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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Instituto de Psicologia
Mestrado em Teoria Psicanalítica
Jamille Mascarenhas Lima
A DIMENSÃO ÉTICA DA DIFERENÇA SEXUAL
Rio de Janeiro
Fevereiro/2009
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A DIMENSÃO ÉTICA DA DIFERENÇA SEXUAL
Jamille Mascarenhas Lima
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Teoria
Psicanalítica.
Orientadora: Profa. Dra.Tânia Coelho dos Santos
Rio de Janeiro
Fevereiro/2009
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A DIMENSÃO ÉTICA DA DIFERENÇA SEXUAL
Jamille Mascarenhas Lima
Orientadora: Tânia Coelho dos Santos
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica do Instituto de Psicologia - Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por
_____________________________________________________
Profa. Dra. Tânia Coelho dos Santos (Orientadora)
_____________________________________________________
Profa. Dra. Angélica Bastos
_____________________________________________________
Profa. Dra. Ana Lucia Lutterbach Holck
Rio de Janeiro
Fevereiro/2009
LIMA, Jamille Mascarenhas.
A dimensão ética da diferença sexual/ Jamille Mascarenhas Lima. Rio de
Janeiro:UFRJ/IP, 2009.
X, 97 fls
Dissertação (Mestrado em Teoria Psicanalítica)
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 2009.
Orientadora: Tânia Coelho dos Santos
1. Ética 2. Diferença sexual 3. Sexuação- Teses
l. Tânia Coelho dos Santos (Orientadora). II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.
A meus pais, pelo modo gracioso com que
encenam a comédia entre os sexos.
AGRADECIMENTOS
Á professora Tânia Coelho, pela orientação e pelas pontuações que me instigaram a
trabalhar.
A meus pais, que sempre me incentivaram e que apoiaram minha decisão de iniciar um
percurso acadêmico.
A Silvia Venturini, pela amizade e parceria nos estudos, pois suas considerações foram
fundamentais para o meu ingresso e posterior percurso no mestrado. Agradeço também pela
revisão do meu texto.
A Jorge Luis, por estar ao meu lado, dividindo as descobertas e angústias de escrever uma
dissertação.
Aos professores do programa, especialmente a Angélica Bastos e Fernanda Costa-Moura,
pelas contribuições indispensáveis ao meu trabalho.
A Ana Lucia Lutterbach Holck, pela disponibilidade em participar de minha banca de
defesa.
Aos colegas do programa, especialmente a Vanessa, Amanda, Bia, Caio e Joana, pelas
discussões em torno dos nossos temas de pesquisa e pelos momentos de descontração que
nossos encontros me proporcionaram.
A Luis Eduardo, meu irmão, pelas intermináveis conversas sobre nossos planos para o
futuro...
Aos amigos que, de alguma maneira, estiveram presentes nesse percurso, em especial, a
Lisania, Claudinha, Lidiane, Amana e Leila.
Ao Instituto de Psicologia e ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, por
possibilitarem a realização deste trabalho.
A CAPES, pelo fomento à pesquisa.
RESUMO
LIMA, Jamille Mascarenhas. A dimensão ética da diferença sexual. Rio de Janeiro, 2009.
Dissertação (Mestrado em Teoria Psicanalítica) - Instituto de Psicologia, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
A análise da dimensão ética da diferença sexual tem como ponto de partida a
descoberta freudiana do papel central do falo na sexualidade infantil. Ao postular que a
sexualidade infantil comporta a particularidade da prevalência fálica, na qual a diferença
entre os sexos se inscreve em termos simbólicos, Freud se depara com a dessimetria entre o
modo masculino e o feminino de inscrição na lógica da sexuação. Na ausência das
ferramentas da lingüística, das quais Lacan se utilizou para dar conta dessa diferença, Freud
se detém na relação imaginária entre ter ou não ter o pênis. Desse modo, analisa a relação
entre os sexos pelo viés do rochedo da castração, mas não responde sobre o enigma do
desejo na relação entre os sexos. Lacan retoma a análise do falo a partir da articulação
significante, e, posteriormente, examina a castração pela vertente da angústia. Nessa
perspectiva, o falo é alçado à condição de significante da falta e se presentifica na relação
entre os sexos a partir da sua negativização, ou seja, como (-φ). A abordagem do desejo
pela presentificação da falta leva Lacan a enunciar o que de estruturalmente enganador
no ideal de realização genital. Ele aponta que o engodo é fundamental para o
estabelecimento da relação entre os sexos, uma vez que a ilusão de que aquilo que lhe falta
encontra-se no outro permite que o sujeito direcione seu desejo para o outro sexo. Esta
dissertação investiga a dimensão ética da diferença sexual, considerando que a falta
apontada pelo falo serve de suplência à relação sexual que não existe. Evidencia a
dimensão ética da inscrição do sujeito numa posição sexuada e enfatiza a função do
semblante fálico em jogo no encontro entre os sexos.
Palavras-chave: Ética, diferença sexual, falo, sexuação.
ABSTRACT
LIMA, Jamille Mascarenhas. A dimensão ética da diferença sexual. Rio de Janeiro, 2009.
Dissertação (Mestrado em Teoria Psicanalítica) - Instituto de Psicologia, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
The analysis of the ethical dimension of sexual difference has as a start point the
Freudian discovery of phalo’s main role in childish sexuality. Assuming that childish
sexuality contains the particularity of phalic prevalence, in which the difference among
sexes is registered in symbolic terms, Freud faces the dissymmetry existent between the
male and the female way of inscription in sexual logic. In absence of the linguistic tools
Lacan used to think this difference, Freud finds itself tied in the imaginary relation of
having or having not the penis. So, he analyses the relation between sexes through the bias
of the castration´s rocked, but he can’t answer the riddle about the desire of the relation
between sexes. Lacan retakes the phalo analysis from the significant articulation; and,
posteriorly, examines the castration by the anguish side. In this perspective, the phalo gets
the condition of significant absence and accomplishes itself in the relation among sexes by
its negatively, in other words, as (-φ). Approaching the desire through the presentation of
absence drives Lacan to formulate what is structurally deceiver in the genital realization
ideal. He points that the lure is fundamental to set up the relation between sexes, once the
illusion of what is missing drives the desire in the other sex’s direction. This work
investigates the ethical dimension of sexual difference, considering that the absence pointed
by the phalo functions as a substitute for the sexual relation that doesn’t exists. Also puts in
evidence the ethical dimension of the subject’s inscription in a sexualized position and
emphasizes the phalic countenance’s function in the meeting of sexes.
Key-words: Ethics, sexual difference, phalo, sexuality.
SUMÁRIO
Introdução: 01
Capítulo I: O FALO E A SEXUALIDADE INFANTIL
1. Freud e o complexo de Édipo 10
1.1: A operação edípica no menino e a formação do supereu 10
1.2: O complexo de Édipo na menina e o impasse da castração. 13
2. A lógica da exceção e os tipos de caráter 21
2.1: A estrutura lógica do mito de totem e tabu 21
2.1.1 As exceções 22
2.1.2 Os Arruinados pelo êxito 24
2.1.3 Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa 25
Capítulo II: A LÓGICA FÁLICA
1. Lacan e a significação do falo 27
1.1: A função significante do falo e os três tempos do Édipo 27
1.2: O paradoxo do falo simbólico na assunção da posição sexuada 30
2. O falo evanescente e a relação entre os sexos 33
2.1: A detumescência e o desejo masculino 34
2.1.1: O objeto (a) mulher na lógica masculina da sexuação 37
2.2: A constituição do objeto a na mulher 41
2.2.1: A negativização do falo na mulher 43
Capítulo III: A ÉTICA SEXUAL
1. A assunção da posição sexual 46
1.1: A inscrição significante do corpo 46
1.2: A posição sexuada 48
1.2.1 A lógica masculina 49
1.2.2 A posição feminina 53
2. A comédia entre os sexos 56
2.1: O estatuto do falo na relação entre os sexos 57
2.1.1 A impostura masculina 60
2.1.2 A farsa feminina 62
2.2: O encontro possível diante do impossível da relação sexual 64
2.1.1 O circuito pulsional e a falta de objeto 65
2.1.2 O encontro amoroso no baile de máscaras 67
Considerações finais: 74
Referencias bibliográficas 83
- Quem é você?
- Adivinha se gosta de mim
Hoje os dois mascarados procuram os seus namorados perguntando assim:
- Quem é você, diga logo...
- ...que eu quero saber o seu jogo
- ...que eu quero morrer no seu bloco...
- ...que eu quero me arder no seu fogo
- Eu sou seresteiro, poeta e cantor
- O meu tempo inteiro, só zombo do amor
- Eu tenho um pandeiro
- Só quero um violão
- Eu nado em dinheiro
- Não tenho um tostão...Fui porta-estandarte, não sei mais dançar
- Eu, modéstia à parte, nasci prá sambar
- Eu sou tão menina
- Meu tempo passou
- Eu sou colombina
- Eu sou pierrô
Mas é carnaval, não me diga mais quem é você
Amanhã tudo volta ao normal
Deixa a festa acabar, deixa o barco correr, deixa o dia raiar
Que hoje eu sou da maneira que você me quer
O que você pedir eu lhe dou
Seja você quem for, seja o que Deus quiser
Seja você quem for, seja o que Deus quiser
Noite dos mascarados
Chico Buarque de Holanda
A DIMENSÃO ÉTICA DA DIFERENÇA SEXUAL
Introdução
Freud não deixou de reafirmar, ao longo de toda a sua obra, a preponderância do
fator sexual na organização psíquica de seus pacientes e a relevância do complexo de Édipo
como estrutura fundamental do funcionamento psíquico. A importância do papel
desempenhado pela sexualidade está presente desde os seus primeiros escritos. Porém,
somente com o declínio da teoria da sedução, seus pressupostos puderam ser elaborados.
A partir da constatação de que os relatos das pacientes histéricas são eminentemente
fantasiosos, Freud (1897/1996) denomina complexo de Édipo ao evento universal do início
da infância em que entram em jogo tais fantasias:
“[...] Mas a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa
reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada
pessoa da platéia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente
um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da
realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda
carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado
atual” (FREUD, 1897/1996, p.316).
A importância da sexualidade infantil é ressaltada pela primeira vez em “Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905/1996). Neste texto, embora o
complexo de Édipo não seja explicitamente trabalhado, sua influência na elaboração
freudiana sobre o início bifásico da sexualidade humana e na diferenciação entre a
sexualidade infantil e a sexualidade adulta pode ser notada. O complexo de Édipo
desempenha um papel determinante nessa diferenciação justamente por apontar a
irresolução como característica fundamental da sexualidade infantil. Assim, ele seria o
fenômeno central do período sexual da primeira infância, destinado a sucumbir ao recalque.
Ao ressaltar a importância da sexualidade e, sobretudo, ao postular uma teoria da
sexualidade infantil, Freud se frente às mais diversas reações às suas pesquisas. Suas
considerações não eram facilmente assimiladas no meio científico da época e, muitas vezes,
nem mesmo por seus seguidores. Em 1914, Freud estava às voltas com as divergências com
Adler e Jung quanto ao papel da sexualidade na psicanálise. Nesse momento, escreve “A
história do movimento psicanalítico” (FREUD, 1914/1996), em que, mais uma vez, chama-
nos à atenção para o fator sexual presente na origem das forças impulsionadoras da
neurose, assumindo a responsabilidade pela formulação da teoria da sexualidade infantil.
No artigo “A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da
sexualidade” (FREUD, 1923/1996), introduz-se a idéia de que a principal característica da
organização genital infantil é o fato de que, para ambos os sexos, apenas o órgão sexual
masculino é considerado. Essa seria a diferença em relação à organização genital do adulto.
Assim, o que está em jogo na sexualidade infantil não é a primazia dos órgãos genitais, mas
a primazia do falo.
Ao retomar suas elaborações sobre a sexualidade infantil, Freud (1925/1996)
enfatiza que, frente à percepção da diferença anatômica entre os sexos, o que a criança
privilegia é a operação simbólica da presença-ausência do falo, e não a existência de dois
sexos. Trata-se, aqui, da incidência psíquica da diferença anatômica entre os sexos.
Esse é o mote para a formulação da noção de complexo de castração como motor do
recalque do complexo de Édipo. Porém, a nova conceituação coloca Freud frente a um
impasse: a idéia de que a operação edípica dar-se-ia de maneira simétrica e inversa entre os
dois sexos torna-se problemática.
Freud abordará a diferença entre os sexos através da relação do complexo de Édipo
com a castração, demonstrando que, desde a origem, estaria em jogo uma dessimetria
fundamental entre o homem e a mulher. Essa dessimetria caracteriza-se pela relação
paradoxal que cada sexo estabelece com o falo, e se divide em dois tempos: no primeiro,
haveria a identificação com a posição sexuada através da incidência do complexo de
castração, ou seja, o primeiro tempo estaria relacionado com a sexualidade infantil; o
segundo teria como pivô o encontro com o outro
1
sexo, característico da sexualidade adulta.
O encontro com o outro sexo demonstra que a diferença sexual tem uma incidência
ética precisamente por não promover um ideal de simetria e complementaridade. Assim, ao
1
A expressão ‘outro sexo’ indica o encontro com o parceiro sexual. Já a expressão ‘Outro sexo’ será utilizada
para designar a diferença em termos simbólicos, ou seja, quando estiver em jogo a relação do sujeito com o
Outro constitutivo da entrada na linguagem. É o que já nos advertia Lacan: “O Outro, na minha linguagem, só
poderia ser, portanto, o Outro sexo” (LACAN, 1972-73/1985, p.54).
estabelecer a sexualidade como essencialmente dessimétrica, Freud funda uma clínica em
que o sexual tem uma prevalência fálica e aponta para a impossibilidade da relação sexual.
Lacan (1959-60/1988) assinala que o passo decisivo dado por Freud foi perceber
que entre o homem e a mulher não haveria uma complementaridade possível. Assim, a
radicalidade da psicanálise reside justamente em apontar que, se há uma ética psicanalítica,
ela se baseia na diferença e na não conformação ao ideal.
Ao analisar a constituição da relação do sujeito com o falo, Freud privilegiará os
efeitos da descoberta da castração feminina e suas incidências na assunção de uma
identificação sexual. A consideração da castração feminina torna-se, então, peça-chave para
a compreensão da sexuação: no menino, ela eleva a ameaça de castração ao estatuto de
ponto-chave da resolução do complexo de Édipo; na menina, a correlação entre o complexo
de Édipo e a castração tem um sentido inverso, ou seja, ao invés de a constatação da
castração promover o recalque do Édipo, ela abre caminho para a entrada da menina na
situação edípica. Essas articulações resultam da consideração da fase pré-edípica da
menina, em que a descoberta da castração materna possibilitará a dissolução do vínculo
primordial com a mãe fálica e a transição do investimento libidinal para o pai, permitindo o
estabelecimento do triângulo edípico.
Freud (1933[1932]/1996) afirma que a feminilidade seria da ordem de uma
substituição simbólica que faria equivaler o filho ao pênis. Assim, a feminilidade se
instalaria através do desejo da maternidade.
Tal vinculação entre feminilidade e maternidade coloca Freud frente ao impasse da
relação do homem com a mulher. Ao estabelecer a inveja do pênis como algo irredutível na
análise das mulheres, que estaria por trás das relações femininas com o casamento e a
maternidade, ele postula a irredutibilidade da inveja do pênis, denominando-a rochedo da
castração.
Ao evidenciar, a partir da constatação da dessimetria entre os sexos, a
impossibilidade de complementaridade sexual, Freud um passo ético. Estabelece a
identificação ao seu sexo como um posicionamento do sujeito frente à diferença apontada
pela anatomia, mas considera as relações entre sexos apenas pelo viés do rochedo da
castração.
Esse é o ponto em que os impasses da sexuação incidem em sua elaboração teórica,
levando-o a enunciar:Tem-se a impressão de que o amor do homem e o amor da mulher
psicologicamente sofrem de uma diferença de fase” (FREUD, 1933[1932]/1996, p.133).
Freud se depara com o rochedo da castração justamente porque lhe faltam as
ferramentas conceituais que Lacan (1958/1998) retira da lingüística
2
. Ao se deter na relação
imaginária entre ter ou não ter o pênis, o que ele não consegue apreender é que o falo, como
significante, encontra-se ausente tanto no homem como na mulher.
Ao atribuir ao falo uma função significante, Lacan (1958/1998) reestrutura a
descoberta freudiana apresentada em Algumas conseqüências psíquicas da diferença
anatômica entre os sexos” (FREUD, 1925/1996). É como significante que o falo aparece
como diferença. Assim, quando Freud nos diz que não se trata da descoberta de dois sexos,
mas do desvelamento da antítese entre presença e ausência do falo, é a função significante
do falo que está em questão.
Lacan nos adverte, quanto ao complexo de castração, de que não está em jogo ter ou
não ter o pênis. A castração é constitutiva da entrada do sujeito na linguagem, isto é, o falo,
como significante, evidencia que homens e mulheres são castrados.
Coelho dos Santos (2005) propõe que a análise da incidência do complexo de
castração na constituição das posições masculina e feminina seja feita através da noção de
caráter. A autora aponta que, ao contrário da fantasia, o conceito de caráter é mais
abrangente e válido para os dois sexos.
Contudo, faz-se necessário assinalar que a leitura dos tipos de caráter não pode ser
confundida com uma tentativa psicologizante de classificar os sujeitos em categorias a
priori. Ao examinar os tipos de caráter propostos por Freud, nosso objetivo é evidenciar a
estrutura lógica do posicionamento do sujeito frente à constatação da castração. Para tanto,
faremos uma aproximação entre os tipos de caráter e o mito de “Totem e tabu” (FREUD,
1912-13/1996).
Em “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico”, Freud
(1916/1996) afirma que o caráter de reivindicação à exceção é um posicionamento
tipicamente feminino, que estaria vinculado ao sentimento de inferioridade das mulheres
por suas mães terem-nas trazido ao mundo como mulheres, e não como homens.
2
Lacan trabalha a questão no escrito “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (LACAN,
1957/1998).
Nessa aproximação entre a reivindicação à exceção e a posição feminina, chama-nos
à atenção o fato de que ela aponta para um impossível lógico. Ao reivindicar ser tratada
como exceção sentindo-se prejudicada por não ter o falo o que a mulher demanda é a
eliminação do registro da castração.
Esse é o engodo da posição feminina: ao se colocar como exceção, a mulher
desconsidera justamente a função lógica da exceção. A reivindicação feminina ao lugar de
exceção denota que a posição da mulher frente à constatação da castração é a tentativa de
ocupar um lugar impossível de ser ocupado. Assim, por não ter acesso à ameaça de
castração, a mulher acredita poder resolver o problema da ausência do falo colocando-se no
lugar dele.
Os outros dois tipos de caráter propostos por Freud são os arruinados pelo êxito e os
criminosos em conseqüência do sentimento de culpa. Para ele, esses dois tipos de caráter
estariam mais vinculados à relação entre o complexo de Édipo e a castração.
Ao descrever esses dois tipos de caráter, Freud (1916/1996) ressalta que, apesar de a
ameaça de castração ser o motor do recalque do Édipo, a fantasia figura para o homem
como um modo de transgressão a esse impedimento. Assim, o que esses tipos de caráter
demonstram é que, ao se identificar com o pai, acatar a interdição do incesto e recalcar o
Édipo, o homem utiliza a fantasia como modo de assumir uma posição viril.
A correlação entre o mito de “Totem e tabu” e os tipos de caráter demonstra que, do
lado masculino, a norma fálica toma a vertente da exceção que funda a regra, e instaura,
pela castração, a falta como causa do desejo do homem. No caso das mulheres, os
problemas aparecem em torno da referência ao falo, pois a castração não constitui para elas
uma ameaça, mas um fato consumado. A identificação feminina com a posição de exceção
é de outra ordem; não se estabelece a partir da ameaça, mas da tentativa de eliminar o
registro da castração.
Ao constatar a importância da vinculação pré-edípica da menina com a mãe, Freud
(1931/1996) havia apontado a insuficiência do complexo de Édipo em resolver os
impasses da sexuação feminina. Porém, ainda acreditava que a sexualidade feminina estaria
toda relacionada com o falo, e que a inveja do pênis seria o ponto fundamental na
compreensão da posição feminina na sexuação.
Lacan (1956-57/1995) retoma os questionamentos de Freud interrogando a função
fálica. Ao definir o falo como o significante fundamental pelo qual o desejo do sujeito
tem que se fazer reconhecer, quer se trate do homem, quer se trate da mulher esclarece
que o desejo tem no sujeito uma referência fálica. É da correlação entre o desejo e o falo
que Lacan parte na tentativa de elucidar a maneira pela qual o sujeito se relaciona com a
diferença entre os sexos.
A divisão do complexo de Édipo em três tempos tem como propósito esclarecer de
que maneira a referência fálica se organiza para o sujeito (LACAN, 1956-57/1995). Para
Lacan (1957-58/1999), é em torno da relação entre o falo e o desejo que a situação edipiana
se constitui. O desejo é definido como desejo do desejo do Outro. A operação de seu
reconhecimento se através da constatação de que algo falta ao Outro. Assim, ao
constatar essa falta no Outro e, portanto, reconhecer sua castração, o sujeito reconhece o
falo como objeto do desejo do Outro.
Como o primeiro Outro da criança é a mãe, a castração é inicialmente reconhecida
como castração materna. O falo se constitui, inicialmente, como o significante da falta
materna. Essa etapa é comum aos dois sexos e se constitui como o primeiro tempo do
Édipo.
Ao constatar a castração materna e, com isso, identificar o falo como o que a mãe
deseja, a criança procura colocar-se na posição imaginária de falo, na tentativa de se fazer
objeto do desejo da mãe. Porém, o pai que está inserido como uma presença velada no
discurso da mãe – posiciona-se contrariamente a essa demanda.
Instaura-se, então, o segundo tempo do Édipo, no qual o pai intervém no circuito
como privador da mãe, isto é, posicionando-se contrariamente à demanda materna de fazer
o filho equivaler ao falo que lhe falta. Nesse momento, é possível perceber uma primeira
diferença entre Freud e Lacan no que diz respeito à equivalência entre feminilidade e
maternidade.
Ao interditar a mãe em seu gesto de fazer do filho o equivalente do falo, o pai
também impede o filho de se identificar imaginariamente àquele. Assim, se o desejo do
sujeito é simbolizado com o auxílio do falo como desejo do desejo do Outro sua
identificação imaginária com o falo é vetada pelo pai. Contudo, ao operar tal interdição, o
pai surge como potente; como aquele que tem o falo que falta à mãe e por cujo intermédio o
filho também pode vir a tê-lo. O sujeito passa, então, do desejo de ser o falo para o desejo
de ter o falo. Trata-se do terceiro tempo do Édipo.
O complexo de Édipo estaria, portanto, referido à norma fálica. Contudo, a relação
que meninos e meninas têm com a descoberta da castração materna não é simétrica, isto é, a
primazia da lógica fálica implica a divisão entre os que possuem o falo os meninos e os
que não o possuem e, por isso, são castrados – as meninas.
Nesse ponto, as dificuldades introduzidas pela fase fálica na identificação sexual das
mulheres tornam-se evidentes. Ao tentar dar conta da identificação feminina ao seu sexo a
partir da norma fálica, Lacan privilegia, tal como Freud, o complexo de masculinidade.
Ao colocar em primeiro plano a distinção entre as vertentes imaginária e simbólica
do falo, Lacan (1957-58/1998) ressalta a transição da identificação com a mãe fálica
primordial para uma identificação com o pai. A mudança no estatuto do falo seria, portanto,
ponto privilegiado da identificação da menina com o pai, o que não constitui uma
identificação ao seu sexo.
Nesse momento, Lacan chega ao mesmo impasse que Freud em sua constatação da
dessimetria entre os sexos. Toda a sua teorização acerca das insígnias do ideal harmoniza-
se muito bem à maneira masculina de se posicionar simbolicamente no Édipo; diz respeito
aos efeitos da ameaça de castração no recalque dos desejos edipianos e na formação do
ideal do eu. Porém, não é possível uma transposição para o modo feminino de identificação
ao seu sexo. Ao privilegiarmos a organização fálica, uma parte essencial da constituição da
posição feminina permanece enigmática, uma vez que o falo não conta do recalque do
Édipo na mulher nem da internalização de um ideal do eu.
Essa questão é retomada por Lacan (1962-63/2005) em suas considerações sobre a
diferença entre a angústia de castração e a ameaça de castração. Ao considerar o falo pelo
viés de sua incidência corporal problematizando, novamente, a incidência psíquica da
diferença entre os sexos − Lacan (1962-63/2005) assinala que o falo aparece, na fase fálica,
do lado do negativo, isto é, na fase fálica, o falo se constitui por sua ausência.
Essa mudança de perspectiva na análise da função fálica promove uma torção na
idéia freudiana de que o rochedo da castração seria um ponto ineliminável na análise de
homens e mulheres.
A consideração da castração pelo viés da angústia promove uma rearticulação da
relação do desejo com o falo, uma inversão da relação entre os sexos no que se refere à
ausência do falo. A ausência do falo deixa de ser uma questão primária para a mulher
perspectiva em jogo na idéia de rochedo da castração e passa a ser uma questão para o
homem, que experimenta na detumescência a negativização do falo.
Lacan (1962-63/2005) assinala que a relação entre o feminino e o falo se coordena
ao consentimento da mulher em se fazer semblante de objeto a para o fantasma do parceiro,
ou seja, a fórmula do fantasma não vale para homens e mulheres da mesma maneira.
É pela incidência da angústia de castração caracterizada pela negativização do
falo na detumescência que o desejo se funda para o homem como falta. A fantasia
aparece, portanto, como o modo privilegiado pelo qual o desejo do sujeito se faz reconhecer
na escolha de uma parceira sexual. Por intermédio da fantasia, o homem procura na mulher
o falo que lhe falta. Assim, podemos perceber que a fantasia está totalmente referida à
norma fálica, ou seja, ela se caracteriza por ser o modo masculino de fazer suplência à
relação sexual que não existe.
A menina utiliza a fantasia para se fazer objeto do desejo de um homem. A mulher,
ao fazer uso da fantasia, se implicada na função do falo: se o falo é o próprio signo do
que é desejado, ela se faz desejar colocando-se no lugar de falo. Porém, na identificação
com o falo, uma consumição da mulher como sujeito, pois ela se faz desejar por meio
daquilo que ela não é. Assim, a correlação entre fantasia e falo não resolve a questão
feminina, que se fazer objeto do desejo masculino apenas mascara a dimensão negativa
do falo na relação entre os sexos.
Nesta dissertação, temos como objetivo apontar as possibilidades de encontro no
campo sexual que não sejam da ordem do ideal. Supomos que a dessimetria entre os sexos
é um posicionamento ético justamente por permitir que homens e mulheres façam do par
sexual objeto causa do desejo, sem, contudo, almejar nessas relações uma
complementaridade.
Essa é a incidência ética da diferença sexual: se não complementaridade entre os
sexos, o encontro com o parceiro sexual se estabelece na ordem do semblante. Lacan
(1962-63/2005) indica como ponto de interseção entre o conjunto dos homens e o das
mulheres, no campo sexual, a falha apontada pelo falo. Dessa maneira, o que está em jogo
no encontro entre os sexos é o falo, e não o outro.
A partir dessas considerações, nossa proposta é investigar como se constitui essa
falha apontada pelo falo e de que modo ela serve de suplência à relação sexual que não
existe. Para tanto, dividiremos a dissertação em três capítulos.
No primeiro capítulo, analisaremos a incidência da lógica fálica na sexuação a partir
da descoberta freudiana da dessimetria entre os sexos. Partiremos da análise do complexo
de Édipo com o intuito de demonstrar os impasses com os quais Freud se depara ao
considerar o rochedo da castração como o ponto de irresolução na análise de homens e
mulheres. Finalmente, abordaremos a estrutura lógica do mito de “Totem e tabu” através da
análise da relação entre o complexo de castração e os tipos de caráter.
No segundo capítulo, analisaremos as considerações lacanianas sobre a lógica
fálica. Demonstraremos o paradoxo da função do falo simbólico na inscrição do sujeito em
sua posição sexuada. Posteriormente, investigaremos a incidência da angústia de castração,
que, ao promover a negativização do falo, possibilita a estruturação do desejo e a
constituição do objeto a no homem e na mulher.
No terceiro capítulo, discorremos sobre a dimensão propriamente ética da diferença
sexual, ressaltando que a sexuação masculina e a sexuação feminina respondem a modos
distintos de se situar em relação à lógica fálica. A partir dessas considerações, pretendemos
evidenciar a disjunção entre desejo e gozo e delimitar a relação entre a assunção de uma
posição sexuada e a lógica da sexuação. Em um segundo momento, abordaremos a relação
entre demanda fálica e posição sexual. Para tanto, analisaremos a função do semblante e o
estatuto da comédia no encontro entre os sexos. Finalmente, problematizaremos a tese
lacaniana da impossibilidade da relação sexual através da distinção entre o ideal da
complementaridade e o estatuto do semblante na relação entre os sexos.
Capítulo I
O FALO E A SEXUALIDADE INFANTIL
1 FREUD E O COMPLEXO DE ÉDIPO
1.1 A operação edípica no menino e a formação do supereu
Freud (1923/1996), ao definir a sexualidade infantil como referida ao falo, abre
caminho para a compreensão da relação entre a ameaça de castração e o complexo de
Édipo. Com o intuito de demonstrar tal relação, parte da análise da sexuação masculina.
No caso dos meninos, Freud (1923/1996) assinala que o complexo de Édipo
sucumbe frente ao medo da perda do órgão, temor decorrente da descoberta da castração
feminina, ou seja, da constatação da ausência do pênis na mulher. Contudo, a constatação
da castração não ocorre sem o constrangimento pela idéia inicial de que a menina tem um
pênis pequenino. Assim, frente a uma primeira apreciação da ausência do pênis na
irmãzinha ou companheira de brinquedos, o menino se desculpa acreditando que o pênis
dela ainda crescerá.
Freud (1924/1996) percebe que a conclusão de que a mulher não tem pênis se
estabelece para o menino numa etapa posterior. Sua crença não se baseia na percepção da
diferença anatômica entre os sexos. O menino, ao considerar a ausência do pênis na mulher,
acredita que ela não o tem porque o perdeu, isto é, antes, ele estava lá.
É a partir dessa resolução que se organiza o complexo de castração masculino.
Frente à constatação de que é possível perder o órgão tão apreciado, o menino associa a
castração feminina às ameaças, tão comuns na infância, de que o órgão pode ser cortado.
Baseado nessa hipótese, ele considera a possibilidade da sua própria castração e acata a
interdição paterna de gozar da mãe como seu objeto de desejo. Esse posicionamento abre
caminho para o recalque do complexo de Édipo.
Assim, a fase fálica é contemporânea do complexo de Édipo, e a ameaça de
castração seria responsável pela destruição da organização genital infantil do menino que
sucumbiria frente ao medo do dano narcísico do órgão e daria lugar ao período de
latência.
“Mais cedo ou mais tarde, a criança, que tanto orgulho tem da
posse de um pênis, tem uma visão da região genital de uma menina
e não pode deixar de convencer-se da ausência de um pênis numa
criatura assim semelhante a ela própria. Com isso, a perda de seu
próprio pênis fica imaginável e a ameaça de castração ganha seu
efeito adiado” (FREUD, 1924/1996, p.195).
O efeito da ameaça de castração no menino seria a zertrummerung do Édipo, isto é,
a demolição do complexo de Édipo. Esse processo decorreria do abandono do investimento
libidinal no objeto (mãe) e da identificação ao pai. Porém, a idéia inicial de que o Édipo do
menino seria completamente destruído pela ameaça de castração situa-se no plano do ideal,
e as análises empreendidas por Freud demonstram que o complexo continua a operar no
inconsciente.
Freud estuda a relação entre identificação e escolha objetal em “O eu e o isso”
(1923/1996). Para ele, o menino desenvolve muito precocemente um investimento objetal
pela mãe, relacionando-se com o pai por meio da identificação. Essa identificação é, desde
o início, ambivalente, uma vez que o pai figura como aquele que impede a criança de se
satisfazer na relação com a mãe, sendo, concomitantemente, objeto de seu amor. Assim, o
complexo de Édipo se constituiria numa relação triangular em que a identificação com o pai
comportaria, ao mesmo tempo, um caráter de amor e ódio.
No artigo Psicologia das massas e análise do eu”, Freud (1921/1996) aponta que a
identificação desempenha um papel fundamental na história primitiva do complexo de
Édipo. Ressalta, ainda, a distinção entre a identificação com o pai e a escolha do pai como
objeto: “No primeiro caso, o pai é o que gostaríamos de ser; no segundo, o que gostaríamos
de ter, ou seja, a distinção depende de o laço se ligar ao sujeito ou ao objeto do ego”
(FREUD, 1921/1996, p.116).
Essa distinção é posteriormente analisada como duas maneiras de o menino se
satisfazer frente ao Édipo, ou seja, ela é característica da disposição bissexual. A
ambivalência dos sentimentos em relação ao pai diz respeito tanto a um rechaço à sua
figura quanto a um posicionamento no sentido de se fazer amar pelo pai o que exige do
menino a adoção de uma posição feminina.
“O complexo de Édipo ofereceu à criança duas possibilidades de
satisfação, uma ativa e outra passiva. Ela poderia colocar-se no
lugar de seu pai, à maneira masculina, e ter relações com a mãe,
como tinha o pai, caso em que cedo teria sentido o último como um
estorvo, ou poderia querer assumir o lugar da mãe e ser amada pelo
pai, caso em que a mãe se tornaria supérflua” (FREUD, 1924/1996,
p. 196).
Essas duas posições do menino frente ao pai apontam para a aceitação da
possibilidade de castração. No primeiro caso, a ameaça partiria do pai como detentor do
direito de fazer da mãe objeto do seu desejo; no segundo, a castração seria uma precondição
para se fazer amar pelo pai, ou seja, colocar-se numa posição feminina requer que a
castração tenha sido consumada. Porém, ao se deparar com a possibilidade de castração, o
menino abre mão dessas duas posições e recalca o Édipo.
Frente à posição do pai no complexo de Édipo, o menino tem de renunciar ao laço
libidinal com as figuras parentais e substituí-lo por uma identificação com o pai. Porém,
essa identificação comporta um paradoxo: a identificação do menino ao pai supõe que ele
seja como o pai e, ao mesmo tempo, o impede de sê-lo.
Essa ambigüidade remonta à proibição do incesto, ou seja, frente ao investimento
libidinal na mãe como objeto do desejo, o pai aponta para o menino a interdição. A mulher
para a qual a criança volta seu investimento libidinal lhe é proibida por ser a mulher do pai.
Há, aqui, uma dupla operação: a interdição da mãe como mulher do pai e o estabelecimento
da possibilidade de assim como o pai posteriormente, fazer de uma mulher objeto de
seu desejo. Assim, a identificação paterna preserva a relação de objeto com a mãe como
recalcada − e, ao mesmo tempo, substitui a relação de objeto com o pai.
A substituição da vinculação ao pai como objeto pela identificação à sua figura
aponta para a formação do caráter sexual do eu. Freud nos diz que “[...] esse tipo de
substituição tem grande parte na determinação da forma tomada pelo ego, e efetua uma
contribuição essencial no sentido da construção do que é chamado de seu caráter”
(FREUD, 1923/1996, p.41). Dessa maneira, a identificação ao pai é o que possibilita a
assunção da posição sexuada pelo menino.
Para Freud, as primeiras identificações efetuadas na infância são gerais e
duradouras, tornando-se a base para a constituição do supereu. Na relação do menino com o
pai, haveria dois momentos nos quais a identificação estaria em jogo: um momento inicial,
em que uma identificação tem lugar antes mesmo de haver uma escolha de objeto; e um
segundo momento, em que haveria uma identificação resultante de uma renúncia à escolha
de objeto, e que estaria vinculada com a dissolução do complexo de Édipo. Como aponta
Freud, “[...] a dissolução do complexo de Édipo consolidaria a masculinidade no caráter de
um menino” (FREUD, 1923/1996, p.45).
Ao propor que o supereu é o herdeiro do complexo de Édipo, Freud (1923/1996)
nos diz que a internalização da identificação parental produz uma divisão no eu, originando
outra instância, denominada supereu. O supereu seria o representanz do vínculo parental
primordial, que sucumbiu ao recalque devido à ameaça de castração, ocasionando a
dissolução do complexo de Édipo. Assim, o supereu seria o resultado da dissolução do
complexo de Édipo.
“A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no ego e forma o
núcleo do superego, que assume a severidade do pai e perpetua a
proibição deste contra o incesto, defendendo assim o ego do
retorno da catexia libidinal. As tendências libidinais pertencentes
ao complexo de Édipo são em parte dessexualizadas e sublimadas
[...] Esse processo introduz o período de latência, que agora
interrompe o desenvolvimento sexual da criança” (FREUD,
1924/1996, p.196).
Freud aponta, ainda, que a “observação analítica capacita-nos a identificar ou
adivinhar essas vinculações entre a organização fálica, o complexo de Édipo, a ameaça de
castração, a formação do supereu e o período de latência” (FREUD, 1924/1996, p.197).
Contudo, essas considerações dão lugar a novos questionamentos no que diz respeito à
sexualidade feminina. Freud é levado a colocar em questão a possibilidade de atribuir a
organização fálica e o complexo de castração também à mulher.
1.2 O complexo de Édipo na menina e o impasse da castração
Somente após o estudo sistemático do complexo de Édipo no menino, Freud se
volta para as questões especificamente femininas. A descoberta de que a organização
genital infantil se caracteriza por levar em conta apenas o sexo masculino traz um impasse
à sexuação feminina, uma vez que não explica de que maneira a menina assume e se
identifica ao seu sexo.
Freud está às voltas com essa questão quando escreve o artigo “Uma criança é
espancada: contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais” (1919/1996).
Constata que a fantasia de espancamento veio substituir outras fantasias, que tiveram um
papel perfeitamente compreensível no desenvolvimento do sujeito e que estariam
estritamente vinculadas ao complexo de Édipo. estão presentes, aqui, particularidades
concernentes à diferença entre os sexos, mas Freud ainda não dispõe das noções de
organização genital fálica e de complexo de castração para dar conta dessas diferenças.
Freud (1919/1996) assinala que as fantasias de espancamento têm origem, para
ambos os sexos, em uma ligação incestuosa com o pai. A partir dessa constatação,
demonstra que, na menina, o recalque do amor incestuoso pelo pai se através de uma
renuncia ao seu sexo: “Em fantasia ela transforma-se em homem, sem se tornar ativa à
maneira masculina [...]” (FREUD, 1919/1996, p.214). Freud denomina essa operação de
complexo de masculinidade, e faz uso do conceito de bissexualidade para explicitar o modo
de funcionamento feminino frente ao Édipo. Contudo, o motivo que levaria o complexo
edípico a sucumbir ao recalque permanece obscuro.
O impasse da identificação da menina ao seu sexo evidencia-se ainda mais a partir
da análise do caso da jovem homossexual. Em A psicogênese de um caso de
homossexualismo numa mulher” (1920/1996), Freud analisa o caso de uma jovem em que,
no momento da puberdade, quando tudo parecia caminhar para um desfecho edipiano
normal, uma nova gravidez da mãe provoca uma série de alterações libidinais, tanto no
registro de suas identificações quanto nas escolhas de objeto. O estudo desse caso leva
Freud a constatar que, além da vinculação edípica com o pai, a mãe desempenharia um
papel predominante nas escolhas objetais da menina.
A questão é retomada em 1931 e culmina com a elaboração do artigo “Sexualidade
feminina” (FREUD, 1931/1996). Nesse texto, a relação da menina com a mãe é ressaltada.
Freud nos diz que, embora houvesse considerado uma vinculação primordial da menina
com a mãe, não imaginava que ela fosse tão intensa e de tão longa duração.
A ênfase na etapa pré-edípica da menina aponta para a dessimetria fundamental
entre os sexos em relação ao complexo de Édipo e à castração. Ao ressaltar que o primeiro
objeto de amor para ambos os sexos é a mãe, torna-se necessário considerar que,
inicialmente, a menina tem como objeto de amor uma pessoa do mesmo sexo. Freud se
pergunta, então, como a menina encontraria o caminho para o pai e como e quando ela se
desligaria da mãe.
Partindo da constatação da fase pré-edípica na mulher, Freud (1931/1996) enuncia
que a vida sexual feminina é dividida em duas fases: a primeira seria eminentemente
masculina e a segunda, especificamente feminina, ou seja, a feminilidade na menina não
seria um dado a priori, e sim o resultado de uma transformação na sua identificação
masculina inicial. A bissexualidade constitucional feminina seria, portanto, muito mais
acentuada do que a masculina.
Haveria também uma particularidade feminina no que diz respeito ao encontro do
objeto. Como o primeiro objeto de amor, para ambos os sexos, é a e, a menina teria de
realizar, ao final do percurso, uma troca quanto ao sexo de seu objeto. Essa mudança
ocasionaria o abandono do investimento libidinal na mãe e sua transferência para a figura
do pai. Ao definir a operação, Freud assinala: “Em outras palavras, à mudança em seu
próprio sexo deve corresponder uma mudança no sexo de seu objeto” (FREUD, 1931/1996,
p.237).
A análise dos efeitos do complexo de castração na mulher torna possível
compreender como essas mudanças operam. Ao considerarmos que a castração tem como
pressuposto a teoria infantil de que, para ambos os sexos, haveria um único órgão, o
masculino, a relação entre o complexo de Édipo e a castração assume uma nova roupagem
no caso das meninas. Apesar de a fase fálica ser comum aos dois sexos, e de a diferença
anatômica entrar em jogo para denotar a presença ou a ausência do falo, a idéia de que o
complexo de castração seria responsável pela dissolução do complexo de Édipo não
corresponde ao modo de funcionamento feminino:
“O primeiro passo na fase fálica iniciada dessa maneira não é a
vinculação da masturbação às catexias objetais do complexo de
Édipo, mas uma momentosa descoberta que as meninas estão
destinadas a fazer. Elas notam o pênis de um irmão ou
companheiro de brinquedo, notavelmente visível e de grandes
proporções, e imediatamente o identificam como o correspondente
superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível; dessa
ocasião em diante caem vítimas da inveja do pênis” (FREUD,
1925/1996, p.280).
Segundo Freud (1931/1996), ao se deparar com a castração, a menina se reconhece
como castrada, mas não se conforma com esse estado indesejável. Seriam possíveis, então,
três atitudes frente ao complexo de castração: o abandono da atividade fálica e, com ela, da
sexualidade em geral; a exasperação da afirmação da masculinidade ameaçada; e o caminho
da feminilidade, que resultaria na atitude feminina do complexo de Édipo. Assim, ao
contrário dos meninos, que saem do Édipo através do complexo de castração, no caso das
meninas, é o complexo de castração que possibilitará a entrada no Édipo.
Ao apontar que a menina tem, inicialmente, uma posição masculina caracterizada
por um complexo de masculinidade Freud (1933[1932]/1996) nos diz que, na fase fálica,
ela se comporta exatamente como um homenzinho. Nesse momento, o clitóris seria o
equivalente do pênis e desempenharia suas funções. Assim, o destino da feminilidade
depende da disposição da menina em reconhecer sua castração e deslocar sua sexualidade
do clitóris para a vagina.
Frente à constatação da castração, a menina percebe, de imediato, que não tem o
pênis, e entra no registro da reivindicação. A inveja do pênis assume todo o seu valor.
Nesse ponto, a menina pode desmentir sua castração e aferrar-se à convicção de que possui
um pênis, adotando uma atitude masculina e permanecendo no registro do complexo de
masculinidade.
Freud (1925/1996) assinala que as conseqüências psíquicas da inveja do pênis
uma vez que elas não se esgotam na formação reativa do complexo de masculinidade
dependem da aceitação da castração pela menina e estabelecem três possibilidades frente à
sua condição. A primeira é a admissão de sua ferida narcísica, o que estabelece na mulher
um sentimento de inferioridade. Superada a primeira tentativa de explicar sua falta de pênis
como um castigo pessoal, ela descobre a universalidade desse caráter sexual nas mulheres e
começa a sustentar a opinião masculina de que a mulher é um sexo mutilado e, por isso,
inferior. Essa atitude mantém a menina em conformidade com a posição masculina. A
segunda possibilidade seria o deslocamento da inveja do pênis para o ciúme, ou seja, ainda
que a inveja do pênis tenha renunciado ao seu objeto genuíno, ela não deixa de existir.
Assim, apesar de o ciúme não ser um traço de caráter exclusivamente feminino, ele
desempenha um papel muito maior na vida anímica da mulher, uma vez que recebe um
reforço da inveja do pênis desviada. A terceira é a mais elucidativa da maneira como o
complexo de Édipo se insere no desenvolvimento sexual da menina. Ela está relacionada
com o afrouxamento dos laços afetivos com a mãe. Ao se perceber castrada e reconhecer a
castração materna, a menina se ressente por a mãe tê-la feito mulher, e a acusa de ser
responsável por sua falta de pênis.
Para Freud, a motivação que leva a menina a se desligar do vinculo original com a
mãe e deslocar seu investimento libidinal para o pai não se restringe a uma simples
mudança de objeto, mas diz respeito à adoção de uma atitude hostil para com a mãe:
“À luz do exame anterior, concluiremos que a atitude hostil para
com a mãe não é conseqüência da rivalidade implícita no
complexo de Édipo, mas se origina da fase precedente, tendo sido
simplesmente reforçada e explorada na situação edipiana”
(FREUD, 1931/1996, p.239).
Ao elencar os possíveis motivos que fazem a relação original com a mãe tornar-se
conflituosa, Freud (1931/1996) percebe que muitos deles também se aplicariam aos
meninos e seriam, portanto, parte da constituição sexual infantil. A ambivalência dos
sentimentos infantis de amor e ódio tem, nesse ponto, um papel fundamental. O que está em
jogo nessa operação é o vínculo entre escolha objetal e identificação. Para o menino, é mais
fácil deslocar o ódio original da mãe para o pai, uma vez que uma distinção entre a
função do pai figura que concentra a rivalidade e a identificação masculina e a função
da mãe que funciona como objeto de investimento libidinal. No caso da menina, a
situação se complica, pois a mãe ocupa para ela tanto o lugar de identificação quanto o de
investimento libidinal. Assim, a menina tem de fazer a dupla operação de se desvincular da
mãe como objeto primordial, e, ao mesmo tempo, identificar-se com ela na posição de
castrada.
Toda essa operação é fruto da constatação da castração materna e resulta na
ressignificação de todas as frustrações sofridas anteriormente na relação primordial com a
mãe. A partir desse momento, a menina abandona o vínculo objetal materno, adota uma
atitude hostil para com a mãe e passa a demandar ao pai o pênis do qual ela lhe privou.
A descoberta de que a mãe também é castrada descortina para a menina a
universalidade da castração feminina. Essa constatação tem como conseqüência o abandono
ressentido da mãe e o sentimento narcísico de humilhação, que leva a menina a aceitar que
não pode competir com o homem e a abrir mão da atitude masculina e da masturbação
clitoridiana. Assim, após suas primeiras tentativas de restituição e reivindicação do pênis
perdido, a menina percebe que não possibilidade de se fazer equivaler ao menino e
renuncia à posição masculina, abrindo caminho para o desenvolvimento da feminilidade.
É importante salientar que, no caso da menina, não se trata unicamente da
substituição da mãe pelo pai como objeto de amor, mas de uma transformação da ligação
primordial com a mãe. A mudança do investimento libidinal da mãe para o pai não significa
simplesmente um abandono do vínculo inicial, mas sua transformação em identificação
com a mãe castrada.
Essa mudança é paradoxal, uma vez que requer a manutenção do vínculo com a mãe
fálica como base para a posterior relação da menina com o pai. Com isso, a situação edípica
colocaria para a mulher a necessidade de substituição da identificação com a mãe fálica por
uma identificação com a mãe castrada. Contudo, a relação com a mãe fálica não deixa de
existir, tornando-se a base da ligação da menina com o pai. Assim, o complexo de Édipo
tem para a menina o valor de uma formação secundária, precedida e preparada pelas
repercussões do complexo de castração.
Ao perceber que a mãe é castrada e que, portanto, também não tem o pênis, o desejo
da menina é transferido para o pai. Contudo, ela entra na posição feminina quando
substitui o desejo do pênis pelo desejo de ter um bebê do pai. Esse deslocamento tem lugar
a partir da equação simbólica que faz equivaler o filho ao pênis: a menina se resigna frente
ao desejo do pênis e desloca seu investimento libidinal para o desejo de um filho. Para
Freud, essa é a base para a consolidação da feminilidade:
“O desejo que leva a menina a voltar-se para seu pai é, sem dúvida,
originalmente o desejo de possuir o pênis que a mãe lhe recusou e
que agora espera obter de seu pai. No entanto, a situação feminina
se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de
um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar do pênis, consoante
uma primitiva equivalência simbólica” (FREUD,
1933[1932]/1996, p.128).
Assim, para Freud, a saída para a feminilidade estaria relacionada com a
maternidade e se vincularia à situação do complexo de Édipo. Nesse momento, a
hostilidade para com a mãe − já presente na transferência do vínculo libidinal da mãe para o
pai − experimenta um grande reforço. A mãe torna-se a rival que recebe do pai tudo o que a
menina deseja.
A situação do complexo de Édipo seria, então, conseqüência da substituição do
desejo de ter um pênis pelo desejo de ter um filho do pai. É esse deslocamento que introduz
a menina no caminho da feminilidade. Contudo, o desejo de ter um filho do pai permanece,
para a menina, mais uma vez, um desejo irrealizável.
Segundo Freud (1933[1932]/1996), o desenvolvimento sexual da menina até a
mulher comporta duas peculiaridades. A primeira é que a constituição feminina não se
adaptará à sua função sem luta. A segunda é que os pontos críticos decisivos deverão ter
sido preparados ou completados antes da puberdade.
A sexuação feminina é, portanto, mais complicada que a sexuação masculina,
apontando, ainda, para outros problemas: se o complexo de castração é o que possibilita a
entrada da menina no Édipo, o que faz com que ela saia dessa situação? Se a ameaça de
castração é o que promove o recalque do complexo de Édipo no menino, tendo como
resultado a formação do supereu, como essa instância se instauraria para a mulher, que não
passa por essa ameaça?
Freud (1933[1932]/1996) assinala que as conseqüências da ausência da angústia de
castração nas meninas estão relacionadas com a formação do supereu e de sua estrutura de
caráter. Como a menina parece ter mais dificuldade em abandonar a situação edípica,
permanecendo nela por um tempo indeterminado, a formação do supereu sofre prejuízos e
não consegue atingir a intensidade e a independência que lhe conferem importância
cultural.
“Assim, nas mulheres, o complexo de Édipo constitui o resultado
final de um desenvolvimento bastante demorado. Ele não é
destruído, mas criado pela influência da castração; foge às
influências fortemente hostis que, no homem, tiveram efeito
destrutivo sobre ele e, na verdade, com muita freqüência, de modo
algum é superado pela mulher. Por essa razão, também, nela as
conseqüências culturais de sua dissolução são menores e menos
importantes” (FREUD, 1931/1996, p.238).
A questão permanece como um paradoxo, pois coloca a mulher numa posição de
difícil assujeitamento aos sentimentos sociais. Freud (1931/1996) aponta a inveja do pênis
como paradigma dessa debilidade do supereu, e atribui a esse fator o escasso sentimento de
justiça nas mulheres. Assinala que, para haver justiça, é preciso que se desista da inveja,
razão pela qual o sentimento de justiça torna-se problemático para a mulher.
Freud (1933[1932]/1996) nos diz que a inveja do pênis pode perturbar o
desenvolvimento da feminilidade, pois a ligação pré-edípica da menina parece jamais ser
totalmente abandonada pela mulher. Esse é o ponto enigmático da posição feminina:
“Tomando sua pré-história como ponto de partida, apenas
acentuarei, aqui, que o desenvolvimento da feminilidade
permanece exposto a perturbações motivadas pelos fenômenos
residuais do período masculino inicial [...] Determinada parte disso
que nós, homens, chamamos de o ‘enigma da mulher’ pode, talvez,
derivar-se dessa expressão da bissexualidade na vida da mulher”
(FREUD, 1933[1932]/1996, p.130).
Assim, a ausência da ameaça de castração nas mulheres deixa sem resposta a
questão do recalque do Édipo, da formação do supereu e da relação entre os sexos.
Todos esses pontos de enigma na sexualidade feminina resultam na idéia de um
repúdio à feminilidade que estaria presente em ambos os sexos. Para a mulher, o repúdio à
feminilidade estaria vinculado à inveja do pênis; no caso dos homens, a uma recusa a
colocar-se numa posição passiva frente a outro homem.
O complexo de castração, comum aos dois sexos, foi forçado pela diferença entre
eles a tomar formas diferentes de expressão. Freud (1937/1996) afirma que, apesar de todos
os seres humanos serem bissexuais no sentido de que distribuem sua libido, de maneira
manifesta ou latente, entre objetos de ambos os sexos – a heterossexualidade de um menino
não admite nenhum traço de passividade e a feminilidade de uma mulher supõe que ela
abra mão do desejo do pênis em favor do desejo de um filho e de um marido.
A passividade frente a outro homem corresponderia, para o menino, a uma atitude
feminina uma vez que supõe a castração e necessitaria ser energicamente recalcada.
Essa atitude masculina frente à passividade atualiza a relação primordial de amor do
menino com o pai e torna-se fonte de resistência na situação analítica. A homossexualidade
latente do menino torna-se fonte de perigo para sua heterossexualidade, e qualquer
evidência do seu retorno é rechaçada.
No caso das mulheres, Freud (1937/1996) supõe que, apesar de o desejo de um
pênis ter sucumbido ao recalque, sendo substituído pelo desejo de um filho e de um marido,
o complexo de masculinidade continua a influir de maneira permanente sobre o caráter
feminino. Assim, o desejo de um pênis se conserva no inconsciente e, a partir de seu estado
de recalque, continua a exercer sua influência perturbadora sobre a feminilidade.
Freud (1937/1996) conclui que em nenhum momento do trabalho analítico se
padece mais da sensação opressiva de estar ‘pregando ao vento’ do que na tentativa de
convencer uma mulher de que seu desejo de um pênis é irrealizável, e um homem de que
uma atitude passiva frente a outros homens não significa castração. A essa irredutibilidade
da posição do sujeito frente ao complexo de castração Freud denomina rochedo da
castração.
2. A LÓGICA DA EXCEÇÃO E OS TIPOS DE CARÁTER
2.1 A estrutura lógica do mito de totem e tabu
Ao descrever os tipos de caráter, Freud (1916/1996) está às voltas com formas de
resistência que surgem em sua clínica e parecem apontar para a posição subjetiva de seus
pacientes. Ele o nome de traços de caráter ao conjunto de características que remetem a
um posicionamento do sujeito na situação analítica e que parecem ter relação com o
complexo de castração.
A questão que norteia a análise dos tipos de caráter diz respeito à relação
problemática do sujeito com o desejo e com a lei e ao papel do complexo de castração na
assunção de sua posição sexuada.
Freud esteve às voltas com essas questões desde 1913, quando criou o mito de
“Totem e tabu”. Ao descrever uma tribo na qual apenas um o pai primordial tem o
direito de usufruir de todas as mulheres e, por esse motivo, é assassinado pelos filhos,
estabelece como evento fundador da lei a sua própria transgressão. Assim, o mito freudiano
serve como metáfora da relação paradoxal do sujeito com o desejo e com a lei, fundada na
interdição do incesto.
Através da análise do mito de “Totem e tabu” (1913[1912]/1996), tentaremos
compreender a estrutura lógica que rege o complexo de castração e sua relação com o falo
na sexuação.
Ao supor a existência de um pai detentor do direito sobre todas as mulheres, Freud
(1913[1912]/1996) evidencia que é precisamente o lugar desse pai que ocupa a posição
de exceção e tem acesso ao falo que os filhos almejam com o seu assassinato. Porém,
após o ato, os filhos percebem a impossibilidade lógica de ocupar esse lugar, pois ocupá-lo
significa a eminência de ser, assim como o pai, assassinado pelos irmãos.
A solução encontrada para esse paradoxo é proibir o acesso ao lugar do pai e,
conseqüentemente, à mãe como sua mulher. A partir dessas proibições, os filhos,
identificados à figura do pai, passam a ter acesso às outras mulheres. Assim, a função do
mito é justamente a de mostrar que se pode ter o falo como aquilo que falta e funda o
desejo, ou seja, que a castração é ineliminável.
A leitura significante do falo empreendida por Lacan (1958/1998) nos permite
compreender que é a função significante do falo que está em jogo na estrutura do mito de
“Totem e tabu”. O falo se coloca no lugar do objeto que falta tanto para os homens quanto
para as mulheres, ou seja, ele passa a regular o circuito do desejo.
Partiremos da análise dos tipos de caráter examinados por Freud. Nosso objetivo é
demonstrar que se encontra latente, nesse texto freudiano, a estrutura lógica da posição de
exceção e a impossibilidade estrutural de se ter acesso a esse lugar.
2.1.1 As exceções
Ao apresentar o primeiro tipo de caráter − as exceções − Freud (1916/1996) ressalta,
como característica dessas pessoas, a reivindicação a serem tratadas como exceção. Tal
reivindicação se justificaria pelo fato de terem sido acometidas por algum infortúnio do
destino e se considerarem demasiado sofredoras para terem que, ainda assim, se submeter
às regras e restrições a que todos são obrigados a se submeter.
Após algumas considerações sobre a natureza dessa reivindicação, Freud aproxima
esse tipo de caráter da posição feminina diante da descoberta da castração:
“Conforme aprendemos pelo trabalho psicanalítico, as mulheres se
consideram como tendo sido prejudicadas na infância, como tendo
sido imerecidamente privadas de algo e injustamente tratadas; e a
amargura de tantas filhas contra suas mães provém, em última
análise, da censura contra estas por as terem trazido ao mundo
como mulheres e não como homens” (FREUD, 1916/1996, p.329).
Como vimos anteriormente, Freud problematiza, em vários momentos de sua obra, a
relação da mulher com a castração. Examina a relação da menina com a mãe; considera os
caminhos que a mulher poderá seguir ao constatar a castração; aponta os paradoxos na
formação do supereu e no recalque do Édipo; e conclui que a mulher está fadada a
sucumbir diante da inveja do pênis.
Ao se deter na relação imaginária entre ter ou não ter o pênis, o que Freud não
consegue apreender é a dimensão significante do falo. Como ele havia constatado em
1923, frente à diferença anatômica entre os sexos, o que o sujeito ressalta é a operação
simbólica da presença e da ausência do falo, e não a existência de dois sexos.
É a partir da releitura de Lacan (1958/1998), de sua abordagem do falo como
significante da falta, que podemos compreender que o objeto fálico se constitui por sua
ausência, tanto no homem como na mulher. Essa é a estrutura lógica do mito de “Totem e
tabu”.
Nessa aproximação entre a reivindicação à exceção e a posição feminina, chama-nos
à atenção o fato de que ela aponta para um impossível lógico. Ao reivindicar ser tratada
como exceção sentindo-se prejudicada por não ter o falo o que a mulher demanda é a
eliminação do registro da castração.
Assim, a reivindicação à exceção não é uma posição de reparação simétrica em
relação ao homem, uma vez que o homem também está submetido à castração. O caráter de
reivindicação à exceção aponta justamente para a ignorância feminina quanto à
impossibilidade de ter o falo de outra maneira que não seja pela falta.
Esse é o engodo da posição feminina: ao se colocar como exceção, a mulher
desconsidera justamente a função lógica da exceção. A reivindicação feminina ao lugar de
exceção denota que a posição da mulher frente à constatação da castração é a tentativa de
ocupar um lugar impossível de ser ocupado, isto é, o lugar do pai da horda.
Assim, do lado feminino, a exceção não se constitui como um modo de regular as
relações entre os iguais, caso dos homens. Constitui-se, antes, como um modo de
desconsiderar a dimensão estrutural da falta apontada pela ausência do falo.
2.1.2 Os arruinados pelo êxito
Ao descrever os ‘arruinados pelo êxito’, Freud mostra-se perplexo com a descoberta
de que “as pessoas ocasionalmente adoecem precisamente no momento em que um desejo
profundamente enraizado e de muito alimentado atinge a realização” (FREUD,
1916/1996, p.331). E percebe que o que está realmente em jogo nesses casos é a
impossibilidade do encontro com o objeto do desejo, isto é, o falo.
A inquietante descoberta freudiana é precisamente a impossibilidade de eliminar a
falta constitutiva da posição desejante. Ao constatar que, na eminência da realização do
desejo, o sujeito sucumbe, Freud (1916/1996) percebe que não se trata, no desejo, do
encontro com o objeto, e sim com a falta apontada pelo falo.
Na tentativa de dar conta desse descompasso entre o encontro do objeto e a
satisfação, Freud (1916/1996) considera a existência de dois tipos de frustração. A doença
demonstraria que, por trás da frustração externa, encontra-se a frustração interna, que não
pode ser satisfeita por os objetos externos.
Assim, o que está em jogo para os arruinados pelo êxito não é uma dificuldade
frente à realização do desejo, mas, ao contrário, a impossibilidade de eliminar a falta que
constitui o desejo, e que Freud denomina frustração interna.
“Nos casos excepcionais em que as pessoas adoecem por causa do
êxito, a frustração interna atua por si mesma; na realidade, só surge
depois que uma frustração externa foi substituída por realização de
um desejo” (FREUD, 1916/1996, p.332).
A fim de compreendermos tal posição subjetiva, evocamos, mais uma vez, “Totem e
tabu” (FREUD, 1913[1912]). Os arruinados pelo êxito evidenciam justamente a conclusão
a que os irmãos chegam após assassinarem o pai: ocupar o seu lugar e ter acesso ao falo
tem como conseqüência sucumbir ao seu destino, isto é, onde o desejo se realiza, o
destino é a morte.
Assim, o que os arruinados pelo êxito nos ensinam é precisamente a boa distância
entre identificar-se com o pai e querer assumir o seu lugar. Essa é a lógica da interdição do
incesto: o pai aponta a direção do desejo para o menino a mãe como sua mulher e
impede o acesso do filho a esse lugar.
2.1.2 Os criminosos em conseqüência do sentimento de culpa
Ao descrever os “criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa”, Freud
inverte a relação causal. Observa que o sentimento de culpa é anterior ao ato criminoso e
tem como propósito fixar e atenuar a culpa.
“Por mais paradoxal que isso possa parecer, devo sustentar que o
sentimento de culpa se encontrava presente antes da ação má, não
tendo surgido a partir dela, mas, inversamente a iniqüidade
decorreu do sentimento de culpa” (FREUD, 1916/1996, p.347).
Para Freud, esse obscuro sentimento de culpa provinha do complexo de Édipo e
constituía uma reação às duas grandes intenções criminosas de matar o pai e de ter relações
sexuais com a mãe.
A idéia de que o sentimento de culpa descende do complexo de Édipo será
trabalhada por Freud em 1929, no artigo “O Mal-estar na civilização”. Nesse momento,
assinala que o sentimento de culpa foi adquirido através do parricídio originário descrito
em “Totem e tabu” (FREUD, 1913[1912]/1996) e remete-o à ambivalência de
sentimentos em relação ao pai.
Ao relacionar o sentimento de culpa com a ambivalência de sentimentos em relação
ao pai, Freud (1929/1996) constata que, depois de o ódio ter sido satisfeito pelo ato de
agressão, o amor veio para o primeiro plano; com ele, o remorso dos filhos pelo ato
executado e a criação do supereu por identificação com o pai morto. Ao supereu foi
atribuído o poder paterno como uma punição pelo ato de agressão que os filhos haviam
cometido contra ele e criaram-se as restrições destinadas a impedir a repetição do ato. A
persistência do sentimento de culpa cada vez mais fortalecido pelo recalque da
agressividade transferida para o supereu justificava-se pela repetição da inclinação à
agressividade contra o pai nas gerações seguintes.
“Ora, penso eu, finalmente podemos apreender duas coisas de
modo perfeitamente claro: o papel desempenhado pelo amor na
origem da consciência e a fatal inevitabilidade do sentimento de
culpa. Matar o próprio pai ou abster-se de matá-lo não é,
realmente, a coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão
fadados a sentir culpa [...]” (FREUD, 1929/1996, p.135).
Como podemos observar nas considerações freudianas sobre a constituição do
caráter e o complexo de castração, a identificação masculina ao seu sexo parte da ameaça
de castração e da ambigüidade das relações com a figura paterna.
A assunção de um tipo de caráter viril pelo homem estaria vinculada ao recalque do
complexo de Édipo, isto é, à interdição de fazer da mãe objeto de desejo e à identificação
com o pai como portador do falo. Porém, apesar de recalcadas, a ligação primordial com a
mãe e a ambigüidade de sentimentos em relação ao pai permanecem ativas no inconsciente,
constituindo o ponto de partida para a elaboração das fantasias masculinas.
Freud (1923/1996) havia demonstrado que esses sentimentos não deixam de
existir devido ao recalque, embora sejam forçados a permanecer no inconsciente.
Reconhecemos, aqui, uma estreita relação entre ‘os criminosos em conseqüência de um
sentimento de culpa’ e o posicionamento caracteristicamente masculino frente às fantasias
edípicas recalcadas.
A relação entre o complexo de Édipo e o sentimento de culpa pode ser considerada
a partir do mito de “Totem e tabu” (FREUD, 1913[1912]/1996). Ao descrever uma tribo na
qual apenas um o pai primordial tem o direito de usufruir de todas as mulheres e, por
esse motivo, é assassinado pelos filhos, Freud estabelece como evento fundador da lei a sua
própria transgressão. Dessa maneira, o assassinato do pai só pode ser proibido após ter sido
consumado, e é nesse registro que o desejo de ter acesso à mulher do pai – a mãe – vincula-
se à culpa por seu assassinato.
Nesse ponto, o mito de “Totem e tabu” se entrecruza com o Édipo. A figura do pai
torna-se o ponto de convergência do desejo com a lei, isto é, o ponto de referência para a
interdição, a identificação e a transgressão. Essas três operações decorrem da ameaça de
castração, ou seja, constituem operações da sexuação masculina.
Capítulo II
A LÓGICA FÁLICA
1. LACAN E A SIGNIFICAÇÃO DO FALO
1.1 A função significante do falo e os três tempos do Édipo
Segundo Lacan (1956-57/1995), o falo tem uma função constitutiva na dialética da
introdução do sujeito em sua existência e em sua posição sexual. Ele se estabelece como o
significante fundamental pelo qual o desejo do sujeito tem que se fazer reconhecer, quer se
trate do homem, quer se trate da mulher. Assim, o desejo tem no sujeito essa referencia
fálica, e é de sua articulação significante que se trata na assunção de uma posição sexual.
Atribuindo ao falo uma função significante, Lacan reestrutura toda a lógica
freudiana elaborada em “Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os
sexos”. Ao considerar o postulado freudiano de que a constatação da diferença sexual se
estabelece em torno da norma fálica, e não como diferença genital, Lacan (1958/1998) nos
lembra que, embora a distinção anatômica entre os sexos seja levada em conta, não é por
seu intermédio que se dá a constatação da diferença sexual.
Assim, ao indagar o que teria imposto a Freud o evidente paradoxo de sua posição
em relação ao falo – o que o teria levado a considerá-lo tanto na sexuação masculina quanto
na feminina Lacan (1958/1998) afirma que foi levado a promover como necessária a
articulação do falo com o significante.
Para Lacan, é como significante que o falo aparece como diferença. Assim, quando
Freud nos diz que não se trata da descoberta de dois sexos, mas do desvelamento da
significação fálica da presença e da ausência do pênis, é à função significante do falo que
ele se refere.
“Foi a partir dessa aposta [...] que fomos levados a certos
resultados: em primeiro lugar, promover, como necessária a
qualquer articulação do fenômeno analítico, a noção de
significante, como oposta a de significado na análise da lingüística
moderna. Com esta, nascida depois de Freud, ele não podia contar,
mas sustentamos que a descoberta freudiana ganha relevo
justamente por ter tido que antecipar suas fórmulas, partindo de um
campo onde não era possível esperar que se reconhecesse seu
domínio” (LACAN, 1958/1998, p.695).
Ao partir da significação fálica, Lacan aponta que é através da descoberta da
castração materna que a questão da diferença sexual se impõe ao sujeito. Assinala que “é aí
que se encontra, desde o começo, a posição de castração. Se os destinos são diferentes no
menino e na menina, é porque a castração é inicialmente encontrada no Outro” (LACAN,
1957-58/1999, p.361).
A constatação da castração materna impõe para meninos e meninas posições
diferentes frente ao complexo de Édipo e a castração. Apesar de a referência à norma fálica
ser comum a ambos os sexos, a relação que eles estabelecem com o complexo de Édipo e
com a castração não é simétrica. A primazia da lógica fálica implica a divisão entre os que
possuem o falo meninos e os que não o possuem e, por isso, são castrados meninas.
Fica evidente, portanto, que, apesar de a diferença ser dada de saída, não é em relação ao
corpo biológico que ela se situa: frente à diferença anatômica, o sujeito ressalta uma
operação simbólica, isto é, a castração feminina.
A divisão do complexo de Édipo em três tempos (LACAN, 1956-57/1995) indica
que a articulação significante se organiza em torno da descoberta do significante da falta
materna. A entrada no universo significante é veiculada pela mãe e, posteriormente, pela
instauração da metáfora paterna como lei.
No primeiro tempo do Édipo, estabelece-se a relação primordial com a mãe como
objeto simbolizado. Ao introduzir a presença-ausência como um elemento novo, que se
opõe ao caos inicial, a mãe se constitui como sujeito que significa a demanda. É do seu
estabelecimento como aquela que pode ou não satisfazer a demanda seja no registro da
necessidade, seja no registro da demanda de amor que se deduz que ela não é um objeto
primitivo, pois é articulada simbolicamente pelo sujeito.
Lacan (1957-58/1999) assinala que aquilo que se produz na relação com o objeto
mais primordialo objeto materno – efetua-se desde logo com base em signos. Tais signos
são constitutivos, isto é, permitem as fundações significantes. Portanto, a mãe, como
primeiro objeto simbolizado, tornar-se-á para o sujeito signo do desejo. Mediante a
instauração do desejo da mãe, o sujeito será levado a ser ou não aquele que vem atendê-lo.
É o que permite que ele se torne ou não um sujeito desejado.
Para Lacan (1957-58/1998), a expressão ‘criança desejada’ é o significante que
constitui primordialmente o sujeito em seu ser, isto é, a essa expressão corresponde a
introdução da mãe como sede do desejo. Toda a dialética da relação do filho com o desejo
da mãe se concentra em torno dessa expressão.
É no lugar de falo imaginário que o sujeito se posiciona na tentativa de tornar-se
desejado. A identificação com o falo imaginário como objeto do desejo da mãe é a manobra
realizada pelo sujeito para ter acesso ao desejo do Outro. Porém, o pai – que já está inserido
como uma presença velada no discurso da mãe posiciona-se contrariamente a essa
demanda.
Instaura-se, então, o segundo tempo do Édipo: o pai entra no circuito como privador
da mãe. Ao estabelecer que a mãe não pode fazer do filho o equivalente do falo que lhe
falta, o pai instaura a lei que a proíbe de reintegrar seu produto. Esse primeiro momento
atribui ao pai uma função essencial, uma vez que envolve uma primeira simbolização, isto
é, coloca em jogo o desejo da mãe e, ao mesmo tempo, sua interdição.
É como significante que o pai se insere na tríade simbólica fundamental
3.
Ele é o
significante mediante o qual o próprio significante se instaura como tal. Ao interditar a mãe
em seu gesto de fazer do filho o equivalente do falo, ele também impede o filho de se
identificar imaginariamente àquele. Assim, se o desejo do sujeito é simbolizado com o
auxílio do falocomo desejo do desejo do Outrosua identificação imaginária com o falo
é vetada pelo pai.
Contudo, ao operar tal interdição, o pai surge como potente; como aquele que tem o
falo que falta à mãe e por cujo intermédio o filho também pode vir a tê-lo. O sujeito passa
do desejo de ser o falo para o desejo de ter o falo. Trata-se do terceiro tempo do Édipo.
Para Miller (1998/1999), o que está em jogo no terceiro tempo do Édipo lacaniano é
antes a permissão, em boas condições, de ter o falo do que sua interdição. Uma vez que o
pai se faz preferir à mãe como aquele que tem o falo e pode dá-lo, reorganiza-se a relação
3
A tríade simbólica fundamental é formada pelos termos mãe – criança – pai.
do sujeito com o falo. Dessa maneira, ao partir do registro imaginário em direção ao
simbólico, o falo assume outra dimensão.
1.2 O paradoxo do falo simbólico na assunção da posição sexuada
Lacan (1957-58/1998) define a transposição do terceiro tempo do Édipo como o
momento em que a identificação ao seu sexo é assumida pelo sujeito. Para o menino, trata-
se de se identificar ao pai como possuidor de um pênis; para a menina, de reconhecer o
homem como aquele que possui o pênis que ela demanda. Assim, é no terceiro tempo do
Édipo que se coloca a diferenciação entre o homem e a mulher em relação ao Édipo e à
castração.
Ao pensarmos a assunção do simbólico a partir do complexo de Édipo, a questão da
identificação e de sua vinculação com as insígnias paternas apontam para os impasses da
assunção da posição sexuada pelas mulheres. Enquanto o homem assume a posição
masculina identificando-se ao pai como portador do falo e recalcando o Édipo, a menina
entra no Édipo ao constatar que é o pai quem possui o falo que ela demanda, identificando-
se com ele na esperança de que alguma coisa lhe seja dada. É, pois, na entrada do complexo
de Édipo que a menina acredita ser possível ter acesso ao falo que lhe falta.
Assim, para menina, a dificuldade está na entrada do complexo de Édipo; em
assumir sua posição de castrada e identificá-la na mãe. Porém, uma vez constatada a
castração materna, o pai se faz preferir à mãe como aquele que tem e pode dar o falo.
Através da decepção ocasionada pela constatação da castração, nela própria e na mãe, a
menina entraria no complexo de Édipo, localizaria no pai o falo que lhe falta, e identificar-
se-ia a ele, ou seja, não se trataria de uma identificação ao seu sexo.
Freud (1931/1996) já havia constatado que o pai intervém nesse contexto na posição
de substituto da mãe, ou seja, a menina acredita que ele tem o falo do qual a mãe a privou.
A localização do falo também aponta para um paradoxo na identificação sexual dos
meninos. Para eles, a dificuldade está na saída do Édipo. Colocam-se, então, as seguintes
questões: se a virilidade é assumida através da identificação com o pai como portador do
falo, como a privação se insere nesse contexto? Se o reconhecimento da privação do falo
possibilita para o menino a saída do Édipo, como operaria essa privação, uma vez que o
menino deverá reconhecer que não tem aquilo que ele tem?
Podemos perceber que, tanto para as meninas quanto para os meninos, o que está
em jogo é a localização do falo como simbólico. No caso das meninas, o falo simbólico se
coloca na entrada do Édipo; no caso dos meninos, na saída.
Ao analisar a posição masculina de identificação ao pai, Lacan nos lembra que a
relação do menino com o pai é dominada pelo medo da castração e comporta o paradoxo do
Édipo invertido: o pai é para o menino a figura, ao mesmo tempo, odiada e amada. O amor
ao pai proporciona o término do complexo de Édipo, uma vez que é com o pai, como
representante da potência do falo, que o sujeito se identifica, recalcando tanto seu ódio
quanto sua posição passiva diante dele, efeito do desejo de se fazer amar pelo pai. Esse é o
cerne da relação do pai com o ideal o eu. Ela garante ao menino que, no momento certo, ele
terá direito ao título de virilidade. Assim, a metáfora paterna desempenha seu papel ao
assegurar a instituição do falo como o significante que ficará guardado de reserva e se
desenvolverá mais tarde. Assume, enfim, a função de um título de propriedade virtual.
“No final das contas, um homem nunca é viril senão por uma série
infinita de procurações, que lhe provém de todos os seus ancestrais
varões, passando pelo ancestral direto” (LACAN, 1957-58/1998,
p.363).
Quanto à identificação da menina ao pai, alguns paradoxos são apontados. Uma vez
que é pela identificação ao pai que o sujeito pode localizar o falo em sua vertente
simbólica, colocam-se as questões: o que acontece quando uma mulher se identifica com o
pai? Como é possível a ela assumir sua posição sexuada através dessa identificação?
Nesse ponto, as dificuldades introduzidas pela fase fálica na identificação sexual das
mulheres tornam-se evidentes. Lacan (1957-58/1998) afirma que a vicissitude do que se
apresenta como complexo de masculinidade na mulher indica a necessidade de levar em
conta o elemento fálico.
Como assinala Miller (1998/1999), Lacan distingue o terceiro tempo do Édipo
feminino da maternidade ao postular que o falo imaginário do qual a mulher estaria privada
é muito diferente do falo que ela poderia ter ao se voltar para o pai. Nessa diferença reside
toda a novidade.
Será por uma operação simbólica que a mulher reconhecerá o pai como aquele que
tem e pode dar. Para Miller (1998/1999), a verdadeira mulher é aquela que sabe onde é
preciso buscá-lo; que não está, de modo algum, desorientada, apesar de sua relação com o
falo se estabelecer na ordem do extravio. Assim, no intervalo entre a constatação da
ausência do falo na sua vertente imaginária e sua localização no pai pela vertente simbólica,
o extravio se estabelece. É de um desvio de rota que se trata quando a menina constata a
ausência do falo, nela mesma e na mãe, e se volta para o pai na esperança de adquiri-lo.
Lacan (1957-58/1998) nos indica o impasse da identificação da menina com o pai
ao apontar que a formação do ideal do eu é o resultado do recalque do desejo edipiano.
Assim, o ideal do eu é o que permite a saída do Édipo, ou seja, ele é o resultado da
identificação com o pai.
Ao admitir que a formação do ideal do eu se através do recalque do desejo
edipiano, Lacan (1957-58/1998) não leva em consideração que, no caso das meninas, não é
na saída do Édipo que se coloca a identificação com o pai, mas, ao contrário, na entrada.
Ora, como conceber que seria no recalque do Édipo que ela assumiria um ideal do eu?
Nesse momento, Lacan chega ao mesmo impasse que Freud em sua constatação da
dessimetria entre os sexos. Toda a sua teorização acerca das insígnias do ideal harmoniza-
se muito bem à maneira masculina de se posicionar simbolicamente no Édipo; diz respeito
aos efeitos da ameaça de castração no recalque dos desejos edipianos e na formação do
ideal do eu. Porém, não é possível uma transposição para o modo feminino de
identificação, uma vez que a identificação feminina ao pai se dá na entrada do Édipo, e não
a partir de seu recalque.
Assim, ao apontar que o auge da situação edipiana é seu próprio ultrapassamento, e
que é na sua superação que o sujeito encontra a identificação satisfatória ao seu sexo, a
identificação da menina ao pai torna-se problemática.
Lacan assinala que o pai, como detentor do pênis real, intervém no terceiro tempo
do Édipo. Nesse momento, produz-se para a menina a virada que faz com que o amor se
transforme em identificação. Para Lacan, a transformação do amor em identificação não se
realiza por si mesma. O problema que se coloca diz respeito à própria lógica dessa
transformação: A identificação com o pai que então se produz articula-se como um
problema, ou até um mistério” (LACAN, 1957-58/1998, p.305).
Ao tentar dar conta desse paradoxo pela via simbólica, Lacan recai no mesmo
impasse encontrado por Freud (1919/1996) ao analisar o terceiro tempo da fantasia ‘bate-se
numa criança’: a saída feminina através da identificação com o pai seria da ordem de
elementos significantes e não acarretaria a transformação da menina em homem.
Assim, tal qual Freud, para Lacan, a identificação da menina ao seu sexo dar-se-ia
sob a máscara das insígnias da masculinidade, isto é, em torno da reivindicação fálica.
Porém, Lacan (1957-58/1998) admite que essa saída assenta-se sobre o que de
parcialmente indiferenciado em todo sujeito, razão pela qual não estaria diretamente
relacionada com a diferença sexual.
Esse é o impasse colocado pela tentativa de abordar a identificação do sujeito ao seu
sexo pela via da articulação significante do complexo de Édipo. Tal articulação introduz o
mesmo obstáculo com o qual se depara Freud na análise da feminilidade pelo viés do
penisneid: ao privilegiarmos a organização fálica, uma parte essencial da constituição da
posição feminina permanece enigmática.
2. O FALO EVANESCENTE E A RELAÇÃO ENTRE OS SEXOS
Ao retomar a análise da fase fálica pelo viés da angústia, Lacan (1962-63/2005)
realiza uma releitura do complexo de castração sob essa perspectiva. O estudo da angústia e
de sua vinculação com a castração ressignifica a relação de ambos os sexos com a falta
apontada pelo falo.
Tal ressignificação baseia-se no fato de que a ausência do falo, ao invés de ser uma
questão definidora da posição feminina perspectiva em jogo na noção de rochedo da
castração passa a ser considerada uma característica da posição masculina. Dessa
maneira, a ausência do falo passa a ser um problema para o homem que experimenta na
detumescência a sua negativização apresentando-se, na mulher, como uma questão
secundária.
A articulação da angústia com a castração promove uma torção nas considerações
sobre a relação que ambos os sexos estabelecem com a falta apontada pelo falo. Nessa
perspectiva, é no encontro com o Outro sexo que a falta se presentifica e que a angústia se
apresenta na sua especificidade em relação a cada sexo no encontro sexual, a falta
apontada pelo falo coloca-se de modo distinto para homens e mulheres.
Ao privilegiar a vertente da angústia de castração e ao associá-la à negativização do
falo na detumescência, Lacan (1962-63/2005) parte da idéia de que haveria um vínculo
entre a maturação do objeto a e a puberdade – uma vez que o complexo de Édipo tenha sido
ressignificado, poderá o sujeito, realmente, sustentar uma posição sexual.
Freud (1905/1996) defendia essa posição ao propor que haveria dois tempos na
constituição da escolha objetal do sujeito, ou seja, haveria, na adolescência, um retorno e
uma ressignificação dos vínculos objetais infantis. Nessa perspectiva, a puberdade seria o
momento em que se consolidaria a posição sexual do sujeito.
A crítica de Lacan à elaboração freudiana sobre o rochedo da castração es
embasada na idéia de que o falo se apresenta na conjunção sexual por seu negativo, ou seja,
o falo funciona como mediador em toda parte, exceto na fase fálica.
Assim, no caso dos homens, a relação entre o gozo sexual e a detumescência do
órgão aponta para a colocação do instrumento fora de combate, e vincula a falta do objeto
ao desejo.
No caso da mulher uma vez que ela não passa pela experiência da detumescência,
e, por conseguinte, não tem um acesso direto à negativização do falo − o vínculo da falta do
objeto com o desejo não se constitui como um necessário. Porém, isso não quer dizer
que a mulher não tenha relação com o desejo do Outro. Ao contrário, é por intermédio do
desejo do Outro que ela poderá ter acesso ao objeto fálico. Assim, para a mulher, a questão
da falta apontada pelo falo é reeditada na puberdade por uma via secundária, isto é, na
relação dela com o desejo do homem.
2.1: A detumescência e o desejo masculino
Ao postular que o gozo do orgasmo masculino coincide com a detumescência,
Lacan (1962-63/2005) aponta como característica essencial do humano o fato de que o
gozo não faz parte da wesenheit do organismo, isto é, não faz parte da natureza das coisas
no homem. Dessa maneira, ao invés de o orgasmo atestar a virilidade masculina pela
presença do falo como potência, ele se coaduna à saída de cena do órgão sexual. O falo é
promovido, por seu esvaecimento, à dimensão da falta.
Freud (1905/1996) já havia problematizado a questão ao apontar o paradoxo da
tensão da excitação sexual. Pergunta-se como relacionar a tensão desprazerosa produzida
pelo aumento da excitação no organismo com o sentimento de prazer ocasionado pelo
aumento da tensão que culmina com a descarga dos produtos sexuais. Assim, podemos
perceber, desde Freud, a relação entre o orgasmo e a detumescência do órgão:
“Esse último prazer é o de intensidade mais elevada e difere dos
anteriores por seu mecanismo. É inteiramente provocado pela
descarga: em sua totalidade, é um prazer de satisfação, e com ele se
extingue temporariamente a tensão da libido” (FREUD,
1905/1996, p.199).
Lacan (1962-63/2005) analisa essa desvinculação entre a intensificação orgástica e a
excitação do instrumento pelo viés da angústia provocada pelo esvanecimento do órgão no
momento do orgasmo. Enfatiza que a detumescência valoriza, na copulação, uma das
dimensões da castração:
“O fato de o falo ser mais significativo na vivência humana por sua
possibilidade de ser um objeto decaído do que por sua presença, é
isso que aponta para a possibilidade do lugar da castração na
história do desejo” (LACAN, 1962-63/2005, p.187).
A análise da castração em sua relação com a angústia aponta para a vinculação entre
a castração e a extração do objeto a no corpo. É a partir desse recorte que Lacan se
perguntará a que corresponde o complexo de castração.
Ao situar o valor assumido pelo falo em seu estado de esgotamento, Lacan aponta
que o objeto cai do sujeito em sua relação com o desejo. Assim, o falo negativo marcado
pela detumescência no funcionamento fisiológico da copulação humana é promovido, no
nível do sujeito, à dimensão de uma falta irredutível. Porém, ao funcionar na dimensão de
uma falta irredutível, o falo se apresenta de maneira distinta nos dois sexos.
No caso dos homens, o primeiro entre o desejo masculino e a castração se no
momento em que o a se desprende, no momento em que cai de i (a), a imagem narcísica.
Lacan (1962-63/2005) assinala que é nesse momento que a falta apontada pelo falo se
coloca para o desejo masculino pela primeira vez. Para entrar na dialética fálica, o menino
terá de reconhecer que não tem aquilo que ele tem. Contudo, essa experiência adquirirá
seu valor pleno ao ser ressignificada na relação com o gozo sexual do adulto.
Lacan (1962-63/2005) parte da experiência de circuncisão para evidenciar o modo
como a castração se apresenta, para o menino, em sua relação com a extração de uma parte
do corpo. Aproxima a ablação do prepúcio à extração do objeto a e aponta que tal operação
introduz uma espécie de ordem na falha constitutiva da castração primordial, promovendo a
normatização do objeto do desejo.
Assim, a circuncisão se apresenta em sua função de resto, daquilo que se corta do
corpo e que, por isso, coloca-se como irredutível à dimensão significante na qual o sujeito
está inserido. É essa extração que promove a passagem do nível da castração à miragem do
objeto do desejo, isto é, é na própria dimensão da perda da libra de carne que o sujeito pode
se constituir como desejante.
Lacan (1962-63/2005) retoma a análise da posição de a no momento da passagem
pelo (-φ) notação da angústia de castração para apontar como o desejo se constitui na
vertente masculina da sexuação. O (-φ) denota o esvaecimento da função fálica no nível em
que se espera que o falo funcione. Ao fazer orgasmo e angústia se equivalerem, Lacan
evidencia o que existe de estruturalmente enganador no ideal de realização genital e coloca
o desejo numa relação estruturalmente distinta da relação com o chamado parceiro natural.
“Posto que o homem jamais levará até o auge de seu desejo,
podemos dizer que o gozo do homem e o da mulher não se
conjugam organicamente. É na medida em que o desejo do homem
fracassa que a mulher é normalmente levada, por assim dizer, à
idéia de ter o órgão do homem, uma vez que ele seria um
verdadeiro amboceptor, e é a isso que se chama falo. É por não
realizar o encontro dos desejos, a o ser em seu desvanecimento,
que o falo se torna o lugar comum da angústia” (LACAN, 1962-
63/2005, p.290).
Para enfatizar a relação do homem com o desejo, Lacan (1962-63/2005) utiliza o
mito da costela de Adão. Ao propor que aquilo que o homem busca na mulher é a costela
que lhe foi retirada, evidencia que aquilo que ele procura é o (-φ) que lhe falta, e que
comporta o paradoxo de que nunca esteve lá.
Seguindo esse raciocínio, Lacan (1962-63/2005) postula que o masoquismo
feminino é uma fantasia masculina, uma vez que coloca em jogo o objeto como condição
do desejo. Nessa fantasia, o objeto encobre o fato de que o gozo masculino é sustentado por
algo que determina a própria angústia, o (-φ). Assim, ao supor que o falo que lhe falta
encontra-se do lado da mulher, o homem a coloca como objeto causa do desejo e encobre
sua angústia.
O desejo do homem consiste, pois, em fazer brotar o que deve existir na mulher no
suposto lugar da falta. Para Lacan, é disso que o homem precisa fazer o luto:
“Ele tem que fazer o luto de encontrar em sua parceira feminina
na medida em que ela mesma se colocou como uma parceira
feminina, sem saber muito bem o que estava fazendo sua própria
falta, (-φ), a castração primária, fundamental no homem [...]”
(LACAN, 1962-63/2005, p.219).
Ao colocar a mulher no lugar de objeto causa do desejo, e, com isso, encobrir a
angústia provocada pelo (-φ), presentificado como castração, o homem inaugura um modo
de suplência para a ausência da relação sexual. Assim, é pela incidência da angústia de
castração caracterizada pela negativização do falo na detumescência que o desejo se
funda para o homem como falta.
A fantasia aparece, portanto, como o modo privilegiado pelo qual o desejo do
sujeito se faz reconhecer na escolha de uma parceira sexual. Por intermédio da fantasia, o
homem procura na mulher o falo que lhe falta. Assim, podemos perceber que a fantasia está
totalmente referida à norma fálica, ou seja, ela se caracteriza por ser o modo masculino de
fazer suplência à relação sexual que não existe.
2.1.2 O objeto (a) mulher na lógica masculina da sexuação
Em seu texto sobre o narcisismo, Freud (1914/1996) aponta que existem
diferenças fundamentais entre o sexo masculino e o feminino no que se refere ao tipo de
escolha objetal. Para ele, apesar de tais diferenças não serem universais, o amor objetal
completo, do tipo de ligação, é característico do indivíduo do sexo masculino.
Assim, o homem exibiria a acentuada supervalorização sexual que se origina de seu
próprio narcisismo infantil, e transferiria esse narcisismo para o objeto sexual.
Ao analisar a relação entre o amor e o narcisismo, Freud (1921/1996) parte da idéia
de que, no menino, o complexo de Édipo favorece a unificação das pulsões sexuais em
torno de um único objeto a mãe e a identificação ao pai como modelo. Contudo, por
influência da ameaça de castração, esses impulsos sexuais sucumbem ao recalque e a
criança permanece ligada às figuras parentais por ‘impulsos inibidos em seus objetivos’.
Essas primitivas tendências sensuais, apesar de recalcadas, permanecem preservadas
no inconsciente, de maneira que a totalidade da corrente original continua a existir. Com o
advento da puberdade, os impulsos amorosos e sensuais separados pelo advento do
recalque tornam a se conjugar, estabelecendo impulsos novos e muito fortes dirigidos a
objetivos diretamente sexuais.
Freud chama-nos à atenção para o fato de que, quando se está amando, o objeto
amado sofre uma supervalorização sexual, ou seja, ele se torna idealizado:
“A tendência que falsifica o julgamento nesse respeito é a da
idealização. Agora, porém, é mais fácil encontrarmos nosso rumo.
Vemos que o objeto está sendo tratado da mesma maneira que
nosso próprio ego, de modo que, quando estamos amando, uma
quantidade considerável de libido narcisista transborda para o
objeto” (FREUD, 1921/1996, p.122).
A escolha amorosa masculina torna-se uma maneira indireta de satisfazer o
narcisismo perdido da infância, uma vez que o objeto serve de sucedâneo para o inatingido
ideal do eu amamos por causa das perfeições que gostaríamos de atingir através do
objeto.
Como foi ressaltado anteriormente, para o menino, o primeiro entre o desejo e a
castração se dá quando o objeto a se desprende da imagem narcísica. Lacan (1962-63/2005)
nos adverte para o fato de que o menino tem de aprender a riscar do mapa de seu
narcisismo o papel desempenhado por sua ‘torneirinha problemática’. Ele tem de
reconhecer que aquilo que ele tem não é nada se comparado ao que tem o pai e os irmãos
mais velhos. Essa dialética da comparação permitirá ao sujeito aceitar a castração e adiar,
mediante um ‘título de propriedade virtual’, a assunção de sua virilidade.
Na puberdade, essa questão é mais uma vez colocada, e o sujeito é chamado a
assumir uma posição frente ao encontro com o Outro sexo. Para Lacan (1962-63/2005), é
na relação do homem com o a que se ao objeto de desejo seu status supremo em sua
relação com a castração. Assim, seria na puberdade que o objeto a, como causa do desejo,
colocar-se-ia verdadeiramente para o sujeito no encontro com o Outro sexo.
É por essa via que a detumescência atualiza o (-φ) como angústia de castração e
possibilita ao homem dirigir-se para uma mulher colocada no lugar de objeto causa do
desejo. É por acreditar que aquilo que lhe falta encontra-se do lado da mulher que o homem
se interessa por ela.
Como enunciava Freud ao considerar o enamoramento masculino, o homem atualiza
no desejo pela mulher o seu narcisismo originário, acreditando poder suprir nesse encontro
a falta que, ao mesmo tempo, o assola e constitui.
A posição masculina só pode ser assumida pagando-se o preço de reconhecer que
não se tem aquilo que se tem. A lógica fálica é inaugurada na própria falta apontada pela
presença negativa do falo. Assim, ali onde é esperado, o objeto fálico se apresenta pelo
negativo, ou seja, onde o falo não pode faltar, ele pode estar presente pela falta. Essa é a
verdade da angústia de castração.
Lacan (1972-73/1985) conclui que “para o homem, a menos que haja castração,
quer dizer, alguma coisa que diga não à função fálica, não nenhuma chance de que ele
goze do corpo da mulher [...]” (p.97).
É do papel do corpo da mulher e de sua relação com o gozo masculino que Lacan
parte em seu estudo sobre a posição da mulher como objeto a para o desejo de um homem.
Ao considerar o masoquismo feminino como uma fantasia masculina, eleva o objeto à
condição de causa do desejo e explora o gozo fálico no homem.
Suas considerações o levam a concluir que o gozo sexual é fálico, isto é, não se
relaciona ao Outro como tal. Para Lacan (1972-73/1985), gozar tem como propriedade
fundamental o fato de que o corpo de um goza com a parte do corpo do Outro, ou seja, o
gozo sexual não diz respeito ao outro e sim ao falo.
Essa idéia estava presente desde o seminário sobre a angústia (LACAN, 1962-
63/2005), quando o (-φ) é situado na interseção entre o desejo masculino e o feminino. Para
Lacan (1962-63/2005), o campo abarcado pelo homem e pela mulher coincide no ponto
em que seus desejos os levam à falta apontada pelo falo. É justamente no ponto em que o
falo é atingido que um se aliena do outro.
“O amor idealista presentifica a mediação do falo como (-φ). O (-
φ) é, nos dois sexos, aquilo que eu desejo, mas é também o que eu
posso ter como (-φ). É esse menos que se revela o ponto médio
universal no campo da conjunção sexual” (LACAN, 1962-63/2005,
p.294).
Assim, a mulher pode muito bem servir ao homem como símbolo da onipotência
fálica masculina. Para Lacan (1962-63/2005), o modo mais comum de sedução entre os
sexos é a mulher oferecer ao desejo do homem o objeto da reivindicação fálica – objeto não
detumescente fazendo de seus atributos femininos os sinais da onipotência do homem. É
por essa via que a mulher serve à fantasia masculina do masoquismo feminino.
Ao problematizar o masoquismo, Freud (1924/1996) assinala que ele se apresenta
sob três formas: como condição imposta à excitação sexual, como expressão da natureza
feminina e como norma de comportamento. Examinando o masoquismo feminino, conclui
que as fantasias presentes nesse tipo de masoquismo têm como característica uma posição
passiva diante do outro, isto é, uma posição feminina, e significam ser castrado, ser
copulado ou dar à luz um bebê.
Apesar de descrever o masoquismo feminino como uma postura passiva frente ao
outro, Freud (1931/1996) já nos advertia que a passividade não equivale à feminilidade. A
posição passiva seria o modo feminino de se posicionar em relação ao outro sexo. Essa é a
via seguida por Lacan (1957-58/1999) ao assinalar que a sustentação de uma posição
passiva exige muita atividade.
Assim, o masoquismo feminino remete ao tamponamento da falta no Outro; diz
respeito mais ao ideal masculino de encobrir a angústia buscando o objeto que falta na
mulher
4
do que propriamente a uma posição constitutivamente feminina.
2.2: A constituição do objeto a na mulher
Lacan (1962-63/2005) concebe a angústia como intermediária entre o gozo e o
desejo. Ao promover essa escansão, evidencia que homens e mulheres se situam de modos
diferentes nessa divisão.
Ao propor que o gozo é profundamente independente da articulação do desejo,
Lacan (1962-63/2005) nos diz que a mulher revela-se superior no campo do gozo, uma vez
que seu vínculo com o nó do desejo é bem mais frouxo que o do homem.
A partir dessa consideração, abre-se o caminho para uma torção na relação da
mulher com a falta apontada pelo falo. Na mulher, a presença do objeto a não está
primordialmente ligada ao (-φ) objeto causa do desejo do homem, mas se constitui na
dependência da demanda, ou seja, é anterior à percepção da castração. Lacan põe em relevo
o difícil problema da relação com o a na mulher:
“O fato de nada terem a desejar no caminho do gozo não resolve
para elas, em absoluto, a questão do desejo, justamente na medida
em que o a exerce todo o seu papel para elas, tal como para nós”
(LACAN, 1962-63/2005, p.200).
No desenvolvimento feminino, a falta não se articula no nível em que ela é
procurada pelo desejo do homem. Para a mulher, não haveria uma relação direta entre a
presença do objeto a e a articulação do desejo.
4
O papel da mulher como objeto fetiche é ressaltado por Freud em 1927, no artigo “Sobre o fetichismo”.
Nele, Freud analisa o paradoxo da castração materna na sexuação masculina. Lacan (1956-57/1995) retoma a
questão enfatizando que o pênis que falta à mãe, e que fundamenta a análise freudiana do fetichismo, não é o
pênis real, mas o falo simbólico. Evoca, ainda, as estruturas elementares de parentesco, formuladas por Lévi-
Strauss (1967/1982), para enfatizar que aquilo que Freud postula em “Totem e tabu” é a função da interdição
do incesto como forma de regular as trocas sociais. Ao estabelecer as estruturas elementares de parentesco,
Lévi-Strauss enfatiza justamente a figura da mulher como moeda de troca entre os clãs, e, portanto, como
representante do falo simbólico, o qual só se inscreve como aquilo que falta.
“Mas isso não quer dizer que ela deixe de ter relação com o desejo
do Outro. Ao contrário, é justamente o desejo do Outro como tal
que ela enfrenta, ainda mais que, nesse confronto, o objeto fálico
chega a ela em segundo lugar, e na medida em que desempenha
um papel no desejo do Outro” (LACAN, 1962-63/2005, p.202).
Para Lacan (1962-63/2005), é na dependência da demanda que o objeto a se
constitui para a mulher. Através da queda do a, o Outro se constitui como barrado, e a
mulher tem acesso ao desejo como aquilo que falta. É na percepção de que algo falta ao
Outro e, portanto, coloca-o como castrado, que a angústia precipita a entrada do sujeito na
dimensão desejante.
Lacan (1962-63/2005) nos lembra que, para Freud, a reivindicação do pênis
permanece, nas mulheres, essencialmente ligada à relação com a mãe, isto é, com a
demanda. É nesse sentido que a falta do falo intervém na dialética feminina da
reivindicação. Como apontava Freud ao considerar a constatação da diferença anatômica
entre os sexos, a menina faz “seu juízo e toma sua decisão num instante. Ela o viu, sabe que
não o tem e quer tê-lo” (FREUD, 1925/1996, p.281).
Lacan aponta que a relação da mulher com o objeto a constitui-se no nível do ter, ou
seja, é pré-castradora. Para a menina, a falta do falo não é sentida como uma perda, mas
como algo que nunca esteve lá e, por isso, é demandado à mãe.
Assim, a constituição do objeto do desejo feminino passa pela constatação de que
ela não tem o falo. A mulher sabe de saída que, na relação com o desejo, está em jogo ter
ou não ter o objeto. A partir dessa constatação, a menina se dirige para a mãe primeiro
Outro do sujeito – na esperança que ela possa lhe dar o falo que falta. Contudo, ao perceber
que a mãe também não tem o falo, a menina promove o falo à dimensão de objeto do desejo
por excelência.
É da análise da relação da mulher com o desejo do Outro que Lacan (1962-63/2005)
parte ao abordar a angústia feminina. Ao propor que a mulher tenta a si mesma tentando o
Outro, ele nos diz que o que está em jogo na demanda fálica feminina é saber qual é o
objeto do desejo do Outro. É o desejo do Outro que lhe interessa.
A análise da relação entre o desejo feminino e o desejo do Outro se coaduna com a
idéia de que a relação da mulher com a castração não se organiza como uma etapa primária
na constituição de seu desejo. Como, na mulher, a função fálica não passa pela
negativização do falo na deumescência, o objeto fálico chega a ela em segundo lugar,
isto é, à medida que desempenha um papel no desejo do homem.
Segundo Lacan (1962-63/2005), na mulher, a angústia só tem lugar diante do desejo
do Outro, uma vez que ela não sabe muito bem o que ele encobre. Por saber, desde o início,
que o falo não está onde se espera, isto é, do lado do Outro, a mulher tem uma relação mais
verdadeira com a falta.
É por meio de sua relação mais direta com a falta apontada pelo falo que a angústia
surge para a mulher no momento em que ela é colocada pelo desejo do homem no lugar de
objeto a. Se, por um lado, o homem localiza o (-φ) no corpo da mulher como objeto causa
do desejo e encobre sua angústia, por outro, é esse direcionamento do desejo do homem
para ela como objeto que a precipita na situação angustiante. Segundo Lacan, quando
“sucede à mulher sentir-se realmente como o objeto que está no centro de um desejo, pois
bem, acreditem, é aí que ela foge de verdade” (LACAN, 1962-63/2005, p.213).
Para Lacan (1962-63/2005), a mulher se interessa pela castração como tal à
medida que ela participa dos problemas do homem, isto é, quando o homem, ao se deparar
com a falta apontada pelo falo, volta-se para ela e a coloca na posição do objeto que
preencheria essa falta.
É por intermédio da constatação de que algo falta ao Outro que a mulher pode ter
acesso ao desejo. O que está em jogo no desejo feminino é precisamente a castração do
Outro como condição de seu desejo. Assim, o que interessa à mulher no jogo amoroso é
justamente a castração do homem, pois é como castrado que ele a eleva à condição de
objeto do desejo.
A angústia provém do consentimento em se fazer objeto causa do desejo para um
homem. É no exato ponto em que seu desejo se coaduna ao desejo do Outro e presentifica a
falta do falo que a angústia se precipita para a mulher.
Para Lacan, o fato “de o falo não se encontrar onde é esperado, ali onde é exigido,
ou seja, no plano da mediação genital, é o que explica que a angústia seja a verdade da
sexualidade [...]” (LACAN, 1962-63/2005, p.293). Esse é o paradoxo da posição desejante:
no cerne da experiência do desejo, o que se coloca é o equívoco; o encontro com o outro
sexo revela-se sempre faltoso e desvela o falo na posição de (-φ).
2.2.1 A negativização do falo na mulher
Ao analisar o tipo de escolha objetal na mulher, Freud nos diz que as mulheres,
“especialmente se forem belas ao crescerem, desenvolvem certo autocontentamento que as
compensa pelas restrições sociais que lhe são impostas em sua escolha objetal” (FREUD,
1914/1996, p.95). Assim, conclui que as mulheres teriam uma tendência a amar apenas a si
mesmas, e que suas necessidades não se achariam na direção de amar, e sim de serem
amadas.
Segundo Freud (1914/1996), a escolha objetal do tipo narcisista poderia levar a
mulher a seguir diferentes vias: amar o que ela própria é; amar o que ela própria foi; o que
ela gostaria de ser; ou alguém que foi alguma vez parte dela mesma. Assim, a escolha
objetal feminina estaria totalmente auto-referida, uma vez que aquilo que busca através do
desejo do Outro é o falo que ela não tem.
Para Freud (1937/1996), com o advento da puberdade, a demanda fálica seria
reeditada. Porém, o falo seria substituído pelo desejo de um filho e de um marido portador
de um pênis. Resta, contudo, um impasse: ao optar por essa saída, a mulher não resolve sua
questão com a inveja do pênis e o desejo feminino permanece enigmático. É o que leva
Freud a se perguntar: O que quer uma mulher?
Lacan (1962-63/2005) enfatiza que, na lógica fálica, não é o ter ou o não ter o pênis
que está em jogo, mas a incidência do significante fálico. Dessa maneira, o falo, como
significante da falta gerada pela linguagem, apresenta-se para ambos os sexos na dimensão
da falta. Ao promover o falo a significante da falta por excelência, Lacan supõe que o falo
apresenta-se por sua ausência tanto no homem como na mulher.
A falta fálica se faz presente para o homem em sua relação com a angústia de
castração. Do lado do homem, a função do pênis é presentificar o objeto a como falta. É no
lugar dessa falta, apontada pela negativização do falo na detumescência, que o homem
coloca a mulher como objeto causa do desejo. Segundo Lacan (1962-63/2005), o que a
mulher nessa homenagem do desejo masculino é a possibilidade de o objeto vir a ser
uma propriedade sua. Como preconizava Freud, o que a mulher busca no parceiro é o
acesso ao falo que ela não tem.
Assim, se levarmos em consideração que a mulher consente em se fazer objeto do
desejo masculino, acreditando que assim terá acesso ao objeto que falta ao homem,
reconheceremos que a dialética fálica se insere em outra dimensão: passa do ‘ter’ ou não
‘ter’ o falo para o ‘ser’ o falo.
Lacan define essa passagem como comédia do ato da copulação, uma vez que, por
mais que a relação entre os sexos pareça girar em torno do ‘ser’ e do ‘ter’ o falo, o que está
realmente colocado é a impossibilidade da relação no campo sexual.
A mulher substitui a demanda de ter o falo pela possibilidade de se fazer passar por
falo. Ao colocar-se como equivalente ao falo que ela procura, a mulher situar-se como
objeto do desejo do homem e, por essa via, protege-se da falta do falo nela mesma e no
outro.
“E isso pela intervenção de um parecer que substitui o ter, para, de
um lado, protegê-lo e, de outro, mascarar sua falta no outro, e que
tem como efeito projetar inteiramente as manifestações ideais ou
típicas do comportamento de cada um dos sexos, até o limite do ato
da copulação, na comédia” (LACAN, 1958/1998, p.701).
Para Lacan (1957-58/1999), ao se colocar na posição de parecer ser o falo que falta
ao homem, a mulher mascara a ausência do falo nela mesma e em seu parceiro. Porém, ao
assumir essa posição, ela experimenta a verwerfug da identificação subjetiva, uma vez que
se faz passar por aquilo que não é, e que sabe que não existe. É nesse ponto que o desejo do
Outro a precipita na situação angustiante.
A saída feminina frente à ausência apontada pelo falo, nela mesma e no seu
parceiro, é consentir em se fazer parecer o falo que falta. Contudo, é nesse movimento de
tamponar a falta, sacrificando sua própria identificação subjetiva, que a mulher desvela que
a verdade da angústia é a impossibilidade de encontrar o falo de outra maneira que não seja
por sua ausência.
Capítulo III
A ÉTICA SEXUAL
1. A ASSUNÇÃO DA POSIÇÃO SEXUAL
1.1 A inscrição significante do corpo
Ao fazer o movimento pulsional coincidir com o funcionamento da dialética do
desejo, a psicanálise põe em relevo que o corpo do sujeito se constitui a partir de seu
atravessamento pela linguagem. Assim, no tocante ao desejo, a ética psicanalítica evidencia
que a sexualidade humana não parte da evidência anatômica do corpo, nem tem por
finalidade o encontro natural com o parceiro do outro sexo.
Ao colocar, no centro de sua investigação, o desejo como tendência, Freud
(1915/1996) permite-nos apreender o que está em jogo na economia pulsional. O lugar
concedido ao desejo evidencia que se trata, na economia pulsional, não da satisfação das
necessidades, mas das vicissitudes que a pulsão engendra.
Ao distinguir os estímulos pulsionais dos estímulos fisiológicos, Freud (1915/1996)
assinala que a pulsão, como força constante proveniente do interior do organismo, não está
sujeita a mecanismos de fuga ou evitação, nem possui um objeto pré-determinado. O corpo
não seria, pois, um dado puramente biológico, a ser regulado pela satisfação das
necessidades, e sim a sede de pulsões regidas pela dialética do desejo.
A crítica lacaniana à tradução do termo alemão trieb por instinto baseia-se
justamente na letra do texto freudiano. Lacan salienta que é a especificidade do conceito de
pulsão que permite a Freud elaborar uma economia pulsional do desejo, na qual está em
jogo o atravessamento do corpo pela linguagem.
“Daí a raridade do termo instinto em Freud trata-se sempre de
pulsão, Trieb, termo técnico dado a esse desejo na medida em que
a fala o isola, fragmenta-o e o coloca na relação problemática e
desarticulada com seu objetivo à qual chamamos direção da
tendência [...]” (LACAN, 1957-58/1999, p.455).
Lacan (1958∕1998) afirma que é o falo, como significante, que a razão do desejo.
Contudo, chama-nos à atenção para o fato de que o acesso ao desejo é possível através
da intermediação do Outro. Como apontamos anteriormente, o sujeito estrutura seu desejo a
partir do desejo do Outro. Somente por intermédio da castração do Outro tem o sujeito
acesso ao falo como o significante da falta e, por conseguinte, à sua própria castração.
A incidência do complexo de castração tem um papel fundamental na inscrição do
significante no corpo, uma vez que embora o corpo seja marcado pela diferença
anatômica é em termos significantes que essa diferença se constitui. Ao inscrever a
diferença apontada pelo falo em termos significantes, o complexo de castração promove o
atravessamento do corpo pela linguagem.
Para Lacan (1962-63/2005), o atravessamento do corpo pela linguagem tem como
condição a extração de um pedaço do corpo, que cai e assume a função de objeto a, isto é,
um resto ineliminável pela articulação significante. É a extração desse pedaço do corpo que
promove a passagem do nível da castração à miragem do objeto do desejo. É na própria
dimensão da perda da libra de carne que o sujeito pode se constituir como desejante.
Lacan reintroduz em suas considerações a célebre máxima freudiana segundo a qual
“a anatomia é o destino” (FREUD, 1924/1996, p.197). Atribui ao termo anatomia seu
sentido estrito, valorizando a função de corte. Nesse sentido, apela para a grafia ana-tomia
e assinala:
“Tudo o que sabemos de anatomia está ligado, de fato, à
dissecação. O destino, isto é, a relação do homem com essa função
chamada desejo, só adquire toda a sua animação na medida em que
é concebível o despedaçamento do próprio corpo, esse corte que é
o lugar dos momentos de eleição de seu funcionamento” (LACAN,
1962-63/2005, p.259)
O atravessamento do corpo pela linguagem evidencia que a constituição do sujeito
e, conseqüentemente, sua inserção no simbólico, se a partir de uma perda irredutível à
dimensão significante. É através da marca constituída pela extração de um pedaço do
corpo, no qual se produz o objeto a como resto irredutível à significantização, que se pode
fundar o encadeamento significante.
Assim, a própria noção de corpo, em psicanálise, é profundamente subvertida pela
incidência da linguagem. Não uma anterioridade do corpo, mas, antes, da falta que
constitui a linguagem e que está dada para todo sujeito que fala.
Uma vez que a própria diferença anatômica se constitui através do atravessamento
do corpo pela linguagem, a assunção de uma posição sexuada não pode ser concebida como
um dado natural.
Partindo dessas considerações, sustentamos a hipótese de que a relação do sujeito
com a diferença anatômica se constitui por um posicionamento ético. Se a própria
construção de um corpo depende da maneira como o sujeito se coloca frente à castração
constitutiva da linguagem, é na dimensão estrutural que se coloca a assunção da posição
sexuada por um sujeito.
Essa é a dimensão ética da diferença sexual: a posição sexuada não se constitui por
uma adequação natural ou por uma escolha subjetiva, mas por uma exigência de estrutura.
1.2 A posição sexuada
A análise da posição sexuada adotada pelo sujeito frente à diferença anatômica entre
os sexos remete à questão do desejo e do gozo. Ao diferenciá-los e situar a angústia como
intermediária entre eles, Lacan (1962-63/2005) nos diz que haveria uma diferença
fundamental no modo como homens e mulheres lidam com as questões do desejo e do
gozo.
Para Lacan (1962-63/2005), o desejo tem sempre uma referência fálica, razão pela
qual aponta sempre para uma falta. Contudo, a relação que homens e mulheres estabelecem
com a falta apontada pelo falo não é da mesma ordem.
Para o homem, o desejo figura como um modo de articular a falta do falo a um
objeto. Com isso, haveria uma relação direta entre a presença do objeto e a articulação do
desejo. para a mulher, a relação com a falta apontada pelo falo se daria a partir do
encontro com o desejo do Outro. Somente a partir do desejo do Outro poderia a mulher
encontrar um objeto conveniente para articular o seu desejo.
Em relação ao gozo, Lacan (1962-63/2005) afirma que as mulheres teriam um
acesso mais direto. O gozo feminino seria superior ao dos homens, uma vez que seu laço
com o desejo não constitui um nó necessário.
Para Lacan (1962-63/2005), o homem tem acesso ao gozo a partir do objeto
como condição do desejo. Dessa maneira, o (-φ) circunscreve para o homem tanto sua
relação com o desejo quanto sua relação com o gozo. Do lado masculino, o gozo se
caracteriza por ser inscritível, localizável, isto é, por estar em relação com o falo.
O gozo do homem se circunscreve a partir da inscrição, no corpo, do significante
fálico. O acesso ao gozo se articula com a falta apontada pelo falo graças à convergência
entre orgasmo e detumescência, o gozo masculino é limitado pelo falo.
É a linguagem que insere o registro do gozo como sexual. Lacan diferencia, a partir
de seu seminário Mais, ainda (LACAN 1972-73/1985), o gozo sexual do Outro gozo. O
gozo sexual seria uma limitação do gozo, uma vez que ele depende do significante.
Lutterbach Holck (2006) nos diz que Lacan retoma a ética e a questão freudiana
sobre “o que quer uma mulher” para elaborar as fórmulas da sexuação e o gozo feminino.
Do lado feminino, a linguagem, embora permita a inscrição significante do corpo,
não dá conta da sexualidade da mulher. O gozo fálico não faz limite ao gozo feminino, uma
vez que falta um significante que especifique ‘A mulher’. Assim, o gozo feminino tem algo
a mais que não se inscreve em termos significantes, comporta um indizível.
1.2.1 A lógica masculina
Ao descrever a relação do menino com o pai, Freud (1923/1996) nos diz que este
último desempenha um papel paradoxal no complexo de Édipo: como objeto de
identificação, permite ao menino direcionar seu desejo para uma mulher; como operador da
interdição do incesto, impele o menino a renunciar à e como objeto do desejo e a
recalcar seus impulsos eróticos.
Para Freud (1910/1996), a escolha objetal masculina seria influenciada pelo desejo
do menino pela mãe na condição de mulher desejada pelo pai. No texto “Um tipo especial
de escolha de objeto feita pelos homens”, afirma que a escolha de uma mulher como objeto
de amor origina-se das fixações infantis do menino com a mãe. Assim, a mulher escolhida
como objeto de desejo deriva do protótipo materno, do romance familiar do homem em
questão.
A escolha objetal masculina seria regida pela identificação do menino com a
posição viril do pai, uma vez que este último investe o objeto – a mãe – com as insígnias do
desejo de um homem por uma mulher.
Ao descrever os dois tipos de caráter relacionados com o Édipo − os arruinados pelo
êxito e os criminosos em conseqüência de um sentimento de culpaFreud (1916/1996)
ressalta quão paradoxal é a identificação do menino com a posição viril do pai.
Os ‘arruinados pelo êxito’ apontam para o paradoxo entre a identificação ao pai
como portador do falo e a impossibilidade de ter acesso a esse falo que falta.
Lacan (1957-58/1999) problematiza essa questão ao apontar que, no momento da
saída normatizadora do Édipo, o menino reconhece não ter aquilo que tem. O acesso ao
simbólico exige que o falo seja colocado na dimensão da falta. Lacan nos adverte que a
“função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que substitui o primeiro
significante introduzido na simbolização, o significante materno” (LACAN, 1957-58/1999,
p.180). Assim, o pai da identificação viril é o pai como metáfora, aquele que se coloca no
lugar da mãe como portador do falo.
A função significante do Nome-do-Pai é conferir autoridade à lei, ou seja, o Nome-
do-Pai é o significante que dá esteio à lei, que promulga a lei. Lacan assinala que “[...] o pai
como aquele que promulga a lei é o pai morto, isto é, o símbolo do pai. O pai morto é o
Nome-do-Pai, que se constrói aí sobre o conteúdo” (LACAN, 1957-58/1999, p.152).
Assim, o que está em jogo na operação simbólica do complexo de Édipo é a posição
estrutural do Nome-do-Pai na função do pai da horda, isto é, no lugar da Lei. O que os
‘arruinados pelo êxito’ nos ensinam é que a posição de exceção do pai da horda implica a
impossibilidade de se ter acesso ao falo positivado. se pode ter o falo como significante
da falta.
O segundo tipo de caráter descrito é composto pelos ‘os criminosos em
conseqüência do sentimento de culpa’. A descrição desse tipo de caráter evidencia a relação
problemática entre interdição, identificação e transgressão.
Coelho dos Santos (2006) nos diz que o que está em jogo na vertente masculina da
sexuação é o imperativo de renuncia. Trata-se de uma relação problemática do sujeito com
a identificação e a vontade de transgressão.
Para o homem, a relação entre interdição, identificação e transgressão é paradoxal:
por um lado, o que está na base do horror ao incesto é o medo da castração; por outro, a
identificação ao pai e, por conseguinte, a assunção de uma posição viril, implica o desejo
pela mãe como mulher do pai.
É justamente pelo fato de o pai ser seu objeto de identificação que o menino
direciona seu desejo para mãe, ou seja, a mãe pode ser desejada porque representa a
mulher desejada pelo pai. Assim, a fantasia figura para o menino como um meio de ter
acesso à posição viril. Porém, é necessário que ele renuncie ao desejo incestuoso pela mãe e
faça de outra mulher objeto causa de seu desejo.
Ao descrever as escolhas objetais masculinas, Freud (1910/1996) afirma que a
escolha de uma mulher como objeto de amor origina-se das fixações infantis do menino
com a mãe. Chama-nos à atenção para alguns casos em que a escolha objetal aponta para
situações que estão em aparente contradição com a imagem da mãe ‘santa’. Como exemplo
desses casos, menciona a escolha da mulher comprometida e da prostituta. Porém, aponta
que a contradição é apenas aparente, que, nos dois casos, estão em jogo as relações do
menino no complexo de Édipo, ou seja, com a mãe como objeto proibido ao seu desejo e,
ao mesmo tempo, como parceira sexual do pai.
Ao retomar a questão, Lacan (1972-73/1985) aponta que é à medida que o pai figura
como exceção à castração, isto é, como o único que tem o direito de fazer da mãe o objeto
de seu desejo, que o sujeito pode se identificar e acatar a interdição por ele veiculada.
Assim, é necessário que haja ao menos um para quem a castração não esteja colocada para
que o homem se reconheça como castrado e possa fazer de uma mulher objeto de seu
desejo.
O que os ‘criminosos em conseqüência do sentimento de culpa’ demonstram é que a
vontade de transgressão é o único meio de se ter acesso à posição viril. Não é a realização
da fantasia que está em jogo, mas o reconhecimento do desejo do pai por uma mulher.
Os tipos de caráter acima descritos demonstram a relação paradoxal do homem com
o pai como ponto de convergência do desejo com a lei.
No que diz respeito ao gozo, o que o mito de “Totem e tabu” indica é que o pai
primordial uma vez que ele não é castrado pode gozar. Quanto aos filhos, eles se vêem
divididos entre a vontade de gozar como o pai e o temor de serem por ele castrados.
André (1987) assinala que, para Freud, o complexo de Édipo e o complexo de
castração intervêm para fazer barreira ao gozo, o que implica o impasse da ameaça de
castração como ponto ineliminável da análise para os homens.
Lacan contorna esse paradoxo ao sofisticar a noção de gozo. Ao conceber uma
dialética de dois gozos o gozo do Outro e o gozo do falo Lacan (1972-73/1985, p.36-
37) indica que é somente por intermédio do significante que o homem pode ter acesso ao
gozo. Para ele, o significante é a causa do gozo, sem o qual não seria possível abordar o
corpo. O significante limita o gozo e aponta os seus caminhos no ser falante.
É pela via significante que o homem estabelece sua relação com o gozo. Nessa
relação, o falo se constitui como significante privilegiado. Do lado masculino, é a
negativização do falo que permite dar corpo ao gozo na dialética do desejo.
O falo se apresenta em sua relação com o simbólico como (-φ). É a presença
negativa do falo que permite fundar o lugar de exceção como ponto de convergência do
desejo com a Lei. Dito de outro modo, o gozo interdito pelo significante é o gozo mítico do
pai da horda. A castração materializada pelo (-φ) permite que, através da falta produzida
pela inscrição significante do corpo, o sujeito tenha acesso a uma relativização do gozo
como gozo sexual.
Para Lacan (1962-63/2005), o gozo míticopode ser suposto após ter sido perdido
pela entrada na linguagem. É pela queda do objeto a que se pode supor que, anteriormente,
o Outro era completo. Assim, por intermédio da castração pode-se estabelecer a
suposição de um Outro não submetido à castração.
Segundo Lacan (1960/1998), a castração “significa que é preciso que o gozo seja
recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo” (p.841). Ora, os
tipos de caráter acima descritos demonstram precisamente a necessidade de abrir mão do
gozo mítico da exceção à castração, para que, a partir da falta constitutiva da inscrição
significante no corpo, seja possível circunscrever o gozo à lógica fálica.
Do lado masculino, portanto, a castração permite fundar a exceção do pai mítico não
castrado e a regra segundo a qual todos os inscritos na lógica fálica são castrados e gozam a
partir dessa condição.
1.2.2 A posição feminina
A inscrição do sujeito em uma posição sexuada implica necessariamente a função
fálica, ou seja, o sexual se inscreve no corpo a partir do significante fálico. Assim, não é a
Lei fálica que determina a diferença entre os sexos, mas a posição do sujeito frente a ela.
No caso da mulher, a lógica fálica implica a inexistência de um significante que
especifique ‘A mulher’, razão pela qual o falo não resolve a questão feminina na sexuação.
Segundo André (1987), a análise lacaniana da posição feminina na sexuação implica
mais do que a castração, apontando para a divisão da mulher perante o sexual. Essa divisão
se caracteriza pela dupla direção na qual a mulher localiza seu desejo: frente à castração, a
mulher se dirige tanto para o falo (φ) quanto para S(A/), o significante da falta no
Outro.
Como vimos anteriormente, na mulher, o desejo implica a castração do homem, isto
é, seu desejo se pauta na falta colocada do lado do Outro. É a castração, introduzida pela
linguagem, que permite ao homem direcionar seu desejo para uma mulher. Vendo-se
dividido (S/), o homem eleva a mulher à condição de objeto (a) causa do desejo. É desse
lugar de objeto que a mulher pode ter acesso ao que é da ordem do desejo, uma vez que é
por essa via que a castração se coloca para ela.
A parte inferior das fórmulas da sexuação explicita essa operação. Do lado
masculino, situa-se o (S/), que se dirige à mulher como objeto (a). Do outro lado, a mulher
se coloca como (A/) uma vez que desse (A/) nada se pode dizer e se divide entre o
direcionamento para o homem como portador do falo e o direcionamento para S(A/), o
significante da falta no Outro.
Lado Homem Lado Mulher
Lacan problematiza o fato de que a mulher “tem relação com S(A/), e já é nisso que
ela se duplica, que ela não é toda, pois, por outro lado, ela pode ter relação com φ”
(LACAN, 1972-73/1985, p.109).
A posição feminina é paradoxal, uma vez que, inscrevendo-se na sexuação a partir
da significação fálica, esta não diz dela como um todo. Lacan chama-nos à atenção para
essa peculiaridade: “Não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixe de estar
nela de todo. Ela não está não de todo. Ela está lá à toda. Mas há algo a mais” (LACAN,
1972-73/1985, p.100).
Assim, a mulher está totalmente referida à lógica fálica, mas esta não conta de
sua inscrição sexual como um todo. É por esse motivo que a mulher se divide perante a
castração do Outro. Ao se perceber castrada, ela se volta para aquele que teria o falo e
poderia dá-lo. Apreende, contudo, que ser mulher não se esgota em não ter o falo. Trata-se,
aqui, da ausência de uma inscrição significante que a situe.
Ao propor que a mulher teria um acesso mais direto ao gozo, Lacan (1962-63/2005)
aponta justamente para o fato de que a articulação significante não circunscreve o gozo
feminino como gozo fálico.
Do lado feminino, o gozo se caracteriza por ter relação com o Outro como tal. Esse
Outro gozo se constitui a partir da incidência do significante, mas não se limita a ele. O
Outro gozo da mulher se constitui como um gozo suplementar ao gozo fálico.
Para a mulher, é possível ter acesso ao Outro gozo a partir da inscrição
significante. O significante se constitui, então, como seu próprio limite, isto é, a própria
articulação significante aponta para o impossível de ser articulado. É nesse registro que o
Outro gozo se constitui como inapreensível pela linguagem.
Assim, o que é da ordem do gozo se divide entre um além e um aquém da
linguagem. Porém, essas duas posições podem ser concebidas a partir da função
primordial da castração: de um lado, a castração funda o gozo mítico anterior à linguagem e
instaura a exceção fálica lógica masculina da sexuação; de outro, a articulação
significante permite desvelar um gozo que não cabe na significação fálica posição
feminina na sexuação.
A ausência de exceção à castração caracteriza a posição feminina na sexuação e
aponta para a inexistência de uma regra que regule o modo feminino de se situar na partilha
sexual.
Freud (1916/1996) havia problematizado a questão ao descrever ‘as exceções’ e
vincular esse tipo de caráter à posição feminina frente à constatação da castração. A
reivindicação feminina à exceção aponta para um impossível lógico: ao reivindicar ser
tratada como exceção, a mulher acredita ser possível ter o falo que lhe falta, isto é, acredita
na possibilidade de eliminar o registro da castração.
Lacan (1962-63/2005) faz uso da fantasia de Don Juan para explicitar essa demanda
feminina. Ao propor que Don Juan é um sonho feminino, aponta o engodo de sua
identificação com a imagem do Pai não castrado. Para Lacan (1962-63/2005), Don Juan é
uma pura imagem feminina, uma vez que a relação problemática do homem com o objeto é
apagada para ele. Don Juan seria, portanto, o homem a quem nada falta, o portador do falo
que nunca se perde.
“Se a fantasia de Don Juan é uma fantasia feminina, é por
corresponder ao anseio da mulher de uma imagem que exerça a
função dele [falo], função fantasística a de haver um homem que
o tenha −, o que, considerando-se a experiência, é, obviamente, um
desconhecimento flagrante da realidade e mais ainda, que ele o
tenha sempre, que não possa perdê-lo. O que a posição de Don
Juan implica na fantasia, justamente, é que nenhuma mulher pode
tirar-lhe isso − eis o essencial. É isso que ele tem em comum com a
mulher, de quem, é claro, não se pode tirá-lo, já que ela não o tem”
(LACAN, 1962-63/2005, p.221-222).
Assim, a reivindicação feminina à exceção não é a reivindicação de um
posicionamento lógico. A mulher não demanda a instauração de uma regra que regule sua
posição sexual, como no caso dos homens. O que ela demanda é justamente não se
submeter à regra alguma.
Assim, é identificada ao lugar do pai da horda aquele que não se submete à
castração e não encontra limite para o seu gozo que a mulher reivindica ser tratada como
exceção. A castração coloca para a mulher justamente a impossibilidade de regulação de
seu gozo pela lógica fálica se não existe Um para quem a castração não se inscreva, não
há a possibilidade de regulação do gozo por meio da exceção lógica.
2. A COMÉDIA ENTRE OS SEXOS
Lacan problematizou, ao longo de toda a sua obra, a relação entre os sexos. Ao
abordar a questão do objeto em psicanálise, pontuando que, na verdade, é de uma falta de
objeto que se trata no movimento pulsional, Lacan (1956-57∕1995) ressaltava que a
experiência comum das relações entre homem e mulher contradiz a idéia de um objeto
harmônico encerrando a relação sujeito-objeto.
No seminário sobre a ética da psicanálise (LACAN, 1959-60/1997), é evidenciada,
mais uma vez, a importância da consideração da relação entre os sexos. Ao assinalar que
Freud colocou no primeiro plano de sua interrogação ética a relação simples entre o homem
e a mulher, Lacan nos diz que esse é o cerne da ética psicanalítica.
Ao retomar a questão no seminário sobre a angústia, Lacan (1962-63/2005)
acrescenta a essas considerações uma ressalva: o fato de a relação entre o homem e a
mulher ter como mote um mal-entendido obrigatório não faz com que as coisas se tornem
mais fáceis ou exijam menos trabalho. Para ele, o fato de o mal-entendido ser estrutural não
equivale a um fracasso necessário, já que o mais eficaz dos gozos pode ser atingido pela via
do mal-entendido.
A questão sexual é fundamental no que concerne à estrutura da psicanálise. Por não
partir de uma concepção idealista da relação entre os sexos, a psicanálise funda uma ética
na qual o que es em jogo é a articulação entre o desejo e a falta presentificada pelo falo.
Através da articulação entre a pulsão e a falta de objeto, a dimensão significante do falo é
introduzida na dialética do desejo.
Para a psicanálise, a relação entre os sexos não se baseia no ideal de
complementaridade. Ao contrário, é o fracasso dessa relação que possibilita ao sujeito
posicionar-se na partilha sexual. Essa é a incidência ética da diferença sexual.
Contudo, Lacan (1962-63/2005) assinala que, embora não se trate, no encontro entre
sexos, de complementaridade, não é possível prescindir do semblante. Para ele, o semblante
é organizador das relações entre os sexos, isto é, o engodo é estrutural na dimensão sexual.
Lacan (1958/1998) introduz na dialética entre ‘ser’ e ‘ter’ o falo o ‘parecer’ como
modo de relação. É por essa via que a comédia se introduz nas suas considerações, levando-
o a afirmar que a intervenção de um ‘parecer’ que substitui o ‘ter’ tem como efeito projetar
as manifestações ideais do comportamento de cada sexo. Tais manifestações teriam como
objetivo o ato da copulação: é no engodo de parecer ter ou ser o falo que o encontro entre
os sexos torna-se viável. Essa é a comédia do ato da copulação.
A comédia lacaniana baseia-se no paradoxo. O desejo diz respeito a uma relação
totalmente distinta da simples relação com o chamado parceiro natural. Contudo, é somente
a partir do semblante dessa relação que o sujeito pode se interessar pelo outro. Dito de
outro modo, é à medida que o sujeito acredita que aquilo que lhe falta encontra-se do lado
do outro que ele pode fazer desse outro objeto de seu desejo.
Se o amor é definido como dar o que não se tem, o engodo no encontro sexual é
estruturalmente organizador da relação entre os sexos. Dessa maneira, a dimensão do
semblante faz da impostura masculina e da farsa feminina o único modo possível de
encontro entre os sexos.
2.1 O estatuto do Falo na relação entre os sexos
Ao afirmar que a sexualidade infantil se caracteriza pela presença ou ausência do
falo, e não pelo reconhecimento dos órgãos genitais, Freud (1923/1996) funda uma clínica
em que a diferença se institui em termos simbólicos. Assim, o que está em jogo na
sexualidade infantil é a primazia do falo, e não a constatação da existência de dois sexos.
As considerações freudianas foram objeto de muita controvérsia no meio
psicanalítico, pois colocavam no cerne da constatação da diferença sexual o
desconhecimento do sexo feminino.
Ao assinalar que a sexualidade feminina é dividida em duas fases sendo a
primeira delas eminentemente masculina e que a adaptação da mulher ao seu sexo não
ocorre sem um constrangimento dessa posição inicial, Freud (1931/1996) aponta o
inevitável artificialismo que constitui a posição feminina.
Assim, situando o falo no centro das relações entre os sexos, Freud desfaz qualquer
possibilidade de se conceber a assunção de uma posição sexuada como um dado natural,
tanto no que diz respeito ao homem quanto no que concerne à mulher.
Segundo Lacan, na articulação freudiana, “[...] não apenas o reconhecimento da
posição feminina não é, a princípio, sustentado por coisa alguma, como também se supõe
que ele falte desde o começo” (LACAN, 1957-58/1999, p.286). Assim, a assunção de uma
posição sexuada não é uma conseqüência direta de se portar um corpo de homem ou de
mulher, embora seja evidente que ter um corpo masculino ou feminino tem conseqüências
psíquicas.
Freud aborda a diferença entre os sexos através do complexo de Édipo e da
castração. A existência de uma primazia fálica na relação entre os sexos conduz à
constatação de que haveria, desde a origem, uma dessimetria fundamental entre o homem e
a mulher.
Tal dessimetria caracteriza-se pela relação paradoxal que cada sexo estabelece com
o falo, e se divide em dois tempos: no primeiro, haveria a identificação com a posição
sexuada através da incidência do complexo de castração, ou seja, o primeiro tempo estaria
relacionado com a sexualidade infantil; o segundo teria como pivô o encontro com o
outro sexo, característico da sexualidade adulta.
A incidência ética da diferença sexual tem como mote a dessimetria entre os sexos.
Essa dessimetria é reconhecida na infância a partir da constatação da presença ou da
ausência do falo. Ao ressaltar o papel do falo na sexualidade, Freud estabelece a
identificação do sujeito ao seu sexo como um posicionamento simbólico frente à diferença
apontada pela anatomia.
O segundo momento seria caracterizado pela sexualidade adulta. Ao constatar a
inexistência de complementaridade entre os sexos, Freud funda uma clínica em que o
sexual tem uma prevalência fálica e aponta para a impossibilidade da relação sexual.
Ao evidenciar, a partir da constatação da dessimetria entre os sexos, a
impossibilidade de complementaridade sexual, Freud um passo ético. Estabelece a
identificação ao seu sexo como uma posição do sujeito frente à diferença apontada pela
anatomia, mas considera as relações entre sexos apenas pelo viés do rochedo da castração.
Esse é o ponto em que os impasses da sexuação incidem em sua elaboração teórica,
levando-o a enunciar que o amor do homem e o amor da mulher se caracterizam por uma
diferença de fase.
Ao delimitar o falo como pivô da diferença sexual, Freud (1937/1996) denomina
repúdio à feminilidade ao ponto impossível da relação de ambos os sexos com o falo. Para
a mulher, o repúdio à feminilidade estaria vinculado à inveja do pênis; nos homens, a uma
recusa a colocar-se numa posição passiva frente a outro homem.
Assim, ao considerar o rochedo da castração como algo ineliminável na análise de
homens e mulheres, Freud evidencia a prevalência fálica na identificação do sujeito com o
seu sexo, mas não esclarece o paradoxo do desejo no encontro sexual. Se a dialética se
entre a inveja do pênis e o medo de perdê-lo, não haveria motivo suficiente para que
homens e mulheres se interessassem uns pelos outros.
Freud se depara com esse impasse ao considerar que a saída para a feminilidade se
daria através da maternidade. Supõe que a mulher atualiza nessa relação seu desejo fálico,
transferindo para o filho sua realização. Contudo, embora o direcionamento da mulher para
um homem que possa lhe dar um filho seja reconhecido como uma das saídas femininas, tal
saída não se pauta no desejo, e sim na reivindicação fálica. A saída pela maternidade não
leva em conta o posicionamento sexual do par parental.
Do lado masculino, o impasse na relação com o falo em jogo no rochedo da
castração estaria relacionado com a ambigüidade de sentimentos do homem em relação
ao pai, e não com a possibilidade de fazer de uma mulher objeto de seu desejo.
Assim, a articulação freudiana do falo com o Édipo e com complexo de castração
não consegue responder ao enigma do desejo na relação entre os sexos.
Como vimos anteriormente, Lacan retoma a análise do falo a partir da articulação
significante e examina a castração pela vertente da angústia. Nessa perspectiva, o falo é
alçado à condição de significante da falta, e se presentifica na relação entre os sexos a partir
de sua negativização, ou seja, como (-φ).
Lacan (1962-63/2005) evidencia que a mulher tem uma relação mais verdadeira e
mais real com a falta. Ao contrário do homem, que tampona a falta no caminho da
realização do desejo, a mulher desvela o lugar da falta ao deixar ver que é a própria falta
que está no cerne do desejo.
A abordagem do desejo pelo viés da presentificação da falta leva Lacan a apontar o
que de estruturalmente enganador no ideal de realização genital. O engano é
fundamental para o estabelecimento da relação entre os sexos, uma vez que é a ilusão de
encontrar no outro aquilo que lhe falta que permite ao sujeito direcionar seu desejo para o
outro sexo.
Sendo assim, é possível diferenciar a estrutura do desejo da relação pura e simples
com o parceiro do outro sexo. O encontro entre um homem e uma mulher não se baseia na
realização genital, mas na falta apontada pela ausência do falo. Lacan (1962-63/2005,
p.292) utiliza o círculo de Euler para evidenciar essa distinção:
Para Lacan, o que está realmente em jogo no amor, como encontro entre os sexos, é
sempre uma conjunção de faltas.
O problema do amor é o da profunda divisão que se introduz no
interior das atividades do sujeito. A questão de que se trata, para o
homem, segundo a própria definição do amor dar o que não se
tem −, é dar aquilo que ele não tem, o falo, a um ser que não o é.
(LACAN, 1957-58/1999, p.364),
Assim, o estatuto do falo na conjunção entre os sexos é sempre negativo, ou seja,
aponta sempre para uma falta. A relação do homem com a falta apontada pelo falo é da
ordem da impostura, enquanto, para as mulheres, tem a marca da farsa.
2.1.1 A impostura masculina
Segundo Lacan (1957-58/1999), a assunção da posição viril masculina implica abrir
mão do narcisismo do órgão em prol de um título de propriedade virtual que postergaria a
virilidade para o futuro. Dessa maneira, a promessa viril seria da ordem de uma
identificação com as insígnias paternas, a se realizar em um momento posterior.
Com o advento da puberdade e, conseqüentemente, com o encontro com o outro
sexo, o sujeito é chamado a assumir esse título que até então estava guardado. É nesse
momento que se coloca o paradoxo da posição viril, pois o que o sujeito percebe é que
aquilo que ele acreditava estar do lado do pai − como homem − apresenta-se justamente por
sua ausência. Essa apreensão da ausência do falo encarna-se para ele a partir da relação
entre o desejo e a falta do objeto.
Ao se deparar com a negativização do falo, o sujeito se precipita na situação
angustiante e se dirige à mulher como objeto do desejo, acreditando que é do lado dela que
o falo se encontra. Para Lacan (1962-63/2005), o encontro com a falta do falo é
problemático para o homem, uma vez que deixar que se veja o seu desejo é essencialmente
deixar ver o que ele não tem.
Assim, para o homem, a relação com o desejo comporta sempre um tamponamento
da falta, isto é, há sempre a presença de alguma impostura. Na corte amorosa, o homem faz
semblante de ter o falo. Essa é a sua identificação viril com o pai. Se, para entrar na
dialética fálica, ele abre mão do que tem, no encontro com o outro sexo, faz semblante de
ter o que não tem. Essa é a impostura masculina.
Ao problematizar a relação de homens e mulheres com a falta apontada pelo falo,
Lacan (1957-58/1999) nos diz que, enquanto na mulher haveria uma conjunção entre
demanda de amor e desejo, do lado masculino, haveria uma divisão entre os dois termos. O
homem é apanhado no dilema de ter que, por um lado, identificar-se com o pai como aquele
que tem o falo, isto é, fazer semblante de ter o falo no nível do amor, e, por outro, no nível
do desejo, procurar o falo que lhe falta do lado da mulher.
Segundo Lacan, a degradação específica da vida amorosa apontada por Freud
(1910/1996) deriva-se justamente da divisão entre demanda de amor e desejo:
“Se de fato sucede ao homem satisfazer sua demanda de amor na
relação com a mulher, na medida em que o significante do falo
realmente a constitui como dando no amor aquilo que ela não tem,
inversamente seu próprio desejo do falo faz surgir seu significante,
em sua divergência remanescente, dirigido a “uma outra mulher”,
que pode significar esse falo de diversas maneiras, quer como
virgem, quer como prostituta” (LACAN, 1958/1998, p.702).
Assim, do lado masculino, a impostura se caracteriza pelo duplo movimento da
demanda de amor e do desejo. Essa duplicação da posição masculina está embasada no
romance familiar do menino, uma vez que a mãe encarna para ele, ao mesmo tempo, o
objeto proibido ao desejo e o modelo de mulher amada pelo pai.
Ao escrever os três artigos sobre a psicologia do amor, Freud (1910/1996) está às
voltas com o enigma que faz com que homens e mulheres se interessem uns pelos outros. O
segundo artigo, Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor”, trata da
relação do menino com o tabu do incesto e suas conseqüências na escolha amorosa
masculina posterior.
Freud (1910/1996) parte do estudo da impotência psíquica para delimitar a
peculiaridade da escolha amorosa masculina ao se relacionar com as mulheres. Para ele, por
trás da relação problemática do homem com seu desejo, está uma fixação incestuosa na
mãe ou irmã, que impede que os impulsos libidinais separados na infância, pelo advento
do recalque, entre impulsos afetivos e sensuais − voltem a se conjugar na vida adulta.
A disjunção entre amor e sensualidade é conseqüência da barreira ao incesto, que
faz com que os homens procurem, para amar, mulheres que respeitem, e para a atividade
sexual, mulheres por eles depreciadas. Contudo, não podemos nos esquecer da advertência
freudiana em “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens” (FREUD,
1910/1996). Freud assinala que os dois tipos de escolha masculina, seja para amar ou para
se satisfazer sexualmente, relacionam-se com as duas facetas da mãe no complexo de
Édipo.
Lacan (1958/1998) assinala que, embora a posição masculina comporte a divisão
entre demanda de amor e desejo, não devemos tomar a infidelidade como constitutiva da
função masculina. O que está realmente em questão é o fato de que, no amor, o que está em
jogo é dar o que não se tem, o que se coloca tanto para homens como para mulheres.
2.1.2 A farsa feminina
Ao estudar o narcisismo, Freud (1914/1996) já pontuava que o que a mulher busca
no amor é ser amada, e não amar. Para a mulher, o que está em jogo no amor é muito mais
o enigma do desejo masculino do que propriamente um desejo essencialmente feminino.
Lacan (1962-63/2005) problematiza essa questão ao apontar que é somente a partir
da percepção da castração no homem que o desejo faz enigma para a mulher. O interesse
feminino é despertado justamente a partir do direcionamento do desejo masculino para ela
como objeto de desejo. Ao perceber a castração no homem, a mulher faz semblante de
objeto causa do desejo, acreditando que assim terá acesso ao falo que não se perde.
“O que a mulherna homenagem do desejo masculino é que esse
objeto sejamos prudentes em nossos termos se torna uma
propriedade sua. Isso não quer dizer nada além do que acabo de
formular: que ele não se perde” (LACAN 1962-63/2005, p.222)
Ao contrário dos homens, para os quais a falta do falo se presentifica como objeto a
na detumescência, nas mulheres, o objeto a se constitui na relação com o Outro. Dessa
maneira, o que o desejo feminino visa é justamente a castração do Outro: é o desejo do
desejo do Outro que presentifica, para a mulher, o objeto a como aquilo que lhe falta.
A relação feminina com o objeto a comporta, então, o paradoxo de que, para a
mulher, o lugar onde seu desejo se coaduna ao desejo do Outro é também o ponto em que
irrompe sua angústia. Ao figurar como aquilo que falta, tanto nela quanto no Outro, o (-φ)
desvela a impossibilidade de ter o falo de outro modo que não seja pela falta.
Sendo assim, existe, para a mulher, uma diferença sutil entre ser colocada pelo
desejo do Outro na posição de objeto e fazer semblante de se colocar nesse lugar.
Como consideramos anteriormente, o masoquismo feminino é uma fantasia
masculina segundo a qual a mulher encarna realmente a função de objeto. A posição
feminina, por sua vez, é da ordem da farsa. A mulher faz semblante de encarnar a posição
de objeto, pois acredita que, desse modo, poderá tamponar a falta do falo.
A mulher acredita no engodo de que fazer semblante de objeto do desejo para um
homem garante que o falo deixe de faltar. O que está em jogo na farsa feminina é que, ao se
colocar como falo, a mulher acredita ser possível eliminar sua ausência.
Lacan (1958/1998) chama-nos à atenção para o fato de que, para ser o falo, isto é, o
objeto do desejo do Outro, a mulher rejeita uma parcela da sua feminilidade. Dessa
maneira, é pelo que a mulher não é que ela pretende ser desejada e, ao mesmo tempo,
amada.
A mascarada feminina seria, portanto, resultado da constatação de que tudo o que a
mulher mostra de sua feminilidade ao se propor como objeto do desejo masculino é da
ordem de uma identificação com o falo.
Lacan (1957-58/1999, p.363) define como “consumação do sujeito no caminho do
desejo do Outro” a profunda rejeição feminina de sua posição de mulher. Para ele, uma vez
que a mulher procura sua identificação justamente no que ela não é nem nunca teve − o falo
o que está em jogo é uma profunda estranheza de seu ser mediante aquilo que ela tem de
parecer. Dito de outro modo, o preço a ser pago pela farsa feminina é o desaparecimento da
mulher como sujeito ao fazer semblante do falo que falta.
“É na medida em que não é ela mesma, isto é, na medida em que,
no campo de seu desejo, é preciso ser o falo, que a mulher
experimenta a Verwerfung da identificação subjetiva [...]”
(LACAN, 1957-58/1999, p.364).
Assim, a constatação da ausência do falo, nela mesma e em seu parceiro, faz a
mulher consentir em se fazer parecer o falo que falta. Contudo, é nesse movimento de
tamponar a falta, sacrificando sua própria identificação subjetiva, que a mulher conjuga seu
desejo e sua demanda de amor endereçando-os ao homem.
Segundo Lacan (1958/1998), a mulher encontra o significante de seu próprio desejo
no corpo daquele a quem sua demanda de amor é endereçada. Haveria, portanto, uma
conjunção, no mesmo objeto, da demanda de amor e do desejo. Assim, a mascarada
feminina estaria a serviço da manutenção do ideal narcisista de que ser amada corresponde
a ter acesso ao falo que nunca esteve lá.
O que a farsa feminina denuncia é justamente a ausência de um significante que
conta do que é uma mulher. Diante da impossibilidade de se identificar a um significante
que a designe como tal, a mulher se identifica ao falo.
2.2 O encontro possível diante do impossível da relação sexual
A partir da análise da relação entre sujeito e objeto, Lacan (1972-73/1985) pontua
que, para a psicanálise, o que está em jogo no objeto é a própria rata. Não encontro
senão na falta apontada pelo falo. Não relação sexual uma vez que o falo, ao se
apresentar como (-φ), promove, como ponto de interseção, a própria rata. Não
complementaridade possível se ambos os sexos buscam a mesma coisa: o falo que falta.
“O campo abarcado pelo homem e pela mulher, no que poderíamos
chamar, no sentido bíblico, de seu conhecimento um do outro,
coincide em que a zona a que seus desejos os levam, para que se
atinjam, e na qual eles poderiam efetivamente superpor-se,
caracteriza-se pela falta do que seria seu meio. O falo: é isso que, e
cada um, quando ele é atingido, justamente o aliena do outro”
(LACAN, 1962-63/2005, p.292).
O estatuto do falo faz obstáculo à relação sexual, pois não leva em consideração o
Outro, e sim a própria falta. Para Lacan (1962-63/2005), no campo da união sexual, o Outro
e o falo não se conjugam; são excludentes. O desejo não é o suporte da união sexual
porque, ao promover a busca pelo falo que falta, o outro desaparece como sujeito, isto é,
torna-se objeto causa do desejo.
Dessa maneira, a única possibilidade de encontro no campo sexual é da ordem do
semblante. No encontro com a falta apontada pelo falo, resta a homens e mulheres
fazerem semblante de ‘ter’ ou ‘ser’ esse objeto que falta. No cerne da experiência amorosa,
o que está posto é dar o que não se tem. Essa é a única maneira de encontro entre os sexos.
2.2.1 O circuito pulsional e a falta de objeto
Partindo da referência primeira à fala e à linguagem, Lacan pôde, em sua
elaboração, precisar o movimento pulsional na economia freudiana. A premissa, aqui, é de
que a articulação significante está dada de entrada:
“Coisa paradoxal, curiosa mas é impossível registrar a
experiência analítica de outra maneira −, a razão, o discurso, a
articulação significante como tal, está de entrada, ab ovo, ela
está em estado inconsciente, antes do nascimento de toda coisa
referente à experiência humana, ela está dissimulada,
desconhecida, não dominada, sem que aquele mesmo que é seu
suporte saiba dela. E é com relação a uma situação estruturada
dessa maneira que o homem tem, num segundo tempo, de situar
suas necessidades” (LACAN, 1959-60/1997, p.256)
A articulação das necessidades humanas implica uma apreensão anterior pela
estrutura significante. Contudo, a própria articulação significante se baseia na spautung da
relação entre o significante e a falta anterior que o constitui: no para-além da cadeia
significante, está dada a falta sob a qual essa cadeia se funda e se articula como tal.
Para Lacan (1959-60/1997), haveria na pulsão uma dimensão histórica, e não
simplesmente uma articulação da tendência em níveis energéticos. A dimensão histórica da
pulsão é marcada pela insistência com a qual ela se apresenta.
Como assinala Lacan (1959-60/1997), uma vez que cadeia significante, tudo o
que é imanente ou implícito na cadeia dos acontecimentos naturais pode ser considerado
como submetido à pulsão. Assim, o histórico da pulsão estaria vinculado à circunscrição de
um ponto impossível, ex nihilo, no qual a falta funda o significante e articula a pulsão com
a história.
A articulação da pulsão com a história baseia-se na relação do sujeito com a falta de
objeto. Ao analisar a relação de objeto, Lacan (1956-57/1995) evidencia que é mais de uma
falta de objeto do que propriamente de um objeto primordial que Freud trata desde o
“Projeto para uma psicologia científica”.
Para Freud (1950[1895]/1996), a relação de objeto não garante para o homem uma
posição adequada em relação à realidade, visto que o encontro com o objeto primordial é da
ordem de uma alucinação, e só pode ser apreendido pela via do objeto perdido. Haveria,
portanto, uma discordância fundamental entre o objeto procurado e o objeto encontrado na
experiência, o que marcaria o caráter fundamentalmente conflituoso da relação do sujeito
com o objeto.
Em “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor”, Freud
(1910/1996) volta a examinar a relação do sujeito com o objeto pelo viés pulsional.
Destaca-se, nesse texto, a consideração freudiana sobre a impossibilidade da satisfação
completa no encontro com o objeto:
“Por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em
consideração a possibilidade de que algo semelhante na natureza
do próprio instinto sexual é desfavorável à realização da satisfação
completa” (FREUD, 1910/1996, p.194).
Um dos fatores apontados por Freud como responsáveis pela impossibilidade da
satisfação completa do desejo estaria relacionado à irrupção bifásica da escolha objetal.
Para ele, a interposição da barreira do incesto faz com que o objeto final da pulsão sexual
nunca mais seja o objeto original a mãe mas apenas uma sucessão infindável de objetos
substitutos.
Lacan (1959-60/1997) retoma as considerações freudianas no seminário sobre a
ética da psicanálise, elevando a mãe ao estatuto de das ding. A mãe como das ding aponta
justamente para a impossibilidade da satisfação do desejo. Como primeiro objeto do desejo,
a mãe encontra-se, desde o início, interditada para o bebê. Ela é, desde a origem, o objeto
para qual o desejo se dirige e com o qual, contudo, nunca se satisfaz.
Assim, a mãe como das ding orienta toda a relação do sujeito com o desejo e com a
lei, uma vez que ela própria é colocada, de saída, como um objeto interditado ao desejo do
sujeito.
“O que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da
relação inconsciente com das ding, a Coisa. O desejo pela mãe não
poderia ser satisfeito, pois ele é o fim, o término, a abolição do
mundo inteiro da demanda, que é o que estrutura mais
profundamente o inconsciente do homem. (LACAN, 1959-
60/1997, p.87).
A relação de objeto se constituiria, então, como a busca de uma satisfação passada e
ultrapassada a engendrar uma repetição impossível de saciar.
Para Lacan (1956-57∕1995), é dessa profunda inadequação entre o que é ansiado
pelo sujeito e o que é encontrado na experiência que Freud parte para estabelecer as formas
de relação do sujeito com a falta do objeto. Dessa maneira, é a noção de falta, e não a de
objeto, que é central para a psicanálise.
Lacan afirma que o grande passo dado por Freud foi apontar que a idéia de um
objeto harmônico que regeria as relações entre o sujeito e o objeto é profundamente
contraditória com o que a experiência demonstra. É isso que a relação entre os sexos
evidencia.
2.2.2 O encontro amoroso no baile de máscaras
Ao problematizar a inexistência da relação sexual, Lacan (1972-73/1985) enumera
as possibilidades de suplência dessa impossibilidade. O amor figuraria, então, como uma
das vias de suplência. Porém, a concepção de que o amor se baseia no ideal de conjunção
entre os sexos é revista pela psicanálise.
Segundo Lacan, ao evidenciar que a essência do amor é o narcisismo, Freud rompe
com a lógica segundo a qual o amor se caracterizaria pelo ideal de conjunção entre os
parceiros. Assim, se é verdade que o amor tem relação com o Um, não se trata do um da
conjunção entre dois, mas do um do si mesmo.
“[...] o amor, se é verdade que ele tem relação com o Um, não faz
ninguém sair de si mesmo. Se é isto, só isto, nada mais do que isto,
que Freud disse ao introduzir a função do amor narcísico, todo
mundo sente, sentiu, que o problema é de como é que pode haver
um amor por um outro” (LACAN, 1972-73/1985, p .65).
Para a psicanálise, a questão em jogo no amor diz respeito à possibilidade de
encontro com o outro, e não à conjunção entre os sexos. Assim, o ideal de
complementaridade cede lugar ao desejo como visada da falha: o que se busca no outro não
é a complementaridade, mas aquilo que o desejo produz como falta.
O grande paradoxo em jogo no amor é justamente a impossibilidade da relação com
o Outro sexo – no amor, o que se busca é o falo, e não o outro. Contudo, apesar de o desejo
visar o falo, a impossibilidade da relação sexual não exclui que haja encontro entre os
sexos.
O encontro entre os sexos tem como premissa a negativização do falo como objeto
do desejo. Como ressaltamos anteriormente, a conjunção sexual se justamente no (-φ)
como ponto de interseção.
Lacan (1962-63/2005) assinala que o amor idealista presentifica a mediação do falo
como (-φ). Assim, o menos é o ponto médio universal da conjunção sexual. É pela via do (-
φ) que o encontro entre os sexos torna-se viável.
Ao tomarmos a consideração lacaniana de que “o falo é a objeção de consciência,
feita por um dos dois seres sexuados, ao serviço a ser prestado ao outro” (LACAN, 1972-
73/1985, p.15), percebemos que, no encontro entre os sexos, um acordo em se fazer
semblante do falo que falta ao outro.
Para Lacan (1972/2003), a questão central entre ‘ser’ e ‘ter’ o falo é a função que
supre a relação sexual. Dessa maneira, apesar de o falo se apresentar no campo sexual
sempre como (-φ), os parceiros fazem semblante de ser do lado feminino e de ter do
lado masculino − esse falo que falta. Essa é a comédia entre os sexos.
Lacan (1972/2003) nos adverte para o fato de que, embora não haja relação sexual,
encontro entre os sexos. Porém, não se deve confundir a lógica masculina e a posição
feminina na sexuação com a relação entre eles: no encontro entre os sexos, não está em
jogo a complementaridade, mas o semblante.
A lógica masculina na sexuação baseia-se na existência de uma exceção que funda a
regra, ou seja, do lado masculino, existe um para quem a castração não se inscreve, e que
funciona como ponto de identificação com a posição viril.
Para o menino, a posição viril se assegura como um título de propriedade virtual, a
ser usado posteriormente. Porém, no momento em que o encontro com o Outro sexo o
convoca a fazer uso desse título, ele descobre que o falo que ele acreditava estar do lado do
homem − representado pela figura do pai − não está lá.
Assim, a virilidade de um homem se conjuga no futuro do pretérito, ou seja, a
impostura masculina se garante através da crença de que o que foi perdido estivera lá. É de
um ‘agora eu era’ que se trata na corte masculina.
Frente à descoberta de que o falo, que ele acreditava estar do lado do pai, apresenta-
se por sua ausência, o homem se divide: na vertente do amor, faz semblante de ter o falo
que ele não tem; na vertente do desejo, busca na mulher aquilo que lhe falta.
A impostura masculina comporta o enigma do falo no nível do ter, ou seja, o
homem faz semblante de ter o falo para a mulher e, ao mesmo tempo, busca na mulher o
falo que ele não tem. Assim, a base da impostura é a crença de que, em algum momento, o
falo esteve lá, razão pela qual o homem continua a demandá-lo.
O homem dirige seu desejo para uma mulher embasado na crença de que o falo
perdido pode ser recuperado no corpo feminino. É nessa via que a mulher encarna a função
de objeto a para o desejo masculino. Contudo, no jogo dos semblantes, ele sabe que, para
despertar o interesse da mulher, é preciso fazer de conta que o falo está do lado dele.
O homem finge ter o que ele não tem e que, na verdade, deseja. Por esse motivo,
encarna o ideal masculino do herói. Como dizia Chico Buarque, o homem se dirige à
mulher cantando “agora eu era o herói”, e demandando que ela lhe restitua a posição que
foi, no futuro do pretérito, perdida. Assim, a demanda masculina comporta a identificação
com a posição viril do herói, porém, como potência desde sempre perdida.
Para Lacan (1972/2003), a função do órgão é servir de isca para o significante.
Dessa maneira, o órgão, passado ao significante, adquire para o ser falante o efeito de
presentificar a inexistência da relação sexual.
Lacan (1972/2003) assinala, aqui, um paradoxo. Do lado masculino, a herança
biológica é generosa em relação ao semblante. O pênis, por sua eretilidade, faz semblante
do falo. Contudo, evidencia na detumescência que, no ápice do encontro sexual, o falo se
presentifica como ausência. A impostura masculina se coaduna com o consentimento em
mascarar a ausência do falo com as insígnias da masculinidade, o órgão servindo como isca
desse engodo.
a posição feminina se caracteriza por ser da ordem da farsa. A mulher sabe, de
saída, da impossibilidade de ter o falo, razão pela qual faz semblante de sê-lo. A maneira
feminina de se relacionar com o desejo do homem implica necessariamente o
consentimento em se fazer semblante de objeto do desejo.
A relação da mulher com a posição de objeto comporta o paradoxo da Verwerfung
de sua posição subjetiva. Na ausência de um significante que conta de designar o que é
uma mulher, ela se identifica com o significante fálico. A identificação com o falo eleva a
mulher à dimensão de objeto do desejo por excelência, e promove o mascaramento, nela
mesma e no parceiro, da falta apontada pelo falo.
Para Lacan (1958/1998), a mulher vai buscar no corpo do homem o significante do
seu desejo. Dessa maneira, ao localizar no homem tanto sua demanda de amor quanto seu
desejo, a mulher faz semblante de ser o falo que falta ao homem. Ao fazer semblante do
falo para o homem, a mulher acredita na possibilidade de ter acesso ao que lhe falta, isto é,
um significante que a designe.
É por esse motivo que a castração do homem interessa à mulher. A castração
masculina consiste em fazer existir uma falta no Outro, o que lugar ao desejo feminino.
Assim, é por intermédio da castração que o homem direciona seu desejo para a mulher,
permitindo que o desejo dela se constitua como desejo do desejo do Outro. Essa é a
dinâmica do encontro entre os sexos.
Somente por intermédio da falta no Outro, aqui designado pelo homem como Outro
sexo, que a mulher pode ter acesso ao falo como objeto do desejo do Outro. O falo não se
coloca como falta para a mulher senão por intermédio do desejo do Outro. É por esse
motivo que ela não busca somente ser o falo, mas ter um significante que a designe.
Frente ao desejo do homem, que a coloca na posição de objeto a, a mulher se divide
entre ser o falo e buscar no Outro o significante da falta. Ela sabe, de saída, que fazer
semblante de falo não basta para especificar o que é uma mulher.
É esse paradoxo que a segunda parte das formulas da sexuação evidencia. Do lado
do homem, está o sujeito dividido pela castração (S/) e o endereçamento do desejo para a
mulher como objeto a, isto é, a fantasia. Do lado da mulher, a barra está colocada no Outro
(A/). A castração do Outro promove a divisão do desejo feminino entre o falo (φ) e o
significante da falta no Outro S(A/).
A feminilidade de uma mulher é impossível de se conjugar. Se, do lado masculino,
o verbo ‘ser’ se conjuga no futuro do pretérito, do lado feminino, o ser não cabe no verbo.
É por esse motivo que ela recorre à identificação com o falo para se nomear, mesmo que
seja como objeto.
Essa é a dinâmica do baile de máscaras no encontro amoroso. Na ausência de um
significante que a designe, a mulher faz semblante de ser o falo. No homem, a constatação
de que as insígnias da masculinidade transmitidas pelo pai presentificam o falo como
ausência, leva-o a buscar na mulher o falo que lhe falta. Contudo, é necessário ao homem
fazer semblante de ter o falo para que a mulher passe a se interessar por ele.
Miller (1998/2003) diferencia a posição de semblante do ideal de
complementaridade que supõe a existência da relação sexual problematizando a
atribuição de características contrastantes na partilha sexual.
Ao propor a análise da diferença entre os sexos através das características
psicológicas opostas e complementares Miller (1998/2003) evidencia a distinção entre
o semblante e o ideal. Aponta que a análise da psicologia entre os sexos atribui ao homem
características como prudência, timidez e racionalidade; à mulher, intrepidez, audácia,
irracionalidade.
O paradoxo desse tipo de divisão é introduzido pela impossibilidade lógica de fazer
equivaler as características dos dois sexos com a posição de cada um em relação ao outro.
Por exemplo, não necessariamente uma conjunção entre a prudência masculina e a
intrepidez feminina.
Segundo Miller (1998/2003), as estruturas formalizadas por Lacan nas fórmulas da
sexuação possibilitam a análise das duas posições sexuais, separadas e distintas, e não a
fórmula do casal.
Essa distinção é fundamental para compreender a diferença entre a posição da
psicanálise no que diz respeito ao semblante e a tentativa de fazer existir a relação sexual
como ideal de complementaridade.
As fórmulas das sexuação nos ensinam que, embora homens e mulheres se
coloquem de maneiras distintas em relação à lógica fálica, o desejo de ambos visa à mesma
coisa: o falo que falta.
É nesse contexto que o semblante se faz necessário: se ambos os sexos buscam o
falo no encontro com o outro, é preciso consentir em fazer semblante do falo para que o
encontro se dê. O jogo dos semblantes não visa a resolver os impasses da conjunção sexual,
mas permitir que, no seio desses impasses, o encontro entre os sexos seja possível.
Ao descrever os papéis sexuais, Miller evidencia a impossibilidade de fixar posições
sexuais pré-determinadas e complementares. A posição de cada sujeito na partilha sexual
não corresponde ao modo de relação entre os sexos. A diferenciação se em termos
lógicos, e não como pares de opostos. A posição feminina não é complementar à masculina,
mas suplementar. Sendo assim, para a psicanálise, o que está em jogo é a estrutura
subjacente à partilha sexual.
A análise da fórmula de cada posição separadamente leva Miller (1998/2003) a
delimitar que a estrutura repercute em três níveis: no conjunto, no elemento e na exceção.
Para Miller (1998/2003), do lado do homem, o ser se coloca sempre em relação ao
seu limite. O limite é de estrutura e opõe a relação do todo com o Um. Assim, do lado
masculino, o conjunto se caracteriza por agrupar elementos que fazem Um. Essa é a lógica
da exceção que funda a regra.
no lado da mulher, o que está em jogo é a relação do não-todo com o não-Um.
Para Miller, do lado feminino, o conjunto não se forma, pois não exceção que funde a
regra. Assim, o para-todos não pode se colocar, e aponta para a ausência de um limite
estrutural. Em relação ao elemento, falta a unidade, ou seja, nenhum dos elementos é Um.
Dessa maneira, do lado feminino, o que está em jogo é a divisão: embora a mulher esteja
toda referida à lógica fálica, essa lógica não conta da mulher como um todo; algo a
mais.
Miller retoma a discussão sobre a relação entre os sexos situando que a diferença
sexual não se estabelece, como supunha Freud, entre ter ou não ter o falo. Assim, na análise
da posição sexuada, não está em jogo a comparação imaginária entre os corpos nem o ideal
de conjunção entre eles, mas o posicionamento de cada sexo diante da falta apontada pelo
falo.
Retomando o exemplo anterior, o que a análise da partilha sexual demonstra é que a
prudência masculina não se coloca em relação à intrepidez feminina, mas em relação à
lógica fálica, à qual o homem − como um todo − está submetido.
Sendo assim, é em relação à exceção que funda a regra e delimita um limite para o
conjunto dos homens que a prudência se coloca. Do lado masculino, a prudência é o modo
de resguardar o homem do encontro com a exceção que o constitui. Segundo Miller, é “uma
prudência que tem a ver com o respeito e que supõe conhecer o seu próprio tamanho”
(MILLER, 1998/2003, p. 26).
No caso da mulher, Miller nos adverte que, se podemos falar de prudência, ela está
relacionada a outros termos. Do lado da mulher, a prudência não estaria em relação com a
exceção, mas com a contingência. Mais uma vez, é a posição da mulher em relação à
partilha sexual que se coloca. Na ausência de uma exceção que funde a regra, a prudência,
do lado feminino, preserva o contingente, e não o estrutural. Assim, a posição feminina
na ausência do conjunto, da exceção e do elemento tem como possibilidade de
regulação o que é da ordem da contingência. Na ausência de um significante que a
denomine, a mulher apela à contingência do encontro com o Outro e faz semblante do falo
como objeto do desejo do Outro para ter um ponto no qual apoiar sua identificação.
Enfim, o que está em jogo no encontro entre os sexos é justamente a
impossibilidade da relação sexual e a função do semblante nesse contexto.
Ao supor que o falo se interpõe entre os sexos impedindo a relação sexual, Lacan
(1972-73/1985) eleva o amor a modo de suplência dessa impossibilidade, definindo seu
funcionamento pela categoria do semblante. Assim, na impossibilidade da relação sexual, a
falta do falo se converte em possibilidade de encontro entre os sexos.
Considerações finais
Iniciamos esse percurso enfatizando a dimensão ética da descoberta freudiana da
dessimetria entre os sexos. Ao estabelecer que a diferença anatômica se constitui em termos
simbólicos, e não por atestar a existência de dois sexos, Freud (1923/1996) eleva o falo à
dimensão significante. Porém, na ausência dos recursos apresentados pela lingüística, se
detém na concepção de que a relação do sujeito com o falo se estabelece através da
presença ou da ausência do pênis. E denomina rochedo da castração à impossibilidade
colocada, para o sujeito feminino, pela inveja do pênis, e, para o sujeito masculino, pelo
medo de ser castrado.
Ao analisar a questão pela vertente do rochedo da castração, Freud evidencia o
papel central do falo na relação do sujeito com a castração, mas não consegue explicar
como se daria o encontro amoroso, uma vez que, na relação entre os sexos, o que se
colocaria seria o repúdio à feminilidade. Aponta o paradoxo de suas formulações ao
assinalar que o amor do homem e o amor da mulher parecem sofrer de uma diferença de
fase.
Lacan (1957-58/1995) retoma as considerações freudianas definindo o falo como o
significante que coloca em jogo a relação do sujeito com o desejo. Com efeito, realiza uma
leitura significante das relações do sujeito com o complexo de Édipo e a castração. Porém,
tal qual Freud, ao tentar dar conta da inscrição do sujeito numa posição sexuada apenas pela
vertente simbólica, privilegia o modo masculino de se posicionar na partilha sexual.
Atento a esse paradoxo, Lacan (1959-60/1997) avança em suas pesquisas
enfatizando a função da angústia em sua relação com a castração. Ao considerar essa
perspectiva, inverte a lógica freudiana do rochedo da castração, situando a falta do falo
como uma questão essencialmente masculina. Desloca-se, assim, de sua posição inicial,
segundo a qual a falta do falo seria uma questão primordial para a mulher.
A análise da relação entre angústia e castração permite à Lacan articular pulsão,
corpo e linguagem através da conceituação do objeto a. Ao definir o objeto a como
irredutível à dimensão significante, Lacan postula que a falta constitutiva da linguagem é o
fundamento da articulação significante. Essas considerações tornar-se-ão ponto-chave para
a articulação entre a inscrição do sujeito em uma posição sexuada e sua relação com o
atravessamento do corpo pela linguagem.
Ao considerarmos a advertência de Miller (1998/2003), segundo a qual as fórmulas
da sexuação dizem respeito às duas posições sexuais, separadas e distintas, não fornecendo
a fórmula do casal no encontro sexual, coloca-se a questão de saber se uma distinção
entre a posição sexuada e a posição do sujeito frente à sexuação.
Ao formalizar a tábua da sexuação, Lacan (1972-73/1985) assinala que a inscrição
do sujeito em um dos dois lados das fórmulas tem relação com a função fálica e o modo de
gozo a ela articulada. Segundo Lacan (1972-73/1985), quem quer que seja falante se
inscreve de um lado ou de outro das fórmulas.
Do lado masculino, estaria em jogo a lógica da exceção que funda a regra e regula o
modo de gozo fálico, no qual o gozo se trela ao significante. Segundo Lacan, “[...] x Φx
indica que é pela função fálica que o homem como um todo toma inscrisção, exceto que
essa função encontra seu limite na existência de um x pelo qual o Φx é negada, x -Φx”
(LACAN, 1972-73/1985, p.107).
Assim, do lado masculino, a função fálica funciona segundo a lógica na qual
existiria Um para quem a castração não estaria colocada, Um que fundaria na sua exceção o
conjunto de homens referidos a essa lógica. A exceção funda a regra que faz existir o
conjunto, o elemento e o modo de relação entre eles.
Do lado feminino, a inscrição do sujeito na posição sexuada se torna ainda mais
complexa. De acordo com Lacan (1972-73/1985), inscrever-se desse lado não permitirá
nenhuma universalidade, uma vez que não exceção que fundamente o todo. Assim, a
lógica feminina na sexuação não comporta a formação do conjunto, nem circunscreve o
gozo à lógica fálica.
Segundo Lacan (1972-73/1985), do lado mulher, coloca-se a questão da relação com
o Outro: a mulher tem relação com o significante do Outro uma vez que ele é sempre
Outro. É por esse motivo que a mulher se apresenta na sexuação como (A/). Na ausência de
um significante que diga o que é uma mulher, a mulher se coloca como Outro até para si
mesma. Dessa maneira, o único modo de inscrevê-la na sexuação é como (A/).
As considerações lacanianas sobre a tábua da sexuação nos permitem compreender
a lógica que rege cada posição sexuada, porém não esclarece o modo como o sujeito se
inscreve em um dos dois lados das fórmulas.
Ao analisar a questão, Soler (2003/2005) aponta que o modo de inscrição do sujeito
nas fórmulas da sexuação tem relação com seu modo de gozo, constituindo-se como uma
escolha do sujeito, e não através das normas do Outro. Esse tipo de leitura permite-nos
articular a inscrição do sujeito na sexuação a uma posição ética, uma vez que seu
alinhamento nas fórmulas teria com mote uma escolha. Porém, deixa em aberto a questão
de saber de que ordem seria essa escolha por uma modalidade de gozo, trazendo, ainda, à
baila a discussão sobre o papel do Outro na sexuação do sujeito.
Brodsky (2008) defende a idéia de que homem e mulher não são posições
subjetivas, mas sexuadas. A posição sexuada não depende da identificação com os
semblantes disponíveis e não pode se inscrever. Segundo a autora (2008), haveria uma
distinção entre posição subjetiva e posição sexuada. A posição subjetiva diz respeito à
relação do sujeito com o Outro e com o falo como atributo. A posição sexuada é da ordem
da estrutura e concerne à fundação do sujeito na partilha sexual. Assim, a autora acredita
que ser homem ou mulher é uma questão de estrutura, enquanto ser viril ou feminino é o
modo de o sujeito lidar com o impossível colocado pela estrutura.
Destacamos das considerações dessas autoras a importância do conceito de corpo
em jogo nas suas elaborações e os paradoxos que as formulações de Lacan engendram ao
serem interpretadas de maneiras distintas.
Em psicanálise, o conceito de corpo sempre foi motivo de discussões e
controvérsias. Se nos guiarmos unicamente pela frase de Lacan no seminário Mais, ainda
“Os homens, as mulheres e as crianças não são mais do que significantes” (LACAN, 1972-
73/1985, p.46) podemos supor que portar um corpo de homem ou de mulher não tem
conseqüências psíquicas; que se trata apenas de alinhar-se de um lado ou de outro das
fórmulas. Ainda nesse seminário, podemos ler:
“A gente se alinha aí, em suma, por escolha [...] Todo mundo sabe
que mulheres fálicas, e que a função fálica não impede os
homens de serem homossexuais. Mas é ela também que lhes serve
para se situarem como homens, e abordar as mulheres” (LACAN,
1972-73/1985, p.97).
A leitura desavisada dessas pontuações pode-nos levar a desconsiderar que, embora
Lacan privilegie, em diferentes momentos de sua obra, diferentes registros inicialmente o
imaginário, depois o simbólico, e finalmente o real tal privilégio não implica que ele
passe a desconsiderar os outros dois.
Outro ponto importante a ser ressaltado nessa análise é a própria estrutura da
articulação entre o corpo e a linguagem. Ainda que ‘ser homem’ ou ‘ser mulher’ seja da
ordem do significante, a própria inscrição do significante no corpo depende da queda de um
pedaço do corpo, pedaço que se constitui como irredutível à dimensão significante, ou seja,
como objeto a.
Como vimos anteriormente, a constituição do objeto a não se da mesma maneira
no homem e na mulher. Embora a simples posse de um corpo não diga sobre a posição do
sujeito frente ao seu sexo, ter um corpo de macho ou de fêmea tem conseqüências
psíquicas. A questão é delicada e exige cuidado ao abordá-la.
Considerando a especificidade ressaltada por Brodsky quanto à distinção entre
posição subjetiva e posição sexuada, colocamos a questão: seria possível pensar, além da
dimensão ética da assunção de uma posição sexuada pelo sujeito, na dimensão ética da
posição do sujeito na sua relação com o outro do sexo?
Utilizamos a expressão ‘outro do sexo’ justamente para enfatizar que a eleição pelo
sujeito de um objeto do desejo comporta, também, a escolha de um parceiro do mesmo
sexo. Sendo assim, perguntamo-nos: seria a homossexualidade um modo de o sujeito se
relacionar com o impossível colocado pela lógica que rege sua posição sexuada? Dito de
outro modo, será que, frente ao impossível colocado pela inscrição do sujeito na linguagem
e, conseqüentemente, numa posição sexuada, poderíamos supor que o modo de relação do
sujeito com a lógica na qual ele se inscreve comporta diferentes formas de eleição de
objeto?
Nossa questão, portanto, deve ser analisada em dois níveis. No primeiro, está em
jogo o questionamento sobre o modo como o sujeito assume uma posição sexuada. Quanto
ao segundo, concernente a um momento posterior, isto é, a partir da assunção de uma
posição sexuada, perguntamo-nos: teria o sujeito mais de uma maneira de se colocar
perante o impossível que a lógica na qual se inscreveu na sexuação comporta?
Para Brodsky (2008), na sexuação, homens e mulheres se repartem em relação à
função fálica, e não em relação ao falo como atributo. Dessa maneira, enquanto a posição
sexuada diz respeito à inscrição dos significantes ‘homem’ ou ‘mulher’, a posição subjetiva
concerne à atribuição, pelo Outro, das insígnias da virilidade ou da feminilidade.
A lógica masculina da sexuação diz respeito a uma exceção que funda a regra e
possibilita a articulação do gozo com a linguagem. Assim, o modo de relação do homem
com o falo está no registro do ter. O que está em jogo na lógica masculina da sexuação é o
falo como objeto perdido que se visa a recuperar. Frente a essa operação, o sujeito pode se
situar de duas maneiras: buscar o falo que lhe falta na mulher, colocada como objeto do
desejo, ou buscar, na relação com outro homem, o falo que não se perde.
Ao problematizar a homossexualidade masculina, Lacan (1957-58/1998) evidencia
que o que está em jogo na posição homossexual de um homem diz respeito a sua relação
com o objeto. Segundo Lacan, há “uma supervalorização do objeto, sob a forma geral como
este costuma se apresentar no homossexual, de tal sorte que nenhum parceiro passível de
lhe despertar interesse pode ser privado desse objeto” (LACAN, 1957-58/1998, p.215).
O que está em jogo na eleição do objeto pelo homossexual masculino é justamente a
falha do pai em transmitir a função do falo como semblante. A falha na transmissão do
semblante fálico implica para o sujeito a impossibilidade de experimentar a ausência do
falo como modo de relação entre os sexos um homem só pode se dirigir para uma mulher
se ele responde à negativização do falo pelo viés do semblante. Na impossibilidade de
utilizar o semblante como recurso para dar conta da ausência do falo, no próprio sujeito ou
no pai, o homem se dirige a outro homem, localizando o falo que lhe falta no órgão
daquele.
Lacan problematiza vários modos de falha na transmissão paterna do semblante
fálico - pela intermediação de uma mãe extremamente fálica ou, até mesmo, pelo amor
excessivo do pai pela mãe. O que vale salientar, nesse contexto, é justamente a falha em
transmitir para o sujeito a dimensão de semblante do falo.
O que está em questão no homossexualismo masculino é o questionamento sobre o
estatuto do falo no pai. Segundo Lacan (1957-58/1998), a exigência do homossexual de
encontrar em seu parceiro o órgão peniano corresponde ao interesse em saber se, na
verdade, o pai tem ou não tem o falo.
Assim, o que está em jogo na lógica masculina da sexuação é o questionamento do
falo o nível do ter. O pai, como exceção que funda a regra, desvela para o sujeito a
impossibilidade de ter falo de outro modo que não seja pela falta. Porém, ele também
coloca para o sujeito a possibilidade de se utilizar das insígnias fálicas como semblante. Se
o pai falha ao transmitir a dimensão do semblante no qual o falo se inscreve, o sujeito fica
preso na crença de que é possível ter o falo de outro modo que não seja por sua ausência.
A lógica feminina na posição sexuada se faz ainda mais paradoxal. Na ausência de
uma exceção que funde a regra, o sujeito se confrontado com um gozo que não se limita
ao gozo fálico e, portanto, não se articula à linguagem. Outro fator pouco normatizador da
posição feminina é a ausência de um significante que diga o que é uma mulher.
Diante da impossibilidade de nomeação significante, a mulher se divide entre
procurar no falo o significante que diga o que é a mulher para o desejo de um homem; e
demandar um significante que solucione o enigma da feminilidade. A divisão feminina
corresponde à posição da mulher na segunda parte das fórmulas da sexuação.
A posição feminina, portanto, diz respeito ao enigma sobre “o que é uma mulher?”.
Ao salientar que a mulher é Outra até para si mesma, Lacan (1972-73/1985) assinala
justamente essa divisão da mulher diante do enigma da feminilidade. Assim, a posição
feminina se relaciona a um questionamento do ser, e é nessa vertente que o falo faz sua
entrada no modo de relação da mulher com o desejo do Outro.
Ao definir a posição feminina na lógica fálica, Lacan (1957-58/1999) nos diz que,
diante da ausência do falo, nela mesma e no outro, a mulher faz semblante de ser esse falo
que falta. Porém, ao se colocar no lugar do falo que falta, a mulher experimenta a
vewerfung de sua posição subjetiva. Dessa maneira, na ausência de um significante que
diga o que é uma mulher, a mulher tem duas vias a seguir: a primeira é fazer-se objeto do
desejo de um homem; a segunda, questionar o estatuto do desejo de um homem por uma
mulher.
A complexidade da posição feminina reside no fato de que essas duas posições não
são excludentes, mas complementares. A posição histérica ilustra essa divisão da mulher
perante o enigma da feminilidade. Com efeito, a histérica adota uma posição masculina
identificando-se ao pai para saber o que uma mulher representa para o desejo de um homem
e, ao mesmo tempo, pergunta-se como poderia ela ocupar esse lugar identificando-se,
portanto, a uma posição feminina.
A lógica feminina na sexuação comporta o paradoxo de não poder o falo dizer da
posição feminina como um todo. Esse é o grande impasse ao se abordar a posição feminina
a partir da relação da mulher com o falo. Se a função fálica é o que rege a relação entre os
sexos, do lado feminino, o falo não basta para dizer da posição da mulher na sua relação
com o outro do sexo.
Faz-se necessário, então, para articularmos a questão da lógica feminina na
sexuação e sua relação com a escolha de um parceiro sexual, aprofundar os estudos sobre a
histeria e sobre a posição homossexual na mulher.
Ao problematizar essas questões, temos como objetivo salientar a importância e a
complexidade da abordagem da dimensão ética da diferença sexual. Ao longo desta
dissertação, procuramos estabelecer uma primeira forma de abordagem do tema.
Retomando a advertência de Miller (1998/2003), colocamos a questão: poderíamos
considerar que a posição sexuada diz respeito à inscrição do sujeito em um dos lados das
fórmulas da sexuação, enquanto a posição do sujeito frente à sexuação concerne ao modo
de o sujeito lidar com a lógica que rege a sua posição sexuada?
Ao analisar a função fálica, Lacan (1972-73/1985) nos diz quemulheres fálicas e
que a função fálica não impede os homens de serem homossexuais. Considerando esse
enunciado, reconhecemos que a função fálica es em jogo para ambos os sexos. Do lado
feminino, ser mulher não impede o sujeito de se posicionar de modo viril. Do mesmo
modo, ser homem concerne à inscrição do lado masculino das fórmulas, mas não garante
que a posição viril. Enfim, os paradoxos dessa formulação exigem um exame mais
detalhado.
Essas considerações suscitam ainda o questionamento sobre o estatuto do semblante
na relação do sujeito com o outro do sexo. Será que podemos considerar que a escolha do
sujeito por um parceiro do mesmo sexo comporta a mesma dinâmica dos semblantes que
regem a relação do sujeito com o outro sexo?
O estatuto dos semblantes nas relações entre os sexos é uma preocupação atual e
tem sido tema de muitas discussões no meio psicanalítico. Segundo Miller (1998/1996), a
própria função do semblante é colocada em questão no discurso contemporâneo, uma vez
que ele se desvincula da dimensão do real. A época atual funciona segundo uma lógica na
qual tudo não é senão semblante, razão pela qual o estatuto do real é colocado em questão.
A disseminação do discurso da igualdade, baseado nos ideais da Revolução
Francesa e fundamentado no estatuto dos direitos humanos, tem como conseqüência o
enfraquecimento da dimensão do semblante no aparelhamento do gozo, uma vez que apaga
as diferenças geracionais e sexuais.
A posição da psicanálise nesse contexto é questionar os novos modos de
aparelhamento do gozo que a contemporaneidade possibilita. Miller assinala que, à medida
que a dimensão colocada pela impossibilidade da relação sexual é apagada, é a própria
função do real que é colocada em questão: “Poderíamos dizer, mal estar quanto ao real”
(1998/1996, p.06).
Para Miller (1998/1996), o uso dos semblantes se torna vão e inoperante se é feito
impasse sobre o real de que se trata. Assim, o discurso contemporâneo, ao desconsiderar as
diferenças entre os sexos em prol de uma igualdade de direitos e deveres, relega o
semblante à dimensão de puro engodo.
Brodsky (2008) acompanha essa reflexão ao se perguntar sobre o estatuto da
comédia entre os sexos na contemporaneidade, diante da decadência do Nome-do-Pai e dos
emblemas fálicos. A autora assinala que o regime da comédia foi aquele articulado por
Freud e Lacan como relacionado à lógica fálica, e se pergunta se existe uma comédia entre
os sexos fora da comédia do falo em suas distintas variações.
Caldas (2008) nos propõe pensar o amor como um semblante que propicia um
tratamento possível do real e que pode apontar soluções para a tragédia da castração.
Segundo a autora, o amor é uma via que permite, justamente por passar pelo semblante, dar
ao gozo um destino cultural, sustentado a parceria que possibilita o real do sexo.
Seguindo essa via, Caldas (2008) também se pergunta como situar na clínica o
tragicômico contemporâneo da sexuação, e problematiza a questão da felicidade no
encontro entre os sexos. A autora conclui que a conjunção entre amor e felicidade
dependerá das conseqüências que o sujeito extrai do encontro com a inexistência da relação
sexual e de como lida com a promessa que não se cumpre. Trata-se de um saber fazer com
o impossível colocado pelo sexo no “amor nosso de cada dia” (CALDAS, 2008, p.17).
Coelho dos Santos (2008) retoma essa discussão ao questionar a vacilação dos
semblantes da diferença sexual. A autora se pergunta como os casais de hoje em dia
definem o semblante do seu sexo. Relaciona a desvinculação entre os papeis sexuais
masculinos e femininos − que anteriormente pareciam segregados e aparelhados à diferença
anatômica − com a vacilação dos semblantes. Frente a essas considerações, indaga-se sobre
o que orienta a escolha de objeto quando o semblante não mais é operacional para definir a
diferença entre os sexos.
O desdobramento dos impasses do semblante na contemporaneidade permite-nos
situar a relação entre o semblante e o real que se inscreve pela impossibilidade da relação
sexual. Ao pensarmos que a psicanálise funda uma clínica orientada a partir de um
posicionamento ético baseado na constatação da inexistência da relação sexual o
semblante passa a ser o único modo possível de encontro entre os sexos.
Retomando a questão anterior sobre o estatuto do semblante em sua relação com a
escolha de objeto, e considerando que a relação do sujeito com o outro do sexo se
fundamenta na lógica de funcionamento de sua posição sexuada, perguntamo-nos: será que
a relação do sujeito com o outro do mesmo sexo se organiza segundo a mesma dinâmica do
semblante em jogo no encontro com o outro sexo? Poderíamos falar de comédia na relação
do sujeito com o outro do mesmo sexo?
Nesse ponto, as considerações contemporâneas sobre o estatuto do semblante na
relação entre os sexos evocam os mesmos questionamentos sobre a relação do sujeito com
o outro do mesmo sexo. Ora, se não mais diferença entre os sexos, a escolha
homossexual passa a ser da mesma ordem que a escolha heterossexual?
O perigo de se desconsiderar a diferença entre os sexos é justamente não dar lugar
para que o impossível da relação sexual se coloque. Supomos que, frente ao impossível
colocado pela estrutura, o sujeito pode seguir vias distintas no modo de tratar esse
impossível, sem, contudo, conseguir eliminá-lo. A diferença é constituinte do sujeito na
posição neurótica e, conseqüentemente, em sua localização na partilha sexual. Por mais que
o sujeito tente negar essa diferença, está totalmente concernido nela.
Coelho dos Santos (2008) avança nessa discussão apontando que, mais-além de uma
ética do desejo, o que está em jogo na dessimetria entre os sexos é a responsabilidade pelo
sintoma. Para a autora, o amor nasce da responsabilidade pela diferença sexual. Contudo,
não se trata, para o homem e para a mulher, da mesma responsabilidade.
Segundo Coelho dos Santos (2008), o que está em jogo na diferença entre os sexos
não é uma diferença de representações de gênero, mas a diferença estrutural entre o sintoma
do homem e o da mulher.
Essas considerações nos suscitam novos questionamentos e nos instigam a
prosseguir na investigação sobre a dimensão ética da diferença sexual.
Enfim, partindo dos impasses encontrados por Freud ao constatar a dessimetria
entre os sexos, enveredamos pelas primeiras considerações de Lacan sobre o estatuto
significante do falo e os paradoxos do enigma do desejo na relação entre os sexos. Ao
longo desse percurso, muitas perguntas foram sendo respondidas, mas também muitos
impasses se evidenciaram. Temos, assim, o desafio de continuar a problematizar os efeitos
da contemporaneidade na relação entre os sexos e sustentar uma posição ética frente aos
impasses que a desconsideração da dessimetria entre os sexos suscita.
REFERÊNCIAS
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CALDAS, H. (2008) “O amor nosso de cada dia”. In: Latusa, n. 13. Rio de Janeiro: Escola
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