 121 e 167). “A fruição
não esgota o seu sentido na qualificação do objeto visível” (Idem, p. 169).
59
para a nossa abordagem sobre a arte contemporânea como aquela destinada a uma
radical exterioridade, realizadora dessa passividade absoluta do ser.
A fenomenologia de Husserl diz que toda “consciência é consciência de
alguma coisa”, o que cabe na noção de intencionalidade, questão de crítica por parte
de Levinas. A presença da consciência é o fato de “isso que se desenha na
experiência já ser entendido ou identificado, logo pensado como isto ou como aquilo
e como presente, isto é, precisamente pensado” (LEVINAS, 1967, p. 266). A
intencionalidade é o caminho para a abertura do ser, para a correlação sujeito
objeto. Assim, para Husserl, todo fenômeno é discurso no qual o aparecer do
fenômeno não se separa de seu significar, ou seja, o que aparece não pode
aparecer fora de um significado. Segundo Levinas, é justamente esse o lugar onde a
filosofia ocidental realiza a redução do Outro” ao “Mesmo”, fundando todo o vivido
na representão
2
. Para Levinas, nesse ponto reside a alteridade, que se caracteriza
por deixar o Outro” ser “outro”, fora da razão do “Mesmo”, da totalidade ou do
“Outro Eu”. Levinas apresenta um pensamento que foge da ontologia para dar
expressão à “origem e, no movimento do ser, mostrar o que para ele é a
impossibilidade por excelência, ou seja, o aparecimento do “absolutamente Outro”. O
que funda a questão aqui não é o esquecimento do ser, como levantou Heidegger,
mas o esquecimento do “Outro”. Diz Derrida (apud GIL; BONVECCHI, 2004, p. 306):
“Aún suponiendo que el Cogito husserliano esté abierto a lo infinito, lo estaría, según
Levinas, a un infinito objeto infinito sin alteridad, falso infinito [...]”. O autor citado
por Gil e Bonvecchi (2004) diz que Levinas pensa a alteridade verdadeira como uma
2
Levinas (1997) diz que a representação assegurava à tradição filosófica o próprio contato com o
real. Embora Husserl (apud LEVINAS, 1997), em sua obra intitulada E’tudes Logiques, já preparasse,
no início do século a ruína da representação, ainda sustentava a “tese de que todo fato psicológico é
representação ou está fundado sobre uma representação”. Por representação, diz Levinas (1997), “é
preciso entender a atitude teorética contemplativa, um saber quer seja de origem experimental quer
repouse sobre sensações”. O correlativo da representação é um ser posto. “Antes de agir e sentir, é
necessário representar o ser sobre o qual vai incidir a ação” (LEVINAS, 1997, p. 69).
60
não negatividade (transcendência o negativa) e pode fazer do “Outro” o
verdadeiro Infinito”, e do “Mesmo” (estranhamento cúmplice da negatividade), o
falso “Infinito”.
Desde a sua tese de doutorado, Levinas desenvolveu uma crítica à primazia
da consciência intencional. Disse ser ela algo teórico desde que o sujeito mantivesse
uma relação objetivadora com o mundo mediante a representação. As coisas são
sempre o noema de uma noesis. Para Levinas, a vida é receptividade, gozo e
sustento. A vida é o mundo em forma de matéria. Levinas passa a fazer uma
fenomenologia material da vida subjetiva, em que o ego consciente da
representação se reduzido ao “Eu” receptivo do gozo. O sujeito da
intencionalidade é um sujeito que vive e que está exposto às condições de sua
própria existência. Assim é esse “Eu” do gozo, um “Eu” que come, o único que tem
condições de ser questionado pelo “Outro”, pois um ser que come pode avaliar a
infinitude do “Outro”. Dessa forma, Levinas prepara as condições para que o ético
aconteça ao nível do sensível, e não apenas ao nível da consciência. A
intencionalidade está fundada na sensibilidade, e esta fica descrita como a
proximidade com o “Outro”. O sujeito ético de Levinas é um sujeito que tem fome,
que come e desfruta do comer (é de carne e osso).
Em sua obra intitulada Entre Nós, Levinas (1997, p. 169-170) levanta as
seguintes perguntas, as quais resumem praticamente toda a sua filosofia: A
intencionalidade é sempre fundada na representação? Ou a intencionalidade é o
único modo de “doação de sentido”? O significativo (sen) é sempre correlativo de
tematização e representação? [...] O pensamento é imediatamente voltado à
adequação e à verdade?”. Com essas perguntas, o autor questiona a estrutura
básica do pensar. Coloca em cheque o fato de a intencionalidade o postular uma
61
outra realidade que não seja representável. Acusa a intencionalidade de se legitimar
como doadora de sentido. Põe em causa o fato de o sentido resultar sempre de uma
tematização e estar sempre disposto a uma representação. Acusa o pensamento de
resumir toda diversidade numa mesmidade”, reduzindo as diferenças exteriores à
interioridade da imanência e a uma intencionalidade que confere ênfase no ego e no
ser, em que toda subjetividade é pensada em função do ser. Surge com Levinas a
figura de uma “consciência por trás da consciência”, uma não-consciência
intencional, uma má-consciência que pretende a não redução do “Outro” ao
“Mesmo”. Na má-consciência, o Outro” nunca será o reconhecimento do “Mesmo”.
A crítica que Levinas (2000a, p. 109) faz à representação reside
fundamentalmente no fato de que nela apaga-se a distinção entre o Eu” e o objeto,
entre o interior e o exterior. Na representação, o “Outro” deixa-se determinar pelo
“Mesmo” sem determiná-lo. É o desaparecimento do “diferente”, do que pode
chocar, enfim, a necessidade de manter a sociedade na “ordem, na determinação
de um ser ordeiro. Segundo Levinas (2000a, p. 109), na intencionalidade a
representação ocupa um acontecimento privilegiado. Diz Levinas:
A relação intencional da representação distingue-se de toda a relação
causalidade mecânica, ou relação analítica ou sintética do formalismo
lógico, de uma intencionalidade inteiramente diferente da representativa
no seguinte: o Mesmo está nela em relação com o Outro, mas de tal
maneira que o Outro não determina nela o Mesmo e é sempre o Mesmo que
determina o Outro.
De outro lado, Levinas (2000b, p. 25) não esquece da importância para
Husserl da intencionalidade axiológica, cujo caráter de valor não se chapa nos seres
após a modificação de um saber, mas deriva de uma atitude específica da
consciência, de uma intencionalidade não-teorética, irredutível ao conhecimento no
seu todo. Foi a partir dessa intencionalidade não-teorética que o filósofo viu a
62
possibilidade de desenvolver, para além do que o próprio Husserl disse, o seu
pensamento ético sobre a relação com outrem, viu a possibilidade de investigar “a
intencionalidade irredutível, ainda que se tenha de acabar por ver nisso a ruptura da
intencionalidade” (LEVINAS, 2000b, p. 25).
Outra questão que leva Levinas por outros caminhos, conforme apontam Gil e
Bonvecchi (2004), diz respeito ao pensamento merleaupontyano, que se ocupa de
“encarnar” o sujeito husserliano (sujeito puro) como um transcendente en la
imanência”, livre de todo compromisso com as coisas, impassível com as sombras
que elas possam projetar no mundo. Esse “Eu” com caráter absoluto, para Levinas,
parece estar fora do sujeito, fora da reflexão fenomenológica, porém está
compreendido dentro do conhecimento próprio do ser humano e de sua essência.
Levinas questiona se esse caráter de unidade não pertence mais à ordem da intriga
ética anterior ao conhecimento e que é proximidade e transcendência fora de toda
mediação, responsabilidade diante do “Rosto” do “Outro”. É a partir dessa
responsabilidade que Levinas, segundo as comentadoras Gil e Bonvecchi (2004),
em seu ensaio intitulado De l’ Intersubjectivi, confessa a sua admiração pelo
filósofo Merleau-Ponty, na medida em que este se ocupa de “encarnar” o sujeito
husserliano. É nessa encarnação que a natureza, diz Levinas, [...] revela su
significación en los movimientos essencialmente significantes esto es, expresivos,
culturales. Del cuerpo humano, yendo del gesto al lenguaje, al arte, a la poesía y a la
ciencia” (apud GIL; BONVECCHI, 2004, p. 19).
Segundo Levinas, para nós que somos herdeiros de uma tradição em que se
pensa como indissolúvel o vínculo entre o existir (ser) e o existente (ente), em que o
conhecimento permanece sempre dentro de uma totalidade, em que “Eu” e o
“Mundo” são unos, essa questão significa romper com hábitos e requer um esforço
63
até mesmo de compreensão
3
. A questão, a nosso ver, não está em aceitar ou não
um pensar “errante”, como o de Emmanuel Levinas e de Maurice Blanchot, mas em
ver esse pensar como possibilidade de abordagem do mundo ou como mais uma
possibilidade de podermos abordar o mundo.
A história do pensamento ocidental foi sempre a história da negação do
diferente e, de acordo com Levinas, foi responsável por construir uma razão hostil ao
“Outro”. Nela a multiplicidade aparece como caos diante de tudo o que deve ser
classificado, definido, analisado e organizado para dominar a ambivalência que
aparece como desestrutura. Na atitude de colocarmos ordem na desordem, na
ambivalência, incorremos no erro da exclusão e da inclusão, no esquecimento do
“Outro”, no ato de violência.
Assim, Levinas opõe-se a esse pensamento no qual o “Outro” é desprovido
de segredos ou completamente aberto a pesquisas, isto é, o pensamento em que o
“Outro é mundo, é imanência. A presença é saber como exposição e fraqueza
absoluta do ser. Dar-se é se deixar tomar, é a adequação do saber ao ser. Essa
idéia de presença que pertence à fenomenologia da imanência aponta para a
probabilidade de compreender o ser, para uma promessa de satisfação do “Eu”, em
que pesa um desinteresse peloOutro” como “Outro” que não se aloja no noema de
uma noesis. Levinas pensa a destruição da fenomenologia do aparecer do saber,
em que este é apreciado como algo próprio do humano e para o qual nada
permanece absolutamente distinto, nada é errância e tudo tem lugar; nada pode
existir num “não-lugar”. Esse saber configura-se como a maneira de recuperar o que
sempre se escapa (que luta para restabelecer a coexistência num sistema de
unidade). Desse modo, se pensarmos em uma intencionalidade ou forma significante
3
Para Heidegger (apud LEVINAS, 1993b, p. 82), seria um absurdo admitir um existir sem existente.
Levinas usa os termos existir (ser) e existente (ente) alertando para que não se dê a eles um sentido
existencialista.
64
para a obra-de-arte, devemos pensar em uma forma que em Blanchot e em Levinas
vai significar fora da intencionalidade porque é uma forma que “escapa” ao nosso
poder de interpretação, ou seja, paradoxalmente, vai significar pela sua “não-
significabilidade”. Esse é um paradoxo que fica explicado no conceito de Rosto”, de
“Neutroe na passividade do ser dentro do pensamento de Blanchot e de Levinas,
que afirmam que estamos em um lugar em que nada mais pode ser definido a
respeito de qualquer outro plano.
Na experiência em face do “Outro’, segundo Levinas, não deve acontecer um
movimento no qual o “Outro” se perde no Mesmo. Levinas faz um esforço para sair
do ser, para passar da existência ao existente. Nessa passagem, o existente não
pode mais se valer como ente que cuida de si, no sentido heideggeriano, porque
esse cuidado, de acordo com o filósofo, não tem consideração com respeito aos
“Outros”, mas confronta com a desneutralização do ser, que tem de conduzir a uma
aproximação do “Outro” entendida como assimetria irreversível. A questão do ser é,
para Levinas, a experiência com a estranheza do ser, com o mal-estar do ser, e está
fora de qualquer interpretação possível. Para o filósofo, essa co-presença do “Outro”
e do “Mesmo” no femeno constitui um poder. Assim, observamos que Levinas fará
um grande esforço para fugir de todo pensamento que submeta o Outro” ao poder
do “Mesmo”. O “Outro”, para Levinas, é um “Infinito”, e não se presta ao jogo
sugerido por Heidegger. A presença é o lugar no qual o jogo da claridade e da
obscuridade é jogado. A relação com o “Infinito” é outra, não tem a estrutura de uma
correlação intencional (LEVINAS, 1967, p. 263). A partir de então, Levinas vai
reivindicar a experiência por excelência, e a relação com o “Infinitoque é o “Outro
“busca um significante que signifique por si mesmo como determinação da própria
alteridade” (PELIZZOLI, 2002a, p. 37). O “Outro” deixa de ser o indefinido pela falta
65
ou ausência de contexto, mas significa Kat’aùtó, auto-referência pura, expressão de
si. O Outrovai significar em sua própria “estranheidade”. Na proposta de Levinas,
sujeito e objeto fazem-se proximidade, e o intencional faz-se ética, a qual não
assinala nada de moral, tratando-se de uma relação entre termos
onde um e outro não são unidos por uma síntese do entendimento nem pela
relação de sujeito e objeto e onde, no entanto, pesa ou importa ou é
significante para o outro, onde eles são ligados por uma intriga que o saber
não poderia esgotar ou deslindar (LEVINAS, 1967, p. 275).
A doação de sentido fica fora de uma relação compreendida como objetiva
4
.
Trata-se de uma relação de socialidade em que o “Mesmoe o Outro” podem criar
sociedade para além do dado objetivo, mas onde aparece também uma nova
condição para o pensamento e para a ética, e que será referência fundamental e
condição determinante para a verdade. Levinas (1967, p. 163) afirma que “pode
procurar-se condição da verdade numa ética”. A ética como condição de verdade
pressupõe a remodelação da relação sujeito–objeto, questão que será de
fundamental importância para pensar a arte contemporânea nesta pesquisa, pois
infere, a nosso ver, na destituição da soberania do sujeito em absorver tudo em si
como conteúdo. Não damos conta da leitura do “Outro” como um “Infinito”. Na idéia
de “Infinito” observamos o enfraquecimento da atividade da representação e a
pretensão da totalização plena. É dessa forma que Levinas (1967, p. 164) vai nos
dizer que “torna-se possível uma Sinngebung, isto é, essencialmente respeitosa do
outro”.
Levinas instala o sentido da alteridade como ética, no primado do “Outro”
como Rosto”, e no primado do si transito para outrem, o que implica em termos
4
Segundo Souza (2000a, p. 315-316), “apesar de Levinas reconhecer a importância das condições
para o pensamento, quando relacionada com outras formas do fazer filosófico, observa que ela ainda
fica circunscrita num circuito em que a objetividade impera. A atividade do pensamento acontece
como doação de sentido, mas fazendo sempre dos outros objetos conteúdos seus. A sua relação é
sempre relação com dados objetivos que ele os pode representar”.
66
filosóficos e éticos, segundo Pelizzoli (2002a, p. 12), uma nova intersubjetividade
(interação subjetividade–alteridade). A questão está no fato de que a exigência ética
do “Outro” rompe com a nossa subjetividade. Trata-se agora de “vibrar” com o
“Outro”. A subjetividade é o “Outro”. Surge uma subjetividade do sujeito fora de seu
ser, um despertar não intencional, sinônimo de desinteresse, de Infinito”, um
despertar de uma não-apreensão do “Outro”.
O que a entender, então, dizer que o “Outro significa em sua própria
“estranheidade”? Significa dizer que o Outro” está livre da obrigatoriedade de vir à
luz. O “Outro” é outrem. É mistério, um “absolutamente Outro”, um desconhecido,
um estrangeiro, um sem-pátria. Estamos, então, diante do Neutro”, do “Há”, do
“Infinito”. Estamos diante do “Neutro” e do “Fora” blanchotiano. A relação com o
“absolutamente Outro” começa pela desigualdade, pelo estranhamento, pela
diferença. Aqui a alteridade do “Outro” não pode ser convertida no “Mesmo”, ou
melhor, respeita o fato de que ele é um desconhecido. O estar frente a frente com o
“Outro”, de imediato, não pressupõe um lugar onde a subjetividade possa
incorporar-se e que bastaria contemplar para que o “Eu” e o “Outro” entrem numa
relação de comunhão” (LEVINAS, 2000a, p. 229). Levinas propõe uma via de
acesso ao objeto como parte do objeto mesmo, ou, dizendo de outro modo, a própria
idéia de ser entendida como revelação. Não intencionamos o ser do ente, mas
estamos imediatamente no ser, fazemos parte integrante de seu jogo e, dessa
forma, somos parceiros da revelação. Basta descrever esses modos de revelação,
que são, igualmente, modos de existência. Não mais um espectador que fica de
fora e que por isso pode preferir o processo de revelação. A própria revelação é
implicativa e carrega o observador como partícipe efetivo dela. Observamos que,
numa relação com o que éRosto”, desaparece a rígida relação entre sujeito
67
cognoscente e objeto cognoscível para dar lugar a uma convivência sem legislação
de um ou de outro, ou seja, dizendo ainda de outro modo, o “Outro” não detém o
segredo daquilo que sou nem eu detenho o segredo daquilo que o Outro” é. “Eu”
sou um “Rosto” para o “Outro” e ele é um Rosto” para mim. “Eu” sou um “Rosto”
para mim mesmo, e o “Outro” é um “Rosto” para si mesmo. Somos um sem-fim, uma
impossibilidade de captura, um mistério, e é nisso que se constitui a ética
levinasiana.
Trata-se de uma nova forma de ver a consciência estruturada como
consciência o-intencional
5
, como uma nova compreensão do ser “Mesmo”, pois o
ser aqui já está colocado como fundamento do próprio pensamento que o constitui
(LEVINAS, 1967, p. 157-158). Essa consciência estruturada diferente é uma
consciência não-intencional, ou uma má-consciência, ou ainda, como chama Levinas
(1967), uma consciência passiva (a passividade do ser). Uma consciência passiva,
segundo o autor, não tem a pretensão do saber claro e distinto sobre os seres,
consciência que antes de significar um saber de si é apagamento ou
descrição da presença. Má-consciência: sem intenções, sem visada, sem a
máscara protetora do personagem contemplando-se no espelho do mundo,
seguro e a se posicionar (LEVINAS, 1997, p. 172).
Para essa consciência o ser é fuga diante da luz e se oferece como mistério.
Trata-se, conforme sugere Levinas (2001, p. 92), de derrubar o grande mito da
consciência legisladora das coisas em que se reconciliam diferença e identidade,
questão que repousa sobre o totalitarismo e o imperialismo do “Mesmo”. Dessa
5
Uma consciência não intencional corresponde tamm a uma não-filosofia, pois, segundo Levinas
(2001, p. 90-91) “La resistencia del Otro al Mismo es el fracaso de la filosofia. La no-filosofia es la
tiranía de la Opinión, en que el Mismo padece, pero no reconoce, en si, la ley del Otro; es la
oscuridad de la imaginación donde se extravia y se pierde el sujeto conocedor – el para si, el Mismo o
el Yo: es la heteronomía de la propensión en donde la Persona sigue la ley que no se ha dado a si
misma; es la inautenticidad donde el ser huye de su identidad hacia el anonimato. El saber filosófico
es a priori: busca la ideia adecuada y asegura la autonomía. En todo aporte nuevo, reconoce
estructuras familiares y saluda a viejos conocidos. Es uma Odisea donde todas las aventuras no son
más que los accidentes de un retorno a su casa.”
68
forma, quando situamos o Outro” como liberdade, pensando-o relativamente à luz,
nos vemos obrigados a confessar o fracasso da comunicação, não declaramos aqui
senão o fracasso do movimento que tende a conquistar ou a possuir uma liberdade”
(LEVINAS, 2000b, p. 60).
Blanchot (1999) faz referência ao ser tal como Levinas quando recupera em
Heráclito a sua referência à palavra da pitonisa, de Delfos: “não expõe nem
esconde, mas indica”. O uso da palavra indicar” parece nos remeter a Heidegger.
Porém, para Blanchot, ela se diferencia ao permanecer no nível do “vestígio”, de
algo que se recusa a “vir à luz”, que recusa a intencionalidade, que o converta no
“Mesmo” e que aponta para um campo de incertezas, de estranhamento e de
inquietude. Segundo Pelbart (2004), Blanchot faz um esforço para apontar uma
relação que recuse as formas de conhecimento implicadas com a idéia de
identidade e unidade, ou seja, presença. A relação de compreensão, de encontrar
sentido com o desconhecido, é, para Blanchot, uma relação impossível sob o
modelo do conhecimento objetivo (como compreensão). O “desconhecido”, como
verificamos em Blanchot e em Levinas, não é um objeto ainda não conhecido, quer
dizer, sabemos de sua existência, estamos diante dele, porém jamais chegaremos
a conhecê-lo realmente de forma a lhe atribuir qualquer sentido, visto que seu
lugar é estranho à nossa visibilidade”. Talvez a proposta de Levinas seja mais
uma atitude de crer (uma crença) que o ser está aí, “há” um ser, e eu acredito
nisso, porém não posso alcançá-lo. Estamos diante da incapacidade de
compreensão, de interpretação, de conferir a ele uma identidade. É, portanto, uma
fala com Deus, uma fala com a exterioridade infinita. Nossa relação com o mundo
acaba sendo uma grande e infinita fala com Deus, com a impossibilidade de
comunicação. O mundo é, então, o que está completamente fora de nós, uma
69
exterioridade radical que intencionalidade alguma abarca. O ser indica apenas o
seu vestígio, ou melhor, o ser é o seu vestígio, a sua própria impossibilidade de se
presentificar. Para Blanchot, o ser é a própria impossibilidade, e quem o nega é a
possibilidade, pois ela o inibe ao moldá-lo ao “Mesmo”. O “combate pela
possibilidade”, diz Blanchot (2001, p. 92), “é o combate contra o ser”, e o homem
cada vez que ele é a partir da possibilidade ele é o ser sem ser”. A possibilidade é
uma espécie de guardião do ser que pretende preservá-lo dessa outra experncia,
a qual é sempre mais primordial do que a possibilidade que nomeia o ser. A
impossibilidade não é nem afirmação nem negação, é o que “desde sempre
precedeu o ser”, e não se entrega a nenhuma ontologia (BLANCHOT, 2001, p. 92).
O que não se mostra mas deixa vestígios é o que Levinas chama de
“experiência do (Il y a)
6
. Tal experiência nos coloca em relação com o “Neutro”,
segundo Blanchot, com o desconhecido, que não é um sujeito nem um objeto e o
se presentifica, sendo a própria força terrível do desconhecido. Para o conceito de
“Neutrocomo um estrangeiro, Blanchot recorre ao pensamento de Levinas, no qual
o Outro” é aquele que jamais se a conhecer, e o próprio Levinas (2000c, p. 68)
define o “Neutro” blanchotiano dizendo:
Lo Neutro, o ese Tercio Excluso, no es ni afirmación ni pura negación del
ser. Pues afirmación y negación o pertenecen al Orden, forman parte de él.
Y aun así, la insistencia en eso Neutro comporta un no se qué de negativo.
No se lo frecuenta; ello es ‘lo infrecuente’ y extraordinario por excelencia.
6
Gil e Bonvecchi (2004, p.45-47) informam que em suas primeiras obras Levinas se refere ao “ser
puro”, conceito que é, posteriormente, substituído por “il y a” (há). Tamm Blanchot primeiramente
fala do “Fora” para substituí-lo, posteriormente, por “Neutro”. Neutralidade quer dizer sem sujeito, nem
objeto, nem afirmação, nem negação, nem isto nem aquilo, nem ser, nem nada. Quando Levinas diz
“para além da essência”, essência significa ser, o ser de Heidegger, a essência imperturbável,
indiferente a toda responsabilidade. A esncia para Levinas é o “Há” por detrás de qualquer
finalidade própria do Eu tematizante (o que converte em “tema”, o que é experiência). Tematizar é a
propriedade do sujeito que faz do objetivo, da objetividade, da coisa convertida em objeto, sua base
de operações.
70
Mesmo assim essa relação com o “Neutro” comporta qualquer coisa de
negativo, pois não se freqüenta o “Neutro”: ele é o “infreqüente”. O Neutro” de
Blanchot, segundo Levinas (2000c, p. 69), é um estranho no mundo, “de una
extrañeza más allá de toda extrañeza”. A relação com o “Neutro” em Blanchot é uma
relação com o que nos ultrapassa, com o que está absolutamente fora de nós. Toda
a sua obra está permeada pelo “Neutro”, pela atmosfera de uma irrealidade do real,
de uma presença da ausência, de uma experiência com o Fora”. Para Levinas,
igualmente, o Outro” vem sempre de “Fora”, é estranho no mundo, é de uma
estranheza para am de toda estranheza, uma inversão das categorias ontológicas,
visto que é diferente do ser de Heidegger, que está acima do homem. Temos na
experiência do “Fora” uma não-intencionalidade, pois nela nos deparamos com a
impossibilidade de fazer do “Outro” um “Mesmo”, desde que a relação com o “Fora”
seja uma relação com o que nos ultrapassa absolutamente (o “Rosto” para Levinas é
o que nos fala fora de tudo). Aqui a situação do sujeito não é mais de domínio; a
intencionalidade perde seu poder, e o sujeito se desestabilizado sob o signo da
ignorância, da debilidade do “estar-do-sujeito”. É uma situação que privilegia a
ambivalência e nosso caminho para o ser, segundo Levinas, embora nos cause a
sensação de que fomos abandonados por ele. Essa sensação é decorrente de
nosso hábito de pensar que a multiplicidade que se oferece no caos é uma falha da
racionalidade e que, conseqüentemente, devemos colocá-la sob nossas rédeas. A
tentativa de forçá-la ao nosso comando é, segundo Levinas, uma violência.
O “Neutro” blanchotiano está na literatura de Kafka e de Beckett, por exemplo.
Na entrevista dada por Beckett a Israel Shenker, no New York Times, em 1956, ele
diz:
Ao fim da minha obra, não nada a não ser o nomeável. No último
livro L’Ínnommable há uma desintegração completa. Nada de “eu”, nada
de “ter”, nada de “ser”. Nada de nominativo, nada de acusativo, nada de
71
verbo. Não meio de ir adiante. A última coisa que escrevi Textes pour
rienfoi uma tentativa de escapar da atitude de desintegração, mas falhou.
(ANDRADE, 2001, p. 150, em nota).
Esse é o movimento instaurador do Neutro”. Mahood, personagem de
Beckett em O Inominável, impõe uma voz impessoal. O seu corpo, que o
podemos definir bem se é um corpo ou uma carcaça em farrapos, perde a sua
materialidade aos poucos. Alguém, que não sabemos quem, narra num turbilhão de
palavras os acontecimentos, sem um eixo ao qual possamos nos assegurar da
narrativa. Porém, num dado momento da narrativa, a fala do narrador vai se
confundindo com a do personagem, as falas fazem “ruídos” que não definem nem
um nem outro. É um discurso incapaz. O “Neutro” está, para Blanchot, nessa
literatura da “despalavra”, da descentralização.
Em textos como esses estamos, ao que parece, diante do enigma do
conhecimento. Toda condição do conhecimento é sempre entendida como uma
ontologia, ou seja, todo conhecimento é uma compreensão do ser, esse grande viés
de percepção e produção da realidade. Nos pensamentos blanchotiano e
levinasiano não estamos mais diante do “acontecimento” do ser, isto é, o saber não
está em nós como imanência que se configura como essa ausência da ruptura do
isolamento do ser no saber, ou seja, a adequação entre o pensamento e o que o ser
pensa. O que sugerem Levinas e Blanchot é que existe um lugar no qual se a
ruptura absoluta do ser no saber, pois sabemos que o ser existe sem o saber nunca
tê-lo visto, sem que tenha havido qualquer jogo de claridade e obscuridade. O
campo do saber aqui é o do intransponível, em que o que se dá permanece
determinado pelo “desconhecido” com o qual a relação é a de infinitude. A partir daí,
o saber deixa de ser resposta, nãopasso algum para o sentido, pois a resposta é
a degradação da questão”, como diz Blanchot (2001, p. 43), desde que no “sim da
72
resposta perdemos o dado direto, imediato, e perdemos a abertura, a riqueza da
possibilidade”. Para o filósofo, a resposta é a desgraça da questão”. A resposta é a
segurança, porém a proposta de Levinas e de Blanchot tem lugar na insegurança,
na não-resposta como fecundidade da questão.
Assim, o que se perde no sussurro anônimo do “Há” levinasiano é a fixação.
Ele é puro ser sem ente, pura existência sem existente, como se a existência não
aparecesse, ficando independente do existente, sem que este jamais pudesse
converter-se em dono da existência. Resulta daí a sensação de desamparo por parte
do “Há”. Falta a segurança da compreensão, da luminescência do ser. Para
Blanchot, esse desconhecido só é acessível pela palavra (pela palavra poética)
como palavra não compreendida. É assim que a palavra poética para Blanchot não
descobre nada. Tudo nela é descoberto sem se descobrir [...]. Aqui o que se revela
não se entrega à visão, mas também não se refugia na simples invisibilidade”
(BLANCHOT, 2001, p. 68-69). Para designar essa relação, termos como revelar-se e
presença são inadequados, pois revelar sugere tirar o véu, expor à visão, e
presença marca um ponto no tempo, numa relação em que o tempo é um “sem-
tempo”. Em Thomas el Oscuro, Blanchot (2002a) abre o discurso sobre o “Há” (il y a)
afirmando a presença da ausência, a noite, a dissolução do sujeito na noite. Lemos
nesta obra:
Ya está aquí la noche. La obscuridad no oculta nada. Lo primero que noto
es que esta noche no es la ausencia provisional de la claridad. Lejos de ser
un lugar posible de imágenes, se compone de todo aquello que ni se ve ni
se oye y, oyéndolo, hasta un hombre sabría que, si no fuera hombre, no
oiría nada. A la auténtica noche le falta, pues, lo inaudito, lo invisible, todo lo
que puede hacer la noche habitable. No se deja atribuir nada que no forme
parte de ella; es impenetrable (BLANCHOT, 2002a, p. 85).
A realidade da irrealidade é um excesso, mas não irracional ou romântico. É
o “indecidível”, o não representável, o ambígüo. Para Blanchot, o “Háé o conceito
73
mais fascinante de Levinas, sem referência alguma ao ser de Heidegger. Sua esgibt
(seu dar-se generosamente à luz) parece ser o reverso da transparência, mas não
se distingue dela.
Estamos diante de uma relação em que o ser escapa à necessidade de ser
mostração, porém escapando à necessidade de se esconder. O ser fala sem dizer
nem calar. Fala porque deixa vestígios que interferem no “acontecimento”, visto que
o ser não nos conduz nem no presente nem no passado, mas marca a sua própria
passagem sem ser mediado pelo tempo. Ao contrário, a desordem do tempo, no
“Rosto” do “Outro”, por ser umInfinito”, não se presentifica.
Blanchot, tal como Levinas, questiona nosso hábito de falarmos do escuro (do
obscuro, do desconhecido) e de termos essa necessidade de evocar a luz, ou seja,
de submetermos tudo à luz do nosso saber. Blanchot está se referindo à metáfora da
luz que acompanha toda a metafísica ocidental. Iniciando pelo mito platônico da
caverna, o noûs aristotélico (compreendido através da imagem da luz), o lumen Dei,
de Agustín de Hipone, na filosofia medieval, a dialética de Hegel, entendida como
luta vitoriosa do reino da luz contra a noite, até a metáfora do sol, usada por
Nietzsche, a verdade sempre foi pensada como claridade, o ser fundante de todas
as coisas sempre teve como metáfora a luz. O dia parece ser a nossa medida.
Ficamos sem a possibilidade de tematização e objetivação de um ente. É, portanto,
essa a questão que se levanta. Trata-se de descobrir um lugar na nossa relação
com o mundo onde as coisas não se mostram nem se escondem, lugar onde uma
forma de exterioridade estranha ao nosso pensamento não entre na imanência como
o “Mesmo”. Esse lugar, para Levinas, é a experiência com o “Há”. Para Blanchot,
esse lugar é o “Fora”, o “Neutro”. O ser nem sempre se encontra atrelado ao
existente. O “Há” assinala para um ser sem ente. Ali nos resta o murmúrio do
74
silêncio, o ser está ali, mas não vem à luz. Existe uma ausência de tudo o que pode
converter-se em presença. O que resta é um campo de forças do existir impessoal,
algo que não é sujeito nem substantivo (LEVINAS, 1993b, p. 84). Trata-se, segundo
Levinas, de um modo anônimo
7
de existir e que não funda em si nada que acolha a
existência, sendo tão impessoal quanto “chove” ou “faz frio”. É um existir puro que
não pode ser negado, visto que se ime nesse campo de forças como um lugar de
afirmação e de negação. No “Há”, o discurso não cria raízes no presente. O “Há” se
recusa à correlação com o tempo e com qualquer algo; não é representado, vai além
do ser, é transcendência. Para Blanchot (2001, p. 70), a ilustração se faz com a
noite, existe uma visibilidade que é ainda uma maneira de deixar ver, é uma outra
que se afasta de todo o visível e de todo o invisível. A noite é presença desse
desvio, particularmente esta noite que é dor e esta noite que é espera”.
A idéia de “Há” surge para Levinas (1991, p. 39) a partir de suas lembranças
de infância. “Dorme-se sozinho, as pessoas adultas continuam a vida; a criança
sente o silêncio do seu quarto de dormir como ‘sussurrante’”. Seria como se
aproximássemos o ouvido de uma concha vazia e sentíssemos como se ela
estivesse cheia, como se o silêncio fosse um barulho, um murmúrio, “algo que se
pode experimentar também quando se pensa que, ainda se nada existisse, o fato de
que “há” não se poderia negar. Não que haja isso ou aquilo; mas a própria cena do
ser estava aberta: (LEVINAS, 1991, p. 40). No vazio absoluto que podemos
imaginar antes da criação, “Há”. A criança na sua cama sozinha faz uma experiência
7
“Al evocar el anonimato de este existir, no pienso en absoluto en ese fondo indeterminado a partir
del cual la percepción separa las cosas, delo que hablan los manuales de filosofia. Tal fondo
indeterminado es ya un ser- un ente -, algo. Cae bajo la categoría del sustantivo. Posee ya esa
personalidad elemental que caracteriza a todo existente. El existir al que intentamos aproximarnos es
la acción misma de ser, que no puede expresarse mediante ningún sustantivo, que es verbo”
(LEVINAS, 1993, p. 84-85).
75
de horror que, apesar de tudo, não é uma angústia
8
. O “Há” é uma espécie de
impossibilidade total.
9
Trata-se de uma experiência enlouquecedora, uma
impossibilidade de “parar a música”.
Levinas (1991, p. 41) diz ter encontrado essa idéia na obra de Blanchot, nos
seus romances e contos, os quais, segundo ele, não tratam de “estados da alma
mas de um fim da consciência objetivante, de uma inversão do psicológico. Para
Blanchot, a experiência do “Háé o desastre. Para Levinas, o desastre, citado por
Blanchot, não é nem a morte nem a infelicidade, mas como se o ser se separasse
de sua fixidez de ser, da sua referência a uma estrela, de toda a existência
cosmológica, um desastre” (LEVINAS, 1991, p. 42). É impossível sair desse
desastre. O “Outro” é o desastre. É impossível conhecer o “Outro”.
Levinas tenta aproximar essa mesma situação por outro caminho e considera
a experiência da insônia. Ele pensa a insônia como metáfora para narrar o tempo na
passividade do ser. A insônia não é uma experiência imaginária, ela é a consciência
de que não podemos abandonar a vigília em que nos mantemos. Nela não há objeto
nem referência de tempo; perdemos a noção de ponto de partida e de ponto de
chegada. Para Levinas (1993, p. 85), na insônia o
El presente queda adherido al pasado, es todo él herencia del pasado, sin
ninguna renovación. Siempre el mismo presente o el mismo pasado que
dura un recuerdo sería ya una liberación de ese pasado. El tiempo no
parte aquí de punto alguno, tampoco se aleja ni se difumina.
na insônia uma imortalidade da qual é impossível escapar, essa
impossibilidade é algo que independe da nossa iniciativa. Na insônia, “Eu o velo:
8
Na apresentação do livro De l’existence à l’existant, uma faixa em que Levinas escreve: Onde
não se trata da angústia (LEVINAS, 1991, p. 40-41).
9
Levinas (1991) diz que Apollinaire escreveu uma obra sobre o Il y a (há). Porém, em Apollinaire, o
“Há” tem a conotação de abundância e alegria. Para o filósofo, no “Há” não existe nem alegria nem
abundância, “é um ruído que se volta depois de toda a negação do ruído. Nem nada, nem ser”. Do
“Há” não se pode dizer que é um acontecimento do ser, mas tamm não se pode dizer que não é o
nada ainda que ali nada exista.
76
‘isto’ vela” (LEVINAS, 1991, p. 42). É um exemplo do que acontece no colocar-se de
um existir sem existente, de uma existência impessoal. O “Há” é um modo de existir
que se afirma na sua própria aniquilação
10
. Tal existir não é um em-si que
significaria a paz, mas a ausência de todo si-mesmo”, um “sem-si-mesmo”. Na
experiência do “Há” estamos diante da noção de ser que o deixa aberturas, que
não abre clareiras, estamos em pleno absurdo (um campo de forças), o somos
mais donos de nada. O poder do “Mesmo” sobre o “Outro” aqui não existe, não
“podemos mais poder”. Estamos na errância do sujeito. O errante agora não é mais
o ser, mas o sujeito que no contato com o eis-me aqui do “Rosto aceita a
caminhada sem ponto de chegada e sai de si para um mundo enigmático e sem
retorno para si. Aqui nos revelamos, segundo Levinas, como “ser-para-o-outro”. É
uma abertura ao mistério do “Outro” como totalmente Outro”, uma relação ética,
uma relação com o “Infinito” ético. Porém, devemos alertar que o eis-me aqui com o
qual o “Rosto” nos confronta não indica simplesmente um deixar-se, uma
passividade. Na obra Totalidade e Infinito, Levinas (2000a) diz que o Rosto” é
revelação, mas revelação seguida de uma inversão. Trata-se, como explica Melo
(2003, p. 103-104), de
sair da esfera do Mesmo, da esfera do ser em geral, da esfera cognoscitiva,
da correlação [...]. O que o olhar revela não é visibilidade objetiva [...]. Esse
modo de ser do olhar do Rosto do Outro é o que caracteriza o ato revelador,
a comunicação da visibilidade absoluta do Outro e a impossibilidade de
desnudamento
.
10
Podemos encontrar em Heidegger essa conversão do “Nada” em existir. Neste autor, o “Nada”
retém uma atividade do ser que não permanece tranqüilo, mas que se afirma nessa produção de
“Nada”. Levinas (1993, p. 86) relaciona o “Há” a alguns temas da filosofia clássica, na versão que
Crátilo oferece do rio, “un rio en el que es imposible bañarse ni siquiera una sola vez; no es posible
constituir la fijeza propia de la unidad, forma de todo existente, en um rio em el que desaparece el
elemento último de fijeza respecto del cual el devenir resulta comprensible”.
77
Por isso essa revelação promove o êxodo, a saída para uma caminhada
incerta. Metaforicamente a terra está sempre prometida, nunca dada, o caminhante
será sempre infinitamente caminhante.
A errância abre para a idéia de “Infinito” como o despertar de um psiquismo
que o se reduz à pura correlação nem ao paralelismo noético-noemático. A
relação com o “Outro” como “Infinito é a relação com o “Outro” como tal. Para
Blanchot, a relação com o “Outro” é a própria relação com o “Infinito”.
2.2 Totalidade e Infinito
Entre um ser e o outro há um abismo.
Bataille
A relação com o “Outro” se constitui na própria relação com o “Infinito”, pois o
“Outroé essa presença “infinitamente Outra”, é o homem pela presença de quem
toda medida de estranheza é dada.
Segundo Blanchot, o monstro do desconhecido foi sempre exorcizado pela
Filosofia com a luz que sempre o colocou sob o efeito da luminosidade. Para o autor,
os relacionamentos com o desconhecido se dão no medo ou na angústia, num
desses movimentos recusados pela Filosofia. É através deles que podemos ter
algum pressentimento do “Outro”. Temos, portanto, a falsa idéia de que no momento
que firmamos a evidência luminosa, o obscuro é dominado. Trata-se da falsa idéia
de que um dia tudo possa ser compreendido. Blanchot (2001, p. 95) nos leva a
dialogar com a impossibilidade e dela ou com ela pensar a impossibilidade de
conhecer como experiência fecunda, não como compreensão, mas como
estranhamento. Pelo pavor e pela angústia, saímos de nós mesmos e acabamos
78
fazendo uma experiência assustadora daquilo que é inteiramente fora de s e que
é radical alteridade: o próprio exterior”. Para Blanchot (2001, p. 96), é através do
estranhamento ou da angústia que podemos ter “algum pressentimento do Outro;
ele nos pega, nos encanta, roubando-nos a nós mesmos”.
Em Levinas (apud BLANCHOT, 2001), somos conduzidos a uma experiência
radical. O “Outro” é o “irredutivelmente Outro”, o que nos ultrapassa absolutamente.
A relação com o “Outro” é transcendente, ou seja, de outra ordem, ultrapassando
toda experiência possível e dependente de certa forma de uma fé, e não de um
saber. Existe, portanto, uma distância infinita entre o “Eu” e o “Outro”. O “Outro” não
tem comigo uma pátria comum e de forma alguma pode se posicionar no mesmo
conceito, num mesmo conjunto. Para alguém que quisesse se posicionar dizendo
que isso se trata de um solipcismo radical, Blanchot responderia que se trata sim de
uma separação (filosofia da separação). E, ao contrário de um solipcismo, encontro-
me separado do “Outro”, a separação me faz respeitá-lo e reconhecer que ele não
sou eu. O “Outro” é estranhamento, é mistério, é isso que me informa essa
separação. O “Outro” é aquele que vem de outro lugar e nunca está onde estamos
(não se presentifica), não aparece em nenhum lugar representável, o que nos diz
que o invisível bem pode ser o seu lugar, ele é o que “se desvia de todo visível e de
todo invisível”.
Para Levinas (2001, p. 117), a idéia de “Outro” é possível quando não é
nunca a de próximo ou a de semelhante, mas unicamente quando é o que está
muito longe, quando é uma abstração. Os termos próximo e semelhante conferem
ao “Outro” e ao “Mesmo” muitas coisas comuns. Levinas (2001a, p. 117) afirma que
Justamente, en toda esta afirmación de lo concreto de la que vive la filosofía
de hoy se desconoce que la relación con el Otro (ajeno) (autruia) es un
elemento de abstracción que horada la continuidad de lo concreto, relación
con el Otro en tanto Otro, desnudo, en todos los sentidos de término.
79
A transcendência é possível com o “Outro” a partir da idéia de que somos
absolutamente diferentes, sem que essa diferença dependa de uma qualidade
qualquer. A transcendência é para Levinas o ponto de partida de nossas relações
concretas com o Outro, por isso vemos a transcendência como uma noção
extremamente importante no pensamento levinasiano.
Bataille (2003) parece nos ajudar nessa compreensão quando diz que somos
seres descontínuos. A reprodução coloca em jogo dois seres descontínuos, pois “os
seres que se reproduzem o distintos uns dos outros, e os seres reproduzidos são
distintos entre si como são distintos daqueles dos quais eles se originaram”. O que o
autor quer dizer é: “Entre um ser e outro um abismo”, ou, como nos aponta
Levinas, o Infinito”. Vale dizer que entre o Eu” e o “Outro” o “Infinito”. Assim,
cada ser nasce e morre . A morte é esse “Outro”, esse mistério que passamos
a vida exorcizando através dos rituais cotidianos, da arte e da religião. A morte é o
“absolutamente Outro” que jamais abarcaremos com nossa compreensão.
Dessa forma, o “Infinito”, conceito levinasiano, “é uma relação com o exterior,
com o Outro, sem que essa exterioridade possa integrar-se ao Mesmo(LEVINAS,
1967, p. 209). Isso quer dizer que a presença do “Outro” não é coexistência e
repouso, identidade na intencionalidade, mas inquietude e estranhamento. É
abismo, é morte. A relação de experiência com o “Outro” não é um movimento
intencional que tende à completude ou a um preenchimento, mas um movimento de
desejo insaciável de contato. Podemos dizer que é antes uma ausência, devido a
esse não repouso, a essa fuga constante do ser. O “Infinito” é ainda o nunca
terminado, o sempre inconcluso. Assim, para Blanchot, que considera os referidos
conceitos em vista da obra-de-arte, a obra é sempre infinita, uma infinitude nunca
80
terminada e nunca compreendida, pois está sempre além do que podemos pensar.
Levinas (2000a, p. 186) diz que “O fluxo do Infinito ou Rosto pode exprimir-se em
termos de consciência, em metáforas que se referem à luz e ao sensível, é a
exigência do Rosto que e em questão a consciência que o acolhe”. Isso se deve
ao fato de o Infinito” tirar a consciência de seu centro, que é o “Eu”, e, então, como
consciência da obrigação, uma consciência ética privilegia o “Outro”.
Levinas vai buscar a idéia de “Infinito” em Descartes
11
, em que o ideatum
dessa idéia, isto é, o que a exata idéia visa, é infinitamente maior do que o próprio
ato pelo qual pensamos. “Há desproporção entre o ato e aquilo que o ato dá acesso”
(LEVINAS, 2000b, p. 83). Porém, Levinas não diz que temos a idéia de “Infinito” tal
como descreve Descartes nem diz que o Outro”, o absolutamente Outro”, é Deus.
Contudo, talvez possamos dizer que Levinas transforma o argumento de Descartes
substituindo Deus pelo “Outro”. O que interessa a Levinas é que existe em nós uma
idéia de “Infinito”, e essa idéia pode ser definida por um pensamento que pensa mais
do que pode pensar. Blanchot (2001, p. 100), referindo-se ao “Infinito”, diz que “o
pensamento pensa o que o ultrapassa infinitamente e o que ele não pode dar conta
por si próprio: ele pensa, então, mais do que pensa. Experiência única”. Pensar o
“Infinitose constitui, como explica Blanchot, em pensar o que ultrapassa o nosso
poder, ou seja, “um pensamento que na medida mesma em que é pensado por mim,
é o absoluto ultrapassamento deste “Eu” que o pensa, quer dizer, uma relação com
o que está absolutamente fora de mim mesmo: o Outro” (BLANCHOT, 2001, p. 100).
O pensamento que pensa mais do que ele pensa é, para Levinas, o “Desejo” do
“Outro como “Outro”. Dessa forma, a relação com o Infinito” não é um
11
“Y, sin embargo, si Descartes comienza por el Cogito, dice un poco más tarde que, em realidad, lo
primero es la idea de Dios, es decir, la idea del Infinito. La idea de Dios existia antes de Cogito, y el
Cogito no hubiera sido nunca posible si no hubiera habido ya la idea de Dios. Por consiguiente,
también para Descartes, es en el acto justo, y no en el acto reflexionado, donde comienza la crítica
filosófica. He ahí lo que también quería retener de Descartes(LEVINAS, 2001a, p.113).
81
compreender, um dar sentido a algo ou a outrem (a alguém), é um Desejo”. O
“Desejo”, conceito levinasiano importante, nunca está satisfeito, alimenta-se de suas
próprias buscas, de seus próprios desejos. Para Blanchot (2001, p. 93), o “Desejo” é
paixão, aquilo que se está desde sempre engajado por uma experiência mais
primordial, “é precisamente esta relação com a impossibilidade [...] que se faz
atraente e toma corpo”.
O “Desejo” aparece como resultado de um Infinitoético, como uma “outra”
intencionalidade e receptividade, como modo de acolhimento do “Infinito” (o “Outro”).
Segundo Pelizzoli (2002a, p. 61), o Desejo" é para Levinas “afecção e
amor/bondade onde podemos ver a concretude das experiências éticas propaladas”.
Para Blanchot, o desejo é relação de impossibilidade. Essa impossibilidade é o
próprio ser, pois a vida humana tem como essência a impossibilidade, o que realiza
uma inversão na tradição filosófica fenomenológica, ou seja, “reconhecer na
possibilidade o poder soberano de negar o ser: o homem, cada vez que ele é, a
partir da possibilidade, é o ser sem ser. O combate pela possibilidade é o combate
contra o ser” (BLANCHOT, 2001, p. 92). O “Desejo” é aquele que transforma a
impossibilidade em poder
12
.
No “Desejo”, o “Infinitose realiza como fuga constante, mas nessa fuga ele
deixa sempre um vestígio onde a sua invisibilidade visível é o rosto do próximo”
(LEVINAS, 1967, p. 281). A proximidade e a vizinhança com o Outro” é desejo
como ausência, como impossibilidade de vir à luz: “Infinito”. A experiência da relação
pela qual nos aproximamos do “Outrodeixa de ser manifestação ou saber, mas
evento ético de comunicação, uma relação transcendente com o “Outro”, na medida
em que o “Outro” conserva a sua “outreidade” livre de toda intencionalidade. É o
12
Na obra Totalidade e Infinito, Levinas (2000a) contrapõe o desejo à necessidade, o que lhe permite
manter imaculada a positividade do desejo, que não se submete ao “Mesmo”. Desejo é aspiração
pura, acima da necessidade (SUSIN, 2003, p. 277).
82
caso de pensar um encontro que aborda uma relação absolutamente exterior ao
“Mesmo”, exterioridade contida e garantida no “Infinito”. A exterioridade do ser
“Infinitomanifesta-se na resistência que realiza o seu aparecimento (expressão ou
epifania) a todos os poderes daquele que ele aproxima. O seu aparecimento se
recusa a ser uma forma de luz, sensível ou inteligível; ele é já esse não que enfrenta
os poderes do “Mesmo”. Levinas diz que o seu logos é: não matarás”. Podemos
entender esse enfrentamento como “não me dominarás”, não me transformarás no
Mesmo”, não me reduzis à totalidade”, enfim, todas essas questões que ficam
implícitas no “Rosto”.
Constatamos a experiência com o “Infinito” através do estar face a face com o
“absolutamente Outro”, diante do qual, diz Levinas: “já não posso poder”. o se
trata de medir forças e também não é o caso de que existe uma resistência muito
grande. Trata-se unicamente do fato de estarmos diante do “Infinito”, do que nos é
absolutamente estrangeiro. A resistência aqui é ética porque não cabe no domínio
do Mesmo”. Dessa forma, já não podemos poder”, pois, ante o “não matarás”,
somos confrontados com a impossibilidade de dominar e, assim sendo, já não posso
mais fazer do “Outro” um “Próprio”. Essa resistência é justamente o que abre a
dimensão do “Infinito”, o “não matarás” que sinto no “Rosto” do “Outro” mostra o
“Infinito”. Assim, o que se apresenta tão exteriormente e funda a alteridade é o
“Rosto”, expressão que se apresenta a umEu” (LEVINAS, 1967, p. 209-211).
É a idéia de “Infinito” que faz com que o “Outro” não perca a sua alteridade e
não se dissolva num acontecimento anônimo. “O próprio da relação com o Infinito é
que ela não é desvelamento” (LEVINAS, 2000b). Com a idéia de “Infinito”, Levinas
busca a “abertura para a emergência ética do sentido, de um sentido desconstrutor
dos sentidos constituídos, de um sentido do “não-sentido”, nem sempre autorizado
83
pelo fundamento, de um sentido anárquico” (VILA-CHÃ, 2003). A questão para
Levinas não é o esquecimento do ser, como pensa Heidegger, mas o esquecimento
do Outro”. Assim, a relação com o “Infinitoé uma relação de não-intencionalidade
que está centrada no “enigma ético” da “justiça do ser”. Levinas se recusa
veementemente a conceder aoMesmo” um caráter fundamentador e último, caráter
esse que ele viu permear e do qual foi vítima com o nacional socialismo, ou seja, o
logocentrismo tradicional. Daí a sua opção pela ética segundo palavra de justiça, e
não por uma ontologia. A sua terminologia não está fundada na consciência, mas na
obrigação ética, e devemos ir buscar todo sentido no “Rosto de Outrem” como
expressão do Infinito” que se oferece como noção além das forças de nossa
individualidade.
O “Infinito” nos diz que o “Outro” é transcendência
13
para além do ser), e
não imanência. O “Outro” é completamente um desvio do “Mesmo”. Paradoxalmente,
é por esse desvio que posso me relacionar com o “Outro” visando à alteridade.
Lembramos que esse desvio, que nos leva para além de um solipcismo e esvazia o
“Mesmo” de si, é o desejo. De outro lado, não é o “para além do serque nos faz
chamar o pensamento de Levinas de transcendente. O “para além do ser”, de
Levinas, não significa um excesso irracional, mas a impossibilidade de dizer o ser, o
não representável, o decididamente ambígüo, o Infinito”. A impossibilidade tamm
não é uma comodidade, uma recusa do “Outro”, mas, bem ao contrário, é um
aumento de responsabilidade perante o “Outro”.
O grande legado de Levinas é a noção de “Outro”. Podemos dizer que
Levinas é um filósofo da transcendência do “Outro”. Mas, de certa maneira,
encontramos uma ambigüidade quando Levinas nos propõe a transcendência (o
13
Conforme explicam Gil e Bonvecchi (2004, p. 312-313), tanto em Levinas quanto em Blanchot o
transcendente ou a transcendência “es resultado de la búsqueda de un “más allá” que es, en realidad
un “más acá” de cualquier ser mundano, empezando por el mundo mismo [...]”.
84
“Infinito”) e, de outro lado, exige a nossa atenção às guerras, aos genocídios, ao
mundo da história, ao caráter do homem. Segundo as comentadoras das obras de
Levinas e de Blanchot, Gil e Bonvecchi (2004), devemos ter em conta que Levinas
liga a transcendência a linguagens incomensuráveis, como, por exemplo, ao hebreu,
intraduzível para o grego e para o pensamento ocidental. Através do discurso
ordinário do “Dito”, deve se manifestar, conforme a estratégia de Levinas, o Dizer”,
“la significación del uno para con el Otro anterior a las palabras” (GIL; BONVECCHI,
2004, p. 105).
Para as autoras, o conceito de totalidade em Levinas opõe-se ao conceito de
“Infinito” de maneira sui generis:
apunta a un “más allá” o “más acá” ubicado no en las afueras de la
Totalidad sino en su interior mismo; en el interior mismo de la historia y de la
política. Se vive en el interior de la Totalidad pero también en lo irreductible
a ella, en lo no abarcable por ella (GIL; BONVECCHI, 2004, p. 200).
O “para alémda totalidade se reflete no interior da experiência, da própria
totalidade e da história, ou seja, o “Infinito se dá na totalidade, na experiência
humana. Uma outra questão que aparece em Levinas como preocupação é a
seguinte: é possível pensar em categorias além da totalidade sem substituí-las pela
escatologia profética? Levinas não aceita nem a escatologia nem a profecia. Ele
quer sair do ser da ontologia, dar ao ser uma exterioridade radical, quer destruir a
morada do objetivo e do verdadeiro, uma exterioridade que não é negação, mas
lugar onde mora o desejo. Trata-se de uma situação de ambivalência em que não
existe nenhum deus. Não a existência imperativa da totalidade. Existe o
desconhecido, o “Infinito”, o desdizer de tudo, um vazio, a forma de ser múltipla das
coisas, em que o ser é tão ambivalente que se dissolve na liberdade. Perde-se aqui
a força para objetivar-se o ente. O ser da obra-de-arte, por exemplo, entra numa
85
forma de exterioridade estranha ao nosso pensamento, aniquilando tudo o que
possa ser presença. A arte deixa, então, de ser um fenômeno, e sua presença não
se resume em apresentação ou aparecimento, ou num movimento intencional que
tende a um preenchimento. Ela é presença do “Infinito”, é “ausência na margem do
nada. Foge sempre. Mas deixa o vazio, uma noite, um vestígio onde a sua
invisibilidade visível é Rosto [...]” (LEVINAS, 1967, p. 281).
A arte foi vítima por longo tempo dos projetos da totalidade como paradigma
da homogeneidade absoluta, ou seja, dos projetos que reivindicavam uma estratégia
de unificação das artes como experiência do ideal. Os projetos da totalidade
reivindicam nossa crença na possibilidade de fazer da realidade um universo
compacto, colocando nossa vida e as artes sob o signo da salvação. Se esse sonho
algum dia fez-se realidade, devemos lembrar que isso se deu através da imposição
de um poder totalitário que usava uma determinada arte para conter os impulsos dos
indivíduos. Este é um risco que correm as cnicas e as estratégias da arte
totalizadora: o fato de serem instrumentalizadas pelo poder. Reunir todos os
aspectos do mundo é uma busca da arte totalizadora, almejando a recriação e a
harmonização da realidade em seu conjunto, não permitindo a pluralidade, fixando o
indivíduo em uma verdade existencial determinada e excluindo os projetos que não
se encaixem na imagem ou na utopia que estabelece a totalidade. Pensar no
“Infinito é pensar na desconstrução de todas essas possibilidades, destruir os
fundamentos e apostar na ambigüidade. É pensar, por exemplo, que se o
conhecimento é luz, a arte é obscuridade, é “Infinito”, e nunca luz.
Para Fornoff (2004, p. 84-86), esse foi o sonho, por exemplo, de Wagner
14
,
que se manteve vivo até o início do século. Muitos artistas que vemos como
14
Wagner escreveu as obras A Arte e a Revolução (1849), A Obra-de-Arte do Futuro (1849) e A
Ópera e o Drama (1850-1851).
86
fundadores da estética moderna situam-se explicitamente como seguidores dessas
idéias, colocando-as em prática em seus projetos de transformação do mundo a
partir da arte. Kandinsky (1990), por exemplo, foi um deles. Seu conceito
mitodramático da obra-de-arte “é uma reinterpretação mítico-religiosa à luz das
doutrinas teosóficas ligadas ao projeto de uma aproximação sinestésica das artes
com a perspectiva espiritual de uma harmonia cósmica universal” (FORNOFF, 2004,
p. 86). As obras teatrais de Kandinsky (1990) estavam imbuídas do desejo de abrir o
espírito do observador ao conhecimento de relações inteligíveis e de prepará-lo para
a chegada de uma era espiritual que foi chamada pelo artista de época da grande
espiritualidade”. Numa arte destinada a essa missão utópica, ou seja, na
espiritualização da humanidade no reino sinestético da arte abstrata, acreditaram
igualmente Mondriam, Kasimir Malevich e Wagner.
Wagner pensou numa arte totalizadora, unificadora de todas as artes, tendo a
tragédia grega como modelo a fim de superar a fragmentação moderna. Essa
mitologia nasce principalmente na obra Parsival, que tinha como finalidade uma
totalidade estética, ideológica e social. Nas mãos do nacional socialismo, a utopia
wagneriana converteu-se num instrumento de poder e depois de 1945 transformou-
se num instrumento que serviu ao capitalismo. Wagner, em seu programa de
estética, nos escritos de Zúrich, desenvolveu uma concepção estética no intuito de
salvar a arte da decadência dos vínculos ideológicos e sociais, conseqüência do
enfraquecimento da visão religiosa do mundo e do capitalismo em ascensão que
originara um indivíduo individualista.
Diante da totalidade Levinas vai buscar uma outra experiência do sentido com
a qual podemos pensar tamm a arte. Para o filósofo, a experiência última de uma
relação está noutra parte, e não na síntese. Está no imediato do “frente-a-frente” na
87
relação com o que é “Rosto”, ao que não se abre para uma síntese de todo o
sentido. Não se trata de uma junção de sínteses, mas de uma junção de “frente-a-
frente”. Trata-se de uma questão, de um lado, que não nos confere o direito de falar
em uma fenomenologia do “Rosto” desde que esta descreva o que aparece. Porém,
de outro lado, não se trata também de descartar a percepção. A relação pode, sem
dúvida, ser dominada pela percepção, porém o que é “Rosto” não se reduz à
percepção.
O artista Kurt Schwitters
15
propôs um tipo de Gesamtkunstwerk que ilustra a
presente exposição, uma totalidade representacional que apontava a impossibilidade
de qualquer artista moderno abarcar a totalidade. Ele criou uma obra que é a própria
infinitude. Trata-se de colagens que “deveriam constituir imensas metáforas; os
objetos e as imagens que se associavam por contigüidade, entretanto, acabaram
afirmando sua disparidade e sua resistência anárquica e qualquer resolução
harmônica e significativa” (STEINER, 2003, p. 349). A obra era um continuum, pois
havia sempre um material novo para ser agregado a ela, que nunca seria totalmente
acabada como forma e nunca resolvida como busca. Nada nela era certeza, ela era
o mundo e, ao mesmo tempo, não. Era o Outro do mundo” em si mesma, era o
enigma do mundo. O processo artístico é o interminável, o incessante. A
efemeridade dessas obras, o seu desafio no tempo e no espaço por si
questionam a totalidade. É a obra infinitamente errante, sem nenhuma missão, que
inverte o sentido da comunicação e tudo o que a faz “Desejo” na não-
comunicabilidade. O Rosto” é, dessa forma, o lugar no qual reside a infinitude e a
ética para Levinas.
15
As colagens de Kurt Schwitters usavam detritos da vida cotidiana: bilhetes de bonde usados, fichas
de vestiário, apoio de copos, jornais, papéis de balas, barbantes, vidro e metal, rebarbas de madeira,
telas de arame. Incompleta por definição, a primeira Merzbau foi destruída num ataque aéreo em
Hannover, em 1943; a segunda versão se perdeu na Noruega; e uma terceira tentativa de recompor a
obra, na Inglaterra (1940), foi frustrada.
88
2.3 A metáfora do “Rosto” para Levinas
O humano só se oferece a uma relação que não é de poder.
Levinas
A idéia de “Rosto” tem fundamental importância no pensamento levinasiano
dentro de sua ética. A relação com o que é “Rosto” não está pressuposta na verdade
nem no logos da racionalidade. O conceito de Rosto” nasce originalmente no
pensamento levinasiano voltado para o “Outro”, o ser humano pensado em uma
filosofia da alteridade desenvolvida em meio ao conflito da Segunda Guerra Mundial
e à perseguição racista do nacional socialismo. Fazem eco em seus conceitos a
humilhação, a dor, a miséria e o silêncio de milhões de rostos nos campos nazistas
de extermínio. O conceito de “Rosto” passa a ser, em nossos dias, um grito de
solidariedade aos povos oprimidos, a homens, mulheres e crianças marginalizados
pelo preconceito. A ética de Levinas se desenvolve a partir da metáfora do “Rosto”.
O “Rosto” como “não matarás” não é uma abertura, não é um fenômeno, é ético, o
que nos faz dizer que Levinas é por excelência um pensador judeu para quem a
experiência do judaísmo é o princípio de seu pensamento. Ele toma para si a
experiência da segregação e quer fazê-la expressar-se em sua própria linguagem,
não na linguagem dos segregadores. Assim, Levinas expôs a experiência do “Outro”
a partir de uma análise do “Rosto”, estando frente a frente com sua corporeidade
única, com os gestos, numa sensibilidade imediata, impossível de se igualar a
nenhum decurso conhecido. Trata-se de uma experiência de “exterioridade” que
rompe com todos os pressupostos da ontologia e que aparece como “significância
mesma”.
89
Porém, devemos ter claro desde o início que a relação com o “Rosto” não se
resume ao estar frente a frente com uma forma plástica tal qual quando estamos
diante de um retrato. Mas do que isso, é uma relação que vai além. A questão para
Levinas é que o encontro com o “Rostonão acontece da mesma forma que com as
coisas, os entes no mundo. Quando nos relacionamos com o que é Rosto”, nos
relacionamos com um ente que não entra na abertura do ser, ou seja, não é a partir
do ser em geral que outrem vem ao nosso encontro. Estamos diante de uma outra
relação. Levinas (1967, p. 211) diz que “o Rosto não se assemelha de modo algum à
forma plástica, sempre já abandonada, traída pelo ser que revela como o mármore
de onde se ausentam os deuses que exibe”. O fisofo afirma que “no Rosto o
exprimido assiste à expressão, exprime a sua própria expressão, permanecendo
sempre mestre do sentido que comunica”, recusando-se à identificação e não
entrando no conhecido. Para Levinas, o “Rosto” é o Rosto” de outrem, de outro
homem que se manifesta com expressão infinita, como já vimos.
A relação com o “Rosto” no pensamento levinasiano dá-se de forma
paradoxal, pois é, ao mesmo tempo, uma relação com o absolutamente fraco, com o
que está absolutamente exposto, com o que está nu, com o que “está e pode
sofrer o supremo isolamento que se chama morte”. Por isso, no “Rosto” de outrem
sempre a morte e também a relação com o “não matarás”, essa intimação à
responsabilidade (LEVINAS, 1997, p. 144-145). O “não matarás” é um apelo para
que eu o permita que o “Outro” morra sozinho. o me preocupo com o que o
“Outroé em relação a mim, ele é de imediato aquele por quem eu sou responsável.
O “Rosto” está exposto, ameaçado em primeiro plano pela sua própria nudez, a qual
parece nos convidar para um ato de violência. Porém, faz parte de sua essência
carregar essa nudez antagônica, que ao mesmo tempo nos proíbe tal ato. É isso que
90
faz do “Rosto” uma alteridade ética. Nosso contato com o “Rostoé ético. Ele “é o
pobre, por que posso tudo e a quem tudo devo” (LEVINAS, 1993b, p. 80). O “Rosto”
é a manifestação “daquilo que se pode apresentar tão diretamente a um “Eu” e,
dessa forma, tão exteriormente” (LEVINAS, 1967, p. 21). Mas o “Rosto” tem ainda
outro paradoxo: ele é a simultaneidade entre a materialidade (corpo sensível) e o
que o transcende. Levinas importância crucial ao sensível, embora este parece
se diluir na transcendência do “Rosto”. O “Rosto” é, portanto, a face do “Outro”, mas
o que é “Rosto” se define na fissura entre o corpo e os seus gestos”, o “seu olhar”.
Digamos que a sombra desse corpo é infinitamente um mistério para o “Mesmo”.
Algo se faz enigma não porque esteja por detrás de seu ser, mas porque o “Infinito”
é inerência radical do fato de ser outrem. Assim, o “Rosto” não é o que coincide com
o seu original (o corpo), com o que eu vejo do “Outro” quando estou face a face com
ele. A relação com o “Rostolevinasiano promove o conceito de “frente-a-frente”,
que vai além de estar próximo do “Outro”. Dessa forma, fica impossível falar do
“Outroa partir do que eu vejo. Essa é, segundo Levinas, a estrutura do que se faz
um “Rosto” diante de nós. Assim é o meu próximo e assim pode ser a questão da
semelhança com a realidade da arte, da qual trataremos mais adiante.
Onde podemos vislumbrar o conceito de “Rosto” em Blanchot, ou como
Blanchot manifesta-se sobre o “Outro”? Quem é esse Outro” em Blanchot que se
faz “Rosto”? O “Outro” como Rosto” para Blanchot se manifesta na linguagem, e
como linguagem, na excentricidade da escrita, que nunca se faz em seu conjunto e
que acontece como fragmento. A literatura e, digamos, a arte em geral são para
Blanchot o Rosto do Outro”, ou porque elas próprias são o “Outro do mundo”, ou
porque dizem com vestígios a passagem do Outro” como ser humano no mundo,
mas que acontecem na simultaneidade do fato de serem arte. As artes são esse
91
“sem-lugar da comunicação porque nunca se fazem presentes, porque estão
sempre ausentes da luz. É a passividade do ser, a sua economia, que faz da morte
uma espera infinita.
O Ocidente, segundo Levinas, tem passado em nosso século pela amarga
experiência da impotência de pensar sobre a existência, do fracasso de triunfar
sobre o medo da morte. Esse medo é explicado por Levinas através do hitlerismo
(do mal). O sujeito assimilou a violência diante do “Rosto do Outro”. Dessa forma,
não se trata de dar um passo à frente ou um passo para trás, mas a saída é dar um
passo à margem, achar uma saída para a transcendência como resposta ao
“Infinito”, que, a partir do “Rosto”, torna-se significância (LEVINAS, 1993, p. 23-25).
A relação ética como palavra, como discurso, está além de qualquer sentido.
Assim, a relão com o “Rosto” afirma como idéia central a “assimetria da
intersubjetividade”, em que acontece uma relação com o terceiro termo, que é a
Justiça. Tal idéia fica mais bem ilustrada com a fala do personagem de Dostoiévski
(apud LEVINAS, 1997, p. 145), quando ele diz: “somos todos culpados de tudo e de
todos, e eu mais que todos os outros”. A idéia de “Rosto”, como vemos, vai muito
além da sensibilidade pura, embora tal sensibilidade seja fundamental em todo o
pensamento levinasiano, mesmo sendo a alteridade do “Rosto” transcendência, ou
seja, conceito que aponta para uma realidade transcendente e que nos conduz a
uma significação inapreensível. O Rosto” se constitui em presença imediata e
vivente, é pura significação e exterioridade. Essa exterioridade é a nudez com a qual
ele se oferece, e sua significação é intrínseca a ele, que carrega consigo um sentido
antes mesmo de lhe conferirmos.
Na presença do “Rosto” o que aflora é a inquietude, a noite, o vestígio, a
invisibilidade do visível, o “Infinito”. Na presença do Rosto” não estamos
92
inteiramente na “abertura” do ser, pois o imediato não é objeto de compreensão que
faz do “Rosto” um enigma. Contudo, o podemos negar que a relação com o
“Rosto” pode ser dada pela percepção, porém, o que é especificamenteRosto” “é o
que não se reduz à percepção”. Não sendo objeto de compreensão, o imediato “é a
presença infinita daquilo que permanece sempre infinitamente outra em sua
presença, presença do outro em sua alteridade: não-presença” (BLANCHOT, 2001,
p. 80). A forma de relação com o imediato é a de uma relação que escapa ao poder,
é uma relação com a impossibilidade.
Para Levinas, o Rosto” se como Ousia e se apresenta como palavra,
como escrita, a qual se configura como a manifestação do Outro”. A escrita é o
“Outro”, é o “Rosto”. É a manifestação de outrem, inapreensível e irredutível a
qualquer idéia de verdade e autenticidade. Podemos então dizer, conforme Blanchot
(2001, p. 33), que na palavra (ampliado esse pensamento às artes em geral), o
“incomensurável se faz medida, e a irrelação, relação”. Outrem se “expressa e, nesta
palavra ele se propõe como outro” (BLANCHOT, 2001, p. 103). Na predominância da
lei do Mesmo”, o homem e as coisas perdem o “Rosto” e a sua linguagem. Não
estamos falando de uma linguagem qualquer, mas daquela diante da palavra pela
qual entramos em relação com o “Outro”, em que “outrem apresenta-se de frente,
subtraído a meus poderes, presente à sua palavra que é a sua presença e, nesta
presença, Infinito”, assim ensinando-me e me ensinando, aquilo que me ultrapassa
absolutamente: o pensamento do Infinito” (BLANCHOT, 2001, p. 104). O “Outro”
quando nos fala, fala da infinita distância que nos separa, e suas palavras anunciam
esse Infinito”. As palavras e as imagens (não qualquer imagem) anunciam esse
“Infinitoe, como diz Levinas, o um discurso com Deus, e não um discurso entre
iguais. Para Blanchot, os homens, quando falam, fazem a experiência da união com
93
a estranheza e colocam-se em jogo com o Neutro”. Assim, para Levinas, o “Rosto”
é originariamente discurso. Não relação com o “Rosto” sem linguagem. Levinas
quebra a tradição em que a palavra faz parte de um mecanismo da relação entre
sujeito e fenômeno, ou seja, entre a significação e a manifestação que é dada à
consciência.
A palavra à qual se referem Blanchot e Levinas é aquela oriunda da “fala
falante”, como aponta Merleau-Ponty na obra A Prosa do Mundo (2002), em que a
linguagem parece vinculada de uma fala que não pode interromper-se porque ela
não fala, ela simplesmente é. Ela é a “fala falante” em oposição à “fala falada”. Para
ela, simplesmente ser, o artista escolhe as palavras conforme certo segredo, pois,
como observa Merleau-Ponty (2002, p. 73-74), elas deixam de estar onde estão e
abrem um buraco no pleno do mundo, tornam-se “como as fontes ou as florestas, o
lugar de aparição dos espíritos, estão ali apenas como o mínimo de matéria que um
sentido precisava para se manifestar”. Essas palavras se constituem num excesso, e
é pelo excesso que vemos Artaud (1999) dizer que suas palavras pareciam ser
constantemente roubadas e que algo furtivo lhe tirava as palavras encontradas, a
urgência do acontecer da palavra lhe roubava as palavras encontradas. Blanchot
(1987, p. 291) observa que o escritor escreve sem descanso e que, ao terminar, está
condenado ao indelével, pois o que ele não fez está feito”; o que ele não escreveu
está escrito. Pode-se dizer que isso acontece também com o pintor, que mantém o
mundo em suspenso, faz uma ciência secreta repleta de enigmas (MERLEAU-
PONTY, 2004).
A palavra é parte do evento originário e como linguagem é parte essencial do
evento da transcendência do “Rosto”. A palavra é carne, é gesto. A pintura é carne.
A palavra e a pintura o revelantes e, ao mesmo tempo, reveladas, pois são parte
94
do mesmo evento do ser, que acontece sem correlação. Daí surge uma questão que
se torna central no pensamento levinasiano nessa relação originária em que o
“Rosto” é originariamente linguagem (relação entre o “Eu” e o “Outro”): existe um
espaço que é assimétrico, o que vai impedir a correlão entre a palavra revelada e
o que ela pode significar. O “Rosto” é sempre falante, é a linguagem do impossível.
A referida questão pode ser referência para refletirmos sobre as formas plásticas da
arte (para o objeto artístico). O Rosto” é uma forma falante, ou seja, está expresso
na linguagem do impossível e, se pensarmos nas artes plásticas, expresso nas
formas do impossível.
Levinas e Blanchot o pensaram essas questões voltadas para as artes
visuais. Em Blanchot, toda reflexão está voltada basicamente para a palavra bem
como em Levinas, embora este último tenha dedicado um texto à imagem, chamado
A Realidade e sua Sombra. No pensamento levinasiano, temos a palavra do “Outro”
pensada a partir do próximo, e em Blanchot, temos a palavra como linguagem
poética. Segundo Eshel (2001, p. 168), isso justificar-se-ia em muitos autores judeus
e alemães-judaicos, os quais conceberam a forma estética da cultura judaica
baseada no livro, e o no visual. Talvez essa fosse uma justificativa plausível para
o fato de Levinas não ter dispensado com maior atenção a questão do “Rostopara
as artes visuais. O filósofo recorreu à linguagem para pensar a sua filosofia e
escolheu a literatura para exemplificá-la. Por outro lado, não podemos esquecer que
na arte expressionista do início do século, período da Segunda Guerra Mundial, os
artistas judeu-lituanos destacaram-se justamente nas artes visuais e fizeram dessa
arte a expressão do “Infinito”. Levinas certamente não desconhecia tal fato. A arte
expressionista, forte manifestação no período, foi a própria relação de infinitude
levinasiana e blanchotiana, tanto que o nacional-socialismo a rejeitou como arte
95
degenerada, expressividade da impossibilidade de ser arte, dada a sua enorme
resistência à interpretação e à contemplação. Como contemplar a dor humana? Os
artistas judeus expressionistas, mais do que todos os outros artistas da mesma
época, souberam inferir à arte essa dimensão de “Rostoque contemporaneamente
Levinas e Blanchot argumentam para o pensamento filosófico e para a palavra como
literatura.
Tais artistas dessacralizaram a arte e fizeram dela o próprio “Infinito”. Como
afirma Zevi (2002, p. 10),
o judaísmo na arte aposta no anticlássico, na desestruturação
expressionista da forma, rejeita os fetiches ideológicos da proporção áurea
e celebra a relatividade; desmente as leis autoritárias do belo e opta pela
ilegalidade e pela falta de regras existente na realidade.
Assim fizeram Segal, Chagal, Soutine, Mendelsohn e Kafka, apenas para citar
alguns. A arte é degenerada porque é infinita. Que dor infinita é essa que eles
mostram? Como dar significado à angústia, esse escavar da memória, essa dor
infinita que se diz incessantemente nas obras desses artistas? Essas obras são o
“absolutamente Outro”, o incomensurável da dor, o “Outro” da dor, tão intenso e
incessante que se torna abismo. A experiência do “absolutamente Outro” na obra de
Levinas pode ser, ou é, a própria experiência extrema do judaísmo nos campos
nazistas.
Aproximamo-nos do “absolutamente Outro” pelo Desejo”. Trata-se de um
“Desejo” que é sem satisfação e sem retorno, pois esse “Rosto” que se oferece sem
resistência faz do nosso poder impossibilidade. Dessa maneira, pela experncia
com o “Rosto” temos uma experiência com o improvável, com o que
escapa à prova não pela ausência temporária de uma demonstração, mas
porque nunca aparece onde se deve provar [...]. O improvável não é muito
pouco provável. Ele é infinitamente mais que o mais provável: ‘quer dizer
96
aquilo que é’. No entanto, aquilo que é permanece o improvável
(BLANCHOT, 2001, p. 84).
Temos na idéia de “Rosto” a presença do próprio exterior, a própria
exterioridade, o inapreensível. É uma desigualdade de ordem ética, pois respeito no
“Outro o que ele tem de diferente. Isso implica em um “não-poder”. Não posso
reduzi-lo ao que eu quero. Já não decido por ele.
Assim, como um sentido para ele”, no “Rosto” está o vestígio do
inominável, do absolutamente Outro”, do não contextualizável, do que escapa a
toda economia ou às convenções para habitar um lugar fixo, traçando dessa
maneira uma relação além da verdade, uma relação de responsabilidade (LEVINAS,
1993, p. 33). Se desejarmos ter uma relação altruísta com o “Outro”, segundo
Levinas, essa relação está na escolha do “não matarás”, não me terás por meio, não
reduzirás a minha nudez aos teus caprichos e a teus esquemas de apropriação.
O erotismo e a filialidade (paternidade) são algumas das figuras de
socialidade que Levinas apresenta diante do “Rosto”. No “Rosto” tudo fala. Ele é o
que se expõe, é pura exterioridade, mas também é o que tudo esconde. Ele é o que
primeiro se apresenta. No “frente-a-frente”, ele está tanto para a carícia como para a
bofetada. Ele é o próprio “Infinito”, é epifania (a expressão que o pode ser
tematizada) que significa; não é apenas uma fachada onde estão situados o nariz,
os olhos, a boca, mas a dimensão infinita do Outro”; é profunda provocação e nos
faz caminhar para o intangível. A manifestação do Rosto” é visitação, é desejo,
revelação do “absolutamente Outro” e relação ética. Entendido como manifestação
ética, devemos dizer que o “Rosto” não tem nada de perceptivo; diríamos que ele vai
além. Desse modo, podemos resumir tudo dizendo que a manifestação do “Outro”
não é um fenômeno, não é uma identificação nem oferta de dados, mas um lugar
97
onde o que é inapreensível se mostra (o visível do invisível), sendo a sua epifania
“uma visitação enigmática do outro modo de ser” (MELO, 2003, p. 110). Se em
Heidegger a relação com o “Outro” é pensada no que diz respeito ao ser, Levinas vai
nos conduzir a uma experiência radical da distância infinita que entre o “Eu” e o
“Outro”. A relação com o “Outro” é uma relação com “o alto”, ou seja, todo discurso
forte é um discurso com Deus, e não uma conversação com iguais (LEVINAS,
2000a). O mesmo vale para o “Outro”, não o simétrico e o igual.
A filialidade implica numa relação com a dimensão do tempo, configurada
como relação com a alteridade inatingível. Não se trata de uma relação de
conhecimento e que realiza autenticamente a saída do ser. É uma relação de
mistério em que outrem é radicalmente “Outro”
e em que, apesar de tudo é, de alguma maneira, eu; o eu do pai tem a ver
com uma alteridade que é sua, sem ser possessão nem propriedade [...]. A
paternidade é uma relação com um estranho que sendo completamente
outro, é eu, [...] relação do eu com um eu-mesmo que, contudo lhe é
estranho. (LEVINAS, 2000b, p. 62-63)
2.4 A ética do “Outro” em Levinas
Levinas realiza uma ética centrada na responsabilidade para com o “Outro”
como “Rosto”. Não determina nem sugere regras ou normas, tampouco sugere
convenções para essa ética, mas crê que ela deve basear-se em algum tipo de
compromisso existencial básico que além dos interesses teóricos de qualquer
definição de justiça ou de qualquer código ético socialmente instituído. Dessa forma,
sem regras e sem códigos a ética levinasiana é chamada de ética sem ética”.
Levinas denomina a obrigão fundamental, na qual toda ética deveria estar
centrada, de responsabilidade infinita que não se reduz a normas morais. Trata-se
de uma ética sobre a qual o “Outro” tem prioridade e que antes era privilégio do “Eu”.
98
Temos a ética como morada do Outro”, um lugar de resguardo do “Outro”. É uma
ética para aqueles que não se escondem atrás das leis, uma ética para “santos”.
Bauman (2000, p. 63-64) explica que, em Levinas, o padrão pelo qual medimos
nossas ações é o padrão da santidade, visto que é um padrão acima da medida da
decência moral, um padrão do impossível, do inatingível. O padrão dos santos que
fazem as coisas está acima da “mera decência” ou do chamado “dever”. A
responsabilidade aqui é a impossibilidade de não ser responsável pelo “Outro”. A
responsabilidade é o que nos faz indivíduos, pois os deveres padronizam nossas
ações e nos tornam iguais. Segundo Gil e Bonvecchi (2004, p. 171), para Levinas
la ética, esa ética que no es ética, es la región del delirio de nuestra cultura.
La relación con el Otro es una semilla de locura’ en nuestra alma, un
abandono de las certezas de yo. Su ética ‘para el Otroes justo por ello ‘por
nada
.
Trata-se de uma ética não comprometida, desinteressada, uma relação de
ambigüidade com o “Outro” na qual não existe fundamento, mas abismo.
Levinas parte de um mundo vivido em que estabelecemos relações, que aqui
pesam mais do que qualquer coisa referente à presença do “Outro”, e não à do “Eu”.
Assim, tal questão instalada numa sociedade vivida que pensa a liberdade como um
segmento social, base da dominação de uns sobre os outros, a ética levinasiana soa
como uma ética do santo”, mesmo que não fundamente a moral na religião e na
tradição, e que não pergunte pelos princípios legitimadores das normas
convencionais. A questão é que Levinas vai diretamente ao “Outro”, esse lugar no
qual as interrogações sobre a moral ficam sem respostas, pois o “Outro” é esse
“Infinito”, e a ética que ele exige é a ética do “Infinito”. Ou seja, é ético o poder
chegar ao Outro” e, portanto, é ética a impossibilidade de ditar normas para o
“Outro”. As normas são feitas sempre pelo “Mesmo” e visam à coletividade, e não ao
99
“Outrocomo uma singularidade. Não estamos diante de uma ética que nos propõe
soluções evidentes para nossos dilemas de convivência social, pois a experiência de
Levinas diante da guerra o fez negar o universalismo ético, que com a guerra
aparece como repressor da multiplicidade das diferenças que constituem o homem
como “ser-no-mundo”.
Para Levinas, o “Rosto do Outro” é encontrado numa relação assimétrica. O
“Rosto”, que transcende o corpo (a corporeidade) e é responsável pela
desigualdade, assume agora a função ética; ele é ético por essência. Assim, o
“Rosto” não concede uma ética para uma sociedade, mas para um “Eu”. O Rosto”
diz a esse “Eu” que não se trata de uma ética guiada pelo interesse que o Outro”
possa me despertar, mas pelo “Outro” como sujeito livre e “fim em si mesmo”. Trata-
se, então, de confrontar o Outro” como “Rosto”, e o como pessoa, desde que,
para Levinas, tudo o que o “Outro” é está ausente, é “Rosto” (lugar do Infinito”). O
“Rosto” é ético por essência, pois em sua nudez, na sua fragilidade, ele se opõe aos
poderes do Mesmo”, daí que, se ele não fosse essa nudez absoluta, poderia nos
ditar normas e deixaria de ser “Rosto”. É, portanto, sua nudez absoluta que o faz
ético. Sua fraqueza nos faz considerá-lo ético e reconhecê-lo como “Rosto”, ao qual
devemos respeitabilidade. Já não precisamos de regras: basta-nos o “Rosto do
Outro” como reconhecimento incondicional. O “Rosto” traz consigo a
responsabilidade e estabelece a ética. Isso é, para Levinas, a única fundamentação
que a ética pode ter.
O “Eu”, por sua vez, segundo Levinas, só vai nascer à medida que se estende
para o “Outro”. A subjetividade é o “Outro”. assim o “Eu” se faz singular, que a
responsabilidade pelo “Outro” é intransferível: ninguém substitui ninguém. A
identidade do “Eu” está, então, na responsabilidade, a qual não deriva de qualquer
100
outra coisa senão do “Rosto do Outro". Trata-se de reconhecer a responsabilidade
diante do “Rosto” como ética, pois o “Rosto” não traz uma lista de regras e de
normas, apenas nos aparece comoInfinito”, não gerando significado e significações
como as regras, mas vindo a nós apenas na sua “insignificância” (nudez). A ligação
com o “Outro” é revelada como responsabilidade, não como neutralidade ou
aceitação cognitiva da similaridade de condição nem através de uma desdenhosa
tolerância (se ele é assim, que seja, pois eu jamais seria assim). É pelo direito do
“Outro que eu coloco o meu próprio direito. Ser responsável pelo “Outro” e ser
responsável por si mesmo vêm a ser a mesma coisa. Trata-se de escolher uma
atitude indivisível que pode ter muitos nomes, como empatia ou camaradagem, mas
nunca poderemos dizer que essa opção decorre de uma regra de poder, uma ordem
de Deus ou preceito legal, uma norma empírica que busca a verdade (BAUMAN,
1999, p. 248-249).
Levinas (2000b, p. 87) entende a responsabilidade como “responsabilidade
por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz, ou
não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado
como rosto”. Por isso, o “Outro” não está próximo de nós no espaço, mas está
essencialmente próximo quando nos tornamos responsáveis por ele. Assim, ele não
se assemelha à relação intencional que nos liga, no conhecimento, ao
objeto a qualquer objeto, ainda que fosse um objeto humano. A
proximidade não se reduz a esta intencionalidade; em particular, não se
reduz ao fato de eu conhecer o outro (LEVINAS, 2000b, p. 89).
A proximidade aqui é a que está vinculada à responsabilidade dizer: eis-me
aqui. O eis-me aqui quer dizer que somos responsáveis pelo “Outro” sem esperar
nada dele, e justamente por isso somos sujeitos a outrem. Diz Levinas (2000a, p.
145): “Sou eu que suporto tudo”, e cita a frase de Dostoiévski na obra Os Irmãos
101
Karamazov: Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do
que os outros”. Assim, somos responsáveis de uma responsabilidade total que
responde por todos os outros, cada um de nós tem uma responsabilidade a mais do
que todos os outros.
Levinas aprendeu com a Segunda Guerra Mundial que se nossa
responsabilidade ética se estende a todos os homens”, essa responsabilidade
passa por o fazer do “Outro” um “Próprio”. Essa questão como ética, a nosso ver,
pode estender-se por todos os âmbitos da vida humana, pela arte, pelos costumes,
pelo mundo animal, pela natureza. A guerra foi o extremo do corpo-a-corpo, foi onde
o Outro” na condição de ser humano passou a se perceber radicalmente vulnerável
à máquina moderna da morte. O extermínio e as experiências médicas nazistas
fizeram do corpo humano o suporte por excelência da guerra. O corpo, o olhar, as
pernas que andavam sem direção, as mãos que imploravam comida marcaram a dor
do Outro”. Era o corpo que se fazia o gesto encarnado” da dor do “Outro” que fez
com que Levinas tirasse a ética do pedestal das leis, das regras e do pensamento
para implantá-la no “imediatodo sensível, ou seja, do que escapa completamente
ao nosso poder. Segundo Levinas (2000c, p. 43), sua referência à ética está em
contraposição ao dogma primeiro da ortodoxia heideggeriana, ou seja, a
anterioridade do ser em relação ao ente. Levinas (2000c, p. 43) diz que:
Y sin embargo, la ética ya no sustituye lo falso por lo verdadero, puesto que
sitúa el primer aliento del hombre no en la luz del ser, sino en la relación con
el ente, anterior a la tematización de este ente y una relación tal en la que
el ente no deviene en mi objeto es precisamente la justicia.
Assim, a ética levinasiana é uma ética sensível, ou seja, ela não acontece na
consciência, não é intencional, mas age no sensível do corpo-a-corpo, no “frente-a-
frente”, na exposição corpórea diante do “Outro”. A experiência subjetiva articula-se
102
na relação de responsabilidade, ou melhor, na relação que responde ao “Outro”. O
sujeito sou eu e nada mais, não um conceito genérico ou uma classe de seres
humanos, um ego, uma coisa autoconsciente ou pensante, mas um “Eu” mesmo. A
subjetividade não é o Eu”, mas “Eu”. o é o ego cogito, mas o eis-me aqui,
expressão com a qual o profeta se apresenta diante de Deus. Tudo isso quer dizer
que a ética é um assunto totalmente meu, e não um assunto de um “Eu” hipotético,
impessoal ou universal que se pode discorrer mediante imperativos possíveis.
Levinas prega o respeito incondicional ao “Outro”. A filosofia para Levinas não inicia
no olhar ao céu estrelado, como assinala Aristóteles, mas no olhar aos olhos do
“Outro”, lugar onde o “Infinito” é mais palpável e onde a curiosidade jamais será
saciada.
2.5 A questão do ser: Levinas, Blanchot e Heidegger
O início de nossa exposição está marcado pela afirmação da importância da
questão do ser para Levinas e para Blanchot como um ser que se relaciona
diferentemente da tradição ocidental. Essa crítica es ligada especialmente ao
pensamento heideggeriano sobre o ser, isto é, à ontologia. Dessa forma, parece-nos
interessante refletir sobre o que distancia esses pensadores em relação ao
pensamento do ser, o com a finalidade de confrontá-los, mas de adquirir através
das relações uma maior compreensão sobre os pensamentos levinasiano e
blanchotiano, que é o que nos interessa na presente exposição.
Heidegger foi o ponto de partida de Levinas, o qual encontrou neste pensador
a justificativa inicial para superar Husserl. Assim, próximos e distantes parece ser o
que vai caracterizar os conceitos de Levinas e de Heidegger, dois pensadores que
103
perturbam o pensamento ocidental. Em Ética e Infinito, Levinas (2000b) expõe sua a
admiração por Sein und Zeit, de Heidegger, livro que qualifica como um dos mais
belos da história da Filosofia. Levinas admira Heidegger em seu estudo sobre a
angústia, e dele parte o seu pensamento. Em Heidegger, a angústia deixa de ser um
estudo banal, um movimento sem causa, sem objeto, como era antes no
pensamento da Filosofia. Para Heidegger, o fato de a angústia existir sem objeto é o
que se mostra verdadeiramente significativo. No pensamento heideggeriano não se
tem acesso ao “Nada” por uma série de etapas teóricas, mas pela angústia. Para
Levinas (2000b, p. 33), são as noções heideggerianas de finitude, do “estar-aí”, do
“ser-para-a-morte”, etc., que permanecem mesmo se nos libertarmos dos rigores
sistemáticos desse pensamento. Fica-se marcado pelo próprio estilo das análises de
Sein und Zeit, pelos “pontos cardeais” a que se refere a “analítica existencial”. Diz
Levinas: “Penso que um homem que, no século XX, começa a filosofar não pode
deixar de ter atravessado a filosofia de Heidegger mesmo para dela sair.” Levinas foi
fiel a esse pensamento, foi um grande leitor de Heidegger para posteriormente dele
distanciar-se. Assim, a questão do ser é primordial em Heidegger, pois, como diz
Levinas, foi através deste filósofo que a palavra ser revelou a sua “versatilidade”,
desde que habitualmente falamos dessa palavra como se fosse um substantivo,
embora seja por excelência um verbo. Heidegger, segundo Levinas (2000b, p. 30),
deu à palavra o sentido de acontecimento, como se tudo o que existe se “ocupasse
em estar a ser”, “fizesse uma profissão de ser”. Assim, “foi a essa sonoridade verbal
que Heidegger nos habituou”. A ontologia tornou-se a compreensão do verbo “ser”.
Na busca da verdade do ser, Heidegger refuta a idéia da verdade como estrutura
estável e a entende como evento no mostrar-se e ocultar-se do ser. Considerando-
se o fato de a verdade se dar na abertura dentro da qual o mundo se dá às
104
humanidades históricas, podemos dizer que Heidegger modificou profundamente a
concepção de verdade. A verdade não se mais como na metafísica clássica (o
ontos on eterno e imutável de Platão), mas se na “meia-luz. O “pôr-em-obra”
poético é esse acontecer da “meia-luz” (lichtung) ou um jogo da clareira e da
obscuridade (jogo entre a terra e o mundo), lugar onde se o desocultamento da
verdade. Levinas e Blanchot vão optar pela inversão do êxito do jogo sugerido por
Heidegger e acolher a obscuridade radical. É a partir dessa obscuridade que Levinas
e Blanchot abordam o ser como um absolutamente Outro”. Na obscuridade
“murmura” o indelével, o inapreensível.
Heidegger faz um retorno aos pré-socráticos para perguntar pelo
conhecimento, pela verdade como alétheia, ou seja, como desvelamento, que ele
considera mais originário que a verdade no sentido da veritas. Diferentemente da
metafísica clássica, o conhecimento deixa de ser pensado como adequação entre o
ser e a idéia, ao passo que a iia era dada como fundamento de toda realidade. A
idéia é o ser do ente, o que demarca a especificidade de todo ente em particular. A
idéia é o ser e se confunde com o ente no pensamento metafísico que influenciou
toda a história da filosofia ocidental até Heidegger. A partir de Heidegger, temos,
fruto de seu pensamento, uma distinção entre aquilo que existe (o ente) e o ser do
ente. Heidegger acusa a metafísica de interrogar apenas o ente e não se voltar para
o ser. “O ser não é pensado em sua essência desveladora, isto é, em sua verdade”,
afirma Heidegger (1991, p. 55). Assim, ao buscar a verdade mesma” do ser,
Heidegger pensa em superar a metafísica. Buscar a verdade do ser e desocultá-lo é
a busca de Heidegger.
Dessa forma, segundo Heidegger, faz-se necessário um espaço de abertura a
fim de que o ente apareça tal como é, espaço este no qual o ser se e se desvela
105
no aparecer dos entes particulares, sem deixar de mostrar as possibilidades
inesgotáveis de ser que não se limita a nenhuma determinação particular. Trata-se
de dizer que o desvelamento, o desocultamento, a mostração, o acontecimento do
ser garantem o inacabável dar-se do ser, fazendo aparecer o ente na sua verdade.
O “não aparecer” do ser, ou o “não desvelamento” (HEIDEGGER 1991, p. 131), essa
face obscura do ser, define-se no pensamento heideggeriano como uma “não-
verdade original” ou “não essência original da verdade”, que o filósofo vai tratar
como mistério. Porém, tais termos o significam um traço de degradação desde
que a não-verdade, essa zona de obscuridade, é parte inerente do jogo da verdade
vislumbrado na filosofia heideggeriana, em que o desvelamento é pensado a partir
da verdade justamente como desvelamento dessa face obscura. Dessa forma, a
não-verdade pertence à essência mesma” da verdade. É, então, nessa “não-
verdade” heideggeriana que Levinas vai concentrar os seus esforços para mostrar
que há nela uma verdade de um outro “modo de ser” que se funda na resistência, na
impossibilidade de receber luz. A “não-verdade” é o Outro, esse que se faz verdade
outra na resistência de se permitir como posse. Levinas e Blanchot fazem do
mistério a morada de suas reflexões, enquadrando a obra-de-arte como mistério,
como face absolutamente obscura ou “essência esquecida”.
Para Heidegger, a experiência do ser como desocultação é uma experiência
próxima do poetar, que é a experiência da relação com a própria abertura do ser. O
poetar é a mostração do ser, que se revela no jogo do claro e escuro. O ser,
segundo Heidegger, pode ser trazido à luz, porém não pode ser aprisionado por
nenhuma lógica exclusivista. O significado do ser, dessa maneira, torna-se possível
através do desvelamento, conforme aponta Heidegger, o que não significa que sob o
ser incida uma luz constante. O ser se mostra e se esconde, mostrando-se sempre
106
com novas faces, revelando-se no que ele tem de dinâmico. O ser estaria, então,
entre a verdade plena (a luz) e a não-verdade, esse espaço obscuro, escondido, que
se faz verdade essencial à medida que se desvela. A concepção de verdade
heideggeriana vai contra a concepção de verdade com estrutura estável. Ao
entender a verdade como evento, Heidegger modifica a essência de verdade,
entendendo-a como atrelada à não-verdade. Porém, Levinas (2000a) entende que
mesmo que parcialmente, a verdade heideggeriana ainda está exposta à luz.
Levinas não prevê a luz para o ser e, portanto, não vislumbra a verdade. O ser
levinasiano não sabe de si nem de sua verdade, pois é “o outro que o ser”, talvez um
gênero oposto ao ser, ou melhor, trata-se de passar ao “outro que o ser” de outro
modo que ser (LEVINAS, 2003, p. 45-46). Passar não significa morte, mas o vazio
que se abre e faz reinar o surdo e anônimo ruído do Há”, ou essa diferença mais
além que separa o ser e o “Nada”.
Blanchot e Levinas empreendem uma inversão no pensamento
heideggeriano. Revelar para Blanchot é tirar o u, expor à visão algo que não se
aprecia. Ao se referir à palavra, Blanchot não pensa em uma palavra que se revele
(como revelação e acontecimento), mas em uma palavra cujo modo de manifestação
não seja da ordem do “desvelamento-encobrimento”, uma palavra desnuda que, ao
contrário, encobre algo totalmente, de maneira que não cobre nem descobre. Trata-
se de uma palavra infinita, “absolutamente Outra”, uma palavra estrangeira que não
se à luz, mas que se aninha na obscuridade. É a palavra dos oráculos de Delfos,
que são oráculos por signos, mossas e incisões no texto das coisas (BLANCHOT,
2001, p. 69-71).
Em Heidegger, o campo aberto à possibilidade é o campo aberto pelo ser,
sendo a compreensão o modo essencial da possibilidade. Blanchot pensa em uma
107
outra relação que escape ao movimento pelo qual o mundo o ra de se realizar,
que escape ao âmbito da possibilidade. A impossibilidade, segundo Blanchot, é o
próprio ser, é o poder soberano de negar o ser. A experiência tanto em Levinas
como em Blanchot torna-se experiência com a obscuridade (com o ser ausente), e
não com a clareira, uma experiência que “ouve” as vozes que vêm de fora do ser
heideggeriano. Para ambos, é somente na impossibilidade da luz que temos o ser
como murmúrio”. A possibilidade da luz significa, aqui, a morte do ser. A
necessidade da clareira que brinca com o escuro é um jogo feito pela possibilidade
para fazer aparecer o ser e, portanto, para Blanchot (2001, p. 92), é um combate
contra o ser”. Assim, o ser não se entrega a nenhuma ontologia, não se entrega ao
jogo do claro e escuro. Trata-se de uma solução para o receio de que se afirme esta
outra experiência: a do “Neutro”. Estamos na economia geral do ser, ou seja, o ser
nega-se a se mostrar. Essa é para Levinas e Blanchot a questão das questões,
aquela que escapa a qualquer questionamento do discurso. Por exemplo, no “Há”
levinasiano (que é chamado também de “terceiro termo”) não existe generosidade
como no es gibt”, o “há” alemão. No es gibt o verbo geben, que significa dar
(LEVINAS, 2000b, p. 39). O “Há” de Levinas é impessoal (como chove), não é um
acontecimento do ser, mas também não se pode dizer que ele seja o “Nada” (ainda
que não exista nada). O “Há” é uma espécie de metáfora, em Levinas, para essa
economia geral do ser. Para Blanchot, o “Há” é o desastre, a impossibilidade, o que
não é o ser nem o “Nada”
16
.
16
Em 1946, a obra de Levinas Da Existência ao Existente deixa claro que o nada puro da angústia de
Heidegger não constitui o “Há”. “Por el contrario, el horror es horror del ser, miedo de ser, ser presa
de algo que no es un “algo”. Em outra obra de Levinas, De Otro Modo de ser o Más Allá de la
Esencia, vemos não só o fim da consciência objetivante e da intencionalidade, bem como um “Há
sem relação com o ser-em-si” das primeiras páginas do Ser e o Nada, Sartre, esse ser que Sartre
distingue e contrapõe ao ser da consciência (GIL; BONVECCHI, 2004, p. 53).
108
Em Heidegger, é em função de o homem entender o ser que ele se interessa
pela ontologia. Dessa forma, é no homem que se dá a compreensão do ser. Na
própria existência do homem (Dasein) é que se a transformação, a revelação do
ser. Assim, ao estudarmos a compreensão do ser, estamos elaborando um estudo
do modo de ser do homem, de como ele atua no mundo da sua existência. Para
Heidegger, compreender o ser é inquietar-se com a própria existência humana e dar
sentido a ela.
É por concordar com Heidegger, no sentido de que pensar o ser é pensar a
existência humana, que Levinas vai se opor à forma com que este vai se referir ao
ser. Pensar o ser para Levinas será, antes de tudo, pensar o “Outro”. O modo como
Heidegger refere-se ao ser, segundo Levinas, faz com que o “Outro” seja esquecido.
Assim, a primeira acusação de Levinas a Heidegger é a de que a ontologia é a
promotora de um homem ocidental moderno, dominador, sobre o qual pesa a falta
de ética do desconhecimento do “Outro” como o Outro”. Esse homem ocidental
moderno, para Levinas, quanto mais supunha descrever a ordem natural, mais
revelava a ambivalência dos projetos humanos. A revelação da pluralidade dos
projetos do diferente deu-se sempre na luta incessante entre o “Mesmo” e o “Outro”.
Nessa luta, o que se revelava como essência nunca era a ordem, mas o diferente.
Havia a idéia da possibilidade de um “homem” universal bem como uma arte
universal, da recorrência das regras, das normas e dos conceitos de verdade. A
luta que se impunha revelava que não era possível um conceito bem fundado de
verdade. A idéia de verdade dava direito a dizer que o diferente é errado, ou que o
“Outro é errado no que se apresentasse como diverso do “Mesmo”. Esta foi,
segundo Levinas, a grande pretensão do “Mesmo”: dissolver as diferenças, não
aceitar a pluralidade em nome do universal e da ordem. A certeza e a verdade
109
absoluta são promotoras da humilhação do “Outro”, põem nos trilhos o que está fora
dele. A impossibilidade de conhecer o “Outro”, sugerida por Levinas, vê no “Rosto”
do próximo um lugar de responsabilidade no qual não é possível exercer nenhum
poder, lugar onde tamm nos reconhecemos como diferentes.
Na leitura feita por Levinas (1967, p. 79) acerca do pensamento
heideggeriano, a própria estrutura do ser no mundo “apresenta a forma precisa sob
a qual se realiza essa compreensão do ser”. Com relação a essa questão, o filósofo
diz que: “A revelação do ser é a própria condição humana [...], o Dasein existe de tal
forma que compreende o ser”. Para Levinas, a compreensão é o agente de toda a
filosofia de Heidegger, ou seja, a condição de todo conhecimento é uma ontologia,
uma compreensão do ser. A pergunta feita por Heidegger O que é ser? – tem uma
condição que é a própria possibilidade de o ser revelar-se, é o acontecimento do ser,
ou seja, a sua verdade. Heidegger, de acordo com Levinas (1967, p. 73), contesta
que o problema do significado do ser seja impossível e nele o problema filofico
central.
Para Heidegger, a noção de compreensão é, segundo Levinas, importante
nas nossas relações com o real. Todo o conhecimento está no conhecimento da
essência (conhecimento da estrutura pela qual a coisa é o que é), da coisa, ou seja,
o ser dessa coisa, o conhecimento ontológico. Daí resulta que “O ser de cada
existente que é a sua existência não poderia ser compreendido se não tivéssemos
apreendido o próprio significado do verbo ser (LEVINAS, 1967, p. 90). A
compreensão do ser em geral, o significado desse verbo, faz com que
compreendamos que cada ser em particular pode mostrar-se para nós nas suas
essências. Tal compreensão é a possibilidade de que cada ser em particular seja
entendido. A partir daí, viver é sempre uma forma de se relacionar ou de estar
110
preocupado com o nosso “poder-ser”, desde que estejamos no ser e que não
saiamos dele (Dasein). Se vivemos entre os objetos que nos rodeiam, é porque
existimos ontologicamente. O Dasein tem como essência existir, e sua descrição
para Heidegger não pode ser simplesmente a descrição dos entes, tem de ser a
descrição de sua essência. Estamos sempre no movimento do ser, ou podemos
dizer que o nosso existir é o próprio movimento do ser; a ontologia é a própria
existência. Compreender aqui tem o mesmo sentido de apreender. Mas, o que
preocupa Heidegger, segundo Levinas, não é a existência humana, mas a questão
do ser.
Para Levinas, essa compreensão está exercida no primado do “Mesmo”, do
“Eu”, no narcisismo doMesmo”. Conforme aponta Levinas, um dos traços da
filosofia do “Mesmo” é o seu recurso aos “Neutros”, ou seja, para compreender o
“não-eu”, o diferente, “é preciso encontrar um acesso através de uma entidade,
através de uma essência abstrata que é e não é” (LEVINAS, 1967, p. 204). Para
Levinas, quando Heidegger pensa cada singularidade real, o faz
através do ser, que não é um ser particular nem um gênero onde estariam
todos os particulares, mas de alguma forma o próprio ato de ser que o verbo
ser exprime e não substantivo [...] conduz-nos à singularidade através de
um Neutro que esclarece e comanda o pensamento e o torna inteligível
(LEVINAS, 1967, p. 206).
é que se dissolve a integridade do “Outro”, pois este não conserva a sua
singularidade e não se coloca no “frente-a-frente”. Não diz: não matarás”, mas se
submete ao jogo do esconde-esconde, da luz e da obscuridade, e dissolve-se em
relações. A iia de conhecimento aqui se trata de apreender o indivíduo, não na
sua singularidade, mas na sua generalidade, o que significa o apenas
compreensão, mas posse.
111
Levinas propõe-se a realizar, partindo de Heidegger, uma inversão na
Fenomenologia, ou seja, uma filosofia que, antes das obrigações relativas ao
“Mesmo”, coloque-se à disposição do “Outro”. A inversão está em não ler no poder o
direito e em não reduzir todo o “Outro” ao “Mesmo”. O filósofo alerta que não se trata
de uma tradição religiosa, mas filosófica. Segundo Levinas, Platão já colocava o bem
acima do ser, o verdadeiro discurso era aquele realizado com os deuses. Em
Descartes tamm vemos que oEu” que pensa mantém uma relação com o
“Infinito”, com o que ultrapassa a idéia, com um abismo que separa o pensamento
do objeto pensado, não permitindo que o seu sentido seja abarcado.
O ser como fundamento e essência de todas as coisas é semelhante à luz,
que nos possibilita a visão. Heidegger remete à metafísica clássica da luz, mas, por
outro lado, põe em juízo os seus pressupostos. Ele concebe o ser através da
imagem da luz, embora a sua luminosidade não seja total como uma clareira já
dada, constantemente presente. A sua luz está vinculada à obscuridade, porém a luz
obscura não elimina a claridade; é contraposta ao excesso de luz, que, segundo
Amoroso (1990, p. 192-194), podemos identificar com a metafísica da luz. De acordo
com Heidegger, mais originário que a luz do ser é o acontecer do ser. Para ele, a
poesia é a abertura do ser, enquanto para Blanchot e Levinas ela é a destruição do
ser das coisas. Para Heidegger, a obra-de-arte é, além de terra, mundo, ao passo
que para Blanchot e Levinas a arte não tem um lugar no mundo, no espaço do
mundo, nem no tempo do mundo da totalidade. Ela é o impossível. Blanchot possui
uma concepção de escritura que é “desobra” e “fragmento”, com o que concorda
Levinas quando diz que a arte é “um dizer de outro modo”. Todos esses conceitos
resumem-se no que Blanchot chama deNeutro”, conceito que pertence à atmosfera
112
do “depois da morte”, que denota distância, um anúncio de perda de sentido, de
passividade radical do ser, de reação do ser à luz.
Heidegger, para Levinas, faz uma ontologia da luz, mesmo que coloque em
juízo os pressupostos básicos da metafísica tradicional cuja luz está posta
constantemente em ação, iluminando o ente e mostrando a sua presença como
verdade. Em Heidegger, o que vemos é a luz que ilumina, porém, ela está atrelada à
obscuridade, lugar que esaberto à luz mediante uma operação de esclarecimento
e que atua num jogo com a luminosidade. O ente aparece quando se mostra a partir
da abertura temporal do ser, cuja essência temporal está nas épocas ou nos
períodos históricos. Como resulta o homem nesse lugar? O homem encontra-se na
abertura do ser pela sua essência, ele está sempre em relação ao ser. Em Ser e
Tempo, Heidegger chama o “ser-aíde iluminado, ou seja, o ente que leva o nome
de “ser-aí” é o iluminado por si mesmo, e não por outro ente distinto (PASQUA,
1993). O “ser-aí” está, portanto, aberto em relação a si próprio e aos outros entes
(AMOROSO, 1990, p. 202-203-194). Na discussão de Levinas, o jogo de esconde-
esconde promovido entre a luz e a obscuridade, no pensamento heideggeriano, tem
na obscuridade a função de dar mais luminosidade à luz que, quando se faz ação,
desvenda o ser, conta seus segredos e o expõe sob o domínio do “Eu”. A luz
obscura se opõe à luz radiante, conferindo-lhe maior presença. Na convivência com
a luz e com a obscuridade, temos simultaneamente o aparecer do ser, dos entes, ou
a essência dos entes e o aparecer da presença, esclarecendo o presente. O
desvelamento é, para Heidegger, o que pode conceder de possibilidade da verdade,
ou seja, é a única dimensão na qual a verdade pode dar-se.
Pela idéia de “Infinito”, temos em Levinas a impossibilidade de o ser aparecer.
Reconhecemos isso no “Rosto”, que se torna metáfora da presença do “Infinito”
113
como idéia de um “absolutamente Outro”. O ser não pode ser apreendido, não se
configura como um conceito, pois, no pensamento levinasiano, o ser é o
“absolutamente Outro” que em vez de permanecer na clareira está sempre na
obscuridade. O ser aqui não pertence à essência do homem, ou seja, o homem não
está em relação ao ser. A marca da infinitude está na transcendência do “Infinito” em
relação ao “Eu” que o pensa. A obscuridade faz do “Infinito” uma relação que
consiste em abordar um ser absolutamente exterior cuja manifestação não é
simplesmente o aparecimento de uma forma na luz, sensível ou inteligível, mas já
esse não lançado aos poderes. O seu logos é: não matarás” (LEVINAS, 1967, p.
211).
Consideramos, então, que o ser para Levinas equivale à independência e à
estranheza das realidades, enquanto que para Heidegger equivale à sua vinda à luz
(no jogo da claridade e obscuridade); o ser para Heidegger é inteligibilidade, ao
passo que para Levinas é mistério; para Heidegger, o ser é inseparável da
compreensão do ser, é invocação da subjetividade e, para Levinas, é o
“absolutamente Outro”, um Infinito”, um estrangeiro que não se põe para
compreensão.
Segundo Levinas, o fato de temos a perda do ser na obscuridade seria o
mesmo que errar, caso relacionássemos isso à compreensão. Equivaleria a perder o
centro ou abandonar-se à magia do desvio (BLANCHOT, 2001). Trata-se de
esgotar-se na caminhada, não permanecendo nunca na claridade. Para Blanchot
(2001, p. 64), significa uma caminhada nas regiões fronteiriças e na fronteira da
caminhada”. Assim, de acordo com Blanchot (2001, p. 64), essa caminhada não
abre nenhum caminho, não responde a nenhuma abertura, não há luz; “o erro
designa um estranho espaço onde o movimento de esconder-se e mostrar-se das
114
coisas perdeu sua força reitora”. Esse espaço em que reina o “murmúrio” não abre e
não fecha nada. Nada é limitado. Porém, o temos horizonte, o qual pode ser os
vestígios do murmúrio; nada pertence à “região” do desvelamento nem do
encobrimento: “nem veladas, nem desveladas: eis sua não-verdade” (BLANCHOT,
2001, p. 68). Não relação com a verdade, visto que ela destruiria o caminho do
desvio que promove o desejo do “Outro” (Levinas), a paixão pelo “Outro” (Blanchot),
a qual desejamos para além de qualquer satisfação porque o desejado “não
colmata, mas produz” (LEVINAS, 1967, p. 212-213).
Como afirma Blanchot, estamos acostumados a falar do que “é”, do que
aparece como clareira, nunca do que é obscuro. Falamos daquilo que fica e que se
forma no que desapareceu, ou seja, o sentido, a idéia, o universal. Dessa maneira,
temos o hábito de recuar diante do que morre. Blanchot (2001, p. 76) diz que “O
recuo diante do que morre é o recuo diante da realidade”. Para ele, o conceito
introduziu em nosso pensamento a negação da própria morte, a qual se dispõe a ser
a clareira permanente. A arte, segundo Levinas e Blanchot, ao contrário do que
pensa Heidegger, fala em nome do nada, do impossível, do obscuro, da economia
do ser. É o “devir falante da própria morte”, como aponta Blanchot. Quando
queremos a parição do ser, o enigma é a morte, esse medo do que se vai, do que
desaparece quando deveríamos ir para a realidade cadavérica e ficar com ela frente
a frente para que pudéssemos ter a experiência (a única significativa para nossa
existência) com o que é absolutamente desconhecido: a morte. Assim, o obscuro, o
que se nega a vir à luz, não se furta à experiência, mas, como diz Blanchot (2001, p.
90), “é a experiência daquilo que o se deixa mais eliminar nem propicia
retraimento ou recuo, sem deixar de ser radicalmente diferente”. Assim, o que resta
é a relação com o exterior, o “Fora” do ser, a intimidade com o exterior, a paixão e o
115
desejo pelo exterior. O ser aqui deixa de ser a própria condição humana, como é
para Heidegger, e não mais existimos para compreender o ser, mas para ouvir o
seu murmúrio. Blanchot (2001) diz que “algo estava, que não está mais aí”.
A relação do “Outro” como esse “absolutamente Outro” recebe uma luz
quando a trabalhamos em oposição ao pensamento heideggeriano, daí retomamos
algo dito, mas agora de outra forma. A compreensão, segundo Levinas, ao se
reportar ao ente na abertura do ser, confere-lhe significação a partir do ser. Para
Levinas, isso significa cometer uma violência e uma negação contra o ente,
negando-se à sua independência, e ele passa a depender de nós. O ente assim é
instrumento, utensílio e meio. Mas o encontro com o ente que é outrem (“outrem é o
homem”, é o “Outro”) não se dá, segundo aponta Levinas, sob o mesmo prisma. Ele
não entra na abertura do ser, ou seja, não é a partir do ser em geral que outrem
mantém uma relação conosco. Tudo o que vem dele como ser em geral
17
faz com
que possamos compreendê-lo a partir de sua história, do seu meio e de seus
hábitos. Contudo, não é possível compreender o “Outro” como “Rosto”, como ente,
no “face-a-face”. o compreendo, como aponta Levinas, se o apreendo a partir do
ser em geral como ente que se revela à luz da abertura do ser. Assim, Outrem é o
único ser que posso querer matar”. Podemos querer, porém, o “Outro” como “Rosto”,
que é o que foge a isso, pois ele é o imediatismo donão matarás”. mataremos o
“Outroe o negaremos e cometeremos com ele uma violência se o entendermos
na abertura do ser em geral como elemento do mundo em que nos encontramos.
Enfim, mataremos o “Outro” se não o percebermos como “Rosto (LEVINAS,
17
Diz Levinas (1997, p. 31-32): “Posso, é claro, ao matar, atingir um objetivo, posso matar, como faço
uma caçada ou como derrubo árvores ou abato animais, mas, nesse caso, apreendi o Outro na
abertura do ser em geral, como elemento do mundo em que me encontro, vislumbrei-o no horizonte.
Não o olhei no rosto, não encontrei seu rosto [...]. Se as coisas são apenas coisas, é porque a relação
com elas se institui como compreensão: como entes, elas se deixam surpreender a partir do ser, a
partir da totalidade que lhes empresta significação.
116
1997, p. 31-32). Aqui o imediato é o bojo da compreensão, e o imediato é o “Rosto”.
“A relação com o Rosto, acontecimento da coletividade a palavra é relação com
o próprio ente enquanto puro ente” (LEVINAS, 1997, p. 32). O ente aqui é já
invocação do “Rosto” e já palavra; o “Outro” é ente por excelência. A diferença é que
o ente deixa de ser insignificante e não adquire significação, como em Heidegger,
por significar através da clareira do ser. O “Rosto” significa “outramente”, e nele o
ente é infinita resistência ao nosso poder.
Podemos dizer que, se para Heidegger o homem (Dasein) tem acesso ao
sentido do ser por meio da sua finitude, para Levinas o acesso ao ser está na
experiência do “Infinito” no ser (ou seja: na própria ausência do ser) e através do
“Outro” como um “Rosto” do “Infinito”.
2.6 O tempo Infinito de Levinas e de Blanchot
Para Levinas e para Blanchot, a questão do tempo não está em mostrar uma
idéia de tempo, mas em falar do tempo mesmo. Na sua obra, El Tiempo y el Otro,
Levinas (1993b) não apresenta o tempo como horizonte ontológico do ser do ente,
mas como um modo para além do ser como relação do pensamento com o “Outro”,
e mediante diversas figuras de socialidade ante o “Rosto” doOutro” homem.
Levinas (1993b) apresenta o tempo como a relação com aquele que, sendo um
“absolutamente Outro”, não se deixa assimilar pela experiência e que, sendo um
“Infinito”, não se deixa compreender. O tempo significa esse sempre do o,
coincidência de uma relação que se torna distanciamento, mas tamm
proximidade. Falamos de um tempo que não se temporaliza linearmente, entendido
como transcendência ao “Infinito” do “absolutamente Outro”. O tempo aqui não é
117
visto a partir de um ser que está aderido a um ente histórico, mas visto a partir da
relação com o “Outro”, entendido comoRosto”. Aqui o ser não está preso à linha do
tempo em que o futuro espera acontecer a sua presença, pois o “Outro” como
“Rosto” é significação. Segundo Levinas (1997, p. 15), o “Outro” é significação sem
contexto nem horizonte nem fundo cultural [...]. O Outro é sentido por si só. Tu és tu
absolutamente [...]. O Outro é o que não pode ser contido, que conduz para além de
todo o contexto do ser”.
Para elaborarmos uma compreensão do tempo no pensamento levinasiano,
parece-nos produtivo pensar a partir das posições de Heidegger sobre o tempo, que
é de onde parte tamm o pensamento levinasiano a fim de elaborar uma outra
proposta de tempo, afinada com toda a sua forma de pensamento.
Heidegger, por exemplo, põe em questão a noção de ser e a relação do ser
com o tempo (esta é a base reflexiva de Tempo e Ser). O tempo compreendido a
partir do ser como tempo é ousia, ou seja, significa a presença das coisas que estão
verdadeira e permanentemente presentes, e não de passagem. O ser aqui é
presença de seus diversos destinos epocais e de suas diversas formas. O ser é
desocultação (espaço aberto no qual surgem o ser e o tempo) como abertura:
presença. O ser é desocultação e veritas. O ser do ente é a base da ontologia, e o
homem (no seu Dasein) se dá à compreensão do ser, sendo a essência do homem a
sua existência. A compreensão do ser é o próprio tempo em que estamos diante da
presença. O sentido do ser como presença significa que ele é compreendido em
referência a um modo específico do tempo: o presente.
Levinas vai propor um modo de pensar o tempo que não se preocupe com o
presente nem com o verdadeiro, ou seja, com o valor da verdade do presente. Não
nessa proposta uma intenção de dar uma outra forma para a presença, mas de
118
se pensar em um outro modo de conceber o tempo. O tempo é, para Levinas, a
relação com o “Outro”, relação essa que interrompe e subverte o curso do ser. É a
partir de todas essas questões que envolvem o pensamento da relação com o
“absolutamente Outro(com o “Rosto”) que Levinas vai elaborar o seu pensamento
sobre o tempo, desde que o pensamento da relação com aquele que é “Rosto” exige
um outro modo de pensar o tempo. Assim, observamos que a estrutura do tempo
para Levinas não está definida pela primazia do presente ou pela repetição no jogo
do claro e escuro, em que as coisas são temporalizadas sob a forma de
acontecimento, pensamento que, segundo o filósofo, torna difícil a transcendência,
pois tudo confirma sempre a presença do ser.
Levinas parte de Heidegger para elaborar o seu pensamento sobre o tempo
(o tempo como estrutura interna do Dasein). Ou seja, o tempo é condição da
existência humana. Porém, Levinas se distancia de Heidegger quando ao tempo
a condição de irreparável. Em seu texto sobre o hitlerismo, Levinas (2001b, p. 8)
afirma que
El tiempo, condición de la existência humana es sobre todo condición de lo
irreparable. El hecho consumado, arrebatado por un presente que huye,
escapa definitivamente al domínio del hombre, pero pesa sobre su destino.
Tras la melancolía del tierno fluir de las cosas, del ilusorio presente de
Heráclito, está la tragedia de la inamovilidad de un pasado imborrable que
condena la iniciativa a no ser más que una continuación. La verdadera
libertad, el verdadero comienzo exigiria un verdadero presente que, siempre
en el apogeo del destino recomience eternamente esa libertad.
Diante da catástrofe do hitlerismo, Levinas liberta o tempo do encadeamento
histórico. O tempo não pode fazer do passado apenas um continuação da história. A
catástrofe condena a disposição do tempo de ser apenas uma continuidade – não há
história e pesa na existência humana. Ela faz do tempo um sussurro caótico, um
existir anônimo, um existir sem existente (o “Há” levinasiano). O tempo é entendido
119
como ausência de tempo, como a relação mesma do sujeito com o “Outro”. Levinas
(2001b, p. 9) diz que
El judaísmo trae este mensaje magnífico. El remordimiento – expresión
dolorosa de la impotencia radical de reparar lo irreparable anuncia el
arrepentimiento generador del perdón que repara. El hombre encuentra en
el presente con qué modificar el pasado, cómo borrarlo. El tiempo pierde su
irreversibilidad misma. Se postra nervioso a los pies del hombre como un
animal herido. Y lo libera.
O pensamento levinasiano passa pela desconstrução da presença. Ele abre a
presença para além de si mesma. Se a presença do “Outro” como “Rosto” é o
“Infinitoe vai para além do Dito”, estamos, portanto, diante de um tempo sem-
tempo”. Segundo Levinas, estamos diante de um excesso que faz transbordar a
idéia de limite, sendo essa idéia o que Levinas e Blanchot chamam de mistério. Para
Blanchot, estaria o pensamento do impossível, do “Fora”, que transborda seus
limites no tempo, o qual é, segundo Blanchot, a dispersão do presente que não
passa”. O incessante é um presente que mantém as coisas em suspenso, no espaço
do aberto: um tempo sem antes nem depois.
Partindo de Levinas em contraposição a Heidegger, vemos no pensamento
heideggeriano de Tempo e Ser que “ser” significa o mesmo que “presentar”. De
dentro do “presentar” e da presença fala o presente, que constitui a característica do
tempo junto com o passado e o futuro. Heidegger (1991, p. 206) diz que o “ser
enquanto presença é determinado pelo tempo [...]. O ser permanece como pré-
sentar, como presença determinada pelo tempo, pelo que tem caráter temporal
(HEIDEGGER, 1991, p. 213). Presentar é presentificar-se, desvelar-se, levar ao
aberto. O tempo, por sua vez, também é determinado por um ser, ou seja, o tempo
fala no ser como presença. Em Levinas, o “Outro” como Rosto” não faz do seu ser
mostração, o que nos faz dizer que o tempo aqui não é determinado pelo ser. Aqui o
120
tempo não se dá, do dar-se o tempo, nem se dá o ser, conforme alude Heidegger.
Não o dar-se como um destinar em que, como afirma Heidegger (1991, p. 213),
mostrar-se-ia o apropriar-se “do ser como presença e do tempo como âmbito do
aberto, no interior daquilo que lhes é próprio”, o acontecimento ou a apropriação. O
“Rosto” suspende o tempo, pois ele é o “absolutamente Outro” em que o ser torna-se
vestígio sem presença, torna-se ausência total, nem presente nem futuro: o vestígio
não se marca no tempo, porém murmura constantemente a sua ausência. É a
espera constante do que não chega porque nunca se tem hora, é o incessante. O
“Rosto” não faz história.
Pesa aqui um conceito que aparece tanto em Levinas (1993b) como em
Blanchot (2001): o conceito de paciência como uma temporalidade sempre deferida
e como um espaço sempre desprezado, um tempo de espera sem fim. É a sensação
de algo que é obscuro, cuja obscuridade não se dissipa, senão que se como
obscuridade e que confere uma experiência “Outra”. Trata-se da experiência de um
tempo concebido de maneira que a sua raiz não está no passado, mas no futuro, no
tempo do deserto, em busca da Terra Prometida. Este tempo torna-se o tempo da
paciência, um tempo do “futuro do Deus, sempre outro e sempre além do Deus”, um
tempo “de outro modo que ser” (VITIELLO apud DERRIDA; VATTIMO, 2000, p. 155).
Trata-se da concepção do tempo não mais concebido de maneira circular”, como a
concepção dos gregos, nem de maneira “linear”, como a concepção do cristianismo
histórico, mas de uma concepção de tempo judaica. O tempo judaico não está
centrado no presente, mas dá ênfase à terra a ser habitada que está sempre por vir.
Toda cadeia do tempo fica, desse modo, suspensa no futuro. O presente por sua
vez é deserto, assim, o deserto não é um período de prova, mas um destino. É a
121
condição permanente do povo judeu. O deserto não é errância, é também
promessa.
Blanchot pensa no tempo nas obras de Beckett, em que os acontecimentos
estão sempre deferidos ou privados de todo resultado. O tempo na experiência da
impossibilidade, para Blanchot (2001, p. 90), é o tempo que está ali em outro tempo,
é o tempo que
não se dá mais a partir do futuro como aquilo que junta ultrapassando, mas
é a dispersão do presente que não passa, sem deixar de ser apenas
passagem, nunca se fixa num presente, nem se refere a nenhum passado,
não vai em direção a nenhum futuro: o incessante
.
Escrever é entregar-se à fascinação da ausência de tempo, a esse tempo
morto que não é o tempo comum, mas um “Fora” que precede e dissolve toda a
possibilidade de relação, segundo Blanchot (1987). Mas o deserto para Blanchot não
é errância, como destino, é também promessa. Quando Blanchot (1987) pensa a
arte como deserto”, ele a pensa como lugar único em que a arte pode realmente
nos dizer alguma coisa no seu paradoxal destino de nada poder dizer. Aqui pátria é
deserto, ou seja, ausência. Rememoremos: A coluna de fumaça que guia Moisés e
Israel é encontro. No deserto e somente no deserto, encontra-se o Deus-guia.
Israel habita o errar (VITIELLO apud DERRIDA; VATTIMO, 2000, p. 154)”. Eis a
condição permanente do povo judeu. Quanto a Deus, Ele mostra-se em sua
ausência, aparece se ocultando.
Em seu texto La Realidad y su Sombra (2001a, p. 59), Levinas chama o
tempo da arte deentretiempo”, espaço em que a arte “es el movimiento de la caída
más adel tiempo, en el destino”, essa maneira única de temporalizar o tempo.
Assim, o tempo que aparentemente é introduzido na imagem pelas artes plásticas,
pelo cinema, pelo teatro ou pela literatura não altera o que na imagem é fixo, ou
122
seja, o fato de que na estátua ou na imagem se fixa um eternamente” ou o fato de
que os personagens de um livro ali estão, repetindo seus atos sempre do mesmo
modo, encerrados e prisioneiros do conceito de eterno. Não é desse tempo que fala
Levinas (2001a), mas da duração do intervalo, do entretempo. Levinas (2001a, p.
62) afirma que “La duración eterna del intervalo en que se inmoviliza la estatua
difiere radicalmente de la eternidad del concepto es el entretiempo, jamás
acabado, que dura todavía algo inhumano y monstruoso (LEVINAS, 2001a, p. 62)”.
Com a idéia de entretempo, Levinas desfaz o pensamento bergsoniano da
representação da continuidade do tempo como “essência mesma” da duração. Faz
um corte no tempo, um espaço em que o tempo possui uma duração fixa porém
fecunda, pois é ali que se aloja o “Há” levinasiano.
Para Levinas (1998a, p. 111-112), está claro que o tempo é constituído na
relação com “outrem”. Sua dialética é a própria dialética da relação com outrem, ou
seja, um diálogo que deve ser pensado em outros termos que os da dialética do
sujeito só, mas na dialética da relação social que nos fornecerá, segundo Levinas,
um encadeamento de conceitos de um tipo novo. Assim, o tempo é a inquietação do
“Mesmo” pelo “Outro”, sem que o “Mesmo” possa jamais compreender o Outro”. O
tempo é esse “Outro” que não pode ser sincrônico ao “Mesmo”.
123
3 ENSAIOS SOBRE UMA ESTÉTICA DO “FRACASSO”
3.1 Arte: esse “Outro do mundo”
El Otro puede resistir a mi intento de cerco, no por la extensión y la
oscuridad del tema que ofrece a mi mirada, sino por el rechazo a
entrar en un tema, a someterse a la mirada, por la eminencia de su
epifanía.
Levinas, 2001a.
As idéias na arte, segundo Blanchot (1997, p. 10), após um determinado
tempo “permanecem estranhas à generalidade de onde tiram a forma: elas parecem
como exiladas, expressam-se de modo esquivo que não permite entendê-las, nem
como expressão de um fato único, nem como a explicação de uma verdade
universal”.
Blanchot se refere a essa sensação de que a arte prefere falar do mundo pelo
avesso, fazendo desaparecer a versão real que encontramos no direito do mundo
que nos rodeia. Quando o objeto artístico é o silêncio da passividade do ser, a
tecitura do que é dito vai mais além e passamos a constatá-lo no avesso do que foi
tecido. Daí o objeto passa a dizer pelo que não foi dito, mas pelo que se faz
presente. Ou seja, um sincio falante, e toda a estrutura da produção artística
carrega em si a passividade do ser. Nessa observação de Blanchot está a realização
de toda uma filosofia desenvolvida por Levinas, a filosofia do “Outro” como um
“absolutamente Outro” e que na arte de nosso tempo se plenifica como
singularidade essencial. A arte é, então, a expressividade radical desse
pensamento.
124
Voltado aos estudos literários, Blanchot constata que a poesia faz da crise a
sua situação própria, pensamento tamm expressado por Agamben (2005, p. 51-
52) ao afirmar que
a poesia moderna de Baudelaire em diante não se funda em uma nova
experiência, mas em uma ausência de experiência sem precedentes. Daí a
desenvoltura com a qual Baudelaire é capaz de colocar o choc no cerne do
próprio trabalho artístico.
Se pensarmos a partir de Blanchot (1987), o problema do choc está, eno,
em esperarmos da arte um retratamento do real. E, ainda, como alerta Agamben
(2005, p. 52), de estarmos acostumados a pensar que a experiência está
voltada primeiramente à proteção contra as surpresas, e o produzir-se de
um choque implica sempre em uma brecha na experiência. Fazer
experiência de alguma coisa significa: subtrair-lhe a sua novidade,
neutralizar o seu poder de choque [...]. Em Baudelaire, um homem que foi
expropriado da experiência se oferece sem nenhuma proteção ao
recebimento de choques.
Dessa forma, a arte contemporânea está vinculada a uma produção que se
faz na passividade do ser e que instala um abismo como um “absolutamente Outro”
entre nós ou trata-se dessa expropriação da experiência à qual se refere Agamben
(2005). Ela marca em si mesma o vestígio, o rastro do “absolutamente Outro”.
Pensar a arte contemporânea a partir dé dar especial atenção ao fato de
que ela sai dos moldes estabelecidos e que podemos vislumbrá-la como
exterioridade radical, e não como coincidência e intimidade. Estamos diante da
expressividade como “Infinito”, da alteridade secreta que não se como fenômeno.
A desaparição do real passa a ser, então, o lugar da aparição do “Outro” como
“Infinito”, como um desconhecido. Dessa forma, o “Rosto do Outro” está no
ininteligível (na morte do real), na “outreidade” da arte. A ausência do ser é a solidão
da obra, que é o interminável, o incessante, como aponta Blanchot (1987), ou o
125
“Infinito”, como nos diria Levinas (2000). Para Levinas (2001, p. 46), el arte no
conoce un tipo particular de realidad taja sobre el conocimento. Es el acontecer
mismo de oscurecimiento, un atardecer, una invasión de sombra”. A arte não
pertence à ordem da revelação.
A arte é um Outro do mundo”, portanto, quando ela deixa de pertencer ao
domínio em que se deva exprimir a exatidão e a certeza das coisas, ou quando ao
dizer o mundo ela não aposta mais nas certezas e prefere falar desse mundo como
ruído. A arte reafirma constantemente um lugar onde ninguém fala, onde nada se
revela, onde o fracasso é fecundidade, onde a obra se realiza na sua própria
impossibilidade e passa a pertencer ao meio indeterminado da fascinação. Trata-se
de uma impossibilidade que para Blanchot (2001, p. 92) o é nem afirmação nem
negação do ser, mas que “desde sempre precedeu o ser” e o se entrega a
nenhuma ontologia. É, então, a experiência do que não cessa de exceder e sobre a
qual não temos controle. É uma relação com o que é exterior, relação sem relação
que é paixão, que não se deixa dominar. A obra como o “Outro do mundo”
transforma-se para Blanchot na fascinação em si mesma pelo exterior, pelo “Infinito”,
e o nosso desejo de arte pode ser desejado também como ausência.
Para Levinas (2001a, p. 51), a fenomenologia da imagem erra quando não
leva em consideração a ausência e quando insiste na transparência. Na
fenomenologia da imagem, segundo Levinas, a intenção de quem contempla a
imagem é ir, através dela, diretamente ao mundo que ela representa. A
representação, para o referido filósofo, não expressa mais do que a função da
imagem que ainda está por determinar. Levinas (2001a, p. 51-52) diz que “Nuestra
mirada en la imaginación va, pues, siempre hacia afuera, pero la imaginación
modifica o neutraliza esta mirada: el mundo real aparece en cierta medida entre
126
paréntesis o entre comillas”. Isso supõe a opacidade da imagem. Porém, a imagem
não é uma realidade independente que se assemelha ao original. A imagem
planteia, segundo Levinas, uma semelhança não como resultado de uma
comparação entre ela e o original, mas como “movimento mesmo” que a engendra.
“La realidad no sería solamente aquello que es, aquello que ella se desvela en la
verdad, sino también su doble, su sombra, su imagem. Del ser no es solamente él
mismo, se escapa” (LEVINAS, 2001a, p. 52).
Levinas (2001a) explica a semelhança entre a arte e a realidade de modo
peculiar. Segundo ele, uma pessoa é o que é, porém nela algo que escapa sob a
identidade de sua substância, algo que não capturamos nunca. Na fissura” de seus
gestos, de sua pele, de seu olhar, sempre um mistério. Da mesma forma que
podemos dizer que a pessoa leva em seu rosto, ao lado de seu ser com o qual
coincide, a sua própria caricatura, ou, podemos também dizer, a “semelhança” entre
realidade e imagem. Dizemos, então, que a coisa é ela mesma e é a sua imagem, e
que a relação entre a coisa e a sua imagem é de “semelhança”, porém nunca em
comparação ao original. É dessa maneira que a arte é o “Outro do mundo”, um
“absolutamente Outro” e, paradoxalmente, uma “semelhança”, a “filialidade”
levinasiana. São, portanto, tais indagações que fazem Levinas (2001a, p. 54),
questionar a Fenomenologia e dizer que a arte não nos conduz para além da
realidade dada, mas, de certo modo, más acá”. Daí a idéia de sombra, de um duplo
essencial da realidade por sua imagem. A realidade traz consigo a sua própria
alegoria, a arte, que, por sua vez, realiza essa alegoria através da imagem na
simultaneidade entre o ser e o seu reflexo (sombra), noção que permite à filosofia
levinasiana situar, na passividade do ser, a semelhança. Esta última, então, o é a
identidade entre o ser e uma idéia, mas a estrutura mesma do sensível como tal. O
127
ser é semelhança quando, longe de triunfar na “clareira”, obscurece e despende a
sua essência inapreensível.
Dessa forma, como “Outro do mundo” a arte realiza o “Infinito” que aparece
no “Rosto” (no que são formas, mas que não se reduzem nelas), causando o
“estranhamento” por permanecer no desvio (no “Fora” blanchotiano) e que se define
em Levinas como ético. É, portanto, na fenda que o conceito de semelhança abre
que a arte se realiza com experiência como uma realidade “Outra”, essa
ambigüidade radical.
Blanchot diz que Mallarmé buscou incessantemente o ponto em que a palavra
coincidia com a sua desaparição, em que toda realidade se dissolvia pela força da
arte, sendo a ambigüidade radical o “Fora”. Em O Espaço Literário, Blanchot (1987)
destaca a ambigüidade da palavra, em que o sentido sempre escapa na
impossibilidade de o compreendermos definitivamente, o que faz dela um “Infinito”.
Assim, também pensamos a imagem nas artes plásticas, ou no objeto plástico, em
que a imagem nunca pode ajudar a recuperar idealmente a coisa. O objeto o nos
nunca a realidade, ou seja, a imagem ou o objeto nos remetem não à coisa
ausente, mas à ausência mesma” como presença. O pertencimento da imagem ao
mundo se dissipa, sendo ela passividade sem valor significativo ou efetivo, sendo ela
fascinação da indiferença que, de algum modo, acaba fazendo-a significativa”. Ou
seja, nada tem sentido, mas na imagem tudo parece ter “sentido” infinitamente. Ela é
fascínio e instaura o “Desejo”. Blanchot (1987, p. 22-23) pergunta: por que fascínio?
E responde:
Ver supõe a distância [...] significa que essa separação tornou-se, porém, o
que nos fascina, nos arrebata o nosso poder de atribuir um sentido,
abandona a sua natureza “sensível”, abandona o mundo, retira-se para
aquém do mundo e nos atrai [...].
128
Para Blanchot (1987, p. 23), o fascínio é esse olhar do incessante e do
interminável, em que a cegueira é visão,
vio que já não é possibilidade de ver mas impossibilidade de não ver, a
impossibilidade que se faz ver, que persevera sempre e sempre nunca
vio que não funda: olhar morto, olhar convertido no fantasma de uma
vio eterna.
Ser esse “Outro do mundo” é a essência da arte. Isso significa que ela, ao
pensar e dizer o mundo pelo avesso, faz da morte o seu domínio, torna-se “Dito”
essencial. Nas palavras de Blanchot (1987), faz desaparecer as coisas comuns do
cotidiano, tal qual as abordamos no dia-a-dia para distanciá-las, para torná-las
alusivas, sugestivas e evocativas. Apreende o mundo pela ausência, como sugere
Blanchot (1987, p. 34-35). Na arte, “o mundo recua e as metas cessam; nela, o
mundo cala-se; os seres em suas preocupações, seus desígnios, suas atividades,
não são, finalmente, quem fala”.
Pela imagem poética não somos mais devolvidos ao mundo nem como
metas nem como abrigo nem como esperança. Os seres se calam, há uma ausência
de deuses, um anúncio de morte, e sondar as imagens para o artista plástico pode
ser uma experiência tal qual descreve Mallarmé (apud BLANCHOT, 1987, p. 31): “Ao
sondar o verso a esse ponto, encontrei, lamentavelmente, dois abismos que me
desesperam. Um deles é o Nada [...]”. Diz Blanchot: “Na ausência de Deus, o Outro
é a sua própria morte”. A ausência de Deus é a metáfora de um tempo de
desamparo, um tempo “sem-tempo”, em que as imagens tomam a aparência do
desaparecimento dessa auncia e mostram um avesso do mundo enigmático, pois
tais imagens não existem à maneira de uma coisa ou de um ser, em geral. Porém,
se preferimos dizer que a ausência acontece, devemos frisar que seu acontecer não
é como o de qualquer coisa, pois ela se afirma em nosso meio como uma atividade
129
completamente diferente de qualquer outra que conhecemos: ela é a experiência do
diferente.
Para Blanchot (1987, p. 12), a obra nos diz que “é” e nada mais. Fora disso,
não é nada. Ou a experiência radical do diferente é esse “Outro do mundo”. Quem
quer fazê-la exprimir algo mais, nada encontra, descobre que ela nada exprime. Na
sua solidão, nessa exigência de prova e ao mesmo tempo nessa carência de uso,
está a sua “eticidade” quando deixa vestígio no vazio silencioso da obra, o “Infinito”
do “Outroda realidade. Mas Blanchot (1987, p. 12) esclarece que firmar a obra
como solitária não significa que ela seja incomunicável, que lhe falte leitor, mas
aquele que com ela mantêm contato entra “nessa afirmação da solidão da obra”, tal
como aquele que a faz “pertencer ao risco dessa solidão”. Essa solidão é uma
afirmação do “Infinito”, que “faz dela o lugar fechado de um trabalho sem fim”, um
desconhecido, um sempre inacabado para si próprio (BLANCHOT, 1987, p. 12).
A obra na ausência do ser torna-se o avesso do mundo com o qual não
tínhamos contato. Ela é presença em que “se aflora a ausência pela qual a
proximidade não é simples coexistência e repouso, mas o próprio não-repouso, a
inquietude” (LEVINAS 1967, p. 281). É o lugar para onde o significado foge sempre,
mas deixa um vestígio que se transforma em “Desejo”.
O Outro do mundo” não se concretiza nunca num termo, pois está sempre
contestando a sua própria presença. Assim, a obra é a expressividade do “Rosto”. O
lugar onde o “Infinito” aparece não é um fenômeno, e sua presença nunca se
resume na apresentão e no aparecimento, mas na presença de uma ausência.
Não falamos de um movimento intencional que tende ao preenchimento bem como
não podemos falar de “clareira”, mas de ausência, que faz do seu lugar um não-
130
lugar, um “Rostoque se faz lugar do vestígio, epifania que se constitui proximidade.
Ser esse “Outro do mundo” é realizar a epifania da exterioridade radical.
Trata-se de proximidade que não é simples coexistência, mas pura
inquietação diante do enigma que é essa presença da ausência. O vestígio no qual o
“Rosto” se compõe não se reduz ao signo, como aponta Levinas (1967, p. 286), pois
o signo e sua relação com o significado já se encontram tematizados. O que
interessa não é a tematização de uma relação, mas a própria relação em si. Na arte,
o que interessa é, como afirma Blanchot (1987), “ela mesma” e nada mais.
Para Blanchot (1987, p. 163), essa economia do ser, essa passividade do ser
na obra-de-arte vai nos trazer uma experiência noturna, visto que na noite é onde
tudo desapareceu. A noite é para Blanchot (1987, p. 163) essa economia do ser, é
onde o “tudo desapareceu” aparece. É a extrapolação radical do que escapa para o
exterior. É, então, a outra noite, onde se cumpre a verdadeira imagem da arte como
um “absolutamente Outro” do mundo. Blanchot (1987, p.163) considera a noite como
o aparecimento do “tudo desapareceu”, que é vestígio do “Outro” que se faz “Rosto”,
e o “invisível é então o que não se pode deixar de ver, o incessante que se faz ver”.
Esse distanciamento do ser em relão ao objeto pensado por Blanchot como
a “outra noite” tem em Levinas (2001a) uma semelhança com o conceito de ritmo.
Para melhor compreender esse conceito, é necessário um desligamento do conceito
de ritmo conferido às artes sonoras e tamm é preciso tratá-lo como uma categoria
estética geral. Porém, o que podemos conservar do ritmo em relação às artes
sonoras é que este apresenta “una situación única en la que no se puede hablar de
consentimiento, de asumpción, de iniciativa, de libertad porque el sujeto ha sido
llevado por el ritmo. Forma parte de su própria representación(LEVINAS, 2001a, p.
48-49). O ritmo na música realiza em sua pureza a desconceitualização da
131
realidade. O som é por excelência a qualidade mais desligada do objeto. Podemos
pensar a idéia de ritmo para a imagem no sentido de interesse e desinteresse; ela é
interessante sem nenhuma utilidade, é interessante no sentido de fascinação. A
musicalidade que Levinas infere à imagem significa vê-la em sua separação a
respeito da realidade, significa a sua sombra como esse “Outro do mundo” que está
situado no “entretempo”, ou seja, na radical passividade do ser.
Sintetizando o que expusemos até então podemos definir a arte pensada
como um “Outro do mundo”, como uma produção característica de um tempo em
que a arte resolveu não ser mais o espaço da luz, mas o espaço da obscuridade,
espaço fatal da perda, do desejo, da embriaguez, do extravasamento. Assim, a arte
considerada como esse Outro do mundo” é uma produção sem horizonte de
sentido, sem discurso possível, não tematizável, ilegível. Digamos que o
procedimento da arte consiste em substituir um objeto por sua imagem, porém,
como afirma Levinas (2001a, p. 47),
Imagen y no concepto. El concepto es el objeto captado, el objeto inteligible.
Ya por la acción misma, mantenemos con el objeto real una relación viva, lo
captamos, lo concebimos. La imagem neutraliza esta relación real, esta
concepción original del acto. El famoso desinterés de la visión artística – en
el que se detiene de hecho el análisis corriente de la estética significa,
ante todo, una ceguera ante los conceptos.
O “Outro do mundo” é, portanto, o “Infinito” que vemos no que se faz “Rosto
no “frente-a-frente” com ele, ali onde todo Infinito” é radicalmente ético. Daí surge a
“impossibilidade” da representação de qualquer tematização.
132
3.2 “Infinita” Assemblage: Farnese de Andrade
De tanto acumular mistérios nulos e monopolizar o sentido, a vida
inspira mais pavor que a morte: é ela a grande desconhecida.
Cioran, 1989
A noção de Rosto” como expressividade ou epifania, por onde surge a idéia
de “Infinito”, abre através do pensamento levinasiano outras perspectivas para
abordar a arte na contemporaneidade, pois parte de uma noção de sentido anterior à
nossa Sinngebung (doação de sentido) e independente de nossa iniciativa e de
nosso poder. Parte, portanto, da noção de imediato, a qual tem a anterioridade
filosófica do ente sobre o ser, filosofia que se opõe à ontologia moderna, pois dizer
que o ente se desvela na abertura do ser é nunca estar diretamente com o ente
como tal. Assim, a idéia de contato” com a obra-de-arte contemporânea o
representa o modo original do imediato, como sugere o pensamento levinasiano
para o que é “Rosto”. A palavra contato” é, no pensamento levinasiano,
tematização e referência a um horizonte. Dessa forma, a relação com o imediato é,
para Levinas, o frente-a-frente”. Por isso, com o que é “Rosto” estamos sempre
frente a frente, e não no contato. Na arte contemporânea partimos desse lugar: o
estamos nunca no contato de entrelaçamento, mas no “frente-a-frente”. Levinas
propõe a idéia de Rosto” para fugir de qualquer noção que insinue a possibilidade
de captar o ser na condição de um “absolutamente Outro”, cuja integração com o
“Eu” seria uma crueldade desde que ignora o “Outro” como tal, submetendo-o aos
prazeres do “Eu” (do “Mesmo”). O Rosto” é o lugar da exterioridade e da
transcendência, ou seja, o conceito dessa transcendência exprime-se pelo termo
“Infinito”, que não aceita nenhum conteúdo que se imponha sobre o Outro”. O
“Infinitoque se apresenta no “Rosto” rompe com a totalidade e torna possível uma
133
significação sem contexto. Assim, o “Infinito” é o extravasamento do pensamento
que o pensa e nesse extravasamento produz a sua própria significação, que se torna
uma significação sem significação, visto que apresenta apenas o vestígio do ser, o
seu murmúrio (LEVINAS, 2000, p. 12-13).
Firmamos com a obra-de-arte contemporânea pensada como “Rosto” uma
relação transcendente, ou seja, não nos fundimos com ela, mas preservamos no
“frente-a-frenteum diálogo sem-diálogo. Ela carrega essa idéia de Infinito” mesmo
inerente ao fato de ser obra, carrega a rebeldia do ser contra o que se impõe como
poder a fim de representá-lo. Essa rebeldia levinasiana e blanchotiana do ser
encontra proximidade com a abjeção de Julia Kristeva, referenciada na obra Poderes
de la Perversión (1988, p. 7), quando a autora afirma que:
Hay en la abjección una de esas violentas y oscuras rebeliones del ser
contra aquello que lo amenaza y que le parece venir de un afuera o de un
adentro exorbitante, arrojado al lado de lo posible y de lo tolerable, de lo
pensable. Allí está, my cerca, pero inasimilable. Eso solicita, inquieta,
fascina el deseo que sin embargo no se deja seducir.
Hiroshima (1966-72), assemblage de Farnese de Andrade (Figura 1), por
exemplo, pode ser pensada através do conceito de “Infinito” que recuperamos tanto
de Levinas como de Blanchot, ou como abjeto, se quisermos usar o conceito de
Kristeva (1988), visto que esse conceito carrega uma determinada semelhança com
o “Infinito”.
134
Figura 1 - Hiroshima (1966-72) - Assemblage de Farnese de Andrade
Esta obra perturba uma identidade, um sistema, uma ordem, pois não
respeita limites ou regras. Ela possui uma afinidade com a perversão, desde que
como fazê-la objeto de nosso conhecimento, ou seja, não há como reduzi-la à
medida de nosso olhar que “contempla”. Como Infinito”, essa obra nos provoca e
torna-se “Desejo” pelo que provoca. Fascina pelo horror que causa e pela forma que
apresenta.
O “Desejo”, conceito levinasiano gerado no “frente-a-frente” com a
assemblage, faz com que adotemos um pensamento que pense sempre mais do que
pode pensar, um pensamento que mais questiona do que resolve, mais se angustia
do que se acalma. O “Desejo” que desperta o “Infinito” reconhece que o real não
deve determinar-se apenas na sua objetividade histórica, nos relatos, nas teorias,
nas biografias, mas a partir principalmente do segredo (do murmúrio do ser) que
interrompe a continuidade do tempo histórico e confere ao real um tempo sem tempo
(LEVINAS, 2000, p. 42).
Quem essa idéia de “Infinito” para a obra Hiroshima (1966-72), de Farnese
de Andrade, não é o nosso olhar de contemplador, mas a própria obra, ou seja,
135
Hiroshima é o próprio “Infinito”. Queremos dizer com isso que o que postulamos para
essa obra não é uma idéia de “Infinito” a priori ou de movimento. Levinas (2000a, p.
49) diz que é
parte do pensado e não do pensador. É o único conhecimento que
apresenta esta inversão conhecimento sem “a priori”. A idéia de Infinito
revela-se, no sentido forte do termo. [...]. O Infinito não é “objeto” de um
conhecimento – o que o reduziria à medida do olhar que contempla – mas o
desejável, o que suscita o Desejo, isto é, o que é abordável por um
pensamento que a todo instante pensa mais do que pensa.
O “Desejoé a única medida para o “Infinito”, é ele que mede a infinitude do
“Infinito”. O “Desejo” é, então, uma aspiração animada pelo desejável.
Hiroshima se oferece a nós. Oferecer-se é ser objeto de desejo, e Hiroshima
é geradora de fascínio. Todos os elementos de sua estrutura formal nos parecem
familiares: uma caixa de madeira com portas de vidro, um tronco de madeira,
bonecos de plásticos e um ovo de madeira. Porém, dispostos da forma em que se
mostram, tudo ali assume uma estranheidade assustadora. A estrutura formal
elaborada por Farnese é a expressividade do “Rosto” (um “Infinito”) e nos impede de
dizer que podemos representar para nós mesmos o que estamos contemplando. O
que se faz “Rosto” em Hiroshima não se limita à sua estrutura, mas está além, está
no murmúrio do ser que parece ter sido exorcizado, nos bonequinhos incinerados,
na madeira ofendida pela incrustação da morte por fogo, da fecundidade do ovo de
madeira que talvez sim, talvez não, murmure uma vida. Nada ali conhecemos ou
podemos conhecer. Nada ali nos é comum. Tudo ali muda o curso de nossa
caminhada pela impossibilidade, pelo confronto com o “Rosto”. Hiroshima “fala”, mas
“fala” da infinita distância que nos separa.
Mas o que nos ensina essa assemblage? Nos ensina sobre o abismo da
interpretação. O mundo fica absorvido no mistério de todos esses objetos que se
136
transformam não em mostração” de verdade, mas no que se o direito de nos
confrontar como um “absolutamente Outro” em nosso meio. É sem dúvida um objeto
transtornado que parece não saber ele mesmo as origens de suas formas. É uma
forma “Infinita” que se faz Rosto” através dos objetos mórbidos e do visceralismo
explícito. Ali se instala um mistério que não vem dos objetos em si, mas no que ali se
instala como mistério e faz do artista um perseguidor constante do abismo, um
construtor de enigmas, construtor de vestígios da morte e da mutilação, alimentador
do vagido de um sofrimento sem fim. São produções que, na rebeldia do ser que
reage à luz, marcam com a fenda (tal qual a fenda da madeira, nessa matéria) uma
experiência com o “diferente”. A fenda transforma a matéria em desastre.
Tudo isso faz da assemblage Hiroshima uma estrangeira que não sabemos
de onde vem e que não podemos mais colonizar ou fazer dela prestadora de
serviços, pois, como fazê-la servidora de qual segmento se ela não mostra seus
préstimos? Como “infinita”, essa assemblage não é signo, visto que o seu modo de
significar é anterior a qualquer sistema de signos. Para que serve essa obra?
Hiroshima pode ser pensada, talvez, como testemunho. Ela testemunha, porém, de
outra maneira, ou seja, nunca pela clareza das declarações.
O modo de expressividade por excelência de nosso tempo é o testemunho.
Porém, trata-se de um testemunho nos moldes que sugere Shoshana Felman (apud
SELIGMANN-SILVA; NESTROVSKI, 2000, p. 71), isto é, testemunho que não pode
ser reduzido à sua noção familiar, em que “os textos que testemunham o relatam
os fatos simplesmente, mas deparam-se e nos fazem deparar com a
estranheza”. Não é um testemunho por meio do qual possamos dizer que a obra é
autobiográfica. O testemunho aqui é um desconhecido e causa estranhamento, está
posto na obra como o “Outro”. Não posso “poder” tanto sobre a obra a ponto de dizer
137
o que ali pertence ou não à vida de Farnese de Andrade. o posso “poder” sobre
essa estrangeira, que faz parte da “primeira noite”, essa noite que vem depois do
dia, a noite da natureza, citada por Blanchot. A gestação dessa noite deu-se na
“outra noite”, portanto Hiroshima preserva o mistério da noite que é abismo. Diante
de Hiroshima ficamos sem saber ao certo o que é um testemunho, ou já não mais
sabemos se ele é o que achávamos saber que ele era.
Em Hiroshima o testemunho é um desafio, é o próprio “Infinito”. O
testemunho, portanto, permanentemente em relação ao abismo e por não ser um
simples relato, fala muito mais do que pode falar, é o transbordamento, ultrapassa o
individual. uma “outreidade” nessa assemblage que nem o artista domina
totalmente. Isso nos faz lembrar a frase de Elie Wiesel, citada por Shoshana Felman
(apud SELIGMANN-SILVA; NESTROVSKI, 2000, p. 71): “Eu não contei algo do meu
passado para que vocês o conheçam, mas sim para que vocês saibam que vocês
nunca o conhecerão”. É com essa iia de testemunho que estamos concordando, o
testemunho como o inexprimível, como “Rosto” do “absolutamente Outro”. Hiroshima
faz um caminho obscuro na fragmentação nos objetos ofendidos pelo fogo e pelas
fendas, que, aparentemente desconectados, omitem o seu destino final. O que
testemunha Hiroshima? Esta obra-de-arte atesta que nem sempre a capacidade de
testemunhar é possível diante do trauma, que o silêncio não implica em emudecer,
já que o que se faz murmúrio é a sua condição suprema de possibilidade.
O “frente-a-frente” com Hiroshima é o terror imediato, o qual impede toda uma
apreensão, é a comoção do caos. O Rosto” é esse lugar movediço que a obra
sugere, morada do “Infinito”, na dissimulação (equívoco), na ausência de coerência,
no “aberto” para a morte, para a “outra noite”. Hiroshima é uma obra “fracassada”,
“errante”, “testemunho que não fala claramente de fatos”, “Infinito”, características da
138
expressividade do “Rosto” diante da qual, como diz Levinas, “já o posso poder”.
Porém, não é o caso de medirmos força com Hiroshima ou de dizer que há nela uma
grande resistência, já que a resistência com a qual estamos frente a frente é ética,
visto que diante dela não cabe o nosso domínio. O “Infinito” que mostra a
expressividade do “Rosto” nos impede de atingir essa crueldade e nos põe diante da
impossibilidade. Assim, devemos entender essa resistência como o lugar onde o
“Infinito” estabelece a sua própria dimensão.
A exterioridade do ser “Infinito” que se manifesta na resistência da obra nos
proíbe de qualquer conquista. Com a idéia de Rosto” e de “Infinito”, Levinas nos
mostra que o que está para além de nossa interpretação faz parte de nossa
experiência no mundo e que a arte contemporânea “fala pelo silêncio que gera
desconforto. Dessa maneira, é que podemos atribuir a Hiroshima a noção de
“Rosto”, pois, como aponta Levinas (1967, p. 211), “Chamamos Rosto à
manifestação daquilo que se pode apresentar tão diretamente a um “Eu” e, dessa
forma, tão exteriormente”. O que é “Rosto” e se faz arte está presente justamente na
recusa de seu conteúdo, dessa exterioridade que é em si mesma ética. Assim, para
o que se determina como “Rosto”, a obra de Farnese tem sentido a partir de si
mesma. Segundo Levinas (2001a, p. 79), a expressão,
El rostro es la presentación del ente, como ente, su presentación personal.
El rostro no descubre el ente ni lo recubre. Más aldel desvelamiento y del
disimulo que caracterizan a las formas, el rostro es expresión, la existencia
de una substancia, de una cosa en si [...].
Isso não quer dizer, conforme aponta Levinas (2001a, p. 46), que a
expressividade assim pensada situa a arte acima da realidade, ou que justifique
necessariamente a estética acadêmica da arte pela arte, que “no le reconoce
139
maestro alguno; inmoral en la medida en que libera al artista de sus deberes de
hombre y le asegura una nobleza pretenciosa y fácil”.
As assemblagens de Farnese pertencem à “outra noite” blanchotiana, uma
noite que não acolhe nem se abre, mas que tampouco se fecha. As assemblagens
são a outra noite” pela sua obscuridade, um outro modo do qual Blanchot lançou
mão para pensar o Infinito”. Nada ali se abre, estamos no espaço da sombra. São
pedaços de escombros que o artista colhe em suas caminhadas e depois os reúne
numa estrutura que para ele próprio se configura como enigma. Porém, como
vestígio, deixa uma espécie de rastro (um ruído) que avisa que o artista foi à
profundidade, ao abismo, ao “murmúrio”. São esses escombros que fazem parte da
“primeira noite”, uma construção do dia, dos quais Farnese se apropria para fazer
deles a sua intimidade. O artista acumula no dia esses destroços, e na noite, “na
outra noite”, ele obtém o “Infinito” quando faz da obra “o Outro do mundo”, quando
faz dela um “Rosto” (expressividade do Infinito”).
Farnese faz o que Blanchot diz ser necessário a todo artista, ou seja, viver no
dia e trabalhar para o dia. Porém, Blanchot (1987, p. 170) diz que “trabalhar para o
dia é encontrar, no final, à noite, é fazer então da noite a obra do dia, fazer dela um
trabalho, uma morada, é construir a toca e construir a toca é abrir a noite à outra
noite”. Farnese soube, a nosso ver, correr o risco de entregar-se ao não-essencial.
Soube ouvir o eco de seus próprios passos, porém o eco é-lhe devolvido como
imensidade sussurrante, rumo ao vazio, e o vazio é agora uma presença que vem ao
seu encontro” (BLANCHOT, 1987, p. 169).
Nas madeiras desgastadas, nas andaas pela “primeira noite”, nas cabeças
de bonecas queimadas uma a uma, nas fotos resinadas de seus pais que incrusta
na madeira, a qual por vezes vem cravejada de parafusos de onde jorra o sangue,
140
forma-se o “Rosto”, que é epifania e expressividade do Infinito”. As chagas e as
fendas que Farnese abre em talhes duplos marcam os horrores de um ser que não
consegue dizer-se porque, de tão fragmentado e golpeado pela força impositora do
“Eu”, permanece infinitamente na sombra. Todo esforço de Farnese é, então, voltado
para caminhar sempre na direção do inominável, de um lugar do que é sem
importância, caminhar para o abismo do “Infinito”. Farnese faz da assemblage o
próprio “Infinito”.
Se Farnese escolhe a outra noite” (esse “Infinito”) como morada, é porque a
sua vida exige isso, e a assemblage é profundidade, lugar onde o ser se dissimula, é
profundidade que é a pura perda do ser, movimento problemático que a clareza do
dia condena como loucura ou como expiação do desmedido. Sem suportar o enigma
do Rosto” que realiza a epifania da expressividade do “Infinito”, a crítica de arte se
impelida a falar das assemblagens a partir da biografia de Farnese. As
assemblagens passam a ser explicadas através de uma personalidade bipolar, de
uma relação conflituosa com a mãe ou ainda através de uma sexualidade
conturbada. Pensar a partir daí é roubar-lhes a fecundidade da impossibilidade e
dar-lhes a certeza da possibilidade, do que não se configura como diferente por
medo de abandonar a luz, preferindo a existência conhecida antes que a existência
desconhecida e obscura.
As “hereditariedades”, as influências na obra do artista, como ensina Merleau-
Ponty (2004, p. 136),
o o texto que a natureza e a história lhe deram para ser decifrado. Elas
fornecem apenas o sentido literal da obra. As criações do artista, bem como
de todo homem, impõem a esse dado um sentido figurado que não existe
antes delas. Se nos parece que a vida [...] trazia em germe sua obra, é
porque conhecemos a obra primeiro e vemos através dela as circunstâncias
da vida, carregando-as de um sentido que tomamos emprestados à obra.
141
Assim, a primeira noite” o explica a “outra noite”, mas é certo dizer que
elas se comunicam ou, dizendo de outro modo, que o ser da “primeira noitefaz a
sua toca na sombra da “outra noite”, pura economia e passividade. Na “outra noite” é
gestado esse “Outro do mundo”, que são as assemblagens de Farnese de Andrade.
Essas assemblagens são vestígios deixados na aparência do desaparecimento do
que se faz murmúrio incessante, o “Há”, a morte.
Na assemblage chamada Sem Título (1986), ilustrada na Figura 2, Farnese
funda a experiência com o inominável. Não é de se estranhar que ele próprio a
denominou Sem Título, mas não é a ausência de título conferida pelo artista que a
faz inominável, mas sim a sua presença como “Infinito”.
Figura 2 - SemTítulo (1996) - Assemblage de Farnese de Andrade
Farnese faz dessa assemblage um mutismo “Infinito”. Armário em que o “Há”
levinasiano aparece, escolha do aberto e do fechado, do positivo e do negativo, a
simultaneidade dos antagônicos, uma face do mundo que não está ao nosso dispor.
142
A referida obra é em si mesma um recuo do mundo, pois dele conserva o “murmúrio”
e o fracasso do artista na tentativa de dizê-lo.
Sem Título (1986) apresenta uma canoa dentro de um armário. Será? Ou algo
além disso? Na verdade, apresenta uma fenda profunda que mais parece uma
grande vagina, com o seu interior ensangüentado. Guardada num grande e grotesco
armário, nega-se a dizer o seu enigma. Apenas coloca-se: “Eis-me aqui”. Transgride
quando mantém as suas portas fechadas, resguardando uma intimidade, mas
transgride mais ainda quando as mantém abertas. A metáfora do aberto é
“visibilidade”. Aqui, porém, a visibilidade é invisibilidade radical. Abertas as suas
portas, o mistério não se mantém, pois se radicaliza, torna-se invisibilidade pura que
afirma a transgressão dos tabus. Não dá respostas. Resta o confronto de uma
grotesca forma que se põe, no dilaceramento, no excesso que transborda na
agressão à madeira velha e no sangue que faz sentido unicamente como
desmedida. Somos confrontados pelo inesgotável, pelo excesso.
Farnese cumpre o que Blanchot (1987) diz fazer todo artista comprometido
com a profundidade. O artista faz a sua morada na ausência de Deus e de deuses,
nesse lugar onde a arte é pura ausência de respostas. Vamos, assim, ao insondável
pela arte, da mesma forma que vamos ao insondável pela morte, pois, se a morte
nos deixa atônitos por ser essa impossibilidade absoluta, desde que somos
desarmados de todo a priori, a arte, por sua vez, não nos coloca em situação
diferente. Ela nos joga violentamente no abismo. As assemblagens de Farnese de
Andrade são a própria ausência de obra, é a “desobra”, o centro descentrado, o que
chamamos “Infinito”.
A infinitude da assemblage é promotora do exercício da transgressão, que é,
segundo Bataille (2004, p. 31), a relação com o erótico. Para o autor, o que está em
143
jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas, ou seja, dessas
formas da vida social que fundam a ordem e estão para confirmar os
fundamentos. Assim, por excelência, o campo do erotismo é o campo da violência, o
campo da violação geradora do “Infinito”, que nos faz lembrar nas obras de Farnese
a madeira ultrapassada pelos parafusos enferrujados, as bonecas fragmentadas
incineradas uma a uma, a transgressão lenta, silenciosa ou, ainda, as fotografias
aprisionadas pela resina. Farnese arranca o ser da descontinuidade e faz dele
morte, e isso é violento. Faz o gesto da morte que, segundo Bataille (2004, p. 28),
arranca-nos da descontinuidade e arranca-nos da obstinação que temos de ver
durar o ser descontínuo que somos”, sendo a própria violência. São testemunhos da
dor. A dor dos outros? A dor de Farnese? A minha dor? Há um abismo entre o objeto
de Farnese e o nosso olhar, abismo relatado no vestígio de um murmúrio” que vem
de longe na estrutura da obra. Como diz Bataille (2004, p. 22-26), trata-se de um
abismo que se assemelha à morte, que é, ao mesmo tempo, vertiginosa e
fascinante. É o abismo insuprimível, objeto que vai em busca da nostalgia perdida.
Ou seja, a obra caracteriza essa continuidade do ser que os homens buscam, seres
descontínuos, “indivíduos que morrem isoladamente em uma aventura ininteligível”,
mas que m “a nostalgia da continuidade perdida”. São seres que suportam mal a
situação que os sujeita à individualidade do acaso, à individualidade perecível, e, ao
mesmo tempo, são seres que m o desejo angustiado da duração deste perecível,
seres que têm a obsessão por uma continuidade primeira que os religa ao ser,
segundo o conceito de Bataille (2004, p. 26). Assim, talvez possamos dizer que nas
assemblagens de Farnese de Andrade o que está sempre em questão como
transgressão é essa substituição do isolamento do ser, a substituição de sua
144
descontinuidade por um sentimento de continuidade profunda que é o que, de
acordo com Bataille (2004), está sempre em jogo no erotismo.
3.3 A “outreidade” no Êxodo: fotografias de Sebastião Salgado
O meditador diz ao apresentador de imagens: ‘O que você me
esconde ao mostrar essa imagem?’ [...] Mais brilhante é a imagem,
mais perturbadora é sua ambiidade. Pois ela é a ambiidade das
profundezas.
Bachelard, 1990
Para Levinas, o que se faz ético na obra-de-arte é essa impossibilidade de vir
à luz que se põe no “frente-a-frente” com ela. Trata-se de uma ética da
desobedncia do “Outro” em vir à luz, de uma negação. Ou seja, falamos de uma
ética que não pode, de modo algum, significar a habitual filosofia moral, pois o
“Outrona ética levinasiana nos obriga sem saída a colocar-se em seu lugar nunca
para suplantá-lo, mas para sofrer com ele, para ser seu refém. Trata-se da ética em
que não a legislação nem do Eu” nem do “Mesmo”, um lugar de resistência que
revigora o terceiro levinasiano pensado como justiça. Há, então, uma ética no que
transgride, na resistência do “Outro”, que se torna essencialmente e radicalmente
ético justamente porque transgride. Legislam as leis do impossível, lugar onde o
possível torna-se a negação da ética, ou seja, o impossível desposiciona e
desconstrói o absoluto. A lei do impossível no pensamento levinasiano surge como
necessária para o estatuto da ética. A arte passa a dar voz ao “Outro” como gesto
ético, tornando-se ela própria um “absolutamente Outro”, como fundador de uma
impessoalidade que está fora do nosso espaço, do nosso tempo, do nosso controle.
A arte é, a partir da ética assim pensada, significância por excelência.
145
Ao estar frente a frente com a arte como “Infinito”, o temos a ética como
algo que se impõe a uma consciência já constituída, mas, ao contrário, o que nela se
faz “Infinito” precede a consciência. Isso é possível pela ausência da comunhão
intencional ao mesmo ser, na mesma natureza. A partir de Levinas, observamos que
não é a subjetividade o fundamento último do pensamento e da ação. A consciência
tem como base a ética, que está além do ser e que a constitui. A subjetividade,
então, está como que já habitada pelo “Outro”, pela outreidade”. Assim, nossa
experiência torna-se invariavelmente transcendência (movimento e transitividade),
movimento em direção ao Outro”, e vamos para além do cognoscível. A partir de
então, o único movimento que sustenta a relação com a arte (com o “Outro”) é o
“Desejo”, a paixão, o desejo metafísico. O “Desejo movimenta essa experiência,
pois já o somos mais movidos pela compreensão, a qual passa a ser da ordem do
desejo, da paixão e da fascinação. O “Desejo” é campo de força, campo de atração
que não possibilita o desligamento do que é fascínio. Esse fascínio pertence ao
campo do que é ético.
Numa passagem de Ética e Infinito, Levinas (2000, p. 16) sugere a leitura dos
clássicos russos, a exemplo de Dostoiévski, Tolstói, Gogol e Puchkine, em que
podemos encontrar, segundo ele, o problema filosófico entendido como o do
sentido humano”.
Considerando as suas inclusões no campo da arte, pretendemos ampliar esse
campo tendo em vista o problema da ética a partir da imagem na
contemporaneidade. Para tanto, parecem-nos fecundas as imagens fotográficas de
Sebastião Salgado, nas quais encontramos um espaço de estranhamento” ou
desconforto de um mundo caracterizado pela marginalização. Essas fotografias são
um “Infinito” ético à medida que, ao projetarem a transcendência do Outro”, do
146
humano, transformam-se em obra-de-arte e como tal, em expressividade e
significância de Rosto”. Nas fotografias de Sebastião Salgado há o “balbuciar” da
voz da alteridade marginalizada. Daí resulta que o que buscamos compreender
como ético na imagem, ou seja, essa força estética dialógica, é o que nos atrai pela
relação assimétrica da relação entre o “Eu” e o “Outro” e que nos convoca para uma
responsabilidade infinita. Trata-se de uma responsabilidade que, ao falar sobre a
obra de Dostoiévski, como diz Levinas, “somos todos culpados de tudo e de todos, e
eu mais que todos os outros”. Isso porque o assunto ligado à ética é um assunto
totalmente meu, e não um assunto de um “Eu” hipotético. Na arte fotográfica de
Sebastião Salgado, vemos a nudez do “Rosto” que se põe isenta de qualquer
proposta a priori.
A mostra Êxodo e Retratos de Crianças do Êxodo (Figura 3), composta de
fotografias do artista Sebastião Salgado, fala de milhões de pessoas que migram
todos os dias por várias razões, sejam elas destruição do ambiente, repressão
política, guerras, pobreza absoluta, pressão demográfica. Sebastião Salgado nos
expõe quando nos coloca no “frente-a-frente” com o “Outro” como obra-de-arte e
significância de “Rosto”, no que se faz desconhecido nas imagens. Não se trata,
portanto, de um simples estar frente a frente, mas de um “frente-a-frente” que se
traduz no imediato, que metamorfoseia, conceitualmente, a imagem em “Rosto” do
desconhecido.
147
Figura 3 - Mostra Êxodo e Retratos de Crianças no Êxodo - Fotografia de Sebastião Salgado
Para onde migram esses humanos que caminham sem identidade de lugar,
de solidez com o mundo? Que modo de habitar o mundo é esse? No mundo, o gesto
do fotógrafo capta a realidade crua que a ele se oferece, ele com a sua técnica
ilumina a realidade em seus detalhes na qualidade fractal. Porém, o fotógrafo
fracassa. Capta sempre mais do que vê. E esse fracasso é seu êxito. Algo ali se
oferece para desaparecer, para tornar-se vestígio, para ser um “Infinito” ético. O
“Rosto” está presente na sua recusa de ser conteúdo, segundo Levinas (2000a). As
fotografias passam, então, a ser “Desejo”, não pelo que apresentam, mas pelo que
não apresentam. O “Desejo” é fruto de uma resistência ética que se instala pelo
fracasso do fotógrafo.
A possibilidade da ética está centrada na deposição do “Eu” (na heteronomia)
do fotógrafo. Dessa forma, o sentido não está no ser, mas no movimento de
transcendência que o “Eu” faz em direção ao “Outro”. A transcendência não é
apenas uma visão do “Outro”, é doação pelo “Desejo”, abertura para o “Infinito” que
é o “Outro”. É na abertura ao transcendente pelo “Desejo” que transpomos os
horizontes do ser e o poder da intencionalidade. A ética é, aí, ponto de partida, e não
148
ponto de chegada. Na abertura para o “absolutamente Outro” que a arte realiza e
onde se vislumbra a relação de alteridade por excelência, a ética está no
“estranhamento” como resistência do que se faz expressividade no “Rosto”. Aqui fica
estabelecido, sem grandes estruturas teóricas, mas na simples nudez do “Rosto”, o
fato de que a ética não está na infinidade de normas a seguir, mas no “para além de
qualquer sentido, nessa “assimetriaem que acontece a relação com o Infinito” do
“Rosto”.
As imagens de Salgado jamais podem ser vistas como tema. Elas são, nessa
proposta, significância ética, desde que atribuímos a elas a infinitude do “Rosto”. A
imagem “diz” apenas eis-me aqui, nunca é um desvelamento, questão inerente à sua
natureza de imagem. O eis-me aqui é o espaço por onde o “Infinito” se põe na
relação, mas sem se deixar ver, visto que a sua essência é não ser tematizável. Nas
fotos vemos realizada a nudez do “Rosto”, que põe o não matarás” e depõe a
autoridade do “Eu”. Põe de forma espontânea uma intimação justa à
responsabilidade, num espaço onde o Outronas imagens é, de imediato, aquele
pelo qual eu sou responsável. Ou seja, não me preocupo com o “Outro” em relação
a mim. O fotógrafo marca, no fracasso, a sua responsabilidade pelo “Outro” e nos
confere ainda essa sociabilidade com relação ao “Outro”. As imagens de Salgado
nos inferem o respeito a outrem como princípio inerente à sua existência e tamm
dão testemunho do “Infinito”, em que o conceito de testemunho, segundo Levinas
(2000a, p. 99-101), implica “um modo de revelação, mas esta revelação o nos
nada [...]. O testemunho ético é uma revelação que não é um conhecimento”. É a
própria impossibilidade de trazer à luz qualquer testemunho. Daí o fracasso” como
êxito nas imagens de Sebasto Salgado.
149
Êxodo, nome da exposição de Salgado, significa a saída de “uma casapara
iniciar a busca de uma casa nova”. Significa transcender, ir ao encontro do
desconhecido. No êxodo contemporâneo de Sebastião Salgado um povo em
busca de uma Terra Prometida, um povo que diz eis-me aqui. Uma história parece
repetir-se, um Abraão desconhecido faz do êxodo um Infinito” ético. São imagens
dos “Outros” e que, portanto, caracterizam uma imagem “Outra”, um enigma dos que
estão caminhando sempre em busca do nada. No êxodo se realiza o mistério do
“Outro”. Eis-me aqui em êxodo, sou o caminhante sempre caminhante, numa relação
irredutível com a terra, o “sem-lugar”, o sempre sem verdade. As imagens instauram
a idéia de Infinito”, a relação com o “Outro” como diferente. Quem é esse “Outro”,
que o tem ponto fixo, não tem identidade, sem “Rosto”, “sem lenço e sem
documento” (na fala do poeta)? Quem é esse “Outro” cuja “pátria” é um lugar nunca
presente?
Desse Outro” que aí se faz imagem da infinitude nada podemos dizer. O
fotógrafo fracassa porque o que testemunha resiste à tematização, porém
testemunho, embora nenhuma presença ou atualidade é capaz de fazê-lo. ali o
vestígio, os vestígios na luminosidade da foto, no olhar sutil roubado pela lente, nas
vestes que emolduram os corpos. Tais corpos por sua vez parecem o deixar
marcas nos espaços por onde andam, pois caminham sem contar o tempo, vivem
num “tempo-sem-tempo”. Caminham sempre no espaço do sem-tempo” e no
espaço do desvio. O “Outro” aqui investe no mistério, torna-se ético. É essa a
questão primordial para a ética levinasiana: o desejo por uma identidade secreta que
se faz impossibilidade ética, em que a existência não é mais o reduto do ser, mas
um lugar completamente fora” de nosso domínio. Tudo está no espaço do êxodo,
no “sem-tempo” do tempo. Podemos ter nas fotografias de Salgado uma experiência
150
diferente que, sendo neutra, convoca uma relação com a alteridade radical que se
exprime por parâmetros outros, numa outra espacialidade e numa outra
temporalidade. Ali no “frente-a-frente” com o “Outro” já não estamos mais num
confronto de poderes, desde que a proposta ética reverte o poder em
respeitabilidade. Estamos diante da arte como alteridade radical. Ser responsável
nessa ética é abrir-se passivamente, abnegadamente, para a insondável morte e
para o sofrimento do Outro”, uma ética que não considera o “Outro” como espírito,
mas como corporeidade e carne: exterioridade que não está no espaço, que não é
intencional nem está antes do espaço a priori (espaço kantiano), mas que é a
própria origem do espaço. A arte como alteridade radical é, então, aquela que nos
desarma de todo poder de interpretação e que nos faz ser um “aí do Outro”, antes
da relação Eu–Tu, e, ao mesmo tempo, antes de se ver tomado pela súplica do
“Outro”.
Sebastião Salgado é “carne” que se movimenta para atingir o que vê, ele vê o
que seu “olhar” deseja, ou seja, a medida dos deslocamentos de seu corpo em
que as visibilidades são traduzidas. Essa visibilidade, por sua vez, não é uma prévia
operação do pensamento como apropriação do mundo. É, segundo Levinas (2000a),
o “frente-a-frente” com o mundo, a iniciativa do corpo. Trata-se de dizer que as
imagens de Sebasto Salgado são engendradas no dia, na materialidade da
existência, ou seja, na vida perceptiva de seu corpo que realiza a abertura primeira
para o mundo, tal como afirma Merleau-Ponty (2003). Porém, o que esse gesto”
perceptivo traduz em visibilidade na obra-de-arte em Levinas (2000a) se faz Rosto
do desconhecido, o lugar onde é dada a medida de todo estranhamento, onde o
“entretempo” levinasiano faz perdurar a duração de um tempo trágico em que o “Há
151
se instala. É o lugar onde a imagem é ela mesma, porém é, ainda, semelhante a
uma realidade não como identidade mas como sombra.
Assim, a imagem de Sebastião Salgado carrega consigo o que é “gesto”,
“carne”. Ele, o artista, vai ao mundo, porém, as suas imagens não se fazem mundo.
Elas se fazem um “Infinito”, e muito antes de se deixarem interpretar como
“consciência de”, são sociabilidade e obrigação, são a recusa de aparecer à luz.
Essas imagens deixam de ser mundo para ser “Infinito” porque se apresentam como
“Outro(o “Outro do mundo”) que faz frente, resiste e põe a obrigatoriedade ética
pela sua essência de ser “Infinito”. O “Infinito” é a significação e realiza o feito
proposto pela ética levinasiana ao imprimir na imagem uma respeitabilidade, uma
socialidade talvez ainda um pouco estranha ao logos da tradição ocidental, ao
substituir radicalmente o Eu” pelo “Outro”. Nas imagens de Sebastião Salgado, o
“Outropõe a alteridade, sendo esse para além do ser, onde o “Infinitofaz-se ética
no pensamento levinasiano. É, pois, na falta de luminescência do ser, que é
acessível como imagem ou palavra o compreendida, segundo Blanchot, pela arte
e pela palavra poética, que vemos igualmente se realizar, na sua radicalidade plena,
a ética levinasiana.
152
3.4 O corpo “impossível”: fotografias de Andrés Serrano
La Morgue es un templo secreto donde a pocos se les permite
ingresar.
Serrano, 1998
[...] mas há uma outra barreira que nos separa: a do pano morto
sobre um corpo silencioso, dessas vestes que é preciso reconhecer
e que nada vestem, impregnadas de insensibilidade, com suas
dobras cadavéricas e sua inércia de metal.
Blanchot, 1991
Não é necessário um conhecimento profundo do panorama artístico
contemporâneo para perceber o quanto o corpo vem sendo usado como objeto da
arte e, diga-se mais, corpo cuja expressividade artística se faz na imagem da dor e
da catástrofe. O corpo como objeto da arte apresenta-se nas feridas, nas
fragmentações, nas mutilações, nos golpes, nas enfermidades, no voyeurismo
perplexo. Enfim, apresenta-se como um corpo “da morte”, da dor do Outro”, como
nunca antes se viu na arte. A arte fez do corpo o lugar do “impossível”, do desastre,
da enfermidade e da morte, muito mais do que do prazer e das idealizações.
A catástrofe como um “absolutamente Outro”, segundo Levinas e Blanchot,
fica fora de qualquer “representação”. Portanto, um corpo que se situa no espaço da
catástrofe se apresenta como um corpo que está para além de comunicação, pois
diz mais do que pode dizer, é um corpo “Infinito”. Na expressividade desse corpo
estamos frente a frente com a impossibilidade da visibilidade do ser. Não como
interpretar um corpo que se fecha na sua “egocidade”. É, a nosso ver, esse corpo
um “corpo Outro do mundo”, um corpo impossível que as artes visuais trazem para
nós hoje nas fotografias, nas performances, nas pinturas, nas instalações. O corpo
humano nas artes visuais hoje está longe de ser o corpo da totalidade. Observamos
a perda de sua condição de “corpo ideal e nos deparamos com o princípio de
153
unidade sendo substituído pela fragmentação ou, ao que Sánchez (2004, p. 95) se
refere como “cuerpo paratáctico”, ou seja,
un cuerpo que, siguiendo el ‘paradigma Frankenstein’, se performa como
yuxtaposición no sintáctica de ‘escombros’. Dicho concepto del ‘escombro’
se explica por esta nueva ‘dimensión anarquitectónica’ del cuerpo, en la que
cada una de las partes que lo componen dejan de poseer esse carácter
único y sagrado que otrora lo distinguiese, para potenciar su naturaleza
mutable e intercambiable.
É um corpo que é muito próprio do homem contemporâneo, conforme afirma
Sánchez (2004, p. 96), que se bricola e se profana. Na sua vocação para
escombros, o corpo na arte na contemporaneidade faz da morte o seu reduto, ou
seja, o “escombro” como medida de todas as coisas. O corpo torna-se fragmentado
e angustiado, e cada parte passa a exigir uma identidade própria.
É, então, o caso de pensarmos, a partir de Blanchot e de Levinas, que o
corpo humano se fez um “completamente Outro” na arte da contemporaneidade ou o
corpo está apresentado na arte, radicalmente, “de outro modo que ser”. Esse corpo
vem a nós como outrem, com radical intensidade e na profundidade da sua
estranheza, a partir da realidade dos campos de extermínio do nacional socialismo,
base de onde Levinas (2000a) desenvolve toda a sua ética da alteridade. Trata-se
de uma realidade que de tão intensa tornou-se irreal para ser concebida como
verdade, uma realidade que dizia além da compreensão dos homens ou para além
da dor dos homens. A arte realiza em si mesma, nos corpos da dor, a
impossibilidade de pensar para além do incessante e nos a experiência “de outro
modo que serda humanidade. O outro modo de ser da dor é demasiado pesado
para o nosso pensamento. Conhecíamos os corpos guilhotinados, os corpos
dilacerados e amordaçados, é verdade, porém, não conhecíamos tantos corpos
juntos, agonizantes, sem identidade, sem respeitabilidade, vagando no inexplicável,
154
à espera da morte como nos campos do nacional socialismo. Quando não vagavam,
amontoavam-se nos escombros, na redução da morte, sem companheiros para
enterrá-los. Trata-se de corpos que se esvaziavam na magreza e na dor quando em
vida e que, quando sem vida, descansavam da dor final nas valas comuns, tinham o
conforto da morte depois de arrastarem-se como por um impulso impessoal à vida.
Esses corpos ficaram à disposição da máquina de extermínio, expostos às
experiências dolorosas, tornaram-se “corpos sem dono”, corpos sem identidade e
sem vontade diante da infinitude da dor. Corpos sempre em bandos, expostos ao
sacrifício, pela tecnologia da morte. Corpos que já não se sabiam mais de carne e
osso, incapazes de representar para si o “desastre” em face do indeterminado.
Corpos desconectados de alma e de qualquer intencionalidade, pois nada disso
fazia sentido. Eram apenas corpos. Corpos que se ofereciam à impossibilidade de
qualquer interpretação. Corpos abjetos. Corpos que, a partir de então, fazem-se
comuns nas guerras que se arrastam pelo século XXI, corpos dos bombardeios nas
guerras, na violência das cidades, no desespero dos suicídios. As guerras lidam com
o corpo como que desconectado de um espírito, da singularidade do indivíduo. Elas
esvaziam os indivíduos. São homens ocos, cansados da dor, tais como os descritos
pelo poeta Eliot (apud JUNQUEIRA, 2000, p. 117):
Aqueles que atravessam
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam – se o fazem – não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados
Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a sombra
Á vida é muito longa
155
Levinas (2001b, p. 14), em seu texto Algunas reflexiones sobre la filosofia del
Hitlerismo, situa o corpo no centro de suas reflexões sobre o hitlerismo e pergunta:
Qué es, según la interpretación tradicional tener un cuerpo? Es soportalo
como un objeto del mundo exterior. A Sócrates le pesa como las cadenas
que carga el filosofo en la prisión de Atenas: lo encierra como la tumba
misma que lo aguarda. El cuerpo es el obstáculo. Quiebra el impulso libre
del espíritu, lo trae de nuevo a las condiciones terrenas, pero, como un
obstáculo debe ser sobrellevado.
Na tradição por trás da rebeldia do espírito na aceitação da dor, existia a
possibilidade de reduzir sentimentos “grosseiros” a sentimentos de pureza absoluta,
à dor física absoluta, nunca à singularidade do corpo que sofre. O corpo é apenas
um acidente desgraçado ou feliz que nos coloca em contato com o mundo
implacável da matéria, e sua aderência a um “Eu” vale por si mesmo. Para
Heidegger, filósofo que Levinas tem sempre sob a sua mira, o corpo humano não
recebe status de um existencial, pois carece de autonomia para tanto, o corpo está
sempre em segundo lugar. O mesmo acontece com a percepção. Já para Levinas,
ao contrário, o corpo não está encoberto por uma Stimmung, essa totalidade efetiva
que anula uma relação singular para que seja compreendida através dela. Para o
pensamento heideggeriano, a sensibilidade corporal está, de certo modo, subsumida
na Stimmung. Em Totalidade e Infinito (2000a, p. 96), Levinas percebe o corpo
constituído pelas dores, todas as dores pelas quais o corpo serve de veículo
enigmático. Diz o filósofo: “Vivemos de ‘boa sopa’, de ar, de luz, de espetáculos, de
trabalhos, de idéias, de sono [...]. Não se trata de objetos de representações,
vivemos disso”. E ainda completa: “Y en la inclemencia del dolor físico, no
experimenta el enfermo la simplicidad indivisible de su ser cuando da vueltas en su
lecho de convaleciente para encontrar uma posición que lo alivie?” (LEVINAS,
2001b, p. 15).
156
O corpo é constituído de ações singulares, complexas e infinitas, e, quando
exposto ao sofrimento, inaugura um lugar para além da perseverança do ser, em
que é possível ser sensível ao chamado, ao sofrimento do “Outro” homem. A dor de
cada corpo é única e infinita. O corpo é um Infinito”. Assim, posso aproximar-me da
dor do “Outro” pela impossibilidade de compreendê-la. La Morgue é a acolhida
radical da dor do “Outro”.
A arte na experiência dos escombros, da morte em massa, deu ao corpo
humano um outro relato. O corpo passa a ser mais do que simplesmente um corpo.
Ele é o lugar do “Neutro”, um corpo oco, lugar de uma relação sem relação, da
dessimetria entre si e o nosso olhar. Na arte, o corpo nos fala como enigma de uma
relação com a qual não temos a menor intimidade. Ali ele se constitui no próprio
mistério, um lugar estrangeiro, lugar da dor do “Outro”, lugar onde o corpo humano
declara a sua paixão pela impossibilidade. Esse “corpo Outro do mundo” que vemos
na arte nasce na vida do nosso dia-a-dia, nasce de nossas relações humanas para
depois, diante da dureza do real, fazer-se um “absolutamente Outro”. O horror das
marcas vira “Infinito”, abjeção e, paradoxalmente, fascínio. Trata-se de um corpo
abjeto, um corpo que nos aterroriza, um corpo que é a medida da totalidade, da
relação de poder entre o “Mesmo” e o “Outro”, o corpo como “Rosto”. Esse corpo
que está em desmesura diante do desastre é, portanto, a fala da desmedida e puro
estranhamento do qual a arte hoje se ocupa.
A arte tem a propriedade de nos apresentar um corpo que nunca nos é
próximo, pois ele está sempre muito perto da morte, do abismo, da catástrofe, da
noite e de tudo o que esà margem. Entre outras abordagens, a idéia de marginal
caracteriza-se pela debilidade, porém não por uma debilidade quantitativa em
relação a um centro pleno de sentido a partir do qual construímos uma degradação,
157
mas ao contrário, por uma debilidade que se realiza pela inexistência de um centro
que se caracteriza pela perda total de um sentido através do qual pudéssemos inferir
qualquer fundamento. O corpo aparece descentrado de propósitos, e na
vulnerabilidade dessa marginalidade como debilidade torna-se possível experimentar
a vida como imediatez, como infinitude, como vulnerabilidade dos limites.
Observamos que a arte contemporânea fez da fotografia o seu grande
suporte e assumiu essa modalidade artística primando pela incomunicabilidade
extrema. A fotografia tem na contemporaneidade a afinidade com a apresentação do
corpo, o corpo dolorido. A fotografia da dor do “Outro” tornou-se um desafio para a
imagem que se entendeu sempre como captadora do real. Agora o real vem
incomunicável, tamanha a sua realidade de real. Diante da dor do “Outro”, a
fotografia nos e em relação com o “Infinito”. Não diz a dor. Não diz o real. Diz o
que é um “Infinito”.
Em 1936-1939, durante a Guerra Espanhola, conforme afirma Sontag (2003),
tivemos pela primeira vez fotógrafos testemunhando a dor do próximo nos campos
de guerra. Daí para a frente, a fotografia vem nos colocando sistematicamente
diante da dor do Outro”. Sontag (2003, p. 24) diz que a fotografia flertou com a
morte”. A fotografia é o vestígio de “algo” que se faz rastro na lente da câmera. A
dor, a morte, a esperança, o desespero e a perda fazem-se vestígio no papel
fotográfico. A fotografia imprime o vestígio da dor, diz o inferno das guerras e das
injustiças sociais pelo viés da sombra, do contorno e da marginalidade das suas
bordas. Na contemporaneidade esse é, sem vida, o perfil principal das fotografias
que temos no reduto das artes. Elas fazem parte das grandes mostras nas galerias,
mas principalmente se inserem na busca dos fotógrafos. A investigação pela
158
imagem, seja ela fotográfica ou através da videoarte da dor do “Outro”, formam
grande parte da produção artística da contemporaneidade.
As fotografias despertam questionamentos e repulsa. Diante delas, advém
uma série de questionamentos, entre os quais: Quem promoveu toda essa dor, esse
horror, essa monstruosidade? Que dor é essa que de tão infinita não cabe na nossa
compreensão? Daí vivemos um paradoxo, ou seja, a imagem da dor e da morte cria
repulsa, porém, ao mesmo tempo, gera fascínio e desejo. Essa repulsa anexada ao
fascínio, no pensamento levinasiano, é fruto do “não matarás”, que faz eco nas
imagens como um “Rosto e que reclama de nós, na sua resistência, uma ética
centrada na respeitabilidade. Reclama uma respeitabilidade pela alteridade do que
se realiza como um absolutamente Outro”, negando-se a vir à luz, não se deixando
apreender pela interpretação e que nos ensina na assimetria dessa relação. O que
se faz “absolutamente Outro” como imagem na arte, ou diga-se, a própria arte é o
incomensurável, o infinitamente grande diante do nosso pensamento, ou a imagem
que mostra mais do que pode mostrar e torna-se, então, murmúrio do ser.
Diante de tais imagens somos muitas vezes tentados a usufruir a liberdade de
não ver. Porém, é notório que raras vezes lançamos mão dessa possibilidade. O
fascínio faz da imagem “Desejo”, e o desejado apela fortemente para a visão,
fortalecendo o conceito levinasiano de “Infinito” como fragilidade, que é, ao mesmo
tempo, força, distância e, paradoxalmente, é também proximidade. Essa
proximidade não se deixa manusear pelo poder e se impõe como Infinito”. Sontag
(2003) diz que Bataille tinha em sua escrivaninha para olhar todos os dias a imagem
de um prisioneiro da China que padecia da “morte dos cem cortes”. Era uma imagem
de horror que foi reproduzida no último livro de Bataille publicado em vida, em 1961,
intitulado As Lágrimas de Eros. Bataille se dizia obcecado por essa imagem de dor,
159
a um tempo extasiante e intolerável, e tinha um apelo estranho de desejo
misterioso de vê-la todos os dias.
Tal qual Bataille, temos a história contada por Sócrates na República de
Platão, livro IV. Nesta obra, Sócrates conta uma história que ouviu acerca de
Leôncio, filho de Aglaion. Leôncio titubeava em ver os corpos dos criminosos que
jaziam por terra. Cobria os olhos para não ver tamanha cena de horror. Porém, o
desejo o venceu, e ele então abriu bem os olhos, correu até os corpos e gritou:
“Pronto, está, olhos malditos, regalem-se à vontade com essa bela visão”. A
relação com a morte e a dor através da imagem é a relação com o horror e com o
fascínio.
A fotografia se faz estrangeira. Os corpos fotografados por Andrés Serrano,
especialmente na série La Morgue (1992), compartilham, a nosso ver, da mais plena
expressividade da passividade do ser. A relação com essa desconhecida, a obra
fotográfica, é impossível sob o modo de um conhecimento objetivo. o estamos
diante de algo de todo desconhecido, porém tamm não estamos diante de algo
conhecido. Essas fotografias pertencem à visibilidade, mas o que nelas balbucia
pertence à ordem da invisibilidade. Assim, o que está ali nas obras fotográficas de
Serrano não é da ordem nem do visível nem do invisível. Para Blanchot, é da ordem
do Neutro”, do desconhecido. Para Levinas, essa experiência é da ordem do “Há”.
Algo ali murmura, mas não sabemos o quê. Murmura algo do espaço da “outra
noite”. Murmura o que se faz o Outro do mundo”. O que murmura é a violência
obscura do ser e que nos ameaça, pois La Morgue nos leva a fazer a experiência
com a morte, com a própria dimensão do desconhecimento. Em La Morgue, Serrano
nos oferece fragmentos de corpos de cadáveres retratados durante a sua passagem
pelos necrotérios. As imagens de uma ferida, de mãos carbonizadas, de um rosto
160
com os olhos cobertos, convertem essas imagens no Infinito”. É a dor do Outro, a
enfermidade do “Outro” até o momento em que a morte se instala na desmedida da
dor.
Por serem fotografias, essas imagens se confundem a princípio com a própria
realidade, mas estar frente a frente com elas é algo que nos confronta e não
estamos mais em contato com o conhecido (com o “Dito”), mas em uma experiência
com um corpo Outro” que se faz “Rosto” na arte (com o “Dizer” como “Infinito”). O
corpo ali está na mais absoluta crueldade, na quebra dos tabus, na confrontação
com a morte. Serrano desce até o abismo para capturar o ser e não captura mais
que um vestígio, um rastro da morte. Isso se faz “Rosto” na imagem do que se
mostra como um abjeto, o inominável. Os corpos de Serrano vêm de uma tentativa
que, a princípio, se configura como impossibilidade, pois as imagens buscam
capturar a enfermidade e a solidão da dor e da morte. A enfermidade, a solidão e a
morte expressam, para Levinas, esse recuo do ser, uma evasão do ser e, por
conseqüência, a sombra do “Há”. Instaura-se o domínio do “Há” que aterroriza o ser.
São questões como essas que Serrano parece tentar capturar em suas
fotografias, ou seja, a infinitude da dor, porém sabe não poder nunca capturar. Mas
o artista vai ao abismo nessa tentativa, e no fracasso ele encontra o seu êxito. Como
poeta das imagens, é necessário ir ao abismo para, justamente, falar da
impossibilidade. O artista faz, então, um movimento contraditório, deseja, mas não
quer, expor as coisas à luz. O que ele deseja, então, é ir ao abismo, ao indizível.
Assim, vai buscar na enfermidade essa possibilidade de sombra, apresenta rostos
de homens e mulheres mortos nos depósitos de cadáveres. São rostos do torpor,
esgotamento, envenenamento muscular para o fisiologista. Mas o é isso que
interessa ao poeta das imagens, e sim o vestígio secreto pelo qual esse instante é o
161
cumprimento, e o apenas o resultado. Ele marca então o vestígio. Porém, apenas
a existência do vestígio deixa um “existente sem existência”, “um algo que
murmura no fundo do próprio nada” (LEVINAS, 1998b, p. 67).
Serrano faz questão de falar de um corpo enfermo que morre, esse corpo
que, após a dor, proíbe qualquer espera que não seja ela mesma, corpo que acaba
cedendo ao mais absoluto silêncio, o da morte. “O roçar do “Há” é o horror”, diz
Levinas (1998a, p. 70). É a imagem, então, de um corpo, quando em vida, que era
estranho para o próprio Eu” que o habitava porque a dor da enfermidade que o
afligia era, em seu corpo, o próprio estranhamento. Esse corpo não compreendia a
passividade da dor que anunciava lentamente a morte, esse lugar no qual o tempo
conservava toda a sua paciência, o tempo da enfermidade: um “tempo-sem-tempo”,
o enigma da enfermidade que se sabe estar ali nos vestígios da carne corroída.
Na enfermidade há” um estranho que habita o corpo e que o faz estrangeiro diante
da vida, que exige dele ação. É o corpo enfermo no lugar da passividade do tempo,
lugar por onde o “tempo está parado confundido com o seu intervalo(BLANCHOT,
2001, p. 88).
Daí resulta Levinas e Blanchot pensarem a palavra poética e a arte em geral
com uma estreita proximidade com o impensável como sendo a morte, evento
impossível. Em Levinas e em Blanchot encontramos a morte como “Outra morte”, ou
seja, a morte não é a possibilidade da impossibilidade. A impossibilidade nos
referidos pensadores não vê a sua possibilidade no feito do acontecimento da morte.
A morte é o desmantelamento de uma estrutura de poder e dominação: a
exterioridade pura. O que realizam as imagens de Serrano no seu enigma é a
própria exterioridade, que nos põe na radicalidade do “não podemos poder”. Nela
estamos no seio do próprio ser, somos parte do enigma. Ou seja, ali na morte do
162
“Outronos advém algo que murmura para do ser, algo “de outro modo que ser”,
ao qual estamos aderidos e que como parte do mistério “já não podemos poder”.
Somos a própria “impossibilidade” diante do “corpo impossível”. Serrano faz do
corpo um “corpo abjeto”, acessa em nós o lugar onde habitam nossos temores,
nossos desejos contidos, os horrores que nos constituem como sujeitos. São lugares
temidos, porém secretamente desejados. A abjeção é o outro lado dos digos
religiosos, morais e ideológicos. A abjeção é, portanto, o que ameaça a ordem de
nossos pensamentos. O enigma da enfermidade que entrega o corpo a um tempo
“outro”, um tempo da lenta consumição da vida.
As fotografias de Serrano o perversas na medida em que não assumem
nem abandonam a interdição, uma regra, uma lei, mas a corrompem. Para Kristeva
(1988), a abjeção é um objeto que se serve da lei para degenerá-la. Assim são as
fotografias de Serrano, que invadem a intimidade da doença e da morte, invadem o
direito de o cadáver não mostrar a sua aparência de perda, de esvaziamento da
vida, não mostrar a rigidez da carne. O abjeto, ou esse “absolutamente Outro”, vive a
serviço da corrupção. Mas, de outro lado, o cadáver como abjeto fascina, tal como
descreve Blanchot em A Pena de Morte (1991, p. 28), na sua lenta descrição da
enfermidade e da morte de J.,
Após a morte, é sabido que as pessoas bonitas voltam a ser, por um
instante, jovens e belas: a doença, os sofrimentos quase insanos, uma luta
sem trégua para respirar, para não respirar demais, para estancar o acesso
da tosse que, a cada crise, ia ao limite de sufocá-la, toda essa violência
desordenada e sôfrega que deveria torná-la medonha, nada podia contra a
expressão perfeitamente bela e juvenil que, embora algo dura, clareava seu
rosto. Isso é indubitavelmente estranho.
As leituras das obras de Serrano partem do insustentável e comprovam a
impossibilidade das leis, da religião e do direito porque mostram além do que podem
e “falam além do que querem dizer, pois em nada iluminam. Esse “além é o
163
“Infinito”. O corpo abjeto faz um apelo ao sujeito solidamente instalado em seu
“super-Eu”, pede a ele uma flexibilização do “super-Eu”, aponta para a debilidade do
corpo, corroído pela doença e pela morte. Apresenta o corpo impuro, esse elemento
relativo ao que é limite, ao que está à margem. Mostra o corpo podre, que fere o
olfato pela queimadura. A enfermidade que lentamente corrói o corpo até a morte
vem do completamente exterior aos nossos poderes, representa o perigo, o horror
da impotência, a identidade ameaçada pelo completamente desconhecido. Como
doar sentidos a essas obras?
La Morgue
18
nos leva a contemplar o corpo de outro lugar. O corpo da
podridão, do prurido, do sujo, da pele que se desfaz. O corpo impuro. Seus
segmentos, vômitos, pruridos, sêmen, sangue, carne em putrefação, excrementos,
fazem parte da arte contemporânea na rejeição do corpo apolíneo e no excesso do
corpo dionisíaco, do prazer, da sexualidade, um corpo totalmente descentrado.
Serrano representa com propriedade esse segmento da arte hoje. Suas fotografias
examinam esse lugar totalmente profano quando o artista mostra os fluídos do corpo
(como as fotografias que descrevem a trajetória do esperma em uma ejaculação), ou
ainda na fotografia de um crucifixo submergido na própria urina do artista
19
. São
obras de profunda estranheza, que se realizam na inoperância quando tentamos
acolher qualquer imagem de tamanha exterioridade. A relação com o “Neutro”
blanchotiano é esse espaço da transgressão levado ao limite, que acaba na
ausência de espaço para profanar. O corpo aqui é o corpo do “Outro”, o corpo
humano, desfigurado, violentado, bestializado, o corpo morto, é também a própria
morte. A exterioridade é de tal dimensão que não sabemos mais se estamos
diante de um corpo humano ou da própria morte. Estamos diante do que é o
18
Queimado vivo III, uma das fotografias da série La Morgue.
19
Obra intitulada Orina-Cristo, de 1989.
164
“Infinito”, da arte como “Infinito”, do corpo do “Outro” como “Rosto”, pura paixão pelo
“Infinito”. Ali se instala o incomensurável. ali um real que escapa ao nosso
controle, um real para além do real, um objeto de fascínio.
La Morgue é “Rosto”, é exterioridade absoluta, é relação com a morte e
imagem dela. Como enigma da imagem, a morte aqui não é uma faticidade empírica,
ou seja, ela não se esgota nesse aparecer. É na imagem como Rosto”, na arte da
imagem, que nos confrontamos tamm com o corpo do “Outro”, como “Outro”
humano. A imagem é “Rosto” porque infere a responsabilidade para com o “Outro”.
Digamos que a arte é um “Rosto” que retifica o “Rosto” do “Outro” homem. Ela infere
o enigma do humano e, diante das imagens de Serrano, vivenciamos uma
experiência semelhante ao estar frente a frente com o Outro”. Alertamos que, tanto
na filosofia levinasiana como no pensamento blanchotiano, esse “para além do ser”,
que é o “Infinito”, não significa tomar o rumo de uma experiência mística nem
tampouco se trata de outro lugar que nada tem a ver com o ser, mas antes do
desgarramento do ser da força significante.
Serrano faz de suas fotografias um objeto de desejo erótico se pensarmos a
partir de Bataille (2004). “O que significa o erotismo dos corpos senão uma violação
do ser dos participantes, uma violação que conspira com a morte e com o
assassinato?” pergunta Bataille, para quem os corpos “se abrem para a continuidade
por intermédio desses redutos secretos que nos provocam o sentimento da
obscenidade” (2004, p. 28-29). O erótico, segundo Bataille (2004, p. 28), tem como
“finalidade atingir o ser mais íntimo no ponto onde ficamos sem forças”. O erótico é
violência, é puro estranhamento, pois é sempre perturbador arrancar o ser da
descontinuidade da vida. O erótico é a morte. A continuidade do ser está na morte,
sendo a vida a descontinuidade. Somos apegados à descontinuidade, por isso a
165
morte nos assusta, pois ela nos diz que a individualidade descontínua que em
nós vai repentinamente se aniquilar. Segundo Bataille (2004), essa passagem do
descontínuo para o contínuo é sempre violenta. Serrano apresenta a imagem
aterrorizante dessa passagem, mostra vestígios da “continuidade do ser” que nos
violenta. Ali está o “Outro”, o corpo do humano devolvido à continuidade do ser, ou
seja, à morte. A arte é ela própria esse “Outro do mundo” que abarca tudo porque
que é gerada na “primeira noitede Blanchot, mas se realiza mesmo naoutra noite”
blanchotiana. Paradoxalmente, mesmo abarcando tudo, não significa que ela seja
uma totalidade. Ela é o “Infinito”, é paradoxo do que se faz “Rosto”, que não se
reduz a uma forma plástica, pois é toda corporeidade. A arte é significância mesma
da alteridade, e nas fotografias de Serrano mostra a humanidade do homem no
retraimento do que indica ser um novo modo para se pensar o sujeito. É pura
expressão do “Infinito”.
As fotografias de Serrano da série La Morgue, como ilustrado na Figura 4,
constituem, a nosso ver, esse desejo de proximidade infinita com o abismo. A série é
o espaço de duas forças antagônicas: a da nostalgia da continuidade (morte) e a da
fixação da descontinuidade (vida).
166
Figura 4 - Mostra La Morgue - Fotografia de Andrés Serrano
La Morgue é um abjeto, pois, como sugere Kristeva (1988), num conceito
muito próximo dos conceitos de Levinas e de Blanchot, o abjeto o é um objeto ao
qual nomeamos, ou seja, não é um correlato; ele possui a qualidade de opor-se ao
“Eu”. A abjeção da relação com a morte do próximo é uma relação exterior
totalmente estranha à nossa interioridade e que não remonta a nenhuma experiência
propriamente nossa porque é a desmesura da passividade do ser. Na série de
fotografias que compõem La Morgue, a abjeção da imagem fala através de um
discurso perturbado pelo ruído ininterrupto queo nos deixa sossegado, instalando
a transcendência radical.
O corpo impossível ou o “próprio impossível” que é o corpo na arte de
Serrano está aí para deixar o pensamento anunciar-se conforme outra medida que é
diversa do poder, como afirma Blanchot (2001, p. 87). A medida é a obscuridade
167
infinita. O corpo enfermo, a morte”, o fragmento de corpos fotografados, adquire a
força da exterioridade e afirma o impossível. Trata-se do corpo da catástrofe, lugar
onde a morte do próximo deixa de ser saber sobre a morte do “Outro”, desde que
estamos diante de uma relação excepcional, ou seja, não como interpretar, não é
um fenômeno nem provoca nenhum encontro da consciência com ele. Assim, as
imagens de Serrano realizam em si mesmas a morte como exceção e nos dão a
dimensão da morte como excesso, como algo nunca compreensível. A morte é, na
sua real profundidade na existência humana, uma inquietude no desconhecido, que
não se converte em objetivo nem em tema, pois se destaca como inquietude que
“plantea una interrogacción que no puede transformarse en respuesta, una inquietud
en la que la respuesta se reduce a la responsabilidad del interrogante o del
interrogador” (LEVINAS, 1998b, p. 28).
3.5 “Estranhamento” na morte: plastinizações de Gunther Von Hagens
Os olhos do homem me apavoram: quis extrair do contato com
esses despojos um revigoramento de orgulho: sinto um
estremecimento semelhante ao que experimentaria um vivo que,
para congratular-se de não estar morto, faria estardalhaço em um
caixão.
Cioran, 1989
O mais violento para nós é a morte, que, precisamente, arrancar-nos
da obstinação que temos de ver durar o ser descontínuo que somos.
Bataille, 2004
Se as fotografias de Andrés Serrano aterrorizam e fascinam pela abjeção do
corpo, pela impureza que mostram no corpo do “Outro”, pelo sublime terrorífico da
poética que se faz “Rosto”, as obras de Gunther von Hagens, ao contrário, causam
horror e fascínio pelo excesso de pureza, pela limpeza idealizada dos corpos. Os
168
corpos humanos plastinizados de Gunther von Hagens buscam a pureza pela
assepsia de sua produção. Além disso, diante dessas plastinizações o que nos
afronta é o próprio corpo do “Outro” humano materializado, ou seja, não se trata de
uma imagem, mas do corpo de nosso próximo submetido ao processo de
plastinização. Ali, a nosso ver, está o terror, um “não há nada” que nos ameaça sem
se dar a conhecer. ali alguma coisa que não significa o “Nada” do totalmente
vazio, mas aquele ou aquilo que “está ali”, mesmo que o saibamos o que”, esse
“Há” levinasiano que pode ser traduzido pela metáfora da insônia. Levinas afirma
que na insônia algo vela por nós, embora não saibamos dizer exatamente quem ou
o que vela. Assim, o terrorífico de Gunther von Hagens está na própria beleza, no
excesso de assepsia, de idealização, de perfeição da morte. O corpo apresentado
por Gunther von Hagens de início parece fugir à regra de que o corpo na arte hoje
se faz unicamente na monstruosidade da dor. Neles a dor se desconfigura na beleza
dos cadáveres. Porém, é tamm verdade que suas plastinizações nos causam
profunda estranheza tanto quanto os corpos dilacerados de Andrés Serrano, por
exemplo.
Gunther von Hagens nos traz o corpo do “Outro” despossuído da morte, esse
impensável fenômeno da ocultação. Ali a morte parece infectar a vida com todo
radicalismo e toda exterioridade possível no que tange à sua idealização. Infecta a
vida, portanto, o pela sua possibilidade terrorífica de gerar um cadáver, mas pelo
estranhamento que anuncia a possibilidade de gerar um outro modo de ser cadáver.
nesses corpos o sabor de uma morte impossível. ainda, talvez, uma morte
sem morrer”, pois conserva o que de principal a morte corrói, o corpo. As
plastinizações apontam para um tempo sem tempo, para a paciência do tempo.
Parece que ali o tempo conserva toda a sua paciência, realizando a filosofia
169
levinasiana de um tempo paciente, ou seja, nesses corpos uma passividade para
além do choque, ou, nas palavras de Levinas (1998a, p. 21),
Una ruptura que afeta más que la presencia, un a priori que es más a priori.
La mortalidad como esta modalidad del tiempo que no debe reducirce a una
anticipación, ni aunque sea pasiva, una modalidad irreductible a la
experiencia, a la comprensión de la nada.
Tudo isso acontece porque não estamos diante de cadáveres localizados em
seus lugares costumeiros, que são as casas mortuárias ou os necrotérios. Enfim, os
cadáveres de Hagens estão à nossa disposição em galerias de artes, em museus,
com suas peles completamente refeitas e fundando gestos que não são próprios dos
cadáveres.
Esses corpos representam a impossibilidade de traduzir a morte a qualquer
experiência, são um a priori para am do a priori que nos colocam em contato pleno
com a experiência da falta de experiência, ou de uma experiência Outra”, pois
abdicam dos rituais dos funerais, dos velórios, das carpideiras, do caixão que desce
ao buraco de terra, das cremações, e nos confundem com os rituais das galerias,
que constrangem nossos olhares entre o pecado do desrespeito pelo próximo e a
admiração pela técnica.
Levinas é um pensador apaixonado pela morte, não a morte como
“possibilidade da impossibilidade”, mas como aquela que vence uma possibilidade
de poder e passa a ser um lugar onde não mais podemos poder” a morte como
dona de si. A morte está à margem. Em Dios, la Muerte y el Tiempo, Levinas (1998a,
p. 23) diz:
Alguien que muere: un rostro que se convierte en máscara. La expresión
desaparece. La experiencia de una muerte que no es la mía es la
‘experiencia’ de la muerte de alguien, uno que, de golpe, esmás allá de
los procesos biológicos, que se relaciona conmigo em forma de alguien.
170
Ante os corpos plastinizados de Hagens, estamos diante do terrível, numa
relação com o que está por vir. Vivenciamos uma relação com a morte de outrem,
mas também com a morte dona de si. O terrível aío é o “eu morro”, mas o fato de
que quem morre é sempre o “Outro”, mesmo quando esse “Outro” seja um “Eu”.
Para o “Eu”, a morte é sempre um porvir”, que desse modo nunca ocorrerá num
presente. O “porvir” é o “Outro”. Nossa relação com a morte passa a ser, desse
modo, uma relação com o Outro”, e isso faz, a nosso ver, ruído nas obras de
Hagens, nas fotografias de Serrano e nas assemblagens de Farnese, bem como em
outras tantas obras contemporâneas. Nessas obras advém algo que está “para além
da essência”, que não é o puro ser do ente, mas algo “de outro modo que ser”.
Porém, antes de pensarmos esse corpo “Outro” nas obras de Hagens,
devemos trazer à reflexão algumas informações que nos parecem pertinentes,
mesmo porque a plastinização é um evento extremamente novo nas artes plásticas.
Falar de Gunther von Hagens como artista é muito estranho, pois não como falar
dele sem mencionar que a sua formação é de médico, e não de artista plástico.
Devemos, então, anexar essa peculiaridade como parte integrante do processo
artístico contemporâneo. Ou seja, no processo artístico da tradição tínhamos o
artista com um histórico de caminhada, marcado pela conquista do estilo, que era,
por sua vez, pertencente a uma corrente arstica que o definia como tal. Hoje o
artista surge no cenário das artes, principalmente nas artes plásticas, sem trajetória
alguma e sem a preocupação de pertencer às correntes artísticas, pois estas
também não existem mais. A trajetória de Hagens, por exemplo, é a de médico. Sua
ascensão meteórica no cenário artístico deve-se às suas experiências em
laboratórios médicos. Hagens não se diferencia por ser um médico que pinta ou que
modela um material tradicional da arte, mas um médico que usa o principal objeto de
171
sua profissão – ou seja, corpos humanos para fazer a sua arte. A partir daí, expõe
as suas obras em galerias do mundo inteiro.
O uso do corpo humano e de corpos de animais na arte não é novidade.
Desde Leonardo da Vinci, a dissecação de cadáveres para aprimorar os desenhos e
as esculturas já era prática recorrente. Porém, diante da obra do Dr. Hagens,
ficamos frente a frente com o corpo do “Outrocomo obra-de-arte. Estamos diante
de uma apresentação ou de um mais real que o real”, um hiper-real. É a perda do
real pelo antagônico, pela clareza em excesso das formas. A ilusão, comum na arte
pela capacidade de inventar as suas formas a fim de se separar do real, não está
mais aqui como regra. Para Baudrillard (1990), essa é uma outra categoria do
estético, o campo do que ele chama do transestético, da simulação, aquele que já
não podemos dizer belo nem feio, pois é o próprio real que se instala como arte. É
como se as coisas, conforme aponta Baudrillard (1990, p. 91), “tivessem engolido
seu espelho”. Para ilustrar a paixão pelo real, própria de nosso tempo, lembramos a
declaração de Karl-Heinz Stockhausen (apud ŽIŽEK, 2003, p. 25-26):
Não é verdade que o ataque ao World Trade Center tinha, com relação aos
filmes-catástrofe de Hollywood, a mesma relação existente entre a
pornografia snuff
20
e os filmes pornográficos sadomasoquistas comuns? É
este o elemento de verdade na declaração provocativa de Karl-Heinz
Stockhausen de que o impacto dos aviões contra as torres do WTC o a
obra-de-arte definitiva: pode-se entender o colapso das torres do WTC
como a conclusão culminante da “paixão pelo real” da arte no século XX
os próprios “terroristas” não o fizeram primariamente visando provocar dano
material real, mas pelo seu efeito espetacular.
Gunther von Hagens parece ser mais um exemplo dessa paixão pelo real, o
desejo de penetrar na coisa real buscado no próprio corpo do homem, o corpo do
“estranhamento” que nos a radical dimensão do “Outro”, do diferente. Digamos,
20
Snuff significa morte, assassinato, e é o título de um filme produzido na década de 1970 cuja
propaganda afirmava que os atores que representavam personagens assassinados foram realmente
mortos durante a filmagem. Identifica um tipo de filme de horror dedicado a sexo e violência, em que
a violência não é simulada (ŽIŽEK, 2003, p. 25).
172
ainda a partir de Žižek (2003, p. 33), que o real que retorna nas plastinizações de
Hagens é o “Outro” levinasiano exatamente por ser real, ou seja, em razão de seu
caráter traumático e excessivo, não somos capazes de integrá-lo à nossa realidade
(no que sentimos como tal) e, portanto, somos forçados a senti-lo como um pesadelo
fantástico”. É, como diríamos, um enigma. Os corpos plastinizados de Hagens são
exatamente isso, oferecem a coisa em si como obra-de-arte. Não se trata de aceitar
como real o produto ficcional. No caso das plastinizações de corpos humanos, “o
próprio real, para se manter, tem de ser visto como um irreal espectro de pesadelo”
(ŽIŽEK, 2003, p. 34).
Gunther von Hagens trabalha numa linha de montagem de corpos
plastinizados em fábricas, e não em ateliês, as quais são distribuídas pela
Alemanha, China e Quirquistão (ex-República Soviética). Seus funcionários
manipulam seiscentos cadáveres, três mil e novecentos pedaços humanos, peles,
vísceras, braços, rebros, embriões e recém-nascidos. As peças são numeradas e
catalogadas por tamanho, idade, sexo ou referências do gênero “cabeça quebrada”,
“fêmea de 1,67 metro de altura, bons músculos, européia, adequada para
exposição”. Pedaços defeituosos são incinerados. Hagens pode ser o Dr.
Frankenstein da contemporaneidade. O Dr. Frankenstein de Shelley (2004, p. 64-65)
dizia que os cemitérios eram “meros depósitos de corpos privados de vida, que, de
moradia da beleza e da força, haviam se tornado comida para vermes”. Dizia ainda:
“eu era levado a examinar agora as acusas e o progresso dessa decomposição, e
forçado a passar dias e noites em jazigos e ossuários”. O Dr. Gunther von Hagens é
assíduo freqüentador dos depósitos de cadáveres de hospitais e necrotérios de
universidades.
173
Hagens monta os corpos através de sistema combinatório que o leva a
realizar um procedimento da biologia genética moderna para conquistar o homem
mais belo, a mulher mais perfeita, o humano mais inteligente. Ele almeja um mais
belo que o belo, um mais perfeito que o perfeito, um simulacro do real semelhante
ao conceito de Baudrillard (1991). Assim, a linha de montagem de Hagens anexa o
coração de um morto aqui, um fígado de outro ali. Os corpos são destituídos de
todas as impurezas, de todo sangue, excrementos, pruridos e órgãos, elementos
que são substituídos por resinas e silicones. Essa substituição os conservará por
cinqüenta mil anos. O sistema combinatório, ou seja, a fusão de membros, é um
processo de idealização do corpo que metamorfoseia a sua decomposição na
podridão da morte em assepsia. O cadáver, essa manifestação privilegiada do
abjeto, fica livre da decomposição. Ou seja, o que estava destinado aos vermes é
recuperado como sublime, essa sensação de prazer e de dor.
Os cadáveres, ou esse complexo de muitos cadáveres combinados que se
constituem em arte, são invariavelmente sempre de alguém que viveu o cotidiano da
existência. Porém, uma vez morto, tornou-se corpo sem dono, corpo de outrem,
cadáver que se resignifica na arte. O corpo resignificado passa a ter um dono que o
expõe como arte, como objeto que é. Digamos que o artista é o dono desses corpos
porque os expõe, ou seja, os manipula com os gestos que não são seus, com os
olhares que não são seus, num lugar que não é o seu, resultado de combinatórias
estéticas. Nesse processo fica diluída toda a noção de indivíduo, de Outro”
levinasiano, de corpo e cadáver de alguém que participou da existência.
Se o corpo do “Outro” parece ter dono, agora com a posse do artista que o
expõe, uma vez apresentado como arte nas galerias, esse corpo resulta num
“absolutamente Outro” diante de nós. Ali ele é corpo da impossibilidade, estética do
174
irrepresentável, do indizível, do excesso. Ou, digamos, ali mais realidade do que
é possível para a arte. Há excesso de realidade, excesso de “Dizer”.
Nos corpos de Hagens algo que pertence ao universo da arte tradicional,
ou seja, uma simetria, uma beleza e uma determinada harmonia nos gestos dos
corpos. Porém, paradoxalmente, esses corpos nos desconcertam da tradição e nos
fazem realizar uma experiência com o Neutro” blanchotiano ou com o “Há”
levinasiano.
O próprio Hagens argumenta que a sua inspiração é Leonardo da Vinci, o
qual dissecou mais de trinta corpos numa época em que a Igreja punia a prática na
realização dos estudos anatômicos. Fruto de uma transgressão, Hagens busca a
limpeza e a perfeição dos corpos, e os faz não contemplação tranqüila da beleza,
mas desconforto perante a perfeição do que ali se traduz como morte, a morte na
assepsia das formas e na assepsia do odor. Os corpos de Hagens o apodrecem,
não deterioram, não causam náuseas e, por tudo isso, levam-nos ao “abismo”. Neles
um ser que se faz passividade. A esses corpos não queremos dar um rosto, nem
o nosso nem o de nossos amigos. Basta saber que ali está um outro, o corpo de
outrem, que é o corpo abstrato, do desconhecido, do “sem-rostofísico. A morte
nesses corpos se degrada na nulidade. Ali não se morre, morre outrem. Ali está a
própria morte, plastinizada, estática, conservada para que a vejamos. É a morte do
corpo, resguardada de suas impropriedades.
175
Figura 5 - Exposição Body Worlds (2005) - Plastinizações de Gunther von Hagens
Para Levinas, em Dios, La Muerte y el Tiempo (1998a, p. 22-26), é sempre
um problema falarmos de nossa própria morte. A relação com a nossa própria morte
não tem sentido nem como experiência nem como pressentimento. Ou seja, nossa
relação com a morte consiste em não saber sobre o ato de morrer, um não saber
que, no entanto, não é uma ausência de relação, pois realizamos a experiência da
relação com a morte diante da morte do “Outro” ou diante da arte. A morte nos afeta
pelo impensável, pelo seu “sem-sentido”, um lugar que não comporta nenhuma
possibilidade de resposta, uma modalidade de relação com o “para além do ser”.
Levinas propõe que coloquemos em cheque a morte como intencionalidade, ou
melhor, não há experiência com a morte. Diante da morte e do ato de morrer
estamos sempre numa relação de impossibilidade. Diz Levinas (1998b, p. 26) que
176
la afección de la muerte es afectividad, pasividad, afecto de la desmesura,
conmoción del presente por el no presente, más íntima que cualquier
intimidad, hasta la ruptura, en un a posteriori más antiguo que todo a priori,
diacronia inmemorial que no se puede remitir a la experiencia.
Assim, para Levinas, a relação com a morte, a mais antiga das experiências,
não é uma visão do ser, ou, como pensa Heidegger, que a descreve como uma
angústia e a remete à compreensão do “Nada”. Trata-se de uma relação com essa
passividade radical do ser que na arte se faz essencialmente. É essa experiência de
um hiper-realismo da morte que encontramos nas plastinizações de Hagens.
A arte nega qualquer experiência de contemplação, de aprendizado da morte.
Ao contrário, mostra a infinitude da morte, o distanciamento que entre o “Eu” e
esse saber. Talvez nas obras de Hagens tenhamos o distanciamento da experiência
de um momento ameaçador, ou seja, ali se concretiza o morre-se”. Não sou Eu”
que morro, mas o Outro”, a morte qualquer. Enfim, quem morre é o “Outro”. Desta
forma, a relação com o porvir” é a relação mesmo com o outro. O corpo de outrem
plastinizado nos confere o alento de dizer que um erro está afastado. Pelo menos
desta vez não somos nós que morremos desde que a relação com o “morre-se” não
é uma relação com a morte. Porém, ao mesmo tempo, a infinitude do silêncio desses
corpos insiste na lembrança de que nosso processo de morte é sempre
continuidade. O corpo impossível de Hagens é, portanto, esse absolutamente
Outro” levinasiano, relação com o Fora” blanchotiano, e um abjeto nos moldes de
Kristeva (1988).
O cadáver sem Deus é o cume da abjeção, como nos afirma Kristeva (1988)
em Poderes de la Perversión. De todos os nossos dejetos ele é o mais repugnante.
Nele está tudo o que o que abortamos para poder viver, ou seja, nossos dejetos.
Hagens confere ao cadáver uma limpeza para além dos dejetos. Ali os pruridos da
morte não acontecem. Os excrementos da passagem entre a vida e a morte foram
177
eliminados. Esses cadáveres reivindicam a ordem. O que nos joga no abismo do
“Neutro”, o que nos põe à margem é que o cadáver nas obras de Hagens transgride
toda a identidade do sistema da morte, desrespeitando através da assepsia os
limites e o lugar da morte. São corpos que insistem em fazer o caminho inverso, ou
seja, reivindicar a ordem para o corpo cadáver. Eles fascinam pelo que apresentam
de transgressão contra a morte. A morte aqui não reivindica mais uma cova, mas
as galerias de arte. É a subversão do real que tenta refazer o próprio ato de morrer,
pois resta em nós o desejo inviolável de enterrar os mortos. Bataille (2004, p. 72-73)
diz que enterramos nossos mortos para nos proteger da promessa que eles
carregam como contágio”, para nos proteger da nossa própria morte. O ato de
enterrá-los nos protege da desordem biológica que é a carne em putrefação, do
cadáver coberto de vermes, do odor que agride quando o cadáver fica muito tempo
conosco. Assim, ele não deve ser exposto, e sim imediatamente enterrado. Ele traz
em si a noção de impureza. Estaria Hagens nos salvando do mal-estar do cadáver?
O cadáver é o abjeto, o reverso do espiritual, do simbólico, da lei divina. A arte do
cadáver tamm é um abjeto? Enterrar é uma forma de purificar os cadáveres,
porém Hagens faz com eles o sacrifício moderno da purificação quando os submete
à plastinização.
178
3.6 Contemplação “impossível”: pinturas de Antoni Tàpies
De um infinito azul a
serena ironia
Bela indolentemente abala como as flores
O poeta incapaz que maldiz a poesia
No estéril areal de um deserto de Dores
Mallarmé, 1980
Admite-se que a função da arte consiste em “expressare que essa expressão
artística está centrada sobre um conhecimento. Ou seja, a arte costuma dizer o
inefável. Levinas (2001a, p. 43) diz que costumamos pensar que a obra-de-arte
prolonga y supera la percepción vulgar. Lo que ésta banaliza y yerra,
aquélla lo capta en su esencia irreductible, coincidiendo con la intuición
metafísica. Allí donde el lenguaje común abdica, el poema o el cuadro
hablen. Más real que la realidad, la obra atestigua así la dignidad de la
imaginación artística que se erige en saber de lo absoluto.
Levinas e Blanchot se opõem a qualquer expressão artística como veículo de
fonte de luz, de geração de sentido, em que a experiência artística venha a nós com
uma condição luminosa, uma interna racionalidade e verdade, que venha a nós
como interpretação.
Se seguirmos o pensamento de Pareyson (1993, p. 172-186), que se dedica à
questão na obra Estética. Teoria da Formatividade, a interpretação é uma espécie
de forma de conhecimento cujas características se definem como captar, agarrar,
penetrar e compreender, ou melhor, como afirma o filósofo, “não há conhecimento, a
não ser como interpretação” e “o repouso em que culmina a interpretação é
contemplação”. A interpretação, conforme define Pareyson (1993), é um processo de
formação que vai passo a passo propondo a figuração e inventando novas figuras,
tentando a adequação final da imagem e da coisa. É, dessa forma, um processo de
invenção e produção ao mesmo tempo. Ao término do processo temos o repouso, e
não é mais necessário inventar novas figuras para testá-las e experimentá-las, para
179
pesquisar onde se encerra o sentido da interpretação. Significa, então, segundo
Pareyson (1993, p. 187), ver a forma como forma, ou seja, ter a sua interpretação
completada, ter encontrado o sentido, ter-lhe capturado o segredo no exato lugar
onde o olhar se fez vidente e, portanto, contemplante. A contemplação é, então, um
estado de prazer, de tranqüilidade, após um estado de procura, de inquietação, de
tentativas em vão, mas que no final sempre encontra o sucesso. A contemplação
como conclusão do processo de interpretação é o gozo da forma contemplável. A
interpretação, de acordo com Pareyson (1993, p. 175), é uma mútua implicação de
receptividade e atividade. O autor diz que
A interpretação por um lado é ressonância do objeto em mim, ou seja,
receptividade que se prolonga em atividade, dá, que recebo e ao mesmo
tempo desenvolvo; e, por outro lado, é sintonia com o objeto: um agir que se
dispõe a receber, um fazer falar para escutar, atividade em vista de uma
receptividade.
Para Levinas e para Blanchot, ao contrário, estamos sempre diante do Outro”
como um “absolutamente Outro”. Daí resulta que a obra-de-arte é um “Rosto”, e
como tal a sua expressividade é o Infinito”, o qualo se põe à contemplação, mas
resiste a ela. Daí decorre o fato de a obra-de-arte ser a própria realizadora de uma
resistência ética na sua radicalidade essencial. No que se faz “Rosto”, não
encontramos repouso nem prazer, mas uma resistência que persiste na angústia, na
estranheza da passividade do ser. A arte contemporânea, a nosso ver, realiza os
pensamentos blanchotiano e levinasiano quando se apresenta a s como algo
intrigante que transgride a idéia de experimentação herdada e institucionalizada.
Conforme diz Bauman (1998b, p. 138), as experiências tradicionalmente
foram construídas sob a orientação de uma teoria que se esperava provar:
serviam ao propósito de confirmar ou corrigir essa teoria e eram, por isso,
períodos bem incorporados e necessários de ação contínua e coletiva.
Nada mais, nada menos do que passos seguidos pela multidão, ao longo da
estrada claramente marcada por placas de sinalização legíveis para todos.
180
Hoje, o que se discute por experimentação em arte pode ser uma atividade
totalmente diferente, ou seja, o artista que experimenta age no escuro, admite riscos,
age na mais completa solidão, “No estérial areal de um deserto de Dores [...] Pois
quero, desde que meu cérebro vazio,/ Como um pote de creme inerte ao do
muro,/ não sabe adornar a idéia desafio,/ Lúgubre boceja até o final obscuro...”,
tal como canta o poeta Mallarmé (apud WALACE, 1987, p. 41). O artista age sob a
sua inteira responsabilidade, sem saber se seus esforços serão recompensados pela
coletividade. Na verdade, o artista está, sempre à espreita de ver “algo”, sem que
saiba o quê. Isso leva Blanchot (1987, p. 45) a dizer que a arte “não é um poder, não
é o poder de dizer”, ou seja, não contemplação, pelo menos nos moldes da
tradição. Para Blanchot (1987, p. 45),
Quando a neutralidade fala, somente aquele que lhe impõe silêncio prepara
condições do entendimento e, no entanto, o que para entender é essa
fala neutra, o que sempre já foi dito, não pode deixar de se dizer e não pode
ser ouvido, entendido.
Fazemos dessa forma uma experiência com a solidão essencial, a mesma
que fazia Cézanne permanecer sem gesto enquanto seu olhar “apalpava” o monte
Sainte-Victoire à espera de “algo”. Esse “apalpar” do olhar estava ligado à matéria e
à existência, porém a dívida de Cézanne, como diz Lyotard (2000, p. 36), não “é
para com a paisagem como motivo realista nem com a organização das formas” e
sim com esse “algo” esperado, “uma qualidade de cromatismo, um timbre
colorido”. Afirma ainda Lyotard (2000, p. 36):
Para atingir esse estado, é necessário "passividade", uma passividade sem
páthos, exatamente o contrário da atividade controlada do espírito, mesmo o
inconsciente. A autonomia que se apropria, a espontaneidade que a
imagina o impedimentos para ver o esperado. É necessária uma
recepção que se faça meticulosa, que suspeite, que aponte um "fato"
insólito, infalível, o fato de que (algo, veremos) aqui e agora, sem que se
181
saiba o quê digam o ser, se quiserem, Kant dizia "o X em geral", e como
se estivesse jogando contra o pintor, dando-lhe golpes com matéria
cromática. E o pintor tentará responder a esses golpes depondo em sua tela
toques de óleo ou de aquarela. Um golpe faz sair um púrpura, outro golpe
libera uma modulação de amarelo que inunda a atmosfera.
Os traços definidos para a arte de nosso tempo por Levinas e Blanchot
parecem a princípio negativos, porém, como diz Blanchot (1987, p. 45),
essa negação somente mascara o fato mais essencial de que nessa
linguagem tudo retorna à afirmação, que o que nega nela afirma-se. É que
ela fala como ausência. Onde não fala, já fala; quando cessa, persevera.
Não é silenciosa porque, precisamente, o silêncio fala-se nela.
As questões abordadas por Levinas e Blanchot sobre essa arte do silêncio, do
desvio e do desastre, a qual se exprime através dos conceitos de “absolutamente
Outro” e Há”, de Levinas, e de “Neutro” e Fora”, de Blanchot, estão centradas na
crise da experiência com a qual nos vemos frente a frente com a produção
contemporânea. Para Agamben (2005, p. 21), cujo pensamento aproxima-se do de
Blanchot e de Levinas ou talvez fale, por outro viés, sobre a problemática
experiência que temos com as artes hoje , o homem na contemporaneidade está
na condição de “expropriação da experiência”. Diz o autor:
Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de
que ela não é mais algo que ainda nos seja dado fazer. Pois, assim como
foi privado da sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de
sua experiência: aliás, a incapacidade de fazer e transmitir experiências
talvez seja um dos poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo.
Em 1933, segundo Agamben (2005, p. 21), Benjamim havia diagnosticado
essa pobreza de experiência, que na época moderna tinha as suas causas na
Segunda Guerra Mundial, de cujos campos de batalha nunca se voltava com uma
experiência mais rica, mas sempre se voltava mais pobre de experiências
182
partilhadas. Hoje, de acordo com este autor, vivemos no nosso cotidiano a catástrofe
das experiências que nos colocam diante do inexperienciável.
Para Agamben (2005), vivemos a pobreza de experiências no seio de nosso
próprio cotidiano, num período em que parece, paradoxalmente, estarmos rodeados
de eventos. Tudo à nossa volta se expropria no vazio, no sem-sentido”, no
enfadonho, e o dia-a-dia do indivíduo contemporâneo não possui quase nada que
seja traduzível em experiência. Agamben (2005, p. 22) diz que “o homem moderno
volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos divertidos ou
maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes , entretanto nenhum deles se
tornou experiência”. Na incapacidade de traduzir-se em experiência, o cotidiano
tornou-se insuportável. Foi essa experiência do cotidiano como insuportável que
passou a ser a matéria-prima da arte. É, pois, na crise da experiência que a poesia e
as artes encontram a sua vocação, fazendo da expropriação da experiência uma
razão de sobrevivência. A arte passa, então, segundo Agamben (2005), a fazer do
inexperienciável a sua condição normal. O inexperiencvel é a nova experiência da
humanidade, é o lugar onde qualquer homem que foi expropriado da experiência se
oferece sem nenhuma proteção ao desconhecido. Nessa perspectiva, Agamben
(2005, p. 52) diz que
a busca do “novo” não se apresenta como a procura de um novo objeto da
experiência, mas implica, ao contrário, um eclipse e uma suspensão da
experiência. Novo é aquilo que não se pode fazer experiência porque jaz
“no fundo do desconhecido”: a coisa em si kantiana, o inexperienciável
como tal.
Partimos daí para dizer que estamos frente a frente com uma produção
artística que se recusa à idéia de contemplação para ser o inexperienciável, um
“absolutamente Outro”. Levinas, em seu texto La Realidad y su Sombra (2001a, p.
46), faz as seguintes indagações: interpretar Mallarmé não é traí-lo ou suprimi-lo?
183
Não consiste a função da arte em o compreender? A obscuridade, seu elemento
mesmo, não lhe confere um acabamento sui generis estranho à dialética e à vida
das idéias? Será que é possível afirmar que o artista conhece e expressa a
obscuridade do real? Essas indagações desembocam em outras: em que consiste a
não-verdade do ser? Podemos descrever o trato com o obscuro como um
acontecimento ontológico totalmente independente ou como uma categoria
irredutível às categorias do conhecimento?
Para Blanchot e para Levinas, a arte é o próprio acontecer da obscuridade, é
a “outra noite” blanchotiana, a invasão da sombra, e o pertence à ordem de
qualquer revelação. A imagem está, segundo Levinas (2001, p. 47-48), muito
distante do conhecimento científico e da verdade, e “no comporta el ‘dejar ser’, el
Sein-lassen de Heidegger, donde se efctúa la transmutación de la objetividad en
poder. Más que nuestra iniciativa, la imagen señala un ascendente sobre nossotros:
una profunda pasividad”. Para Blanchot (2001, p. 55), a arte é o “questionamento
profundo”, nela “questionamos mais do que podemos questionar, mais do que o
poder permite questionar, além, portanto, da existência da questão”. Blanchot diz
ainda que existe na arte “um desvio que desvia o questionamento de poder ser
questão e de obter resposta”. Esse desvio, que é a impossibilidade, é o centro da
questão profunda mencionada por Blanchot. Dessa maneira, questionamos na arte o
que se nega e o que excede a todo poder de nossos questionamentos. Daí ser a
arte esse objeto vacilante, fascinante e ameaçador que aparece como “não-ser”,
como abjeção que nos leva ao abismo.
Platão, por sua vez, reconhecia essa propriedade na arte tanto que a
assemelhava à fala” dos oráculos. Isso significa dizer que o referido filósofo não
recriminava apenas as palavras dos poetas, mas tamm a fala dos oráculos, com a
184
qual a arte parecia apresentar muita semelhança. Embora falasse com reverência
sobre a arte, Platão alegava que a palavra oracular, a palavra pura que dava sentido
ao sagrado parecia ser o lugar de onde a arte tirava a sua estranheza.
Para Blanchot (1999), a experiência da impossibilidade parece ter realmente
alguma semelhança com a palavra sagrada, em que o que se diz o se sabe de
onde vem. A arte, segundo o crítico literário, utiliza uma linguagem estranha, aquela
em que alguém fala e, no entanto, nada fala. Trata-se de uma linguagem que se
opõe ao intelecto e à ordem, uma linguagem que não pensa no que diz e que diz
sempre o mesmo, incapaz de responder a perguntas e de prestar socorro a si
mesmo se a atacam (BLANCHOT, 1999, p. 21).
Sócrates, no Fedro de Platão (quem voz a Sócrates é o próprio Platão)
sugere que nos separemos dessa linguagem o mais breve possível, pois ela
representa uma enfermidade, e que nos mantenhamos na verdadeira linguagem, a
da razão e da ordem. A linguagem “falada”, não a linguagem “falante”, conforme o
conceito de Merleau-Ponty (2002), é, para Platão, o local onde a palavra está
segura. Que palavra é essa que não traz a garantia pessoal de um homem
verdadeiro e preocupado com a verdade? Que palavra é essa totalmente impessoal
e desordenada? Perguntaríamos, então, diante das imagens contemporâneas: que
imagem é essa que não nos nenhuma garantia de um mundo real, de um mundo
seguro? Que imagem é essa que o nos nenhuma resposta, que “murmura”
uma fala do além?
Por detrás de determinadas obras, tal como a palavra dos oráculos, nada
existe. Não existe o repouso da contemplação, o prazer do encontro com o sentido.
Há apenas uma voz que vem de longe, o “sem-lugar”, o “Há” levinasiano. Um
enigma se oferece para ser decifrado. É a voz da ausência que a criança ouve
185
sozinha no seu leito de dormir. O quarto murmura. ali um “Outro” à margem de
nós que não podemos contemplar, pois a alternância entre a luz e o repouso não
acontece; estamos sempre na passividade do ser, na economia do ser, sem tempo,
sem presença. Algum oráculo voz à ausência. Porém, não diálogo com Deus.
É a sua ausência que fala. No Fedro, como diz Blanchot (1999, p. 25), o que
intrigava Platão tanto na pintura como na poesia era o silêncio majestoso, o mutismo
em si mesmo inumano e que faz projetar-se na arte o estranhamento das forças
sagradas. São essas forças que pelo seu horror abrem ao homem regiões estranhas
que acionam nosso desejo de descobrir o desconhecido. um crédito ao
pensamento platônico, ou seja, o de ter percebido o teor estranho da fala da arte e
tê-la assemelhado à fala dos deuses. Faltou a Platão perceber esse lugar do
“absolutamente Outro” como uma região fecunda justamente por ser encerrada em
sua própria ansiedade e que nos faz ir adiante sem nada nos exigir, sem nada nos
dizer. É o espaço do terrível, do impossível, visto que quando esse oráculo, que é a
arte, não nos responde, torna-se, a princípio, intolerante pela sua soberania, por
essa sua ética que se torna para nós uma violência altiva que o se deixa possuir.
Para nós que estamos habituados a falar em contemplação, que se configura como
uma posse dentro do pensamento através do qual estamos nos conduzindo, essa
atitude da arte nos destitui de uma soberania que não deveria pertencer ao “Outro”,
e sim ao “Eu”. Dessa forma, esse silêncio, ou essa voz que murmura, tem exigência
e dureza. Não é nunca espasmo de busca e repouso, em que vislumbramos o prazer
do encontrado, mas lugar de ansiedade. Isso não o denota como espaço sem valor,
mas denota “Outroespaço. É uma profundidade falante, um murmúrio em que nada
se deixa ouvir.
186
A palavra sagrada também é condenada por não falar de lugar algum e por
ser extremamente impessoal. Essa impessoalidade gerada pela passividade do ser,
a qual Levinas chama de Há” e que encontramos nas obras-de-arte hoje, é
semelhante à palavra sagrada. E nisso, misteriosamente, a obra-de-arte
contemporânea se parece com a palavra sagrada. É dela que a arte contemporânea,
mais do que as obras do passado, parece herdar a sua desmesura. Tal como a
palavra sagrada, não se sabe de onde surgem as imagens. Como na palavra
sagrada, nada está definitivamente presente nessas imagens senão que elas o
voz à ausência, tal como as palavras dos oráculos de onde fala o divino, porém onde
Deus, em si mesmo, nunca está presente; a ausência de Deus fala por si só. Nas
imagens das obras contemporâneas nada se justifica, nada se explica. Não há
diálogo com essas imagens, da mesma forma que não diálogo com Deus. E nós
somos tão assombrados pelo silêncio que fala quanto Sócrates, do Fedro de Platão,
ante a estranheza da obra escrita. Essas imagens, de essência insólita, inspiram-nos
desconfiança, motivo pelo qual criamos uma série de teorias de contemplação para
resolver o problema desse silêncio majestoso, da escritura, da escultura, da pintura,
das performances, da dança, do teatro e dos objetos apresentados como arte. Trata-
se de um silêncio inumano por si mesmo y que hace proyectarse en el arte el
escalofrío de las fuerzas sagradas, esas fuerzas que, por el horror y el terror, abren
al hombre a regiones extrañas” (BLANCHOT, 1999, p. 25).
As obras de Antoni Tàpies parecem cumprir essa intenção de palavra
“oracular”. Constituem uma estética do gesto, o informal, e parecem ser trabalhadas
por vias solitárias, o que leva Michel Tapié (MUSEU..., 2005, p. 127) a chamá-las de
“simbologia metafísico-literária”, alheias à pintura em si. Tàpies diz que se trata de
uma pintura que nunca se esgota porque nunca nos satisfaz.
187
Su práctica solo puede establecer un diálogo, siempre de más alta calidad
por el simple hecho de la aceptación de dicho secreto en cuanto secreto,
generadora de las más eficaces estructuras del deseo. Sean grafismos que
no podan ser situados ni del lado de los grafitis más sencillos de un art brut
de límites inmediatos, ni en la linde de un nuevo estilo barroco muy sabio,
en el que superficies, o planos, al límite de una vida estéril y de una
metafísica hechicera, la aventura pictórica y la nuestra, permanecen
totalmente abiertas, en una proposición de comunicación en la que el
contenido, indisociable de una estructura imposible de analizar, emana una
magia visual que nada debe fuera de la propria condición pictórica.
As obras de Tàpies contêm algo secreto, porém é algo que não se trata de
um enigma que temos de resolver porque isso significaria esgotá-lo, mas sim se
trata de um secreto existente que jamais sedivulgado, um secreto tal como as
palavras do oráculo, dinâmico em disponibilidade fecunda. A obra de Tàpies é isto:
não se explicada por um sistema de rigor satisfatório de que o artista possui uma
consciência clara, sendo o primeiro a justificá-la. Ao contrário, fortalece a idéia de
uma comunicação contraditória cujo objeto escapa a qualquer pensamento de uma
contemplação tradicional. Trata-se de obras em que o essencial não poderá dizer-se
nunca, embora se mantenha em zonas abertas, porém, com disponibilidade, sem
direção precisa. As suas imagens são menos imagens e mais “sombras”, imagens
não para serem entendidas, mas pressentidas, imagens que falam como quem cala.
Na sua profundidade, resta sempre o indizível. Como afirma Tàpies em seu texto La
Vocación y la Forma (MUSEU..., 2005, p. 146-147),
Todos los consejos prodigados al artista por los honrados pensadores de
arte me parecen sospechosos, tanto si forman parte de un dirigismo estatal,
como si provienen de las academias, como si proceden, simplemente, de
los críticos de arte. No puedo concebir al artista si no es en plena aventura,
en pleno tránsito, en pleno salto en el vacío. En una época en que todo
género de intervencionismos están en el orden del día, se va demostrando
que la auténtica vida para el arte está, por el contrário, fuera del mundo de
los funcionarios.
188
Tàpies defende uma renovação da linguagem artística e, conseqüentemente,
uma renovação de uma postura do frente-a-frente” (e aqui estamos falando do
conceito levinasiano para abordar a arte) com a arte contemporânea, em que uma
aventura sem rumo não significa em absoluto uma irresponsabilidade, um
dinamismo cego ou um feito gratuito da arte, mas a sua própria essência.
As obras de Tàpies recebem o nome de “pinturas matéricas”. Nelas
encontramos toalhas velhas amontoadas, calça sobre um bastidor, calções, crina de
cavalo, uso da terra formando partes do corpo, tais como pernas e dorsos, móveis
velhos ou sacos de coisas pintados. Muitas de suas obras apresentam a ação do
homem e o passo do tempo sobre os objetos, um processo de formação e
deformação das coisas. Algumas de suas obras levam o nome de “matéria em forma
de axila”, “matéria em forma de nudez”, “matéria em forma de perna”. Em suas obras
reinam o grotesco, o informe, o feio, o inacabado.
No “frente-a-frente” com esse inacabamento, deparamo-nos com uma
distorção que impede qualquer comunicação ou relação de unidade. À medida que
estamos infinitamente separados da obra (separação, fissura), estamos diante de
uma alteridade em que a obra não é um outro ego, mas uma desconhecida em sua
distância infinita. É a obra do espaço da impossibilidade, e não da possibilidade,
espaço em que nunca podemos ser sujeito dessa impossível experiência. Ao mesmo
tempo, é um espaço em que o Eu” o consegue ficar indiferente, pois o diálogo
inalcançável se reverte em desejo de mistério, de busca nunca alcançável, mas
sempre desejante. Compartilhando dessa idéia, não estamos diante da arte como
aquela que nos conecta com o cosmos, com a ordem, com o divino, com a
contemplação do mundo ou mesmo conosco: estamos diante do incongruente. Não
ali nenhuma certeza, ao contrário, o vazio nos debilita e aniquila nossos
189
pretensos conhecimentos. Isso acontece porque a arte designa uma região em que
a impossibilidade não é uma privação, mas sim lugar de afirmação, já que ela parece
se afirmar na sua própria impossibilidade de dizer-se”, de modo que ali o que
pressupomos como “verdadeiro” ou como “ordem nada encontra para se sustentar.
Tápies em suas pinturas, a nosso ver, laa-nos no “Infinito”, mergulhamos
nos espaços de cor e ficamos despidos de dizer qualquer coisa sobre elas. Nada se
desdobra, o enigma parece estar concentrado no espaço da cor ou nas dobras da
matéria que vem colada junto à tinta, amontoada e borrada, ou no grotesco, maneira
como Tàpies constrói a estrutura. Ora, pode estar, ainda, no espaço vazio, na
distância entre os objetos ou nos espaços imensos em que a palavra aparece
escrita. Tudo ali parece vir sobre um fundo de silêncio, e procuramos uma fenda
para desvelar o enigma sem jamais encontrá-la. Abrem-se um vazio extremo e,
paradoxalmente, uma imensa fecundidade. Contemplar tais obras é contemplar a
impossibilidade, a angústia de não ter nada para falar. Ou seja, a experiência da
“impossibilidade” é a experiência desmedida da profundidade, a qual se revela
dissimulando-se na obra. “Me encuentro realmente en más allá, si el más allá es
quello que no admite más allá” (BLANCHOT, 2000, p. 86).
A vacuidade de Infinit (1988), obra de Tàpies ilustrada na Figura 6 e que
escolhemos para comentar, é na impossibilidade um movimento infinitamente
problemático condenado pela “luz” como uma loucura, na sua preferência pela “outra
noite”. Na “outra noite” de Blanchot o tempo tamm é “outro tempo”, medido na
passividade do ser, passividade esta que não exclui a impaciência, mas é a própria
paciência suportada até o fim, é a morte infinita. O próprio Tàpies nomeou a sua
obra como Infinit. Ela nos parece ser o próprio “Infinito” blanchotiano e levinasiano
quando nada está disponível no “frente-a-frente” com ela. um vasto campo de
190
tinta azul onde a palavra infinit escorrega nas bordas da estrutura. É como se o
imaginário tivesse de se alongar mais do que é possível para perceber a infinitude
que paradoxalmente vem limitada pela estrutura e assinalada pelas palavras.
Figura 6 - Infinit (1988), técnica mista sobre madeira - Obra de Antoni Tàpies
O que deInfinito” nesta obra? O paradoxo da representação parece ser o
próprio Infinito”, o qual nos põe diante do enigma. A obra constitui uma estrutura
que está fora de si mesma, ou seja, que não diz o que parece querer dizer, e o que
parece querer dizer não corresponde ao que vemos. O que vemos, então? Digamos
que, para resolver o enigma, oferecemos outra proposta: “não vemos”, mas temos o
murmúrio (porque a arte é o próprio murmúrio) de um querer dizer que é
infinitamente maior que o nosso pensamento, o inexprimível. É como diz Blanchot
(1987, p. 45-46), “o de fora infinitamente distendido”, ou ainda,
191
assemelha-se ao eco, quando o eco não diz apenas em voz alta o que é
primeiramente murmurado, mas confunde-se com a imensidade
sussurrante, é o silêncio convertido no espaço que repercute o lado de fora
de toda a fala. que, aqui, o lado de fora está vazio, e o eco repete
antecipadamente, ‘profético na ausência de tempo’.
Assim, a obra Infinit (1988) parece cumprir a sua errância quando diz, na sua
vacuidade, sem remeter a algo. nela algo de silencioso que se garante como o
seu sentido, e isso foge radicalmente ao que podemos chamar de “contemplação
nos moldes que conhecemos. A obra reflete um sentido que se põe na singularidade
da resistência. O que se de “contemplar” é uma fala neutra. Talvez o azul não
seja um acaso, o azul de Mallarmé no poema O Azul (WALACE, 1987) é o espaço
da angústia que o se define nunca. É a vastidão do espaço em que o poeta se
rende ao “Nada” que murmura. O poeta diz: “O azul triunfa e canta em glória/ Dentro
dos sinos. Sim, faz-se voz para sus/ Pender-nos no terror de sua vil vitória [...]”. O
poeta galga a sua agonia e pergunta: “Onde fugir? Revolta pérfida e impotente. O
Azul ! O Azul! O Azul! O Azul!”.
Porém, não se trata de dizer que o silêncio está na obra Infinit (1988)
unicamente porque ela apresenta o vazio na sua estrutura formal, a vastidão infinita
do azul. Isso equivaleria a dizer que as pinturas em que existem poucas coisas
apresentadas nos fariam viver uma relação de estranhamento. Antes, vale dizer que
a obra possui um “mecanismo” (talvez seja esse o termo) de trazer até nós a
expressividade do “Rosto”, “algo” muito distante e ao mesmo tempo muito próximo e
que nos faz ter uma experiência com o inominável. Seria o mesmo que dizer, com
certa objetividade, que obras profundamente preenchidas na sua estrutura formal
também são profundamente misteriosas e silenciosas. Essa reflexão nos remete às
pinturas de Pollock, por exemplo, sem espaço algum, totalmente preenchido, e no
192
entanto... Como fugir do acúmulo de tinta que satura? Na saturação, como fugir do
murmúrio da angústia do “Nada” que se instala? Tanto Pollock quanto Tàpies o
mestres em nos colocar diante do mistério, “em algo próximo dum turbilhão hilariante
e horrível que “esvoaça/ em redor do abismo/ sem nele se fixar/ nem fugir [...]
(MALLARMÉ, 2001, p. 43). Ambos nos deixam a herança mais cara do poeta e do
artista plástico; a não fixação da imagem. Ambos cumprem o destino trágico do
mestre: a solidão.
Estranhadamente observamos nas obras de Tàpies palavras escritas,
característica que lhe é peculiar. Um poeta que dissimula as palavras na tinta ou um
artista plástico que faz das palavras forma? Essas palavras invertem o conceito de
expressão, pois não mais substituem uma percepção ou uma idéia por um sinal
previamente convencionado que invoque idéias ou percepções. São palavras
“vazias” que se configuram como vestígios, como excesso da palavra ou como
inevitável falta de habilidade do artista poeta. Ou seja, ao fazer aquilo que queria
fazer, o artista tamm fez coisas que não queria. O ato não foi puro, deixou
vestígios. Jogar ou o jogar os dados é inútil, as palavras anunciam a
impossibilidade de controlar o acaso e, no vasto espaço do azul, a palavra. Para
quê?
As palavras nas obras de Tàpies, como aponta Merleau-Ponty (2002, p. 73-
74), abrem um buraco no pleno do mundo. Elas mantêm “o mundo em suspenso”,
são palavras tão singulares que se entrelaçam com a rugosidade da tinta e
assumem uma facticidade radical, caráter daquilo que simplesmente é. Nas obras
deste artista, a palavra não é invólucro do pensamento. A significação desse gesto é
infinita. A palavra não pode ter som, não pode ser lida, serve para ser vista, e a visão
, então, de “outra maneira que ser”.
193
A palavra é ambígua, lugar do ser dissimulado, espaço onde o ser não
escapa sempre no jogo da mostração, mas onde a significação é essencialmente
“não-sentido”. E se, porventura, o artista tentou expressar algo, as palavras
resistiram a isso e na rebeldia afirmaram somente a negação, essa falta de
habilidade do artista para fixar a verdade. De outro lado, o artista tem a
singularidade de escrever sem se prender à palavra escrita. Então, por que a
escreve? A palavra é vã, é facticidade levada ao limite. Paradoxalmente, a palavra
não é silenciosa, pois o silêncio fala nela.
3.7 “Outramente que ser”: as obras de Cindy Sherman
Estas fotos são fotografias de emoções personificadas, todas elas
com sua própria presença, não a minha.
Grosenik, 2005
Isso fala, mas sem começo. Isso diz, mas isso não remete a algo a
dizer, a algo de silencioso que o garantiria como seu sentido.
Blanchot, 1987
Para Blanchot (1987), a escritura se como negação do “Eu” questionando
o próprio sujeito que escreve. A escritura reivindica o anonimato do autor. No lugar
do nome, surge um “Ele” que, para Blanchot, não designa nada, mas afirma o
questionamento desse anonimato. Aquele que “a escreveu é dispensado”, é entrar
na afirmação da solidão em que algo fascina e ameaça ou é ainda “passar do “Eu
ao “Ele”, de modo que o que me acontece não acontece a ninguém, é anônimo pelo
fato de que isso me diz respeito, repete-se numa disseminação infinita”, como afirma
Blanchot (1987, p.11-24). Assim, produzir uma imagem é colocá-la sob o signo do
fascínio, do Infinito”, em que a imagem não é mais do que a aparência do que
desapareceu, é a ociosidade do ser.
194
Nas artes plásticas é possível ler essa radicalidade do anonimato, a
exterioridade da imagem, na obra de Cindy Sherman, artista plástica que causa
estranhamento ao nosso olhar com imagens fotográficas de si mesma. Suas
personificações se apropriam de imagens-clichê transitadas nos meios de
comunicação. Na exposição Fim Stills, Sherman mistura cenas banais do dia-a-dia
com remakes de Tippi Hedren (a atriz de Os ssaros, de Alfred Hitchcock) e de
muitos filmes B de Hollywood dos anos cinqüenta e sessenta. A artista encarna em
suas fotos a mulher vamp, perdida, ingênua, amorosa, poderosa, violenta. Todas
essas mulheres são ela mesma, a própria Cindy que se fotografa. Em outra série a
artista retratou seres repugnantes e estranhos, em que usou bonecas esquartejadas,
com genitais à mostra, muito muco, sangue e mito, os quais representavam ela
própria. Cindy fez ainda uma rie de fotografias suas representando os conteúdos
dos grandes mestres renascentistas, assumindo o papel de madona renascentista
ou da Virgem Maria, como ilustrado na Figura 7. No caso de Cindy, a própria artista
é então sujeito e objeto de sua obra.
Figura 7 - Sem Título, fotografia em cores, 1989, 170x142 cm - Obra de Cindy Sherman
195
O ego da artista que adere às suas obras na multiplicidade de suas
possibilidades é a própria ambigüidade. A obra é “exterioridade” radical para a
própria artista, que diz: “Estas fotografias de emoções personificadas, todas elas
com a própria presença não a minha”. A obra se afirma e realiza a presença da
ambigüidade, mas ela é ao mesmo tempo a presença da “meia-noite” blanchotiana,
essa profundidade vazia da ociosidade do ser, a rego do “Há” em que está
localizada a preocupação do artista que busca sem fim a sua origem.
As imagens de Cindy ou as mulheres como imagens esvaziam o Eu” da
artista e assumem essa alteridade ética levinasiana. Para a artista, as imagens são o
“Rosto” do absolutamente Outro” ou o “outramente que ser”, e ela não reivindica a
autoria das imagens de seu rosto, mas as vê com radical exterioridade de si mesma.
Assim, Cindy não se nomeia na obra. Resta apenas o questionamento sobre o
anonimato, essa exterioridade radical.
Dessa forma, a obra não é o duplo do real nem mesmo quando parece
reivindicar esse real. Ao não se reconhecer na imagem, que é sua literalmente,
Sherman se converte em “não-autora” e em não-leitora” dessa imagem. Confere à
imagem a exterioridade se ser ela mesma, faz com que se perca do aparentemente
inerente a seu conteúdo, ou seja, a imagem não é o “Dito” de um “Dizer”, mas o
próprio “Dizer”. Nessa fuga do conteúdo que parecia ser-lhe inerente, a imagem
torna-se, de acordo com Sherman, uma presença da imagem, “não mais a minha”,
em que a imagem não admite outra evidência senão a de existir. A imagem deixa de
lado a obsessão pelo sentido. Sherman, ao que parece, é lúcida com a força da
exterioridade da imagem que ela faz de si mesma e que agora foge de seu controle.
É uma fuga do ser que engendra o fascínio da imagem, na sua ineficácia, pela
inoperância da imagem que tudo “dissimula”. A obra “desobra” (désoeuvrement) é
196
inoperância total. A sua imagem destrói o espaço da representação” própria da
subjetividade do “Eu”, ou seja, nem a própria artista se “representa” nas fotografias
que tira de si mesma. Daí podemos dizer, a partir de Levinas e de Blanchot, que a
arte abre, então, uma outra” dimensão ontológica que o é a do conhecimento de
ummundo”, luz ou ação, mas sim exterioridade do ser (passividade plena).
Estamos diante da experiência com a “outra noite” blanchotiana, ou seja, a
experiência com a presença do Nada”, a destruição da face da artista, que para ela
própria se faz noturna no espaço do que balbucia. Imagem de quem? Imagem do
quê? Imagem para quê? Blanchot nos diria: para nada. Diria ainda que é,
paradoxalmente e unicamente aí nesse espaço que é possível fazer qualquer
experiência com a arte na sua exterioridade plena. O “Neutro” está na origem das
artes. Na linguagem, é esse jogo com o Dizer”, o “Desdizer” e o “Redizer” no
movimento “Infinito” que faz da arte essencialmente a linguagem do Outro”. As
imagens de Sherman parecem ser exatamente isso, ou seja, dizem-se infinitamente
de vários modos sem nunca se dizer definitivamente, daí a necessidade de a artista
recriá-las constantemente, tal como a procura de um “dizer” no qual ela possa
reconhecer-se. Nessa busca incessante de imagens, parece que por parte da
artista o desejo de se encontrar, porém ela sabe da impossibilidade para tal. Antes,
trata-se do prazer pelo fracasso. O artista é, então, sempre um fracassado. Para que
serviria esse jogo senão para garantir à arte essa impossibilidade da essência? Para
garantir-lhe a transcendência, de tal modo que se identifica com a ausência e que,
por nada ocultar, vai “além da transcendência, tornando-se “imagem origem. Trata-
se, então, do sempre “outramente do Dizer” desde que se realiza num “Dizer” que se
movimenta num desdizer-se constante, que acaba por não mais significar senão um
“outramente que ser”, ou seja, o diferente. Falamos de um “Dizer”, portanto, que
197
nunca fica redutível ao “Dito” porque ele é um “Infinito”. Sobre essa questão, Levinas
(2003, p. 50) diz que
Lo de otro modo que ser se anuncia en un decir que también debe
desdecirse para de este modo, arrancar también lo de otro modo que ser a
lo dicho en lo que lo de otro modo que ser comienza ya a no significar otra
cosa que un ser de otro modo.
As imagens de Cindy Sherman realizam esse movimento de dizer-se e de
desdizer-se, um despregar-se radical da essência a fim de constituir-se no “de outro
modo que ser”, ou seja, a fim de não permitir que suas imagens possam ser
interpretadas ou vistas como a face de Cindy Sherman. Elas devem ser apenas um
“outramente que ser”. Tais imagens são como a sabedoria
irrazonable de la Sibila, la cual se hace escuchar durante mil años, porque
nunca es escuchada en el ahora, y este lenguaje que abre la duración, que
desgarra y comienza, no tiene sonrisa, ni adorno, ni disfraz, es la desnudez
de la palabra primera [...] (BLANCHOT, 1999, p. 30).
São imagens que se fazem como um pressentimento de promessa, não
porque nos seja desvelado por seu intermédio um futuro, uma esperança ou um
ensinamento nos moldes tradicionais, mas porque a imagem se liga firmemente ao
espaço que retém o pressentimento, um espaço muito mais amplo em que o porvir é
raro e cada dia que chega não é um dia que começa.
Assim, a exterioridade radical faz as imagens de Cindy Sherman fiéis à
ansiedade e às incertezas de um porvir. São imagens que se referem sempre a um
porvir do que nunca será dado. As imagens não têm necessidades, nada prometem
nem reivindicam e também nada revelam. Fazem-se alheias a toda exigência de
identidade e unidade, e até de presença. São um enigma, uma imagem equivocada.
A possibilidade de mudar de identidade, de rosto, de espaço, de personalidade, é a
desconstrução da representação que faz da imagem um “absolutamente Outro
198
diante não apenas da artista mas de nós mesmos como espectadores. São imagens
que realizam em si o espaço mutante e singular do cenário contemporâneo, em que
podemos mudar de cor, de rosto, de identidade, de papel perante a sociedade.
Nesse espaço, quase o conseguimos mais nos ver como um “Eu” conhecido para
nós mesmos. Nessas imagens, Cindy realiza o desdizer-se “Infinito” do “Dito, que é
a sua própria imagem, em que ela mesma começa a não significar outra coisa senão
um ser de outro modo, um modo enigmático. Isso é o que faz da arte
contemporânea algo radicalmente independente de toda elaboração de um lugar
particular.
As fotografias de Cindy o, em resumo, a tentativa de desvendar o secreto
que faz morada no corpo ao qual se refere Blanchot (1987, p. 253). As imagens
mostram a face das possibilidades de um “Eu” anônimo que se transmuta entre um
“Eu” próprio e um Eu” que é o Outro”. Nessa transmutabilidade, o Eu acaba por
se perder e o se reconhece mais na sua própria imagem. Distintas imagens
compõem o “Eu”, porém, na presença de tantos Eus” e “Outros”, acaba por restar
mesmo a solidão do “Eu”, que o se reconhece, pois o que lhe resta é a infinidade
de “absolutamente Outros”, a infinidade de estrangeiros. Tais imagens significam,
então, o compartilhamento de suas próprias dúvidas, que nessa partilha são
ampliadas, isto é, geram-se mais dúvidas. A imagem dissimula, e essa dissimulação
é negação.
A experiência que se realiza como concretude do pensamento blanchotiano
faz com que se possa dizer: O que me faz “Eu” é essa decisão de ser quando
separado do ser, o ser sem ser, o ser isso que nada deve ao ser, que recebe seu
poder da recusa do ser, o absolutamente desnaturado, o absolutamente separado,
isto é, o “absolutamente absoluto” (BLANCHOT, 1987, p. 253). Ser separado do ser
199
é ser na solidão. Cindy faz a experncia de se multiplicar em suas imagens, mas
não se reconhece nelas. Ela é o inominável, na solidão, na ausência de se
reconhecer no que se faz “Rosto”. Ela é um “Eu” solitário e nos a experiência
dessa solidão que somos. Somos o “absolutamente Outro” para nós mesmos. Não
podemos nunca saber de s mesmos se não sabemos nos representar. Somos
uma solidão profunda.
Para Blanchot (1987, p. 254), esse saber se relaciona com o abalo e a
angústia. É aí, então, como diz Blanchot (1987, p. 154), que “O homem adquire
então consciência de si mesmo como separado, ausente do ser, adquire consciência
de que recebe sua ausência do não-ser”. Porém, ao mesmo tempo em que é
angustiante e sombrio, “não-ser” é fascinante porque o não-ser” é poder, ou seja,
“que eu posso não ser: daí vem a liberdade, dominação e futuro para o homem”
(BLANCHOT, 1987, p. 254). Na possibilidade de “não-ser” da artista, a arte encontra
a sua essência plena de falar, de arriscar, de desafiar. É o “tudo desapareceu” que
se torna, por sua vez, aparência. É justamente onde parece faltar que existe algo
que “balbucia”. Digamos que o fascínio das imagens de Cindy Sherman está nesse
“eu posso não-ser”, nessa solidão incomensurável, nesse abismo que nos dá prazer
e dor por o sabermos de nós mesmos. Enfim, não podermos poder com o que
sempre pareceu nos pertencer: o nosso Eu”. Ele é infinitamente o inapreensível. A
arte já não é mais o lugar do poder de dizer.
200
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Senhor, de quem é o oráculo em Delfos, nem diz nem oculta,
assinala o retraimento.
Heráclito, f. 93.
Então, de que obra-de-arte falamos quando atestamos a obra como um
“Infinito”? Ocorre-nos dizer que ao pensar na infinitude da obra o fazemos diante de
uma pretensa teoria e da história da arte com a qual nos habituamos ao longo dos
tempos. Não como prescindir de todo um legado pensado para a arte. É,
portanto, no confronto com os cânones aos quais a arte estava submetida a fim de
ser arte que passamos a perceber uma manifestação artística cujo “espaço”, definido
aqui como “lugar do fracasso”, não mais corresponde ao reconhecido. A falta de
comunicação com a arte e, conseqüentemente, a sua função pouco definida dentro
da sociedade geram um mal-estar em torno da produção artística na
contemporaneidade. Falamos então de uma arte que é um “Infinito”, de uma arte
destinada ao fracasso diante de uma leitura cujo destino são a comunicação e a
função gerada por essa comunicação. O belo é então algo” que nos impele para o
abismo, pois revela a nulidade da comunicação a qual estamos habituados.
Atestar a arte como estética do fracasso é, na presente exposição, não
abordá-la por meio dos instrumentos conhecidos, herdados da história e da teoria da
arte, mas sim fundar a partir da “diferença” uma possibilidade “Outra”, desde que
partimos de um outro modo de ser de anunciar-se da arte. Convidados a definir de
qual arte falamos, diríamos que se trata de um outro modo de ser arte, o qual tem
como essência o desdizer-se infinitamente a fim de que seu dizer passe a não
significar outra coisa senão uma arte de outro modo. Falamos de uma arte que se
refugia na obscuridade, que está “para além do ser” que a Filosofia anuncia. Pensar
201
uma arte com essas características exige uma certa audácia, pois nos referimos a
uma arte que acontece no espaço do absolutamente ambígüo e enigmático, cuja
“significação” se dá (se desejarmos falar em dar-se) no “para além” da essência.
Trata-se de se pensar a possibilidade de um desgarramento da essência.
Assim, perguntar pela arte não é mais perguntar por sua essência (verdade).
Significa dar privilégio ao não-lugar, ou seja, considerar a arte fora de qualquer
comparação, à margem de qualquer divisão de estilo ou forma, perceber a irrupção
do abjeto, do “Neutro” e do “Há”, do possível desligamento entre forma e conteúdo
(da existência e do existente), da ambigüidade. Não existe mais a preocupação de
abarcar toda exceção dentro de uma totalidade, mas de dar lugar ao “Infinito”. E se
porventura tivéssemos que falar em um pressuposto acontecer do ser, seríamos
obrigados a dizer que é no absolutamente fora do ser, na exceção do ser como
“infinitamente outro”, que se dá esse acontecer, que, contrariando a regra da luz e
da obscuridade, jamais se dá. Seria um paradoxo “Infinito”, mas, invariavelmente,
teria de ser assim seu “Dito”, caso estivéssemos preocupados em resguardar um
discurso no qual o Dizer” não se desdissesse tão radicalmente a ponto de refugiar-
se na absoluta obscuridade como essência de si mesma, o que nos faz dizer que a
não-verdade é. A arte é pura liberdade e espontaneidade na infinitude.
A partir de então, pensar a arte realizadora do “Infinito” significa tirá-la da
seqüência histórica de uma narrativa e conferir-lhe a exterioridade absoluta de
qualquer narrativa, a ambigüidade do “Infinito”, pois significa levar em consideração
que a infinitude está na realidade mesma que a arte acolhe. O “Infinito” não se furta
de ser um existente, isto é, de ter a sua emergência na vida do homem,
ilusoriamente clara, porém justamente e somente por isso, de ser a realização
existencial de um Infinito”. O que desejamos afirmar é que a arte, muito embora
202
sendo incomunicabilidade radical, está carregada de vida humana. Ela é um objeto
da sensibilidade (sensibilidade como proximidade com o objeto) e é,
paradoxalmente, distanciamento de toda a sensibilidade da existência quando
“revela” a face do inominável, do desconhecido que é a existência humana. Ou seja,
ela esbarra com a infinitude, que é a própria vida humana e, dessa forma, o que ela
realiza é radicalmente esse “Infinito”, em que fazer arte é questionar a própria arte
ou a própria vida. São questionamentos sobre a impossibilidade de se conhecer o
incomensurável. No combate entre terra e mundo, a obra-de-arte é, então, a própria
impossibilidade, e nunca a realização da impossibilidade, a qual faria vir à tona o
que o está revelado. O choque provocado pela obra contemporânea não está na
verdade revelada, mas na obscuridade intensa que a conserva na
incomunicabilidade de sua essência e ainda no ensinamento da própria infinitude da
realidade mesma.
A arte assim pensada se instala de uma maneira “Outra” de descobrimento da
verdade, ou seja, um descobrimento sem pretensões à verdade, uma não-verdade,
ou, ainda, uma verdade “Outra”. Trata-se de uma maneira singular de se perceber a
estrutura formal que a arte determina. Tal como diante da morte perdemos o nosso
poder, assim é o “frente-a-frente” com a arte. A arte é, então, a obscuridade da noite,
o terror e o desamparo do saber, ou seja, ela não esclarece o mundo. O correlato da
arte é a morte.
Então, para que serve uma arte que não se comunica? Para que serve uma
arte que se refugia na obscuridade? Para que serve uma arte que no mesmo
instante em que aparece, torna-se desaparição e, na desaparição, aparece de um
modo outro, ou seja, como “Infinito”? Para que uma arte que nada revela, que, como
203
afirma Levinas (2001a), não é da ordem da revelação? Fazer a experncia com a
arte seria, então, um encontro infrutífero, um fracasso da comunicação?
A questão que se coloca está em fazermos um esforço e repensarmos o
nosso modo de nos relacionar com a arte, e isso implica numa série de questões:
repensar nosso hábito de buscar sempre a “luz”, o esclarecimento em forma de
interpretação e verdade, e pensar que a “luz” resolve qualquer problema de
comunicação. Seria fazer uma inversão e passar a acreditar que no “murmúrio” do
que o se esclarece, na impossibilidade, uma forma de dizer que se realiza de
outro modo que ser. O problema é que criamos uma idéia de arte como servidora,
prestadora de serviço, esclarecedora do invisível. Agora teríamos de crer numa arte
que o se subjuga a servir, mas que infalivelmente “serve” por outras vias e de
“outro” modo. Verificamos ainda que devemos repensar a iia de serventia porque
o que serve aqui o faz na sua estranheza, no “Infinito” de suas formas, na recusa
ética de o se deixar dizer. Podemos pensar na possibilidade de estarmos diante
de uma outra estrutura de conhecimento que não se reduz ao prender do
compreender (a uma intencionalidade), em que o fracasso da comunicabilidade, por
ser ético, é o que nos salva. Renunciar a fracassar” é pecar” contra a ética, como
nos diria Levinas, pois é o fracasso que os poetas procuram. Eles sabem que é
exatamente nele que reside o êxito de suas obras, conforme aponta Blanchot. A arte
é em si mesma a inoperância do saber canônico, que reivindica a necessidade de se
pensar de outro modo sobre esse pretenso fracasso do processo artístico.
Na ética levinasiana o fracasso é respeitabilidade. Trata-se de não se impor a
intencionalidade, ou seja, um “Eu” imperativo a um “Outro”. O poeta funda na obra
essa respeitabilidade e ao fazer isso nos dá a dimensão da ética do “Outro”.
Digamos que o poeta é o fundador por excelência de uma ética do Outro”, da
204
alteridade, pois é na espontaneidade de seu fazer que se realiza a relação ética.
Não se trata de nenhuma lei a priori estabelecida para a elaboração dessa ética. A
arte, portanto, funda-se no seu próprio gesto de alteridade, no qual podemos dizer
que ela realiza ou materializa o que o pensamento filosófico de Levinas propõe
como teoria. Talvez possamos dizer que a arte, e mais especificamente a arte
contemporânea, é por excelência uma relação ética e que essa ética pode ser
transformadora por não pertencer a nenhuma ética elaborada que não leva em
consideração a resistência do “Outro”. A arte como expressividade pura da
“diferença”, no que chamamos de estética do fracasso” através do estranhamento,
funda a respeitabilidade e, ao fundá-la, dá-nos a extensão da pretensão do “Eu”
sobre o “Outro”. Assim, o “Outro” levinasiano e blanchotiano se institui como um
“absolutamente Outro”, inferindo fecundidade à impossibilidade de comunicabilidade.
Em termos filosóficos, devemos dizer que a ontologia fundamental é para Levinas
fundamentalmente ética, em conseqüência da incomunicabilidade que nos impõe o
“Outro”. Pensar o ser como inseparável de sua compreensão já não tem validade
alguma. A ontologia fundamental é, para Levinas, a ética do “absolutamente Outro”,
o móvel por excelência da Filosofia. Torna-se, portanto, importante observar que
Levinas e Blanchot instituem um ser que se faz radicalmente mistério, mas que,
através dos conceitos de “Rosto”, “Neutro”, “Infinito” e “Há”, não separam o ser do
âmbito dos valores morais e da concreta existência social dos indivíduos.
Perguntamos então: que relação pode se dar que não seja a da compreensão
do ser? Nos estudos realizados através de nossos autores, Levinas e Blanchot, a
única relação essencialmente possível com a realidade é a que institui essa
realidade como um absolutamente Outro”. “Totalidade” e “Infinito” não o termos
redundantes nas obras destes autores, mas sim termos inconciliáveis. Para Levinas,
205
todo o pensamento ocidental está sob o domínio da totalidade, a qual se define pela
não alteridade, ou seja, deseja abarcar toda a diferença na imanência do pensar. A
razão através do conceito delega a si mesma o poder de submeter tudo ao seu
conhecimento. O real passa a ser o racional, e o racional, o real. A ética da
alteridade recusa a totalidade do Eu” e da razão. A ética aqui não é um código
moral de uma lei, mas d um mandamento, quase um apelo pessoal, desde que algo
que vem do “Outro” nos ordena respeitabilidade. Trata-se de um movimento para o
“Outro”. Estamos diante de um pensamento que rejeita qualquer postura sistemática
e se abre para uma alteridade incomum que anula a intencionalidade e a
subjetividade.
Assim, para Blanchot e Levinas, torna-se inviável pensar a arte como algo
que diz o mundo ou algo que expresse a nossa compreensão sobre o mundo.
Resta-nos, portanto, descrever o “murmúrio” da arte, o que significa constatar o ser
na obscuridade. Podemos relatar a profundidade desse “ruído” no quanto ele nos
aflige como um desconhecido. Ou podemos falar do nosso desejo de continuar
mantendo contato com o obscuro, pois ele modifica a nossa percepção com o
mundo exatamente na sua impossibilidade de falar. Trata-se de fazer a inversão
radical dos conceitos em que o que se “apreende” já não está mais numa relação de
entendimento, de correlação, de simetria, de reciprocidade e de igualdade.
Verificamos que a fraqueza da comunicabilidade é o fator que permite à obra
ser fundante de sua própria hermeticidade a fim de que os diversos “Eus” (críticos,
instituições, historiadores, professores de arte, estetas, enfim, todos os que se
reservam o direito de inferir sobre a arte) não instaurem na obra a comunicabilidade
que lhes convém. Isso salva a arte de enquadrar-se dentro de regras de conduta
que ditem como ela deve se “comportar” para ser arte. Diante de uma idéia assim
206
elaborada, somos obrigados a nos relacionar com uma arte que o serve a fim
algum, a não ser a si mesma, o que não quer dizer que estejamos nos referindo à
estética acadêmica da arte pela arte. Ou seja, Levinas (2001a, p. 46) não situa a
arte acima da realidade. Segundo ele, na arte é um ato imoral à medida que liberta o
artista de seus deveres de homem assegurando-lhe uma nobreza pretensiosa.
Falamos de um objeto retraído, desprovido de verdade, que pode fascinar pelo
desejo no momento que diz mais do que pode dizer justamente por não se isolar do
mundo.
A proposta que se delineia na presente tese é, portanto, investigar a arte a
partir do que ela é, e não do que ela deveria ser, posto que o que ela deveria ser
surgiu do fato de não sabermos lidar com o que ela é, ou seja, da dificuldade que
temos de lidar com o “Infinito”. Vejamos: a arte deveria ser a perfeição, a visão do
absoluto, aquela que tem a missão de ajudar a recuperar idealmente a coisa, um
enriquecimento do mundo pela redução, um ícone, um signo que metamorfoseia o
mundo opaco. Todos esses requisitos eliminam a possibilidade do “Infinito”.
Investigar a arte nos escombros é pensá-la através do que não pode ser
simbolizável, isto é, do indeterminado. A arte é o espaço em que o sentido o
escapa mais para o outro sentido, mas para oOutro” de todos os sentidos. Ou seja:
nada tem sentido, mas tudo parece ter infinitamente sentido, é o espaço da errância
sem erro. o falamos do distanciamento da coisa, mas da coisa como
distanciamento, da coisa que é presença como ausência. Ou seja: não se trata de
dizer que a arte visibilidade ao que está na invisibilidade da realidade, mas de
afirmar a invisibilidade radical como essência primordial e inerente à arte.
Na inversão radical realizada pelos pensadores Maurice Blanchot e
Emmanuel Levinas constatamos, a partir das leituras apontadas durante o percurso
207
da tese, a origem do problema no confronto com conceitos estabelecidos, como, por
exemplo: pensar que a comunicabilidade está sempre em relação à luz da
racionalidade; pensar que o Infinito” denota privação de conhecimento; pensar que
a possibilidade é sempre positiva, e a impossibilidade, negativa, pensar que a
função da arte consiste em expressar e que a expressão artística denota
conhecimento, ou pensar que ainda é possível fazer crítica de arte nos moldes
gerados pela tradição. Para Blanchot, a impossibilidade resulta em possibilidade, e
para Levinas, a inacessibilidade do “Outro” é positividade, que resulta em
respeitabilidade e em não-violência. A diferença converte-se em positividade quando
o diferente sempre fora visto como caos aos olhares da racionalidade.
A inversão radical traz a emergência do conceito levinasiano de “Desejo”.
Agora o desejo é o movimento que impulsiona em direção à arte. O desejo nos
ensina os caminhos do “Infinito”. Somos desejosos doInfinito”, pois este, ao ser um
pensamento que pensa muito mais do que pode pensar, torna-se fascinante e nos
confere o sabor do enigma, do mistério. O “Desejo” é o prazer pela transgressão, é o
que nos faz reatar a impossibilidade como fecundidade. O Desejo” pela
transgressão é um atrativo fatal pelo diferente, pelo que é “Rosto”, pelo
“absolutamente Outro”. O desejo nasce da impossibilidade como um fomentador da
relação entre o “Eu” e o “Outro”. É o “Desejo” que, tendo seu berço na
incomunicabilidade, é o motivo único pelo qual podemos ir à obra. É ainda o
“Desejo” que nos permite descrever a obra como “Infinito”. O “Desejo” instaura um
conceito que nos liberta da obrigatoriedade de compreender a obra. Ele se faz
atração no movimento da alteridade radical, em que o “Outro” nos confronta quando
diz: eis-me aqui. Resulta daí, então, uma relação que se faz não com base na
compreensão, mas numa conversa infinita entre o sujeito e a obra-de-arte, uma
208
conversa sem fim, sem rumo, sem verdades, uma conversa da fadiga e do cansaço,
uma conversa sobre o ruído. Tornamo-nos pela inversão radical desejosos da
obscuridade, somos “buscadores” das sombras para nelas espreitar o que sabemos
que murmura, que é fascinante e assustador. Pelo “Desejo” estamos condenados
a pensar a existência de um ser que balbucia, a reconhecer a falência de uma razão
desmedida e auto-suficiente referenciada nos fundamentos da tradição filosófica
ocidental.
A fecundidade da obra-de-arte está, portanto, nos rastros que seguimos na
obra, está naquilo que nos assusta, que nos constrange ou que nos aprofunda na
solidão. A arte encontra a sua “função” na o-função, no fato escabroso de não
servir mais para nada, no fracasso. São os seus vestígios que alimentam o nosso
desejo. Os vestígios são enigmas conquistados. Perseguimos esses enigmas como
um caçador segue pegadas na mata, como um policial persegue um ladrão ou como
um arqueólogo busca os fragmentos de seu objeto. À obra interessa o seu próprio
fracasso. Persegue-lhe uma visão da qual ela sabe que não dará conta. Nela nos
interessa esse caminho sem objetivo, que Levinas e Blanchot pensam como a real
sobrevivência da obra. Essa fala essencialmente errante sempre está fora de si. É
assim que fazer arte é aproximar-se desse ponto em que nada se revela.
Dessa maneira, talvez possamos pensar a arte contemporânea como o lugar
poético que renuncia à utopia da arte concebida como mediadora entre as coisas do
mundo e o indivíduo. A arte é o inútil. É o espaço da negação, da morte, esse
espaço em que reina um excesso de negatividade, pois, ao mesmo tempo que
necessita das coisas do mundo, a arte as mata, decretando a nulidade de toda
objetividade em si (morte das significações) para fazê-las “ressurgir” como imagens
desnudas. É o espaço que busca o mais alto grau da inestética, do inútil, do
209
injustificável que esgota o sentido das palavras, não reconhecendo as suas origens.
É o lugar que desestabiliza todas as antigas moradas da linguagem, como fizeram
Beckett, Valéry e Mallarmé, e das formas, como fez Duchamp.
Outra questão decorrente de tudo o que foi exposto é o fato de a arte livrar-se
de qualquer juízo de valor. Como fazer crítica de arte a partir de então? Essa
questão talvez seja a mais crucial para a arte contemporânea quando inúmeras
vezes constatamos a crítica de arte dedicando parte de seu tempo para discutir se
“isso é ou não é arte”. Essa crítica faz o jogo da classificação através dos cânones
da tradição pensada nas suas obrigações de arte, em vez de repensar a
possibilidade de, ao estar frente a frente com a incomunicabilidade, ouvir, tal como
fez Blanchot, o “murmúrio” das propostas que ali sussurram.
Para Levinas (2001a), o crítico aborda as técnicas das obras, indaga as suas
influências, trata dos tempos e do mito, porém o vai ao ponto crucial: essa fissura
que acontece entre a obra e o diálogo com ela, onde se aloja o Há”, esse
acabamento misterioso que independe do seu entorno sócio-material. Assim, para
Levinas não como afirmar o engajamento da obra, as suas profecias ou os seus
ensinamentos nos moldes postulados até então. Ou seja, podemos afirmar, a partir
das leituras realizadas, que a arte é engajada na medida de sua resistência a esse
procedimento e é profética quando nega qualquer possibilidade de profecia. É na
alteridade radical a qualquer procedimento condizente a prerrogativas a priori que o
“algo” se faz objeto de arte. Radicalmente podemos dizer que a arte não exprime as
aspirações do artista, que não comunica nenhuma mensagem, ao contrário, resta-
lhe o transcendente à existência. Na obra-de-arte se instaura um mundo envolto em
sombras, assim não se cria uma sociedade à maneira que postulamos ser seu ideal
de arte. Esse ideal, se é que ele existe, são a morte e a solidão.
210
Assim, qualquer juízo de valor diante do “Outro” é esquecer a imensa
distância que há no estar frente a frente com um “Rosto”. Como crítico, Blanchot não
deixou de falar sobre as obras e os artistas para julgá-los, mas apenas para anunciar
essa improdutividade, essa inoperância da obra-de-arte, bem como para falar sobre
o processo de morte dos artistas, para conquistar o lugar de “impossibilidade” da
obra. Foi dessa maneira que procuramos nos acercar da arte. Ao “ler” as obras dos
artistas aqui trabalhados, tencionamos falar apenas de nosso desejo diante do ser
que se faz obscuridade, porém tínhamos como missão primordial mostrar o quanto a
arte realiza em si mesma o que Blanchot e Levinas postulam na teoria, ou seja, a
arte como essencialmente esse “absolutamente Outro”.
A obra como “Infinito” realiza em Blanchot a sua coerência máxima com o que
Levinas chamou de alteridade radical, de ética. Blanchot é, seja nos seus textos
críticos ou nos seus textos de narrativa, uma experiência prática e viva das
propostas levinasianas, isso dito pelo próprio Levinas. O Outro” de Blanchot foi
sempre o absolutamente Outro”, um “Infinito”. Quanto às obras-de-arte, atenção
especial de Blanchot, ele não as classificou nem avaliou nem comparou, não quis
compreendê-las, mas fala delas dentro da própria escritura, como sugere Perrone-
Moisés (2005, p. 96), “vizinhança perigosa do ‘centro da esfera’. Malogra em dizer
esse centro, mas persiste dizendo e redizendo incessantemente a impossibilidade
da obra”. A obra crítica é , pois se o próprio artista se diz um errante, não será o
crítico um profeta a definir os caminhos do artista. de ser também o crítico um
errante, assim como o foi Blanchot. Se as formas são um silêncio absoluto, não seria
o crítico pretensioso ao afirmar dizê-las? O fracasso da obra é tamm o fracasso do
poder. Ora, é exatamente aqui que se realiza o espaço levinasiano da ética. Assim,
a presente proposta pretende rever alguns pontos significativos para a abordagem
211
da arte hoje, principalmente essa que está determinadamente ligada à crítica da
arte. Cabe indagarmos: qual seria, então, o papel do crítico hoje? Talvez tenhamos
de rever esse papel, pois se a arte é inoperante, os críticos tamm o são.
Para Blanchot, o artista, por sua vez, tira partido de sua inoperância e se faz
eterno “buscador” do Infinito”, lugar em que deseja fazer a sua morada e de tirar
as suas formas. Levinas talvez nos dissesse que o artista é um “fazedor” do “Rosto”,
de um absolutamente Outro” para nos fazer concretizar a experiência com o
diferente e, a partir da diferença, para nos relacionarmos com o “Outro”. O artista
não sabe o que busca porque não pode e não deve sabê-lo, pois faz parte de sua
prática fundar uma objetividade vazia. Assim, esse “sondador” das formas rompe
com tudo, não tem verdade alguma como horizonte nem futuro algum como morada.
O artista busca o centro da própria ambigüidade. Realiza a perda, a morte da
realidade, para que esta se faça esse Outro do mundo” e para que na perda, “na
ausência”, incite em nós uma “paixão” pelo que é o incessante. A paixão e o desejo
nascem a partir do que é morte ou dessa proximidade com a morte. A perda confere
à realidade um “Outro do mundo” de diferente valor, o valor ético da alteridade
radical, pois como “Rosto a obra balbucia” uma realidade outra. A obra mata a
realidade, embora dela nunca prescinda. Quando nos deparamos com a dimensão
enigmática do objeto de arte, estamos na presença de algo completamente estranho
ao nosso cotidiano. Isso torna seu lugar instável bem como desestabiliza o nosso
“olhar”, a nossa compreensão acerca da arte, ou seja, a nossa interpretação soa
insegura, algo veta a nossa comunicação.
Porém, segundo Blanchot (205, p. 235), “parece falso ver en arte de hoy uma
simple oportunidad para experiencias subjetivas o uma dependência de la estética y,
sin embargo, no dejamos de hablar de experiência a propósito del arte”. Hoje o que
212
atrai o artista não é o fato de expressar-se mediante a sua obra, mas de se deixar
perder na busca incessante que conduz até ela. Blanchot (2005) diz que o artista
prefere as etapas da obra, e não ela mesma. Toda obra parece ser vítima da falta ou
de um excesso que a faz enigma. Daí decorre que o artista contemporâneo deixa
freqüentemente a obra em seu estado fragmentário, centenas de relatos e de
esboços ou um acúmulo de coisas que fizeram parte de sua caminhada. Lembramos
o ateliê de Farnese de Andrade, repleto de objetos colhidos em suas caminhadas,
cujo propósito parecia ser o próprio ateliê uma obra-de-arte. O ateliê era o lugar dos
guardados, lugar em que todas as coisas que foram vistas, adquiridas, manipuladas,
iam sendo armazenadas tal como no sacrário da perda da história, uma espécie de
purificação, um lugar sempre fora do tempo, o purgatório do lixo. Toda obra passa a
ser nada mais do que um exercício. Nada ali parece estar seguro, nada se define
como uma atividade compreensível e que, nas palavras de Blanchot (2005, p. 236)
quando se refere à literatura, entendemos como que servindo a todas as artes:
sino más bien como lo que no se descubre, no se verifica ni se justifica
nunca directamente, a lo que no nos cercamos sino rodeándolo, lo que no
se comprende salvo allí donde se va más allá, mediante una indagación que
no debe preocuparse en absoluto de la literatura, de lo que ella es
‘esencialmente’, sino que se preocupa por el contrario de reducirla, de
neutralizarla o, más exactamente, de descender, por un movimiento que
finalmente se le escapa y la descuida, hasta un punto en el que sólo parece
hablar la neutralidad impersonal.
Também lembramos de Cindy Sherman, que quer se perder na obra, que se
reconhece continuamente como impossibilidade de dizer-se como indivíduo no
mundo, de pensar que a realidade que nos é dada seria um engano.
Blanchot (2005, p. 235) diz que “no dejamos de hablar de experiência a
propósito del arte”. Que experiência é essa? Trata-se de uma experiência profunda
que se realiza dissimulando-se na obra, que não tolera limites, que está sempre
213
por vir, que não aceita ser estabilizada nem reduzida. A arte realiza a experiência de
uma paixão por sua própria questão, torna-se um campo de forças para que o artista
e o observador sejam desejosos dessa questão própria da arte que não sabemos
bem qual é, mas que implica em nunca estar em busca de soluções. Implica nesse
estranhamento radical.
O artista contemporâneo faz com freqüência o exercício da busca por essa
questão da arte, especificamente quando desfamiliariza as coisas do nosso
cotidiano, apresentando como arte as fotografias e nelas, sem qualquer pudor, o
corpo humano, os excrementos, as vestimentas, o lixo e as atrocidades do mundo.
Essa desfamiliarização faz com que as coisas adquiram as características de
“Rosto”, assumam uma radicalidade e repercutam em nós o que Levinas chama de
“Há”, e Blanchot, de “Neutro” e de “Infinito”.
Deste estudo, vislumbramos o assinalamento de alguns pontos passíveis de
serem levados em conta para a problemática de se pensar a arte hoje, os quais
indicamos como promissores para alongar a presente proposta. Considere-se
nesses vislumbres o fato de a pesquisadora ser professora de arte e de estar
constantemente enfrentando as questões ligadas à interpretação da arte, a qual
pode ser considerada uma das questões mais cruciais atualmente ligadas à arte. Ou
seja, como “ler” a arte contemporânea? Para que e a quem serve a arte hoje? Teria
a arte perdido a sua função em nosso meio? Como pensar a relação com a arte em
Bienais e em galerias, através de uma experiência que não prevê a “luminosidade”?
Como pensar uma proposta para a educação em arte centrada numa leitura que a
considere como vocacionada ao estranhamento “Infinito”? São perguntas com as
quais nos defrontamos sempre em nossa prática de educadores e teóricos da arte.
Essas perguntas fazem sentido desde que somos herdeiros de uma tradição que
214
sempre teve argumentos para explicar a arte e que hoje vemos sem fundamento
para tanto diante de uma arte que se faz ela mesma a negação de qualquer
fundamento. O fato de que estamos sem esses fundamentos da tradição nos parece
claro; resta saber como pensar a arte sem eles ou pensá-la a partir da pressuposta
ausência deles. A proposta delineada na presente tese pode vir a ser acusada de
ditar um fundamento” que se embase na “ausência de fundamento”. Porém, ainda
assim, a nosso ver, esta proposta oferece uma perspectiva interessante desde que,
se considerarmos o estado de “catástrofe”, a arte nos oferece uma experiência viva
com a catástrofe, não a dilui na verdade estabelecida nem cria falsas esperanças e
tampouco faz da catástrofe um niilismo completo.
A proposta está em pensar uma arte “útil” justamente porque refaz o conceito
de utilidade, do qual fomos sempre tributários. Ela é a catástrofe sem ser uma fonte
de niilismo, mas, sendo o próprio, mostra-nos a relação com o diferente, a
experiência de um limite impossível. A extensão disso talvez seja o emergir de todas
as dimensões de indagações que fazem parte de nossa existência, o que nos leva a
dizer que nunca precariedade na impossibilidade, mas sim um conhecimento
profundo, entendido de imediato como impossibilidade do próprio conhecimento.
Porém, a chamada que faz a referida proposta não significa uma substituição niilista
ou uma inversão do verdadeiro pelo falso, mas uma posição madura diante da
impossibilidade que desemboca numa ética da diferença.
Na lista das inversões que propomos ao longo da tese entra tamm a
inversão do conceito de conhecimento, que deve ser entendido não como
“luminosidade”, mas como obscuridade. Teríamos que, como Orfeu, fazer a opção
por ver Eurídice não em sua verdade diurna, em seu acordo cotidiano, mas na sua
obscuridade noturna. Vê-la não enquanto ela está visível, mas quando está invisível,
215
ou seja, não na sua intimidade familiar, mas na sua estranheza que exclui a
intimidade familiar e a faz viva na plenitude de sua morte. Teríamos que olhar na
noite o que a noite dissimula a “outra noite”, a dissimulação que aparece”
(BLANCHOT, 1987, p. 172). Seria, então, buscar na obra a presença de uma
ausência infinita que é plena de fecundidade.
Postulamos a arte contemporânea como um lugar de “não-buscas”, de “não-
identificações”, um lugar onde o próprio enigma de nossa existência se materializa e
se configura na impossibilidade de conhecermos essa existência, uma arte que
infere a percepção de que tudo ao nosso redor é uma vivência de mistério. A arte se
apresenta, dessa forma, como a própria dimensão da desmesura da exterioridade, o
“Infinito”. Essa dimensão é, a nosso ver, uma leitura fecunda possível acerca da arte
contemporânea diante da impossibilidade que põe o “frente-a-frente” com as suas
imagens. Não há mais como esperar o pôr-se em obra da verdade na arte, a não ser
que entendamos esse movimento como o “pôr-se” do ruído ou opôr-se” do abismo,
o instalar-se de um lugar onde a imagem da arte nada mais tem a ver com a
existência do mundo. Ou seja, lugar em que a imagem não somente não é o sentido
do objeto e não ajuda na sua compreensão como subtrai dele o sentido e a
compreensão na medida em que o manm na imobilidade de uma semelhança que
nada tem com o que se assemelhar. Na figura humana, por exemplo, que vemos nas
imagens de Andrés Serrano, o homem é feito o mais à imagem e semelhança de
uma divindade, mas à sua própria imagem. É o que nos ensina a estranheza da
solidão cadavérica quando o defunto começa a “assemelhar-se a si mesmo”
(BLANCHOT, 1987, p. 259). Si mesmo designa, então, o ser impessoal, distanciado
e inacessível que a imagem faz ver através de sua ligação “à estranheza elementar
e ao peso informal do ser presente na ausência” (BLANCHOT, 1987, p. 259). A idéia
216
de semelhança da arte a alguma outra coisa encontra resistência em Levinas e em
Blanchot. Se semelhança, esta é de outra ordem, não aquela que vem depois da
coisa e que passa pelo crivo da inteligência a fim de que produza um excedente de
conhecimento. Para os teóricos em discussão, a arte se assemelha a nada, o seu
conhecimento é de natureza trágica, pois esta se esforça para afirmar o movimento
da vida sobre um fundo radicalmente obscuro.
O discurso teórico que empreendemos infere, portanto, uma arte sem função.
Talvez possamos dizer que ampliamos o conceito de arte, pois a livramos dos limites
do canônico. A questão é que sempre pareceu muito fácil para a leitura da arte estar
vinculada a uma ação progressiva do espaço e do tempo, em que a história dava
conta de todos os esclarecimentos sobre as obras através do estilo e da cultura.
Assim, o que temos como reflexão teórica trata-se de uma proposta de um outro
modo que ser para uma arte que se configurou a partir de um determinado tempo
como um “outramente que ser” ou um “para além da essência”. Mas o que se
confere como justiça para essa arte é o fato de que “ser outramente” ou “ser de outro
modo” lhe atribui uma liberdade ética de realizar ela mesma a dimensão ética do
desconhecido, inferindo-o como um conhecimento de outro modo que ser em nosso
meio.
217
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Destruição da experiência e origem da
história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
AMOROSO, Leonardo. La lichtung de Heidegger, como lucus a (non) lucendo. In:
VATTIMO, Gianni; ROVATTI, Píer Aldo (Eds.). El pensamiento débil. Madrid:
Cátedra, 1990.
ANDRADE, Fábio de Souza; BECKETT, Samuel. O silêncio possível. Cotia, São
Paulo: Atel Editorial, 2001.
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Tradução Marina Appenzeller. São
Paulo: Estação Liberdade, 2002.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Ensaio. São Paulo: Arx, 2004.
______. História do olho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
BAUDRILLARD, Jean. À sombra das mayorías silenciosas. O fim do social e o
surgimento das massas. Tradução Suely Bastos. São Paulo: Brasiliense, 2004.
______. Cool Memories IV Crônicas 1996-2000. Tradução Luciano Loprete. São
Paulo: Estação Liberdade, 2002.
______. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
218
______. Cool Memories III Fragmentos 1991-2995. Tradução Rosângela Tibúrcio.
São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
______. El paroxista indiferente. Conversaciones com Phlippe Petit. Barcelona:
Anagrama, 1998.
______. Simulacros e simulações. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
______. A transparência do mal. Ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas,
São Paulo: Papirus, 1990.
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução Marcus Penchel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
______. Modernidade e ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1999.
______ . Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a.
______ . O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998b.
______. Ética pós-moderna. Tradução João Rezende Costa. São Paulo: Paulus,
1997.
BAYER, Raymond. História da estética. Tradução José Saramago. Lisboa: Editorial
Estampa, 1995.
BECKETT, Samuel. O Inominável. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. São Paulo: Stampley, 1974. Cap. 21, vers. 22.
BLANCHOT, Maurice. El libro por venir. Madrid: Trotta, 2005.
______. Thomas el oscuro. Narrativa contemporânea. Valencia: Pré-textos, 2002a.
219
______. La comunidad inconfesable. Madrid: Arena Libros, 2002b.
______. A conversa infinita. A palabra plural. São Paulo: Escuta, 2001.
______. La bestia de Lascaux. El último en habla. Madrid: Tecnos, 1999.
______. A parte do fogo. Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco,
1997.
______. Pena de morte. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
______. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
______ . L’Écriture du desastre. Paris: Éditions Gallimard, 1980.
______. La risa de los dioses. Madrid: Taurus, 1976.
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São
Paulo: Cosac & Naify, 2006.
BOEDER, Heriberto. El final de juego de Jacques Derrida. Buenos Aires:
Quadrata, 2004.
BONDER, Nilton. A alma imoral. Tradição e traição através dos tempos. Rio de
Janeiro: Rocco, 1998.
BORNHEIM, Gerd A. (Org.). Os filósofos pré-socráticos. o Paulo: Cultrix, 1999.
BOZAL, Valeriano (Ed.). Imágenes de la violência em el arte contemporâneo.
Madrid: Machado Libros, 2005.
BRAVO. São Paulo: Abril, n. 78, ano 7, 2004.
220
BUENO, Maria Lúcia. Artes plásticas no século XX. Modernidade e globalização.
Campinas, São Paulo: UNICAMP, 1999.
CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1980.
CACCIARI, Massimo. El dios que baila. Buenos Aires: Paidós, 2000.
CAPUTO, John D. Desmistificando Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
CHALUMEAU, Jean Luc. As teorias da arte. Filosofia, crítica e história da arte de
Platão aos nossos dias. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
CIORAN, E. M. Em las cimas de la desesperación. Barcelona: Tusquets Editores,
2003.
_______. O breviário de decomposição. Tradução José Thomaz Brum. Rio de
Janeiro: Rocco, 1989.
COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de
experimentação. São Paulo: Perspectiva, 1989.
CORTÉS, José Miguel G. Orden y caos. Un estudio cultural sobre lo monstruoso en
el arte. Barcelona: Anagrama,1997.
COSAC, Charles. Farnese (objetos). São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
CRISTIN, Renato (Comp.). Razón y subjetividad. Después del postmodernismo.
Buenos Aires: Almagesto, 1998.
DANTO, Arthur C. El abuso de la belleza. La estética y el concepto del arte. Buenos
Aires: Paidós, 2005.
______. La transfiguración del lugar comúm. Una filosofía del arte. Buenos Aires:
Paidós, 2004.
______. Después del fin del arte. El arte contemporáneo y el linde de la historia.
Barcelona: Paidós, 2001.
221
DERRIDA, Jacques. La verdad em pintura. Buenos Aires, Barcelona, México:
Paidós, 2001.
______. Adiós a Emmanuel Levinas. Madrid: Trotta, 1998.
______. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995.
______; VATTIMO, Gianni (Orgs.). A religião: o seminário de Capri. São Paulo:
Estação Liberdade, 2000.
DESCOMBES, Vincent. Lo mismo y lo outro. Cuarenta y cinco anos de filosofía
francesa (1933-1978). Madrid: Cátedra, 1998.
DOMINGUES, Diana (Org.). A arte no século XXI. A humanização das tecnologias.
São Paulo: UNESP, 1997.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
2002, 483 p.
DUARTE, Rodrigo A. de Paiva. Mímesis e racionalidade. A concepção de domínio
da natureza em Theodor W. Adorno. São Paulo: Loyola, 1993.
ECO, Humberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1997.
ESHEL, Emir. O charme é enganoso e a beleza é vã. In: ROSENFIEL, Denis L.
(Org.). Ética e estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
FINKIELKRAUT, Alain. La humanidad perdida. Ensayo sobre el siglo XX. Tradução
Thomas Kauf. Barcelona: Anagrama, 1998.
FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2001.
______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FORNOFF, Roger. Catálogo do Fórum de Barcelona. Barcelona, 2004, p. 86.
222
FREIRE, Cristina. Poéticas do processo. Arte conceitual no museu. São Paulo:
Iluminuras, 1999.
GARDNER, James. Cultura ou lixo? Uma visão provocativa da arte
contemporânea. Tradução Fausto Wolff. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
GASSET, José Ortega. A desumanização da arte. Tradução Ricardo Araújo. São
Paulo: Cortez, 1991.
GIANOTTI, J. A. O jogo do belo e do feio. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
GIL, Marta López; BONVECCHI, Liliana. La imposible amistad. Maurice Blanchot e
Emmanuel Levinas. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2004.
GÓES, Fred; VILLAÇA, Nízia (Orgs.). Nas fronteiras do contemporâneo. Território,
identidade, arte, moda, corpo e mídia. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.
GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
GREENBERG, Clement. Estética doméstica. Observações sobre a arte e o gosto.
Tradução André Carone. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
GRITZ, David. Levinas face au beau. Paris: Éditions de l’éclat, 2004.
GROSENIK, Uta (Ed.). Mulheres artistas nos séculos XX e XXI. Los Angeles,
Madrid, Paris, Tokyo: TASCHEN, 2005.
GUINSBURG J.; BARBOSA, Ana Mãe (Orgs.). O pós-modernismo. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
HALL, Edward T. A dimensão oculta. Tradução Waldéia Barcelos. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
HANS, Belting. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo:
Cosac Naify, 2006.
223
HAUSE, A. História social da literatura e da arte. 2 v. São Paulo: Mestre Jou, 1980
e 1982.
HEIDEGGER, Martin. Tempo e ser. In: Conferências e escritos filosóficos.
Tradução Emílio Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores).
______. A origem da obra-de-arte. Lisboa: Edições 70, 1990.
______. A essência do fundamento. Lisboa: Edições 70, 1988.
INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Tradução Luísa Buarque de Holanda.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade,
2002.
JUNQUEIRA, Ivan. Baudelaire, Eliot, Dylan Thomas. Três visões da modernidade.
Rio de Janeiro: Record, 2000.
KANDINSKY, Vassily. Do espiritual na arte: e na pintura em particular. São Paulo:
Martins Fontes, 1990.
KRISTEVA, Julia. Poderes de la perversión. Buenos Aires: Talleres Gráficos, 1988.
LACOUE-LABARTHE, Philippe; NANCY, Jean-Luc. O mito nazista. São Paulo:
Iluminuras, 2002.
LEVINAS, Emmanuel. Difícil libertad. Ensayos sobre el judaísmo. Buenos Aires:
Lilmod, 2004.
______. De outro modo que ser o más allá de la esencia. Salamanca, Espanha:
Sigueme, 2003.
______. De Deus que vem a idéia. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
______. La realidad y su sombra. Libertad y mandato, transcendência y altura.
Madrid: Trotta, 2001a.
224
______. Algunas reflexiones sobre la filosofia del hitlerismo. Buenos Aires:
Fondo de Cultura Econômica, 2001b.
______. Totalidade e infinito. Tradução José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70,
2000a.
______. Ética e infinito. Lisboa: Edições 70, 2000b.
______. Emmanuel Levinas. Sobre Maurice Blanchot. Edición de José M. Cuesta
Abad. Madrid: Trotta, 2000c.
______. Dios, la muerte y el tiempo. Madrid: Cátedra, 1998a.
______. Da existência ao existente. Tradução Paul Albert Simon e Lígia M. C.
Simon. Campinas: Papirus, 1998b.
______. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade. São Paulo: Vozes, 1997.
______. El tiempo y el outro. Barcelona: Paidós, 1993.
______. Transcendência e inteligibilidade. Lisboa: Edições 70, 1991.
______. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto
Piaget, 1967.
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora. Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2003.
LYOTARD, Jean-François. Peregrinações. Lei, forma, acontecimento. São Paulo:
Estação Liberdade, 2000.
LOPARIC, Zeljko. Ética e finitude. São Paulo: Escuta, 2004.
LOURENÇO, Eduardo. O espelho imaginário. Pintura, antipintura, não-pintura.
Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1996.
225
MACIEL, Kátia (Org.). A arte da desaparição. Tradução Anamaria Skinner. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1997.
MALRAUX, André. As vozes do silêncio. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.
MARINA, José Antonio. Crónicas de la ultramodernidad. Barcelona: Anagrama,
2000.
MARTINS, Maria Helena (Org.). Rumos da crítica. São Paulo: SENAC, Itaú
Cultural, 2000.
MEDEIROS, Sérgio. Alongamento. Cotia, SP: Ateliê, 2004.
MELO, Nélio Vieira de. A ética da aletridade em Emmanuel Levinas. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
______. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003.
______. A prosa do mundo. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify,
2002.
______. A fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
______. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
______. Textos selecionados. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Os Pensadores).
MICHELS, A. et al. O homem e o sujeito. Tradução Francisco R. de Farias. Rio de
Janeiro: Revinter, 2001.
MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002.
MOREIRA, Moacyr Godoy (Org.). Ponto de fuga. São Paulo: Perspectiva, 2004.
(Debates).
226
MOTTA, Manoel Barros da. (Org.). Estética: literatura e pintura, música e cinema.
Tradução Inês Autran D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
MALLARMÉ, Stéphane. A tarde dum fauno e um lance de dados. Tradução
Armando Silva Carvalho. Lisboa: Relógio D’Água, 2001.
MÜLLER, Marcos José. Merleau-Ponty: acerca da expressão. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2001. (Colão Filosofia).
MUSEU d’Art Contemporani de Barcelona. ACTAR, Barcelona, 2005.
NAVES, Rodrigo. Farnese de Andrade. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
NOVAIS, Adauto (Org.). Muito além do espetáculo. São Paulo: SENAC, 2005.
NUNES, Benedito. Passagem para o poético. Filosofia e poesia em Heidegger.
São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
______. No tempo do niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1993.
OSBORNE, Harold. Estética e história da arte. São Paulo: Cultrix, 1993.
OYARZUN, Pablo. Anestética Del Ready-Made. Santiago, Chile: LOM/ARCS, 2000.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Tradução Maria Helena N. Garcez.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______. Estética. Teoria da formatividade. São Paulo: Vozes, 1993.
PASQUA, Hervé. Introdução à leitura do ser e tempo de Martin Heidegger.
Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
PELBART, Peter Pál. O tempo não reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2004.
(Coleção Estudos).
227
______. Da clausura do fora ao fora da clausura. Loucura e desrazão. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
PELIZZOLI, Marcelo Luiz. Levinas. A reconstrução da subjetividade. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2002a.
______. O eu e a diferença. Husserl e Heidegger. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002b.
PERNIOLA, Mário. Enigmas. Egipcio, barroco y neo-barroco en la sociedad y el
arte. Murcia: CendeaC, 2006.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
PIRES, Beatriz Ferreira. O corpo como suporte da arte. São Paulo: SENAC, 2005.
PLATÃO. A república. São Paulo: Atena, 1959.
RANCIÉRE, Jacques. A arte além da arte. Folha de S. Paulo. São Paulo, 24 out.
2004. Caderno Mais, p. 3.
REGUERA, Gabriel Bello. La construcción ética del otro. Espanha: Nobel, 1997.
REVISTA DO OCIDENTE. Barcelona, n. 201, feb. 1998, 59 p.
RICOEUR, Paul. Outramente. Leitura do livro Autrement qu’être ou au-delà de
l’essence, de Emmanuel Levinas. Tradução Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis:
Vozes, 1999.
RIEMSCHNEIDER, Burkhard; GROSENICK, Uta. Arte de hoy. Madrid: Taschen,
2002.
ROSENBERG, Harold. Objeto ansioso. Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac
& Naify, 2004.
ROSENFIEL, Denis L. (Org.). Ética e estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
228
SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger. Um mestre da Alemanha entre o bem e o mal.
Tradução Lya Luft. São Paulo: Geração, 2000.
SÁNCHEZ, Pedro A. Cruz. La vigília del cuerpo. Arte y experiencia corporal en la
contemporaneidad. Murcia, Espanha: TABVLARIVM, 2004.
SELIGMANN-SILVA, Marcio. O local da diferença. Ensaios sobre memória, arte,
literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.
______. Ler o livro do mundo. São Paulo: Iluminuras, 1999.
SELIGMANN-SILVA, Marcio; NESTROVSKI, Arthur (Orgs.). Catástrofe e
representação. São Paulo: Escuta, 2000.
SERRANO, Andrés. Revista do Ocidente, Barcelona, n. 201, fev. 1998. Entrevista
concedida a Rosa Olivares.
SCHINER, Larry. La Invención del arte. Una historia cultural. Barcelona: Paidós,
2004.
SHELLEY, Mary Wollstonecraft. Frankenstein/Mary Shelly. Drácula/Bram Stoker. O
médico e o Monstro/Robert Louis Stevenson. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
SILVEIRA, Paulo. A página violada. Da ternura à injúria na construção do livro do
artista. Porto Alegre: UFRG, 2001.
SINGER, Peter. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
SONTAG, Susan. Questão de ênfase. Ensaios. Tradução Rubens Figueiredo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005.
______. Diante da dor dos outros. Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
229
SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e alteridade. Dez ensaios sobre o pensamento
de Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000a. (Coleção Filosofia, 120).
______. Metamorfose e extinção. Sobre Kafka e a patologia do tempo. Caxias do
Sul: EDUCS, 2000b.
______. O tempo e aquina do tempo. Estudos de filosofia e pós-modernidade.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
SOUZA, Ricardo Timm de.; OLIVEIRA, Nytamar Fernandes de. (Orgs.).
Fenomenologia hoje II. Significado e linguagem. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
______.; ______. Fenomenologia hoje. Existência, ser e sentido no alvorecer do
século XXI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. (Coleção Filosofia, 129).
SOUZA, Tadeu B. Subjetividade e intersubjetividade em Husserl e Levinas. In:
SUSIN, Luiz Carlos et al. (Orgs.). Éticas em diálogo: Levinas e o pensamento
contemporâneo e interfaces. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
STEINER, George. Gramáticas da criação. Baseado nas conferências Gifford de
1990. Tradução Sérgio Augusto de Andrade. São Paulo: Globo, 2003.
STUNGO, Naomi. Frank Gehry. São Paulo: Cosac & Naify, 2000.
SUSIN, Luiz Carlos et al. (Orgs.). Éticas em diálogo: Levinas e o pensamento
contemporâneo e interfaces. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação. O significado da hermenêutica para
a filosofia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
______. O tempo e aquina do tempo. Estudos de filosofia e pós-modernidade.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
______. O fim da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
______. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
230
______. As aventuras da diferença. O que significa pensar depois de Heidegger e
Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 1988.
VATTIMO, Gianni; ROVATTI, Píer Aldo. (Eds.). El pensamiento débil. Madrid:
Cátedra, 1990.
VILA-CHÃ, João. Enigma da transcendência: elementos para uma ontologia do exílio
segundo E. Levinas. In: SUSIN, Luiz Carlos et al. (Orgs.). Éticas em diálogo:
Levinas e o pensamento contemporâneo e interfaces. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2003.
WALACE, Steves. Poemas. Cia das Letras: São Paulo, 1987.
WALKER, John. A arte desde o pop. Barcelona: Labor, 1977.
WOOD, Paul et al. Modernismo em disputa. A arte desde os anos quarenta. São
Paulo: Cosac & Naify, 1998.
ZEVI, Bruno. Arquitetura e judaísmo. Mendelsohn. São Paulo: Perspectiva, 2002.
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2003.
______.; DALY, Glyn. Arriscar o impossível. Conversas com Žižek. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
ZIMA, Pierre V. La Négation esthétique. Le sujet, le beau et lê sublime de Mallarmé
et Valéry à Adorno et Lyotard. Paris: L’Harmattan, 2002.
231
ANEXOS
Anexo A - Farnese de Andrade
232
Anexo B - Sebastião Salgado
233
Anexo C - Andrés Serrano
234
Anexo D - Gunther von Hagens
235
Anexo E - Antoni Tàpies
236
Anexo F - Cindy Sherman
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo