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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
Sartre e o
Pensamento Mítico
Revelação arquetípica da liberdade
em As Moscas
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO
DO GRAU DE MESTRE
CAIO CARAMICO SOARES
Prof. Dr. FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
Orientador
São Paulo
2005
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CAIO CARAMICO SOARES
Sartre e o Pensamento Mítico
Revelação arquetípica da liberdade em As Moscas
Dissertação apresentada ao Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo para
obtenção do grau de Mestre.
Orientador
Prof. Dr. FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
São Paulo
2005
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CAIO CARAMICO SOARES
Sartre e o Pensamento Mítico
Revelação arquetípica da liberdade em As Moscas
Dissertação apresentada ao Departamento de Filosofia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo para obtenção do grau de Mestre.
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva
Orientador/Presidente
1° Examinador
2° Examinador
São Paulo, de de 2005
4
AGRADECIMENTOS
Ao professor Franklin Leopoldo e Silva, orientador e mestre, pela simpatia e
serena profundidade.
A Manuel da Costa Pinto, talento e generosidade que me abrem caminhos.
A Marcelo Coelho, estímulo fundamental desde a gênese das indagações que
me trazem a este trabalho.
Aos professores Sérgio Cardoso e Vladimir Safatle, pelas sugestões e críticas
apresentadas no exame de qualificação.
A todos os que, direta e indiretamente, contribuíram para a realização deste
trabalho, com ensinamentos e discussões.
Ao CNPq pelo suporte financeiro.
5
RESUMO
SOARES, C. C. Sartre e o pensamento mítico – Revelação arquetípica da liberdade em
As Moscas. 2005. 220 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
As Moscas (Les Mouches, 1943) representa o início da carreira de Jean-Paul Sartre como
dramaturgo e o de seu "teatro de situações". Do mesmo ano de O Ser e o Nada - obra-prima
do existencialismo sartriano-, a peça é uma versão existencialista da lenda grega de Orestes.
Este é o filho do rei Agamêmnon – comandante das tropas gregas na Guerra de Tróia - que,
com a irmã Electra, se vinga dos assassinos de seu pai, Egisto e a rainha Clitemnestra,
esposa de Agamêmnon e mãe deles. O episódio foi revisitado pelos três grandes poetas da
tragédia clássica, Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Em As Moscas Sartre transforma a
vingança de Orestes em metáfora para os temas da liberdade e da má-fé e para a crítica à
idéia tradicional de "destino" como em voga, no governo autoritário de Vichy, durante a
Ocupação nazista da França (1940-44). Esse governo, apoiado pela hierarquia da Igreja
Católica francesa, difundia uma ideologia "religiosa" de culpa e resignação diante da
derrota militar frente a Hitler. A peça de Sartre pode, assim, ser lida como apologia ao
movimento da Resistência antifascista dos franceses. Neste trabalho realizamos avaliação
dos significados do mito em As Moscas. Considerando mas também indo além de seu
sentido mais imediato de alegoria política, procuramos, à luz do ensaio clássico de Mircea
Eliade de O Mito do Eterno Retorno, esclarecer as bases de um possível diálogo implícito
da peça com o "pensamento mítico" universal, diálogo o qual é constituído por um
movimento de crítica e de re-apropriação existencialista do valor "arquetípico" das
narrativas míticas. O que se pretende mostrar é, sobretudo, que a peça de Sartre opera uma
destruição e recriação do que Eliade chama de ontologia arcaica, estrutura de pensamento
"mítica" porque calcada em arquétipos ou modelos transcendentes de significação e
legitimação das ações e instituições humanas e do mundo em geral. A destruição se dá no
contexto do ateísmo de Sartre e de sua crítica ao cristianismo; Sartre denuncia valores
morais e religiosos ligados ao que chama de má-fé, tipo de conduta que, na situação
específica de Vichy, trai a liberdade humana ao atrelar o poder e a história a certos
arquétipos "celestiais" e deterministas. Por outro lado, a recriação se deve ao fato de As
Moscas representar uma espécie de "mito fundador" da liberdade. Concluímos que, ao
contrário do que seria de se esperar da perspectiva eliadiana, o existencialismo de As
Moscas, anunciando a liberdade como horizonte fundamental da condição humana, não
implica necessariamente o esvaziamento da possibilidade da experiência mítica, e sim sua
renovação, já não como fuga – senão como revelação – da historicidade radical do homem.
Palavras-chave: Sartre. Teatro. Existencialismo. Mito. Arquétipos.
6
ABSTRACT
SOARES, C. C. Sartre and the mythical thought – Archetypical revelation of the liberty
in The Flies. 2005. 220 p. Dissertation (Master) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
The Flies (Les Mouches, 1943) represents the beginning of the dramaturgic career of Jean-
Paul Sartre and of his "theatre of situations". Of the same year that Being and Nothingness -
the masterpiece of Sartrian existentialism - this play is an existentialist version of Orestes'
Greek legend. Orestes is the king Agamemnon's son –the leader of Greek troops for the
Trojan War – which, together with his sister Electra, takes revenge against their father's
murderers, Aegisthus and Clytemnestra, Agamemnon's wife and their mother. The story
was retold by the main Greek tragedians, Aesquylus, Sophocles and Euripides. In The Flies
Sartre transforms Orestes' revenge into a metaphor for the themes of liberty and bad faith,
and into a critic against the traditional idea of "destiny", in the shape as it had a good run in
the authoritarian govern of Vichy, during Nazi Occupation of France (1940-44). This
government, supported by the French Catholic Church's hierarchy, disseminated a
"religious" ideology of guilty and resignation for the defeat against Hitler. Sartre's play can,
thus, be read as an apology for the anti-fascist Resistance of French people. In this work we
study the significations of "myth" in The Flies. Considering but also going beyond its more
immediate sense as a political allegory, we try, with the aid of Mircea Eliade' classical
essay The Myth of Eternal Return (1949), clarify the basis of a possible, implicit dialogue
of the play with the universal "mythical thought", dialogue which is constituted by both a
movement of critics and existentialist re-appropriation of "arquetypical" value of mythical
narratives. We intend to show that Sartre's play operates some destruction and recreation of
what Eliade calls "archaic ontology", structure of thought which is "mythical" once is based
upon archetypes or transcendent models of meaning and legitimacy for human actions and
institutions and of the World in general. The destruction happens in the context of Sartrian
atheism and his critics of Christianity; Sartre denounces moral and religious values
associated to what he calls "bad faith", a kind of conduct which, as in the specific situation
of Vichy, betrays the human liberty tiding up the power and the History to certain
deterministic, "celestial" arquetypes. On the other hand, the recreation is linked to the fact
that The Flies represents a kind of "founding myth" of liberty. Our conclusion is that, in
opposition to what would be expectable from Eliade's point of view, the existentialism of
The Flies, announcing liberty as the fundamental horizon of the human condition, does not
represent, necessarily, an impossibility of mythical experience, but its renovation, not as an
escape from – but as a revelation of – the radical historicity of Man.
Keywords: Sartre. Theatre. Existentialism. Myth. Arquetypes.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 8
CAPÍTULO I - TEATRO DE SITUAÇÕES: MITO E FILOSOFIA 27
O mitolo
g
ismo teatral
37
Um novo trá
g
ico
47
CAPÍTULO II - A FRANÇA OCUPADA: ‘QUEDA DO PARAÍSO’ 61
En
g
a
j
amento e "seriedade"
66
Cativeiro e Resistência
72
Um “escritor
q
ue resiste”
84
O resistente como protótipo da Liberdade 85
Visão colaboracionista da História 97
CAPÍTULO III - AS MOSCAS: EXISTÊNCIA E HISTÓRIA 107
PRIMEIRO ATO
111
SEGUNDO ATO (QUADRO 1)
122
SEGUNDO ATO (QUADRO 2)
144
TERCEIRO ATO
151
CAPÍTULO IV - AS MOSCAS: O ‘ANO NOVO’ DO ARQUÉTIPO 158
O Tem
p
o Ar
q
uetí
p
ico
159
O Sa
rado e o Ar
uéti
o
165
Teodicéias
177
O homem histórico e a an
g
ústia moderna
183
A nova "re–volta" mítica
189
CONCLUSÃO 207
BIBLIOGRAFIA 216
8
INTRODUÇÃO
As Moscas (Les Mouches) marcou o início da trajetória profissional de Sartre como
dramaturgo. Estreando em junho de 1943, no Théatre de la Cite, em Paris, sob direção de
Charles Dullin, a peça começou a ser escrita em 1941, após a saída de Sartre do cativeiro
nazista e seu ingresso na Resistência à Ocupação alemã da França. Suas datas de concepção
e de lançamento coincidem com as de O Ser e o Nada (cf. Cohen–Solal, A., 1986, p. 251 e
Nouldelmann, F., 1993, p. 39).
E, de fato, a peça faz, como este tratado, uma contundente afirmação – a um só
tempo política e filosófica – da liberdade. Política na medida em que expressa a repulsa de
Sartre ao governo nacional sediado na cidade de Vichy, durante a Ocupação (1940–44) e
uma adesão mais – como na cerrada tessitura ontológico–fenomenológica de O Ser e o
Nada – ou menos – é o caso de As Moscas – velada à Resistência (Cohen–Solal, A., ibid.,
p. 254–5). E filosófico por que a palavra “liberdade” adquire um sentido bastante peculiar
na doutrina existencialista que então é lançada: a partir de Sartre, já não é possível ver na
liberdade um mero “atributo” entre outros da “natureza humana”, mas sim o modo de ser de
um ser distinto dos demais seres porque nele, e só nele, a existência precede a essência. “O
homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre o ser do homem e o seu
ser - livre’”, dirá O Ser e o Nada (Sartre, J.-P., 2003, p. 68), ao que replicará As Moscas:
“Não sou nem senhor nem escravo, Júpiter. Eu sou minha liberdade!” (Sartre, J–P., 2003, p.
9
103). Tal defesa ardorosa da liberdade passa pela crítica igualmente radical a toda forma de
determinismo, seja o da natureza, de Deus, da sociedade ou da História. Uma posição, por
si só, francamente subversiva em relação aos modelos políticos autoritários, como o da
França de então, governada pelo Marechal Pétain e pelos colaboracionistas (aliados locais
de Hitler), não sem o importante apoio da hierarquia católica; a Igreja ajudava Pétain a
difundir na população um sentimento de culpa e resignação diante da derrota militar de
1940: tal evento era lido como uma espécie de “punição” divina pelos pecados que vinham
sendo cometidos pelos franceses ao longo da Terceira República, como a “libertinagem
comportamental, o abandono dos verdadeiros valores (da família, da religião e da nação) e
a condescendência com ideários políticos revolucionários. As Moscas, explica Michel
Contat, não tinha de grego "senão a referência ao mito"; seu alvo era "o catolicismo da
Igreja que se fez sustentáculo do regime de Pétain", e seu significado político era
indissociável do filosófico, pois resistir é primeiramente "resistir às ideais que fundamental
a colaboração e a justificam metafisicamente" (Contat, M., in: Sartre, J.-P, 2005b, p. XXIV-
XXV).
Sartre combaterá pela raiz a “religião do remorso” de Vichy e o cultivo da idéia de
uma “fatalidade” histórico-moral, ao mostrar que a liberdade é a verdadeira “condenação”
absoluta que pesa sobre os homens e povos. E uma liberdade radical implica uma
responsabilidade integral por nossos atos. A responsabilidade, sob este aspecto, é uma dada
forma de relacionamento subjetivo com o passado –ou seja, com a liberdade já "atuada"
(por nós e por outrem) e cristalizada em "background" incontornável de nossa trajetória
biográfica e histórica- , e se põe nas antípodas da conduta pautada pelo remorso, já que
assinala a soberania do homem sobre seus atos, e do seu presente (ou melhor, do seu futuro,
já que todo homem é um projeto de ser, uma escolha que se abre para o devir) sobre o seu
passado, ao contrário do que sugere a moral do arrependimento compulsivo, que bloqueia o
futuro em nome da eterna reiteração da lembrança culposa.
A temporalidade humana, enquanto estrutura da vivência subjetiva, se vê assim, no
prisma existencialista, despida de uma série de preconceitos caros à ideologia de Vichy:
causalismos inevitáveis, valores eternos que, se descumpridos por nosso livre-arbítrio,
acarretam a desgraça, um destino pré-estabelecido ou, em geral, qualquer providência
divina, positiva ou negativa. Ao contrário, essa temporalidade, enquanto História, é palco
10
do exercício concreto da liberdade constitutiva do homem, de um indeterminismo
ontológico que convive, de modos mais ou menos conflituosos, com os condicionamentos
(“facticidade”) impostos pelo que Sartre chama de situações.
Parece surpreendente que, em As Moscas, a radicalidade de tais idéias tome formas
as mais “tradicionais” – a mitologia grega–, e que uma doutrina da liberdade seja expressa
mediante o recurso a algo que parece estar nas suas antípodas: a visão arcaica da fatalidade.
Foi este paradoxo que, de início, mais nos chamou a atenção para a peça. E o presente
trabalho tem, justamente, por objetivo, para além de um inventário do "conteúdo
doutrinário" da peça, lhe destacar as formas concretas que toma, numa fina imbricação
entre filosofia, experiência histórica e mito.
O que é o mito? Em meio às tantas possibilidades de conceituação antropológica,
psicológica, sociológica, lingüística e assim por diante, preferimos, de partida, um
esclarecimento etimológico. “A palavra mito”, esclarece Marilena Chauí, “vem do grego,
mythos, e deriva de dois verbos: mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para os outros)
e mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um
discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa,
porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na
autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador”, que é o poeta-rapsodo, cuja
legitimidade provém do fato de ter sido escolhido pelos deuses para a missão de proferir
um discurso –o mito– que, devido a tal proveniência direta dos deuses, é sagrado e
inquestionável (Chauí, M., ibid., p. 28-9).
O mito, prossegue Chauí, é “uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem
dos astros, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da
saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder
etc.)” (Chauí, M., 2002, p. 28). Já nesta definição, diga-se de passagem, deparamos com a
importância do aspecto cosmogônico na lógica do mito (e não só no contexto grego, como
veremos da perspectiva de Mircea Eliade). E a “palavra gonia vem de duas palavras gregas:
do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos
(nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração,
nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmos (...) quer dizer mundo
11
ordenado e organizado. Assim a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a
organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas” (Chauí, M., ibid.,
p. 30).
Teremos a oportunidade de discutir, ao longo deste trabalho, o peso que a dimensão
“cosmogônica” desempenha no mitologismo de As Moscas. Tanto no mitologismo que é
criticado –e que se refere a uma espécie de “pecado original” de que derivariam as dores e
privações do presente-, quanto no que é afirmado na peça, relativo à gênese da liberdade
mediante a rebelião matricida de Orestes, o famoso herói da mitologia grega ressurrecto,
em vestes existencialistas, por Sartre. Tal dialética de As Moscas com relação ao mito
“cosmogônico” -ou seja, o movimento concomitante de sua negação e afirmação- poderia
ser considerado como a hipótese específica que queremos vir a demonstrar, sobretudo no
capítulo final do trabalho.
Mas, em termos gerais, nosso propósito é, mediante, inclusive, o comentário do
contexto (histórico e estético) e do conteúdo da peça, apontar os diferentes níveis em que se
pode dizer que As Moscas se configura como uma narrativa mítica: um nível literário – o
enredo em si, na sua riqueza metafórica, e a retomada da lenda grega do matricídio de
Orestes, apoiado pela irmã Electra, em vingança pela morte de seu pai Agamêmnon;
estético –de acordo com as premissas sartrianas acerca da linguagem e finalidades do
teatro; político- uma crítica paródica do “mito” teológico-político em vigência no regime
anti-semita e autoritário de Vichy; e ontológico.
Esta última categoria faz referência direta à questão da cosmogonia, porque nos
apropriaremos aqui da teoria de Mircea Eliade de que o “pensamento mítico”, orientado
pela atribuição de um prestígio sobrenatural às "origens", expressa uma ontologia arcaica
que confere realidade e valor à totalidade dos entes na medida em que estes participam de e
reiteram arquétipos isto é, modelos exemplares por orientar a vida e regular a ordem social
no aqui - agora e transcendentes porque tradicionalmente provinham de ações de deuses,
ancestrais ou heróis civilizadores (cf. Eliade, M., 1969).
A nosso ver, a própria doutrina “existencialista” que se deixa ver nesta peça de
Sartre, se bem que compareça também em determinadas conceituações explícitas,
12
notadamente a respeito da noção de liberdade, tem no mito, ou nesses distintos níveis do
mito, sua instância por excelência de concretização.
Tamanha imbricação entre filosofia e mito torna As Moscas um documento
precioso, entre outros motivos, por iluminar uma questão mais ampla, que também será
aqui levantada, a saber, a voga de certa “remitolização” na cultura ocidental do século XX.
É visível, ao longo do último século, com a corrosão da soberania exclusivista do
logos abstrato-conceitual, uma revalorização do pensamento mítico, que fora soterrado no
bojo da auto-afirmação da filosofia racional: “Alguns autores sustentam que antes do
advento da filosofia helênica –na Grécia arcaica– os termos logos e mythos não se
opunham: ambos se referiam a um relato sagrado transmitido oralmente, ao pé do ouvido,
de geração em geração. É no limiar da filosofia helênica (pré–socráticos, Platão,
Aristóteles) que se instaura com força crescente uma antinomia entre os termos, antinomia
feroz, onde o Logos impõe ao mythos um duro revés. Logos começa a tomar o sentido
grave e benfazejo de um ‘discurso bem regrado’, disciplinado para a ‘conquista da
verdade’, sentido a um passo daquele de raciocínio ou de razão. Mythos, a sua vez, se vê
depreciado na conotação da palavra que serve para ‘criar a ilusão’” (Beivides, W. 2002, p.
129). Essa cisão se acirrará com a metafísica moderna, que vê na razão matemática ou
empírica os únicos meios de acesso legítimo à “verdade”, sendo tudo o mais produto de
fantasias, de “imaginações”, que um cartesiano como Maleblanche decretaria serem
“amantes do erro e da falsidade” (Durand, G., 2001, p. 10).
Segundo Mircea Eliade, a dicotomia entre logos e mythos –e o rebaixamento deste
último à condição de fábula ou ilusão- teria se instaurado num processo histórico complexo
e milenar, entre cujos marcos estaria a crítica de Xenófanes (que viveu entre,
aproximadamente, 565 e 470 a.C.) às distorções "mitológicas" com as quais Homero se
referia aos deuses. O mythos assim começava a ser despojado do "valor religioso e
metafísico" de que era investido (Eliade, M., 1994, p. 1-2). A depreciação teria sido
prosseguida no contexto judaico-cristão, em que a noção de "mito" se sobrecarrega de um
acento pejorativo, ao se associar aos que negam a "verdadeira religião" e se apegam às
superstições e idolatrias pagãs (ibid.). O iluminismo e ciência evolucionista do século XIX
seriam herdeiras desse pano de fundo histórico-religioso de iconoclastia. (Não obstante sua
13
rejeição ao mythos, a cultura ocidental, ainda segundo Eliade, não deixaria de ser permeada
determinadas variantes do "pensamento mítico", enquanto estrutura ontológica cujos traços
apresentaremos neste trabalho).
O crítico russo E. M. Mielietinski, em seu livro A Poética do Mito, mostra que um
dos traços mais importantes das vanguardas artísticas e de variados expoentes das ciências
humanas e da filosofia do século passado foi uma revalorização do mito como forma
discursiva e como revelação de camadas mais profundas do psiquismo, da história e da
sociedade. E, prossegue Mielietinski, com o mito, renasce, nessas correntes de arte e
pensamento, um fascínio pelas concepções “arcaicas” do tempo, calcadas na idéia de
circularidade e repetição (ponto muito destacado por Mircea Eliade, uma terceira razão,
afora os méritos intrínsecos de sua formulação teórica, e do incremento de legibilidade que
ele parece oferecer para a peça de Sartre, para ter sido ele o autor que destacamos como fio
condutor teórico-metodológico na problemática antropológica do mito): a História, ao invés
de fluxo evolutivo linear e contínuo, se mostrará como um “eterno retorno” aos mesmos
protótipos das Origens. Mas, enfatizando a irrupção do que chama de “mitologismo
moderno” no campo do romance – Joyce, Thomas Mann, Kafka- Mielietinski apenas
enuncia, muito rapidamente, os paralelos deste fenômeno no âmbito da filosofia, ao evocar
os nomes de Nietzsche, Bergson e Cassirer. E, para a vertente doutrinária que nos interessa
mais de perto aqui, as ditas filosofias da existência, em que Sartre se inclui, A Poética do
Mito oferece uma referência sucinta, ainda que bastante sugestiva:
“O problema do mito não é indiferente ao existencialismo, que em certo sentido foi
herdeiro da ‘filosofia da vida’. A concepção do eterno retorno, em forma tragicamente
acentuada, é focalizada em O Mito de Sísifo de Camus. Encontramos elementos de
tratamento positivo do mito em Heidegger, que idealiza a consciência pré-socrática”
(Mielietinski, E. M., 1989, p. 27); sem que discutamos aqui a conveniência ou não do
rótulo "existencialista" para Camus e para Heidegger, destaquem-se, para maior
aprofundamento das relações entre o mito e o pensar heideggeriano, estudos como o de
Thaís Curi Beani (1995, p. 367 ss).
Ao explorar o lugar do mito na peça de Sartre, este trabalho visa a pelo menos
apontar bases para uma inquirição sobre o lugar de Sartre no mitologismo de sua época,
14
um mitologismo que, de múltiplas formas, e com diferentes intuitos ideológicos, se afirma
tendo por pano de fundo a corrosão do ideário burguês do “progresso” linear e contínuo,
desmentido dramaticamente pelos surtos irracionalistas e as barbáries institucionalizadas
que marcaram um período, o século XX, que deveria ter sido o apogeu da emancipação
humana, segundo as estimativas otimistas do positivismo e do evolucionismo do século
anterior.
Mas, ao nos lançarmos a esta frente de investigação, logo constatamos a relativa
escassez de comentadores sartrianos que já se debruçaram sobre tais problemas em nosso
autor. Essa pouca atenção da bibliografia especializada - afora exceções como as
abordagens, ainda assim breves, de nomes como Istvan Mészáros (1991) e François
Nouldelmann (1993) - talvez se deva ao fato de que, numa primeira visada, a obra de Sartre
parece apenas ecoar a “má reputação” que cerca habitualmente a noção de mito,
esvaziando-a de uma importância especial e específica neste pensamento. Como "falsa
consciência" (próxima ao sentido moderno, pós-marxista, de ideologia) ou distorção da
realidade, e palavra mito é tornada por ele uma arma retórica em polêmicas contra um
Raymond Aron, por exemplo, (cf. Sartre, J.-P., 1949); já na acepção de estilos
(“antiquados”) de conhecimento / cultura / pensamento, podemos nos lembrar da acirrada
disputa com o antropólogo Claude Lévi-Strauss, na qual Sartre, de modo geral, fala em
mito - categoria tão valorizada por seu oponente - para caracterizar a persistência do
passado e, pois, o "avesso" da história e da práxis, sinônimas da transformação (in: Coelho,
E. P. (org.), s/d, p. 125 ss). Esses dois sentidos aparecem juntos numa entrevista de Sartre,
já na velhice, a Benny Lévy. Ele diz, por exemplo, que, por não ter explicitado o "gênero de
verdade" que era preciso dar à frase de que os "homens são irmãos", Sócrates, na
República, faz dessa frase um (mero) "mito" (Lévy, B., 1992, p. 55); um pouco mais
adiante, ele diz que a fraternidade não deve ser formulada em termos de mitologia, porque
está no "futuro", enquanto a mitologia "é sempre do passado" (ibid., p. 58).
Escolhemos o teatro como território privilegiado de nossa inquirição sobre o mito
em Sartre porque, neste âmbito, como veremos no Capítulo I, o registro e a valoração que
Sartre confere à noção de mito não se limitam a esta negatividade, a qual, de resto, é uma
espécie de tributo a ser pago por todo autor que, tendo por horizonte imediato a experiência
ocidental e moderna –diferentemente das preocupações etnológicas de um Lévi-Strauss-, é
15
comprometido com legados essenciais do pensamento crítico e emancipatório pós-
Iluminista. Ou comprometido com a filosofia tout court, desde sua consolidação platônico-
aristotética: como mostra Marilena Chauí, o impulso crítico “desmitologizante” é precípuo
à filosofia já em seu nascimento grego, quando esta forma de pensamento se soergue num
esforço de contestação da autoridade inquestionável do que proferia e de quem proferia a
narrativa mítica, e num movimento de reformulação e racionalização das questões e
respostas cosmológicas e existenciais propiciadas pelo mito (Chauí, M., 2002, p. 31), ainda
que o recurso mítico não tenha sido suprimido da prática filosofante que então se instituía,
vide o caso clássico de Platão (cf. Droz, G., 1997).
O percurso hermenêutico a ser trilhado neste trabalho exige a demarcação de balizas
gerais que nos exigirão considerável massa de dados que vão desde o aparato conceitual do
existencialismo sartriano até fatores de tipo biográfico, referentes a preocupações e
vivências do autor no período. Tentamos atender a essa exigência buscando inspiração nas
raízes etimológicas da noção de “metodologia”: odos como “caminho” e “meta”
significando “além”, ou seja, um “caminho conduzido além de” (cf. Boss, M., apud Neto,
A. N., 1980). O “caminho”, no caso, é o de adentramento preliminar nos contextos estético-
filosófico (Capítulo I) e histórico de As Moscas, nos quais encontraremos já as dimensões
teatral e política do mitologismo da peça.
O capítulo inicial, além de mostrar a importância do mito no projeto teatral de
Sartre, discute, de modo panorâmico, as linhas gerais do chamado teatro de situações,
forma pela qual Sartre designa o tipo de dramaturgia por ele praticado. Tamm
levantamos alguns aspectos pelos quais o teatro sartriano poderia ser aproximado de certa
idéia de tragicidade que será relevante à compreensão da peça em questão.
No Capítulo II, reconstruímos brevemente a conjuntura histórica, ou seja, a
“situação”, subjacente à peça de 1943, e tentamos mostrar a articulação entre premissas
filosóficas e observação político-social na leitura que Sartre propõe para este contexto de
Ocupação alemã e de Resistência. Ao longo deste capítulo –bem como no conjunto do
trabalho–, a remissão aos conceitos capitais da doutrina existencialista de Sartre, conforme
expostos em O Ser e o Nada e “O Existencialismo É um Humanismo” se dá de maneira
circunstanciada e para esclarecer problemas específicos que vão surgindo no correr da
16
argumentação, mas sem a sistematicidade que tais idéias mereceriam se esmiuçadas em
seus lugares textuais próprios de demonstração; as leituras didáticas oferecidas por Gerd
Bornheim (2003) e Paulo Perdigão (1995) nos foram de grande valia pela forma clara,
eficaz e sintética com que apresentam a complexa urdidura da doutrina de Sartre, ou da
parte dela que se explicita neste período da trajetória do autor. Sem que ponhamos As
Moscas diretamente em foco, todavia nossa preocupação é de mostrar, pelo estudo do
contexto da Ocupação, os elementos que serão esclarecedores do mitologismo político da
peça.
No Capítulo III é que nos dirigimos mais incisivamente para dentro do texto de As
Moscas, tecendo uma interpretação da trama (nível literário do mito) à luz dos referenciais
apurados anteriormente. E, no Capítulo IV, reconstruímos, com algum detalhe, a teoria
mítica de Eliade – conforme apresentada em O Mito do Eterno Retorno (1949), livro no
qual este autor também interpela diretamente a filosofia moderna, e o existencialismo em
particular–, para em seguida a colocar em diálogo com a mitologia existencialista cunhada
pela peça de Sartre. É que o nível ontológico do mito em As Moscas ficará mais salientado.
Encerramos o trabalho, na Conclusão, com uma recapitulação dos principais passos da
investigação.
Na tipologia quaternária em que sintetizamos as facetas do mito em As Moscas, há
um aspecto, o literário, cujo aprofundamento – no que tange às fontes de que provém o
enredo da peça – reservamos para um estudo mais aprofundado na pesquisa de
doutoramento, quando pretendemos incluir outra incursão de Sartre ao universo grego: sua
adaptação de As Troianas (1964). Queremos, nesta investigação ulterior, também enfocar
outras peças em que Sartre faz uso direto de temas míticos tradicionais, caso, além das
Troianas, de Bariona (que reconta o nascimento de Cristo) e Entre Quatro Paredes (Huis
Clos) que, um ano posterior a As Moscas, é a história de três “almas” que se encontram,
após a morte, no inferno.
Será feito então algo que consideramos essencial a uma decodificação mais
completa deste nível do mito em As Moscas: o exame das relações intertextuais da peça de
Sartre com os enredos e cosmovisão de suas matrizes gregas, sem que possamos tampouco
ignorar as variadas formas de recepção e modificação delas pela rica tradição de retomadas
17
do mito no teatro francês desde os tempos de Racine e Corneille até Jean Giraudoux,
passando por outros nomes como Gide, Cocteau e Anouilh, expoentes da cultura
neoclássica que toma o teatro francês desde os anos 30 (cf. Contat, M., in: Sartre, J. P.,
2005b, p. XXIV). Uma aproximação a Giraudoux seria especialmente pertinente, na
medida em que Sartre dele toma emprestados expedientes como a alternância entre
coloquialidade e requinte literário, os anacronismos e a estrutura dramática articulando um
diálogo de idéias filosóficas aplicado a ações extraídas da mitologia (ibid., p. 1263).
Inclusive a alusão às Erínias como "moscas" já é feita por Giraudoux (cf. Liudvik, C., in:
Sartre, J.-P., 2005, p. XIV). Por outro lado, Sartre já não podia conservar o teor "otimista"
da Electra de seu predecessor, suas expectativas de apaziguamento das tensões franco-
alemãs do período entre-guerras.
Por ora, cremos que a complexidade própria a As Moscas justifica seu estudo
específico e imanente, trabalho esse que foi por mim realizado simultaneamente à
experiência de traduzir As Moscas, gratificante esforço de que resultou a publicação da
peça, pela primeira vez no país, pela editora Nova Fronteira (Sartre, J.-P., 2005).
Mas, incluída entre os elementos implicados no mito literário de As Moscas, a
matriz lendária da peça deve ser desde já assimilada, até para que possamos apreciar
corretamente a singularidade da variante de Sartre. Dedicamos esta parte final da
Introdução a tal caracterização.
As Moscas retoma, como dizíamos, a história de Orestes e Electra, os filhos de
Agamêmnon que se vingam dos assassinos de seu pai – morto pela própria esposa
Clitemnestra, e pelo amante dela, Egisto, que então usurpa o trono de Argos (região do
sudeste da Ásia; sua cidade principal era Micenas, em cuja acrópole ficava o palácio real),
enquanto Orestes é mandado ao exílio e Electra se torna escrava no palácio real.
Esse, aliás, é apenas mais um episódio da “sina” de crimes e castigos que assola
aquela família de geração em geração. Na Grécia, como típico das culturas tradicionais, o
“indivíduo” não era pensado isoladamente, sua identidade era co–extensiva à coletividade,
no caso, ao génos familiar de que fazia parte. Esse traço é mantido pela tragédia clássica da
Atenas do século V a.C, que “resgata o que há de fundamental a pensar nas relações
humanas em comum” (Gazolla, R., 2001, p. 27). Por isso uma ação que configurasse
18
hamartía – ou “erro”, equívoco decorrente de algum excesso, mas que não se pode
considerar idêntico ao conceito judaico–cristão de “pecado” (Gazolla, R., ibid.) – passível
de castigo divino não era tida como algo de significado puramente pessoal, tendo, ao
contrário, efeitos sobre o destino da sua parentela “em sagrado” (pais, filhos, netos, por
linha troncal, e entre irmãos, por linha colateral) ou “em profano” (esposos, cunhados,
sobrinhos, tios; cf.; Brandão, J. S., 1998, p. 77). “Nas antigas comunidades (...) ninguém
pode permanecer manchado por um erro sem atingir a si mesmo e a toda comunidade,
independentemente de qualquer sentimento de interioridade, tão conhecido pela época
moderna. Sua identidade não lhe é específica nem a expiação comunitária é vingança contra
ele, mas é purgação para si mesma. (...) Dirimir um erro é salvar a comunidade e nunca
somente a si mesmo, questão de difícil compreensão para nossa época” (Gazolla, R., 2001,
p. 28). Não estamos muito distantes, neste aspecto – ainda que variem as colorações éticas
do mitologema–, da crença judaico–cristã na pena que pesa sobre o gênero humano após o
“pecado original” de Adão e Eva. De resto, como nota Junito de Souza, a transmissibilidade
da falta e a hereditariedade do castigo são idéias que estão longe de ser um fenômeno
cultural isolado; “a encontramos desde o Rig Veda até o nordeste brasileiro, sob aspectos e
nomes diversos” (ibid, p. 78). E este aspecto do pensamento mítico, cujas bases ontológicas
apresentaremos sob o enfoque de Mircea Eliade, é de decisiva importância na ideologia
vichyista tal como criticada por Sartre em As Moscas.
No caso da família de Orestes e Electra, tudo começou com a blasfêmia cometida
por Tântalo. Este filho de Zeus e Pluto (“riqueza”) reinava na Lídia ou na Frigia, sobre o
monte Sípilo, na Ásia Menor, e era “extremamente rico e amado pelos deuses, que o
admitiam nos seus festins” (Grimal, P., 2000, p. 428). Mas sua sorte muda bruscamente
quando Tântalo incorre no que os gregos chamam de hybris, conceito que, aparentado ao de
hamartía, denota o orgulho ou desmesura que leva ao esquecimento dos limites humanos e
da necessária reverência ao divino: para testar a onisciência dos deuses, os convida para um
banquete em que lhes oferece as carnes de um de seus filhos, Pélops. Afora Deméter, que
estava transtornada pelo rapto de sua filha Perséfone por Hades e que por isso come um
ombro de Pélops, os demais convivas percebem que refeição era aquela antes de ingeri–la:
recompõem e ressuscitam o filho de Tântalo e precipitam o pai cruel ao Tártaro, onde
passaria a eternidade condenado à volúpia insatisfeita: preso diante de um ramo com frutos
19
deliciosos que recuava quando o supliciado tentava alcançá–los, e imerso até o pescoço em
águas límpidas que escoavam sempre que tentava bebê–las. Como mostra Grimal, havia
outras versões para o castigo, assim como para o “orgulho” temerário de Tântalo: ele teria,
por exemplo, roubado néctar e ambrosia dos deuses e o entregue a seus amigos humanos,
ou contado a estes segredos que ouvira durante suas refeições juntos aos olímpicos (ibid.).
De todo modo, Tântalo ficou no imaginário grego como um dos símbolos mais poderosos
da malignidade da hybris e de suas conseqüências desastrosas, não só para quem a comete
como também para seus descendentes. Com efeito, sua filha Níobe, por exemplo, foi
castigada por se vangloriar de que tivera –diz a maior parte dos mitógrafos– 14 filhos (sete
homens e sete mulheres), enquanto Leto parira apenas dois, Apolo e Ártemis. Ofendida,
Leto manda que seus filhos fulminem, com suas flechas, os de Níobe, o que de fato
acontece. Só teriam sobrado dois, um rapaz e uma moça -Clóris, cujo nome se relaciona ao
aspecto pálido, “verde”, que tomou diante do horror da matança dos irmãos. Níobe, em
prantos, teria fugido para o monte Sípilo, onde os deuses a transformaram em rocha; suas
lágrimas, porém, não cessaram, por isso ali brotou uma nascente (Grimal, P., ibid., p. 331–
2).
O próprio Pélops ajuda a perpetuar a correia de maldições que o vitimara: sua sina
se manifesta quando da disputa pela mão de Hipodamia, a filha de Enómao, um rei de Pisa,
na Elida. Enómao, talvez por desejos incestuosos, ou mesmo por um oráculo que o advertia
de que seria morto por seu genro (Grimal, P. ibid., p. 137), não queria que Hipodamia se
casasse. Para isso, arma um ardil: os possíveis candidatos a marido dela deveriam vencê–lo
numa corrida de cavalo; caso perdessem, eram mortos – de fato, a porta do palácio de
Enómao já ostentava as cabeças de doze infelizes pretendentes; os cavalos do rei eram
divinos, por isso era praticamente impossível que ele fosse vencido, podendo o rei se dar ao
luxo de deixar o concorrente tomar a dianteira, enquanto ele sacrificava carneiros a Zeus.
Mas Pélops conquista o amor de Hipodamia e a convence a ajudá–lo a corromper o
cocheiro real, Mírtilo – também apaixonado pela princesa . Mírtilo faz com que o eixo do
carro de Enómao se quebre, durante a corrida; o rei é preso nas rédeas e arrastado pelos
cavalos, morrendo. Mais adiante, numa das versões do incidente, Pélops teria afogado
Mírtilo em represália a uma suposta tentativa de abuso sexual do cocheiro contra
20
Hipodamia. Mírtilo, enquanto agonizava, amaldiçoou a casa de Pélops, assim ratificando e
projetando adiante o infeliz destino dos Tantálidas (Grimal, P., ibid., p. 232).
Atreu, Tieste e Crisipo, filhos de Pélops não ficam, de fato, infensos à sina. No caso
de Crisipo, aliás, está um ponto de intersecção da história dos Tantálidas com a de outra
célebre “maldição familiar”, a que pesa sobre os Labdácidas ou descendentes de Laio (entre
os quais se incluem Édipo e a filha dele, Antígona). É que, recebido na mansão de Pélops,
Laio se apaixona por Crisipo e o rapta (com o consentimento dele), o que atrai para si a
maldição não só de Pélops como a da deusa Hera, esposa de Zeus e protetora dos “amores
legítimos” (cf. Brandão, J. S., 1998, p. 84). É desse modo que Laio e sua descendência
ficam marcados pela hamartía – conceito que, aparentado ao de hybris, significa não um
“pecado”, no sentido judaico–cristão, mas uma falha, um “errar o alvo” (Brandão, J. S.,
ibid., p. 76) – a ser reproduzida e expiada de geração em geração.
Crisipo vem a ser morto pelos próprios irmãos Atreu e Tiestes. Mas, estes dois, que
eram gêmeos, se lançam um contra o outro devido à cobiça pelo trono de Micenas. Amante
de Aréope, mulher de seu irmão, Tiestes aplica-lhe um golpe e garante o poder, mas é em
seguida deposto e banido. Atreu não se satisfaz com isso: quando sabe da traição de
Aérope, planeja pérfida vingança: simulando um pedido de reconciliação, convida o irmão
para um banquete em Micenas e o oferece, como repasto, as carnes de três filhos que
Tiestes tivera com uma concubina. Ao final do banquete, Atreu manda que tragam ao irmão
as cabeças dos filhos mortos e depois o bane novamente. O Sol chegou a recuar, de tão
horrorizado que fica diante do acontecido. Tiestes se refugia em Sicione, onde, a conselho
de um oráculo, se une à própria filha Pelopia e dela tem um filho, Egisto, que é quem viria
a assassinar Atreu, em vingança pelo que este fizera contra Tiestes, que assim é
reconduzido ao poder (Grimal, P., 2000, p. 448).
Egisto seria também personagem central no giro seguinte da sangrenta roda da
fortuna dos Tantálidas. Primo de Agamêmnon, ele se aproveita da partida dele para a
Guerra de Tróia – esta grande expedição de vingança contra a desfeita que o irmão de
Agamêmnon, Menelau, sofreu ao ter a esposa Helena raptada por Paris – e se torna amante
da mulher dele, Clitemnestra, a qual também odiava o marido desde que fora raptada e
forçada a casar-se com ele e, sobretudo, após o sacrifício de Ifigênia – uma das filhas que
21
teve com o rei de Argos –, pena imposta por um oráculo para que Agamêmnon reparasse
uma ofensa que cometera contra Ártemis e recebesse ventos favoráveis à partida das naus
encalhadas em Áulis. Na volta da vitoriosa expedição de Tróia, Agamêmnon é assassinado
pelos dois amantes. O filho Orestes é mandado ao exílio, e Electra, irmã de Orestes, que
não se conformou com o assassinato do pai, é tornada serva no palácio real de Micenas
(Grimal, P. ibid., p. 11–14).
O retorno de Orestes e a vingança contra a mãe e o usurpador do trono de Micenas
são tema de variadas narrativas na Grécia clássica, sendo inclusive utilizado em
consagradas obras dos três grandes trágicos, Ésquilo (525 ou 524 – 456 a.C), Sófocles (496
– 406 a.C) e Eurípides (485–406 a.C). E, nos três casos, seja de forma apologética ou –
caso de Eurípides – quase satírica, é reiterada e reforçada a visão dos Tantálidas (ou
Pelópidas ou Atridas, se consideramos apenas, respectivamente, a descendência de Pélops
ou a de Atreu) como imagem arquetípica da “fatalidade” que desaba sobre aqueles que
ofendem a ordem do mundo e os desígnios divinos. Como afirma J.B. Mello e Souza, “a
tremenda fatalidade que perseguiu Agamêmnon e seus filhos fornecia assunto de sobra para
o teatro grego; todos se animaram a explorar o copioso filão” (Mello e Souza, J.B., (org.),
1953, p. 230).
E o fizeram não sem imprimir –como o próprio Sartre viria a fazer, séculos depois-
a uma matéria de domínio público, a um tesouro do imaginário coletivo, marcas
evidentemente autorais, que criam algumas distinções de enredo, mas, sobretudo, de
cosmovisão, desde o tom fortemente teocrático que se impõe em Ésquilo até o humanismo
iconoclástico de Eurípides, avesso não só à devoção esquiliana como à glorificação
sofocliana dos heróis, da vontade humana que move a História (sobre as diferenças entre os
três trágicos há abundante literatura, da qual poderíamos mencionar, por exemplo, Lesky,
A., 1976, e Gassner, J., 2002).
Na trilogia Oréstia, de Ésquilo, o matricídio e conseqüente julgamento de Orestes
no Areópago – ocasião em que o filho do rei é absolvido graças ao “voto de Minerva”
(referência ao nome romano da deusa Palas Atena) – são quase que exclusivamente
inteligíveis como um duelo entre os deuses “novos” e velhos”, ou seja, entre a ordem
olímpica, representada pelo deus Apolo, que empurra Orestes à vingança e faz–se
22
“advogado” dele no tribunal instituído por Palas, e as divindades mais arcaicas, com
destaque para as Erínias (ou “Fúrias”, em Roma). Estas são “espíritos femininos de justiça e
vingança”, um pouco à feição desta outra entidade mítica da Grécia antiga, Nêmesis, e
personificavam “idéias muito antigas de retribuição” (Grant, M., & Hazel, J., 1996, p. 138).
Conhecidas, em algumas versões do mito, como filhas da Noite (Nyx), das Erínias
dizia–se também terem nascido do sangue de Urano que respingou sobre Gaia (Terra),
quando o deus celeste foi castrado pelo filho Cronos. Brotaram, pois, de uma violência
primordial, e se associariam para sempre ao expediente da violência reparadora da
violência: eram deusas encarregadas do duro castigo aos homidas -sobretudo se o crime
fosse contra alguém do mesmo génos (ibid., p. 139-140) –, sob a forma da loucura, ainda
em vida, ou das torturas eternas contra os condenados do Tártaro, região infernal onde elas
moravam. O uso explícito por Ésquilo dessas entidades, como Coro das Eumênides teria
suscitado na platéia um genuíno terror (ibid., p. 139). Esta peça é a última da trilogia
Oréstia, e alude, no título, ao eufemismo (eumênides quer dizer “deusas benévolas”) muito
usado pelos gregos da época para evitar até mesmo pronunciar o nome de seres tão
indissociáveis do infortúnio e da desgraça. Mais amplamente, as Erínias eram potências de
sustentação das leis cósmicas – das quais os sacrossantos vínculos de parentesco eram uma
das facetas–, tanto que há a passagem famosa em que Heráclito diz que, se o Sol quisesse
se desviar de seu curso habitual, seria por elas impedido (ibid.).
Se as Erínias assumem o papel de “cadelas de Clitemnestra”, que saem à caça do
matricida Orestes, Apolo, por sua vez, toma partido da honra patriarcal, gravemente
ofendida pela temerária ousadia (hybris) de Clitemnestra em matar, como relata
Agamêmnon, primeira peça da trilogia esquiliana, não só um varão qualquer, mas aquele
que era considerado o “rei por excelência” (Brandão, J. S., 1998, p. 85), uma encarnação
humana do esplendor do poder de Zeus. Talvez por isso, logo no início do julgamento,
Apolo lance um “argumento de autoridade”: nunca proferiu uma só palavra oracular que
não estivesse de acordo com a vontade do Senhor do Olimpo. (Ésquilo, 2000, p. 170–1). E
é entre esses pólos (divinos) em conflito que se dispõem as dores e rancores humanos que
dilaceram o clã dos Atridas mas que unirão Orestes e Electra num mesmo ódio aos
assassinos do pai e numa mesma empreitada de vingança, contada por Ésquilo nas Coéforas
(= “portadora de libações”), segunda parte da Oréstia. Com um rigor lógico típico de uma
23
era que marcava a aurora da razão e da democracia (cf. Vernant, J.–P. & Vidal–Naquet, P.,
1999), Ésquilo tece poderosa meditação poética sobre a importância da observância dos
imperativos sagrados –inclusive na terrível personificação destes pelas Erínias– para que a
própria afirmação do humano seja sustentável e não degenere em demoníaca destrutividade.
Orestes não chegou a ser inocentado pelos seus juízes humanos, e as Erínias foram
convidas por Palas a se mudarem do Tártaro para a região de Atenas, onde passariam a ser
reverenciadas como deusas protetoras da paz pública: dois sinais de que a hybris humana
devia ser contida e “curada” pela força da dialética trágica entre os pontos de vista dos
deuses, dos numes, dos heróis e dos cidadãos comuns (cf. Torrano, J., 2004).
Na Electra de Sófocles cresce de modo impressionante o grau de autonomia e de
densidade “humanas” das personagens, vide a complexidade de Electra – sua instabilidade
entre o desespero mais absoluto, luto tão “petrificante” que ela própria chega a comparar ao
de sua lendária parente Níobe (Sófocles, 2000, p. 83), e a revolta que incita à coragem e à
ação. Assim também é notável – até pelo grau de contraste em relação à covardia do
Pedagogo de As Moscas- a virilidade bélica do Preceptor que acompanha, no retorno a
Micenas, Orestes e o inseparável amigo deste,lades – personagem que desaparecerá na
versão sartriana, o que ajuda a sublinhar a solidão existencial do herói de As Moscas.
O Coro, constituído por mulheres da cidade, mais idosas que Electra, oscila entre os
reclamos de que “morra quem mata!” (Sófocles, ibid.) e o apelo a que a princesa contenha a
perigosa e aparentemente infrutífera fúria contra os poderosos. Uma inovação de Sófocles é
a introdução no enredo da personagem Crisôtemis, irmã com quem Electra trava duríssimos
embates verbais – bastante influenciados pela retórica e pela sofística em alta na Grécia da
época–, nos quais se frisa a posição de Crisôtemis como imagem da “prudência”
acomodatícia em nome da autoconservação, o que deixa ainda mais patente a grandeza
heróica de Electra e seu apego à piedade filial para com o querido pai morto, atitude que
viria a inspirar, séculos depois, psicanalistas a falarem em “complexo de Electra”, como
uma réplica feminina do amor do menino pela mãe (cf. Mullahy, P., 1969, p. 171).
A Electra sofocliana seria inspiradora da de Sartre pelo radicalismo de seu ódio
revoltoso, mas também pelo grau de dependência existencial que admite ter em relação ao
irmão que espera que volte do exílio para matar os assassinos. Orestes é sua “única
24
esperança”; ela chega a dizer que, sem essa esperança, a do retorno de Orestes, ela “não
viveria” (Sófocles, 2000, p. 88). Bem verdade que, após a falsa notícia da morte do irmão
(um ardil que ele próprio preparara para facilitar o assédio ao casal real), ela fica prostrada
por algum tempo mas então se decide a agir mesmo que sozinha e contra todos.
O fato é que, “sem filhos, sem esposa, desditosa”, Electra comoverá com seu
desespero e revolta o irmão, que – em dinâmica similar à de As Moscas, como veremos ao
longo deste trabalho – reconhece nos sofrimentos da irmã um espelho dos seus próprios,
sendo alçado a uma decisão, a de vingança, para a qual não tem tanta importância, como
em Ésquilo, o desígnio divino, outro sinal de uma humanização do heroísmo. Tampouco
haverá perseguição das Erínias e julgamento de Orestes após o crime; a peça se encerra
tão–logo a ação se consuma e é celebrada como exemplo de “amor à liberdade” e de
“bravura” (ibid., p. 145). É inegável, por outro lado, que o universo trágico de Sófocles
herdará do de Ésquilo –seja por convicção religiosa pessoal, seja pelas convenções culturais
ou ainda por questões de eficácia dramático–estética – um apelo significativo ao
“sobrenatural”, vide o papel que tem, no andamento da trama, a menção aos sonhos que
amedrontam a rainha ao revelar a ira do espírito de Agamêmnon e “profetizar” uma
iminente vingança.
a Electra de Eurípides “dessacraliza” até mesmo o ideal heróico de Sófocles,
como se vê por indicadores como o de que nesta versão, Electra foi forçada por Egisto a
casar com um humilde trabalhador do campo, o que a desloca –assim como à platéia,
defrontada por cenas da vida doméstica numa paupérrima choupana– para bem longe do
espaço simbólico de nobreza real que era indissociável do ambiente trágico tradicional.
Orestes, por sua vez, é um personagem bem mais frágil do que nas versões de Ésquilo e
Sófocles: chega a ser acusado por Electra de “descambar para a pusilanimidade”
(Eurípides, 1953, p. 271), de tanto que se queixava da “loucura” exigida por Apolo ao
mandá–lo matar mãe e padrasto. Chega a ser cômica a cena, não mostrada, mas
“reconstituída” verbalmente ao final da peça, de um assustado Orestes fechando os olhos
com seu manto enquanto enterrava a faca – não sem o “auxílio” de Electra, por trás dele,
fazendo força sobre o punhal – na garganta da mãe (ibid., p. 281). Os dois, logo após o
matricídio, provarão de um terrível remorso. Em As Moscas, tal sentimento vitimará apenas
a princesa, enquanto Orestes, pelo contrário, terá então a ocasião de afirmar sua liberdade
25
na máxima radicalidade, isto é, pela recusa da má consciência e assunção da
responsabilidade pelo seu ato. É mais um dos exemplos de jogo de Sartre com as variantes
trágicas originais. A cobertura propiciada pelo mito grego, especialmente conveniente para
que Sartre evitasse ser apanhado pela censura de Vichy, não implicava um mimetismo
automático, sem uma mera “tradução” pautada por determinadas idéias pré-concebidas,
mas sim uma série de seleções, exclusões, apropriações e invenções –a exemplo do sinistro
ritual de visita dos mortos, no Segundo Ato de As Moscas.
Chama à atenção, em especial, a subversão das premissas filosóficas subjacentes à
perseguição de Orestes pelas Erínias na Oréstia de Ésquilo. O que era uma questão de
justiça ancestral –e parte do acordo sobre a distribuição das prerrogativas das diversas
potestades divinas- vai se transformar, em Sartre, num expurgo de insetos que, como o
próprio comandante delas, Júpiter, personificavam a má-fé, seja a dos dominadores como a
dos que, anestesiados pelo sentimento de culpa aceitavam o jugo. No embate de Orestes
com as moscas do remorso, Sartre dramatizava a ruptura do herói existencialista em relação
a todos os parâmetros “sagrados” – exemplarmente encarnados pelas Erínias – de definição
da justiça e da “ordem”. A peça quer revelar, pelo mito, a História, isso pelo desmonte dos
pilares simbólicos do autoritarismo francês e pela “revelação” cosmogônica – tão típica dos
mitos arcaicos, diz Eliade – da liberdade como raiz ontológica do homem e fator essencial
da historicidade radical de nossa condição. Historicidade que, inclusive, fazia de um
“revival” mítico como o de Vichy uma farsa que não poderia fazer jus nem às conquistas da
razão desde o Iluminismo, nem mesmo aos aspectos emancipatórios, dessacralizantes,
latentes ao próprio mitologismo cristão que voltava a ser encenado.
Um mitologismo que não trai a história, antes a revela, parece ter como condição
sine qua non, aos olhos de Sartre, o colapso das consolações metafísicas tradicionais que
tornavam –ponto muito enfatizado por Mircea Eliade ao discutir as funções do mito- a vida
histórica, portanto, a vida “neste mundo”, algo de “tolerável”. Num texto como As Moscas,
assistimos, em plena modernidade, o mito voltar a ser, como diria Werner Jaeger a
propósito da “paidéia” (modelo de formação) grega, uma espécie de ação educativa
(Jaeger, W., 1994, p.61), um fator pedagógico essencial para o aprendizado da arte de
viver. Mas uma ação educativa que consiste, no universo existencial de Sartre, na educação
para a ação, para um engajar-se que vai bem além do estereótipo da militância partidária,
26
por representar a vivência da História como “prova existencial”, rito de passagem, não
rumo a qualquer atemporalidade celeste, e sim para uma liberdade encarnada e lúcida
quanto à condição do homem como subjetividade individual mas também ser social, que
padece dores e acalenta sonhos em comum, e que tem responsabilidades por si e por todos.
Neste sentido, a liberdade é um destino coletivo que torna possível aproximar o
mitologismo tradicional, tal como presente na lenda dos Tantálidas, ao mitologismo
existencialista de As Moscas. Não se trata, é claro, de uma “fatalidade” divina que desaba
sobre os orgulhosos e seus parentes. Mas a fatalidade existe, aliás, é a fatalidade da própria
“existência”, a fatalidade da liberdade: o homem está condenado a ser livre, dirá o filósofo:
“Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque uma vez lançado
ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer” (Sartre, J.-P., 1978, p. 9). Simbolicamente,
As Moscas é narrativa arquetípica deste “acontecimento” cosmogônico monstruoso, a
irrupção da liberdade (do Para–si ou consciência) no seio do Em–si, um deicídio antecipado
pelo “tantálida” Orestes, mas que as sucessivas gerações haverão de repetir se quiserem
fazer jus à condição humana.
Tântalo, aliás, se abstrairmos a literalidade horrenda de seu crime, poderia ser uma
imagem profundamente sugestiva, em seu simbolismo blasfemo – tal como o Sísifo de
Albert Camus (1989) –, para pensarmos um ser humano que, na perspectiva de Sartre, só
pode se afirmar sob pena da recusa do divino, e que por outro lado é um eterno condenado
à privação de ser – o nada e o poder nadificador da consciênciae ao desejo de ser, na
angustiante proximidade da “fartura de ser” que nunca chegaremos a devorar e tornar
nossa. E, consideradas essa “desmedida” originária e essa fome e sede ilimitadas de ser
inscritas no próprio existir humano, somos todos descendentes de Tântalo; eis a dimensão
ontológica de um sentido de universalidade, de trans-subjetividade – dotada de uma
tendência agregadora sine qua non ao “engajamento”, mas sob imorredoura tensão com as
estruturas agônicas da intersubjetividade, tal como magistralmente consensadas pelo
próprio autor na frase “o inferno são os Outros”, da peça Entre Quatro Paredes (1944)- que
Sartre descobria, naquele período, também de modo muito concreto e histórico, nos
sofrimentos, humilhações e “maldições” que a sujeição nazista impingia aos franceses e os
fazia nascer com um “nós” político e imaginário.
27
CAPÍTULO I
TEATRO DE SITUAÇÕES:
MITO E FILOSOFIA
Este capítulo tem por meta traçar, em linhas gerais, a significação da dramaturgia
sartriana, em sua conexão com um dado projeto filosófico e também se destacando o papel
constitutivo que nela se dá a certa noção de “mito”. Cumpre notar que, além de
panorâmico, nosso olhar é forçosamente seletivo, tendo por critério ressaltar conceitos e
problemas que podem ter direta relevância numa leitura de As Moscas. Daí nossa opção,
por exemplo, por não repertoriar os temas e enredos do amplo e denso universo de peças
produzidas pelo autor (onze no total, se considerarmos a amadora Bariona)
1
.
A dramaturgia sartriana reivindica–se de um gênero especial, designado pelo
próprio autor como teatro de situações, irredutível às formas tradicionais do drama
burguês, da tragédia, da comédia ou da sátira (cf. Jeanson, F., 1955, p.11).
Um gênero, como diz François Nouldemann é um “modo de expressão” que implica
uma “atitude de pensamento e uma linguagem específicas” (Nouldelmann, F., 1993, p.11),
que devem ser esclarecidas em seus próprios termos – portanto, sem subterfúgios
simplificadores como o que, no caso de Sartre, parecem tão sugestivos, por exemplo, o
1
Um bom inventário do “corpus” de peças sartrianas é oferecido por Maria Arminda de Sousa–
Aguiar em seu ensaio “Teatro Ideológico: Sartre” (in: Mortara, M (org.), 1970, p. 107 ss.).
28
rótulo de “teatro de tese” se entendido como o reducionismo segundo o qual o palco não é
senão um púlpito para a declamação, disfarçada em ficção, de conceitos filosóficos e
ideológicos pré–estabelecidos.
É certo que peças como As Moscas e Entre Quatro Paredes fazem importantes
empréstimos junto ao leque conceitual de O Ser e o Nada, assim como Os Seqüestrados de
Altona é diretamente influenciada pelo diálogo filosófico que Sartre fazia, à época, entre
seu existencialismo e o marxismo (Nouldemann, F., 1993, p.12). E é certo, igualmente, que,
como argumenta Lílian Almeida de Paula Arantes, o destaque e singularidade da posição de
Sartre na cena francesa do século passado se devem ao fato de este autor encarnar uma
“vocação dramatúrgica autêntica”, porém de tipo específico: expoente de um “teatro
ideológico” –no sentido do drama de idéias ou “pièce à thése”–, Sartre “põe em cena suas
idéias”, transpondo aos palcos os grandes temas da filosofia existencial, tais como a
liberdade, as relações do sujeito com o Outro, o desejo de Absoluto, a questão da História
(Arantes, L. A. P., “Panorama do Teatro Francês do Século XX”, in Mortara, M. (org.),
1970, p. 18).
Arantes, aliás, traz nesse mesmo texto interessantes observações sobre as relações
ambivalentes entre o “teatro ideológico” de Sartre e Camus, que goza de prestígio
hegemônico na França desde fins da Segunda Guerra, e o chamado “teatro do absurdo” que
lhe tomaria o cetro, a partir de 1951, com a aparição de Esperando Godot, de Samuel
Beckett (Contat, M. & Rybalka, M., 1992, p. 9). O “teatro do absurdo”, a começar por sua
própria designação –que, a bem dizer, é da lavra do crítico Martin Esslin (1968) e veio a
agrupar autores (Beckett, Ionesco, Genet entre outros) que nunca se reconheceram como
membros de uma determinada “escola” estética–, tem evidente parentesco temático com o
universo de dor, crise, mal–estar existencial de Sartre e Camus, mas noutro registro: o
“teatro de idéias”, bem como o engajamento ético e político que ele supõe nas polêmicas de
seu tempo, sucumbe a um deliberado ilogismo e quebra dos cânones do discurso e do
diálogo, um dilaceramento formal que prolongava e ratificava a denúncia, no nível
temático, dos embustes e violências que a linguagem convencional acarretava para as
relações do indivíduo com o mundo e consigo mesmo (Arantes, L. A. P., ibid., p. 21).
29
Até pela sua inspiração, jamais renegada, no teatro clássico francês, sobretudo em
Corneille (cf. Sousa–Aguiar, M. A., in: Mortara, M., ibid., p. 104), a dramaturgia de Sartre
jamais abriu mão das prerrogativas da palavra teatral, do discurso articulado, postos, porém,
em ato, o que faz jus à própria etimologia do conceito de “drama”: “O homem sartriano se
define pela ação. O drama, também, pela sua própria dramaturgia, é ação. Daí ser
absolutamente válido assumir–se a ética de Sartre ao conceito de teatro, concluindo que o
palco é o lugar ideal para a realização de seu pensamento e de sua arte” (Magaldi, S., 1999,
p. 306). Não por acaso o grande impacto que as peças de Sartre tiveram para a
popularização dos preceitos filosóficos e do humanismo ético e político deste pensador (cf.
Contat, M. & Rybalka, M., 1992, p. 9).
Nessa direção é compreensível que o teatro de Sartre tenha se tornado “um teatro
mais para se ler do que para se ver ou representar”, e que tais peças tenham sido concebidas
por seu autor tendo em vista não tanto experiências cênicas aptas a renovar o teatro quanto
em função de um projeto filosófico que, sem dúvida, aparece melhor à leitura do que à
representação” (Contat & Rybalka, 1992, p. 10). Isso apesar da intenção programática de
criar um “gênero” teatral novo. Os organizadores do Théâtre de Situations relatam um
episódio sugestivo: após uma apresentação de sua peça Os Seqüestrados de Altona, Sartre
apareceu, como de costume, para beber uma cerveja com os atores à saída do espetáculo,
cuja temporada era um sucesso de público; tendo em mãos um exemplar de uma recém–
saída edição da peça, ele comentou, com grande satisfação: "É isto o que conta: o livro”
(ibid., p. 10–11).
No entanto, há que se ressaltar a vinculação interna e as imbricações dialéticas que
fazem do nexo filosofia e teatro, em Sartre, bem mais do que mera “tradução” mecânica de
conceitos em imagens. Dá–se aqui uma estreita conjugação de reflexão teórica e de
expressão artística, pela qual pode, literalmente, "ganhar corpo" uma visão filosófica da
existência humana – fulcro das indagações sartrianas– no que ela tem de irredutível a teses
e sistematizações abstratas:
"(...) quando vinculamos a expressão filosófica e a expressão literária em Sartre, a
questão de fundo fica sendo sempre: o que é a filosofia? Para Sartre, a melhor resposta, e
mesmo a única possível, é entender a filosofia como o desenvolvimento da interrogação,
30
nas várias maneiras em que ele a cultivou: o tratado, o ensaio, o comentário, a resenha,a
investigação histórico–biográfica, a crítica literária, a psicanálise existencial, o conto, o
teatro, o romance" (Leopoldo e Silva, F., 2003., p. 11).
Em seu estudo Ética e Literatura em Sartre, Franklin Leopoldo e Silva aprofunda a
meditação sobre o que há numa filosofia como a de Sartre que torna a ficção muito mais
que um mero recurso externo, de "ilustração" de teses pré–concebidas; trata–se mais de
deslindar a "vizinhança comunicante", a "passagem interna" entre esses dois domínios
discursivos, necessária uma vez que se ponha como objetivo supremo das investigações a
"compreensão da existência como condição [e não "natureza humana" abstrata] e da
contingência como o seu horizonte–limite" (Leopoldo e Silva, F., 2004, p. 12).
Franklin Leopoldo e Silva, tratando dos nexos de filosofia e literatura em geral,
elucida também o estatuto dúplice, de identidade e diferença, assumido pela escrita teatral
perante os propósitos e desenvolvimentos do pensamento sartriano como um todo; "(...) a
expressão filosófica e a expressão literária são ambas necessárias em Sartre porque, por
meio delas, o autor diz e não diz as mesmas coisas. Parece óbvio afirmar que Sartre diz a
mesma coisa quando faz filosofia e quando faz literatura, mas isso deixa intacta a questão
de por que ele o diz de duas maneiras diferentes. Pois bem, se renunciarmos às
simplificações, que seria dizer, por exemplo, que a literatura ilustra teses filosóficas
apresentando em concreto situações que a teoria considera abstratamente, restaria afirmar
que as duas formas de expressão não dizem exatamente o mesmo. Mas seria absurdo
afirmar que Sartre filósofo e Sartre ficcionista dizem coisas completamente diferentes. Ora,
se a literatura não serve apenas para ilustrar teses filosóficas e se, no entanto, há uma
identidade profunda entre as duas instâncias de expressão, segue–se, pensamos, que a
diferença entre a elucidação da ordem humana e a descrição compreensiva de como os
homens a vivem é ao mesmo tempo a identidade entre o nível das estruturas descritas
fenomenologicamente e o nível das vivências narradas historicamente" (ibid., p. 12–3).
As reflexões de Franklin Leopoldo e Silva apontam para um dos principais motivos
que fizeram da fenomenologia um dos grandes estímulos propulsores do existencialismo
sartriano, e arma preferencial do filósofo francês na sua rebelião contra as abstrações da
filosofia universitária de seu tempo. Como patente já na sua euforia pela descoberta das
31
idéias de Husserl
2
, a fenomenologia veio a se lhe afigurar como método mais adequado ao
desvelar da ontologia da realidade humana, isso deitar fora as rígidas dicotomias entre
idealismo e realismo e fazer da consciência e do mundo duas instâncias específicas mas
indissociáveis; na “idéia de fenômeno” estabelecida por Husserl e Heidegger, Sartre
celebra, desde o início de O Ser e o Nada (cf. Sartre, J.-P., 2003) o fim da dicotomia entre
essência e aparência, interioridade e exterioridade, potência e ato: daí que as estruturas
ontológicas coincidam com a vivência concreta, daí também a afinidade entre o discurso
filosófico e a ficção.
Já desde os tempos de “normalien”, convivem paradoxalmente em Sartre, de um
lado, o repúdio às vazias “abstrações intelectualistas” do ensino de filosofia na França e, de
outro, a confiança na “ferramenta suprema” que a filosofia poderia ser para a apreensão
global, sintética – e irradiante para as mais diversas searas expressivas, em especial as da
ficção– da experiência humana (Cohen–Solal, A., 2005, p. 48–50). Uma ferramenta
suprema mas não monolítica, até por tentar se plasmar às exigências próprias às diferentes
linguagens com as quais interage e nas quais ganha corpo; veremos que o mito é
considerado por Sartre a marca distintiva da linguagem teatral.
Istvan Mészaros fala, a propósito de Sartre, numa "conexão orgânica entre os
métodos da literatura e da filosofia" como meio de "intensificar os poderes da persuasão e
de demonstração", esforço este que tem fundamentação filosófica própria, qual seja, uma
convicção de que "contra o poder dos mitos predominantes e dos interesses estabelecidos, a
força da razão analítica é impotente: não se substitui uma realidade existente, 'positiva' (no
sentido hegeliano) pela mera negatividade da dissecção conceptual. Para que a arma da
crítica possa ter êxito, precisa estar à altura do poder evocativo dos objetos a que se opõe
(...) O que está em jogo é nada menos que uma ofensiva geral contra as posições bem
fundadas do bem–estar confortável, quer se apresentem como a 'cumplicidade do silêncio'
2
O célebre episódio é contado por Simone de Beauvoir em A Força da Idade:Sartre foi “vivamente
atraído pelo que ouviu dizer da fenomenologia alemã” quando, numa noite no Bec de Gaz, em
Montparnasse, Raymond Aron, que naquela época estudava Husserl em Berlim, tomou de um copo
de abricó e disse: “Estás vendo, meu camaradinha, se tu és fenomenologista, podes falar deste
coquetel, e é filosofia’. Sartre empalideceu de emoção, ou quase: era exatamente o que ambicionava
há anos: falar das coisas tais como as tocava, e que fosse filosofia. Aron convenceu–o de que a
fenomenologia atendia exatamente a suas preocupações: ultrapassar a oposição do idealismo e do
realismo, afirmar a um tempo a soberania da consciência e a presença do mundo, tal como se dá a
nós” (Beauvoir, S.,1984, p. 138).
32
ou sob qualquer outra forma. Sartre quer nos sacudir, e encontra os modos de atingir essa
meta, ainda que, no fim, seja condenado como alguém constantemente em busca de
escândalos" (Mészáros, I., 1991, p. 20–21).
"Hoje em dia", diz Sartre, "penso que a filosofia é dramática pela própria natureza.
Foi–se a época de contemplação das substâncias que são o que são, ou da revelação das leis
subjacentes a uma sucessão de fenômenos. A filosofia preocupa–se com o homem – que é
ao mesmo tempo um agente e um ator, que cria e representa seu drama enquanto vive as
contradições de sua situação, até que se fragmente sua individualidade, ou seus conflitos se
resolvam. Uma peça de teatro (seja ela épica, como as de Brecht, ou dramática) é,
atualmente, o veículo mais apropriado para mostrar o homem em ação –isto é, o homem
ponto final. É com esse homem que a filosofia deve, de sua perspectiva própria, preocupar–
se. Eis porque o teatro é filosófico e a filosofia, dramática" ("The Purposes of Writing",
1959, apud Mészáros, I., ibid., p. 54).
Esta afirmação é extremamente fecunda a uma compreensão sintética do que faz da
compreensão sartriana da existência humana, já na sua articulação conceitual específica,
um projeto filosófico tão compatível não só com o “teatro de idéias” à maneira
convencional, mas com certa idéia de teatro –esta sim tão original quanto o próprio
existencialismo sartriano, por dele ser, no fundo, um prolongamento e radicalização.
Sartre aqui nos precipita ao âmago mesmo de seu sistema: vide a separação que se
insinua entre o homem e as “substâncias que são o que são”; Sartre dedica todo o seu vasto
tratado O Ser e o Nada a deslindar o que faz da “realidade humana” um acontecimento
ontológico único no mundo: a irrupção da consciência como ser para si, num processo em
que o “Ser” em–si, identidade de si a si, sem relação interna possível, sem, pois, nenhuma
reflexividade, dá à luz a existência, como modo de ser “sui generis”, porque constituído
pelo processo de nadificação do Ser, ao qual Sartre designará de liberdade (cf. p. ex.
Perdigão, P., 1995, p. 106); daí a célebre divisa de que “a existência precede a essência”: ao
contrário das coisas fabricadas e seres da natureza, que não passam de emanações
individuais de uma essência genérica previamente dada, os homens primeiramente existem,
estão lançados no mundo, mas separados dele por um regime ontológico diverso, para então
tentar fechar essa cicatriz, pagar essa distância, recobrar para si o que todos os outros seres
33
aparentam ter: a positividade de uma identidade substancial. O ser Em–si está fechado em
si, preso a si mesmo. E o Para–si brota dele como “a única aventura possível do Ser”,
segundo Sartre, isso porque “ao fazer–se consciência, o Ser perde–se como uno e positivo,
a identidade de sai a si desagrega–se. Tornado consciência, o Ser já não é ‘totalmente ser’,
mas sim uma ‘presença a’, uma ‘distância a’. Sua plena identidade cede lugar a uma relação
–a relação que a consciência mantém de si para si mesma” (Perdigão, P., ibid., p. 38–39).
Em As Moscas, esta distinção conceitual ganhará ares de uma verdadeira
“cosmogonia” mítica, como veremos. E não por acaso tal metaforização viria a ser possível,
ainda mais num texto teatral. Pois boa parte da “dramaticidade” existencial de que Sartre
fala está justamente neste esforço da realidade humana, tão crucial quanto reiteradamente
fracassado, de atingir tal meta ou “projeto fundamental”, a fusão do Para–si da consciência
com o Em–si das coisas. Nessa fusão esperaríamos encontrar a saída para a angústia radical
da existência, ou seja, para nossa ânsia de sentido absoluto (cognoscitivo, ético e
metafísico) para a vida, em contraste com um viver efetivo marcado pela contingência e
pela absurdidade originária (ausência de fundamento) dos valores antes de que sejam
“inventados” pelo próprio homem em meio à sua ação no mundo. “É na angústia que o
homem toma consciência de sua liberdade” e “a angústia é o modo de ser da liberdade
como consciência de ser”, diz Sartre em O Ser e o Nada (apud Bornheim, G., 2003, p. 47),
porém na maior parte do tempo fugimos à experiência da angústia, portanto fugimos à
nossa liberdade, neste extravio que Heidegger chama de “existência inautêntica” e que
Sartre via estudar a fundo via o conceito de má–fé, isto é, no esforço de escapar da
contingência, de ser “contingência que se ignora a si mesma” graças a subterfúgios que
apaguem o vazio e indeterminação da condição humana.
Além do grande “cisma” ontológico que preside à gênese do Para–si como crise e
brecha no Em–si cósmico, a conflitividade também permeia a condição humana na medida
em que esta condição é não apenas a da subjetividade do homem separada da objetividade
das coisas, e sim a da intersubjetividade em que liberdades se entrechocam em tentativas de
afirmação de si mediante a sujeição do outro. O homem nasce livre mas só pode viver sob
grilhões, isto é, está desde sempre “engajado [engagé] num mundo que comporta, ao
mesmo tempo, fatores ameaçadores e favoráveis” e habitar “entre outros homens que
fizeram suas escolhas antes dele e que decidiram por antecipação acerca do sentido destes
34
fatores” (Sartre, J.-P., 1992, p. 59.), Retornaremos a este ponto –capital à teoria sartriana do
“Para–Outro” ao examinarmos com maior atenção a questão do trágico no teatro de Sartre.
Se o homem é não só agente – pois meus atos são os “modos de ser de meu próprio
nada” (O Ser e o Nada, apud Bornheim, G., ibid., p. 112), é pelo fazer que eu me faço, me
invento a mim mesmo sob o pano de fundo da nadificação–, mas também ator, o é, em
grande medida, porque esta ação, na vida cotidiana, é apanhada por uma malha de
representações, de scripts “teatrais”, cuja natureza fictícia tende a ser mais ou menos
apagada da consciência reflexiva, incrustrando–se como “segunda natureza” útil não só às
performances sociais como também como medida adicional de proteção contra os perigos –
tão vividamente descritos por Sartre no romance A Náusea (cf. Sartre, J.-P., 1986) – de
dissolução da descoberta da contingência e do absurdo
3
.
3
Sobre o contexto moderno da crise do "Ser" e da expansão da teatralidade como dado mais ou menos
consciente, mas sempre decisivo, na política e sociabilidade cotidiana, veja–se a reflexão de Renato Janine
Ribeiro, na coletânea "Prêtà–Porter 1, 2. 3. 4. 5" [2004].
A teatralidade, erigida por Sartre em aspecto fundamental da própria condição humana, quando transposta aos
palcos acaba por confluir nesta tendência mais geral do drama moderno, designada por Lionel Abel, em
estudo clássico de 1963, como metateatro, a peça dentro da peça, forma que teria nascido com o Hamlet de
Shakespeare, sendo prolongada por um leque de autores que abarca de Calderón (A Vida é um Sonho) a
Beckett, de Genet a Brecht. O metateatro implicaria uma espécie de conscientização pelos personagens
quanto ao teor de ficcionalidade que há neles próprios e nas "histórias" que vivem (cf. Abel, L., 1968, p. 141).
Sem que possamos aqui aprofundar este problema em todas as nuances, vale atentar para o encaminhamento
que Sabato Magaldi permite à elucidação da “metateatralidade” sartriana – no seu parentesco com a de Luigi
Pirandello. Diz Magaldi que o "homem de Pirandello se supõe um, mas é diferente para os vários
interlocutores. A imagem que projeta para cada indivíduo não contradiz a sua essência, como se se traísse, ao
revelar–se. Essa diversidade tem o papel de, pela união das numerosas figuras separadas, formar o homem
total – que é aquilo que ele pensa, acrescido de tudo o que ele é para os outros. (...) As reações das
personagens refletem, como em vários espelhos, um homem equivalente àquele desdobrado na narrativa do
romance". Assim também, prossegue Magaldi, os personagens sartrianos vêem–se apanhados em jogos de
espelhos nos quais sua identidade, mais que "caráteres" dados que cumpriria apenas manifestar por sugestão
externa, são, sim, constructos em vias de se fazer, relativos, momentâneos, dependentes das escolhas pessoais
mas também das imagens do eu que são fixadas pelos outros. "Ele [o indivíduo] é essa imagem. Porque a
projeção exterior é o que o marca, irremediavelmente" (Magaldi, S., 1999, p. 307). Fundado na "luta de
morte" hegeliana entre as consciências, esse jogo de espelhos repercute num senso aguçado dessas
personagens, seja como mal–estar difuso ou explicitado verbalmente, de que suas vidas se guiam segundo
"papéis" e scripts pré–estabelecidos, distantes de uma suposta "alma", ou verdade interior, ou "self" para além
das máscaras. As situações–limite, por exemplo, o inferno de Entre Quatro Paredes, o aposento dos maquis
prisioneiros em Mortos sem Sepultura, o cenário de guerra civil de O Diabo e o Bom Deus, são
particularmente propícias ao processo de perda de aderência das "máscaras" habituais e de conversão desse
próprio descompasso em tema do drama.
Apenas à guisa de exemplificação, colhemos algumas passagens e de O Diabo e o Bom Deus nas
quais se evidencia a autoreflexividade cênica das personagens sartrianas enquanto seres que "dramatizam-se"
a si mesmos ou uns aos outros (Abel, L., 1968, p. 75–6).
35
À grande pergunta antropológica acerca do lugar exato das fronteiras em que a
natureza cede à cultura, Sartre parece responder: esse limiar, poder-se-ia metaforizá-lo
como a porta de entrada de um teatro: "Representar um papel, ser ator, a sedução do títere,
pertence à condição humana. Melhor: a condição humana como que se desdobra para
assumir uma segunda natureza, uma outra condição. Se o médico não realizasse os gestos
típicos de sua profissão, talvez não convencesse suficientemente ao exercer as suas
funções; o público exige que o médico, o vendeiro, o garçom desempenhem as atribuições
inerentes a cada função à maneira de um cerimonial, executando como que uma ''dança'.
Assim, o garçom se torna coisa–garçom, e o soldado coisa–soldado. Na sociedade tudo se
passa, portanto, como se cada um devesse assumir uma marionete" (Bornheim, G., 2003, p.
49).
O tema do ator como expressão da condição humana se articula com a figura do
bastardo (Jeanson, F., 1955, p. 11ss). O (anti) herói existencialista – e isso a começar do
próprio Sartre, como revela em sua autobiografia As Palavras– é fundamentalmente um
"bastardo" dado seu distanciamento irônico, ou à sua assunção reflexiva –os caráteres, para
eles, são escolhas, como vimos– em relação ao automatismo desses scripts sociais
Na Cena 3 do Primeiro Quadro, Heinrich diz a Goetz: "Não existes. Tuas palavras morreram, antes
de penetrarem meus ouvidos, teu rosto nada tem daqueles que encontramos à luz do dia. Sei tudo o que vais
dizer, prevejo todos os seus gestos. És minha criatura e eu te sopro todos os teus pensamentos. Sonho. Tudo
está morto e o ar tem gosto de sonho"; Goetz responde: "Neste caso, eu também te sonho, pois a tal ponto,
com tais minúcias te prevejo, que já me causas aborrecimento". Resta saber qual dos dois habita o sonho do
outro (Sartre, J.-P., 1970, p, 50). Os dois, nesta passagem da peça, trocam–se também acusações recíprocas de
"bufão" e "falastrão". Mais adiante, Goetz dirá: "Fiz os gestos do amor, mas o amor não existe em mim" (op.
cit, p. 179); quando entregue ao aparente "delírio" místico da provação religiosa, Hilda desmascara–lhe a
previsibilidade do comportamento: "Vamos, tudo está estabelecido, como na missa: gritarás injúrias e
obscenidades e, para terminar, tu te açoitarás" (ibid., p. 208).
A metateatralidade sartriana chega ao apogeu na adaptação de Kean, que justamente tem como fulcro
a condição existencial do ator (ás voltas, no caso, com uma montagem de Hamlet), sua "desidentidade
permanente" e a tensão que há aí entre a liberdade (poder do imaginário sobre as condições dadas, sobre o
"em–si") e escravização a uma sociedade em que, antes de Debord, Sartre intuía a utilidade mercantil do
"espetáculo".
Kean resume assim a vocação do ator: "Não representamos para ganhar nossa vida. Representamos
para mentir, para ser o que não podemos ser e porque estamos fartos de ser o que somos. (...) Representamos
para não nos conhecer ou porque nos conhecemos demais; representamos os heróis porque somos covardes, e
os santos porque somos malvados; representamos os assassinos porque morremos de vontade de matar o
nosso próximo; representamos porque somos mentirosos natos, representamos porque amamos a verdade e
porque a detestamos", palavras que, segundo Julia Kristeva, colocam a imaginação, o fingimento, em papel
análogo ao que o crime tem, em outras personagens de Sartre (por exemplo, Orestes), enquanto ato de
fundação da subjetividade autônoma, ao abrigo tanto da "natureza" materna quanto, no caso da liberdade
"anti–edipiana" de Sartre, das amarras patriarcais da lei social (Kristeva, J., 2000, p. 264s).
36
chamados de família, de religião, de Estado, de trabalho assalariado. E, se a cada escolha
decidimos não só por nós, mas pela humanidade inteira, essa personagem inevitavelmente
desvela, no exercício tumultuado de sua liberdade, uma certa noção de "antiphysis" que nas
peças de Sartre é alçada a um estatuto ontológico primordial: "(...) l'homme ne peut
parvenir à lui–même qu' au prix de se conquérir sur la nature, de neir en soi toute nature, de
s 'affirmer sans cesse comme anti–naturel" (ibid., p. 17). Orestes, de fato, chegará a dizer,
num momento crucial de As Moscas, que a irrupção da liberdade fez dele um “estranho a si
mesmo”, um ser “fora da natureza e contra natureza, sem desculpas, sem outro recurso
além de mim” (Sartre, J.-P., 2005, p. 104).
Igor Silva Alves mostra que uma vez que “o bastardo é um elemento híbrido,
deslocado do convívio social e empurrado para lados opostos, ele é obrigado a ver o mundo
de fora, é obrigado a ver aquilo que os outros conseguem dissimular para si. Colocado em
exílio, ele está colocado fora dessa totalidade protetora e envolvente que é o mundo, e este
é posto a uma distância intangível. Deste modo, o bastardo é um espectador do espetáculo
do mundo, graças a isso é permitido ao bastardo ver o mundo com a mesma lucidez que o
espectador em um teatro vê o mundo desvendado na cena" (Alves, I.S., 2003, p. 116); e,
além de espectador, o bastardo assumir-se-á como ator: livre das coações, mas também das
proteções, da suposta "unidade" substancial de sua consciência, ele põe-se, como o Para–si,
em estado de permanente invenção de identidades, de papéis que, mesmo quando "anti–
sociais", demandarão um público que os legitime.
Sartre, ainda naquela citação colhida por Istvan Mészáros, afirma que o homem
“cria e representa seu drama enquanto vive as contradições de sua situação”. Aqui intervém
o termo–chave alçado por Sartre a núcleo da definição de sua dramaturgia: um teatro de
“situações”. O que é uma “situação”? Dito resumidamente, é todo o arco de elementos
biológicos, geográficos e históricos (em termos sociais, econômicos, culturais) que se põem
como facticidade que limita e permite à liberdade humana se exercer concretamente no
mundo. “A situação”, explica Gerd Borheim, “se apresenta como um ‘produto comum’, um
‘fenômeno ambíguo’, que deriva da contingência da liberdade e da contingência do em–si:
é pela situação que o em–si se transforma em motivo’ (...) [a situação] é o modo como o
para–si nadifica o em–si” (Bornheim, G., ibid., p. 117–8).
37
Não há liberdade sem uma situação concreta em que se possa manifestar – nisso,
aliás, Alberés nota a já referida presença “cornelliana” em Sartre: a visão de que “os
acontecimentos, encadeados no enredo, valem como oportunidades oferecidas aos
personagens para afirmarem sua autodeterminação” (apud Sousa–Aguiar, M. A., in:
Mortara, M., 1970, p. 104). E não há, reciprocamente, situação sem liberdade, pois
quaisquer resistências impostas pelo mundo só o são do ponto de vista dos fins de nossa
ação, do projeto de ser que colocamos em prática com nossas escolhas. Como diz Sartre:
“O homem não é primeiro para ser livre depois, não há diferença entre o ser do
homem e seu ser-livre”, porém é necessário "sublinhar com clareza, contra o senso comum,
que a fórmula ‘ser livre’ não significa ‘obter o que se quis’ mas sim ‘determinar–se por si
mesmo a querer (no sentido lato de escolher)’. Em outros termos, o êxito não importa em
absoluto à liberdade” (Sartre, J.-P., 2003, p. 68 e 595). Se importasse, a liberdade se veria
determinada pelo fim a ser atingido, reintrodução de heteronomia naquilo que, na verdade,
é uma radical autodeterminação ontológica do ser livre. A situação, por sua vez, intervém
nessa autodeterminação como o coeficiente de adversidade (ibid., p 596) que a faz ser algo
mais que mero devaneio, que faz dessa autodeterminação um processo que se dá por e em
meio ao enfrentamento – não sem graves contradições e conflitos – das circunstâncias ou
menos opressivas objetivamente da conjuntura histórica.
O mitologismo teatral
Ao contrário de “teses”, isto é, de “idéias preconcebidas”, o que o teatro deve criar e
apresentar ao público, diz Sartre, são mitos, que, à falta de uma definição mais sistemática,
ele aproxima da noção de uma “imagem ampliada”
4
dos sofrimentos, das preocupações e
4
A noção de “imagem”, como se sabe, é de uma importância fundamental para Sartre: tema de
alguns de seus primeiros escritos (“A Imaginação”, de 1936 e O Imaginário, de 1940), desempenha
papel–chave na definição sartriana do objeto artístico com “analogon” que desrealiza, isto é, que
nadifica, “põe à distância, o objeto da percepção”. A teoria sartriana da imaginação parte da crítica
ao equívoco tradicional de se considerar a imagem como se fosse uma coisa, uma “cópia pálida e
infiel dos objetos exteriores”. Ao contrário, e partindo da fenomenologia husserliana, Sartre insistirá
em que a imagem não possui nenhum “conteúdo sensível” retirado do mundo exterior, e a
imaginação é uma modalidade de conduta intencional da consciência que difere da percepção.
Enquanto esta última tende a oferecer “representações parciais e graduais dos objetos”, a
imaginação proporciona “representações sintéticas e globais” (cf. Moravia, S., 1985, p. 21s).
38
inquietudes que marcam uma determinada época histórica ou isto que Sartre chama de
“situações”. Esta referência, algo oblíqua, à noção de mito aparece em artigo de Sartre
chamado “Forjar Mitos”, incluído em sua coletânea Un Théâtre de Situations (cf. Sartre, J.-
P., 1992, p. 63s). Mas não foi a única vez em que ele tratou do tema. Uma boa compilação
destas alusões –feitas, em geral, em entrevistas e artigos de circunstância– é oferecida por
Istvan Mészaros entre as páginas 51 e 53 de seu livro A Obra de Sartre – Busca da
Liberdade. Como mostra Mészáros ali, a conexão entre filosofia e teatro se traduz, para
Sartre, numa correlação entre suas respectivas “linguagens”, o conceito e o mito, enquanto
instrumentos de revelação do “eidos da vida cotidiana”, da liberdade ontológica do sujeito
em sua situação, isto é, em sua circunscrição objetiva e concreta.
Numa dessas várias declarações registradas por Mészáros, Sartre diz que “gostaria
de ter escrito uma peça sobre o mito grego de Alceste
5
, de modo a conseguir condensar,
nela, o drama da libertação feminina” (Mészáros, I., 1991, p. 51). O mito, pois, é uma
forma de condensação que aparentemente toma distância da realidade imediata, mas para
melhor apreendê–la. Tal condensação implica por si mesma –parafraseando termos do
universo psicanalítico– um certo “deslocamento”, um certo pôr-à-distância do universo
histórico imediato, mas não como dispositivo de “censura” e ocultação, e sim de revelação
– a “apresentação do homem aos homens mediante ações imaginárias”, segundo a fórmula
sartriana citada por François Nouldemann (1993, p. 100). Este comentador, aliás, é feliz ao
mostrar o quão a dialética de distanciamento – o “recuo crítico” à la Brecht, propiciado pelo
A imaginação não é mera invenção de imagens, implica uma relação com o mundo, qual seja, a de
negação do real: a imagem de um objeto implica a ausência deste objeto (Noudelmann, F., 1993, p.
100–1). O afastamento e negação da realidade positiva são atos constitutivos da atividade
imaginativa, o que, como salienta Sergio Moravia, Sartre toma como via de acesso privilegiada à
elucidação do ser em geral da consciência, a liberdade, fundamento infundado de toda nadificação
do mundo dado (Moravia, S., 1985, p. 25). A consciência imaginante “constitui um irreal que
nadifica [néantise] o real” (p. 101). E nisso está a condição de possibilidade da constituição do
objeto artístico em geral, enquanto analogon nadificador do objeto real. Sobre as implicações do
estudo fenomenológico do imaginário na identificação da singularidade “eidética” do teatro entre as
obras de arte em geral, veja-se Alves, I. S, in: id (et. al.), 2003, p. 98s.
5
Uma das filhas de Anaxíbia e de Pélias – a mais bela e piedosa de todas, a única que não
participou do assassinato do próprio pai, rei de Iolco–, casou–se com Admeto, o rei de Feras, na
Tessália. “Eurípides diz–nos que a sua união foi modelo de ternura conjugal, a tal ponto que Alceste
consentiu em morrer em vez do marido. Porém, quando ela estava já morta, Heracles desceu aos
infernos, donde a trouxe mais bela e jovem do que nunca. Conta–se também que Perséfone,
sensibilizada pela dedicação de Alceste, a fizera espontaneamente voltar ao mundo dos vivos”
(Grimal, P., 2000, p. 18).
39
fosso entre o mito e a cotidianidade atual – e “identificação” aristotélica (catarse social e
emotiva) é traduzida pela própria concepção, pelo diretor Charles Dullin, da montagem
original de As Moscas, no contraste entre o cenário arcaicizante (fator de distanciamento) e
um arrebatador “condicionamento sonoro” (ibid., p. 38).
Aquilo com que o teatro pode e deve se preocupar, ao contrário do “realismo”
próprio às possibilidades técnicas do cinema, é “a verdade”, não “a realidade”, diz Sartre
(apud Mészaros, I., ibid., nota 3). E o filósofo prossegue: “Não creio que o teatro possa ser
extraído diretamente de eventos políticos. Por exemplo, eu nunca teria escrito Os
Seqüestrados de Altona se ela se resumisse a uma simples questão de conflito entre Direita
e Esquerda. Para mim, Altona está vinculada com toda a evolução da Europa desde 1945,
tanto com os campos de concentração soviéticos, quanto com a guerra da Argélia. O teatro
deve tomar todos esses problemas e transmutá–los em forma mítica. (...) Estou sempre em
busca de mitos; em outras palavras, de temas tão sublimados que sejam reconhecíveis por
todo mundo, sem qualquer recurso a detalhes psicológicos insignificantes” (ibid., p. 52,
nota 3).
O mito, portanto, é um “tema” cênico dotado de generalidade o bastante para tocar a
cada um dos espectadores, para lhes explicitar aos expectadores “a própria vida deles de tal
modo que eles a vêem como se olhassem de fora” (apud Mészaros, I., 1991, p. 53); e tem
essa capacidade de, como se diz em teoria de comunicação, recepção universal porque
investido, ele próprio, de uma certa generalidade (ou “singularidade concreta”), enquanto
representação, mediante vidas particulares, da condição humana universal, em suas
conjunturas históricas e individuais de manifestação. A alusão a motivos lendários
tradicionais –a mitologia grega em As Moscas e na adaptação de As Troianas, ou ao além–
vida no inferno, em Entre Quatro Paredes– configura assim um tipo específico de exercício
daquilo que Sartre considera “o objetivo” precípuo ao (seu) teatro: a criação de mitos
(Sartre, J.-P., 1992, p. 66).
A vocação “mítica” do teatro se põe desde o início da experiência de Sartre como
dramaturgo, em 1940, no campo de prisioneiros de Trier (Sartre fora capturado pelos
nazistas quando prestava serviço militar no setor de meteorologia do Exército francês).
Durante as festividades de Natal daquele ano, o filósofo escreveu e dirigiu, com seus
40
companheiros de cativeiro, um mistério natalino, “Bariona” – o título traz o nome do líder
político que foi, na ficção sartriana, o "primeiro discípulo" de Cristo, reanimado pelo
nascimento da criança divina para prosseguir a luta pela libertação da Palestina (França)
contra os dominadores romanos (alemães)
:
"Minha primeira experiência teatral foi particularmente feliz. Quando prisioneiro na
Alemanha em 1940, escrevi, dirigi e atuei em uma peça de Natal que, enganando o censor
alemão por meio de símbolos simples, se endereçava meus companheiros de cativeiro. Esse
drama, que não era bíblico senão em aparência, havia sido escrito e montado por um
prisioneiro, interpretado por prisioneiros com cenários pintados por prisioneiros; ele era
exclusivamente destinado a prisioneiros (a tal ponto que jamais permiti depois que fosse
montado ou até impresso). E ele se endereçava a eles falando de suas preocupações de
prisioneiros. Sem dúvida a peça não era boa nem foi bem interpretada: era um trabalho de
amadores, diriam os críticos, produto de circunstâncias particulares. No entanto, como eu
me dirigia a meus camaradas (...) lhes falando de sua condição de prisioneiros, quando os vi
tão notavelmente silenciosos e atentos, compreendi o que o teatro deveria ser: um grande
fenômeno coletivo e religioso" (Sartre, J. P., ibid., p. 63–64).
No campo de Trier, recorda, ele se aproveitou de "circunstâncias excepcionais: não
acontece todo dia que vosso público seja reunido por um grande interesse comum, uma
grande perda ou uma grande esperança. Em regra geral, um público de teatro é composto
por elementos muito diversos: um gordo homem de negócios se senta ao lado de um
viajante comercial ou de um professor, um homem perto de uma mulher, e cada qual com
suas preocupações particulares. Essa situação é porém um desafio para o dramaturgo: é–lhe
preciso criar seu público, fundir todos os elementos díspares numa só unidade, ao despertar
no fundo dos espíritos as coisas sobre as quais todos os homens de uma época e de uma
comunidade dadas se preocupam" (Sartre, J.P., ibid., p. 64). Cabe ao teatro, se quiser
reconquistar a ressonância (social e política) que tinha outrora e assim “unificar o público
diverso que o freqüenta hoje”, levar aos palcos “situações tão gerais que sejam comuns a
todos”, preferencialmente situações–limite. A situação, cuja definição mais geral foi vista
acima, consiste numa espécie de horizonte epocal de limites e de possibilidades para a
invenção mítica no teatro; eidos da vida cotidiana, o mito dá formas tangíveis à maneira
41
peculiar como “cada época apreende a condição humana e os enigmas que são propostos à
sua liberdade através de situações particulares” (ibid., p. 20).
Cumpre frisar como de máxima importância esta função do teatro mítico e
“religioso” preconizado por Sartre: produzir uma espécie de “religação” coletiva (religare é
uma das possíveis origens etimológicas do termo religião), de unificação do que antes
estava disperso, ou seja, o público burguês, acostumado, em sua rotina de trabalho e de
entretenimento, ao encapsulamento numa falsa idéia de “individualidade” –falsa ontológica
e eticamente, pois distorce a universalidade da condição humana e o imperativo de
vivenciar ativamente essa universalidade na forma do engajamento e da solidariedade.
Bariona foi, como quer François Noudelmann, o modelo fundador”, a “forma matricial”
do projeto teatral sartriano, nas duas décadas seguintes. Ainda que Sartre não lhe tenha
autorizado montagens desde então, considerando–a uma experiência amadorística, é nela
que se pôs em prática, de modo inaugural, o preceito do teatro como rito de “fusão pelo
imaginário”. Graças a uma narrativa conhecida e comum, uma idéia se manifestou sem ser
explicitada, intimamente compreendida, vivida pelos espectadores unidos no infortúnio, e
reagindo à ameaça pela afirmação da liberdade deles. O mais importante não é a idéia em
si, mas o fenômeno coletivo engendrado pela representação dramatúrgica” (Nouldelmann,
F. 1993, p. 15).
De volta à Paris nazificada, Sartre tentará, com As Moscas e Entre Quatro Paredes,
reproduzir este significado radical do fazer teatral e, de novo, o fará como uma celebração
coletiva, por assim dizer “trans–subjetiva”, da liberdade em meio a uma situação objetiva
de negação da liberdade (Ocupação alemã).
Seu teatro, com efeito, toma a liberdade não só como tema, mas também como
princípio por assim dizer estruturante, formal. A dramaturgia sartriana, enquanto “teatro de
situações”, se aparta, como afirma no texto “Pour um Théâtre de Situations” (1947), do
“teatro de caráteres” no qual as personagens são “essências” dadas de antemão, identidades
unitárias, fechadas – um dúplice cênico do fetiche burguês da “individualidade”–, e não,
como prega o existencialismo, liberdades em vias de se fazer, em permanente invenção e
transformação de si segundo as escolhas feitas a cada momento. “(...) se é verdade que o
homem é livre numa situação dada e que ele se escolhe nesta e por esta situação, então
42
cumpre mostrar no teatro situações simples e humanas e liberdades que se escolhem nestas
situações” (Sartre, J.-P., 1992, p. 20). O “caráter” constituído de uma vez por todas não é
senão a esclerose da escolha (ibid.), uma coisificação que tenta burlar o abismo que faz da
liberdade um marco do reino humano, em meio a todos os outros seres presos à inércia
eterna do Em–si.
Não que com o foco nas “situações” pelas quais a escolha de si se efetua, o teatro
sartriano seja de acesso vedado aos “caráteres”, aos grandes personagens individuais, muito
pelo contrário. Sábato Magaldi explica que, no teatro de Sartre, "as situações não esmagam
o homem a ponto de valer por si próprias, passando os caráteres a plano secundário. Na
dialética do caráter construído pela situação e a situação modificada pelo caráter, Sartre
acaba criando, também, grandes caráteres" (Magaldi, S., 1999, p. 307). O crítico brasileiro
chega a "rebatizar" o projeto sartriano como um "teatro de situação e ao mesmo tempo de
caráteres" (ibid., destaque nosso). Mas, de todo modo, fica claro que, nesta crítica à idéia
tradicional de “caráteres” – cujo maior paradigma entre os séculos XIX e XX seria Ibsen,
(Sartre, 1992, p. 70) - o filósofo mobiliza pressupostos cruciais de sua teoria radical da
liberdade como definição ontológica do humano e como contraponto a quaisquer
determinismos, seja a natureza, o meio social, Deus, as paixões – que não senão liberdades
apanhadas por sua própria armadilha” (ibid.) – ou o “inconsciente” (cf. Gonçalves, C. S.,
1996).
A polêmica que Sartre deflagra contra esta última categoria – celebrizada nos meios
científicos e na cultura em geral do século XX graças à psicanálise– se relaciona com sua
recusa ao que chama de “teatro psicológico”, não só o de seu tempo, tão influenciado pelas
descobertas e vocabulário de Freud, mas também o de Eurípides, anúncio do “declínio das
formas trágicas” (cf. Sartre, J.-P., ibid., p. 19), porque um “conflito de caráteres” tem
resultados previsíveis, e a ruína de um homem só tem grandeza se provém de sua própria
culpa, isto é, de suas escolhas (ibid.). Para Sartre – e aqui nos aproximamos da questão do
trágico, a ser mais bem estudada adiante – a “fatalidade” que se crê encontrar num teatro
como o de Ésquilo e Sófocles não é escamoteamento, mas sim o “reverso” dialético da
liberdade (ibid.), ou seja, o modo grego, culturalmente relativo, de afirmá–la sob uma
situação coagente determinada, algo que é universal (cf. cap. 4 da presente dissertação). Se
há “fatalidade” inscrita na condição humana, diz Sartre, é a própria liberdade, já que temos
43
liberdade para todas as escolhas, só não para não escolher, sendo a própria “não escolha”
um escolher; noutras palavras, estamos condenados à liberdade: “(...) não temos nem atrás
de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas.
Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a
ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez
lançado no mundo, é responsável por tudo o que fizer” (Sartre, J.-P., 1978, p. 9).
Daí que o teatro de situações seja também um teatro da liberdade, e o que tal teatro
“pode mostrar de mais emocionante é um caráter em vias de se fazer, o momento da
escolha, da livre escolha que compromete uma moral e toda uma vida. A situação é um
apelo: ela nos cerca; ela nos propõe soluções, cabendo a nós decidirmos” (Sartre, J.-P.,
1992, ibid., p. 20). Embora uma estrutura ontológica, e como tal uma vivência corriqueira,
a liberdade é um tanto embaçada nas pressas e anestesias da vida cotidiana, este cenário
típico do que Heidegger chama de inautenticidade, de extravio do ser–no–mundo em meio
a correrias e ocupações que lhe obliteram a angústia radical do viver. Neste registro, Sartre
defende que o dramaturgo procure construir suas histórias com base em “situações–limite”,
nas quais a vida ordinária é posta entre parênteses e a liberdade é defrontada, em seu
movimento precípuo de auto–afirmação, pelo risco concreto da morte (ibid.).
É nas situações–limite que a “liberdade se descobre em seu mais alto grau, uma vez
que aceita se perder para poder se afirmar” (ibid.). É nelas, ainda, que a decisão alcança
máximo grau de "profundidade humana", envolvendo a totalidade do homem, o que parece
ecoar, nesta inclusão da finitude entre os constitutivos por excelência da totalidade humana,
a compreensão heideggeriana do homem como ser–para–a–morte (Sein–zum–Tode), se
bem que Sartre tenha admitido, em O Ser e o Nada, que este conceito heideggeriano, após
tê–lo atraído por muito tempo, precisou ser questionado: ao invés de considerar a
consciência da morte como via régia da conquista da individualidade, Sartre colocaria a
facticidade da morte como "um limite externo ou um 'muro' com que nos podemos deparar
em qualquer ocasião, ao perseguirmos nossos objetivos pessoais, mas que nunca podemos
projetar pessoal e livremente como um fim a ser atingido" (cf. Olson, R., 1970, p. 231). Em
termos mais técnicos, a morte é "uma 'nadificação' sempre possível de meus possíveis, que
está fora de minhas possibilidades'“ (Sartre, J.-P., O Ser e o Nada, apud Olson, ibid.).
44
Em "Le Style Dramatique" (1944), Sartre especifica que o nível em que se desenrola
a ação teatral é mais moral que psicológico, no sentido de que “cada ato compreende seus
próprios fins e seu sistema de unificação, qualquer pessoa que aja está convencido de ter
razão ao fazê–lo (Sartre, J.-P., 1992, p. 30); por conseguinte, nos encontramos no terreno
não do fato mas do direito”, isto é, da liberdade, que sempre se põe para além de toda
facticidade ao interpretá-la subjetivamente, segundo perspectivas necessariamente
unilaterais, em choque com outras –o que resulta na dimensão trágica que, veremos logo,
permeia o teatro de situações sartriano.
"Forger des Mythes" é texto originário de uma conferência de Sartre em Nova York
em 1946. O autor parte da má acolhida da crítica a uma montagem local da "Antígona" de
Anouilh. Entre as queixas que se fizeram, sobressaía a de que a personagem principal não
tinha, já no texto, o que em jargão teatral se chama de "caracter", e que não tivesse
"vivacidade" nem "verossimilhança" (ibid., p. 57). Essas objeções ensejam, da parte de
Sartre, a reiteração das diferenças entre o teatro de caráteres e o teatro de situações –que
aqui ele apresenta como uma espécie de denominador comum de uma nova corrente
dramatúrgica surgida na França entre a Ocupação e o pós–guerra, tendo por representantes
nomes como Anouilh, Camus, o próprio Sartre e Simone de Beauvoir.
Seguindo direções diversas, e sem uma vontade pré–determinada de configurar uma
"escola" estética, tais autores, segundo Sartre, marcam–se pela abordagem a "problemas
muito diferentes daqueles de que nos ocupávamos antes de 1940" (ibid., p. 58), no que se
refere a uma tendência vigente no entre–guerras –e que seguia viva nos EUA– de priorizar
a análise dos caráteres. “As melhores peças deste período eram estudos psicológicos de um
homem covarde, de um mentiroso, de um ambicioso ou de um frustrado; o dramaturgo se
esforçava para esclarecer os mecanismos de uma paixão –o amor, habitualmente– ou de
analisar um complexo de inferioridade (ibid.).
Não poderia ser mais distinto o interesse de Anouilh ao retomar a lenda de
Antígona: “Ela não é mais o mero suporte de uma paixão que deverá se desenvolver
segundo as regras aceitas por uma psicologia qualquer. Ela representa uma vontade nua,
uma escolha pura e livre, não se pode distinguir nela entre a paixão e a ação” (ibid., p. 58–
9). Aparentemente arbitrário ou artificial, para um olhar apegado a identidade pessoais –
45
dentro ou fora do palco – positivas, rígidas, bem delineadas – seja pelos "tipos" de um
Molière ou com as "profundezas" passionais buscadas por um Ibsen ou um Tennessee
Williams, o procedimento de Anouilh é paradigmático quanto a uma vertente para a qual
“se acontece a um de nós apresentar um caráter sobre a cena, é unicamente com o objetivo
de nos desembaraçarmos dele tão logo” (ibid., p. 60). Se a Antígona de Anoiulh pôde
parecer abstrata, diz Sartre, é porque, propositalmente, ela é menos “uma jovem princesa
grega, formada por certas influências e por certas lembranças horríveis” do que “uma
mulher livre sem traços de caráter até quando ela os escolhesse no momento em qua afirma
sua liberdade diante da morte, a despeito do tirano triunfante” (ibid., p. 59–60). Veremos
como esta concepção de personagem influirá na trajetória do Orestes de As Moscas.
Sartre a seguir examina outros mal–entendidos, estes mais correntes na França,
acerca da proposta desses "jeunes auteurs": refere–se aqui a dois rótulos que se lhes tentam
impingir: certo "retorno ao trágico" e o "renascimento do teatro" filosófico. Tal recusa, nos
dois casos, não vem porém sem certas nuances e atenuantes:
Primeiramente, não se trata de tentar ressuscitar o gênero trágico nos seus moldes
tradicionais, pois tal gênero, enquanto produto histórico singular, não é mais viável após
seu auge nos séculos XVI e XVIII, o que não impede que os teatrólogos de situações
estejam "menos preocupados em inovar do que em voltar a uma tradição", e que esse
movimento de retorno apresente importantes afinidades com a tragédia antiga, sobretudo na
concepção essencial desta, segundo Hegel: o "conflit de droits", no qual a paixão mesma é
afirmação de um direito mais do que mera descarga de um afeto (ibid., p. 61). "O fascismo
de Creonte, a obstinação de Antígona, para Sófocles e Anouilh, a loucura de Calígula para
Camus, são ao mesmo tempo eclosões de sentimentos que têm origem no mais profundo de
nós e expressões de uma vontade inquebrantável que são a afirmação de sistemas de valores
e de direitos, tais como os direitos dos cidadãos, os direitos da família, a moral individual, o
direito de matar, o direito de revelar aos seres humanos sua condição digna de pena, e assim
por diante. Não rejeitamos a psicologia, o que seria um absurdo: nós a integramos à vida”
(ibid., p. 62).
Nesta última declaração, "psicologia" parece referir-se não tanto à ciência, "a mais
abstrata" de todas pois estuda as paixões como "mecanismos" separados de seus
46
"verdadeiros contextos humanos" (ibid., p. 61)–, mas à matéria viva tomada (e muitas vezes
falseada) por esta ciência como objeto: o magma das paixões humanas, saído de um vulcão
que não é outro senão a vontade, a qual, por sua vez, é expressão da liberdade, grandeza e
miséria do homem, "dragão" de cujos dentes, tal como Cadmo, não cessamos de nos valer
na semeadura de uma pólis que não é palco para o Bem Comum, mas espaço de luta, de
desacordo, de pluralismo, fato que impede a harmonia mas também deslegitima toda
pretensa tirania em nome do Bem. Se há alguma "fatalidade" aqui, ela é certamente bem
diversa da pressuposta por um Eugene O'Neill quando, para "atualizar" a idéia grega de
destino, enceta uma "fusão de Ésquilo com o Dr. Freud" (Magalhães Júnior, R., in: O'Neill,
1970, p. 25), ao refazer –poucos anos antes do próprio Sartre–, a Oréstia, em Mourning
Becomes Electra (1931).
Já na resposta ao segundo rótulo que se costuma aplicar aos "jeunes auteurs", qual
seja, o de criadores de um "teatro filosófico", Sartre, como fez na discussão do "retorno ao
trágico", recusa de imediato o que a seguir acaba acolhendo, noutros termos ou na parcela
de verdade que tais classificações contêm (ibid. p. 58). O teatro de situações não pretende
produzir peças filosóficas se se entende por isso "obras deliberadamente concebidas para
ilustrar em cena a filosofia de Marx, a de Tomás de Aquino ou o existencialismo” (ibid.).
Sartre não obstante é veemente, ao longo de todo o texto, no esforço de explicitar os elos
entre as convenções técnicas de sua dramaturgia e suas convicções de ordem filosófica
mais ampla. Veja–se, por exemplo, a argumentação do autor acerca da inexistência de uma
"natureza humana dada de uma vez por todas” (ibid., p. 59).
Os novos dramaturgos franceses, continua Sartre, “não pensam que os indivíduos
pudessem ser presas de uma paixão ou de uma loucura que se explicaria senão por conta da
hereditariedade, do meio ou da situação. O que é universal, aos seus olhos, não é uma
natureza mas as situações nas quais se encontra o homem, quer dizer, não é a soma de
traços psicológicos mas os limites contra os quais os homens lutam em toda parte" (ibid.).
Na alusão crítica à noção de “hereditariedade”, Sartre nos permite divisar o que,
aparentemente “moderno” –se pensarmos na voga do biologismo– é na verdade uma das
mais arcaicas formas de “determinismo” já cunhadas pelo homem, vide a concepção grega
47
da “maldição” que se irradia de geração em geração, como no caso da própria família de
Orestes, ponto que destacamos na Introdução deste trabalho.
Veremos no capítulo seguinte como a própria ontologia sartriana da temporalidade
endossa sua posição ética de repulsa a este tipo de “álibi”. Uma repulsa da qual R.–M.
Alberès aponta ecos em textos como O Caminho Real, de Malraux (combate a "estes que
querem submeter sua vida a um modelo, estes cadáveres"), Os Moedeiros–Falsos, de Gide
("Vivemos sob sentimentos admitidos"), ou ainda a Medéia de Jean Anouilh, em que se diz:
"Raça de Abel, raça dos justos, raça dos ricos, como falais tranqüilamente. É bom, é
realmente bom ter o céu a seu lado e também a polícia. É bom pensar um dia como seu pai
e o pai de seu pai" (apud Albérès, R.–M., ibid. p. 63, 78 e 45). E é uma repulsa que se põe
já nas palavras contundentes de Antoine Roquentin, um dos primeiros grandes nomes da
galeria de (anti–)heróis sartrianos: "São pacíficos, um pouco morosos, pensam no Amanhã,
isto é, simplesmente um novo hoje. As cidades dispõem de um só dia que volta sempre
igual a cada manhã. Apenas o enfeitam um pouco aos domingos. Os imbecis. Isto me
repugna, pensar que vou rever seus rostos grosseiros e tranqüilos" (A Náusea, apud
Albérés, R.–M., op. cit, p. 80).
Há aqui um possível prelúdio para o tema do “eterno retorno do mesmo”, cuja
peculiar caracterização em As Moscas é uma das chaves para a elucidação do teor “mítico”
da peça.
Um novo trágico
Prosseguindo o esboço do perfil geral do teatro sartriano, devemos salientar que esta
atração pelo “mito” se articula è entronização de certa idéia de trágico: “O verdadeiro
campo de batalha do teatro “é o da tragédia –drama que incorpora um autêntico mito”, disse
o autor em entrevista de 1961”. “Buscando a verdade por meio do mito, e pela utilização de
formas tão não–realistas quanto a tragédia, o teatro pode fazer frente ao cinema” (apud
Mészáros, I., p. 51).
48
O teatro sartriano, como diz Pierre–Henri Simon, introduz um novo trágico, diverso
tanto em relação ao trágico grego, “ que punha a fatalidade como vontade insuperável dos
deuses ou como razão invencível do universo”, quanto em relação ao trágico cristão, que
opunha às paixões uma vontade orientada pelo dever. O que Sartre inaugura, e que confere
a seu teatro sua “unidade profunda” para além da diversidade de temas e de intenções
ideológicas postas em relevo, é o “trágico do absurdo e da liberdade”, que tem por cenário
“um mundo sem razão e sem sinais no qual surge uma consciência autônoma” (Simon, P.–
H, 1959, p. 169).
Michel Contat e Michel Rybalka observam, a esse respeito, que o trágico foi o
horizonte visado pela incursão teatral de Sartre desde os anos 30, quando se inicia o
convívio e trocas intelectuais do filósofo com uma das maiores figuras do teatro francês da
época, o ator e diretor Charles Dullin, que viria a dirigir e atuar (como Júpiter) em As
Moscas. Sartre inclusive se torna professor de história de teatro na escola de arte dramática
de Dullin, o que lhe propiciou grande ampliação de sua cultura teatral. "Este curso tratava
principalmente da dramaturgia grega e Sartre forjou então, com a leitura da Estética de
Hegel, sua própria concepção do teatro como representação de um conflito de direitos" (in:
Sartre, J–P., 1992, p. 13–14). A esse aspecto da formação dramatúrgica de Sartre,
acrescenta–se, como reforço da característica trágica, o fato de que, em todo o corpus de
peças legado por ele, Nekrassov se distingue como a "única comédia" (Maciel, L. C., 1967,
p. 185).
A dimensão trágica da cosmovisão existencialista salta às vistas, também, se
atentarmos para as explicações de R.–M. Albérès. Esse comentador, em seu precioso livro
Jean-Paul Sartre (1953) dá–nos, por assim dizer, um retrato "a quente" do impacto do
pensamento existencialista, não, porém, sem o distanciamento e a habilidade necessária
para correlacioná–la a certas tendências intelectuais e artísticas naquela primeira metade de
século.
O que há de trágico na obra sartriana, segundo Albérès, é um sentido radical da
"solidão moral" do homem, análogo ao de autores como Malraux, Giraudoux ou Camus,
mas que se diferenciaria do deles por não aludir a nenhuma possibilidade de reconciliação.
"O homem [sartriano] está preso em sua consciência humana, sem nenhuma fraternidade
49
com a terra, as paisagens, o Cosmo. (...) Sartre nada descreve além da consciência humana.
Se aparecem paisagens fugitivas, é como objeto da consciência, sem que nenhuma ilusão
animista empreste-lhes qualquer vida" (Albérès, R.–M., 1958, p. 11–12).
A tragicidade enquanto cosmovisão encaminha Sartre a um projeto teatral que se
inscreve no amplo arco abrangido pelo conceito de “tragédia moderna”, do crítico britânico
Raymond Williams. Para Williams, há uma tragicidade própria à modernidade, não só nas
artes, como na experiência social e na "estrutura de sentimento"
6
a que elas se atrelam.
Individualismo, o embrutecimento das relações, o divórcio ante a natureza, a tirania do
dinheiro, a injustiça social, a solidão: são tantos os sintomas de uma perda de conexões
inscrita no âmago da sociedade capitalista, que não por acaso, para desgosto para desgosto
dos puristas, de cujo esnobismo intelectual Williams decididamente não partilha–, o trágico
se faz vocábulo vivíssimo na vida cotidiana, muito encontradiço nos jornais, na TV, no
senso comum. As tradicionais separações entre tragédia –enquanto gênero literário
determinado, dotado de convenções específicas e historicamente superado – e drama –este,
mais associado à subjetividade moderna, à representação de conflitos em escala individual,
privada, de tipo amoroso, por exemplo– perdem sentido, desta perspectiva.
No capítulo reservado a Sartre e Camus ("Desespero Trágico e Revolta"), Williams
reitera sua crítica aos que julgam a tragédia "impossível" no teatro moderno por não verem
nenhuma compatibilidade entre este teatro e os pressupostos filosóficos do trágico. Ora, diz
ele, "os três novos sistemas de pensamento característicos do nosso tempo – marxismo,
6
Esse importante conceito do crítico britânico se refere a "um conteúdo de experiência e de
pensamento que, histórico em sua natureza, encontra formalização mais específica nas obras de arte,
marcando, por exemplo, a estrutura de peças, romances, filmes. Uma das modalidades de sua
presença está em traços recorrentes de época, em convenções de gênero ou em outros dados
estilístico–formais que definem o perfil de uma ou de um conjunto de obras" (cf. Williams, R.,
2002, p. 36, nota da edição). Embora produzida em condições históricas determinadas, a estrutura
de sentimento não se reduz à noção clássica de ideologia. "No geral, está ligada à forma que
adquirem as práticas e hábitos sociais e mentais, mas seu terreno mais nítido é o da intricada relação
entre o que é interno e externo a uma obra de arte quando analisada em seu contexto social" (ibid.,
p. 37). O próprio Williams, em seu Preface to Film, esclarece o quão ele se afasta aqui da
concepção vulgar da arte com "reflexo" mecânico do panorama sócio–econômico: "Relacionar uma
obra de arte com qualquer aspecto da totalidade observada pode ser, em diferentes graus, bastante
produtivo; mas muitas vezes percebemos na análise que, quando se compara a obra com esses
aspectos distintos, sempre sobra algo para o quê não há uma contraparte externa. Este elemento é o
que denominei de estrutura de sentimento, e só pode ser percebido através da experiência da própria
obra de arte" (ibid.)
50
freudismo, existencialismo – são todos, nas suas formas mais usuais, trágicos. O homem
pode atingir uma vida plena somente após violento conflito; ele é essencialmente coibido.o
e, na sua realidade dividida, hostil a si mesmo enquanto vive em sociedade; está lacerado
por contradições intoleráveis numa condição em que impera um absurdo essencial"
(Williams, R., 2002, p. 245).
Williams releva as diferenças entre Sartre e Camus, agrupando os dois sob a rubrica
de um teatro existencialista. E justifica essa opção ao arrolar uma série de pressuposições
comuns a esses dois autores, na condição específica de dramaturgos. É que, segundo ele, a
figura do "absurdo" mediatiza, nos dois autores, uma essencial articulação entre a tragédia
moderna como pressuposto filosófico e como gênero literário. Isto, pelo brilho que esses
dois autores demonstraram –vimos esse ponto mais de perto, no caso de Sartre– ao trafegar
entre a teoria e a ficção, entre o conceito e a imagem, num regime de impregnação
recíproca de cada um dos termos destes pares, o que permitia a Camus, por exemplo,
decretar com autoridade especial o caráter artificial da "antiga oposição" entre arte e
filosofia (Camus, A., 1989, p. 118).
Camus, como nota Williams, declarou não ver em sua própria obra e na de seus
contemporâneos a desejável maturação de uma forma trágica genuinamente moderna e
compatível com um público que já "está cansado dos Atridas, de adaptações da
Antigüidade, daquele sentido trágico moderno que, infelizmente, raras vezes está presente
em mitos antigos, por mais generosamente recheados de anacronismos que eles sejam. Uma
grande forma moderna do trágico tem de nascer e nascerá. De certo não a alcançarei; talvez
nenhum de nossos contemporâneos o faça. Mas isso não diminui a nossa obrigação de
contribuir para o trabalho de criação de um espaço livre, que é agora necessário, de modo a
preparar o terreno para essa moderna forma trágica. É necessário que nos utilizemos de
todos os nossos limitados meios para acelerar a sua chegada" (apud Williams, R., 2002, p.
227).
Sartre chega a se penitenciar por ter feito em As Moscas uma transposição de um
texto clássico, pois o ideal para as peças modernas, segundo ele, seria buscar o mito, sim,
mas segundo formas e intrigas próprias à época em que se escreve (Sartre, J.-P., 1992, p.
32), e concorda com Camus também quanto à definição da essência do trágico como, para
51
usar formulação deste último, um embate de forças "igualmente legítimas, igualmente
justificadas".
Camus vê aqui, inclusive, a especificidade da tragédia frente ao drama e ao
melodrama, nos quais – especialmente se pensarmos no romantismo – só um dos
contendores tende a aparecer como legítimo, como o "bom", posto diante da perda, da
injustiça ou de outras tantas figurações do "mal" (Camus, A., 1970, p. 301). Ele resume
bem esta diferença ao mostrar que, no melodrama, "somente uma pessoa é justa e
justificável", enquanto que na tragédia "tudo pode ser justificado, ninguém é justo" (ibid.).
Numa autêntica tragédia, pelos critérios de Camus, Antígona está certa, e podemos nos
comover com sua sorte, mas ao mesmo tempo Creonte não estará errado, assim como na
confrontação entre Prometeu e Zeus, cada uma das partes é ao mesmo tempo justa e injusta
(ibid.). O herói nega a ordem que o abate, e a ordem o abate porque é negada, e cada qual
afirma sua existência no momento mesmo em que esta existência está sendo posta em
questão (ibid., p. 305). Estes critérios, aliás, induzem o autor a apontar Sófocles como o
autor trágico mais perfeito da Antigüidade, por ter levado mais longe do que Ésquilo –ainda
preso às tradições religiosas– e do que Eurípides –já demasiadamente desvinculado delas–
o princípio da tensão e do "equilíbrio" entre forças antagônicas (ibid., p. 304).
Muito interessantes são também as considerações de Camus, nessa mesma palestra
"Sobre o Futuro da Tragédia" (1955), acerca das afinidades estruturais dos dois grandes
ciclos trágicos do teatro ocidental (o grego, que vai de Ésquilo a Eurípides, e o
"renascentista", que, num lapso de anos muito similar ao do primeiro período trágico, vai
de Shakespeare a Racine). Segundo o escritor franco–argelino, esse denominador comum
consiste na experiência social, cultural, política e religiosa de uma tormentosa "transição de
formas de pensamento cósmico impregnadas da noção da divindade e santidade a formas
inspiradas por conceitos individualistas e racionalistas" (Camus, A., ibid., p. 297).
Noutras palavras, o trágico se constitui num espaço de tensão e ambivalência –
típicos de períodos de transição–, qual seja, o espaço de um dessacralização ainda em
curso, avançada o suficiente para corroer as antigas balizas religiosas mas não para impor
completamente a autonomia do humano em face do divino. Este ponto será muito
importante à compreensão da tragicidade profunda que permeia As Moscas, seja no embate
52
direto que ali se encena entre o humano (Orestes) e o divino (Júpiter), seja, em um nível
ontológico mais geral – do qual as metáforas do herói da liberdade e do deus da opressão
dimanam –, pelos dilaceramentos exigidos por uma auto–afirmação da liberdade, portanto
da relatividade, da contingência e do “desespero”, em condições de tensão para com esta
outra grande inclinação humana pelo “absoluto”: o projeto fundamental que é “tornarmo–
nos deuses”. E Pierre–Henri Simon ajuda–nos a precisar em que bases Sartre, em As
Moscas, coloca tal “transição” e ambivalência trágicas, quando diz que a peça tem por
significado mais profundo a rebelião “luciferina” de uma criatura de Deus que, tendo dele
recebido a liberdade, não vê para ele outro meio justo e possível do que recusando ao
próprio Deus (cf. Simon, P–H., 1959, p. 179).
Camus nos ajuda a mapear o renascimento da questão trágica no teatro francês do
século XX ao citar, como pioneiros, Copeau, primeiramente, e em seguida Gide,
Giraudoux, Claudel, Montherlant, Martin du Gard; o "teatro da crueldade" de Antonin
Artaud –cujo O Teatro e Seu Duplo é de 1938–, Appia e Craig também são dignos de nota
neste contexto (cf. Camus, A., ibid., p. 300).
O "sentido trágico moderno" que Camus acreditava estar ainda à espera de uma
expressão teatral mais plena parece se nuclear no que Raymond Williams sintetiza
mediante duas noções–chave: desespero e revolta.
De um lado, o desespero, literalmente, como ocaso da esperança de sentido, de
justiça, de bem, de felicidade num mundo absurdo. Um mundo sem Deus e "sem alma" –
no sentido ético da expressão, mas também no que tange à falácia da "imortalidade"
espiritual. Um mundo no qual "alguma coisa de inumano" se põe ameaçadoramente à
espreita sob as superfícies apaziguadoras de tudo o que parece belo. Um mundo cuja
"hostilidade primitiva" subitamente vem à luz do dia, rompidos os cenários mascarados do
hábito (Camus, A.,1989, p. 33–4). Para usar a terminologia de Albin Lesky, parece que
estamos aqui em presença de um trágico – enquanto contradição dilacerante ou rumo dos
acontecimentos presidido pelo Mal absoluto – que, paradoxalmente, é mais radical do que
num autor como Ésquilo, pois vai além de conflitos ou situações momentâneas
("dialeticamente", por assim dizer, transcendidas pela crença na justiça e bondade divina),
alçando–se ao estatuto de cosmovisão total e fechada (cf. Lesky, A., 1976).
53
Para Camus, o absurdo não é reta de chegada, mas base de um recomeço ético, pela
tomada de consciência sobre a tarefa que cabe ao homem de humanizar o inumano, mas
isso não pelos tanques e tratores avassaladores da mera administração ou da vã revolução,
mas, sim, pela redescoberta lúcida e amorosa da vida, de um (con)viver doravante despido
das ilusões e das complacências de quem antes esperava sentidos unívocos, apodíticos, para
as coisas. Daí a força paradoxal de uma expressão como "sentido trágico", na qual está
embutida uma peculiar tensão entre o sem–sentido do mundo e a nomeação –
necessariamente "semantizadora" ou seja, criadora de um sentido – com que o homem
adentra o absurdo e nesse mesmo átimo começa a poder sair dele. Em um romance como A
Náusea, de Sartre, nota–se esta mesma ambivalência.
À luz dos subsídios de Williams, podemos vislumbrar o grande peso da noção de
violência para a cosmovisão trágica que transparece na obra sartriana em geral (e no seu
teatro, em particular). Com efeito, o débito peculiar da filosofia e da "tragicidade" de Sartre
para com Hegel tem seu papel neste ponto. Yves Michaud mostra que os diversos sistemas
filosóficos, ao longo dos séculos, diferem na maneira como põem a questão da violência
segundo os axiomas que elas sustentam acerca do Ser, da natureza das coisas: "Os
pensamentos que reconhecem no Ser princípios de contradição ou de negatividade admitem
a realidade da violência e vêem nela a manifestação da própria estrutura do Ser. É o que
ocorre, exemplarmente, com a filosofia de Hegel" (Michaud, Y., 2001, p. 103).
Michaud faz referência, aqui, ao que Hegel vê como inerente à manifestação
progressiva do Ser no mundo, ou seja, à história: "a seriedade, a dor, a paciência, e o
trabalho do negativo" (prefácio da Fenomenologia do Espírito, apud Michaud, Y., op. cit,
p. 103). "O Ser é a vida e a vida não ocorre sem confronto e dilaceramento": fórmula em
que Michaud resume um princípio hegeliano (próximo a Heráclito) que reaparecera em
neohegelianos como Marx e os frankfurtianos, embora, nestes, cada vez mais descolados da
promessa da "reconciliação" absoluta no fim da história.
Também em O Ser e o Nada, a "violência" hegeliana aparece numa inflexão
semântica bem particular, balizando uma caracterização ("trágica") da intersubjetividade
humana, ou do que Sartre chama de ser Para–Outro. Criticando as abordagens tradicionais
do problema da alteridade, que desembocam, segundo ele, no solipsismo, Sartre diz que é
54
um equívoco pensar a relação eu–tu na chave de uma relação de conhecimento, entre um
“sujeito” e um “objeto”, o que solapa a subjetividade, portanto a liberdade, próprias ao
Outro enquanto consciência outra. Seguindo a trilha de Hegel e Heidegger, Sartre afirmará
que a realidade humana é “para–si–para–outro” (Bornhuem, G., 2003, p. 85). O Outro é um
dado imediato de minha consciência. Ou, como explica Paulo Perdigão, “antes mesmo de
qualquer encontro com o Outro, eu já tenho de ser consciente dele de algum modo. Isto é:
minha relação com a consciência do Outro deve anteceder à primeira aparição mesma do
corpo do Outro frente a mim. O Outro deve fazer parte da minha consciência desde o
nascimento, como parte constitutiva do meu Ser. Há uma predisposição ontológica do
Para–si para reconhecer o Outro como sujeito. Assim, o Outro, primeiramente, existe para
mim como estrutura do Para–si que sou” (Perdigão, P., 1995, p. 138). Mas isso não implica
algum tipo de “harmonia pré–estabelecida”, o Outro não é uma metade que me completará
num todo coeso, como no mito platônico das metades cindidas do Andrógino original. A
existência do Outro é antes, para continuarmos no reino das metáforas míticas, o que Sartre
chama, em O Ser e o Nada, de minha “queda original” (apud Noudelmann, F., 1993, p. 82–
3); descobrir o Outro é um abalo e uma revelação de mim mesmo como “objeto”
aprisionado por um olhar externo devorador: “Quando sou visto, tenho, de repente,
consciência de mim enquanto escapo a mim mesmo, não enquanto sou o fundamento de
meu próprio nada, mas enquanto tenho o meu fundamento fora de mim. Só sou para mim
como pura devolução do outro” (Sartre, J.-P., O Ser e o Nada, apud Bornheim, G., 2003, p.
86).
Dá–se então uma “hemorragia interna”, pela qual a consciência sente que deixa de
ser presença a si e se reduz a um objeto – o que suscita o sentimento da vergonha. “Ora, a
vergonha é vergonha de si, ela é reconhecimento de que eu realmente sou esse objeto que o
outro olha e julga. Só posso ter vergonha de minha liberdade enquanto ela me escapa para
tornar-se objeto dado”, diz Sartre em O Ser e o Nada (apud Bornheim, G., ibid., p. 87).
A tragicidade, enquanto conflito de direitos inconciliável, tem, pois, como raiz
ontológica esta tensão decorrente de a alteridade ser tão constitutiva para mim quanto
expropriativa de mim. “Pelo olhar eu sou, pois, roubado a mim mesmo, e sou roubado
enquanto inserido em um mundo. Eu e meu mundo se esvaem para o outro numa fuga sem
termo –a própria fuga se perde no exterior” (Bornheim, G., ibid., p. 87).
55
Antes mesmo que degenere em violências propriamente físicas, o Outro – como
exemplarmente desvelado pela peça Entre Quatro Paredes (Huis Clos, 1944) – me oprime
simplesmente por ser “um outro eu que não eu, um sujeito que me reduz ao estado de
objeto” (Simon, P–H., 1959, p. 170); pelo próprio fato de ser um outro eu que não eu
mesmo, o Outro “me objetiva e me nadifica; adversário nas crises da história, ele me tortura
e me anula; rei ou chefe na ordem estabelecida [caso de As Moscas, veremos] ele me
encarcera e me sujeita. O outro é sempre obstáculo à minha liberdade, portanto ameaça à
minha integridade de pessoa, ofensa ao meu ser. Quanto mais deveria desconfiar se o outro
é o Outro, isto é, Deus! Diante de um Ser perfeito, e do qual minha existência imperfeita
seria fatalmente dependente, a que porção de autonomia poderia eu pretender? Se ele é o
Todo–Poderoso, poderia eu ser total liberdade? E que se tornaria a intimidade de minha
consciência se suponho um olhar que me penetra até o fundo, agarrando até o mais fugitivo
de meus sentimentos, antecipando o menor de meus atos? (...) se Deus existe, o homem não
existe”, e vice–versa (ibid., p. 178–9). Simon acrescenta que o Outro “é frequentemente
meu adversário e, no mundo trágico de Sartre, que se inspira nas circunstâncias de uma
história violenta e cruel, um adversário armado, ameaçador e impiedoso. Este teatro,
nascido no clima da França ocupada e da Resistência, respira a guerra, o assassinato, a
própria tortura, todas as injúrias feitas à alma e ao corpo do indivíduo em nome das causas
históricas que esmagam o interesse de sua vida e de sua felicidade: nação, partido,
revolução” (ibid., p. 173). Simon esboça, recorrendo a As Moscas, Entre Quatro Paredes,
As Mãos Sujas e O Diabo e o Bom Deus, um breve catálogo de ardis ilustrativos de como,
no universo teatral de Sartre, a alteridade quase sempre é sinônimo de alienação (ibid.).
Mas sinônimo também de “morte”. E isso não só explicitamente, como em Mortos
sem Sepultura – peça em que, ao flagrar os torturadores no exercício de suas atribuições,
Sartre leva ao paroxismo sua denúncia do “retorno do homem contemporâneo ao bárbaro”
(ibid. p. 175), mas no próprio alegorismo de Entre Quatro Paredes: o Inferno, o além-vida,
a “morte em vida” que é a impossibilidade de fazer novas escolhas e assim modificar a
imagem coagulada de si que o homem vê espelhada no julgamento ou no “olhar” alheios.
“Pelo olhar, vivo a solidificação e alienação de minhas possibilidades. Se, como vimos, sou
minhas possibilidades, não posso deixar de sê–las; mas, através do olhar do outro, elas são
alienadas. Por isso [citação de Sartre], ‘o outro, como olhar, é apenas isto: minha
56
transcendência transcendida’. O Outro se resume em ser a morte escondida de minhas
possibilidades, e uma morte da qual me envergonho porque a vivo” (Borheim, G., 2003,
ibid., p. 87–88).
“A morte”, como acrescenta Paulo Perdigão na direção que apontamos – a de uma
certa homologia entre as experiências da alteridade e da morte–, “representa a vitória do
ponto de vista do Outro sobre mim. Nossa subjetividade exterioriza–se, torna–se pura
‘objetividade’ para o Outro. Estar morto é ser uma presa dos outros. Uma vida morta é uma
vida da qual o Outro se faz guardião” (Perdigão, P., 1995, p. 100). Este aspecto será muito
importante à interpretação político-ontológica que Sartre dará, como veremos no Capítulo
II, ao evento da Ocupação alemã de Paris, cenário histórico de As Moscas (bem como de
Entre Quatro Paredes).
É verdade que, ainda em vida, posso escolher perpetuar o momento de “morte” que
é a sujeição reificante ao Olhar do outro, ou invertê–la, fazendo do outro uma
transcendência transcendida; o outro é então reduzido a um objeto, porém sempre um
“instrumento explosivo”, na expressão de O Ser e o Nada (apud Bornheim, G., 2003, p.
92), pois pode sempre reagir, voltar a me olhar e se impor novamente. Porém, não importa
se sou eu ou o outro o pólo que “domina” a situação, o fato é que a coexistência parece
inerentemente conflitual, a “comunicação” se desmascara como esforço recíproco de
petrificação, como no mito grego da Medusa, mencionado, a esse propósito, em O Ser e o
Nada. Por isso, Sartre, se tanto elogia Hegel por ter mostrado a importância da luta por
reconhecimento na própria fundação da identidade de si, critica o “otimismo ontológico”
com que o filósofo alemão pensa essa dinâmica: a conflitividade entre senhor e escravo, diz
Sartre, é algo permanente, e não um fenômeno meramente “histórico”, uma etapa
provisória na evolução do Espírito (ibid., p. 92). Ao afirmar, em o Ser e o Nada, o conflito
como sentido “original, exclusivo e único” do Para–Outro, Sartre também se desvencilha da
perspectiva heideggeriana do mit–sein (do “ser–com”), também ela, a seu ver, eufemística,
se se quer apreender em toda sua gravidade uma experiência humana lapidarmente
sintetizada na fórmula “o inferno são os outros”, de Entre Quatro Paredes.
Uma constatação que, mostra Peter Szondi, é a senha para localizarmos o teatro
existencialista –e sua peculiar tragicidade– no bojo do processo mais amplo de "crise do
57
drama moderno". Crítico teatral de orientação benjaminiana, Szondi faz em sua Teoria do
Drama Moderno (1965) o que, na apresentação da edição brasileira, José Antônio Pasta
Júnior chama de uma história da "emersão progressiva do elemento épico" no teatro. Em
certo sentido, portanto, Szondi dá a Brecht o mesmo papel de fio condutor que Raymond
Williams, para quem o autor de Mãe Coragem, embora em certo sentido recuse o trágico,
representava o apogeu da consciência crítica, no teatro, acerca desta tragédia das tragédias,
desta máxima separação – a dos homens entre si, e de cada qual em relação a seu anseio
fundamental de liberdade e de felicidade– e máximo anseio e possibilidade de
reconciliação, que é o modo de viver sob o capitalismo e sua possível transformação
revolucionária.
É de grande importância o que o Szondi ensina sobre a corrosão, na virada para o
século XX, do que ele entende por drama moderno, nascido na Renascença (excluindo–se
Shakespeare) e calcado no dialogismo das personagens ou no que o autor chama de
"decisões de indivíduos [no registro burguês desta palavra] em relação recíproca".
Não é por mero capricho de alguns autores ou encenadores que este tipo de teatro
entre em colapso desde meados do século XIX, marcando a ascensão do problema, hoje
quase um lugar-comum na crítica teatral jornalística, da "incomunicabilidade". Szondi
mostra que tal crise traz implícitas as marcas da mão invisível de uma grave crise
civilizatória, dizendo mais especificamente, a emergência de uma nova ordem de coisas que
não é senão a desordem do que, com Adorno, poder–se–ia chamar de uma "vida
danificada" pela cultura de massas e pela transição do capitalismo liberal ao monopolista.
Tal processo, nos palcos, culminaria na radical contestação brechtiana do drama burguês,
mas admitiu gradações e tentativas de "salvamentos", entre elas, justamente, o teatro
existencialista de Sartre (Szondi, P., 2001, p. 113 ss.).
Tomando Entre Quatro Paredes como paradigma, Szondi inscreve Sartre entre os
dramaturgos do "confinamento", isto é, autores que fizeram da concentração, do
estreitamento, a um só tempo forma e conteúdo, em tramas cujas situações "danificam" os
padrões usuais de convívio humano – movimento que, se, de um lado, questiona os pilares
do drama moderno, por outro o "salva" em termos "sui generis".
58
Isso porque o fim do dialogismo aponta para uma situação de isolamento, de
monólogo, que tais dramaturgos impedem todavia de se consumar, pois o confinamento,
sendo experiência comum a umas poucas pessoas, basta para que nenhuma delas alcance a
solidão que talvez almejassem. É curioso que, nesse contexto, Szondi fale tamm em
violência, só que para descrever um fator de fundação, e não de interrupção ou
estorvamento, do convívio: atados mutuamente, os confinados estabelecem, malgrado eles
próprios, uma segunda dialética, pela qual o discurso de um não pode deixar de afetar o dos
outros: "O confinamento que se opera aqui nega aos homens o espaço de que necessitariam
em torno de si para estarem a sós com seus monólogos ou em silêncio. O discurso de um
fere, no sentido literal da palavra, o outro, quebra seu confinamento e o força à réplica. O
estilo dramático, ameaçado de destruição pela impossibilidade do diálogo, é salvo quando,
no confinamento, o próprio monólogo se torna impossível e volta a transformar-se
necessariamente em diálogo" (Szondi, P., ibid., p. 114).
É muito importante atentar para o resgate por Szondi de um comentário do ensaísta
Rudolf Kassner acerca dos personagens cunhados por Hebbel, expoente da chamada
"tragédia burguesa": "Na realidade, assemelham–se a homens que por muito tempo
estiveram na solidão e em silêncio, e, de repente, vêem–se forçados a falar. (...) É possível
dizer que esses homens são dialéticos natos. Mas o são somente na superfície, contra sua
vontade; no fundo e antes de tudo sentimos em todos o homem que estava a sós consigo
mesmo, sem falar, o homem que também poderia assistir ao espetáculo em que o poeta o
coloca" (apud Szondi, P, ibid., p. 116).
Szondi dá como exemplos clássicos dessa dramática do confinamento A Dança da
Morte, de Strindberg, e A Casa de Bernarda Alba, de Lorca, cuja personagem Adela, a
certa altura, desabafa: "Eu gostaria de ser invisível e atravessar a sala sem que me
pergunteis para onde vou" (apud Szondi, op. cit, p. 115). Assim também, em Entre Quatro
Paredes, Garcin declara: "Compreendo bem que minha presença vos importuna. E,
pessoalmente, eu preferiria permanecer só: é preciso que eu ponha minha vida em ordem e
tenho necessidade de me recolher. Mas estou certo de que poderemos nos acomodar um ao
outro: eu não falo, quase não me movo e faço pouco barulho" (Sartre, J.-P., 2003, p. 25).
59
Segundo este crítico, dificilmente, na história do teatro, esta vontade de ser
imperceptível poderia antes aparecer com tamanha ênfase; e dificilmente ela poderia ser
mais dolorosamente frustrada, o que, como ele mostra, tem em Sartre uma fundamentação
teórica sólida, uma das razões, aliás, para sua força e o poder de convencimento que exerce
sobre o espectador/leitor. Esta fundamentação diz respeito a uma filosofia que, como
vimos, define a realidade humana como Para–Si, mas também como Para–Outro: a
alteridade é uma ameaça mas uma dimensão constitutiva.
Nesta ambivalência, inscrita na própria forma teatral moderna, entre disjunção e
conjunção, entre recuo solipsista e fatalidade do diálogo, talvez possamos pressentir sob
nova luz as articulações entre teatro e engajamento no pensamento de Sartre. Como
acentuado por Sousa–Aguiar, o teatro tem natural proeminência numa concepção de arte
engajada –de arte inserida criticamente nos dilemas concretos de sua época, e defensora dos
ideais da justiça e da liberdade– como a de Sartre, já que, no espetáculo, a “coletividade
sobre a qual o autor deseja influir é atingida por meios mais diretos; ela tende a identificar–
se com os atores, quer vivem em cena os seus problemas, e pode ser levada assim à busca
de soluções. Parece–nos realmente muito justo que Collete Audry [em Connaissance de
Sartre, Cahiers Madeleine Renaud –Jean Louis Barrault, número 13, Paris, 1955, Julliard]
considere a concepção sartriana de teatro equivalente à dos gregos do século V e à os
cristãos da Idade Média” (Sousa Aguiar, M. A., in: Mortara, M. (org.), 1970, p. 102).
Mas o que os argumentos de Szondi inspiram é também o argumento de que o um
teatro existencialista e engajado se afigura como flagrante da solidão abissal do indivíduo
moderno e esboço de resgate da experiência fusional, comunitária, tão habitual aos homens
de outras eras; daí, talvez a impressão paradoxal das referências de Sartre ao valor
“religioso” do teatro – elas nos oferecem relances de uma certa autenticidade trans–
subjetiva que, indo além das coações trágicas da alteridade alienante (que nos induzem aos
ardis da má–fé ou inautenticidade cotidiana), caminha no sentido de fazer a vivência do
ser–com, do nós, ganhar o que segundo Gerd Borheim ainda não tem na ótica de O Ser e o
Nada: o status de “estrutura ontológica sui generis da realidade humana”, mais do que mera
extensão e derivação do “para–outro” imanente a cada consciência particular; se no plano
rigorosamente filosófico “o ser–para–outro precede e fundamenta o ser–com–outro”
(Bornheim, G., 2003, p. 108), e por isso faz da luta por reconhecimento a cisão primária
60
sob os laços interpessoais, o teatro, como protótipo do engajamento e da inserção ativa na
História, pode ser rito de metamorfose que alça os homens cindidos a instantes, ainda que
efêmeros, de celebração da universalidade humana sob e sobre os confinamentos no
particular. O conceito mediatizador dessa passagem pode ser o de Nós–objeto, que veremos
melhor no capítulo seguinte, mas que, cumpre anotar desde já, parece investido da
ambivalência necessária para comportar, de um lado, a gênese alienante, e, de outro, a
possibilidade de uma auto-subversão libertária que, no limite, poderiam fazer da
intersubjetividade uma experiência ética e ontológica de libertação pessoal e coletiva, e não
de mero sufocamento de uma liberdade entendida como atributo solipsista.
61
CAPÍTULO II
A FRANÇA OCUPADA:
‘QUEDA DO PARAÍSO’
“Nós nos encontramos nesta horrenda situação de que a sorte da França deixou de
depender dos franceses” Marc Bloch
(apud Rousso, H, 1992, p. 13)
“Que todos os franceses se agrupem em torno do novo governo que eu presido durante
essas duras provações e façam calar sua angústia para não escutar senão sua fé no destino
da Pátria”
(Marechal Pétain, discurso transmitido pela Radio Vichy a 17 junho de 1940)
Vimos no Capítulo I, ao discorrermos sobre o “teatro de situações” – conceito pelo
qual Sartre define sua proposta dramatúrgica –, insinuar-se, como baliza estética
fundamental, uma estreita conjugação entre mito e história. É um teatro histórico em seu
compromisso com as questões de seu próprio tempo, e é mítico na abordagem que dá a
estas questões. Pois o “mito” se afigura a Sartre não como um refúgio em qualquer
universalismo abstrato, muito menos uma mera fantasia para entretenimento literário; é
antes um recurso de revelação, com os meios próprios à linguagem cênica, do “eidos da
vida cotidiana” que vige na sua contemporaneidade; é igualmente instrumento eficaz para,
62
na dialética entre distanciamento e identificação ritualística, promover a unificação dos
espectadores. No contexto específico de As Moscas, o apelo a um mito pré–estabelecido
pela tradição –a lenda grega dos Atridas ou Tantálidas–, se explicava também como
maneira de camuflar um chamamento pró–Resistência que dificilmente passaria, se
explícito, pelas malhas da censura do regime de Vichy.
É preciso frisar, porém, que não é num vácuo que Sartre “decidiu” que essas noções
de história e de mito, e a imbricação de ambas, deveriam ter tanta importância para a sua
prática teatral. Esses dois termos se investiam, naquela época, de uma significação e
premência que dificilmente passariam despercebidas por quem quer que estivesse
interessado em pensar os rumos da humanidade. Do ponto de vista da estrutura geral de
nossa investigação, nosso mapeamento do contexto do mitologismo de As Moscas se
desloca agora do nível "cênico" para o político, sempre se ressalvando que tal distinção tem
cunho sobretudo didático, tratando-se, na prática, de facetas integradas e indissociáveis de
nossa questão.
Os anos 30 e 40 se marcam por uma forte tendência de remitologização. Basta
lembramos o protesto desesperado –conjugado à reflexão filosófico–histórica de
amplíssimo alcance– de Adorno e Horkheimer em Dialética do Esclarecimento, ou mesmo
um ensaio como O Mito do Estado, de Ernst Cassirer, para constatarmos o quão as graves
crises políticas, econômicas e culturais do período entre–guerras catalisaram o
ressurgimento do “poder do pensamento mítico”, cada vez mais preponderante sobre as
categorias racionais, na esfera das mentalidades, das ideologias e das instituições políticas
(cf. Cassirer, E., 2003). Não é o caso, aqui, de entramos em maiores detalhes quanto a essas
diferentes linhas de interpretação e posicionamento pessoal acerca do mito. O que nos
importa reter é que seu testemunho “a quente”–Dialética do Esclarecimento é escrita em
1944, O Mito do Estado é concluído em 1945– nos dá uma medida do papel do mito na
verdadeira crise civilizacional, ou seja, no risco de corrosão das estruturas sociais e
culturais edificadas desde o Iluminismo, subjacente às tempestades que fecundaram o
horror nazi-fascista dos anos 30 e 40.
Ora, a França, farol cujas “Luzes” da Razão revolucionária anunciaram, no século
XVIII, o advento da modernidade, não passa incólume ao revival do que Cassirer, fiel à
63
tradição ilustrada, designa de a “escuridão mítica” de meados do século XX. Escuridão que
toma de assalto o Estado nacional em junho de 1940, após a Ocupação alemã, o fim da
Terceira República e o advento do regime colaboracionista de Vichy, tendo o Marechal
Pétain à frente.
Como o próprio Sartre assinalou, o Estado vichysta, embora, em grande medida,
seja um satélite dos interesses econômicos e da política totalitária e anti–semita de Hitler,
tem um significado interno que vai além dessa passividade e subalternidade; no âmbito da
cultura política francesa, ele representa uma revanche de setores que se sentiam
marginalizados desde a Revolução de 1789, portanto, setores postos à sombra desde a
aurora da democracia republicana (cf. Sartre, J.-P., 1949, p. 48).
A direita francesa anti–semita encontra surpreendente possibilidade de acomodação
a um quadro de sujeição aos alemães; considera tal submissão, por humilhante que fosse
para seu narcisismo xenófobo, uma espécie de mal necessário para a “purificação” de um
país que tais setores consideravam corroído pelo perigo vermelho e pelo “complô judaico”,
consubstanciados na efêmera experiência do Front Populaire (aliança de socialistas e
comunistas que assume o poder em 1936). Henry Rousso (1992, 16s) mostra que, já na luta
contra a Front, a direita francesa, sustentada por boa parte das elites econômicas
("ressentidas" com a orientação de esquerda daquele regime), começa a deixar de lado a
tradicional germanofobia, pois via no nazismo talvez a única resposta eficaz ao "perigo
vermelho". Parecem estar aí as raízes da bizarra síntese de afã nacionalista – calcada no
culto à personalidade do marechal Pétain, herói da Primeira Guerra Mundial – e completa
subordinação política e econômica aos interesses de Hitler, marca da era Vichy.
Um dos aliados mais importantes do novo regime é a hierarquia da Igreja Católica.
Jacques Duquesne, no livro Les Catoliques Français sous l´Occupation, destaca – num
capítulo sugestivamente intitulado "A França Arrependida" – vários pontos de afinidade do
governo de Pétain com a cúpula hierárquica e certa mentalidade católicas. Um reflexo dessa
aliança, mostra Duquesne, foram os festejos do 14 de julho em 1940, os quais,
tradicionalmente laicos –a Revolução, afinal, fora o marco da secularização do Estado
francês–, agora envolvem a celebração de uma missa na Igreja São Luís de Vichy, reunindo
Pétain, o primeiro escalão do governo e o corpo diplomático (Duquesne, J., 1968, p. 15).
64
O autor sugere que Pétain, na verdade, não era pessoalmente um católico fervoroso,
mas um adepto das idéias direitistas da Action Française de Charles Maurras. Este autor
preconizava ao estadista que usasse a religião como dispositivo de conservação da ordem
pública. Para a Action Française, movimento que começa a atuar na virada do século XX, a
"razão de Estado" é o valor supremo, e deveria haver um poder central forte, nas mãos de
um rei hereditário acima de partidos e classes. Também o individualismo, "peste"
disseminada pela Revolução de 1789, devia ser erradicada pela absorção dos interesses
privados aos da "comunidade".
São características, nesse sentido, as palavras do Marechal Pétain à "juventude
francesa", a 29/12/1940: "Vós pagais por culpas que não são as vossas; é uma dura lei que é
preciso compreender e aceitar, ao invés de a sofrer ou de se revoltar contra ela. Nós
queremos reconstruir, e o preâmbulo necessário a toda reconstrução é eliminar o
individualismo destrutivo" (apud Céré, R., & Rousseau, C., 1945, p. 427–8). Nessa mesma
direção acrescenta François Noudelmann: "Os valores exaltados pela Revolução nacional,
como a disciplina, o trabalho no campo, a juventude, a família, a tradição, supunham uma
redenção das antigas culpas. É contra o individualismo e a democracia, contra o dinheiro e
a indústria que Vichy elabora uma nova ordem moral. A difusão desses valores portanto
apoiou-se numa vasta empresa de culpabilização. Se a França fora batida, a culpa cabia aos
regimes anteriores, au parlamentarismo e às idéias laxistas de antes da guerra. Fazendo
alusão à Frente Popular, Pétain pedia que os franceses pagassem pelas suas culpas"
(Noudelmann, F., 1993, p. 20).
Ao invés da luta pela libertação no aqui–agora, Vichy instaura e encena um
obsessivo processo expiatório. Antigos dignitários da Terceira República, como Léon Blum
e Éduard Daladier, são levados, em 1942, para depor em um "conselho de justiça política"
em Riom. Cumpria identificar e expurgar da pátria "traidores" culpados pela Queda –termo
que, em nossa língua, abriga sugestiva ambigüidade, ao poder abranger a derrota política da
França e o seu arquétipo mítico "cristão", ou seja, a queda do Paraíso.
Este "culto ao arrependimento, ao sofrimento e à morte" (Rousso, H., 1992, p.
55).se articula com a maciça propaganda de massas em torno da figura de Pétain, que se
65
valia da imagem de herói da Primeira Guerra para se legitimar agora como um "salvador da
pátria" e artífice da redenção.
O catolicismo era, conforme se lê no manifesto "Os Princípios da Comunidade" –no
qual Pétain, já à frente do governo, resume seu ideário político–, um dos pilares do
imaginário da "identidade nacional" em vias de ser resgatada: "A escola", diz o princípio 12
desse documento, "é o prolongamento da família. Ela deve fazer compreender às crianças
benefícios da ordem humana que a enquadra e a sustenta. Ela deve torná–las sensíveis à
beleza, à grandeza, à continuidade da pátria. Ela deve ensinar–lhes o respeito pelas crenças
morais e religiosas, em particular aquelas que a França professa desde as origens da sua
existência nacional" (apud Duquesne, J. ibid., p. 17). Antes de publicá–lo, Pétain submete o
texto à apreciação do papa Pio XII, a quem destinaria sua dedicatória no volume Paroles
aux Français. O Vaticano voltaria a ser previamente informado e consultado acerca de
medidas de perseguição aos judeus tomadas em outubro de 1940 (ibid.).
Temos assim, entre os vários elementos “restauracionistas” promovidos por Vichy,
a reaparição de um dispositivo que –veremos melhor esse ponto ao revisitar as idéias de
Mircea Eliade, mais adiante– é crucial ao pensamento mítico universal: o retorno às
“Origens”, o restabelecimento Idade de Ouro em que os deuses e heróis instituíram o
mundo tal como ele é, mas não como ele está na cotidianidade profana, pois o tempo linear
–o tempo da história puramente humana– é tido como processo de degradação e decadência
(cf. Eliade, M., 1992). As máculas a serem “redimidas” permitiram um avanço que seria
também um resgate da pureza e grandeza originárias da Pátria.
As Moscas seria dificilmente inteligível se abstraída das muitas alusões específicas
que faz a estas circunstâncias. É por isso que dedicaremos este capítulo à breve
caracterização do que foi o período da Ocupação e da Resistência que se soergue contra ela,
mas isso, sobretudo na parte final do capítulo, enquanto uma “história refletida”, um
acontecimento histórico filtrado e relido pelas lentes subjetivas (pessoal e filosoficamente)
de Sartre.
66
Engajamento e ‘seriedade’
A França ocupada, e seu cenário de opressões e de mistificações, é a “situação” na
qual os franceses de inícios dos anos 40 estavam enredados. Noutras palavras, é o contexto
de condicionamentos e de coações sob as quais a liberdade inerente à condição humana se
punha em jogo, chamada a possibilidades antagônicas de expressão concreta, seja pela
cumplicidade ou pela oposição ao status quo.
Esse embate entre liberdade e opressão é o sentido mais radical das denúncias e da
exortação em prol da resistência feitas por Sartre em As Moscas. Para um leitor dos dias de
hoje, seria deveras cristalino o quanto um tal apelo libertário, portanto subversivo, sobeja a
esta peça. É o que Bernard–Henri Lévy assinala, ao descrever–lhe a trama nos seguintes
termos:
"Um homem (Orestes) que volta a sua terra para vingar o assassinato do pai e livrar
a cidade de um casal de celerados (Egisto–Clitemnestra): reconhecia–se, sem dificuldade, a
dupla figura do ocupante e da traidora colaboracionista. Uma cidade (Argos), que vai 'viver
sob a bota' enquanto não renunciar à ideologia do pecado e do arrependimento, imposta
pelo casal maldito: alusão transparente ao discurso dolorista de Vichy, à sua religião do
remorso, à atmosfera de penitência nauseabunda que tal discurso fazia pesar sobre a França.
A aliança dos dois poderes, temporal e religioso, que constituem, juntos, o que o
personagem de Júpiter (que sabemos [...] ter sido representado por [Charles] Dullin [um dos
maiores homens de teatro da França da época, e que também dirigiu a peça], segundo
indicações do autor, usando uma casula de padre católico) chama, textualmente, de uma
'ordem moral': poder–se–ia ser mais claro? Orestes, indo 'até o fim de sua liberdade',
assumindo 'a totalidade de seu gesto': como não pensar no debate que se dava, naquele
momento, em Paris, em torno da questão do 'terrorista' correndo o risco de desencadear,
com seu ato, represálias alemãs?" (Lévy, B.–H., 2001, p. 317).
No entanto, as interrogações que o comentador levanta, na passagem aqui
destacada, sugerem que ele está em luta com outras possíveis leituras. E, de fato, Lévy está,
no trecho em questão, se debatendo contra as suspeitas segundo as quais o autor de As
67
Moscas estaria então muito longe de qualquer preocupação em contestar um regime do
qual, por sinal, recebia um tratamento nada desconfortável.
Ingrid Galster, em artigo em Les Temps Modernes, reproduz mais ou menos nos
seguintes termos uma caricatura sinistra, em voga em setores acadêmicos e na mídia
francesa desde os anos 70 (por contraste com a reputação "heróica" do Sartre da
Liberação): Sartre, longe do " dramaturgo incontestável da Resistência" que se imaginou,
teria sido, sim, um "arrivista" que não se interessou, durante a Ocupação, senão em fazer
carreira e pavimentar o caminho de amigos atores aspirantes ao sucesso. Para tanto, não
teria hesitado, por exemplo, em submeter a peça à censura alemã e deixá–la ser montada
em "um teatro cujo nome judeu havia sido suprimido por um regime que praticava o
Holocauso" (Galster, I., 1990, p. 844s). O propalado "engajamento" abraçado por Sartre
mais tarde – quando os alemães já estavam longe – poderia, nessa perspectiva, consistir
meramente numa "invenção" e "compensação retrospectiva" para atos que ele nunca
realizou (ibid.). Vejamos melhor em que argumentos esse tipo de caricatura tenta se apoiar.
A própria autorização oficial à encenação de As Moscas –permissão que se repetiria,
no ano seguinte, para Entre Quatro Paredes– era já uma diferença de tratamento muito
significativa em relação, por exemplo, a Cocteau, cuja peça Parents Terribles é vetada
porque "imoral" (Noudelmann, 1993, p. 17).
Os primeiros passos de Sartre como dramaturgo são assim sancionados por um
regime que não era avesso ao teatro em geral, apenas àquele tipo de proposta que fosse
inconveniente à "revolução nacional" promovida por Pétain
7
.
Um segundo motivo para as acusações contra Sartre, diz Lévy, fazendo eco ao que
Galster também destacou na citação acima, ligam–se ao fato de que o espaço que abrigou
As Moscas foi um símbolo da Ocupação: o Théâtre de la Cité, ex–teatro Sarah Bernhardt,
7
O teatro esteve entre os principais investimentos do regime na área cultural: “(...) o período da
Ocupação foi particularmente rico em eventos teatrais. Em conformidade com seu ideal de um
retorno à terra e às virtudes do campo, o regime de Vichy subvencionava largamente os espetáculos
pastorais ou as festas que exaltavam o folclore regional" (Nouldelmann, F., 1992, p. 17). A estréia
de As Moscas, aliás, marcaria, assim como La Reine Morte, de Montherlant, o advento, em plena
Ocupação, de uma nova e promissora geração de dramaturgos franceses (cf. Rousso, H., 1992, p.
77–8).
68
assim rebatizado porque a célebre atriz era judia, e por se tratar de um dos 44 espaços
cênicos da Paris invadida julgados pelo serviço de propaganda nazista como dignos de
serem "ocupados" por grupos alemães em excursão.
Além disso, Charles Dullin, que à época comandava o Théâtre de la Cité – e que
Sartre procurou para dirigir As Moscas após Jean–Louis Barrault ter voltado atrás na
decisão de ser ele o diretor do espetáculo (cf. Galster, I., 1990, p. 847) –, se submeteu a
todas as formalidades que a censura alemã impunha para a realização de eventos culturais
na época, como enviar aos censores o texto para avaliação e a relação de atores e técnicos,
assinar documento em que jurava não haver judeus entre eles e em que se disponibilizava
para "ajustes" que fossem considerados necessários. A estréia da peça – em dois de junho
de 1943 – é inclusive anunciada por Dullin em artigo em "La Gerbe", e por Sartre em
entrevista à "Comoedia" – ambos veículos da imprensa colaboracionista (cf. Noudelmann,
F., 1993, p. 19).
Com menor confiabilidade histórica, mas possível, é o relato de que Sartre esteve
entre os convivas da festa havida na noite de estréia, no saguão do teatro, em que se
incluíram os homens da censura alemã; no cenário hipotético descrito (mas não muito
crido) por Lévy, "um Sartre muito alegre, descontraído, ocupado em representar, não, como
Cocteau, o gênio diante da sociedade mundana, mas o simpático diante dos alemães..."
(Lévy, B.–H., 2000, p. 316).
A esse bom trânsito junto ao establishment da era Vichy, poderíamos também
acrescentar a viabilidade de uma leitura –mais ao gosto dos ocupantes– "nietzchiana" do
texto, que enfatize o que este tem de crítica dos fundamentos da moral judaico-cristã (cf.
Noudelmann, F. 1993, p. 24–5); não faltaria muito para, no mínimo, apormos um grande
ponto de interrogação à afirmação de que As Moscas são um manifesto teatral em prol da
resistência aos alemães.
Que não se trata mesmo de um "panfleto", no que esse tipo de texto poderia remeter
a maniqueísmos e simplismos, é algo que parece evidente a uma leitura ainda que rápida da
peça. Mas a complexidade de As Moscas não significa subserviência ao colaboracionismo.
Esse tipo de "calúnia", lembra Lévy, encontradiça já em boatos – sobretudo da parte da
esquerda comunista – que alvejavam Sartre nos tempos da Resistência, ignora fatos como a
69
má acolhida da peça pela crítica alemã ou pró-alemã (ibid., p. 317). Além disso, destaca
Istvan Mészáros, citando a preciosa documentação oferecida por Michel Contat e Michel
Rybalka em Les Écrits de Sartre (1970), a montagem ocorreu “em perfeito acordo com o
grupo de escritores da Resistência” (Mészáros, I., 1991, p. 12).
Tais dados, junto com os indicadores intratextuais evocados por Lévy, podem
esvaziar a consistência dessas suspeitas, mas não dirimem a perplexidade suscitada também
por outros comportamentos de Sartre no período, entre os quais dar entrevistas e publicar
artigos em veículos como "Comoedia", jornal de extrema–direita e vitrine literária do
colaboracionismo; ele também foi contratado, em outubro de 1943, pela Pathé, mais
importante estúdio da indústria cinematográfica da França e uma das vigas-mestras da
fachada de vida cultural autônoma que se tentou sustentar naqueles anos de chumbo.
Como ressalta Galster, nem “hagiografias” ingênuas, nem acusações levianas,
fariam jus à complexidade do posicionamento de Sartre –e, por extensão, de As Moscas– na
cartografia político–ideológica do período. A nosso ver, o que está em jogo aqui são as
ambivalências do processo –então incipiente– de profunda transmutação dos referenciais
que até então organizavam o pensamento teórico, a arte e a visão de mundo de Sartre, no
rumo do que depois ficaria celebrizado como a noção de “engajamento” (cf. Leopoldo e
Silva, F., 2005, p. 49–52).
Nesses anos de guerra e ocupação, Sartre abandona a atitude de "apolitismo
refratário a todo engajamento”, que teria marcado, segundo ele próprio disse em vários
testemunhos autobiográficos, seus anos de juventude. Desde muito cedo, é verdade, Sartre
mostrou um ímpeto de ruptura contra a sociedade burguesa. Mas tal indisposição parecia
mais de índole moral e estética do que propriamente política. Bernard–Henri Lévy observa
acertadamente: "Conhece-se o Sartre marxista. Conhece-se o Sartre heideggeriano e
husserliano que usou Heidegger e Husserl para voltar às coisas mesmas e escapar do
cartesianismo. Há um outro Sartre, menos afirmado, mas secreto – não sei se não devo
dizer um aristocrata, um dândi, um rebelde definitivo, um individualista ao extremo, um
artista, um esteta, um herético, um romântico, um demolidor de ídolos, um trágico, um
antifilisteu patético, um antikantiano decidido, um pessimista desenvolto, prefiro dizer um
nietzschiano" (ibid., p. 152).
70
Companheira de Sartre já desde os tempos em que era um modesto professor de
filosofia no Havre (cidade provinciana que viria a transpor na fictícia e modorrenta
Bouville, em A Náusea), Simone de Beauvoir conta, no livro A Força da Idade, que ambos,
naqueles anos pré-guerra, encaravam com forte tédio os "assuntos públicos", a agenda dos
homens “sérios” que conduziam e pensavam a sociedade. Se mal acompanhavam tais
assuntos pela imprensa, quanto mais "intervir" (cf. Moravia, S., 1985). A História, portanto,
era vista mais como uma exterioridade que pouco diz respeito à fruição daquilo que, para
aquela geração de leitores ávidos de Gide –e de Nietzsche–, era a chocante e efervescente
descoberta da liberdade, insurrecta contra todos os tabus vigentes no circo social.
No plano intelectual, a rebelião do jovem Sartre se traduzia, como mencionado no
capítulo anterior, em uma repulsa ao idealismo abstrato dos seus mestres da Sorbonne, e na
atração que ele sente por correntes e autores como a Gestalt, Jaspers, Unamuno e os
distintos apelos ao "concreto" de Hegel e de Kierkegaard (Moravia, S., ibid., p. 13; cf.
também Sartre, J.-P., 1987, p. 119). O entusiasmo pela fenomenologia de Husserl e pela
analítica existencial de Heidegger não foi senão o coroamento desse anseio por novas
balizas para a interpretação filosófica do mundo –ainda desvinculada, contudo, de uma
transformação revolucionária desse mundo, no sentido preconizado por Marx em suas
Teses sobre Feuerbach.
Eloqüente nesse sentido é que Sartre tenha voltado de Berlim – cidade em que,
movido pela curiosidade por Husserl e Heidegger, passou um ano de estudos entre 1933 e
34 –, encantado com a irresponsabilidade estudantil de que pôde gozar e com a
fenomenologia, mas totalmente alheio ao cataclismo político que se avizinhava, numa
espécie de "surdez histórica" contrastante com os temores que a estadia, na mesma Berlim,
pouco antes, suscitou em seu jovem colega Raymond Aron, que estudara lá também por um
ano, e que viria, após isso, a introduzir Sartre nos encantos dessa nova forma de filosofar
(Lévy, B.–H., 2001., p. 309).
O torpor apolítico só começaria a ceder com a eclosão da Guerra Civil Espanhola,
em 1937, evento que lhe desperta a faceta de homem de ação, mas que não adormece a de
entusiasta nietzschiano da justificação estética do mundo: "Vem a guerra da Espanha: ele
não a tira da cabeça; dá-se conta, provavelmente, do que está em jogo; e Castor [apelido
71
íntimo com que se referia a Beauvoir] acrescenta, ainda, que esse foi 'o drama que, durante
dois anos e meio, dominou toda a nossa vida"; quando um aluno, apaixonado por questões
políticas, vem–lhe dizer que pretende se alistar nas brigadas internacionais, porém, ele "mal
ouve, toma discretamente algumas notas para um dos contos de O Muro e manda–o
consultar [Paul] Nizan, como se estivesse estipulado ser ele, Nizan, o encarregado, no
pequeno grupo, do ministério da política, do engajamento, das coisas sérias – chegaria até a
dizer do 'espírito de seriedade'", diz Lévy (ibid., p. 309). O comentador alude aqui ao
conceito sartriano de esprit du sérieux, que Sartre define como uma postura de auto–
demissão do homem em relação a suas próprias prerrogativas éticas, enquanto criador dos
valores que dão sentido à sua própria vida, e, assim renunciando à subjetividade, se quer
deixar determinar pelo objeto ou por alguma objetividade pretensamente autônoma. É
“sério”, em suma, quem atribui mais realidade ao mundo do que a si mesmo, segundo a
fórmula de O Ser e o Nada (apud Bornheim, G., 2003, p. 125). São “sérios”, por exemplo,
ainda segundo o autor afirma no tratado de 1943, o materialista e o revolucionário, pois
“eles se conhecem a partir do mundo que os esmaga e querem mudar esse mundo que os
esmaga. (...) Marx colocou o dogma primeiro do sério quando afirmou a prioridade do
objeto sobre o sujeito, e o homem é sério quando se toma por um objeto” (apud Bornheim,
G. ibid.).
Essa seriedade, claro, é constitutiva do que Sartre chama de conduta de má–fé, e se
coloca, no mínimo, como um fator de tensão, como um aguilhão derrisório na carne de todo
projeto de “engajamento” político que pretenda fazer da História e das “causas” coletivas
um ponto de vista alienadamente autônomo, em face do qual o próprio “engajado” se deixa
subsumir como peça de uma engrenagem maior. É interessante como este aspecto do
pensamento de Sartre se coaduna com a sua "adesão juvenil ao nietzschismo", segundo a
expressão de Lévy, adesão essa que parece confirmada, diga-se de passagem, por
depoimentos como o do próprio Sartre, que disse ter, aos 16 anos, aceito "com prazer" o
convite do amigo Paul Nizan para que "se tornassem super-homens", e o de Aron, segundo
o qual foi numa noite em que falavam sobre filosofia nietzschiana que Sartre teve um
primeiro insight da oposição entre o "Para–si" e inércia absurda das coisas (ibid., p. 147).
Não é o caso aqui de encetar comparações mais detalhadas entre dois autores cujos
sistemas filosóficos são tão complexos e singulares por si mesmos. Mas é cabível notar um
72
"pathos" nietzschiano – de resto, onipresente na geração do autor, mesmo que em diferentes
direções e releituras teóricas e ideológicas (ibid., p. 148s) – na ênfase que o Sartre pré-
marxista e pré-revolucionário confere à revolta contra a História "séria", à solidão superior
de um Roquentin perante o "rebanho", e sua convicção nas dimensões libertárias do
imaginário.
Isso ajuda, talvez, a mais bem aquilatarmos a sugestiva observação de Lévy: "Sartre,
é certo, não deveria ter dado textos à 'Comoedia'". Ele deveria ter evitado (...) qualquer
contato com as 'publicações da zona ocupada'. Talvez tivesse tido mais tempo, fazendo
menos teatro, para protestar mais (...) contra a destituição de seus colegas, os professores
judeus dos liceus Pasteur e Condorcet (Lévy, B.–H, ibid., p. 326).
Se, para a ideologia de Vichy, a guerra consumou uma “Queda” moralmente
prefigurada nos pecados da Terceira República, algo análogo, mas noutro sentido, se dá
biograficamente para Sartre: ele é expulso do “paraíso” da liberdade do dândi, vivendo a
“queda” nos sofrimentos da História, em meio aos quais repensará a liberdade como
libertação não só existencial e subjetiva – próxima à inofensiva “liberdade de espírito”
satirizada em As Moscas–, mas coletiva e política; o evento fundador da obra sartriana
madura foi a detenção do autor no Stalag XII D, campo de prisioneiros na cidade alemã de
Trier, perto da fronteira do principado de Luxemburgo (cf. Renaut, A., 1993, p. 38ss).
Sartre, que servia ao Exército francês na Segunda Guerra, foi feito cativo e ficou ali
entre agosto de 1940 e março de 1941. Esboçar, em traços gerais, a experiência de Trier e a
subseqüente entrada do autor na Resistência, ao voltar a Paris, é nossa tarefa agora.
Cativeiro e Resistência
Até sua prisão, a guerra foi para Sartre (convocado para integrar a 70ª Divisão de
Infantaria do Exército, no Setor de Meteorologia) uma vivência "kafkiana", como ele diz
em carta de dezembro de 1939; uma "guerra sem data para ser começada, como certas
condenações do Processo" (apud Cohen–Solal, A., 1986, p. 189).
O que predomina nos primeiros meses da sua mobilização, segundo as cartas e o
diário mantido na época, é uma sensação de absurdidade geral. Coisas que para muitos
73
deveriam ser tomadas com o máximo "espírito de seriedade" gravitavam, diante de seus
olhos, num "clima" de estranhamento, bizarrice, déficit de realidade que nos lembra muito
as andanças de Antoine Roquentin por entre aquela "outra espécie" a que os homens
pareciam reduzidos ante seu olhar enojado.
"Eu estava, portanto, ali, com roupas militares, que nem me serviam direito, no
meio de outras pessoas que usavam a mesma farda que eu; tínhamos uma relação que,
embora não fosse de família nem de amizade, era no entanto muito importante.
Desempenhávamos funções que nos haviam sido designadas por autoridades superiores.
(...) Eu me vi subitamente no meio de uma massa, onde me deram um papel definido e
idiota para representar e que eu desempenhava diante de outras pessoas [os alemães],
vestidas como eu com trajes militares, e que tinham a função de desmanchar tudo o que
fazíamos e, no fim, atacar" (depoimento a Simone de Beauvoir, A Cerimônia do Adeus,
apud Cohen–Solal, ibid., p. 191).
Essa "guerra estranha" será para ele, na definição da biógrafa Annie Cohen–Solal,
"um período de férias inesperadas que vão passando sem finalidade nenhuma, sem
movimento, num clima melancólico de confusão, monotonia e branda passividade. (...)
Roupas ridículas, gestos incertos, colegas de dormitório insólitos e antipáticos" (ibid. p.
190–191). Foram sete meses de “espera” ociosa na qual o único adversário a contornar era
o tempo; tal adversário, ele conseguia conjurar com uma mescla de atitudes que incluíam o
isolamento pessoal – tanto quanto possível sob condições de confinamento –, comentários
levianos e, sobretudo, a escrita, não só de seu diário – postumamente publicado com o título
de Carnets de la Drôle de Guerre –, como também do romance A Idade da Razão. Sartre
tinha tempo até para flertar com a idéia de escrever uma peça de teatro.
A ofensiva alemã leva à Ocupação e ao Armistício com o marechal Pétain, assinado
no mesmo dia (21/06/1940) do 35º aniversário de Sartre e da captura dele e de seu grupo
em Padoux.
A captura traria consigo um flagrante "sui generis" da condição humana, segundo
nosso autor admitiria: "Saímos marchando, sem saber muito bem o que iam fazer conosco.
Havia alguns que acreditavam que seríamos soltos oito ou quinze dias depois. (...) Nos
levaram para um quartel de polícia, onde mais uma vez aprendi o que é a verdade histórica:
74
que eu era alguém que vivia num país exposto a vários perigos e, como tal, ficava também
exposto a eles. Havia lá uma espécie de união entre os homens que ali se encontravam" (A
Cerimônia do Adeus, apud Cohen–Solal, A., ibid., p. 206).
A essa percepção da "união entre os homens" corresponde uma mudança de postura
de que um colega de divisão deu testemunho: segundo este cabo, já na iminência de serem
presos, quando o grupo sabia que estava cercado pelos alemães, "Sartre, que até então vinha
se mostrando agressivo em relação a muitos soldados, parecia agora possuído de verdadeiro
instinto de solidariedade para com os outros" (ibid., p. 206–207).
Nos meses de cativeiro que se seguiriam, a princípio num quartel em Lorena, entre
Estrasburgo e Nancy, e depois em Trier, acentuar-se-á sua consciência da História como
"destino em comum" e base da intersubjetividade humana
8
. Em As Palavras, mais de vinte
anos depois, Sartre mostra o quão o Stalag XII D foi determinante para que a figura
melancólica do "rebanho" humano, marcante em A Náusea, desse lugar a uma nova
valoração das experiências coletivas. Valoração, porém, não sem precedentes na remota
infância do autor.
8
Diferentemente da apreciação que a história podia merecer no horizonte filosófico de A Náusea, por
exemplo. Narrativa do "desvelamento da existência como contingência" (Leopoldo e Silva, F., 2004, p. 81s),
A Náusea expõe o “rito iniciático” de um homem, Antoine Roquentin, que pouco a pouco se apercebe do
caráter arbitrário e inconsistente do mundo dos “utensílios”, dos objetos controláveis, classificáveis,
disponíveis à experiência cotidiana; irrompe então a “existência” absurda, gratuita, “de trop”, contingente e
indiferenciada de coisas impermeáveis aos doravante vãos esforços humanos de compreensão e ordenamento.
A antiga firmeza das coisas desmorona. O ser delas não era senão a projeção de um conjunto de
"expectativas" de que ele se nutria (ibid., p. 82). Ora, sintomaticamente Roquentin é um historiador; e a crise
de Roquentin é também o colapso de seu tipo de "expectativa" inerente a esta profissão: é insustentável a
idéia de uma explicação, muito menos a de justificação do presente pelo passado, ou ainda a confiança na
nossa capacidade de apreendê–lo tal como foi. Um "livro de história", diz Roquentin, "fala do que existiu –
jamais um ente pode justificar a existência de outro ente. Meu erro foi querer ressuscitar o Sr. de Rollebon"
(Sartre, J.-P., 1986, p. 258). "O fato de poder reencontrar as coisas do mesmo modo que eram antes faz da
sucessão uma seqüência estável na qual o sujeito encontra também a referência para a continuidade de si
mesmo. É por isso que o acúmulo do presente e a perda do passado pesam decisivamente na metamorfose do
próprio Roquentin. Há uma mudança na qualidade da vida conforme ela seja sentida como continuidade entre
passado e presente ou como um presente desconectado do fio da sucessão. (...) de nada adianta Roquentin
lembrar o passado: isso não torna o presente mais necessário, Roquentin tem o hábito de narrar a sua vida
porque assim os fatos dão a impressão de um encadeamento conseqüente" (Leopoldo e Silva, F., 2004, p. 82–
3). Em passagem belíssima do romance, a memória é comparada a uma breve fulguração de luz nos vidros –
antes e depois disso, opacos – de um veículo. Como lembra Gerd Bornheim (2003, p. 6), tanto a História
como a intersubjetividade se colocam para o Sartre de então como falsos antídotos para o absurdo; "a
existência é sem memória", declara Roquentin. Bornheim não deixa de assinalar, neste trecho de seu estudo
sobre Sartre, que as disparidades entre A Náusea e Crítica da Razão Dialética, escrita duas décadas depois,
são particularmente sensíveis neste âmbito, o da apreciação da História.
75
É interessante, nesse contexto, abrirmos breves parênteses de caráter biográfico.
Sartre conta, em determinada altura de As Palavras, as suas lembranças de menino sobre os
primeiros contatos com o cinema. Ele descreve a precariedade tecnológica e os
"desconfortos igualitários" que, ao contrário da pompa e hierarquia das platéias do teatro
burguês, marcavam as sessões de cinema em salas de bairro como a Panthéon, próxima de
sua casa. "Tomei aversão pelas cerimônias, adorei as multidões; vi multidões de toda
espécie, porém nunca mais encontrei aquela nudez, aquela presença sem recuo de cada um
em todos, aquele sonho desperto, aquela consciência obscura do perigo de ser homem,
exceto em 1940, no Stalag XII D" (Sartre, J.-P., 2000, p. 89).
Se as "cerimônias" do teatro burguês eram escolas do distanciamento social –vimos
como a reunificação do público, a superação de seu encapsulamento solipsista estimulado
pela civilização burguesa, é uma das metas precípuas do rito teatral para nosso autor–, o
cinema, em seus primeiros tempos, ainda podia entusiasmar o menino Jean-Paul pela
"proximidade" que gerava nos espectadores entre si – a sensação era de que estavam
reunidos como que por uma "catástrofe", segundo ele – e com a obra em exposição. O autor
confessa seu encantamento pelo cinema (ou aos experimentos cujas "deficiências" eram
para a nova arte uma espécie de blindagem contra o risco de assimilação precoce pela
"seriedade" burguesa) também pelo ar de "divertimento de feira", pelos "costumes
popularescos que escandalizavam as pessoas sérias", entre as quais seu todo–poderoso avô,
mescla das imponentes figuras do Victor Hugo e do próprio Todo–Poderoso (Sartre, J.-P.,
ibid. p. 87).
Esse sentido quase "carnavalizante" de transgressão, embora – ou porque – vivida
em precárias condições materiais, parece ser um liame profundo entre, de um lado, as
sessões apertadas no cine Panthéon, na infância do autor, e, de outro, o impacto da
experiência de cativo dos alemães na "lata de sardinhas" de Trier.
Em termos bastante específicos, é claro, Sartre vivenciou no campo alemão uma
"conversão" que poderíamos comparar àquela que levara outro expoente do estetismo,
Oscar Wilde, a, como diz em De Profundis, se dispor a ir além dos prazeres fúteis, do "lado
ensolarado do jardim" da vida, e adentrar as "sombras e escuridão" em que beleza e dor
coabitam em paradoxal unidade. Albert Camus afirma no belo ensaio "O Artista na Prisão"
76
(1952): "Quando Wilde lavava o chão de sua cela, com suas mãos que só ferira até então ao
contato de flores raras, nada do que escrevera podia socorrê–lo, nada do que fora escrito
sob o sol, a não ser o grande grito em que o gênio faz resplandecer a infelicidade de todos.
(...) Em sua mais alta encarnação, o gênio é aquele que cria para que seja honrado, aos
olhos de todos e a seus próprios olhos, o último dos miseráveis no fundo da cela mais
escura" (Camus, A., 1998, p. 74–75).
Wilde contou que as agruras do cárcere de Reading lhe trouxeram "lições
escondidas no coração da dor, normalmente inacessíveis a clérigos" e a pessoas habituadas
a "usar frases sem sabedoria". O testemunho de Wilde quanto ao valor da ruptura das
estufas mimadas do seu estetismo – rebelde em relação à mentalidade vitoriana, mas ainda,
de outro ponto de vista, algo raso, alheio aos suplícios que sangram a História – ajuda a ver
mais do que retórica engajada no duro reconhecimento de Sartre: "O mais belo livro do
mundo não salvará da dor uma criança: não se redime o mal, luta-se contra ele", ou ainda:
"Diante de uma criança moribunda, A Náusea não tem valor algum" (apud Mészáros, I.,
1991, p. 16–17).
A comparação com o autor de O Retrato de Dorian Gray é insuficiente, porém, ao
sugerir uma dramaticidade que não houve, ao menos nos mesmos termos, nos meses de
Sartre em Trier. Não faltaram ali, é claro, desconfortos e privações: pulgas, percevejos, frio
severo, alimentação precária, horários rígidos, agressões morais e físicas etc. Mas, como ele
disse em entrevista a John Gerassi, não foram acessos de depressão, tristeza ou rancor o que
mais sentiu ali; maior que tudo isso foi a improvável felicidade da "fusão com a massa",
num tipo de vivência que, no seu aspecto de confraria masculina e reclusa, nunca mais
tivera desde os tempos de École Normale (cf. Cohen–Solal, A., ibid., p. 211; Gerassi, J.,
1990, p. 178). Simone de Beauvoir relata, nessa mesma direção: “Sua experiência de
prisioneiro o marcou profundamente: o ensinou a solidariedade; longe de se sentir
humilhado, ele tomou parte na alegria da vida comunitária. (...) Perdido na massa, um
número entre outros, ele experimentou uma imensa satisfação por atingir, a partir do zero,
seus empreendimentos. Ele conquistou amizades, impôs suas idéias, organizou ações,
mobilizou todo o campo para montar e aplaudir, no Natal, a peça que escrevera contra os
alemães, Bariona. Os rigores e o calor da camaradagem denunciaram as contradições de
seu anti–humanismo (...)" (apud Mendonça, C. D., 2001, p. 288–9).
77
Suas atividades no Stalag iam de lutas de boxe às intensas conversações filosóficas
com os padres, as quais eram pontuadas por aulas que ele ministrava sobre Heidegger e por
acirrados debates em torno do problema da fé. Um desses padres, Marrius Perrin, foi quem
falsificou a caderneta militar de Sartre, assim permitindo, sob o pretexto de uma suposta
inaptidão médica do preso, a sua liberação. A fuga, diria o filósofo depois, foi mais por
sensatez do que por vontade; ele guardaria para sempre uma nostalgia do que, para evocar a
imagem paradoxal de Caetano Veloso, era uma verdadeira "dulcíssima prisão" do amor. Tal
sentimento, ele não o nutria pelo cativeiro em si, mas, sim, pelo que ali aprendeu sobre a
vida em comum, em suas ambivalências de fraternidade e poder, brutalidade e injustiça.
Dulcíssima prisão do amor, e também do palco: ele afirma a Gerassi (ibid., p. 177) que até
retardou seus planos de fuga para, após preparativos em ritmo febril, consumar a
encenação, no Natal de 1940, de sua peça Bariona, referida por Beauvoir na citação
anterior e decisiva para o propósito e o sentido do fazer teatral para Sartre, como
mencionamos anteriormente.
Um "desterrado em sua própria terra". Leitmotiv em tantas variantes de ficção e
filosofia associadas ao existencialismo, como Kierkegaard, Kafka, Nietzsche, Camus, essa
é a condição em que Sartre se vê ao retornar a Paris, no início de abril de 1941. Mas agora,
paradoxalmente, esse estranhamento tem como pano de fundo não a irredutível solidão do
eu, essa variante do que Marx chamava ironicamente de "robinsonada", mas os encantos da
vida comunitária deixada para trás dos portões do Stalag.
Um sentido de experiência subjetiva, liberto do peso do individualismo burguês,
tende a buscar mediações entre a individualidade e o coletivo, não mais os vendo como
pólos antinômicos. É essa busca das conexões entre o particular e o universal que Sartre
enceta, teórica e praticamente, a partir de sua volta de Trier; uma busca que o obsedará até
o fim da vida.
No ensaio "Les Peintures de Giacometti", Sartre diz que em Trier teve “a
experiência da proximidade absoluta; a fronteira de meu espaço vital era minha pele; dia e
noite eu senti contra mim o calor de um ombro ou de um flanco. Isso não me incomodava:
os outros também eram eu". Na primeira noite de liberdade em Paris, "estrangeiro na minha
cidade natal, não tendo ainda reencontrado meus amigos de outrora, eu empurrei a porta de
78
um café. Logo tive medo – ou quase isso –, eu não podia entender como esses prédios
atarracados e barrigudos podiam conter semelhantes desertos; eu estava perdido; os raros
clientes me pareciam mais distantes que as estrelas; cada um deles tinha o direito a um
grande lugar estofado, a toda uma mesa de mármore e era preciso, para lhes tocar,
atravessar o piso de 'parquê lustrado' que me separava deles. Se me pareciam inacessíveis,
esses homens que cintilavam bem à vontade naquela redoma de ar rarefeito, é que eu não
tinha o direito de pôr a mão sobre seus ombros, sobre sua coxa, nem de lhes chamar de
'cabecinha'; eu tinha reencontrado a sociedade burguesa, era preciso reaprender a vida 'à
distância respeitosa' e minha súbita agorafobia traía uma vago lamento pela vida unânime
da qual eu acabava de me privar para sempre" (Sartre, J.–P., 1964, p. 348–9).
A Paris que Sartre reencontra mantém e reforça os índices –precípuos à civilização
burguesa– de uma comunicação bloqueada e clivada por distâncias e separações. Em
verdade, o trauma da Queda, embora reconfigurasse dramaticamente a posição geopolítica
e as condições econômicas de um país agora "satélite" de outro, não chegou, como lembra
John Gerassi, a ser" tão má assim" para a maioria dos burgueses parisienses. Afora a
estranheza das fardas verde–cinza, das suásticas e de inscrições de trânsito que se
avolumam indicando sobre como chegar ao Kommandatur ou ao Deutsches Institut, o fato é
que "o metrô funcionava bem, os teatros faziam sucesso, os bares e restaurantes viviam
cheios", e "os burgueses comiam bastante bem, graças principalmente a suas ligações no
campo e ao mercado negro " (Gerassi, J, ibid., p. 179).
Era prioridade do Reich colocar a França integralmente na linha alemã, daí os
investimentos maciços numa rede multi–institucional de vigilância e censura, que vitima
obras de autores como Malraux, Nizan e Denis de Rougemont.
Já vimos as relativas "comodidades" de que Sartre se valeu para montar suas peças,
trabalhar para a indústria do cinema, escrever em veículos da "situação", ainda que o
conteúdo dessas obras dificilmente pudesse ser lido como libelos fascistas ou
colaboracionistas, ao contrário; tudo isso, porém, afora a fama de discípulo do "nazista"
Heidegger e a imagem antiburguesa transmitida por obras pré–guerra como A Náusea,
ajuda e explicar que Sartre tenha sido poupado tanto no "Índex" baixado em setembro de
1940 quanto no de 1942.
79
De fato, muitos setores da cultura nacional tiraram proveito de relações amistosas
com o status quo de Vichy:Tino Rossi cantou na ópera; Maurice Chevalier e Edith Piaf
fizeram turnês pelos campos de prisioneiros, sob patrocínio dos carcereiros; as atrizes
Danielle Darrieux e Viviane Romance se davam ao luxo de esquecer por completo os
prisioneiros, em suas "promenades" pela Alemanha, na qual também os artistas plásticos
Derain, Vlaminck e Maillol recebiam gentis condecorações dos conquistadores; os cinemas
viviam lotados –o público era o dobro do que nos anos imediatamente anteriores à guerra,
segundo Henry Rousso [1992, p. 73], alcança–se a notável marca de 220 longas–metragens
e 300 curtas produzidos em três anos, embora o cinema americano estivesse
terminantemente proibido, assim como o jazz, por terem o que um jornal colaboracionista
chamava de "sabor judeu-negro" (Gerassi, J., ibid., p. 179).
A surpreendente afluência da vida cultural em tempos tão sinistros se traduzia em
salas de cinema e de teatro lotadas e níveis recorde de empréstimo de livros nas bibliotecas
públicas (Rousso, H., 1992, p. 73). Além disso, as taxas de suicídio caem, e as da
natalidade, explodem; “o baby–boom não data de 1945, como se costuma acreditar, começa
entre 1942 e 1943, em plena guerra. A leitura, o cinema e a rádio são meios de distração e
de evasão que permitem às vezes recolher uns fiapos de informações, mesmo que parciais e
mentirosas (...) Num país esmagado e isolado do mundo, o consumo cultural de massa, que
decolou antes da guerra, se torna um comércio social de primeira importância” (ibid., p.
73–4).
Essa fome de negação imaginária do "princípio da realidade" tem uma ilustração
característica, narrada por Rousso na seguinte passagem de sua excelente crônica dos
"années noires" da Ocupação: eram fins de março de 1944 e, em pleno período de intensos
bombardeios sobre Paris, ocorre uma final de rúgbi no Parc de Princes; “ao soar de um
alerta aéreo, apenas dois oficiais alemães correm para os abrigos, enquanto a massa
impaciente grita ‘Sentados! Sentados!’. Para o bem e para o mal, o espetáculo, sob a
Ocupação, continua” (ibid., p. 79). Erraríamos em ver neste cultivo do espetáculo, porém,
necessariamente um escapismo. Um jornalista alemão, Albert Buesche, mostra
sensibilidade para este ponto, num artigo em traça um balanço da temporada teatral 1942–3
em Paris. Publicado a 12/09/1943 em Das Reich, semanário berlinense tido como órgão
oficial de Goebbels, o texto traz comentários perspicazes acerca da "grande popularidade"
80
do teatro em Paris, e das funções a que ele se prestava ali, quais sejam, a de "evasão" e a de
"tribunal onde se discutiam as idéias que seriam proibidas aos franceses na vida real". O
teatro, em suma, era a talvez a única válvula de escape para os "sentimentos políticos
represados"; o aplauso após as apresentações, nesse contexto, especialmente em peças
devotadas à juventude universitária, tinham magnitude bem maior que a de reconhecimento
estético ou retribuição a um entretenimento: era sim uma forma de "manifestação" (cf.
Galster, I., 1990, p. 858–9). As Moscas, que foi uma dessas peças de apelo maior entre os
jovens estudantes, parece ter fruído desse mesmo código oblíquo de engajamento na crítica
do presente.
Annie Cohen–Solal, por sua vez, mostra o regozijo de celebridades do meio literário
alemão – tais como Ernst Jünger, Karl–Epting, Karl–Heinz Bremer, e Gerhardt Heller – em
poder usufruir os prazeres de Paris; eles "degustam como artistas, como estetas, vinhos
finos, champanha e outros foies gras: etnólogos civilizados entregues, deliciados, aos
costumes indígenas" (Cohen–Solal, A., ibid., p. 225).
Da parte da elite nativa, esses "senhores coloniais" encontram um espírito prestativo
notável, que ultrapassa as raias do cinismo em pronunciamentos como o do presidente da
associação dos editores da França, René Philippon. Falando das listas de livros proibidos
(cerca de 2.000, o que correspondia a 859 autores, no final de junho de 1941), ele chega ao
ponto de afirmar: "Essas disposições, que não criam grande problema para a atividade
editorial da França, possibilitam o desenvolvimento do pensamento francês, bem como
estimulam sua missão civilizatória ao promover a união entre os povos" (apud Gerassi, J.,
ibid., p. 180).
A desarticulação da atividade intelectual crítica, com o exílio de baluartes como
Malraux e Gide, se juntava a uma oposição política igualmente dispersa, sem fóruns
institucionais, e restrita a iniciativas isoladas e individuais de "resistência". Esta palavra,
aliás, se firma como mote da reação aos alemães já em dezembro de 1940, denominando
um panfleto clandestino lançado por uma "comissão nacional de salvação pública":
"Resistir é o grito que sai de todos os corações nesta angústia provocada pela derrocada da
pátria" (cf. Cohen–Solal, ibid., p. 225).
81
Sartre, por seu turno, volta do Stalag também imbuído da necessidade de se incluir
em um movimento apto a, se preciso pela violência, enxotar as forças ocupantes do país.
Sua determinação desconcerta as pessoas mais próximas, como Simone de
Beauvoir; ela se surpreende, por exemplo, com o "moralismo" político com que o
companheiro lhe repreende por ter pragmaticamente assinado um documento oficial em que
jurava não ser judia nem maçom. Estava patente que ele não voltara a Paris para meramente
fruir das delícias da liberdade. "Existir" era para ele uma meta de vida e um horizonte de
reflexão doravante indissociáveis de um verbo que até soa parecido, "resistir”.
Nas condições amorfas dos primeiros tempos da luta anti–Ocupação, a militância de
Sartre encontrou grande parte de sua efêmera viabilidade e de seu posterior limite. Tal
participação, como se sabe, ganhou corpo sobretudo no movimento Socialismo e
Liberdade, criado por ele e pelo amigo Maurice Merleau–Ponty, e que reúne um heteróclito
círculo de colaboradores, da "família" de Sartre – nomes como Beauvoir e Jean Pouillon – a
estudantes da École Normale e da Sorbonne.
"Batizamos nosso grupo de Socialismo e Liberdade", declarou Sartre em entrevista
a Gerassi em 1971, "porque tinha dois objetivos: lutar agora pela nossa liberdade e fazê–lo
na esperança de estabelecer uma nova sociedade coletiva em que todos nós seríamos livres,
porque ninguém teria o direito de explorar ninguém. E nós precisávamos lutar porque os
americanos estavam chegando. Tínhamos de fazer com que a retirada dos alemães fosse
difícil e sangrenta, para demonstrarmos que éramos capazes de substituí–los no poder e
não, depois que os alemães partissem, sermos governados por outro tipo de Gauleiter
americano. É claro que éramos todos intelectuais pequeno–burgueses, e a única coisa que
sabíamos era escrever" (apud Gerassi, J., ibid., p. 183).
E de fato escreveram muito. E não apenas panfletos. Sartre chegou a redigir o que,
em suas palavras, seria uma "constituição socialista" para a França do pós–guerra. De
extrema abrangência, tocando em pontos que iam do serviço militar à política monetária, a
"Carta", diriam depois ex-companheiros do grupo, primava pelo virtuosismo verbal e pela
inconsistência programática.
Simone Debouti, por exemplo, encarregada de levar o documento para o sul francês
livre, e que o destruiu durante a viagem, no toalete do trem, com medo de ser revistada (as
82
outras cópias do texto também seriam depois consideradas perdidas), diz que se tratava de
uma mera "profissão de fé" repleta de "idéias inteiramente proudhonianas e totalmente
anacrônicas" (Cohen–Solal, A., op. cit., p. 232–3).
As acusações de inoperância do Socialismo e Liberdade não deixam de ser em
grande parte verdadeiras, como o próprio Sartre reconheceu. Embora tenha saltado, em
poucos meses, para um total de 50 integrantes, o fato é que o grupo esteve desde sempre
marcado por contradições ideológicas internas, pelo primarismo e imprudência de
estratégias e, em suma, pelo defeito de, usando de terminologia sartriana, pôr o "gesto"
cênico-oratório à frente da sóbria conjugação de teoria e prática exigida pelo "ato"
orientado por resultados (cf. Cohen–Solal, ibid., p. 231s).
O próprio alcance da pretensão embutida no nome do grupo talvez seja indicativo da
imprecisão bem-intencionada, sim, mas fatal para um grupo que quer se credenciar a uma
luta de curto prazo como aquela. A entrada de Stálin na guerra, em junho de 1941, com o
fim do pacto germano-soviético, empurra o Partido Comunista francês – tutelado pelo
Kremlin – para a Resistência, fato que, por seu turno, faz com que movimentos como o de
Sartre, sem a mesma consistência logística e ideológica do PC e das forças gaullistas,
resvalassem para uma duvidosa "terceira via" em relação àqueles dois pólos antagônicos.
Como explica Jean Pouillon, num dos poucos testemunhos de defesa retrospectiva
do Socialismo e Liberdade por ex-integrantes do grupo, "não éramos maquisards [isto é,
integrantes do maquis, termo originalmente referido ao matagal na Córsega em que se
escondiam adeptos da luta armada pela libertação da França] em Paris, apenas um grupo de
amigos que concordava em ser antinazista e em se comunicar, anonimamente, com os
demais. Aliás, na hora em que os movimentos de Resistência começaram a se estruturar,
um grupo como o nosso, isolado, sem contatos externos, não pôde mais se manter. E depois
o maior interesse dos nossos panfletos não estava mais na própria existência do que no
conteúdo?" (Cohen–Solal, ibid., p. 239).
Já o casal Jean–Toussaint e Dominique Dessanti tem uma opinião bem menos
amena: "Sartre se perdeu nas areias da ação, porque não dispunha de preparo, competência
nem meios para concretizar o projeto clandestino que havia delineado". George Chazelas,
outro ex–companheiro, por sua vez, afirma que aquele primeiro grande "gesto" do
83
engajamento sartriano "em nada contribuiu para eu levar a sério os intelectuais. Sartre tinha
a seu favor um potencial enorme: um nome já célebre, muita gente disposta a segui–lo, mas
que ele não soube orientar, quando estava muito mais qualificado para isso do que os
outros. Desde o começo me pareceram pueris: nunca se davam conta, por exemplo, do risco
que seus falatórios ofereciam para o trabalho alheio... E, se haviam aprendido certas
técnicas de raciocínio na universidade, em todo caso, frente à ação política eu lhe garanto
que não sabiam refletir" (Cohen–Solal, ibid., p. 241).
A pá–de–cal para o Socialismo e Liberdade veio com o fracasso do périplo de Sartre
e Beauvoir pelo sul do país, no verão de 1941. Andando de bicicleta por cidades como
Marselha, Grenoble, Lyon e Narbonne, se puseram à caça da adesão de personalidades
como Gide e Malraux. O desânimo do primeiro, a espera do segundo pelos tanques russos e
americanos – os únicos, ele avaliava, capazes de alguma ação efetiva àquela altura –, fazem
Sartre voltar a Paris de mãos vazias e sem cartas na manga que evitassem a extinção do seu
grupo. Em outubro de 1941, quando inicia a criação de As Moscas, ele acabara de renunciar
definitivamente às atividades resistentes do grupo (Noudelmann, F., 1993, p. 17–8); data da
mesma época o início da composição de O Ser e o Nada (cf. Mendonça, C. D., 2001, p.
288). Mas, como ressalva Noudelmann, "a escritura é portanto um recuo, não uma
renúncia. O espírito resistente de Sartre jamais enfraqueceu, e todos os seus escritos trazem
essa marca" (ibid., p. 18). Simone de Beavoir diz que Sartre passa a ter na escrita da peça "a
única forma de resistência acessível", e por isso se apega a tal tarefa "obstinadamente"
(apud Galster, I., 1990, p. 845). E, de fato, não só As Moscas, como o próprio O Ser e o
Nada, viriam a ser bem mais do que testemunhos da grandeza artística e filosófica de seu
autor; trata–se de dois documentos de indubitável valor político contestador; sobre o grande
tratado de 1943– que também é publicado quase simultaneamente à aparição da peça–,
Cohen–Solal afirma: “O apelo que faz [neste livro] à autenticidade e à responsabilidade, é
numa França nazista que ele proclama em alto e bom som. Sua moral de escritor, é sob a
pressão desvairada e imediata do amordaçamento cotidiano que consegue desenvolvê–la”
(Cohen–Solal, A., ibid., p. 254–5).
84
Um “escritor que resiste”
"Escritor que resiste" e não "resistente que escreve", segundo definição de si mesmo
confidenciada a John Gerassi (ibid., p. 186), Sartre experiência na época um tipo de
engajamento que já esboçamos anteriormente, e que parece bem captado, embora com um
desnecessário tom de queixume, por um crítico que definiu tal "compromisso" político
como fruto muito mais de uma "necessidade filosófica de integrar a História em seu
pensamento do que um verdadeiro interesse espontâneo" (depoimento de Raoul Lévy, apud
Cohen–Solal, A., ibid., p. 241).
Bernard–Henri Lévy é esclarecedor, a este respeito, quando mostra que, no Sartre
daquele período, a política se configura sob o filtro de categorias metafísicas mais gerais,
supra–históricas. Vide, por exemplo, a noção de "burguês", que, juntamente com a de
"espírito de seriedade" e a de "salaud", se traduz como "atitudes existenciais, modos de ser
ou de instalação no Ser, perfis ontológicos que não nascem tão-somente em certo tipo de
sociedade, nem morrem com ele" (Lévy, B.–H., 2000, p. 292).
Seria 'burguesa', por exemplo, uma determinada forma de relação com o passado,
adequada ao indivíduo que, "achando necessária e legítima a ordem presente das coisas,
dedica-se a traçar a dinastia dessa ordem". "É burguês aquele que, como Sylvain Fleurier,
em L' Enfance d' un Chef [um dos contos de O Muro], procura fundar sua certeza de que,
'bem antes de seu nascimento, estava o seu lugar marcado, ao Sol, em Férolles', e que, não
satisfeito em lhe designar um papel, de 'o garantir' para ele, o mundo 'o esperava', se não
desde sempre, pelo menos há algumas gerações. É o lado 'herdeiro' do burguês" (ibid.). A
esse lado "herdeiro" face ao passado, se junta, ainda na configuração do "burguês", a
inclinação conservadora de apropriação do futuro, melhor dizendo, seu seqüestro, mediante
o esforço de garantir que nada mude na ordem de coisas estabelecida, de impedir o mínimo
risco de "alguma alteridade que pudesse vir a tudo revirar".
Essa "ontologização" da política, que Lévy vê como uma das possíveis explicações
do "apoliticismo" de Sartre nos anos 30 –"por que ir militar, apoiar a Frente Popular,
desfilar, quando se tem como alvo uma categoria ontológica?" (ibid.)–, revela–se também
de grande incidência, embora já num registro muito menos imobilista, do ponto de vista
85
político, em alguns ensaios sartrianos dos últimos meses da Ocupação e da guerra.
Coligidos depois em Situations, III–, são textos em que o autor sedimenta suas impressões
sobre o período histórico então em vias de se encerrar, e nos dão pistas fundamentais para
compreendermos referências e alvos implícitos ao discurso de As Moscas. A leitura desses
artigos propicia elementos analíticos e descritivos que darão um suporte indispensável a
que entendamos o mito, ou seja, o “eidos da vida cotidiana”, em que Sartre irá ancorar, em
As Moscas, sua reflexão ficcional sobre os dilemas da França ocupada, em particular sobre
o heroísmo da liberdade encarnado na ação dos resistentes.
Temos em foco três textos: "La République du Silence" (1944), "Paris sous l'
Occupation" e "Qu'est–ce un Collaborateur?" (ambos de 1945). Vamos esboçar uma síntese
de suas argumentações tendo em mente dois eixos de articulação: as figuras do "resistente"
e do "colaboracionista". Tais personagens, categorias não meramente político-empíricas, e
sim "ontológicas", no sentido proposto por Bernard-Henry Lévy, têm papel preponderante
no conjunto das reflexões de Sartre sobre a Ocupação, bem como na trama de nossa peça.
O resistente como protótipo da Liberdade
Nossa procura dos vínculos de ontologia e política na apreciação sartriana da
Ocupação começa pela apresentação do retrato que nosso autor oferece desse "personagem"
do resistente. E nos cabe adiantar, desde logo, que ele se afigura como protótipo da
Liberdade. Ou, nas palavras de Cristina Diniz Mendonça, “todos os atributos da liberdade
em LÊtre et le Néant (...) são também atributos da Resistência: tomada de consciência,
responsabilidade, escolha (ou ‘decisão fundamental’, para usar a linguagem de Merleau–
Ponty), Ação heróica, luta dramática contra o estado de coisas vigente, movimento
transformador orientado para o futuro (uma temporalidade que ‘cura’). Essa estrutura da
liberdade em EN é sustentada com os mesmos materiais que sustentam o Mito da
Resistência. Tudo se passa como se a Resistência (...), nascida num momento em que a
liberdade está ‘en sursis’, tivesse revelado para Sartre (assim como para outros de sua
geração) que [segundo uma expressão de Adorno] ‘a liberdade nunca está dada, e sempre
ameaçada’, (O que nosso autor transforma em princípio filosófico: ‘la liberté (...) ne se
conçoit qu’à partir de la perpetuélle menace de sa perte”, Cahiers pour une Morale, p. 340).
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Daí outra ‘revelação’ (que se torna a viga central de EN): a liberdade precisa ser
conquistada na luta, ou melhor, ela é luta –‘une liberté qui lutte’ (EN, p. 454)” (Mendonça,
C.D, 2001, p. 277–8). Vejamos como os escritos sartrianos sobre a Resistência, coligidos
em Situations III, articulam essas representações a um só tempo filosóficas e políticas.
Uma constante nos três textos é a consideração de que os engajados na Resistência
constituíram parcela minoritária da população. Os "verdadeiros Resistentes" foram uma
elite, diz em "La République du Silence". Elite "aristocrática", no sentido rigoroso do
termo, já que os "melhores dentre nós" é que cerraram fileiras no movimento da
Resistência, comentará em "Paris sous l' Occupation" (Sartre, J.-P. 1949, p. 34).
Mas, ainda naquele primeiro artigo, ele revela considerar que tal elite apenas levava
ao extremo certo posicionamento "filosófico" compartilhado por "todos os franceses que, a
toda hora do dia ou da noite, durante quatro anos, disseram não" (Sartre, J.-P., 1949, p. 12).
Lembremos que, na fórmula lapidar de O Ser e o Nada, a “consciência (...) deve
surgir no mundo como um Não” (apud Mendonça, C. D., 2001, p. 275). Inere à liberdade
sartriana certa espécie de recusa fundamental, um apartar-se do "status quo", um desgarrar-
se do rumo previsível e mecânico das coisas. Uma niilização do Ser. Também a categoria
de "opressão", no revés da liberdade, adquire no contexto da França ocupada uma
concreção histórica determinada, sendo, porém, algo que ultrapassa aquele particularismo,
enquanto constante ontológica da realidade-humana.
Os alemães, prossegue Sartre, nos insultavam, nos obrigavam ao silêncio, nos
deportavam em massa –como judeus, trabalhadores, prisioneiros políticos–, nos privavam
de direitos, queriam, com o beneplácito e auxílio dos colaboracionistas nativos, nos impor
uma "immonde et fade visage de nous mêmes" (ibid., p. 11). E é assim que nos incitavam,
inadvertidamente, à descoberta, no esplendor do inumano, do que há de mais humano:
“Uma vez que o veneno nazista corria até nosso pensamento, cada pensamento justo era
uma conquista; já que uma polícia todo-poderosa tentava nos constranger ao silêncio, cada
palavra se tornava preciosa como uma declaração de princípio; já que estávamos
encurralados, cada um de nossos gestos tinha o peso de um engajamento” (ibid.).
A insistência no uso da primeira pessoa do plural indica aqui o ultrapassamento do
horizonte limitado do “eu” em vista de um sujeito coletivo, que se descobre enquanto tal, e
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na sua liberdade própria, sob o enfrentamento de uma opressão também coletivamente
vivida.É grande a afinidade aqui com o conceito de “Nós–objeto” discutido, em termos
ontológicos mais abstratos, em O Ser e o Nada. “Originalmente”, diz Sartre no tratado de
1943, “a pertinência ao Nós–objeto é sentida como uma alienação ainda mais radical do
para–si [em comparação à alienação implicada pelo para–outro], pois este não é apenas
constrangido a assumir o que ele é para o Outro mas também uma totalidade que ele não é,
embora seja parte integrante dela” (apud Bornheim, G., 2003, p. 108).
O Nós-objeto é uma pertença coletiva produzida pelo fato de que “eles nos olham”,
enquanto que o Nós-sujeito advém da experiência de que “nós os olhamos” (Bornheim, G,
op. cit). O olhar ontologicamente opressivo, que socialmente se traduz como olhar dos
opressores, é que “faz nascer com o seu olhar” a classe econômica oprimida, para além das
condições objetivas compartilhadas por aquela soma de indivíduos. Assim também parece
acontecer com os franceses da era Vichy; uma unidade coletiva entre eles brota – e será
miticamente transposta aos palcos em As Moscas – do fato de serem olhados sob a chave
"identificatória" e generalizante do estigma. Raciocínio análogo, aliás, seria posto em
prática numa ulterior análise sartriana sobre a questão judaica (Sartre, J.-P., 1973).
O conceito de nós-objeto, como salientado ao final do capítulo anterior deste
trabalho, pode ser uma das chaves para entenderemos como o confinamento (Szondi) pode
se constituir experiência prefiguradora do engajamento, ou seja, de como o hobbesianismo
ontológico do Para-Outro pode ensejar algum tipo de transcendência rumo a certa
identidade coletiva, um “universal singular”, insinuado na “idéia (de clara ressonância
hegeliana) de um ‘eu’ que é nós’ (EN, p. 464), isto é, do singular que, atravessado pelo
universal, supera sua singularidade ao encarnar as aspirações de todos” E, para esses
esboços do conceito de “universal singular”, já identificáveis no pensamento sartriano
naquele período, tem lugar de proa a retomada, em novas bases, da noção tradicional de
herói: “(...) se o indivíduo não é mais soberano, o herói não pode ser um sujeito isolado,
mas um ‘universal singular’” (Mendonça, C. D., 2001, p. 281), que nasce no bojo daquilo
que Simone de Beauvoir chamaria, referindo–se justamente ao contexto da Resistência, de
uma comunidade de situação (communauté de situation), conceito que tem estatuto dúplice:
um "misto de experiência vivida e experiência estética", no dizer de Cristina Diniz
Mendonça (cf. Mendonça, C.D., 2001, p. 289).
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É interessante pensar que a reflexão e prática teatrais de Sartre em certo sentido
acirram tendência posta um tanto à sombra, no corpo sistemático da doutrina
existencialista, por conceitos como o de Para–outro. Vimos que o fazem ao explorar as
possibilidades de comunhão imaginária próprias ao rito teatral; mas o fazem também, no
caso específico do enredo de As Moscas, pela retomada da lenda de uma família (génos)
“maldita”, os Atridas (ou Tantálidas) – eis uma unidade coletiva fundada, tamm ela, no
estigma, no destino comum da perpetuação, ao longo das gerações, da “impureza” religiosa,
da desobediência aos desígnios divinos e cósmicos da justiça e da moral.
Voltando ao ensaio de Sartre, vemos que ele afirma que situações–limite como a da
Ocupação são especialmente propícios à desocultação daquilo que a vida rotineira, em
tempos menos catastróficos, tende a mascarar: nossa finitude, nossa contingência, e, nessa
medida, toda a falta de um sentido último apaziguador para a vida: “O exílio, o cativeiro, a
morte sobretudo que se mascaram habilmente nas épocas felizes, nós fazíamos delas
objetos perpétuos de nossas preocupações, nós aprendíamos que elas não são acidentes
evitáveis, nem mesmo ameaças constantes mas externas: era preciso vê–las como nosso
lote, nosso destino, a fonte profunda de nossa realidade de homem; a cada segundo nós
vivíamos na sua plenitude de sentido esta frasezinha banal: ‘Todos os homens são mortais’”
(ibid., p. 12).
Daí o aparente paradoxo de uma das mais célebres afirmações de Sartre: "Jamais
nous n' avons été plus libres que sous l' Occupation allemande" (Sartre, J.-P., 1949, p. 11).
Como assinala Cristina Diniz Mendonça, nem bem de paradoxo se trata, mas sim de “um
resultado necessário da concepção sartriana da liberdade (uma elaboração filosófica da
equação política da Resistência (...))” (Mendonça, C. D., p. 350, nota 11). A liberdade surge
no mundo como uma ação resistente, ou seja, uma contradição e subversão do rumo das
coisas, numa “luta heróica contra um estado de não–liberdade” (ibid.).
A dimensão “eidética” da prática subversiva dos resistentes se aproxima, portanto,
de uma das categorias decisivas da mitologia universal, a do herói. O próprio Sartre tocaria,
anos depois, nesta questão, ao afirmar: “O que o drama da guerra me ofereceu, como a
todos os que dele participaram, foi a experiência do heroísmo. Não o meu, é claro –não fiz
mais do que pequenas missões. Mas o militante da Resistência que era preso e torturado
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tornou-se um mito para nós. Esse tipo de militantes existiu, é claro, mas eles
representavam, também, uma espécie de mito pessoal. Seríamos nós capazes de resistir à
tortura? O problema então era unicamente o da resistência física – não eram as artimanhas
da história ou as sendas da alienação. Um homem é torturado: que fará ele? Ou fala, ou se
recusa a falar. É isso que quero dizer com experiência do heroísmo, que é uma experiência
falsa. Depois da guerra veio a verdadeira experiência, a da sociedade. mas creio que era
necessário que eu passasse pelo caminho do mito do heroísmo” (apud Mészáros, I., 1991, p.
92).
Claro que juízos de valor retrospectivos reconstroem o sentido do passado na chave
de interesses e compromissos extrínsecos e ele. Mas nessas reminiscências, feitas em 1969
à revista The New Left Review, Sartre nos dá novas pistas sobre a importância do mito, e em
especial do mito heróico, para a visão do “resistente” que transparece na peça As Moscas.
Um heroísmo talvez “abstrato”, diria, de uma ótica marxista, Istvan Mészaros
(ibid.), na medida em que desconsidera a luta de classes e as mediações efetivas requeridas
por uma ruptura histórico–social conseqüente. Um heroísmo, completaríamos nós, trágico,
senão mesmo pessimista, ou de um “otimismo desesperado” – na expressão cunhada por
Sartre em Cahiers pour une Morale (cf. Mendonça, C.D., 2001, p. 278), que transparece em
declarações tais como: “As circunstâncias freqüentemente atrozes de nosso combate nos
levavam a viver, sem maquiagem e sem véus, esta situação dilacerada, insuportável que se
chama a condição humana” (Sartre, J.-P., 1949, p. 11–12). Novamente, vemos uma questão
política se imbricar a uma dimensão ontológica: o “mal” histórico se afigura aqui como
índice de um mal mais radical, atemporal, radicado na realidade–humana enquanto tal.
Prosseguindo em sua descrição ontológico–política do resistente, Sartre anota: “Aos
que tiveram uma atividade clandestina, as circunstâncias de sua luta propiciavam uma
experiência nova: eles não combatiam à luz do dia, como soldados: encurralados em sua
solidão, é o no desamparo, no desnudamento o mais completo que eles resistiam às torturas:
sós e nus diante de carrascos bem barbeados, bem alimentados, vem vestidos que tiravam
sarro de sua carne miserável e a quem uma consciência satisfeita, uma potência social
desmesurada, dava todas as aparências de ter razão” (Sartre, J.-P., ibid.).
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Os resistentes, pois, radicalizavam algo de precípuo à autenticidade existencial: a
consciência insatisfeita, e que não cala a angústia dessa insatisfação com os cobertores da
má–fé (abastardamento da escolha em "destino", da liberdade em "determinação"); uma
consciência assim desobstruída de álibis e anestésicos não mais precisa achar que o estado
de coisas atual deve ser considerado o ideal simplesmente pelo fato de existir, de ter
conseguido se impor.
"Esta responsabilidade total na solidão total, não é o próprio desvelamento de nossa
liberdade? Este desamparo, esta solidão, este risco enorme eram os mesmos para todos,
para os chefes e para os homens (...)" (ibid., p. 13): assim Sartre encaminha um último
argumento fundamental de "La République du Silence": a resistência como paradigma não
só para o sujeito livre, mas também para a vida comunitária livre. Seja em posições de proa,
seja simplesmente levando uma mensagem secreta de cujo conteúdo eles próprios não fosse
conhecedores, os homens da Resistência, assim como aqueles de um cativeiro – ou de uma
sala de teatro tal como desejada por Sartre –, identificavam-se entre si, eram uma
comunidade. E o que os igualava era a própria catástrofe contra a qual lutavam: "E é por
isso que a Resistência foi uma democracia verdadeira: para o soldado como para o chefe, o
mesmo perigo, a mesma responsabilidade, a mesma absoluta liberdade sob a disciplina.
Assim, na sombra e no sangue, a mais forte das Repúblicas foi constituída. Cada um de
seus cidadãos sabia que se comprometia com todos e que não podia contar senão consigo
mesmo; cada um deles realizava, no desamparo o mais total, o seu papel histórico. Cada um
deles, contra os opressores, fazia o empreendimento de ser ele mesmo, irremediavelmente,
e ao se escolher a si mesmo na liberdade, escolhia a liberdade de todos" (ibid., p. 14).
É digna de nota a profusão "barroca" de oxímoros nesta última argumentação de
Sartre: por exemplo, chefes/soldados, liberdade/disciplina, desamparo papel histórico,
escolha por si/escolha por todos. Mais que idiossincrasia estilística, temos aqui um
indicador de grande valia sobre os múltiplos níveis de complexio oppositorum em curso
num pensamento que está fazendo a descoberta da História, e da dialética dos contrários
como forma própria da ação e do conhecimento históricos.
O autêntico papel histórico – para além dos “papéis” que pululam no espetáculo
farsesco da má-fé cotidiana –, aqui coincide com a assunção da liberdade, sob condições de
91
abandono e de total responsabilidade individual para consigo e – note–se esta faceta
importantíssima da teoria sartriana da liberdade, talvez um dos seus grandes
desdobramentos teóricos pós-Segunda Guerra – para com todos os demais –"uma única
palavra bastava para provocar", diz, "cem prisões"; lembremos que, em "O Existencialismo
É um Humanismo" (escrito pouco posterior), Sartre diria que o "existencialista declara
freqüentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que
se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas o que escolheu ser, mas também um
legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue
escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. É fato que muitas pessoas
não sentem ansiedade perante si mesmas, evitam encara-la; certamente muitos pensam que,
ao agir, estão apenas engajando a si próprios e, quando se lhes pergunta: mas, se todos
fizessem o mesmo?, eles encolhem os ombros e respondem: nem todos fazem o mesmo.
Porém, na verdade, devemos sempre perguntar-nos: o que aconteceria se todo mundo
fizesse como nós? e não podemos escapar a essa pergunta inquietante a não ser através de
uma espécie de má-fé" (Sartre, J.-P., 1987, p. 7).
Aos "camaradas" da Resistência, a existência tomava um horizonte em que se abolia
a lógica burguesa da autoconservação e do privatismo compulsivo,do lucro, do utilitário. A
interdependência humana fica mais saliente. Com ela, tamm a História enquanto
construção coletiva da qual somos agentes e responsáveis. “Concebida como uma
reativação da tradição revolucionária clássica, da Revolução Francesa à Guerra Civil
Espanhola, passando pela Comuna, a Resistência representa para a geração de Sartre a
experiência por excelência da ‘solidariedade do nós’”; foram os “anos da fraternidade”, na
expressão de Camus (cd. Mendonça, C. D., 2001, p. 288).
"Esta república sem instituições, sem exército, sem polícia, era preciso que cada
francês a conquistasse e a afirmasse a cada instante contra o nazismo" (Sartre, J.-P., 1949,p.
14). Uma “República do Silêncio e da Noite”, diz, arrematando o artigo em tons que
chegam a nos remeter à utopia anarquista de uma sociedade que abolisse toda forma de
poder.
Já em "Paris sous l' Occupation", o equacionamento entre resistência e liberdade
toma por pano de fundo a vida cotidiana ao longo dos quatro anos de presença alemã. O
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resistente é protótipo da liberdade pela maneira peculiar pela qual escolheu viver uma
"terrible épreuve" imposta a todos, provação esta que foi bem além da mera penúria
material ou da censura política.
Sartre, neste artigo (editado em Londres, pela "France Libre"), se propõe relatar o
que foram esses anos de Ocupação para um público anglo-saxão. Essa não é uma tarefa
fácil, diz ele, porque há um "abismo", impossível de ser transposto por meras palavras, a
demarcar a singularidade de tal experiência, mesmo em relação aos habitantes de uma
cidade como Londres, severamente castigada pelos bombardeios de Hitler, que viveu de
outro modo os horrores da guerra. “Os franceses que falam entre si dos alemães, da
Gestapo, da Resistência, do mercado negro se entendem facilmente; mas é que eles viveram
os mesmos eventos, e que estão plenos das mesmas lembranças. Os ingleses e os franceses
não têm mais uma lembrança em comum, tudo o que Londres viveu no orgulho Paris viveu
no desespero e na vergonha” (ibid., p. 16–7)
9
.
Em termos gerais, diz Sartre no ensaio em questão, a Ocupação foi,
paradoxalmente, um "horror intolerável" ao qual porém "nos acomodamos muito bem"
(ibid., p. 24). Os soldados nazistas que transitavam pelas ruas eram surpreendentemente
cordatos, respeitosos, tímidos até. Não se dirigiam aos habitantes, pelo menos à luz do dia,
9
Em O Que É a Literatura? Sartre levanta o mesmo problema da difícil comunicabilidade da
experiência francesa da Ocupação, agora no contexto de uma discussão sobre o caráter necessariamente
"elíptico" da boa comunicação possibilitada pela obra de arte literária, quanto mais escritor e leitores
comunguem de um mesmo repertório vivencial: "De fato, ainda não se notou suficientemente que uma
obra do espírito é naturalmente alusiva. Ainda que o propósito do autor seja dar a mais completa
representação do seu objeto, ele jamais conta tudo. Sempre sabe de coisas que não diz. É que a
linguagem é elíptica. Se desejo comunicar a meu vizinho que uma vespa entrou pela janela, não há
necessidade de longos discursos. 'Cuidado!', ou 'Ei!' – basta uma palavra, um gesto, – desde que ele veja
a vespa, tudo está resolvido. Supondo que uma gravação reproduzisse, sem comentários, as conversas
cotidianas de um casal de Provins ou de Angoulême, não entenderíamos nada: faltaria o contexto; isto é,
as lembranças e percepções comuns, a situação do casal e suas atividades, numa palavra, o mundo tal
como cada um de seus interlocutores sabe que aparece aos olhos do outro. O mesmo ocorre com a
leitura: os indivíduos de uma mesma época e de uma mesma coletividade, que viveram os mesmos
eventos, que se colocam ou eludem as mesmas questões, têm um mesmo gosto na boca, têm uns com os
outros a mesma cumplicidade e há entre eles os mesmos cadáveres. Eis porque não é preciso escrever
tanto: há palavras-chaves. Se eu relato a ocupação alemã a um público americano, serão necessárias
muitas análises e precauções; perderei vinte páginas para dissipar prevenções, preconceitos, lendas;
depois será preciso que sustente as minhas posições a cada passo; que procure na história dos Estados
Unidos imagens e símbolos que permitam compreender a nossa; que mantenha em meu espírito a
diferença entre o nosso pessimismo de velhos e o seu otimismo de crianças. Agora, se escrevo sobre o
mesmo assunto para franceses, estaremos em casa (...)" (Sartre, J.-P., p. 56–7).
93
senão para, educadamente, pedir orientação de como chegar à rua tal ou qual. Chegou a se
estabelecer um “tipo de solidariedade vergonhosa e indefinível” entre moradores e
invasores, no fundo muito parecidos aos soldados franceses (ibid., p. 20), e que, com o
tempo, acabaram por se transformar em parte da "paisagem" habitual, parecendo-se mais
com "móveis" do que com homens. “O que acabava de os tornar inofensivos era sua
ignorância de nossa língua, Ouvi cem vezes, no café, parisienses se exprimirem livremente
sobre a política a dois passos de um alemão solitário, sentado à mesa com os olhos vagos
diante de um copo de limonada" (ibid.).
Na vida cotidiana de boa parte dos parisienses, portanto, os quatro anos de
Ocupação consistiram numa bizarra acomodação ou "simbiose" (ibid., p. 36) para com um
inimigo invisível, "sem rosto"; em todo caso, aqueles dentre os moradores que viam esse
rosto raramente poderiam voltar para descrevê-lo (ibid., p. 21). Tratava–se, diz o autor, de
uma espécie de polvo que “atacava nossos melhores homens na sombra e os fazia
desaparecer. (...) Um belo dia telefonávamos para um amigo e o telefone tocava por muito
tempo no apartamento vazio; nós tocávamos a campainha da porta e ele não abria; se o
zelador forçava a porta, nós encontrávamos duas cadeiras perto uma da outra, no quarto, e,
entre seus pés, pedaços de cigarros alemães” (ibid.).
Este "polvo", apesar da discrição com que se movia, lançou seus tentáculos sobre
parcela expressiva da população, na estimativa de Sartre: “Não havia ninguém em Paris que
não tivesse um parente ou amigo preso ou deportado ou fuzilado. Parecia que existiam
buracos escondidos na cidade e que ela se esvaziava por estes buracos como se tomada de
uma hemorragia interna e irreprimível" (ibid., p. 22).
Era peciso porém, suportar tudo com "tranqüilidade", se preciso recorrendo a
anestesias verbais: "'Nós dizíamos': ‘Eles os prenderam’, e este ‘Eles’, semelhante ao que
os loucos usam pata nomear seus perseguidores ficíticos, mal designava homens: era mais
um tipo de resina vívida e impalpável que escurecia tudo (...)". Um perigo informe, viscoso,
latente, que subitamente poderia tomar corpo e bater às portas, em especial na faixa horária
entre meia-noite e cinco da manhã, preferida pela Gestapo em suas operações de seqüestro
e prisão. "Parecia que a qualquer momento a porta podia se abrir deixando passar um vento
frio, um pouco de noite e três alemães afáveis com revólveres. Mesmo se não os
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nomeássemos, mesmo se não pensássemos neles, sua presença estava entre nós, a
sentíamos de uma certa maneira que tinham os objetos de serem menos para nós, mais
estranhos, mais frios, mais públicos, como se um olhar violasse a intimidade de nossos
lares" (ibid., p. 22–3).
A onipresença das "moscas", na peça de Sartre, terá óbvia correlação com este dado
de um "Outro" intrusivo, vigilante e ameaçador – o invasor alemão, bem como a imagem
"desfigurada", embaçada, diluída, que dele é feita na consciência de suas vítimas potenciais
(cf. Noudelmann, F., 1993, p. 21).
A multidão dessas "moscas" era proporcional à de "cadáveres" de que elas vinham
banquetear-se. "Paris estava morta. (...) Nós andávamos entre pedras, parecia que éramos os
esquecidos de um imenso êxodo” – referência talvez à apocalíptica saída maciça de
moradores da cidade, levando, em pânico, o que podiam de seus móveis amarrados ao capô
de seus carros, nos dias que precederam a invasão (cf. Shirer, W., s/d, p. 21 ss)–, restava
tão-somente um "esqueleto de cidade, pomposo e imóvel" (Sartre, 1949, p. 24).
A "cerimônia dos mortos" que se dá em Argos no dia do retorno de Orestes tem um
precedente histórico bem concreto: as "festas miseráveis e lúgubres" que os alemães
promoviam na cidade, as quais coroavam aquela existência artificial, passavam ao mundo a
sensação de "vitalidade" e perpetuavam uma opressão que, se não chegava aos destroços a
que Lorient, Rouen e Nantes foram reduzidas, estava mais para uma "calma mortuária e
simbólica" (ibid., p. 27).
A noção do simbólico como simulacro de vida, aliás, reaparece logo adiante, ainda
neste artigo: "Um símbolo: esta cidade trabalhadora e colérica não era mais que um
símbolo. Nós nos olhávamos um aos outros e nos perguntávamos se não havíamos nos
tornado também símbolos" (ibid., p. 28). E os símbolos, nesta acepção, parecem consistir
na "indumentária" de cadáveres: "Nós nos olhávamos e parecia que víamos mortos. Esta
desumanização, esta petrificação do homem eram tão intoleráveis que muitos, para escapar
a elas, para recobrar um futuro, se lançaram à Resistência" (ibid., p. 29). Em As Moscas,
igualmente, Sartre faz Júpiter explicar a Orestes que os insetos que infestavam Argos são
"um símbolo". O ‘‘simbólico’’ aparece aqui como reverberação lingüístico-imaginária do
reino ontológico do Em–si: inércia, identidade consigo mesma, perenidade. Estatuto muito
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diferente do que Sartre evoca e pratica como sendo essência do "mítico": reinvenção,
ruptura, liberdade.
A Resistência, por sua vez, se tão exaltada no texto "La République du Silence"
como protótipo da liberdade, ganha aqui uma inflexão interpretativa menos entusiasmada;
este movimento, diz ele, não passava de uma "solução individual", sem nenhum impacto
prático para os rumos da guerra – com ou sem ela os ingleses teriam sido vitoriosos ou, se
fosse o caso, derrotados –, e, de novo eles, reduzido à ineficácia dos "símbolos": "Ela [a
Resistência] tinha, a nossos olhos, um valor de símbolo; e é por isso que muitos resistentes
estavam desesperados: sempre símbolos. Uma rebelião simbólica numa cidade simbólica;
apenas as torturas eram verdadeiras" (ibid., p. 30). Eis um dos irônicos denominadores
comuns a cúmplices e insurgentes, na Paris ocupada: a negação ou recalque da condição de
agentes plenamente históricos, em nome de um "marcar posição" inócuo, no caso dos
resistentes, e covarde, no caso dos colaboracionistas, em sua pantomima patrioteria de
difícil compatibilidade lógica com a humilhante sujeição – por eles referendada– às forças
estrangeiras.
"(...) durante quatro anos, nos roubaram nosso futuro. Era preciso contar com os
outros. E para os outros não éramos senão um objeto", isto é, termo de cálculos alheios,
fossem os dos agressores ou dos pretensamente aliados e libertadores anglo-americanos –
os quais, se, e quando agissem, certamente não o fariam por mera "empatia" humanitária, e
sim movidos por interesses próprios, diz Sartre, no que nos transmite algo da angústia da
heteronomia tão vividamente presente não só em As Moscas, como em Entre Quatro
Paredes, escrita ainda durante a Ocupação alemã.
"Nós sentíamos nosso destino nos escapar, a França se parecia com um pote de
flores que se põe à beira da janela para tomar sol e que se tira de lá à noite, sem se
perguntar sua opinião" (ibid., p. 28). Já não basta uma enunciação abstrata do "princípio" da
liberdade, uma vez apercebidas as variáveis outras, de tipo sócio-político, implicadas na
liberdade efetiva de que podemos usufruir na existência cotidiana. Talvez faltassessem
ainda os quadros conceptuais –mais tarde pensados em diálogo com o materialismo
histórico–, mas a história desponta como um domínio específico, não ensimesmado, é certo,
96
porém influente como instância de universalidade que afeta as formas e os graus de
liberdade concreta da particularidade individual.
Outro dispositivo crucial a este sistema de repressão que bloqueava, na era Vichy
um exercício individual e público da liberdade era a "religião do remorso", conforme vimos
no início deste capítulo.
"A ocupação não era apenas esta presença constante dos conquistadores em nossas
cidades; era também, sobre todos os muros, nos jornais, esta imunda imagem que eles
queriam nos dar de nós mesmos. Os colaboracionistas começavam por apelar a nossa boa
fé. 'Fomos vencidos', diziam eles, 'ajoelhemos: reconheçamos nossas culpas'. E logo em
seguida: 'Admitamos que o francês é leviano, estouvado, apavoneado, egoísta, que ele não
compreende nada das nações estrangeiras, que a guerra surpreendeu nosso país em plena
decomposição" (ibid., p. 35).
Sartre conclui o artigo dizendo que, se de um modo geral, a França sob Ocupação
não deu mostra de nenhuma "grandeza" naqueles rudes e vergonhosos anos de sujeição a
Hitler, não obstante é preciso abrir exceção a essa minoria que foi a Resistência ativa. Por
"simbólica" que tenha sido – o que mostra que nem sempre o simbolismo é uma
degradação, ainda que possa ser uma impotência –, ela "se ofereceu ao martírio,
deliberadamente e sem esperança" e "é mais do que suficiente para resgatar nossas
fraquezas" (ibid., p. 42).
Portanto, a liberdade, no contexto da Ocupação, "resiste" em ao menos duas
acepções desse verbo: ela (a) permanece possível nas situações históricas mais opressivas e
(b) irrompe nesta e contra esta opressão, no seu movimento próprio que é o de um "dizer
não". Já vimos, nos últimos parágrafos, alguns desses antagonismos perante os quais a
liberdade se afirma. Há ainda um outro, relativo, por assim dizer, a um aspecto específico
da visão de mundo dos colaboracionistas. Vejamos então que aspecto é esse, visitando
alguns dos argumentos expostos por Sartre no ensaio "Qu' est un Collaborateur?"
97
Visão colaboracionista da História
"Colaboracionismo", enquanto adesão de alguém a um país estrangeiro interessado
em dominar o país nativo desse alguém, é um fato sociológico tão "normal", ou seja, mais
ou menos incidente em todas as sociedades, quanto a criminalidade e o suicídio –tema de
estudo clássico de Émile Durkheim, autor, aliás, muito importante, ainda que não citado,
neste raciocínio de Sartre (cf. Durkheim, É., 1960).
E o que tais fenômenos têm em comum? Eles são "fenômenos de desassimilação
[désassimilation]" (Sartre, J.-P., 1949, p. 46), incidindo sobre indivíduos mal posicionados
no status quo vigente. Ressentidos com esta marginalização, os colaboracionistas se
mostram receptivos a cooperar com uma potência invasora. Daí que não se possa considerar
colaboracionista, da Ocupação da França, a "burguesia enquanto classe", embora a maior
parte dos colaboracionistas tivessem essa extração social. Porém muitos dos resistentes –
alguns comerciantes e industriais, e boa parte dos intelectuais– vieram também dessa classe
social, observação que, feita por Sartre no calor dos acontecimentos, é respaldada por
comentários como o de Henri Rousso: "Com exceção dos maquisards, em 1944, os
resistentes não são marginais aventureiros, mas cidadãos integrados, citadinos, ocupando
freqüentemene posições confortáveis: a Resistência foi mais 'burguesa' do que se disse"
(Rousso, H., 1992, p. 110).
No caso de Sartre, tal explicação de cunho "sociológico" tem, é claro, forte
afinidade com seu axioma filosófico da liberdade, à época ainda muito marcado pelo
decisionismo individual e pela aposta nas prerrogativas do sujeito ante as condições do
meio externo. Colaborar foi uma escolha, ou seja, uma "decisão individual", mais que
"posição de classe" (Sartre, J.-P., 1949, p. 46).
Uma escolha, porém, que, "fenômeno de desassimilação" que é, tem raiz nas
contradições do desenvolvimento histórico da França pós–1789: a Revolução "deixou
subsistir à margem da comunidade democrática um resíduo que se perpetuou até nossos
dias" (ibid., p. 48). Um resíduo constituído por pessoas que "se recusaram a se adaptar à
constituição republicana", e que, ao londo de um século e meio, mantiveram–se à parte,
98
sem quaisquer liames com "nossa história e nossa cultura". Daí que se possam deinfir os
colaboracionsitas pela curiosa alcunha de "anarquistas de direita" (ibid.), pois eles se
sublevavam contra todas as leis da República, se diziam desobrigados em relação a
impostos, desacatavam o monópio estatal da força – praticando toda sorte de violência
contra seus inimigos –, mas isso por ansiar por uma "ordem" mais impositiva, mais
autoritária, à qual poderiam enfim se entregar e se integrar. "Fruíam" da liberdade
anarquista sem verdadeiramente assumi–la, em todas as suas conseqüências. Tais setores
festejaram a derrota de 1940 como "o fim da República" (ibid.).
Já nos referimos à dimensão anti–histórica, por assim dizer "mítica", da aspiração –
explícita na ideologia de Vichy– por um "retorno às Origens". Mas certa perpexidade pode
ainda assim persistir. Não são os colaboracionistas que exigem que aprendamos com as
"lições da História"? Não são eles que afirmam que "recusar a realidade da queda era um atitude
tão absurda quanto a de quem se recusasse a reconhecer a realidade de uma acidente automobilístico"
(segundo declaração colhida por nós na internet, pelo endereço eletrônico http://www.marechal–
petain.com/allemands _paris.htm)?. Como ser mais "realista", portanto mais conforme aos "fatos", do
que ao extrair, da evidência irrefutável da vitória alemã, a conclusão apodítica da "necessidade de se
submeter ao Reich?" (Sartre, J.-P., 1949, p. 51–2).
É justamente nesta subserviência ao "fait accompli" que, segundo Sartre, os colaboracionistas
traem uma "doença intelectual", o historicismo (ibid.), que nada tem a ver com respeito à História.
Essa doença, que, segundo o autor, é muito freqüente em vários livros de professores de história,
inclusive nos mais pretensamente "objetivos", faz a admissão da existência de um fato ser confundida
com certa inclinação a "aprová–lo moralmente". O que "é" passa a ser "bom", em todo caso melhor
do que aquilo contra o qual se afirmou, simplesmente por "ser". Ser e dever–ser tornam-se sinônimos.
"Os colaboracionistas retomaram por conta própria esta filosofia da história. para eles, o
domínio do fato [la domination du fait] vai de par com uma crença vaga no progresso, mas em um
progresso decapitado: a noção clássica do progresso supõe uma ascensão que aproxima
indefinidamente de um termo ideal. Os colaboracionistas se consideram positivistas demais para crer
sem provas neste termo ideal e, por conseqüência, no sentido da história. Mas, se eles recusam em
nome da ciência essas interpretações metafísicas, não abandonam a idéia de progresso. Esta se
confunde para eles com a marcha da história. Não se sabe para onde se vai, mas, uma vez que se
99
muda, é que se melhora. O último fenômeno histórico é o melhor simplesmente porque é o último"
(ibid., p. 53).
Valeria a pena, mas nos afastaria demais dos propósitos deste trabalho, explorar mais a fundo
as afinidades entre essa argumentação e a de Nietzsche no célebre ensaio "Da Utilidade e
Desvantagem da História para a Vida". Nesse texto de 1874, o filósofo alemão tece duras
críticas ao que também para ele é uma "doença": a idolatria à "potência da história", a qual
"converte todos os instantes em admiração do sucedido e conduz à idolatria do factual:
culto este para o qual, agora, aprendeu–se a usar a formulação muito mitológica e além
disso bem alemã: 'levar em conta os fatos'. Mas quem aprendeu antes a curvar as costas e a
inclinar a cabeça diante da 'potência da história' acaba por acenar mecanicamente, à
chinesa, seu 'sim' a toda potência, seja esta um governo ou uma opinião pública ou uma
maioria numérica, e movimenta seus membros precisamente no ritmo em que alguma
'potência' puxa os fios" (Nietzsche, 1996, p.284).
No texto de Nietzsche, essa crítica se articula à defesa das virtudes por assim dizer
'terapêuticas' do esquecimento como condição de possibilidade para o ímpeto de viver e de
criar, para além da impressão de que tudo já foi feito, e de que toda vida já sucumbiu à
morte, suscitada por um 'senso histórico' inflacionado. Não é difícil ver conexões entre esse
tipo de argumentação e o aspecto de derrisão imaginária, estetizante, que o Sartre dos anos
30 e inícios dos 40 continua imprimindo à sua interpelação teórica e prática da História.
Uma derrisão a serviço não da mera 'negação' da história –já que se afirma com cada vez
mais ênfase a condição humana como condição histórica, dada a imbricação entre os
conceitos de liberdade e situação (cf. Cap. I deste trabalho). Trata–se mais é de uma
salvaguarda contra o "espírito de seriedade", contra, pois, o tipo de má–fe de que a visão
colaboracionista é uma grave tradução e exploração políticas. Cabe ainda registrar,
antecipadamente, que a missão de Orestes, em As Moscas, pode, em grande medida, ser
lida 'nietzchianamente' como ensinamento dos méritos do 'esquecimento', isto é, sobre uma
certa nadificação e esvaziamento do passado, ou de sua figuração como remorso
sompulsivo, como "trauma" que tira forças e ânimo para a vida presente.
Tal ensinamento, em grande medida, não é senão conseqüência de uma teoria
radical da liberdade, bem como da temporalidade humana enquanto "perpétuel
100
décrochage", contínua ruptura entre o passado imediato e o presente, ruptura essa que "é
precisamente o nada", segundo O Ser e o Nada– o "nada que se insinua entre os motivos e
o ato" e que nos priva de determinismos rígidos que se imponham como sentido
(significado ou direcionamento) da ação presente (apud Bornheim, G. 2003, p. 45). A
liberdade é antes de mais nada este "desprendimento" face ao passado, sem o que o homem
se veria coagido por algo –o passado– que porta as características daquilo que a realidade
humana não é: um "Em si", algo já constituído, definido, fechado, consistente.
Já o Para–si é o avesso de toda consistência substancial, de toda constituição
estanque e eterna, e disso temos prova, ou uma especie de retrato temporal, se notarmos a
evanenscência do presente em que vivemos, um presente sempre premido pela voragem do
passado, que o reduz a "Em–si" já sido, e pelos anseios futuros. O tempo forte da existência
é o futuro, é sobretudo nele e por ele que a realidade humana realiza o movimento
"extático" da saída de si, de transcendência na qual projeta, antecipadamente, o
preenchimento das suas carências de "ter" –as posses ou aprimoramentos "empíricos"
desejados – e da sua fundamental carência de "ser" –nossa falta ontológica, quer dizer,
nosso nada originário que queremos vir a preencher– que a cada instante lhe constitui. Pelo
futuro, o Para–si já é o que ainda não é, o "Ser futuro que pretendo realizar ainda não é o
que sou hoje, no presente, mas, concomitantemente, posso dizer que já sou esse futuro, pois
ele está presente como mola propulsora do projeto que vivo agora" (Perdigão, P., 1995, p.
71). O Para–si, como diz Paulo Perdigão, "não é mais o Ser que, paradoxalmente, continua
sendo" (Perdigão, P., ibid., p. 71) – o passado é uma marca indelével, não posso extingüi–lo
nem modificá–lo, mas, como todas as outras formas da minha "situação" fáctica, ele jamais
"é o que é" sem que intervenha uma operação de retomada interpretativa à luz do projeto de
ser que sou hoje, portanto sem os fins atuais que iluminam axiologicamente a caminhada
anterior com vistas a um rumo por ser alcançado, movimento designado po Sartre como
"Circuito da Ipseidade", precípuo à realidade humana enquanto projeto.. O passado, desse
modo, é dúplice: Em–si e Para–si, facticidade do "sido" e liberdade do "sendo", manancial
de novos sentidos livremente escolhidos, seja esta escolha voltada à transformação do que
foi e do que "é" ou à sua reiteração, numa atitude de resignação como a manifesta pelos
colaboracionistas. "Eis, por exemplo, uma realidade objetiva": a França ocupada pelos
nazistas. Em si mesma, a situação é neutra ou indiferenciada. Os membros da resistência,
101
porém, vivem o projeto de ver a França livre. É à luz desse fim que a ocupação afigura–se
para eles como ‘insuportável’, logo motivo bastante para a resistência. Os
colaboracionistas, ao contrário, projetam outro fim (a constância da ocupação) e por isso a
realidade objetiva se lhes impõe como algo a ser conservado, suportável e mesmo
favorável. (Perdigão, P., ibid., p. 83–4). É o projeto que decide não da existência da
objetividade do tempo, portanto de um passado, mas de seu significado subjetivo, à luz do
qual esse "tempo" se transmuta em temporalidade vivida.
O "culto" colaboracionista ao fato consumado é uma forma de má–fé por tentar
ocultar não só essa liberdade dos homens para reverter e redirecionar a "marcha" dos
acontecimentos, como também a liberdade de que o próprio observador se vale, sem
admitir, quando "se rende". Pois tanto quanto a vitória de Hitler sobre a França, também
eram "fatos" históricos, passíveis de serem "escolhidos" como respaldo objetivo de outras
linhas de ação, a persistência da Inglaterra de Churchill, ou as primeiras articulações de
uma resistência dentro do próprio país, ou ainda a revolta dos europeus subjugados e a
"aspiração dos homens à dignidade e à liberdade" (Sartre, J.-P., 1949, p. 56). Note–se que o
autor põe lado a lado referências políticas "empíricas" e um elemento de ordem mais ideal,
este das "aspirações" humanas. É que, ao contrário do reino natural, a realidade–humana é
feita da ambivalência entre o "em–si" e o "para–si", a facticidade e o projeto, de coisas já
feitas e valores antecipadores e impulsionadores de um novo fazer. Já o colaboracionista
camufla de si mesmo a "contradição profunda" de que está valorando quando diz estar
apenas registrando: "ele escolheu os fatos dos quais quer partir" (ibid.).
Um "realismo", portanto, seletivo, além de que escapista: Isto porque outro sintoma
da "doença" historicista dos colaboracionistas é a tendência de, abastardando a fórmula
hegeliana de que o real é o racional (um "hegelianismo mal compreendido" [ibid., p. 54]
tem seu pepel nesta visão de mundo), anestesiar os sofrimentos do presente em nome de um
futuro longínquo, de um progresso automático à luz do qual a atualidade, por mais que
horrenda, é reabilitada em seu "verdadeiro" e "bom" significado e valor. "Esta forma de
julgar o evento à luz do futuro foi, creio, para todos os franceses uma das tentações da
derrota: ela representava uma forma sutil de evasão. Saltando alguns séculos e se voltando
para o presente para contemplá-lo de longe e recolocá-lo na história, ele seria transformado
em passado e se lhe mascararia o caráter insustentável (...) se esquecia que a história, se é
102
compreendida retrospectivamente (...) [por outro lado] se vive e se faz no dia–a–dia
[destaque nosso]. Esta escolha da atitude historicista e esta passadificação [passéification]
contínua do presente é típica da colaboração" (ibid., p. 54–5). Até "pacifistas" bem
intencionados, diz o autor, incorreram nesse tipo de erro, ao julgar as dores do agora como
"mal necessário" ao advento de uma futura "pax alemã comparável à famosa pax romana"
(ibid., p. 55).
É importante notar nessa "passeificação" uma variante do que Max Weber, numa
seção do livro Economia e Sociedade, chama de teodicéia, problema segundo ele comum e
decisivo às grandes religiões universais, como o cristianismo, o judaísmo, as religiões
indianas e o islamismo. Todas ela se puseram, de diferentes formas, a difícil questão de
como explicar que um mundo tão gravado de misérias e sofrimentos possa ter sido obra de
um Criador bom e amoroso, ou ser apenas o aspecto sensível de uma ordem sobrenatural
perfeita. Não seria difícil, até pela influência de certa visão "católica" de mundo na
configuração da ideologia de Vichy, ver na "passeificação" colaboracionista uma espécie de
teodicéia escatológica, que transfere para um futuro idílico a fuga e redenção dos horrores
da história concreta. "O processo escatológico consiste então numa transformação social e
política deste mundo. Um herói poderoso, ou um deus, virá –logo, mais tarde, algum dia– e
colocará seus adeptos na posição que merecem no mundo. Os sofrimentos da geração atual
são conseqüências os pecados dos antepassados, pelos quais o deus responsabiliza os
descendentes do mesmo modo que, na vendeta, o assassino se vinga no clã inteiro e que,
ainda, o papa Gregório VII excomungava os descendente até a sétima geração". Dispositivo
análogo, diga-se de passagem, pesa sobre a família dos Atridas marcada por uma maldição
que se perpetua de geração em geração, na lenda retomada por Sartre em As Moscas. Ainda
sobre esse esquema teodicéico, diz Weber: "Pode acontecer que apenas os descendentes dos
piedosos, em virtude de sua piedade, chegarão a ver o reino messiânico" ( Weber, M., 1994,
p. 351–2).
O "herói" a que cabia preparar e apressar a vinda da redenção era, sem dúvida,
Pétain, que espalhava cartazes pelo país que trazia uma imagem sua, com o dedo indicador
para a frente, conclamando, tal com Bom Pastor, suas ovelhas a se entregarem: "Venez à
moi avec confiance" (cf. Rousso, H., 1992, p. 28–9). O caminho a trilhar era rumo a um
futuro que, por sua vez, seria um "retorno" ao passado glorioso, à França "eterna" e
103
imaculada, uma França a ser 'recriada', no duplo sentido de uma "nova" Criação –visando
ao futuro– e de uma "repetição" da Criação –restaurando o passado originário, puro,
anterior à Queda. Isso indica estarmos ante um exemplo –a que Sartre contraporá, em As
Moscas, um contra–exemplo, no mesmo terreno mas com sinais invertidos– de
remitologização enquanto seqüestro da história pela ideologia (cf. Barthes, R., 1999 ), e da
existência concreta pelo "arquétipo" ideal, o que mais adiante detalharemos à luz da obra de
Mircea Eliade.
Na denúncia deste estado de coisas –o qual talvez pudéssemos considerar uma
tentativa de "reencantamento do mundo"
10
(10), com a "abolição" mítica da sociedade e da
cultura secularizadas pós-Revolução de 1789, tidas por Vichy como raízes da decadência
moral agora punida com a Queda–, Sartre evoca o que, na figura do misantropo Roquentin,
já constatara sete anos antes: uma intrínseca tensão entre o viver e o narrar.
A história, diz Sartre no trecho que citamos há pouco, se vive e se faz no dia-a-dia.
"Aventuras", algo que ele tanto desejava, "são histórias, e não se vive uma história. Conta–
se mais tarde, pode-se vê-la tão–somente de fora. O significado de uma aventura vem de
sua conclusão; paixões futuras dão colorido aos eventos. Mas quando se está dentro de um
evento, não se está pensando nele. Pode-se viver ou contar, não os dois ao mesmo tempo"
(Murdoch, I.,1971, p. 11–2).
Não obstante esse princípio se complicar um pouco no caso de As Moscas – pois ali,
veremos logo, uma narrativa prototípica, a lenda de Orestes, presente "metateatralmente"
nos anseios de Electra junto ao irmão "Filebo", mediatiza e enforma a ação do herói,
embora ele traga consigo, desde o início, certo ímpeto (vago) para aquela ação –, ele parece
válido no presente contexto. Indica uma descoberta, no romance de 1938, que levara
Roquentin a abandonar seu trabalho de historiador, e que o precipitara para o âmago da
"náusea", não como patologia, e sim como revelação da condição humana. A mesma
10
Aludimos aqui ao célebre conceito weberiano de "desencantamento do mundo", base, segundo o
sociólogo alemão, da moderna cultura secular. O desencantamento do mundo teria sido,
inicialmente, uma obra das próprias religiões universais – interessadas em substituir as relações
mágicas do homem com a natureza por cosmologias e sistemas éticos racionalizados. Já na
modernidade, o processo de desencantamento do mundo se volta contra as religiões, trazendo uma
crescente hegemonia da visão científica e uma desvinculação das diferentes esferas sócio-culturais,
tais como a política, o direito, o mercado econômico, o conhecimento e as artes, ante a seu antigo
eixo global oferecido no mundo ocidental pela religião cristã (cf. Colliot–Thelène, C., 1995).
104
descoberta, na análise de 1945, reafirma os limites do conhecimento histórico "objetivo", a,
agora, sim, "patologia" de um tipo de saber que usurpa seu valor relativo e tenta falsamente
abarcar a experiência humana já feita e assim pré-fixar critérios definitivos a cada nova
experiência, experiência que assim nunca chega a ser plenamente "nova", degradada que foi
a um "eterno retorno do mesmo".
Fazer história, por sua vez, enquanto forma de concretização do exercício da
liberdade numa dada situação, é atitude que se coaduna com uma "política baseada em
princípios", que não descarta as "lições da experiência", mas as encara como "meios para
realizar um fim que não é submisso aos fatos e não tira deles sua existência" (ibid. p. 61).
Eis o que Sartre propugna como diretriz da reconstrução nacional após a guerra, e o que ele
vê de "exemplar"– no que, novamente, põe em operância a "arquetipia" mítica eliadiana –
na Resistência. A "vitória" final desse movimento é, ela própria, uma "lição da
experiência", uma complexio oppositorum entre a liberdade enquanto valor ideal e fato
consumado: "(...) a Resistência, qua acabou por triunfar, mostra que o papel do homem é o
de saber dizer não aos fatos mesmo quando quando parece que deveríamos nos submeter a
eles. Certamente, antes vencer a si mesmo do que à fortuna [Sartre aqui alude a um lema
ético de Descartes que teria sido tomado de empréstimo pela metafísica da resignação
realista dos colaboracionistas], mas, se é preciso vencer a si mesmo de início, é, finalmente,
para vencer a fortuna" (ibid.).
Já o colaboracionista se define pela atitude ontológica que põe a interpretação do
"fato" histórico acima da capacidade da ação, ou melhor, que reduz a ação a mera
"adaptação" reativa. As coisas, por um lado, estão "consumadas", são um Em–si, e por isso
nada podemos fazer, e, de outro lado, as coisas, por mais absurdas e intoleráveis que se
pareçam, ainda não desvelaram seu "propósito", algo que só o Futuro trará – e, de novo,
nada podemos fazer. Para quê tentar modificar o presente se ele já tem um sentido
intrínseco que talvez ainde nos escape, mas que "um dia", num hipotético Juízo Final, será
revelado?
Tal moral dos escravos, ou da escravização, é também uma "moral invertida", diz
Sartre, porque "ao invés de julgar o fato à luz do direito, funda o direito sobre o fato" (ibid.,
p. 55). Confere-se à lógica da força uma obscura "virtude" moral, o que contraria –e nisso o
105
existencialismo de Sartre tende a se afastar de qualquer apologia da "vontade de potência" à
la Nietzsche– o vínculo indissolúvel entre a dignidade humana e o reconhecimento da
fraqueza, não da força, da precariedade, não da plenitude, traços nos quais, por outro lado,
se radica o espaço da contrução ética, nosso "direito" a ir além do fato imposto e recriá–lo,
criando-nos a nós mesmos.
O colaboracionista rejeita este direito porque despreza a própria condição humana.
Seu ódio não é só contra uma determinada forma de sociedade, no caso, a democracia
republicana e laica; é uma aversão que se estende a esta outra forma de "desordem", mais
radical, que é a realidade humana. Não importa aos colaboracionistas franceses se tornarem
escravos de Hitler se pudessem, com isso, "infectar a França inteira com essa escravidão"
(ibid., p. 59); para um Drieu la Rochelle, escritor que veio de fato a se matar nesse mesmo
ano em que Sartre escreve, "o advento do fascismo correspodia no fundo ao suicídio da
humanidade" (ibid., p. 60), era a apoteose da extinção desse verme que o corroía por
dentro, o existir, e que ele tranpunha em condenação da humanidade em geral: "(...) ele
[Drieu la Rochelle] começou por se odiar a si mesmo. Ele pintou-se ao longo de vinte anos
como um desequilibrado [desaxé], um desintegrado, um "homem excessivo" [homme de
trop] e sonhou para si mesmo uma disciplina de ferro que não era capaz de dar-se a si
mesmo espontaneamente. Mas este ódio de si tornou–se (...) um ódio do homem. Incapaz
de suportar essa dura verdade: "Sou uma criança fraca e débil, covarde para com minhas
paixões", ele quis se ver como um produto típico de uma sociedade inteira apodrecida"
(ibid., p. 59–60).
No fascismo – que não necessariamente se confunde com o colaboracionismo pois
há fascistas não colaboracionistas, e houve alguns colaboracionistas entre adeptos do
socialismo e do "pacifismo" (ibid., p. 44) –, portanto, Rochelle pressentia uma "solução
final" para esta desordem interna e externa. Encontrava, noutras palavras, a possibilidade de
enfim "ser", redimindo-se do "pecado de existir", para usar os termos de Sartre em A
Náusea.
O mais importante, para concluirmos esta apresentação dos pressupostos históricos
de As Moscas, é termos em mente, de um lado, este cenário mítico – a ideologia "religiosa"
de Vichy, calcada no remorso, na expiação dos pecados da democracia republicana, na
106
restauração patriótica da Comunidade francesa "original" e numa justificação "teodicéica"
dos sofrimentos do presente pela via de certo "historicismo"–, e, de outro, considerarmos
esse conflito entre dois personagens, o resistente e o colaboracionista, os quais, embora
figuras políticas e sociais "empíricas", são também, e mais radicalmente, conceitos
ontológicos e éticos. Equipados desses elementos, podemos agora passar ao exame da peça
de Sartre. Tentaremos determinar as transposições ficcionais pelas quais Sartre logra, em As
Moscas – de maneira consentânea às possibilidades do discurso teatral–, um poderoso
retrato, tanto mais penetrante quanto menos "realista", não apenas de um momento
histórico particular, como da própria condição humana universal que nele se desvela e se
reprime.
107
CAPÍTULO III
AS MOSCAS:
EXISTÊNCIA E HISTÓRIA
Apresentada a contextualização estético-filosófica e histórico-política das idéias
subjacentes a As Moscas, é tempo de observarmos como tais idéias adquirem concreção
“mítica” nesta peça de 1943. Assim pensamos lançar luzes sobre a forma como se articulam
e se concretizam os diferentes níveis de sentido do mito na peça: o literário, o estético-
teatral, o político e -embora este ainda deva aguardar problematização específica, no
capítulo IV- ontológico.
Em uma série de depoimentos, orais ou escritos, que deu a respeito de As Moscas
depois coligidas por Combat e Rybalka em Un Théâtre de Situations–, Sartre deixa claro
como a peça é permeada de uma preocupação a um só tempo filosófica e histórico-política:
a apresentação, ali, de certa idéia de “Liberdade” era, além de um libelo político
conjuntural, também um exercício inaugural daquilo que vimos ser a percepção sartriana da
existência enquanto um “drama”, que tem no teatro uma maneira peculiar e fecunda de
acontecer. Vejamos alguns trechos desse “corpus”.
Em texto que acompanha edição da Gallimard de 1943, Sartre comenta: “Orestes é
livre pelo crime e para além do crime: eu o mostrei atormentado pela liberdade assim como
Édipo é atormentado pelo destino. Ele se debate sob essa mão de ferro, mas era preciso que
ele terminasse por matar, e que carregasse esse assassinato sobre os ombros e que
108
atravessasse para a outra margem” (Sartre, J.-P., 1998, p. 267). Isso porque, prossegue o
autor, “a liberdade não é sei lá qual poder abstrato de sobrevoar a condição humana: é o
engajamento mais absurdo e mais inexorável” (ibid.). Um engajamento “absurdo” porque é
um caminho que o herói inventa para si, é, como todo valor, uma criação que se dá sob o
pano de fundo do nada radical; e é inexorável na medida em que exprime a dimensão
situada, portanto histórica, inerente à liberdade como processo existencial concreto.
Em entrevista a Yvon Novy, publicada na Comoedia, a 24 de abril de 1943, por
ocasião da avant–première do espetáculo, Sartre declara: “Quis tratar da tragédia da
liberdade em oposição à tragédia da fatalidade” (ibid., p. 268). “Liberdade”, aqui, como
algo bem mais amplo do que a “liberdade interior” na qual pensadores como Bergson
teriam divisado a única fonte de emancipação perante o destino (ibid.). Liberdade como
ação concreta no mundo, ação que catapulta seu executor para além do bem e do mal (ibid.,
p. 268), na medida em que toda ação institui um valor, ao invés de poder ser mera
obediência a algum preceito ético eterno, inscrito no “céu inteligível” (cf. Sartre, J.-P.,
1978, p. 9).
O filósofo existencialista exige, mais que uma “liberdade em consciência”, uma
liberdade “em situação”, própria a um homem que tenha, como Orestes, lançado a tal ponto
“para além de si mesmo” que já não pode distinguir a conquista da liberdade de si, por um
lado, e o restabelecimento da liberdade “para outrem”, com a conseqüente abolição de um
determinado estado de coisas dado e a implantação daquele que “deveria ser” (Sartre, J–P.,
1998., p. 268–9). Sartre, em As Moscas, não faz senão indicar – veladamente, como as
circunstâncias exigiam – as implicações ético-políticas de uma doutrina cujo esforço
primeiro é reconduzir o homem ao “domínio do que ele é” (Sartre, J.-P., 1978, p. 6), ou
seja, ao reconhecimento de sua condição de um ser que é o que não é e não é o que é, ou,
por outra, um ser cujo ser, à falta da plenitude opaca do Ser (em–si), é sob o modo do
“poder ser” – a possibilidade– e de um “dever ser” –o valor, de autoria do próprio homem.
Mais especificamente, declara Sartre, o tema de As Moscas “poderia se resumir
assim: Como se comporta um homem em face de um ato que cometeu, do qual assume
todas as conseqüências e as responsabilidades, mesmo se esse ato lhe causa horror?” (ibid.,
p. 268). Aqui se insinua algo que em outras declarações ficaria mais nítido: o contraste
109
entre duas atitudes para com nossas ações pretéritas, de um lado a responsabilidade, de
outro o remorso. Sabedor de que é inteiramente responsável por si mesmo e pelas suas
ações, o homem existencialista – de que Orestes é alegoria – sabe-se também responsável
pelo seu passado, quer dizer, pela liberdade de escolhas agora sedimentada, agora
aparentada a um “em–si” puramente exterior, mas do qual a liberdade, enquanto projeto, se
reapropria – ao invés de se deixar escravizar, como na culpa – com vistas a um futuro.
Vimos como o tema do remorso é crucial no sistema de dominação da França
nazificada. “Após nossa derrota de 1940”, relembra Sartre numa entrevista já em junho de
1947, “muitos franceses se abandonavam ao desencorajamento ou deixavam com que se
instalasse neles o remorso. Eu escrevi As Moscas e tentei mostrar que o remorso não era a
atitude que os franceses deviam escolher após o desastre militar de nosso país” (ibid., p.
272–3). Nitidamente inspirado em aspectos de sua doutrina ontológica e de sua “psicanálise
existencial”, Sartre observa ali aquilo que o é um esforço – naquele caso, politicamente
orientado – de escamotear a liberdade constitutiva da realidade humana, liberdade que por
definição é um desgarrar-se do passado, um incessante deslizar adiante, portanto, uma
experiência nas antípodas do arrependimento, este “(se) repentir” que é uma fixação de
má-fé naquilo que não é mais mas que tenta se perpetuar como um “ser” eterno, um em–si
invencível – o permanente “(se) répéter” da memória culposa:
“Nosso passado não era mais. Ele havia escorrido por entre nossas mãos sem que
tivéssemos tido tempo de agarrá–lo, de tê–lo a nossa vista para compreendê-lo. Mas o
futuro – por mais que um exército inimigo ocupasse a França – era novo. Nós tínhamos
como agir sobre ele, nós éramos livres para fazer dele um futuro de vencidos ou, pelo
contrário, de homens livres que se recusam a crer que uma derrota marca o fim de tudo que
dá vontade de viver uma vida de homem” (p. 273).
Coerente com sua definição de situação como uma motivação (cf. Sartre, J.P., 2003,
p. 593ss), Sartre, aqui, procura articular um cenário conjuntural, histórico, de opressão
objetiva, com a permanência de uma liberdade subjetiva, na chave de uma capacidade de
escolha que é também abertura a um devir que confirmasse ou subvertesse aquele estado de
dominação. A liberdade negada pelo Estado de Vichy seria apta, por seu turno, a negar a
negação, e isso desde já, na atitude pessoal de cada indivíduo que “resistisse” às armas e à
110
psicologia da dominação pétainista, calcada no insuflamento de um sentimento de “culpa”
nacional pela derrota de 1940.
Como vimos anteriormente, e agora recapitulamos em referência direta à nossa
peça, o resistente tinha de enfrentar um segundo tipo de remorso, também ele levado em
conta em As Moscas, como se vê por declaração de Sartre em entrevista em nove de
setembro de 1944: “O verdadeiro drama, aquele que eu gostaria de ter escrito, é o do
terrorista [da Resistência] que, ao matar alemães na rua, deflagrava a execução de
cinqüenta reféns [muitos dos quais nada tinham a ver com a Resistência, antes de serem
capturados pelas forças ocupantes]” (ibid., p. 269). O matricídio de Orestes, que Sartre
designa de o “crime de aparência a mais inumana” (ibid.,p. 268), como que condensava,
simbolicamente, esse dilema ético supremo que se impunha ao resistente francês, para
quem o valor da liberdade superava até o da impulso de conservação da própria vida – com
o risco do sacrifício de si – e o mandamento “sagrado” do não matarás, com o sacrifício
dos inimigos alvejados e, indiretamente, dos reféns inocentes.
Apenas para pontuar um simbolismo que será importante frisar no Capítulo IV,
Sartre reitera, nesse leque de declarações sobre As Moscas, a caracterização do remorso
como algo de eminentemente “estéril” e “infecundo” (cf.p.ex., p. 273 e 277), na medida em
que se trata de um sentimento a serviço de uma repressão à possibilidade, literalmente,
criadora – do homem. Uma liberdade que, se assumida enquanto tal – na condição
existencial de autenticidade–, será também vontade de liberdade, de libertação pessoal e
coletiva face a estados de coisas negadores dessa mesma liberdade. Eis um dos aspectos
interessantes de aproximação de As Moscas, como mito e rito teatrais, em relação ao que
Eliade estudará como valor “cosmogônico” das narrativas míticas, evocadas ritualmente,
nas sociedades tradicionais, como forma de renovação e “fecundação” periódicas das forças
do mundo, ameaças de exaustão e “esterilidade” (Eliade, M, 1969).
Cumpre-nos agora ver, pela seleção e exame de algumas passagens especialmente
significativas, como o texto da peça revela essa mesma referencialidade histórico-política e
filosófica que tais entrevistas nos antecipam de modo enfático.
No Primeiro Ato de As Moscas, que vai da chegada de Orestes, na companhia de
seu Pedagogo, a Argos, até sua decisão de ficar para a “Festa dos Mortos”, Sartre
111
basicamente faz o espectador tomar ciência da situação objetiva de Argos – o estado de
opressão política e religiosa vigente desde a morte do rei Agamêmnon, quinze anos antes –
e da situação subjetiva de Orestes: sua angústia de exilado político e “existencial”. Em
certo sentido, a evolução da peça pode ser descrita com uma gradual aproximação de
horizontes entre esses dois níveis de situação: o ato exemplar pelo qual Orestes trará aos
argivos a revelação da liberdade será uma espécie de dialética – sem, porém, uma
“resolução” no sentido hegeliano – entre uma liberdade vazia, a de Orestes inicialmente, e a
escravizante plenitude da cidade ocupada, metáfora da Paris nazificada. Uma complexio
opposititorum em que a negatividade ontológica do ser livre assimila e dissolve os vetores
alienantes do ser social estabelecido, projetando assim a peculiar combinação de solidão e
fusão que desponta, em seu conjunto como o que vimos Sartre chamar de “engajamento
absurdo e inexorável”.
PRIMEIRO ATO
À margem da vida:
“Nasci aqui e preciso perguntar por meu caminho como um
passante” (Sartre, J.-P., 2005, p. 4), lamenta Orestes assim que entra em cena, à procura do
palácio real. Este, uma vez encontrado, lhe suscita o senso de um paradoxo análogo:
Orestes ali deve ter nascido, mas, expulso com “uns três anos” de idade, foi dali carregado
pelas forças de Egisto, dele sendo também arrancadas quaisquer lembranças que o ligassem
subjetivamente à ex–casa: “Ah! Nenhuma lembrança! Vejo uma edificação muda,
imponente na sua solenidade provincial. Eu a vejo pela primeira vez” (ibid., p. 16).
Ao ouvir essa queixa de Orestes, na segunda cena da peça, o Pedagogo se indigna:
“O PEDAGOGO: Nenhuma lembrança, amo ingrato, quando consagrei dez anos de
minha vida a proporcioná-la a vós? E todas as viagens que fizemos? E as cidades que
visitamos? E o curso de arqueologia que ministrei exclusivamente a vós? Nenhuma
lembrança? Havia, ainda agora, tantos palácios, santuários e templos para povoar vossa
memória que teríeis podido, como o geógrafo Pausânias, escrever um guia da Grécia”
(ibid., p. 16).
Orestes responderá que não é da falta desse tipo de “lembranças”, meramente
intelectuais, que ele se ressente; nessa reação, sente-se um evidente repúdio a um
112
conhecimento abstrato, que se pretenda sucedâneo da vivência. Daí o teor insatisfatório da
“liberdade de espírito”, calcada na erudição e no “ceticismo sorridente [expressão de
Anatole France]”, que lhe foi ensinada pelo Pedagogo:
“O PEDAGOGO: Que fazeis da cultura, meu senhor? Ela é vossa, ela é a vossa
cultura, eu a preparei para vós como amor, como um buquê, combinando os frutos de
minha sabedoria com os tesouros de minha experiência. Não vos fiz precocemente ler todos
os livros, para vos familiarizar com a diversidade das opiniões humanas, e percorrer cem
Estados, mostrando–vos em cada circunstância como são variáveis os costumes humanos?
Ei-lo agora jovem, rico e belo, prudente como um velho, liberto de todas as servidões e de
todas as crenças. Sem família, sem pátria, sem religião, sem ocupação, livre para todos os
engajamentos e consciente de que não deveis jamais vos engajar; um homem superior,
enfim, capaz, além disso, de ensinar filosofia ou arquitetura em uma grande cidade
universitária. E ainda vos queixais!” (Sartre, J.-P., 2005, p. 17).
Aliás, como nota Michel Contat nas suas notas da edição Plêiade, esta passagem é
bastante autobiográfica: “Sartre descreve aqui a cultura clássica que lhe dispensaram nos
grandes liceus parisienses e depois na Escola Normal Superior. Ele dirá, acerca dela, mais
tarde; 'É uma cultura muito má' (Alexandre Astruc e Michel Contat, Sartre, um Film,
Gallimard, 1977, p. 30). '(...) Ela é fundada num domínio do mundo pelo saber e numa
abstenção prática, afora sua pura e simples transmissão'. É, portanto, sua situação de
professor agregado de filosofia que Sartre põe em questão. Orestes é ele ao sair da Escola
Normal” (Sartre, J.-P., 2005b, p. 1291).
Assim também um dos traços característicos do existencialismo de Sartre é partir de
um cogito que, diferentemente da tradição cartesiana, não vê no “conhecimento” senão um
dos modos possíveis de ser da consciência, modo o qual não é originário, nem tampouco
soberano, na definição do “ser no mundo” global, da totalidade sintética de relações entre
homem e mundo, que é a realidade humana (cf. Bornheim, G., 2003, p. 16s).
O fato é que Orestes – um exilado que é metáfora do “ser diaspórico” que é a
consciência, segundo Sartre – vive a liberdade existencial na sua dimensão mais
radicalmente negativa: “Eu sou livre, graças a Deus. Ah! Como sou livre! E que soberba
ausência é minha alma” (Sartre, J.-P., 2005, p. 18). Ele assim personifica o que o início de
113
O Ser e o Nada estabelece noutro registro discursivo: “Toda consciência, mostrou Husserl,
é consciência de alguma coisa. Significa que não há consciência que não seja
posicionamento [termo fenomenológico que designa o ato de colocar algo como existente
no mundo, esclarece o tradutor Paulo Perdigão em nota] de um objeto transcendente, ou, se
preferirmos, que a consciência não tem ‘conteúdo’. (...) O primeiro passo de uma filosofia
deve ser, portanto, expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação
entre esta e o mundo, a saber, a consciência como consciência posicional do mundo”
(Sartre, J.-P., 2003, p. 22). Sartre entende por mundo “tudo aquilo que eu não sou”, e
enfatiza, como já vimos, a dramaticidade que permeia a consciência como um ser à procura
de ser, um ser em falta perpétua, negação interna de si e do mundo, ser em presença do
mundo, mas dele separado por um “nada” de ser, o nada que a consciência “é” (cf.
Perdigão, P. p. 37ss).
Este nada de ser transparece em palavras de Orestes, tais como quando ele ironiza a
quantidade de palácios, colunas e estátuas que já visitou:
“ORESTES: Por que não sou mais pesado, eu que tantas pedras tenho na cabeça?
(Sartre, 2005, p. 16)". Pedra, como se sabe, é um dos símbolos mais recorrentes em Sartre,
para designar a solidez opaca, maciça, do em–si que o para–si aspira a ser, para fugir de seu
nada. Ou ainda: “Eu já sabia, aos sete anos, que era exilado: os odores e os sons, o barulho
da chuva nos telhados, os tremores da luz, eu os deixava deslizar ao longo do corpo e ao
redor de mim; eu sabia que eles pertenciam aos outros e que eu não poderia jamais torna-
los minhas lembranças. Pois as lembranças são uma gordurosa nutrição para os que
possuem as casas, os animais, os criados e os campos” (Sartre, J.-P. 2005, p. 18).
De modo análogo ao protagonista de A Náusea, Orestes vive a inquietação, ou o que
Heidegger designara como angústia, de encarar a si mesmo na sua nudez ontológica, ou
seja, em sua contingência absoluta, em seu estar aquém de todo e qualquer Ser pleno que
lhe justificasse o existir absurdo.
Mas, diferentemente de Antoine Roquentin, Orestes desvela não só a dimensão
“privativa” da liberdade – a contingência; parece-lhe evidente o nexo entre as dimensões de
“para–si” e o de “para–outro” que se conjugam num mesmo cogito existencial, o que faz da
intersubjetividade uma experiência bem menos pejorativa do que ao misantropo de A
114
Náusea. Tanto que desde o início da peça, os argivos, por mais degradantes as condições
em que vivam, não despertam nele nada similar à repulsa que lhes é endereçada pelo
sofisticado Pedagogo, a mesma repulsa que provavelmente Roquentin sentiria por aquele
rebanho de “últimos homens” crivados de ressentimento e sujeira. Não, Orestes chega a
afirmar que preferiria estar sentindo, àquela altura, o mesmo “abjeto ressentimento” que o
Pedagogo observa nas pessoas da cidade. Num rompante, segundo a rubrica, diz Orestes:
“Mas ao menos ele [o arrependimento] seria meu. Assim como esse calor que me tosta os
cabelos seria meu. Seria meu o zumbido das moscas” que infestavam a cidade (ibid., p. 19).
Orestes assim reclama a "saída de seu insuportável “não–ser” e o preenchimento do
“vazio de seu coração”, através da superação da mera “liberdade desses fios que o vento
arranca das teias de aranha e que flutuam a dez pés do solo” (ibid., p. 19)". A imagem, aliás
bela por si só, ganha ainda mais importância se lembrarmos que Sartre compara a
consciência a um “vento”, dada sua impalpabilidade, o seu perpétuo ir para, movimento
puro, intencionalidade (cf. Sartre, J.-P., 1947). Se a cultura é, na imagem célebre de Max
Weber, uma teia de aranha na qual o homem se perde ao se esquecer de que ele próprio a
criou, Orestes necessita de imersão consciente nessa teia social, não para esquecer, mas
para que venha a poder “lembrar–se” de algo, ser investido de afetos e vivências de que
possa ter rastros na memória, adquirir alguma consistência interna, galgar um nível superior
de autoconhecimento – de tipo não meramente intelectual, está claro – que exige o
reconhecimento alheio. Ao aspirar a um “direito de cidadania” entre os seus súditos em
potencial, Orestes ecoa o que Sartre admite ter aprendido de Hegel: “o caminho da
interioridade passa pelo outro (...) A intuição genial de Hegel é de me fazer depender do
outro em meu ser. Eu sou, diz ele, um ser para si que não é para si senão por um outro. É
pois em meu coração que o outro me penetra” (O Ser o e Nada, apud Bornheim, G. 2003,.
P. 83). É o “vazio de seu coração”, voltamos a frisar, que Orestes gostaria de preencher, o
que pressente depender de um ato, nem que fosse o de matar a própria mãe... (Sartre, 2005,
p. 20).
O império das moscas: Qual é a Argos com que Orestes depara? Num
momento-chave da discussão inicial do herói com Júpiter – deus então disfarçado de
115
“Demétrio”, viajante que os seguira ao longo de todo o percurso até esta cidade –, podemos
ter uma idéia a respeito: “Verdade? Muros manchados de sangue, milhões de moscas, um
fedor de açougue, um calor repugnante, ruas desertas, um Deus com rosto de assassino,
larvas aterrorizadas que batem no peito no fundo de suas casas – e esses gritos, esses gritos
insuportáveis: é isso que agrada a Júpiter?” (Sartre, J.-P., 2005, p. 12).
O tom indignado do questionamento de Orestes – também ele, aquela altura
disfarçado como “Filebo”, jovem supostamente criado em Corinto, e não, como de fato
ocorreu, em Atenas – se justifica porque Demétrio aludira à suposta “justiça divina” por
detrás de toda aquela degradação que saltava à vista, por todos os lados.
Era o “tumulto” necessário ao restabelecimento da “ordem moral” (ibid., p. 9)... . É
evidente aqui a analogia com os quadros de pensamento da era Pétain, e com os
precedentes dela, isto é, a campanha de desestabilização do Estado democrático dos anos
30, por parte dos anarquistas de direita, conforme vimos no capítulo anterior (cf. Sartre, J.-
P., 1949, p. 48). Aliás, para Sartre esses anarquistas de direita viram no governo Vichy a
chance de acertar as contas com um vício mais longevo da história francesa: o próprio
advento da República, em 1780. Não por acaso, talvez, o “crime” pelo qual os argivos
pagam há quinze anos com a onipresença das moscas do remorso é a morte de um rei,
Agamêmnon.
Outras passagens deste Primeiro Ato deixam bastante clara a referência crítica à
ideologia “meaculpista” que Vichy tomava de empréstimo de certa leitura da cosmovisão e
moral católicas. Vide por exemplo, a velha que Júpiter “pesca” (ibid., p. 10) – lembremos
que Cristo designa de “pescadores de homens” os seus apóstolos e, portanto, sua
descendência constituída em Igreja –, e que traz para junto dos dois forasteiros, com o
intuito de mostrar-lhes o que os deuses haviam feito para restabelecer a tal “ordem moral”
em Argos.
Ao indagar-lhe o porquê daqueles trajes negros da cabeça aos pés, a velha diz que
esta é a “roupa de Argos”, em alusão ao luto – imiscuído com o sentimento de culpa – pelo
assassinato de Agamêmnon. E Júpiter, com modos extremamente agressivos para com
aquela “centopéia velha”, procede – tal como um torturador nazista – a um “interrogatório”
sobre o que a velha fazia na noite fatídica do regicídio:
116
"JÚPITER: Pois és velha o bastante para te-los escutado, esses enormes gritos que
rondaram a manhã inteira as ruas da cidade. Que fizeste?
A VELHA: Meu homem estava no campo, que poderia eu fazer? Tranquei minha
porta.
JÚPITER: Sim, e entreabriste a janela para escutar melhor, e te puseste à espreita,
atrás das cortinas, com a respiração suspensa, com umas cócegas estranhas na espinha.
A VELHA: Cala–te!
JÚPITER: Com que furor deves ter feito amor naquela noite. Foi uma festa, hein?
A VELHA: Ah! Senhor, foi ... uma horrível festa.
JÚPITER: Uma festa vermelha da qual não pedes enterrar a lembrança." (Sartre, J–
P., ibid., p. 10–11).
Tampouco é isenta de ressonâncias políticas a expressão “festa vermelha”
empregada por Júpiter, se lembrarmos do Front Populaire de 1936, aliança de setores de
esquerda cuja ascensão ao poder, efêmera “festa” de uma utopia de transformação social,
foi um dos principais “crimes” que a Justiça divina veio a reparar com o desastre de 1940,
segundo os pétainistas. É no desfecho desse diálogo de Júpiter com a velha que Sartre deixa
especialmente evidente a alusão ao catolicismo (os destaques em itálico, fora dos
parênteses, são meus):
"JÚPITER: (...) Vá, vá, louca! Não te preocupes sobre o que sou; farás melhor te
ocupando de ti mesma e de ganhar o perdão do Céu pelo teu arrependimento.
A VELHA: Ah! Eu me arrependo, Senhor, como me arrependo, e minha filha
também se arrepende, e meu genro sacrifica uma vaca todos os anos, e meu neto, que vai
para os sete anos, nós o educamos no arrependimento: ele é obediente como um
cordeirinho, loirinho, e já penetrado pelo sentimento de seu pecado original.
JÚPITER: Está bem, vá, velha de merda, e te arrependas até te arrebentar. É tua
única chance de salvação (a velha foge.). Ou muito me engano, meus senhores, ou eis a
piedade da boa, à antiga, solidamente assentada no terror." (Sartre, J.-P., ibid., p. 11).
117
Ainda no diálogo entre Orestes e Júpiter, na Cena 1, o deus faz outra observação
extremamente significativa para o que nos interessa mais de perto aqui, ou seja, sublinhar
os “subtextos” filosófico e histórico da peça. Esses subtextos, aliás, não se justapõem, mas
sim se imbricam, especialmente em momentos como este, quando Júpiter conta o que
“diria” a Orestes se por acaso o jovem – que “Filebo” a essa altura ainda não admitiu ser –
voltasse a Argos para se vingar dos assassinos do pai:
“JÚPITER: (...) Eu diria então: ‘Meu jovem, ide-vos embora! Que buscais aqui?
Quereis fazer valer vossos direitos? Eh! Sois ardente e forte, daríeis um bravo capitão num
exército aguerrido, teríeis mais que fazer do que reinar sobre uma cidade semimorta, uma
carcaça de cidade atormentada pelas moscas. As pessoas daqui são grandes pecadoras, mas
eis que se engajaram no caminho da redenção. Deixai-os, meu jovem, deixai-os, respeitai
seu esforço doloroso, afastai-vos na ponta dos pés. Vós não poderíeis compartilhar de seu
arrependimento, pois não participastes de seu crime, e vossa impertinente inocência vos
separa deles, como um fosso profundo. Ide-vos embora, se os amais um pouco. Ide-vos
embora, pois ireis leva-los à perdição: se os fizerdes parar, por pouco que seja, se os
desviardes, ainda que por um instante, de seus remorsos, todas as suas culpas vão se
coagular sobre eles como gordura resfriada. Eles têm a consciência pesada, eles têm medo –
e o medo, a consciência pesada, exalam um aroma delicioso nas narinas dos deuses. Sim,
agradam aos deuses essas almas dignas de piedade. Gostaríeis de tirar delas o favor divino?
E que lhes daríeis em troca? Digestões tranqüilas, a paz morosa das províncias e o tédio,
ah!, esse tédio cotidiano da felicidade. Boa viagem, meu jovem, boa viagem; a ordem de
uma cidade e a ordem das almas são instáveis: se tocardes nela, provocareis uma catástrofe.
(olhando-o nos olhos.) Uma terrível catástrofe que recairá sobre vós”. (Sartre, J.-P., ibid., p.
14).
Como observa Michel Contat, a propósito desta passagem, “o que Orestes pode
trazer ao povo de Argos, segundo Júpiter, é a tomada de consciência da contingência, da
Náusea, em suma” (apud Sartre, J.-P. 2005b, p. 1291). E, mantendo a discussão nesse
registro ontológico, é como fuga a essa angústia radical – de se deparar com o nada da
condição humana – que o remorso pode se instalar: ele é a tentativa de nos “redimir” de nós
mesmos, de esconder, ainda que por uma “comédia” – como aquela a que assistiremos logo
adiante – o insosso de um mundo em que todo existente “nasce sem razão, se prolonga por
118
fraqueza e morre por acaso” (A Náusea, apud Troisfontaine, R, 1945, p. 16–17). Como bem
sintetiza Roger Troisfontaine: “Incapazes de suportar ‘a obscena e insípida existência que
lhes é dada para nada’ [citação de outra passagem da peça], os habitantes de Argos
objetivam sua infelicidade ontológica numa culpa mítica, ‘original’, cometida por Egisto e
Clitemnestra. O remorso, simbolizado pelas moscas, os distrai da angústia essencial” (ibid.,
p. 33).
Por isso “o medo, a consciência pesada, exalam um aroma delicioso nas narinas dos
deuses”, pois os deuses, na doutrina existencialista de Sartre, nada mais são do que uma
tentativa humana de, pela má-fé, projetar o ideal de um Em–si–Para–si, acima da
contingência e apaziguador de nosso temor do absurdo. A “leveza” da liberdade inócua de
Orestes, leveza como a do fio solto de teia de aranha, contrasta com a consciência “pesada”
vigente em Argos; numa complexio oppositorum típica do pensamento mítico, segundo
Mircea Eliade, veremos essa liberdade assumir novo peso ao assumir os remorsos de todo o
povo, e nesse mesmo movimento, trazer alívio para o jugo que pesava sobre os argivos. É
esse opus mítico, que marca não mais – como nas culturas tradicionais – a manifestação do
sagrado, mas, sim, sua corrosão, que Júpiter, por isso mesmo, tentará evitar, agindo em
nome da “ordem da cidade e da ordem das almas”, ou seja, em nome do conluio político e
teológico que sustenta o status quo de Argos/Vichy.
Electra, já na quinta cena do Primeiro Ato, nos mostra como essa “ordem” é
sustentada na vida cotidiana de Argos, ao se referir ao “jogo nacional” daquele povo
(destaques nossos):
“ELECTRA: Não te comovas, Filebo, a rainha se diverte com nosso jogo nacional:
o jogo das confissões públicas. Aqui, cada um grita seus pecados na cara de todos; e não é
raro, nos feriados, ver algum comerciante, após ter abaixado a cortina de ferro de sua loja,
se arrastar de joelhos pelas ruas, esfregando seus cabelos no pó e gritando que é um
assassino, um adúltero ou um prevaricador. Mas as pessoas de Argos começam a se
entediar: cada um conhece de cor os crimes dos outros; aqueles da rainha em particular não
divertem mais ninguém, são crimes oficiais, crimes de fundação, por assim dizer. Podes
calcular a alegria dela ao te ver, tão jovem, tão novinho, ignorando até o nome dela: que
119
oportunidade excepcional! Parece-lhe estar se confessando pela primeira vez.” (Sartre, J.-
P., 2005, p. 30–1).
Cabe assinalar a presença aqui daquele aspecto, mostrado por Sartre em declaração
que destacamos acima, de “prazer” auto–complacente que subjaz ao tipo de remorso
apregoado por Vichy. O remorso é um “divertimento” em sentido quase pascaliano: uma
forma de despistar o tédio no qual as nossas defesas poderiam soçobrar e abrir caminho
para a náusea do encontro com a verdade da condição humana.
Como toda paixão, como, aliás, todo tipo de sentimento ou crença, o remorso nunca
é um fato bruto, identidade de si a si, tem ao contrário uma “distância a si”, na medida em
que é consciência de remorso, o que por seu turno é condição de possibilidade para que
nunca sejamos meras “vítimas” de nosso próprio remorso, mas também seus inventores e
espectadores.
Mas não é isso o que Clitemnestra deseja que a filha pense. Ao contrário, o remorso,
segundo a rainha, é uma espécie de lei da natureza, um “destino” que forçosamente se
repetirá de mãe para a filha: assim como a rainha, a princesa deverá provar deste cálice, que
aliás parece inerente à “natureza humana”:
“CLITEMNESTRA: És jovem, Electra. É fácil para um jovem, que não teve tempo
de fazer o mal, condenar. Mas, espera: um dia, arrastarás contigo um crime irreparável, A
cada passo acreditarás ter te livrado dele, mas ele continuará o mesmo, tão difícil de
arrastar quanto sempre. Tu te voltarás e o verás atrás de ti, fora de alcance, tenebroso e puro
como um cristal negro. E não o compreenderás, dirás: ‘Não fui eu, não fui eu que o fiz’.
Mas ele estará ali, cem vezes renegado, mas sempre ali, te puxando para trás. E tu saberás
enfim que comprometeste tua vida num único lance de dados, de uma vez por todas, e que
não há nada a fazer senão carregar teu crime até a morte. Esta é a lei, justa ou injusta, do
arrependimento. Veremos então o que será de teu jovem orgulho”. (Sartre, J.-P., 2005, p.
32).
Difícil não vermos nessas palavras de Clitemnestra um retrato da “pedagogia”
vichysta, que tinha a juventude como um alvo preferencial; fora, afinal, a transgressiva
juventude dos anos 30, com seus “desvios” morais e políticos, que contribuíra
decisivamente para o desastre de 1940.
120
Já em A Náusea, Sartre exprimia revolta em relação à postura dos mais velhos em
rotular impulsos de ruptura dos mais jovens como meros “arroubos”, compreensíveis pela
idade, mas ingênuos e fadados ao fracasso. O tema reaparece neste trecho de As Moscas,
agora sob vestes mitológicas que tornam “verossímil” a fantasia de uma Fatalidade terrível,
a do Eterno Retorno que entrelaça Clitemnestra e Electra numa identidade de destino:
“CLITEMNESTRA: Nada tenho a te dizer, Electra. Vejo que trabalhas pela tua
própria perda e pela nossa. Mas como eu te aconselharia, eu que arruinei minha vida numa
única manhã? Tu me odeias, minha criança, mas o que mais me inquieta é que te pareces
comigo: eu tinha essa rosto petulante, esse sangue inquieto, esse ar dissimulado – e disso
não me veio nada de bom.
ELECTRA: Não quero me parecer convosco! Dize, Filebo, tu que nos vês, diz que
não é verdade, diz que não pareço com ela.
ORESTES: Que dizer? O rosto dela parece uma terra devastada por raios e granizo.
Mas há no teu como que uma promessa de temporal: um dia a paixão vai te arder até os
ossos.
ELECTRA: Uma promessa de temporal? Assim seja. Essa semelhança eu aceito.
Oxalá tenhas dito a verdade.” (Sartre, J.-P., 2005, p. 28–9).
De fato, a “semelhança” notada por Orestes viria a se confirmar de modo irônico:
um temporal de paixão viria a desabar sobre Electra, mas um temporal que não limpa nem
desanuvia, e sim destrói – o remorso devastará Electra, a fará cumprir, por sua livre
escolha, e pelas armadilhas inerentes ao ódio, o que Clitemnestra lhe anuncia sob a forma
de uma maldição natural.
Pouco antes da chegada de Clitemnestra, que vinha exigir de Electra que se
preparasse para a “Festa dos Mortos”, Electra contara a Filebo os sofrimentos porque
passava como cativa em seu próprio palácio, nas mãos do casal de tiranos. Esse relato é
decisivo para que Orestes se decida a ficar, contrariando os pedidos do Pedagogo para que
partissem daquele lugar horrendo e indigno de “homens superiores”. É que a simpatia que
nasce entre os dois irmãos – mesmo Electra não sabendo da identidade dele – é imediata;
noutras palavras, é perante a irmã que a dimensão do “para–outro” ganhará concretude e
impulsionará Orestes a “assumir” sua identidade de irmão e filho vingador, ou melhor, a
121
construí–la, na falta de qualquer imperativo de tipo “divino” para que consumasse, como
na lenda antiga, o seu dever sagrado de Atrida.
Um empurrão significativo nesse sentido vem no contexto em que Filebo narra a
Electra os supostos prazeres da vida em Corinto – lembremos que Filebo, nome que, em
grego, significa “amor da juventude” (Noudelmann, F., 1993, p. 66), é o título de um
diálogo platônico no qual o jovem homônimo se define pela posição de que a essência do
Bem é o prazer, e não a sabedoria (cf. Liudvik, C., apud Sartre, J.-P., 2005, p. XXIV)
11
.
Após ouvir embevecida – ela não conseguia acreditar que a vida humana pudesse
ser outra coisa do que esse inferno que imperava em Argos –, Electra deixa que essa
efêmera alegria dê lugar, de novo, ao seu ódio e ressentimento:
“ELECTRA: Que estranho. (pausa) E dize-me ainda isso, pois preciso saber por
causa de alguém... de alguém que eu espero: supõe que um rapaz de Corinto, um desses
rapazes que riem de noite com as moças, encontre, no retorno de uma viagem, seu pai
assassinado, sua mãe no leito do assassino e sua irmã escravizada. Esse rapaz afinaria, daria
o fora, fazendo mesuras, indo buscar consolo junto às amiguinhas? Ou, ao contrário, ele
sacaria sua espada e golpearia o assassino até lhe estraçalhar a cabeça? – Não me
respondes?” (Sartre, J.-P., ibid., p. 26–7).
A súbita entrada da rainha livra “Filebo”, provisoriamente, dos maus lençóis em que
o questionamento de Electra o colocara. Note–se que, de novo, assim como, na primeira
cena da peça, na exortação que Júpiter faria a Orestes para que partisse e assim preservasse
a “ordem” da cidade e das almas, a ação do herói vai sendo antecipada na base de
conjecturas cujo efeito prático, no aqui-agora, é açular seus sentimentos na direção de
concretizar tal ação, isso por oposição ao desejo do deus e por adesão ao sonho da irmã. Eis
11
“Como o Filebo de Platão, ele procurou a felicidade no lazer, vivendo em Corinto, uma cidade
famosa pela libertinagem. Orestes é leve” (Noudelmann, F., 1993, p. 67). Não parece descabido
pensar aqui numa ironia autobiográfica: Sartre não estaria parodiando seu próprio perfil de, para
usar a expressão de Bernard– Henri Lévy (2000, p. 152), um dândi apolítico nos anos pré–guerra;
ou, nas palavras de Sergio Moravia, respaldado no relato de Simone de Beauvoir em A Força da
Idade: “A atitude assumida por Sartre em relação à sociedade burguesa e capitalista é
profundamente crítica (...). Mas essa crítica afigura–se mais como repulsa psicológica e moral do
que como oposição política. Por trás dela encontra–se, sobretudo, uma aversão aristocrática e
niilista pela civilização de massa, encontram–se mais Flaubert e Nietzsche do que a Revolução de
Outubro, se bem que esta seja vista com bastante apreço. (...) Ele definia–se, aliás, como um
‘anarco–metafísico’” (Moravia, S., 1985, p. 10–11).
122
a dimensão de projeto, constitutiva do sujeito livre, a se revelar como, a princípio,
cogitação hipotética, como possibilidade em aberto que se lança adiante do presente
imediato para a ele retornar dotando-o de sentido, seja como significado seja como direção;
assim também um novo sentido brota em relação ao passado, reapropriado com vistas ao
futuro: o “ser” Orestes é uma virtualidade abstrata antes de um efetivo vir–a–ser Orestes e
assim fazer valer os referenciais pretéritos (o lugar de origem, os laços de parentesco com a
irmã, o direito ao trono e aos bens usurpados).
Ao final do Primeiro Ato, Júpiter entra em cena sugerindo arrumar a Orestes e ao
Pedagogo “dois jumentos por um preço módico”, para que partam de Argos. Orestes
recusa. Não é difícil ver aqui uma das várias operações de subversão irônica do
mitologismo cristão, caso lembremos do jumento que, em gesto por sua vez enraizado na
tradição messiânica judaica, Cristo pede para que entre em Jerusalém e cumpra sua missão
salvífica. O “deus” sartriano é fator de escapismo ou quietismo, e não de estímulo à ação, a
qual se dará necessariamente como insurgência da liberdade humana.
SEGUNDO ATO (QUADRO 1)
Rumo ao heroísmo
: O primeiro dos dois Quadros deste Ato vai da celebração da
“Festa dos Mortos” até o diálogo, crucial, de Orestes com Electra, no qual Orestes tomará
enfim a decisão de matar a própria mãe e o usurpador Egisto.
Do ponto de vista que nos interessa mais de perto neste capítulo – os referenciais
histórico-políticos e “doutrinais” que As Moscas mobiliza e exprime, ainda que de modo sui
generis –, podemos destacar, desde logo, a maneira como Sartre deixa claro que o terrível
ritual por vir – quando o “Sumo Sacerdote” fizer a evocação dos mortos – tem sua fonte
real nas consciências da multidão reunida em frente à caverna. Consciências dilaceradas
pelo medo e pela culpa. É o que parece evidenciado na fala de uma jovem do
povo:“Horrível, horrível espera. Parece que vejo todos vós lentamente se afastando de mim.
A pedra não foi ainda arrancada, e cada qual já está atormentado por seus mortos, só como
uma gota d’ água” (Sartre, 2005, p. 40).
123
Essa fala nos indica, além do mais, o quão a disseminação do terror psicológico
convém ao Estado autoritário, na medida em que embute não só o auto-encapsulamento de
cada indivíduo, mas também a apatia política da sociedade civil como um todo. Não por
acaso esse ambiente sociopsíquico se concatenar com aquela ideologia providencialista da
História que vimos no capítulo anterior; são níveis diversos e integrados de um sistema nas
antípodas da liberdade – e do (des)empenhar-se dessa liberdade no mundo concreto, social
– que o existencialismo sartriano reputa precípuo à condição humana.
Outra fala exaltada de um popular leva ao paroxismo aquela “imunda imagem de
nós mesmos" – a imagem de um país já "em plena decomposição" quando do ataque
inimigo – que os nazistas e colaboracionistas queriam impor aos franceses, fazendo-os,
literalmente, pôr-se de joelhos para pedir perdão pelas próprias culpas."(Sartre, J.-P., 1949,
p. 35):
“UM HOMEM, se atirando de joelhos: Eu cheiro mal! Eu cheiro mal! Eu sou um
cadáver imundo. Olhai, as moscas atacam-me como corvos! Picai, furai, cavai, moscas
vingadoras, podeis revistar [fouiller] toda a minha carne até meu coração imundo. Eu
pequei, cem mil vezes pequei, sou um esgoto, uma fossa...” (Sartre, J.-P., 2005, p. 41).
Fica evidente, aqui, a remissão a uma outra forma de violência em alta no regime
vichysta: a perseguição e tortura física. Além de simbolizar o remorso, as “moscas”
remetem, como lembra Michel Contat, também à figura dos delatores e à onipresença da
milícia nazista pelas ruas da Paris ocupada, sendo os alemães chamados de “doríforas”,
insetos que parasitam o pomo da terra (apud Sartre, 2005 b, p. 1262).
Nesse ínterim, Orestes e o Pedagogo, conduzidos por Júpiter, já chegaram para
assistir ao triste espetáculo. Com sua afetação usual, o Pedagogo observa: “Como são feios!
Reparai senhor, no seu rosto de cera, em seus olhos cavados. Essa gente está morrendo de
medo. Eis os efeitos da superstição. Olhai. Olhai. E se quereis ainda uma prova da
excelência da minha filosofia, considerai o frescor de meu rosto” (Sartre, ibid., p. 40).
Orestes, por seu turno, encara aquela histeria coletiva com indignação, dando
inclusive sinais de uma vontade de intervir e mudar tal quadro. Após o desmaio de uma
mulher desesperada pela vinda iminente do espírito do marido, ele comenta: “Que loucura!
É preciso dizer a essa gente...” (ibid., p. 41) – mas não chega a completar a frase,
124
interrompido por Júpiter, que diz que aquele “ataquezinho” da mulher é pouco, perto do
que ainda haverão de testemunhar.
Cresce o clamor popular para que o casal real, acompanhado do Sumo Sacerdote,
venha do palácio e dê início à cerimônia. O soberano surge duplamente irritado – com o
misterioso sumiço de Electra, que devia entrar junto com o casal, como todos os anos, e
com o próprio “protesto” dos argivos contra o atraso da festividade.
Apelando para o “complexo de inferioridade” que ele próprio ajudara a incutir nos
argivos, ele esbraveja: “Cães! Como ousais vos queixar de algo? Esquecestes vossa
podridão? Por Júpiter, eu refrescarei vossas lembranças” (ibid., p. 42).
Depois de alguns minutos de espera infrutífera pela chegada de Electra, Egisto
decide começar a cerimônia assim mesmo – com esse incômodo buraco no edificante
quadro da “harmonia familiar” que gostava, todos os anos, de mostrar aos súditos, neste
que era certamente o evento mais propício à reprodução ritual dos valores morais e
religiosos da comunidade.
Autorizado pelo rei, o Sumo Sacerdote ordena que os guardas tirem a Pedra que
fechava a entrada da caverna, e chama, tal como Cristo a Lázaro, as almas dos mortos a
voltarem para a luz do dia:
“Vós, os esquecidos, os abandonados, os desencantados, vós que vos arrastais no rés
do chão, na escuridão, como os gases de um vulcão, e que não tendes mais nada senão
vosso rancor, vós os mortos, de pé, é vossa festa! Vinde, levantai da terra como um enorme
vapor de enxofre empurrado pelo vento; levantai das entranhas do mundo, ó mortos cem
vezes mortos, vós que cada batida de nossos corações faz morrer de novo, é pela cólera e a
amargura e o espírito de vingança que vos invoco, vinde saciar vosso ódio sobre os vivos!
Vinde, espalhai-vos em bruma espessa por nossas ruas, colocai vossas legiões entre a mãe e
a criança, entre o casal de amantes, fazei-nos ter pena de não estarmos mortos. De pé,
vampiros, larvas, espectros, harpias, terror de nossas noites. De pé, soldados que morreram
blasfemando, de pé, ó infelizes, ó humilhados, de pé ó mortos de fome cujo grito de agonia
125
foi uma maldição. Olhai, os vivos estão ali, gordas presas vivas! De pé, atirai–vos sobre
eles em turbilhão e comei-os até os ossos! De pé! De pé! De pé!...” (ibid., p. 43)
12
.
Um primeiro ponto a destacar nesse discurso é sua evidente remissão a elementos
imagéticos associados ao “inferno” (legiões, enxofre, entranhas do mundo, além do leque
de monstros citados como protagonistas do “terror de nossas noites”).
Essa metáfora do inferno nem de longe é casual para Sartre, vide sua reaparição, por
exemplo, em Huis Clos, peça na qual “os personagens estão mortos, dessa morte que define
as pessoas que renegaram a própria liberdade. São liberdades falhas por se terem entregue
ao juízo, ao olhar dos outros; são mortos por já não terem possibilidades, condenadas que
estão ao olhar do outro, numa espécie de tradução do juízo final cristão. E o olhar, que
devassa cada personagem, torna a existência do outro insuportável” (Bornheim, G., 2003, p.
91–2). Huis Clos se passa no inferno, e Sartre entende por “inferno”, ali, a existência do
Outro (“o inferno são os Outros”). Isso porque, como já apontado anteriormente, quando
tratávamos da tragicidade em Sartre, o Outro implica para mim a experiência dramática de
ver-me pelo olhar alheio, e de apreender-me, pois, não mais como possibilidades sempre
em aberto do para–si, e sim como “coisa” estanque, totalizada, presa à eterna identidade de
um em–si.
Do ponto de vista do existencialismo, tal experiência corresponde a um verdadeiro
“inferno”, no qual a cosmovisão moral e o poder eclesiais – encarnados, em As Moscas,
pelo Sumo Sacerdote, este braço eclesial do poder de Egisto–Pétain – são, por assim dizer,
mestres de cerimônia. Cumpre frisar aqui – voltaremos mais tarde a esse ponto –, a
expressão “Senhor das moscas”, que Sartre aplica diretamente ao Júpiter cristianizado da
peça, remonta, na etimologia hebraica, a Belzebu, o “príncipe dos demônios” (cf. Liudvik,
C, apud Sartre, J.-P., 2005, p. XVII). Podemos deduzir também, por outro lado, um tácito
reconhecimento por Sartre da força semântica e do alcance comunicativo do gesto de se
12
Contat menciona como paralelos dessa evocação dos mortos um trecho bíblico (Samuel XXVIII,
3–19), o décimo primeiro canto da Odisséia, o livro quinto da Eneida e, “mais perto de Sartre, o
discurso aos mortos em La Guerre de la Troie n’ Aura Pas Lieu de Giraudoux (II, v) e o primeiro
ato do Repos du Septième Jour de Paul Claudel (1896)” (apud Sartre, J.-P., 2005, p. 1292, nota 2).
Quanto às entidades monstruosas citadas pelo Sumo Sacerdote, o mesmo comentador sublinha que
as “larvas” são, na Antiguidade romana, os espíritos dos mortos que vêm assombrar os vivos; as
“harpias” são monstros fabulosos, com cabeça de mulher e corpo de abutre, com garras afiadas, e os
vampiros, sugadores de sangue, provêm do universo lendário germânico (ibid., nota 1).
126
levar um simbolismo religioso para os palcos, como já lhe ficara claro, poucos meses antes,
na experiência de Bariona, fundamental para os contornos e propósitos éticos, estéticos e
políticos que seu teatro de situações veio a assumir.
Se, no capítulo anterior, assinalamos o teor fortemente “nietzschiano” da crítica de
Sartre à idolatria do “fato consumado”, faz-se também mister notar, sob esta fala do Sumo
Sacerdote de As Moscas, uma intertextualidade filosófica que remete à denúncia de
ressentimento e de calúnia à vida que Nietzsche imputava à “moral dos escravos”
introduzida pelo cristianismo (sobre a ambivalente conversação e, no limite, confrontação,
de Sartre com Nietzsche em As Moscas, veja-se o estudo de Jean–François Louette, Sartre
contra Nietzsche –Les Mouches, Huis Clos, Les Mots, Grenoble, Presses Universitaires de
Grenoble, 1966).
Uma vez inaugurada a cerimônia, a histeria coletiva se amplia, e é ainda mais
insuflada por Egisto, que, aos apelos do povo por piedade, responde:
“Ora, piedade! Não sabeis que os mortos nunca têm piedade? As queixas deles
nunca podem ser saciadas, porque suas contas estão fechadas para sempre. É por boas
obras, Nícias, que pretendes apagar o mal que fizeste à tua mãe? Mas que boa obra poderia
alcançá-la? Sua alma é um meio-dia tórrido, sem um sopro sequer de vento, onde nada se
agita, nada muda, nada vive, um grande sol desencarnado, um sol imóvel a consome
eternamente” (Sartre, J.-P., 2005, p. 44–5) – descrição adequada a esta cidade fantasma e
abafada que é a própria Argos. E o tirano arremata: “Os mortos não são mais –
compreendeis esta palavra implacável? –, eles não são mais, e é por isso que eles se
tornaram guardiões incorruptíveis de vossos crimes” (ibid., p. 45).
“A morte transforma a vida em destino”, como disse Sartre – retomando fórmula de
Malraux – em O Ser e o Nada (cf. Perdigão, P., 1995, p. 77). Com a morte, cessa não só a
consciência, mas sua precípua temporalização, que é sempre projetiva, lançar-se adiante,
rumo a possibilidades, rumo ao inesperado. É a derrota final do Para–si ao Em–si, é a terra
deserta e árida de uma “identidade” fechada, eterna, compacta como as pedras. O tirano
quer que, pelo remorso compulsivo, seus súditos, ainda em vida, façam do tempo uma
figura da eternidade – para parafrasear, noutro sentido, a expressão platônica: que façam do
127
projeto que cada ser humano é, um projeto de identificação com o passado, com supostas
“culpas” irremovíveis.
Há aqui evidente referência crítica à pregação vichysta acerca da necessária
reparação por parte dos franceses, no desastroso presente de opressão e de privações
materiais, pelas culpas do passado. Um dos pecados mencionados por Egisto como
necessitados de expiação naquele dia é, sugestivamente, o da usura, fato que, além de
evocar o moralismo católico medieval, tamm é repleto de atualidade política na França
anti-semita da era Vichy, na qual os judeus eram pejorativamente associados a esse tipo de
prática comercial (cf. Contat, M., apud Sartre, J.-P., 2005b, p. 1292, nota 3).
A multidão clama cada vez mais por perdão, perdão por cada uma das culpas e,
sobretudo, pelo “pecado” supremo de viver: “Perdoai-nos por viver enquanto estais mortos”
(Sartre, 2005, J.–P., p. 45). Mulheres choram o fato de a lembrança que têm de seus mortos
escoar a cada dia, “como uma hemorragia” (Sartre, J.-P., 2005, p. 45) – o que mostra o
desconforto e a auto-punição que a liberdade inflige a si mesma por “conseguir” a fusão
completa, via memória, com o em–si do passado.
Em certo sentido, o remorso desponta aqui como imaginária “compensação” pelo
abismo que separa o para–si em relação a este em–si. Trata–se de um sentimento que, para
retomarmos conceito visto no capítulo anterior, opera um certo tipo de “passeificação” de si
mesmo, ou seja, um esforço de “repetir” o passado a tal ponto que a consciência pudesse
voltar a sê–lo, assim reprimindo a inevitável “hemorragia” das lembranças, o escoamento e
diluição do que já foi na correnteza do porvir; consciência é temporalização, e portanto
uma nadificação do que foi, com vistas ao futuro. A tentativa de “reparação” do passado é,
no contexto do remorso compulsivo que se cultura na Argos vichysta, sinal de uma morte
em vida, de uma comunidade de cadáveres, que não por acaso virou hábitat de moscas e
fantasmas. O próprio viver humano, na sua constitutiva incerteza e desgarramento ante as
certezas sedimentadas, torna-se algo digno de culpa: tanto que as crianças, pedindo
clemência aos mortos, gritam que não nasceram de propósito e que têm “vergonha de
crescer” (Sartre, J.-P., ibid., p. 46). Uma mãe “ensina” a seu filhinho que somente o medo
faz de alguém um homem honesto (ibid., p. 38).
128
É quando, porém, uma surpresa vem mudar o curso dos acontecimentos. Uma
surpresa que estava em germe naquela primeira lacuna que o tirano teve de tolerar, quando
iniciou a cerimônia sem a presença de Electra: pois a princesa escrava finalmente aparece,
porém sem os trajes lutuosos de todos, e sim com um vestido branco, vestido de festa, a
mais bela de suas roupas. Um traje de “puta”, nas irritadas palavras com que Egisto acolhe
aquela novidade. Embalada pelo sonho de “joie de vivre” que escutara do forasteiro Filebo,
pouco antes, Electra vem trazer a seu povo uma mensagem de libertação, vem conclamar
aqueles “carrascos de si mesmos” (Sartre, J.-P., 2005, p. 49) a que levantem a cabeça,
descontraiam o corpo e reparem em como o dia está lindo. Que deixem de lado aquele
pânico, que vejam que os mortos não querem vampirizar os vivos; para comprovar isso,
chega inclusive a dançar:
“E o céu cai em minha cabeça? Eu danço, vede, eu danço, e não sinto nada a não ser
o sopro do vento em meus cabelos. Onde estão os mortos? Acreditais que eles dançam
comigo, ao meu compasso?” (ibid., p. 49)
13
.
O “golpe” de Electra é, porém, mal-sucedido, por conta da intervenção de Júpiter,
em gesto, aliás, que só foi possível pela “brecha” que a própria princesa abre, ao tentar
fazer dos manes de Agamêmnon e Ifigênia um respaldo legitimador para sua “dança
sagrada”:
“Mas se me aprovais, meus queridos, então vos calai, suplico, que nenhuma folha se
mexa, que nenhum talo de erva se agite e nenhum ruído venha a perturbar minha dança
sagrada. Pois eu danço pela alegria, eu danço pela paz entre os homens, eu danço pela
felicidade e pela vida. Ó meus mortos, peço vosso silêncio, a fim de que estes homens
saibam que vosso coração está com o meu” (ibid.). Júpiter então faz uma “mágica”, e
manda que a rocha da caverna se choque com as escadarias do templo, interrompendo o
efêmero silêncio e fazendo o Sumo Sacerdote crer se tratar de um sinal da “maldição
13
Hugo von Hofmannsthal terminava sua Electra (1904) com uma dança selvagem da princesa
após a morte de Clitemnestra e de Egisto, uma dança de alegria e de ódio, tão frenética que Electra
caía morta. Sua significação, em Sartre, é diferente. Esquecendo seu ódio (esquecimento pelo qual
virá a se repreender), Electra se lança numa dança de felicidade, a felicidade que ela entreviu no
curso da conversa precedente com Filebo. Mas a dança será interrompida, pois essa felicidade é
ilusória” (Contat, M., apud Sartre, J.-P., 2005 b, p. 1292–3, nota 5).
129
divina” que vinha se abater sobre o povo que se deixava seduzir por uma espécie de
idolatria, o “bezerro de ouro” da liberdade e da paixão de Electra.
A despeito de toda a fúria iconoclasta que exprimira contra Júpiter no Primeiro Ato
(Cena 3), Electra não se desvencilhou por completo da quimera dos “valores inscritos num
céu inteligível”. Electra, noutras palavras, ainda não compreendeu o que o autêntico
engajamento tem de visceralmente absurdo, quer dizer, sem justificativas, sem desculpas,
sem fundamento que não o da livre escolha, puramente humana, por parte de cada um de
nós. Se o ódio se nutriu a vida toda – é uma das variantes da alienação existencial e da
escravização de si a outrem, como argumenta Sartre em O Ser e o Nada (cf. Noudelmann,
F., 1993, p. 88), Electra se revela uma “escrava” em mais de uma acepção: escrava não só
pela sujeição concreta a seus amos, mas também pelo fato de que sua consciência, seu
projeto de ser, se põem em função do objeto odiado, o qual, quando desaparecer, levará
junto consigo a razão de ser de quem o odiava – é o que fato Electra admitirá, ao debater–se
com seus contraditórios sentimentos, quando contempla o cadáver de Egisto, ao final do
Segundo Ato:
“Este aqui está morto. É isso então que eu queria. Não me dava conta. (Ela se
aproxima dele). Tantas vezes eu o vi em sonho, estendido neste mesmo lugar, com uma
espada no coração. Seus olhos estavam fechados, ele parecia dormir. Como eu o odiava,
como me alegrava odiá–lo. Ele não parece dormir, e seus olhos estão abertos, ele me olha.
Ele está morto – e meu ódio morreu com ele. E estou cansada; e espero, e a outra vive
ainda, no fundo de seu quarto, e logo vai gritar. Vai gritar como uma fera. Ah! Não posso
mais suportar esse olhar. (Ela se ajoelha e lança um pano sobre o rosto de Egisto). (...)
Meus inimigos estão mortos. Ao longo dos anos, saboreei esta morte por antecipação, e
agora meu coração está apertado num torno. Eu menti pra mim mesma nesses quinze anos?
Não é verdade! Não é verdade! Não pode ser verdade: eu não sou covarde!” (Sartre, J.-P.,
2005, p. 81). Note–se que, no horror do “olhar” que Egisto, já morto, lança sobre ela, está
posta a forma de julgamento e de condenação que os fantasmas do remorso impingem a
toda a população de Argos.
Correlato dessa armadilha é que a libertação consista para Electra mais num
devaneio – que delega a outrem, no caso ao tão ansiado irmão – do que num desejo
130
concreto. Como dize Francis Jeanson, Electra “sacia no imaginário seu desejo de
vingança”; ela “desejava [souhaitait] a morte do casal odiado, mas não a queria [voulait]
realmente; ela tinha transferido esse ato a alguém, ela apenas esperava: o dia em que seu
desejo se realizasse, que um outro agisse em seu lugar esse seu irmão desconhecido, talvez
não chegasse nunca...” (Jeanson, F., 1987, p. 8).
È por estas frestas da sua liberdade “falhada” que Electra deixa o “espírito de
seriedade” reaparecer, quando se tratava é de desnudar, aos olhos de todos – e ela empolga
e quase chega a convencer a multidão a esse respeito – a farsa que a festa dos mortos
representava; mas não, ela troca um tipo de culto dos mortos por outro hedonista. É nisso
que o “contra-golpe” do deus das farsas e dos mortos pôde se viabilizar, com a pedra sendo
rolada para as escadarias vindo desmentir a alegação da princesa de que sua dança era
abençoada pelos mortos.
Na última cena deste Quadro, Electra, já tendo escutado de Egisto o decreto de que
deve partir até o amanhecer – senão seria morta –, descarrega em Orestes a frustração pelo
seu próprio fracasso. Acusa-o de “ladrão” e de ilusionista, por ter tomado dela, em troca da
sedutora imagem da felicidade, a única coisa que lhe pertencia de fato: o ódio. Quando
“Filebo” a insta a fugir com ele para Corinto, ela reage com sarcasmo:
ELECTRA (rindo): Ah! Corinto... Vês, não fazes isso de propósito, mas me
enganas de novo. Que farei eu em Corinto? Tenho que ser razoável. Ainda ontem eu tinha
desejos tão modestos: quando eu servia à mesa, com as pálpebras abaixadas, espiava o casal
real, ela, a velha bela de rosto morto, e ele, gordo e pálido, com sua boca mole e esta barba
preta que lhe corre de orelha a orelha como um exército de aranhas, e eu sonhava um dia
ver uma fumacinha sair de seus ventres abertos, como se fosse o bafo numa manhã fria. Era
tudo o que eu pedia, Filebo, eu te juro. Não sei o que tu queres, mas não devo acreditar em
ti: não tens olhos modestos. Sabes o que eu pensava, antes de te conhecer? É que o homem
sensato não pode esperar nada sobre a terra, senão um dia pagar com o mal o mal que lhe
tenham feito.
ORESTES: Electra, se me seguires, verás que podemos querer muitas outras coisas
sem deixarmos de ser sensatos.
131
ELECTRA: Não quero mais te escutar, fizeste-me já muito mal. Vieste com teus
olhos ávidos neste doce rostinho de menina e me fizeste esquecer meu ódio; abri minhas
mãos e deixei escorrer meu único tesouro. Quis acreditar que poderia curar essa gente com
palavras. Viste o que aconteceu: eles amam seu mal, eles precisam de uma ferida familiar
para cultivar, arranhando-a com suas unhas sujas. É pela violência que devem ser curados,
pois não podemos vencer o mal senão com um outro mal. Adeus, Filebo, vai-te, deixa-me
com meus maus sonhos”. (Sartre, J.-P., 2005, p. 54).
Não obstante se limitar a ser um “mau sonho”, a libertação ansiada por Electra vem
ao encontro da que o próprio Orestes, como vimos, considerava necessário para si mesmo.
A situação em função da qual Orestes empenhará sua liberdade e se definirá a si mesmo, se
construirá como personagem – assumindo o papel de vingador atrida –, está já clara. Toda
situação, como vimos, não é uma imposição (do meio, da história, da natureza, de Deus,
etc.), mas uma motivação do agir livre de um sujeito em vias de autoconstituição (pela ação
em que se projeta adiante de si mesmo e se empenha no mundo). E a “situação” em que
Orestes se vê enredado – por sua livre escolha – tem como motivação, “par excellence”, o
amor que sente por Electra, e, na figura dela, o sentimento “fraterno” que o liga aos argivos
em geral. A alforria que trará para outrem virá do agrilhoar-se consentido de si mesmo a
um “destino” de crimes e de dor do qual passa a fazer parte. Não, certamente, o “destino”
quimérico que ainda habita a cabeça de Electra. Justificando o porquê de sua decisão de não
partir, de permanecer na cidade, mesmo sob o risco de morrer, ela mostra seu apego a este
outro “mane”, que não o de seu pai e de sua irmã: a fantasmática figura do irmão-messias
Orestes, que ela tem certeza de que ainda virá:
“ELECTRA: Ele virá, não pode deixar de vir. Ele é de nossa raça, sabes; ele tem o
crime e a dor no sangue, como eu. É algum grande soldado, com os grandes olhos rubros de
nosso pai, sempre furioso, ele sofre, está preso ao seu destino como os cavalos estripados
que tivessem as patas amarradas ao intestino, e que não pudessem mais se mexer sem
arrancar as entranhas. Ele virá, esta cidade o atrai, estou certa disso, pois é aqui que ele
pode fazer e se fazer o mal maior. Ele virá, com a cabeça abaixada, sofrendo e pronto para
dar o bote. Ele me dá medo: todas as noites o vejo em sonho e acordo gritando. Mas o
espero e o amo. Tenho que estar aqui para guiar sua fúria – pois eu tenho juízo –, para lhe
apontar com o dedo os culpados e para lhe dizer: ‘Bate, Orestes, bate: ali estão eles!’.
132
ORESTES: E se ele não for como tu o imaginas?
ELECTRA: Como queres que ele seja, o filho de Agamêmnon e de Clitemnestra?
ORESTES: Se ele estiver farto de todo esse sangue, tendo crescido numa cidade
feliz?
ELECTRA: Então eu cuspiria em seu rosto e lhe diria: ‘Vai–te, cachorro, vai para
junto das mulheres, pois não passas de uma mulher. Mas tu te enganas: és o neto de Atreu,
não escaparás ao destino dos Atridas. Foste livre para preferir a vergonha ao crime. Mas o
destino virá te buscar em teu leito: terás vergonha a princípio, depois cometerás o crime, a
despeito de ti mesmo!’
ORESTES: Electra, eu sou Orestes.” (Sartre, J.-P., 2005, p. 55).
A revelação deixa a irmã profundamente confusa, ela oscila entre o carinho e a
hostilidade ao constatar que o “messias” esperado não era o guerreiro irado que ela
projetara – assim como, diga-se de passagem, Cristo frustra as expectativas belicistas de
parte do povo e de seus apóstolos. “Ah! Eu teria preferido que tu permanecesses Filebo e
que meu irmão estivesse morto” (ibid., p. 56). Mas ela não cederá aos apelos dele, insistirá
em que vai ficar, que o lugar dela, como “Atrida”, é ali.
É nessa “substancialidade” que Electra reivindica para sua própria identidade que
Orestes extrairá argamassa para inventar a sua própria. Mas isso numa travessia pela
humilhação de se ver como um Orestes falhado, como um Orestes em falta consigo mesmo,
isto é, como o modelo–Orestes (o do guerreiro vingador) que a amada irmã tem em mente.
Como as análises de O Ser e o Nada procuram descrever analiticamente, vemos
aqui o sentimento do “amor” como fome de uma harmonia (impossível) de Para–si e Para–
outro que subentende a operância de nosso “projeto fundamental” de lograr a fusão de Em–
si e Para–si: ser a abertura da consciência e ao mesmo tempo ter a consistência da coisa,
que, no contexto do amor, seria o modo de fruir a liberdade do outro capturado pelo nosso
amor, assim como a maneira de atender as expectativas do “objeto” amoroso ao nos
revertermos, nós mesmos, em objeto, amoldando nossa indeterminação e carência de ser à
133
imagem reificada de nós que parece atrair magicamente o apetite amoroso de quem
amamos (cf. Sartre, J.-P. 2003, p. 454s)
14
.
“Passo de cidade em cidade”, diz Orestes, “estranho aos outros e a mim mesmo, e
elas vão se fechando atrás de mim como um mar calmo. Se eu deixar Argos, que restará de
minha passagem, senão o amargo desencanto de teu coração?” (Sartre, J.-P., 2005, p. 58).
Se Orestes foi o “ladrão” do único tesouro de que Electra dispunha – o ódio –, assim
também Electra lhe “roubara” algo: a possibilidade de tolerar sua própria indiferença ao
mundo, essa liberdade morna que agora, em sendo transcendência transcendida por Electra,
isto é, apanhada de fora, é devolvida a si mesma com a marca da decepção e da velada
acusação de covardia – a mesma acusação que, em Huis Clos, pesará “eternamente” sobre
Garcin, pelo “julgamento” proferido por Inês: “És um covarde, Garcin, um covarde porque
eu o quero, Eu o quero, entendes, eu o quero! E no entanto vês como sou frágil, um vento;
não sou mais do que o olhar que te vê, que este pensamento incolor que te pensa” (cf.
Sartre, J.-P., 2005b, p. 126).
Mas Orestes, embora preso a uma existência “desencarnada”, não está morto como
Garcin: é-lhe possível ainda a ação, portanto a opção de aceitar ou não o julgamento alheio
que tenta lhe capturar e impor uma identidade.
Em registro mais “frívolo”, impasse análogo afeta o protagonista do romance A
Idade da Razão. Lembremos a passagem em que Mathieu, numa boate, perfura a própria
14
Nossa interpretação da relação entre Orestes e Electra como um caso de amor – de conotações
inclusive incestuosas – é amplamente desenvolvida por François Noldelmann, que chega a afirmar
que a seqüência das cenas que reúnem os irmãos configura o relato estrito de uma "aventura de
amor", que, do encantamento inicial à ruptura trágica, passa pelas "núpcias" (figuradas pelo vestido
branco com que Electra vem a público falar dos novos horizontes de vida trazidos a ela por Filebo)
e pela iniciação à vida adulta: "Simbolicamente, Orestes se torna adulto diante de Electra, que
desperta a virilidade dele" (Neudelmann, F., 1993, p. 92). Em As Palavras, de fato, Sartre afirma
com todas as letras:
“Sonhei durante muito tempo com escrever um conto sobre duas crianças perdidas e discretamente
incestuosas. Encontrar–se–iam em meus escritos vestígios desse fantasma: Orestes e Electra em As
Moscas; Boris e Ivich em Os Caminhos da Liberdade; Frantz e Leni em Os Seqüestrados de Altona.
Este casal é o único a passar aos atos. O que me seduzia nesse laço de família era menos a tentação
amorosa do que a proibição de fazer o amor: fogo e gelo, delícias e frustração misturados, o incesto
me aprazia caso permanecesse platônico” (Sartre, J.-P., 2000, p. 41, nota 1). A confidência se dá no
contexto em que Sartre falava de sua relação com a mãe Anne–Marie, que era para ele como que
uma “irmã mais velha”.
134
mão com uma faca, apenas como meio de demonstração de sua "virilidade" a Ivich. Tal
"performance" – palavra que aqui mescla ressonâncias teatrais e, sem dúvida, libidinais –,
no caso de As Moscas, vai passar por outras "perfurações", ato não isento de simbolismo
sexual: Orestes se converterá em machado que cortará em duas as muralhas obstinadas de
Argos, cindirá esse grande ventre coletivo, se enfiará no coração da cidade com um
machado que se enfia no coração de um carvalho (árvore miticamente associada a Júpiter).
Recordemos a afirmativa do comentador François Noudelmann: "Simbolicamente, Orestes
se torna adulto diante de Electra, que desperta a virilidade dele" (Neudelmann, F., 1993, p.
92, destaque nosso).
Electra o instiga, voluntariamente ou não, a esse amadurecimento súbito, recorrendo
inclusive a uma ofensa “hegeliana”, o termo “bela alma”: "Vai–te, bela alma. Não tenho a
ver com belas almas; é um cúmplice o que eu queria" (Sartre, J.-P., 2005, p. 57).
Na Fenomenologia do Espírito, Hegel diz que a "bela alma" é alguém a quem falta a
"força para fazer-se coisa e suportar o ser", ou seja, a força da exteriorização, ou melhor, da
extrusão (Entäusserung), no sentido da atividade vulcânica (cf. Meneses, P., 1992, p. 10).
Interessante aqui resgatar outra afirmação de Hegel, acerca especificamente da
tragédia: ele diz que esta implica uma ação que rompe a "bela tranqüilidade", ou
"simplicidade compacta", ostentadas pelo mundo ético anterior. O preço, porém, desse agir
é a instauração de lados opostos dos quais só um é perseguido pelo agente, unilateralidade
que, por sua vez, engendra culpa. "A consciência–de–si é seu agir, e portanto sua culpa; já
que o agir é essencialmente cisão. Só é inocente o ser da pedra; a criança, não. (...) O herói,
ao seguir uma só das Leis, transgride a outra, que como potência ofendida clama por
vingança. (...) A outra potência espreita nas trevas, e surge ante o fato consumado para
lavrar o flagrante. O agente não pode negar a culpa e o delito: sua ação trouxe a
possibilidade à luz do dia, o inconsciente ao consciente; faz experimentar o outro lado da
essência como seu, mas agora como potência violada que ganhou como inimiga". Opera–se
uma dissolução da essência ética (apud Meneses, P., ibid., p. 127–8).
Há em Hegel uma íntima imbricação entre ação, liberdade e culpa, termos que por
sua vez se antagonizam com a "bela alma" e com a "bela tranqüilidade" do gozo passivo e
inerte das benesses de um mundo (inconscientemente) apaziguado.
135
O agente, o "herói", é quem faz essa travessia por entre cisões, antagonismos e
retaliações; e é alguém que, por definição, se faz cúmplice ativo de uma "desordem", que
ele considera necessária à constituição ou restauração de uma ordem mais justa do que a
estabelecida. Nada disso o jovem Filebo tinha em mente quando chegara em Argos. Não,
pelo menos, como uma cogitação efetiva. Ele ainda não era, como diz Eric Bentley, o
Orestes vingador; ainda "não sente que os problemas de Argos tenham a ver com ele;
racional, conciliatório, distante, sente-se inclinado a deixar que os mortos enterrem seus
mortos"; o que mudaria muito após o encontro com Electra, que mesmo antes desse
segundo diálogo "já conseguira tocar as profundezas da alma de Orestes" (Bentley, E.,
1991, p. 288), insuflando-lhe o ímpeto não só de "revelar" sua verdadeira identidade, com
também de construí-la.
A recusa de Electra em admitir que ele “é” Orestes, porém, acentua nele o lamento,
já expresso no início da peça, de se sentir "estranho aos outros e a si mesmo" O amor a
Electra só fez aumentar-lhe a vontade, agora possivelmente acrescida de uma conotação de
auto-afirmação erótica. Cabe, aliás, neste contexto remetermo-nos aos traços de passividade
tipicamente “afeminada” com que os colaboracionistas pervertiam a astúcia hegeliana da
razão para faze-la astúcia “feminina”, que no fim, se lança aos braços da força, isto é, do
invasor alemão: “Parece-me que há aqui”, dizia Sartre sobre a concepção de história que
levava os colaboracionistas a consentir com a ocupação, “uma curiosa mistura de
masoquismo e de homossexualidade. Os meios homossexuais parisienses forneceram
numerosos e brilhantes recrutas [para a causa colaboracionista]” (cf. Sartre, J.P, 1949, p.
58).
Que Orestes é animado por uma vontade de conquistar a “mão de Electra”, de fazer
das núpcias com a irmã uma simbólica iniciação a si mesmo, ou melhor, a um ir além de si
mesmo pela conquista de uma liberdade engajada no mundo, parece ainda mais evidente
quando ele diz:
“Tu me expulsas? (Ele dá alguns passos e pára.). É culpa minha se não me pareço
com este soldado furioso que tu esperavas? Tu o terias tomado pela mão e dito: ‘Bate!’ A
mim, nada pediste. Quem sou eu, bom Deus, para que minha própria irmã me rejeite, sem
nem ter me posto à prova? (Sartre, J.-P., 2005, p. 58–9)”.
136
Orestes então anuncia a vontade de ficar e cumprir o desejo de vingança da irmã.
Mas abriria mão, indaga Electra, das “cidades felizes” de que lhe falara quando usava o
hedonista pseudônimo de Filebo? “Que me importa a felicidade. Quero minhas lembranças,
meu solo, meu lugar entre os homens de Argos” (ibid., p. 58). Quando Electra diz que não
ousaria sobrecarregar com o peso de um crime tão pérfido aquela “bela alma”, sem ódio,
ele responde, “abatido”, segundo a rubrica:
“Dizes bem: sem ódio. E sem amor. Tu, eu teria podido te amar. Teria podido... Mas
quê? Para amar, para odiar, é preciso se dar. Como é belo o homem de sangue rico,
solidamente plantado no meio de seus bens, que um belo dia se dá ao amor, ao ódio, e que
entrega consigo sua terra, sua casa e suas lembranças. Quem sou eu, e o que tenho para dar?
Mal existo: de todos os fantasmas que assombram hoje a cidade, nenhum é mais fantasma
do que eu. Conheci fantasmas do amor, hesitantes e dispersos como vapores; mas ignoro as
densas paixões dos viventes. (pausa.) Vergonha! Voltei para minha cidade natal, e minha
irmã se recusou a reconhecer–me. Onde irei agora? Qual cidade devo agora assombrar?
(ibid.)”.
Esse é outro dos momentos da peça, entre os vários, em que Orestes trai uma certa
inveja de quem, servo ou senhor, recebe como que “por natureza” – ou melhor, pelos
mecanismos morais e psicológicos e pelos tentáculos institucionais da má-fé – uma
pertença ao mundo, e ao mesmo tempo certa posse de um mundo, entendendo–se por
“mundo”, aqui, um conjunto de bens materiais e simbólicos, entre os quais as “densas
paixões dos viventes”. De modo análogo, Goetz, em O Diabo e o Bom Deus (1951), diria a
Heinrich: “Nós não somos e não temos nada. Todos os filhos legítimos podem fruir da terra
sem pagar. Você não, eu não”.
A semelhança está longe de ser casual: estamos diante de uma estrutura comum aos
heróis sartrianos, como mostrou Francis Jeanson: a bastardia, não como estado civil, e sim
como uma cisão existencial decorrente da ausência de qualquer lastro “absoluto” com o
mundo e de qualquer unidade “substancial” consigo. Como Goetz, que se diz “feito de duas
metades que não se juntam”, como tamm o Hugo de As Mãos Sujas (1948) – “meio
burguês e meio revolucionário” e “enganado por todos os lados”–, Orestes é premido por
essa bastardia: “é de Argos e não é; é um homem que os outros ignoram, um homem que
137
desliza inutilmente na superfície de um mundo, no qual o prazer lhe é sempre recusado”.
Nos três casos, o que resta é alcançar num esforço de conquista o que para os outros advém
por herança: o engajamento no mundo enquanto experiência de possuir e ser possuído, de
privar de uma consistência qualquer, nem que ela advenha, como se faz mister para esses
bastardos, da escolha do “caminho mais penoso, de violentar o mundo, de obrigar o mundo
a se abrir, de possuir em si a Realidade, pelos mágicos efeitos de um comportamento
excepcional, fora do comum” (Jeanson, F., 1987, p. 48–9).
Se Cristo é tentado pelo demônio, antes de iniciar a vida missionária, Sartre opera
inversão irônica desse esquema e faz Orestes passar pelo que Noudelmann chama de
“tentation christique”, quando se propõe, diante de Electra, a “tomar sobre si os terrores de
Argos, de se sacrificar pela liberdade dos homens” (Noudelmann, F., 1993, p. 25–6).
Orestes, de fato, aventa a possibilidade de “assumir todos os crimes” que
atormentam os argivos (Sartre, J.-P., 2005), numa espécie de “redenção” de todas as culpas,
e se compara ao escravo que passa pelas ruas carregando, com os joelhos trêmulos, um
pesado fardo – talvez a cruz?–, admira esse escravo, que de todo modo está em “sua
cidade” como uma folha na folhagem e uma árvore na floresta, chega a querer ser esse
escravo: “Argos está ao redor dele, pesada e quente, plena de si mesma: eu quero ser esse
escravo, Electra, quero estender a cidade em volta de mim e me enrolar nela como se fosse
um manto. Eu não vou embora” (Sartre, J.-P., 2005, p. 59).
Já por Cristo representar para Orestes o que o demônio representava para Cristo – a
tentação, o perigo do “desvio de rota” em relação ao real significado da mensagem a ser
dita e vivida–, temos indicação segura do acerto de Julia Kristeva ao assinalar, em seu
Sentido e Contra-senso da Revolta (2000, p 257) que Sartre, em As Moscas, "faz eco" a
Nietzsche na tentativa de "fundar um anticristo, um anti-herói anticrístico, que se arranca
definitivamente da proteção divina e ao mesmo tempo à aspiração de pureza moral e à
conseqüente divinização". Daí que, mesmo se formalmente análoga ao enredo salvífico da
missão de Cristo, a “redenção” trazida pelo herói existencialista se resolverá numa atitude
de matar – antes que de se dar à morte –, e “matar” inclusive a própria idéia de pecado e de
penitência.
138
A tentação de Orestes é a tentação dos bastardos sartrianos de que fala Jeanson: o
sonho do Absoluto, sonho acordado dos que não conseguem, por alguma contingência do
destino, dormir o sono dogmático dos bem ajustados ao mundo “legítimo”. Assim como
Goetz, que antes de assumir a total relatividade histórica dos valores se apega,
sucessivamente, ao Mal e ao Bem “absolutos”, Orestes lança um último brado desesperado
aos céus, antes de fazer seu, não como lamento elegíaco e sim como tarefa, o “sentido da
terra” preconizado pelo Zaratustra nietzschiano:
“ORESTES, levantando a cabeça: Se ao menos eu enxergasse com clareza! Ah!
Zeus, Zeus, rei do céu, eu raramente me voltei para ti, e nunca me foste muito favorável,
mas és testemunha de que jamais desejei senão o Bem. Agora estou cansado, não distingo
mais o Bem do Mal e preciso que me tracem meu caminho. Zeus, é preciso realmente que
um filho de rei, expulso de sua cidade natal, se resigne santamente ao exílio e a abandone
com a cabeça baixa, como um cão rastejante? É esta tua vontade? Não posso acreditar. E,
no entanto... no entanto tu proibiste o derramamento de sangue... Ah! Quem fala em
derramar sangue, não sei mais o que digo... Zeus, te imploro: se a resignação e a abjeta
humildade são as leis que tu me impões, manifesta a mim tua vontade por algum sinal, pois
não consigo enxergar com clareza” (Sartre, J.-P., 2005, p. 60).
Como bem assinalou Jeanson, “Zeus”, na peça de Sartre, é “o símbolo do Bem, o
princípio moral absoluto. Júpiter é o patrono de todos os Egistos; é o constrangimento
exercido em nome do Bem, a religião do remorso, a Igreja temporal e todas as suas
‘momices’, a ordem da Natureza como justificativa dessa ‘ordem moral’ a que atribui toda
a tirania. Acontece que o próprio Bem dissimula e favorece, sob a falsa universalidade de
uma moral abstrata, o conformismo social e a resignação diante da ordem estabelecida; se
Júpiter é o braço secular, é a pura Lei de Zeus que lhe fornece os textos...” (Jeanson, F.,
1987, p. 7, n.1).
Mas o “fiat lux” de Júpiter – o raio luminoso que ele faz incidir sobre a pedra
sagrada – a mesma que fechava a caverna, e que levou ao fracasso o golpe de Electra –
produz efeito contrário ao que o deus esperava:
“ORESTES, olhando a pedra: Então... é isso o Bem? (pausa. Olhar fixo sobre a
pedra.) Obedecer sem resistir. Docemente. Dizer sempre “perdão” e “obrigado”... é isso?
139
(pausa. Olhar fixo sobre a pedra) O Bem é o Bem deles... [Le Bien. Leur Bien] (pausa)
Electra!
ELECTRA: Vai–te, vai–te depressa. Não decepciones essa sensata ama-de-leite que
se reclina sobre ti do alto do Olimpo. (Ela pára, desconcertada.). Que tens?
ORESTES, com uma voz alterada: Há um outro caminho.
ELECTRA, assustada: Não banques o malvado, Filebo. Pediste as ordens dos
deuses. Pois bem! Agora as conheces.
ORESTES: Ordens?... Ah sim... Queres dizer: aquela luz ao redor desse
pedregulho? Ela não é para mim, esta luz; e ninguém pode mais me dar ordens agora.”
(Sartre, J.-P., 2005, p. 61).
Este é ponto de ruptura que advém, como explica Noudelmann, de uma
“desmistificação dos valores. O Bem não é mais o bem comum, uma lei acima dos
indivíduos, à qual cada um deveria se submeter, mas um bem particular, um valor relativo a
serviço de um poder. (Orestes não reconhece mais nenhum valor, nenhuma autoridade. Os
deveres não senão os direitos que os outros tomaram sobre nós, como afirma Nietzsche em
Aurora. Tudo é vazio, bruscamente: não há mais balizas, nenhuma moral absoluta. O
mundo pleno dos valores se desvanece para deixar lugar a um espaço puro onde tudo é
possível, uma cena deserta onde inventar a norma. O ato de Orestes será além do bem e do
mal, sem desculpas nem legitimidade a priori” (Noudelmann, F., 1993, p. 24–5).
Orestes vivencia, nesse momento, um “adeus à juventude” – ao “bom e piedoso
garotinho” que era, na irônica expressão de Electra (Sartre, J.-P., 2005, p, 60 )–, vivencia a
perda dos cânticos e odores hedonistas das noites de Corinto ou de Atenas (ibid., p. 62).
“Perda” em termos, já que, exilado, ele vivia todos esses prazeres como que “por
empréstimo”, pois eram dos outros... Assim também, como agora descobre, o Bem é dos
outros. É deles, forma, aliás, usual de os parisienses se referirem aos alemães, numa
estratégia de anestesia – via linguagem – da angústia pelos horrores da Ocupação e da
heteronímia cotidianas (cf. Capítulo II deste trabalho).
Mas a dor de descobrir que o Bem é “deles” é ainda mais radical quando se
descobre o é que não apenas em conjunturas políticas autoritárias, já que o convívio
140
humano tende a ser sempre, tragicamente, conflito inconciliável de valores. A tirania, aliás,
tenta ocultar essa tragicidade, ao impor modelos padronizados de conduta e pensamento;
daí que a “missão” de que Orestes se investe aqui é de trazer não o conforto de um outro
“Bem”, este sim consentâneo à “natureza humana”, mas sim o desespero que é começo da
vida humana (ibid., p. 106) porque começo da autêntica (e conflituosa) tarefa de inventar
valores.
Contrastante com o calor infernal de Argos é o 'frio' que sente Orestes (ibid., p. 61).
Frio e sensação de que algo acaba de morrer, e de que tudo é agora um "vazio descomunal,
a perder de vista". Mais tarde dirá, a Júpiter, que sua sensação, neste instante, era a de que,
em transe pelo "raio" da liberdade que o atingiu, sentiu que a natureza naquele instante se
emudeceu, deixou de ser a "sereia a cantar teu Bem e a me prodigalizar conselhos"; ela
"saltou para trás e me senti completamente só, no meio de teu mundinho benigno, como
alguém que perdeu sua sombra! E não há mais nada no céu, nem Bem nem Mal, nem
ninguém para me dar ordens" (ibid., p. 103-104). O “bem a priori” é impossível se não há
“uma consciência infinita e perfeita para pensá–lo” (Sartre, J.-P., 1087, p. 9). Assim
também seu oposto, o Mal, esvazia-se de qualquer acepção metafísica transcendente. Como
a náusea de Roquentin, o frio sentido por Orestes é a angustiante imagem da contingência
abissal do mundo e de si mesmo, e a decorrente sensação de que se é, como diria
Heidegger, um ser unzuhause, “fora de casa” no mundo e sem um outro mundo com que
contar. É o desamparo em relação a todas medidas que antes davam ordem e sentido ao
mundo, por exemplo a medida do bem e do mal. É a angústia do homem “ligado por um
compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é
também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade
inteira” (Sartre, J.-P. 1987, p. 7). A angústia, em suma, da “total e profunda
responsabilidade” que nos pesa não como um catálogo de valores – por mais que a noção
de autenticidade aqui implícita, e o oposto dela, a “má-fé”, tenham já alguma ressonância
normativa – mas como premissa da criação de todo valor.
Ao contrário das formas de “compromisso” herdadas, aceitas automaticamente, e
que fazem a realidade humana se assemelhar às coisas – como no exemplo do escravo que
carrega seu fardo pelas ruas de sua cidade –, o engajamento autêntico, vemos em As
Moscas, não é, a rigor, uma forma de ser, mas de existir, ou seja, é crivada do jogo de ser e
141
nada, de negação e afirmação, que faz do homem, na fórmula lapidar de O Ser e o Nada,
um ser que é aquilo que não é e que não é aquilo que é. A entrada na História, tal como
dramatizada nesta peça, é um movimento em direção a algo de coletivo, sim, mas sem a
supressão, ao contrário, com o aguçamento do senso de solidão pessoal; é outro dos
“trabalhos do negativo”, é o negativo como ponto de partida e de chegada do processo de
positivação de um laço social que tende, a todo instante, a sedimentação em novas
dialéticas do senhor e do escravo, a novos jogos de dominação e adulteramento da
liberdade originária. Talvez por isso um homem que pode dizer: “Não sou nem senhor nem
escravo Júpiter. Eu sou minha liberdade! Assim que me criaste eu deixei de te pertencer”
(Sartre, J.-P., 2005, p. 106), “funde” simbolicamente o reino humano mas se recuse a
assumir o trono deste reino, preferindo voltar ao “exílio”, ou seja, ao reconhecimento da
diferença, da impossibilidade de fusão, no seio da identidade coletiva sugerida pelo
compromisso existencial e político com a História.
Evidentemente que tais considerações não esgotam a complexidade e reformulações
que a questão do engajamento e, de modo mais geral, o problema ético, receberam ao longo
da vasta obra de Sartre. Estamos apenas extraindo algumas das possíveis conclusões que o
discurso dramático-filosófico próprio a As Moscas suscita. Conclusões que, à primeira
vista, nos parecem afins à forte marca de individualismo ontológico e ético que Gerd
Boernheim vê nesta doutrina, tão tributária que é da “subjetividade instauradora” – o cogito
cartesiano, embora redimensionado pela idéia heideggeriana de ser-no-mundo e pelo
conceito husserliano de intencionalidade –; o comentador brasileiro chega a dizer que a real
legitimidade do “engajamento” existencialista – que, no extremo, é um compromisso
consigo mesmo, tão desenraizado é o homem pelo próprio círculo nadificador que o aparta
do mundo das coisas e dos outros (Bornheim, G., 2003, p. 128).
"'Eu te garanto', diz Orestes a Electra, 'que há outro caminho..., meu caminho. Não o
vês? Ele começa aqui e desce até a cidade. É preciso descer, entendes, descer até vós, vós
estais no fundo de uma cova, bem no fundo...'. (Ele caminha até Electra.). 'Tu és minha
irmã, Electra, e esta cidade é minha cidade. Minha irmã!'" (Sartre, J.-P., 2005, p. 61-2).
Salta aos olhos o eco, aqui, das linhas iniciais do Zaratustra; quando se dá uma
“mudança no coração” do profeta nietzchiano, ele decide retornar à planície da vida
142
humana, para anunciar seu novo evangelho, após dez anos de solidão na montanha (sendo
que o nome de Orestes provém de “oros”, montanha, donde “o montanhês” (cf. Brandão, J.
S., 2000, vol. II, p. 192). Zaratustra – como Orestes o faria em relação às doutrinas do
Pedagogo –, declara seu “cansaço” em relação a certa forma de saber cultivado na solidão
das alturas:
“Aborreci-me de minha sabedoria, como a abelha do mel que juntou em excesso;
preciso de mãos que para mim se estendam. (...) Por isso, é preciso que eu baixe às
profundezas, como fazes tu [dirige-se ao sol] à noite, quando desapareces atrás do mar,
levando ainda a luz ao mundo ínfero, ó astro opulento! Como tu, devo ter o meu ocaso,
segundo dizem os homens para junto dos quais quero descer” (Nietzsche, F., 1986, p. 27).
Essa “descida” de Orestes aos homens é também uma réplica “humanista” que o
Sartre “engajado”, que volta do cárcere, faz a si mesmo, ou a personagens seus como
Roquentin, de A Náusea, e Paul Hilbert, protagonista do conto “Erostrato”, em O Muro
(1939).
Valendo-se da mesma assimetria vertical que ressurge em As Moscas, Hilbert ainda
podia dizer: “É preciso ver os homens do alto. Eu apagava a luz e me punha à janela. Eles
não supunham, absolutamente, que alguém pudesse observá-los de cima. Eles cuidam da
fachada, às vezes dos fundos, mas todos os efeitos são calculados para espectadores de um
metro e setenta. (...) Eles não pensam em defender as espáduas e os crânios com cores vivas
e tecidos vistosos, não sabem combater esse grande inimigo do humano: a perspectiva de
alto para baixo. (...) É preciso escorar as superioridades morais com símbolos materiais,
sem o que desmoronam”. Aquela sacada do sexto andar era para Hilbert a garantia concreta
de sua “superioridade de posição” sobre o rebanho lá embaixo. “Estou colocado acima do
humano que existe em mim e o contemplo” (Sartre, J.-P., 1965, p. 61).
O Pedagogo também insistia junto ao pupilo sobre a “superioridade” da liberdade de
espírito, do ceticismo sorridente, da sabedoria desencarnada que evita as ilusões e paixões
mundanas. Mas Orestes não quer mais esse tipo de “superioridade”. Quer, isto sim,
nivelar–se, quer experimentar uma liberdade que é doravante indiscernível de uma “moral
da ação e do compromisso”, (Sartre, J.-P., 1987, p. 15), uma moral que é histórica na
medida em que estão na História as condições e limites concretos do exercício da liberdade,
143
bem como o espaço tanto da singularização individual quanto do inevitável “nivelamento”
coletivo – tão drasticamente vivido pelo próprio Sartre nos confinamentos de Trier e da
Paris nazificada.
É pela mediação de certa espécie de má-fé – o sonho messiânico de Electra – que
Orestes dá o salto para além de uma liberdade “pura”, mas vazia. Essa liberdade metafísica
agora manchará de sangue as mãos, para que se possa tornar liberdade histórica. Sendo a
história dada –a situação da Argos/ Paris- um quadro de "morte em vida", de epidemia de
má-fé, é compreensível que a conversão de Orestes à história, e sua decisão de ser homem
entre homens, se dê como descida ao "fundo de uma cova": notam-se aqui ecos de um tema
mítico de grande difusão nos ritos iniciáticos (Eliade, M., 1959), e que os gregos
designavam como catabase –a descida ao reino dos mortos, ilustrada por exemplo na
Odisséia e na Eneida, e que na Divina Comédia tem correspondência com a incursão do
poeta pelo "inferno" cristão. A passagem da peça faz lembrar também a aventura de Perseu,
no reino das sombras, contra Medusa –a petrificadora dos homens, metáfora usada em O
Ser e o Nada para designar o efeito aprisionador da experiência intersubjetiva, do "Olhar"
alheio reificador.
O reconhecimento – motivação essencial da luta das consciências e do coexistir
humano – que Orestes buscava, vem – provisoriamente– desse movimento transfigurador,
tão imaginário que é capaz de instaurar a “fatalidade”, um domínio, o da vida humana,
originariamente caracterizado pela contingência. Como diz Electra ao final deste Primeiro
Quadro: “Sim. Tu és mesmo Orestes. Não te reconhecia, pois não era assim que eu te
esperava. Mas esse gosto amargo na minha boca, esse gosto de febre, mil vezes eu o senti
em meus sonhos e o reconheço. Então tu vieste, Orestes, e tua decisão está tomada e estou
como em meus sonhos, no seio de um ato irreparável, e tenho medo – como em sonho. Ó
momento tão esperado e tão temido! Agora os instantes vão se encadear como as peças de
uma máquina, e não teremos repouso enquanto aqueles dois não estiverem deitados de
costas com os rostos parecidos a amoras esmagadas. Quanto sangue! E és tu que vais
derrama-lo, tu que tinhas os olhos tão doces. Que pena! Jamais voltarei a ver aquela doçura,
jamais voltarei a ver Filebo. Orestes, és meu irmão mais velho e o chefe de nossa família,
toma-me nos teus braços, proteja-me, pois iremos ao encontro de enormes sofrimentos”
(Sartre, J.-P., 2005, p. 64).
144
Note-se a espécie de primeira “entronização” que toca a Orestes antes mesmo de
que reaveja o direito dos Atridas ao trono de Argos: ele agora é um “chefe”, termo com
conotação nitidamente pejorativa no pensamento sartriano, enquanto coagulação
institucional da má-fé (cf., por exemplo, o magistral conto antifascista “Infância de um
Chefe”, na coletânea O Muro).
SEGUNDO ATO (QUADRO 2)
O segredo da liberdade
: Os irmãos estão já no interior do palácio. Escondem-se
atrás do trono real, e de lá acompanharão, secretamente, duas conversas de Egisto muito
comprometedoras. Uma, com a esposa Clitemnestra. A outra, com Júpiter. Na primeira, o
tirano se diz “cansado” da comédia que encena, vestido de “espantalho”, há 15 anos; diz
que de tanto vestir aqueles trajes lutuosos, eles acabaram por tingir sua alma (ibid., p. 69).
Seu desgaste é tão grande que ele chega a se “esquecer” de que tudo aquilo é uma
fábula: quando a esposa se aproxima para “consolá–lo”, ele a repele: “Larga–me, sua
depravada! Não ficas envergonhada, sob a vista dele?” (ibid.). “Ele”, no caso, é o espectro
de Agamemnom. É a rainha o faz cair em si. “Senhor, eu vos suplico... Os mortos estão
debaixo da terra e não nos incomodarão tão cedo. Esquecestes que vós mesmos é que
inventastes essas fábulas para o povo?” (ibid.). O senhor é escravo do escravo, ensinava
Hegel: as falácias que sustentam uma dominação alienam também o dominador, o “chefe”:
na terminologia sartriana, o para–si (consciência humana), sendo também para–outro, não é
incólume, em seu ser, em seu “si” projetado, à imagem de si que é obrigado, por si mesmo,
a expor aos outros. A consciência do rei é súdita da imagem que o rei impõe aos súditos.
Sozinho por um momento, Egisto, “rei parecido a todos os reis”, segundo Júpiter diria
pouco depois (ibid., p. 70), desabafa:
“É este, Júpiter, o rei do qual precisavas para Argos? Eu vou, eu venho, sei gritar
com uma voz forte, levo por todo lado minha grande aparência terrível, e aqueles que me
vêem se sentem culpados até a medula dos ossos. Mas não passo de uma casca vazia: um
animal me comeu por dentro sem que eu percebesse. Agora observo a mim mesmo e noto
que estou mais morto que Agamêmnon; eu disse que estava triste? Menti. Não é triste nem
145
alegre o deserto, esse inumerável nada das areias sob o nada resplandecente do céu: é
sinistro. Ah! Daria meu reino por uma lágrima que eu fosse capaz de derramar!” (ibid.).
As Cenas 3 a 5 deste Segundo Ato oferecem uma espécie de auto-retrato de Egisto
e, mais que isso, uma corrosiva caracterização do princípio mesmo do poder, ou, como
disse Sartre, do “cancro do poder”, do qual ele pessoalmente se viu livre graças à morte
precoce do pai: não lhe ensinaram a obedecer, e ele jamais conseguiu dar uma ordem sem
rir nem fazer rir (Sartre, J.-P., 2000, p. 17). Esse pendor pessoal se cruza com a “anarco-
metafísica” de suas idéias juvenis (Moravia, S., 1985, p. 10–11), e ambos confluem na
teoria da liberdade que O Ser e o Nada enuncia e As Moscas põe em ação.
É, sobretudo, desse prisma ontológico-político que a peça esboça a crítica não só do
autoritarismo do poder temporal como do molde “arquetípico” dele, o “reino de Deus”.
Este será um dos aspectos centrais de nossa discussão do mito em As Moscas, no capítulo
seguinte, por isso aqui iremos apenas pontuar o território de nossas ulteriores análises.
Júpiter entra em cena para fazer uma última tentativa de impedir – como era seu
objetivo desde que descera do Olimpo e seguira os viajantes vindos de Atenas – a vingança
de Orestes. Agora, não lhe resta senão delatar a conspiração em curso, e conclamar Egisto a
que detenha os filhos de Agamêmnon. O cansado rei, a princípio, parece não se animar com
aqueles apelos insistentes. Esboça até certo “ciúme”: por que tanta preocupação em
preservar Orestes de cometer um crime, se o deus em nada objetou – pelo contrário –
quando o próprio Egisto manchou as mãos de sangue há 15 anos, num assassinato que
desde então o soberano vem “expiando” (Sartre, J.-P., 2005, p. 74), não, por certo, com o
remorso compulsivo, mas com a farsa compulsória?
O senhor das moscas, em réplica, explica: “Os crimes não me agradam por igual.
Egisto, estamos entre reis, eu te falarei francamente: o primeiro crime, fui eu que o cometi
ao criar os homens mortais. Depois disso, que podíeis fazer vós outros, os assassinos? Dar a
morte a vossas vítimas? Ora, elas já a traziam consigo, quando muito se podia apressar sua
eclosão. Sabes que teria sido de Agamêmnon se tu não o tiveste morto? Três meses depois
ele teria morrido de apoplexia no seio de uma bela escrava. Mas teu crime me servia
(ibid.)”.
146
Eis a diferença entre um crime como o de Egisto e o intentado por Orestes: “Amei o
teu [crime] porque foi um assassinato cego e surdo, ignorante de si mesmo, à moda antiga,
mais parecido com um cataclismo do que com uma iniciativa humana. Não perdeste tempo
me desafiando: feriste movido pela fúria e pelo medo; e, quando a febre abaixou,
consideraste teu ato com horror e não quiseste reconhece-lo. Mas quanto proveito eu tirei
dele! Para um morto, vinte mil outros mergulhados no arrependimento, eis o balanço. Não
foi um mau negócio” (ibid., p. 75). Já o crime de Orestes, ao contrário, seria um ato de
liberdade, a liberdade em ato, consciência não turvada pelo suposto “poder das paixões” ou
de qualquer falso determinismo. Assim livre, engendraria não remorso, mas
responsabilidade integral pelas conseqüências. E tudo isso seria de um efeito “pedagógico”
desastroso para o obediente rebanho da religião da culpa, uma catástrofe para a ordem das
almas e da cidade.
Nem assim Egisto parece convencido a agir. Seu desapreço à vida foi tamanho,
nesses anos todos, que um perigo externo já não conseguiria ser pretexto para que ela
merecesse ser defendida agora. Mas não é a vida de Egisto o que importa a Júpiter – ele não
o ama, ele, admite, “não ama ninguém” (ibid., p. 74). O deus age para garantir a própria
sobrevivência: o que será de sua soberania sobre os homens se eles desaprenderem o
catecismo do remorso? Se eles, em suma, tiverem acesso ao “doloroso segredo dos deuses e
dos reis: é que os homens são livres. Eles são livres, Egisto. Tu o sabes, eles não” (ibid., p.
76, destaque nosso).
Nisso Egisto é parecido não só a todos os reis da Terra (ibid., p. 70), como também
ao rei dos Céus, de que foi feito “à imagem” e semelhança (noutra evidente alusão paródica
de Sartre ao mitologismo judaico-cristão). E o rei é réu confesso neste “tribunal da razão”
existencialista:
“EGISTO: Mas é claro, se [os homens] soubessem [do segredo de que são livres],
meteriam fogo em meu palácio. Há 15 anos que enceno a comédia para lhes mascarar seu
próprio poder (ibid., p. 76).
JÚPITER: Vês bem como somos parecidos.
EGISTO: Parecidos? Que ironia é essa de um Deus se dizer parecido a mim? Desde
que reino, todos meus atos e todas as minhas palavras visam a compor minha imagem;
147
quero que cada um de meus súditos a traga em si e que sinta, até mesmo na solidão, meu
olhar severo pesar sobre seus pensamentos mais secretos. Mas sou eu a primeira vítima:
não me vejo mais senão como eles me vêem, me inclino sobre o enorme poço de suas almas
e minha imagem está lá, bem no fundo, ela me repugna e me fascina. Deus todo-poderoso,
que sou eu, senão o medo que os outros têm de mim?
JÚPITER: Que então pensas que sou eu? (Apontando para a estátua [uma estátua
“horrível e sangrenta” de Júpiter, que decora a sala do palácio de Egisto]). Eu também
tenho minha imagem. Pensas que ela não me dá vertigem? Há cem mil anos eu danço
diante dos homens. Um dança lenta e sombria. É preciso que eles me olhem: enquanto têm
os olhos fixos sobre mim, se esquecem de olhar para si mesmos. Se eu me esquecesse por
um só instante, se eu deixasse o olhar deles se desviar...
EGISTO: E então?
JÚPITER: Deixa. Isso só importa a mim. Estás cansado, Egisto, mas de que te
queixas? Morrerás. Eu, não. Enquanto houver homens sobre esta terra, estarei condenado a
dançar diante deles.
EGISTO: Ai de nós! Mas quem nos condenou?
JÚPITER: Ninguém senão nós mesmos, pois temos a mesma paixão. Tu amas a
ordem, Egisto.
EGISTO: A ordem. É verdade. Pela ordem que seduzi Clitemnestra, pela ordem que
matei meu rei; queria que a ordem reinasse e que reinasse por mim. Vivi sem desejo, sem
amor, sem esperança: fiz a ordem. Ó terrível e divina paixão!
JÚPITER: Não poderíamos ter outra: sou um Deus, e tu nasceste para ser rei.
EGISTO: Ai de nós!
JÚPITER: Egisto, minha criatura e meu irmão mortal, em nome dessa ordem a que
ambos servimos, eu te ordeno: detenha Orestes e a irmã dele” (Sartre, J.-P., 2005, p. 76–8).
A homologia entre o sagrado e o profano, no caso, entre o poder celestial e o
terreno, são um dos aspectos mais essenciais do pensamento mítico, conforme veremos,
com mais detalhe, no capítulo seguinte. Por ora nos cabe fixar ainda alguns elementos desse
148
diálogo dos dois reis – momento fundamental para a peça, tanto no que concerne à tensão
dramática que confere à marcha da ação quanto ao seu quilate reflexivo, a um só tempo
filosófico, teológico, político e histórico.
Egisto indaga: se é tão importante assim, para que não cesse a “dança de Júpiter”
diante dos homens, censurar essa outra dança – esboçada por Electra nas escadarias do
templo –, a da libertação dos homens, porque o próprio deus todo-poderoso não “fulmina”
seus inimigos e assim garante a prevalência do Bem? A questão é complexa, no que envia o
leitor/espectador à velha questão da teodicéia: por que Deus, Suma Bondade, “permite” o
mal? Claro que o registro semântico em que tal problema se põe está completamente
subvertido, na sua releitura paródica em As Moscas; e a “resposta” que ali obtemos, não
pelo intermédio de algum teólogo, e sim por uma “Revelação” direta do próprio Deus, é
também bastante original:
“EGISTO, vivamente: Ele [Orestes] sabe que é livre. Então não basta prendê–lo.
Um homem livre numa cidade é como uma ovelha tinhosa num rebanho. Ele vai
contaminar todo meu reinado e arruinar minha obra. Deus todo-poderoso, que tu esperas
para fulminá–lo?
JÚPITER, lentamente: Para fulminá–lo? (Um tempo. Cansado e encurvado.) Egisto,
os deuses têm um outro segredo...
EGISTO: Que vais me dizer?
JÚPITER: Uma vez que a liberdade explodiu numa alma de homem, os deuses nada
podem contra ele. Pois é um assunto de homens, e é a outros homens – apenas a eles– que
cabe deixá–lo correr ou estrangulá–lo.” (Sartre, J.-P., 2005, p. 78).
Podemos imaginar o quão palavras como essas devem ter insuflado ainda mais os
ânimos de Orestes, que os ouvia em segredo, atrás do trono. Dali deve ter extraído ainda
maior convicção para, logo que o deus se retirou, sair do esconderijo e atacar o rei,
enquanto Electra corria para fazer uma barricada na porta. Egisto, ao contrário do que
prometeu ao deus ao fim do diálogo, não opõe nenhuma resistência: se deixa atingir pelo
sabre do herói. Apenas indaga, já ferido, se Orestes de fato age sem nenhuma sombra de
remorsos:
149
“ORESTES: Remorsos? Por quê? Eu faço aquilo que é justo.
EGISTO: Justo é o que Júpiter quer. Estavas escondido aqui e o ouviste.
ORESTES: Que me importa Júpiter? A justiça é uma questão de homens, e não
preciso de um Deus para me ensina-la. É justo esmaga-lo, patife imundo, e arruinar teu
império sobre Argos, é justo devolver ao povo o sentimento de sua dignidade.” (Sartre, J.-
P., 2005, p. 79).
Aparentemente seria difícil compatibilizar o “le bien, leur bien” – no que a assertiva
implica a dilapidação de qualquer fundamento substancialista para os valores –,
“proclamado” por Orestes quando decidiu se insurgir contra a tirania, de um lado, e esta
afirmação de que “é justo” o ato de matar o tirano. Difícil por sugerir, num primeiro
momento, que o absolutismo ético deposto agora é reentronizado, com novas vestes. Mas
correríamos o risco de pôr a perder a real singularidade do pensamento sartriano se
víssemos aqui uma mera substituição de valores. O que muda é o registro da discussão, e
portanto os termos do problema. A dignitas humana não repousa em algum tipo de
privilégio concedido por Deus ao homem como um ser criado à Sua imagem e semelhança,
nem em qualquer tipo de atributo de nossa “natureza”, por exemplo a razão. Não se trata de
nenhum privilégio nem de superioridade absolutas, mas de uma diferença que é, quase
sempre, motivo de dor e de aflição, já que o homem é o ser que instaura o nada no Ser, e
que vive seu próprio nada sob as figuras do absurdo, da morte, da finitude, da separação. E
“justo” é o ato que traz aos homens a consciência de sua própria verdade, uma verdade
aquém de todos os valores constituídos e hipostasiados em “substâncias” eternas.
Parece claro, como diz Bornheim, que “a ontologia de Sartre não consegue disfarçar
– nem o pretende, de resto – uma inelutável compulsão à transformação do homem”, vide a
“avassaladora presença do problema moral em O Ser e o Nada. Sartre critica Heidegger por
haver um conteúdo moral implícito na distinção que faz o filósofo alemão entre existência
autêntica e existência inautêntica. (...) A crítica não deixa de ter sua procedência. Mas,
obviamente, ela vale infinitamente mais para o próprio Sartre, já porque o processo na má-
fé autoriza uma distinção análoga” (Bornheim, G., 2003, p. 122).
Ainda segundo Bornheim, por outro lado, o pensamento de Sartre, e suas
preocupações éticas, se inscrevem num impasse precípuo à cultura e a metafísicas
150
ocidentais, o que parece solicitar e permitir a “elaboração de uma moral negativa, de
denúncia das imposturas da época” (ibid., p. 128). Isso porém pode representar não apenas
– como sugere o comentador – o “sintoma” de uma limitação do pensamento sartriano
devido a seus pressupostos “metafísicos”. Pode ser já a alavanca de uma redefinição do
fenômeno ético em bases radicalmente imanentes ao homem, o que remete a uma dignidade
– aquela que Orestes traz de volta ao povo de Argos – que advém de seres que somos o que
não somos, e que, sem a mácula de qualquer pecado original, podemos, sim, vivenciar a
falta originadora de valores, doravante validados pela nossa própria responsabilidade, e
não pela obediência heterônoma. Nos seus suspiros finais, Egisto lança ainda sua maldição
sobre os irmãos cúmplices, gesto que nos remete à “machina fatalis” de ódio e anátemas
que pesa sobre a família dos Atriadas, de geração em geração, por exemplo, quando da
morte do cocheiro Mítilo, traído por Pêlops, pai de Atreu e avô de Agamêmnon.
O horrendo da cena, ou quem sabe, os primeiros sinais da "maldição" de Egisto,
começam se fazer sentir: Electra já não é a mesma, quando Orestes a chama para que
subam aos aposentos de Clitemnestra. Ela oscila, transmite intensa angústia, diz que a mãe
já não lhes causaria mal... Orestes não se deixa abalar, e parte sozinho à caça da mãe.
O leitor não assiste diretamente ao matricídio (cena 7); o acompanha, isto sim,
segundo as feições e aflições de Electra à escuta dos passos do irmão que se dirige rumo
aos aposentos do palácio, das súplicas da mãe, dos gritos de morte. Orestes, quando volta,
traz a espada ensangüentada, que para ele é o troféu da liberdade enfim posta em ato – “Sou
livre, Electra, a liberdade desabou sobre mim como um raio. (...) Eu fiz meu ato, Electra, e
este ato era bom [cf., no relato bíblico da Criação, as várias ocorrências da expressão “Deus
viu que isso era bom”, em relação a cada coisa criada (Gn 1, 1ss)]. Eu o carregarei sobre
meus ombros como um barqueiro leva os viajantes, eu o farei passar para a outra margem
do rio e prestarei contas por ele. E quanto mais pesado ele for para carregar, mais me
alegrarei, pois minha liberdade é ele. Ainda ontem, eu andava ao acaso sobre a terra, e
milhares de caminhos fugiam sob meus passos, pois pertenciam a outrem. Eu os tomei
emprestados, o caminho dos rebocadores, que correm ao longo do rio, e o atalho do
almocreve e a estrada pavimentada dos condutores de carros; mas nenhum era meu. Hoje,
não há mais que um, e sabe lá Deus aonde ele conduz: mas é o meu caminho. (ibid., p. 83–
4)”. Já para Electra essa espada é o emblema da culpa por um crime infame: a princesa
151
sente uma “noite espessa” descer sobre ela, já não consegue ver direito o irmão: são as
moscas, ou melhor, “são as Erínias, Orestes, as deusas do remorso” (ibid., p. 84), que se
apinham no teto, prontas para atacá–los.
Também soldados, que devem ter ouvido os gritos da rainha, batem à porta exigindo
que abram. Para fugir dos homens e das moscas, Orestes faz com que sua atônita irmã o
acompanhe até o templo de Apolo, onde passarão a noite.
TERCEIRO ATO
O crepúsculo dos deuses
: É à penumbra do templo de Apolo, no amanhecer do
novo dia, que a ação se desloca neste último ato. Orestes e Electra dormiram ali, agarrados
à estátua do filho de Zeus. As Erínias também passaram a noite no local; dormiram em pé,
ao redor dos dois irmãos. Acordam antes que eles. Uma delas aspira, nos ares da aurora, os
odores de ódio de sua "alma de couro".
As Erínias despertam famintas por aquelas carnes frescas e juvenis, embora muito
da beleza de Electra se tenha escoado nesse rápido intervalo. O rosto de Electra se
apresenta agora profundamente desfigurado, muito similar, segundo dirá Orestes, ao
"campo devastado pelo granizo e pela tempestade" a que ele comparara as feições de
Clitemnestra, no encontro na praça pública (ato 1, cena 5).
Com avidez invejosa, a Erínia circunda a filha de Agamêmnon e fala: "És bela,
Electra, mais bela que eu, mas tu verás como meus beijos envelhecem as pessoas, antes de
seis meses estarás acabada como uma velhota; já eu continuarei jovem. Que presas mais
belas e apetitosas! Eu as olho, aspiro seu hálito, e fico estufada de cólera sufoca" (ibid., p.
88).
As outras Erínias acordam aos ruídos da primeira, e se juntam numa cantoria
sinistra, música de ninar às avessas, que visa a despertar os dois jovens. Electra é a primeira
a acordar, e de pronto recorda que, sim, os crimes de ontem foram reais. A seguir, volta a
fazer o que é uma constante, em sua atitude em relação ao irmão, ao longo da peça: vê a seu
lado um "estranho" – Orestes, que acabava de acordar – e questiona quem é ele, para, após
essa breve oscilação da dúvida, repeli-lo (agora por "ser" Orestes, e não por "não ser",
152
como até antes da consumação dos assassinatos): "Quem és tu? Ah, és Orestes. Vai–te"
(ibid., p. 90).
Enquanto Orestes insiste para que ela repare no mundo que os espera atrás daquela
pesada porta de bronze do palácio, “o mundo e a manhã”, e o do que se levanta sobre os
caminhos, Electra, por sua vez, não vê sol e caminhos quaisquer, mas sim a noite da
rememoração obsessiva do crime perpetrado ontem. A “maldição” de Clitemnestra se
cumpria, Electra deixava com que sua vida se transformasse em destino, ou seja, se
deixava, simbolicamente, “morrer” junto com os demais argivos. “Jamais voltarás a ver o
sol, Electra. Nós nos ajuntaremos entre ele e ti como uma nuvem de gafanhotos e
carregarás por todo lado a noite em tua cabeça”, diz–lhe uma Erínia (ibid., p. 94). Orestes
tenta lhe mostrar que – num eco em Sartre da crítica de Feuerbach à alienação religiosa do
homem que se faz fraco para que o deus se faça forte – é “tua fraqueza que as faz fortes.
Reparaste que a mim elas nada ousam dizer?”
O que ele ensina não é o mero esquecimento do crime cometido, mas a tomada de
responsabilidade por ele, um domínio sobre si e sobre o ato que foi praticado, ao contrário
do se deixar dominar por tal ato, na entrega ao remorso. Era o momento de pôr em prática o
ensinamento que queriam transmitir a todos os argivos – de que a vida se vive para frente,
assumindo as lembranças mas indo além delas, rumo ao futuro a ser construído: “Escuta:
um horror sem nome se pôs sobre ti e nos separa. Mas que é que tiveste que eu não tenha
vivido? Os gemidos de minha mãe, acreditas que meus ouvidos cessarão de os ouvir? E
seus olhos enormes – dois oceanos agitados – em seu rosto branco feito giz, acreditas que
meus olhos deixarão de vê-los? E a angústia que te devora, acreditas que ela cessará de me
roer? Mas que importa: eu sou livre. Para além da angústia e das lembranças. Livre. E de
acordo comigo mesmo. Não deves odiar a ti mesma, Electra. Dá-me a mão: não te
abandonarei nunca” (ibid.).
Os apelos são inúteis; Electra está pronta a se entregar; desce os degraus, é quase já
apanhada pelas Erínias, quando Júpiter entra em cena, ordenando que “suas cadelas”
voltem para trás.
É o início da Cena 2 do Terceiro Ato, uma das mais belas de toda a peça. Pois é ali
que se dá o grande embate entre deus e o homem, entre Júpiter – que lhes exige o
153
arrependimento, em troca do trono de Argos – e Orestes, que não só se recusa ao trono,
como diz que não há “culpa” em seu ato, portanto nada a ser expiado com remorsos.
Assim como o diálogo entre Júpiter e Egisto, no Ato anterior, esta cena é um
manancial de sugestões para uma reflexão sobre o estatuto do mito em As Moscas. Por isso,
também, deixaremos para o Capítulo IV o exame mais detido da passagem em questão.
Cumpre então dizer, por ora, que aquela confluência, que vimos pontuando ao longo de
todo este capítulo, entre reflexão filosófica e histórica, ou seja, entre os vértices, por assim
dizer, “universais” e “particulares” de uma reflexão sobre a condição humana tal como
manifesta na “situação” da Ocupação, chega aqui ao ápice.
Basta ver o momento em que Júpiter, irritado com a petulância mostrada por quem
devia é estar em atitude de contrição por crimes tão graves, afirma: “Vê se te enxerga,
criatura imprudente e estúpida: que belo ar tens na verdade, todo encolhido aos pés de um
deus protetor, com estas cadelas esfomeadas te assediando. Se tens a audácia de dizer que
és livre, acabaremos também louvando a liberdade do prisioneiro acorrentado no fundo de
um calabouço, e a do escravo crucificado” (ibid., p. 97). A resposta de Orestes – “E por que
não?” – antecipa a frase célebre de que “nunca fomos mais livres do que sob a ocupação
alemã” (Sartre, J.-P., 1949, p. 11). Um discurso a um só tempo dramático e filosófico –
dado a dramaticidade imanente à condição humana que se quer apreender pelas solidárias
ferramentas do conceito e da imagem – sintetiza aqui uma conjuntura a um só tempo
histórica e ontológica, na qual o homem vive a radicalidade de sua liberdade sob as botas
de uma opressão também radical.
Júpiter, aquele que “veio para vos salvar” (Sartre, J.-P., 2005, p. 97) –outra clara
intertextualidade satírica com o referencial cristão –, tenta é salvar a si mesmo, salvar a seu
próprio império sobre os homens, e para isso tenta a todo custo abater a “hybris” do herói,
que, como na mentalidade grega, é causa de, literalmente, “des-graça”, a perda da graça,
ou perda do direito de cidadania – este que Orestes queria obter em relação à cidade (ibid.,
p. 63)– na “ordem” cósmica:
“JÚPITER: (...) Volta a ti mesmo, Orestes: o universo te desaprova, e tu és um
verme no universo. Volta à natureza, filho desnaturado: reconhece tua culpa, abomina-a,
arranca-a de ti como um dente cariado e fétido. Ou não duvides que o mar recuará diante de
154
ti, que as fontes secarão por onde passares, que as pedras e os rochedos rolarão para longe
de teu caminho e que a terra se desmanchará a teus pés.
ORESTES: Que se desmanche! Que os rochedos me condenem e que as plantas
murchem quando eu passar; todo teu universo não será o bastante para provar que estou
errado. És o rei dos deuses, Júpiter, o rei das pedras e das estrelas, o rei das ondas do mar.
Mas não és o rei dos homens.” (Sartre, J.-P., 2005, p. 102).
Júpiter, aliás, faz nesta fala, de que aqui selecionamos o extrato final, uma longa
argumentação sobre a perfeição de sua obra criadora, a “ordem” em que todas as coisas
estão dispostas, a “harmonia das esferas”, o “enorme cântico de graças mineral que ecoa
pelos quatro cantos do céu”. Mas o homem é o “verme num universo” porque nele
introduziu, irremediavelmente, a liberdade, enquanto um modo de ser sui generis, o modo
de ser o não–ser, o modo de ser o nada e a dadificação do Ser: “O nada não pode nadificar-
se a não ser sobre um fundo de ser: se um nada pode existir, não é antes ou depois do ser,
nem, de um modo geral, fora do ser, mas no bojo do ser, em seu coração, como um verme”
(Sartre, J.-P., 2003, p. 64).
Esta foi a falha trágica não do homem, mas, metaforicamente, do próprio deus, ao
“criar” um ser também criador e auto-criador, um ser que, tão logo existe, se desprende do
ser, é negação e errância no nada de ser, na busca perpétua de fundamento; é a instalação da
diferença no seio da identidade, é a abertura singularizante que cinde e descomprime a
“totalidade” cósmica – que “renasce”, ou melhor, é mimetizada arquetipicamente nos
totalitarismos sociais –, é, em suma, a imensa debilidade e dignidade humanas da liberdade.
A tragédia sartriana não é a crônica da derrocada do herói condenado por sua
desmesurada soberba, ou o é em sentido radicalmente diverso, pois faz o elogio desta
“desmedida”, num mundo que já não é mais dotado de quaisquer “medida” absoluta, salvo
aquela imposta pelos fantasmas da má–fé.
“Assim que me criaste deixei de te pertencer”, diz Orestes (Sartre, J.-P., 2005, p.
103), assim que foi criado o homem se despede do “rebanho” divino (ibid., p. 104), passa a
ex–sistir, o que é impulso para fora, o viver “para-si”, ou seja, fora de si em busca de um si
que nunca chega, que nunca se completa, que nunca é capaz, enquanto existe, de se fundir
ao repouso eterno da morte ou do ser absoluto.
155
Um ser estrangeiro em seu próprio mundo, exilado, como Orestes o era e volta a sê-
lo, agora em sentido mais radical: “Estranho a mim mesmo, eu sei. Fora da natureza, contra
a natureza, sem desculpas, sem outro recurso além de mim. Mas não voltarei para debaixo
da tua lei: estou condenado a não ter outra lei senão a minha. Não voltarei a tua natureza:
mil caminhos nela estão traçados que conduzem a ti, mas não posso seguir senão o meu
caminho. Pois sou um homem, Júpiter, e cada homem deve inventar seu caminho. A
natureza tem horror ao homem, e tu, tu, soberano dos deuses, também tens horror aos
homens” (ibid., p. 104–5).
Não que, com a revogação do reino de Deus sobre os homens, Orestes esteja
decretando a abolição de todo “destino” – pois a liberdade é o nosso destino, e “o desespero
que está em mim” é a nossa sorte (ibid., p. 105). Mas um desespero que é ponto de partida
da ação, e não álibi para quietismos auto-complacentes: o que, indaga Júpiter, os homens
poderão fazer ao receberem a “revelação” – termo de grande peso mítico-teológico – de sua
própria existência, “sua obscena e insípida existência, que lhes é dada para nada”?
Responde Orestes: “O que quiserem: são livres, e a vida humana começa do outro lado do
desespero” (ibid., p. 105–6). O desespero consiste no agir sem esperança de que fala o
filósofo em “O Existencialismo É um Humanismo”: ou seja, na atitude de “contar com o
que depende de nossa vontade, ou com o conjunto das probabilidades que tornam a nossa
ação possível”, mas não apelar a abstrações, como Deus, a “bondade humana” ou a
telelologia da História, para anestesiar a incerteza de todos os empreendimentos humanos
(Sartre, J.P., 1978, p. 12–3).
Júpiter, “cansado e curvado”, então resigna-se: “Pois bem, Orestes, tudo isso estava
previsto. Um homem devia vir anunciar meu crepúsculo”
15
(Sartre, J.-P., 2005, p. 106). O
deus parte. Mas esta vitória de Orestes é contrabalançada pela perda da irmã, que se rende
ao arrependimento e corre ao encalço do deus, pede que “seu rei” – o “chefe” que ela por
15
As páginas de O Nascimento da Tragédia sobre Prometeu parecem transmutadas em teatro, neste desfecho
do confronto de Orestes e Júpiter. Vide, primeiramente, a menção de Nietzsche ao poema de Goethe dedicado
ao titã: "Aqui sentado, formo homens / à minha imagem, / Uma estirpe que seja igual a mim, / Para sofrer, para
chorar, / Para gozar, para alegrar–se / E para não te respeitar, como eu!" (Nietzsche, F., 1996, p. 66). Além disso,
note–se a menção direta de Nietzsche ao mundo de Ésquilo como presidido pela Justiça (Moira), mas não por
Zeus, que, ao contrário, está fadado ao crepúsculo (idem), como o deus de As Moscas.
156
alguns momentos, e com uma disposição (aparentemente) diversa, projetara em Orestes – a
proteja, a carregue nos braços: “Seguirei tua lei, serei escrava e coisa tua, beijarei teus pés e
teus joelhos (...) consagrarei a vida inteira à expiação. Eu me arrependo, Júpiter, eu me
arrependo” (Sartre, J.-P.,ibid., p. 108).
Ainda que “completamente só”, ainda que vivendo o profundo dissabor de perder
sua amada, Orestes não cede ao remorso, contrariando as expectativas das “cadelas de
Júpiter”. E não cede ao medo, tanto que, quando entra o Pedagogo, lhe ordena que abra a
porta e deixe a multidão que, lá fora, esperava para castigar o assassino do casal real. A
turba entra gritando que vai matá-lo, um diz que lhe arrancará os olhos, outro, que lhe
comerá o fígado (Sartre, J.-P., ibid., p. 111) – provavelmente Sartre alude aqui aos
respectivos castigos de Édipo e Prometeu, na mitologia grega.
Mas, sem se intimidar, e sim encantado com a luz solar – símbolo da nova era que
se abre –, antes barrada pela pesada porta do templo do sagrado, Orestes anuncia-lhes a
alforria: ao matar o tirano e a rainha, conquistou para si o remorso de todos, e o “velho
crime” (ibid.) já não tem mais poder sobre seus corpos e almas: “Vossas culpas e vossos
remorsos, vossas angústias noturnas, o crime de Egisto, tudo é meu, eu tomo tudo para
mim. Não temeis mais vossos mortos, eles são meus mortos. E vede: vossas fiéis moscas
vos trocaram por mim” (ibid., p. 111–2).
Orestes, porém, quer ser “um rei sem terra e sem súditos”, e vai partir – metáfora, a
nosso ver, de uma liberdade antipaternalista, como sugere a linha interpretativa de
Noudelmnn (1993, p. 26), mais do que sinal de egoísmo exibicionista e até de “desprezo"
para com os argivos (1987, p. 15–6). A crítica de Jeanson traz a marca de um olhar
retrospectivo e identificado com o “engajamento” de cunho mais sistemático de Goetz, ao
final de O Diabo e o Bom Deus, peça que marca a guinada marxista de Sartre no início dos
anos 50.
Se, desta ótica, o engajamento de Orestes revela algum “déficit”, não obstante ele
tem, em si mesmo, uma lógica interna que não devemos negligenciar. Uma lógica que
parece se articular com a suspeição “anarquista” em relação a toda forma arraigada de
associação e de hierarquização políticas e a vontade de evitar as sedimentações, as
157
fossilizações, o “espírito de seriedade” que vimos, em O Ser e o Nada, associados à figura
do estereótipo do “revolucionário” (cf. Bornheim, G.,2005, p. 125).
Orestes, contando ao povo uma variante da lenda do flautista de Hamelin, que com
sua música atraiu para fora da cidade os ratos que a corroíam, parte levando consigo o
turbilhão das moscas, e deixando, no lugar da tortura do remorso, o ensinamento de que os
argivos são os únicos responsáveis por si mesmos e pela “estranha vida” que então
começava.
158
CAPÍTULO IV
AS MOSCAS:
O ‘ANO NOVO’ DO ARQUÉTIPO
Queremos crer que a leitura proposta no capítulo anterior deixa ver o quão Sartre
imprime à tessitura dramática mesma de As Moscas o objetivo de promover e alegorizar a
luta da Resistência, investida que era da dignidade “ontológica” e ética de luta pela
conquista de uma liberdade paradoxalmente dada desde sempre como definição da
condição humana.
No entanto, a forma pela qual esta alegoria é “mítica” não só no registro
especificamente sartriano do termo, qual seja, do “eidos da vida cotidiana” precípuo
linguagem teatral. O mito está posto em As Moscas também no seu “conteúdo” evidente –
já a intertextualidade visada em relação à lenda grega de Orestes – e na mobilização de
certas estruturas discursivas e “ontológicas” daquilo que, com Mircea Eliade,
designaríamos pela noção geral de “pensamento mítico”. É sobre este último aspecto que
agora nos debruçaremos com mais detalhe.
Por isso, inclusive, a necessidade de considerações mais demoradas a respeito das
teses eliadianas, depois trazidas para dentro do texto de Sartre – o qual, à luz de tais lentes
heurísticas, embora tomadas “de fora” de seu repertório conceitual mais explícito, talvez
tenha mais salientadas sua identidade e força própria no conjunto da obra sartriana.
159
O Tempo Arquetípico
Uma contribuição decisiva do crítico russo E. M. Mielietinski foi seu conceito de
poética do mito, com o qual ele tenta apreender e ver os liames sintéticos de um amplo e
multifacetado fenômeno particularmente forte no campo da literatura, artes e ciências
humanas do século XX: a tendência a recuar às antigas mitologias e ali encontrar, por
diferentes vias, um “instrumento de organização artística da matéria e meio de expressão de
certos princípios psicológicos ‘eternos’ ou, ao menos, de modelos nacionais estáveis de
cultura”; autores como James Joyce, em Ulisses e Finnegans Wake, Thomas Mann, em A
Montanha Mágica e José e Seus Irmãos, Gabriel Garcia Márquez, Eugene O’Neill, Yeats,
Eliot estão entre os nomes paradigmáticos dessa tendência na literatura (cf. Mielietinski,
E.M., 1989, p. 2). A “poética do mito”, segundo Mielietinski, se estenderia também a um
expressivo filão da crítica literária do século XX – a chamada "escola mitológico-ritualista
–, cuja marca forte seria a interpretação de toda obra de arte em termos – muitas vezes
emprestados à antropologia dos povos ditos “primitivos” – de mito e ritual". Tanto na
prática como na reflexão sobre a literatura, a poética do mito se exprimia, em primeiro
lugar, no procedimento de explorar a “idéia da eterna repetição cíclica dos protótipos
mitológicos primitivos sob diferentes ‘máscaras’” (ibid.).
Este "'renascimento' do mito na literatura do século XX" teria se baseado, porém,
em algo mais amplo: um mitologismo moderno, isto é, um movimento, em fins do século
XIX e primeiras décadas do XX, de retomada e reinterpretação do mito de um modo que tal
sistema cosmológico e axiológico, típico de culturas ancestrais, passou a ser tido com um
atualíssimo fundamento da vida individual e coletiva. Foram várias as matrizes que
trabalharam, em paralelo, pela gestação desse mitologismo moderno, segundo os exemplos
do crítico russo: as “filosofias da vida” de Nietzsche e Bergson, as óperas e teoria musical
de Richard Wagner, as psicologias de Freud e Jung, as novas teorias etnológicas, como a de
Frazer, Malinowski, Lévy–Bruhl (ibid.), e assim por diante. O teatro francês, desde o
período entre-guerras, em especial durante a Ocupação, se remitologiza com um crescente
interesse pelas tragédias gregas e do período clássico: "A tragédia e os mitos gregos estão
160
em moda durante a Ocupação. Ésquilo e Eurípedes foram objeto de numerosas retomadas.
(...) Os mitos são representados tanto com o teatro grego quanto com as peças clássicas. A
Fedra de Racine conheceu assim um grande sucesso, encenada por Jean–Louis Barrault,
com figurino cretense” (Noudelmann, F. 1993, p. 33). Entre os predecessores mais célebres
da retomada sartriana do mito grego, temos Jean Cocteau, com La Machine Infernale
(1934) e Giraudoux, com La Guerre de Troie n’ Aura Pas Lieu (1935) e, sobretudo, a
Electra (1937), considerada por muitos como sendo o grande modelo inspirador de As
Moscas, na medida em que já opera uma "adaptação política e filosófica da Oréstia", ainda
que com pressupostos diversos, porque ainda pacifistas, convictos numa conciliação entre
os vizinhos beligerantes das duas margens do Reno". (cf. Nouldemann, F., 1993, p. 34).
No caso francês, como destaca François Nouldelmann, a remitologização não é
fruto de mera curiosidade estética, mas de uma inquietação filosófica crucial: o problema
da fatalidade, do destino, cada vez mais aventado pelas ideologias políticas, e interpelado
pelo artista seja de modo crítico, paródico, ou laudatório (ibid.). De fato, o mitologismo
moderno, em geral, é impulsionado pela crise das categorias “racionais” com as quais o
Ocidente se acostumara pensar e a lidar com a História; cresce, desde o início do século
XX, o desencanto em relação as antigas expectativas despertadas pelo racionalismo burguês
e seu ideário de “Progresso”; os efeitos pífios, quando não trágicos – caso das guerras
mundiais –, do desenvolvimento da civilização burguesa suscitavam um questionamento
mais fundamental: não seria o ideal mesmo do “Progresso”, no que embute uma capacidade
e característica de rupturas e evoluções da espécie humana, simplesmente uma mentira?
Note-se que os termos de tal crítica vão bem além de uma denúncia marxista da “ideologia”
burguesa, pois o que a “ideologia” mascara são as contradições e apropriações desiguais
dos frutos de um progresso ainda tido como inquestionável. Para o mitologismo moderno, é
típica uma dúvida mais radical, acerca da realidade mesma, da exeqüibilidade, de uma
transformação e “racionalização” das estruturas sociais e mentais primordiais do gênero
humano e de cada indivíduo. O mitologismo, quer mantenha ou não – o que varia de acordo
com cada autor – uma relação “dialética” com o Iluminismo (cf. Habermas, J., 1990), se
funda num radical questionamento do conceito racionalista-burguês da temporalidade
histórica como temporalidade da “evolução” linear – do mais simples ao mais complexo e
avançado – tal como vinha se delineando até ali; o conceito de “arcaico” perde a carga
161
depreciativa que ainda um evolucionista como James Frazer podia sub-entender, para se
afirmar como uma espécie de verdade recôndita do gênero humano, quer se pense esta
“verdade” nos termos estético–ontológicos de um Nietzsche (a “Vontade” dionisíaca
subjacente aos ritos trágicos na Grécia) ou como um “inconsciente” psicológico do tipo
aventado por Freud e, em especial, Jung, criador do conceito de “inconsciente coletivo”.
Ocorre com o mitologismo moderno uma reversão radical daquela “longa marcha”
de condenações que, a partir de nomes como Xenófanes, Platão e Heródoto, rebaixaram o
pensamento mítico a “conotações desdenhosas como ficção, absurdidade, ilusão, falsidade,
estupidez...” (Beividas, W, 2002, p. 131).
A História, para lembrar a frase de James Joyce em Ulisses –símbolo desta
tendência cultural (ibid., p. 3), é um “pesadelo do qual quero despertar”. Para amplos
setores da intelectualidade ocidental, arraiga–se cada vez mais, naquela época, uma
convicção de que, sob as tênues maquiagens do processo civilizatório, a face do Humano –
ou do Inumano– continuava a mesma, agora como nos tempos arcaicos, e que por isso o
“discurso” mítico – feito não de conceitos abstratos, mas de imagens tangíveis e afetivas –
seria muito rico de possibilidades para se interpretar e exprimir o significado da história
universal ou do tempo presente, diferença, no fundo, pouco relevante, pois a segunda seria
o microcosmo da primeira, o palco de um “eterno retorno do mesmo”.
É neste ponto que sobressai, de nosso ponto de vista, a importância da obra de
Mircea Eliade. Um de seus principais trabalhos chama-se, não por acaso, O Mito do Eterno
Retorno, publicado na França em 1949. Eliade começou a escreve-lo em 1945, em meio,
por assim dizer, aos escombros da Segunda Guerra, às ruínas do sonho de uma História
como devir progressivo da razão, devir cujo auge, segundo o otimismo oitocentista, deveria
ter ocorrido justamente no século XX.
Eliade é um dos mundialmente mais reconhecidos historiadores da religião.
Referência obrigatória nos estudos nesse campo, mesmo para aqueles que o contestem (cf.,
por exemplo, recente entrevista do pesquisador Michel Despland concedida a mim no
caderno “Mais!” da Folha de São Paulo de 02/10/2005). Não é nossa pretensão, aliás,
encetar aqui uma avaliação dos méritos e limites de Eliade no seu específico campo de
especialização, o que nos levaria muito longe do âmbito em que se situa a presente
162
dissertação (o melhor balanço nesse sentido parece ser o oferecido por Bryan Rennie em
seu livro Reconstructing Eliade – Making Sense of Religion; cf. Rennie, B., 1996; para uma
perspectiva mais crítica, cf. Dubuisson, D., 1993). As idéias de Eliade – tais como
exemplarmente expostas em O Mito do Eterno Retorno – nos são aqui interessantes na
medida em que, como mostra Mielietísnki, são uma das manifestações filosóficas mais
expressivas do mitologismo moderno.
Por que “filosóficas”? A adjetivação nos parece adequada, em especial no caso de O
Mito do Eterno Retorno, até pelo fato de o próprio autor admitir, na introdução do livro,
que este poderia ter como subtítulo: “Introdução a uma Filosofia da História” (Eliade, M.,
1969, p. 9). Uma filosofia que Eliade diz não brotar de uma mera especulação pessoal, mas
sim de uma reconstrução comparativa e totalizante das concepções dos povos ditos
“primitivos”, arcaicos ou tradicionais. Mesmo a uma rápida leitura, porém fica claro que
quem ali fala não é um etnólogo “objetivo” e eqüidistante; Eliade tem a honestidade
intelectual de revelar seu sui generis “engajamento”, sua convicção de que escavar o que
chama de a “ontologia arcaica” – e o conceito primitivo da história – seria, mais que uma
questão de erudição acadêmica, uma contribuição concreta, ética e especulativa, para a
“renovação” dos “problemas cardinais da metafísica [ocidental]” para assim livrar nossa
civilização de uma perigosa – e trágica, à luz dos eventos há pouco testemunhados –
“provincialização” ou confinamento a sua particular maneira de conceber a História e se
relacionar com ela (cf. Eliade, M, ibid., p. 10–11).
Já por esta declaração de intenções Eliade pode ser arrolado, como o faz
Mielietinski, entre os defensores da “remitologização” cultural no século XX. Para o crítico
russo, Eliade é aqui referência fundamental por ter lidado, seja nos ensaios teóricos, seja,
inclusive, na obra ficcional que nos legou – as fronteiras entre esses dois campos são de
difícil delimitação nos textos de Eliade, tão marcados pela verve imaginativa e talento
estilístico quanto pela erudição “histórica”–, com a “problemática da superação do tempo”,
ponto em que se aproximou, em certo sentido, da poética do mito (literária) propriamente
dita, conforme manifesta em Joyce, Mann e até Proust (cf. Mielietinski, E. M., 1989, p. 80).
Conhecer a obra de Eliade, prossegue o autor de A Poética do Mito, “é muito útil para a
compreensão de alguns aspectos do mitologismo no século XX, inclusive na literatura, já
que o próprio Eliade é um apólogo do mitologismo em oposição ao historicismo” (ibid.).
163
Tal apologia, é verdade, consiste na pregação de um remitologização que, em seu
caso – como no de Heidegger – se fazia acompanhar de uma remitologização também
política, a se dar crédito aos relatos sobre a suposta simpatia ou mesmo entusiasmo do
jovem Eliade pelo fascismo romeno e por Hitler nos anos 30 (a questão, ainda hoje muito
controversa, é debatida, entre outros, por Pals, D., 1996, Rennie, B., 1996 e Dubuisson, D.
1993). Não necessariamente, porém, o mitologismo moderno tem esse tipo (condenável sob
todos os aspectos) de desdobramento ideológico-político, e tampouco seria justo tomar as
eventuais paixões políticas pessoais de Eliade – ainda mais em se tratando de um
envolvimento momentâneo e anterior à produção propriamente “científica” – como um
álibi para se ignorar a profundidade e esforço de fundamentação factual das pesquisas e
reflexões deste autor.
Delineando rapidamente o perfil da obra eliadiana, diríamos, com Daniel Pals, que
um de seus grandes trunfos foi a incorporação de uma perspectiva fenomenológica aos
estudos da religião. Estudar os fenômenos religiosos é tentar ver como, à luz dos ritos e
símbolos de cada culto, a religião aparece à consciência de seus adeptos; é, mais
profundamente, respeitar a especificidade do fato religioso (de um mito, de um dogma, de
um culto, de uma confissão etc.), sua lógica interna, ao invés de reduzi-lo a alguma outra
coisa extrínseca, seja a luta de classes (Marx), as pulsões sexuais (Freud), a cultura
enquanto “consciência coletiva” (Durkheim). Não que a religião não tenha implicações ou
liames em relação a estes fatores, mas é como Eliade argumenta no seu Tratado de História
das Religiões: “é a escala que cria o fenômeno”. E, citando Henri Poincaré: “‘Um
naturalista que só tivesse estudado um elefante ao microscópio acreditaria conhecer
completamente este animal?’ O microscópio [é agora Eliade quem fala] revela a estrutura e
o mecanismo das células, estrutura e mecanismo idênticos em todos os organismos
pluricelulares. E não há dúvida de que o elefante é um animal pluricelular. Mas não será
mais do que isso? (...) Da mesma maneira, um fenômeno religioso somente se revelará
como tal com a condição de ser apreendido dentro de sua própria modalidade, isto é, de ser
estudado à escala religiosa. Querer delimitar este fenômeno pela fisiologia, pela psicologia,
pela sociologia e pela ciência econômica, pela lingüística e pela arte etc., é trai-lo, é deixar
escapar precisamente aquilo que nele existe de único e de irredutível, ou seja, o seu caráter
sagrado” (Eliade, M., 1993, p. 1).
164
Veremos logo o que Eliade entende por “sagrado”. Cumpre por ora marcar este
primeiro grande “axioma” do qual parte sua teoria da religião – e sua posição, que é o que
mais nos importa, no arco de expressões do “mitologismo moderno” do século XX: a
recusa do reducionismo, articulada a uma preocupação de tipo fenomenológico e, além do
mais, comparativo: para Eliade, a religião, por mais que ganhe corpo em contextos
histórico-sociais circunscritos, tem estruturas “ontológicas” universais, que vêm à luz num
exame comparado de ritos e mitos dos mais diversos quadrantes. Daí que Eliade possa
falar, em O Mito do Eterno Retorno, numa “ontologia arcaica” que engloba, deixemos claro
desde logo, praticamente toda a humanidade até pelo menos o advento da moderna
civilização secularizada. Daí que a “ontologia arcaica” seja outro nome para a “ontologia
sagrada”, ou seja, para o que Eliade considera serem os traços universais da cosmovisão
religiosa, e sua específica maneira –“filosófica”, mas não conceitual, porque trabalharia à
base do simbolismo mítico-ritual – de interpretar a vida, o mundo e a condição humana.
O contraste entre o “arcaico” e o “moderno”, para Eliade, é não uma evolução do
mais simples ao mais complexo, mas um conflito entre duas atitudes “metafísicas”
antagônicas em relação à totalidade do ser, em seu significado e valor. De um lado, a
ontologia arcaica, cuja “sede pelo ser” é uma “sede pelo sagrado” – só tem verdadeiramente
um ser aquilo que partilha da substância divina, aquilo que foi criado diretamente, ou que é
um símile terreno de uma criação divina nos Primórdios do mundo.
È como marca distintiva da metafísica arcaica que Eliade pensará o conceito de mito
(no qual nos basearemos no posterior questionamento de As Moscas). É preciso ressalvar,
desde logo, que Eliade é consciente das dificuldades que pesam sobre qualquer tentativa de
explicar o que o mito "é". Tanto que ele diz: "Seria muito difícil encontrar uma definição
do mito que fosse aceita por todos os eruditos e, ao mesmo tempo, acessível aos não-
especialistas. Por outro lado, será realmente possível encontrar uma única definição capaz
de cobrir todos os tipos e todas as funções dos mitos, em todas as sociedades arcaicas e
tradicionais? O mito é uma realidade extremamente complexa, que pode ser abordada e
interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares" (Eliade, M., 1994, 11).
Em tais condições, o autor diz se contentar com uma definição a "menos imperfeita"
possível, e ampla, que parte do princípio de que o mito é uma "narrativa sagrada". Sagrada
porque se refere a Entes "Sobrenaturais" (no sentido moderno do termo), isto é, seres que
165
ultrapassam os limites da possibilidade meramente humana ou natural de vida e ação, mas
que estão em contato estreito, constitutivo, com o "nosso" mundo do aqui-agora, conforme
veremos com mais detalhe a seguir:
"(...) o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial, o tempo fabuloso do 'princípio'. Em outros termos, o mito narra como, graças às
façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total,
o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento
humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma 'criação': ele relata de que
modo algo foi produzido e começou a ser " (Eliade, M., ibid. 11).
O Sagrado e o Arquétipo
Enquanto o homem arcaico se sente indissoluvelmente ligado ao Cosmos e aos
ritmos cósmicos, o homem moderno se identifica exclusivamente com, na e pela História
(Eliade, M. 1992, p. 11). Daí o título da edição inglesa de 1959 de O Mito do Eterno
Retorno: Cosmos and History, que sintetiza essa polaridade de duas grandes categorias de
auto-representação antropológica. Não que para o homem arcaico não haja “História”: mas
a história dos homens é a história do Cosmos, e vice-versa, sendo ambas o verso e reverso
de um “universo” único e sagrado, porque fruto da obra dos deuses. Trata–se, pois, de uma
História Sagrada (Eliade, M. 1992, p. 12). Para o homem moderno, pelo contrário, a
hierarquia se inverte, e o “sagrado” perde a prioridade que tinha em relação ao “histórico”,
tanto que chega a ser possível fazer uma “história das religiões”, um inventário laico de
todas as muitas formas pelas quais o homem já “criou”, enquanto ser histórico e sujeito de
sua própria história, formas de representar religiosamente a experiência histórica.
A ontologia arcaica é uma ontologia sagrada: “(...) o real por excelência é o
sagrado; pois só o sagrado é de uma maneira absoluta, age eficazmente, cria e dá duração
às coisas. Os inúmeros gestos de consagração – dos espaços, dos objetos, dos homens etc. –
traem a sede do primitivo pelo ser” (Eliade, 1969, p. 23).
Sagrado é tudo o que tem “significação mítica”, o que se encaixa nos arquétipos
transcendentes. É com o processo de dessacralização que veio a se afirmar, aliás com cada
166
vez mais força, aquilo que é constitutivo da ontologia moderna: o profano, ou seja, o
estatuto ontológico de coisas e ações cuja existência é desprovida de símiles celestiais. “(...)
o mundo arcaico ignora as atividades ‘profanas’: toda ação que tem um sentido preciso –
caça, pesca, jogos, conflitos, sexualidade, etc. – participa de algum modo do sagrado”
(Eliade, M., 1969, p. 41).
Falar em mitos, na ótica eliadiana, é, pois, falar em arquétipos transcendentes, a que
corresponderiam, ideal e realmente, todos os entes naturais e instituições humanas. É
preciso destacar a ressalva, feita pelo próprio Eliade (1992, p. 12), de que o termo
“arquétipo” não tem pare ele o mesmo sentido com o qual ficou famoso graças à psicologia
analítica de Carl Gustav Jung.
Para Jung, os arquétipos são “manifestações da essência da alma”, isto é, os
“conteúdos do inconsciente coletivo” (Jung. C. G., 2000, p. 16–17). Já para Eliade, o
arquétipo é simplesmente um modelo ou paradigma cultural, que pode variar de contexto
para contexto, sendo sempre, porém, essencial às religiões, porque investido de uma
exemplaridade sagrada.
O mito, pois, não é mera fábula, conto, lenda; estas já são formas “degradadas” do
mito, pois este é uma história verdadeira, mais que isso, uma “revelação de ‘mistérios’”, um
desvelar de fatos e profundos e crucias acerca da vida, do real. Para as sociedades em que
têm ainda existência efetiva, o mito exprime “a verdade absoluta, porque conta uma história
sagrada, que dizer, uma revelação trans-humana que teve lugar na aurora do Tempo, na
época sagrada dos começos (in illo tempore [“naquele tempo”, expressão usual nos textos
litúrgicos da missa católica]). Sendo real e sagrado, o mito torna-se exemplar e, por
conseguinte, passível de se repetir, porque serve de modelo e, conjuntamente, de
justificação a todos os atos humanos” (cf. Eliade, M., 1989, p. 11).
São os arquétipos, ou seja, os modelos míticos transcendentes, que dão identidade
ao “modo de ser no mundo” que é própria da humanidade arcaica, e que garantem a ela a
ruptura entre o domínio profano – “domínio dos negócios do dia-a-dia, das coisas
ordinárias” – e o domínio oposto, o do sagrado, que é “a esfera do sobrenatural, das coisas
167
extraordinárias, memoráveis e momentosas” (cf. Pals, D., 1996, p. 163–4)
16
; para a
ontologia arcaica, o verdadeiramente “real” é o que comunga da substância do sobre-
natural; o “memorável” é, como a própria ambigüidade deste termo sugere em nossa língua,
aquilo que escapa do comum, do ordinário, da desvanescência da vida e dos seres
cotidianos, para alcançar a esfera das proezas à altura dos feitos de deuses, heróis e grandes
ancestrais; todas as atividades onto-sociologicamente significativas são moduladas por
esses mitos ou arquétipos, e nessa medida são “sacralizadas” – as esferas do trabalho e
economia, da sexualidade, da moral e do direito, da educação e das artes etc. são facetas de
um todo integrado, homogêneo e congruente cujo fundamento provém da estrutura religiosa
( cf. Weber, M., 1979).
Importante frisar, ao pensarmos no conceito eliadiano de “sagrado”, o quão ele leva em
conta, como interlocutor implícito ou nomeado, a crítica moderna da religião, e talvez
mesmo o próprio existencialismo sartriano – senão como adversário direto, ao menos como
manifestação de grande impacto e irradiação na cultura da época –, vide definições como
esta: "Para o homo religiosus, o essencial precede a existência. Isso é verdadeiro tanto para
o homem das sociedades 'primitivas' e orientais como para o judeu, o cristão e o
muçulmano. O homem é como é hoje porque uma série de eventos teve lugar ab origine.
(...) Para o homo religiosus, a existência real, autêntica [outro jogo implícito com o
existencialismo, ao qual é tão cara a noção de autenticidade], começa no momento em que
ele recebe a comunicação dessa história primordial e aceita as suas conseqüências. É
sempre uma história divina, pois os personagens são os Entes Sobrenaturais e os Ancestrais
míticos" (Eliade, M. 1994, p. 85).
Modalidade de ser marcada, como diria Rudolf Otto, em quem Eliade busca decisiva
inspiração neste aspecto – pelo mysterium tremendum ou "majestas que exala uma
superioridade esmagadora de poder, mysterium fascinans em que se expande a perfeita
plenitude de ser" (cf. Eliade, M., 1995) o sagrado parece, de fato, uma experiência humana
incompatível com uma doutrina que prega que a crença em Deus –categoria suprema de
16
Na definição –eliadiana– do grande sociólogo da religião Peter Berger, o sagrado “é apreendido
como algo que ‘salta para fora’ das rotinas normais do dia–a–dia, como algo extraordinário e
potencialmente perigoso, embora seus perigos possam ser domesticados e sua força aproveitada
para as necessidades cotidianas” (Berber, P., 1985, p. 39). O antônimo do sagrado, isto é, o profano,
“se define simplesmente pela ausência do caráter sagrado” (ibid.).
168
qualquer ontologia sagrada – não só é uma mentira como tamm “exemplo típico do
repúdio à liberdade”, ou seja, de má-fé (cf. Perdigão, P., 1995, p. 118). Veremos se essa
dicotomia é assim tão absoluta.
“Assim fizeram os deuses, assim fazem os homens”: provérbio indiano que “resume
toda a teoria subjacente aos rituais de todos os países” (Eliade, M., 1969, p. 34), que
resume, pois, a ontologia arcaica, para a qual “um objeto ou um ato não se torna real senão
na medida em que imita ou repete um arquétipo. Assim, a realidade é adquirida
exclusivamente por repetição ou participação; tudo o que não tem um modelo exemplar é
‘desprovido de sentido’, ou seja, lhe falta realidade” (Eliade, M., 1969, p. 48).
Eliade não hesita em qualificar como “platônica” essa ontologia arquetípica; um dos
grandes méritos de Platão foi ter dado estatura propriamente filosófica ao que, por vasto
período de tempo, fora uma vivência global (“conceitual”, simbólica, prática e afetiva) da
humanidade dos primórdios (Eliade, M., 1969, p. 48-9). Assim como, para Platão, o real se
cinde em “Idéias” e aparências que as representam debilmente no instável mundo do devir,
assim também, e muito antes do gênio grego, a humanidade arcaica acreditava que para
além do vale de sombras do mundo ilusório e finito há a “verdadeira realidade”, a essência
de que este mundo nos oferece fugidias imagens, o reino “eterno”, matriz donde onde o
mundo terreno provém, nasce e ao qual retorna quando “morre”, por exemplo nas
cerimônias de Ano Novo, ali também renascendo periodicamente, em virtude dos gestos e
das gestas dos deuses e heróis contra as potências do Caos (cf. Eliade, M., 1992, p. 57ss).
O “personagem” literária e/ou cientificamente retratado por O Mito do Eterno
Retorno é um homem “arcaico” num sentido mais profundo do que sua anterioridade
cronológica em relação aos modernos: é arcaico porque sua existência é voltada à “arché”,
às “origens sobre-humanas e transcendentais” (Eliade, M., 1992, p. 12) de tudo, aos
“Primórdios” em que deuses, ancestrais ou heróis fizeram ou ensinaram a fazer tudo o que
é, e tudo o que verdadeiramente “é” deve sê–lo, na medida em que, para além do mero vir-
a-ser efêmero e instável, haure sua razão de ser desses moldes primordiais, de que os mitos
nos dão notícia.
A vida do primitivo, idealmente, não é senão a “repetição ininterrupta de gestos
inaugurados por outros” (Eliade, M., 1969, p. 15). De um modo chocante para o
169
individualismo moderno, o homem arcaico não considera um fardo renunciar a si mesmo e
se adequar a modelos transpessoais, ao contrário, esse homem só “é” ele mesmo na medida
em que deixa de sê-lo, na medida em que se torna um arquétipo. Ele renuncia de bom grado
à sua suposta singularidade irrepetível, para reiterar um modelo transcendente – por
exemplo o capitão que, ao sair em expedição marítima, se identifica com determinado mito
heróico ancestral. E faz o mesmo em relação aos eventos históricos: ao contrário de
“novidades” únicas, que vêm mudar para sempre o estado de coisas ou instaurar alguma
imprevisibilidade, maior ou menor, os eventos não são senão reiterações de um “script”
desde sempre conhecido, um script eterno, inscrito na lógica cósmica ou nos desígnios
divinos. Os homens ditos “primitivos” têm, no plano da identidade subjetiva quanto da
experiência “histórica”, o que Eliade chama de “tendência a se tornar arquetípicos e
paradigmáticos” (Eliade, M., 1969, p. 48).
Os cerimoniais propriamente religiosos levam ao paroxismo esse princípio da
reiteração dos arquétipos: as bacantes, os neófitos do orfismo, os participantes da missa e
do ano litúrgico da Igreja rememoram – e fazem reviver – o drama sagrado da vida e dos
ensinamentos do “deus”, ocorrido in illud tempus.
A ação ritual não se dá num espaço nem num tempo quaisquer: pelo “paradoxo do
rito”, o espaço e o tempo mundanos em que se dá a celebração são transmutados no espaço
e no tempo arquetípicos, isto é, sagrados, em que se passam as ações narradas pelo mito.
Ao reatualizar ritualisticamente seus mitos, o homem arcaico “abole”
constantemente a realidade profana, retornando às matrizes transcendentais, fazendo-se
contemporâneo e co-habitante dos deuses; a existência mundana é revitalizada quando
negada enquanto tal, quando reabsorvida na “essência”, ao Uno original revelando a
característica ilusória do mundo histórico e pluralístico. Esse homem,
fenomenologicamente falando, "leva uma vida que acontece no tempo, mas que “não
carrega o peso do tempo, não registra a irreversibilidade do tempo”, esforça-se por ignorar
aquilo que é especialmente característico e decisivo numa consciência do tempo (Eliade, M,
1992, p. 77)". Ele vive num “eterno presente”, ou melhor, num presente em complexio
oppositorum com o eterno: o aqui-agora é impregnado dos Primórdios.
170
O ritual, por exemplo um sacrifício, não apenas reproduz exatamente o sacrifício
original “revelado por um deus ab origine, no começo dos tempos, mas também acontece
neste mesmo instante, neste “tempo atemporal” dos Primórdios míticos. Por isso, o ritual é
uma forma de “abolição do tempo pela imitação dos arquétipos e pela repetição dos gestos
paradigmáticos” (Eliade, M., 1969, p. 49). O rito, ato humano, no aqui-agora da existência,
que é a mímese de um ato sagrado dos deuses, heróis ou ancestrais “in illud tempus”,
“transporta” os homens à época mítica em que teve lugar a revelação deste “geste
exemplaire” transcendente (Eliade, M., 1969, p. 49–50).
Assim como a ontologia arcaica – ou talvez porque herdeira privilegiada dela –, a
memória coletiva, em especial nas regiões agrárias e nas camadas populares da Europa
moderna, mostra grande propensão à mitificação da História (Eliade, M., 1969, p. 53). A
“filosofia da história” implícita aqui, como na ontologia arcaica de que provém, é, na
verdade, uma filosofia anti-histórica, que estaria, neste diálogo hipotético que percorre todo
o livro de Eliade, em franca oposição ao que certas “correntes pós-hegelianas, notadamente
o marxismo, o historicismo e o existencialismo”, correntes que se valem do postulado
fundamental do “homem histórico”, isto é, do “homem que se faz a si mesmo no seio da
história” (Eliade, M. 1969, p. 10).
Em contraste com isso, “a memória coletiva é a-histórica (anhistorique). (...) A
lembrança dos eventos históricos e dos personagens autênticos se modifica ao fim de dois
ou três séculos, a fim de poder se encaixar nos moldes da mentalidade arcaica, que não
pode aceitar o individual e não conserva senão o exemplar. Essa redução dos eventos às
categorias e das individualidades aos arquétipos, realizada pela consciência das camadas
populares européias até quase os nossos dias, se efetua em conformidade com a ontologia
arcaica. Poderíamos dizer que a memória popular restitui ao personagem histórico dos
tempos modernos sua significação de imitador do arquétipo e de reprodutor dos gestos
arquetípicos – significação da qual os membros das sociedades arcaicas foram e continuam
sendo conscientes (...)”(Eliade, M., 1969, p.59–60). Um sinal desta anti–historicidade seria
o traço, muito freqüente na literatura popular arcaica e tradicional – bem como nas peças de
ficção típicas da “poética do mito” do século XX, segundo mostra amplamente Mielietinski
– são os anacronismos – dispositivo de assimilação da história ao mito (Eliade, M., 1969,
p. 53) e testemunho de que a “imaginação poética” coletiva tende a transfigurar
171
arquetipicamente eventos e personagens estritamente históricos, despojando-os da
“autenticidade” factual e “singularidade” irrepetível exigidas por certa modalidade
(moderna) de consciência “histórica”. A memória popular tem “estruturas” específicas de
apercepção: “categorias em lugar de eventos, arquétipos no lugar de personagens históricos.
O personagem histórico é assimilado a seu modelo mítico (herói etc.), enquanto que o
evento é integrado na categoria das ações míticas (luta contra o monstro, irmãos inimigos
etc.)” (Eliade, M., 1969, p. 58).
A recusa da “História”, a vontade de regenerar constantemente o tempo, se funda
numa imensa “sede do real” e num proporcionalmente grande “terror de se ‘perder’ ao se
deixar invadir pela insignificância da existência profana. Pouco importa se as fórmulas e
imagens pelas quais o ‘primitivo’ exprime a realidade nos parecem infantis e mesmo
ridículas. É o sentido profundo do comportamento primitivo que é revelador: este
comportamento é regido pela crença numa realidade absoluta que se opõe ao mundo
profano das ‘irrealidades’; no limite, este mundo profano não constitui propriamente um
‘mundo’; ele é o ‘irreal’ por excelência, o não-criado, o não-existente: o nada” (Eliade, M.,
1969, p. 111). A ontologia arcaica é um “esforço desesperado para não perder contato com
o ser” (Eliade, M., 1969, p. 111).
A essa ontologia se articula a “nostalgia do paraíso”, a imagem, bastante recorrente
em diversas culturas, de que o presente é uma decadência em relação à “Idade de Ouro”
primordial, que era marcada por uma “humanidade ideal, que fruía de uma beatitude e
plenitude espirituais irrealizáveis na condição atual do ‘homem decaído’ (...) Em
decorrência de uma falta ritual, as comunicações entre o Céu e a Terra foram interrompidas,
e os deuses se retiraram para o mais alto dos céus. Desde então, os homens devem trabalhar
para se alimentar e não são mais imortais ” (Eliade, M., 1969, p. 110).
Temos já consideráveis elementos para averiguar o grau em que as reflexões de
Eliade tendem e dão chancela, com referenciais heurísticos específicos a este autor e a este
campo de pensamento, a algo que é “essencial para a criação mítica do século XX”, ou seja,
uma “concepção cíclica de tempo” (Mielietinski, E. M., 1989, p. 82). A “história sagrada”
de que ele traça os aspectos fenomenológicos gerais em O Mito do Eterno Retorno é uma
história “circular” porque se dá nas bases de uma eterna repetição dos mesmos protótipos
172
sagrados. Da ótica arcaica, a temporalidade linear, “deste mundo”, isto que nós modernos
entendemos como a História tout court, requer constante abolição e regeneração, em
virtude de que, seja qual for a forma, “pelo simples fato de existir, de ter duração, se
enfraquece e se desgasta; para retomar o vigor, é preciso que seja reabsorvida no amorfo,
nem que por um mero instante; ser reintegrada à unidade primordial da qual saíra; noutras
palavras, entrar de novo no ‘Caos’ (sobre o plano cósmico), na ‘orgia’ (no plano social),
nas ‘trevas’ (para as sementes), na ‘água’ (batismo no plano humano, ‘Atlântida’ no plano
histórico, etc.)” (Eliade, M., 1969, p. 108).
Daí, inclusive, a importância da dimensão “cosmogônica” dos mitos. Não só as
narrativas sobre a Criação do Mundo, e sim os mitos em geral, têm essa dimensão, na
medida em que contam o começo e voltam ao começo de tudo: desta ou daquela atividade
(pesca, caça, costumes matrimoniais e etc.), deste ou aquele ente (pedras, árvores, animais,
casas e etc.), do ser humano e da vida em geral. Eliade dá muito destaque, em O Mito do
Eterno Retorno, ao papel dos mitos como narrativas que, recitadas ritualisticamente,
ensejam a recriação do mundo, seja do mundo em geral, seja das instituições e
“equipamentos” semânticos e instrumentais do viver humano. Todo mito, neste sentido, é
“cosmogônico”, pois toda ação mítico-ritual – e o primitivo dificilmente se entrega a ações
que não tenham esse valor sagrado, como vimos – é uma “criação” que, como tal, “repete o
ato cosmogônico por excelência: a Criação do Mundo” (Eliade, M., 1969, p. 31).
Aqui uma breve incursão ao livro O Dossel Sagrado, um clássico de sociologia da
religião, pode ser útil. Numa de suas várias alusões a Eliade, o sociólogo americano Peter
Berger diz que, num nível mais profundo, o verdadeiro antônimo do “sagrado” é não o
“profano”, e sim o caos:
“O cosmos sagrado, que transcende e inclui o homem na sua ordenação da
realidade, fornece o supremo escudo do homem contra o terror da anomia. Achar-se numa
relação ‘correta’ com o sagrado é ser protegido contra o pesadelo das ameaças do caos. (...)
Não é fora de propósito observar aqui que o vocábulo ‘caos’ deriva de uma palavra grega
que quer dizer ‘voragem’ e que ‘religião’ vem de uma palavra latina que significa ‘ter
cuidado’” (Berber, P., 1985, p. 40).
173
A repetição da cosmogonia é assim a experiência sagrada e “sacramental” por
excelência; por uma espécie de astúcia da razão arcaica, o “caos”, grande inimigo da ordem
sagrada, é ritualisticamente evocado para ser mais bem controlado e “derrotado” sempre de
novo. Assim como os governantes que galvanizam apoio popular às custas de um
“inimigo” comum e externo, as instituições religiosas tendem a jogar com o “terror” do
caos, com o medo da dissolução na anomia (ausência de normas e valores), para reafirmar,
“dramaticamente”, sua superioridade e legitimidade cosmológico–política.
No simbolismo religioso universal, é grande a recorrência da figura do “monstro” –
serpente ou dragão, em especial, e muitas vezes associado a um ambiente aquático – como
encarnação dessa potência do Caos. Eliade cita, por exemplo, um ato de fundação indiano,
no qual se dá um ritual que repete o sacrifício perpetrado por Soma ou Indra, quando este
"atirou a Serpente em sua toca (Rig Veda, IV, 17, 9), quando o raio do deus cortou a cabeça
do monstro". "A serpente simboliza o caos, o amorfo não manifesto" (Eliade, M., 1969, p.
31—2). Vrtra “impede” o mundo de se fazer e de perdurar. É o que se diz de Mefistófeles
no Fausto de Goethe: der Vater aller Hindernisse, "o pai de todos os impedimentos" (cf.
Eliade, M., 1991), representa o Caos que precede a Criação.
Já o "simbolismo cosmológico" dos dragões, em várias tradições culturais, é
expressão da “modalidade pré–formal [pré–formelle] do Universo” e do estado de unidade
absoluta anterior à ruptura fragmentadora implicada pela criação, que é advento da história
"profana". Daí que, por toda parte, se constate uma associação das serpentes e dragões à
idéia de autoctonia, aos “maîtres des lieux”, contra os quais “devem combater os recém-
chegados, os ‘conquistadores’, aqueles que devem ‘formar’ (ou seja ‘criar’) os territórios
ocupados” (Eliade, M, 1969, p. 55, n. 53).
O mito propriamente cosmogônico é de larga utilização, nas culturas arcaicas, não
só nos dias de Ano Novo, mas, em geral, para cerimônias que, como esta, se prestam à
instauração ou restauração da plenitude integral; é por isso que “se recita o mito da Criação
do Mundo quando se trata de curas, de fecundidade, de nascimento, de uma criança, de
trabalhos agrícolas etc. A cosmogonia representa a criação por excelência” (Eliade, M.,
1969, p. 38). Também nos casamentos, por motivos análogos, tem grande importância esse
tipo de mito, e seu correlato, as chamadas narrativas “hierofânicas”, que narram a união
174
sexual e/ou marital de um deus e de uma deusa, muitas vezes mimetizados, na vida ritual do
povo, pelo rei e por uma escrava.
O Ano Novo é uma das formas fundamentais da repetição ritual da cosmogonia, –
e, pois, de abolição periódica da História – segundo a tipologia esboçada por Eliade, e que
retomamos aqui nos seguintes termos:
1) Expulsão anual de demônios, doenças e pecados
2) Ritos de Ano Novo, segundo documentos como os mobilizados por James
Frazer em The Golden Bough.
Quanto às cerimônias de expulsão, podem ser dos seguintes tipos:
a) jejum, abluções, purificações
b) troca de fogos, (fogo é apagado durante um ritual e posteriormente
reacendido)
c) expulsão de demônios por meio de barulhos, gritos, golpes (em ambientes
fechados), seguidos de sua perseguição pela aldeia, com muita gritaria e algazarra.
A expulsão pode ser feita sob a forma de ritual que manda embora um “bode
expiatório”, humano ou animal, visto como veículo material através do qual todas as faltas
de toda a comunidade são transportadas para além do território que ela habita; o bode
expiatório era expulso “para o deserto” pelos hebreus e babilônios.
“Com uma certa freqüência registram-se combates cerimoniais entre dois grupos de
atores, ou orgias coletivas, ou ainda procissões de homens mascarados (representando as
almas dos ancestrais, os deuses e assim por diante). Em diversos lugares ainda sobrevive a
crença de que, no momento dessas manifestações, as almas dos mortos aproximam-se das
casas dos vivos, que respeitosamente saem para encontra-las e derramam honras sobre elas
durante vários dias, depois do que elas são levadas para a periferia da aldeia num procissão
e expulsas dali. È nesse mesmo período que se realizam as cerimônias de iniciação dos
jovens (temos provas concretas dessa prática entre os japoneses, os índios hopi, certos
povos indo-europeus e outros(...) ) (Eliade, M., 1992, p. 57).
175
Com relação ao retorno das almas dos ancestrais – tema de evidente importância em
As Mosca s–, Eliade, além de citar alguns exemplos etnológicos, observa que se trata de
uma “abolição” das fronteiras entre vivos e mortos, parte do “bouleversement” mais radical
que se dá no Ano Novo: a passageira recaída (regressio) do Cosmos ao Caos, para dali
emergir numa nova cosmogonia.
Tais cerimônias, de resto, não estão tão apartadas assim daquele segundo grupo, o
de cerimônias de Ano Novo, até porque muitas vezes coincidem com esses festejos, se
integram a estes. E é nestas cerimônias que os povos arcaicos (e não só eles, se pensarmos
em nossas próprias festividades de fim de ano) celebram, se não um “fato” cósmico
objetivo, ao menos uma expectativa antropológica universal: a de que “ano novo, vida
nova”, ou, traduzindo o clichê, a de que a mudança do calendário reflita uma renovação do
próprio tempo, com a superação das formas desgastadas, “impuras”, mortas, em troca de
um novo ciclo auspicioso, de boa saúde vital e anímica, sorte e realizações.
O Ano Novo é considerado um reinício do tempo, portanto uma repetição da
cosmogonia. Concretiza, ritualmente, a “abolição do tempo” e a restauração do tempo forte
dos Primórdios, da passagem do Caos ao Cosmos (Eliade, M., 1992, p. 57–8).
Vejamos, rapidamente, o exemplo, fartamente explorado por Eliade, do Ano Novo
babilônico (Eliade, M., 1992, p. 58s). Durante os 12 dias da celebração, recitava-se
solenemente, várias vezes, o épico babilônico da Criação, o Enûma elis, no templo de
Marduque: “Dessa maneira era reatualizado o combate entre Marduque e Tiamat, o
monstro do mar – combate que tinha sido realizado in illo tempore e colocara um fim ao
cosmos graças à vitória final do deus. Marduque teria criado o Cosmo com os fragmentos
do corpo dilacerado de Tiamat, e procedido à criação do homem a partir do sangue do
demônio Kingu, ao qual Tiamat tinha confiado as Lâminas do Destino (Enûma elis, VI, 33,
apud Eliade, M., 1992, p. 58).
A gesta de Marduque era não apenas rememorada, mas sim revivificada, como se vê
pelos rituais e pelas fórmulas recitadas durante as cerimônias: dois grupos de atores “atual”
e “atualizam” o combate entre Tiamat e Marduque; o celebrante, a certa altura, exclama:
“Que ele [Marduque] continue a vencer Tiamat e a encurtar seus dias!”. Para Eliade, isso
176
sinaliza que se considerava que “o combate, a vitória e a Criação aconteciam naquele
preciso instante” (Eliade, M., 1992., p. 58).
Um dos momentos da trajetória de Marduque no Ano Novo é sua “descida aos
infernos”: o deus era feito prisioneiro da montanha, isto é, das regiões infernais, o que
correspondia ao um período de luto e jejum para toda a comunidade e de “humilhação”
para o rei. O ciclo se fechava com uma hierogamia do deus com Sarpanitu, evento que o rei
mimetizava com uma escrava no templo da câmara da deusa, simultaneamente à ocorrência
de uma orgia coletiva (Eliade, M., 1992, p. 59).
Reter este último “detalhe”, o da mimese operada pelo rei, é fundamental para que
vejamos o fundamento mítico do que, no Absolutismo, veio a ser conhecido como teoria do
“direito divino dos reis”: a legitimidade sacral do poder temporal provém de que este, como
tudo, existe porque um arquétipo transcendente lhe subjaz. Vide a râjasûya indiana:
exemplo de rito de consagração de um rei nos moldes “arquetípicos”, isto é, nas bases do
que teria sido a consagração de Varuna, o Soberano cósmico, “à l’ aube des temps” (cf.
Dumézil, Ouranos-Varuna, Paris, 1934, apud Eliade, M., 1969, p. 43).
As realezas egípcia e assírio-babilônica seguem este mesmo “mecanismo” ritual
(Eliade, M. 1969, p. 43), sem dúvida um dispositivo legitimatório.
Entre as tantas esferas da vida pessoal e coletiva que são recobertas pela “regulação
arquetípica”, temos também a própria idéia de “Lei” que embasa as diversas concepções de
justiça – e de ordem política – nos povos arcaicos, mas que têm em comum, segundo
Eliade, a remissibilidade a modelos cósmicos supra-humanos que se “rebatem”
normativamente sobre a ordem especificamente humana (vide os conceitos de “tao” e de
“themis”, entre outros; Eliade, M., 1969, p. 45).
“Ali onde a tradição desempenha ainda uma certa atualidade, os grandes soberanos
se consideram imitadores do herói primordial: Dario se via como um novo Thraetona, herói
mítico iraniano que se dizia ter morto um monstro tricéfalo; para ele e por ele a história era
regenerada, pois ela [a história] era de fato a reatualização de um mito heróico primordial”
(Eliade, M., 1969, p. 52).
No Egito, o Faraó era assimilado ao deus Rê, vencedor de batalha mítica contra o
dragão Apophis, ao qual eram identificados os inimigos do soberano.
177
Uma análoga “transfiguração da história em mito” se verifica, noutra chave, nas
“visões dos poetas hebreus”, segundo Eliade: “Para poder ‘suportar a história’, isto é, as
derrotas militares e as humilhações políticas, os hebreus interpretavam os eventos
contemporâneos por meio do antiqüíssimo mito cosmogônico-heróico que implicava,
evidentemente, a vitória provisória do dragão, mas, sobretudo, sua destruição final por um
Rei-Messias (Eliade, M., 1969, p. 52). Eliade cita, a propósito, passagens bíblicas como Sl
74, 13 e Jeremias 51, 34.
É farta a bibliografia a respeito de como os governantes, antes e depois da separação
de Estado e religião no Ocidente moderno, apelaram – e ainda apelam – à autoridade de
“Deus” e dos ancestrais, mais ou menos “lendários”, para justificar seu próprio poder. Não
podemos aqui entrar em mais detalhes a respeito de tal problemática, apenas marcar a
maneira como é interpretada pela teoria eliadiana dos arquétipos míticos. Temos aqui o
desdobramento “político” de um princípio lógico com que os povos tradicionais englobam
história humana e cósmica num só enredo sagrado, de que o verdadeiro protagonista não é
o homem pretensamente autônomo e criador de si mesmo, mas, sim, forças transcendentais,
deuses e demônios cujos conflitos de poder são os paradigmas sacrais para o status quo do
mundo das aparências. É deste viés teórico-metodológico que leremos, mais adiante, a
crítica em As Moscas à fundamentação “sagrada” da tirania de Argos.
Teodicéia
O “mito do eterno retorno”, concepção cosmológica segundo a qual o universo
nasce, se expande, adoece e morre periodicamente, é, segundo Mircea Eliade, uma primeira
formulação, “pré-reflexiva” talvez (pelos parâmetros da teologia ocidental), para um
problema, a teodicéia, que muito ocupará as chamadas religiões universais, nas quais a
interiorização ética da conduta do crente viria a sobressair sobre a exterioridade dos efeitos
da magia (sobre a transição das religiões “mágicas” às religiões “éticas”, a melhor
referência teórica é sem dúvida a obra sociológica de Max Weber, que encontra boa síntese
e retomada em Berger, P., 1985).
178
A teodicéia é a tentativa de encontrar uma justificação religiosa para o paradoxo de
que uma divindade – ou uma instância sagrada mais impessoal– “boa” possa subjazer a
mundo “mau”, cumulado de sofrimentos, dor, morte e possíveis injustiças. Trata-se não
apenas de uma questão para eruditos, já que um simples campônio a exercita, de certo
modo, quando se pergunta, aos prantos, por que Deus permitiu que seu filho morresse
(Berger, P., ibid., p. 65).
Se o sagrado, como vimos, define-se pela”arquetipificação” de toda a realidade, não
seria justamente o sofrimento, muito menos a morte – experiências humanas tão cruciais –,
que seriam deixadas de fora deste esquema. As religiões, em suma, ensinam qual é o
sentido do viver, mas também qual é o sentido do morrer, ou, para citar variantes atenuadas
desta privação de ser absoluta que é a morte, qual é o sentido das perdas, dos desastres, dos
fracassos – por exemplo, uma derrota militar que põe um país inteiro sob o jugo de uma
potência estrangeira, caso da França de Vichy. “Por que Deus permite que os estrangeiros
nos dominem? Por que Deus permite que alguns homens comam e outros passem fome? –
ambas as perguntas são suscetíveis de respostas dentro de teodicéias específicas. Uma das
funções sociais muito importantes das teodicéias é, com efeito, a sua explicação das
desigualdades de poder e privilégio que prevalecem socialmente. Nesta função, é claro, as
teodicéias legitimam diretamente a ordem institucional particular em questão” (ibid., p. 71).
Vemos bem, por esta reflexão de Berger, o quão a religião, mesmo que interpretada – como
o quer Eliade – “em seus próprios termos”, não pode ser isolada do seu contexto social e
político, no qual entra, não como mero epifenômeno, mas sim em relações de
“metabolismo” com os interesses e conflitos que movem os homens daquela sociedade em
particular.
Mas o que queríamos ressaltar é, sobretudo, que o “eterno retorno” esboça já uma
teodicéia ao mostrar que o tempo linear, tempo próprio à manifestação das formas mais ou
menos atenuadas de privação de ser, é só uma “imagem do eterno”, uma efêmera floração
do rizoma essencial, e que todas as coisas, mesmo que morram, tornarão a existir, e mesmo
que se percam, serão reencontradas. O arquétipo divino, e a heterogeneidade que instaura
entre os tempos sagrado (cíclico) e profano (linear) tem essa função de permitir a tolerância
para com o que Eliade chama de o “terror da história”. A teodicéia, em suas variantes mais
arcaicas, não é tanto uma sacralização da história – como seria o caso no judaísmo e no
179
cristianismo –, mas uma “revolta” (révolte) anti-histórica e uma “volta” (retour) ao ante-
histórico, ao “tempo antetempo” das origens (Eliade, M. 1969, p. 9). Os mitos são assim
libertados do aspecto meramente literário ou “narrativo”, ganham vida de novo, e redimem
a desgraça da vida fictícia, falsa, que é a vida sob a História.
Nem uma causalidade puramente profana, nem, pior ainda, uma casualidade – a
contingência – seriam formas admissíveis de se interpretar o “terror da história”; feiticeiros
e sacerdotes eram investidos da prerrogativa teórica e prática de enfrentar o Mal concreto
ao explica-lo arquetipicamente, e se possível, “conte-lo”, já neste mundo ou apelando a um
regime de recompensas e castigos associado ao além–mundo.
A “tolerância” para com a realidade do sofrimento decorre da convicção de não ser
ele um mero absurdo, e sim a “conseqüência de um desvio em relação às ‘normas’” (Eliade,
M., 1992, p. 91), sendo o conteúdo de tais normas obviamente variável, de cultura para
cultura.
Um dos exemplos mais antigos de sistema ritual de “regeneração do tempo”
concerne aos cultos lunares. A observação das fases da Lua, em suas trajetórias reiteradas
de “aparição, crescimento, diminuição e desaparição”, teriam desempenhado “um papel
imenso na elaboração de concepções cíclicas”, dando inclusive suporte a mitologemas
como os “dilúvios” que marcam, em várias cosmologias, a destruição expiatória de uma
“etapa” da realidade humana e cósmica, ao que se seguiria uma recriação mais evoluída
(Eliade, M., 1969, p. 105–6; cf. Tratado de História das Religiões, capítulo sobre o
simbolismo lunar); “de fato, o ‘nascimento’ da humanidade, seu crescimento, sua
decrepitude (seu desgaste [o termo em francês, usure, faz duplo sentido com a crítica
moralista, em vigor na Idade Média, contra essa forma de “corrupção” que seria a prática
da “usura”] e sua desaparição são assimiladas ao ciclo lunar” (Eliade, M., 1969, p. 106).
A “perspectiva lunar” é a um só tempo pessimista e otimista, ao pensar a
inevitabilidade da morte, mas também da ressurreição pós-diluviana; tal perspectiva arcaica
se conservou nas chamadas “culturas históricas”, em que o tempo cíclico de destruição e
regeneração é enfatizado, por exemplo, na doutrina caldéia do “Grande Ano”, no mito
estóico da combustão universal (ekpyrosis), na Índia, no Irã e assim por diante (Eliade, M.,
1969, p. 107).
180
“Na ‘perspectiva lunar’, a morte do homem, como a morte periódica da
humanidade, são necessárias, assim como o são os três dias de trevas que precedem o
‘renascimento’ da lua. A morte do homem e a da humanidade são indispensáveis à sua
regeneração” (Eliade, M., 1969, p. 107). Uma “forma”, qualquer que seja, necessita voltar
ao amorfo, pois uma vez que ela existe, que caiu na duração, está fadada ao
enfraquecimento e desgaste; voltando ao amorfo originário, a forma, liberada do principium
inidividuationis, recobre o antigo vigor (Eliade, M., 1969, p. 107).
As “concepções cósmico-mitológicas lunares” são exemplo central da ontologia do
“eterno retorno”, ou seja, de uma ontologia “não contaminada pela tempo e pelo devir”
(Eliade, M., 1969, p. 108). O homem arcaico sacia sua sede de Ser ao anular o Tempo, ou
melhor, a irreversibilidade temporal, pois o ciclo é eterno: nenhum evento é irreversível e
nenhuma transformação é definitiva. “Num certo sentido, pode-se mesmo dizer que nada de
novo se produz no mundo, pois tudo não passa de repetição dos mesmos arquétipos
primordiais; esta repetição, ao atualizar o momento mítico onde o gesto arquetípico foi
revelado, mantém sem cessar o mesmo no mesmo instante autoral dos começos. O tempo
não faz senão tornar possível a aparição e a existência das coisas. Não tem nenhuma
influência decisiva sobre esta existência – uma vez que ele próprio se regenera sem cessar”
(Eliade, M., 1969, p. 108–9).
A “tolerância do Mal” mediante a superposição de uma categoria arquetípica ao
evento empírico tomou contornos similares em grande parte da área do Mediterrâneo e
Mesopotâmia, com a vinculação – arquetípico – dos sofrimentos do homem aos de um
deus. O exemplo clássico é o de Tammuz, cujo itinerário mítico de sofrimento, morte e
ressurreição, ecoando o drama lunar e os ritmos agrários, era “imitado (portanto repetido) a
cada ano pelo rei. (...) As lamentações e regozijo populares comemorando os sofrimentos, a
morte e a ressurreição de Tammuz, ou de não importa que outra divindade cósmico-agrária,
tiveram sobre a consciência do Oriente arcaico uma ressonância de enorme alcance e
mérito. Pois não se tratava apenas de um pressentimento da ressurreição que se seguirá à
morte do homem, mas igualmente da virtude consoladora dos sofrimentos de Tammuz para
cada homem em particular. Todo e qualquer sofrimento podia ser suportado sob a condição
de que se lembrasse o drama de Tammuz” (Eliade, M., 1969, p. 120). É evidente a
referência implícita aqui ao enredo mítico central da religião cristã. Mais amplamente,
181
temos aqui, em linguagem simbólica, a insinuação do mistério do sofrimento do justo: se o
próprio deus sofreu sem culpa, há evidente “consolação” e apaziguamento potencial para a
dura experiência de ser castigado pela vida mesmo sem ter cometido nenhum desvio
aparente em relação à norma moral e religiosa. É o tema judeu-cristão do “Justo Sofredor”.
Mas o profetismo hebreu se marca justamente pela ênfase com que acusa o “desvio
da norma” – o pecado– como causa “religiosa” para os sofrimentos históricos. “Para os
hebreus, toda nova calamidade era considerada uma punição infligida por Javé,
encolerizado pelos pecados aos quais se entregava o Povo Eleito. Nenhum desastre militar
parecia absurdo, nenhum sofrimento era vão, pois para além do ‘evento’ se podia sempre
entrever a vontade de Javé. Mais ainda, se podia dizer que essas catástrofes eram
necessárias, estavam previstas por Deus, afim de que o povo judeu não persistisse na
contramão de seu próprio destino ao alienar [en aliénant] a herança religiosa legada por
Moisés” (Eliade, M., 1969, p. 122).
A grande originalidade, porém, dos profetas hebreus foi já não postular a
“anulação” periódica da História, mas sim assumir esta História, dar-lhe valor religioso,
valor teofânico, ainda que se trate muitas vezes de uma teofania negativa: a vontade de
Deus se manifesta numa História que é História da Salvação, que se faz de desastres que
“punem” e expiam o pecado do povo que se afastara de seu destino ao trair a Aliança com o
Sagrado. “(...) pela primeira vez, os profetas valorizam a história, chegam a ultrapassar a
visão tradicional do ciclo – concepção que assegura a todas as coisas uma eterna repetição
– e descobre um tempo dotado de sentido único. (...) Pela primeira vez, afirma-se e progride
a idéia de que os eventos históricos têm um valor neles mesmos, na medida em que são
determinados pela vontade de Deus. Este Deus do povo judeu não é mais uma divindade
oriental criadora de gestos arquetípicos, mas uma personalidade que intervém sem cessar na
história, que revela sua vontade mediante eventos (invasões, cercos, batalhas etc.). Os fatos
históricos se tornam assim ‘situações’ do homem perante Deus, e enquanto tais adquirem
um valor religioso inédito, Assim, é correto dizer que os hebreus foram os primeiros a
descobrir a significação da história como epifania de Deus, e esta concepção, como se
poderia esperar, foi retomada e ampliada pelo cristianismo” (Eliade, M., 1969, p. 124). No
caso do cristianismo, vide, por exemplo, a declaração de Hb 9, 24ss, a respeito da
182
“unicidade” do evento sagrado – sinal de suas concreticidade histórica – por excelência,
qual seja, a encarnação de Cristo (Eliade, 1992, p. 124).
A historicização do sagrado pela fé judaico-cristã se dá também no sentido de que
os eventos “arquetípicos” a serem rememorados pela vida litúrgica têm agora a o caráter
pontual, concreto e irreversível próprios à duração histórica; são eventos que tiveram lugar
no tempo, num “momento limitado e bem determinado no tempo” (Eliade, M., 1969, p.
125); o sagrado se encarna no tempo, para que o tempo se eleve à sacralidade – portanto a
uma densidade ontológica – que jamais tivera na religião e ontologia arcaicas.
A figura do Messias – além de concorrer pelo esvaziamento da autoridade religiosa
do rei mundano, na medida em que agora chama para si o papel de polarizador temporal
dos desígnios sagrados (cf. Eliade, M., 1969, p. 126) – implica também uma valorização
escatológica do tempo: a pureza e integridade dos Primórdios não é restaurada meramente
pelos ritos periódicos, mas num seio da própria história concreta, ou seja, no futuro. A
História curará a História. “Enquanto, por exemplo, nas populações mesopotâmicas os
‘sofrimentos’ individuais ou coletivos eram ‘suportados’ na medida em que eram devidos
ao conflito entre as forças divinas e demoníacas, ou seja, faziam parte do drama cósmico
(desde sempre e ad infinitum a Criação sendo precedida pelo Caos e tendendo a se
reabsorver nele; desde sempre e ad infinitum um novo nascimento implicando sofrimentos
e paixões etc.), para o Israel dos profetas messiânicos, os eventos históricos podiam ser
suportados porque, por um lado, eram desejados por Javé, de outro porque eram
necessários à salvação definitiva do Povo Eleito. Retomando os antigos roteiros (do tipo
Tammuz) da ‘paixão’ do deus, o messianismo lhes confere um valor novo, abolindo-lhes
antes de tudo a possibilidade de repetição ad infinitum. Quando vier o Messias, o mundo
será salvo de uma vez por todas e a história deixará de existir. (...) A história não aparece
mais como um ciclo que se repete ao infinito, como era representada pelos povos primitivos
(criação, esgotamento, destruição, recriação anual do Cosmos) (...); diretamente controlada
pela vontade de Javé, a história aparece como uma sucessão de teofanias ‘negativas’ ou
‘positivas’, cada qual tendo seu valor intrínseco. Certamente todas as derrotas militares
podiam ser remetidas a um arquétipo: a cólera de Javé. Mas cada uma dessas derrotas,
sendo no fundo a repetição de um mesmo arquétipo, não deixava também de ter, doravante,
um coeficiente de irreversibilidade: a intervenção pessoal de Javé. A queda de Samaria, por
183
exemplo, por mais que assimilável à de Jerusalém, dela se diferencia, não obstante, pelo
fato de que foi provocada por um novo gesto de Javé, por uma nova intervenção do Senhor
na história” (Eliade, M., 1969, p. 128).
O messianismo dá à história uma função escatológica (Eliade, M., 1969, p. 132).
Isso não implica a erradicação da atitude anti-histórica, do pavor ante o “terror da
História”, generalizados na humanidade pré-moderna, pois a esperança messiânica, no fim
das contas, é a esperança de que a História um dia cesse para sempre Eliade, M., 1969, p.
132–3).
Algo análogo se passa na Índia, quando o sistema védico, “arcaico e ‘primitivo’”,
dos ciclos cósmicos deixa de ser tido como consolação satisfatória para o sofrimento, para
se tornar, a partir da crítica budista, o “próprio símbolo da ‘escravidão’ do homem” (Eliade,
M., 1969, p. 139). A solução arquetípica tradicional, que referia as dores do presente à
“decadência” provisória de um cosmos que morreria e voltaria a nascer, é rejeitada, não em
troca de um messianismo de tipo hebraico, mas, sim, pelo esforço individual de cumprir e
erradicar a lei (carma) que exige o nascer e renascer neste mundo, e assim lograr uma
libertação existencial definitiva (ibid.).
O homem histórico e a angústia moderna
Que “nada de novo há sob o Sol”, Hegel pode concordar, desde que estejamos
tratando do domínio da pura necessidade, da mera natureza. Já a História, diz Hegel, é
“livre”, e por isso pode avançar, produzir rupturas, alcançar o novo. A História assim
escaparia do “eterno retorno”. Mas nem por isso o historicismo hegeliano é vazio de
arquétipos, vide o papel que o Espírito absoluto tem como chave de explicação e
justificação dos eventos “empíricos” (Eliade, M., 1969, p. 109). Neste sentido, Eliade dirá
que Hegel, e ainda o componente utópico do materialismo histórico de Marx - a aposta
numa restauração do “comunismo primitivo”, quando o reino da necessidade houver sido
superado – são “repetições” modernas da transfiguração arquetípica do tempo (Eliade, M.,
1969, p. 171s).
184
Mas o que distinguirá propriamente a era moderna, diz Eliade, é a crescente
eliminação deste princípio arquetípico, sua diluição numa concepção mais e mais
“imanentista” sobre a História e o homem como ser histórico.
Pode-se dizer que a História moderna atualiza o processo mais vasto de
secularização, pois, se “toda religião postula um ‘outro’ que enfrenta o homem como uma
realidade objetiva, poderosa” (Berger, P., 1985, p. 85), a concepção moderna de tempo é
“irreligiosa” ao esvaziar este Outro da História, que não a mera Natureza inerte, “em-si”,
estranha, indiferente ou hostil à liberdade do homem, mas sim o arquétipo, o mito que
“anulava” a História ou a remetia a uma Origem ou Finalidade de outro nível ontológico, de
outra qualidade ética e de muito maior beleza do que o terror histórico. Para críticos da
religião como Feurbach e Marx – e, é claro, Sartre –, a supressão deste “Outro” é elogiável
como uma forma de desalienação humana, pois deixamos de relegar a outrem a
responsabilidade por nosso próprio destino. Para Eliade, porém, tal processo gera um
impasse, pois já não há como “tolerar” a história se ela é a medida de todas as coisas: nossa
angústia de vivermos a temporalidade destrutiva já não tem mais consolo, se entrega ao que
os homens de todas as eras evitavam com todas as forças: o senso do absurdo, da
insignificância ou, lembrando termo fundamental do existencialismo, do “nada”.
O existencialismo, aliás, é uma das correntes que, ainda mais que o marxismo – que
tem ainda, como dizíamos, “resíduos” de escatologia religiosa –, são hostilizadas por Eliade
como responsáveis (ou, no mínimo, sintomas) do beco sem saída em que o homem
moderno decidiu pôr-se a si mesmo.
Heidegger mostra que “a historicidade da existência humana interdita toda
esperança de transcender o Tempo da História” (Eliade, M, 1969, p. 174). Sem intenção
transhistórica (Eliade, M., 1969, p. 175), afirmando o histórico como um fenômeno
“absolutamente indicativo de si mesmo”, para usar expressão sartriana, paradoxalmente se
nega sentido ao histórico, ou melhor, se cai num niilismo, pois somos abandonados à
angústia de que os primitivos tanto fugiam, a angústia da História, o “terror” da finitude e
da brutalidade; como os acontecimentos, sem arquétipos que os justifiquem, poderiam ser
mais do que um “jogo cego de forças econômicas, sociais ou políticas ou, pior ainda,
185
resultado de ‘liberdades’ [libertés] que uma minoria toma e exerce diretamente sobre a cena
da história universal?” (Eliade, M., 1969, p. 175).
Eliade diz que, para o homem moderno, para o homem das Luzes do progresso,
negar a história seria uma espécie de escapismo ou infantilismo e, além do mais, uma
“impotência criativa”, já que ao tentar fugir da História acabamos por sublimar os riscos e
contingências inerentes a todo ato de criação; para esta mentalidade, “homem não poderia
ser criador senão na medida em que é histórico; noutras palavras, toda criação lhe é
interdita salvo aquela que tem como fonte sua própria liberdade; e por conseqüência tudo
lhe é recusado, salvo a liberdade de fazer a história ao se fazer a si próprio” (cf. Eliade, M.
1969, p. 180). Parece haver aqui evidente alusão a Sartre, cuja conferência “O
Existencialismo É um Humanismo” Eliade inclusive sugere ter assistido em 1945 – ano em
que iniciou seu O Mito do Eterno Retorno (cf. Eliade, M., 1987, p. 71), livro que, em certo
sentido, pode até ser lido com uma “réplica” à doutrina existencialista de Sartre, que então
adquiria grande prestígio nos meios intelectuais e na sociedade mais ampla.
Para dizer com Berger, a secularização implica uma “desintegração das estruturas de
plausibilidade” que até o início da era moderna mantinham a hegemonia cultural e social
das instituições e da visão de mundo religiosas (cf. Berger, P., 1985, p. 104). À luz de uma
leitura combinada de Berger e Eliade, poderíamos falar na modernidade como uma
“secularização do tempo”, na medida em que se perde aquela ótica “sub specie arternitatis
com que a religião vê, julga e age sobre a realidade temporal, finita e tantas vezes hostil a
qualquer crença em deuses benévolos. Essa corrosão é fundamental a instituições como o
Estado democrático e às liberdades modernas em geral, que nascem ali onde as “formações
precárias da história humana” (Berger, P., ibid., p. 108) são reconhecidas como tais, ao
invés de serem edulcoradas com o caráter de “imortalidade” que a sacralização do poder
antes estimulava. É verdade que já o profetismo hebreu, se ainda “sacraliza” a História ao
vê-la como expressão da vontade (muitas vezes punitiva) de Javé, por outro lado, concorre
pela dessacralização de vastos aspectos da realidade humana, sobretudo a esfera da política;
se comparada com as teocracias vizinhas, Israel é exemplo forte e originalíssimo da
percepção de que os reis são “humanos, demasiado humanos”, e enquanto tais devem ser
vigiados e, se for o caso, desmascarados, devido ao “livre arbítrio” com que podem se
desviar dos mandamentos divinos e cair em pecado (vide a condenação de Davi por Nata,
186
em 2 Sm 12, 1–7, apud Berger, P., ibid., p. 111). A concepção hebraica de um Deus
radicalmente transcendente ao mundo articula-se com uma crescente individualização do
homem; o principium individuationis, que virá a se afirmar como antônimo da idéia de
arquétipo –“(...) pelo seu próprio modo de ser, o mito não pode ser particular, privado,
pessoal” (Eliade, M.,1989, p. 11), nasce ainda como um “arquétipo”, isto é, como uma
vontade exemplar do divino, como uma “situação” do homem ante Deus:
“O homem aparece como ator histórico diante da face de Deus (o que é muito
diferente, diga-se de passagem, do homem como ator diante do destino, como na tragédia
grega). Assim, os homens são vistos cada vez menos como representantes de coletividades
concebidas mitologicamente, como era típico do pensamento arcaico. Mas são vistos como
indivíduos únicos e distintos que desempenham atos importantes como indivíduos. Basta
pensar nos perfis de figuras como Mosés, Davi, Elias etc.” (Berger, P., ibid., p. 131).
Mas na modernidade esta clivagem de sagrado e profano se radicaliza, e tende, no
limite, ao esvaziamento de qualquer legitimação religiosa não só do poder político, como
de todas as esferas da realidade, a ponto de a ciência – e antes ou junto com ela as filosofias
agnósticas e atéias – poderem se desvencilhar desta “hipótese desnecessária” ou nociva que
é a própria existência de Deus. Dá-se então uma “secularização global da consciência”
(Berger, P., ibid., p. 112), fase final do processo designado por Max Weber como
desencantamento do mundo. Da ótica de Eliade, tal desencantamento toma uma acepção,
por assim dizer, mais “romântica”, enquanto perda do “encanto” de viver, pois este
encanto, conclui Eliade à luz da multissecular experiência histórica do homo religiosus,
dependia (e talvez dependa sempre) da abolição da História.
As últimas páginas de O Mito do Eterno Retorno são dedicadas a uma forte crítica à
“ilusão” de liberdade do homem moderno – se cotejada com os determinismos da história –
e ao niilismo historicista; o autor, aqui assumindo de vez o parti pris filosófico que
animava toda sua empreitada “etnológica” – e sua “poética do mito” –, faz um reclamo por
uma “filosofia da liberdade que não exclua Deus” (Eliade, M., 1969, p. 185), o que trai a
influência do existencialismo de Kierkegaard, admitida por Eliade alhures (Eliade, M.,
1987, p. 20). Qualquer outra “liberdade moderna”, arremata o autor, impossibilita qualquer
justificativa para a história, “o que, para todo homem sincero em relação a si mesmo,
187
equivale ao terror da história” (Eliade, M., 1969, p. 186). Dialogando aqui com categorias
cruciais do existencialismo sartriano, Eliade diz que uma liberdade que implique a recusa
da existência de Deus instaura uma situação que inevitavelmente conduz ao desespero.
Desespero que advém não da condição humana em si, mas da condição histórica a que o
próprio homem moderno “decide” confinar-se. “Um desespero provocado não por sua [a do
ser humano] existencialidade [existencialité], mas por sua presença num universo histórico
no qual a quase totalidade dos seres humanos vive aprisionada por um terror contínuo
(mesmo que nem sempre consciente)” (Eliade, M., 1969, p. 187).
A história e o progresso são, no vocabulário mito-poético propositalmente
mobilizado por Eliade, uma “queda”, pois implicam, ambos, o “abandono definitivo do
paraíso dos arquétipos e da repetição”; Eliade considera o cristianismo, nessa medida, uma
religião própria a esse homem, um resgate possível da experiência arquetípica, isto é,
transhistórica, nos termos de nossa própria herança e trajetória cultural de crescente
enredamento no véu de Maya da História (Eliade, M., 1969, p. 187).
Não obstante, Eliade é cético quanto ao alcance “ontológico” da ruptura implicada
pelo que chamamos de a moderna secularização do tempo. Até porque, ressalva ele em
nota, sua própria noção de “homem moderno”, esclarece o autor em nota, é um conceito
(um tipo-ideal, diríamos weberianamente) que pretende descrever uma atitude e um traço
de consciência que não são as de todos os homens de uma dada época, e sim a daqueles que
vêem o homem como um “ser exclusivamente histórico”; homem moderno, mais
especificamente, é o “'homem' do historicismo, do marxismo e do existencialismo” (Eliade,
M., 1969, p. 139, nota 12). Ou seja, não é a civilização moderna em geral, em toda sua
complexidade e, em especial, em seus precedentes históricos mais ou menos próximos, que
se deixa subsumir pela atitude historicista, que Eliade parece considerar mais como um
artefato intelectualista
17
de pouca penetração nas camadas profundas – inerentemente
religiosas, segundo ele – do ser humano.
17
Em seu ensaio “Os Mitos no Mundo Moderno”, de 1953, Eliade especifica que entende por
“mundo moderno” a sociedade ocidental de seu tempo, mas mais especificamente “um certo estado
de espírito que se formou, por aluviões sucessivos, a partir do Renascimento e da Reforma”. São
“modernas”, segundo ele, as “classes ativas das sociedades urbanas”, ou seja, o extrato desta
população que foi mais ou menos diretamente” modelada pela instrução e pela cultura oficial”. O
restante da população, em especial na Europa central e sul–oriental, mantinha–se ainda ligado ao
188
Para Eliade, o homem alheio aos mitos é como um peixe agonizante na areia da
praia: fora de seu “habitat”. A seu ver, a crise das estruturas de plausibilidade (Berger) do
cristianismo não implica a morte de um princípio ainda mais fundamental do que esta ou
aquela religião dogmática: os arquétipos, ou seja, a criação mítica, que é também traço
fenomenológico universal das religiões, e que tende à recusa do linearismo histórico
irreversível . Daí, segundo ele, as expressões de remitologização e de resgate da idéia de
"tempo cíclico" em diversas esferas culturais – Eliade menciona as teorias acerca dos ciclos
econômicos, o conceito de “eterno retorno” cunhado por Nietzsche, a questão da
periodicidade na filosofia da história (Spengler, Toynbee) (cf. Eliade, M. 1969, p. 169), ao
que podemos ajuntar muitos outros exemplos, alguns amplamente estudados por Eliade
noutras obras, como a valorização do mito pela psicanálise e em artistas como Joyce – tão
influenciado, em especial em Finnegans Wake, pela filosofia viconiana (cíclica) da História
– e Eliot (cf. Eliade, M. 1969, p. 177). Voltamos aqui ao fenômeno do “mitologismo
moderno” de que falaria E. M. Mielietísnki.
Daí também, como ele explica no ensaio “Os Mitos no Mundo Moderno”, de 1953,
as formas mais sutis de “camuflagem” e reaparição do mito em plena sociedade
racionalizada – Eliade cita o exemplo das festas (notadamente as de Ano Novo, o afeto
“ecológico” pela Natureza (ainda incipiente à época) e “ritos profanos” – esta estranha
contradição em termos todavia operante na modernidade – como a leitura e o espetáculo,
por exemplo, uma peça de teatro ou um filme. “Mesmo não levando em conta a origem
mitológica do drama e do filme, resta o fato importante de que estas duas espécies de
espetáculo utilizam um tempo totalmente diverso do ‘período profano’, um ritmo temporal
concentrado e ao mesmo tempo partido que, para além de toda a implicação estética,
implica uma profunda ressonância no espectador (Eliade, M., 1989, p. 23–4). O que Eliade
está dizendo é que, tal como a leitura, o espetáculo é uma mitologizante não só por seus
“conteúdos” – muitas vezes inspirados nos arquétipos arcaicos, como o tema da iniciação
do herói, da hierogamia, da luta do bem contra o mal etc.– mas também por sua substância
imaginária: são formas de “diversão” que, aparentemente inofensivas, portam a mesma
semente de “révolte” que levava o homem arcaico de volta ao mito, para fora da história,
“horizonte espiritual” coberto pelo conceito de “homem arcaico”, no sentido cronológico ou
naquele, já apontado por nós, de homem apegado à “arché”, ao arquétipo (Eliade, 1989, p. 26).
189
para além do tempo linear, contínuo e insignificante da cotidianidade. “Toda a poesia”,
acrescenta Eliade, “é um esforço para recriar a linguagem, para abolir por outras palavras a
linguagem corrente de todos os dias, e inventar uma nova, pessoal e privada, em última
instância secreta. Mas a criação poética implica a abolição do tempo (...) e tende à
recuperação da situação paradisíaca primordial, no tempo em que se criava
espontaneamente, no tempo em que o assado não existia, porque não havia consciência do
tempo, memória da duração temporal, Diz–se, aliás, em nossos dias: para um grande poeta,
o passado não existe, o poeta descobre o mundo como se assistisse à cosmogonia, como se
fosse contemporâneo do primeiro dia da Criação” (Eliade, M., ibid., p. 24). Estaria tão
distante desta ambição “mítica” o filósofo quando, como diz Georges Gusdorf (1980, p.
17), se deixa levar pelo “desejo secreto de toda filosofia”, qual seja, “pôr fim” à própria
Filosofia, no sentido de ultrapassar suas predecessoras e rivais e chegar às chaves últimas,
mais ou menos sistemáticas, de “explicação” ou recriação conceitual do mundo (histórico
ou tout court)?
Ainda que admitamos algum acerto nesta “provocação” de Gusdorf, não há aqui
motivo para alguma conotação depreciativa, a não ser que deixássemos de lado todo o
esforço que autores como Eliade, entre outros – como Ernst Cassirer e Claude Lévi-Strauss
– no sentido de “reabilitar” o mito como forma de conhecimento e estrutura antropológica
universal. “Resgatar a influência de ‘resíduos míticos’ na cognição humana” (Beividas, W.,
2002, p. 10) tornou-se tarefa filosófica digna e, mais que isso, crucial, e não
necessariamente por algum ímpeto iconoclástico e “de(s)mitificador” contra a filosofia. É a
tal tarefa, ou seja, a de sugerir possíveis camadas de “mito” e de crítica ao “mito” – já na
acepção estabelecida por Eliade – em As Moscas, que nos dedicaremos a seguir.
A nova ‘re–volta’ mítica
O mitologismo moderno de Eliade, seja como “sintoma” de uma época, seja como
forma de elucidação objetiva de aspectos da essência do mito, nos parece uma ferramenta
extremamente útil para pensar As Moscas. A começar do contexto histórico da peça, a
Ocupação, cujas bases “teológicas” apontam, segundo análise do próprio Sartre (vista no
Capítulo II), para uma clara “vingança” de direita, com o apoio da hierarquia eclesial,
190
contra as conquistas da democracia republicana pós-1789. Vingança que passa pela vontade
de “expurgar” os pecados desta democracia e assim “restaurar” a dignidade nacional e sua
“Aliança” com o próprio destino sagrado. É assim que vemos acontecer na época uma
reversão do desencantamento do mundo, – que fora essencial à separação de Igreja e Estado
e à afirmação das liberdades civis e políticas e do pensamento crítico – ou, diríamos à luz
das reflexões de Eliade, uma espécie de nova sacralização do tempo, uma tentativa de
restaurar uma inteligibilidade mítica – arquetípica – da História.
Embora fale em uma “filosofia da liberdade que não exclua Deus”, o pensamento de
Eliade no mínimo faculta a sistemas autoritários como o de Vichy uma possível
“justificativa”: a de que apaziguam a angústia decorrente da crítica moderna aos arquétipos
que davam explicação a todos os aspectos do viver e do morrer. Tudo se passa, na
perspectiva do pensador romeno, como se a angústia face ao terror da História sempre
tivesse sido e devesse voltar a ser “superada” e “redimida” por alguma teodicéia, por
alguma justificativa religiosa do Mal. Ora, Vichy não deixa de oferecer algo do gênero.
Aqui começamos a aquilatar melhor a profundidade histórica e, por assim dizer,
antropológica, da “revolta” implicada pela filosofia sartriana da existência e pelo fruto dela
posto por nós em foco, As Moscas.
Ao declarar e encenar a irrupção de uma liberdade humana que “exclui Deus”, ao
declarar e encenar o primado do desespero como condição de possibilidade de uma
existência autêntica, As Moscas põe-se nas antípodas da função “consoladora” (teodicéica)
que Eliade considera precípua aos mitos. Mas, ainda assim, a peça é prenhe em “resíduos
míticos” (Beivides) que ali aparecem não como um mero entulho a ser combatido, mas,
sim, como uma matriz simbólica reafirmada a despeito, ou melhor, em virtude de ter sido
“nadificada”. Expliquemo–nos.
A primeira afinidade a se destacar entre a peça de Sartre e o mitologismo moderno
está no recurso deliberado às estruturas dramáticas do universo mítico – e um recurso que,
afora suas intenções pragmáticas e paródicas imediatas, embute a visão de um certo
“universalismo” – o da condição humana – que não se deixa domesticar pelo
“progressismo” evolutivo de que fala E. M. Mielietísnki como traço do pensamento
burguês convencional.
191
Sartre atribui – ou projeta – às tragédias de Ésquilo e de Sófocles uma compreensão
filosófica da fatalidade enquanto modo grego de designar e de viver a liberdade existencial:
“A grande tragédia, aquela de Ésquilo e de Sófocles, aquela de Corneille, em por recurso
principal a liberdade humana. Édipo é livre, livres são Antígona e Prometeu. A fatalidade
que se crê constatar nos dramas antigos não é senão o reverso da liberdade. As paixões
mesmas são liberdades apanhadas por sua própria armadilha” (Sartre, J.-P., 1998, p. 19).
Ou seja, o que parece coagir e negar a liberdade humana não é senão ocasião de afirmação
mais radical da liberdade, se preciso sob o risco de morte do que incorreu na “hybris” de
desacatar a ordem repressiva; tal entendimento se aproxima da noção sartriana de
“situação-limite”, matriz mais adequada dos conflitos dramáticos dignos de serem levados
as palcos. Como resume François Noudelmann: “O herói trágico sartriano, como o de
Ésquilo, convulsiona a ordem cósmica e experimenta a hybris, isto é, a desmedida que faz
dele um rebelde em relação aos deuses. Mas, uma vez desligado de toda tutela, ele escapa
definitivamente a seus tutores. A liberdade dos homens é então necessariamente blasfema:
Orestes foi criado livre e sua liberdade se voltou contra seu criador” (Noudelmann, F.,
1993, p. 60).
Tal linha de interpretação consiste, porém, para um renomado helenista como Jaa
Torrano, num evidente anacronismo (cf. Torrano, J., 2004). Em entrevista – no prelo – à
revista do Centro do Pensamento Antigo (CPA) da Unicamp, o professor Torrano, que
acaba de publicar sua tradução comentada da Oréstia de Ésquilo, responde, quando
questionado por mim a respeito desta afirmação de Sartre, que: “Há uma reflexão sobre
essa questão, por André Rivier [“Remarques sur le Nécessaire et la Nécessité chez
Éschyle”]. Ele tem um ponto de vista bem diverso do de Sartre. Sartre está comprometido
com a filosofia da liberdade, ele define a essência do homem como liberdade. Eu acho essa
concepção do homem uma invenção sartriana, é uma grande descoberta. De uma certa
maneira, isto está prefigurado no mito de Er de Platão, no livro 10º da República [epílogo].
Ele tem uma frase notável, que sem dúvida Sartre assinaria: ‘O deus é sem culpa, não é a
causa, a causa é de quem escolhe’. Parecem termos sartrianos. É uma proclamação de
Ananké, alerta as almas que vão encarnar, que estão diante de um mostruário com todos os
tipos de possibilidade de vida, e vão escolher a vida futura. Então o arauto faz essa
proclamação. Rivier reflete sobre isso, mas o que ele coloca, na antropologia que ele faz do
192
homem grego antigo, há um momento da deliberação e o momento da decisão, mas entre
esses dois momentos não há a escolha, e isso contraria justamente o que Platão diz nessa
passagem, e choca frontalmente com a leitura sartriana. Mas esse problema da liberdade, do
livre arbítrio, não era um problema da teologia mítica, então a gente pode ler assim [como
Sartre], há elementos para que leiamos assim, mas sempre estaremos lendo a partir de nossa
problemática, não do que era a problemática da teologia mítica”.
Para Torrano, as releituras modernas da Oréstia – caso, não só de Sartre, mas
também de Eugene O’ Neill, Giraudoux, entre outros – devem ser encaradas, conforme
disse nesta mesma entrevista, como “ criações artísticas, o que é uma outra abordagem, a do
artista que recria, que se apropria da linguagem para expressar o seu próprio tempo, a sua
própria problemática, sua própria reflexão. É uma outra atitude, diferente, por exemplo da
minha [como tradutor e estudioso]. Eu fui muito marcado pela leitura de As Moscas, de
Sartre. O existencialismo também foi uma referência importante quando eu estava no
colégio. Eu li As Moscas já no colégio. Ela fala da liberdade de Orestes, se põe a questão da
liberdade. Foi isso que me impressionou”, declara Torrano.
Preservamos para a próxima etapa de nossa investigação –quando estudaremos
também, entre outras peças de Sartre, sua adaptação de As Troianas – uma reflexão mais
detida sobre o diálogo do pensador francês com a tradição trágica grega. Mas, do horizonte
da presente pesquisa, o possível “anacronismo” ou grau de reinvenção que marca a
perspectiva sartriana em relação à tragédia grega – de resto, algo patente nas inovações que
Sartre introduz no próprio enredo da lenda, vide a “festa dos mortos”, por exemplo – se
afigura como um indício de mitologismo moderno.
Sartre, como afirma Rachel Gazolla a respeito de O Nascimento da Tragédia de
Nietzsche, “fala aos leitores modernos”. Nietzsche, ainda segundo Gazolla, faz uma
interpretação da tragédia na medida de seu reclamo – próprio à cultura alemã de fins do
século XIX, marcada pelo romantismo tardio de Richard Wagner, adepto de um
ressurgimento do dionisismo trágico na música – para que “os espíritos modernos que
somos nós – iluministas que edificamos em pedra nossa racionalidade – afirmemos a
potência originária quase perdida. (...) Nietzsche visa ao processo civilizatório que formou
o homem europeu e aos valores que desumanizaram o humano (...)” (Gazolla, R., 2001, p.
193
22). Em suma, o trágico é resgatado em e para uma luta cultural contra a “historicidade
mascaradora e seus valores”, contra as “máscaras excessivas da historicidade”, contra esse
“mascaramento civilizatório, como ele considera a historicidade e sua hermenêutica” (ibid.,
p. 23). Nesta revolta contra a historicidade, Nietzsche é duplamente mitologizante: ao
evocar o mito (grego) e ao operar uma “tradução” explicativa deste mito que é, ela própria,
um novo mito. Além da crítica juvenil à “história de antiquário”, Niezsche dá vazão à sua
revolta, típica do mitologismo moderno, – contra a história –seja contra o presente niilista
de sua época, seja contra a história objetivista, passiva, factualista, do “homem teórico”
moderno, no seguinte trecho de A Gaia Ciência (seção 83, “As Traduções”):
"O grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado pela maneira como ela faz
traduções e procura absorver épocas e livros do passado. No tempo de Corneille, e ainda no
da Revolução, os franceses se apropriaram da Antigüidade romana de uma forma que já
não teríamos coragem – graças ao nosso elevado senso histórico. E a própria Antigüidade
romana: de que modo simultaneamente impetuoso e ingênuo ela pôs a mão em tudo o que
era impetuoso e elevado da anterior Antigüidade grega! De que modo intencional e
desenvolto tiraram o pó das asas da borboleta que é o instante! (...) como os poetas eram
avessos ao espírito antiquário inquisidor, que precede o senso histórico (...). Eles parecem
nos perguntar: 'Não devemos tornar o antigo novo para nós e nos arrumarmos e
imaginarmos nele? Não devemos poder insuflar nossa alma nesse corpo sem vida? Pois ele
está morto, afinal; e como é feio tudo o que está morto! (...) traduzir era conquistar – não
apenas ao se omitir o dado histórico: mais do que isso, acrescentavam alusões à atualidade,
apagavam o nome do poeta e punham o próprio nome no lugar – não com o sentimento de
um roubo, mas com a perfeita boa consciência do imperium Romanum" (Nietzsche, F.,
seção 83 de A Gaia Ciência, "As Traduções", p. 110–111).
Tão influenciado por Nietzsche ainda na época – e no próprio texto, como vimos –
de As Moscas, Sartre parece, no mínimo, abrir amplas possibilidades de ser interpretado em
chave análoga à do “mitologismo moderno” de que seu mestre alemão foi precursor. Mas o
“universalismo” que ele projeta para a Grécia, para além de cautelas relativistas
convenientes aos especialistas, não supõe uma “essência” metafísica como a Vontade de
Poder. A liberdade, tal como ele a entende, é um universalismo antropológico de condição,
não de natureza, e isso implica que a história – e cada indivíduo como agente histórico –
194
venha a dar conteúdos particulares a uma definição, sempre por fazer, sempre a ser
inventada nas escolhas concretas dentro de uma situação, acerca do que “é” o homem.
Trata-se de um universalismo não tanto metafísico quanto ético, e calcado na dialética,
sempre de novo colocada, entre a liberdade originária e a situação histórica condicionante
dessa liberdade e condicionada pela experiência coletiva acumulada: Como afirma em “O
Existencialismo É um Humanismo”, o que sua doutrina “toma a peito mostrar é a ligação
do caráter absoluto livre pelo qual cada homem se realiza, realizando um tipo de
humanidade, compromisso sempre compreensível seja em que época e por quem for, e a
relatividade do conjunto cultural que pode resultar de semelhante escolha” (...) (Sartre, J.-
P., 1978, p. 17); e, mas adiante: “nós não acreditamos no progresso; o progresso é um
melhoramento; o homem é sempre o mesmo em face duma situação que varia e a escolha é
sempre uma escolha numa situação. O problema moral não mudou desde quando se podia
escolher entre os escravagistas e os não escravagistas, por exemplo, na altura da Guerra da
Secessão, até ao momento presente, em que se pode optar pelo MRP ou pelos comunistas”
(ibid., p. 19).
Parece, porém, conviver bem com esse tipo de universalismo uma aposta incisiva na
descontinuidade entre as épocas e as formações culturais. A identidade ontológica de todos
os homens não elimina a óbvia diferença entre as situações históricas em que nossa
liberdade radical se expressa e se vê apanhada. E salientar tais disparidades é uma das
formas de marcar a especificidade da época para a qual se dirige, necessariamente, todo
escritor que não se refugia num olhar de "sobrevôo" pela vida humana e que, ao contrário,
se engaja nos horizontes e lutas de seu próprio tempo. Daí, em parte, ser tão importante, em
As Moscas, um recurso como o anacronismo lingüístico-conceitual, vide, por exemplo,
expressões de sabor evidentemente próximo do leitor/espectador moderno e cristianizado,
como “pecado original” [faute originelle] (Sartre, J.-P., 2005, p. 11), “que a paz esteja
convosco” [la paix soit sur vous] (ibid., p. 15), “cidade universitária” (ibid., p. 17), entre
tantos outros.
Se a “memória popular” é, como quer Eliade, a-histórica, por superpor categorias
tradicionais, “arquetípicas”, a fatos e personagens individuais da matéria histórica bruta
oferecida às fabulações coletivas, o anacronismo sartriano faz, ao contrário, o
particularismo da história, isto é, da experiência empírica, irromper por entre a malha de
195
referenciais arquetípicos, ironizando-os e atualizando-os. Isso faz com que o mitologismo
literário de As Moscas, que retoma a lenda de Orestes subvertendo-lhe pressupostos
básicos como – sobretudo se pensarmos no caso de Ésquilo – a idéia de destino, de
maldição trágica familiar e de soberania cósmica dos deuses, tenha um grau de
singularização epocal que é mais evidente, mais assumido, do que de vertentes outras do
mitologismo moderno, que se supõem uma tradução cristalina e talvez mesmo total da
“verdade” intrínseca à mentalidade mítica arcaica; vide o caso de certas “decifrações”
psicológicas de fenômenos tão complexos e multifacetados como as religiões ditas
primitivas (cf. Pondé, L. F., 2005, p. 57–63).
A nosso ver, a perspectiva teórica de Mircea Eliade tem um rendimento heurístico
tanto maior, no contexto em que aqui o mobilizamos, quanto mais permite uma auto-
relativização, até por não negar que o “generalismo” fenomenológico, embora mostre
resultados no mínimo instigantes em sua revelação dos universais da religião, pode e deve
ser complementado pela visada particular, com o auxílio de ferramentas outras como a da
sociologia, da psicologia, da história, da arqueologia etc.
De resto, as intenções ideológicas subjetivas que inegavelmente permeiam uma obra
como O Mito do Eterno Retorno tornam as idéias de Eliade, no mínimo, muito atrativas
enquanto sintoma de cultura e uma “poética do mito” comparável à de um Joyce ou à de
um Mann, como Mielietinsli sugere acertadamente. De nosso ponto de vista, esse dúplice
estatuto – heurístico e ideológico – da compreensão eliadiana do mito é uma ambigüidade
que não turva, antes fortalece, o acesso hermenêutico a um mitologismo também ele
“moderno”, como o de As Moscas.
Mielietinski diz que o mitologismo é fruto de uma frustração para com a crença –
doravante vista como ingênua ou mentirosa – no “Progresso”, propugnada pelo
evolucionismo burguês. Há na filosofia de Sartre – ainda mais no período aqui abordado,
em que a análise existencial tem prioridade sobre a posterior aproximação a uma “filosofia
da História” de tipo hegeliano-marxista – o que ele, em As Palavras, chamou de um
“catastrofismo revolucionário e descontínuo”, que assimila mas radicaliza o ideário
moderno de “Progresso”. Essa radicalização, a nosso ver, não se dá como mera
intensificação do esquema que vai do mais simples ao mais complexo numa sucessão direta
196
e linear, o que prenderia Sartre na idéia tradicional, que vimos ser por ele combatida, de
progresso como “melhoramento”.
Precisaríamos aqui levar em consideração a questão – esboçada anteriormente em
nosso trabalho – da natureza extática da temporalidade humana, isto é, o para–si como ação
instituidora de um tempo que é fuga de si, repúdio ao passado, não por ele ser
necessariamente “inferior”, mas porque é passado, quer dizer, é “em–si”, uma escolha já
tomada e reduzida a facticidade, negação da liberdade de inventar o novo e inventar-se de
novo. Neste “êxtase” ocorre não só a invenção do devir, mas a reinvenção do que já foi: o
passado é sempre uma “tradução” revitalizante de algo que é morto, inerte: tradução que
pode, como no remorso compulsivo dos argivos de As Moscas, “eleger” o passado como
tirano sobre o presente e o futuro – fazendo do tempo um eterno retorno, diríamos com
Eliade, ou o “pesadelo” da opressão dos mortos sobre o cérebro dos vivos, para lembrar a
célebre expressão do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte de Karl Marx (s/d, p. 203). Ou
tradução que, ao gosto de Nietzsche, põe entre a história que (já) fomos e a história que
(ainda) seremos o véu do mito, não como um mero simulacro, mas um adorno a embelezar
a dança do tempo de dançarinos que “vencem” o tempo, a escravidão do tempo, por serem
tempo, se assumirem como seres temporais, viris o bastante para fazer das dores e rigores
do tempo, e não do escapismo do eterno, o palco de uma auto–afirmação.
Tudo se passa como se Sartre, no tipo de “recriação” que propõe para o mito de
Orestes, estivesse dizendo que uma relação genuinamente existencial com os grandes
arquétipos culturais da civilização ocidental, que remontam à Grécia antiga, exige aquele
mesmo dinamismo de tensão e de ruptura que marca a liberdade humana, que faz do Para–
si uma perpétua busca e fuga de si e de toda identidade perempta, uma ruptura com o dado
e um mais ou menos inovador projetar-se adiante, até quando parece ir para trás. Um
mitologismo existencialista parece fadado, em suma, a cumprir em sua plena radicalidade a
velha máxima de que toda tradução do passado é uma "traição", pois o próprio passado terá
sentido de acordo com as finalidades presentes que nos projetam para o futuro.
Por isso o relativo simplismo, no caso do horizonte filosófico existencialista de As
Moscas, em se falar numa sujeição ao “terror da História”. O ser humano não é
“condenado” à História, não, pelo menos, como o réu que é tirado de seu habitat “natural” e
197
posto num ambiente estranho de enclausuramento. O ser humano “é” História na medida
em que é temporalização ativa, portanto, na medida em que é liberdade. A História não lhe
sobrevém como uma “pena” coercitiva porque não é uma entidade abstrata e extrínseca, à
maneira do “fato social “durkheimiano que se impõe, domesticadoramente, sobre cada um
dos indivíduos. A História, como insistiria Sartre anos depois, ao cobrar do marxismo uma
inteligibilidade efetivamente dialética dos processos humanos, não é senão interiorização
da exterioridade e exteriorização da interioridade, é metabolismo de liberdades e
condicionamentos; pensar a História nos termos da ontologia arcaica de Eliade seria se
render a uma forma de alienação, que nos termos de Questão de Método traduzíamos como
ilegítima autonomização, em forma de um “Sistema”, do que a princípio é práxis, do que é
ação humana (cf. Sartre, J.-P., 1978).
Isso não quer dizer que a categoria eliadiana fundamental – o sagrado – esteja
completamente ausente do horizonte de preocupações de Sartre. Claro que, em seu sentido
tradicional (teológico), o sagrado é alvo de sátira e de frontal contestação, em As Moscas.
Mas, vimos no Capítulo I, esta peça é momento inaugural de um teatro que se quer
“coletivo e religioso”, um teatro que se faz rito de “comunhão imaginária” (Noudelmann,
F., 1993, p. 15). Um rito que transcende, na sua celebração da “identidade” de todos com
todos, as separações que trazemos de fora do teatro, imersos na fria e egoísta vida burguesa.
Nessa medida, um rito que pode ser chamado de sagrado, embora não no sentido “arcaico”
de uma transcendência vertical – reencontro com o divino –, mas, sim, no sentido
horizontalizante em que cada homem salta para além de si em direção do humano em geral,
suspendendo até mesmo a dimensão agonística do “Para–Outro” para, surpreendentemente,
viver, no imaginário, o mit-sein, a fusão comunitária, tão implausível até então (cf.
Perdigão, P. 1995, p. 137ss). Numa possível releitura sartriana do esquema de Eliade, o
sagrado se instaura como uma negação temporal do tempo, como um êxtase imanente,
êxtase da liberdade humana, e não de um rebaixamento de si na imitação do “Outro”
divino. Se há alteridade a ser imitada, ela se dá, em As Moscas, na forma da empatia que,
ligando Orestes a Electra, liga Orestes a si mesmo, a um “si” construído em situação, como
assentimento ao modelo “arquetípico” que, aqui sim de forma alienada, “arcaica”, habitava
Electra, antes de ser reapropriado e “existencializado” por Orestes, o Super–Homem da
liberdade.
198
Não que a História “social” não tenha para Sartre a malignidade que tem para Eliade
e outros mitologistas modernos. Mas o horror da História, em Sartre, não é provocado pela
ausência do arquétipo eliadiano; é da presença deste arquétipo – na forma da “teodicéia”
penitencial e penitenciária de Vichy – que decorre o pesadelo de remorsos, de covardia, de
capitulação, de má-fé, na França ocupada. E, ainda que, ao destruir este arquétipo arcaico –
ou pseudo-arcaico, na medida em que “imita” uma mentalidade válida em contextos
históricos tão remotos, de antes da vasta marcha da secularização moderna –, a História
caia e nos lance num vazio, este vazio não é um mal em si: Os homens farão deste
desespero o que quiserem, pois “são livres, e a vida humana começa do outro lado do
desespero” (Sartre, J.-P., 2005, p. 105–6), como diz Orestes. A angústia humana é, além de
angústia “ética” – ausência de valores absolutos –, angústia temporal: a incerteza, a
imprevisibilidade do futuro, além da ausência de fundamentação possível pelo passado
(Perdigão, P., 1995, p. 112). Mas é esta angústia, que nos separa da cosmicização e
normatização que tornavam, falsamente, o mundo humano e natural uma coisa só. É esta
angústia que nos impulsiona para fora do consenso automático não só em relação ao
“Cosmos” mítico, mas também em relação à História, também ela “mítica” (no sentido
pejorativo de algo falacioso, mistificatório) quando reduzida a uma Lógica abstrata, seja
teológica, como em Vichy, ou materialista, como no marxismo vulgar. Parece, aliás,
bastante sugestivo pensar que, assim como Marx partiu da crítica de Feuerbach à alienação
religiosa para chegar à crítica da alienação sócio-material, Sartre pensou seu próprio
materialismo histórico, em tensão com o dos marxistas tradicionais, tendo possivelmente
em mente, ao menos como eco latente, o “arquétipo” da História sagrada, providencialista,
dos colaboracionistas, grande alvo crítico inaugural, no terreno das filosofias da História,
de seu existencialismo.
Duas cenas de As Moscas são lapidares para fixarmos estas ambivalências da
relação de Sartre com o que caracterizamos como “mitologismo moderno” na sua variante
eliadiana: o diálogo entre Egisto e Júpiter no Segundo Ato (Quadro 2, Cena 5), e o diálogo
entre Orestes e Júpiter no Terceiro Ato (Cena 2). Estas duas cenas exacerbam os grandes
temas de As Moscas, sua dimensão filosófica e política, e também sua reflexão meta-
mitológica.
199
Na primeira cena em questão, Egisto, “rei parecido a todos os reis” (Sartre, J.-P.,
2005, p. 70), é caracterizado também com “criatura e irmão mortal” de Júpiter (ibid., p. 78).
Ambos têm uma aparência horrenda, feita para causar medo e subserviência de seus
súditos. Ambos fazem reinar a ordem, “tu em Argos, eu no mundo” (ibid., p. 76), e ambos
têm o mesmo segredo, o “doloroso segredo dos deuses e dos reis: é que os homens são
livres. Eles são livres, Egisto, tu o sabes, eles não” (ibid.). Ambos se deixaram levar pela
mesma paixão – a “terrível e divina paixão”, qual seja, a “ordem” (ibid., p. 77), e em nome
desta paixão é que encenam a “comédia” que mascara aos homens “o seu próprio poder”, a
liberdade que lhes é constitutiva, Egisto há 15 anos, Júpiter desde sempre – desde a Origem
do mundo, desde os Primórdios, para lembrarmos categoria decisiva do pensamento mítico.
Essa “comédia”, trazendo a metáfora para o universo conceitual sartriano, é a
objetivação e institucionalização, na forma de um Estado “teocrático”, da má-fé, forma de
conduta que se faz substrato por excelência de ordens sociais assentadas no terror, no
conformismo, na repressão, no ódio à liberdade.
Momento particularmente sugestivo desta cena é quando Júpiter se diz “o primeiro
dos criminosos: “(...) O primeiro crime fui eu que o cometi, ao criar os homens mortais.
Depois disso, que podíeis fazer vós, os assassinos? Dar a morte a vossas vítimas? Ora, elas
já a traziam consigo, quando muito se podia apressar sua eclosão” (ibid., p. 74). Aqui, é
completa a inversão de sinal ético com que Sartre repõe a estrutura “arquetípica”
tradicionalista própria ao mito: Deus é, de modo muito similar ao que se diria,
tradicionalmente, da figura do demônio, o pai da morte, e é imitado, “ritualmente”
atualizado, a cada vez que um assassinato é cometido. Assim tamm, o rei, ele mesmo um
símile terreno do Rei dos céus, propõe-se um arquétipo a ser imitado, quando matou seu
antecessor e instaurou para todos a religião do remorso, cujo ápice, equivalente ao “Ano
Novo” arcaico, se dá com a visita periódica dos mortos, esta encenação de regressio ao
Caos que se presta à “purificação” dos pecados – ou seja, do risco de que os súditos se
esqueçam de sua subserviência, “justificada” moralmente – e consolidação da Ordem e da
autoridade política e religiosa sobre a cidade.
Na responsabilização que a peça imputa ao deus como o Assassino arquetípico,
temos um elemento convincente de viabilização de uma leitura de As Moscas na chave
200
do que Robert Brustein – ele próprio muito inspirado em Albert Camus e seu conceito de
“revolta” – chama de a tendência de “teatro de revolta” (theatre of revolt), ou “teatro de
protesto”, como se diz na tradução brasileira, que marcaria a dramaturgia moderna desde
fins do século XIX – embora com ilustres precursores, como Shakespeare e até
Eurípides. O teatro de revolta, diz Brustein, teve como primeiro impulso a revolta
messiânica, na qual se dá uma denúncia radical do “velho Deus” e de sua Criação.
Brustein associa à “revolta messiânica” algumas obras de Ibsen, Strindberg, Bernard
Shaw, Jean Genet e do próprio Sartre, embora este, como Camus, sejam ali citados na
condição de um dramaturgos “secundários”, por mais méritos que tivessem como
pensadores (cf. Brustein, R., 1967, p. 32). O brado inaugural deste teatro messiânico
vem de Nietzsche: “Mortos estão todos os deuses. Desejamos agora que viva o Super-
homem. O rebelde messiânico ecoa essa exigência” (ibid., p.33). E o faz, no caso de As
Moscas, das muitas formas pelas quais o deus cristão é associado à esterilidade, à
privação, à ruína moral e à morte do homem.
Quanto ao aspecto “messiânico” da peça, de fato a idéia (tão encontradiça nos
mitos universais, e tão importante dispositivo de transfiguração arquetípica do tempo,
segundo Eliade) de salvação não parece de todo estranha ao percurso de Orestes, até
pelo final apoteótico em que ele “repete” a lenda do flautista de Hamelin, embora tal
arquétipo seja contrabalançado, a nosso ver, pelas componente pessoais – avessas ao
modelo (trans–pessoalizante) do herói, e muito menos ao do “santo” – que se imiscuem,
em grau expressivo, nas motivações de Orestes para ficar e para executar os algozes de
Electra: penso aqui: 1) no afeto por Electra – Orestes muito insistiu, antes e depois de
assumir que era irmão dela, para que fugissem juntos, e a recusa dela foi importante a
que ele mudasse de planos; e 2) num nível filofico mais geral, o “vazio”existencial de
que tanto o Filebo se queixava a princípio – e que põe o engajamento coletivo como uma
espécie de alívio compensatório, talvez mesmo um “teatro” em que a vocação cívica faz
as vezes de catarse para o fardo do condição humana exilada, um pouco à maneira do
pequeno-burguês Hugo ao se aliar aos comunista em As Mãos Sujas (cf. Jeanson, F.,
1987).
Na conversa dos dois “reis” – ou dos dois “deuses”, tanto faz –, na cena em
questão, fica claro o porquê de Orestes, que decidira encampar a vontade de vingança de
201
Electra, ser tão perigoso: seu ato teria conseqüências “catastróficas” – lembremos o
catastrofismo revolucionário tão ao agrado de Sartre, segundo disse em As Palavra s–
porque criaria um novo arquétipo, um novo modelo: o do crime sem remorsos, melhor
ainda, da ação em liberdade, ação esta que, no caso de Orestes, é matricida, regicida e
deicida, alforria absoluta do homem em relação a todos os vínculos identitários
supostamente naturais, civis e dogmáticos, que tanto acobertam o nada radical do qual
emerge, e no qual deságua, toda tentativa do Para–si de fundir-se ao Em–si, toda
tentativa da consciência de superar sua “bastardia” ontológica e dar-se um Ser pleno.
É nisto que está a radicalidade da subversão do mito teológico pelo mito
existencial: o arquétipo desce dos céus para a Terra, do divino para o humano e, no
limite, afirma-se pela “nadificação” de si mesmo, será o arquétipo da negação do
arquétipo, a eclosão da liberdade como possibilidade perpétua de recriação do homem,
do humano em geral, para além de todo “modelo” substancializado, fechado, estanque,
identitário. O mito, pois, é o “eidos” – exemplar e trans-individual – da condição
humana na sua conflitividade ontológica e histórica insuperáveis, e não o recurso a
alguma “Idéia” platônica para além do humano. É revolta contra historicidade dada,
contra o historicismo conformista, inibidor da ação transformadora, mas, ao mesmo
tempo é revelação – o que, para o conceito de mito em Eliade, seria impossível, uma
contradição de termos – da História como horizonte insuperável da condição humana,
mas enquanto horizonte da liberdade. É o eidos, portanto, da contingência, esta mesma
contingência que, ao contrário da variante grega da peça, faz Orestes ser impulsionado
ao matricídio por um “nada” – a liberdade de escolha – interposto entre seu ato e a
motivação – ainda eivada, primariamente, do pressuposto do “destino” – que ele recebe
de Electra. Tão diferente é este cenário em relação ao que se punha para o Orestes
esquiliano, que podia ainda dizer, como “álibi” (da perspectiva sartriana) para seu crime:
“Por certo o onipotente oráculo de Apolo
não falhará depois de haver determinado
que eu enfrentasse este perigo até o fim.
(...) o deus ordenou
que eu os exterminasse em retaliação,
enfurecido pela perda de meus bens.
Se eu não obedecesse, disse ainda o deus,
teria de pagar um dia a minha dívida com a própria vida entre terríveis sofrimentos.
202
Assim o oráculo, mostrando aos homens todos
a ira dos poderes infernais malignos,
ameaçou–me com pragas nauseabundas:
ulcerações leprosas que mordem as carnes
(...)
Ele falou também de ataques horrorosos
das Fúrias sempre desejosas de vingança
ao ver o sangue derramado por um pai,
e de visões terrificantes que aparecem
na escuridão da noite diante dos olhos
dos filhos desvairados entre convulsões
.
O dardo negro [aguilhão usado pelas Fúrias] dos infernos, quando o invocam
os mortos consangüíneos –cólera, delírio
ou pesadelos vindos do fundo da noite–,
agita e enlouquece os filhos negligentes
até conseguir expulsá–los da cidade”.
(Ésquilo, 2000, p. 102)
Aqui está a ruptura, a nosso ver, mais clara, de Sartre em relação ao referencial
sagrado que se punha para a teologia mítica de Ésquilo – e que, como pontuamos na
Introdução deste trabalho, se prolonga em Sófocles, e também, embora em registro bem
mais irônico, em Eurípides. A ação matricida era, naquele caso, arquetípica por
obedecer à vontade divina e por se inserir no destino de repetição infinita de crimes que
marcavam os Tantálidas, de geração em geração. Já em As Moscas, é o cumprimento de
tal ação, uma vez que despida de toda aura de necessidade sagrada, e por, ao contrário,
desacatar a moral cristã do “não matarás”, que atrairá a cólera divina. Embora, já em
Ésquilo, o matricídio de Orestes deva ser julgado por um tribunal humano, o Areópago –
símbolo de certa dessacralização da concepção de justiça na polis democrática (cf.
Vernant, J.–P., & Vidal–Naquet, P., 1999), é o voto de uma deusa, Palas, que absolverá
o criminoso, e as Erínias serão incorporadas ao sistema de culto religioso de Atenas,
uma solução paradigmática do ponto de vista do que Jaa Torrano (2004) chama de a
“dialética trágica” de Ésquilo. Esse relativo “equilíbrio” entre o humano e o divino
evidentemente se quebra em As Moscas, dá lugar ao antagonismo trágico de pontos de
vista inconciliáveis, sendo o ponto de vista “divino”, na verdade, a hipóstase do próprio
sonho humano, o “sonho absoluto”, e absolutamente impossível, de superação da
angústia e do absurdo de viver e de morrer (cf. Perdigão, P., 1995, p. 118).
203
Este conflito – dramático, talvez mesmo trágico, porque cisão inconciliável de
“direitos”, ou melhor, de vetores que querem reconhecimento, o vetor da autenticidade,
por um lado, e, por outro, o do que entende Sartre ser nosso “projeto fundamental”, a
divinização de si, imediata ou “projetada” nos Seres divinos – fica ainda mais patente no
belíssimo diálogo de Orestes e Júpiter no Terceiro Ato. Mediante o discurso do deus
acerca da “perfeição” de sua Criação, somos como que transportados ao tempo mítico
por excelência, o Começo sagrado do Mundo. Mas, ali onde poderia se dar a
“acomodação”, a humilde aceitação da onipotência divina, o arrependimento pela
“hybris”, pela momentânea perda das medidas apropriadas ao humano, é ali, ao
contrário, que se dá a radicalização do conflito e a repetição simbólica da cosmogonia do
Humano por oposição, e não mais contigüidade sagrada, em relação ao restante da
Criação.
Uma cosmogonia que, para criar o humano, destrói o inumano da natureza ou do
divino: As Moscas “testemunha a destruição do Ser pelo poder nadificante da liberdade”
(Noudelmann, F., 1993, p. 53); Orestes se reconhece “fora da natureza, contra a
natureza, sem desculpas, sem outro recurso além de mim. Mas não voltarei para debaixo
da tua lei: estou condenado a não ter outra lei senão a minha. Não voltarei à tua
natureza: mil caminhos nela estão traçados que conduzem a ti, mas não posso seguir
senão o meu caminho. Pois eu sou um homem, Júpiter, e cada homem deve inventar seu
caminho. A natureza tem horror ao homem, e tu, tu, soberano dos deuses, tu também
tens horror aos homens” (ibid., p. 104–5).
Na imagem mítica cunhada pelo texto, a liberdade vê-se posta, elementarmente,
como um arquétipo “sagrado”, na medida em que aparece no rol das “coisas” ou
atributos instaurados por Deus. Mas o que era para ser extensão da soberania divina
sobre a vontade humana, ou seja, a liberdade humana de obedecer a Deus, subtraiu-se,
como o fogo de Zeus roubado por Prometeu, ao controle dos regramentos cósmicos do
deus, é a hybris, a desmedida por excelência, na medida em que é ausência de medidas
que não a que se conceda, a que se “invente”, para si mesma:
“ORESTES: (...) És o rei dos deuses, Júpiter, o rei das pedras e das estrelas, o rei
das ondas do mar. Mas não é o rei dos homens.
204
JÚPITER: Não sou teu rei, larva imprudente. Quem então te criou?
ORESTES: Tu. Mas não devias ter me criado livre.
JÚPITER: Eu te dei tua liberdade para me servir.
ORESTES: Pode ser, mas ela se voltou contra ti sem que pudéssemos fazer nada,
nem eu nem tu.” (Sartre, J.-P., 2005, p. 102).
Nem mesmo o homem pode fazer nada – por mais que tente, com a má-fé – para
conter ou reverter esta “catástrofe” cósmica, esta descompressão e aniquilamento da
inércia e da ignorância de si universal, que é a aparição da liberdade. Esta, pois, é um
evento, a seu modo, absoluto, uma nova “fatalidade”, algo de originário, primordial e
arquetípico, embora por negação do arquétipo celeste; é algo de “sagrado” na medida
em que, embora presente na cotidianidade, desponta, sobretudo, nas “situações-limite”,
extraordinárias, mas sua “sacralidade” não é mais a divina, e, sim, o oposto desta.
A revolta já não permite a “volta”, o regresso ao regaço divino, a reconciliação
do tempo imperfeito com a perfeição do eterno. O abandono humano proferido por
Cristo na Cruz –“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46) reaparece
na boca de Orestes –“tu me abandonaste” (Sartre, J.-P., 2005, p. 103)–, agora como
estado definitivo, e não necessariamente como agonia e morte, e sim como começo de
uma existência sem “desculpas”, sem subterfúgios, livre mas não “pura”, porque tem as
mãos sujas de sangue de quem se sabe construtor da história no violento mundo dos
homens.
O horror, aqui, não está no abandono do homem a si mesmo, mas na hostilidade
que o em–si, ou seu simulacro antropomórfico – Deus e a physis como “reino de Deus”
– tem em relação ao que é especificamente humano, a liberdade. Simbolicamente, temos
aqui a cosmogonia ritual como reatualização do “Caos”, do avesso da Criação. Trata-se
de uma progressão – a que afirmará a independência humana – mediante uma paradoxal
regressão, um “retorno às fontes”, a constituição para si mesmo, por parte de Orestes, de
uma dada “situação fetal” – indicada já pelas alusões do texto a imagens como a do
“ventre” de Argos que o herói diz que abrirá (Noudelmann, F., 1993, p. 124-5). Uma
“nova matriz” de si mesmo, a matriz da bastardia, mas também da autenticidade,
próprias ao humano, por oposição – e substituição – à “matriz”(termo que se relaciona
205
etimologicamente com mater, mãe) de tipo naturalista encarnada pela mãe cúmplice do
tirano, assim como o “Em–si” é cúmplice, ou melhor, é o álibi e refúgio, de toda Ordem
social que se quer a-histórica, “natural”. As Moscas é, em última instância, um rito de
renascimento do homem, o que envolve, segundo Noudelmann (ibid.) – e vimos isso na
análise do conceito eliadiano dos mitos cosmogônicos – um “retorno” às origens, a
começar do fato de Orestes voltar para a terra natal para ali (re)afirmar, noutro nível, a
condição de errância que já o marcava no início.
A antropogonia, ou cosmogonia do humano, a que assistimos em As Moscas, é
uma antropo-a-gonia, na medida em que é narrativa mítica do conflito, da luta (agon) e
da angústia da separação, que presidem à gênese desta “aberração” anti-natural que será
o reino humano. Mas, ainda que com essa conotação crítica tão singular, Sartre reitera
procedimento que vimos ser precípuo aos mitologismos tradicionais, e o faz de maneira
a cunhar para seu conceito de liberdade uma legitimidade absoluta. Mas os termos em
que o enredo mítico é retomado estão profundamente alterados, ainda que a estrutura
“religiosa” seja aparentemente mantida: agora o Caos equivale à Ordem divina –
lembremos que “Senhor das Moscas” remete, no contexto bíblico, a Belzebu, o demônio,
der Vater aller Hindernisse, “o pai de todos os impedimentos” –, e a “Criação” é o que
rompe com ele – não sem preliminarmente evoca-lo, numa momentânea volta aos
primórdios informes em que ordem e desordem, vida e morte não tinham ainda nítidas
fronteiras, vide o expediente, tradicional nas mitologias arcaicas, da visita dos mortos
quando da festa de “Ano Novo”.
A Criação metaforizada por As Moscas é o recontar da gênese do humano contra
a tutela divina e é afirmação, contra a regressividade compulsiva da religião do remorso,
da futuridade libertadora enquanto categoria existencial (e política): “Tu me darás a mão
e iremos... (...) rumo a nós mesmos. Do outro lado dos rios e das montanhas há um
Orestes e uma Electra que nos esperam. Será preciso procurá-los pacientemente” (ibid.,
p. 108), diria Orestes mais adiante, quando, já tendo “derrotado” Júpiter, estava prestes a
perder para ele a amada Electra. Tal perda, além de evocar o mito de Orfeu – o herói que
desceu aos infernos para resgatar a amada mas a perde, por culpa dele (e não dela
mesma, como na variante sartriana) –, assinala aquela condição paradoxal de todo
engajamento vivido lucidamente: esse engajamento não deixa de ser, assim como toda
206
aspiração humana ao Absoluto, trágico, pois não solda, numa fusão definitiva e
paradisíaca, as fissuras que separam e contrapõem os homens entre si e dentro de si,
ainda que a responsabilidade de cada um pela sorte de todos seja tão inerente ao homem
quanto a liberdade, até por ser outra face desta mesma liberdade.
Talvez por causa dessa efemeridade trágica da comunhão humana, talvez pela
iminência de um retorno ao “arquétipo” da realeza paternalista, ocorre, ao final, a partida
de Orestes, também sob o modelo “mítico” da façanha heróica do flautista de Hamelin,
aquele que leva da cidade os mortíferos ratos, mas que voltará para cobrar a dívida dos
moradores. Dívida não paga, na lenda original, o que o flautista punirá ao encantar e
levar consigo todas as crianças da cidade. Que “castigo” seria esse – de que a peça não
trata –, se pensarmos na transposição de lenda para o contexto de As Moscas? Talvez um
novo rapto das crianças, isto é, do futuro, se os argivos não aprenderem, com o gesto
arquetípico de seu salvador, a serem eles próprios, a se assumirem como homens,
responsáveis pela própria vida, capazes de inventar o amanhã. Mas o agente deste rapto
não seria, provavelmente, Orestes, aquele que não veio redimir as culpas, e sim a idéia
de culpa – e de qualquer dívida moral –, mas Júpiter, cujas palavras, ao sair de cena,
insinuam que sua tirania sobre os homens daquela cidade talvez pudesse ser restaurada:
“Quanto a ti, Electra, lembra-te disso: meu reino não chegou ainda ao fim, longe disso –
e não quero abandonar a luta. Vê se estás comigo ou contra mim. Adeus” (Sartre, J.-P.,
2005, p. 106).
Neste feixe de símbolos, Sartre escava fundo o imaginário humano, a memória
coletiva tão eivada, segundo Eliade, da inclinação “anti–histórica” à arquetipificação do
homem e do tempo, e ali planta as sementes da liberdade existencial e da revelação da
História, isso mediante uma evocação, destruição e recriação “cosmogônicas” da
linguagem mítica na qual os homens desde sempre depositaram, como na caixa de
Pandora, suas grandes quimeras e sua grande esperança. Como nas cerimônias arcaicas
de “Ano Novo”, o Caos – as vilezas da má-fé religiosa – ressurge para ser de novo
derrotado pelo Cosmos, numa rememoração ritual e comunitária da proeza “mítica”, in
illo tempore e aqui-agora, pela qual a liberdade humana, e com ela um “mundo” novo e
sui generis, pode sempre de novo irromper em meio às trevas do Em–si bruto e de seus
símiles políticos autoritários.
207
208
CONCLUSÃO
O diálogo proposto no último capítulo entre As Moscas e a “filosofia da história”
subjacente à ontologia arcaica, segundo Mircea Eliade, representa um ponto final para a
presente investigação sobre a relação entre o pensamento existencialista de Sartre e o
pensamento mítico. Ponto final que, evidentemente, deverá ser logo sucedido por novas
interrogações, que levem adiante um projeto teórico de compreensão do lugar do teatro
sartriano no “mitologismo moderno” que permeia a cultura e o pensamento ocidentais no
século XX, segundo E. M. Mielietinski.
O que quisemos mostrar, no correr do trabalho, é que o mito, em As Moscas, se põe
numa imbricação de níveis, sendo: 1) motivo literário tradicional (a lenda de Orestes); 2)
discurso cênico; 3) instrumento político de crítica ao regime de Vichy (alegórico a ponto de
despistar a censura e de desarmar, com as armas do inimigo, os "nós" simbólico-
psicológicos que articulavam a malha de dominação e persuasão então em vigência; e 4)
por fim, uma crítica e reconstrução da lógica "arquetípica" e, pois, da ontologia arcaica que
Eliade desvenda sob as diversas formas culturais do pensamento mítico.
É claro que tais níveis, na prática, não se justapõem como realidades estanques,
sendo sim aspectos dialéticos de um todo. E esse conjunto talvez pudesse ser designado,
aproximadamente, como uma refundação existencialista do que Mircea Eliade chama de
"enredo mítico-ritual da renovação periódica do mundo" (Eliade, M., 1994, p. 37). A
fórmula eliadiana, se decomposta em suas partes elementares, mostra profícua
correspondência com a tipologia quaternária, acima proposta, de aspectos do mito na peça
209
sartriana: como "enredo" se relaciona ao que chamamos de nível literário; o aspecto
"mítico-ritual" poder-se-ia aproximar da discussão sartriana do mito como elemento
fundamental do texto e do "rito" teatrais de construção da "fusão imaginária" da platéia; e a
"renovação periódica do mundo" pode ser associada tanto à dimensão política da peça
quanto à sua dimensão "ontológica" mais geral, discutida no último capítulo.
Os mitos "renovam o mundo" porque os eventos de que trata não são apenas
relembrados, como num festejo cívico ou numa aula de história, mas sim revividos. E,
quando revividos, o tempo cronológico, "profano", é abolido em proveito de um retorno ao
"tempo forte" da mentalidade arcaica, que é o tempo dos Primórdios em que os Entes
Sobrenaturais criaram o mundo e o homem tais como são ou deveriam voltar a ser. À
maneira das "fontes da juventude", o retorno às "fontes" originárias do Ser livra o homem
dos males intrínsecos ao tempo: a velhice, degeneração, decadência, perdas, mágoas, morte.
Por isso a recitação mítico-cosmogônica permeia não só as festas do Ano-Novo,
mas todo tipo de "criação" humana, que há que ser homologável com a criação divina in
illud tempus ("naquele tempo", expressão recorrente nos textos eliadianos e usual no início
das leituras bíblicas na missa católica). Num cosmos tido por sagrado, porque impregnado
da autoria e/ou autoridade divinas, toda criação ou enformação de um ente particular tem
valor e sentido por repetir e corroborar o ato criador precípuo aos Entes Sobrenaturais. Essa
idéia de criação se estende à de recriação enquanto reparação do que se havia degenerado,
por exemplo, a saúde – vide o uso de mitos cosmogônicos em ritos mágicos de cura
(Eliade, M., ibid., p. 29-30). Já Buda é o "rei dos médicos" por ensinar o caminho da cura
para o sofrimento supremo que é a própria existência, ou seja, a vida temporal; o tempo é
um ciclo "kármico" que deve ser erradicado mediante a "queima" do último germe de uma
vida futura, de todo tipo de impureza que empurrasse a alma para uma nova provação, ou
seja, um novo nascimento (ibid). A renovatio búdica, deste ponto de vista, é um modelo de
iniciação, ou seja, de uma mudança radical de estatuto do ser, já diferente da versão
primitiva da ontologia arcaica, pois a repetição cíclica do viver, morrer e renascer já não é,
como, por exemplo, na mística lunar, um "consolo" para a (aparente) finitude das coisas, ao
contrário, é o mal a ser suprimido: cumpre erradicar não só as dores da corrupção temporal,
mas as causas que levam à repetição cíclica delas.
210
Em As Moscas, não parece abusivo ver um tipo específico de renovatio que
presume também uma admissão e crítica de um tempo cíclico, o da repetitividade do
remorso (repentir / répéter), impresso nas práticas individuais – veja-se o "exame de
consciência" que Júpiter, no Primeiro Ato, impinge à velha, que lhe fala do sacrifício anual
de uma vaca pelo genro (Sartre, J.-P., 2005, p. 11) – bem como na grande festa da visita dos
mortos, a cada aniversário da morte de Agamêmnon (ibid., p. 38ss).
A função política da peça de Sartre é, assim, intimamente ligada à missão
arquetípica de que se investe o "médico" existencialista (não por acaso O Ser e o Nada
esboça também uma "psicanálise existencial"): ele vem ministrar um rito de passagem, um
processo iniciático que rompe com os grilhões do tempo doloroso, mas não para ensinar o
acesso a qualquer reino de felicidades "eternas", e sim para revelar aos argivos o "doloroso
segredo dos deuses e dos reis" (ibid., p. 76): que os homens são livres, e que por isso "são"
tempo, ou melhor, temporalização contínua, projeto, possibilidade de fazer da História um
"horror" repetitivo a ser anestesiado por mitos consoladores ou, ao contrário, abertura à
incerteza, ao risco, ao novo, à transformação radical não da, mas na condição humana.
Diferentemente da ontologia arcaica, aqui o tempo (profano) já não é uma maldição
metafísica, mas nosso modo próprio de ser na indeterminação radical enquanto seres livres
que somos, arrancados do eterno repouso na inércia das coisas. Mas, similarmente, neste
ponto, a certas vertentes mais recentes desta ontologia – como o budismo e a escatologia
"anti-pagã", portanto, avessa ao eterno retorno, de judaísmo e cristianismo – o "tempo
cíclico" é associado criticamente à dor, perdição, negação das autênticas potencialidades
humanas; embora Sartre já não nos prometa como precípuo às doutrinas que "divinizavam"
seus arquétipos, qualquer soteriologia que significasse "iluminação" transcendental ou
retorno a uma unidade paradisíaca com o Deus de que o homem foi feito à imagem e
semelhança. "A justiça é um assunto de homens, e não preciso de um Deus para me ensiná-
la" (Sartre, J.-P., ibid., p. 79). Assim também a salvação: assunto de homens, ela não
depende dos deuses, e chega mesmo a ser contra estes.
De fato, vimos que no alegorismo de As Moscas, o sagrado é associado ao "Caos", é
o inimigo diabólico a ser conjurado: pai da morte, patrono das moscas, estátua sangrenta
em que os súditos pudessem projetar e espelhar seu medo, sua fixidez e sua paralisia
211
existenciais. Do universo teológico cristão, não há mais nenhum sinal do Deus do amor e
da misericórdia: "Sossega: não o amo mais que a ti. Não amo ninguém", diz Júpiter a
Egisto (ibid., p. 74). Resta apenas o Deus do terror e da culpa; em termos sartrianos, a única
fé possível é a má-fé, e, no caso, uma má-fé culposa, pois o remorso compulsivo se
apresenta como o obscurecimento e o "lastro" que a consciência elege como biombos para
não ver sua própria liberdade, que, ensina a situação subjetiva de "Filebo" no início da
peça, pode pairar no ar, insuportavelmente leve, se não se reconhece humana, se não se
encarna entre os homens e na sempre difícil e imperfeita construção da História.
Sartre, ao demolir o arquétipo soteriológico (e teodicéico) subjacente ao mea-
culpismo de Vichy, erige um arquétipo qualitativamente novo, porque se vê
dessubstancializado, ou para usar termo caro à ontologia sartriana da existência, nadificado,
o teor "divino" que, segundo Eliade, era indissociável das representações "genuinamente"
míticas do mundo.
Aliás, nossa incursão "eliadiana" ao mitologismo se resolve, em certo sentido, num
impasse em relação ao seu próprio referencial teórico original: pois já não são possíveis, se
se quer fazer jus à originalidade de uma peça como As Moscas, duas interpretações a que o
nosso referencial metodológico talvez nos induzissem: 1) dizer que ela, por suas afinidades
com os enredos mítico-rituais de renovação do mundo revelaria uma religiosidade eterna,
"congênita" ao homem, e supostamente latente ou camuflada em Sartre. 2) seguir a opinião
expressa em O Mito do Eterno Retorno, de que discursos como o existencialismo "matam"
o mito ao precipitar o homem ao desespero irreparável de ser um ser puramente histórico.
Quanto à primeira opção, parece desnecessário insistir no seu caráter temerário,
tamanho o grau de violência que tal interpretação opera sobre dados biográficos e
filosóficos elementares relativos a Sartre, se tomarmos o termo "religião" no seu sentido
convencional de uma crença em deuses, na "alma" ou na vida após a morte. Por outro lado,
não esqueçamos do caráter expressamente "religioso" que Sartre confere ao teatro,
inclusive ao seu teatro (Sartre, J.-P., 1992, p. 64). A religiosidade, histórica como a
experiência mítico-teatral que a veicula, converte-se em celebração humanista e blasfema
da solidariedade de destino entre homens que pairam entre os absurdos do nascer, do viver
e do morrer, homens lançados a um mundo no qual não podem contar, no frágil e
212
conflituoso átimo de tempo que lhes cabe sobre a Terra, senão com sua própria liberdade e
responsabilidades recíprocas. Uma comunhão cujo tom está dado no ensinamento da
personagem Hilda, da peça sartriana O Diabo e o Bom Deus (1951). A certa altura, Goetz, o
protagonista, diz a ela: "Se eu conhecesse uma noite profunda para que pudéssemos nos
esconder de Deus". Hilda responde: "O amor é essa noite. Deus não vê as pessoas que se
amam" (apud Liudvik, C., in: Sartre, J.-P., 2005, p. XVI).
Já quanto à segunda alternativa, parece possível dizer, por tudo o que vimos
discutindo, que mito e história têm, em As Moscas, liames bem mais complexos e ambíguos
do que sugerido por uma oposição do tipo "ou isso ou aquilo". Se o mito aparece como
"mistificação" – no que tange à farsa teocrática dos colaboracionistas e, mais amplamente,
à fé enquanto má-fé –, aparece também como revelação da condição humana e histórica
particular (a luta dos resistentes) e universal (o homem livre que, paradoxalmente, tem
ainda de se libertar, de conquistar a liberdade que o constitui, pela sublevação contra os
condicionamentos de uma opressiva situação). Para Sartre, não é possível pensar a
liberdade fora da História (Leopoldo e Silva, F., 2004), e assim também o mitologismo de
As Moscas se faz forma literária, cênica, política e "arquetípica" de revelação da liberdade
como historicidade, cancelando o a-historicismo ou anti-historicismo da mentalidade
mítico-teodicéica tradicional.
A ambivalência entre mito e história é outra face das complexidades do próprio
ideário de engajamento que Sartre então esboçava, e que teria formulação mais sistemática
em seu O Que É a Literatura?. O teatro engajado não será nunca confundido por Sartre
com um teatro meramente panfletário, inclusive pela recusa ao cabresto do imediatismo:
urge pensar e expor as questões de seu tempo, sim, mas fazê-lo com uma visada mais
ampla, o que, vimos, no teatro, tem direta conexão com as potencialidades antevistas por
Sartre nas narrativas "míticas", fossem elas ou não diretamente inspiradas em enredos
lendários tradicionais. Mítica seria a narrativa dotada do poder de condensar os grandes
dilemas existenciais de uma época, mas de um modo tal que pareceria que os espectadores
se vissem a si mesmos como se estivessem fora de si, daí o distanciamento temporal criado
imaginariamente (vimos ser precípuo ao imaginário certo desgarrar-se do real).
213
Trata-se de uma dialética de proximidade e distância, que, marca do teatro sartriano
em geral, tem em As Moscas uma data "oficial" de nascimento, inclusive, como mostra
Noudelmann, em termos da concepção do espetáculo de 1943: Charles Dullin teria
conseguido articular um distanciamento estimulado pelo cenário arcaicizante com a
identificação, inclusive afetiva, lograda pela música [de Jacques Besse] (Noudelmann, F.,
ibid., p. 38). Cabe registrar também o aspecto “primitivista” que muitos críticos notaram na
concepção de Dullin, num sinal – mais um – do espectro nietzschiano tão recorrente nesta
obra de Sartre:
“Ele [Dullin] tinha da tragédia uma idéia complexa: uma violência selvagem e sem
freios devia exprimir-se com um total rigor clássico. Esforçou-se por submeter As Moscas a
essa dupla exigência. Queria captar as forças dionisíacas e organiza-las, exprimi-las pelo
jogo firme e denso de imagens apolíneas, e conseguiu. (...) A riqueza, inapreensível,
oferecendo-se por meio da pobreza, a violência e o sangue apresentados por um movimento
calmo, a união pacientemente procurada por estes contrários, tudo contribuía para fazer,
sob meus olhos, uma espantosa tensão que faltava à minha peça e que se tornou, desde
então –, para mim,– a essência do drama (Sartre, J.-P., 1992, p. 272). A montagem causou
mais choque e atraiu mais críticas do que a peça em si, e tinha por intenção, segundo
Michel Contat, realizar uma espécie de “cerimônia sagrada”, pondo em prática o conceito
artaudiano do teatro como “arte total”, congregando dança, artes plásticas, canto,
recitativos. Um crítico colaboracionista disse que o espetáculo não passava de um
“inverossímil bricabraque cubista e dadaísta; este tipo de mise-em-scène, notou Contat, era
por si só um ato de resistência e de subversão contra “aqueles que vilipendiavam” – caso
dos nazistas – “ a ‘arte degenerada’ e o que ela devia às artes primitivas” (cf. Contat, M., in:
Sartre, J.-P., 2005b, p. 1269–1270; Liudvik, C., in: Sartre, J.-P., 2005, p. XV).
O dionisismo que Nietzsche desvelara no âmago do fenômeno trágico é
ritualisticamente presentificado e faz-se argamassa da coesão coletiva contra um estado de
coisas que aviltava a dignidade de todos e de cada um, ao esmagar aquilo que há de mais
“sagrado” para o homem: a liberdade.
Como sublinhamos com Rachel Gazolla, porém, Nietzsche fala ao leitor moderno,
“visa ao processo civilizatório que formou o homem europeu e aos valores que
214
desumanizaram o humano, que o fizeram enregelar e esquecer essa força que ele nomeou
também Dionísio, da qual a tragédia é uma expressão clara. Dionísio como a ‘Wille zur
Machte’ nietzschiana, a vontade de poder, pode emergir mais ‘puro’ na poesia trágica grega
que, segundo ele, é uma expressão estética poderosa porque mais próxima à própria
constituição primeira do ser como vir-a-ser” (Gazolla, R., 2001, p. 22). Nesta crítica à
“historicidade mascaradora”, Nietzsche se alinhava a um repúdio antihistoricista – precípuo
ao mitologismo moderno, que E. M Mielietíski (1989) mostra ser uma força
“mitologizante” própria, a qual, por mais que possa tamm descortinar aspectos do mito
arcaico ao qual se reporta, está fadada a um grau maior ou menor de anacronismos em
relação a suas fontes históricas inspiradoras. De maneira análoga, mas distinta, de um
George Sorel (1992), o mitologismo de As Moscas faz pensar em um certo dionisismo
politizado, modelo de mobilização política impulsionada pelo desejo utópico de abolir as
estruturas institucionais que lastreiam o cotidiano ("profano", na terminologia de Eliade)
repressor – no caso de Sartre, o individualismo, as etiquetas da separação entre os homens,
a "serialidade" alienada da ordem burguesa, tão distinta das dores e anseios em comum
vividos no confinamento de Trier.
Por isso, retomando afirmação feita na Introdução deste trabalho, o mito, nesses
diversos níveis ou registros acima identificados, é a forma como a própria filosofia se
expressa e se articula em As Moscas.
E nos parece estar aqui a chave para entendermos como se dá, nesta peça, aquela
ambivalência salientada por Franklin Leopoldo e Silva (2004, p. 12-13) quando ele afirma
que "a expressão filosófica e a expressão literária são ambas necessárias em Sartre porque,
por meio delas, o autor diz e não diz as mesmas coisas.
Em As Moscas, tal ambivalência entre identidade e diferença está posta a serviço da
crítica aos pilares imaginários de uma certa situação histórica, qual seja, a era Vichy, ou, de
modo geral, os surtos totalitários e remitologizantes, de tipo cristão como na França ou
"repaganizadores" como na Alemanha nazista (cf., p. ex., Jung, C. G., 1990, p. 3ss): sob tal
situação, não bastava, como o faz a doutrina existencialista, declarar a inexistência dos
deuses – ou afirmar que sua existência seria indiferente do ponto de vista da “fatalidade”
inevitável da náusea de viver; “com Deus ou sem Deus, o problema humano, enredado em
215
sua imanência, não pode ser resolvido” (cf. Bornheim, G., 2003, p. 23). O fato é que,
ontologicamente falsa ou supérflua, tal questão ressurgia com força, e tinha importância
político-cultural decisiva, para os rumos da humanidade na época. O mitologismo arcaico
tinha assim a “realidade" que as crenças têm enquanto modalidades de significação que
impulsionam a ação do homem que as escolhe. Por isso o teatro, enquanto discurso do
imaginário, e enquanto forma de engajamento político e existencial do artista em seu
tempo, não deveria se limitar, tal como o Pedagogo de As Moscas, a uma atitude de
desprezo e indiferença ante as “superstições das massas”. "Para que a arma da crítica possa
ter êxito, precisa estar à altura do poder evocativo dos objetos a que se opõe" (Mészáros, I.,
1991, p. 20–1). Esta intenção mais geral da dramaturgia (e da estética) de Sartre tem uma
poderosa concreção peculiar no dúplice movimento de crítica e recriação do pensamento
mítico que tentamos apresentar ao longo deste trabalho.
Por outro lado, o teatro "diz a mesma coisa" que a filosofia, e o mito repercute o
conceito filosófico, na medida em que, como “tragédia da liberdade”, As Moscas explicita
aspectos fundamentais da ontologia da subjetividade apresentada em O Ser e o Nada: com
efeito, a liberdade transparece, seja no tratado ou na peça, como a verdadeira fatalidade
humana, já que as demais "inevitabilidades" de nossa experiência ou são extrínsecas, caso
do evento da morte, que sobrevém de fora para cancelar a existência, não para "determiná–
la", ou são componentes da facticidade que "situa" minha liberdade e lhe enseja as
dificuldades necessárias a uma auto-afirmação.
E a fatalidade da liberdade, tal como irrompe em As Moscas, não deixa de ser
trágica, em primeiro lugar, porque é impossibilidade de garantir ao reino humano a mesma
consistência ontológica, que, opaca e inerte, é dada ao mundo das coisas. A negatividade
radical, o nada de ser, é paradoxalmente o que nos dá um "ser" próprio, o que nos constitui
e o que nos lança à experiência abissal da contingência e da ausência de significados
absolutos, ao contrário do que o homem “mítico” ainda podia construir para si projetando
aos céus.
As Moscas pode ser, como quer Gerd Bornheim, uma anti-tragédia, se comparada
com o cânone grego (Bornheim, G., 1992, p. 91), já que faz a apologia, e não mais a
condenação, da idéia de hybris, ao incriminar a ordem social e divina que é transgredida
216
pelo herói, sendo este, agora, o pólo virtuoso do conflito. Mas essa anti–tragédia é, em si
mesma, "trágica", como mostram autores como Raymond Williams (2002) e Pierre-Henri
Simon (1959), porque anúncio -sob circunstâncias histórias próprias à modernidade e à sua
crise de sentido da vida e de conexão entre os homens- do absurdo e do desespero como
características estruturais da existência, só disfarçáveis por meio de má-fé; esta última,
porém, sempre espreitará, com seus deuses, reis e "moscas", confiantes de que a liberdade,
revelada pelo herói transgressor, voltará a ser negada pelos homens, quando ficarem de
novo fartos do fardo de sua própria responsabilidade. Por isso a liberdade põe-se em tensão
permanente com o perigo "demoníaco" (ou "divino") da inautenticidade.
E, se é uma anti-tragédia trágica, As Moscas é um anti-mitologismo mítico,
prefiguração de um rito de morte e ressurreição da imaginação arquetípica ancestral, só
que, agora, órfã e matricida – como Orestes – em relação às quimeras, consolos e embustes
que chancelavam a alienação. Se, para o homo religiosus tradicional, viver os mitos era
fazer uma experiência de repúdio à história e religação à plenitude do mundo dos Entes
Sobrenaturais, para o homem existencialista passa a ser a imersão crítica e cênica na
história, nas situações-limite em que a liberdade e a dignidade humanas, porque mais
ameaçadas, podem ser mais afirmadas e celebradas em ritos coletivos de revolta e
transformação. Ainda que, efêmeros como o teatro, tais instantes de unidade e festa tenham
contra si a sombra da separação, da angústia e do nada.
217
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