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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Mestrado em Psicologia
ADOLESCÊNCIA, CRIMINALIDADE E SEMILIBERDADE:
processos de subjetivação diante da perspectiva de uma morte
anunciada
Fernanda Pinheiro de Oliveira Rubim
Belo Horizonte
2008
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2
Fernanda Pinheiro de Oliveira Rubim
ADOLESCÊNCIA, CRIMINALIDADE E SEMILIBERDADE:
processos de subjetivação diante da perspectiva de uma morte
anunciada
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Psicologia.
Orientador: João Leite Ferreira Neto
Belo Horizonte
2008
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3
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Rubim, Fernanda Pinheiro de Oliveira
R896a Adolescência, criminalidade e semiliberdade: processos de
subjetivação diante da perspectiva de uma morte anunciada /
Fernanda Pinheiro de Oliveira Rubim. Belo Horizonte, 2009.
173f.
Orientador: João Leite Ferreira Neto
Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de
Minas
Gerais. Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
1. Adolescentes e morte. 2. Criminalidade. 3. Mortes
violentas. 4. Subjetividade. I. Ferreira Neto, João Leite. II.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de
Pós-Graduação em Psicologia. III. Título.
CDU: 159.922.764
4
Fernanda Pinheiro de Oliveira Rubim
ADOLESCÊNCIA, CRIMINALIDADE E SEMILIBERDADE:
processos de subjetivação diante da perspectiva de uma morte anunciada
Dissertação apresentada ao Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Psicologia.
________________________________________
João Leite Ferreira Neto (Orientador) – PUC MINAS
____________________________________
Luis Antônio Baptista - UFF
____________________________________
Sandra Maria da Mata Azeredo - UFMG
5
Esse trabalho é dedicado à memória
dos adolescentes que morreram nas
“guerras” e aos profissionais da
semiliberdade que, mediante
situações de morte, tentam produzir
vida através do trabalho cio-
educativo.
6
AGRADECIMENTOS
A realização desta pesquisa foi possível porque contou com o apoio, o
auxílio e o carinho de muitas pessoas. Entre elas, gostaria de agradecer
especialmente:
. Ao Celso e a Marília, secretários do Mestrado, que gentilmente colaboraram
para resolução das questões burocráticas que envolveram esta dissertação. Aos
professores, que contribuíam com seus ensinamentos, em especial ao meu
orientador, João Leite Ferreira Neto, que conduziu a elaboração da pesquisa com
disponibilidade, carinho e atenção, e aos professores Sandra Maria da Mata
Azeredo e Luis Antônio Baptista, por terem aceitado o convite para participar desta
banca.
. A todos os adolescentes e profissionais das Unidades de Semiliberdade.
Gostaria de destacar: Alcides e Thereza, que abriram as portas das Unidades para
que esta empreitada fosse realizada, e adolescentes e profissionais entrevistados,
que contribuíram com suas experiências, dilemas e saberes, demonstrando que é
possível acreditar na vida, mesmo que as circunstâncias demonstrem o contrário.
. A Simone e Estela que colaboraram com indicações bibliográficas e com a
leitura minuciosa do pré-projeto dessa pesquisa.
. Ao meu marido, André, pelo incentivo, e a minha filha Helena, que, apesar
da pouca idade, se mostrou compreensiva e muitas vezes se pôs a “trabalhar” ao
meu lado, com seu “titibock” (notebook) para ver se eu terminava mais rápido para
brincar com ela. Aos demais familiares e amigos, em especial a minha mãe, Cica, e
a meus sogros, que muitas vezes possibilitaram minha ida a Belo Horizonte para que
os estudos que envolveram esse trabalho pudessem se efetivar.
. A Juliene, Nanny e Eliana, que cuidaram da minha filha e da minha casa nos
momentos em que estive ausente.
. A Noé, Thereza, Marília e familiares, que me acolheram em suas casas no
período das aulas.
Gostaria de agradecer também à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de Minas Gerais – FAPEMIG –, que financiou e execução desse trabalho.
A todos, meu muito obrigada e consideração.
7
RESUMO
Este trabalho objetiva investigar os processos de subjetivação relacionados
às mortes violentas que atravessam a vida dos adolescentes e jovens do sexo
masculino autores de infração penal. Sua motivação está articulada à minha
trajetória profissional, relacionada ao acompanhamento desses sujeitos na medida
sócio-educativa de semiliberdade em Belo Horizonte, Minas Gerais. Foram
realizadas entrevistas semi-estruturadas com adolescentes, jovens e profissionais
inseridos na semiliberdade, o que permitiu analisar aspectos da subjetividade desses
sujeitos que convivem com a possibilidade da ocorrência de uma morte violenta. As
entrevistas realizadas com os profissionais, bem com as análises dos documentos
institucionais, objetivaram também observar aspectos da prática institucional que
podem ou não aprisionar esses sujeitos em contextos de morte. Outras ferramentas
importantes na coleta de campo foram o diário de campo, no qual constam
anotações feitas ainda no período em que eu atuava como coordenadora da
semiliberdade, e dados da realização da observação participante. A problematização
proposta por esta pesquisa tem como fundamento as teorizações sobre os
processos de subjetivação, ancorados na Análise Institucional e nas postulações
foucaultianas e deleuzianas. A análise dos segmentos que compõem a subjetividade
dos adolescentes que vivenciam as ameaças e as “guerras” contraídas no “mundo
do crime” evidenciou que, a partir da relação com a criminalidade, a subjetividade
desses sujeitos passa a funcionar pelo mecanismo da “correria”, da “atividade”, que
se apóia em ideais viris, individualistas, hedonistas e consumistas, típicos da
contemporaneidade. Como conseqüência, a vida banaliza-se e a possibilidade da
morte violenta é vivenciada intensamente. Esse modo de funcionamento, calcado na
“correria” e no medo da morte, também é um aspecto constitutivo da subjetividade
dos trabalhadores da semiliberdade.
Em suma, esses são os pontos centrais deste trabalho, que objetiva ser um
mais um instrumento de análise dos processos subjetivos atuais.
Palavras-chave: adolescência; criminalidade; semiliberdade; ameaças de morte;
processos de subjetivação.
8
ABSTRACT
The present study aims the investigation of the processes of subjectivity connected
to violent deaths related to adolescent’s lives and young boys who committed penal
offenses. Their motivation is linked to my professional trajectory, connected to
following these people in a social-educative measure of semi-freedom in Belo
Horizonte, Minas Gerais. Semi-structured interviews had been done with teenagers,
young ones and professionals in semi-freedom condition, that allowed to analyze
aspects of their subjectivity which cohabit with a violent death possibility. The
interviews made with professionals, as the analyses of institutional documents,
intended to observe aspects of institutional practices that can lead or not these
subjects in a death context. Another important research tool were the “field-diary”, on
which notes are reported from the period I worked as semi-freedom coordinator, and
data from participating observation. The discussion proposed by this research is
based on theorization about processes of subjectivization, grounded by Institutional
Analyze and by “foucaultian’s” and “deleuzian’s” postulations. The analysis of parts
that compose adolescent’s subjectivity who have been living with threats and “wars”
from the “criminal world” cleared that from the relationship with criminality, these
people’s subjectivity works through a mechanism of “running” and “activity”,
supported by vigorous, individualist, hedonist and consumerism ideals, typical of the
present time. Therefore, life is banalized and the possibility of a violent death is
intensely lived. This kind of living, based on “running” and fear of death is a
constitutive aspect of semi-freedom workers subjectivity.
In short, these are the central aspects of the present study, which intends to be
another instrument of present days subjective’s processes analysis.
Key-words: adolescence, criminality, semi-freedom, treats of death; subjectivizations
processes.
9
LISTA DE SIGLAS
BO – Boletim de Ocorrência.
CEIP – Centro de Internação Provisória.
DOPCAD – Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente.
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente.
ISJB – Inspetoria São João Bosco.
PUC-MG – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
SAREMI – Superintendência de Atendimento e Reeducação do Menor Infrator.
SEDS – Secretaria de Estado e Defesa Social.
SUASI – Subsecretaria de Atendimento às Medidas Sócio-Educativas.
PPCAM – Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte.
SIM – Sistema de Informação da Mortalidade.
CRISP Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade
de Minas Gerais.
10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.....................................................................................................................................................11
1.1. Considerações preliminares............................................................................................................................11
1.2. Campo de estudo, instrumento de coleta de dados e metodologia........................................................13
1.3. Minha trajetória profissional nas Unidades de Semiliberdade...................................................................42
2. ADOLESCÊNCIA E CRIMINALIDADE .........................................................................................................51
2.1. Adolescência: algumas reflexões...................................................................................................................51
2.2. Algumas palavras sobre a questão da violência envolvendo adolescentes .........................................56
2.3. As políticas de atendimento destinadas aos adolescentes em conflito com a lei.................................81
2.4 O Estatuto da Criança e do Adolescente, a rede de atendimento ao adolescente em conflito com a
lei e as medidas sócio-educativas..........................................................................................................................88
3. A MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE SEMILIBERDADE........................................................................100
3.1. A semiliberdade e a proposta educativa salesiana...................................................................................100
3.2. Semiliberdade: a vida acontece, a vida se esvai.......................................................................................110
4. PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA PERSPECTIVA DE UMA MORTE QUE SE
ANUNCIA......................................................................................................................................................................120
4.1. Vidas ameaçadas: diferentes formas do funcionamento da subjetividade..........................................122
4.1.1. A banalidade da vida e a centralidade da morte.....................................................................................................127
4.1.2. O crime e as guerras: a brevidade da vida e o anúncio da morte......................................................................131
4.1.3. As ameaças, o medo e a hiper-realidade da morte...............................................................................................136
4.1.4. Para continuar vivo é necessário vivenciar pequenas mortes.........................................................................138
4.1.5. Crime: Deus, o Diabo, a vida e a morte.....................................................................................................................141
4.2. As guerras, as mortes, o trabalho sócio-educativo: os educadores sociais e os processos de
subjetivação .............................................................................................................................................................151
11
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................158
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................................164
APÊNDICES............................................................................................................................................................171
APÊNDICE A. Roteiro das entrevistas semi-estruturadas realizadas com os profissionais da
semiliberdade...........................................................................................................................................................171
APÊNDICE B. Roteiro das entrevistas semi-estruturadas realizadas com os adolescentes da
semiliberdade...........................................................................................................................................................172
APÊNDICE C. Grupo com adolescentes realizado em 14/11/2007............................................................173
11
1. INTRODUÇÃO
1.1. Considerações preliminares
Segundo levantamento do Instituto Médico Legal de Belo Horizonte, entre
2005 e 2006 ocorreram diariamente na cidade, em média, duas mortes violentas de
pessoas com idades entre 12 e 21 anos, totalizando 1.474 homicídios. Reportagem
publicada em julho de 2007 (FERREIRA; HERDY, 2007, p. 22) ratifica esses dados:
de acordo com ela, o tráfico de drogas tem como alvo pessoas cada vez mais
jovens
1
, uma vez que a morte e a prisão de traficantes mais velhos colocam meninos
e meninas na linha de frente da comercialização de drogas. “São jovens que
assassinam não apenas por questões estratégicas, mas pelo espírito de aventura,
para conquistar status e amesmo impressionar mulheres”. “Eles pegam e falam:
matei fulano de tal, matei sicrano”. “Eles se valorizam por ter matado muitas
pessoas”, contou, à época, o delegado de homicídios Rodrigo Fragas (FERREIRA;
HERDY, 2007, p. 22). Na comunidade Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte,
segundo ele, os executores não são os grandes chefes do tráfico, mas os
“soldados”, aqueles que ficam na linha de frente, atuando como sentinelas na
proteção da boca-de-fumo: “os criminosos têm como alvo os rivais, mas, se na rua
tiver uma família passando ou uma criança brincando, eles não se preocupam e
matam também”. No dia primeiro de setembro, dois adolescentes um de quatorze
anos e outro de dezesseis que seriam aliados de um dos homens do tráfico da
região foram fuzilados. A vingança envolveu a morte de cinco pessoas
2
(FERREIRA;
HERDY, 2007; SANTOS, 2007). Tais assassinatos estão articulados às disputas por
1
Esses dados serviram de parâmetro para uma Ação Civil Pública movida pelos Ministérios Públicos
Estadual e Federal contra a União, o Governo de Minas Gerais e a Prefeitura de Belo Horizonte,
responsabilizando essas três instâncias governamentais pelos assassinatos cada vez mais
freqüentes de adolescentes e jovens na capital mineira e região metropolitana. A ação foi motivada
pelo recebimento recorrente de atestados de óbitos de adolescentes e jovens na Promotoria de
Justiça da Infância e Adolescência.
2
Essas reportagens estão relacionadas à ocorrência de chacinas na região metropolitana de Minas
Gerais e São Paulo em agosto e setembro de 2007, das quais muitos adolescentes foram vítimas.
12
pontos de distribuição de drogas, poder, status e marcados, sobretudo, pelo ideal de
virilidade característico das relações estabelecidas entre grupos juvenis.
Segundo Zaluar (2004), embora as taxas de mortes violentas tenham crescido
no País em todas as regiões e faixas de idade, os mais atingidos são adolescentes e
jovens adultos do sexo masculino das metrópoles e regiões mais ricas ou de maior
crescimento populacional, respondendo por 84% do total. Trata-se de um grupo
envolvido, cada vez mais, em ações ilícitas, principalmente inerentes ao mercado
transnacional do tráfico de drogas. Ainda segundo o autor, entre 1981 e 1991 esses
óbitos teriam tido um aumento de 42%.
Diante desses dados, investigar os processos de subjetivação relacionados
às mortes violentas que atravessam a vida dos adolescentes autores de infração
penal fortaleceu-se como objetivo da presente pesquisa. Nessa investigação, os
estudos realizados foram organizados do seguinte modo:
o primeiro capítulo traz a introdução do trabalho e a metodologia que o
norteou, além das inquietações e dos questionamentos que
mobilizaram as análises propostas nesta dissertação, vinculados ao
acompanhamento de adolescentes autores de infração penal na
medida sócio-educativa de semiliberdade.
No segundo capítulo, introduz-se o problema da violência envolvendo
adolescentes e jovens, articulando essa temática aos processos de
subjetivação e enfatizando a imanência entre esses processos e as
questões políticas, jurídicas, legais que envolvem, neste caso
específico, a vida dos adolescentes em semiliberdade.
O terceiro capítulo é dedicado a apresentar a medida de semiliberdade
na perspectiva salesiana, salientando que as práticas institucionais
podem deflagrar processos educativos, sociais, políticos, entre outros,
que potencializam ou não a permanência dos adolescentes na
criminalidade e, consequentemente, suas mortes prematuras.
O capítulo 4 traz, de forma sistematizada, aspectos da subjetividade
dos adolescentes e jovens ameaçados de morte em decorrência do
envolvimento com a criminalidade, além de algumas considerações
sobre o trabalho cio-educativo e as características da subjetividade
dos profissionais da semiliberdade, que têm seu cotidiano marcado por
evasões, situações de ameaça, “guerras” e mortes.
13
Por fim, o quinto capítulo apresenta as considerações finais.
1.2. Campo de estudo, instrumento de coleta de dados e metodologia
Atuo em projetos sociais desde minha formação em psicologia e, no período
entre 2001 e 2005, trabalhei no acompanhamento de adolescentes e jovens
envolvidos em atos infracionais condutas descritas como crime ou contravenção
penal que se encontravam em cumprimento da medida sócio-educativa de
semiliberdade.
A medida de semiliberdade, como as outras medidas sócio-educativas
(advertência, reparação do dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade
assistida e internação) é determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), lei 8.069 de 13 de julho de 1990 (BRASIL, 1990). O ECA é instrumento legal
que garante a proteção integral à criança e ao adolescente, fundamentando-se na
Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e na Convenção Internacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,
1989). De acordo com essa lei, o termo criança está relacionado “a pessoa até doze
anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de
idade” (BRASIL, 1990). Apesar de serem direcionadas a crianças e adolescentes,
em alguns casos é possível que jovens, com idade acima de 18 anos, cumpram
medidas sócio-educativas.
Os sujeitos da presente pesquisa são adolescentes e jovens (identificados, ao
longo do trabalho, por pseudônimos). Seu acompanhamento no cumprimento da
medida cio-educativa de semiliberdade foi realizado nas Unidades gerenciadas
pela Inspetoria São João Bosco (ISJB), Província Religiosa Salesiana, mediante
convênio firmado em 2000 com a então Secretaria da Justiça e Direitos Humanos de
Minas Gerais, atualmente Secretaria de Estado e Defesa Social. A pesquisa iniciou-
se na Unidade Ouro Preto, localizada em Belo Horizonte e com capacidade para
atender oito meninos autores de infração penal. À época, eu exercia a função de
coordenação, tendo sido posteriormente transferida para a Unidade Flamengo,
localizada no município de Contagem, com capacidade para atendimento de doze
adolescentes. Em dezembro de 2002, essa Unidade transferiu-se para o bairro
14
Santa Terezinha, em Belo Horizonte, mantendo a mesma capacidade de
atendimento e seu público-alvo: adolescentes do sexo masculino.
Em seus artigos 120 e 121, o ECA (BRASIL, 1990) postula que o regime de
semiliberdade pode ser determinado, sem prazo fixo, como medida sócio-educativa
inicial ou como forma de transição para o meio aberto, nos casos em que tenha sido
imposta inicialmente ao adolescente a medida sócio-educativa de internação. Ele
possibilita a realização de atividades externas, independente de autorização judicial.
A escolarização e a profissionalização são obrigatórias, bem como ações voltadas
para a inserção social do adolescente. Somente quando os recursos comunitários
forem precários ou inexistirem, o regime deverá desenvolver programas que
garantam a escolarização e a profissionalização.
Durante a realização deste trabalho junto a adolescentes que cumpriam a
medida de semiliberdade, foi possível constatar que a possibilidade de morrer
violentamente é vivenciada pelos envolvidos na criminalidade como um destino do
qual, muitas vezes, não é possível escapar. Diante da morte de outros adolescentes
que se encontravam em cumprimento de medida ou de algum “parceiro”, é
recorrente a seguinte fala: “poderia ter sido qualquer um de nós”. Suas famílias e
comunidades apresentam geralmente aceitação perante esse “destino”, reagindo ora
com sofrimento, ora com indiferença, sendo esse tipo de morte percebido como um
acontecimento qualquer, inserido na cadeia comum da vida.
Quando ouvi os tiros, eu tava almoçando. Fui lá ver e era meu primo. Ainda
tava vivo, com a boca cheia de sangue. Tinha levado uns seis tiros. Eu
voltei pra casa pra almoçar e tomar um banho. Essas tretas pra nós é
normal. O que revolta é quando matam um pai de família. (Adolescente em
cumprimento de semiliberdade, 18 anos)
3
.
Em dezembro de 2004, quando eu ainda coordenava a Unidade de
Semiliberdade Santa Terezinha, Adalberto, um dos adolescentes que cumpria
medida, foi assassinado quando realizava visita familiar. Esse adolescente
encontrava-se em casa devido às comemorações de fim de ano. A notícia de sua
morte foi recebida por um dos educadores que, bastante abalado, comunicou a
equipe. Diante da postura “resignada” da mãe, que aparentemente não demonstrava
sofrimento, desconfiou-se de que a informação pudesse, inclusive, tratar de um
3
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 24 nov. 2004.
15
“trote”. Os outros adolescentes que cumpriam a medida também não demonstraram
surpresa perante o ocorrido.
Às 8:00 horas a mãe do Adalberto [ou supostamente] ligou para a Unidade
a fim de informar que ele havia sido assassinado. Segundo ela, ele fora em
uma festa na vizinhança e tendo saído armado correndo atrás de uma
pessoa, essa se vira e alveja-lhe o coração. A bala pegara no seu braço,
atravessando-o e indo parar no peito. Como ela estava tranqüila,
indiferente, julguei muito estranha a situação. Logo após esse telefonema,
Hélio [pedagogo] liga para a vizinha de Adalberto, onde não confirma a
história com essa e também com a mãe. [...] Resolvemos dar a notícia
referente ao assassinado de Adalberto quando os demais adolescentes
chegassem mais tarde para evitar tumultos e contratempos
4
. [...] Às 16:00
horas Adriano não havia chegado. Reunimos a turma na sala e Hélio
falou-lhes do ocorrido. Embora reflexivos, não se abalaram muito com a
notícia, acostumados que são com acontecimentos similares. [...] Ao tirar os
pertences do Adalberto do armário, todos se concentraram no quarto e me
ajudaram como que carregando alças de um caixão. (Relatório diário dos
educadores, 01 jan. 2005)
5
.
Dois dias após o assassinato de Adalberto, sua e foi à Unidade para
buscar os pertences do filho. Seu corpo demonstrava abatimento, mas seu aparente
cansaço e tristeza não destoavam de outros momentos em que havíamos estado
juntas. Apesar de perceber que ela prenunciara a morte do filho devido a seu
envolvimento com o crime, talvez “velando-o” enquanto ele ainda estava vivo,
surpreendeu-me o fato de não expressar verbalmente saudades ou tristeza. Disse-
me que esperava o acontecido e, diante dos objetos de uso pessoal do filho e
talvez devido à sua condição cio-econômica, ateve-se cuidadosamente ao que
poderia ser reaproveitado por outros membros da família. Entre outras coisas,
encontrou uma escova de dente e levou-a para que seu outro filho pudesse usá-la.
Diante dessa morte e de tantas outras, pudemos perceber que o envolvimento
com a criminalidade instaura um modo diferenciado de ser, de morrer, de sofrer e de
continuar vivendo. O acompanhamento de adolescentes envolvidos em atos
infracionais está repleto de processos subjetivos, sociais, econômicos e políticos,
que nos colocam sempre diante da temática do fim da vida humana. São processos
intensos e, por vezes, contraditórios, que fazem com que a vida e morte se
intercalem a todo momento, devido ao envolvimento com a criminalidade e às
ameaças decorrentes dessa relação. Esses processos estão presentes nas
4
Os adolescentes também haviam sido liberados para estar com suas famílias devido às festividades
de fim de ano.
5
Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em
2007.
16
trajetórias dos adolescentes na maioria das vezes, marcadas por violências,
submissões, pobreza, racismo e miséria. Refletem-se no trabalho cio-educativo
como uma impossibilidade: muitos projetos construídos não se efetivam.
Em alguns casos, vale destacar, essa impossibilidade está articulada a um
imperativo do mundo atual, que valoriza o “hoje e agora”, como também às vivências
típicas do “mundo do crime”
6
, que vinculam os sujeitos somente ao momento
presente e a uma dinâmica consumista, reforçando ações violentas dos
adolescentes envolvidos em atos infracionais, pois “o que se ganha fácil, sai fácil”.
Além disso, essa impossibilidade é permeada pela falta de políticas públicas que
dificultam, por parte dos adolescentes, o gerenciamento de suas vidas fora da
criminalidade. Esta discussão será apresentada de forma mais detalhada nos
capítulos dois e três.
Estar diante de um adolescente jurado de morte, deparar-se com evasões,
assassinatos e ameaças faz com que os profissionais que trabalham com o
cumprimento da medida de semiliberdade sejam afetados por sentimentos intensos
vinculados à morte. Por outro lado, possibilita um questionamento de múltiplos
aspectos da prática educativa que produzem, a meu ver, pequenos movimentos-
sinais de morte, que devem ser entendidos, na perspectiva do Institucionalismo,
enquanto movimentos de antiprodução (BAREMBLITT, 1998).
De acordo com Baremblitt (1998), o Movimento Institucionalista ou Instituinte
constitui-se como um aglomerado de escolas não-totalizáveis que m como
características comuns a busca de processos de autogestão e auto-análise.
A autogestão é o processo que proporciona aos coletivos uma organização
independente no que diz respeito ao gerenciamento de sua vida. As comunidades
instituem-se, organizam-se e estabelecem maneiras livres e originais, produzindo os
dispositivos necessários para gerenciar suas condições e modos de existência. Em
todo processo instituinte-organizante, está presente certa divisão técnica do
trabalho, assim como alguma especialização nas operações de planejamento,
decisão e execução. Essas diferenças podem resultar em diferentes níveis de
hierarquias, mas as mesmas não abrangem escalas de poder. Os conhecimentos
essenciais são compartilhados e as decisões importantes o tomadas
coletivamente. As hierarquias equivalem a diferenças de potência, peculiaridades e
6
Expressão utilizada constantemente pelos adolescentes envolvidos em atos infracionais, para
identificar as relações estabelecidas com a criminalidade.
17
capacidades produtivas, que objetivam sempre ser funcionais para a vontade
comunitária.
A auto-análise, por sua vez, define-se como processo de produção e
reapropriação, por parte dos coletivos autogestionários, de um saber acerca de si,
suas necessidades, desejos, demandas, problemas, soluções e limites. Esse saber
geralmente encontra-se apagado, desqualificado e subordinado aos saberes
científicos-disciplinários, a serviço das entidades dominantes e de controle, tais
como o capital, os saberes instituídos, o Estado. Além disso, opera com critérios de
verdade e eficiência, imanentes aos valores de tais entidades. Sendo assim,
potências produtivas de todo tipo naturais, psíquicas e sociais são capturadas
pelas grandes entidades de controle e reprodução, e suas forças são voltadas contra
si, levando-as à autodestruição.
Nesta dissertação, os conceitos de autogestão e auto-análise estão
fundamentados na esquizoanálise proposta por Deleuze e Guattari (1976). A
concepção de subjetividade encontra-se remetida à idéia do desejo enquanto
produção. Esse desejo age em todo e qualquer âmbito do real, enquanto a
subjetividade se processa através de agenciamentos que podem ser psíquicos,
políticos, midiáticos. Para essa concepção de subjetividade, o desejo não tende à
morte, porque se constitui a essência da vida.
No caso dos adolescentes em conflito com a lei, pode-se afirmar que os
agenciamentos produzem sujeitos que se reconhecem e são reconhecidos pelo
social como “marginais”. Na construção dessa “identidade marginal”, operada por
entidades dominantes e de controle, ocorre a associação entre pobreza, negritude,
vestuário, comunidade em que residem a um possível e provável envolvimento com
a criminalidade. Nessa construção, são implementados movimentos-sinais de morte
que aprisionam esses adolescentes no “mundo do crime”, levando-os a processos
de autodestruição.
Considero que o trabalho sócio-educativo desenvolvido nas Unidades de
Semiliberdade pode contribuir para o rompimento desse processo autodestrutivo,
que culmina com o assassinato de inúmeros adolescentes se opera
r na produção de
linhas de segmentaridade flexível
7
, que, ocasionalmente, podem gerar linhas de fuga
(GUATTARI; ROLNIK, 1996). Para isso, o próprio trabalho sócio-educativo deverá
7
Conceito cunhado por Deleuze na obra Mil Platôs (1995), definido posteriormente nesta dissertação.
18
desvencilhar-se também de pequenos movimentos-sinais de morte que entram em
cena durante sua execução, caracterizados por uma rie de dificuldades
incompleta efetivação dos direitos estabelecidos no ECA, desvalorização social do
trabalho dos profissionais envolvidos no sistema, permanência de práticas
referendadas pelo Código de Menores
8
, entre outras, encontradas no desenrolar do
própria atividade sócio-educativa. Tais dificuldades podem ampliar a segregação dos
adolescentes e o fortalecimento das relações e vivências típicas do “mundo do
crime”, que os aproximam efetivamente da morte (RUBIM, 2004).
Diante disso, alguns questionamentos fazem-se pertinentes: que valores
sustentam a vida dos adolescentes envolvidos em atos infracionais? Como estes
percebem a vida e, conseqüentemente, a morte? Como se posicionam perante as
“guerras” e ameaças provenientes das relações estabelecidas no “mundo do crime”?
Como essas experiências constituem esses sujeitos?
A metodologia escolhida para instrumentalizar esta pesquisa, lançando luz
sobre esses questionamentos, foi o estudo de caso. De acordo com Goode e Hatt
(1969, p.422), ela “[...] não é uma técnica específica. É um meio de organizar dados
sociais, preservando o caráter unitário do objeto social estudado”. Para Yin:
[...] o estudo de caso é uma inquirição empírica que investiga um fenômeno
contemporâneo dentro de um contexto da vida real, quando a fronteira entre
o fenômeno e o contexto não é claramente evidente e onde múltiplas fontes
de evidências são utilizadas. (YIN, 1989, p. 23).
Compreender os processos de subjetivação envolvendo adolescentes que
vivenciam situações de ameaça na perspectiva do estudo de caso é relevante não
pela contemporaneidade desse fenômeno, como também pelo intenso processo
de banalização da vida. Em muitas comunidades, como afirmado anteriormente,
viver ameaçado faz parte do cotidiano, e a possibilidade de uma morte prematura
em decorrência de um homicídio é vivenciada como processo natural, do qual,
muitas vezes, o se pode escapar. Segundo Beato Filho e Marinho (2007), a
população jovem é o grupo mais vulnerável em relação a esse tipo de violência:
A morte violenta é a principal causa de mortes para jovens entre 15 e 25
anos no Brasil. Na década de 1980, morriam 33 jovens para cada grupo de
100 mil vítimas por arma de fogo. Hoje, temos uma taxa de 55 para cada
100 mil habitantes. (BEATO FILHO; MARINHO, 2007, p. 185).
8
O Código de Menores de 1927, também conhecido como Código Melo Matos, antecedeu o ECA e
baseava-se na correção e repressão (FROTA, 2002)
19
A introdução acelerada das armas de fogo no País durante a década de 1980
foi fator preponderante para o aumento da violência e, sobretudo, dos homicídios.
Inicialmente, eram responsáveis por cerca de 45% dos óbitos, índice que passou
para 77% em 2004. Em grandes capitais, como Rio de Janeiro, Recife, Belo
Horizonte, Vitória e Salvador, esse índice saltou para 80-85% das mortes por
homicídios atualmente (ZALUAR, 2004).
No contato com adolescentes em semiliberdade, percebe-se que, para eles,
morrer prematuramente em decorrência de confrontos com grupos rivais ou com a
polícia é algo certo em suas trajetórias. Essa certeza pode ser observada no relato
que se segue: encontrava-me conversando com os adolescentes Gabriel e Artur na
varanda, quando o adolescente Pedro chegou dizendo: “sonhei que levei um monte
de tiro. Saí correndo para pegar um carro, um ônibus e acordei. Parecia real”.
Gabriel comenta: “que sonho mais cabuloso!”, e Artur expressou seu desejo: “eu
queria morrer dormindo
”9
.
Autores como Deleuze (1976), Guattari (1996) e Foucault (1984) propõem
que a subjetividade é imanente aos processos históricos, não sendo determinada
pelo social, mas tecida por micropoderes em conexão com processos sociais,
culturais, econômicos, midiáticos, ecológicos, que participam de sua constituição e
de seu funcionamento. Para Foucault (1984), a subjetividade dá-se na emergência
dos “jogos de verdade”, por meio dos quais o ser se constitui historicamente como
experiência. Logo, a concepção de subjetividade que orienta esta pesquisa é
contrária à idéia convencional centrada em um “eu” coerente, durável e
individualizado. Segundo Rose:
o eu não deveria ser investigado como um espaço contido de
individualidade humana, limitado pelo envelope da pele, que foi
precisamente a forma como, historicamente, ele acabou por conceber sua
relação consigo mesmo. [...] Se os seres humanos acabaram por se
conceber como sujeitos, com um desejo de ser, com uma predisposição ao
ser, como alguns sugerem, de algum desejo ontológico, sendo, em vez
disso, a resultante de uma certa história e de suas invenções. (ROSE, 2001,
p. 144-145).
Baseando-nos nessas concepções, podemos definir processo de subjetivação
como:
9
Observação participante. Pesquisa de campo realizada na Unidade de Semiliberdade de Ouro Preto
em 24 out. 2007.
20
[...] o nome que podemos dar ao efeito da composição e recomposição de
forças, práticas e relações que lutam ou operam para tornar os seres
humanos formas diversas de sujeitos, capazes de tomar a si mesmos como
sujeitos de suas próprias práticas ou de práticas alheias que atuam sobre
eles. (ROSE, 2001, p. 143).
Portanto, a imagem atual que o ser humano tem de si mesmo como sujeito de
desejo deve ser compreendida em uma perspectiva histórica, onde linhas de
formação e funcionamento compuseram um modo de subjetivação particular: o
indivíduo. Deleuze e Parnet (1998) afirmam que essas linhas que compõem
indivíduos e grupos são de natureza bem diversa. A primeira é a segmentária ou
dura, constituindo um plano de organização, podendo ser remetida aos processos
identificatórios. No caso dos adolescentes envolvidos em atos infracionais,
destacamos as seguintes identidades: ser macho, ser poderoso, ser temido, possuir
uma arma, ter dinheiro, conquistar mulheres, enfrentar a morte cotidianamente
além da rígida moralidade que os atravessa. A segunda linha também é de
segmentaridade, entretanto mais flexível, de certa maneira molecular, compondo o
plano de consistência. Traça pequenas modificações, produzindo diferenciações,
devires conexões, atrações e repulsões que não coincidem com os segmentos,
com as identidades. a terceira linha é a linha de fuga, que se processa em
direção a uma destinação desconhecida, não-previsível, não-preexistente,
equivalendo aos processos de desterritorialização.
No que diz respeito aos adolescentes aqui abordados, o medo da morte e os
sentimentos que surgem com este podem proporcionar um funcionamento localizado
na primeira linha. As seguintes falas proferidas diante da morte de um adolescente
ratificam essa afirmação.
Eu sinto muito ódio, sinto muita raiva, penso em matar o cara. penso
assim: se eu encontrar esse cara, eu vou matar ele também. Fazer a
mesma coisa que ele fez com o colega. É isso que acontece. (Adolescente
em cumprimento de semiliberdade, 18 anos)
10
.
Por outro lado, essa morte pode provocar nos adolescentes um
funcionamento em direção à quebra das identidades:
[...] em uma determinada hora, houve um momento especial onde os
adolescentes discutiam projetos para 2005, como por exemplo: alistamento
militar; passar o aniversário em casa, ou seja, liberado; não voltar mais para
o crime; estudar; trabalhar para ajudar a família e até pegar exército para
seguir carreira militar. (Relatório diário dos educadores, 05/11/2004).
10
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2004.
21
A possibilidade de fazer planos desvinculados da criminalidade pode significar
um rompimento com a identidade “ser menor infrator, marginal”. Diante de uma
morte, os adolescentes geralmente movimentam-se cada vez mais em direção ao
cometimento de outros atos infracionais, sendo comuns sentimentos de ódio
relacionados a vingança e retaliação. Esses movimentos favorecem identificações
com o crime: segundo eles, “poderia ser qualquer um de nós”, o que justifica a
necessidade de estar preparado.
Essas linhas de formação e constituição dos sujeitos não podem ser
pensadas de maneira dicotômica. São imanentes, passando umas pelas outras,
como um emaranhado. Nesse processo, o plano de organização primeira linha
não pára de trabalhar sobre o plano consistência – segunda linha –, tentando
sempre barrar as linha de fuga, os fluxos, os movimentos de desterritorialização e
desmanche das identidades. É importante mencionar que os movimentos de quebra
de identidades, de desterritorialização, serão capturados, produzindo novas
identidades. No caso dos adolescentes, é fundamental que os movimentos de
reterritorialização construam identidades descoladas do mundo do crime.
Diante dessas considerações, Rose (2001) afirma que a subjetividade não
deve ser pensada como dado primordial ou capacidade latente do ser humano. Ela
não é algo que se constitui a partir da socialização ou pela interação entre o ser
humano biológico, com capacidades sensoriais, instintivas, sentidos e
necessidades e um ambiente externo físico, social, interpessoal responsável
por uma interioridade psicológica. Todos os efeitos da interioridade psicológica,
juntamente com todas as capacidades humanas, são formados pela ligação dos
humanos a outros objetos, práticas e multiplicidades. o essas diferentes ligações
e relações que compõem os sujeitos como um agenciamento, fazendo com que o
ser humano se relacione consigo em termos de um interior psicológico: “como eus
desejantes, como eus sexuados, como eus trabalhadores, como eus pensantes,
como eus intencionais” (ROSE, 2001, p. 146). Uma forma melhor de ver os sujeitos
“é como agenciamentos que metamorfoseiam ou mudam suas propriedades à
medida que expandem suas conexões: eles o são nada mais e nada menos que
as cambiantes conexões com as quais eles estão associados” (ROSE, 2001, p.146).
A partir dessa concepção de subjetividade, é possível pensar a
experimentação da morte articulada a processos de subjetivação. Para lançar luz
sobre essa questão, torna-se preponderante compreender a maneira como o homem
22
colocou-se diante da morte ao longo dos tempos. Embora a presente pesquisa tenha
como temática um modo específico de morrer o violento , parte-se do
pressuposto de que a própria morte enquanto condição humana é marcada de forma
singular pelas produções dos homens em diferentes momentos da história.
O percurso histórico envolvendo a temática da morte pode ser compreendido
por meio de uma pequena revisão das pesquisas de Ariès (1989 e 2003) e de
algumas considerações de Elias (2001). Toma-se como ponto de partida a Idade
Média, passando pelas mudanças efetivadas pela sociedade moderna e suas
inúmeras transformações na contemporaneidade.
Segundo Ariès (1989), durante a Idade Média a morte era regulada por um
ritual costumeiro, descrito como benevolência, que acontecia, sobretudo, em casa:
“aguarda-se a morte no leito, jazendo no leito, doente” (ARIÈS, 1989, p. 24). Uma
cerimônia pública era organizada pelo próprio moribundo que a ela presidia. Esse
acontecimento também era marcado pela presença de familiares, padre e médicos.
A câmara do moribundo convertia-se em lugar blico. A entrada era livre.
Os médicos de finais do século XVIII, que descobriram as primeiras regras
de higiene, queixavam-se do superpovoamento dos quartos dos
agonizantes. Importava que os parentes, amigos e vizinhos estivessem
presentes. Levavam-se as crianças: não a representação do quarto de
um moribundo até o século XVIII que não inclua crianças. (ARIÈS, 1989,
p.24).
Desse modo, a morte comum não se apoderava traiçoeira da pessoa. Mesmo
quando acidental, em conseqüência de ferimento, decorrente de alguma doença
como a peste ou mesmo a morte súbita, oferecia algum tempo para ser percebida.
Essa atitude de familiaridade, proximidade com relação à morte implica uma
concepção coletiva do destino: o homem daqueles tempos era profunda e
imediatamente socializado. A família não intervinha para retardar a socialização da
criança. Por outro lado, a socialização não separava o homem da natureza, sobre a
qual ele não podia intervir senão pelo milagre. A familiaridade com a morte é uma
forma de aceitação da ordem natural, ingênua na vida cotidiana e sábia nas
especulações astrológicas. O homem submetia-se, na morte, a uma das grandes leis
da espécie, não pensando nem em se esquivar dela nem em exaltá-la. Aceitava-a
como justa, o que carecia de solenidade para marcar a importância das grandes
fases por que todas as vidas devem passar. Por essas razões, Ariès (apud ELIAS,
2001) denomina a morte familiar como a morte domesticada, em contraponto à
23
concepção trágica atual da morte, onde o medo se faz presente. Naquele período,
as pessoas morriam serenas e calmas:
Assim [calmamente] morreram as pessoas durante séculos e milênios...
Essa atitude antiga, para a qual era ao mesmo tempo familiar, próxima e
amenizada, indiferente, contrasta com a nossa, em que a morte provoca tal
medo que não mais temos coragem de chamá-la por seu nome. (ARIÈS
apud ELIAS, 2001, p. 20).
Nesse aspecto, Elias (2001) discorda de Ariès (1989; 2003), ao considerar
que a vida nos estados medievais era apaixonada, violenta e, portanto, incerta e
breve, enquanto o ato de morrer causava sofrimento e dor. A questão da brevidade
da vida contrasta-se com o momento atual, em que a medicina avançou o suficiente
para permitir um fim mais pacífico para pessoas que outrora teriam morrido de forma
agonizante embora as conquistas do culo XX e XXI não tenham evitado que
grande parte da população tivesse uma morte dolorosa, violenta e indigna.
Outro ponto que diferencia a concepção atual da morte em relação ao período
feudal é o fato de, naquele tempo, a experiência da morte ter sido menos oculta e
mais familiar. Elias (2001) exemplifica essa diferença com a literatura popular: os
mortos ou a Morte em pessoa são temas constantes em muitos poemas. Em um,
três pessoas vivas passam por um túmulo aberto e os mortos dizem: “o que vocês
são, nós fomos. O que somos, vocês serão” (apud ELIAS, 2001, p.13). Outro
apresenta uma discussão envolvendo a Vida e a Morte: a primeira queixa-se de que
a Morte estaria maltratando seus filhos (apud ELIAS, 2001, p. 13). Outra contribuição
de Elias (2001) em relação à compreensão dos modos de subjetivação relativos à
finitude da vida toca no nível social do medo da morte: no período feudal, apesar de
se temer a morte, não havia muitos meios para controlá-la, o que pode ter facilitado
maior aceitação no que se refere ao fim da vida humana.
Entre os séculos XI e XII, observam-se fenômenos como a representação do
Juízo Final, no fim dos tempos; a transferência do Juízo Final para o fim de cada
vida, no momento pontual da morte; os temas macabros e o interesse pela
decomposição física; o retorno à epigrafia funerária e um início de personalização
das sepulturas. Esses aspectos contribuíram para a construção da concepção de
morte como tragédia, substituindo paulatinamente a idéia de “destino coletivo da
espécie” pela vivência de morte enquanto particularidade (ARIES, 2003).
Durante o século XIX, novas mudanças irão fazer com que a morte se torne
uma experiência individual. Essas mudanças estão atreladas à concepção moderna
24
do homem como sujeito universal, detentor de uma subjetividade particular,
marcada, sobretudo, pela razão, que proporciona domínio crescente dos fenômenos
naturais. Neste processo, a intolerância da morte do outro e de si próprio foi
recoberta por um sentimento característico da modernidade: evitar não ao doente,
mas à sociedade e ao círculo de relações o incômodo e a emoção demasiadamente
fortes, provocados pela presença da morte em plena vida, admitida hoje como
“sempre feliz”. Percebe-se, então, o início de um processo de escamoteamento,
onde é instaurada a morte interdita”, processo acelerado entre 1930 e 1950, pela
transferência do local da morte, fazendo com ela ganhe atributos relacionados ao
individualismo e aos processos de exclusão. não se morre em casa, junto da
família e dos amigos, mas no hospital, e só.
A morte no hospital já não é uma cerimônia ritual presidida pelo moribundo
no meio da assembléia de parentes e amigos. A morte é um fenômeno
técnico obtido pela paragem dos sentidos, isto é, de maneira mais ou menos
declarada, por uma decisão do médico e da equipe hospitalar. Na maior
parte dos casos, aliás, o moribundo já perdeu a consciência há muito tempo.
A morte foi decomposta, segmentada numa série de pequenas fases, das
quais, não sabemos, em definitivo, qual é a morte verdadeira, se é aquela
que se perdeu a consciência ou aquela em que se cessou a respiração.
(ARIÈS, 1989, p. 56).
Neste processo de instrumentalização da morte, assistida de perto pelo saber
médico, percebe-se a presença dos mecanismos de disciplinarização descritos por
Foucault (1998), fazendo com que essa experiência seja normatizada e controlada
por práticas legitimadas cientificamente. Com o saber médico, instaura-se um novo
jeito de morrer, e médico e equipe hospitalar passam a ser considerados os
“senhores da morte”. Essa tentativa de controle fez também com que a morte se
tornasse “inominável”.
Tudo se passa, a partir de agora, como se nem tu nem aqueles que me são
queridos, como se as pessoas, enfim, não fossem mortais. Tecnicamente
admitimos que podemos morrer, e tomamos providências em vida para
preservar os nossos da miséria. Verdadeiramente, porém, no fundo de nós
mesmos, não nos sentimos mortais. (ARIÈS, 1989, p. 66).
O progresso das ciências visando o controle dos fenômenos naturais, que
marca o momento histórico da modernidade, pode ser entendido como tentativa de
fazer com que o sentimento de imortalidade se torne cada vez mais presente em
nossa sociedade. Com o controle crescente do momento da morte, esperava-se,
além disso, o aumento da expectativa e da qualidade de vida, mas esse projeto não
obteve sucesso em sua totalidade.
25
Diante das transformações sociais, econômicas, políticas e subjetivas
gestadas na contemporaneidade, uma mudança significativa na atitude dos homens
perante a morte é delineada, sobretudo nos sujeitos inseridos em comunidades onde
a violência deixa suas marcas no cotidiano. A morte não é, ali, vivenciada como algo
inserido na cadeia natural do desenvolvimento humano, marcada por doença,
envelhecimento ou fatalidade. Pode acontecer a qualquer momento, tendo como
locus principal não a casa, como na Idade Média, ou o hospital, como na
modernidade, mas o próprio espaço urbano. Não é mais presidida pelo sujeito ou
mediada pelo médico, mas uma “morte anunciada”, gerenciada por vários senhores -
o traficante, o policial, o adolescente rival com o qual também se estabelece a
“guerra” (conflito violento que culmina em ameaça), vivenciada e temida todos os
dias. De acordo com Carreteiro (2005), o fato de ser pobre, ter pequena participação
no mercado do narcotráfico e viver em uma localidade onde o tráfico tem grande
poder inscreve os sujeitos em um sistema em que a morte se anuncia como destino.
No contexto das relações capitalistas, a capacidade de consumir credencia e
qualifica os sujeitos, interferindo na maneira de vivenciar a vida e a morte. No caso
específico do Brasil, onde a desigualdade social é marcante, isso é ainda mais
visível: muitos se evolvem em ações violentas e encontram na criminalidade a
alternativa de acesso às mercadorias produzidas, colocando suas vidas em risco no
enfrentamento cotidiano da morte.
O aumento da violência e, por conseguinte, das mortes, segue no Brasil o
padrão internacional, articulado às mudanças no consumo observadas como um dos
efeitos do processo de globalização. Tais mudanças favoreceram o aumento
impressionante de certos crimes contra a propriedade furtos e roubos e contra a
vida – agressões e homicídios (ZALUAR, 2004). Contribuindo significativamente
para esse crescimento, o processo de transformação acelerado característico da
modernidade (GIDDENS, 1982), balizado na fragmentação social e no consumo,
com forte impacto sobre os jovens. Estes, em seus bairros e cidades, recebem
influências de um imperativo de consumo de um “estilo” marcado pela busca
desenfreada do prazer e do poder, caracterizado por ícones como arma na cintura,
dinheiro no bolso, conquista de mulheres e constante enfrentamento da morte.
A concepção de que a morte deve ser enfrentada está articulada à idéia de
um indivíduo completamente livre, revelando que as práticas do mundo do crime
vinculam-se a um ethos de virilidade centrado na idéia de “chefe”, indivíduo que se
26
guia somente por si, o cedendo a ninguém e a nenhum poder superior. Essas
concepções, entretanto, contrastam com a organização hierárquica e militar das
quadrilhas nas quais esses jovens estão inseridos.
A grande maioria das mortes violentas nas comunidades brasileiras onde o
tráfico de drogas encontra-se organizado é decorrente de embates travados entre os
próprios sujeitos envolvidos na criminalidade, com causas diversas: interesses
comerciais, rixas, rivalidades pessoais. Além dessas causas, outras ratificam uma
motivação cada vez mais torpe para dar fim a uma vida, como um “olhar
atravessado” ou uma suspeita de traição, denunciando a existência de laços cada
vez mais frágeis nas relações humanas. As justificativas apresentadas pelos
adolescentes para sua inserção no mundo do crime organizam-se a partir do
paradigma pós-moderno, em que imagem e visibilidade são fundamentais: “pela
sensação”, “pela emoção”, “para fazer onda”, “para aparecer no jornal” são algumas
das respostas frequentes. A busca pela imortalidade está vinculada à fama midiática
assim obtida (ZALUAR, 1997) e, para isso, arriscam suas vidas em uma atitude
compulsiva com relação a seus atos criminosos.
Nesse circuito criminal, a morte mantém, ao mesmo tempo, caráter público,
pois acontece primordialmente na rua, e caráter individual, tendo como marca a
presença de um corpo estendido no chão, imagem cada vez mais corriqueira em
alguns bairros de cidades brasileiras. Sua representação pode ser remetida a um
“destino coletivo de quem escolhe o crime”, tornando-se um acontecimento marcado
pela aceitação, pela resignação ou por tentativas de desvio.
Diante dessas constatações, uma análise aprofundada sobre este universo
justifica o presente estudo, buscando contribuir com a informação e compreensão de
fenômenos que favorecem, atualmente, a morte prematura de jovens. Além disso,
nota-se a escassez de estudos acadêmicos que priorizem a temática em questão
consultando sites de busca da internet
11
, nenhum trabalho articulando mortes
violentas e a medida sócio-educativa de semiliberdade foi encontrado. Geralmente,
os trabalhos envolvendo o adolescente autor de ato infracional enfocam legislação,
atendimento, família, relação com substâncias entorpecentes, causas da violência,
11
Alguns dos sites consultados foram: portal do Instituto Brasileiro de Informações em Ciências e
Tecnologia (IBICT), portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), site da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e portal Scientific Electronic Library
Online” (Scielo). Último acesso em jan. 2009.
27
entre outros, e a medida sócio-educativa privilegiada em boa parte dessas pesquisas
é a de internação. A questão das mortes violentas é abordada quase sempre de
forma tangenciada: admite-se que os adolescentes envolvidos na criminalidade
morrem muito e cedo, mas pouco se problematiza a rede de relações que
proporciona a naturalização da morte violenta enquanto destino.
Por fim, o presente estudo justifica-se pelo aumento do número de homicídios
no município de Belo Horizonte. Segundo Zaluar (2004), este aumento tem sua
ascensão no final dos anos 1990, com tendência a superar os dados referentes à
cidade do Rio de Janeiro.
Diante desse universo, que envolve não a facilidade de acesso a armas de
fogo como também uma cultura da violência disseminada em alguns segmentos
sociais e a falta de acesso a políticas públicas e programas sociais, entre outros, a
escolha do estudo de caso como metodologia de trabalho tornou-se ferramenta
importante para uma maior qualidade deste trabalho, por meio da utilização de
diferentes fontes de evidência, típica desse modelo de estudo:
resgate de registros escritos coletados durante a intervenção em um
estabelecimento de semiliberdade, passo fundamental para direcionar
a coleta de dados, uma vez que, durante os cinco anos de minha
atuação junto à semiliberdade, inúmeros assassinatos foram
presenciados e, com eles, a relação dos adolescentes e profissionais
frente à temática da morte;
pesquisa nos arquivos de uma das Unidades no período de 2000 a
2005. A escolha da Unidade esteve intimamente ligada à familiaridade
que mantenho com os fatos narrados nos documentos, que foi
naquele estabelecimento que trabalhei mais recentemente. Houve
dificuldades na localização dos arquivos. Inicialmente, pensou-se que
estariam na Unidade, mas havia arquivos referentes aos anos de
2006 e 2007. O educador que esteve envolvido na procura desses
documentos mencionou, então, a possibilidade de os mesmos estarem
na Inspetoria. Foram encontrados em um depósito para material de
limpeza, empoeirados e mofados. A leitura trouxe lembranças,
sentimentos de alegria e tristeza referentes aos momentos de
convivência com os adolescentes. Apesar de estarem esquecidos,
“mortos”, foi possível percebê-los como instrumentos para fazer viver;
28
pesquisa de campo com observação participante e entrevistas semi-
estruturadas com quatro profissionais da semiliberdade (APÊNDICE
A); entrevistas semi-estruturadas com dois adolescentes do sexo
masculino (APÊNDICE B) e entrevista não-estruturada em grupo com
seis adolescentes do sexo masculino, tendo como base a discussão do
filme “Escritores da Liberdade” (FREEDOM WRITERS, EUA, 2007)
(APÊNDICE C).
No primeiro contato estabelecido com o diretor e as coordenadoras das
Unidades de Semiliberdade visando a apresentação da pesquisa, foram
estabelecidos dias, horários e forma da coleta de dados. Posteriormente, foi
realizado o primeiro contato com profissionais e adolescentes da Unidade de
Semiliberdade Santa Terezinha. Estavam presentes três educadores e a pedagoga
da Unidade. Os profissionais foram receptivos - alguns haviam sido meus colegas de
trabalho, o que contribuiu para que toda a equipe se mostrasse bastante disponível.
Nessa primeira reunião, foram discutidos alguns encaminhamentos de adolescentes
para cursos profissionalizantes. Marcou-se a importância desses encaminhamentos
estarem conectados a suas expectativas. Um dos educadores apresentou-me aos
demais como ex-coordenadora da Unidade e mestranda da PUC-Minas. Elogiou
minha colaboração e trouxe para a discussão alguns adolescentes “bem sucedidos”
atualmente, a partir de “bons encaminhamentos” realizados pela equipe. Foi aberto
um espaço para a apresentação da pesquisa. Nesse momento, meu ex-colega
recordou-se de alguns adolescentes assassinados, mencionando que, em um
pequeno levantamento, haviam chegado ao número total de trinta e dois.
Após essa reunião, realizou-se o “Bom dia”, ritual de todas as entidades
vinculadas à Inspetoria São João Bosco. Nas Unidades de Semiliberdade, acontece
durante o café da manhã. É um momento de reflexão, oração e comemoração. A
Unidade tinha, à época, seis adolescentes em cumprimento de medida. Um deles
afirmou reconhecer-me do velório do pai de uma ex-colega de trabalho. Lembrei-me
de todo o sofrimento vivenciado naquele dia, o que evidenciou um dos aspectos da
pesquisa: a atual concepção trágica da morte, permeada por medo (ARIÈS, 1989;
2003). Como se vê, o fato de ter sido coordenadora das Unidades também facilitou o
estabelecimento do vínculo com os adolescentes.
É importante ressaltar que o fato de ter voltado a meu antigo local de trabalho
após longo período, deparando-me com situações vividas anteriormente que
29
envolvem instabilidade, novidade e surpresa causou-me certo estranhamento.
Percebi como a dinâmica da violência e da morte se faz presente naquele local: ao
mesmo tempo em que tudo está tranqüilo, algo rio e violento envolvendo brigas e
ameaça entre os adolescentes pode acontecer, e os profissionais devem ficar
atentos a isso. Uma brincadeira considerada desagradável, uma palavra, um olhar,
um bater nas costas podem desencadear atos violentos e morte.
A perspectiva da tranqüilidade, no entanto, é marcada de forma veemente
pelos profissionais
12
em seus relatórios. Talvez isso aconteça por necessidade de
negar o conflito, a morte. Desse modo, pode-se afirmar que a lógica da violência se
faz presente durante a realização desse tipo de trabalho, e negar essa lógica torna-
se condição para o desenvolvimento das práticas sócio-educativas.
Hoje a casa está com um clima bom, apesar da chuva. (Relatório diário dos
técnicos e coordenação, 09/01/2004).
13
Graças a Deus está tudo tranqüilo! Simão foi juntamente com Mafalda
[técnica] e os adolescentes do Ouro Preto para a academia. Correu tudo
bem. Os que ficaram aqui permaneceram tranqüilos assistindo aos filmes
que foram locados. (Relatório diário dos técnicos e coordenação,
10/01/2004)
14
.
Boa noite!!! Bom dia!!! Hoje fui ate à PUC para saber e confirmar os dias de
atendimento odontológico para os adolescentes, mas estará funcionando
somente a partir de 19/01. Retornarei nesse dia. Bom, depois cheguei a
Unidade e estava tudo tranqüilo. (Relatório diário dos técnicos e
coordenação, 12/01/2004)
15
.
Recebemos o plantão às 7:00 com a casa bastante tranqüila, assim demos
início as atividades. [...] o dia transcorreu bastante tranqüilo, salvo alguns
transtornos, mas tudo na santa paz de Dom Bosco. Fiquem com Deus e até
breve. (Relatório diário dos educadores, 17/02/2004)
16
.
12
O quadro funcional das Unidades de Semiliberdade é composto por profissionais de nível superior
formados em direito, psicologia, assistência social, terapia ocupacional e pedagogia, chamados de
técnicos; profissionais de nível médio, os educadores diretos (de acordo com a concepção salesiana,
todos os profissionais são educadores); estagiários das mais diversas áreas; voluntários. Os diretores
das Unidades são religiosos vinculados aos salesianos.
13
Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em
2007.
14
Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em
2007.
15
Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em
2007.
16
Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em
2007.
30
Iniciamos as atividades com a Unidade relativamente tranqüila. (Relatório
diário dos educadores, 10/05/2004)
17
.
A necessidade de pedir proteção a Deus também é recorrente na realização
do trabalho sócio-educativo. Devido ao envolvimento dos adolescentes em ações
criminais ou desavenças, são recorrentes situações de ameaça nas Unidades.
Essas ameaças fazem com que as vidas dos profissionais também fiquem expostas
e, como conseqüência, os próprios profissionais se sintam ameaçados. Recordo-me
de um adolescente que residia na cidade de Ouro Preto e viajava para
periodicamente, a fim de visitar sua família. Como era ameaçado na região central
da cidade, definiu-se que ele não poderia embarcar no ônibus na rodoviária,
localizada nessa área. Deveria então pegar o ônibus em outro local, em horários
diferenciados, em companhia de um educador. Muitas vezes, houve resistência e
temor na realização dessa tarefa. Na tentativa de proteger uma vida, outra era
colocada em risco, e os profissionais sabiam bem disso. Nesse e em outros
momentos em que o educador temia também ser assassinado, era comum
expressarem seus sentimentos da seguinte forma: “eu tenho família, filho pra criar”.
É comum também pessoas conhecidas e estranhas fazerem ameaças na
porta das Unidades ou por telefone, conforme os relatos que se seguem:
A partir das 17 horas recebemos vários telefonemas da Unidade Ouro Preto
do educador Jeremias. Ele nos avisou que havia fora um adolescente
evadido por nome de Fernando. Esse estava armado e dizia estar vindo
para atirar em Maurílio e Murilo e outro por apelido “Monstrão”. Ambos
haviam “zoado” ele quando estava acautelado no Ouro Preto, “zoação
desrespeitosa por sua opção sexual. (Relatório diário dos educadores,
16/01/2005)
18
.
[...] Às 14:40 o telefone tocou e alguém queria falar com o Jonas
[adolescente]. Fiquei surpreso, pois pensei ser alguém da família e
perguntei quem queria falar com o adolescente e a resposta foi a seguinte:
é um inimigo dele aqui da “quebrada”, ligado? Respondi que Jonas não
poderia atendê-lo, além de não estar na Unidade. O sujeito ficou nervoso e
disse: fala pro Jonas pagar o que devendo aqui na “quebrada”, senão eu
vou pular nele aí, “tá ligado”? (Relatório diário dos educadores,
23/01/2005)
19
.
17
Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em
2007.
18
Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em
2007.
19
Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em
2007.
31
Os educadores, como mostram os relatórios, colocam suas vidas na mão de
Deus, pedido de proteção que parece tentativa de afastar ou negar a possibilidade
da ocorrência de ameaça ou assassinato.
As contribuições dos educadores entrevistados foram fundamentais. Além de
acrescentarem informações pertinentes à temática da morte envolvendo
adolescentes em conflito com a lei, suas percepções foram fundamentais para
esclarecer certas relações dos adolescentes com a criminalidade. O fato de estarem
implicados com o tema a partir de outro referencial possibilitou a desmistificação de
questões trazidas pelos adolescentes, sobretudo no que diz respeito ao medo da
morte.
A proposta de realizar tanto entrevistas individuais como em grupo com os
adolescentes teve como objetivo favorecer uma produção mais complexa de dados.
Partiu-se do pressuposto de que diferentes processos de subjetivação são
deflagrados quando os sujeitos encontram-se sozinhos ou reunidos. De fato, nas
entrevistas individuais observou-se maior reflexão no que tange à questão central da
pesquisa (processos de subjetivação envolvendo adolescentes que vivenciam
situações de ameaça devido a relações com a criminalidade), embora em alguns
momentos haja o uso de “respostas prontas” na tentativa de justificar a inserção no
crime. Já na entrevista realizada com o grupo, observou-se pouca crítica dos sujeitos
e a necessidade de afirmação de certa "conduta marginal”. A vivência da
criminalidade exige uma “identidade” virilidade, poder, prestígio , e os
adolescentes, quando em grupo, tentaram reafirmá-la de forma mais veemente.
A proposta inicial era que as entrevistas individuais fossem realizadas com
todos os adolescentes em cumprimento de medida. Geralmente, a Unidade de
Semiliberdade Outro Preto atende oito adolescentes, sua capacidade máxima.
Entretanto, foi possível a realização de duas entrevistas individuais, devido à
assertiva existente no grupo de que, no mundo do crime, “falar demais” pode gerar
morte, mesmo diante da explicação sobre o caráter confidencial dos registros da
pesquisa. A entrevista em grupo, por sua vez, foi realizada com seis adolescentes
devido à dinâmica da Unidade, dois se encontravam em atividades externas.
A pesquisa de campo com a observação participante foi o momento mais
significativo para a obtenção dos dados. As entrevistas instituíram uma oportunidade
específica para os adolescentes falarem da possibilidade de morrerem assassinados
32
prematuramente. Houve grande dificuldade em falar da própria morte, bem como
das ações criminais que os colocam em risco.
Essa situação pôde ser observada durante o trabalho de campo. Certo dia,
cheguei à Unidade e os adolescentes ouviam rap na varanda, enquanto
conversavam sobre assuntos variados: meninas, escola, ser jovem. Em determinado
momento, perguntei como eles se imaginavam com 31 anos, minha idade na época.
Um deles respondeu: “é difícil pensar, posso estar morto. É a guerra”. Mais tarde, na
mesma conversa, ele disse: “ano que vem, se eu estiver solto e não estiver morto,
vou à praia”. Diante dessa fala, os adolescentes mencionaram a dificuldade de fazer
planos devido às guerras. Outro adolescente, que havia chegado dançando, afirmou
que o rap doidoque estava tocando era Furacão 2000”. Um deles diz: “ano 2000:
eu tava no céu, nem tava no crime. Agora é morte”. Pela relação com a
criminalidade, os adolescentes experimentam e vivenciam situações de morte em
seus cotidianos, condição reafirmada a todo momento não no presente, mas
também projetada em um futuro próximo
20
.
O medo de delatar alguém ou ser identificado também se evidenciou na
pesquisa. Segundo um dos adolescentes, “no mundo do crime é muito perigoso
saber demais”
21
e, por conseguinte, as entrevistas punham em questão o medo de
falar, ser descoberto e colocar-se em situação de ameaça. A observação
participante, no entanto, permitiu o estabelecimento de um vínculo entre
pesquisadora e sujeitos da pesquisa. A percepção das situações de ameaça
vivenciada pelo grupo tornou-se mais evidente nos momentos de informalidade ou
atividades cotidianas vinculadas à dinâmica do trabalho sócio-educativo: “Bom dia”,
“Faxina”, “Formação Humana e Cidadania”, entre outras. Essas atividades têm como
objetivo trabalhar valores humanos, ético, políticos, auxiliando-os no processo de
desvinculação da criminalidade, tendo como instrumentos recursos artísticos,
visuais, debates, atividades culturais e de lazer, entre outras.
Segundo Becker, por meio da observação participante
[...] o observador se coloca na vida da comunidade de modo a poder ver, ao
longo de um certo período de tempo o que as pessoas normalmente fazem
enquanto seu conjunto diário de atividades. Ele registra suas observações o
20
Observação participante. Pesquisa de campo realizada na Unidade de Semiliberdade Ouro Preto
em 03 out. 2007.
21
Observação participante. Pesquisa de campo realizada na Unidade de Semiliberdade Ouro Preto
em 03 out. 2007.
33
mais breve possível depois de fazê-las. Ele repara nos tipos de pessoas que
interagem umas com as outras, o conteúdo e as conseqüências da
interação, e como ela é discutida e avaliada pelos participantes e outros
depois do evento. Ele tenta registrar esse material tão completamente
quanto possível por meio de relatos detalhados de ações, mapas de
localização de pessoas enquanto atuam e, é claro, transcrições literais das
conversações. (BECKER, 1993, p. 120).
Os dados coletados durante a observação participante transformaram-se em
um diário de campo, onde a relação dos adolescentes com a criminalidade, suas
guerras e os processos de subjetivação deflagrados nesse contexto, bem como
aspectos do trabalho sócio-educativo perpassados por perdas e mortes foram
registrados. Tais registros, como instrui Becker (1993), foram feitos logo após a
realização das observações. A análise dos dados privilegiou o aspecto qualitativo,
oferecendo elementos para o questionamento das concepções políticas e subjetivas
que fundamentam as práticas sócio-educativas, além de suas formas naturalizadas
de perceber a vida e a morte, que podem manter os adolescentes vinculados à
criminalidade e, por conseguinte, reforçar a experimentação deste “destino”.
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se
preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser
quantificado. Ou seja, ela trabalha com um universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um
espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que
não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO, 1994,
p.21-22)
A presente pesquisa foi instrumentalizada a partir da análise temática de
conteúdo, que consiste em “isolar temas de um texto e extrair as partes utilizáveis,
de acordo com o problema pesquisado, para permitir sua comparação com outros
textos colhidos da mesma maneira” (RICHARDSON apud KIND, 2007, p. 2). Ela
pode ser realizada artesanalmente, por meio da leitura de todo o material coletado,
ou com softwares que, por exemplo, localizam os registros que se repetem (KIND,
2007). Aqui, o processo de análise dos dados foi feito de forma artesanal.
Os textos registrados feitos a partir da coleta de dados podem ser
organizados em categorias e subcategorias, que expressem temas
identificados. Nesse segundo momento o pesquisador iniciará o processo
de categorização, abarcando a releitura de todo o material identificando
unidades temáticas que podem ser definidas como expressões que
representem núcleos de sentido sobre o tema investigado. (KIND, 2007, p.2-
3)
Os estudos pós-estruturalistas desenvolvidos por Foucault, Deleuze e
Guattari e as contribuições da Análise Institucional também foram utilizadas nesta
34
pesquisa. Elas não têm como objetivo a busca e a aplicação de um método de
acordo com as aspirações positivistas o sentido de sua “metodologia” tange-se
pela ética. Foucault (apud FERREIRA NETO, 2002) diz tratar-se do desprender-se
de si mesmo, constante processo de “modificar o que se pensa e o que se é”, a
partir do encontro com novas questões concretas que permitem a construção de um
modo diferente de pensamento.
A proposta de escrever um capítulo metodológico orientado pelas
contribuições foucaultianas e pela Análise Institucional teve por norte esses
pressupostos. Buscou-se uma formalização inicial que auxiliasse no questionamento
acerca dos processos de subjetivação deflagrados a partir do momento em que um
adolescente encontra-se ameaçado, como também as práticas sócio-educativas,
que facilitam ou não a aproximação dos adolescentes a contextos de morte. Trata-se
menos de uma explicitação do método utilizado e mais do apontamento da
perspectiva adotada. Assim, pode-se definir “método” como o caminho percorrido.
É fundamental atermo-nos às freqüentes objeções dirigidas a pesquisas
amparadas nesse tipo de metodologia. Durante a apresentação da presente
pesquisa no local onde ela foi realizada, questionou-se a objetividade da mesma,
pela escolha metodológica que a orienta. No entanto, uma não-formalização a priori
não significa uma impossibilidade de sistematização a posteriori. Debruçar-se na
esfera do parcial não é equivalente a trabalhar na desordem e no aleatório, mas a
potencializar a criação, a construção e a afirmação do método como caminho a ser
percorrido. Significa, antes de tudo, contemplá-lo como bússola, norte que orienta os
passos a serem dados.
O problema investigado neste estudo tem relação estreita com minha
experiência profissional, convocando-me ao trabalho enquanto pesquisadora.
Foucault empreendia a associação entre o tema da pesquisa e sua experiência de
vida, afirmando que essa empreitada exige implicação do pesquisador em um
trabalho sobre si mesmo. A pesquisa não se desenvolve aquém da subjetividade do
pesquisador, deflagrando novos processos de mudança, algo inseparável do próprio
processo de investigação (FERREIRA NETO, 2002). A partir dessa postulação, a
noção de análise de implicações tangenciada pela análise institucional encontra
sentido:
A noção de implicação, trabalhada pelos analistas institucionais refere-se
não a uma redução do impacto que uma determinada situação tem sobre a
35
história do pesquisador, nem ao fato de considerar-se exterior ao processo
em curso (isto é, saber incluído no campo de pesquisa). Menos ainda algo
que sirva para simplesmente satisfazer a vaidade pessoal com o pretexto de
reconhecer o direito daqueles que o ouvem de saberem com quem falam. A
implicação não é uma questão de vontade, de decisão consciente. Ela inclui
uma análise do sistema de lugares, o assinalamento do lugar que ocupa,
que busca ocupar e do que lhe é designado ocupar com os riscos que isto
implica. (BARROS, 1994, p.308-309).
Em “Os intelectuais e o poder”, Deleuze (1998) utiliza a noção de Foucault, de
que as teorias devem ser compreendidas como “caixa de ferramentas”: “é preciso
que sirva, é preciso que funcione” (FOUCAULT, 1998, p.71). Compara-se esse
conceito ao entendimento que Proust tinha de sua própria obra: “tratem meus livros
como óculos dirigidos para fora e se eles não lhe servem, consigam outros,
encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de
combate” (FOUCAULT, 1998, p.71). Essa assertiva deleuziana é referência para se
pensar, na presente pesquisa, a relação entre teoria e trabalho de campo. As
construções teóricas foram implementadas a partir de problemas reais que os
adolescentes vivenciam o tráfico, as guerras, a certeza de que se irá morrer cedo.
Não há, pois, primazia de um sobre o outro.
Outro instrumento que tomo emprestado dessa “caixa de ferramentas” o os
analisadores. Segundo a Análise Institucional, eles podem ser inventados ou
produzidos “espontaneamente” no jogo de forças onde se instauram os processos
institucionais. São acontecimentos que produzem rupturas, desmanches, que
catalisam fluxos, que produzem análise, que decompõem (BARROS, 1994). As
ameaças sofridas e protagonizadas por alguns adolescentes que estiveram
acautelados nas Unidades, bem como os assassinatos que vitimaram vários outros
foram tomados a partir da perspectiva dos analisadores. Esses fatos produziram nos
profissionais da semiliberdade um questionamento a respeito de toda a organização
do trabalho das Unidades em diferentes aspectos: estrutura, relação com a Lei,
práticas sócio-educativas, relação entre os profissionais e suas especificidades
teórico-práticas. Ao promover um questionamento em relação ao trabalho sócio-
educativo desenvolvido na semiliberdade, seus atravessamentos e possibilidades,
vislumbra-se o desmanche dos diversos territórios que foram efetivados e, muitas
vezes, aproximam os adolescentes a contextos de morte.
A recusa do lugar de neutralidade do analista/pesquisador fez romper a
dicotomia entre sujeito que conhece e objeto a ser conhecido. Essa relação permite
argumentar que sujeito e objeto de conhecimento se produzem ao mesmo tempo, no
36
mesmo processo, a partir de suas relações, não estando ligados por hierarquias e
submissões. Não há, pois, conhecimento-em-si, que não existem seres-em-si,
mas configurações que se apresentam como resultado de determinadas condições
sócio-histórico-políticas.
Considerando o projeto foucaultiano que privilegia o viés da genealogia,
torna-se preponderante entendê-la como atitude de reconhecimento dos contextos
que determinaram nossos modos de existência, e afirmação da possibilidade de não
mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos, proporcionando o
avanço do trabalho contínuo e insistente da liberdade (FOUCAULT, 1998). A
proposta foucaltiana busca investigar os acontecimentos da história, seus abalos e
surpresas, suas vacilações e embates, suas intensidades e enfraquecimentos. Por
isso, a análise genealógica não tem como objetivo a busca da origem (Ursprung),
mas a proveniência (Herkunft) e a emergência (Enteshung). Foucault (1998) afirma
que proveniência remete a marcas sutis e singulares, que se entrecruzam de
maneira emaranhada, constituindo uma complexidade marcada por um conjunto de
diferenças. Sua análise faz desabar a identidade, potencializando diversos
acontecimentos, desvios, falhas, acidentes que a formaram. Onde o Eu conclama
para si uma identidade coerente, a análise da proveniência faz ruir sua síntese
vazia. O genealogista encontra “na raiz daquilo que s conhecemos e daquilo que
nós somos não a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente” (FOUCAULT,
1998, p. 21).
Por isso, esta pesquisa privilegia o corpo, superfície de inscrição dos
acontecimentos: “a genealogia, como análise da proveniência, está portanto no
ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente
marcado de história e a história arruinando o corpo” (FOUCAULT, 1998, p. 22). Nos
processos de subjetivação envolvendo adolescentes envolvidos com a criminalidade,
conclui-se, seus corpos o superfícies de inscrição dos acontecimentos. Ouve-se
desses adolescentes relatos de agressões e abusos, sendo o corpo tratado como
objeto aprisionado a contextos de violência. De acordo com Rose, o conceito de
corpo é um fenômeno histórico: “nossa presente imagem dos delineamentos e
topografia do corpo- seus órgãos, processos, fluidos vitais e fluxos – é o resultado de
uma história cultural, científica ecnica particular” (ROSE, 2001, p.108). Esse
conceito está articulado à maneira como pensamos tradicionalmente a subjetividade:
37
algo coerente, durável, em que o eu é entendido como limitado pelo envelope da
pele, ou seja, o corpo.
É possível, pois, que não exista essa coisa de “o corpo”: um envelope
limitado que pode ser revelado para conter no seu interior uma profundidade
e um conjunto de operações que funcionem à maneira de uma lei. [...] Em
vez, de falar de “o corpo”, precisaríamos analisar apenas como um
particular regime de corpo” foi produzido, descrevendo a canalização de
processos, órgãos, fluxos, conexões, bem como o alinhamento de um
aspecto a outro. Em vez de o corpo”, tem-se, pois, uma série de
“máquinas” possíveis, agenciamentos de humanos com outros elementos e
materiais. [...] O corpo é, pois, “não uma totalidade orgânica que é capaz de
expressar globalmente a subjetividade, uma concentração de emoções,
atitudes, crenças ou experiências do sujeito, mas um agenciamento de
órgãos, processos, prazeres, paixões, atividades, comportamentos, ligados
por tênues linhas e imprevisíveis redes a outros elementos, segmentos e
agenciamentos. (ROSE, 2001, p.170)
A maneira como os adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa
de semiliberdade se relacionam com seus corpos está, muitas vezes, agenciada por
suas experiências de rua, caracterizadas por explorações, violências. Segundo
Ferreira (1993), no corpo são impressas cicatrizes, marcas que denunciam uma
relação submissa a contextos desenhados por trocas, onde ele se torna mercadoria,
possibilidade de ascensão no grupo e/ou sobrevivência. Para Diógenes (2000), no
corpo dos adolescentes enuncia-se a escrita da violência corpos marcados a bala,
cortes, furos, fenda, cicatrizes, tatuagens –, registros que podem dispensar o uso da
linguagem oral. Nesses corpos, o código da violência está cravado, visível e
naturalizado, uma vez que essas marcas constituem “geografia” particular no
território-corpo. Não se fala sobre violência: fala-se sobre mortes, roubos,
“enxames”, “parada”. A violência é o olhar do “outro” sobre a natureza das ações
praticadas entre os sujeitos, um olhar que se concentra nos atos e desvia-se no
corpo como “superfície de escrita”.
É também no corpo que está registrado o “rito de passagem”, do jovem
“gado”, "bicho playboyzinho”, otário” para os “iniciados”. Clastres (apud Diógenes,
2000) ressalta a importância, nas sociedades primitivas, dos ritos de passagem para
a idade adulta, estando eles quase sempre relacionados ao corpo: um corpo
“marcado” é um corpo “iniciado”, inserido em um campo de significados produtor de
novos códigos de linguagem, de sinais de inserção e de aceitação nesse palco
demarcado de sociabilidade. Muitas vezes, é através desse corpo “marcado”,
“furado”, que o adolescente assume um lugar no grupo, sendo reconhecido como
sujeito.
38
A maneira como os adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa
de semiliberdade se relacionam com seus corpos está, muitas vezes, agenciada por
suas experiências de rua, caracterizadas por explorações e violências. Na admissão
de um novo elemento no grupo de adolescentes, principalmente nos com trajetória
de rua, é na superfície do corpo que se inicia o processo de pertencimento. É com
um corpo marcado, torturado, amordaçado que o adolescente é convidado a dar
provas de sua lealdade, esperteza e tolerância à dor. Selecionam-se assim os atores
que, em uma situação de conflito ou pressão policial, não seriam delatores. Deve-se,
por exemplo, oferecer as mãos a um dos componentes do grupo, que irá esfregá-la
até ferir, observando se o novato suporta silenciosamente a tortura. O maior grau de
tolerância confere um lugar privilegiado no grupo (DIÓGENES, 2000). Por outro lado,
a marca corporal também pode ser a porta de saída de um grupo, pois as traições
são muitas vezes rechaçadas através de castigos corporais. Também é pelo corpo
que se identifica o tempo de permanência de um adolescente na rua: os mais sujos
e maltratados indicam maior “adaptação” e conhecimento da rua, proporcionando ao
sujeito um lugar de destaque no grupo. Tal identificação traz, ao mesmo tempo, um
lugar de liderança e um aprisionamento do corpo ao espaço urbano vemos surgir
no contexto social o “menino de rua”, o “pivete”, e o asfalto passa a ser o seu lar.
Além desse corpo marcado visivelmente, outros adolescentes carregam
marcas bem mais sutis, não menos violentas. É o corpo institucionalizado, isento de
movimentos autônomos, afastado da possibilidade de novas experimentações. Um
corpo objeto, sujeitado, desapropriado de descobertas afetivas.
Retomando as contribuições foucaultianas acerca da genealogia, é importante
destacar o que se nomeia por emergência (Enteshung). Em “Nietzsche, a
Genealogia e a História” (FOUCAULT, 1998), esse conceito remete-se a um ponto
de surgimento: é o começo e a lei singular de um acontecimento que, por sua vez,
produz-se por um jogo de forças, afrontamento, confronto, não como campo fechado
onde adversários travam uma luta, mas como não-lugar, interstício onde se
concretiza a emergência e, com ela, os acontecimentos, com toda a sua potência. O
confronto entre as forças é decorrente dos processos de dominação, cujos
procedimentos e regras se diversificam em cada momento da História. A emergência
aprecia a potência do acontecimento, desprivilegiando as certezas e as regras. A
partir do entendimento da genealogia como pesquisa da emergência e da
proveniência e não da origem metafísica, Foucault (1998) busca, em seguida,
39
diferenciá-la da “história dos historiadores“, privilegiando o devir, a descontinuidade,
o acontecimento. Desnaturalizar a história e inseri-la no campo das práticas sociais
estabelece nova relação entre os sujeitos e suas existências, ancorada em
possibilidades e não em certezas.
Considerando os adolescentes e suas histórias de vida, é comum encontrar
explicações para suas trajetórias marginais a partir de histórias pregressas,
marcadas por arranjos familiares distantes do imaginário hegemônico, por pobreza,
não-acesso aos bens de consumo, entre outros, vistas como condições
fundamentais para o envolvimento com a criminalidade. O passado é utilizado para
explicar e reconhecer o presente. A vida não é vista a partir da perspectiva da
construção, mas da determinação, e o sujeito é compreendido como portador de
certa “identidade”, nesse caso, a “marginal”. A perspectiva da presente pesquisa vai
na contramão desse ideal, pois compreende a vida enquanto processualidade,
multiplicidade.
Outro aspecto que merece ser destacado da obra de Foucault (1998) é a
acoplagem dos saberes eruditos com os saberes dominados, promovendo a
insurreição destes últimos. Essa acoplagem está intrinsecamente relacionada à
abordagem metodológica proposta por este trabalho, privilegiando o saber do
próprio adolescente, convocado a “contar a sua história” nas entrevistas. Os saberes
dominados são conteúdos históricos presentes, mas desconsiderados no interior dos
estabelecimentos e das organizações. Ao serem reativados intensificam as lutas
promovendo processos instituintes. Saberes dominados caracterizam-se também
por serem não-competentes, não-conceituais, não-detentores da legitimidade e
reconhecimento dos saberes formais e científicos. É um saber da pessoa, do
psiquiatrizado, do doente, do adolescente em conflito com a lei. o pode,
entretanto, ser caracterizado como um saber do senso comum, pois é não-unânime
e diferencial, pertencente a uma esfera particular e local. Ao genealogista cabe fazê-
los falar, pois é sua enunciação própria e local fator crucial para a recomposição das
relações de força que os constituem.
Levando em consideração esse aspecto da obra foucaultiana, esta
dissertação tomou corpo a partir do ponto de vista de diferentes sujeitos:
adolescentes envolvidos no processo sócio-educativo, profissionais que atuam com
esses adolescentes, além do olhar da própria pesquisadora, suas memórias e
observações atuais. Essa escolha fundamentou-se no entendimento de que este
40
fenômeno atual a morte prematura de jovens devido a seu envolvimento com a
criminalidade – deve ser visto como complexidade multifatorial. A aposta é que
diferentes percepções possam funcionar como um dispositivo que favoreça a análise
desse fenômeno.
A genealogia recusa a classificação acadêmica de método para produção do
conhecimento, sendo protagonista das lutas a serem travadas e intervindo com todo
o vigor na correlação de forças presentes. Por esse motivo, Foucault (1998)
considera-a uma tática. É com esse olhar que o presente trabalho se desenvolveu,
tendo, pois, caráter não só acadêmico, mas fundamentalmente ético, estético e
político.
Em decorrência da análise genealógica empreendida por Foucault, a
interrogação sobre a origem dos objetos deixa de ser questão, pois não se pretende
caracterizá-los como coisas-em-si, possuidores de determinado perfil, evidenciando
a existência de determinada essência. Esse pressuposto sustenta naturalizações e
trajetórias que levam a um começo de tudo, a um início verdadeiro. Efetivar a
afirmação de que os objetos não existem em si mesmos, mas que as práticas são
datadas e produzem seus próprios objetos, criando modos de subjetivação, é trilhar
outro caminho, que não é marcado pela busca das origens, posto que não há ponto
primeiro (nem último), mas pontos de fratura, bifurcação, produção desses sujeitos-
objetos. É nesse sentido que foi empreendido um estudo sobre a temática dos
processos de subjetivação atrelados ao contexto das ameaças sofridas ou
vivenciadas pelos adolescentes aqui retratados. Esses processos não se alojam na
interioridade dos sujeitos, como muitas teorias psicológicas postulam, mas são o
resultado das práticas sociais. Pensar os processos de subjetivação que constituem
os adolescentes envolvidos em atos violentos a partir desse viés é afirmar que a
questão da violência abarca toda uma conjuntura sócio-econômica e política, não
uma questão individual. Atrelado a essa conjuntura, a história de vida dos
adolescentes não pode ser entendida como linear, baseada em uma biografia em
que os fatos se sucedem ao longo do tempo, encaixando-se perfeitamente, com
início, meio e fim. Aqui, a história configura-se como jogo de forças em luta, onde
determinadas práticas, discursos, modos de subjetivação emergem, tornando-se
hegemônicos. A história é, nesse caso, desconstrução, desnaturalização das
certezas e verdades territorializadas, construção dos sujeitos-objetos em questão, a
41
partir de forças que os estabeleceram, admitindo-se dispersão onde se presumia
unidade e identidade.
Não há, portanto, causalidade, linearidade, pressuposição, fatalismo,
identidade, modelo. processualidade, conexões incessantes e
permanentes, pedaços de sujeitos-objetos que criam outros, pedaços que
se cortam e não mais se conectam. (BARROS, 1995, p.9).
Por isso, a proposta genealógica foucaultiana debruça-se sobre o que é
apresentado como natural, necessário e obrigatório, vislumbrando o afloramento do
que é singular, contingente e decorrente de imposições arbitrárias. Preocupa-se com
as questões do presente, as lutas contemporâneas, vislumbrando a desmontagem
de dispositivos históricos que possibilitaram a identificação de um objeto – “ser
marginal” – como algo natural, atributo do próprio sujeito.
Além da análise genealógica, que se preocupa em desvendar as formações e
modificações através das quais o ser se como podendo e devendo ser pensado,
Foucault (1984) realizou análises arqueológicas, que objetivam estudar as formas de
problematização. A arqueologia recai prioritariamente, mas não exclusivamente,
sobre os saberes; a genealogia problematiza as relações de poder, podendo
também incidir sobre a gênese dos saberes. Nesta dissertação, o questionamento:
“como é o processo de constituição da subjetividade do adolescente que se encontra
ameaçado devido ao seu envolvimento com o crime?” constitui-se como forma de
problematização.
Nas postulações de Foucault, sempre houve preocupação com determinados
problemas e práticas sociais característicos de sua sociedade, por isso ele teve
como meta promover um debate no nível do conjunto de saberes de uma época,
entendido como uma rede de formações discursivas ou um feixe de relações. As
entrevistas realizadas com os profissionais das Unidades de Semiliberdade
fortalecem-se se entendemos que os dados coletados e a análises empreendidas
são apropriadas, objetivando desnaturalizar os diferentes discursos e práticas dos
técnicos e dos educadores que podem facilitar ou não o envolvimento dos
adolescentes com a criminalidade. Amparados por essa visão, podemos afirmar que
não se trata de suscitar um questionamento acerca de uma teoria do conhecimento,
mas de identificar as linhas de formação e de constituição dos sujeitos adolescentes
que vivem situações de ameaça e as práticas objetivadoras que entrelaçam esses
processos de constituição.
42
Branco e Neves (1998), após leitura e ponderações acerca das postulações
foucaultianas, fazem as seguintes observações sobre a abordagem histórica
proposta pela análise arqueológica e genealógica:
[...] partir dos “falsos objetos” e “acontecimentalizá-los”; reduzi-los a
singularidades que se dissolvem em uma multidão de proveniências
históricas e de emergências sociopolíticas. Toda singularidade remete, pois,
a uma multiplicidade causal, e as objetivações são raras, como diz, Paul
Veyne: seu caráter de necessidade aparente é um efeito a posteriori do
conjunto de práticas que as produziu. Tudo, enfim, poderia ser diferente, e
não há “necessidade” que não seja mera contingência objetivada. A análise
histórica busca, justamente, captar o aleatório que casualmente conduziu à
produção de um resultado específico, que, contudo, parece necessário.
(BRANCO; NEVES, 1998, p. 91-92).
Tendo como referência as postulações acima, que enfatizam a possibilidade
de as coisas serem diferentes do que são, talvez um dos ritos dessa orientação
teórica seja o de reafirmar a invenção de diferentes formas de ser sujeito. No caso
dos adolescentes autores de ato infracional, torna-se preponderante questionar e
desnaturalizar práticas sociais, profissionais e coletivas que produziram determinada
“subjetividade marginal”.
1.3. Minha trajetória profissional nas Unidades de Semiliberdade geridas pela
Secretaria de Estado e Defesa Social e pelos Salesianos
Em dezembro de 1999, a Secretaria da Justiça e Direitos Humanos de Minas
Gerais, atualmente Secretaria de Estado e Defesa Social (SEDS), através de sua
então secretária, Dra. Ângela Prata Pace, procurou a Inspetoria São João Bosco
(ISJB), Província Religiosa Salesiana, com o objetivo de propor-lhe a execução da
medida sócio-educativa de semiliberdade. Até então, essa medida era executada
diretamente pelo Estado. Após avaliações, os salesianos assumiram em agosto de
2000 o trabalho com adolescentes autores de ato infracional.
De acordo com o convênio firmado entre o Estado de Minas Gerais e a ISJB
coube aos salesianos administrar duas Unidades de Semiliberdade, uma localizada
em Belo Horizonte e outra em Contagem. Outra determinação contemplada no
convênio imputou aos salesianos a gestão do processo sócio-educativo e a
elaboração da proposta pedagógica para o atendimento aos adolescentes. a
43
SEDS responsabilizou-se por garantir a provisão dos recursos financeiros
necessários à administração das Unidades de Semiliberdade e à manutenção do
atendimento educacional e assistencial.
A ISJB deu início a seu trabalho na Unidade de Semiliberdade do bairro
Flamengo, em Contagem, no dia de agosto do ano 2000. Posteriormente, foi
aberta a Unidade de Semiliberdade do Bairro Ouro Preto.
Minha inserção profissional na Unidade de Semiliberdade ocorreu no ano
2000. Comecei a atuar como coordenadora da Unidade Ouro Preto, juntamente com
outra profissional, também formada em psicologia. Possuíamos a mesma hierarquia
no quadro funcional da ISJB, exercíamos a mesma função, tínhamos a mesma
formação, mas pensávamos o processo cio-educativo de forma distinta. Eu
executava os trabalhos seguindo uma linha mais participativa, enquanto ela optava
por uma forma de funcionamento, a meu ver, autoritária e centralizadora. O fato de
pensarmos e desenvolvermos o trabalho de maneira diferenciada gerava inúmeros
problemas, não com relação às atividades dos educadores, mas também com os
adolescentes. Além disso, essa outra coordenadora mantinha um relacionamento
afetivo com os educadores, reforçado com inúmeros convites feitos por ela ao grupo
de profissionais para saírem depois do expediente. Os encontros aconteciam
geralmente em bares próximos à Unidade. Essa relação era utilizada para
desqualificar e enfraquecer meu trabalho, que era, segundo ela, frágil. Minha
tentativa de fazer com que as pessoas pensassem, se envolvessem no processo
sócio-educativo e nas tomadas de decisão, independente de sua função,
vislumbrando a quebra da dicotomia fazer-pensar (os técnicos e o coordenador, em
lugar de destaque, pensavam os processos, e os demais somente o executavam)
estava relacionada, segundo ela, a uma insegurança de minha parte. Afirmava-se
como “durona”, chegando a dizer que não era homem por falta do órgão sexual
masculino. Outras questões também atravessavam nosso trabalho, fragmentando-o
ainda mais: o fato de ela de ter sido a única profissional a permanecer por longo
tempo no cargo de coordenador, cuja rotatividade era muito alta; a existência de
duas Unidades (a que atuávamos, “modelo”, e a outra, “patinho feio”, na fala dos
próprios profissionais); regime de trabalho de 12x36 horas, justificado pela direção
devido à necessidade de o coordenador permanecer o maior tempo possível nas
Unidades, o que, a meu ver, instaurou um movimento de vigilância e desqualificação
com relação aos outros profissionais, além do fato de os coordenadores não se
44
encontrarem e trabalharem, por uma semana, apenas com um grupo de
profissionais.
Essas dificuldades fizeram com que a direção (salesianos) optasse por
somente um coordenador para cada Unidade. Fui então coordenar a outra Unidade,
em Contagem, transferida para o bairro Santa Terezinha em dezembro de 2002. A
partir dessa transferência, todos os aspectos da relação entre as coordenadoras
tornaram-se mais evidentes. A tentativa de fragilizar meu trabalho foi mantida
através de mecanismos competitivos. Como era a coordenadora mais antiga e mais
conhecida da rede de atendimento às medidas sócio-educativas, ela retinha
informações e não as repassava para a Unidade de Contagem, o que resultava em
nossa ausência a eventos, veiculada como “incompetência” de minha parte. A
relação de competição entre as Unidades fez com que os adolescentes deixassem,
muitas vezes, de ser o foco do trabalho, o que pode ser compreendido como um dos
fatores que promovem a manutenção do nculo desse público com a criminalidade
e, conseqüentemente, a experimentação da morte prematura em decorrência de um
homicídio.
Acirrando ainda mais essa relação competitiva, a direção fazia de tudo para
elaborarmos um planejamento único para as duas Unidades, pois éramos “irmãs”
(esse era o termo utilizado). Minha estratégia foi manter um distanciamento para que
a equipe de Contagem pudesse ter clareza e desenvolver seu próprio trabalho,
reafirmando sua singularidade. Em muitos momentos, minha prática manteve-se
aprisionada a esta relação competitiva, e desvencilhar-me disso não foi fácil, mas
conseguimos construir um trabalho que, posteriormente, passou a ser reconhecido
por todos. Com a saída dessa coordenadora, por ter assumido outra função em uma
das obras salesianas, a psicóloga da Unidade que eu coordenava assumiu a
Unidade Ouro Preto, tornando possível a realização de um trabalho conjunto e o
reconhecimento de nossas singularidades. Apesar de “irmãs”, éramos, enfim,
unidades diferentes.
Quando comecei a atuar na Unidade de Semiliberdade, o trabalho de todos
os profissionais tinha como referencial o Estatuto da Criança e do Adolescente, a
Filosofia Salesiana e um Regimento Interno, cuja primeira edição foi elaborada em
1999 com a participação dos profissionais das Unidades, técnicos da
Superintendência de Atendimento e Reeducação do Menor Infrator (atualmente
Subsecretaria de Atendimento às Medidas Sócio-Educativas), cnicos do Juizado
45
da Infância e Juventude e da Promotoria da Infância e Juventude. Após revisão em
2001, foi publicada uma segunda edição naquele mesmo ano, contando com a
participação dos órgãos mencionados acima, dos profissionais das Unidades e dos
adolescentes que se encontravam em cumprimento de medida. O Regimento
caracteriza os objetivos e competências da Unidade, estabelece direitos e deveres
dos adolescentes, regulamenta práticas relacionadas aos adolescentes e à equipe
de educadores e descreve as funções de cada profissional. Nessa segunda edição,
a função que ocupei era denominada Coordenador de Plantão (eram dois
coordenadores, que se revezavam a cada dia). Atualmente, o Regimento encontra-
se em sua terceira edição, formalizada em 2005. Como as demais, sua construção
fundou-se em um espaço de discussão, com a participação direta de todos os
profissionais e indireta dos adolescentes. Cabe aos profissionais das Unidades o
zelo por seu cumprimento, regulamentando, através de normas internas, as
atividades dos adolescentes, bem como seus direitos, deveres e restrições. Tal
regulamentação, quando necessária, pode ser efetivada através das sanções.
Em sintonia com o Regimento Interno e com o Projeto Político-Pedagógico
das Unidades de Semiliberdade (INSPETORIA SÃO JOÃO BOSCO, 2003), a tarefa
de coordenar uma equipe de educadores sociais tem como objetivo principal
possibilitar aos adolescentes autores de ato infracional a construção de valores
humanos, éticos, estéticos e políticos, que potencializem ações que valorizem a
vida. Entretanto, as sanções propostas pelo Regimento Interno caso o adolescente
infrinja alguma norma estabelecida apóiam-se muito mais em aspectos
comportamentais, o que traz problemas, perdendo, em alguns momentos, a
implicação que o adolescente tem de fato com a medida e com sua própria vida.
Essa relação estabelecida com a medida pelo cumprimento das regras determinadas
pelo Regimento Interno pode não ser eficaz no que se refere a uma re-significação
subjetiva frente ao ato infracional cometido e à relação que os adolescentes
estabelecem com a criminalidade. Ao se envolverem com o tráfico, aprimoram e
desenvolvem determinadas “habilidades subjetivas” que o, de certa forma,
condição para que possam ocupar lugar de destaque nessa estrutura. Esse lugar é
transplantado para o espaço de cumprimento de medida, fazendo com que exerçam
certa liderança perante o grupo, adquirindo status. Essas “habilidades subjetivas”
devem ser entendidas a partir da noção da subjetividade enquanto produção. Não
devem ser consideradas como interioridade ou capacidade interna dos sujeitos, mas
46
como condição subjetiva, colocada em funcionamento pela conexão com processos
sociais, culturais, tecnológicos, dentre outros típicos do “mundo do crime”.
Entrevista realizada com um dos profissionais da semiliberdade mostra que a
posição privilegiada que um adolescente ocupa no tráfico de entorpecentes
possibilita maior acesso a bens de consumo – roupas, sapatos, cigarros, produtos de
higiene pessoal considerados melhores em relação aos demais do mercado. Além
disso, geralmente esses adolescentes têm nível de escolaridade mais alto e uma
visão crítica que lhes permite contestar e argumentar, revertendo deliberações em
favor próprio. Todas essas “habilidades” fazem com que assumam lugar de
destaque, liderança e respeito entre os demais.
É um adolescente que, pra poder lidar com a equipe, ele tem uma
capacidade de controle. Ele não é um adolescente impulsivo, agressivo. [...]
eu acho que isso também ajuda né, a ter essa condição, esse status dentro
da Unidade. Então junta o poder que ele tem na comunidade, com as
condições sócio-econômicas que ele vai ter, esses valores que ele traz pra
dentro da Unidade e essa capacidade, essa habilidade pessoal mesmo [...]
que acaba fortalecendo, favorecendo muito em alguns momentos.
(Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
22
.
Essas “habilidades” também são utilizadas pelos adolescentes se apropriar da
medida, revertendo-a em seu favor a partir de um cumprimento considerado
satisfatório.
[...] eu consigo visualizar alguns adolescentes que estão mais vinculados ao
tráfico de drogas e em termos assim de conseguir cumprir a medida no que
se refere a Regimento Interno, a relações, é um adolescente que tem mais
flexibilidade, é um adolescente que consegue meio que jogar com isso. [...]
É um cumprimento meio que de fachada. Que é um adolescente que não
desrespeita as regras, que não é flagrado em movimentos ou em situações
de desacato ou de transgressões muito graves, né, que tem esse poder da
argumentação. Então quando ele descumpre ou burla alguma norma,
geralmente através do próprio diálogo ele consegue se retratar com o outro
adolescente, com a equipe, com as normas, ele consegue então “cumprir a
medida de boa”, que é o que eles falam [...] é um adolescente que na
maioria das vezes não usa droga dentro da Unidade, que respeita os
horários, que faz as visitas, [...] que freqüenta escola, que tem uma
convivência bacana, mas que em termos de respeito mesmo, de se colocar
em trabalho ou a trabalho, [...] eu acho que em alguns momentos a coisa
fica mais no superficial. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32
anos)
23
.
Pode-se conjecturar que essas habilidades subjetivas que o adolescente
desenvolve ao se relacionar com o tráfico de drogas são fundamentais para sua
22
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
23
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
47
permanência nesse circuito e para sua sobrevivência. É preciso “jogar o jogo” para
permanecer vivo, jogo que pode ser caracterizado como “a arte de sobreviver em
situações adversas”. Essa hipótese deve ser considerada e vista como desafio por
parte dos profissionais envolvidos no trabalho sócio-educativo, pensando e
efetivando ações que vão de encontro à realidade vivenciada por alguns
adolescentes, sobretudo os envolvidos no tráfico e que não se põem a trabalhar “a
favor da vida”. Essa empreitada torna-se possível desde que se considere a
subjetividade enquanto processualidade. Nesse sentido, implementar ações sócio-
educativas que operem o desmanche da identidade tráfico-consumo-infrações-
benefícios pode ser uma alternativa para a desvinculação dos adolescentes do
tráfico de drogas.
Quanto à função de coordenação, são necessárias ainda algumas
problematizações. Da maneira como está instituído na semiliberdade, esse cargo
articula-se ao monitoramento de ações cio-educativas, acompanhamento e
formação dos educadores, atrelado de forma indissociável ao aspecto da autoridade.
A coordenação tem a competência de zelar pelo cumprimento do Regimento Interno
das Unidades de Semiliberdade, regulamentando as atividades dos adolescentes,
bem como seus direitos, deveres e restrições. Neste ponto, faz-se necessário
destacar o risco de engessamento de uma prática, estabelecendo-se, de acordo com
Baremblitt (1998), uma divisão entre função e funcionamento, inerente à oposição
entre processos revolucionários, instituintes, e processos geradores de exploração,
dominação e mistificação. No desenvolvimento das práticas sócio-profissionais, a
relativização e o questionamento de seus efeitos podem contribuir para a
transformação de uma realidade. No caso específico da Unidade de Semiliberdade,
esse entendimento poderá auxiliar a desenvolver práticas sócio-educativas que se
coloquem a serviço da construção de uma sociedade justa. Assim, relativizar a
função de coordenação é abrir-se para seu funcionamento, colocando em cheque a
reprodução e a perpetuação de ações autoritárias que desqualificam arranjos cio-
institucionais distantes do hegemônico.
Nessa linha de pensamento, a tensa relação entre o jurídico e o pedagógico
faz-se presente. Atender estritamente o que o Regimento ou a Lei determina é
fechar-se no instituído, excluindo processos inventivos e colocando-se a serviço da
efetivação de ações que produzem ou reforçam mecanismos de exclusão. Por outro
lado, ignorar essa dimensão é reforçar ações e atitudes em que os limites não são
48
considerados e ou reconhecidos. Enquanto educadores, mais do que considerar as
duas dimensões, faz-se necessário o desenvolvimento de uma prática sócio-
educativa que promova o envolvimento e a participação dos adolescentes. O
conhecimento e a construção conjunta das normas tornam-se preponderantes para
o estabelecimento de uma relação com o mundo, onde o outro passa a ser
considerado como sujeito.
As modificações no Regimento Interno que culminaram em uma terceira
edição refletem um pensamento crítico em relação às práticas desenvolvidas pelos
profissionais inseridos na semiliberdade, bem como uma invenção cotidiana, a partir
das mais diversas situações vivenciadas pelos adolescentes. A segunda edição
apresentava uma centralização na figura do coordenador, decorrente do desejo da
direção de que a coordenação estivesse o maior tempo possível na Unidade,
monitorando as ações educativas. Além disso, esse lugar vinha sendo ocupado,
como assinalado anteriormente, por uma profissional que monopolizava as ações e
as “atenções”, em espaços posteriormente ocupados por outros profissionais, com
suas especificidades. Essas duas questões estão refletidas nos seguintes incisos do
artigo 27 da segunda edição do Regimento Interno, relacionado às competências do
coordenador de plantão:
“VIII - regulamentar, através de normas internas, as atividades dos
adolescentes, bem como seus direitos, deveres e restrições, aplicando
quando necessário as sanções previstas (INSPETORIA SÃO JOAO
BOSCO, 2001, p. 24). É importante frisar que somente o coordenador
aplicava as restrições previstas no Regimento Interno. Os educadores
deveriam “canetar” expressão usada pelos adolescentes –, ou seja,
marcar um “X” na infração cometida pelo adolescente em formulário
próprio;
“XI - propiciar visitas das famílias em dias e horários previamente
estabelecidos” (INSPETORIA SÃO JOÃO BOSCO, 2001, p. 24). Na
organização do trabalho das Unidades, o profissional que de fato
acompanha de forma mais próxima as famílias dos adolescentes é a
assistente social;
“XXIIII - conduzir semanalmente a avaliação dos adolescentes”
(INSPETORIA SÃO JOÃO BOSCO, 2001, p. 25). Esse processo de
avaliação acontecia e ainda acontece semanalmente, mas a
49
coordenadora realizava-o sozinha, tendo como base o formulário citado
acima;
“XXVIII - participar das reuniões de estudo de caso junto ao Juizado da
Infância e Juventude, quando julgar necessário, considerando
sobretudo o dia-a-dia da Unidade” (INSPETORIA SÃO JOÃO BOSCO,
2001, p. 25). A coordenadora que trabalhava na Unidade Ouro Preto,
tendo como base esse inciso, fazia questão de participar de todas as
discussões no Juizado, monopolizando a palavra. De certa forma,
minha presença nessas reuniões acabava sendo cobrada pela direção,
mesmo que de forma implícita.
Como observado, as atividades dos adolescentes e a aplicação das restrições
deviam ser regulamentadas pela figura do coordenador. Entretanto, as práticas
instauraram processos instituintes, a partir da organização de Assembléias em que
participavam todos os atores do processo sócio-educativo. Além disso, a avaliação
semanal dos adolescentes começou a ter como base uma discussão prévia
realizada com os profissionais e, com isso, toda a equipe passou a se
responsabilizar pela aplicação das restrições. Com essa nova dinâmica do trabalho,
os atendimentos aos adolescentes passaram a acontecer não de lugares
instituídos pela psicologia, serviço social, pedagogia, mas a partir das relações e
vínculos estabelecidos entre cada profissional e cada adolescente, independente da
formação acadêmica ou hierarquia do quadro funcional. A necessidade de marcar e
deixar expresso no Regimento que cabe ao coordenador atender o adolescente
evidencia a monopolização e a centralização mencionadas anteriormente.
Em suma, na passagem da segunda para a terceira edição do Regimento
Interno, a autoridade no processo sócio-educativo fica mais fluida, exercida por
vários profissionais em momentos específicos, o que produz um “enxugamento” na
função da coordenação, que enriqueceu o trabalho sócio-educativo.
O lugar da coordenação apresentava-se também atravessado e
transversalizado pelo fato de ser ocupado por uma mulher (os cargos de chefia eram
ocupados quase sempre por mulheres; os dois homens que ocupavam a direção
tinham a sensibilidade como característica, o que era ressaltado por todos, apesar
da outra coordenadora fazer questão de ressaltar aspectos “masculinos” de sua
forma de ser). Além disso, ressalta-se o fato de a coordenadora ser uma das mais
50
jovens da equipe (fato recorrente nas falas dos profissionais), ter nível superior e ser
natural do Rio de Janeiro.
Para Baremblitt (1998) o conceito de atravessamento vincula-se à rede social
do instituído, cuja principal função é a reprodução do sistema. Cada uma das
entidades que compõem a rede social opera na outra, pela outra e para outra, desde
a outra. Esse entrelaçamento opera exploração, dominação e mistificação. Os
atravessamentos listados acima denunciam formas instituídas de gerenciamento,
que se articulam a contextos de relações de gênero, que vinculam “ser mulher” a
determinadas características subjetivas como sensibilidade, afetividade, o que a
desqualificariam para um cargo de chefia, aspecto reforçado pela outra profissional
que também ocupava este cargo.
Em minha prática profissional na Unidade de Semiliberdade, procurei
desenvolver ações voltadas para a transmutação desses atravessamentos em
transversalidades, buscando construir um trabalho sócio-educativo pautado na ética
e em um ideal democrático. Para a Análise Institucional, “a transversalidade
veiculada pelas linhas de fuga do desejo e da produção é uma dimensão do devir
que não se reduz nem à ordem hierárquica da verticalidade nem a ordem das
horizontalidades nas organizações” (BAREMBLITT, 1998, p.195). Essa noção
sugere que o conhecimento atravessa as estruturas, rompendo hierarquias de
conteúdos, disciplinas, instituições e organizações. Isso implica em questões
organizacionais de como as práticas se estruturam, e em questões políticas de
desconcentração de poder. Na transversalidade, todos os conhecimentos, idéias e
ações são importantes e o são qualificadas a partir de referenciais etários, raciais,
de gênero ou origem. Algumas dessas ações, conhecimentos e idéias podem ser
mais complexos do que outras.
Acredito que, em alguns momentos, a transmutação dos atravessamentos em
transversalidades concretizou-se, o que pode ter facilitado, para os adolescentes,
uma apropriação de suas vidas de forma mais responsável, por meio de um
questionamento em relação a suas vinculações com a criminalidade.
51
2. ADOLESCÊNCIA E CRIMINALIDADE
2.1. Adolescência: algumas reflexões
As categorias de infância e adolescência, tal como conhecemos hoje,
inexistiam na Idade Média. Para aquela sociedade, a infância era vista como a fase
em que a criança se encontrava totalmente dependente do adulto. Tão logo saísse
dessa fragilidade e alcançasse algum desembaraço físico, era misturada aos adultos
e passava a compartilhar de seus trabalhos e jogos (ARIÈS, 1991). A socialização
da criança, ou seja, o processo de transmissão dos valores e conhecimentos,
processava-se no cotidiano, pela convivência diária entre crianças e adultos.
Contudo, existia em relação à criança um sentimento superficial, que Ariès (1981)
denomina “paparicação”. Este sentimento
[...] era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida, enquanto
ela era ainda uma criancinha engraçadinha. As pessoas se divertiam com a
criança pequena como com um animalzinho, um macaquinho impudico. Se
ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar
desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois uma outra
criança logo a substituiria. A criança o chegava a sair de uma espécie de
anonimato. (ARIÈS, 1981, p.11).
Esse primeiro período era superado quando a criança conseguia passar pelos
primeiros perigos e sobreviver. Acontecia de modo comum que ela fosse viver em
outra casa, com outra família. O sentimento conjugal e filial não era necessário nem
à existência nem ao equilíbrio da família.
No final século XIII, contudo, uma mudança significativa vem alterar esse
quadro. A criança não mais ficará misturada aos adultos, não mais aprenderá a vida
em contato com eles, sendo destinado a ela um lugar específico: a escola,
responsável não pelo ensino, mas sobretudo pela vigilância e o enquadramento
da população infantil aos modelos da classe dominante.
A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada
dos adultos numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo.
Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou um longo processo de
enclausuramento das crianças, como dos loucos, dos pobres, das
52
prostitutas, etc. que se estenderia até nossos dias, e ao qual se o nome
de escolarização. (ARIÈS, 1981, p.11)
No início do século XIX, período marcado pela constituição da sociedade
moderna, a construção de uma série de discursos – médico, psicológico, sociológico,
religioso, político, pedagógico, jurídico e social fez com que a adolescência
adquirisse estatuto de fase intermediária entre infância e vida adulta. Tendo como
referência Foucault (1995; 1998) podemos afirmar que esses discursos promoveram
o esquadrinhamento e a qualificação do corpo adolescente através da constituição
de um saber acerca dos processos físicos, psíquicos, sociais e morais dessa faixa
etária, constituindo uma identidade própria.
Em consonância com inúmeros estudos históricos e sociológicos, a
emergência da adolescência, seja como acontecimento no interior dos saberes,
inclusive científicos, seja como acontecimento que modifica as relações
intersubjetivas familiares, relaciona-se a complexos processos de mudança de
ordem social, na estrutura da família, operacionalizados, sobretudo, pelas novas
formas de inserção de seus membros no mundo do trabalho urbano industrial. Outro
fator relevante na instituição da adolescência foi a progressiva universalização da
escola básica, especialmente a pública, incitando a criação de novos padrões de
necessidades sociais (ADORNO; BORDINI; LIMA, 1999).
A distinção entre crianças, adolescentes e adultos proporcionada por esses
acontecimentos fez com que a adolescência começasse a ser percebida como
período diferenciado, marcado pelo desenvolvimento de características físicas,
subjetivas e sociais específicas, tornado-se um fenômeno universal e natural.
A identidade da criança e do adolescente é construída hoje numa cultura
caracterizada pela existência de uma indústria da informação, de bens
culturais, de lazer e de consumo onde a ênfase está no presente, na
velocidade, no cotidiano, no aqui e no agora, e na busca do prazer imediato.
A subjetividade é, então, construída no comigo mesmo, na relação com o
outro e num tempo e num espaço social específicos. (SALLES, 2005, p.35).
A reflexão sobre a temática da adolescência traz consigo a necessidade de se
problematizar processos de subjetivação atuais marcados por determinados ideais:
escolha, êxito, auto-descoberta, auto-realização. Esses ideais se articulam a uma
concepção de subjetividade amparada pela noção de um sujeito auto-centrado,
responsável por suas escolhas pessoais. Na construção e efetivação de um projeto
de vida, os sujeitos tornam-se os personagens principais em relação a seus
53
sucessos e fracassos. Desse modo, podemos afirmar que, atualmente, a
adolescência se configura como uma etapa de vida que suscita interesse,
caracterizada, sobretudo, por um trânsito maior em relação aos códigos rígidos do
moralmente louvável e do moralmente condenável (LYRA et al, 2002). Esse ideal
pode ser visualizado nas propagandas dirigidas aos adolescentes e jovens e
divulgadas pelo mass media, a partir de temas ligados a cultura e comportamento:
ser jovem é liberdade, vigor, ousadia (ABRAMO, 1997).
Existem explicações multifacetadas sobre a natureza, a gênese e a função da
adolescência. Cronologicamente, ela é entendida como o período posterior à
infância e anterior à vida adulta. No campo dos sentidos, pode ser pensada para
além de seu componente orgânico, constituindo-se como experiência subjetiva.
Porém, na sociedade contemporânea essa fase alcançou status de realidade,
experiência que não pode ser evitada nem prolongada indefinidamente.
A adolescência é percebida como uma cena crucial na construção das
narrativas pessoais. Naturaliza-se a adolescência como um período
essencial para o crescimento do indivíduo e para alguns sociólogos, de
linha mais evolucionista, essencial para o desenvolvimento da sociedade,
na medida em que os jovens constituiriam focos de mudança, de alterações
no status quo. (LYRA et al, 2002).
Cabe ressaltar que os processos subjetivos que constituem o adolescente
devem ser pensados acoplados aos processos sociais, políticos e econômicos
característicos de uma sociedade capitalista, consumista e desigual. Em um país
como o Brasil, marcado por desigualdades, diferentes formas de ser adolescente se
instituem, sendo, porém, classificadas e tendo como parâmetro um modelo
idealizado, universal. Desse modo, podemos afirmar a existência de, no mínimo,
duas “adolescências”: a pobre, que vive nas ruas, excluída das escolas, explorada
no mercado de trabalho formal e informal, sem acesso às políticas públicas e aos
modernos equipamentos de diversão, constantemente assediada e recrutada pelo
narcotráfico e confinada em alguma instituição de exclusão como a cadeia e
presídios; e a constituída pelos boys” e patis”
24
, que tem acesso a escolas de boa
qualidade, bens de consumo e lazer, ao mercado de trabalho e que é valorizada
como o “futuro do País”. Essas afirmações não devem ser tomadas de forma
polarizada: para além das diferenças, os processos subjetivos são múltiplos, e
24
Termos usados pelos adolescentes admitidos na semiliberdade para dizer de meninas e meninos
oriundos das classes média e alta.
54
pertencer a uma classe ou outra não deve ser entendido como condição primordial
para o cometimento ou não de delitos.
Atrelado a essa diferenciação, promove-se uma identificação da juventude
abastada a vivências associadas a descobertas, experimentação, imediatismo, e
uma associação da juventude oriunda das favelas e de regiões periféricas a
sentimentos de medo, horror, sofrimento e violência. Geralmente, esses sentimentos
encontram-se atrelados a uma visão dessa juventude como problema social, o que
acaba sendo confirmado pela mídia e por especialistas que identificam essa fase da
vida à crise. Lyra e outros pesquisadores que estudam, entre outros temas, relações
de gênero e masculinidades (2002) afirmam que muitas políticas públicas que têm
como alvos adolescentes e jovens parecem se fundamentar nessa idéia de crise,
percebendo a adolescência como ameaça. Tal construção apóia-se na concepção
de que esse grupo vivencia situações de risco que podem ser internas (crise
identitária) ou externas (violência). De maneira geral, é comum encontrar no ideário
contemporâneo associações entre adolescência e desordem, irresponsabilidade,
problema social que deveria ser estudado e resolvido. Com este enfoque, situações
vivenciadas pela população infanto-juvenil adquirem status de “risco”, o que pode
ser identificado pelas expressões “gravidez de risco”, risco de contrair HIV”, “risco
de se envolver com más companhias”, “risco de se tornar dependente de drogas
ilícitas”, “risco de perpetrar ações violentas”. O risco generalizado parece, assim,
definir e circunscrever negativamente esse período da vida possibilitando a
construção de expressões absurdas como a própria prevenção da adolescência”
(LYRA; MEDRADO, 1999, p. 240).
Vários profissionais que atuam na rede de atendimento destinada ao
adolescente em conflito com a lei trabalham tendo como referencial esse enfoque,
vendo os adolescentes como um “problema em potencial”, principalmente se suas
vivências estiverem atreladas à “desestrutura familiar”: uma configuração familiar
marcada por violência, exploração e ausência de direitos passa a ser sinônimo do
envolvimento desses sujeitos com a criminalidade.
Olha, eu acho que a maioria deles que estão aqui, a mesma coisa: questão
familiar mesmo. Descuido, . E envolvimento com droga, seja no tráfico,
seja no uso. É sempre isso aí. [...] De desestrutura familiar mesmo. A
mesmo os meninos que caem aqui, que vêm cumprir medida aqui, melhor
55
dizendo, que tem uma estrutura familiar melhor, o processo dele é muito
melhor. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 33 anos)
25
.
O trabalho desenvolvido junto aos adolescentes em cumprimento da medida de
semiliberdade torna evidente que os que mantêm vínculos significativos com outras
pessoas, de suas famílias de origem ou não, têm mais chance de cumprir a medida
imposta e desvencilhar-se da criminalidade. Para além da idéia de “desestrutura”,
pode-se conjecturar que o enfraquecimento dos laços afetivos e sociais engendrados
pela modernidade líquida (BAUMAN, 2001) pode ser decisivo no processo de
envolvimento com a vida do crime. Contudo, muitas vezes as próprias famílias ou
pessoas que são referências para os adolescentes encontram-se dilaceradas, não
devido às péssimas condições de vida, mas também no aspecto subjetivo, vivenciando
cotidianamente “situações de morte”, como desemprego ou subemprego, falta de
saneamento básico, ausência de políticas públicas nas áreas de educação e saúde,
submissão às regras do tráfico e morte prematura em função dessa vinculação.
A efetivação de programas que resgatem a positividade juvenil é apresentada
por Lyra et al (2002) como essenciais para a desnaturalização do processo de
identificação da adolescência a noções de crise e irresponsabilidade.
Ao se pensar em qualquer programa de ação direcionado a essa população,
cabe investigar o modo como experimentam e interpretam essas situações
problemáticas (ABRAMO, 1997), deixando claro que fazê-lo não é somente
criar um espaço-simulacro no qual a fala do adolescente e do profissional
reifiquem o que já se quer dizer ao primeiro, sendo, portanto, mais um
espaço de reprodução social, e não de construção de um espaço de
diálogo, condição sine qua non para o protagonismo juvenil. (LYRA et al,
2002, p. 12-13).
Segundo esses autores, é de fundamental importância a instauração de
movimentos sociais em que esses jovens tenham lugar e voz. Entretanto, nessa
empreitada, muitos obstáculos ainda devem ser superados:
Para falarmos de uma positividade do adolescente, cabe-nos caminhar na
direção de uma tendência oposta vinda dos próprios jovens que,
recentemente, têm-se organizado em fóruns especiais; seja em lutas contra
o status quo, seja em favor de ideais conservadores. Movimento esse
endossado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e de todos os
fóruns de discussão feitos em torno dele. Verifica-se a existência de
movimentos feitos por jovens objetivando mudanças mais amplas, em
contraponto à irresponsabilização atribuída ao adolescente. Entretanto,
estes movimentos, como assinala Melucci (1997), aparecem dissolvidos em
meio à combinação de diversos outros fatores – pobreza, desemprego,
25
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
56
imigração –, não havendo ainda um espaço para que as vozes juvenis
sejam ouvidas. (LYRA et al, 2002, p. 3).
Um princípio ético orientado pelo respeito aos adolescentes e jovens,
expresso pela criação de um espaço de acolhimento, exercício da autonomia e
responsabilidade, deve balizar as ações dos programas destinados a essa
população, que permitam que esses sujeitos problematizem suas próprias
adolescências, ressignificando-as na produção de novos modos de subjetivação.
Esse pode ser o começo de uma série de mudanças e, talvez, o ponto de partida
para oferecer a adolescentes e jovens uma atuação efetiva na solução dos
problemas que vivenciam.
2.2. Algumas palavras sobre a questão da violência envolvendo adolescentes
Como apresentado anteriormente, além da exaltação da juventude,
atualmente uma identificação da adolescência a situações de medo, horror e
violência. As práticas de violência envolvendo a juventude poderão ser mais bem
compreendidas se considerarmos as postulações de Elias (1990; 1993) sobre os
atos violentos. Esses atos configuram-se como linguagem e norma social para
algumas categorias, em oposição às denominadas normas civilizadas, marcadas
pelo autocontrole e pelo controle social institucionalizado.
Elias (1990) menciona a existência de um processo civilizatório como uma
progressiva evolução almejando um autocontrole das práticas de violência, cuja
formulação mais radical foi implementada por Foucault, ao ressaltar a passagem da
punição para a vigilância em múltiplas instituições sociais. No entanto, a interação
social passou a ser caracterizada por estilos de sociabilidade, invertendo as
expectativas civilizatórias. No momento atual, em que a sociedade vivencia um
processo de mundialização, efetiva-se uma pluralidade de normas sociais e
diferentes formas de violência, relacionadas a variados processos de exclusão
econômica e social. Santos (2002) localiza essa mundialização como o primeiro
período do culo XXI, que tem como características a globalização dos processos
econômicos e de novas questões sociais, que se manifestam de maneira simultânea
e com distintas especificidades nas diferentes sociedades. Esse quadro está
57
relacionado aos processos de ruptura vivenciados pelas instituições socializadoras
famílias, escolas, religiões e pelo sistema de justiça penal polícias, tribunais,
manicômios, entre outros –, todos tornados ineficazes em relação ao controle social.
(SANTOS, 2007). Esse processo de enfraquecimento das instituições coaduna-se às
postulações de Castel (1998): segundo ele, as práticas de violência constituem
quebra do contrato social e dos laços sociais, gerando fenômenos de “desfiliação” e
ruptura nas relações de alteridade, dilacerando o vínculo entre o eu e o outro.
A compreensão de Santos (2007) acerca das relações sociais orientadas pela
violência ampara-se nas contribuições de Héritier:
Denominamos violência toda coerção de natureza física ou psíquica
suscetível de provocar terror, o deslocamento, a tristeza, o sofrimento, ou a
morte de um ser vivo; todo ato de instrução que tenha por efeito, voluntário
ou involuntário a usurpação do outro, o dano ou a destruição dos objetos
inanimados. [...] trata-se de um modo de expressão e de ação visando
satisfazer desejos, impondo seu poder, sua vontade, duas idéias a outro.
(HÉRITIER apud SANTOS, 2007, p. 18).
Santos (2007) adota também como referência as contribuições de Maturana,
objetivando entender melhor a violência enquanto relação social:
A violência é um modo de conviver, um estilo relacional que surge e se
estabiliza em uma rede de conversas que torna possível e mantém o
emotivo que a constituí, na qual as condutas violentas são vividas como
algo natural que não se vê. [...] a violência e a agressão são modos de
relação próprios de um espaço psíquico que valida a negação do outro
diante de qualquer desacordo desde a autoridade, a razão ou a força.
(MATURANA apud SANTOS, 2007, p. 83-85)
Subjacente a todas as diferentes formas de violência, percebe-se como
marco orientador da lógica da coerção social, como efetividade ou virtualidade
sempre lembrada ou como preceito operatório das relações o exercício da
violência física. Dessa forma, podemos identificar o recurso à força e o uso da
coerção física e simbólica como parte constitutiva das relações sociais de violência:
o que caracterizaria especificamente a violência seria “o intento de irrupção e de
forçar a vontade, o desejo ou a intenção do outro” (ECHEGARAY; BORGANIA apud
SANTOS, 2007, p. 136). A violência é sempre precedente ou legitimada por uma
violência simbólica, exercida tendo como referência a subjetividade dos agentes
sociais envolvidos na relação.
A violência simbólica impõe uma coerção que se institui por intermédio do
reconhecimento extorquido que o dominado não pode deixar de outorgar ao
dominante quando somente dispõe, para pensá-lo e para pensar a si
58
mesmo, dos instrumentos de conhecimento que tem em comum com o
dominante e que constituem a forma incorporada da relação de dominação.
(BOURDIEU, 1990, p. 10).
A partir do entendimento da violência como forma de sociabilidade, na qual se
estabelece a afirmação de poderes legitimados por uma determinada ordem social,
instaura-se a possibilidade de controle social. A violência constitui-se como um
dispositivo de controle aberto e contínuo. A noção de coerção ou força presume um
dano que se produz em outro indivíduo ou grupo social, independente de classe,
categoria social, gênero ou etnia. Podemos estender essa argumentação às
relações estabelecidas entre indivíduos e/ou grupos: a violência social
contemporânea configura-se nas relações de força, coerção e dano em relação ao
outro, enquanto atos de excesso que podem ser encontrados nas relações de poder
– seja no nível macro, do Estado, seja no nível micro, entre os grupos sociais.
A violência seria a relação social de excesso de poder que impede o
reconhecimento do outro indivíduo, classe, gênero ou raça mediante o
uso da força ou da coerção, provocando algum tipo de dano, um
dilaceramento de sua cidadania, e configurando o oposto das possibilidades
[do ideal] da sociedade democrática contemporânea. (SANTOS, 2007,
p.20).
Além de a violência ser parte integrante das relações que caracterizam
determinados grupos sociais em nosso País, Santos (2007) afirma que, no Brasil,
podemos encontrar de forma instituída quatro tipos de violência: do Estado, contra o
Estado, difusa e simbólica. A violência do Estado deve ser entendida como a que
envolve diferentes nações, conflitos internacionais e conflitos internos – Estado-
nação –, como os que dizem respeito à polícia. A violência contra o Estado, por sua
vez, são todas as lutas empreendidas com o poder do Estado. a violência difusa
pode ser classificada em cinco grupos: criminal, micro-política, das instituições totais,
no campo e ecológica. Essa classificação esclarece a existência de diferentes tipos
de violência, relacionadas a contextos sociais, econômicos, políticos e subjetivos
específicos.
No acompanhamento de adolescentes em cumprimento da medida de
semiliberdade no período entre 2000 e 2005, foi possível perceber que as relações
que estabelecem com a criminalidade podem ser compreendidas a partir das
postulações de Santos (2007). São relações orientadas pela lógica da violência,
forma de sociabilidade que marca sua convivência com os outros sujeitos, podendo
ser observada nos conflitos existentes nas relações entre os adolescentes e entre
59
eles e a equipe de profissionais que compõe o quadro funcional do programa.
Qualquer tipo de desavença, diferenças de posicionamentos em relação a um tema,
opiniões em relação à escolha de um programa de televisão podem se transformar
em brigas, ameaças e até em morte. Da mesma forma, diante de negativas da
equipe de profissionais frente a uma solicitação, como sair da Unidade, por exemplo,
podem acontecer conflitos rios. É comum, nesses momentos, os adolescentes se
unirem e se posicionarem como adversários dos profissionais. Lideranças aparecem
e, com elas, a necessidade de mostrar quem é o mais forte e o mais viril.
Na interface juventude/violência, pode-se afirmar que a primeira teoria que se
preocupou em esclarecer o envolvimento de adolescentes e jovens em atividades
criminosas foi a da desorganização social (ZALUAR, 2004). Em sua obra “Integração
perversa: pobreza e tráfico de drogas”, Zaluar (2004) informa que os primeiros
estudos sistemáticos sobre grupos de jovens que se envolveram em conflitos
violentos foram realizados pela Escola de Chicago nos anos 1920. Esses conflitos
juvenis tinham como característica a demarcação de territórios baseada em
referenciais étnicos: italianos, judeus, irlandeses, negros, entre outros. Cabe
esclarecer que a expressão “Escola de Chicago” relaciona-se a uma rie de
escolas e correntes de pensamento de diferentes áreas e épocas, implementadas na
cidade norte-americana de Chicago. Os estudos sociológicos desenvolvidos por
essa Escola tinham como temática os centros urbanos, pela primeira vez
pesquisados etnograficamente, em especial aqueles vinculados à violência. Zaluar
(2004), a partir dos estudos realizados por Tharsher e Wirth, explica que, para a
Escola de Chicago, a violência era um “defeito ocorrido no processo de
socialização, disfunção que deveria ter medidas sociopolíticas corretivas. Esses
estudos produziram uma teorização que explicava a violência como decorrente da
imigração ou migração recente para determinadas áreas da cidade, marcadas pela
pobreza e decadência. Concomitantemente a esses processos que produziram uma
desorganização social, a desvalorização de certos costumes e tradições teria
deixado de influenciar e regular comportamentos, favorecendo crises morais,
familiares e sociais, contribuindo para o aumento da criminalidade juvenil. Em
consonância com essas postulações, Thrasher chamava essas áreas da cidade que
tinham como característica a pobreza e a decadência de “zonas de transição”,
“intersticiais” ou “cinturões de pobreza”, onde jovens marginalizados poderiam
ascender socialmente.
60
Zaluar (2004) informa que a idéia de crise e desorganização social que
fundamentou estudos sobre a violência envolvendo jovens foi alvo de muitas críticas,
devido a seu compromisso com postulações teóricas do Funcionalismo, com um
ideal de ordem e uma forma homogênea de organização.
Na cada de 60, quando novamente o crime se apresentou como uma das
mais sérias e graves questões públicas enfrentadas pela sociedade americana,
surgiram teorias para explicar o fenômeno da violência: a teoria da frustração
elaborada por Merton em 1965 e a teoria do rótulo desenvolvida por Matza em 1969
são algumas delas (ZALUAR, 2004). Para Merton, haveria uma lacuna entre as
aspirações de todo cidadão norte-americano que objetivava enriquecer e ascender
socialmente e as oportunidades reais dadas aos jovens pobres pertencentes à
segunda geração de imigrantes, que haviam incorporado os valores da sociedade
estadunidense. Contrariamente a essa idéia, Matza elegeu como objeto de estudo o
processo de rotulação da juventude oriunda dos guetos ou bairros pobres, tendo
como alvo os jovens de etnias inferiorizadas ou pertencentes a camadas pobres,
nomeados “delinqüentes”. Sua argumentação baseia-se no conceito de drift (estar à
deriva): esses jovens não estabeleceriam necessariamente uma vinculação com a
criminalidade, estando apenas vivendo os conflitos próprios de sua idade. O ponto
de destaque dessa postulação é a concepção de que as organizações juvenis não
existem independentemente do social, proliferando ou decaindo de forma articulada
a esse contexto, em uma trama de interações simbólicas entre os jovens que
compõem essas organizações e os representantes da lei e da ordem.
Essas teorias receberam críticas devido a seu vínculo com o positivismo, que
transformava as pessoas em objetos e seus comportamentos e atitudes em
fatalidade ou determinação. Tal postulação dificultava o entendimento de que os
sujeitos têm participação ativa em suas escolhas e ações, independentemente do
que vivenciam. Fato notório é que essas teorias foram transplantadas para outras
realidades sociais, como se não houvesse diferença entre as organizações juvenis e
as quadrilhas, galeras, turmas ou bandos encontrados em outras nações.
Vários países com realidade sócio-econômica nem tão marcada pela
desigualdade social enfrentam o problema da violência. Suas políticas sociais
governamentais não conseguiram assegurar os direitos sociais fundamentais para
grande parcela da população urbana e rural, fazendo com que os efeitos dessa
conjuntura recaiam preferencialmente sobre crianças e jovens. Adorno, Bordini e
61
Lima (1999) informam que vários estudos ratificam o envolvimento infanto-juvenil em
atos marcados pela violência, como o de Araújo, realizado em 1996; o de Faria,
realizado em 1992; o de Hoffman, também realizado em 1992, e o de Singer,
elaborado em 1996. Mesmo em sociedades em que os programas sociais atuam de
forma mais efetiva, o que pode ser verificado pelos elevados índices de
desenvolvimento humano, condições e qualidade de vida, a preocupação com o
problema da criminalidade não é recente. Além disso, constatam-se semelhanças na
forma como o problema é percebido e enfocado atualmente pela sociedade
brasileira. Desde a segunda metade do século XIX, países como os Estados Unidos,
o Canadá e, especialmente, a França e a Inglaterra têm enfrentado situações
semelhantes à do Brasil e de outros países em que as políticas públicas ainda não
se efetivaram. Essa conjuntura tem favorecido percepções relacionadas à
adolescência vista como problema, gerando preocupações e inquietações sociais.
Por outro lado, enfoca-se o adolescente como objeto de atenção especial e
especializada, com ações que operam a restrição de suas horas de trabalho fabril; a
regulamentação da educação compulsória; o desenvolvimento de programas
próprios de lazer e ocupação do tempo livre, ao que tudo indica, raiz primária das
chamadas culturas juvenis. Nesse cenário, o adolescente impõe-se como ser
autônomo, especialmente nos grandes centros urbanos, percebido como portador de
um querer que precisa ser respeitado nos mais diferentes aspectos da vida pessoal:
escolha profissional, vestuário, consumo, lazer, iniciação e atividade sexual.
Entretanto, essa mesma autonomia é vista como fonte de riscos, em que a violência
e o conseqüente envolvimento com a criminalidade são como problemas centrais.
A principal diferença entre o Brasil e os países europeus com controle
rigoroso de armas e menor envolvimento de grupos juvenis com o crime organizado
está na junção, em território brasileiro, do acesso cil às armas de fogo e a
participação do crime organizado na vida política, social e econômica do país. Feitas
estas considerações, não se pode negar que a problemática de jovens evolvidos
com a criminalidade ocupa em nosso País destaque cada vez maior nas páginas
policiais. Aumenta o número de adolescentes que invadem o espaço público com
práticas de mendicância, pequenos furtos, assaltos, homicídios, seqüestros, entre
outros. Alguns deles são jovens recrutados e explorados pelo mercado de trabalho
ou pelo narcotráfico, em que matar ou morrer são uma peça a mais da engrenagem
da desigualdade social.
62
Tendo com base o acompanhamento de adolescentes em medida de
semiliberdade, pode-se afirmar que a questão da violência em Belo Horizonte parece
estar articulada a processos de desigualdade social, tendo como características
famílias em estado de pobreza ou miséria; desnutrição e alto índice de mortalidade
infantil; exploração do trabalho infantil; aumento do consumo de drogas entre os
adolescentes; alto índice de gravidez na adolescência; aumento do desemprego;
inexistência ou deficiência de equipamentos e espaços públicos de cultura, esporte e
lazer; baixa cobertura de programas sociais destinados à infância e juventude;
processos de subjetivação marcados pelo consumo e pelo individualismo; laços
sociais pouco sólidos; ideais de masculinidade e virilidade, entre outras. Além disso,
a desigualdade social de Belo Horizonte parece estar associada a processos cio-
econômicos e subjetivos atrelados à história da cidade, explicitados mais adiante
neste trabalho.
Os adolescentes que chegam às Unidades de Semiliberdade estudadas nesta
pesquisa trazem em sua história as marcas dessa desigualdade. São, em sua
maioria, oriundos de famílias muito pobres, numerosas e geralmente chefiadas por
mulheres. Residem nas regiões mais periféricas e menos favorecidas em termos de
equipamentos sociais, sendo a maioria negra ou descendente dessa etnia. Têm
nível de escolaridade baixa ou são analfabetos. Muitos estão envolvidos com o
tráfico de drogas e justificam esse envolvimento com a necessidade de
sobrevivência. Devida à baixa escolaridade, sentem dificuldade de ingressar e
permanecer no mundo do trabalho. Esses dados são corroborados por Priuli e
Moraes (2006).
Estudos têm mostrado que as mortes por causas externas, muitas vezes
decorrentes de homicídios, têm como alvo preferencial essa população que chega
às Unidades de Semiliberdade. De acordo com um dos adolescentes entrevistados,
a falta de oportunidades no mercado de trabalho e a necessidade de manter o vício
de drogas são fatores decisivos para a entrada na criminalidade.
Ah, porque hoje em dia serviço tá muito pouco e também a criminalidade ela
é ruim, mas tem gente que começa tipo assim, começa a fumar cigarro,
depois começa a cheirar cola [...] eu ficava muito estressado dentro de casa
com a minha avó, eu saía pra rua, assim, aí eu ia fumar droga, uma
maconha, eu ficava mais tranqüilo. eu fui acostumando, acabou que
eu envolvi com uns meninos que era mais de tempo da vida do crime. E
eles foi me ensinando o que era bom e o que que era ruim da vida do
63
crime. E aí eu fui aprendendo e caí na onda também e tô aí até hoje
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)
26
.
Essa “justificativa” aparece de forma naturalizada e possivelmente inscreve-se
no modo de subjetivação dos adolescentes envolvidos com o crime. Nesse modo de
funcionamento da subjetividade, pode-se conjecturar que a “ação, que é mais
primitiva que o pensamento e a palavra, constitui a parte mais importante de sua
conduta” (ZIMERMAN, 1999, p. 422). Nessa linha, é recorrente por parte do
adolescentes a afirmação de que na vida do crime não espaço para reflexão,
somente para a “atividade”. A expressão deve ser entendida como conduta típica do
“mundo do crime” em que se deve estar vigilante, à espreita, “dormir com um olho
fechado e outro aberto” (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade,
19 anos)
27
, pois qualquer “vacilo” pode se transformar em morte. No capítulo 3 desta
dissertação, esse assunto será mais bem abordado.
Outro aspecto apresentado pelos adolescentes ouvidos na pesquisa diz
respeito às “vantagens” relacionadas ao envolvimento com a criminalidade, ligadas à
obtenção de dinheiro fácil e acesso a mulheres, aspectos que fazem contraponto ao
sofrimento e aos riscos dessa inserção.
O lado bom é que você arruma dinheiro, muita muié. [...] Porque você tando
com dinheiro você vai ter, aquela menina vai querer você. O lado ruim é
porque você arruma guerra, não pode andar tranqüilo. . Eu tinha um
parceiro, sabe. Foi antes de eu ir, foi antes de eu ir. Eles foi e mataram ele.
Nós tava indo pra barraquinha. Nós dois. [...] Os cara foi e parou o carro.
Tava eu do lado dele. Os cara foi e deu uma de tiro nele. foi e deu
pro meu lado e eu fui saí correndo. (Adolescente em cumprimento de
medida de semiliberdade, 19 anos)
28
.
O que é bom é que você ganha dinheiro fácil, muitas mulheres. [...] A coisa
ruim é porque vem muito sofrimento, você perder o colega. você ali,
você ali na vida do crime, se você falar alguma coisa eles mata você. [...]
Vamos supor, se você ouvir um cara é fazendo alguma coisa ali de errado
eu chegar e contar pra polícia, falar pras outras pessoas, entendeu? Que é
o ruim. E também os outros ficar devendo, se ter que correr atrás.
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)
29
.
Risco de ser preso, isso e aquilo. você começa a matar também. A coisa
ruim é que se vai preso, você fica pensando também em morte, em muita
coisa... em cadeira de rodas. Tem muitas pessoas que toma tiro e fica na
cadeira de rodas. Não morre e fica na cadeira de rodas e fica sofrendo
26
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.
27
Pesquisa de campo realizada durante atividade pedagógica em 23 out. 2007.
28
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
29
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.
64
muito. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18
anos)
30
.
Os atos violentos que têm mortes como conseqüência têm aumentado. Nas
duas últimas décadas do século XX, nas grandes cidades do mundo e em alguns
países como o Brasil, os dados epidemiológicos evidenciam o crescimento da
morbidade e da mortalidade por causas externas (PRIULI; MORAES, 2006). De
acordo com estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), no ano 2000
morreram cerca de 1,6 milhões de pessoas no mundo inteiro como resultado dessa
violência: 25% por acidentes de transporte, 16% por suicídio, 10% por violência
interpessoal, 9% por afogamento (PRIULI; MORAES, 2006).
No Brasil, o aumento da taxa de mortes por causas externas é fenômeno de
alta relevância. No começo da década de 80, ocupava o quarto lugar no patamar
das principais causas de óbito. A partir de 1989, passou para segundo lugar,
perdendo somente para doenças do aparelho circulatório. Nesse período, registrou-
se no País um coeficiente de mortes por homicídios de adolescentes e jovens com
faixa etária de 15 a 24 anos superior à estatística de países que se encontram em
guerra civil, como Israel, Croácia, Eslovênia e Irlanda do Norte (POCHMANN, 2002).
Se até meados da década de 1990 o aumento da violência se restringia às grandes
capitais da região sudeste, atualmente as taxas de homicídios elevaram-se em
capitais médias e pequenas. O fato de esse índice ser maior na região sudeste
evidencia que o aumento do mero de homicídios não está articulado somente à
questão da pobreza e da desigualdade social, mas também a processos subjetivos
marcados, sobretudo, pelo individualismo e pelo consumo (ZALUAR, 2004). De
acordo com Velho (2000), a exacerbação da violência e o fortalecimento do “mundo
do crime” estão articulados à inadequação de recursos legítimos utilizados pela
população mais pobre para adquirir bens de valores publicizados pela mídia.
No que se refere a Belo Horizonte, os dados da Secretaria de Estado e
Defesa Social de Minas Gerais (SEDS) informam que, durante a última década do
século XX, o número de homicídios aumentou. Em 1997, foram 357 casos, e em
2002 esse patamar atingiu a marca de 853 mortes, crescendo aproximadamente
250%. Tendo como base os dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM),
Silveira (2007) pontua que 79% dos homicídios ocorridos na cidade de Belo
30
Entrevista realizada com adolescente em 14/11/2007.
65
Horizonte tiveram como causa o uso de armas de fogo. Complementando esses
dados, no ano de 1997 o número total de crimes violentos em Belo Horizonte era de
aproximadamente 12.000; em 1998 atingiu um patamar de 14.500 casos; em 1999,
18.000 crimes violentos na capital. Em 2002, pesquisa realizada pelo Centro de
Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade de Minas Gerais
(CRISP), intitulada “Mapa de Violência de Belo Horizonte”, teve como mérito dar
visibilidade aos crimes violentos em Belo Horizonte e demonstrar, por meio de
análise espacial da capital, que os homicídios concentravam-se em áreas
específicas da cidade, sobressaindo-se em seis dos mais de oitenta conglomerados
urbanos daquele período. A pesquisa desnaturalizava a associação habitual feita
entre favela e criminalidade, mas ratificava que o maior número de vítimas de
homicídios era registrado nas regiões onde a renda média atingia percentual menor
e os equipamentos públicos e privados eram mais precários. Um conjunto complexo
de fatores explica o aumento dos homicídios em Belo Horizonte. Dentre eles, estão o
aumento da venda de crack e de armas de fogo, estas últimas comercializadas por
preço cada vez mais acessível, usadas por pessoas cada vez mais jovens (BEATO,
2006).
A proximidade da moradia configurava-se como um dado importante, pois
grande parte das ações que provocavam os assassinatos tinha vizinhos como
protagonistas. Esses homicídios têm como motivação rivalidades pessoais, disputas
por pontos de distribuição de entorpecentes, rivalidades com grupos de outras
regiões e incursões policiais nas áreas de atuação desses adolescentes. O
acompanhamento dos adolescentes ratifica essas ocorrências:
[...] teve situação de tipo assim: o cara ter paquerado a namorada do
traficante, sem saber que o cara era o traficante e ali seria um motivo
passional, né. O traficante agora porque foi traído ou terminou com a moça,
ou matou a moça, agora quer matar o adolescente também. Ou por uma
situação de numa “correria”, numa troca de tiros, alguém feriu ou matou o
colega, o amigo, o parceiro de um outro. Então: “ah, ele matou meu
parceiro, então agora eu vou vingar o meu parceiro”. (Profissional da
Unidade de Semiliberdade, 32 anos).
31
Ele foi assassinado [adolescente]. Por que? Porque foi liberado e continuou
trabalhado em uma fábrica de calçados na Saudade, que ele dizia o
seguinte: “quando receber um dinheiro maior, vou ser patrão”. Aí começou a
31
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
66
comprar droga e vender, droga e vender. que foi vender droga no
pedaço do outro. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos).
32
O patrão a droga para o menino vender. que acontece o seguinte:
começa a ficar tentado a surrupiar, a ganha mais um pouquinho. Então, às
vezes ele não presta conta, faz dívida com o dono, com o gerente da boca.
Está assinando a sentença de morte dele, entendeu? Porque o traficante
não perdoa. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)
33
.
Os adolescentes usam a palavra “guerra” para dizer do conflito violento entre
grupos de adolescentes ou por questões de ordem pessoal:
Por que essas guerra começa? A maioria é por causa de droga. Começa a
vender pedra. [...] A outra começa a vender muito e a outra boca começa a
vender pouca e começa a outra a querer tomar a boca do outro... Aí vai e
começa as guerra. (Adolescente em cumprimento de medida de
semiliberdade, 19 anos).
Muita vez por causa do tráfico também, porque uma boca ali vendendo
mais, a outra vendendo menos, eles vai arrumar, vai arrumar guerra.
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)
34
.
O principal motivo é o tráfico. Eles têm a boca que eles vendem droga.
Outros adolescentes, outras pessoas tentam tomar esse ponto, ou tenta
uma região dentro da favela, região de cima com região de baixo, igual tem
Morro Alto tem Caixa d´água e o pessoal do Curumim, né, vive em “guerra”.
Principalmente por causa dessa disputa. E essa guerra” mata um
“conhecido”, um “parceiro”, [...] tem que correr atrás, ele vai armar pro
“parceiro” de outro. E vai matando, vai matando o outro e vai. E uns
assumem a responsabilidade de vingar: vou ter que matar, esse cara
matou meu parceiro, esse cara matou fulano, matou ciclano”. E por vai.
(Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
35
.
Os homicídios cometidos em função de rivalidades pessoais geralmente têm
como estopim traições amorosas, e as mulheres envolvidas nessas relações são
objetos disputados pelos adolescentes:
Tem isso também arrumar guerra por causa de mulher, ué! [...] Elas
participam assim, tem umas que, igual, aqui a boca, aqui a outra.
elas fica vindo aqui, fica vindo aqui, levando conversa. Tem mulher que
faz casinha. Leva a pessoa também assim pro outro matar. (Adolescente
em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)
36
.
Eu lembro de ter surgido uma guerra em função de um relacionamento, de
uma traição e no caso o lugar da mulher ficou meio que assim né, ela
ciente de que com quem ela se relacionava, né, arriscar. [...] nos
atendimentos os meninos na hora de comentar essa coisa assim do leva e
32
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 2007.
33
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
34
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 11 out. 2007.
35
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
36
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
67
traz, dos anúncios, dos avisos. Oh, fulano de tal falou que se eu piá em tal
lugar, fulano de tal vai arrancar minha cabeça. Então, aparece, faz-se
menção à mulher, né, às meninas, um pouco nesse lugar. (Profissional da
Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
37
.
Na tentativa de afirmar sua masculinidade, esses adolescentes, além de
mulheres, disputam poder e pontos de droga, instaurando uma rede social marcada
pela desconfiança, pela possibilidade da traição e por um jogo de intrigas que tem
por objetivo fortalecer uma imagem que demonstre valentia e autoridade: “pra
mostrar que é o cara, que tem moral no crime” (Profissional da Unidade de
Semiliberdade, 36 anos)
38
. Essas marcas possibilitam a esses sujeitos serem
reconhecidos na comunidade onde residem e conferem certo status característico do
“mundo do crime”, marcado sobretudo por um ethos de virilidade (ZALUAR, 2004).
Nas entrevistas com os adolescentes, essa associação crime-poder-droga-mulheres-
status-virilidade fica evidente:
As mulheres gosta de ver dinheiro e arma. E aí ela vendo isso, é que nem
naquela gravação do Tropa de Elite o cara falando que as “cocotas” quando
umas arma elas não querem nem saber daquele cara que trabalha. Elas
quer saber daqueles traficante que tem dinheiro e arma. [...] Ah, sei lá...
Pra tipo botar medo em outra pessoa também, pra falar que é “a tal”, tipo
elas gosta de fazer assim, tipo eu com uma arma, aí, tipo elas começa
tipo a “dar mole” pra mim, entendeu? se eu fico com ela, ela começa a
espalhar pra todo mundo: “ah, que eu fiquei com ele e pa”, tipo todo
mundo começa a ter medo, entendeu? “Ah, não mexe com aquela menina
ali não porque ela namora com o tal e aquele tal é, ele tem arma, tem tudo”.
Aí os outros começa a ficar com medo, entendeu? Por isso que elas gostam
da arma também. Pra “botar pressão” em outras pessoas, em outras
mulheres também. (Adolescente em cumprimento de medida de
semiliberdade, 18 anos)
39
.
Nessa rede social, os relacionamentos são marcados pela busca de
reconhecimento. Instauram-se relações subjetivas, amorosas e sociais
fundamentadas na exibição e na necessidade de obter “ganhos”.
Estudos realizados nos Estados Unidos que tiveram como locus um clube
noturno freqüentado pela geração hip-hop (ZALUAR, 2004) mostram que as
mulheres categorizam os homens envolvidos na criminalidade, estabelecendo uma
hierarquia. No topo da pirâmide, encontram-se os traficantes de drogas, sujeitos que
possuem renda melhor devido ao lugar que ocupam na dinâmica do tráfico; em
segundo lugar estão os rappers que gravaram álbum, seguidos dos repassadores
37
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
38
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
39
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.
68
de drogas e dos freqüentadores assíduos do local. No acompanhamento dos
adolescentes em semiliberdade, essa mesma categorização foi observada. Também
por esse motivo, os meninos aspiram ocupar um dia o topo na hierarquia do tráfico,
posição que lhes traria não mulheres, mas notoriedade. Essas mulheres “são
como testemunhos sexuais da masculinidade de um homem, por isso, não basta a
conquista, é preciso falar delas. Como troféus da masculinidade, são mais do que a
prova do objeto de desejo, mas a prova material do desempenho sexual” (ZALUAR,
2004, p.375). Ter muitas mulheres reforça o ideal viril. Logo, as relações amorosas
encontram-se capturadas pela lógica do mercado em que,
Uma cultura de risco impregnada pelo desejo de poder e reconhecimento
chega como um apelo irresistível à auto-realização dos jovens. Essa auto-
realização se faz através da força das armas e da posse das mulheres,
vinculando esses jovens do meio social carente à possibilidade da demanda
no mercado de consumo. (CAMPOS, 2006, p. 96).
Bauman (2001) afirma que o momento atual tem como características a
fluidez e a liquidez. Essa metáfora traz como marcos a renovação acelerada e a
inovação frenética, onde tudo é temporário. Tal cenário constituiu-se a partir da
perda de referenciais, que podem ser localizados numa mudança de registro, em
que a lógica paterna hierarquizada, centralizadora e disciplinar deixa de ser
parâmetro. Com essas mudanças, instituições como a família e a escola sofreram
alterações e, de certa forma, perderam seu poder em relação aos sujeitos.
A lógica da modernidade líquida pode ser transplantada para as relações
humanas. Em sua obra “Amor líquido”, Bauman (2004) teoriza sobre fragilidade dos
laços humanos, promovida pela cultura do descartável. O autor compara o
relacionamento pós-moderno a um shopping center, onde não se compra por
desejo, mas por impulso. As relações seriam mercadorias, prontas para serem
consumidas; se apresentam algum defeito ou não satisfizerem o cliente, são
trocadas por outras, consideradas melhores.
Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se pensar a forma como homens e
mulheres vêm se relacionado no momento atual. No caso de sujeitos que têm o
crime como referência, essa lógica evidencia a busca não do amor, mas de status e
reconhecimento social. Um fator que favorece homicídios nesse contexto das
relações amorosas é o valor que se atribui à vida do outro. Um simples gesto ou
olhar o motivos para se cometer um homicídio, que podem ser entendidos como
tentativas de auto-afirmação e busca de reconhecimento: “a lógica é a seguinte: [...]
69
mostrar superioridade. Eu mato, eu sou poderoso, eu tenho poder de vida e morte
sobre você, ou sobre quem eu quiser” (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69
anos)
40
. As circunstâncias de um assassinato cometido por um adolescente
encaminhado para o cumprimento da medida de semiliberdade validam as
afirmações anteriores:
[...] Ele matou um pai de família porque a menina que estava em companhia
dele falou: “esse cara mexeu comigo”. Aí foi tomar satisfações: “a sua
menina, não sei quem é, e outra coisa, um homem na minha idade o se
envolve mais com criança”. Pelo fato de ele ter chamado a menina de
criança, ele disse: “que essa é minha mulher, minha mulher. ele apontou
a arma pro cara. “Pelo amor de Deus, você não me mata porque sou pai de
cinco filhos. Ele disse: Você vai cuidar deles no inferno”. E matou o cara
friamente. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)
41
.
Nesse relato, pode-se observar que o apelo feito pela pessoa que se
encontrava em situação de ameaça insinua uma valorização da vida via paternidade:
“não me mate, sou pai de família”. Esse apelo, entretanto, não foi suficiente para que
a vida do “pai de família” fosse poupada, devido às leis reinantes na “vida do crime”.
Os dados coletados nas entrevistas e na observação participante mostram
que existe uma diferenciação dos valores da existência humana entre os
adolescentes. A vida dos chamados “Jacks”, “X9s”, “cagüetes”
42
não tem valor. Da
mesma forma, a vida dos “ratos de boca” e dos “ratos de cadeia” também não é
valorizada:
“Rato de boca” é o cara entocar a pedra ali e eu ver, ele sai e eu vô e
pego a pedra dele e saio fora, sem ele saber. E ele vai pegar e cadê a
pedra dele? Ainda mais se a droga não for dele e for de outra pessoa. Que
que ele vai arrumar? ele vai ter que correr atrás do dinheiro pra pagá a
pessoa que ele pegô a droga e ele não vai sair mais no prejuízo. E aí o cara
40
Entrevista realizada em 30 out. 2007.
41
Entrevista realizada em 30 out. 2007.
42
O termo “Jack” está relacionado ao pseudônimo “Jack, o estripador”, utilizado para identificar um
assassino em série que agiu em Londres na segunda metade de 1888. Suas vítimas prostitutas, e
seus assassinatos típicos eram cometidos em locais públicos e semi-desertos. A garganta da vítima
era cortada, e o cadáver submetido a mutilações no abdômen ou em outras partes. O nome foi tirado
de uma carta enviada por alguém que dizia ser o assassino, publicada nos jornais à época dos
crimes. Embora diversas teorias tenham surgido desde então, a identidade de Jack nunca pôde ser
determinada (WIKIPEDIA, 2008). Entretanto, os adolescentes associam a palavra estripador à
estupro. Já as expressões X9 e cagüete são utilizadas para nomear delatores.
70
que “pilantrô”
43
, se ele sabe, vai matar o cara (Adolescente em cumprimento
de medida de semiliberdade, 18 anos)
44
.
Às vezes, por exemplo, um menino evade e leva as roupas do outro. Então
isso é, ele é um “safado”, ele é “rato de cadeia”, é um tipo de vacilo no
crime, seria uma atitude mal vista dentro da criminalidade. Então tipo assim:
ladrão que rouba de ladrão não tem cem anos de perdão. Eles percebem
que um cara que “pilantra” o colega, ele tem que pagar. E às vezes paga
com a vida. Então às vezes, [...] o adolescente evade e a gente teme o
retorno dele porque as pessoas que estavam no ato quando ele “pilantrou”,
[...] ou anunciam para os demais ou então se organizam para não recebê-lo.
Quando ele chega, a gente percebe uma articulação deles para tentar fazer
alguma cobrança, talvez não matando, mas castigando, batendo agredindo
de alguma forma. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
45
.
[...] Sérgio, Célio e Henrique agrediram Ricardo. Agimos de imediato
inibindo a ação de violência. Motivo da agressão: Ricardo pulou o muro dos
fundos da Unidade e furtou uma bermuda que segundo ele estava no varal
do vizinho. O grupo se revoltou com a façanha de Ricardo porque segundo
os adolescentes esse ato mancha a reputação da Unidade e a confiança
fica abalada com os vizinhos que não não os enxergam com bons olhos.
Os adolescentes também falaram que o crime não aceita falhas e rato de
cadeia... (Relatório diário dos educadores, 20/01/2005)
46
.
Souza (apud ARANZEDO, 2006) afirma que, apesar da vida ser um direito
previsto em vários textos legais, a vida humana não é categoria universal. O valor
atribuído a ela é relativo, pois quando somos interrogados sobre o valor de
determinada pessoa, o primeiro juízo que fazemos é sobre o valor de sua vida, suas
características, sua origem e como essa é avaliada socialmente. Para Zaluar (1994),
o ato de matar não é entendido genericamente como algo errado, criminoso ou ruim,
recebendo um julgamento de acordo com as regras de reciprocidade e justiça que
regem o cotidiano de alguns grupos sociais.
Pesquisa realizada por Aranzedo (2006) ratifica essa realidade: adolescentes
que cumpriam medida sócio-educativa de internação em Vitória, Espírito Santo,
foram entrevistados. Diversas categorias sociais foram apresentadas para serem
analisadas, e o resultado demonstrou que as categorias de estuprador, político,
viciado/drogado, homossexual e policial configuram-se como aquelas cujas vidas
são vistas como menos dotadas de valor pelos adolescentes.
43
Pilantragem é ação violenta não atrelada ao código do “mundo do crime”, como “matar os outro à
toa, por pouca coisa, que não tem nada a ver” (Adolescente em cumprimento de medida de
semiliberdade, 18 anos). Informação obtida através de entrevista realizada em 14 nov. 2007.
44
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.
45
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
46
Pesquisa de campo realizada em 2007.
71
O crime de estupro é visto como ato inaceitável para os adolescentes em
conflito com a lei e também por outras pessoas inseridas na criminalidade,
principalmente se envolve crianças. Observações realizadas durante o
acompanhamento de adolescentes confirmam esses dados. Quando recebíamos,
nas Unidades de Semiliberdade, adolescentes identificados como estupradores,
vivenciávamos situações de medo, pois as ameaças eram constantes, o que
geralmente culminava na evasão do alvo das ameaças. Além disso, a maioria dos
profissionais comungava com as opiniões dos adolescentes em relação aos sujeitos
“suspeitos” de estupro, e suas ações contribuíam para que esse adolescente fosse
excluído do grupo.
Quanto à categoria “político”, a avaliação parece estar relacionada às críticas
feitas pelos adolescentes e outras pessoas que residem na periferia das cidades à
postura de políticos que visitam os bairros pobres na época de eleição, além de
recorrentes denúncias de corrupção envolvendo essa classe. Outro fator
preponderante é o fato de que, em determinadas comunidades, as ações do poder
público se concentram nas incursões policiais realizadas cotidianamente.
Associadas a essas argumentações, está a precariedade dos equipamentos sociais
que caracterizam essas áreas.
No que se refere à categoria “viciado/drogado”, Aranzedo (2006) leva em
consideração o estudo de Alvito (2000) e afirma que tal denominação serve para
pessoas que vêm de fora para adquirir drogas em suas comunidades e podem
cometer algum delito no intuito de adquirir recursos necessários para manter o vício.
Pressupor a vida dos homossexuais como sem importância revela uma
contradição inerente à realidade brasileira, país onde aceitação maior em relação
a gays e lésbicas. Constata-se, a despeito disso, número acentuado de assassinatos
envolvendo esses sujeitos, vitimizados pelos denominados crimes de ódio,
caracterizados por chacinas e torturas (ARANZEDO, 2006). Talvez o valor atribuído
à vida dos homossexuais pelos adolescentes entrevistados esteja atrelado aos
modos de subjetivação que balizam as maneiras de ser, de pensar, de agir desses
sujeitos, amparados, sobretudo por mandatos de masculinidade. Segundo Aguirre e
Guell (apud ARANZEDO, 2006), tais mandatos são referenciais no processo sócio-
histórico de diferenciação entre comportamentos considerados esperados, aceitáveis
e inaceitáveis.
72
Dados da pesquisa realizada por Aranzedo (2006) revelam também que a
não-valorização da vida dos policiais se fundamenta no fato de os adolescentes
terem sofrido atos de violência praticados pela polícia. A relação tensa que mantêm
com os policiais é um dos aspectos observados no Programa de Semiliberdade, e
será apresentada no capítulo 3 desta dissertação.
Por outro lado, o trabalho de Aranzedo (2006) e as reflexões produzidas por
essa pesquisa demonstram que somente a vida das pessoas com quem os
adolescentes mantêm relação afetiva têm valor para eles. Nessa categoria estão
familiares (em especial pai, mãe e irmãos), professores, colegas, namoradas.
Entrevista realizada com uma profissional da Unidade de Semiliberdade fortalece
essas observações:
Às vezes a vida dele vale, a vida daqueles que ele ama vale, mas a dos
outros não tem valor, [...] ou nem a dele mesmo tem valor. Tem casos que o
adolescente é completamente desligado desse princípio [...], é como se
fosse indiferente. Você vai juntando as peças ao longo do trabalho [...] e vai
detectando essa necessidade que o menino tem de não se vincular, de não
se apegar, ou de ter que se posicionar assim pelo próprio medo de sofrer,
pelo próprio medo de morrer ou pela própria história de sofrimento dele. [...]
E já tem outros [...] que têm essa consciência do valor da vida dele, do valor
da família, e ele fala de inocentes, aquelas pessoas com quem ele o
tem “guerra”, são pais de famílias, pessoas que não têm envolvimento com
o crime. Na favela onde ele mora, matar “inocentes” significa matar alguém
que nunca fez mal a ele ou que não tem rivalidade. E essa pessoa [que
mata inocentes”] merece morrer. É como se fosse uma forma de se
responsabilizar pelo que fez, seria pagando com a morte, [...] agora se o
cara ou a menina têm envolvimento com a criminalidade ou faz parte de um
grupo, essa pessoa a vida dela o tem valor. (Profissional da Unidade de
Semiliberdade, 32 anos)
47
.
Podemos concluir que, com o envolvimento com o crime, a vida perde valor, a
partir do momento que o próprio crime se apropria dessa vida, colocada a serviço
dele. Paradoxalmente, em uma tentativa negar essa apropriação, o adolescente
tenta reafirmar o valor de sua própria vida pela morte de outra pessoa.
As atividades da instituição de cumprimento da medida de semiliberdade que
são baseadas na convivência objetivam produzir um questionamento e a busca de
novas formas de resolução de conflitos, baseadas no diálogo e o na violência.
Segundo uma das profissionais entrevistadas, essas atividades têm o mérito de
produzir movimentos que despotencializam a morte, ao reafirmarem não a vida
do adolescente como um valor, mas também a das outras pessoas:
47
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
73
o interessante é que a dele vale [...], e quando a gente fala assim: “mas
como que você quer matar fulano”? E aí a gente tenta colocá-los pra pensar
nesse valor ou nas outras possibilidades ou formas de resolver um
determinado desacerto, [...] e aí eles colocam: “é ele ou eu”. Como se não
tivesse condições de lidar com isso de uma forma diferente. E é muito
interessante que ao longo do cumprimento da medida já teve dentro da
própria Unidade pessoas de grupos rivais que conseguiram conviver e se
relacionar sem acabar acontecendo uma situação de morte, ou de denúncia
ou de um delatar o outro, [...] a partir da convivência e do diálogo às vezes
isso é possível. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
48
.
Uma situação vivenciada por mim retrata o que foi explicitado acima. Em
2001, após participar de uma reunião de trabalho no centro da cidade de Belo
Horizonte, encontrava-me em meu carro parada, aguardando o sinal abrir, e fui
abordada por um adolescente que almejava furtar meu relógio. Ao me reconhecer,
pediu desculpas e saiu bastante envergonhado: havia cumprido a medida de
semiliberdade, período durante o qual mantivemos uma relação próxima e afetuosa.
Outro dado importante analisado por Aranzedo (2006) é que os adolescentes
entrevistados atribuíram alto valor à própria vida, demonstrando grau elevado de
auto-estima motivo relevante no cometimento do homicídio –, o que contrasta com
dados apresentados por Feijó (2001), que revelam como característica comum aos
adolescentes envolvidos na criminalidade a desvalorização de sua vida. Ao tomar
como pressuposto as afirmações de Aranzedo (2006), cabe o questionamento sobre
o que leva esses adolescentes a colocar sua vida em risco. Parece que o
envolvimento no crime coloca em funcionamento um modo de subjetivação em que
críticas e análises sobre as conseqüências possíveis advindas da inserção na
criminalidade a própria morte, por exemplo não têm lugar, devido à necessidade
de estar em atividade constante. Esse modo de subjetivação foi nomeado por mim
como “correria”, e será abordado no capítulo 3 desta dissertação.
Complementando essas análises, cabe ressaltar que são recorrentes, entre
os adolescentes escutados, explicações para os homicídios e outros atos violentos
envolvendo seus contextos familiares, muitas vezes entendidos como realidade a-
histórica, imutável e natural, em que determinados modelos se tornam hegemônicos
e qualquer desvio da ordem estabelecida é entendido como patologia e desestrutura
(RUBIM, 2007). Willems (apud ROMAGNOLI, 1996) apresenta visão contrária a essa
idéia:
48
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
74
[...] condições de vida diversas produzem diferentes arranjos familiares. Ou
seja, no seu cotidiano indivíduos de diferentes regiões e de diferentes
seguimentos sociais constroem um leque de alternativas que, na maioria
das vezes, fogem ao padrão estabelecido pelos modelos de referência,
correspondendo de um conjunto de possibilidades que concretamente se
apresentam e se efetivam, no transcorrer do dia-a-dia desses sujeitos.
(WILLEMS apud ROMAGNOLI, 1996, p.61).
De acordo com Romagnoli (1996), o processo de naturalização dos
agrupamentos familiares no século XX teve como um de seus principais vetores o
processo de industrialização, que promoveu o fechamento da família sobre si
mesma, fazendo surgir duas esferas distintas: a vida doméstica e a pública.
Consagra-se a família conjugal ou nuclear como o modelo dominante de
organização privada nas sociedades modernas e, a partir dessa cisão, submete-se
os agrupamentos familiares à inconstância do mundo industrial e ao isolamento na
esfera privada do lar. Passam a ser vistos como unidades de consumo – de bens, de
instrução, de saúde, de lazer, enfim, de tudo passível de ser comercializado.
Legítima e poderosa, a família conjugal habita o reino limítrofe entre o
público e o privado, sendo que dela é esperado a efetivação de um
cotidiano estável e seguro para que, como célula básica da sociedade, atue
na construção de um espaço social que tenda sempre para o
aprimoramento e para a harmonia. (ROMAGNOLI, 1996, p. 63).
Esse modelo hegemônico de família reflete a realidade das classes média e
alta, moderna e urbana. Pode ser caracterizado como um grupo social restrito em
estrutura, função e hierarquia. Quanto à estrutura, sua formatação é constituída pelo
casal e poucos filhos
49
. Os parentes não estão presentes no cenário familiar, com
residências próprias e vidas autônomas. Quanto às funções, restringem-se à
procriação e criação dos filhos, tendo como fio condutor o afeto. Sua hierarquia é
flexível, articulada à divisão do trabalho entre os sexos e ao conflito de gerações.
Nessa organização, a condição econômica ganha importância e legitima-se como
símbolo de status e poder. Esse modelo de família regrada, normatizada,
corresponde a uma determinada classe social – a burguesa e carrega em si
aspectos que diferenciam seus componentes de sujeitos de outras classes sociais.
Esses aspectos estão relacionados à higiene, à moral, à sexualidade e à
intelectualidade, caracterizando o que é ser um representante digno da família
nuclear burguesa: um sujeito saudável, forte, limpo e bem alimentado.
49
Atualmente, instituem-se outras formas de constituições familiares no seio das classes média e
alta, moderna e urbana, como as famílias monoparentais e as decorrentes das separações parentais,
onde os companheiros dos pais ou mães tornam-se também membros.
75
Tal modelo de família foi e ainda é um incentivo ao racismo e a uma série de
preconceitos. De certo, avalizou e produziu muitas das práticas endereçadas aos
pobres ainda hoje. É hegemônico apenas em certo imaginário social: empiricamente,
a família nuclear burguesa nunca foi majoritária, existindo grande variedade de
organizações familiares que perpassam as classes sociais em diferentes períodos
históricos.
A organização da maioria das famílias dos adolescentes que se envolvem em
atos infracionais foge dessa padronização. Entretanto, a essa forma de organização
familiar alternativa é imputada uma culpabilização no que se refere à trajetória
infracional dos adolescentes. Também é comum encontrar análises fundamentadas
cientificamente afirmando que o problema da criminalidade se centra na
personalidade delinqüente dos jovens. Mesmo entre os profissionais destinados a
atender esta população (entre psicólogos, assistentes sociais, educadores,
advogados), é comum perceber esse discurso culpabilizante e discriminatório, além
de expressões como “abacaxi”, “pepino”, “bombapara se referir aos adolescentes
“problemáticos”. São freqüentes também práticas que visam “cortar o mal pela raiz”,
ou, ao contrário, apenas se livrar do “problema”, como a transferência de
adolescentes para outras Unidades da Rede de Atendimento.
Retomando a discussão sobre a temática da violência, é válido afirmar que,
contrariamente às idéias que culpabilizam famílias e adolescentes pelo envolvimento
em atos infracionais, este trabalho fundamenta-se na compreensão de que a
violência é fenômeno multifacetado e multifatorial. A origem desse vocábulo remete
à palavra vis, que significa “força”, e está articulada às noções de constrangimento e
uso da superioridade física sobre o outro. No que se refere ao sentido material,
o termo parece neutro, mas quem analisa os eventos violentos descobre
que eles se referem a conflitos de autoridade, a lutas pelo poder e à busca
de domínio e aniquilamento do outro, e que suas manifestações são
aprovadas ou desaprovadas, lícitas ou ilícitas, segundo normas sociais
mantidas por aparatos legais da sociedade ou por usos e costumes
naturalizados. Mutante, a violência designa, pois de acordo com épocas,
locais, circunstâncias –, realidades muito diferentes. (MINAYO, 2003, p. 25).
Wieviorka (1997) afirma que, na contemporaneidade, a violência se expressa
a partir de um novo paradigma. Nas décadas de 50 e 60, instrumentalizava-se por
mecanismos ideológicos e políticos; atualmente, marca-se pela falta de
reconhecimento social e pela banalização do sujeito e das leis, possuidora de
caráter infrapolítico, manifestando-se em diversos setores e afirmando-se como um
76
fim em si mesmo. Essa violência pode ser entendida a partir do fenômeno do
enfraquecimento dos laços sociais (SANTOS, 2007) e das questões colocadas pelo
mercado (BAUMAN, 1998). Com esse enfraquecimento, são reforçados padrões
individuais na busca por bens de consumo, e a construção de projetos coletivos fica
prejudicada.
As ações violentas implementadas por adolescentes são exemplos de
movimentos onde se busca reconhecimento. Com as relações sociais prejudicadas e
“necessidade” de consumir, engendram-se subjetividades onde a palavra não tem
lugar. O ato violento passa a ocupar o lugar da palavra e é efetivado de forma
naturalizada. Os depoimentos dos profissionais da semiliberdade retratam essa
situação:
[...] por exemplo, eu tenho 36 anos, na minha época, uma confusão era
briga. Quem soubesse brigar mais ganhava. Hoje em dia não. Se der um
“cocão” numa criança de 10 anos, dependendo de onde ele estar, do
convívio dele, ele vai arrumar um revólver e vai matar. [...] É por aí. Hoje em
dia não tem muita conversa. As coisas são resolvidas através da bala.
(Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)
50
.
[...] quando eu era adolescente, havia os conflitos inclusive, entre bairros,
naquela época, né. Mas não se tratava de “guerra” não. Não se falava em
“guerra”, não. Ah, não! No dia que eu encontrar com fulano lá, eu vou
acertar as contas com ele, resolver no braço. Resolvia o negócio no braço.
Porque naquele tempo inclusive, não havia a facilidade de aquisição de
armamento, igual existe agora. (Profissional da Unidade de Semiliberdade,
69 anos)
51
.
Uma das grandes contribuições da medida sócio-educativa de semiliberdade
é o desenvolvimento de ações que vão contra essa forma naturalizada de resolver
os conflitos a bala. Tais ações apóiam-se em atividades coletivas em que os
adolescentes são convocados a encontrar soluções para os problemas pelo diálogo.
Segundo Arendt , “somente a pura violência é muda, e por este motivo a violência,
por si só, jamais pode ter grandeza (ARENDT, 1981, p.35). Ela baseia-se na
constituição da sociedade grega, em que a política nasce da palavra e, portanto,
pressupõe a discussão e exclui a violência (ARENDT, 1981). A palavra como
fundamento da política é princípio a ser resguardado e pode ser utilizado como um
dispositivo de combate à violência.
50
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no dia 23 out. 2007.
51
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no dia 30 out. 2007.
77
Os meninos chegam na semiliberdade e não parecem que são aqueles
meninos que estavam no CEIP. Porque eles são agressivos, eles se
agridem o tempo inteiro. E eles vêm pra semiliberdade, eles convivem,
sabe. Eles chegam a ter desavenças, mas se for pra ter uma análise de
da internação pra medida de semiliberdade é totalmente diferente.
(Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)
52
.
E aí na semiliberdade eles colocam que o desfio e a convivência, né,
porque é uma convivência bastante intensa com outros adolescentes e com
uma equipe que é grande e é muito próxima. Então essa convivência às
vezes é o que é mais difícil pra eles. (Profissional da Unidade de
Semiliberdade, 32 anos)
53
.
Retomando as contribuições de Wieviorka (1997), uma das principais
mudanças articuladas ao novo paradigma da violência é dada pelas referências
crescentes de seus protagonistas a uma determinada identidade. No caso dos
adolescentes brasileiros, pobreza, raça, gênero e local onde residem são aportes
fundamentais. Problematizar os efeitos destas articulações nas relações
estabelecidas entre esses atores e o todo social, bem como o fortalecimento dessas
identidades, constitui-se como uma das tarefas do presente trabalho.
Uma série de transformações internacionais nas relações societais, no campo
político, econômico e subjetivo, marcadas, sobretudo, pela intensificação do
individualismo gerou uma nova ordem mundial. Nela, a violência passou a
apresentar nova roupagem, em que a violência não se apresenta enquanto
(...) luta contra a exploração, a sublevação contra um adversário que
mantém com os atores uma relação de dominação, e sim, a não-relação
social, a ausência de relação conflitual, a exclusão social eventualmente
carregada de desprezo cultural ou racial. Ou seja: ela é também uma
representação, um predicado que, por exemplo, grupos, entre os mais
abastados, atribuem eventualmente, e de maneira mais ou menos
fantasmática, a outros grupos, geralmente entre os mais despossuídos.
(WIEVIORKA, 1997, p.7).
No caso específico do Brasil, o fenômeno da violência envolvendo, sobretudo,
crianças e adolescentes é marcado por um processo de “diabolização” ratificado por
referenciais raciais, sócio-econômicos, geográficos e relações de gênero. Esse
fenômeno recebe reforços constantes da mídia, que apresenta diariamente esses
protagonistas da violência como seres de segunda categoria.
A esse respeito, o conceito “abjeto” foi utilizado por Judith Butler (2003),
filósofa pós-estruturalista estadunidense que contribuiu para os campos do
52
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no dia 30 out. 2007.
53
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no dia 23 out. 2007.
78
feminismo, da filosofia, da política e da ética. De acordo com essa autora, esses
seres “abjetos” fazem parte da constituição da sociedade, em que são construídos
modelos que devem servir de parâmetros para as condutas. Para os sujeitos cujos
comportamentos subvertem o padrão, a abjeção é a ordem que prevalece. Butler
(2003) ressalta que o processo de identificação e constituição do sujeito implica um
espaço de abjeção que deve ser entendido como exterior, mas que ganha
relevância à medida que opera também “dentro” do sujeito. Trata-se do lugar onde o
sujeito se constitui enquanto tal.
O sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força
que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior
abjeto que está, afinal, ”dentro” do sujeito, como seu próprio e fundante
repúdio. (BUTLER, 2003, p. 155-156).
A autora enfatiza ainda, em resposta os questionamentos de Baudje Prins e
Irene Costeira Meijer, que a abjeção “relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas
não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante”
(PRINS; MEIJER, 2002, p.161).
De acordo com Ferreira (2004), o termo “abjeto” relaciona-se a conceitos
como vil, desprezível, ignóbil, imundo, ligando-se à idéia de monstruosidade,
anormalidade, marginalidade. Isso explica a diferença de tratamento e de olhar
dirigidos a adolescentes e jovens envolvidos em práticas violentas, de acordo com
suas origens classe média e alta e classes populares. É a essa última que os
“menores” e os “seres abjetos” pertencem.
Estas argumentações podem ser corroboradas nas discussões envolvendo o
assassinato de um jovem casal de namorados, Felipe Silva Caffé, 19 anos, e Liana
Friendenbach, 16 anos, ambos oriundos da classe média, ocorrido em 2003 e
amplamente veiculado na mídia, que pôs em cena um fervoroso debate em torno da
questão da inimputabilidade penal de crianças e adolescentes. De acordo com a
Revista Ist(SILVA; SIMAS FILHO; MORAES, 2003), Liana, filha de um advogado
e uma pedagoga, cursava o ano do ensino médio no colégio São Luiz, um dos
mais tradicionais de São Paulo. Felipe, quarto filho de um economista e uma
enfermeira, cursava o ano do ensino dio no mesmo colégio. No dia 29 de
outubro de 2003, a jovem disse aos pais que passaria o fim de semana com amigas
de um grupo de jovens ligado à Congregação Israelita Paulista em Ilhabela, litoral
norte de São Paulo. Entretanto, no dia seguinte, saiu da escola acompanhada pelo
79
namorado, com destino a Avenida Paulista, onde passaram a noite perambulando.
de manhã, seguiram de ônibus para Embu-Guaçu e caminharam cerca de oito
quilômetros até o sítio do Lê, uma área abandonada. Lá, armaram a barraca e foram
passear nas redondezas. Quando caminhavam para o lago, foram vistos pelo
adolescente R.A.A.C., 16 anos, conhecido como Champinha.
Pobre, filho de pai alcoólatra, Champinha estudou até a terceira série do
ensino básico. Entre os 10 e os 14 anos, ajudou a mãe no trabalho da roça. Após
este período, adoeceu, passando a apresentar freqüentes convulsões. Sem recursos
para tratamento, começou a viver nas ruas, prestando serviços a quadrilhas que
atuam no desmanche de carros. Apesar de não registrar nenhuma passagem pela
Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM)
54
, foi acusado de ter
matado pelo menos uma pessoa. Sempre com um facão na cintura, impunha-se na
região pelo medo que transmitia aos vizinhos, conhecedores de seus crimes.
Quando avistou o casal Liana e Felipe, Champinha pensou em assaltá-los.
Percebendo que necessitava de auxilio, chamou Aguinaldo Pires, 41 anos,
companheiro de pequenos furtos e caseiro de uma chácara do local. Com uma
espingarda e o facão, Aguinaldo e Champinha não tiveram dificuldades para render
o casal. Na carteira de Liana, encontraram somente R$45,00. Frustrados com a falta
de maiores valores, transformaram o assalto em seqüestro e levaram o casal até a
chácara em que Aguinaldo trabalhava, onde tiveram a ajuda de Paulo César
Marques, conhecido como Pernambuco. Em um casebre em condições precárias, os
cinco passaram a noite em um mesmo quarto.
No dia seguinte, após Felipe ter argumentado que sua família não era rica e
que tinha um irmão policial, o casal foi levado a um local na mata, onde Felipe foi
assassinado por Pernambuco. De acordo com os depoimentos, Liana não viu o
namorado ser morto, mas ouviu os tiros, o que a deixou em choque: “ela ficou
tremendo o tempo todo e o falava nada. chorava”, disse Aguinaldo (SILVA;
SIMAS FILHO; MORAES, 2003, s/p). Assim que assassinaram Felipe, retornaram
com Liana para o cativeiro. No final da tarde, Pernambuco foi a São Paulo para
54
As FEBEMs são organizações estaduais destinadas aos adolescentes em “situação irregular” -
infratores e aqueles considerados abandonados moral ou materialmente por seus familiares, de
acordo com o Código de Menores de 1927. Vinculadas à Fundação Nacional do Bem-estar do Menor
(FUNABEM), instituída pela Lei Federal 4513 de 01/12/1964, que executava a Política Nacional do
Bem-Estar do Menor (PNBEM) em todo território nacional, em substituição ao Serviço de Assistência
ao Menor. Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, as FEBEMs deveriam ser
reformuladas, mas essa reestruturação ainda não aconteceu em grande parte do território nacional.
80
“vender Liana a seqüestradores experientes”. Até o dia cinco de novembro, ela
permaneceu refém de seus seqüestradores. Ameaçada com uma faca, era obrigada
a representar o papel de namorada de Champinha e passava os dias andando com
ele pela mata.
Na madrugada desse dia, Champinha e Aguinaldo levaram Liana para a mata
e Champinha assassinou-a com duas facadas no peito. Após cair, ela ainda levou
mais doze estocadas no tórax e uma no pescoço. Depois, Aguinaldo viajou para São
Paulo e Champinha foi para a casa de sua avó, onde permaneceu até ser preso no
dia 10, quando confessou o crime e levou a polícia a o local onde foram
encontrados os corpos de Liana e Felipe. “Ele disse que matou simplesmente
porque sentiu vontade de matar”, afirmou o delegado José Jaques (SILVA; SIMAS
FILHO; MORAES, 2003, s/p). Aguinaldo e Pernambuco foram presos poucos dias
depois.
Na época, o acontecimento trouxe à tona discussão sobre a redução da
maioridade penal, até então abafada pelas investidas brasileiras no mercado
internacional, pela discussão a respeito da ocupação americana no Iraque e pelos
sonhos que se renovam com os preparativos para as comemorações de fim de ano.
Em função desse homicídio, contudo, diversas análises foram feitas e partidos
tomados em prol ou contra a redução da maioridade penal. Blocos convergentes e
divergentes formaram-se, guiados ora por reflexões movidas pela emoção e
solidariedade, ora por discussões de cunho social e político.
Um dos pontos de vista possíveis sobre esse caso traz à luz a existência de
diferentes olhares e práticas sobre o adolescente e o jovem, dependendo de sua
origem. Além de ter acesso a defesa prévia e todas as garantias legais, quando um
adolescente ou jovem de classe média ou alta comete um delito, caracteriza-se tal
fato como algo circunstancial, associado a uma patologia, geralmente psíquica. Em
contrapartida, quando um adolescente ou jovem das classes populares comete uma
infração, a situação é explicada por sua “subjetividade perversa”, embasando-se nas
idéias de estrutura, totalidade, universalidade e imutabilidade. Há, percebe-se, pesos
diferentes para a vida dos protagonistas dessa história.
O homicídio dos adolescentes Liana e Felipe, tão alardeado pela mídia, não
passaria de uma tragédia particular como tantas outras registradas
cotidianamente em nossas delegacias de polícia não fossem as
circunstâncias nas quais ocorreu. Não me refiro ao grau de crueldade na
execução do crime, pois dezenas de Marias e Joões são mortos todo dia em
81
situações tão ou mais bárbaras, e não são objeto sequer de uma nota nos
jornais de primeiro escalão. O que difere este homicídio daqueles que
não vendem mais jornais é a posição ocupada pelas vítimas na sociedade.
Na balança da mídia e de seus consumidores de tragédias pessoais, a vida
de um adolescente de classe média vale muito mais do que a de João e
Maria. (VIANA, 2003, p.1).
Imagens veiculadas pela mídia impressa e eletrônica reforçam a associação
entre pobreza e periculosidade, na qual “adolescentes audaciosos e violentos,
destituídos de quaisquer freios morais, frios e insensíveis [...] não hesitam em matar”
(ADORNO; BORDINI; LIMA, 1999, p. 65).
Viana (2003) afirma também que o fato de os adolescentes assassinados
pertencerem à classe dominante possibilitou uma série de identificações da
sociedade, que também se viu como vítima:
O que choca nas mortes de Liana e Felipe não são as circunstâncias da
execução, mas a transferência que o leitor-telespectador-consumidor faz,
colocando seus próprios filhos na situação das vítimas de fato. As mortes
das Marias e dos Joões não chocam, pois se dão nas favelas, na periferia,
em suma, em lugares demasiadamente distantes e "perigosos" - as aspas
aqui são imprescindíveis - para a maioria dos filhos da classe média.
Violento é Champinha, e não o Estado, que lhe negou uma infância
minimamente digna, e a mídia, que enxerga crianças e adolescentes
miseráveis para mostrar a seus consumidores o quanto eles são "perigosos"
e com que frieza eliminam uma vida. (VIANA, 2003, p.1).
Em suma, a produção de “infâncias e adolescências desiguais” (BULCÃO,
2002) no Brasil – a pobre, que necessita ser punida e trancafiada, e a abastada, que
necessita de orientação, cuidados e tratamento tem como conseqüência o
desenvolvimento de políticas e ações diferenciadas para cada classe.
2.3. As políticas de atendimento destinadas aos adolescentes em conflito com
a lei
Um dos aspectos que caracterizou o desenvolvimento das políticas públicas
brasileiras foi o processo de exclusão de alguns sujeitos em relação aos direitos
concernentes a essas políticas. Segundo Frota (2002), o caso brasileiro suscita
muitas interpretações, mas todas têm um ponto de convergência: a idéia de que,
paralelamente à afirmação dos direitos de cidadania, foram sendo estabelecidos
critérios de exclusão/inclusão dos indivíduos no status de cidadão, em termos de
titularidade e exercício desses direitos.
82
Os direitos civis e políticos foram introduzidos no Brasil quase que
simultaneamente na constituição Imperial de 1824, que promulgou a liberdade de
manifestação, de pensamento, de reunião e a garantia da propriedade privada.
Entretanto, como na Europa do século XVIII, nada foi estabelecido quanto à
capacidade dos indivíduos para o exercício desses direitos. Naquele período, grande
parte da população era escrava e os poucos trabalhadores livres encontravam-se
inteiramente dependentes dos proprietários de terra, impossibilitados de exercer as
denominadas liberdades individuais.
No campo dos direitos políticos, especificamente em relação ao direito de
voto, a Constituição Republicana de 1881 promoveu alterações pouco significativas,
eliminando a exigência de renda e mantendo a da alfabetização. Pelos critérios de
exclusão estabelecidos, cerca de 80% da população era considerada inapta para
votar. Esta situação tornava-se mais grave pelos altos índices de abstenção eleitoral.
Com as reformas constitucionais de 1934 e 1988, foram introduzidas as expansões
de voto. No campo dos direitos sociais, percebe-se forte intervenção estatal, o que
instaura a “cidadania regulada”, que encontra suas raízes não em um digo de
valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional definido por
norma legal. Ou seja, são cidadãos aqueles membros da comunidade que se
encontram em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei. A
regulamentação das profissões, a carteira profissional e o sindicato público definem,
assim, os três parâmetros no interior dos quais passa a se definir cidadania.
No caso específico das crianças e adolescentes, estes foram, desde o século
XVII, excluídos da cidadania, sob a alegação de que seriam incapazes de escolha
responsável. Não eram considerados pessoas, excluídos do domínio blico da
ação racional. A emancipação das mulheres e crianças, nos séculos XIX e XX,
atribuiu a eles personalidade legal, cabendo ao Estado um peso crucial na
identificação e estabilização desses novos sujeitos legais.
A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente,
aprovado pelo Congresso Nacional em junho de 1990, foram os primeiros
documentos jurídicos legais brasileiros que consideram crianças e adolescentes
como sujeitos de direitos. A mudança trazida por esses documentos jurídicos elevou
a população infanto-juvenil à categoria de cidadãos. Entretanto, é notório que,
apesar da lei jurídica, que faz com que os direitos adquiridos possam ser exigidos,
83
uma distância enorme entre ela e a realidade em que vivem inúmeras crianças e
adolescentes.
Para entender esta disparidade, é importante observar o percurso histórico
das políticas de atendimento destinadas a adolescentes autores de ato infracional.
Até o século XIX, esse público era submetido às mesmas regras que os adultos.
Postman mostra que, na Inglaterra e na França,
ainda em 1780, as crianças podiam ser condenadas por qualquer um dos
mais duzentos crimes cuja pena era o enforcamento. Uma menina de sete
anos foi enforcada em Norwich por roubar uma anágua e depois dos
distúrbios de Gordon, várias crianças foram enforcadas em praça blica.
(POSTMAN, 1999, p. 67)
Nessa época, como foi apresentado, não havia o conceito de infância, e as
crianças eram vistas como “adultos em miniatura” (ARIÈS, 1984). A socialização e a
educação das crianças vinham da convivência com os adultos: a criança aprendia na
medida em que ajudava o adulto em seus afazeres. Essa concepção que não
diferenciava crianças e adultos fundamentava as práticas jurídicas e, por isso, esses
sujeitos compartilhavam os mesmos espaços, as mesmas atividades laborais e as
mesmas penas.
Foi no culo XIX que ocorreram os primeiros questionamentos dessa
indistinção, o que possibilitou o surgimento da Justiça de Menores, a partir do
entendimento de que se deveria imputar aos infratores menores de 18 anos medidas
educativas, diferenciadas das penas aplicadas aos adultos. Essa concepção
portava a compreensão de que as penas afetavam com mais violência o sujeito na
peculiar condição de sujeito em desenvolvimento.
Segundo Bulhões de Carvalho, citado por Pilotti e Rizinni (1995), em 1899 foi
instituído em Chicago o primeiro Tribunal Especial para Menores e, em 1905, na
Inglaterra, fundou-se o Tribunal de Birmingham. Em 1911, tribunal semelhante foi
criado em Portugal. Outros países como Bélgica, França e Espanha também
instituíram corte semelhantes nesse período.
No Brasil, em 1913, foi criado o primeiro estabelecimento para atender
“infratores” e desvalidos. Em 1917, o Senado recebeu a primeira lei que não
considerava como criminosos adolescentes na faixa etária de 12 a 17 anos
(OLIVEIRA; ASSIS, 1999). No ano de 1927, foi criado o primeiro Código de Menores
brasileiro, baseado na Doutrina da Situação Irregular de 1927, reformulado em 1979,
mantendo, entretanto, as mesmas prerrogativas do anterior (PILOTTI; RIZINNI,
84
1995). Nesse período, a infância tronou-se objeto de juristas e o termo “menor” foi
incorporado ao vocabulário corrente (BULCÃO, 2002; RIZZINI; PILOTTI, 1995). Não
houve problematização no que se referia à categoria “menor”, que incluía as
seguintes classificações: abandonado, desviado, delinqüente e viciado,
estigmatizando esses sujeitos.
O Código de Menores tinha como ponto central a idéia do controle social dos
“menores” infratores e daqueles considerados abandonados moral ou materialmente
por seus familiares, ou seja, o controle dos que eram considerados em “situação
irregular”. A lei dava aos juízes o poder de intervir nas famílias pobres consideradas
“desestruturadas” e determinar o destino de suas crianças e jovens. Enquadravam-
se na categoria dos abandonados moral e materialmente as crianças e adolescentes
com menos de 18 anos que se encontrassem casualmente sem habitação e meios
de subsistência devido à indigência, enfermidade, ausência ou prisão dos pais e
guardiões, e a os que tinham pai, mãe ou guardião, estando, entretanto,
envolvidos em atos contrários à moral e aos bons costumes. Eram considerados
delinqüentes os sujeitos de 14 a 18 anos de idade que haviam cometido ato
infracional, sujeitados a um processo especial, com responsabilidade penal
atenuada e encaminhados para prisões-escola (reformatórios) ou, na ausência
destas, para um estabelecimento anexo à penitenciária adulta. Delegava-se aos
Estados a execução do atendimento que se caracterizou, no período de 1930 a
1945, pela intervenção ativa no controle da população excluída.
Com a criação do Serviço de Assistência ao Menor (SAM) em 1942, vinculado
ao Ministério da Justiça, o modelo correcional repressivo foi estabelecido de forma
mais efetiva. Seu objetivo era gerir uma política sistemática da intervenção, com o
intuito de recuperar e reintegrar os jovens. Para isso, contava com reformatórios e
casas de correção, destinados a adolescentes autores de ato infracional, e com
patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos, destinados a
menores carentes e abandonados. A estrutura dos reformatórios era análoga à do
sistema penitenciário e a disciplina e o trabalho eram utilizados visando corrigir
condutas que respondiam a defeitos morais (MARTINS; BRITO, 2001).
Em 1979, foi instituída a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM),
e a execução do atendimento passou a ser feita nacionalmente pela Fundação
Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), e nos Estados pelas Fundações
Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEM). Entretanto, o trabalho desenvolvido
85
nas FEBEMs manteve a mesma característica antecessor: crianças e adolescentes
pobres continuaram a ser tratados como “potenciais marginais” que necessitavam de
“tratamento”. As ações eram “corretivas” e “repressivas”, com métodos terapêutico-
pedagógicos que tinham como meta a “reeducação” e a “reintegraçãodo menor
para a vida harmônica em sociedade. Nesse período, ideais preventivos
caracterizaram as políticas de atendimento, vistas como capazes de evitar que os
“menores” incidissem na criminalidade. Acreditava-se que o tratamento
“biopsicossocial” reverteria a “cultura da violência” que se disseminava pelos
subúrbios por meio dos conflitos entre grupos de jovens. Isso seria, sob aquele
ponto de vista, fator decisivo para o fim da marginalidade, formando jovens
responsáveis para a vida em sociedade (PASSETTI, 1999).
Conclui-se, portanto, que todos os documentos legais referentes à infância e
adolescência no Brasil, de 1927 a 1979, buscaram legitimar uma intervenção estatal
absoluta sobre esse público, especialmente das classes pobres, rotulados
“menores”, sujeitos ao abandono e considerados potencialmente delinqüentes. Tal
panorama promoveu o fechamento da família sobre si mesma, alvo de intervenções
por parte de poderes legitimados, através de técnicas e discursos sobre a infância,
especialmente a infância pobre, sempre remetida a “famílias desestruturadas”. No
atendimento a esta clientela marcada pela pobreza, pelo desemprego, por péssimas
condições de vida, ressaltam-se freqüentemente “baixos coeficientes de
inteligência”, “baixo desenvolvimento afetivo e emocional”, “imoralidade”, “dificuldade
em estabelecer limites”
55
como causas da “delinqüência”, “marginalidade”, “violência”
e “vagabundagem”. Essa visão foi responsável pela construção e ratificação de
estigmas que fizeram com que se produzisse uma associação direta entre pobreza,
conduta anti-social, doença e marginalização. A existência de crianças desnutridas,
abandonadas, maltratadas, vítimas de abuso, autoras de atos infracionais e outras
violações era atribuída à própria índole desses sujeitos.
A concepção de subjetividade entendida como interioridade, formada com
base nas influências sociais, tornou-se, como podemos perceber, discurso
55
Termos recorrentes em relatórios técnicos de um dos Juizados da Infância e Juventude /RJ, onde
atuei com estagiária de psicologia em 1999. Anotações pessoais.
86
competente para a culpabilização de algumas famílias e contextos sociais, chegando
à máxima de que “um ambiente perverso é causa de uma subjetividade perversa
56
”.
Torna-se evidente a existência de ões e políticas de atendimento
diferenciadas, quer se trate da criança pertencente à família burguesa, quer se trate
da criança oriunda da família popular. Ao redor da criança da família burguesa, foi
tecido um cordão sanitário que demarca seu campo de desenvolvimento, com
aportes da psicologia e da pedagogia, com vigilância discreta, que Donzelot (1996)
chama de “liberação protegida”. Dentro dessa área, o crescimento de seu corpo e as
aquisições da aprendizagem são apoiados por todos os saberes especializados. No
outro caso, desenvolve-se o que Donzelot chama de “liberdade vigiada”: certo
abandono das crianças pobres por parte dos poderes e saberes instituídos, que
promovem seu encaminhamento para espaços de maior vigilância e exclusão.
No acompanhamento desses adolescentes em semiliberdade, percebe-se
que, apesar de estarem submetidos, como toda a sociedade, aos ditames do
capitalismo e às exigências de consumo, inclusive de um estilo de vida marcado pelo
individualismo e competitividade, a possibilidade do desenvolvimento de uma
sociabilidade coletiva e solidária. Porém, muitas vezes o atendimento e as políticas
destinadas aos adolescentes e suas famílias reforçam e tornam visíveis somente
sua condição sócio-econômica, marcada por violências, submissões, pobreza e
preconceitos. A inexistência de uma relação com o mundo baseada na efetivação de
direitos coloca essas famílias ora como algozes, ora como portadoras de uma
“desestrutura” responsável pelo “destino criminal” desses adolescentes. É
necessário prevenir, impedir definitivamente que o mal se instale. Nessa
argumentação, a noção de direito esvazia-se e as políticas acabam sendo feitas sem
se levar em conta as necessidades reais dessa população. Engendra-se assim um
processo de desqualificação de algumas existências e de alguns modos de
organização familiar (RUBIM, 2004).
Através de técnicas e saberes presentes em organizações destinadas ao seu
atendimento e acompanhamento, emerge a construção de discursos sobre a família
e a infância, sobretudo no que diz respeito à infância pobre, sempre remetida, por
sua vez, às “famílias desestruturadas”.
56
Trecho de parecer técnico de um relatório pertencente a uma das Varas da Infância e Juventude,
Rio de Janeiro, 1999. Anotações pessoais.
87
Desse modo, torna-se de fundamental importância um engajamento
profissional reflexivo e crítico, que coloque em cheque práticas autoritárias que
desqualificam arranjos sócio-institucionais distantes do hegemônico, arranjos
coletivos que, mesmo desconhecidos ou negados, caracterizam parte da
sociabilidade da população desfavorecida. que se pensar em políticas públicas
que reconheçam sua positividade, não enfatizando somente suas carências,
focalizadas o em uma “faltarelacionada aos padrões das classes média e alta,
mas nas características próprias dessa população.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 4 (BRASIL, 1990),
responsabilizou não a família dos adolescentes, como também a comunidade, a
sociedade em geral e o Poder Público pela efetivação dos direitos desses
indivíduos. Até então, apenas famílias dos adolescentes eram culpabilizadas e
responsabilizadas pelo não cumprimento da lei. Esse fato permitiu, entre outras
coisas, que a garantia de tais direitos fosse retirada legalmente do limite privado,
passando ao âmbito das políticas públicas, desenvolvidas e executadas em parceria
com vários Conselhos – Tutelares e de Direitos. Os Conselhos Tutelares o órgãos
permanentes e autônomos, não jurisdicionais e têm por função zelar pelo
cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Já os Conselhos de Direitos –
criados em nível Municipal, Estadual e Federal m por função a formulação de
políticas publicas destinadas ao cumprimento dos direitos da criança e do
adolescente. Ambos os Conselhos estão abertos à participação popular.
A política de atendimento caracterizada pelas políticas públicas
implementadas pelos Conselhos devem seguir as prerrogativas do artigo 86 do ECA,
que determina: “a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente
far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e o
governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”
(BRASIL, 1990, p.29).
Além disso, o atendimento a crianças e adolescentes deve ter como
referências políticas públicas distribuídas em quatro grandes áreas: políticas sociais
básicas, políticas de assistência social, políticas de proteção especial e políticas de
garantias. As políticas sociais básicas são as reconhecidas como “direito de todos e
dever do Estado”, devendo ter cobertura universal. Podem ser traduzidas pelos
direitos elencados no artigo 227 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), sendo a
saúde e a educação prioridades, devido à situação sócio-econômica do País. as
88
políticas de assistência social são os direitos dos que se encontram em estado
temporário ou permanente de necessidade, em razão de privação econômica ou
outros fatores de vulnerabilidade, devendo atingir “todos os que dela necessitam”.
Podem ser incluídas nessas políticas ações como distribuição de cesta sica,
abrigo provisório, auxílio temporário, creches comunitárias. As políticas de proteção
especial, por sua vez, referem-se aos direitos de crianças e adolescentes violados
ou ameaçados em sua integridade física, psicológica e moral, em razão de sua
conduta, da ação ou omissão da família, de outros agentes sociais ou do próprio
Estado, ou seja, em situação de risco social e pessoal. Caracterizam essas políticas
plantões interinstitucionais, abrigos, semiliberdade, programas para usuários de
drogas, entre outras. Por fim, as políticas de garantias são a defesa jurídico-social
dos direitos individuais e coletivos da população infanto-juvenil, atuando no terreno
baldio entre a lei e a realidade. Os seguintes órgãos são responsáveis por sua
implementação: Ministério Público, Defensoria Pública, Juizado da Infância e
Juventude, Delegacias Especiais, Conselhos, entre outros. Vale destacar que tais
políticas devem ser obrigatoriamente transitórias e emancipadoras, articulando-se a
programas derivados das políticas sociais básicas.
Essas mudanças implementadas pela promulgação do ECA fizeram com que
a criança e o adolescente, antes considerados portadores de necessidades e
objetos de intervenção jurídica, se tornassem cidadãos, detentores do direito de ter
direitos e do dever de ter deveres.
2.4 O Estatuto da Criança e do Adolescente, a rede de atendimento ao
adolescente em conflito com a lei e as medidas sócio-educativas
A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 foi
decorrente de várias mudanças na organização sócio-político-econômica do País,
bem como de uma série de reivindicações de movimentos sociais que, dentre outras
coisas, apontavam para a necessidade de problematizar as profundas
desigualdades da sociedade brasileira. Entre elas, merece destaque a dicotomia
menor/criança, estabelecida não pelo Código de Menores de 1927, mas também
pela prática profissional dos vários atores envolvidos nesse processo. Essa
dicotomia produz uma articulação do primeiro termo com a infância pobre, das
89
favelas, que trabalha nos sinais e, por vezes, incorre na delinqüência, precisando ser
confinada em alguma instituição de exclusão, como a cadeia e o orfanato. O
segundo termo, por sua vez, é associado a crianças e adolescentes das classes
dominantes, que o se conectam a essas discussões, ligadas a instituições
consideradas fundamentais para uma boa formação educacional e moral: a família e
escola.
em seu primeiro e segundo artigos, verificamos que o ECA traz
considerações distintas sobre essas classes, especialmente por o se tratar
apenas de uma legislação específica para a infância considerada “irregular”
(BULCÃO, 2002). As medidas sócio-educativas aplicadas aos adolescentes que
cometeram ato infracional passaram a ter como objetivo, portanto, além da
responsabilização imputada através de uma sanção, aspectos educativos e
socializadores, privilegiando a manutenção dos vínculos familiares e sociais. O artigo
100 do Estatuto enfatiza a perspectiva educativa dessas medidas aplicadas: “na
aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas,
preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e
pedagógicos” (BRASIL, 1990, p.36).
Costa (1992) salienta que a ênfase no processo educacional como condição
essencial para a estruturação das medidas articula-se à condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento dada a crianças e adolescentes e fundamentada no Paradigma
do Desenvolvimento Humano baseado na concepção de sujeito de direitos.
Reconhece-se, mediante esse conceito, que esse blico é detentor de todos os
direitos dos adultos que sejam aplicáveis à sua idade. Além disso, são reconhecidos
seus aspectos especiais, decorrentes da peculiaridade de seu processo de
desenvolvimento, que faz com que esses sujeitos não conheçam suficientemente
seus direitos, não estando em condições de exigi-los do mundo adulto e não sendo
capazes, ainda, de prover por si mesmos suas necessidades básicas sem prejuízo
de seu desenvolvimento pessoal e social. Deixar de ver crianças e adolescentes
como meros objeto de intervenção jurídica e social por parte da família, da
sociedade e do Estado é superar a concepção até então comum desse grupo como
meros portadores de necessidades estabelecidas pela Doutrina da Situação
Irregular e dos Códigos de Menores que antecederam o ECA.
As medidas cio-educativas aplicadas aos adolescentes em conflito com a
lei são estabelecidas por autoridade judiciária competente, considerando a
90
gravidade da infração e/ou sua reiteração, a existência de programas e serviços para
o cumprimento das medidas em nível municipal, estadual e federal e a capacidade
dos adolescentes para cumpri-las (BRASIL, 1990). Os pressupostos básicos que
orientaram a promulgação da ECA determinaram em seu próprio arcabouço legal,
portanto, uma tensão entre o campo subjetivo e campo jurídico. As prescrições
contidas no Estatuto são sucintas, mas abrem a possibilidade da invenção, tendo
como base os princípios estatutários e constitucionais. Nesse processo de interface
entre o jurídico e o subjetivo, é de suma importância que as instâncias envolvidas na
detecção e apuração do ato infracional, bem como na aplicação e acompanhamento
das medidas sócio-educativas (polícias, Ministério Público, Defensoria Pública,
Juizado da Infância Juventude e Unidades de Atendimento) dialoguem e construam
coletivamente os critérios avaliativos dos adolescentes nas respectivas medidas,
tendo como referência o que o ECA descreve em seus artigos sobre as
competências das instâncias na apuração do ato infracional e no acompanhamento
da medida sócio-educativa aplicada.
Em muitas situações, os adolescentes utilizam a rede de medidas sócio-
educativas com o objetivo de manter seu envolvimento com a criminalidade, como
abrigo, esconderijo ou simplesmente espaço que lhes permita viver novas
experiências afetivas. Nesse processo, perde-se a dimensão da lei e, com ela, a
possibilidade de o adolescente envolver-se em uma construção que lhe permita ter a
vida como valor. Assim, é fundamental que cada órgão funcione a partir de suas
competências, o que pode ser entendido tendo como referência a construção
teórico-prática proposta por Baremblitt (1998).
Se os órgãos envolvidos diretamente ou indiretamente na aplicação das
medidas deixam de cumprir o que lhes cabe, haverá conseqüências negativas na
execução do projeto político-pedágogico que orienta metodologicamente a prática
sócio-educativa das Unidades de Atendimento. Um exemplo: em uma de suas
passagens pela Unidade, reconhecendo que deveria ter sido aplicado a ele uma
medida mais severa, o adolescente Eduardo diz ter ganhado “boi” do juiz. Outras
expressões que denunciam a banalização do ato infracional são “juiz lero-lero” e “juiz
paia”, articuladas à idéia de contrariedade. Todas essas falhas” operam no sentido
de fortalecer o envolvimento dos adolescentes em atividades criminais,
aproximando-os efetivamente da morte. A manipulação da rede torna-se também
questão quando as próprias Unidades de Atendimento que recebem os
91
adolescentes os transferem com o intuito de simplesmente livrarem-se do
“problema”. Nesse movimento, vemos instaurar-se mais uma vez algo da morte:
sujeitos tornados objetos a partir de práticas onde a dimensão humana é ignorada.
Por esse motivo, é fundamental que as Unidades realizem uma avaliação constante
de suas práticas cio-institucionais. O olhar indagador para o cotidiano é capaz de
trazer à tona, por detrás de afazeres instituídos, a possibilidade da construção de
projetos de vida.
Outro aspecto que necessita ser abordado é o que o ECA estabelece em
relação ao cometimento de delito por parte de adolescentes e a forma como essa lei
vem sendo implementada. Esse delito deve ser entendido como fato jurídico e
avaliado assegurando-se todas as garantias processuais, como a presunção da
inocência, a ampla defesa, o contraditório, o direito de contraditar testemunhas e
provas e todos os outros direitos de cidadania conferidos a quem se atribuiu a
autoria de um ato infracional. Determina-se que, após o adolescente ser apreendido
em flagrante, deve ser conduzido à Delegacia de Proteção à Criança e ao
adolescente (DOPCAD) e apresentado à autoridade judicial competente, ficando,
depois disso, internado provisoriamente no prazo máximo de 45 dias, enquanto
aguarda a sentença judicial (Art. 108 do ECA) (BRASIL, 1990)
57
. Contrariamente à
lei, no entanto, freqüentemente esses adolescentes permanecem em internação
provisória após o prazo estabelecido. Outro problema constante é a ausência de
defensores públicos, promotores e familiares durante as audiências que instauram o
devido processo legal para apuração do ato infracional, como assegura o Estatuto
da Criança e do Adolescente, em seu Capítulo II (“Dos direitos individuais”), artigos
106, 107 e 109, e Capítulo III, artigos 110 e 111 (BRASIL, 1990). A grande
quantidade de processos envolvendo adolescentes é a justificativa de parte dos
promotores para não participar das audiências. Em 2004, eram 22.000 processos
para quatro defensores
58
. Essa ausência instaura um mecanismo que desconsidera
a vida, ferindo os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, conforme art. 3º
do ECA (BRASIL, 1990).
57
Em Belo Horizonte, a Internação Provisória é realizada no Centro de Internação Provisória Dom
Bosco (CEIP).
58
Informação verbal obtida em reunião realizada entre as Unidades de Semiliberdade e técnicos do
Ministério Público, em 2004.
92
A relação que os adolescentes estabelecem com a polícia também é fator que
reforça o descrédito à lei, gerando sentimentos de revolta e ações violentas por parte
dos adolescentes, que vêem os policiais como “inimigos” que devem ser combatidos.
É comum ouvir histórias envolvendo subornos, espancamentos e tortura por parte de
policiais. Os relatos que se seguem são de dois adolescentes Eduardo e Alfredo
que cumpriram a medida de semiliberdade, e ilustram essa convivência marcada
violência, preconceitos e a “necessidade” de se “provar que é macho”. A relação que
Alfredo estabelecia com os policiais era muito mais intensa e hostil do que a
estabelecida por Eduardo, causada, entre outras questões, pelo fato de que Eduardo
fugia do estereótipo estabelecido pelas práticas sociais que instauram pré-
julgamentos e identificações em relação à possibilidade de “ser bandido”. Ambos
vestiam-se de forma que não levantava suspeitas: com roupas boas, sem o corpo
marcado com desenhos feitos a furo ou tatuagens. Entretanto, Alfredo, ao contrário
de Eduardo, é negro. Por mais de uma vez, ouvi Alfredo relatar ter sido torturado por
policiais, tendo sido, inclusive, amarrado em uma árvore de cabeça para baixo e
espancado. Sua família tinha a casa constantemente invadida e seus objetos
revirados por policiais. Em uma dessas invasões, os familiares fizeram contato com
a Unidade, mostrando-se temerosos quanto à realização das visitas domiciliares do
adolescente. Alfredo chegou a realizar visitas monitoradas por seus familiares, que
foram buscá-lo na Unidade. A atuação incisiva da polícia parecia estar relacionada
ao envolvimento do irmão do adolescente com o tráfico de drogas. Somente após o
falecimento desse irmão, em dezembro de 2003, a Unidade teve ciência de seu
envolvimento com o tráfico, por meio de matérias de jornal. Até então, a família dizia
à equipe que a ação da polícia era corriqueira na comunidade onde residia. A morte
do irmão de Alfredo foi “comemorada” com fogos de artifício e um churrasco pela
comunidade, pois ele era conhecido e temido devido à crueldade que envolvia sua
trajetória no crime. A família teve que se mudar da região e Alfredo começou a
realizar as visitas na residência de um dos tios.
O trecho da entrevista que se segue revela que um ideal de virilidade
ancorado na idéia de ser macho fundamenta as ações do adolescente e do policial.
[...] quando nós tivemos que chamar a polícia em uma ocasião pra registrar
um boletim de ocorrência, o rapaz, o garoto, xingou, desacatou o policial.
eu disse, mas assim, com uma... calma rapaz, você se arriscando aí.
Não, o que ele pode fazer é mostrar quem ele é; que ele é covarde, tirar
essa arma da cintura e dar um tiro na cara. Isso só vai provar pra você que
93
ele é covarde, eu tô indefeso. Eu digo: - não. Você não está indefeso. [...] O
policial foi chamado aqui em função do outro menino que fez uso de droga.
Você tá bancando o advogado dele, querendo comprar briga. Daqui a pouco
você vai estar também sendo enquadrado. Como realmente foi. O policial
pegou, levou. Ele chegou aqui quando voltou e contou que foi agredido, que
o policial bateu nele, e tal. A gente não sabe se é verdade, se bateu ou não.
Existe a possibilidade porque o policial pensa assim: tudo homem.
(Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)
59
.
As ações policiais, lidas a partir das postulações de Diógenes (2002),
produzem nos adolescentes envolvidos com a criminalidade, sobretudo os
vinculados às gangues, um olhar sobre a polícia como personagem que opera um
movimento “dentro/fora” do seu campo de sociabilidade. Para a autora, o campo de
sociabilidade das gangues é toda a extensão territorial relativa à sua dinâmica: o
point”, as praias, os bailes, entre outros.
Ao se projetar como “inimigo”, propulsor de enfrentamentos, de embates
dinamizadores de tensão, da descarga da adrenalina e das BPM, a polícia
se insere num mesmo terreno, cujos meios de embate e enfrentamento não
se diferenciam daqueles utilizados pelas gangues. A polícia, como em um
jogo de espelhos, possibilita a existência, a produção e o registro oficial da
gangue como agrupamento violento. A polícia institui a gangue enquanto
grupo classificado e registrado. Por outro lado, ao se colocar como agente
repressivo das ações ensejadas entre as gangues, a polícia se apresenta
como um “outro”, estranho que precisa ser combatido. (DIÓGENES, 2000,
p. 200-201).
É importante destacar que, nesses casos, uma corporação que tem como
objetivo a busca pela justiça é a primeira a ferir direitos, colocando em risco a
integridade física dos cidadãos, o que inscreve a polícia na mesma dinâmica violenta
dos adolescentes envolvidos em ações delituosas. Ao o cumprir o que lhe cabe
garantir a segurança pública e atuar de maneira semelhante aos adolescentes
envolvidos com o crime, a polícia acaba por reforçar ações violentas dos
adolescentes e seu descrédito em relação à Justiça. Diógenes (2002), ao citar
Girard, atesta essa hipótese:
Em toda a parte há o mesmo desejo, o mesmo ódio, a mesma estratégia, na
mesma ilusão da diferença, enorme na uniformidade mais completa. À
medida que a crise se exacerba, todos os membros da comunidade tornam-
se gêmeos da violência. Nos mesmos afirmaremos que eles o uns duplos
uns dos outros. Na indiferenciação todos se denominam gangues
60
, todos
59
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
60
Segundo Zaluar (2004), o conceito de “gangue” está remetido ao contexto norte-americano.
Diógenes (2000) não faz esse recorte conceitual. Utiliza os termos “gangue” e “galera” para identificar
grupos jovens rivais de uma determinada área de Fortaleza, sem diferenciar esses dois termos. Os
questionamentos produzidos por essa dissertação não terão como referência as terminologias
utilizadas acima apesar de elas aparecerem no corpo do trabalho –, pois os adolescentes em
94
são marginais. Para os jovens integrantes das gangues, a polícia e a justiça
são “gêmeas” entre si, gêmeas entre eles, todos têm em comum a
necessidade de afirmação e demonstração de força e poder através do uso
ostensivo da violência. (DIÓGENES, 2002, p. 210).
Quando surge a necessidade de acionar a Polícia devido às transgressões
que ocorrem na Unidade envolvendo os adolescentes, muita tensão, relacionada
à incerteza quanto a um atendimento e quanto a possíveis embates envolvendo
policiais e adolescentes. Em muitas situações, o atendimento foi realizado muito
tempo depois um deles, com 48 horas de atraso. Além disso, são frequentes as
ameaças a adolescentes por policiais, implicando em temores quanto à segurança.
Outro aspecto que gera tensão é a maneira como os policiais abordam adolescentes
ou reagem mediante provocações que possam existir. Em muitas ocorrências, existe
a necessidade de os educadores se colocarem contrários ao posicionamento de
policiais, colocando limites, inclusive, com seus próprios corpos.
São essas ações da polícia e os enfrentamentos estabelecidos entre ela e os
adolescentes que produzem o discurso sobre a violência e as a instauração das
“guerras”, o que pôde ser percebido em uma das atividades das Unidades durante a
realização do trabalho de campo. Os adolescentes João e Pablo mencionam de
forma exaltada a “guerra” que travam com os “alemão”, os “polícia”. Ao falarem,
gesticulam e movimentam seus corpos, como se estivessem armados. Suas
expressões demonstram raiva, sobressalto e medo. Realizam uma encenação em
que uma “guerra” real, efetiva, é narrada. Dizem que se armam e ficam na espreita
na tentativa de estarem prontos caso a polícia faça uma incursão na favela.
Eles [os policiais] têm que se preparar para entrar. acha que o polícia vai
subir o morro sozinho? Ele é igual a nós: também tem medo de morrer.
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 16 anos)
61
.
Esses polícia não tem coração. Mata você na carada”. Eles pia no morro
tudo armado. É tapa na cara. Eles mata nós é de “quebrada”. É igual
semiliberdade vinculam-se ao crime de diferentes formas: às vezes atuam individualmente, às vezes
atuam em duplas (com “parceiros”), outras se vinculam ao crime através do envolvimento com o
tráfico de drogas. Essa associação pode ser remetida ao conceito de quadrilha” apresentado por
Zaluar (2004). Feitos os devidos esclarecimentos, ressalto que as teorizações feitas por Diógenes
sobre os enfrentamentos envolvendo adolescentes e polícia são semelhantes ao que foi observado
por mim durante experiência como profissional e pesquisadora.
61
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 03 out. 2007.
95
eles pegô s
62
. Eles mata nós é na “crocodilagem”. (Adolescente em
cumprimento de medida de semiliberdade, 15 anos)
63
.
É pela ação da polícia e outras não-embasadas no “código do crime” que os
adolescentes criam referenciais de diferenciação entre o que é considerado ou não
violência. Embates violentos travados no cotidiano com grupos de adolescentes
rivais, com pessoa específica com a qual o adolescente tenha “guerra”, são
vivenciados como processos naturais, desde que embasados pelo código do crime,
em que ações violentas o “justificadas” caso não se cumpra as regras: não roubar
na comunidade, não delatar, não ficar com a droga de outra pessoa, entre outros.
Uma das entrevistas realizadas com um dos adolescentes ratifica essa idéia:
Adolescente: “Falar com você que eu perdi parceiro, mas tudo morreu foi
na pilantragem”. Pesquisadora: Como assim? O que é pilantragem”?
Adolescente: “Pilantragem é matar os outro à toa, por pouca coisa, que o
tem nada a ver”. Pesquisadora: O que é pouca coisa na vida do crime e o
que é muita coisa na vida do crime pra pessoa perder a vida?” Adolescente:
“Pouca coisa: querer matar os outro à toa, assim, porque tem gente assim
que mata, que já matou e sente mais vontade de matar ainda e qualquer
coisa que... E vamos supor: uma pessoa vai falar alguma coisa com
ele, ele já começa a endoidar, isso e aquilo. Ele com a arma na mão e
quer matar a pessoa à toa. É isso daí que acontece”. (Adolescente em
cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)
64
.
O imaginário que o adolescente em conflito com a lei irá construir em relação
à polícia, ao sistema judiciário e às medidas sócio-educativas e seus agentes é
marcado por corrupção, maus-tratos e pela lógica da violência. A esse respeito,
inúmeras vezes fui questionada por adolescentes que iniciavam o cumprimento da
medida de semiliberdade sobre o que queríamos em troca, pois os tratávamos bem,
com respeito, “igual gente”.
O policial é o primeiro agente a operar a engrenagem para apuração e
detecção do ato infracional. Ao ser flagrado em uma situação de suposto delito, o
adolescente é encaminhado à Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente
(DOPCAD) objetivando a comprovação da materialidade e a autoria da infração.
Sobre isso, por várias vezes os adolescentes relataram que, com suborno, livraram-
se do “BO” (boletim de ocorrência). Após ser encaminhado à DOPCAD, o
62
Durante a realização de uma atividade externa em um dos shoppings da cidade, os adolescentes
“deram um perdido” nos educadores, separando-se deles, e foram para o Bairro Sumaré. Chegaram à
Unidade escoltados por policiais, que afirmaram que os adolescentes haviam feito uso de droga.
63
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 03 out. 2007.
64
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.
96
adolescente é interrogado pelo Ministério Público, que poderá representá-lo ao juiz
para que seja aplicada uma medida cio-educativa (conforme art. 180 do ECA)
(BRASIL, 1990). Porém, quem lhe “profere” a sentença é um dos técnicos do CEIP.
Dessa forma, ações que são de competência do judiciário são executadas por
profissionais vinculados ao atendimento realizado na Internação Provisória. Essas
incoerências possibilitam que as ações da polícia, do sistema judiciário e das
Unidades de Atendimento fiquem na abstração, fazendo com que o adolescente
experimente “o vazio da lei” (DIÓGENES, 2002).
O adolescente exerce a violência por um vazio de palavras que sejam
mobilizadoras de nomeação e reconhecimento social, por um descrédito na
legitimidade das palavras. Ações que [...] falam por si sós, através dos
gestos, dos códigos, das roupas, dos adereços, das tatuagens. [...] Quando
a polícia realiza o enfrentamento às gangues, mobiliza-se através da lógica
da guerra, muita ação, nada de palavras. A justiça se tece na muda
“aplicação” do Estatuto, concebida na idéia de que a lei nada tem a dizer
(DIÓGENES, 2002, p. 212-213).
Para Diógenes (2002), a violência exercida pelos adolescentes é um ato de
expressão de um vazio, de uma ausência de sentido, de um nada. Ao acompanhar
os adolescentes em atividades externas, essas considerações são confirmadas.
Fora da Unidade, adolescentes que até então conversam sobre atos corriqueiros do
dia-a-dia envolvendo seus afazeres, suas paqueras, escola, entre outros assuntos,
transformam-se em “bandidos. A ostentação da imagem de “perigoso” e “temido” é
fundamental no processo de reconhecimento social. Assim, a violência envolvendo
grupos de adolescentes não tem característica instrumental, sendo puro espetáculo.
Nessa linha de raciocínio, pode-se identificar a ação das políticas de
segurança que, da mesma forma, dispensam o uso da palavra.
Elas se constroem na perspectiva do enfrentamento e do combate,
acionando um aparato repressivo cuja nica tem sido o terror e o uso da
violência. Elas reagem à violência mobilizada pelos jovens, mobilizando não
apenas uma violência em cadeia, mas essencialmente, reforçando o vazio
das palavras e, conseqüentemente, o vazio de autoridade e da lei
(DIÓGENES, 2002, p.213).
Todas essas questões refletem-se diretamente na prática sócio-educativa que
atua na valorização da palavra, permeada por aspectos como respeito, dignidade e
cidadania, que deveriam ser orientadores de todos os órgãos. Se assim fosse,
haveria o reconhecimento das práticas desenvolvidas pela polícia e pelos órgãos do
sistema judiciário como pertencentes ao campo da lei, e adolescentes, educadores,
97
familiares e a sociedade de modo geral não compartilhariam sentimentos como
medo, injustiça e descrença em relação aos órgãos de cumprimento dessa lei.
A facilidade de retomar a medida após evasões é outro aspecto que necessita
ser considerado. Muitos adolescentes evadem na certeza de que, ao se apresentar,
retornarão. Esse procedimento produz descrédito em relação à lei e faz crescer o
sentimento de impunidade. Em um de seus retornos, por exemplo, Eduardo “ganhou
de presente” do Juizado um vale-transporte, voltando sozinho à Unidade após
meses de evasão. O adolescente foi encaminhado cinco vezes para a Unidade de
Semiliberdade. Seu último encaminhamento foi motivado por uma progressão,
devido ao fato de ter cumprido a medida de internação por seis meses. Ao chegar à
Unidade, teve dificuldade para se envolver nas atividades propostas e manteve
relacionamentos motivados por interesses particulares. Aproxima-se das pessoas
visando receber algo em troca. É importante ressaltar que, nesse período, a Unidade
vivia um momento de reorganização: eu havia assumido a coordenação poucos
meses, a equipe de educadores encontrava-se envolvida com questionamentos que
buscavam a melhora de sua auto-estima e qualidade de trabalho, além da
expectativa de uma mudança de sede, que a então funcionava no bairro
Flamengo, em Contagem. Ao retornar, o adolescente encontra a Unidade de “cara
nova”. Esta fala é recorrente entre os educadores, sendo direcionada também a ele:
“parece achar que a Unidade ainda está vivendo no tempo onde ele esteve aqui,
onde era zoeira total. Conversamos com ele e explicamos que as coisas mudaram e
que é melhor dar valor a esta nova oportunidade”. (Relatório diário dos educadores,
20/11/2002)
65
. Fez-se contato com a unidade onde havia cumprido a medida de
internação, no intuito de obter informações sobre seu processo sócio-educativo, o
que foi em vão, explicitando um funcionamento entre as unidades de atendimento
em que somente questões internas são privilegiadas. Desta forma, não foi possível
saber que avaliação a unidade fazia do momento do adolescente, que efeitos a
medida havia produzido e que aspectos deveriam ser privilegiados no atendimento.
É fato que o adolescente fugiu da referida unidade pulando o muro. Foi
encaminhado juntamente com ele um relatório técnico mencionando aspectos
negativos de seu comportamento, privilegiando, entretanto, os interesses da
unidade, que explicitava sua vontade em “devolvê-lo” para a semiliberdade.
65
Pesquisa de campo junto aos arquivos da Unidade Flamengo, em Contagem, MG.
98
A partir de uma proposta de integração, as equipes efetivaram articulações
através de discussões em “estudos de caso”, onde os encaminhamentos se
constroem. Outra prática instituída é a visita do adolescente à unidade de
atendimento antes de seu encaminhamento, no caso de progressão de medida. Em
relação ao acautelamento provisório, um membro da equipe da Unidade de
Semiliberdade dirige-se à instituição que o recebe, com o objetivo de ter o primeiro
contato com o adolescente, apresentar-lhe a medida e obter daquela equipe
informações fundamentais para que seu cumprimento possa ser iniciado.
A existência de práticas que “fragmentam” adolescentes vão contra
prerrogativas estatutárias e constitucionais estabelecidas no ECA, que dão ênfase
ao aspecto educativo, ao conceito de criança e adolescente como sujeito de direitos
e pessoa em condição peculiar de desenvolvimento e ao princípio da incompletude
institucional.
Do ponto de vista organizacional, nota-se que o Estatuto tem como
finalidade central articular instâncias governamentais e não-governamentais
com funções de natureza distinta e complementar “nas áreas das políticas
sociais básicas, dos serviços de prevenção e de assistência social, de
proteção jurídico-social e de defesa de direitos”. (Mora,
[
s.d.
]
:241). Toda a
arquitetura do documento legal concorre para o estabelecimento de uma
lógica de cooperação entre os órgãos, o que não impede que, na prática, se
estabeleça uma lógica de concorrência de recursos, de espaço, de poder e
de prestígio. (FROTA, 2002, p.73-74).
Entretanto, a realidade atual, ainda marcada por fragmentações, concorrência
de recursos e descumprimento da lei pode ser entendida a partir da relação que se
estabelece entre as práticas preconizadas pelo ECA, balizadas a partir da Doutrina
da Proteção Integral, e a presença recorrente de práticas atreladas à Doutrina da
Situação Irregular, que considera crianças e adolescentes objetos passivos de
controle por parte da família, da sociedade e do Estado. Esta doutrina era o subsídio
das práticas referendadas pelo Código de Menores de 1927, que antecedeu o ECA.
As análises construídas ao longo deste capítulo ganham relevância no que se
refere à temática desta dissertação os processos de subjetivação que constituem
os adolescentes envolvidos na criminalidade mediante o anúncio constante da
possibilidade da morte ao se ampararem na concepção de subjetividade que as
orienta. Como salientado anteriormente, a subjetividade não é pensada como
atributo do sujeito, mas tecida por processos econômicos, políticos, midiáticos,
institucionais, práticas sociais, entre outros.
99
No caso dos adolescentes envolvidos em atos infracionais, merecem
destaque as ações e discursos dos profissionais que compõem a rede de
atendimento do adolescente em conflito com a lei, ações que podem instaurar
subjetivações constituídas por práticas de liberdade, mediante o incessante
descompromisso com as formas instituídas de ser, pensar e agir, marcadas por um
ideal individualista e hedonista. Práticas que coloquem em cheque as subjetivações
comprometidas pelo assujeitamento ao atual capitalismo, em que ser consumidor
torna-se regra. Neste contexto, podemos afirmar que as forças que administram o
capitalismo contemporâneo entenderam que a produção de subjetividade é tão
importante quanto a produção material dos bens de consumo e, por isso, investiram
maciçamente nesse processo (GUATTARI; ROLNIK, 1996).
Considerando esta realidade, reafirmar o valor da vida como princípio ético,
estético e político faz-se urgente. Por isso, torna-se fundamental a instituição de
práticas que permitam aos adolescentes em conflito com a lei acreditar na vida,
despotencializando processos vinculados à criminalidade, que os conduzem à morte.
100
3. A MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE SEMILIBERDADE
3.1. A semiliberdade e a proposta educativa salesiana
A proposta educativa salesiana tem como norte o Sistema Preventivo,
teorizado por Dom Bosco em 1841. Trata-se de um estilo de vida, uma
espiritualidade, um jeito de educar, em que a convivência entre educador e
educando é marco fundamental para o crescimento de todos os envolvidos no
processo educativo. Este pressuposto torna-se relevante diante da afirmação de
alguns profissionais que atuam em obras Salesianas de que o fato de realizarem um
trabalho de abrangência humana e social possibilita a construção cotidiana de
valores como solidariedade, justiça, dignidade, reafirmando a vida em todos os seus
aspectos, além de permitir aos educadores “serem melhores a cada dia”,
pensamento do qual partilham a maioria dos profissionais. Logo, muitos dos que
atuam na semiliberdade vêem seu trabalho como missão, e talvez isso permita o
enfrentamento cotidiano da morte também por parte do corpo técnico.
Mas quando eu fui procurar a Inspetoria, eu fui procurar um emprego e após
o término do treinamento eu saí de lá consciente de que além de um
emprego, eu tinha uma missão, entendeu? [...] E isso pra mim tem sido uma
coisa muita importante porque me fez crescer como pessoa, como ser
humano, porque eu passei a enxergar um lado da vida que eu não
conhecia. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)
66
.
A proposta salesiana tem como base valores que identificam a educação
como responsável pela formação da personalidade dos sujeitos. Esses valores
encontram-se articulados pelo tripé razão, religião e amorevolezza.
Scaramussa e Zeferino (1995) informam que, no pensamento de Dom Bosco,
razão significa, antes de qualquer coisa, razoabilidade. Para ele, é necessário
educar os jovens com clareza de idéias, transparência, desprezando atitudes
permeadas por pressão emotiva e sentimental, estabelecendo um diálogo que
66
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
101
provoca no educando uma resposta amadurecida, racional e crítica, entendida como
moralidade, naturalidade, seguimento da norma, escala correta de valores.
A religião é o segundo elemento do tripé que fundamenta o Sistema
Preventivo Salesiano. Configura-se enquanto pedagogia espiritual, em que o
sobrenatural é visto como elemento indispensável ao crescimento do jovem. Não se
trata de religião no sentido de práticas religiosas ou de piedade, mas de desenvolver
junto aos jovens valores como a fé, proporcionando o cumprimento de seus deveres
como cidadão e cristão.
É comum adolescentes em cumprimento de medida solicitarem autorização
para participar de cultos e missas. Seu interesse por religiões de cunho evangélico,
com práticas autoritárias, é preponderante. Mesmo gerenciada por religiosos
católicos, a Unidade não tem nenhuma objeção quanto a essa participação, desde
que sejam cumpridos normas e horários estabelecidos pelo Regimento Interno. Uma
hipótese possível para essa escolha religiosa dos adolescentes é que a procura por
espaços e ideologias mais autoritárias e menos libertárias relacione-se a uma busca
de limite e Lei, até então vivenciado por eles de forma precária, devido ao contexto
social-político-econômico-subjetivo de qual fazem parte. Experimentar a de
maneira “endurecida” pode articular-se à vivência da morte no cotidiano, permeada
pela vinculação desta com a figura do “capeta”. Seriam, assim, necessários rituais
religiosos para espantar a má influência, tema que será abordado mais adiante
nesta dissertação.
A amorevolezza é o terceiro elemento constitutivo do tripé salesiano, tendo
como significado o amor que se tem e que se demonstra. Segundo Dom Bosco e
estudiosos do Sistema Preventivo, é fundamental, no processo educativo, que o
educador se interesse por cada um dos jovens em particular. Quando um educando
percebe que é amado pelo educador, tem facilidade de se identificar a ele como
portador de valores. Se isso não acontece, está criada uma barreira entre os dois e
dificilmente o processo educativo será deflagrado.
A Assistência Presença é outro referencial importante do Sistema Preventivo,
e significa abordar o jovem no ponto em que se encontra. No pensamento de Dom
Bosco, a presença junto ao educando é fortemente educativa e vislumbra despertar
interesse, incentivar, apoiar, demonstrar afeto e resgatar a auto-estima. Para ele, o
lugar privilegiado para exercê-la é o pátio. Em linguagem salesiana, “pátio” não
expressa conceito limitado a um lugar, mas todo o espaço ocupado pelo jovem
102
quando não está em atividade formal e onde sua espontaneidade se expressa com
maior intensidade. Durante o período em que atuei na semiliberdade, o Pátio foi o
lugar privilegiado do acontecimento.
De acordo com a Análise Institucional (BAREMBLITT, 1998), o acontecimento
é todo ato, processo e resultado da atividade afirmativa do acaso, que pode ser
entendido como modo de devir caracterizado por ser aleatório, imprevisível e
incontrolável. É o momento de aparição do novo, da diferença e da singularidade.
Estes atos, processos e resultados são decorrentes de conexões insólitas que
escapam das constrições do instituído. São a base de transformações de pequeno
ou grande porte, que modificam a história em todos os seus níveis e âmbitos. Sendo
assim, pode-se falar do pátio como lugar onde a vida se processa, onde encontros
podem ser efetivados, onde sonhos, metas e objetivos podem ser construídos. Em
muitos momentos, quando estive com os adolescentes no pátio, contaram-me
histórias sobre suas vidas. Um deles em especial assassinado em 2004 falava-
me de sua infância, das brincadeiras no bairro onde morava, ao dia em que me
contou que descobriu pela avó que a mãe o havia jogado em uma lata de lixo.
Lembro-me também do dia em que lemos juntos livros de poesia que ele trouxe
emprestado da biblioteca da escola. Neste ponto, as seguintes indagações podem
ser colocadas: em que momento o acaso no percurso desse adolescente foi
capturado por um processo de morte? O que o fez desistir de sonhar? Que aspectos
da prática cio-educativa podem ter comprometido a afirmação da vida em sua
trajetória?
Silveira (2003) pontua que o Sistema Preventivo foi desenvolvido por Dom
Bosco em um período em que suas preocupações estavam remetidas a questões
religiosas, morais, econômicas, sociais e culturais, que o impulsionavam a pensar
estratégias para impedir que jovens e adultos se envolvessem com a marginalidade.
A complexidade das situações juvenis foi abordada por Dom Bosco em um nível
essencialmente bipolar, assistencial e educativo. Na concepção do Sistema
Preventivo, prevalece o pressuposto da educação como prevenção e a prevenção
na educação.
O conceito de prevenção, hoje largamente difundido, foi transplantado do
saber médico para diferentes áreas, como a pedagogia e o terapêutico. Pode-se
falar, segundo alguns teóricos, em três níveis de prevenção. A prevenção primária
engloba políticas, programas e medidas em favor da família, da juventude, da saúde,
103
da escola, da formação profissional, do tempo livre, sobretudo educativo,
direcionados a uma população não-selecionada de pessoas, para a qual existe um
risco geral de desvios, de marginalização ou de patologia social. A prevenção
secundária é dirigida a pessoas que já manifestaram sintomas de adesão a modelos
de comportamento incorretos de marginalização, de patologia. Finalmente, a
prevenção terciária destina-se a pessoas que estruturaram um comportamento
socialmente inaceitável, com desvios de tipo secundário, uma ou mais formas de
estigmatização, aceitando uma identidade negativa generalizada. Busca prevenir
recaídas, neutralizar efeitos negativos, desestruturar comportamentos inaceitáveis,
reparar o quadro das motivações e reestruturá-los.
Questionar esse aspecto da prática salesiana torna-se preponderante, pois a
idéia de prevenção desqualifica sujeitos e trajetórias, ao afirmar que existe, para
determinada parcela da população, um risco geral de desvios, marginalização ou
patologia social. Ignora-se, assim, o contexto político-social-econômico-subjetivo a
que determinada população se encontra submetida, culpabilizando individualmente
os sujeitos. Práticas referendadas por esse tipo de concepção podem fortalecer
modos de subjetivação amparados em ideais preconceituosos, que desvalorizam
alguns tipos de existência. No caso dos adolescentes em conflito com a lei, podem
reforçar ainda mais os padrões típicos da criminalidade.
Atrelado ao conceito de prevenção, encontram-se os conceitos de
periculosidade e de norma. Etimologicamente, norma quer dizer esquadro, aquilo
que é reto, perpendicular. Logo, algo que se incline para a direita ou para a
esquerda, o oblíquo, seria o anormal, ou porque se desvia de como deve ser, de
uma essência ideal em seu aspecto ontológico, ou por não ser a maioria dos casos
e, portanto, não servir de padrão de uma característica mensurável. Esse último
caso refere-se ao caráter estatístico, no sentido daquilo que é freqüente. A noção de
norma encontra-se também articulada à perspectiva evolutiva, na qual a normalidade
é parâmetro de características de determinada fase do desenvolvimento, por se
encontrar na maioria dos casos ou por apresentar caráter geral que, como indício de
uma essência ou de sua realização, adquire valor de perfeição realizada, de tipo
ideal. Os diversos sentidos do termo direcionam-se para algo comum: um padrão
através do qual toda e qualquer diferença excede. A positividade que caracteriza a
norma é subtraída para tudo que dela se afaste. Para o a-normal, negação lógica do
normal, acentua-se o que não é, o que falta, o que se apaga. Os conceitos de
104
desviante e marginal apontam para a mesma acepção encontrada no termo a-
normal, sendo desviante e marginal aqueles que não se enquadram, que estão à
margem, excluídos.
Foi através das instituições médico-pedagógicas que o termo “normal” foi
incorporado ao uso popular que, no século XX, na França, significava o “protótipo
escolar e o estado de saúde orgânica” (CANGUILHEM, 1995, p. 209). Com o
surgimento da medicina social e seu cunho normalizador em relação à saúde e
ordenação das populações urbanas, houve a naturalização da moral, objetivando
reformar física e moralmente o cidadão. Ultrapassando os muros do hospital, o
poder médico direcionou-se aos demais estabelecimentos, sobretudo à escola, lugar
por excelência da prevenção, e assumiu, com a ajuda da pedagogia, o controle da
infância não somente no que se refere à doença e à loucura, mas da criança
anormal, desviante, que se torna um empecilho ao funcionamento das engrenagens
da produção capitalista.
Houve, portanto, um processo histórico de apropriação do conceito da norma
da biologia para o campo social. Entretanto, essa apropriação foi apenas metáfora
do poder sobre as representações sociais, que as normas instituídas na
sociedade não são as mesmas que regulam a vida biológica. Neste sentido, com
essa apropriação, constroem-se analogias entre o ser vivo e a sociedade concebida
como organismo. De acordo com Canguilhem (1995), renomado estudioso da
biologia, a vida é uma atividade normativa e, como tal, produz uma polaridade
dinâmica, onde se encontram dois estados: o de saúde e o de doença. A existência
de duas ciências biológicas a fisiologia e a patologia - é decorrente de tal
postulado. A patologia é uma ciência peculiar à vida, que não se podem localizar
estados de doença nos movimentos físico-químicos. Isto significa que, não sendo a
vida indiferente às condições as quais ela se efetiva, institui normas, não para
proceder a um julgamento antropomórfico de valor, mas para a regulação da
polaridade essencial entre composição-decomposição, assimilação-desassimilação,
que caracterizam todo e qualquer organismo. Se, por um lado, as normas biológicas
são fenômenos naturais, peculiares à vida, as normas sociais o podem ser
concebidas como orgânicas. Se assim fosse, afirma Caguilhem, seria loucura dos
homens não se conformar com elas. Como os homens não são loucos e como não
existem sábios, segue-se que as normas sociais têm que ser inventadas e não
observadas” (CANGUILHEM, 1995, p.233-234).
105
Com a transposição das normas da regulação da vida orgânica para a social
através da concepção da natureza como moral, instituem-se funções de comando e
obediência. Desse modo, quem está fora, transgride. Não se leva em conta que no
mundo natural nada existe de exterior que o comande ou que o ordene e, se nele
encontramos leis necessárias e, portanto, imanentes, elas não produzem nunca a
transgressão. Rigorosamente, no mundo natural o existe o a-normal, negação
lógica do normal, aquilo que se desvia do “dever ser” rreo da lei. Como afirma
Canguilhem, “o patológico não é a ausência de norma biológica, é uma norma
diferente, mas comparativamente repelida pela vida” (CANGUILHEM, 1995, p.113-
1114). Não existe vida sem normas de vida e o estado mórbido é sempre uma
maneira de viver (CANGUILHEM, 1995).
Definir a normalidade a partir da inadaptação é aceitar mais ou menos a
idéia de que o indivíduo deve aderir à maneira de ser de uma determinada
sociedade, e portanto, adaptar-se a ela como uma realidade que seria ao
mesmo tempo um bem. (CANGUILHEM, 1995 p.257)
Essa visão mecanicista da adaptação, quando aplicada à educação, exclui
aspectos da vida social-política-econômica-subjetiva de milhares de pessoas que
vivem à margem da sociedade, principalmente por não terem acesso a condições
mínimas para exercer sua cidadania. Esta falta de condições é transformada em
“desestrutura”. Aos profissionais sociais, é delegada a tarefa de “cortar o mal pela
raiz”, agindo preventivamente antes que a patologia social se desenvolva e penetre
de tal forma nas entranhas dos indivíduos que eles não possam mais viver em
sociedade.
Levando em consideração o conceito de norma, que aprisiona as
subjetividades e estabelece formas instituídas de ser sujeito, cabe um debate sobre
os processos de subjetivação deflagrados no agenciamento espaço-corpo na
produção de subjetividade envolvendo adolescentes autores de infração penal. Essa
proposta visa problematizar as maneiras naturalizadas de se pensar a relação entre
esses sujeitos e o espaço urbano, marcada pela associação pobreza-criminalidade e
pela necessidade de se comportar e agir de acordo com o padrão estabelecido.
Encontro-me agora em minha casa espaço racionalizado, planejado,
higienizado, confortável –, mas me encontro também percorrendo favelas,
presenciando encontros e desencontros, alegrias, tristezas, conquistas... histórias de
vida e morte marcadas pela violência e pelo intuito de circular pelo espaço urbano
106
como consumidor. As maneiras de ser, perceber, viver e se colocar no mundo,
marcadas pelo “desejo” de consumir estão articuladas a processos de subjetivação,
engendrados pelo capitalismo e pela produção de indivíduos. A subjetividade não é
processada a partir do modelo “recipiente”, através do qual coisas exteriores seriam
interiorizadas, e sim a partir de um entrecruzamento de determinações coletivas de
várias espécies: sociais, econômicas, tecnológicas, da mídia. Ali, as imagens e
mercadorias que circulam no espaço urbano ganham destaque. A possibilidade de
consumi-las credencia e qualifica os sujeitos perante o social.
Considerando os adolescentes autores de ato infracional e as contundentes
críticas dirigidas por eles aos boys”, aqueles que possuem o tênis de marca, que
andam sempre “nos panos” (bem vestidos) e têm tudo “do bom e do melhor”,
percebe-se uma identificação desses últimos como inimigos e de seus bens de
consumo como os mais importantes “objetos de desejo”. Na impossibilidade de “ser
como eles”, tira-se à força.
Por outro lado, a imagem que os outros atores sociais têm dessa população
envolvida em ações violentas é respaldada pela idéia da periculosidade. Esse
conceito é elaborado no processo de constituição da sociedade disciplinar do final
do século XVIII e início do século XIX. Seu aparecimento vincula-se à reforma e
reorganização do sistema judiciário e penal nos países da Europa e do mundo,
considerando o contexto sócio-econômico e político em que cada país se
encontrava. No bojo dessas transformações, que visavam normalizar
comportamentos, surge na criminologia a noção de periculosidade, que determina
que o indivíduo deva ser considerado pela sociedade também por suas
virtualidades, não somente pelos atos contrários à lei que tenha cometido. No caso
das crianças e adolescentes oriundos das favelas das grandes cidades, suas
origens, bem como a pobreza e a negritude, são indícios fortes de um “possível” e
“provável” envolvimento com a criminalidade. Não é preciso ter cometido um ato de
delinqüência, basta que, como atores-símbolo da violência, exibam suas identidades
ser pobre, negro e favelado para que a cidade “reconheça” que a violência tem
um lugar e é protagonizada por um outro fora de mim. Especificamente no que se
refere à pobreza, Bauman (1998) afirma:
Cada vez mais, ser pobre é encarado como um crime; empobrecer como
produto de predisposições ou intenções criminosas abuso de álcool, jogos
de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem. Os pobres, longe de fazer jus
107
a cuidado e assistência, merecem ódio e condenação como a própria
encarnação do pecado. (BAUMAN, 1998, p. 59).
A partir das contribuições de Bauman (1998), podemos afirmar que o
adolescente em conflito com a lei
[...] tem de cometer esse ato perigoso e deplorável porque não tem nenhum
status dentro do grupo [...] que fizesse o padrão desse grupo parecer-lhe
natural, e porque, mesmo se tentasse dar o melhor de si, e fosse bem
sucedido, para se comportar exteriormente da maneira exigida pelo padrão,
o grupo não lhe concederia o crédito da retribuição do seu ponto de vista
(BAUMAN, 1998, p. 19).
Esse adolescente pode ser identificado como “estranho”, categoria produzida
por todas as sociedades, “sujeira” tratada como tal (BAUMAN, 1998).
Os estranhos são pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral
ou estético do mundo num desses mapas, em dois ou em todos os três.
[...] por sua simples presença deixam turvo o que deve ser transparente,
confuso o que deve ser uma coerente receita para ação; [...] poluem a
alegria com a angústia; [...] obscurecem e torna tênues as linhas de fronteira
que devem ser claramente vistas. [...] Encobrem limites julgados
fundamentais para a vida ordeira e significativa, sendo assim acusadas de
causar a experiência como a mais dolorosa e menos tolerável. (BAUMAN,
1998, p. 27).
Podemos afirmar que, na sociedade atual, a produção de estranhos está
relacionada aos modos de subjetivação que trabalham na incessante construção de
identidades. A psicologia, corpo de discursos e práticas, tem importância particular
em relação aos agenciamentos contemporâneos de subjetivação, em que uma série
de temas merece destaque: escolha, êxito, auto-descoberta, auto-realização. Dessa
forma, as práticas atuais de subjetivação produzem um ser que deve estar
conectado a um “estilo de vida”, ancorado na idéia de escolha pessoal que, por sua
vez, está remetida à lógica do mercado (ROSE, 2001)
No caso dos adolescentes em conflito com a lei, esse estilo de vida é
configurado pela busca desenfreada pelo prazer, por uma arma na cintura, dinheiro
no bolso, mulheres, um bom carro, entre outros. É comum ouvir desses
adolescentes que suas ações são balizadas por um querer e por uma vontade
pautados na concepção de um indivíduo completamente livre, que não é guiado ou
influenciado por ninguém. Entretanto, nessas maquinações da subjetividade
podemos afirmar que, ao mesmo tempo em que se produzem sujeitos livres e ávidos
por consumir, produz-se também uma “incapacidade” para tal, remetida às diferentes
108
formas de apropriação dos meios de produção e das mercadorias produzidas. Dessa
forma, podemos afirmar que esses sujeitos
incapazes [...] de pagar para ter suas escolhas respeitadas, [...]
experimentando o mundo como uma armadilha e não como um parque de
diversões [...] Uma vez que as únicas senhas para defender a liberdade de
escolha estão escassas em seu estoque ou lhes são inteiramente negadas,
elas precisam recorrer aos únicos recursos que possuem em quantidade
suficientemente grande para impressionar. Elas defendem o território sitiado
[...] através de rituais vestindo-se estranhamente, inventando atitudes
bizarras, quebrando, garrafas, janelas, cabeças, e lançando retóricos
desafios à lei. (BAUMAN, 1998, p. 41-42).
Em suma, problematizar as relações do adolescente em conflito com a lei
com o espaço urbano, com o mercado e o processo de criminalização da pobreza
nesta dissertação, tendo como parâmetro o município de Belo Horizonte – é também
endereçar perguntas à cidade, indagando sobre os processos que a constituíram.
A história da capital mineira foi gestada e produzida dentro de ideais
positivistas. Em dezembro de 1897, nasceu Belo Horizonte, primeira cidade
brasileira cientificamente planejada pelo engenheiro Aarão Reis. Seu projeto
urbanístico determinava deliberadamente que não haveria lugar para pobres dentro
de suas fronteiras. Entretanto, a cidade não é forma, mas também movimento.
Assim, em 1912, após quinze anos de sua inauguração, Belo Horizonte estava
clivada entre a cidade oficial e a satélite, onde se instalaram grupos que não se
enquadravam no plano original. A muralha invisível da Avenida do Contorno não
impediu que os pobres ocupassem a cidade e circulassem por ela.
Belo Horizonte hoje, e algumas imagens urbanas:
homem negro, pobre, magro, maltrapilho, sujo entra em um
supermercado de um bairro nobre da capital mineira. É olhado por
todos, e as marcas que traz em seu corpo trazem também a sensação
de iminente perigo e violência. Chega ao caixa com uma latinha de
molho de tomate; o dinheiro que possui não é suficiente. Retorna às
prateleiras e volta ao caixa com uma latinha menor - naquele momento,
seus míseros R$ 0,90 transformam-no em “consumidor”. Após o
pagamento, vai embora com seu produto e, com sua saída, certo
incômodo se esvai...;
menina negra, aproximadamente 10 anos, tenta vender suas balas em
um restaurante em área nobre da cidade. O garçom interpela-a, mas
ela não desiste. Dois garçons retiram-na do restaurante: um deles
109
segura suas pernas e o outro, seus braços. A menina é jogada para
fora e as pessoas continuam saboreando seu almoço...;
ponto de ônibus no centro da cidade. Jovem branca e adolescente
negro, cabelos descoloridos, marcas e tatuagens pelo corpo, colares
no pescoço. Um policial aborda-os no intuito de saber se o adolescente
“incomodava” a jovem. Eles estavam juntos
67
.
Cento e oito anos após a inauguração da cidade de Belo Horizonte, cenas de
indiferença, preconceito e tentativas de controle são protagonizadas. O mecanismo
urbanístico-panóptico, que tinha como objetivo o controle social, ganhou nova
roupagem, que elege o corpo como objeto de informação, nunca de comunicação.
No agenciamento corpo-espaço-consumo, ocorre o esquadrinhamento e o
aprisionamento das subjetividades-corpos em modelos pré-concebidos de
percepção-ação articulados à violência.
Problematizar as relações dos sujeitos com o espaço urbano e a dinâmica da
violência que o caracteriza torna-se fundamental. Ferreira Neto (2004) indaga essas
relações partindo do pressuposto de que a desigualdade estabelecida pelo
capitalismo contemporâneo instaura formas de segregação que se revelam no
espaço urbano e se materializam em muros erguidos, guaritas de portões que
demarcam e privatizam este espaço. Práticas cotidianas estão também entrelaçadas
no processo de subjetivação que constitui a maneira de andar nas ruas, de fechar os
vidros dos carros ou no olhar sempre desconfiado para os “estranhos”. Medos, ódios
insensibilidade, indiferença. Sentimentos que caracterizam as novas formas de viver,
sentir, perceber e interpretar os encontros na cidade. As classes mais abastadas
passam a acreditar que o espaço público é perigoso e, por isso, procuram ordenar
os encontros públicos pela seletividade e segregação, que se alia, então, à violência
urbana.
Por um lado, o medo do crime é usado para legitimar medidas progressivas
de segurança e vigilância. Por outro, a produção cada vez mais intensa de
falas sobre o crime passa a ser o contexto no qual os habitantes geram e
fazem circular estereótipos, classificando diferentes grupos sociais como
perigosos e, portanto, como grupos a serem temidos e evitados.
(CALDEIRA apud FERREIRA NETO, 2004, p. 114-115).
67
Situação foi vivenciada por mim e um adolescente quando saímos da Unidade para providenciar
sua carteira de identidade. As outras imagens apresentadas são observações realizadas
cotidianamente em Belo Horizonte.
110
Esses posicionamentos constituem processo de subjetivação coletivo e
bipolar, baseado na violência e insegurança compartilhadas pelos dois pólos,
intensificando ainda mais a desigualdade e o distanciamento. Diante desse
panorama, alguns questionamentos se colocam, mais como provocação do que
conclusão: como pensar os encontros na cidade a possibilidade da afirmação da
diferença, se as pessoas se encarceram em suas casas, em círculos cada vez mais
fechados, contra círculos vizinhos, estranhos e cada vez mais antagônicos, como a
dicotomia asfalto/favela? Que formas de circulação e apropriação do espaço urbano
podem ser efetivadas descartando-se a equação
diferença/desigualdade/segregação? Como conviver com a diferença, se ela é
apresentada aos sujeitos como suspeita e perigosa? Que processos micropolíticos
podem ser engendrados diante de tanta intolerância? Somando-se a essas
indagações, Ferreira Neto questiona: “seremos capazes de tomar o heterogêneo
como simples diferença e não mais como uma desigualdade irreconciliável?”
(FERREIRA NETO, 2004, p. 115).
Pequenas linhas de fuga poderão ser traçadas se a produção de
subjetividade humana e maquínica engendrar processos de singularização que
recusem a subjetivação capitalística. Essa é uma condição primordial, pois não se
trata somente da questão da qualidade de vida, mas do porvir da vida enquanto tal,
em sua relação com a biosfera. Para tanto, é necessário apostar na idéia de que a
cidade pode se tornar lugar de encontro e convivência, possibilitando que a
diferença não seja aliada na efetivação de práticas preconceituosas e excludentes.
Reafirmar a cidade como lugar de encontro e da afirmação da diferença significa
potencializar modos de subjetivação descomprometidos com os modos de
subjetivação atuais que desqualificam alguns modos de existência.
3.2 Semiliberdade: a vida acontece, a vida se esvai
SEMILIBERDADE: 24 HORAS NO AR.
Chegam calados, zangados, assustados... Olhos vermelhos... Maconha? /
Ou encharcados de lágrimas de sofrimento... / Olhos esbugalhados, tensos,
vidrados... CRACK? / Ou medo do que entorno... / Olhos frios, duros...
Maldade? / Ou tentativa de se proteger do que por vir... / Não sei... Pois
são olhos que não se deixam olhar nos olhos.
111
Vão se instalando, confiando, experimentando, testando... / Ficam folgados!
Brincam, reclamam: “Cê me tirando grandão!!!” / Querem o poder, se
impõem. o conhecem o próprio poder transformador. / Desafiam-me: /
Sou Art. 157 sabia? / Fumo mesmo, e daí! / Arrombo qualquer casa que
quiser! / Esse sou eu: Um infrator! / Confrontam-me / Eu faço!!! / Mas não
pode!!! / Eu faço!!! / Mas não pode!!! / UFA!!!! Não volto mais, vou desistir!!!
De que adianta? De que vale tanto esforço? / De que vale mostrar-lhes
perspectivas... Esperanças...Que esperança? / Saem daqui pro morro, saem
daqui pro tráfico, pra morte... De que vale!?
E a peteca... O futebol... O totó... / E eles jogam e riem e discutem e se
acertam e fazem acordos. / ADOLESCENTES... / E descobrem
maravilhados: C com A = CA, S com A = SA. / “Olha aqui! Eu sei ler!
CASA! Não me perco mais ao vir pra cá!” / QUASE CRIANÇAS... / Como
não enxergar o brilho nos seus olhos quando são amados? / Como deixá-
los sem um toque? Um afeto? / Como lhes negar a chance de simplesmente
se saberem humanos?/ É preciso ficar, cuidar, acreditar e esperar... para
um dia escutar:
“Quando sair, vou procurar a mulher que me denunciou, / vou olhar no olho
dela assim! E ela vai ter medo. Mas depois olharei assim... / e lhe direi: -
Não quero mais me vingar de você, descobri o valor da vida! (LOPES,
2006, p. 5).
Constitui-se proposta da medida sócio-educativa de semiliberdade promover
um corte na trajetória infracional dos adolescentes. Para isso, o projeto das
Unidades de Semiliberdade apóia-se no Estatuto da Criança e do Adolescente (que
coloca limites legais no ir e vir de adolescentes e na permanência deles com suas
famílias), bem como no Regimento Interno (que estabelece uma regulamentação na
vida dos adolescentes por meio de normas, o que vai contra a regulamentação da
“vida do crime”, com rotina diferente da estabelecida pela medida de semiliberdade).
Segundo um dos adolescentes entrevistados, o limite colocado pela medida sócio-
educativa é aspecto fundamental no processo de desvinculação da criminalidade:
É porque tanto lá fora a maioria das vezes você sai, se na rua mesmo,
ninguém te segurando pra você sair, a gente acaba fazendo besteira.
[...] Igual assim, você quer sair de casa não tem ninguém pra te segurar
igual aqui na Semi e aí você sai. Pode sair, voltar a hora que quiser
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)
68
.
Aqui, é apropriado trazer novamente as contribuições de Bauman (2001)
referente à modernidade líquida. Diante do esfacelamento e enfraquecimento de
instituições como a família e a escola, os adolescentes que têm como referência seu
grupo de pares se espelham no traficante, no dono da boca. Segundo Zaluar (2004),
o principal motivo de orgulho entre os meninos é fazer parte da quadrilha, portar
armas, participar de iniciativas ousadas de roubos e assaltos, adquirir fama e
ascender na hierarquia do crime, tornando-se o “dono da boca” ou o “patrão”.
68
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
112
Em entrevista realizada com um dos profissionais da Unidade de
Semiliberdade, essa situação relatada pelo adolescente é corroborada. Segundo ele,
no momento em que o adolescente é acautelado na semiliberdade, está “colado no
crime, que é um não sentido”
69
, sendo perceptível uma diferenciação entre a rotina
do crime e a estabelecida pela semiliberdade:
Poucos são os casos onde o adolescente tinha uma rotina na família, na
comunidade dele. Uma rotina que eu digo, assim, semelhante a da
semiliberdade, com algumas atividades, com alguns compromissos, com
horários. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
70
.
Ao iniciar o cumprimento da medida, uma série de regras é apresentada aos
adolescentes. Ao mesmo tempo em que se instala uma cobrança quanto ao
cumprimento das mesmas, marca-se uma diferença em relação à “vida do crime” e
uma nova forma de regulamentação da vida.
Eu acho que quando eles não estão em cumprimento de medida uma,
como é que eu posso explicar... é como se eles tivessem um... [...], que
acorda, que faz o que quer, a hora que quer e não fazer também. Então
eles não têm, não voltam o olhar pra um cuidado com a alimentação, não
têm preocupação com, é um uso que eles fazem na maioria das vezes da
própria casa, de ir em casa, tomar um banho, trocar os “panos”, igual eles
falam; às vezes se alimentar, às vezes nem têm esse costume e voltar pra
“correria”. Então eles dividem o dia e a noite deles em curtição, que
relacionado com uso de droga, com namoro, com baile, com dar volta de
carro, dar “rolé” e com a “correria”, que seria o momento dele estar atuando,
seja vendendo a droga, seja cometendo os assaltos. Então o relato da
rotina é um pouco nessa: do repouso, e geralmente o repouso, o momento
do descanso também é bem curto. (Profissional da Unidade de
Semiliberdade, 32 anos)
71
.
Essa nova forma de regulamentação tem como base a promoção de uma
crítica, que vai de encontro a um processo subjetivo marcado pela ausência de
crítica, simplesmente uma atuação, fazer contínuo, “atividade” constante, pautada
por sensações que proporcionam emoção e exibição. Hoje, os atos infracionais
tornaram-se mais freqüentes e passaram a ser cometidos com mais violência.
Se antigamente dava um tempo maior, agora não. Ele quer mais, e mais,
cada vez mais. Acredito eu... é aquela... que é querer viver perigosamente.
Porque existe isso no ser humano, entendeu? O perigo atrai, entendeu?
69
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
70
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
71
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
113
eles correm atrás disso: a emoção. Como eles falam: a adrenalina,
entendeu? (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)
72
.
Segundo Zaluar (2004), os adolescentes e jovens que se juntam a grupos
armados para assaltar declaram os seguintes motivos para essa “escolha”:
“sensação”, “emoção”, “fazer onda”, “aparecer no jornal”. Ainda segundo ela, “na
circularidade do bolso cheio de dinheiro fácil que sai fácil do bolso, ficam compelidos
a repetir sempre o ato criminoso, como se fosse um vício (ZALUAR, 2004, p.161). É
dessa forma que é estabelecida a “correria” e a vivência da morte no cotidiano. Ao
entrevistar um dos adolescentes, essa questão se concretiza:
Pesquisadora: “Esse tempo que você na Semi faleceu alguém que
passou por aqui?”. Adolescente: “Faleceu”. Pesquisadora: “E como é que foi
pra você e para os outros meninos?” Adolescente: “Ah, foi ruim. Um menino
que, um menino que, falaram pra mim que morreu na Amazonas. [...]
Fiquei muito triste. Fiquei com muita ‘atividadetambém por causa da Semi.
Nó. [...] Fiquei com muita ‘atividade’ porque ele morreu saindo da Semi. [...]
Fiquei olhando onde é que eu saindo, ficava olhando.” (Adolescente em
cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)
73
.
Além das atividades desenvolvidas na Unidade de Semiliberdade, a relação
com os educadores é vista pelos adolescentes como algo que potencializa o
cumprimento da medida e o afastamento da criminalidade:
Pesquisadora: “E o que facilita o cumprimento?” Adolescente: “As
atividades, os educador conversa, me ajudando”. (Adolescente em
cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)
74
.
Ah, o que acontece aqui, os educadores eles dão uns bons conselhos,
conversam com nós, arrumam um curso, escola, talvez até um emprego
mesmo para ajudar nós, ajudar a família também, é, faz nós ficar mais feliz.
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)
75
.
a distância da família, operada pelo cerceamento da liberdade, é vista por
eles com um dificultador:
Pesquisadora: “E o que é difícil aqui na semiliberdade?” Adolescente: “Só
saudade de casa mesmo”. (Adolescente em cumprimento de medida de
semiliberdade, 19 anos)
76
.
72
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
73
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
74
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
75
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
76
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.
114
Difícil pra mim é porque não pra sair na rua, porque sente a vontade
demais de ver sua família, ver os amigos, de ir para um baile, curtir um
pagode... não dá, entendeu? Mas por outro lado também é bom porque
você reflete mais um pouco da vida o que fazendo, o que você fez no
passado e agora seguir em frente, melhorar as coisas. (Adolescente em
cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)
77
.
Apesar de essa distância ser vista por eles como algo ruim, percebe-se, como
salientado anteriormente, que esse corte produz reflexões em relação ao
envolvimento com a criminalidade.
Os adolescentes elegem as atividades promovidas pela semiliberdade como
os principais vetores operantes na promoção de uma crítica frente ao que vivenciam
no “mundo do crime”.
Pesquisadora: “Mas estas atividades, como é que ajudam vocês?”.
Adolescente: “Ah, ajuda. Na hora que você tá fazendo aí você tá pensando”.
Pesquisadora: “Tá pensando...” Adolescente: “Na vida”. Pesquisadora: “O
que em relação à vida?” Adolescente: Pensando o que que vai arrumar
quando sair”. Pesquisadora: “Estando fora não pensa nessas coisas?”
Adolescente balança a cabeça afirmando que o. Pesquisadora: Por
que?” Adolescente: “Porque a gente não tem tempo. Tem que pensar antes.
fora lá, você tando fora se você não tiver planejando nada pra fazer
você vai começar a trocar de novo [tiro]. tem que começar a arrumar um
planejamento já. [...] Tando aqui dentro dá pra pensar”. (Adolescente em
cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)
78
.
A vida do crime produz a “correria”. Deve-se estar atento, sobressaltado,
vigilante, em “atividade”. Não há espaço para pensar nas conseqüências que a
vinculação com o crime pode gerar, porque é necessário colocar-se em risco
constantemente. A vida está a serviço da criminalidade, e o enfrentamento da morte
é algo corriqueiro, mas nem sempre percebido. Na maioria das vezes, os
adolescentes não têm clareza quanto aos motivos que determinaram o cometimento
de um ato infracional. Segundo um educador:
[...] raros casos que os adolescentes conseguem dizer, ou que ele tenha
uma motivação maior pra atuar, pra cometer. Então tem adolescente que
consegue de alguma forma justificar o envolvimento, seja responsabilizando
alguém ou seja justificando por uma necessidade em casa, ou por uma
forma de chamar atenção. Eles não têm isso de uma forma muito clara, uma
forma consciente. Mas a maioria deles não sabe distinguir, ou não sabe qual
foi a razão daquilo ali. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32
anos)
79
.
77
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.
78
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
79
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
115
Esse falta de justificativa pode estar relacionada ao processo de envolvimento
com a criminalidade. Na fala dos adolescentes, é possível identificar uma cadeia,
“uma coisa puxa a outra”. Primeiro o adolescente começa a fumar, depois a roubar,
vender droga e cometer assaltos. O ponto final é a “guerra” e, nesse momento, o
adolescente tem como alternativa matar ou morrer:
Tem a ilusão vendo os outros praticar e fica com o interesse também de,
sente vontade de usar também e quando usa, outra pessoa fala que é
bom. você está curtindo a onda e aí noutro dia você começa a pensar
naquilo, na onda que você curtiu, você vai querer mais e mais. Aí depois
que começa na criminalidade mesmo de entrar para vida do crime, vender
droga, querer fazer assalto a mão armada. Também querer matar...
(Adolescente em cumprimento de semiliberdade, 18 anos)
80
.
A medida de semiliberdade coloca em xeque a “correria”, que proporciona
reflexão, cuidado em relação a si próprio. O tempo da medida é tempo de deparar-se
com a vida, olhar, contemplar, projetar o futuro e angustiar-se. Outro espaço-tempo
é instaurado, em que a questão da finitude é colocada, bem como novas relações
com a vida e a com morte. Esta, vivenciada anteriormente como “destino coletivo” de
quem escolhe o crime, passa a ser temida.
O cumprimento da medida pode ser interpretado como tentativa de sair do
crime ou, no mínimo, possibilidade de afastamento das “guerras”. Por um período, o
adolescente tem sua vida de volta, e a possibilidade da morte fica em suspenso. Ele
consegue conviver, estudar, realizar atividades culturais, de lazer. Apesar disso, a
morte bate à porta, por exemplo, com o assassinato de um adolescente que
conheciam. Acontecimentos dessa natureza mantêm o grupo sobressaltado.
Qualquer carro desconhecido, qualquer pessoa “mal-encarada” ou até o toque da
campainha fazem com que os adolescentes se sintam ameaçados e temerosos com
relação às suas vidas. Nesses momentos, a reflexão advinda do cumprimento da
medida é capturada novamente pela “correria” e pelo medo de morrer.
Podemos conjecturar que o fato de ter uma arma em sua cintura faz com que
o adolescente se sinta poderoso, instaurando sensações permeadas por
onipotência, destemor, proteção, invencibilidade e imortalidade. Talvez por isso, o
fato de ter que abrir mão de sua arma em prol do cumprimento de medida sócio-
educativa traga vulnerabilidade e medo em relação à própria vida. O depoimento de
80
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.
116
um educador é significativo e chama atenção para um cuidado excessivo em relação
à vida que o adolescente desenvolve ao estar em semiliberdade:
Parece que quando eles estão vulneráveis mesmo, né. Eu acho que aqui
dentro, por exemplo, todo mundo bem, como dizem eles, “de presente”
né, chega alguém e pode... [...] Parece que eles confiam muito na própria
defesa deles mesmo enquanto armado, se o armado, se com a
turma dele, se não tá. Aqui não. Aqui eles não estão armados, aqui eles não
estão com turma, com “parceiro”, né. (Profissional da Unidade de
Semiliberdade, 33 anos)
81
.
A notícia de um assassinato faz com que os adolescentes se coloquem no
lugar do sujeito que morreu: poderia ter acontecido com eles. Essa morte, portanto,
tem a função de evidenciar uma possibilidade que é sempre recorrente.
Pesquisadora: “Quando morre assim algum adolescente assassinado pela
guerra o que você pensa?”. Adolescente: Nó, fico triste. Penso muita ‘treta‘
[...] Podia ser eu, podia ser alguém que eu conheço, que andava junto
comigo” (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19
anos)
82
.
Por isso, mediante um assassinato, não é possível para os adolescentes
nenhuma crítica a respeito do fato de que o mesmo tenha ocorrido em decorrência
do envolvimento com o crime: “quando acontece uma perda eles ficam o
alvoroçados, tão assim mexidos com essa morte, que é como se o dia deles
estivesse chegando e eles têm que viver tudo de uma vez” (Profissional da
Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
83
. O que fica aparente é a ansiedade, a
agressividade, o medo. São comuns falas do tipo: “morreu hoje, enterra; amanhã faz
dois dias”, “não tem jeito mesmo”; “hoje foi ele, amanhã pode ser eu”; “tem que estar
preparado pra isso”
84
. Ao se colocar como aquele que não teme a morte, estando
disposto a enfrentá-la, o adolescente tenta afirmar para si mesmo e para o outro que
é onipotente, imagem que se ancora em um ideal de virilidade e, ao mesmo tempo,
torna-se necessária para enfrentar a morte no cotidiano.
A reflexão sobre as consequencias geradas pelo crime, como sofrimento,
perdas e morte fica prejudicada quando os adolescentes estão em grupo. É
importante, ali, mostrar certo conformismo frente à situação, pois isso demonstraria
81
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
82
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
83
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
84
Falas de adolescentes durante o período em que atuei como coordenadora das Unidades de
Semiliberdade. Anotações pessoais.
117
força e virilidade. Nesse momento, eles falam da morte com aceitação: é o
inevitável, o que os obriga a se armar, a ficar na “espreita” ao sair e chegar da
Unidade, a subir os muros da Unidade e instalar cerca de proteção, a analisar e
traçar um plano de fuga caso alguém invada a instituição. Como essa força e
virilidade são apenas aparência, é comum, na ocorrência de um assassinato, o
aumento do uso de drogas e de outras infrações relacionadas ao não-cumprimento
das normas do Regimento Interno. Além disso, em atendimentos individuais os
adolescentes mostram-se mais reflexivos, embora essa contemplação ainda se
baseie na certeza da morte e no sofrimento que ela trará para familiares e pessoas
queridas.
Segundo os adolescentes, a medida de semiliberdade tem eficácia maior se o
adolescente não estiver em “guerra”.
Não adianta não [cumprir a medida]. Pra mim, não, porque aqui você tem
uma possibilidade assim de segurança, entendeu, porque você
cumprindo medida. Mas depois que se sai na rua, a gente é outra coisa,
entendeu? Porque o cara vai saber que é ocê? na rua, o cara vai
querer matar ocê. como o cara quer matar ocê, ocê vai querer matar o
cara também. vai querer entrar na vida do crime de novo. Vai querer
envolver com outros grupos, comprar arma pra matar o cara.
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)
85
.
[...] quando eu tava preso, eu saí e meu pensamento era roubar mais,
traficar mais, matar. Isso e aquilo. Mas agora que eu aqui, eu
pensando em mudar de vida. Mas chega fora lá, talvez pode ter
acontecido alguma coisa, que nem o meu colega morreu e eu falei que eu
vou correr atrás. Aí, se eu sair fora lá, ainda mais que o cara que matou
ele sabe que eu “colava” com ele aí, querer matar ele também. eu vou
sair da vida do crime, tô lá de boa trabalhando, aí chega e mata eu. Por isso
que eu falo. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18
anos)
86
.
[...] é difícil demais. Porque guerra não acaba. acaba quando a outra
pessoa morrer. Se a outra pessoa tiver guerra com outro vai ficar com aquilo
na cabeça: eu tenho guerra com ele! Eu tenho guerra com ele! Vai só indo.
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)
87
.
Eu acho assim, que a Semi não muda ninguém assim não. Eu acho que
muda assim: vai da cabeça do adolescente. [...] A ajuda também ajuda, só
que eu tô falando assim, igual não adianta ele ficar falando ali e continuar.
Ele vai ter que entrar e achar na Semi assim, “não, vou sair daqui e mudar
85
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
86
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
87
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.
118
de vida”. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19
anos)
88
.
Como mostram esses relatos, é “lá foraque tudo se decide. Apesar de a
medida ser possibilidade de vida, por afastar o adolescente temporariamente da
guerra, voltar para o “mundão” traz novamente a expectativa da morte. É preciso
armar-se para se proteger. De qualquer forma, apesar das guerras e da proximidade
da morte, pode-se afirmar que os adolescentes vêem a medida de semiliberdade
como uma oportunidade, a partir da qual são inseridos ou voltam a freqüentar a
escola, começam a fazer cursos, passam a ter acesso a atividades culturais e de
lazer e podem se reaproximar de seus familiares pela rotina que a Unidade impõe e
pelo trabalho que é realizado com a família.
As atividades culturais e de lazer têm importância muito grande no trabalho
desenvolvido na semiliberdade. Os adolescentes realizam-nas com prazer e as
Unidades, através de articulações com os equipamentos sociais do município,
conseguem oferecer um leque de opções e oportunidades. Nesse ponto, localiza-se
uma das incoerências proporcionadas a partir da inserção do adolescente na rede
de medidas sócio-educativas: a maioria só tem acesso a atividades culturais e de
lazer, como também a direitos básicos, como saúde, educação e alimentação, após
o cometimento de um ato infracional. São direitos que lhes são negados, assim
como a possibilidade de escolha em relação à vida, não relacionada à infração e,
conseqüentemente, à certeza de que irão morrer prematuramente.
Ele [o adolescente] vai ter acesso às coisas que ele não teve antes. Isso
confunde demais os meninos. Igual um caso aqui, por exemplo, chega aqui
o menino, tem quatro ou cinco refeições diárias, ele tem computador, ele
tem o espaço que ele nunca teve, aparecem propostas pra ele que de
repente lá fora ele não vai ter, entendeu? (Profissional da Unidade de
Semiliberdade, 36 anos)
89
.
Essa situação está relacionada às políticas blicas de vários Estados
brasileiros. Geralmente, os governantes elegem como prioridade ações voltadas
para a segurança, deixando de lado programas locais que poderiam melhorar as
condições de vida da população menos favorecida.
Porque eu acho que o governo também é muito falho, sabe. Principalmente
na questão assim: deixa o adolescente, o menino chega nessa idade de 16
88
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.
89
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
119
anos, mas se você voltar lá atrás, você vai ver que esse menino, quando era
criança, ele não teve oportunidade de nada, entendeu? Aí quando ele chega
nesse ponto que aqui, que é o que? Que é uma internação, que é uma
medida de semiliberdade, o Estado entra achando que o programa vai
conseguir fazer com que aquela pessoa mude. Eu acho que errado. O
programa tinha que começar quando ele era criança. (Profissional da
Unidade de Semiliberdade, 36 anos)
90
.
Recordo-me de algumas situações vivenciadas por adolescentes
acompanhados pela semiliberdade que exemplificam essa situação. Um deles foi
assassinado em 2005, em decorrência de sua atuação no crime. Quando ainda
cumpria a semiliberdade, participou de um encontro de capoeira em Barbacena,
Minas Gerais. Ao retornar, conversamos bastante sobre a viagem, o encontro, as
paqueras. Quando perguntei do que mais havia gostado, respondeu-me: “o
banheiro”. Diante dessa resposta, considerada por mim estranha, indaguei o motivo.
Ele havia achado “coisa de outro mundo” poder colocar a temperatura da água de
acordo com o seu gosto. Segundo ele, além de sair muita água do chuveiro, era
“doido demais” sair quente de um lado e frio do outro. Em outra ocasião,
acompanhei um adolescente de 12 anos ao cinema. Tivemos que sair às pressas,
pois ele ficou muito receoso. Por mais que acreditasse que nenhum personagem
sairia da tela, temia tal possibilidade. Em outro episódio, foi realizado um almoço
mais “caprichado” na Unidade para celebrar o Natal. Naquele ano, durante todo o
mês de dezembro trabalhou-se com os adolescentes a temática “sentido da vida”, e
uma das atividades era a preparação do alimento pelos próprios meninos. Um
educador que gostava de cozinhar ficou responsável pela condução da atividade e
sugeriu que fosse feita uma lasanha. A maioria não conhecia esse prato.
Tais situações, apresentadas como surpreendentes para os adolescentes,
são, para s, simples, corriqueiras, vivenciadas como naturais. Temos acesso a
quatro ou cinco refeições diárias; habitamos casas ou apartamentos que oferecem
certo conforto; vamos ao cinema, trabalhamos, estudamos, vivemos uma vida digna,
com direitos são garantidos. Entretanto, para a maioria dos adolescentes essas
situações são exceções e podem ser vivenciadas enquanto estiverem em
cumprimento de medida. Talvez por isso seja comum “regredirem” em relação à
medida, “aprontarem” quando estão para serem liberados. Com o término da
medida, todas essas coisas se dissipam e, muitas vezes, a volta para casa significa
morte. Assim, a vida acontece, a vida se esvai.
90
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
120
4. PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA PERSPECTIVA DE UMA MORTE QUE
SE ANUNCIA
Que lugar escuro, ei moço, por favor, eu queria saber
Ei, eu te conheço, me falaram que você tinha morrido; nossa, que treta,
hein, mano!
Eu sou apenas o que os seus olhos vêem!
Que lugar estranho é esse?
Ha, ha, ha!
Não vejo graça nenhuma, mano!
Aí, me desculpa!
Qual que é dessas pessoas, tá todo mundo gritando, que calor insuportável!
Quem é aquele maluco que de chapéu, sobretudo, ele tá me olhando
com um olhar estranho, meu, vixi mano, dá até arrepio!
Como você se sente?
Estou sentindo meu corpo estranho, uma dor de cabeça tremenda, parece
que a minha cabeça vai explodir!
Calma, porque logo você vai se acostumar, aqui não tem mais nem menos,
todos somos iguais!
Como que eu vim parar aqui?
Relaxa irmão, é normal, cada minuto que passa chega pessoas piores e
dessesperadas como você!
Mas eu não queria vir prá cá, eu nem sei onde eu estou, eu tava indo fazer
um rolê, mano, com os meu amigos!
Amigos?
O que tá acontecendo com a sua voz?
Respire fundo e feche os olhos!
Eu não consigo respirar fundo, estou sentindo um cheiro estranho que
queima dentro do meu nariz!
Então somente feche os olhos!
Que pesadelo horrível! Porque que todo mundo correndo? Ué, tão
falando no meu nome?O que tá acontecendo? Aí, dá licença; deixa eu
passar,deixa eu ver o que acontecendo! Nossa, tem um maluco coberto
com um plástico preto, pra ver o tênis dele, vixi, da hora hein, é igual
ao meu, que eu roubei na semana passada! Ô mãe, o que a senhora está
fazendo aqui? Não é ninguem da nossa familia? Por que a senhora está
chorando? Ôe, fala comigo. Ah, não quer falar, firmeza, fica chorando
por uma pessoa que a senhora nem comhece, vai! Alá, meu irmão também
chorando, aqui é normal as pessoas morrerem por causa de drogas,
roubos, acertos de contas. Que culpa tenho eu se tem um cara morto? Aí,
tão falando que o presunto era nóia da vila, era um maluco que trabalhava,
começou a usar e não segurou a onda! A droga é só pra quem é, né, mano?
Ha, ha, ha!
Ih, ó quem ali, meu primo! Ei joe, vamo ali buscar algo para clarear a
mente? Ei! Ou! Meu, o que tá acontecendo, ninguém quer falar comigo, hoje
não é meu dia! Eu estou com uma dor de cabeça tremenda, parece que vou
desmaiar. Caramba, tão colocando o maluco num lugar escuro e frio, e eu
que sentindo arrepio! Que frio, véi! Bom, depois dessa estou pensando
em parar de usar drogas; vou empenhar a televisão da minha coroa; acertar
os manos que eu ainda devendo; vou tirar um cochilo e tudo certo,
amanhã será outro dia! Caramba, quem consegue dormir com um barulho
desse, um falatório danado, gritos, choros, todo mundo que chega passa
abatido e nem olha no meu rosto, que cheiro é esse? Um perfume de rosas,
flores, vela queimando, devo estar mal, continuo com muita dor de cabeça.
Ô mãe, um copo d'água, ô mãe, a senhora continua chorando, logo isso
passa, dor de cabeça é normal, quem deve estar com dor de cabeça é o
mano que morreu ontem, tomou quatro tiros na cabeça. Falando em morreu
ontem, o que essa coroa de flores está fazendo dentro de casa? E esse
121
caixão? E esse pessoal da rua? Ô mãe, licença, deixa eu ver quem
dentro... ó, que brincadeira é essa? Eu aqui, esse não sou eu? Gente,
pára de chorar, alguém pode me explicar o que tá acontecendo?
Você deve aceitar a morte com uma finalidade, faz anos que você vem
procurando sarna pra se coçar!
Que papo é esse que morri, o que você fazendo aqui dentro da minha
casa?
Ué, não falaram que eu tinha morrido? Por enquanto eu sou o único que
consegue te ouvir!
Então como eu morri?
O maluco que morreu ontem é exatamente você! Sua vida custou apenas
uma pedra que você fumou e não pagou! Relaxa, irmão não fica nervoso,
você não é o unico que morre assim; daqui a pouco você vai conhecer mais
um nóia, nóia não, desculpa irmãozinho, não quis te ofender!
E agora, o que vai ser da minha vida?
Vida? Que vida? Você era, ou melhor, o que vai ser da sua alma! Ha, ha,
ha!!
Ei, maluco, você tá me tirando, você fala uma pá de baboseira e fica aí rindo
da minha cara?
Posso falar uma coisa, estou acustumado em ver família reunida gritando,
chorando, e te confesso que isso me dá um prazer danado!
Família destruída te dá prazer?
Claro, o meu maior prazer é quando você conhece o mestre!
Mestre, que mestre?
O mestre do prazer, dono de tudo aquilo que você gosta, o que te ajudou a
fugir do conselho da sua velha, a mentir para as pessoas, e não ajudar o
proximo, e a matar aquele mano!
Eu não consigo ver minha mãe assim sofrendo, chorando, eu quero abraçar
ela, mas eu não consigo!
Você teve todo tempo da vida, agora é tarde demais... bom, deixa eu
cumprir meu trabalho, se apresse porque o mestre está te esperando!
Não, eu tenho que fazer alguma coisa para tentar salvar a minha alma!
Você teve a sua chance ontem de manhã!
Chance? Que chance?
O melhor de cima mandou um evangélico na porta da sua casa para falar da
verdade e do verdadeiro amor e da sua salvação, e você se recusou em
abrir aquele portão, meu mestre gostou muito, ha, ha, ha!!! Eu tenho um
visita para você!
Visita? Que visita?
Uma pessoa que jamais te esquece!
E , Zé, lembra de mim? Você tirou a minha vida porque eu não tinha
dinheiro! Hoje eu sofro aqui vagando e pensando, saudade dos meus
filhos, da minha esposa e da minha familia! Que Deus tenha piedade da sua
alma!!!
Vamos, Zé! Chegou a hora de você ir ver o mestre! Ha, ha, ha!
Não, não, não...
Aí, moleque, chega aí!
Fala, tio!
É aqui que o corpo está sendo velado?
É aqui mesmo!!!
Então ele morreu mesmo?
Aham !!!
Meus pesames!!!
91
91
Letra da música “Paraíso paranóia”, do Grupo Expressão Ativa.
122
4.1. Vidas ameaçadas: diferentes formas do funcionamento da subjetividade
O capítulo 1 apresentou a obra “Diálogos”, de Deleuze e Parnet (1998). Nela,
os autores afirmam que a subjetividade é tecida por linhas de natureza diversa: de
segmentaridade dura ou molar, de segmentaridade flexível ou molecular e linhas de
fuga. Essa concepção de subjetividade é amparada pela idéia de funcionamento e
mostra-se contrária as teorizações das diversas correntes da psicologia que, entre
outros dispositivos, compreendem e produzem os mais diversos sujeitos: “infratores”,
boys”, “patis”, “trabalhadores”, “crentes”, “consumidores”, entre outros. De acordo
com Rose (2001), essas identidades são maquinadas por uma variedade de
agenciamentos, nos quais uma territorialização fixa identidades por meio de
diferentes máquinas: desejantes, de trabalho, pedagógicas, punitivas, de consumir,
espirituais, de mercado, dentre outras. Através dessas máquinas, uma particular
relação com o eu é administrada, forjada e agenciada.
No trabalho de pesquisa realizado na semiliberdade, é possível perceber as
nuances dessas três linhas que compõem a subjetividade dos adolescentes em
conflito com a lei. Em uma atividade específica desenvolvida pelos educadores com
os adolescentes, essas linhas se evidenciaram, revelando aspectos da subjetividade
daqueles que vivenciam, sobretudo, situações de “guerra” e ameaça. Nessa
atividade, cada adolescente deveria criar uma personagem ou um objeto, nomeá-lo
e descrevê-lo, ressaltando suas características. Posteriormente, esses personagens
seriam reunidos em um único texto, tornando-se componentes de uma história.
No início da atividade, o adolescente Francisco recusou-se a participar,
apesar de ter iniciado um desenho. A pedagoga que coordenava a atividade o
convidou, insistindo: vamos lá, dá uma vida pra ele”. Mediante esse convite, o
adolescente respondeu: “vida? Ele não tem futuro. com o corpo todo deformado
de bala. Ele é violento”. Apesar da resistência, o adolescente participou da atividade
e, ao final, apresentou o desenho de um menino com uma arma na mão, envolto em
uma poça de sangue, com as seguintes frases: “Ele mata ‘alemão’. Ele é mau. Ele é
matador. Ele não usa droga”.
Após todos os adolescentes terem terminado seus desenhos, iniciou-se a
montagem da história coletiva, com cada um apresentando suas personagens.
Nesse segundo momento da atividade, Francisco novamente apresentou resistência.
123
A pedagoga convidou-o novamente: vem participar da história com seu
personagem”. O adolescente respondeu: “história, que história? Ele faleceu
ontem”
92
.
Ao final da apresentação, os adolescentes apresentaram a seguinte
composição: “Max era grafiteiro, fazia arte. Vivia no paraíso, mas é tentado por
Rafael que gostava de mulheres, de usar correntes de prata e roupas chiques e por
Lúcius, irmão do capeta”
93
. A história contou também com a participação dos
seguintes personagens: um pastor, que, apesar de ter uma vida complicada usava
drogas, brigava com sua família se regenera, e Mateus personagem criado por
Francisco –, que tenta corromper a todos, vira americano e foge para os “Estados
Sumidos”.
Nessa história, podemos reconhecer diversos aspectos da subjetividade dos
adolescentes que se vêem ameaçados e que foram apresentados ao logo desta
dissertação. “Ser mau”, “ser violento”, “ser matador” são identidades produzidas em
contextos sociais em que a violência se apresenta como uma das formas de
sociabilidade, tornando-se relação “natural” e às vezes “necessária”. Além dessas
identidades, podemos afirmar também que a subjetividade dos adolescentes em
conflito com a lei é maquinada por processos hegemônicos, que entendem e
instituem uma forma de ser adolescente balizada em torno de ideais viris, em que a
conquista das mulheres é garantia de status e poder e a forma de se vestir (“usar
correntes”, “roupas chiques”) é valor reverenciado pelos iguais.
Considerando as postulações de Deleuze e Parnet (1998) sobre a
subjetividade, podemos conjeturar que as identidades mencionadas são segmentos
que constituem a chamada linha dura. Outro segmento que constitui essa linha e
que tangencia a questão da morte é a necessidade de enfrentá-la. Cada vez que o
adolescente sai vitorioso de uma “correria”, efetivando uma ação criminal, essas
identidades são fortalecidas.
Segmentos da segunda linha, que possui aspectos mais flexíveis, foram
revelados a partir do questionamento operacionalizado pela medida. Esse
questionamento pode produzir uma nova forma de relação social, em que a palavra,
e não a ação violenta, torna-se significativa. A partir da palavra, novos
92
Dados obtidos em pesquisa de campo realizada em 2007.
93
Dados obtidos em pesquisa de campo realizada em 2007.
124
agenciamentos podem ser maquinados, a morte passa a ser temida e o risco
evitado. Esses processos podem deflagrar desterritorializações que colocam em
cheque a “correria”, proporcionando a valorização da vida humana. Em um
movimento contrário, as identidades do “mundo do crime” podem ser também
reterritorializadas: para manter-se vivo, é necessário vencer o “inimigo” e, por isso, o
adolescente volta à “guerra”. Na semiliberdade, vários adolescentes evadiram com
esse propósito: matar quem os perseguia. A reflexão proporcionada pela medida
presentifica a morte, trazendo à tona a angústia e o medo de morrer. Por isso,
podemos afirmar que voltar à “guerra” é uma tentativa de reafirmar a própria vida.
Em suma, o segmento que orienta a constituição dessa linha é o medo de morrer.
Os conceitos de territorialização e desterritorialização foram apresentados por
Deleuze e Guattari nas obras “O Anti-édipo” (1976), “Mil Platôs” (1995) e “O que é a
filosofia?” (1992). Devem ser entendidos como processos concomitantes,
fundamentais para compreender as práticas humanas. São utilizados para explicar
como se efetiva a construção e a destruição ou abandono dos territórios humanos,
quais os seus componentes, seus agenciamentos, suas intensidades. Quanto ao
conceito de território, cabe esclarecer que, para Deleuze e Guattari, ele não se
articula somente à idéia de apropriação de parcela geográfica por um indivíduo ou
coletividade:
A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que
ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres
existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam
aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo
tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual
um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de
subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e
representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma
série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços
sociais, culturais, estéticos, cognitivos. (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 323).
Sendo assim, os conceitos apresentados acima são importantes dispositivos
para a compreensão não apenas de questões filosóficas, mas também das práticas
sociais e da temática da produção da subjetividade.
Retomando a reflexão sobre as linhas que constituem a subjetividade, pode-
se perceber que o trabalho executado na semiliberdade deflagra processos
subjetivos localizados, sobretudo, nas duas primeiras linhas. Movimentos de
desterritorialização podem ocorrer quando os adolescentes são informados da morte
violenta de pessoas conhecidas. Assim, a linhas de segmentaridade podem se
125
transformar ocasionalmente em linhas de fuga. A afirmação “não quero morrer desse
jeito”, proferida em 2005 pelo adolescente Vinícius diante do assassinato do
adolescente Alex, deflagrou movimentos e posicionamentos diferenciados em
relação à vida e à morte. Até então, o adolescente, diante de “guerras” e dos
conseqüentes falecimentos, demonstrava ódio e desejo de vingança. Pudemos
perceber em Vinícius um movimento contrário: ele finalizou o cumprimento de sua
medida em 2005, e a última notícia que tivemos dele foi a de que estava bem. Havia
arranjado um emprego no mercado de trabalho formal, mantendo-se afastado do
crime.
Considerando a realidade desses adolescentes e seus processos subjetivos
vinculados à vida e à morte, podemos postular que, a partir do medo da morte
“diferentes mecanismos de encobrimento e negação dessa realidade são
produzidos” (ELIAS, 2001, p. 21). Esses mecanismos perpassam as linhas que
constituem a subjetividade dos adolescentes, produzindo fantasias coletivas em
torno da idéia de vida eterna. Atrelado aos sentimentos de culpa que afloram a partir
dos questionamentos e desterritorializações deflagrados pela medida de
semiliberdade, o medo da morte é remetido ao contexto da punição, marcado por um
discurso religioso que relaciona o crime à influência maligna, ao Demônio,
personalizado na figura das más companhias, das s influências. Os rituais do
perdão e da absolvição instituídos pelas igrejas que seguem a doutrina judaico-cristã
colocam para os adolescentes a possibilidade de cometer muitos “erros” roubos,
assassinatos, uso/tráfico de drogas e serem perdoados no final de suas vidas. Por
isso, a morte vivenciada como punição em decorrência das más ações cometidas é
um segmento constitutivo da subjetividade de parte dos adolescentes envolvidos em
conflito com a lei, podendo ser observado na seguinte letra de rap, discutida com os
adolescentes durante a realização da pesquisa:
Hoje eu sei, quanto mal eu causei, / Cada tiro que eu dava escutava um
grito, / Me perdoa meu Deus, os tiros e as dores, / Hoje sou eu quem sinto.
Numa cama, em coma, / Não reage, não fala / Meu sangue esmorrendo /
Com projétil de uma bala. / "aquele cara, metia mala, / Não tinha idéia,
com ele é na bala.
Desacreditou, eu engatilhei, / O cara sacou, então atirei. / A lei do cão, foi
ele quem fez, / Segura ladrão, chegou sua vez! / Lembra do meu irmão?
Você riscou do caderno, / Mandou pro inferno, / Agora tó, senti a dor, /
Sempre haverá o melhor ou pior, / Pra quem se achar o terror, ahã".
Deus, alguém está chamando o nome do senhor, / Pra conseguir o último
perdão. / "me responda se puder me ouvir, eu imploro. / Deus, meus olhos
si fecharam, / Me de uma luz, vinde à mim Jesus".
126
"eu sou a luz que veio ao mundo, / Para que todos aqueles que crêem em
mim, / Não permaneçam nas trevas. / Vai ladrão, abre seu coração, / E
conquista seu último perdão".
Deus, eu matei tanta gente, / Que nem consigo mi lembrar do barulho do,
"pá", / Travou minha mente, feriu meu subconsciente, / Estou aqui, pedindo
perdão, e si é tarde ou não, / Ouça a voz do meu coração, / Porquê meus
lábios não se mexem. / Meu corpo está, totalmente paralisado, / Presinto
meu fim, minha morte sem perdão, / Me deixa sem paz, piedade de mim; /
Eu já perdoei, quem me baleou, e que pare a matança? / o quero
vingança, tanto matei sem ter motivo, / E agora respeito a todo ser vivo. /
Talvez em teu livro da vida, / Meu nome esteja quase apagado, / Sem
carinho, sem amor, sem dó, / Eu pratiquei o terror e só. / Machuquei, muitas
famílias, / Formei, minha própria quadrilha, / E agora me sinto abandonado,
/ Agora sim, sou pobre coitado. / Servi ao diabo, e nem reparei, / Que estava
errado, e que deus é a lei, / Única, que eu contrariei, / Te imploro senhor, /
Estou entre a morte e a vida, / Está acabando minha respiração, / Pelo amor
de deus... / Dê meu último...
Chora, o homem chora, / E quando o homem chora, / Vai, vai, implora, seu
último perdão. /
Ah meu deus! / Minha vida inteira foi pensar, / "eu vou me dar bem,
atirando em alguém, / Ao invés de morrer eu gosto de matar".
Mas, eu exagerei, tanta gente matei sem dó, / Por causa de pedra e pó, /
Uma bala crânio e só.
Chora, o homem chora, / E quando o homem chora, / Vai, vai, implora, seu
último perdão.
Um homem chora, reza, ora, / Pedindo à deus, / A lágrima rola no canto dos
olhos, / Implora.
E agora, o homem chora, / E quando o homem chora, / Precisa, pedir o
seu perdão
94
.
Nessa letra, podemos destacar outros segmentos constituintes da
sujetividade dos adolescentes vinculados à criminalidade: a disposição para matar
ou morrer, pois os conflitos se resolvem à bala; o sentido da vida relacionado à
concretude da morte, pois na “correria” es implícito um “não pensar”; a morte
violenta como “destino” de quem escolhe o crime: “segura ladrão, agora chegou sua
vez”; o mais forte, mais poderoso, mais esperto como vencedor do embate – sempre
haverá “o melhor ou o pior pra quem se achar o terror”; as ações violentas motivadas
por vingança e coisas banais “não quero vingança, tanto matei sem motivo”; a
associação entre o crime e a dimensão diabólica “não permaneçam nas trevas”,
“servi o diabo e nem reparei”; a sensação de onipotência e a associação entre crime
e prazer – "eu vou me dar bem, atirando em alguém, ao invés de morrer eu gosto de
matar”.
A seguir, serão apresentadas várias características do funcionamento das
subjetividade dos adolescentes, sobretudo dos que se encontram ameaçados.
94
Letra da música “Último Perdão”, do Grupo Expressão Ativa.
127
4.1.1. A banalidade da vida e a centralidade da morte
Para Elias (2001), uma das conseqüências do processo civilizador foi o
recalcamento da morte: “com a expectativa de vida mais longa, a morte é adiada. O
espetáculo da morte não é mais corriqueiro. Ficou mais fácil esquecer a morte no
curso da vida” (ELIAS, 2001, p.15). Entretanto, como apresentado no capítulo 1
desta dissertação, em muitas comunidades brasileiras a experiência da morte é algo
comum, acontecimento trivial, corriqueiro. Vários processos contribuem para isso:
precariedade ou ausência de políticas públicas, subemprego, presença e controle
social da vida via tráfico, extrema violência nas relações entre “políciae “bandido”,
entre outros. Além disso, o monopólio da violência física no Brasil esfacelou-se em
decorrência do poder paralelo do tráfico. Podemos afirmar que, concomitantemente
a todos esses processos, existem no País algumas formas de sociabilidade que se
aproximam das “sociedades medievais guerreiras” caracterizadas por Elias (2001).
Nessas sociedades, as agressões, os embates físicos e os duelos eram
acontecimentos triviais e significativos na vida das pessoas.
[...] se não todos, pelos os membros do estrato mais alto nessas sociedades
portam armas como apêndice indispensável em sua interação com os
outros. Pessoas fisicamente fracas ou incapacitadas, velhos, mulheres e
crianças permanecem em geral confinados à casa os ao castelo, vilarejo ou
quarteirão urbano habitado por seu próprio povo; só podem aventurar-se
fora com proteção especial. (ELIAS, 2001, p. 58).
Da mesma forma, essa sociabilidade está presente sobretudo nas relações
estabelecidas entre os moradores das favelas e regiões periféricas das grandes
cidades brasileiras. Nesses espaços, ataques físicos são um aspecto normal da vida
social. Se não todos, ao menos os membros do mais alto escalão (traficantes)
exibem suas armas como troféus. As pessoas que o se envolvem no tráfico vivem
subjugadas às suas leis. Os processos de subjetivação deflagrados nesses espaços
diferenciam-se dos tidos como hegemônicos, que caracterizam a vida dos
“habitantes do asfalto”. Conseqüentemente, diferentes processos relacionados à
morte são produzidos. Se na vida dos “habitantes do asfalto” ela é tabu, nas favelas
a vida e a morte são experiências banalizadas em decorrência das “guerras”
travadas no cotidiano. Nesses embates, a expectativa da morte em confrontos
sangrentos está constantemente colocada, e a possibilidade de morrer
pacificamente é vivenciada como exceção.
128
Tendo como referência a brevidade da vida, podemos afirmar que os
adolescentes envolvidos na criminalidade balizam suas ações em torno dos ideais
da sociedade capitalista, que tem como ícones o individualismo, o narcisismo, o
hedonismo e o consumo. Todos esses ideais coadunam-se na constituição de
subjetividades referendadas por um ideal individualista, ancorado na idéia de eu.
Nessa forma de subjetivação, a idéia de que “cada um existe apenas para si mesmo,
independente de outros humanos e do mundo externo” (ELIAS, 2001, p. 65) se
fortalece.
Os processos subjetivos vinculados ao valor que se atribui à vida humana
também estão marcados pelos ideais capitalistas, baseados na idéia de que a
capacidade de consumir se equipara ao valor de uma vida. No mundo
contemporâneo, os sujeitos estão encantados pelas coisas, pelas mercadorias, e
desencantados pela vida. Nesse processo, vida e consumo tornam-se equivalentes.
Na busca desenfreada pelas coisas, o adolescente envolvido na criminalidade tem
dificuldades em estabelecer vínculos, o que reforça o ideal de onipotência, em que
“minha cabeça é meu guia”. Porém, ao se deparar com a possibilidade da morte, é
muito comum o adolescente concluir que sua vida o tem sentido e,
conseqüentemente, sua morte também terá essa característica. Cabe ressaltar mais
uma vez que os processos subjetivos – nesse caso, os relacionados à vida e à morte
são imanentes às práticas sociais, que legitimam determinadas formas de ser, de
agir e de alguns estilos de vida como ideais no caso dos adolescentes, a vida dos
boyse das “patis” , cabendo aos demais, oriundos das favelas e periferias, a
pertença a uma segunda categoria e a um estilo de vida desprezível, característico
dos seres “abjetos”. As relações estabelecidas no mundo do crime são
caracterizadas pela falta de confiança e, por isso, os adolescentes são compelidos a
não se vincular às pessoas. A inexistência de vínculos afetivos significativos faz com
que o adolescente atribua esse não-sentido à própria vida, principalmente quando
pensa na morte. A máxima “os mortos vivem na memória dos vivos” tem peso
significativo.
De acordo com Foucault (1992) esses sujeitos que têm suas existências
desprezadas são classificados como homens infames. As postulações do autor
podem ser reportadas às seguintes classificações: homens de má-índole, de má-
fama, seres miseráveis, desprezíveis, abjetos, indignos, odiosos. Foucault (1992)
129
também menciona que essas existência estão destinadas a não deixar rastro, o que
só se torna possível devido ao seu encontro com o poder.
[...] é o encontro com o poder: sem este choque é indubitável que nenhuma
palavra teria ficado para lembrar o seu fugidio trajeto. O poder que vigiou
aquelas vidas, que as perseguiu, que, ainda que por um só instante, prestou
atenção às suas queixas e ao seu leve burburinho e que as marcou com um
golpe das suas garras, foi também o poder que suscitou as poucas palavras
que delas nos restam. [...] Todas aquelas vidas, que estavam destinadas a
passar ao lado de todo o discurso e a desaparecer sem nunca terem sido
ditas, não puderam deixar traços breves, incisivos, enigmáticos muitas
vezes senão em virtude do seu contato momentâneo com o poder.
(FOUCAULT, 1992 p. 96-98).
Tendo como referência Foucault (1992), afirma-se que a vida do adolescente
envolvido na criminalidade pode ser caracterizada como infame. Diversos processos
subjetivos, políticos, econômicos, sociais e midiáticos compuseram uma
subjetividade que pode ser remetida à seguinte identidade: “menor infrator”,
existência portadora de uma inferioridade, destinada a não ser lembrada.
Esses aspectos da vida dos “menores infames”, bem como suas tentativas de
não cair no esquecimento a partir do fim de suas breves existências, puderam ser
observados durante a execução desta pesquisa. Em uma das visitas à Unidade, os
adolescentes estavam envolvidos na elaboração de uma pauta com diversos
assuntos a serem discutidos na próxima assembléia. Essas assembléias são
reuniões que acontecem mensalmente e contam com a participação de todos os
envolvidos no processo sócio-educativo: adolescentes e profissionais. É o momento
para a construção das normas que sustentarão as relações comunitárias e para o
desenvolvimento de ações protagonistas, que poderão implicar em um processo de
apropriação das vidas desses meninos por eles mesmos. Nas assembléias, é
necessário um exercício constante entre as demandas de um sujeito e as do
restante do grupo, entre o que a lei determina e o que é solicitado. Nesse dia aqui
citado, quando teve início a construção da pauta, a coordenadora da Unidade trouxe
um livro e pediu que a discussão fosse anotada. Ofereci-me para fazer a ata e os
adolescentes se impressionaram com a rapidez da minha escrita. Ao final, mencionei
que seria importante que todos os presentes assinassem o livro de ata, e suas
assinaturas seriam um compromisso em relação à discussão que aconteceria na
próxima assembléia. Um dos adolescentes disse: “deixa eu escrever meu nome
porque vocês podem receber a notícia que eu morri”. Eu argumentei: “mas você é
tão jovem ainda!”. Ele respondeu: “mas é essa vida”. Questiono mais uma vez: “que
130
vida?”, e ele responde: “a vida do crime
95
. Escrever seu nome talvez fosse a prova
de sua existência e uma tentativa de afirmar a vida, por mais breve e “abjeta” que
esta tenha sido.
A certeza do adolescente de que sua existência será breve relaciona-se aos
ensinamentos do “mundo do crime”, que tem nas idéias difundidas pelas quadrilhas
um forte aliado. Nas quadrilhas, impera a dinâmica mercadológica que caracteriza as
relações trabalhistas, e a força de trabalho, sob a égide do valor de troca, é o próprio
corpo, a vida do adolescente, colocados a disposição da “firma”. Esses adolescentes
“trabalhadores” são tratados como objetos que podem ser “descartados” a qualquer
momento, caso não cumpram as regras estabelecidas pela lei do tráfico.
A partir de Zaluar (2004), podemos afirmar que os processos de subjetivação
relacionados ao mundo do crime têm o tráfico de drogas como importante
engrenagem. As quadrilhas que agenciam adolescentes e jovens instituem a
criminalidade como meio de vida pelo ensino de técnicas, pela transmissão dos
valores, da história dos seus personagens e pela instituição das regras. Dessa
forma, a quadrilha opõe-se à família e com ela compete, bem como com outras
formas de organização vicinal: os times esportivos, as organizações de moradores,
as escolas. Por isso, para os moradores:
a quadrilha é uma agência de socialização de seus filhos que inspira temor,
pois os encaminha para a violência e para a morte prematura. Na ótica dos
próprios jovens, a quadrilha é uma “escola do crime”, um aprendizado do
vício, uma engrenagem da qual não se consegue sair quando se quer.
(ZALUAR, 2004, p. 199).
É ditado corrente que a “vida imita a arte”, mas no acompanhamento dos
adolescentes vemos a “arte imitar a vida”, através das brincadeiras e encenações
que traziam à tona características da “escola do crime”. Essas brincadeiras faziam
parte do cotidiano dos adolescentes na semiliberdade e aconteciam nas atividades
desenvolvidas. Uma delas brincar de boca foi bastante significativa: “olha o pó,
olha o pó! Maconha de dez, maconha de cinco e tem crack também!”
96
. Nessa
brincadeira, os adolescentes simularam uma cena em que um “X9” era executado
por ter “entregado aos alemão” um dos “parceiros” da “firma”. Outros aspectos
podem ser observados no relato que se segue:
95
Observação participante. Pesquisa de campo realizada em 2007.
96
Observação participante. Pesquisa de campo realizada em 2007.
131
Após a realização improvisada de um teatro, fizemos uma discussão. Os
adolescentes representaram situações de uma boca de fumo, além de se
mostrarem familiarizados. Apontaram o tráfico como forma de sobrevivência
e apesar da possibilidade de uma vida breve, falaram da dificuldade de
buscarem outra maneira de viver devido ao “costume com o dinheiro”.
(Relatório diário dos técnicos, 08/09/2003).
Com certeza, “a arte imita a vida”, e nesse processo a morte apossa-se da
vida e transforma-se em “destino coletivo”, de que, para muitos, não é possível
escapar.
4.1.2. O crime e as guerras: a brevidade da vida e o anúncio da morte
Estamos diante de um novo tipo de guerra, em que pereceram, somente
no Rio de Janeiro durante a década e 1980 mais homens jovens do que os
americanos mortos na guerra do Vietnã. Acostumados com a defesa da
violência dos dominados diante do poder injusto, ficamos de mentes atadas
diante dos dados inegáveis [...] da violência do dominado contra o outro
dominado mais próximo. [...] se é fácil denunciar a violência policial, que
fazer com a violência de quadrilhas, [...] com a violência dos ataques
pessoais ao semelhante que podem resultar em sua morte por causa de um
par de tênis, ou de um olhar enviesado? (ZALUAR, 2004, p. 194).
Os conflitos que culminam na morte prematura de muitos jovens que têm o
crime como referência acontecem devido a questões pessoais desavenças,
traições, entre outras e estão relacionados ao não-cumprimento do que é
estabelecido pela “lei do crime”.
Pesquisadora: “Quais que são as regras no mundo do crime?” Adolescente:
“Ah, não mole. É quando você rodar, não caguetá o outro. Não pegar
namorada do outro. Tem também, deixa eu ver... você tem que pagar o
dinheiro certo [da droga]”. Pesquisadora: “O que o crime o perdoa?”.
Adolescente: “Não perdoa é quando alguém rouba alguma coisa da favela,
quando alguém xisnova”. Pesquisadora: “São essas as regras”.
Adolescente: “Aí paga com a vida. Em favela você paga com a vida
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)
97
.
Todas essas situações, marcadas por padrões de conduta que não condizem
com o que está estipulado pela “lei do crime”, fazem com que as “guerras” tenham
início, podendo até acontecer dentro do mesmo “bonde” ou “facção”.
Ah, de vez em quando acontece, [...] tipo de discutir, um discutir com o
outro, ou drogado. aconteceu isso [...] . Porque os dois andava junto,
entendeu, aí um foi brincar com o outro e o outro foi lá é “apelou”. Aí os dois
começou discutir na hora; na hora que um foi sacar a arma, o outro
sacou a arma primeiro e [...] foi e atirou [...] É isso que gera “guerra”
97
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
132
também com pessoas junto. (Adolescente em cumprimento de medida de
semiliberdade, 18 anos)
98
.
As guerras travadas entre facções” acontecem não devido à disputa por
pontos de distribuição de drogas, prestígio e poder, mas também para manter a
coesão do próprio grupo, do “bonde”, como no caso das galeras.
Vamos supor, meu “bondeaqui e o “bondedele lá. Entendeu? Tipo, eu
de “rolé” no baile e sem querer eu esbarro no cara. O cara acha ruim e
começa a brigar. o meu “bonde” não vai achar bom. vai querer entrar
no meio também e o “bonde” do cara não vai achar bom e vai querer entrar
no meio também. começa o “bololô” e que começa a “guerra”. que
começa a “guerra”, de um querer matar o outro. (Adolescente em
cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)
99
.
Segundo Zaluar (2004), as quadrilhas são organizações compostas por um
número relativamente pequeno de pessoas, geralmente jovens, com chefias
instituídas, que objetivam enriquecer rapidamente através das atividade ilegais que
realizam. Esses grupos possuem como características o fascínio pelas armas, as
demonstrações de poder que impõem terror aos moradores do local onde atuam,
exacerbando machismo, e a necessidade de controlar o território onde agem. as
galeras não possuem chefias instituídas, regras explicitadas e rituais iniciáticos,
tampouco promovem o enriquecimento de seus membros através de práticas ilícitas.
Os que enriquecem nas galeras, chegando a conseguir certa notoriedade social, são
os “DJs” e os “MCs”, que produzem estilos de dança funk ou fazem música para os
bailes. Quando incorrem na criminalidade, os jovens das galeras o fazem de maneira
transitória e intermitente. Apesar das diferenças, nas duas organizações os conflitos
podem acabar em agressões graves e assassinatos, pois são movidas pela “lógica
da guerra, provocada pelas pequenas feridas no orgulho” (ZALUAR, 2004, p. 198).
Na semiliberdade, foi possível constatar que os adolescentes ameaçados de
morte se vinculam principalmente às quadrilhas. Alguns contraíram guerras devido
aos conflitos individuais. Outros, por pertencerem às galeras, tiveram que “tomar
partido” perante um desentendimento ou uma provocação, ficando ameaçados.
Essa lógica da guerra parece se entrelaçar ao que Zaluar denominou
inicialmente de ethos da virilidade” (ZALUAR, 1988; 1993) e, posteriormente, de
ethos guerreiro” (ZALUAR, 1997; 1998), caracterizado como uma disposição para a
luta, para o conflito.
98
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
99
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
133
No dia-a-dia na semiliberdade, é possível observar nos pequenos gestos, nas
pequenas ações dos adolescentes, tentativas de auto-afirmação permeadas por
atitudes caracterizadas pelo “ethos guerreiro”, relacionado à produção social da
categoria “sujeito homem”, utilizada para justificar reações violentas a qualquer tipo
de contrariedade, mesmo que um simples “olhar atravessado” ou lançado à mulher
ou namorada. Segundo Zaluar (2004) essas relações revelam “a dureza e a
crueldade diante do sofrimento alheio” (ZALUAR, 2004, p.62). O depoimento abaixo
fortalece essas observações:
Quando eles estão juntos, conversando, trocando experiências e
informações [...]. Aquilo que eu falei no início: eu tenho que ganhar um
espaço aqui nesse grupo. Então como é que eu vou fazer? Também
desacatando, ofendendo, brigando... sou poderoso. No mundo do crime a
pessoa é respeitada pela quantidade de atos; ter muitos crimes faz com que
o sujeito tenha um bom conceito perante os outros. (Profissional da Unidade
de Semiliberdade, 69 anos)
100
.
Tem hora que não adianta pedir desculpas. Xinga mais ainda. Acha que é a
questão de manter a postura de valente, entendeu? Eu não me dobro”.
Que é outra coisa que eu acho que interfere muito neles é isso: “Não volto
atrás, não volto atrás”, pra não ficar mal visto pelo grupo: “ah, você é um
lero-lero, você é um comédia”. Pra ele é muito importante a visão que os
seus pares têm sobre ele. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69
anos)
101
.
Entretanto, é a partir desse ethos, desse modo de funcionamento endurecido
da subjetividade marcado pela ameaça, pela manipulação que o ato violento, a
“guerra”, se efetiva. Paradoxalmente, também será a partir desse “modo de
funcionar” do adolescente que o trabalho sócio-educativo se desenvolverá, conforme
o depoimento de um educador:
Hoje ele virou pra mim e falou assim: “olha, eles falam que a semiliberdade
não ajuda a gente não, mas eu melhorei muito”. [...] ele chegou aqui ele
era super agitado, ele queria ganhar tudo no grito. Hoje em dia ele
consegue comunicar, ele consegue não ser agressivo sabe. Porque a gente
não pode assustar com o grito sabe. A gente tem que mediar o grito. Mas
assustar com ele não. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69
anos)
102
.
O modelo de masculinidade “desafiadora” ou negadora de qualquer poder ou
autoridade (ZALUAR, 2004) pode ser reconhecido na semiliberdade através de
pequenas ações dos adolescentes que visam burlar a segurança da casa, o
100
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
101
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
102
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
134
educador, o coordenador, o diretor. O uso de drogas na Unidade é um bom
exemplo. É comum o adolescente chegar da rua, onde teve a oportunidade de fazer
uso de drogas sem que ninguém o importunasse, e fumar um “baseado” (maconha)
bem diante do educador. Diante das intervenções dos profissionais, que visam uma
responsabilização em relação ao ato ilícito cometido, são constantes as retaliações
por parte dos adolescentes, exemplificadas na seguinte fala: “cadeia não é eterna,
qualquer dia eu pulo aqui e vou à forra” (Profissional da Unidade de Semiliberdade,
69 anos)
103
.
O desafio ao outro parece relacionar-se a uma “necessidade de onipotência”,
em que ações se vinculam a um “querer individual”. Isso é bastante perceptível em
relação às drogas: “eu paro quando eu quiser”. Podemos estender essa hipótese
relacionada à “onipotência” aos atos violentos cometidos pelos adolescentes. A
produção dessa sensação é fundamental para que ele desafie a morte, instaurando
uma relação de dominação em relação ao outro. O fato de ter se envolvido em uma
troca de tiros e sair vitorioso provoca no adolescente a sensação de ter burlado a
morte. Isso faz com que o adolescente se sinta poderoso, o que o leva a repetir o
ato. Nas guerras travadas no cotidiano, o adolescente vivencia muitas perdas
alguns parceiros se vão, outros ficam com a saúde debilitada. Esses acontecimentos
fomentam vingança, constituindo-se em um fator que favorece uma compulsão em
relação ao ato de matar. Por outro lado, essa realidade sinaliza para o adolescente e
para seus familiares a possibilidade de uma vida breve, vivenciada como certeza:
Saulo falou que sabe que não tem muito tempo de vida devido às suas
guerras no morro. (Relatório diário dos educadores, 28/09/2003).
Julio ficou acordado até por volta das 2 horas da manhã. Ele fala que quer
morrer, matar e roubar, fala que não tem futuro e que não tem
oportunidades. (Relatório diário dos educadores, 06/10/2003).
Rodrigo diz que não vai voltar para a casa da mãe, pois não quer morrer
cedo. (Relatório diário dos educadores, 21/11/2003).
O adolescente Adalberto está desanimado, sem motivação e dizendo que
sua vida não tem jeito e que irá morrer pelos 20 anos de idade. (Relatório
diário dos educadores, 25/11/2004)
104
.
Antes do almoço a mãe do Leandro veio buscar seus documentos, ela
chorava muito e disse que ele pode ser morto a qualquer momento.
(Relatório diário dos educadores, 13/09/2004).
103
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
104
Este adolescente morreu assassinado no dia 31/12/2004.
135
Hoje fizemos de Formação uma tentativa de construção de um projeto de
vida com cada um [...]. Ficou claro que eles não possuem perspectiva e que
tem como referência a brevidade da vida. (Relatório diário dos técnicos e
coordenação, 25/08/2003).
A certeza da brevidade da vida faz com que o adolescente se movimente na
busca por mais tempo para viver, e por isso é necessário “viver tudo de uma vez”.
Devido às guerras, no entanto, isso irá se concretizar caso ele consiga eliminar
seu “inimigo”.
Antônio hoje escom falas assim: estou com mau pressentimento que vou
morrer com 17 anos, mas antes irei matar uns três. (Relatório diário dos
educadores, 23/06/2004).
Cristino no final da semana foi surpreendido por Joãozinho, seu rival, que
ele achava que tinha morrido. Ele fica muito nervoso dizendo que a solução
para esses casos é matar ou morrer, e ele está disposto a isso. (Relatório
diário dos técnicos e coordenação, 03/08/2004).
Em conversa com Leandro ele disse de sua decisão de evasão e do acerto
de contas com os assassinos de seu tio. Disse que no final de semana
esteve no bairro Ribeiro de Abreu e tentou matar um dos assassinos do tio
após ter ficado de tocaia a noite toda. Fala que desferiu dois tiros: um
acertou na barriga e o outro na perna da vítima. Disse ter tomado a decisão:
“acabar com a guerra matando as pessoas. É só assim que termina”.
(Relatório dos técnicos e coordenação, 06/09/2004).
Nessas postulações sobre as “guerras” dos adolescentes, os processos de
subjetivação podem ser melhor compreendidos pelas considerações de Zaluar
(2004) sobre os processos subjetivos e sociais deflagrados a partir do cometimento
de um assassinato:
Mais que uma proibição, o assassinato de outro ser humano é um tabu de
conotações sagradas. Uma vez quebrado esse tabu, o homem, responsável
por mais de 90% dos homicídios ocorridos no Brasil, se sente todo poderoso
igual aos deuses que tem o poder sobre a vida e a morte. É preciso
enxergar essa dimensão destrutiva do poder, do simbólico e da paixão pelo
ato de matar: o triunfo sobre o outro, o orgulho por sua destruição, o prazer
de ser o senhor da vida e da morte. (ZALUAR, 2004, p.339)
Além de instituírem uma forma específica de se lidar com o tempo, as
“guerras” também instituem uma regulação em relação à circulação dos
adolescentes no espaço urbano. Nessa regulação, o adolescente fica privado de
circular por determinadas áreas da cidade devido às ameaças. Um novo paradoxo
instala-se: privar-se dessa circulação pode significar permanecer vivo por mais
tempo; por outro lado, pequenos movimentos-sinais de morte são produzidos, pois
em muitos casos é preciso abrir mão do convívio com a família, deixar de conhecer
136
lugares e pessoas, abandonar vivências e experiências que poderiam ser
significativas.
Saulo não poderá realizar visitas em casa, pois corre risco de vida em sua
região. A mãe está tentando pagar as suas dívidas com os traficantes, mas
não pagou tudo ainda. [...] Saulo disse que não vai ao passeio proposto pela
Unidade porque é muito perto de sua “quebrada” e ele teme ter vontade de
fugir e voltar pra casa. (Relatório diário dos técnicos e coordenação,
23/09/2003).
Conversei com Elias sobre a possibilidade de cursos e ele optou por
Confecção de Bijuterias. [...] Deverá iniciar em 13/10. [...] Elias não pode
circular no centro de BH e disse que poderá pegar o ônibus 2004 perto da
Unidade Ouro Preto e ir direto, sem problemas. (Relatório diário dos
técnicos e coordenação, 23/09/2003).
Com as limitações colocadas pelo “mundo do crime”, é comum que os
adolescentes passem a brevíssima vida no mesmo lugar. Muitos nascem e morrem
sem ir ao cinema, sem ir ao estádio de futebol, sem passear pela cidade. Suas
existências limitam-se às fronteiras da favela.
4.1.3. As ameaças, o medo e a hiper-realidade da morte
Durante o período de trabalho na Unidade de Semiliberdade, foi possível
perceber que, por mais que os adolescentes se mostrassem corajosos para
enfrentar a morte cotidianamente, um grande temor marcava seus comportamentos,
suas atitudes, seus modos de ser. Apesar do medo não ser aparente em seus
discursos, é ele que, durante a “correria”, serve de orientação: é preciso estar alerta,
precaver-se, pois vive-se constantemente a possibilidade da morte.
Pesquisadora: “Você acha que os adolescentes que estão envolvidos com o
crime m medo de morrer? Adolescente: “[Fica em silêncio. Demora a
responder]. Medo tem, né! Só que tem que ficar lá pra arrumar um dinheiro”.
Pesquisadora: “E quando sai pra fazer uma correria, você acha que pensa
nisso?”. Adolescente: Ah, não pensa não! Pensa no dinheiro”.
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)
105
.
Essa precaução faz com que o medo se transforme em sentimento encoberto
pela “correria”, pela “atividade”, tornando-se essencial para o adolescente enfrentar
o risco cotidiano da morte. Entretanto, é necessário negá-lo em prol da afirmação de
virilidade e da própria permanência no crime:
105
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
137
Em relação à morte, é uma coisa que assusta muito a todos. Eles m a
postura de que: eu o tenho medo de morrer, mas eles lutam o tempo
inteiro contra a morte, sabe. É uma luta diária contra a morte. Se toca uma
campainha aqui, menino sai correndo. Ele correndo por causa de quê?
Não tem medo da morte! Então é uma coisa muito assim: eu acho que a
morte muito próxima deles e muito distante no “psicológico” porque ele
acha que não vai morrer. Porque ele acha que sempre vai estar fugindo da
morte. E mexe muito com todos. Mexe com todos. Todo têm medo né,
apesar de falar que não. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36
anos)
106
.
Reportando-nos a Elias (2001), podemos afirmar que não é a idéia da morte
que provoca medo e horror, mas a imagem antecipada da mesma. As guerras
contraídas pelos adolescentes fazem com que essa imagem seja algo constante nas
vivências cotidianas: a todo momento, sua morte é anunciada. Esse anúncio tem
dimensão trágica, com a certeza de uma morte violenta. É comum os adolescentes
sonharem que estão sendo atacados, cravejados por balas. Em contrapartida,
reafirmam o seguinte desejo: “eu queria morrer dormindo”.
Podemos afirmar que os questionamentos e as reflexões produzidas pela
medida de semiliberdade despotencializam a “correria” e operam no sentido de
intensificar esse medo, que adquire, em alguns casos e em determinadas ocasiões,
um superdimensionamento, abrindo espaço para fantasias de morte: gestos, ações e
pessoas podem significar ameaça. Essas postulações podem ser observadas no
relato que se segue.
Em outubro de 2007, a coordenadora da Unidade de Semiliberdade Ouro
Preto acompanhou os adolescentes em um passeio à Lagoa da Pampulha. Em
determinado momento, dois rapazes que passavam de moto resolveram parar
próximo ao grupo. João ficou muito nervoso e exclamou: “vou sair quebrando”. Ao
ouvir João, a profissional viu-se ameaçada e argumentou com o adolescente que era
necessário saber para onde iriam as motos, para correrem na direção contrária. Os
rapazes foram embora e o grupo chegou à conclusão de que tudo não havia
passado de uma “viagem”. Podemos afirmar que essa “viagem” é possível devido à
inserção do adolescente na criminalidade e o estabelecimento da “correria”
“atividade” constante: deve-se estar atento, suspeitar de tudo, não se pode confiar
em ninguém e é fundamental agir um dos aspectos de sua subjetividade. No caso
específico do adolescente João, cabe ressaltar que ele se encontrava ameaçado
não apenas pelo tráfico de drogas, mas também por um sargento da polícia.
106
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
138
Segundo a coordenadora, “a morte está do lado dele”
107
. Depois do ocorrido, a
profissional que acompanhava os adolescentes tentou amenizar o clima nervoso e
agitado. Um dos adolescentes afirmou: “eu ia jogar uma manga nos caras”. Ao ouvir
tal afirmação, João disse: “como vo vai parar um 38 com uma manga?”. A
sensação de ameaça e o medo da morte é tão real que, mesmo o tendo visto
arma alguma, João afirma se tratar de um revólver calibre 38. A coordenadora diz
para João: “se você corresse para o lado errado, eu pararia você com uma goiaba.
Para João, essa não seria a saída, pois com ele no chão, “era só terminar o
serviço”
108
. Nesse relato, observamos formas diferenciadas de se lidar com
situações de ameaça por parte dos adolescentes, que agem, e por parte da
profissional, que racionaliza. Nas diversas situações em que a vida de um
adolescente esteve ameaçada, as ações destes eram balizadas por
comportamentos que buscavam sanar a ameaça: fugir, esconder-se ou livrar-se do
“inimigo”. os profissionais buscavam mediar a situação pela palavra o que, na
vida do crime, não faz o mínimo sentido e seria procurar a morte.
Sabemos que o medo da morte é constitutivo do humano, e algumas
situações o nascimento de um filho, a morte de uma pessoa amada fazem com
que o experimentemos de forma intensificada. Entretanto, podemos afirmar que, no
caso dos adolescentes, o medo constante da morte é engrenagem fundamental na
constituição de suas subjetividades, e todas as situações de ameaça que vivenciam
potencializam a hiper-realidade da morte.
4.1.4. Para continuar vivo é necessário vivenciar “pequenas mortes”
Durante a realização do trabalho de campo, foi possível vivenciar, de forma
angustiante, a concretude de uma ameaça de morte. Em um dos dias, ao chegar a
Unidade, encontrei o adolescente Diego na varanda. Começamos a conversar e
fomos interrompidos pela terapeuta ocupacional, que o chamou. Ao retornar, Diego
manteve-se cabisbaixo e calado. Diante da pergunta sobre o que havia acontecido,
ele responde: “estou ameaçado de morte”. Havia acabado de obter essa informação
pela profissional. Quanto aos motivos da ameaça, ele menciona um problema que
107
Pesquisa de campo realizada em 2007.
108
Pesquisa de campo realizada em 2007.
139
teve com o adolescente Alessandro, no CEIP: ao sumir um cobertor, Diego foi
apontado como culpado, motivo das ameaças que haviam chegado por telefone.
Indago se não seria o caso de uma transferência para a outra Unidade de
Semiliberdade e ele informa que não: além de as Unidades estarem próximas,
Alessandro esteve em cumprimento de medida de semiliberdade, conhecendo
bem as duas Unidades e suas rotinas. Diego diz que os profissionais responsáveis
pelo atendimento informaram sua situação ao Ministério blico e ao Juizado da
Infância e Juventude, solicitando sua inserção no Programa de Proteção à Criança e
ao Adolescente Ameaçado de Morte (PPCAM).
O PPCAM de Minas Gerais, criado em 2003 pela Secretaria Especial dos
Direitos Humanos, foi pioneiro no Brasil. Sua implantação foi decorrente do grande
número de assassinatos de adolescentes em cumprimento de medida sócio-
educativa naquele período, e seu objetivo é garantir o direito à vida, à integridade
física e moral de crianças e adolescentes envolvidos em situações de ameaça. Após
uma série de avaliações realizadas pelo Programa, tendo com parceiros o Ministério
Público, o Juizado da Infância e o Conselho Tutelar, a criança e o adolescente
ameaçados são retirados de suas comunidades e encaminhados para casas de
parentes e abrigos. Dependendo da gravidade da ameaça são acionadas entidades
de outros municípios para que esses sujeitos sejam recebidos nesses locais
109
.
Ao buscar maiores esclarecimentos com o diretor das Unidades, fui informada
que o real motivo da ameaça contra Diego foi o fato de o adolescente ter deixado
escapar para os demais no CEIP que ele havia tido relações sexuais com sua irmã.
Por isso, no início do cumprimento de sua medida na semiliberdade, teve que “ficar
no seguro”, ou seja, trancado em um cômodo separado, período em que foi
realizado um trabalho com os adolescentes para que Diego pudesse permanecer na
Unidade “são e salvo”. Esse trabalho tornou possível uma convivência mínima entre
Diego e os demais, mas ele se mantém excluído do grupo. Sua história se espalhou
pela rede de atendimento, bem como sua identidade: “Jack”. Alessandro, então,
quer matá-lo. Como afirmado no capítulo 2, existe uma categorização da vida
humana estabelecida pela criminalidade e, nela, a vida de um estuprador não tem
valor.
109
Informação verbal. Pesquisa de campo realizada nas Unidades de Semiliberdade, em 2007.
140
Quando retornei à Unidade na semana seguinte para a realização da
pesquisa, não encontrei Diego. Ele havia sido encaminhado para o Programa de
Proteção. Provavelmente, estaria vivendo em outro bairro ou município, com outro
nome. Ele estaria bem? Será que o veria novamente? Teria ao menos notícias
suas? Esses questionamentos fizeram com que eu experimentasse sensação
vinculada à morte: Diego teria que abrir mão de sua vida, sua identidade, do vínculo
com pessoas e lugares. Alguns cortes teriam que ser feitos para que ele
permanecesse vivo.
As entrevistas realizadas durante o trabalho de campo evidenciaram que,
para driblar a situação de ameaça com sua família e com os próprios profissionais
das Unidades de Semiliberdade, o adolescente tem que realizar cortes, vivenciar
perdas, o que, na maioria das vezes, é bastante difícil. Isso pode ser percebido nas
observações realizadas por uma profissional da Unidade no que se refere ao
encaminhamento de um adolescente ao PPCAM.
O Programa de Proteção pagava aluguel, dava uma ajuda para as
despesas e a mãe querendo mais. E a mão reclamando, responsabilizando
esse filho por todas as mudanças que a família sofreu. E essa cobrança da
mãe trazendo uma angústia pra esse adolescente, um sentimento de culpa
e de certa forma no entendimento dele, sugerindo e induzindo ele a voltar
pra criminalidade. Porque todas as mudanças que em função dele a família
tinha sofrido tava trazendo sofrimento porque são rompimentos também.
Essa família sai da comunidade que ela tava, larga a casa que ela tava
construindo, uma série de mudanças. Então esse conflito até dentro da
própria família traz uma outra sensação de morte pra esse adolescente.
(Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
110
.
Ou outros que foram incluídos que a gente nunca mais teve notícia, [...] da
coisa do sigilo, da proteção mesmo. Então é muito estranho, a gente,
quando a gente vê um caso que o adolescente fala da situação de morte, de
risco, quando a família avalia isso e a família se mobiliza pra mudar, vender
as coisas, sabe, a gente é, consegue entender melhor, consegue lidar um
pouco melhor, porque parece que toda uma mobilização, né, do menino,
da família, do Juizado, da Promotoria, da equipe aqui pra esse salvamento.
Mas quando a gente percebe que um dos lados dos envolvidos não tem
caminhado muito nesse sentido, não tem considerado muito isso aí, isso é
mais angustiante. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
111
.
Considerando as dificuldades encontradas por adolescentes e suas famílias
nesse processo de quebra de vínculos almejando resguardar vidas, os comentários
de um adolescente em debate realizado após a exibição do filme “Orfeu”, de Cacá
Diegues, que aborda as lutas de uma comunidade contra a violência cotidiana,
110
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
111
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
141
fortalecem essa perspectiva: “como que a namorada do Orfeu pede para ele sair da
favela se a vida dele toda está lá!” (Relatório diário dos técnicos, 01/09/2004). Em
muitas situações, esse pedido é endereçado aos adolescentes ameaçados. Alguns
tentam efetivá-lo e vêem a mudança de bairro como possibilidade de vida:
Adolescente: “Eu querendo ficar de boa, mas eu tenho as guerras. Eu saí
do bairro onde é que eu morava”. Pesquisadora: “Então uma tentativa de
sair da guerra” é...”. Adolescente: Mudando do bairro”. Pesquisadora: “E foi
fácil mudar? Você nasceu nesse lugar?”. Adolescente: “Nasci. É difícil, né?”.
Pesquisadora: “Tem quanto tempo que você saiu de lá?”. Adolescente:
“Quanto tempo? Tem um ano”. Pesquisadora: “A família mudou junto?”.
Adolescente: “Mudou”. Pesquisadora: “Tem alguma coisa que foi difícil
deixar pra trás?”. Adolescente: “Ah, os colegas, o bairro que eu já estava
acostumado desde pequeno”. Pesquisadora: “E nesse bairro que você
morando?”. Adolescente: “Nesse bairro que eu tô morando agora é bom”.
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)
112
.
Para outros adolescentes, muitas vezes a própria medida, as privações que
ela realiza, o cerceamento da liberdade devido às situações de ameaça, objetivando
proteção, instauram outro tipo de morte, fazendo com que o descumprimento da
medida seja inevitável:
até aconteceu da gente barrar e não deixar sair acreditando que deste
modo estaria protegendo ou resguardando esse menino. E o menino ficou
uma, ficou duas, dois finais de semana até que falou: “eu não agüento ficar
aqui dentro, vocês estão me matando desse jeito. Melhor eu ir e resolver
isso do que ficar confinado aqui dentro” [...]. Quando ele fala: “tô morrendo
aqui dentro, vocês estão me matando aqui dentro”. É dizendo disso mesmo.
(Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
113
.
Enfim, podemos afirmar que, para o adolescente romper com o circuito crime-
ameaça-guerra-morte via medida de semiliberdade, modos de subjetivação
contrários à “correria” devem ser instaurados. Uma das engrenagens na constituição
desses modos de subjetivação é a reflexão advinda dos questionamentos
proporcionados pelo cumprimento da medida. Entretanto, para muitos adolescentes,
o simples fato de permanecer em semiliberdade é algo insuportável.
4.1.5. Crime: Deus, o Diabo, a vida e a morte
Elias (2001) menciona que, diante da certeza da finitude da vida humana, é
típico das sociedades desenvolverem práticas mágicas para lidar com a angústia
112
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.
113
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
142
que a idéia da morte provoca. Segundo ele, em sociedades menos desenvolvidas
114
,
caracterizadas por uma expectativa de vida mais curta, essas práticas andam de
mãos dadas com maior insegurança e são amplamente difundidas.
No acompanhamento dos adolescentes em semiliberdade, percebemos que
essas práticas mágicas caracterizam suas percepções em relação à vida e à morte
e, muitas vezes, são utilizadas para dar sentido a perdas e desresponsabilizar os
sujeitos pela forma como conduziram suas existências. Lembro-me da forma como o
adolescente Saulo explicava a morte prematura de sua mãe por cirrose hepática
ocasionada pelo uso abusivo de álcool. Para ele, sua mãe morreu cedo devido a
uma “macumba” que sua tia fez, amarrando a boca de um sapo e fazendo, com isso,
sua mãe beber até morrer. Talvez esse pensamento gico proporcionasse ao
adolescente menos sofrimento, pois a morte de sua mãe não estaria relacionada a
seu comportamento em relação à bebida, mas a uma pessoa alheia aos sofrimentos
que ambos vivenciaram.
Essas práticas mágicas são atribuídas às figuras de Deus e do Diabo ou
Capeta, e utilizadas para justificar o envolvimento com o “mundo do crime”. Pelos
depoimentos coletados durante a pesquisa, percebe-se que grande parte dos
adolescentes atribui sua vinculação com a criminalidade e as conseqüentes
“guerras” ao Capeta.
As convicções do adolescente João reveladas na entrevista grupal
corroboram essas afirmações. Durante a realização do trabalho de campo, João
afirmou: “a guerra é do Capeta”. “Ele entra pra matar, roubar e destruir”. O
adolescente foi contestado: “mas aí põe a culpa no Capeta?”. João justificou: “Não, o
capeta facilita”. “Põe a droga, a arma na sua mão”. “O único que tem solução pra
guerra é Deus”
115
. Essa crença é parte constitutiva da subjetividade de João e de
muitos adolescentes envolvidos no crime, e possibilita buscar na vivência religiosa
um corte em relação à vida do crime.
As percepções dos profissionais da semiliberdade em relação a essa
realidade reafirmam as proposições apresentadas acima:
114
O presente trabalho não comunga com essa classificação feita por Elias em relação a maior ou
menor desenvolvimento de uma sociedade. Acreditamos que o que diferencia uma sociedade da
outra diz respeito a seus processos subjetivos, políticos, econômicos, sociais estabelecidos em um
momento histórico específico, não havendo diferença qualitativa, mas realidades distintas de acordo
com suas especificidades.
115
Dados da entrevista grupal. Pesquisa de campo realizada em 14/11/2007.
143
[...] geralmente o menino que tem um envolvimento muito bravo mesmo com
o tráfico de drogas, com mortes, essas coisas, geralmente o menino foi no
Centro Espírita, eles têm, o pacto de fechar o corpo usando guias, sabe.
Costuma aparecer muito menino assim que fala: eu tenho meu corpo
fechado porque eu estive com tal pai de santo e fiz uma guia [...].
(Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)
116
.
Assim, as crenças de João podem ser entendidas como recursos usados por
grande parte dos adolescentes para se colocarem do lugar de vítima. São tentativas
de não se implicar nos atos cometidos, de não sentir culpa e não se responsabilizar
pelas mortes decorrentes desses atos, afirmando que a brevidade de suas próprias
vidas está atrelada ao “destino de quem escolhe a vida do crime”.
De acordo com uma das profissionais da Unidade, é comum os adolescentes
tornarem-se “fiéis” de igrejas evangélicas, por acreditarem que nessa prática
religiosa encontrarão solução para as “guerras” contraídas. O relato da ida de um
adolescente a um culto religioso evidencia esse fato:
[...] ele esteve na igreja domingo e quando o pastor orou, ele caiu, passou
mal, e quando os outros adolescentes começam a debochar dele, ele fala
que o demônio querendo mais vidas. Falou que ele vai mandar mais pra
ele, mais almas para ele. Então quer dizer, ele associa a essa vivência que
ele teve na igreja, de ele desmaiar, de passar mal com a oração, a uma
vinculação com o demônio, e é como se ele fosse um instrumento. [...]
Então fica muito simples né, você dizer que é o demônio que se apropria do
seu corpo e quer mais vidas e você vai e tira vidas. (Profissional da
Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
117
.
Por outro lado, essas igrejas reforçam tal concepção, ao atestarem a relação
entre a criminalidade e o mal. Podemos observar isso no depoimento do pastor
Marcos sobre o seu trabalho de evangelização:
O culto geralmente é feito nas comunidades. E geralmente nas
comunidades têm esse tipo de pessoas, que são delinqüentes né, que
fazem parte do mundo das drogas, [...] eles também vão ao culto e ficam no
meio das pessoas e através do nosso trabalho muitos deles largam as
armas, se reintegram à sociedade, acertam as suas vidas jurídicas; que eu
entreguei vários à Justiça e vários deles acertaram suas vidas, como
agora, por exemplo eu vou estar entregando alguns que querem se entregar
à Justiça e eles vão realmente conscientizando que eles estão tomados por
uma força maligna, que através do ensinamento blico eles querem ter
qualidade de vida, querem se reintegrar à sociedade. E tem tido um êxito
muito grande, não somente no estado do Rio de Janeiro, como em outros
estados brasileiros e até no exterior, né. Eu tenho feito esse trabalho com
116
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
117
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
144
muito carinho e Jesus Cristo tem o poder de mudar a vida do homem, ou
seja, a palavra, a palavra de Deus. (Pastor Marcos, 2007)
118
.
A grande maioria dos cultos evangélicos, além de terem como característica
um ritual de purificação, incluem em seu discurso um ideal de virilidade que é
utilizado objetivando a conversão:
Eu quero nesse momento, você que es assistindo esse culto, você
entenda que nós estamos aqui num objetivo só: libertar você do cigarro, da
maconha, da cocaína, das armas de fogo, do palavrão, da prostituição, do
adultério. Porque através da palavra de Deus a sua vida pode mudar.
Como está escrito lá em João 8, 32: Conhecereis a verdade e a verdade
vós libertará”. Nada mais do que o homem pra roubar, matar e destruir, mas
Jesus veio pra dar vida e vida com abundância. Você que está tanto
tempo no crime, faça a prova da palavra de Deus. Você que tantas vezes
drogado, embriagado, faça a prova da palavra de Deus. Eu sei que você
está sentido algo diferente porque aqui nesse culto não está rolando
cachaça, nem maconha, nem cocaína. Aqui não tem bagunça, aqui não têm
cosias eróticas. Nós estamos falando da realidade do criador do céu e da
terra; do sol, da lua, das estrelas. Eu quero que você que está com uma
arma na mão; se você é macho mesmo, a bíblia diz que os verdadeiros
adoradores, adoram em unção, espírito e verdade. O homem, o macho, não
é o que vai pra cima de uma mulher, nem que dá tiro, nem que luta caratê.
O verdadeiro macho é o que adora a Deus. Essa é a palavra que eu deixo
pra você que está ouvindo: abra seu coração e aceita Jesus como seu
criador. (Pastor Marcos, 2008)
119
.
Além dos adolescentes lançarem mão dessas construções mágicas
baseadas no discurso religioso para legitimarem seu envolvimento com a
criminalidade, muitos educadores comungam com essa visão, em que a “influência
maligna” seria a responsável pelo envolvimento dos adolescentes com o crime:
[...] muitos deles têm Deus. Mas eu não sei... se é até uma questão assim
de que o menino ta, de que o menino foi levado a ta vamos dizer assim com
Deus e perto do capeta, sabe. É uma coisa muito assim. É muito assim: eles
têm Deus, mas ao mesmo tempo que eles têm Deus, eles têm a
influência muito próxima também. [...] O mal mesmo, porque [...] todo
momento de oração é respeitado, sabe. Mas, muitas atitudes faz a gente
pensar se realmente o cara tem Deus mesmo assim com ele, sabe. [...] É
uma contradição. [...] Porque muitas vezes você ta ali fazendo oração com
os meninos e de repente o menino vira o Capeta. (Profissional da Unidade
de Semiliberdade, 36 anos)
120
.
É comum encontrar, nos relatórios dos profissionais, apelos dirigidos ao ser
divino, que seria o único capaz de desligar o adolescente da criminalidade: “[...]
118
Dados colhidos em reportagem realizada com o Pastor Marcos. Jornal O Globo Online em 31 out.
2008.
119
Dados colhidos em reportagem realizada com o Pastor Marcos. Jornal O Globo Online em 31 out.
2008.
120
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
145
realmente a nossa única esperança está em Deus, ele poderá mudar a cabeça
desses adolescentes” (Relatório diário dos educadores, 12/01/2004).
Uma das profissionais entrevistadas demonstrou ter uma visão crítica em
relação a essa postura. Para ela, é necessário questionar crenças, valores,
entidades, mas isso muitas vezes não é fácil para o educador, até porque o
imaginário que associa o crime ao “diabólico” está presente no contexto familiar de
muitos adolescentes:
Então assim, tentar chamá-lo pra essa responsabilidade, pra esse domínio,
pra essa escolha, pra essa condição, é um processo educativo. [...] mas, em
alguns momentos das visitas que a gente faz, a gente que muitas das
mães, muitos pastores, muitas famílias inteiras associam determinadas
atitudes do adolescente a uma “macumba”, a um “trabalho” que tenha sido
feito e por isso ele entrou nessa vida, ou a uma praga que foi rogada por
uma sogra [...] Não é o filho. É uma entidade, é o demônio, um espírito
maligno que está fazendo isso. [...] e o adolescente meio que pega isso e de
certa forma ele não tem que se haver. Não é ele! Então assim vacilar essas
afirmações [...] é a longo prazo porque você tem que ter uma “veinha” de
acesso ao afeto mesmo desse menino, você tem que ter uma posição meio
que de ascensão sobre ele no sentido assim de um saber, ou de uma
transferência, de alguma coisa, que permita você colocar isso em cheque
pra ele para que ele pelo menos questione. (Profissional da Unidade de
Semiliberdade, 32 anos)
121
.
Podemos afirmar que essas práticas mágicas apoiadas em crenças são em
grande parte instituídas por um discurso religioso que tem como referência a
doutrina judaico-cristã.
Nesta dissertação, a concepção de discurso fundamenta-se nos trabalhos de
Foucault (1984; 1985; 1986; 1990; 1996). Para ele, os discursos não são apenas um
conjunto de signos, significantes que se referem a conteúdos, portando significados
quase sempre ocultos, dissimulados, distorcidos. Não podem ser concebidos como
conteúdos e representações escondidos nos e pelos textos, constituindo verdades
não imediatamente visíveis. Para Foucault (1986), os discursos são práticas sociais,
dispositivos importantes na constituição das subjetividades. A conceituação de
discurso como prática social apresentada em a “Arqueologia do Saber” (FOUCAULT,
1986) desconstrói a idéia de que estruturas lingüísticas permanentes são
responsáveis pela constituição dos sujeitos. Essa conceituação torna-se mais
evidente nas obras “Vigiar e punir” (FOUCAULT, 1995) e “Ordem do Discurso”
(FOUCAULT, 1996), em que o autor expõe a idéia de que o discurso sempre se
produz em função das relações de poder. Posteriormente, nos três volumes de seu
121
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
146
trabalho sobre a “História da Sexualidade” (FOUCAULT, 1990; 1984; 1985) ele
explicita que há uma dupla e mútua relação entre as práticas discursivas, ainda que
permaneça a idéia de que o discurso é constitutivo da realidade e produz, com o
poder, inúmeros saberes que articulam a produção de subjetividade.
[...] o discurso o é uma estreita superfície de contato, ou de confronto,
entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma
experiência; [...] analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os
laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se
um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. (FOUCAULT, 1986,
p.56).
Devido a essas proposições, Foucault resolve
(...) não mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos
significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como
práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente
os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar
esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à
língua e ao ato da fala. É esse “maisque é preciso fazer aparecer e que é
preciso descrever. (FOUCAULT, 1986, p.56).
A partir da definição do discurso como prática social, Foucault diz que a
subjetividade é constituída por práticas discursivas e não-discursivas, e que essas
práticas estão imersas em relações de poder e saber, que se implicam mutuamente.
Dessa forma, os enunciados e as visibilidades, os textos e as instituições, falar e ver
constituem práticas sociais permanentemente articuladas às relações de poder, que
as supõem e as atualizam.
Podemos afirmar então que, para Foucault, o conceito de prática discursiva
não se confunde com a simples expressão de idéias, pensamentos ou formulação
de frases. Exercer prática discursiva significa falar segundo determinadas regras, e
expor as relações que se dão dentro de um discurso. Quando as Igrejas que têm
como referência a doutrina judaico-cristã se apropriam de um discurso religioso
relacionando o bem e a vida à figura divina e o mal e a morte à figura do Demônio,
fala e faz falar um discurso segundo algumas de suas regras, fixando identidades e
maneiras de ser, de perceber e de se colocar no mundo, que reafirmam, por
exemplo os enunciados “a vida à Deus pertence” e “o Demônio querendo mais
almas”
122
. Essas práticas discursivas potencializam ações vinculadas ao “mundo do
crime”, territorializando uma certa “subjetividade marginal”.
122
Fala de um adolescente. Dados de pesquisa de campo realizada em 2007.
147
Segundo Maingueneau (1993), as formações discursivas devem ser
compreendidas no interior de um campo discursivo, estando relacionadas a
determinados campos de saber. Quando nos dirigimos aos adolescentes em conflito
com a lei e falamos em um discurso religioso conectado às práticas discursivas e
não-discursivas instituídas pelas igrejas judaico-cristãs e por práticas pedagógicas,
psicológicas, jurídicas, entre outras, estamos afirmando que cada uma delas
compreende um conjunto de enunciados, apoiados em determinado sistema de
formação discursiva: da pedagogia, da psicologia, do direito e das outras formações
que compõem a subjetividade desses sujeitos. No caso específico do discurso
religioso e das práticas desenvolvidas na semiliberdade, seus enunciados têm força
de “conjunto” e se situam como novos campos de saber, tangenciando mais de uma
formação. Desse modo, podemos afirmar que a formação discursiva funciona como
“matriz de sentido”, e os falantes aqui, os adolescentes, os profissionais da
semiliberdade e os demais sujeitos que fazem parte da vida dos adolescentes – nela
se reconheceriam, porque as significações ali lhes parecem óbvias, “naturais”.
Como mostra esta pesquisa, para os adolescentes envolvidos com o crime os
enunciados “a vida a Deus pertence” e “a morte acontece quando é chegada à
hora” são vivenciados como verdades absolutas. Isso pôde ser observado no
discurso do adolescente Pablo, que diz que um sujeito tentou matá-lo, o que não
aconteceu porque o revólver mascou cinco vezes, pois “não era chegada a hora”.
Esses enunciados orientam também a vida de pessoas não envolvidas no crime que
crêem em Deus: teme-se a morte da mesma fora, mas especialmente em situações
de doença, acidentes ou nascimento de um filho. Nesses momentos, os mecanismos
de e esperança são utilizados para potencializar a vida e negar a morte. Na
realização deste trabalho, a confirmação disso evidenciou-se na afirmação “não
posso morrer, tenho um filho para criar” proferida diversas vezes por profissionais da
semiliberdade quando se deparavam com situações de ameaça que envolviam a
vida dos adolescentes e presentificavam suas próprias mortes. Para eles, no
entanto, essa relação é transitória, enquanto é vivida cotidianamente pelo
adolescente ameaçado de morte, como uma hiper-realidade.
Vislumbrando esclarecer a imanência entre o discurso religioso e a produção
de subjetividade articulados às práticas discursivas e não-discursivas que associam
a vida à dimensão divina e a morte à figura do Demônio, foi realizada uma pequena
revisão histórica dessa temática.
148
Historicamente, a figura do Demônio é constituinte das crenças da
Antiguidade, sendo identificado, no politeísmo, a um gênio inspirador, bom ou mal,
que dirige o caráter e o destino de cada indivíduo, alma ou espírito. Platão, ao
escrever a respeito de Sócrates, menciona que este se comunicava com um espírito
invisível chamado Daimon ou Daymon. Nessa perspectiva, pode-se atribuir ao
demônio a capacidade de guardar conhecimentos por toda uma existência,
identificado como “ser repleto de conhecimento” (WIKIPEDIA, 2008). Do mesmo
modo, nas culturas orientais a figura do Demônio não possui necessariamente
natureza maligna e é remetida a todas as criaturas tidas como místicas ou espirituais
fadas, gnomos e anjos. Encontramos ainda antigos relatos sobre essa entidade
nas antigas culturas da Mesopotâmia, Pérsia, Egito e Israel. Entretanto, nesses
contextos o demônio é visto como espírito maligno, a quem eram atribuídas todas as
desgraças: doenças, destruição das plantações, inundações, incêndios, pragas,
ódios e guerras.
Atualmente, podemos afirmar que o termoDemônio” abarca espíritos do
folclore, da mitologia, das religiões judaico-cristãs, com representações diversas.
Porém, a mais conhecida foi atribuída à Igreja Católica e caracteriza o Demônio
como espírito mal, ser intermediário entre o homem e Deus, de cor vermelha, feições
humanas, chifres, rabo pontiagudo e um tridente. De acordo com essas religiões, o
demônio é um anjo que, tendo se rebelado contra Deus, foi precipitado no Inferno e
procura a perdição da humanidade. Nesse contexto o ato homicida seria atribuído ao
Diabo. A relação morte violenta/Diabo presente no ato homicida corrobora as
afirmações de Zaluar (2004). Segundo ela, esse ato expressa uma tentativa de se
igualar a Deus. Esses mecanismos puderam ser observados durante o
desenvolvimento de toda a pesquisa, tornando-se uma problemática intrigante.
Considerando essa postulação, podemos afirmar que as práticas e os
discursos produzidos pelas religiões judaico-cristãs são ferramentas importantes na
produção dessas subjetividades identificadas como personificação do mal
“menores infratores”, “seres abjetos”, “menores infames”, os “estranhos”
123
.
Nesse contexto, o uso e o tráfico de drogas e as “guerras” são importantes
para a associação mal-crime-Demônio. Esses componentes puderam ser
observados durante atividade criada pelos adolescentes, que acontece
123
Essas denominações parafraseiam obras como Bulcão (2002), Butler (2003), Foucault (1992) e
Bauman (1998).
149
semanalmente na Unidade. Essa atividade foi nomeada “Desembolar a Fala”,
expressão usada pelos meninos quando querem conversar para esclarecer ou
propor alguma coisa. O objetivo dessa atividade é trabalhar as relações entre os
adolescentes e entre estes e os profissionais. Ultimamente, esse momento também
é usado para fazer programações e planejamentos no que se refere ao dia-a-dia, e
para responsabilizar adolescentes em relação a transgressões cometidas.
Nessa atividade, foi trabalhado com os adolescentes o filme “À Procura da
Felicidade” (The Pursuit Of Happyness, EUA, 2006). A personagem principal, Ghris
Gardner (Will Smith), após tentativas de manter a família unida, é abandonada pela
mulher, que não suportava mais as privações financeiras que passavam. Ele passa
então a viver sozinho com seu filho Christopher, de cinco anos. Ao buscar melhores
condições de vida, Chris começa a estagiar em uma importante corretora de ações,
sem salário algum, enfrentando diversas dificuldades sem desistir, encontrando
forças na confiança e no afeto que ele e o filho nutrem um pelo outro. Superados os
obstáculos, transforma-se em um importante corretor de ações.
Tendo como referência esse filme e a temática “Convivência” assunto
trabalhado com os adolescentes no mês de outubro foi proposta discussão
introduzida com os seguintes questionamentos: “o que é a felicidade? Alguém é feliz
completamente ou existem somente momentos felizes?”. Os adolescentes afirmaram
que ninguém é completamente feliz, e que, em suas vidas, são raros os momentos
de alegria, principalmente devido a suas inserções na criminalidade. Falou-se da
importância de buscar tais momentos, ressaltando a diferença entre “esperar” e
“esperançar”, este último termo remetido à idéia de movimento. Essa idéia passou a
ser trabalhada a partir da metáfora “sair da caverna”: sair do que é seu, sair do “seu
mundo” e lançar-se à procura do outro. No debate, os adolescentes associaram a
imagem da caverna ao crime e às dificuldades encontradas por quem decide romper
com a criminalidade. Em determinado momento, um dos responsáveis pela atividade
me perguntou sobre minha “caverna” e, diante desse questionamento, o adolescente
João exclamou: “você não tem caverna não!”. Aleguei que tinha, sim, “caverna”, e
que minha vida não era sempre tranquila, apesar de as “cavernas” serem diferentes
para cada um. João disse que eu não estava entendendo: “minha caverna é o crime
igual a dos meninos; ela é vermelha é preta, cor do sangue e da morte”. No debate
que se seguiu, os adolescentes começaram a identificar o crime com o Capeta, e a
medida de semiliberdade foi remetida à idéia de estar “em cima do muro”. Diante da
150
perguntas: “você saiu da caverna?” “Como a semiliberdade tem ajudado nesse
processo de saída da caverna?”, a seguinte resposta foi dada por Pablo: “estou em
cima do muro. Melhorei com relação às drogas, mas segurando o revólver numa
mão e a Bíblia na outra”
124
.
Na semana seguinte, essa discussão foi retomada, e seu ponto de partida foi
o texto “O Mito da Caverna” (CHAUÍ, 2003), escrito pelo filósofo Platão. Trata-se de
uma parábola escrita cerca de 200 anos antes de Cristo, e mostra como podemos
nos libertar da condição de escuridão que nos aprisiona através da luz da verdade.
Compõe-se de um diálogo metafórico, onde as falas na primeira pessoa são de
Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e Adimato, são os irmãos mais novos de
Platão. No diálogo, é enfatizado o processo de conhecimento, sendo apontada a
visão de mundo do ignorante, que vive de senso comum, e a do filósofo, em sua
eterna busca da verdade.
Após a leitura do texto, novamente os adolescentes foram questionados
sobre suas “cavernas”: “Como está a sua caverna?” “Você saiu da caverna?”. Além
de mencionarem o crime, relacionaram a “caverna” ao tráfico de drogas e às
“guerras” que ele produz, causando a morte de inúmeras pessoas. Segundo um dos
adolescentes, “essa guerra não tem fim, é tristeza e morte”. Essa fala retrata a
condição dos adolescentes no que diz respeito à certeza de uma morte prematura e,
ao mesmo tempo, configura-se como possibilidade para o trabalho sócio-educativo,
visando um processo inverso: a produção e a manutenção ética da vida. Segundo os
adolescentes que participaram da atividade, apesar de não haver saída para a
“guerra”, é possível que uma pessoa que esteja envolvida somente no crime um
rumo diferente à vida. Vincular-se a uma religião ou torna-se pai são apontados
como acontecimentos que podem gerar uma escolha de vida que não passe pela
criminalidade.
Eu conheço um cara que era muito envolvido mesmo. Sua treta era roubar
carro. Mas quando teve um filho falou que o queria mais essa vida. Disse
que ia sair do crime e saiu mesmo. Hoje vive “de boa” (Adolescente em
cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)
125
.
Por outro lado, eles desaprovam os sujeitos que se mantêm ao mesmo tempo
vinculados a uma religião através da participação em rituais religiosos e ao
124
Pesquisa de campo realizada em 17/10/2007.
125
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.
151
crime: “vocêo pode ir lá se esconder atrás da bíblia se você tá no crime”
(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 16 anos). Princípios
fundamentais do discurso religioso são negligenciados no crime, pois a vida do outro
não tem valor. O adolescente acaba atribuindo esse desvalor à sua própria vida, a
partir do momento em que ela vira moeda de troca, transformando-se em operador
do mercado transnacional do crime.
Em suma, a relação entre o discurso religioso e a constituição da
subjetividade dos adolescentes faz com que a figura de Deus seja remetida à vida,
mesmo que seja à “vida do crime”, e o Diabo à morte, o que pode ser observado no
depoimento de Pedro: “uma vez tentaram me matar. [...] Eu não morri porque Deus
não quis. O diabo tá sempre rondando, ele sempre quer sangue”
126
.
Esse discurso está atrelado aos modos de subjetivação atuais relacionados
às maneiras de vivenciarmos os processos relacionados à vida e à morte. Trata-se
de uma construção maniqueísta legítima e poderosa, baseada nas dualidades
Deus/Diabo, Bem/Mal, Vida/Morte, nas quais os processos de subjetivação instituem
determinadas identidades. Com relação à criminalidade e, especificamente, ao ato
de matar, os adolescentes colocam-se como marionetes, ora na mão de Deus, ora
na mão do diabo. Acreditar nisso parece ser a saída para permanecerem no mundo
do crime e enfrentarem a morte cotidianamente, que sua ocorrência não estaria
articulada às ações criminais, mas à vontade divina.
4.2. As “guerras”, as mortes, o trabalho sócio-educativo: os educadores
sociais e os processos de subjetivação
[...] o Roberto [adolescente] era uma pessoa que, eu falo no meu caso
pessoal, nós tínhamos um relacionamento excelente, entendeu? Ele era
muito carinhoso e afetuoso comigo. Então a morte dele me atingiu demais,
ainda mais que ele morreu por causa de R$ 63,00, entendeu, por causa de
R$ 63,00. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)
127
.
[...] a morte é muito estranha, [...] produz raiva... nos coloca diante de nossa
impotência e humanidade, limitação, desconhecimento... nossa! Acho que
não sei te dizer... O que sei dizer é que repenso, me pego diante de
perspectivas diferentes para conduzir o meu trabalho... claro que não as
mortes me levam a isto, mas elas também... como que se isso pudesse
126
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
127
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
152
contornar, talvez possa, fazendo com que cada um deles [adolescentes]
vivencie sensações, reflexões, sentimentos que apazigue! Na sexta soube
do Manoel Rodrigues da Silva, um negro que tinha estrabismo, também foi
morto! [...] Pessoalmente fico triste, penso na Maria [mãe], nossa que dor!
Que desilusão, elas insistem tanto... Penso neles, nas atividades alegres,
sonhando... e na gente participando de tudo isso... confirmando com uma
certeza que aqueles momentos podem ser mais constantes! Que certeza? E
penso também, que na maioria das vezes, é como se não tivessem escolha.
Às vezes, como te falei, eles falam que o sonho que não se realiza é o fim
das guerras”. Essas “guerras são muito loucas. E o pior é que eles
buscam, criam e se sentem parte através delas. [...] O que percebo de
comum é que para a aqueles que vivenciam uma situação de guerra, [...] a
sensação é de alarme soando... uma tensão, revolta... às vezes desespero,
paranóia quase. A cada toque de campanhia é uma taquicardia! Deus que
livre, nada conforta! Eles não acreditam em nada. Os que não vivenciam,
mas sabem de histórias, o termo que eles usam é “cabuloso”. Penso que
dizendo o quanto é confuso e amedrontador. Mas é meio que natural para
eles, como se fizesse parte, tolerável, sabe? O que me incomoda neles
nestas circunstâncias é que apesar da solidariedade e da discrição que
lidam com a situação de um colega, é a passividade. Desesperança como
se de fato não fosse acabar. Nestas horas penso o quanto é valioso cada
instante, o quanto tudo é de fato tão intenso e o prioritário. Confesso que
diante desses acontecimentos, num determinado momento me um
aperto com relação a algumas liberações. recupero o fôlego e me lembro
que por mais força que tenhamos, o futuro só a Deus pertence. (Profissional
da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
128
.
O trabalho realizado na semiliberdade faz emergir muitos dilemas,
questionamentos, angústias, vivenciados de maneira intensa pelos profissionais que
o executam. Esses dilemas estão relacionados às recorrentes perdas devido aos
constantes assassinatos de adolescentes, e ao enfrentamento cotidiano de outras
situações relacionadas à realidade desse público: ameaças, explorações,
sofrimentos, preconceitos e “escolhas” que conduzem à morte. Em vários
momentos, o trabalho cio-educativo é conduzido na direção contrária ao
enfrentamento dessas questões.
Como ilustração, podemos citar uma atividade realizada na Unidade de
Semiliberdade. A proposta inicial era discutir com os adolescentes suas dificuldades
em relação ao cumprimento da medida. Foi solicitado também que eles pensassem
ações que pudessem contribuir na solução de seus problemas. Os adolescentes
apontaram inicialmente suas relações com o narcotráfico, argumentando que, se a
Unidade oferecesse mais atividades externas, não usariam droga dentro da
entidade, deixando subentendido que esse uso aconteceria nos momentos em que
circulassem sozinhos pela cidade. As discussões giraram em torno do problema das
drogas, das vinculações com o tráfico de as conseqüentes “guerras” contraídas a
128
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
153
partir dessas relações. Os depoimentos dos adolescentes João e Pablo são
esclarecedores no que se referem às “guerras” que travam com “os alemão”, os
“polícia”. Pablo mencionou que João faz a ronda no Morro das Pedras, afirmando:
“ele usa touca ninja. Fica de cima vendo se não vai lombrá. Eu sou bandido
mesmo e não vou mudar. Com os alemão não tem jeito não”
129
.
Ao ouvirem esses relatos, os educadores argumentaram que a proposta
inicial da atividade havia se perdido, insistindo para que a discussão anterior fosse
retomada. Podemos perceber implícitas nessa solicitação as dificuldades e
fragilidades que os profissionais apresentam quando são colocados diante das
“guerras” e das conseqüentes ameaças de morte. Torna-se necessário barrar o que
não se pode ouvir: os adolescentes estão envolvidos em uma guerra” e, segundo
eles, “o caminho é sem volta” (Adolescente em cumprimento de medida de
semiliberdade, 18 anos).
Apesar de compartilharmos com os profissionais que desenvolviam essa
atividade os mesmo temores e angústias, eu e a psicóloga do grupo procuramos
fazer o caminho inverso: permitir a fala dos adolescentes, visando um
questionamento sobre a maneira como se posicionam perante os problemas que
encontram em suas comunidades. Apesar de nossas angústias, acreditávamos que,
ao pensarem sobre suas próprias vidas, pensariam também na possibilidade de
morrerem prematuramente a serviço do crime. Quanto à droga, ao invés de
tamponar essa realidade, afirmávamos que sabíamos que ela era um sério problema
em suas vidas, mas dizíamos da importância de pensar uma maneira de resolver
esses conflitos de forma pacífica, vislumbrando a manutenção de suas existências.
Acredito que nossas posturas se diferenciaram da dos demais profissionais, devido a
meu olhar de pesquisadora, que requer certo afastamento em relação à temática
abordada, e à orientação psicanalítica da profissional da Unidade, que elege a
palavra e a escuta como possibilidades de intervenção.
Dando seqüência, pedimos a eles que pensassem em um jeito de se
proteger das “guerras”, ressaltando que poderiam contar conosco. Diante desse
oferecimento, o adolescente Clóvis desabafou: “Vocês querem me ajudar? Então me
dá um revólver para eu me proteger”. Novamente reforçamos a importância de
buscarem alternativas pacíficas, afirmando que, nessas situações, uma mudança de
129
Pesquisa de campo realizada em 17/10/2007.
154
endereço poderia ser solução. O adolescente Artur respondeu: “não tem jeito não.
Nesse mundo até as pedras se trombam. O fim da guerra é você dentro de um
caixão”. Insistimos nessa argumentação, perguntando a Clóvis se ele conhecia
alguém que teria saído do crime. Ele disse: “do crime sim, mas da guerra não”.
Insistimos mais uma vez, e o adolescente reafirmou: “mora por um tempo, mas
depois tem que voltar. É lá a sua vida, é lá que você mora, que você nasceu”
130
.
Alguns educadores ainda solicitavam que retornássemos à proposta inicial da
atividade, “esquecendo” a interferência entre os problemas relacionados à
vinculação com a criminalidade e o cumprimento da medida. Podemos concluir que
esse “esquecimento” é decorrente da ansiedade e do medo no que refere às
ameaças que os adolescentes vivenciam. É muito comum a adoção, por parte do
profissional, de condutas típicas da “atividade” que caracteriza a subjetividade do
adolescente ameaçado de morte, como percorrer diferentes trajetos ao ir e voltar do
trabalho, identificar situações e pessoas “suspeitas”, permanecer em estados
constantes de ansiedade, se deprimir e adoecer devido aos conflitos relacionados à
iminência da morte que caracteriza o trabalho. Ao ser questionado sobre o estado de
ameaça característico de sua atividade profissional, um educador afirma:
A gente acostuma, Fernanda. Faz parte do pacote. [...] Mas quando eu fui
procurar a Inspetoria, eu fui procurar um emprego e após o término do
treinamento eu saí de consciente de que além de um emprego, eu tinha
uma missão, entendeu? E mergulhei nela de cabeça. (Profissional da
Unidade de Semiliberdade, 69 anos)
131
.
Essa concepção missionária do trabalho sócio-educativo deixa implícito seu
caráter heróico e a possibilidade de crescimento pessoal. Tal visão é “necessária”
para o enfrentamento cotidiano da morte, relacionado não a ameaças sofridas
pelos adolescentes, mas também a ações violentas cometidas por eles, o que pode
ser verificado nos relatos de três profissionais entrevistados:
[...] muitas vezes a gente tem ouvido coisas bárbaras que no nosso dia-a-
dia faz a gente se sentir muito mal. Mas a gente tem que dar a possibilidade
da escuta pra poder desenvolver o trabalho. [...] no caso assim de quem
matou, como matou, quando assaltou, que refém que foi feito, da
agressividade que foi imposta num assalto, entendeu? Então Fernanda, [...]
nós educadores a gente tem que estar com a mente aberta, com o coração
aberto, porque é pesado. Tem horas que você escuta coisas assim que a
gente não aceita. Não é aceitável. E você vai saber que você vai estar com
130
Pesquisa de campo realizada em 03 out. 2007.
131
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
155
o adolescente ali porque você tem que trabalhar com ele. Você ta
entendendo? E que se você virar a cara pra ele, você ta virando a cara pro
trabalho, entendeu? [...] E pra gente, educador, fazer essa separação é
muito difícil. Tem horas que a gente sai daqui de dentro, 12 horas aqui
dentro, tem hora que é um horror, tem hora que é uma maravilha.
(Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)
132
.
[...] Eu tenho feito o meu trabalho de modo satisfatório, porque senão eu
aqui não estaria. E isso pra mim tem sido uma coisa muita importante
porque me fez crescer como pessoa, como ser humano, porque eu passei a
enxergar um lado da vida que eu não conhecia. (Profissional da Unidade de
Semiliberdade, 69 anos)
133
.
[...] É um trabalho assim que deixa tudo à flor da pele, é um repensar
permanente das coisas. Eu acho que é uma oportunidade assim muito
interessante de vida. De vida. [...] em termos assim de lidar com o diferente,
de lidar com situações de tensão, com a tolerância, com as possibilidades,
com as limitações, sabe. Tudo isso é muito constante, é muito intenso.
(Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
134
.
Em relação às ameaças, existe a compreensão de que elas fazem parte da
dinâmica do trabalho e, por isso, é importante discutir com os adolescentes sobre
esse assunto. Entretanto, essa condição traz para os profissionais stress e
ansiedade. Grande parte dos profissionais, mesmo quando está de folga, busca ter
notícias do retorno dos adolescentes para as Unidades quando eles estão
realizando, por exemplo, visita familiar, devido às ameaças:
Eu acho que o recurso que a gente tem é de contar com o próprio
adolescente. É ele que vai saber quem e aonde que ele vai ter esse risco,
então a gente meio que confia nele. [...] O nosso trabalho não tem essa
capacidade e nem essa função de avaliar aonde que tem a “guerra” [...].
Então se o adolescente, igual esse Artur, é fato que matou o parceiro dele e
que ele foi tirado da escola e de um curso em função de uma região que ele
não pode circular. Fica uma dúvida: ali que ele não pode? Essas
pessoas elas na saem daquele lugar, elas vão ficar permanentemente ali ou
elas vão cruzar com ele num outro local? [...]. [...] Às vezes tem uma
rivalidade, mas não é uma rivalidade prestes a matar. que é algo tão
delicado, que a gente não tem como mensurar isso e determinar vai, não
vai; faz, não faz. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)
135
.
Podemos entender que o stress, a ansiedade, a angústia e o medo
provenientes dessas situações de ameaça são aspectos constitutivos do trabalho
sócio-educativo, trazendo desterritorializações e reterritorializações no que se refere
à subjetividade dos profissionais. A forma como um educador vivenciou o
132
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
133
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
134
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
135
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
156
assassinato de um adolescente em 2004 é esclarecedora nesse sentido: após o
acontecido, ele pediu demissão. Longe do trabalho, consegue avaliar sua atuação, o
que lhe permite retornar após um período de afastamento. Em relação a isso, ele
teceu os seguintes comentários:
Eu acho que eu me entreguei muito num certo momento a ficar junto como
os adolescentes, a entrar na vida deles. Eu acho que eu entrei demais em
certas horas. Eu acho que eu queria mais do que eles que eles mudassem.
[...] Eu não tinha a experiência que eu tenho hoje de saber e classificar
assim: o que é dele é dele; [...] e é ele vai ter que conseguir fazer isso. Eu
achava que a gente como educador, [...] Eu achava que a nossa ajuda, ia
dar um rumo. [...] E quando nessa primeira saída que eu tive, eu me deparei
com isso: eu querer mais do que o adolescente. Eu queria porque queria e
na verdade ele não queria. Então depende dele. [...] E é por isso que eu
sofri muito. Porque quando esse menino que morreu, ele teve aqui, ele fala
pra mim, eu não queria que ele continuasse no caminho dele e eu ainda
tento mudar ele da rota dele. Quero que ele pra minha. E ele acaba
sendo assassinado e eu coloquei na minha cabeça que a culpa era minha,
que eu não soube orientar, entendeu? Por eu estar tão próximo, achar que
eu estava tão próximo, eu poderia ter contribuído de alguma forma. E foi
quando eu pedi pra sair, que eu não estava dando conta, entendeu?
(Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)
136
.
Nesse período de afastamento, as vivências proporcionadas pelo trabalho
instauraram um novo modo de se posicionar diante da morte:
[...] eu não vou mesmo em velório de mais ninguém. Inclusive isso é uma
coisa que está até no meu dia-a-dia mesmo, que as pessoas têm morrido
que eu conheço e eu não quero ir, sabe. Ficou aquela coisa meio assim: eu
não quero ir, eu não vou. Porque eu quero ter [...] outra imagem. Quero ter a
imagem do vivo, sabe. Eu acho que isso ta muito na gente educador. Você
coloca isso na cabeça e você, sabe, você quer sempre vida, alegria, você
quer esquecer o lado da tristeza. (Profissional da Unidade de
Semiliberdade, 36 anos)
137
.
Em outro assassinato que vitimou um adolescente de 17 anos em 2005,
podemos perceber características dos processos subjetivos deflagrados na relação
estabelecida entre os profissionais e o trabalho sócio-educativo no que se refere à
morte. A morte violenta dos adolescentes também é vivenciada pelos educadores
como um processo natural, um “destino”.
[...] eu tava trabalhando, [...], estava de plantão, os meninos estavam pra
escola e de repente todos eles vêm batendo no portão, aquela algazarra
toda e eu fui atender e eles falaram que o menino tinha sido [...] baleado.
E eu: “baleado, né”, e aí, como é que ele ta”? “Tá lá” [adolescente] “A polícia
lá”? [educador] “Ta sendo atendido”? [educador] “Ta” [adolescente].
“Então vamos ficar tranqüilo” [educador]. E o telefone tocou. Eu atendi.
136
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
137
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.
157
Era a diretora da escola perguntando se eu sabia o que tinha acontecido.
“Não”. “O que aconteceu’? “Só estou sabendo mais ou menos”. ela falou:
“ta morto, o Márcio”. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 33
anos)
138
. .
Olha, isso não me afeta muito não, sabe. Nesse dia quando a diretora ligou
e ela perguntou se a gente sabia e eu falei que sabia ela..., eu perguntei
como é que ele tava, ela falou: “ele ta morto”. eu não sei, assim eu com
relação a essas coisas eu sou muito tranqüilo. Eu não me abalo muito não,
sabe. Eu consigo lidar. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 33
anos)
139
.
É. o tem como você esquecer. [...] Eu acho que isso passa um pouco
pela questão de você vivenciar um pouco a realidade dos meninos e saber
que isso pode acontecer a qualquer memento, sabe. Então isso não é um
susto não. Você sabe disso. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 33
anos)
140
.
A vivência de um assassinato ou a evasão de um adolescente deflagra
questionamentos em relação às práticas institucionais que caracterizam o trabalho
sócio educativo. Após esses acontecimentos, é comum a equipe se reunir com o
propósito de repensar suas ações, vislumbrando uma melhor organização do
trabalho. Esse rearranjo das atividades desenvolvidas tem como objetivo fazer com
que o adolescente permaneça na medida e consiga se desvincular da criminalidade.
Entretanto, essas avaliações são geralmente permeadas por discussões que trazem
à tona as relações de poder, as relações de gênero, as disputas coorporativas
envolvendo os profissionais que, nesses momentos, ostentam suas identidades:
educadores e técnicos.
Em suma, após essas considerações podemos afirmar que as ameaças, as
evasões e os conseqüentes assassinatos que marcam a trajetória de grande parte
dos adolescentes admitidos nas Unidades de Semiliberdade fazem emergir nos
profissionais questionamentos vinculados ao próprio trabalho sócio-educativo e a
suas percepções em relação à vida e à morte. Esses questionamentos podem se
transformar em “analisadores”, instaurando processos de desterritorialização e
reterritorialização, operando na construção de novos territórios subjetivos e novas
organizações no que se refere à dinâmica do trabalho sócio-educativo.
138
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
139
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
140
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.
158
5. CONSIDERÕES FINAIS
Este trabalho propôs-se a analisar os processos de subjetivação que
constituem os adolescentes e jovens do sexo masculino ameaçados de morte devido
ao envolvimento com a criminalidade. As motivações para tal empreitada estão
relacionadas à minha trajetória profissional, vinculada ao acompanhamento desses
sujeitos na medida sócio-educativa de Semiliberdade. Nesse acompanhamento,
passei a conviver com pessoas que, por suas relações com a criminalidade, são
identificadas pela sociedade como “menores infratores”. Ao conviver e me vincular
com esses sujeitos, foi possível descobrir, dia a dia, outras “identidades” que lhes
são negadas: adolescentes, jovens que gostam de namorar e impressionar as
meninas, apaixonados por futebol. A construção de identidades que rotulam esses
adolescentes como “menores infratores” está articulada aos processos de
subjetivação atuais, que e tem como características a fixidez, o binarismo baseado,
sobretudo, nas dicotomias: bem/mal, favela/asfalto, rico/pobre, e na idealização de
um eu constante, imutável. Esses processos aprisionam esses sujeitos nessas
identidades fazendo com que os adolescentes e jovens em questão pensem,
andem, se vistam, falem, enfim, existam de modo bem específico: o marginal.
Juntamente com essa “descoberta”, deparei-me com dilemas, questionamentos e
vivências perpassadas por sentimentos de alegria, por poder sonhar com cada um
deles uma vida melhor, mas também de tristeza, desesperança acompanhada da
certeza dolorosa de que, para muitos, o caminho é mesmo sem volta, restando-lhes
morrer violentamente. Porém, pequenos movimentos dos adolescentes e jovens no
sentido de reafirmarem a vida como valor que deve ser respeitado me levaram a
persistir, a insistir e a refletir sobre os diversos aspectos da subjetividade
relacionados à vida e à morte que marcam a trajetória desses sujeitos. Nesse
movimento foi gestada a presente dissertação.
Deparar-me com a realidade desses adolescentes e jovens em semiliberdade,
percebendo-a de forma histórica, e acreditar que o trabalho sócio-educativo é uma
ferramenta importante na desconstrução dos modos de subjetivação relacionados à
“correria” instituída pela vida do crime foi a crença que me orientou. Pude perceber a
159
inter-relação entre a pesquisa, a ética e a liberdade, sem perder de vista a imanência
entre saber-poder teorizada por Foucault (1998). A execução da pesquisa e a
escolha da metodologia que a orientou se amparou nas palavras desse autor:
Cada vez que eu tentei fazer um trabalho teórico, foi a partir de elementos
de minha própria experiência: sempre em relação com processos que eu vi
desenrolar em torno de mim. É porque pensei reconhecer nas coisas que vi,
nas instituições as quais estava ligado, nas minhas relações com outras
fissuras, abalos surdos, disfunções, que eu empreendia um trabalho, alguns
fragmentos de autobiografia. (FOUCAULT, 1994, s/p).
Considerando as afirmações foucaultianas e a perspectiva histórica que
fundamentou este trabalho, buscou-se um entendimento sobre os processos que
instituem a morte violenta como destino para muitos sujeitos e os que naturalizaram
a adolescência como um período conturbado, sujeito à crise, produzindo uma
associação entre pobreza, delinquência, negritude e favela. Para tanto, foi
necessário demonstrar que questões políticas, econômicas, jurídicas, institucionais,
midiáticas e culturais se entrelaçam no processo de constituição da subjetividade
dos adolescentes inseridos na criminalidade, o que geralmente é negligenciado
pelas teorias “psi” e por maquinações da subjetividade apoiadas na idéia de
identidade. Essas considerações foram tecidas ao longo dos capítulo 2 e 3 desta
dissertação.
As evidências apresentadas no decorrer da pesquisa também estão apoiadas
em dados estatísticos, que revelam que adolescentes e jovens do sexo masculino
oriundos das periferias das grandes cidades são os mais atingidos pela violência.
Porém, grande parte desses estudos objetiva tecer considerações generalizadas
sobre o fenômeno da violência envolvendo adolescentes e jovens, a partir de
referenciais que o abordam a temática da produção de subjetividade. Por isso,
cabe ressaltar que esta pesquisa poderá contribuir com trabalhos futuros que elejam
os processos de subjetivação desses meninos como problema de estudo.
Ao empreender estas considerações finais, posso conjecturar que um mérito
da presente pesquisa talvez seja demonstrar que o espectro do adolescente e jovem
criminoso, sem ambigüidades, síntese do mal absoluto, “menor infrator”,
“monstruoso”, “abjeto”, “infame” está atrelado a modos de subjetivação
contemporâneos que desumanizam e diabolizam esses sujeitos. A coleta de dados
realizada pelas entrevistas e pela observação participante, em que foi proporcionado
aos adolescentes falar sobre o que lhes aflige o medo da morte que não pode
160
ser expressado e assumido, por constituir-se como condição necessária para a suas
permanências no “mundo do crime” possibilitou um maior esclarecimento sobre
estas questões. A análise desses dados pode gerar generalizações, reflexões e
discussões, funcionando como instrumento importante na desnaturalização das
certezas construídas em relação às identidades desses sujeitos.
Os depoimentos dos profissionais entrevistados e a pesquisa nos arquivos da
Unidade demonstraram que a trama institucional e as práticas profissionais são
mecanismos essenciais na produção da subjetividade dos adolescentes,
fortalecendo ou não a efetivação do “destino” de quem “escolhe” a “vida do crime”: a
morte violenta.
Nessas considerações finais, cabe ainda destacar outra constatação: devido à
realidade sócio-econômica dos adolescentes em conflito com a lei e da insuficiência
das políticas públicas brasileiras que garantam os direitos básicos da população,
esses sujeitos têm acesso a direitos básicos após cometerem delitos. Esse fato
pode ser um fator que impulsiona adolescentes a reincidirem nas infrações,
solidificando suas vinculações com a criminalidade. Posso conjecturar que uma
mudança em relação à política destinada a essa população se faz necessária, visto
que a maioria dos governos prioriza em seus mandatos aquelas destinadas à
segurança, contrariamente à efetivação de direitos básicos de adolescentes e
jovens.
Quanto ao envolvimento com a criminalidade e a vivência da morte violenta
como destino, pude atestar que o crime instaura um modo de funcionamento da
subjetividade apoiado na “correria”, na atividade” e em ideais vinculados à
“modernidade líquida” descrita por Bauman (2001), dentro do modelo da
masculinidade desafiadora descrito por Zaluar (2004). Tendo a “correria” como
referência, o adolescente repete o ato criminoso de forma compulsiva, guiado
sobretudo pela “necessidade” de consumir do momento atual. Por outro lado, a
medida de semiliberdade pode ser mecanismo para operar desterritorializações e
reterritorializações no que se refere à trajetória infracional do adolescente.
Entretanto, ao gerar reflexão a medida intensifica o medo da morte, até então
dissimulado pela “correria”.
Ao problematizar as relações de adolescentes e jovens com a criminalidade, a
temática das “guerras” mereceu destaque, pois nelas se o anúncio da morte, que
adquire feição hiper-real. Instaura-se a banalidade da vida, na medida em que as
161
relações sociais que caracterizam o cotidiano desses sujeitos são perpassadas por
uma sociabilidade que tem na violência sua forma de expressão.
Ao tecer considerações sobre as linhas que compõem a subjetividade desses
adolescentes, evidenciaram-se as associações de crime, drogas e “guerras” à
dimensão diabólica. Essas associações tornaram-se problema de pesquisa e
possível objeto de estudos futuros. Vincular o crime ao demônio é um dispositivo
utilizado que objetiva uma não-implicação e, consequentemente, uma não-
responsabilização pelos atos cometidos. Para analisar essa articulação, as
teorizações foucaultianas sobre o discurso foram importantes instrumentos,
apoiando-se nas práticas discursivas implementadas sobretudo pelas religiões
judaico-cristãs.
Ao problematizar o modo de funcionamento da subjetividade dos
adolescentes ameaçados de morte, tornou-se preponderante desenvolver análises
sobre a subjetividade dos trabalhadores da semiliberdade. Nessa empreitada, foi
possível perceber que, no trabalho sócio-educativo, as perdas instauradas pelos
assassinatos dos adolescentes presentificam a morte para os profissionais, indo
contra as maquinações da subjetividade contemporânea, que negam o anúncio da
morte através das relações instauradas pelo processo civilizador e pelos
mecanismos de encobrimento da morte descritos por Elias (1990;1993; 2001). Além
disso, esse trabalho instaura novos modos de lidar com a vida e a morte. Em seu
fazer cotidiano, os profissionais vivenciam alternadamente sentimentos de alegria e
de desesperança em relação ao futuro dos adolescentes atendidos pelo programa
de semiliberdade. O trabalho é permeado pelo medo e pela ansiedade decorrentes
da presença constante da morte, que os coloca em “atividade”. Por isso, estas
problematizações sobre a sujetividade dos profissionais que acompanham
adolescentes em conflito com a lei também são campo de análise a ser explorado
futuramente por pesquisadores que se interessam por essa temática.
Por fim, cabe destacar que a composição desta dissertação deve ser
entendida como um compromisso ético, pois seu intento é produzir reflexões que
poderão ser utilizadas como dispositivo para a desconecção de linhas que compõem
a subjetividade de adolescentes e jovens inseridos na criminalidade, que se afirmam
como sujeitos pelo enfrentamento cotidiano da morte, além do modo ser da
população que diaboliza esses sujeitos, acreditando que, por sua “insignificância”,
merecem a morte. Em suma, apoiando-me nas palavras de Rose (2001), quero
162
enfatizar que, apesar de não podermos negar as maquinações atuais da
subjetividade, podemos “ao menos reforçar a questionabilidade das formas de ser
que têm sido inventadas para nós e começar a inventar a nós mesmos de forma
diferente” (ROSE, 2001, p.198).
A vida acontece...
Atualmente, o adolescente Gabriel que permaneceu em cumprimento de
medida durante um ano e dois meses e o adolescente Clóvis encontram-se
evadidos da Unidade de Semiliberdade gerenciada pelos salesianos. A evasão de
Gabriel aconteceu em decorrência do encaminhamento de um “parceiro” do jovem
assassinado pelo adolescente para a Unidade onde ele se encontrava. Clóvis
apresentou-se ao Juizado da Infância e Juventude e foi encaminhado para a
Unidade de Semiliberdade do Instituto Pauline, uma vez que a evasão da Unidade
Ouro Preto foi motivada por um desentendimento com outro adolescente que
também cumpria medida naquela Unidade. Na Unidade para a qual fora
encaminhado, permaneceu poucos dias, evadindo em seguida. Segundo
informações obtidas por contato telefônico com um dos profissionais entrevistados,
Clóvis foi apreendido após evadir e envolveu-se na tentativa de homicídio de um
adolescente que estava cumprindo medida na Unidade de Semiliberdade Ouro
Preto. Por isso, foi incluído no Programa de Proteção. De acordo com a profissional
que forneceu essas informações, a equipe da semiliberdade vivenciou de forma
apreensiva o episódio: “nossa foi um susto! A gente não pensava que aconteceria...
nem sei!”.
Os outros adolescentes que cumpriam semiliberdade à época da pesquisa
foram liberados. Diego mora sozinho no bairro Nova Pampulha, com apoio de Frei
Mariano, fazendo bicos como bombeiro hidráulico e fazendo contatos
constantemente. Pedro vive com a tia, próximo à residência da avó, e às vezes
encontra-se com a mãe. Sempre pede notícias das pessoas da equipe, afetivo e
com seu jeito simples. João, por sua vez, está morando com os irmãos em uma casa
independente, construída após sua liberação, no lote da avó. Faz contato e pergunta
por componentes da equipe, sempre os mesmos. Estava com dificuldades para
retornar à escola. Francisco montou um barzinho em sua comunidade e, apesar de
não ter concluído os exames para tirar carteira, é visto dirigindo. Não se sabe se
ainda mantém vínculo com a criminalidade. Artur foi à porta da Unidade algumas
163
vezes, emagrecido, aparentando estar sob efeito de drogas. Atualmente, não se tem
notícias dele.
164
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171
APÊNDICES
APÊNDICE A. Roteiro das entrevistas semi-estruturadas realizadas com os
profissionais da semiliberdade
Nome fictício: ______________________________
Sexo: ___________
dade: __________
Tempo de serviço: ____________
Função: _________________
Formação: _______________
Data da Entrevista: _________________
1) Como é o seu trabalho? Conte um pouco do seu cotidiano.
2) O que você pensa sobre o seu trabalho?
3) Como percebe o envolvimento dos adolescentes com a criminalidade?
4) Que tipos de atos infracionais eram mais comuns quando começou a trabalhar?
Houve alguma modificação?
5) Quais são as dificuldades na realização do seu trabalho diante da relação dos
adolescentes com as drogas e tráfico?
6) O que você imagina que sejam os motivos que levam os adolescentes entrarem
nas guerras e sentirem-se ameaçados?
7) Como as famílias dos adolescentes lidam com estas ameaças?
8) Durante a realização do seu trabalho, teve conhecimento do assassinato de
algum adolescente?
9) Que tipos de vivências e situações estes assassinatos provocaram em você, nos
seus colegas de trabalho e nos adolescentes?
10) Como estas mortes atravessam o seu trabalho?
11) Tem conhecimento do desenvolvimento de alguma política destinada a este
público?
12) Há mais alguma informação ou comentário que gostaria de acrescetar?
172
APÊNDICE B. Roteiro das entrevistas semi-estruturadas realizadas com os
adolescentes da semiliberdade
Nome fictício: _______________________________________________
Idade: __________
Ato infracional: ____________
Medida cumprida anteriormente:_______________________
Data da Entrevista: _______________________________________
1. Há quanto tempo cumpre a medida sócio-educativa de semiliberdade?
2. Que dificuldades você encontra no cumprimento da medida de semiliberdade?
3. No seu entender, por que os jovens “entram no crime”?
4. Acha que é difícil “sair do crime”? Por quê?
5. Você conhece alguém que tem “guerra” e encontra-se ameaçado?
6. Quais são os motivos para uma “guerra” começar?
7. É difícil acabar com as guerras? Por que?
8. Conhece alguém que consegui resolver essa “guerra”?
9. Como as famílias dos adolescentes envolvidos em “guerras” lidam com essas
ameaças?
10. Como a medida pode ajudar os adolescentes envolvidos em “guerras” a
solucionar o problema da ameaça?
11. Quando morre algum adolescente assassinado o que você pensa?
12. Há mais alguma informação ou comentário que gostaria de acrescentar?
173
APÊNDICE C. Grupo com adolescentes realizado em 14/11/2007
Participaram da atividade cinco adolescentes: Clóvis, Gabriel, Pedro, João e
Felipe, que havia acabado de chegar do CEIP.
Expliquei novamente do que se tratava a pesquisa e os princípios éticos que a
orientam. Informei mais uma vez que trabalhei por cinco anos na semiliberdade e
que vi muitos meninos morrerem devido às “guerras”. Mas antes, perguntei se eles
sabiam porque se faz uma pesquisa e Pedro respondeu que é para saber de alguma
coisa. Em seguida expliquei a metodologia: veríamos duas cenas do filme
“Escritores da Liberdade” e depois discutiríamos. Expliquei o contexto do filme que
se trata das “guerras” estabelecidas entre gangues nos EUA. Coloquei então a
proposta da filmagem. Houve uma pequena discussão e eles não quiseram realizá-
la: “eu não quero aparecer, filma o João”. “Esse negócio de filme”... Informei
novamente que o objetivo era ter um relato da discussão, pois para mim seria difícil
discutir e aprender as questões trabalhadas pelo grupo. Além disso, disse à eles que
depois poderíamos assistir a filmagem e que poderia ser interessante nos ver no
vídeo. Mas foi em vão; não aceitaram. Talvez mostrar o rosto, a voz em uma
filmagem traz a possibilidade de serem identificados e por conseguinte se colocarem
em risco. Propus então vermos as cenas do filme gravando posteriormente a
discussão. Inicialmente eles aceitaram. Até então estávamos na varanda, mas
devido o aparelho de DVD ser pequeno, ter uma potência reduzida e também a
chegada do adolescente Felipe houve dispersão o que ocasionou dificuldade para
iniciar a discussão. Essa só foi possível mediante a intervenção do diretor das
Unidades de Semiliberdade.
As cenas do filme que retratam as “guerras” entre as gangues americanas
envolvendo questões raciais e étnicas impactaram os adolescentes. Percebi em
seus rostos e corpos um grande incômodo. Quando falei novamente que as
discussões seriam gravadas eles demonstram grande resistência e um deles chegou
a querer sair da sala e não participar do grupo. Diante de tal situação, resolvi não
fazer a gravação. João disse: “não vamos falar de morte, vamos falar de vida!” Fiz
mais uma vez o convite: “vamos falar de morte para que vocês tentem permanecer
vivos”. Retomamos a discussão a partir da seguinte afirmação: “são relatos que
174
muitos de vocês conhecem: quem aqui de vocês perdeu um amigo na “guerra”?
(esta pergunta é feita no filme). A partir da afirmativa os adolescentes começaram a
dizer das razões que fazem com que as “guerras” sejam estabelecidas: tráfico de
entorpecentes, dinheiro, mulheres, traições, furto de drogas. “Se você é de uma
facção e arruma “treta” com um de outra, começa a “guerra” (Pedro). Além da
“guerra” envolvendo grupos rivais, falaram das “guerras” estabelecidas entre os
membros da mesma facção e os motivos segundo os adolescentes são: inveja
relacionada à dinheiro, mulher, e arma; briga, entre outros.
A afirmação de que não solução para acabar com as “guerras” foi algo
recorrente: “depois que entra não tem mais jeito, acaba matando ou morrendo”
(Gabriel).
Em um determinado momento João afirmou que “a guerra é do capeta”. “Ele
entra pra matar, roubar, destruir”. A partir dessa afirmação um dos educadores que
participava da atividade faz o seguinte questionamento: “mas põe a culpa no
capeta?” “Não, o capeta facilita”. “Põe a droga, a arma na sua mão”. “O único que
tem solução pra “guerra” é Deus”.
Encerrou-se o grupo com o convite para as entrevistas individuais. Um dos
adolescentes aceitou com a entrevista sendo realizada em seguida.
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