Download PDF
ads:
1
UFRJ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA
PSICANALÍTICA
A QUESTÃO FEMININA NA OBRA FREUDIANA
IMPASSES E AVANÇOS DE FREUD COM RELAÇÃO AO ENIGMA DA FEMINILIDADE
Aluna: Ana Carolina Dominguez Lynch
Orientadora: Fernanda Costa-Moura
Rio de Janeiro
2006
__________________________________________________________________
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
_________________________________________________________________________
A QUESTÃO FEMININA NA OBRA FREUDIANA
IMPASSES E AVANÇOS DE FREUD COM RELAÇÃO AO ENIGMA DA FEMINILIDADE
Ana Carolina Dominguez Lynch
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do Título de Mestre em Teoria
Psicanalítica, sob orientação da Prof.ª
Fernanda Costa-Moura.
Mestrado em Teoria Psicanalítica
Rio de Janeiro
Março de 2006
ads:
3
________________________________________________________________________
A QUESTÃO FEMININA NA OBRA FREUDIANA: IMPASSES E AVANÇOS DE
FREUD COM RELAÇÃO AO ENIGMA DA FEMINILIDADE
Ana Carolina Dominguez Lynch
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica
do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Teoria Psicanalítica
Aprovada em ___ de __________ de 2006.
Pela banca examinadora.
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Fernanda Costa-Moura
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Regina Herzog
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ângela M. M. Coutinho
Rio de Janeiro
2006
4
_________________________________________________________________________
FICHA CATALOGRÁFICA
LYCNH, Ana Carolina Dominguez
A questão feminina na obra freudiana: impasses e avanços de Freud
com relação ao enigma da feminilidade/ Ana Carolina Dominguez
Lynch. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2006, 151f.
Orientadora: Fernanda Costa-Moura
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Instituto de Psicologia/ Programa de
Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2006.
Referências Bibliográficas: f. 148 a 151.
1. Feminilidade 2. Sexualidade Feminina 3. Histeria 4. Inominável 5.
Percurso Freudiano
I. Fernanda Costa-Moura II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica. III. Título.
_________________________________________________________________________
5
RESUMO
A dissertação percorre os caminhos por meio dos quais Freud se aproxima da questão da
feminilidade e da questão inominável que o sexo feminino encarna. Sublinha-se o percurso
de Freud em busca do desvendamento da histeria e do inconsciente, passando pela a teoria
das pulsões e, finalmente, chegando à concepção de Freud acerca da feminilidade e da
sexualidade feminina, para indicar os avanços que a obra freudiana promoveu sobre o tema,
mas também os impasses clínicos e teóricos que relevam da perspectiva freudiana. De tal
trajetória ressalta-se a questão do inominável que carrega a feminilidade, apontando para o
crescente eclipse dessa questão na obra de Freud, a qual assinala em seus primórdios algo
da ordem de um encontro real atualizado pela feminilidade e para o qual faltaria nome,
palavra, significante – mas que, paradoxalmente, acaba se afastando desse ponto justamente
a partir da construção da teoria da castração e do Complexo de Édipo. A partir daí, indica-
se, em linhas gerais, a direção da releitura que Lacan promoveu sobre esse percurso de
Freud, vislumbrando uma outra saída para o desejo feminino diferente da questão da
maternidade proposta por Freud em sua obra, e levanta-se a questão a ser desenvolvida num
aprofundamento futuro da leitura lacaniana sobre uma posição propriamente feminina, para
além da histeria e da maternidade.
Palavras-Chave: Freud. Feminilidade. Histeria. Sexualidade feminina.
RÉSUMÉ
On a parcouru les chemins par lesquels Freud s’est approché à la question de la feminilité et
de l’ínnommable que le sexe féminin incarne. On souligne le parcours par lequel Freud
essaiait de dévoiler l’hystérie et l’inconsciente. Puis, on arrive à la théorie des pulsions et,
finalement, à la conception de Freud sur la feminilité et la sexualité féminine pour indiquer,
ainsi, les avances promu sur le thème chez Freud, mais, aussi, les impasses cliniques et
théoriques qui jaillissent de la perspective freudienne. On releve la question de
l’innommable que la feminilité emporte, en pointant l’’eclipse croissant de cette question
dans l’oeuvre freudiénne. Laquelle signale à son debut un encontre réel actualisé par la
feminilité pour laquelle il manquerait nom, mot, signifiant mais qui, paradoxalement,
s’éloigne de ce point justament a partir de la construction de la théorie de la castration et du
complex d’OEdipe. On indique, a partir de ce moment là, et grosso modo, la relecture faite
par Lacan du Freud, entrevoyant une autre destin, differente de celle proposé par Freud
dans son oeuvre, pour le désir féminin. Enfin, on questionne une position proprement
féminine au-délà de l’hystérie ou de la maternité, en laissant ouverte cette question pour un
prochain approfondissement.
Mots-clés : Freud. Feminilité. Hystérie. Sexualité féminine
6
_________________________________________________________________________
Para aquela que, desde antes de nascer,
mudou para sempre minha vida...
minha filha, Ana Beatriz.
_________________________________________________________________________
7
“Não tenho palavras a dizer.
“Não tenho palavras a dizer.“Não tenho palavras a dizer.
“Não tenho palavras a dizer.
Porque não me calo então? Mas se eu não forçar a palavra, a
Porque não me calo então? Mas se eu não forçar a palavra, a Porque não me calo então? Mas se eu não forçar a palavra, a
Porque não me calo então? Mas se eu não forçar a palavra, a
mudez me
mudez me mudez me
mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma
engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma
engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma
serão a estátua onde boiarei sobre os vagalhões de mudez.”
serão a estátua onde boiarei sobre os vagalhões de mudez.”serão a estátua onde boiarei sobre os vagalhões de mudez.”
serão a estátua onde boiarei sobre os vagalhões de mudez.”
(LISPECTOR, C., A paixão segundo G.H.)
8
AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
À CAPES
A minha mãe, pela incondicionalidade de seu amor;
Ao meu pai, por exercer o seu papel e me mostrar que o amor não é incondicional;
Ao meu marido, por tudo aquilo que ele não me pediu, por tudo que ele abdicou, pelo
incentivo e por ter me permitido a solidão necessária ao trabalho;
A minha avó, por ter sido pai, mãe e amiga sempre que isso se mostrou necessário;
A minha prima Julia por ter estado comigo em muitas noites sem dormir;
A meu amigo Tiago, pelas palavras otimistas nas horas mais difíceis;
A Fernanda, minha orientadora, por ter me acompanhado neste desafio.
9
_________________________________________________________________________
SUMÁRIO
Introdução.......................................................................................................................... 1
1- Genealogia da histeria e da feminilidade na obra freudiana ................................... 13
1.1 Um percurso histórico acerca da diferença sexual e da histeria........................ 13
1.2 Freud e Charcot - primeiros passos para a teoria sobre os sintomas histéricos 21
1.3 Freud e Breuer: Ana O. e Estudos sobre a Histeria .......................................... 25
1.4 Relação Freud -Fliess e o Sonho de Injeção de Irma........................................ 31
2- Auto-Análise de Freud e suas conseqüências para o desenvolvimento da teoria da
sexualidade e sexualidade feminina na primeira tópica................................................ 51
2.1 Freud e sua auto-análise................................................................................. 51
2.2 Freud e sua teoria acerca da sexualidade e da sexualidade infantil................... 55
2.3 A sexualidade feminina na primeira tópica freudiana....................................... 62
2.4 Complexo de Édipo e Complexo de Castração na obra freudiana........ ........... 72
3- O percurso de Freud em torno da histeria e a relação da histeria com a
problemática da feminilidade .......................................................................................... 78
3.1Os avanços na teorização freudiana acerca da histeria: o recalque e o
trauma.................................................................................................................................. 78
3.2 A repulsa e o sintoma de conversão na histeria................................................. 87
3.3 Sonho e desejo na histeria: Freud e o Sonho da Bela Açougueira..................... 94
3.4 O Caso Dora .................................................................................................... 101
4- A virada da obra freudiana: impasses e avanços sobre a problemática da
feminilidade e da sexualidade feminina na segunda tópica..........................................110
4.1 Pulsão de morte e masoquismo....................................................................... 110
4.2 Freud e a teoria da sexualidade feminina a partir da segunda tópica............... 118
4.3 O Outro inicial e o período pré edípico feminino............................................ 127
4.4 O impasse freudiano com relação ao tornar-se mulher................................... 135
Conclusão......................................................................................................................... 142
Referências Bibliográficas.............................................................................................. 148
_________________________________________________________________________
10
_______________________________________________________________
INTRODUÇÃO
_______________________________________________________________
O que é ser uma mulher? O que nos faz ter a convicção de dizer que aquele alguém
é uma mulher? O que caracteriza propriamente o feminino, que, ao evocarmos este
significante, já parece carregar todo um enigma, todo um turbilhão de novos significantes?
1
Essas são algumas das questões que permearam o trabalho de Freud e que orientam esta
dissertação, que parte em busca da questão da feminilidade no percurso freudiano.
Aprendemos com Freud que: “Através da história, as pessoas têm quebrado a
cabeça com o enigma da natureza da feminilidade” (1933[1932], p. 114). Por que será que
tantos falam do tópico exaustivamente, mas de maneira a deixar sempre uma fresta, um
lapso, para que outros também sejam incitados a dizer? Assim como aconteceu com o
próprio Freud, que, ao ato de coragem de seguir em busca de saber o que é próprio da
mulher, deixou um cego em forma de um impasse: será que o único caminho que
caracteriza propriamente a posição feminina é o desejo por um filho?
2
O que quer a
mulher?
Para Freud, o tema era de tal maneira obscuro que conclui seu último texto
especificamente a respeito do tema da feminilidade da seguinte forma:
Certamente está incompleto e fragmentário, e nem sempre parece
agradável. Mas não se esqueçam de que estive apenas descrevendo as
mulheres na medida em que sua natureza é determinada por sua função
sexual. É verdade que essa influência se estende muito longe; não
desprezamos, todavia, o fato de que uma mulher possa ser uma criatura
humana também em outros aspectos. Se desejarem saber mais a respeito
da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores,
ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes
informações mais profundas e mais coerentes” (idem., p. 134).
1
Para Lacan, o ser humano é um ser fundamentalmente de linguagem, o que significa dizer que é atravessado
e constituído pela mesma. A linguagem, por sua vez, constitui-se pelos significantes, que são definidos pela
diferença. Um significante é diferente do outro. Assim, na obra de Lacan o significante aparece descolado do
significado; ele tem função enquanto marca simbólica que representa o sujeito. Daí a fórmula de Lacan: “O
significante é o que representa o sujeito para um outro significante”.
2
Freud, em sua Conferência sobre A Feminilidade (1932 [1933]), afirma que: “a situação feminina se
estabelece se o desejo de nis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar do
pênis, consoante uma primitiva equivalência simbólica” (p. 128).
11
Assim, Freud deixa um campo entreaberto. Suas próprias palavras insistem em
dizer que algo desse enigma continua recoberto. Mas há também uma questão que se abre à
leitura mais atenta dessa citação: será que Freud nos aponta para um aspecto não humano
da mulher? Afinal ele acentua que a mulher pode ser uma criatura humana em outros
aspectos, mas quando ele aponta para essa possibilidade, abre também um campo em que
aponta para algo que escapa à humanidade presente na mulher. É sobre essa intuição de
Freud, de algo da mulher que escapa à humanidade enquanto inserida na lógica fálica, que
discorreremos no percurso desta dissertação.
Para entrarmos no campo da feminilidade na obra freudiana, objetivo desta
dissertação, abordaremos também a questão da sexualidade em Freud. Ele introduz, como
primeiro grande passo para a questão da sexualidade humana, o fato de que “quando
encontram um ser humano, a primeira distinção que fazem é ‘homem ou mulher?’ e os
senhores estão habituados a fazer essa distinção com certeza total” (idem., p.114). Na
verdade a anatomia não ajuda a definir o que é um homem ou o que é uma mulher. A
sexualidade no humano não é dada, e sim construída a partir dessa primeira nomeação,
marcada ao nascimento.
“Essa é uma menina”, o médico diz do recém-nascido, mas cada menina se refirirá a
uma construção no desejo de cada um dos pais. Ambos é que vão fornecer os significantes
para que este sujeito que nasce possa se constituir sexualmente. Freud define que: “aquilo
que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge
do alcance da anatomia” (idem, p. 115). Isso traz como conseqüência que a sexualidade
humana é empreendida e consolidada por meio de um trabalho feito a partir da nomeação
no decurso da vida de cada ser humano, um trabalho ímpar, indelével e, mais ainda,
extremamente solitário.
Isso porque, apesar da presença do Outro enquanto Outro materno ou do Outro no
sentido do campo da linguagem, como explicita Lacan, o que se conclui a partir da
sexualidade humana em cada caso é que há sempre algo que o Outro não pode dar, algo que
o Outro não pode dizer, e que uma posição a ser tomada a partir disso. O que cada um
faz, solitariamente, é exatamente isso que não se pode dizer, que o Outro não pode dar. É
disso que trata a feminilidade. Como narra André (1986):
12
A psicanálise chegou a designar na feminilidade a figura maior, e sem
dúvida original desse ‘não-todo’e, na teoria da castração, a resposta que o
inconsciente elabora em face do impossível de dizer que o sexo
feminino encarna
1
(p. 10).
Em Freud, por toda sua obra e, especialmente, desde o começo dela, a questão
feminina está relacionada a algo que lhe escapa, que a teoria não consegue apreender, um
enigma, diz Freud, como citado acima, uma questão que surge a partir de suas pacientes
histéricas que chegavam pedindo que respondesse a questões a respeito do seu próprio
sexo.
Dora, segundo Lacan (1951), como trabalharemos no Capítulo 3, queria saber sobre
isso. Sob o véu da indignação que nutria a respeito da história de seu pai com a Sra. K, ela
trazia a Freud sua grande questão acerca da feminilidade, “da feminilidade corporal”, nas
palavras de Lacan, que chegava até ela como um enigma insuportável, que a fazia calar. Foi
a partir da renovação incessante dessas demandas, em sua clínica, que Freud começa sua
busca do inconsciente, o que gera o nascimento da psicanálise, com sua questão clássica
acerca do desejo feminino. Tão insatisfeitas mostram-se as mulheres histéricas que ele
tratava que cabe perguntar: O que será que elas verdadeiramente desejavam?
Outra peculiaridade dessa questão é que o percurso que Freud segue em sua obra de
desvendamento do enigma da feminilidade é o mesmo percurso de cada análise
singularmente começando pelo destacamento e endereçamento do sintoma, abre o
caminho para a divisão psíquica e o acesso ao inconsciente e ao conteúdo recalcado, segue
para o modo de satisfação pulsional e o encontro com a sexualidade e, finalmente, abre-se à
possibilidade do encontro com a questão do outro sexo.
O que queremos dizer com isso é que o percurso da obra freudiana em direção ao
desvendamento da sexualidade feminina coincide com a análise de cada mulher, de cada
caso de histeria que se renova. Freud fala primeiro dos sintomas histéricos, da conversão
somática, que indica que algo de simbólico no corpo (1895). A partir disso, começa sua
teoria a respeito do inconsciente, dos sonhos, do desvendamento simbólico possível a partir
da associação livre. Pensa, concomitantemente, na etiologia do sintoma, quando a
sexualidade entra em cena. É a partir do trabalho com a teoria da sexualidade que pode
1
Grifo nosso.
13
começar a elaborar sua teoria sobre as pulsões, sobre o narcisismo e, posteriormente,
sobre a pulsão de morte e a sexualidade feminina.
Então, o contato com aquilo que fica fora do campo simbólico, daquilo que é
impossível de dizer, é o epicentro do novelo de significantes, que vai sendo posto em
movimento pelo processo analítico: a tentativa de dizer o que é impossível de ser dito, o
encontro com o real, com a pulsão de morte e também com a feminilidade, como
trabalharemos em cada capítulo da dissertação. Afinal, como pontua André (1986):
“A
primeira constatação efetuada pelo psicanalista é a de que o humano não pára de querer falar
daquilo que não pode dizer (a mulher, a morte, o pai, etc.)” (p. 10).
São esses temas também que Freud, como mostraremos, veio a abordar tardiamente
em sua obra, mesmo que estivessem presentes por toda ela, talvez como um fantasma.
1
Assim, sobre o tema da feminilidade, apontaremos os avanços que Freud empreendeu, mas
marcaremos também os impasses que nos deixou, os quais Lacan retoma em sua obra,
formalizando as questões em outros termos e extraindo novas conseqüências.
2
É importante também salientar neste ponto que o conceito de feminilidade vai ser
entendido nesta dissertação a partir da releitura feita por Lacan (1975) da obra freudiana,
que acaba por entender a feminilidade como um “além da ordem fálica”, ou seja, algo que
aponta para fora do campo simbólico e que cria, portanto, impasses para o sujeito, na
medida em que é impossível identificar a feminilidade, defini-la positivamente. Por isso,
diremos que a feminilidade traz em si a questão do inominável do sexo feminino,
encarnando essa impossibilidade de significação, resultante da falta que o próprio campo
simbólico faz emergir, como, aliás, o próprio Freud sublinha
3
, ao final de seu percurso,
quando afirma que tanto o homem quanto a mulher repudiam a feminilidade.
1
Entendendo aqui o conceito como descreve Cabas, (1992), p.104: “os fantasmas são respostas a um enigma
expresso num conflito de base”.
2
Nesta dissertação, não temos por objetivo desenvolver a teorização que Lacan faz sobre o tema da
feminilidade propriamente dito, principalmente a partir do seu Seminário XX, Mais,Ainda” (1972-73). No
entanto, tomaremos a leitura de Lacan para nos amparar nessa trajetória de retorno à obra freudiana.
Utilizaremos, portanto, a leitura que Lacan fez da própria obra freudiana, como ancoramento para nossas
pontuações em diversos momentos desse percurso.
3
“Penso, que desde o início, ‘o repúdio à feminilidade’ seria a descrição correta dessa característica notável
da vida psíquica dos seres humanos [...]” (1937, p. 268)
14
Ora, o repúdio à feminilidade assinalado por Freud pode ser pensado, na esteira das
formulações de Lacan, como um horror no encontro com esse vazio de sentido que a
feminilidade encarna, testemunha absoluta da falta última de um significante último que
pudesse fazer existir A mulher
1
, como o coloca Lacan (1972-73), tornando possível a
complementaridade absoluta entre os sexos, a que Lacan denomina ironicamente de
“relação sexual”. Trata-se de uma angústia que se renova diante desse impossível de dizer.
Assim, a questão que se coloca a partir desta constatação, como horizonte e guia dessa
dissertação, a partir de al constatação é: Uma vez que a feminilidade traz consigo e atualiza
enquanto esse “de fora da ordem fálica”, ou seja, um fora da representação, algo que excede
aquilo que se pode dizer, quais seriam as possibilidades do sujeito no trato com a própria
feminilidade, para além da saída pela histeria?
O caminho trilhado nesta dissertação objetiva, portanto, a pesquisa da questão da
feminilidade na psicanálise, empreendendo um estudo da histeria e da feminilidade na obra
de Freud, marcando o impasse freudiano acerca do desejo feminino e apontando para a
presença de um lugar para o inominável que carrega o sexo feminino, principalmente no
início da obra freudiana. Lugar que, como irá apontar a releitura
2
feita por Lacan que
empreende uma leitura de Freud partindo do final de sua obra para o início, “uma retomada
pelo avesso do projeto freudiano”
3
—, vai tendendo a desaparecer com a fundamentação
da teoria da castração e dos três destinos possíveis da mulher.
4
Retomamos a obra freudiana nos seus primórdios visando seguir, a partir do estudo
da histeria, o caminho percorrido por Freud no que tange à sexualidade feminina e à
feminilidade. Buscamos no percurso freudiano aquilo que ele pode dizer sobre a
feminilidade e a sexualidade feminina e também o que se indica a respeito de uma
posição propriamente feminina em que o sujeito possa se colocar.
É importante ressaltar, portanto, que os conceitos de feminilidade e sexualidade
feminina não se igualam nesta dissertação. Tendo descrito a maneira como abordaremos
1
Escrevemos “A mulher” com o A em letra maiúscula exatamente para apontar essa impossibilidade
significante do sexo feminino, o que, portanto, faz com que não exista a mulher enquanto modelo de
identificação ou como algo que se possa designar num grupo.
2
Para Julien, (1989), Lacan toma a obra freudiana num ato de “extração no texto de um outro texto” (p. 8),
recebendo-o... como uma palavra que nos interroga e pede uma resposta. Como ela nos interroga? Pelo que
está indicado no vazio, ausente como lacuna no próprio texto. De fato, porque o sentido da descoberta de
Freud é o inconsciente, não se esgota no relato clínico ou metapsicológico que ele faz” (p. 8).
3
J. Lacan, “De nos antécedents”, Ecrits; apud. André S., 1986, p. 67.
4
Essa idéia é respaldada na obra de André S., 1986., p. 66 e seguintes.
15
o conceito de feminilidade, resta-nos apontar que entendemos o conceito de sexualidade
feminina como referindo-se àqueles aspectos, especificamente, que caracterizam uma
sexualidade humana vivida no feminino. Trata-se do conceito de sexualidade tal como ele é
compreendido pela psicanálise, mas desta vez conjugado no feminino e delimitado para as
mulheres. Assim, entendemos que o conceito de sexualidade feminina aponta para a
especificidade da mulher no que diz respeito aos possíveis destinos que pode seguir em sua
vivência da posição sexuada feminina. Estes destinos, segundo Freud (1931), podem ser
três: recusa e abandono da sexualidade; complexo de masculinidade; e atitude feminina
normal.
O sujeito do inconsciente
1
, tal como concebido por Lacan, é aquele que no humano
representa o que lhe falta, ou seja, aquele que porta a marca inconsciente da castração. É,
então, a partir da estruturação significante que o sujeito pode ser fundado, a partir da
relação com o Outro inicial. O sujeito, sob esse aspecto, não pode ser considerado
feminino; afinal, ele surge a partir de um traço, uma marca impressa no inconsciente, que
remete ao que de mais particular em cada ser humano. A passagem pelo Complexo de
Édipo, de outro lado, exige que o sujeito se posicione em relação à castração. Portanto, não
um sujeito feminino, mas uma posição feminina, que pode ou não se tomar de acordo
com a história de cada sujeito.
Desde Freud, o representante psíquico da mulher falta, e é em relação a esta falta de
um significante que diga sobre o ser da mulher que se define a posição do sujeito entre a
histeria e a feminilidade. Trataremos então de delimitar nesta dissertação os caminhos
possíveis para a feminilidade na obra freudiana e apontar, apenas como horizonte, para uma
outra saída proposta por Lacan, que possibilitaria à mulher um destino diferente do que o
desejo da maternidade, na medida que Lacan singulariza a mulher e seu desejo.
O Capítulo 1 da presente dissertação de mestrado trata do percurso freudiano em
direção ao desvendamento da histeria, abordando, inicialmente, o contexto histórico a partir
do qual se dava a discussão sobre a histeria e a feminilidade na época que Freud iniciou seu
1
“Se nos atemos ao mecanismo significante, o significante é, então, a causa do sujeito, a ponto de se poder
dizer que, sem o significante, não haveria nenhum sujeito no real e que o sujeito sempre está no real sob a
forma de uma descontinuidade ou de uma falta, sob formas que repercutem o conjunto vazio” (MILLER, J.,
2000, p. 11).
16
trabalho com as histéricas. Revela como as histéricas eram vistas como fingidoras e como
eram completamente marginalizadas.
Na seqüência, aborda-se o momento de transição da carreira de Freud, de
neurologista ao trabalho com neuróticos, movido principalmente por suas questões acerca
da etiologia da neurose histérica. Mostra-se a importância do caso clássico de histeria de
Ana O., bem como o do médico e amigo Breuer, para destacar a mudança de direção na
carreira de Freud. Discorre-se, também, acerca da passagem de Freud pela Salpetrière,
como discípulo de Charcot, ponto de referência para ele durante por alguns anos. Todas
essas indicações são importantes para que possamos acompanhar o percurso da questão da
histeria e a da feminilidade na obra freudiana desde seus primórdios, marcando que o
começo da obra freudiana concedia mais lugar para o que é próprio da feminilidade do que
seu desfecho que acaba por reduzir o enigma da feminilidade aos limites impostos pela
problemática da castração e da inveja do pênis. Nas palavras de André (1986):
Nesse sentido, Freud irá, ao longo dos anos, encontrar um certo
número de dificuldades que o levarão a elaborar uma aparelhagem
significante complexa e sofisticada. E os progressos dessa
elaboração, o aperfeiçoamento da ‘solução’ irão culminar,
finalmente, na conseqüência de que não haverá mais lugar no
sistema simbólico freudiano para o real inominável que havia
impulsionado sua produção: aí está todo o ganho mas também a
perda em que implica a proposição do recalque e do complexo
de castração” (p. 66).
Para o desenvolvimento dessa questão, trabalha-se o sonho que Freud considera
primordial para a descoberta de uma técnica interpretativa dos sonhos, o sonho de injeção
de Irma, sonho modelo da “Interpretação dos Sonhos” (1900), por meio do qual, como
aponta André (1986), Freud teve um verdadeiro encontro com o enigma da feminilidade e
que marcaria um distanciamento de Freud da relação tão importante que desenvolvera com
Fliess, que durara até 1900, período da publicação da grande obra sobre a interpretação dos
sonhos de Freud.
O Capítulo 1 corresponde, portanto, à uma retomada no percurso freudiano em
direção às suas primeiras formulações acerca da histeria e da feminilidade
No Capítulo 2, discute-se a auto-análise de Freud, em que surge a questão do
Complexo de Édipo. Analisa-se a importância desse conceito para a obra freudiana, bem
como o conceito de castração. Trabalha-se, ainda, a teoria da sexualidade em Freud e a
17
abordagem da sexualidade feminina na primeira tópica. Parte-se dos “Três Ensaios sobre a
Teoria da Sexualidade” (1903), para esboçar a maneira como a sexualidade foi sendo
concebida e conceituada no decorrer do tempo. Trabalha-se também o conceito de pulsão e
de satisfação em Freud, objetivando precisar melhor a problemática da sexualidade
feminina. Assim, o Capítulo 2 assinala as dificuldades que Freud teve para abordar a
questão da sexualidade feminina e seus desdobramentos. Como se pode verificar ao longo
da obra freudiana sobre o desenvolvimento da sexualidade feminina e masculina, uma
dificuldade especialmente presente foi a suposição de uma simetria entre os sexos no
complexo de Édipo, como ele julgou possível até 1920. Apontam-se os primeiros impasses
a que Freud chega com relação a uma teoria da sexualidade feminina e aos destinos
possíveis para as mulheres, a partir dessa abordagem da primeira tópica freudiana.
Sublinha-se, finalmente, ainda no capítulo 2, a partir do artigo Tabu da
Virgindade” (1918[17]), a posição paradoxal em que Freud se coloca diante da questão da
feminilidade. Tal posição, por diversos momentos, aponta para o inominável da posição
feminina, como real da feminilidade, mas que, de outro lado, não chega a tirar disso
maiores conseqüências, insistindo bastante na suposição da existência de uma simetria entre
a posição masculina e a feminina e não chegando nunca a definir tal aspecto como crucial
para o entendimento e a abordagem da sexualidade feminina.
O capítulo 3 parte da mudança na concepção freudiana da histeria com a
“descoberta” do Complexo de Édipo, por Freud. A partir do momento em que chega à
conclusão que as histéricas “mentiam” quando alegavam terem sido seduzidas na primeira
infância (na maioria das vezes, pelo pai), Freud percebe que essa sedução acontecia
verdadeiramente em fantasia, o que provoca uma mudança radical na apreensão do lugar do
pai, que passa de sedutor para eleito pela menina no seu Complexo de Édipo. Essa
descoberta de Freud imprime toda uma modificação na concepção da histeria, que, de um
aglomerado de sintomas, passa, a partir da ser entendida como uma resposta do sujeito
que organizaria, até mesmo, a transferência.
18
Dedica-se todo o capítulo 3 ao desenvolvimento do percurso de Freud com relação à
histeria, bem como ao tratamento da relação da histeria com a feminilidade. Parte-se da
teoria freudiana do recalque e do trauma e aponta-se nessa teorização um espaço para o real
que o recalque recorta a partir do processo de simbolização do corpo. Trata-se, a partir de
tais premissas, dos elementos presentes na questão da histeria, tais como a repulsa, o
sintoma conversivo e a dificuldade da estruturação na imagem corporal, bem como das
aproximações da problemática da histeria com a feminilidade. Isso porque que a histérica
aponta, sob forma de um protesto, para essa impossibilidade de uma identificação
propriamente feminina, impossibilidade que teria raiz na falta de um significante que
pudesse distinguir o sexo feminino.
O Sonho da Bela Açougueira e o Caso Dora são discutidos a partir da problemática
da histérica e do desejo na histeria. A este propósito, sublinha-se também a posição de
Freud e o impasse a que chega na condução da análise de Dora, por estar às voltas com o
descobrimento do Complexo de Édipo e por enfatizar demais a questão paterna no caso,
não percebendo que a verdadeira questão de Dora estava no seu próprio sexo feminino.
Acreditamos que esse é o impasse que Freud acaba por repetir em toda sua obra, abordando
a questão feminina pela ótica masculina, negligenciando, portanto, a questão da
feminilidade.
Foi com a elaboração da teoria do Complexo de Castração que Freud pôde
redimensionar sua teoria e questionar a possibilidade de uma abordagem simétrica dos dois
sexos. Isso acontece depois de 1920, quando toda a obra freudiana é submetida a grandes
transformações. Há, então, nesse momento, um questionamento desse equívoco a partir da
conclusão de que a angústia de castração na mulher teria de ser diferente da do homem,
que ela não poderia ter o medo direto de ser castrada, uma vez que nunca possuiu pênis. A
partir deste momento, Freud esforçou-se para responder à difícil questão que, segundo
Jones (1955, p.168), ele se queixava de não ter sido capaz de responder, “apesar de trinta
anos de pesquisa da alma feminina”:
O que quer uma mulher?”
Essa questão fica, então, marcada como um ponto cego por toda a obra freudiana e
abre lugar para a entrada de Lacan, que, a partir de sua própria experiência clínica, veio a
19
anunciar a conhecida fórmula de que A Mulher não existe”
1
; ou seja, não existe a classe
das mulheres, o tipo mulher, o modelo feminino. Assim, não se poderia falar de um desejo
exclusivamente feminino ou universalmente feminino, porque não se pode falar da mulher
como um agrupamento, e sim uma a uma.
2
O Capítulo 4 dessa dissertação aborda, exatamente, esses avanços que Freud
empreendeu com relação à teoria da sexualidade feminina, a partir da segunda tópica, bem
como o impasse a que Freud chega ao fim de seu percurso. Sublinha-se nesse capítulo que,
embora Freud se refira à sexualidade feminina como um “continente negro” (1926), sempre
admitindo a dificuldade que tinha em desvendá-la, não deixa de formular claramente dois
aspectos essenciais que trazem avanços significativos à questão do enigma da feminilidade.
O primeiro se refere à primeira relação com a mãe, que compõe um longo período
de vinculação estreita e exclusiva entre mãe e filha, ao qual Freud denomina de período
pré-edípico. Segue-se a essa relação tão intensa e total a separação pelo ressentimento
conseqüente à descoberta da diferença sexual, que vai reorientar o desejo da menina.
Agora, ela sabe que não tem pênis, mas sabe também que quer tê-lo. Ela espera receber do
pai o que agora sabe que não tem. Para o menino, da mesma forma, é a descoberta da
diferença sexual que vai levá-lo a separar-se da mãe. O móvel da separação é a ameaça de
castração. Ele teme ser castrado pelo pai, privado de seu precioso órgão, e renuncia ao seu
primeiro objeto de amor, o objeto incestuoso do seu desejo, identificando-se ao seu rival
edipiano. Porém, a maneira como o pai entra no desenvolvimento não é a mesma para um e
outro sexo. Para a menina, ele é o detentor de seu objeto de desejo; para o menino, ele
prescreve o desejo, na medida em que veicula a proibição de gozar da mãe.
Assim, o capítulo 4 tratará de desenvolver todas essas questões acerca da
sexualidade feminina na abordagem freudiana, a qual parte de uma tentativa de desenvolver
um paralelo entre a sexualidade feminina e a masculina, e acaba por averiguar que para o
psiquismo só existe um sexo, sinalizado pelo falo, representado no corpo pelo órgão genital
masculino, o pênis.
1
“[...] não existe a mulher, a mulher não é toda o sexo da mulher não lhe diz nada a não ser por
intermédio do gozo do corpo.” (LACAN, J., p. 15,1972-73,)
2
“[...] das mulheres, a partir do momento em que os nomes, pode-se fazer uma lista, e contá-las. Se
Mille e tre é mesmo porque podemos tomá-las uma a uma, o que é essencial. E é a coisa completamente
diferente do Um da fusão universal.” (LACAN, J, p.19,1972-73)
20
Ao mesmo tempo, a característica principal dessa ‘organização
genital infantil’ é a sua diferença da organização genital final do
adulto. Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, entrar em
consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que
está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais,
mas uma primazia do falo (FREUD, S., 1923, p. 158).
O que há, então, é uma diferença entre ter ou não ter falo, e a sexualidade gira em
torno desse fato essencial. Marcam-se aqui os três caminhos possíveis do desenvolvimento
da sexualidade feminina e o limite freudiano que coloca a mulher como prisioneira do
peniseid (inveja do pênis).
No capítulo 4, toma-se então a segunda tópica freudiana abordando o
desenvolvimento da noção de pulsão de morte e de feminilidade. Conclui-se que o foco de
Freud acaba mesmo sendo a questão do aparecimento do falo como aquilo que falta à mãe e
que está entre a mãe e o filho, e que o lugar do inominável acaba por ser quase que
completamente dissipado na obra freudiana a partir do aprofundamento e da elaboração da
teoria da castração.
Demonstra-se no capítulo 4 (também no capítulo 3) que Freud estabelece um
paralelo entre o feminino e a passividade. Aponta-se como a tentativa de Freud de
interpretar o feminino simplesmente pelo significante da passividade e de estabelecer um
par de opostos “harmonioso” entre masculinidade–atividade e feminilidade–passividade
vem trazer mais impasses e dificultar o entendimento da problemática da feminilidade na
obra freudiana.
Em seu artigo “Feminilidade” (1932-33), Freud tenta avançar nessa relação que
fizera entre feminino e passividade. Mesmo assim, estabelece que entre os três destinos
possíveis a uma mulher, a maternidade o desejo de ter um filho é aquele propriamente
feminino. Assim, à mulher, no fim do percurso freudiano, restaria a maternidade como
modo de situar-se na feminilidade. Essa solução que Freud ao desejo feminino,
universalizando-o, acaba por corroborar toda a história da feminilidade, que marca sempre
um afastamento desse inominável que a feminilidade e a sexualidade feminina encarnam,
para trazer como resposta a maternidade como solução única para o sexo feminino.
O ponto de chegada desta dissertação consistiu em apontar brevemente os avanços
que Lacan (1975) empreendeu no que concerne a esse impasse freudiano. Aos impasses de
21
Freud sobre a questão da feminilidade e do desejo feminino, Lacan (1975), opera uma
torção muito específica no campo da lógica, de modo a tentar dizer, indicar e fazer ver que
o feminino se posiciona para além da rede significante. Ele excede a organização fálica, faz
objeção à ordem fálica do todo e recusa a reduzir-se a ela.
A partir desse ponto de vista é possível entender que a mulher não entra na relação
sexual senão como mãe. É por isso que na teoria freudiana o único caminho possível para a
mulher seria o da maternidade, uma vez que Freud conseguiu teorizar a mulher a partir
da ótica fálica. A maternidade evidenciaria o desejo fálico da mulher e, ao mesmo tempo, a
sua sexualidade. Vale ressaltar que a natureza feminina não é alternativa ao fálico, não é
antifálica; apenas não está reduzida a esse significante.
1
O percurso desta dissertação está, portanto, orientado por uma retomada do percurso
freudiano acerca da feminilidade e da sexualidade feminina, abordando também a questão
da histeria. Mas seu horizonte constitutivo será, então, e desde já, apontar para uma outra
abordagem – cuja discussão e desenvolvimento exigiria a continuação deste trabalho, o que,
espera-se, virá num outro momento que Lacan dá à problemática freudiana, visando
estabelecer uma posição feminina possível para além da histeria e da maternidade.
_______________________________________________________________
Capítulo 1:
Genealogia da histeria e da feminilidade na obra freudiana
_______________________________________________________________
1 “o gozo fálico é o obstáculo, é precisamente o que testemunho a experiência analítica, e testemunho de
que a mulher se define por uma posição que apontei com o não-todo no que se refere ao gozo fálico”.
(LACAN,
p.15, 1972-73)
22
Neste primeiro capítulo, expõe-se, primeiramente, em breves linhas gerais, um
pouco da história da diferença sexual e da histeria, da Antiguidade até a Modernidade, por
se tratar exatamente do ponto de partida de Freud.
A seguir, toma-se o percurso de Freud, desde o início, partindo da mudança de
profissão, em que seus interesses acerca da neurologia foram gradativamente sendo
substituídos pelo seu interesse pela histeria, que culminou na “descoberta” do inconsciente.
Aborda-se, então, a relação de Freud com os seus principais mestres nesse início de
percurso e os avanços que ele foi empreendendo na relação com cada uma dessas figuras
que fizeram parte fundamental desse momento da obra de Freud, a saber: Charcot, Breuer e
Fliess.
Parte-se das primeiras teorias de Freud acerca da histeria e dos sonhos, sublinhando
a questão de um real inominável, de algo que transcende a dimensão simbólica para a qual
a feminilidade aponta e que Freud intui, em diversos momentos, nesse início de sua
trajetória. Enfatizam-se a transferência e a dependência de Freud com relação a Fliess e os
impasses que essa relação teria gerado para Freud, segundo alguns autores que serão
discutidos a seguir, e, conseqüentemente, em sua obra. Focalizam-se a questão do encontro
com a feminilidade e a posição de Freud diante desse enigma em um primeiro momento a
partir do que ele mesmo consignou em suas descobertas.
1.1 Um percurso histórico acerca da diferença sexual e da histeria
Para seguir com Freud, como se propõe nesta dissertação, em seu percurso e obra
acerca da feminilidade e da sexualidade feminina, julga-se ser de grande relevância
destacar o contexto histórico no que concerne à maneira como a diferença sexual e, mais
precisamente, a maneira como a mulher era concebida e tratada no panorama socioistórico
em que Freud viveu. Por isso, decidiu-se por iniciar nosso percurso tratando de como a
23
questão feminina e a da histeria eram discutidas até a época de Freud, a partir dos trabalhos
de Birman (2001) e Trillat (1991).
Segundo Birman (2001), até o século XVIII a questão da diferença sexual não
existia, porque a concepção era de que havia apenas um sexo, o masculino, que era
sinônimo de perfeição. Esse paradigma foi criado sob a luz das teorias de Galeno e do
pensamento aristotélico, que alicerçou e fundamentou a concepção do sexo único. Tal visão
da questão sexual se fundamentava na teoria de Aristóteles das quatro causas material,
formal, eficiente e final, em que a mulher abrigaria a causa material da geração e ao homem
caberia o poder formal. A causa formal, sendo concebida como superior à causa material,
posicionava o masculino como superior no próprio ato da geração. Afinal, a mulher
contribuiria com a materialidade bruta. Assim, o homem seria o princípio motor, o que
daria à humanidade a matéria bruta, fornecida pela mulher. O homem passa então a
representar a atividade, aquele que move, que gera a vida; e a mulher, a passividade, que
espera por ser fecundada pelo homem.
Galeno usou dessa teoria e aplicou nela a sua teoria dos humores. Para ele, o humor
quente no ato da geração é que produziria o sexo masculino e a ausência dele, o feminino.
Acreditava que as genitálias femininas e masculinas eram homólogas, o que seria a
confirmação de um sexo único. Apesar de haver apenas um sexo, haveria a distinção entre
homem e mulher pela presença e ausência do humor quente nos corpos. Portanto, haveria
um sexo, mas dois pólos opostos: o masculino estaria ligado à idéia de luminosidade, de
verdade, de exterioridade, e o feminino passa a ser símbolo da escuridão, da não verdade,
da subalternidade.
O sexo feminino seria imperfeito pela ausência do humor quente, ao mesmo tempo
em que o masculino estaria sempre ligado ao divino, à perfeição. Restava à mulher a
possibilidade de ascender ao sexo masculino. Já que haveria apenas um sexo, o imperfeito
poderia sempre chegar à perfeição, fato que nunca poderia ocorrer inversamente. Nas
palavras de Birman (2001):
Portanto, nesse paradigma teórico existiria um único sexo, como
variações e matizações polares entre o masculino e o feminino, que seria
finalmente decidido pela dominância do quente na circulação dos
humores. Isso promoveria ainda seja a projeção seja a invaginação da
morfologia da genitália, para fora ou para dentro do corpo. Finalmente,
seria pela unicidade ontológica do sexo que a transformação da mulher
24
em homem seria concebida, dada a homologia e a equivalência dos
órgãos genitais (p. 41).
Esse paradigma teria perdurado desde a Antiguidade até o início do século XVII,
quando começam a aparecer estudos em que as diferenças sexuais entre homens e mulheres
foram cada vez mais se evidenciando, o que acabou gerando transformações na teoria do
sexo único e a descrença na possibilidade de transformação de um no outro. Essas
mudanças acabam por fazer uma transformação de paradigmas, fazendo com que a
concepção do sexo único fosse substituída, gradualmente, pelo paradigma da teoria natural
da diferença sexual, em que o que passou a caracterizar a diferença entre os sexos foi a
presença de marcas biológicas naturais numa leitura, portanto, biológica, da diferença
sexual.
Com relação à concepção de histeria na Antiguidade, ela é marcada também pela
visão aristotélica e pela de Galeno. Era concebida como uma doença exclusivamente
feminina e que estava diretamente ligada ao útero. Toda a história da histeria é marcada por
duas direções: uma baseada na observação de fatos, nos dados objetivos, na comparação; e
outra, ligada ao mundo subjetivo, ao sonho, para além do corpo. A histeria marca
fundamentalmente a questão polêmica da divisão do corpo e da mente, psique ou alma.
Traz à tona algo que é orgânico, mas também que parece não se resumir a isso. Parece ser
esse o desafio que a histeria representou por toda sua história.
Na Antigüidade, prevalecia a idéia de que o útero teria uma certa autonomia, que
podia empreender movimentos dissociados do resto do corpo. Essa autonomia seria a causa
de muitas doenças, inclusive a histeria, denominada na época de
”sufocação da matriz”. Hipócrates
1
dedica algumas páginas de sua obra ao que encarava
como uma estranha doença com sintomatologia muito diversa e tratamento impreciso, mas
a prevenção parece a ele muito simples: “para as moças, o casamento; para a mulher
casada, o coito para umedecer e manter a matriz em seu lugar; para a viúva, a gravidez”
(Trillat, E., p. 21, 1991).
Para Platão
2
, o útero, ou matriz, está numa parte do corpo humano completamente
desprovida de qualquer resquício de alma, uma parte verdadeiramente animal, que está fora
1
Hipócrates. Ouvres completes, apud Trillat, E. História da Histeria, 1991.
2
Platão, Le Timée, apud Trillat E., História da Histeria, 1991.
25
do controle das almas. Para ele o útero é um ser vivo que deseja. Ele vai além ao colocar
que esse desejo do útero é o de gerar filhos, que a não realização desse desejo gera
inúmeras doenças na mulher. A histeria está, em Platão, colocada em relação à
sexualidade, a maternidade e ao desejo. É no útero que ela se desenvolve e responde a uma
não realização de desejo caracteristicamente feminino, que já em Platão parece se resumir
no desejo de ser mãe.
Para Platão, a mulher se distinguiria do homem, fundamentalmente, por esta marca
de guardar em seu ventre um animal que não tem alma. Portanto, ela estaria mais próxima
dos animais e seria também mais vil: “A mulher se distingue do homem por esta
característica singular de encerrar em seu ventre um animal que não tem alma... Ela não é,
como o homem, uma criatura de Deus” (Platão apud: Trillat, E., 1991, p. 23).
Soranos
1
, um ginecologista-parteiro que atuava em Roma no século I, retoma a
questão do desejo feminino. Para ele, a partir da analogia com os homens, para quem a
ejaculação ocorre com a excitação, nas mulheres a gravidez se daria com a presença
do desejo. Ele conclui, no entanto, que o ideal é a abstinência sexual. A negação da
sexualidade foi o caminho que ele escolheu como ideal em sua obra, e o ato sexual se
coloca apenas no estatuto da necessidade. É importante notar que, em relação ao desejo que
envolve a sexualidade, o caminho menos prejudicial para Soranos parece ser o da abstenção
sexual. algo que marca a sexualidade que ele aponta como prejudicial, ao contrário do
prescrito por Hipócrates.
Soranos avança no que tange ao reconhecimento do útero como um órgão, e não
como um corpo estranho ou animal. É a mulher que deseja, e não o seu útero, como ente
externo a ela, e seu desejo está particularmente resumido, agrupado, no desejo de ter filhos.
“A mulher toma posse da parte de seu corpo que lhe escapava, e não das menores, e a
histeria integra, também ela, o corpo da medicina” (Trillat, E., 1991, p. 31).
Galeno
2
(131-201), o último grande médico da Antigüidade, foi o primeiro a
destacar a etiologia diretamente ligada à sexualidade da histeria. O responsável pela histeria
não é mais o útero, e sim a retenção da semente feminina que provocaria todos os sintomas
histéricos. A mulher emitiria uma semente semelhante aos espermas masculinos, que teria
1
Soranos de Efeso. Traité des maladies des femmes, apud Trillat E., História da Histeria, 1991.
2
Galeno. Ouvres anatomiques, phsiologiques et médicales apud Trillat E., História da Histeria, 1991.
26
uma potência muito grande e que deveria ser eliminada para não causar danos à saúde. Essa
semente retida atuaria como um veneno para o corpo. Ele introduz também a questão da
predisposição: os atingidos pela histeria teriam já uma predisposição corporal.
Assim, na Antigüidade a histeria estaria diretamente remetida ao feminino, a mulher
e seria uma doença gerada pela retenção. Ou seja, a mulher que não cumprisse a sua função
de destino, que claramente nesse paradigma da Antigüidade é a da maternidade, estaria
sujeita a esse mal, que é a histeria.
Com a mudança do paradigma do sexo único, passa-se a acreditar que a diferença
sexual seria um dado da natureza, um fato incontestável. Por esse novo modelo, a mulher
não pode mais tornar-se homem, e a cada sexo restaria seguir o predeterminado
biologicamente. Junto com as características físicas, esse paradigma traçou também
faculdades morais e psíquicas que teriam sido designadas pela natureza dos sexos. Nesse
paradigma então uma homologia intrínseca entre o somático e o mental, em que o
biológico determinaria as características físicas e morais de ambos os sexos. Daí a idéia de
hereditariedade da histeria; ou seja, o biológico, que posteriormente passou a ser concebido
como cromossômico e hormonal determinando patologias psicofísicas.
Nesse contexto, toda pessoa cujo corpo não se adaptasse à função que supostamente
seria intrínseca ao mesmo era considerada degenerada ou pervertida, uma monstruosidade.
O homossexualismo é um exemplo disso, bem como, em relação às mulheres, todas que
não seguissem seu pré-destino, que era o da maternidade, também estariam sujeitas a algum
tipo de exclusão e de desenquadramento social.
O paradigma da diferença sexual veio principalmente em resposta à Revolução
Francesa, que pregava igualdade de direitos. Foi uma maneira de justificar as diferentes
posições entre homens e mulheres, as quais mantinham direitos e deveres também
hierarquicamente diferentes. Com o ideal da Revolução Francesa, restava uma
justificativa, que, em tese, embasava-se na ciência, para que a manutenção da hierarquia
masculina pudesse prosseguir.
Isso porque ser homem e ser mulher agora, com a modernidade seria a
decorrência direta e estrita da ordem da natureza, que modelaria suas
modalidades diferenciais de ser e que delimitaria ao mesmo tempo o
horizonte possível de suas inserções sociais. Enfim, o determinismo
biológico esboçaria de maneira indelével as finalidades naturais dos
diferentes sexos, que se fariam então presentes nos registros corpóreo e
moral de maneira imperativa (BIRMAN, J., 2001, p. 50).
27
É, então, como mãe, mais uma vez, que a mulher se enquadra nesse paradigma. A
finalidade da mulher estaria diretamente ligada à procriação. Isso estaria posto como que
instintivamente na mulher, que seu corpo mostrava que era todo moldado para tal fim.
Por ter o corpo modelado para a maternidade, a mulher estaria sujeita a maior afetividade
que seria, nela, dominante da racionalidade. Isso porque se acreditava que para ser mãe a
mulher seria dotada da afetividade necessária para o acolhimento e cuidado da criança e
que o homem, ao contrário, desprovido da tal afetividade, mas de posse das faculdades da
razão, estaria apto para o trato social. Assim, a mulher, definida pelas virtualidades do seu
organismo, estaria, mais uma vez, próxima do lo da natureza e o homem, do pólo da
civilização.
Para as mulheres, foi reservado o espaço privado. Ela tornou-se dona-de-casa,
responsável pelo cuidado dos filhos e dos acontecimentos domésticos. Para os homens,
estava reservado o espaço público. Os sexos foram, então, divididos entre as demandas da
reprodução e da produção. Nesse contexto, não se acreditava que haveria uma diminuição
das mulheres ou de seus direitos, mas que aquela divisão era a divisão natural das coisas.
Mesmo vários dos grandes filósofos do século XVIII e início do século XIX outorgavam
esse paradigma.
1
A mulher, de fato, exerceu parte preponderante do projeto da Modernidade, pois
exercia o papel de mãe e, portanto, de civilizadora. Ela era responsável por propagar os
valores e costumes sociais, e isso era de valor inestimável na Modernidade.
O fato que se deve ressaltar neste momento é de que desde a Antigüidade a mulher
só pôde ser reconhecida em seu papel social a partir da Maternidade, e desde então
qualquer deserção desse papel pela mulher era tida como algo de anormal, algo a ser
combatido. Além disso, uma parte da mulher parece dever sempre ser excluída por parecer
perigosa, como na representação imaginária do útero que se movia por vontade própria,
como um animal desejante, na Antigüidade, ou, como se verá adiante, a evocação de uma
suposta demanda sexual desmesurada, que Freud
2
viria a nomear como algo que colocaria a
mulher numa posição anticivilizatória em sua teoria.
1
Birman J, Gramáticas do Erotismo, 2001, p. 58.
2
Freud S., Mal Estar na Civilização, 1920.
28
Assim, desde a constituição da civilização ocidental, algo na mulher que parece
ser denegado, repudiado, que parece obstruir mesmo o processo de civilização, de vigência
dessa lei e ordem ocidental tão almejada. A histérica, a bruxa da Idade Média e a prostituta
seriam imagens desse perigo eminente que ameaçaria o processo civilizatório, que nele
só a mãe pode aparecer sem perigo, jamais a mulher.
É importante ressaltar que no próprio cristianismo, que dominou toda a Idade Média
e a Idade Moderna, a figura da mulher estava diretamente ligada à maternidade. A mãe era
perfeita, porque, além de mãe, era virgem. Não apresentava essa parte, que claramente é
sexual e que causa tanto medo, repúdio e desatino por toda a história do Ocidente. Mesmo
Nietzsche, o crítico mais feroz do cristianismo, também acreditava que as mulheres eram
muito perigosas, devendo-se ter muito cuidado ao aproximar-se delas, como alerta em sua
frase que acabou se tornando célebre: "Se vais ter com mulheres, não esqueçais o chicote".
Entretanto, é preciso recordar que essa oposição radical entre maternidade e
desejo no ser da mulher, formulada no século XIX, foi meticulosamente
tecida pela tradição do cristianismo. Nesse particular, a ética cristã
transformou radicalmente a positividade reconhecida no erotismo pela
tradição do paganismo na Antiguidade. Com o cristianismo, o erotismo foi
esvaziado de sua virtude e concebido como pura negatividade. Com efeito,
o modelo do sexo único de Galeno e na teoria aristotélica da geração, era
enunciada a efetividade do orgasmo feminino como condição de
possibilidade da geração. Vale dizer, somente existiria a concepção caso o
orgasmo da mulher estivesse presente na relação sexual. Entretanto, o
cristianismo desarticulou os registros do prazer e da reprodução,
considerando o primeiro da ordem do pecado. Constituiu-se assim a
diabolização do desejo feminino, que poderia desviar as mulheres da
existência casta e do caminho virtuoso da maternidade (idem, p. 65).
Trabalha-se, ao longo desta dissertação, o conceito de falo e a concepção freudiana
de que um filho é, para a mulher, um substituto fálico. O que vale nesse momento sublinhar
é que a história ocidental sobre a diferença sexual mostra que a maternidade parece
apaziguar esse “enigma” feminino isso que parece ser repudiado por representar um
perigo iminente para a civilização. No papel de mãe a mulher se enquadra perfeitamente
nos objetivos civilizatórios. como mulher sexual, algo que escapa, que horroriza, que
a torna um enigma. É isso que escapa, isso que é próprio do feminino, que tentar-se-á
marcar no percurso desta dissertação a partir do percurso freudiano.
Portanto, a mulher do século XIX tinha dois destinos possíveis: ou aceitava o papel
que era entendido como seu natural, que era o da maternidade e de recalque quase total de
29
seu desejo sexual, ou entrava para as classes de mulheres desviantes da feminilidade.
Assim, ela poderia figurar como prostituta, infanticida, ninfomaníaca ou histérica. A
prostituta, então, seria caracterizada por aquela que teria feito a escolha deliberada pelo
erotismo em oposição à família e à maternidade; a ninfomaníaca, da mesma forma, seria
aquela que teria abdicado de toda a moral e se submetido ao excesso de desejo carnal; a
infanticida seria aquela que mataria seus filhos para poder manter sua vida errante e
aventuras eróticas. Uma mulher, então, poderia ser prostituta, infanticida e ninfomaníaca ao
mesmo tempo.
1
Em toda essa tipologização de anomalias da sexualidade do século XIX, o
que estava em jogo era sempre o desejo erótico feminino, marcadamente em oposição à
maternidade — ou a mulher se apresentava como prostituta ou como mãe para o imaginário
social.
Assim, é possível dizer que na época de Freud a mulher existia, mas é claro que
existia tendo que abrir mão do feminino. Existia a partir da mística que foi desenvolvida em
torno da maternidade e da figura da mãe; existia enquanto pilar da família burguesa na
função de esposa e mãe.
Com relação à histeria, essa seria uma anomalia diferente das outras, mesmo
estando em questão, ainda, a oposição entre maternidade e erotismo, que na histeria a
mulher não se subsume apenas ao desejo maternal, mas está, sim, tomada inteiramente pela
dimensão erótica, como Freud pôde constatar logo nos seus primeiros anos de estudo acerca
da histeria. Só que na histeria não há passagem ao ato e aos desejos eróticos. A sexualidade
está toda recalcada e aparece em fantasias. Na histeria, pode haver o desejo sexual, mas
o ato não está presente. A histérica pode desejar ser prostituta, ou infanticida, mas não o faz
senão em fantasia. Ela mostra, desde o princípio, sua divisão, seu conflito entre o moral
consciente e seus desejos inconscientes.
É neste contexto histórico que nasce a psicanálise, buscando percorrer os territórios
da sexualidade e da histeria e se deparando, a partir disso, com o inconsciente. É nesse
momento que a feminilidade e a maternidade são concebidas como parceiras inseparáveis,
que Freud voz às histéricas em busca de seus enigmas e afirma que a sexualidade não
tem finalidade reprodutiva. É nesse ponto da história, em que a sexualidade feminina era
negada e, até mesmo, repudiada, que Freud começa seus estudos e funda a psicanálise.
1
Birman, Gramáticas do Erotismo, 2001, p. 77.
30
[...] foi desse solo histórico e ético que a psicanálise se constituiu
como um saber fundado na sexualidade, tendo na histeria seu ponto
de inauguração e de incansável indagação. O discurso freudiano foi
uma investigação interminável da histeria e da feminilidade, sendo
estas a suas condições concretas de possibilidade. Foi desse solo
que uma nova leitura do feminino se realizou (Idem, p. 80).
É esse percurso que Freud empreendeu em torno da histeria, da sexualidade
feminina e da feminilidade que pretendemos abordar.
1.2 Freud e Charcot primeiros passos para a teoria sobre os sintomas
histéricos
Em se tratando do percurso de Freud com relação à histeria, é importante salientar a
presença de Charcot na vida e no trabalho de Freud. Segundo Jones (1956), Charcot sempre
foi tido por Freud como um grande mestre e foi a partir do seu trabalho sob a direção de
Charcot, na Salpêtrière, de outubro de 1885 a fevereiro de 1886, que Freud transferiu de
fato seu interesse da neuropatologia para a psicopatologia. Foi também logo após esse
período que abriu seu consultório para tratar doenças nervosas. Num texto póstumo à morte
de Charcot, Freud (1893) expressa sua gratidão ao mestre e aponta a importância dele para
a abertura ao tratamento da histeria.
Freud credita a Charcot algo como a libertação das histéricas, na medida em que foi
ele quem primeiro resolveu dar importância real ao sofrimento histérico. Nas palavras de
Freud:
Sustentava-se que na histeria qualquer coisa era possível e não se dava
crédito aos histéricos em relação à nada. A primeira coisa feita pelo
trabalho de Charcot foi a restauração da dignidade desse tópico. Pouco a
pouco, as pessoas abandonaram o sorriso desdenhoso com que uma
paciente podia ter a certeza de ser recebida naquele tempo. Ela não era
mais necessariamente uma simuladora de doença, pois Charcot jogara
todo o peso de sua autoridade em favor da autenticidade e objetividade
dos fenômenos histéricos. Charcot repetira, em menor escala, o ato de
libertação em cuja memória o retrato de Pinel pendia da parede da sala de
conferências do Salpêtrière (FREUD, S., 1893, p. 28).
31
Nesse texto, Freud também faz uma colocação muito interessante sobre a histeria,
sublinhando que o que marca a histérica é exatamente a divisão que a impede de ter acesso
à cadeia associativa, ou seja, acesso às palavras que a levariam à gênese do ataque histérico.
Freud faz uma comparação muito perspicaz entre a maneira de conceber as bruxas da Idade
Média e sua concepção da histeria. Mostra que, colocando a possessão demoníaca como
causa dos fenômenos histéricos, a Idade Média verificara o mesmo fenômeno que ele. O
que realmente diferiria nas duas visões seria apenas uma questão de linguagem. Ou seja,
uma troca de terminologia; uma com um tom obscurantista religioso próprio da época e a
outra numa linguagem científica.
Charcot sempre se valia dos relatos de bruxaria para provar que a histeria sempre se
apresentara como tal, mas não foi em busca de uma explicação para a histeria. Para ele, era
apenas mais uma neuropatologia, como todas as outras que tinha pesquisado. Quanto à
etiologia da histeria, também tinha uma fórmula simples; a hereditariedade era sua causa
determinante. Fez uso da hipnose para efeito de simulação da histeria, tendo sido o primeiro
a colocar que os sintomas histéricos eram decorrentes de “idéias”.
Foi a partir desse importante contato com aquele que considerou como um grande
professor e mestre que Freud começou definitivamente a mudar sua direção profissional.
Estava, a partir desse momento, definitivamente implicado em suas questões acerca da
etiologia e sintomas histéricos. E, mais do que abrir o campo para o estudo, como fez
Charcot, Freud passou toda sua vida dedicando-se ao que o estudo da histeria acabou por
denunciar e ao estudo do inconsciente.
Foi a partir dessa relação com Charcot que Freud construiu seu artigo
importantíssimo para o entendimento da histeria “Algumas Considerações para o Estudo
Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas” (1893), o qual parece ter sido
escrito em dois momentos diferentes. O primeiro, provavelmente, entre 1886 a 1888, época
em que Freud ainda trabalhava como neurologista e estava fazendo a transição do seu
campo de atuação. O texto aparece mesmo como um divisor de águas entre os escritos
neurológicos e psicológicos de Freud. As primeiras partes são, de fato, sobre neurologia e a
última parte deve ter sido escrita em 1893, pois faz menção à Comunicação Preliminar de
Freud e Breuer, publicada nesse ano e sobre o qual falaremos ainda nesse capítulo.
32
Freud faz um percurso pelas paralisias orgânicas e tenta estabelecer um paralelo
com as paralisias histéricas. O percurso se torna complicado, que as paralisias histéricas
não parecem de fato enquadrar-se em nenhum dos dois tipos de paralisias orgânicas
descritas por Freud. Ainda assim, a princípio, ele concebe a histeria como uma paralisia do
tipo de representação que atinge um conjunto de músculos, e não apenas um deles
isoladamente. O que problematiza esse enquadre é que as paralisias histéricas não
obedecem à regra de que o segmento distal de um membro sempre é mais afetado do que o
segmento proximal do mesmo membro. Assim, se a paralisia é no braço, o ombro deveria
sofrer menos a paralisia do que a mão, mas na histeria isso não acontece, e é possível que a
mão volte a se movimentar antes do ombro.
Freud conclui então que a paralisia histérica é, sim, uma paralisia de representação,
mas não da representação como concebida neurologicamente (ou seja, na qual cada fibra
representaria não um único elemento, mas sim um grupo de elementos), porém como um
outro tipo de representação que ele começa agora a desvendar.
A paralisia histérica apresenta, segundo Freud, vários elementos peculiares, que não
podem ser associados ou explicados anatomicamente. Freud ilustra isso com a questão da
paralisia de apenas uma função do órgão quando a função mais complexa deste mesmo
órgão aparece normal ou quando, numa menção implícita do caso da Ana O., descreve a
afasia de apenas um idioma, que não poderia ocorrer na afasia ornica.
Para Freud, a paralisia histérica se caracteriza “pela delimitação precisa e pela
intensidade excessiva; possui essas duas qualidades ao mesmo tempo, e é nisso que
manifesta o maior contraste em relação à paralisia cerebral orgânica, na qual regularmente
se constata que essas duas características não se associam entre si
1
(FREUD, 1893 [1888-
1893], p. 207). Marca essa diferença minuciosamente estabelecendo através de exemplos
que as paralisias ornicas têm sempre um paralelo anatômico neurológico e que quando
uma paralisia é muito intensa ele não se restringe a uma delimitação fisiológica; ou seja,
apresenta-se em partes diversas do corpo. Sobre as paralisias ornicas, ele acrescenta:
“Seja como for, sempre se pode encontrar uma explicação baseada na anatomia” (ibid., p.
210).
1
Os grifos desta citação são do próprio autor.
33
Outro ponto que Freud ressalta é que a perda da sensibilidade nas paralisias
histéricas é muito maior do que nas paralisias orgânicas. Ele constata que uma anestesia
nas histéricas que diferem absolutamente das lesões orgânicas. Essa questão Freud deixa
em aberto, mas o tema da indiferença histérica – ou, como Freud mesmo ressaltou, La belle
indiference será esmiuçado por ele, trabalhado mesmo como um sintoma histérico
fundamental.
Portanto, as paralisias histéricas relacionam-se com a representação que se faz do
órgão, e não com a anatomia. É por isso que a paralisa histérica não obedece ao princípio
de que o segmento proximal deveria estar menos paralisado do que o distal. Na histeria, o
que importa é o nome do órgão, o significante que diz do órgão e sua representação
imaginária, ou seja, a representação do que se vê do corpo.
Freud conclui genialmente a respeito da questão da anatomia implicada nas
paralisias histéricas dessa maneira: “afirmo que a lesão nas paralisias histéricas deve ser
completamente independente da anatomia do sistema nervoso, pois, nas suas paralisias e
em outras manifestações, a histeria se comporta como se a anatomia não existisse ou
como se não tivesse conhecimento desta
1
(Ibid., p. 212). As histéricas, então, reconstroem
o próprio corpo, diferente do anatômico. Elas criam um corpo representacional, que Freud,
na seqüência do desenvolvimento de sua teoria, tentará abarcar em sua teoria com os
conceitos de libido e pulsão.
Assim, as paralisias histéricas marcariam uma lesão específica, uma lesão dinâmica
ou funcional, que não teria marcas na anatomia. Nesse momento, Freud toma a teoria da ab-
reação dos afetos, teoria que fundamenta seus Estudos Sobre a Histeria (1993-1995),
colocando que o que importa é que a paralisia histérica ocorre quando a representação da
parte do corpo paralisada está associada, de forma inconsciente, a um evento traumático
que carrega uma grande carga de afeto. Assim, essa representação que causaria danos ao
eu, por levar diretamente à situação traumática, é eliminada deste e fica inconsciente. Afeto
e representação ficam então dissociados, e o sintoma é gerado para, justamente, impedir o
acesso à cena traumática. A solução para isso seria a descarga dos afetos, que se daria ou
por uma reação motora ou pela lembrança do evento que levou ao sintoma. Quando afeto e
representação, mais uma vez, unir-se-iam para que a descarga do afeto possa ocorrer. Este
1
Grifos novamente do próprio autor.
34
tema será retomado no capítulo 3, no qual se trata especificamente do desvendamento da
histeria no percurso freudiano.
O que marca principalmente esse momento da obra freudiana é menos a teoria da
ab-reação, que vai ser substituída pela teoria do recalque balizada pelo Complexo de
Castração e pelo Complexo de Édipo, e mais a presença essencial da representação daquilo
que mais tarde Lacan apontará como a operação do significante na formação do sintoma.
Além disso, a noção de que a histérica refaz seu corpo, constrói um corpo de representação
é fundamental para todo o conjunto da teoria psicanalítica.
1.3 Freud e Breuer: Anna O. e Estudos Sobre a Histeria
Esse caso clássico de histeria, tratado por Breuer de dezembro de 1880 a junho de
1882, foi de vital importância para a psicanálise, na medida em que marcou a importância
da fala para o desvendamento dos sintomas histéricos. Ao ser relatado a Freud, causou-lhe
grandes impressões e incitou-o ainda mais a seguir esse percurso que deu origem à
psicanálise.
A paciente era uma jovem de 21 anos que manifestara uma série de sintomas que
tinham relação direta com a doença fatal de seu pai. Ela apresentava paralisias com
contraturas e anestesias, além de perturbação da visão e da fala, incapacidade de ingerir
alimentos e uma tosse nervosa, razão pela qual Breuer havia sido chamado a participar de
seu tratamento.
A paciente, ao ser visitada por Breuer, que era médico da família, adquiriu o hábito
de narrar-lhe seus infortúnios diários, inclusive seus episódios de alucinações, o que fazia
com que se sentisse aliviada após o relato. Num episódio, ao narrar com detalhes o
aparecimento de um determinado sintoma, este desapareceu completamente. Ela mesma
percebeu o valor do que tinha feito e denominou esse método que criou de ‘cura pela fala’
ou “limpeza de chaminé” (Jones, E., 1953, p. 231). Então, acabou por proceder como tal,
buscando a genealogia de cada um de seus sintomas. Esse foi um passo central, um avanço
enorme no que diz respeito ao desvendamento do inconsciente. Anna O. vai pedir que
Breuer a escute, o que acaba por permitir que ela acesse conteúdos que não poderia acessar
se não estivesse sendo escutada. Quando ela esse passo, abre também um campo, por
35
meio de um método que Freud depois retoma e elabora, mas que representa uma verdadeira
revolução para a humanidade, tal método acessa, por meio da fala, algo que nos causa e que
não sabemos, algo de um campo que está sendo nesse momento inaugurado; o campo do
inconsciente.
Num momento posterior, ainda no curso do tratamento de Anna O., Breuer passa a
completar esse procedimento com hipnose, devido à quantidade de material e ao tempo de
dedicação que esse novo método demandava, o qual proporcionava uma descarga de afeto
que, segundo sua teoria, religava a representação ao afeto correspondente. Isso teria o efeito
de descarga ou catártico. Esse método é associado ao nome de Breuer e foi chamado de
catarse, tendo sido usado por Freud no início do seu trabalho com as histéricas.
A seqüência do tratamento de Anna O. foi cheia de perturbações. A mulher de
Breuer começou a sentir ciúmes do laço tão estreito que ele desenvolvera com a paciente.
Então, ele, sentindo-se culpado, resolveu terminar o tratamento. Na noite em que Breuer
deu fim ao tratamento de Anna O., ela caiu em desespero. Quando ele foi chamado a vê-la,
encontrou-a com dores de um parto histérico, uma gravidez psicossomática que vinha se
desenvolvendo durante o tratamento. Breuer, que durante o período de tratamento nunca
tinha se deparado com a sexualidade da paciente, ficou muito chocado com tudo o que
ocorrera e acabou por viajar com sua mulher e por abandonar realmente o caso.
Assim, a reação de Breuer foi a de um recuo sobre a reação desencadeada na
paciente pelo tratamento. A psicanálise e suas bases teóricas ainda não haviam sido
fundadas e o fenômeno da transferência ainda não havia sido desvelado. A força dessa
ligação estabelecida assustou-o, e ele acabou recuando do caso e também de qualquer
caminho que o ligasse de fato ao que foi então fundado e denominado de psicanálise por
Freud.
Freud, na época em que Breuer atendeu Anna O., ainda tinha seu interesse voltado
para a anatomia do sistema nervoso, mas ficou muito interessado quando Breuer
comunicou o caso a ele. Pediu para que discutissem o caso por diversas vezes. Breuer fez o
relato do caso a Freud em novembro de 1882, alguns meses após o seu encerramento.
Mesmo não fazendo ainda parte do interesse de Freud, o caso o instigou de tal maneira que
quando foi estudar na França com Charcot, alguns anos depois, narrou-o para o mestre, que,
entretanto não lhe deu muita importância. Com isso, o interesse de Freud ficou em suspenso
36
por mais alguns anos até o momento em que, ao voltar de seus estudos, montou seu próprio
consultório.
Decidiu-se aqui refletir sobre esse caso clínico atendido por Breuer, e não por
Freud, exatamente por ele ter sido fundamental no que tange às origens da psicanálise.
Afinal, essa foi a primeira experiência em que houve a possibilidade de um tratamento da
histeria pela fala. E, mais ainda, foi nesse momento que se evidenciou a existência de um
saber outro que não aquele da consciência: abertura de um campo cuja presença implica
que, para além do saber consciente, existe uma verdade, a verdade do sujeito do
inconsciente.
Anna O. consigna, ainda, o fato de que foi somente a partir da fala de uma mulher
histérica que demandava ao outro ser escutada que Freud pôde, posteriormente, tomar essa
fala e essa demanda como algo verdadeiramente importante. Ao levar isso às últimas
conseqüências, pôde estabelecer seu estudo e trabalho sobre o inconsciente.
A paciente de Breuer, Anna O. demonstrou e superou o primeiro desses
obstáculos — a amnésia característica dos pacientes histéricos. Quando a
existência dessa amnésia foi trazida à luz, seguiu-se de imediato a
compreensão de que a mente manifesta do paciente não é a mente em sua
totalidade, havendo por trás uma mente inconsciente (ESB, Nota do
Editor, Vol II, p. 20).
A fala de Lacan em que ele propõe que “a histérica é o inconsciente em exercício,
que põe o mestre contra a parede para produzir saber” (1970) parece ilustrar-se pela
demanda de Ana O. de ser escutada. Em sua insistência, ela acaba mostrando a Breuer que
por meio de seu discurso poderia encontrar sua cura. É por meio da sua fala que uma
mulher pode se deparar com a verdade do seu corpo e, o que tanto assustou Breuer, da sua
sexualidade. É por meio da fala das histéricas que Freud chega à técnica da associação livre
e descobre que a posição de saber, aquela que Lacan nomeou de “mestre”, não funciona no
que concerne ao desvendamento do inconsciente. É preciso que o paciente fale e que ele
queira vencer as resistências para saber de seu inconsciente. É isso que Freud vai
descobrindo em seu percurso principalmente com as pacientes histéricas, e é por isso que,
por fim, abandona a hipnose e vai abdicando de toda forma de sugestão até chegar a seu
método de associação livre de idéias.
37
É importante salientar que não foi por mera coincidência que as histéricas acabaram
por levar Freud ao inconsciente e ao método de associação livre. As mulheres histéricas
têm mesmo uma ligação forte com o inconsciente, há algo nelas que precisa ser demarcado,
algo que precisa ser dito. um saber sobre a castração mais acentuado nas mulheres,
porque vivido no próprio corpo. Trata-se de um inominável – na medida em que a castração
comporta, ela mesma, um indizível e que, como veremos, a própria inscrição da mulher
diante da castração é problemática e um inominável na medida em que teima em fazer
questão para as mulheres, algo que vivenciam em seu corpo e que não pode ser dito porque
não palavras.
1
Mas, ao mesmo tempo, porque insiste, precisa ser falado, bordejado
pelos significantes.
Esse impossível de dizer advém do que Lacan denominou de “registro real”, ou seja,
um registro que aponta para o limite da rede de significantes, para um resto que não pode
ser abarcado pelo simbólico. Esse resto real é remetido diretamente à feminilidade, porque
não nada no registro simbólico que possa dizer sobre o sexo feminino. Freud mesmo
marca, como se verá ao longo da dissertação, que no psiquismo não uma divisão entre
masculino e feminino, e sim de presença e ausência de falo. É isso que determina esse
inominável que o sexo feminino aponta e que as histéricas denunciam em seu discurso, essa
falta de algo que fale delas enquanto mulheres, essa falta absoluta de significante que
possibilite uma identificação propriamente feminina. Esta questão se desenvolvida ao
longo desta dissertação, principalmente no capítulo 3.
É por isso que as histéricas demandam ser ouvidas, como Anna O., que demanda ser
desvendada por Breuer. É por isso também que fazem do seu corpo um lugar para o
sintoma, como resposta para aquilo que não conseguiram nomear, esse real de sua própria
sexualidade que fica para as próprias mulheres como um enigma.
O caso de Anna O. marcou substancialmente a história de Freud e, portanto, a
história da psicanálise Foi nele que o livro Estudos Sobre Histeria (1893-1895), publicado
com a participação Breuer, baseou-se quase inteiramente, tendo sido considerado por
muitos autores como o ponto de partida da psicanálise.
No começo de sua clínica, em 1886, Freud teve uma clientela vasta de histéricas.
Começou, então, a utilizar os métodos de tratamento reconhecidos na época, como a
1
Grifo nosso.
38
hidroterapia. Como esses métodos não se mostravam verdadeiramente eficientes, ele
resolveu retomar o método catártico narrado a ele por Breuer (Nota do Editor, ESB Vol II,
p. 15). Assim, utilizava-se da sugestão hipnótica, que tinha aprendido nos seus estudos com
Charcot, e da hipnose mais livre, em que estimulava as histéricas à fala, como descrito por
Breuer. O caso clássico de histeria da Sra. Emmy Von N. foi o primeiro no qual ele utilizou
somente o método catártico.
É exatamente nos Estudos Sobre Histeria (1895) que Freud começa a esboçar suas
primeiras teorias acerca da histeria e da conversão. É nesse momento que a teoria sobre o
inconsciente começa a ser desenvolvida a partir desse caso tão fundante da psicanálise e
dos outros casos que Freud vinha atendendo quase às cegas no seu consultório.
Nessa obra, Freud oferece o que ele e Breuer chamaram de ”teoria da ab-reação dos
afetos”, na qual a questão do trauma está presente, numa amplitude tão grande que é
capaz de deixar o sujeito histérico sem resposta. O sujeito se cala diante da cena traumática,
o que acaba por gerar uma cisão e o recalcamento de qualquer representação que de algum
modo se relacione a essa cena. O trauma mortifica o sujeito, faz gerar lacuna, mutismo,
exatamente por essa dimensão real que ele convoca. O trauma é exatamente esse excesso de
excitação que não pôde ser decodificado, transformado sem signo pelo simbólico. É nesse
sentido que ele faz gerar lacuna no discurso.
Nossas experiências, porém, tem demonstrado que os mais variados
sintomas, que são ostensivamente espontâneos e, como se poderia dizer,
produtos idiopáticos da histeria, estão estritamente relacionados com o
trauma desencadeador quanto os fenômenos a que acabamos de aludir e
que exibem a conexão causal de maneira bem clara (FREUD, S. e
BREUER, J., 1892 , p. 40).
1
O afeto gerado pelo trauma nos pacientes histéricos ficaria “estrangulado”, separado da
representação recalcada. A partir daí a lembrança afetiva se manifesta pelos sintomas
histéricos, considerados “símbolos mnêmicos”, o que explicaria também a conversão.
Nesse momento, Freud e Breuer acreditam que a cura para isso seria a descarga desse afeto
por meio da catarse, em que o afeto e sua representação voltariam a se ligar podendo a
energia “fluir” livremente.
1
Grifos do próprio autor.
39
Agora poderá ficar claro porque o método psicoterápico que descrevemos
nestas páginas tem efeito curativo. Ele põe termo à força atuante da
representação que não fora ab-reagida no primeiro momento, ao
permitir que seu afeto estrangulado encontre uma saída através da fala;
e submete essa representação à correção associativa, ao introduzi-la na
consciência normal (sob hipnose leve) ou eliminá-la por sugestão do
médico, como se faz no sonambulismo acompanhado de amnési
(FREUD, S. e BREUER, J., 1892, p. 52).
O caso clínico de Anna O., bem como os Estudos Sobre Histeria, e a própria
presença de Breuer, que foi, além de amigo, um colaborador, foram de extrema importância
para Freud nesse início de seu percurso em direção à psicanálise. Ele tinha Breuer em alta
conta e acreditava fielmente na sua competência e grandiosidade. Tentara eleger o Outro
enquanto dom, enquanto possuidor de tudo. Segundo Jones (1953), Freud acreditava que
Breuer pudesse conduzi-lo ao caminho que ele mesmo escolhera para si. Mas Breuer, nem
nenhuma outra pessoa, podia fazer isso. Acontece que de mestre sem imperfeições Breuer
passa a ser uma figura incômoda a Freud:
Quando se lembra o que Breuer significava para ele na década de 80, sua
generosidade para com Freud, sua compreensiva solidariedade e a
combinação de jovialidade e estímulo intelectual que irradiava, a
modificação posterior é verdadeiramente surpreendente. Enquanto
anteriormente não se encontrava qualquer palavra de crítica ao perfeito
Breuer, agora não se fala mais das boas qualidades, mas apenas da
irritação que sua presença causava em Freud (JONES, E., 1953, p. 259).
Os laços que uniam Freud a Breuer acabaram por ficar cada vez mais frouxos.
Breuer tinha uma verdadeira ressalva quanto aos caminhos que agora dominavam as
aspirações de Freud. Foi com muito esforço que Freud conseguira convencê-lo a ser seu
colaborador no seu Estudo Sobre Histeria (1893-1895).
Entre os dois colaboradores houve divergências científicas quanto
à teoria da histeria, mas não foram elas nem a desestimulante
recepção de sua obra que nesse ponto levaram à sua separação; a
cooperação teve fim no verão de 1894. Esta ocorreu por causa da
relutância de Breuer em acompanhar Freud em sua investigação da
vida sexual dos pacientes, ou melhor, em acompanhar as
conclusões de amplo alcance que Freud vinha tirando a partir dessa
investigação. Breuer não podia tolerar facilmente a doutrina de que
as perturbações da vida sexual constituíam o fator essencial da
40
etiologia tanto das neuroses quanto das psiconeuroses (idem, 1953,
p. 258).
Segundo Jones (1953), isso gerou ainda mais solidão em Freud, que nessa época da
vida não tinha ninguém que o auxiliasse no curso do seu trabalho. Essa mudança que
empreendeu na sua carreira, passando de um neurologista que trabalhava disciplinadamente
num laboratório, com a certeza que a ciência garante, para um médico de doenças nervosas
gerara nele uma necessidade de intercâmbio e, mesmo, de apoio. Havia um campo todo
novo que precisava penetrar, porém não havia um método nem uma teoria a seguir.
Precisaria partir do seu próprio desejo e persistência, mas isso é tarefa demasiado árdua
para alguém estava sozinho.
Assim, Freud rompe efetivamente com Breuer, destituindo-o de sua função de
amigo e colaborador. Essa separação se acrescida de uma forte repulsa de Freud em
relação a Breuer, que foi ainda mais fortemente vivida na primavera de 1896, no momento
em que Freud elegera um “verdadeiro” mestre, na fase mais intensa de sua relação com
Fliess, como se verá a seguir.
1.4
Relação Freud–Fliess e o Sonho de Injeção de Irma
Foi por intermédio do próprio Breuer que Freud conheceu um dos mais importantes
personagens de sua própria história; Wilhelm Fliess. Mantiveram uma amizade, por meio
de correspondências e encontros ocasionais, aos quais davam o nome de “Congressos”, por
aproximadamente doze anos. O mais importante é que essa foi uma relação absoluta para
Freud, como se Fliess tivesse simbolicamente entrado no lugar de mestre que Freud tanto
procurava nesse momento de sua vida. Nas palavras de Jones:
Chegamos aqui à única experiência realmente extraordinária da vida de
Freud. As circunstâncias de sua infância, embora sem dúvida
psicologicamente importantes, foram em si mesmas simplesmente
incomuns, mas não extraordinárias. Para um homem de meia idade,
bem casado e com filhos, nutrir uma amizade apaixonada por alguém
intelectualmente inferior e durante anos subordinar seu juízo e opiniões
ao desse outro homem— isso também é incomum, embora não
inteiramente estranho. Mas esse homem se libertar e seguindo um
caminho jamais trilhado por qualquer ser humano, explorando, em uma
tarefa heróica, sua própria mente inconsciente — isto é extraordinário no
mais alto grau (1953, p. 292).
41
Nessa relação de Freud com Fliess não havia lugar para as mulheres, em tudo o que
essa frase pode conter de metafórico, a começar pela ausência das próprias esposas, que
eram tidas como sinônimo de problema para a relação dos dois. Sabe-se, inclusive, que a
mulher de Fliess tinha muito ciúme, o que leva Freud, em uma carta a Fliess, a pedir-lhe
que não a mostre para sua mulher (Jones, E., 1953, p. 302).
Fliess foi para Freud, segundo argumentam autores como Jones (1956) e André
(1986), uma mistura de muitas funções: era mestre, analista, ouvinte e amigo. A
dependência que Freud criou com ele foi extrema em alguns períodos dessa amizade,
principalmente nos últimos cinco anos (Jones, 1953). O ponto culminante da relação foi em
1895, ano em que Freud escrevera seu Projeto para uma Psicologia Científica e em que
muitas discordâncias teóricas começam a aparecer sem que Freud pudesse notar. Este foi
também o ano em que Freud fez sua primeira análise completa de um sonho, o qual se
tornou marco para ele: o sonho de injeção de Irma. Este sonho pode ser considerado
também como o marco do início da auto-análise de Freud, que será abordado no capítulo 2.
Para André (1986), a relação que Freud estabeleceu com Fliess foi um verdadeiro
amor transferencial, uma relação apaixonada, em que Fliess era o mestre e representava
para Freud a resposta para toda sua angustia da época. Freud ficou tão absorto nessa relação
que acabou dando aprovação incondicional a todas as atitudes de Fliess, o que acabou por
gerar, mesmo durante a relação, grandes conflitos nele mesmo, o que mais adiante
poderemos ilustrar a partir da análise do sonho da injeção de Irma que Freud fez
exatamente no ano de 1895.
Freud aprovara algumas teorias de Fliess, que mais tarde considerará explicitamente
paranóicas, em que o autor tenta calcular uma suposta regularidade (lei dos períodos) a que
todos os seres vivos estariam submetidos por meio de uma substância única para todos e
que seria herdada unicamente através da mãe (Jones, 1953). É sabido, por meio das
correspondências de Freud com Jung e Abraham (ver André, 1986), que foi a partir dessa
teoria e da análise de sua ligação com Fliess que Freud pôde, mais tarde, entender o
mecanismo da paranóia e então escrever seu “Caso Schreber” (1911).
O motivo do fim da amizade dos dois é incerto. Segundo Jones (1953), houve uma
decepção por parte de Freud quando, ao apresentar suas descobertas sobre o Complexo de
42
Édipo, percebeu que Fliess
1
nada entendera de suas preocupações. Mas, certamente, o
conceito de Fliess sobre bissexualidade, supostamente aceito por Freud, causou a rivalidade
final. Fliess acusara Freud de ter contado sua idéia a um aluno, que teria plagiado seu
conceito e escrito um livro. Isso de fato acontecera, e Freud analisa essa sua postura.
Acredita que foi influenciado por uma hostilidade que nutriu por Fliess a partir do
distanciamento que o outro tomara (Jones, 1956).
Freud nutriu por Fliess uma admiração plena, que deixou marcas por toda sua
história. A relação dos dois nasceu entremeada pelo tema da sexualidade e foi por esse
mesmo tema que se desfez. O que Freud e Fliess entendiam por sexualidade era de fato
muito divergente. Enquanto Freud estabelecia sua teoria do Complexo de Édipo, que
construía a partir da sua auto-análise, em que estabelecia, como trabalharemos mais adiante
com mais profundidade, a presença fundamental de um terceiro para a estruturação do
sujeito, Fliess chegava a uma teoria pretensamente científica em que o pai era
completamente dispensável.
É importante ressaltar o fato de que o conceito de bissexualidade, herdado da
relação com Fliess, permanece por toda a obra de Freud, que parece tê-lo mantido para
sustentar um resto de transferência a Fliess (André, S, 1986, p. 18). Esse conceito aparece
de diversos modos ao longo da obra como um significante que vai mudando de
significação, mas que se mantém repetidamente. Foi, portanto, um significante
fundamental, principalmente no que tange a sua teoria da histeria e da sexualidade
feminina.
É importante sublinhar, porém, que o conceito de bissexualidade em Freud
apresentava-se de forma muito diferente da maneira como Fliess o concebera, que para
este o conceito estava associado à idéia extremamente sedutora de que cada sexo é portador
do outro sexo recalcado, dando uma idéia de totalidade ou, ao contrário do que propôs
Lacan
2
, de que existe relação sexual. Freud, ao contrário, estabelece o Complexo de
Castração e desenvolve por toda sua obra e, principalmente, a partir de seu estudo da
1
Freud enviara carta a Fliess narrando suas teorias sobre o Complexo de Édipo, mas este, pela primeira vez
na relação dos dois, não respondeu.
2
Lacan pontua em seu Seminário XX Mais, Ainda (1972-1973) a fórmula “A relação sexual não existe”
exatamente, indicando que não há complementaridade entre os sexos.
43
sexualidade infantil e dos seus “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (1905), a
questão da falta, que será abordada no capítulo 2.
Portanto, mesmo que a teoria de Fliess tenha exercido um grande fascínio, no
sentido de uma promessa de completude, foi em resposta a ela na medida em que Freud
pode tomar sua obra e rumar a partir de sua própria voz e experiência — que construiu toda
sua teoria, que vai de encontro a todas as bases nas quais a teoria fliessiana se ancora.
A grande constatação de Freud em seu percurso sobre a teoria da sexualidade é a de
que a anatomia não define a direção da sexualidade nos seres humanos; ou seja, não há um
dado a priori que defina a sexualidade humana através do seu corpo. A sexualidade, ao
contrário disso, é essencialmente traumática, construída à medida que o outro que cuida faz
marcas no corpo biológico e o introduz no domínio pulsional, como veremos. O que se
encontra na teoria de Freud é uma sexualidade atravessada pela incompletude, parcial e
marcada pela representação. Assim, se Freud se utiliza do significante bissexualidade é
exatamente para falar dessa divisão, encarnada na sexualidade, que aparece nas fantasias
histéricas, por exemplo (ver capítulo 3).
Em 1899, Freud endereça a Fliess um poema que compôs em virtude do nascimento
de seu segundo filho, o qual foi publicado por Max Schur (1975) e que vale a pena ser
citado porque, para além de seu objetivo inicial, ele aparece mesmo como uma resposta à
teoria paranóica de Fliess e reflete agudamente o pensamento de Freud:
“Ao filho valente que, por ordem do pai, apareceu em boa hora
Para lhe ser de ajuda e colaborador da ordem sagrada. Mas congratulações
também ao pai que, pouco antes, no fundo de seus cálculos, conseguiu
represar o poderio do sexo feminino para que este concorra com sua parte
de obediência à lei; não mais assinalado pelo brilho secreto, como a mãe
1
,
Convoca, também ele, de sua parte, as potências superiores: a dedução, a e a
dúvida.
Então, armado de força, à altura das armas do erro, apega-se às manifestações do
pai, ao desenvolvimento infinitamente amadurecido.
Que o lculo seja exato e, como trabalho herdado do pai, se transfira ao filho e,
por decisão dos séculos, que se una, em comunhão no espírito, o que, nas
mudanças da vida, se desagrega (SCHUR, M., 1975; apud ANDRÉ, S., 1986, p.
45).
1
Grifo nosso.
44
Esse poema põe em evidência a importância da função paterna e demonstra uma
compreensão profunda da necessidade, por parte de Fliess, de sua teoria delirante dos
cálculos para que alguma lei se instale para “represar o poderio feminino”, tão feroz na
paranóia, onde exatamente a instância paterna não de se fundar no psiquismo. Assim,
segundo And(1986), foi a partir dessa resposta que deu à sedução que a transferência
com Fliess imprimira nele que Freud pôde manter seu percurso através de sua pesquisa do
inconsciente e da sexualidade.
Em 24 de julho de 1895, no ano ápice da relação com Fliess e no mesmo dia em que
começa, a partir de uma inspiração febril, seu Projeto para uma Psicologia Científica
texto que tinha a intenção de colocar em rmulas as novas teorias do campo do
inconsciente, que Freud agora trabalhava, de uma maneira sistematizada e coerente com a
neurologia que lhe trazia tanta segurança, pois era o campo que dominava que Freud tem
um sonho com uma paciente que atendera, comumente chamado de “Sonho de injeção de
Irmã”.
Esse sonho é considerado por Freud com o sonho modelo, o sonho inaugural, o
primeiro sonho a ser realmente decifrado por seu método de análise. Em carta a Fliess, em
1900, logo após a publicação de seu Traumdeutung, ele escreve que imaginara que um dia
colocariam na casa onde esse sonho ocorrera uma placa indicando que fora ali que pela
primeira vez o enigma do sonho teria sido desvendado por Sigmund Freud.
A partir da análise desse sonho, a teoria de Freud sobre os sonhos se estabeleceu de
maneira mais clara para ele. É, portanto, um marco que acontece num momento muito
importante da vida de Freud, no qual muitas questões se colocavam sobre as teorias que
estava desenvolvendo. O próprio sonho é, então, parte desse processo, parte dessa busca de
Freud por respostas acerca do trabalho com a neurose que agora empreendia, em que a
função do inconsciente era descoberta. Nesse processo, Freud viveria “numa atmosfera
angustiante com o sentimento de estar fazendo uma descoberta perigosa” (LACAN, J.,
1954-55, p. 207).
Assim, esse sonho marca a sua posição acerca dessa busca, suas questões, seus
medos e fundamentalmente, sua posição de que as respostas poderiam ser encontradas a
partir das interpretações, a partir da fala do que o sonho representava, como postulou. É
45
isso que descobre a respeito dos sonhos, os quais que necessitam ser decifrados, pois
têm um sentido, na medida em que representam algo a ser colocado em palavras.
Freud afirma que o sonho tem a mesma estrutura do sintoma, ou seja, de um enigma
que aponta para um desejo inconsciente e que é estruturado por representações. O sonho de
Irma se faz então fundamental, porque marca essa possibilidade, a possibilidade de
empreender um caminho de desvendamento do inconsciente diferente do caminho proposto
pela ciência paranóica de Fliess. Marca, então, de outro lado, o começo de uma queda
transferencial com o amigo, o que desenvolveremos adiante.`
Freud, alguns meses antes do sonho, tinha encerrado um tratamento que fazia de
uma paciente que era amiga de sua família. Esse tratamento tinha lhe colocado numa
posição delicada, já que a paciente fazia parte do seu círculo de amizade. Ela era amiga
particularmente de sua esposa, o que gerava uma contratransferência. Ou seja, Freud se
preocupava e se sentia pressionado acerca desse caso e de seus resultados. Irma, nome que
Freud dera para publicação, era, na verdade, Emma
1
, uma histérica que apresentava alguns
sintomas físicos, alguns dos quais Freud não conseguira curar.
Nessa época, Freud ainda utilizava o método pelo qual, a partir de sua descoberta
acerca das origens inconscientes dos sintomas da paciente, relatava o que descobria para
tornar o conteúdo consciente. O que garantia a eficácia do tratamento seria então se a
paciente aceitaria ou o a solução proposta por Freud, que não se responsabilizava por
essa etapa última do tratamento. No caso do tratamento de Emma, ela parece não ter
aceitado muito bem o que Freud dissera, e ele parecia acreditar que era por isso que os seus
sintomas físicos não tinham se extinguido totalmente.
Foi então que Freud recebeu a visita de um amigo seu, Otto, que tinha estado com
Irma e que lhe falara que ela estava melhor, mas não completamente curada. Essas palavras
tiveram efeito sobre Freud, que acabara por inferir um tom de recriminação a seu trabalho.
Passou, então, a transcrever o caso de Irma, a fim de se convencer de que tinha feito tudo
que podia. Foi nessa mesma noite que teve o seguinte sonho:
Um grande salão - numerosos convidados a quem estávamos recebendo.
- Entre eles estava Irma. No mesmo instante, puxei-a de lado, como que
para responder a sua carta e repreendê-la por não ter ainda aceitado
minha solução. Disse-lhe: “Se você ainda sente dores, é realmente apenas
1
André, S., O que quer uma mulher?1986, p. 47.
46
por sua culpa”. Respondeu ela: ‘Ah! Se o senhor pudesse imaginar as
dores que sinto agora na garganta, no estômago e no abdômen...- isto está
me sufocando.’- Fiquei alarmado e olhei para ela. Parecia pálida e
inchada. Pensei comigo mesmo que, afinal das contas, devia estar
deixando de perceber algum sintoma orgânico. Levei-a até a janela e
examinei-lhe a garganta, e ela deu mostras de resistências, como fazem
as mulheres com dentaduras postiças. Pensei comigo mesmo que
realmente não havia necessidade de ela fazer aquilo.- Em seguida, ela
abriu a boca como devia e, no lado direito, descobri uma grande placa
branca; em outro lugar, vi extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre
algumas notáveis estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por
modelo os ossos turbinados do nariz.- Chamei imediatamente o Dr. M., e
ele repetiu o exame e o confirmou... O Dr. M. tinha uma aparência muito
diferente da habitual; estava muito pálido, claudicava e tinha o queixo
escoalhado... Meu amigo Otto estava também agora de ao lado dela, e
meu amigo Leopold a auscultava através do corpete e dizia: ‘Ela tem
uma área surda bem embaixo, à esquerda.’ Indicou também que parte da
pele do ombro esquerdo estava infiltrada. Notei isso, tal como ele fizera,
apenas do vestido.) ... M. disse: ‘Não duvida de que é uma infecção,
mas não tem importância; sobrevirá uma disenteria, e a toxina será
eliminada.’... Tivemos também pronta consciência da origem da
infecção. Não muito antes, quando ela não estava se sentindo bem, meu
amigo Otto lhe aplicara uma injeção de um preparado de propil,
proprilos...ácido propiônico... Trimetilamina (e eu via diante de mim a
fórmula desse preparado, impressa em grossos caracteres)... Injeções
como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada... E,
provavelmente a seringa não estava limpa (FREUD, S., 1900, p. 142
).
Freud faz grandes associações a partir de cada elemento desse sonho, apresentando
inúmeras condensações. Cada personagem do sonho é desdobrado em várias outras e as
palavras de seu relato levam-no a diversas situações de sua vida clínica, situações de cunho
profissional. Por meio desse sonho, Freud revê seu percurso de trabalho e sua posição
acerca das descobertas que vem fazendo. Portanto, esse sonho vem como um
questionamento ético de seu trabalho, da metodologia e da própria posição de Freud em
relação aos pacientes. É por isso que ele entende que a maneira como Otto falou do caso de
Irma trazia uma entonação de desaprovação. É a própria desaprovação de Freud que está
em jogo nesse momento e que o faz escrever o caso e fazer o sonho.
Na primeira fase, vemos, pois, Freud acossando Irma, recriminando-a por
não ouvir o que ele quer fazer-lhe compreender. Ele continuava
exatamente no estilo das relações da vida vivenciada, no estilo da
pesquisa apaixonada, por demais apaixonada, diremos, e justamente um
dos sentidos do sonho é dizê-lo formalmente, que, no fim, é disto que
se trata a seringa estava suja, a paixão do analista, a ambição de
vencer, eram poderosas demais, a contra-transferência era o próprio
obstáculo (LACAN, J., 1954-55, p. 209).
47
Na interpretação do sonho feita pelo próprio Freud, ele chega à conclusão de que
esse sonho foi feito em função do desejo de tirar-lhe a responsabilidade no fracasso do
tratamento de Irma, mas Lacan (1954-55) questiona essa interpretação colocando que, de
fato, esse desejo não pode ser considerado inconsciente; era um desejo de que Freud tinha
perfeita consciência, ou não teria se debruçado sobre o caso por toda noite na tentativa de
se justificar. Mas Freud não fica nessa interpretação; ele vai além. Faz o desdobramento
do sonho, parte por parte, esmiuçando uma gama de representações que vão elucidando o
sonho para muito mais além do que essa primeira explicação.
Os desdobramentos das interpretações de Freud o levam para além de Emma. Ele
chega a outras duas mulheres que lhe afetavam de alguma maneira importante: sua própria
mulher, que no período do sonho está grávida e uma outra doente, que causa em Freud
admiração, porque, além de não ser sua paciente, é muito bonita e mais inteligente que
Irma/Emma. Freud supõe que ela, no lugar de Irma, aceitaria a solução que ele teria
proposto para seu caso. Além disso, ela não demanda o atendimento de Freud, o que faz
com que ele queira que um dia ela peça por isso. Assim, no sonho Irma encarna, além dela
mesma, outras duas mulheres importantes para Freud: sua mulher, que é muito amiga de
Irmã, e a jovem doente, que seria uma paciente muito melhor na concepção de Freud.
Essa parte do sonho, que, ainda segundo Lacan (1954-1955), encerra muitas
relações imaginárias, leva a uma segunda parte, em que Freud vence a resistência da mulher
e consegue que ela abra a boca. Esse é o ponto fundamental do sonho: o momento em que
essa mulher que encarna outras mulheres abre a boca e mostra a Freud um espetáculo
assustador, que, para Lacan, é sua própria feminilidade. E abrir a boca também é muito
significativo, porque a psicanálise ensina exatamente que é preciso abrir a boca, é preciso
falar para que algo do inconsciente possa ser apreendido, possa se tornar consciente. O que
acontece, porém, quando a mulher abre a boca é que, para além do simbólico, Freud se
depara com algo ainda mais aterrador, algo que causa verdadeiro horror: o real da garganta
de Irma, purulento e infectado, sem fim, sem fundo.
Esse foi, então, um encontro muito semelhante ao que ele conta ter vivido aos seis
anos de idade quando ouviu sua mãe falar a respeito da morte dizendo que os homens
seriam feitos da terra e que a ela retornariam (Jones, 1953). Ao expressar dúvidas e
48
questões acerca disso que tinha ouvido e que o tinha incomodado, a mãe põe-se a esfregar
as mãos e mostra-lhe os fragmentos de epiderme que iam se formando, como prova
irrefutável de sua afirmação. Freud conta que ao observar a cena ficou muito espantado,
porque tinha sido a primeira vez que ele apreendera algo do inevitável. “Lentamente aceitei
a idéia que depois eu ouviria expressa nas palavras: “Deves à natureza uma morte”
(FREUD, S., apud JONES, E., 1953, p. 30).
Essa cena da infância de Freud é muito importante, porque evoca a principal figura
da feminilidade para Freud (Jones 1953), como fica claro em toda sua obra: a mãe entra em
cena, sendo, ao mesmo tempo, imagem da e e da morte, de onde se vem, mas também
para onde se retorna, aquela que alimenta e que devora ao mesmo tempo. É desse encontro
com o inevitável da existência, que é o encontro com o real, que Freud fala quando evoca
esse episódio de sua infância e é disso também que se trata no sonho agora em questão
quando Irma abre a boca. O resto que se destaca do corpo, uma faceta do objeto a proposto
por Lacan, é paralelo à mancha do fundo da garganta de Irma.
Tudo se mescla e se associa nesta imagem, desde a boca até o órgão
sexual feminino, passando pelo nariz — Freud, justamente antes ou logo
depois, foi operado, por Fliess ou por outro, dos cornetos nasais. Eis
uma descoberta horrível, a carne que jamais se , o fundo das coisas, o
avesso da face, do rosto, os secretados por excelência, a carne da qual
tudo sai, até mesmo o íntimo do mistério, a carne, dado que é sofredora,
informe, que sua própria forma é algo que provoca angústia. Visão da
angústia, identificação da angústia, última revelação do és isto— és isto,
que é o mais longínquo de ti, isto que é o mais informe (LACAN, J.,
1954-1955, p. 198).
O que mais impressiona nesse momento é que, apesar do horror fatalmente gerado
por essa visão, Freud não acorda. Ele continua o sonho, ele quer saber sobre isso que viu,
mas a posição que ele toma no sonho é a mesma que vai tomando em estado de vigília, ao
deparar-se com o real e com o horror disso, que não se pode dizer. Ele sai de cena e chama
o professor M., que hoje sabemos ser o Dr Breuer, mestre tão influente na vida de Freud.
O que acontece no sonho é realmente algo que mostra a posição do sujeito de Freud
diante de todo esse indizível que as mulheres histéricas vinham tentando lhe dizer quando
iam ao seu consultório e que ele, apesar de tentar e de estar mesmo se esforçando para saber
disso (afinal, ele não acorda), não consegue apreender e acaba por pedir que o Outro
desvende. Primeiro, pede a Charcot, seu primeiro mestre, mas que, na verdade, não estava
49
muito interessado em aprofundar seus estudos sobre as neuroses; Depois, pede a Breuer, o
que acaba por repetir no sonho, sem êxito, afinal Breuer parece muito mais assustado do
que o próprio Freud com os efeitos da fala de uma mulher. Depois, Freud pede a Fliess, que
não tem ligação nenhuma com a mulher, a não ser com a mãe não castrada, e acaba por
excluir qualquer possibilidade de apreensão desse enigma que Irma teima em mostrar, com
sua pouca inteligência, que não se submete à solução que Freud, nesse momento em
posição de mestre que responde, propõe.
É por isso que se pode divisar que esse sonho tem um conteúdo ético, porque nele
Freud parece rever sua posição em relação ao seu trabalho, sua posição quanto a essa
“descoberta perigosa” que vem fazendo. Esse enigma que aparece dentro da boca de Irma,
o enigma da feminilidade, vai retornar inúmeras vezes na obra de Freud, colocando-se
sempre como questão, mostrando que sempre algo que “não cessa de não se inscrever”
(como afirmará Lacan no Seminário Mais, ainda a propósito do real). Mesmo que Freud
tenha, como mostra seu poema a Fliess, se proposto a submeter esse “poderio feminino” à
lei e à ordem, o que Irma, incomodamente, vem mostrar é que isto não é de todo possível.
O sonho concentra inúmeros questionamentos de Freud sobre sua posição em
relação a seu trabalho. É por isso que evoca o mestre para socorrê-lo. Lacan compara o trio
de homens que Freud coloca para auxiliá-lo no desvendamento do enigma de Irma como
um trio de palhaços que em nada respondem às questões que atormentam Freud.
A primeira tríade, a tríade feminina, causa em Freud mais inúmeras considerações.
Ele percebe que uma quantidade tão grande de associações possíveis que chega a um
mistério. É nessa parte em que o feminino se coloca que Freud estabelece o que ele chamou
de “umbigo do sonho”, um ponto que fica em aberto, que não pode ser interpretado. Freud
chega então ao real, ao impossível de ser simbolizado, exatamente nesse ponto em que as
mulheres vão se desdobrando infinitamente.
Lacan acrescenta então o que está por detrás desse “trio místico” feminino é o
sentido último do sonho que é o encontro com o indizível da morte:
Chegamos ao que está por detrás do trio místico. Digo místico porque
agora conhecemos seu sentido. As três mulheres, as três irmãs, os três
cofrinhos, Freud de para nos demonstrou seu sentido. O último
termo é pura e simplesmente a morte (idem, p. 200).
50
Nas próprias associações de Freud, ele vai até uma doença que sua filha teve com
risco de vida e que ele considerava ser uma punição por um remédio, o sulfonal, que teria
aplicado numa paciente em demasia, que ignorava que o efeito continuado do remédio
trazia efeitos nocivos. A possível morte de sua filha seria então para ele o castigo pela sua
imprudência como médico, tendo o tema da ética profissional e o da morte caminhado
juntos pelo sonho de Freud. A visão aterradora da garganta de Irma traz esse real que a
morte encarna, esse real impossível de se dizer:
A fenomenologia do sonho da injeção de Irma nos levou a distinguir duas
partes. A primeira vai dar no surgimento da imagem aterradora,
angustiante, nessa verdadeira cabeça de Medusa, na revelação de algo de
inominável propriamente falando, o fundo desta garganta, cuja forma
complexa, insituável, faz dela tanto o objeto primitivo por excelência, o
abismo do órgão feminino, de onde sai toda a vida, quanto o vórtice da
boca, onde tudo é tragado, como ainda a imagem da morte onde tudo
vem-se acabar, que em relação com a doença de sua filha, que poderia
ter sido mortal, a morte da doente que ele perdeu num época contígua à
da doença de sua filha, ele a considerou como sendo não sei que
retaliação do destino por sua negligência profissional uma Mathilde
por outra, escreve ele. Ta, pois aparecimento angustiante de uma imagem
que resume o que podemos chamar de revelação do real naquilo que tem
de menos penetrável, do real sem nenhuma mediação possível, do real
derradeiro, do objeto essencial que o é mais do que um objeto, porém
este algo diante do que todas as palavras estacam e todas as categorias
fracassam, o objeto de angústia por excelência (idem., p. 209)
É importante salientar também que esse sonho é de mão dupla. Afinal, o Freud que
faz o sonho é o mesmo Freud que está em busca da chave dos sonhos. É ele que está
interessado, mais do que nunca, em saber o que está por trás desse fenômeno que pesquisa e
que, ao mesmo tempo, vivencia. É por isso que Lacan enfatiza que esse sonho deve ser
analisado na transferência; ou seja, ele deve ser situado no diálogo que Freud empreende
com a humanidade, em busca do desvendamento dos sonhos:
O que confere o verdadeiro valor inconsciente a este sonho, sejam quais
forem suas ressonâncias primordiais e infantis, é a busca da palavra, o
enfrentamento direto com a realidade secreta do sonho, a busca da
significação como tal. É mo meio de todos os seus confrades, no meio do
consenso da república dos que sabem — pois se ninguém tem razão, todo
mundo tem razão, lei paradoxal e ao mesmo tempo tranqüilizadora — , é
no meio deste caos que se revela a Freud, neste momento original em que
nasce a doutrina, o sentido do sonho que é o seguinte o outra
palavra chave do sonho a não ser a própria natureza do simbólico (idem,
p. 203).
51
um diálogo com as questões que estão abertas para ele a serem descobertas, e é
nesse aspecto, no ápice desse segundo momento do sonho, que aparece inevitavelmente
esse personagem tão importante na vida de Freud: Fliess. Fliess aparece primeiro pelas
estruturas nasais que Freud encontra na garganta de Irma. Para ele, os cornetos nasais
seriam correlatos dos órgãos sexuais femininos, mas sua presença evidente no sonho vem
nesse segundo momento, quando Freud evoca a fórmula da trimetilamina. Ele não pensa
na palavra, como a fórmula vem escrita em letras para ele, letras que evocam Fliess e sua
teoria de que essa substância, a trimetilamina, estaria ligada com a decomposição das
substâncias sexuais.
A sexualidade é significante constante em toda a teoria freudiana e também
significante importantíssimo na ligação de Freud e Fliess. Era sobre esse tema que se
debruçava no momento: Qual seria verdadeiramente o lugar da sexualidade nas neuroses e
principalmente na histeria? De que maneira os sintomas histéricos estariam ligados com a
sexualidade feminina? Qual era verdadeiramente o sentido desse conceito de sexualidade?
Tais questões faziam parte da descoberta e caminhada de Freud e agora colocavam-no
diante de um impasse. A relação com Fliess se colocava cada vez mais como entrave para o
desenvolvimento de sua clínica e para o avanço no estudo do inconsciente. A questão da
sexualidade era central, isso nas duas mãos que o sonho traz, tanto na vida pessoal de
Freud, que se depara com o horror do encontro com o inominável, como em sua obra.
O próprio símbolo da trimetilamina traz a dupla sexualidade-Fliess para as
associações de Freud. É o simbólico mesmo que marca a sexualidade, e é isso que, de
maneira tão importante, o sonho traz a Freud nesse momento de desvendamento tão
fundamental de seu trabalho. Então, o que o inconsciente traz para Freud como resposta ao
horror que ele se depara diante do espetáculo da garganta de Irma é uma fórmula, são letras
que evocam um significante que recobre o real inominável. É a partir da representação da
sexualidade, dos significantes marcados pelas leis da linguagem, que é possível contornar
esse indizível que o sexo feminino encarna.
Assim, Freud faz um sonho que endereça a todos que se interessam pelo
desvendamento do inconsciente para dizer, sim, de uma culpa, mas de uma culpa por estar
penetrando em algo tão revolucionário como o inconsciente. Para Lacan, o que Freud diz
quando faz esse sonho é:
52
Sou aquele que quer ser perdoado por ter ousado começar a sarar estes
doentes, que até agora não se queria compreender e que se proibia a si
mesmo de sarar. Sou aquele que quer ser perdoado por isto. Sou aquele
que quer não ser culpado por isto, pois se é sempre culpado quando se
transgride um limite até então imposto à atividade humana. Quero não
ser isto. Em lugar de mim todos os outros. Sou apenas o
representante deste vasto, vago movimento que é a busca da verdade
onde, eu, me apago. Não sou mais nada. Minha ambição foi maior que
eu. A seringa estava suja, sem dúvida. E justamente na medida que eu
desejei demais, em que participei desta ação, em que quis ser eu, o
criador, não sou o criador, O criador é alguém maior do que eu. É o meu
inconsciente, é esta fala que fala em mim, para além de mim (p. 217).
É, então, da culpa pelo desejo de saber a verdade e de ter ido além, de ter deparado
com a dimensão transgressora do inconsciente e, para mais além, com a dimensão do real,
que Freud deseja ser perdoado. É dessa ânsia apaixonada pelo saber que faz com que ele
deseje que seu ego ocupe o lugar que é do inconsciente que ele se sente culpado, porque a
falha no tratamento está exatamente nisso; Freud acredita que ele sabe do que a paciente
sofre e não dá espaço para que o inconsciente da mesma se manifeste. Na ânsia de
desvendamento, Freud coloca seu eu em evidência num lugar que só pode ser ocupado pelo
inconsciente. É isso que o sonho de Irma vem dizer a Freud. Ele diz que é ela que tem que
abrir a boca e que isto é mesmo assustador. E, para mais além na análise das duas vias
desse sonho, ele mostra a Freud que não é o seu eu que pode ter o mérito pelo
desvendamento dos sonhos e sim seu sujeito, que fala para além do eu.
É isso que torna esse sonho de valor primordial, um sonho que trata de temas que
parecem ser o que de mais angustiante na vida de Freud: as suas relações com as
mulheres e com a morte, que se colocam de modo central no sonho. É, portanto, sobre essa
experiência de encontro com o real que todo o sentido do sonho se desenrola.
Para André (1986), esse sonho testemunha um primeiro distanciamento de Freud da
ciência paranóica de Fliess. Para ele, esse é, antes, um sonho de transferência. Esse sonho
seria, sob esse ponto de vista, o primeiro encontro verdadeiro de Freud com a feminilidade.
Afinal, o que Freud supunha saber em Fliess era exatamente sobre o feminino, por meio da
sua teoria dos períodos (relacionados com a menstruação feminina). Entretanto, o que se
tinha, na verdade, era uma ressalva à feminilidade, e todas as teorias de Fliess impediam
exatamente que a feminilidade, enquanto manifestação máxima desse real inominável,
53
aparecesse. Havia uma negação das mulheres, tanto na relação dos dois, que as excluía,
quanto nas teorias de Fliess, que Freud acabara por corroborar.
Esse sonho marcaria, então, para André (1986), um primeiro rompimento de Freud
com Fliess em direção ao desvendamento verdadeiro do inconsciente, a partir desse
encontro com a garganta de Irma; o encontro com o inominável.
[...] a interpretação testemunha um primeiro distanciamento de
Freud da ‘ciência’de Fliess, e, conseqüentemente, talvez, seu
primeiro encontro verdadeiro com o mistério da feminilidade. Esse
sonho, com efeito, significa para Freud aonde acaba o saber que ele
supunha em Fliess, e aonde pode começar o seu próprio (ANDRÉ,
S., 1986, p. 46).
A questão da problemática de esse sonho marcar um afastamento ou um abalo na
transferência de Freud com Fliess está diretamente relacionada a um fato que Freud
censurou, por motivos óbvios, na sua interpretação desse sonho, mas que Max Schur
acabou por revelar
1
a partir de seu contato com as correspondências censuradas de Freud. O
que de fato aconteceu foi que Freud pedira efetivamente a Fliess para que verificasse se
Irma (Emma) não estava sofrendo de alguma patologia nasal. Fliess veio de Berlim,
examinou e operou Emma em fevereiro de 1895.
Após a cirurgia, Irma começou a sofrer dores incessantes e sangramentos, o que
levou Freud a encaminhá-la para outro otorrinolaringologista, que descobriu que durante a
operação Fliess “esquecera” nas cavidades nasais da paciente uma tira de gaze de cinqüenta
centímetros. Ela foi operada para que se retirasse essa fonte constante de infecções, mas
durante essa segunda cirurgia Irma sofreu uma grave hemorragia e perdeu os sentidos.
Freud, que a assistia, teve um mal-estar, sendo obrigado a deixar a sala. Nas semanas que se
sucederam, Irma teve ainda que ser operada inúmeras vezes e sofreu grandes hemorragias,
que a deixaram, por várias vezes, em estado crítico.
Freud, ao se deparar com esse “ato falho”cirúrgico de Fliess hesitou um dia antes
de lhe escrever. Depois, escreveu-lhe uma longa carta contando o acontecido e reforçando
sua confiança pretensamente inabalável em Fliess. Sobre seu próprio mal-estar ,Freud
acaba por concluir que ele não teve relação com a cirurgia em si, mas com o conjunto da
1
Schur,M., 1975, apud, André, S., O que quer uma mulher? 1986.
54
situação que acabava por incriminar Fliess. Assim, para Max Schur
1
, o desejo realizado
pelo sonho de Freud é menos o desejo de se desculpar do que o desejo de inocentar Fliess e
manter sua relação positiva com ele. Mas será que Freud, com toda sua preocupação com a
ética e com seu trabalho, alguém que se importa tanto com as conseqüências do que faz,
que até acha que a doença de sua filha é castigo por uma imprudência sua, é capaz de achar
aceitável uma imperícia dessa gravidade?
A atitude de Freud não é tão positiva em relação a Fliess nem no sonho. Afinal, a
seringa estava suja, ou seja, aquilo que Freud entendia que era o saber de Fliess se
apresentava imprudentemente impuro, enquanto Freud está sempre atento ao seu trabalho.
É nesse momento do sonho, especialmente revendo a ‘pureza’ de seu método terapêutico,
que acaba, em pouco tempo, sendo completamente substituído pelo método da associação
livre.
[...] a culpa fundamental que se confessa é bem a de Freud. E esta
culpa, em última análise, acusa sua transferência para Fliess: referindo-se
ao saber de Fliess, Freud “não leva bastante a sério seus deveres
médicos”, o se mantém à altura daquilo em que se engajou na cura de
Irma (idem, p. 49).
Portanto, para André, para que se possa analisar esse sonho mais profundamente é
necessário ressituá-lo no quadro da transferência de Freud para Fliess; ou seja, deve ser
entendido por meio do seu remetimento. Isso leva a entender que esse Outro que Freud
supunha deter todo o saber, esse mestre sem falhas a quem ele rendia as mais altas
reverências, aparece agora manco, aparece agora diante da dimensão do engano, em que o
Outro pode não se enganar, como também enganar. Enganar como enganou a Freud
mantendo a tira de gaze no nariz de Irma, um “ato falho” que acabava por manter o sintoma
de Irma orgânico como Fliess afirmara que era de fato.
Com efeito, o que o sonho de Freud constrói, em resposta àquilo que se
apresenta no fundo da garganta de Irma, constitui em si o ponto de
partida para uma via de acesso à feminilidade. Pois o que Freud descobre
quando Irma abre a boca, ali mesmo onde Fliess pode ver infecção,
está na origem dos três temas que formam outros tantos fios condutores
para apreender a mulher: o da realidade do órgão genital feminino e do
horror que este suscita; o das três mulheres, cujo auge é a mulher como
1
Apud André, S., 1986, p. 48.
55
figura da morte (e reciprocamente); e o do umbigo, do não reconhecível,
da feminilidade enquanto furo (idem, p. 52).
Assim, o sonho indica que o verdadeiro objeto das queixas de Irma se tratava
exatamente desse inominável que a habitava, esse algo que aparecia por meio dos sintomas
de náusea e de repugnância e que fazia com que seu corpo aparecesse dessexualizado,
reduzido a uma carne sem forma, um objeto, para terror de qualquer histérica. Afinal, a
queixa inicial da histérica não se trata de nada além do que esse estado de coisa, de objeto,
que faz com que ela tenha que se haver quando se vê diante do desejo do Outro e que acaba
por lhe provocar aversão. Retomaremos esse ponto no capítulo 3.
É importante ressaltar que diante desse horror da garganta de Irma Freud, que
continua o sonho, acaba por não se deter nessa imagem também em sua interpretação. No
sonho, como vimos o ego de Freud desaparece e é substituído pelo trio de bufões, como
Lacan os nomeou, mas é no segundo ápice do sonho, no momento em que a fórmula
simbólica da trimetilamina aparece em letras para Freud, é que este pode, no próprio sonho,
traçar um princípio de elaboração para esse encontro com o real. Nas palavras de Lacan:
Tal como um oráculo, a fórmula não fornece resposta alguma ao que quer
que seja. Mas a própria maneira pela qual ela se enuncia, seu caráter
enigmático, hermético, é justamente a resposta à questão do sentido do
sonho. Pode-ser calcá-la na fórmula islâmica — Não há outro Deus
senão Deus. Não outra palavra, outra solução ao problema de vocês,
senão a palavra (LACAN, 1954-55, p. 202),
Assim, o que Lacan coloca é que o sonho, em sua elaboração, dá-se de acordo com
a descoberta psicanalítica e com a constituição do inconsciente, que é causado por um
real inominável, real que o inconsciente tenta delimitar a partir dos significantes e das
letras. Sob este aspecto, este sonho não é apenas decifrável por meio da psicanálise; é por
meio dele que a própria psicanálise é inventada. Assim, a fórmula da trimetilamina é a letra
que sustenta o sujeito diante do real traumático; é a resposta do inconsciente para o real
inominável.
Mesmo com a resposta do inconsciente, está implícito no sonho, como na
experiência infantil de Freud quando via sua mãe esfregar as mãos e evocar a morte, que há
um resto que resiste à significação e que a feminilidade parece estar deveras vinculada a
56
esse resto: algo da mulher que resiste a toda significação, alguma coisa que se destaca
como a própria morte, como Irma vem mostrar.
É sob esse aspecto que o tema da mulher e da morte parecem se encontrar. Para
Freud, a morte é representada de alguma forma pelo feminino, pelo mutismo que o
feminino encarna. Assim, a morte é o que resta da mãe, da e real, como Freud
experiencia em sua infância.
Lacan esclarece melhor essa questão quando designa na morte uma das
figuras do real. Se a morte tem tanta importância para nós, seres falantes, é
que ela é a que nega o discurso, o mutismo que quebra a espada da palavra.
Fica-se então menos surpreso de reencontrá-la no inconsciente como um
equivalente da mãe, até mesmo da feminilidade, na medida que, os
desenvolvimentos da doutrina freudiana nos mostram que alguma coisa da
feminilidade absolutamente fora do alcance da palavra, interdito no sentido
mais forte do termo, quer dizer, presente no mutismo que se intercala entre
os ditos (idem, p. 59).
Assim, o sonho de injeção de Irma acaba por abordar algumas facetas importantes
com relação à feminilidade. Aborda a questão do real inominável, do mutismo e da morte, e
traz também, como correlato a esses, a questão do umbigo dos sonhos, o limite das
representações. O sonho estampa essa perspectiva de um limite interno às representações,
pois, além da resistência para abrir a boca, mesmo que fale algo, não pode dizer tudo.
sempre algo que está por dizer, que não pode ser dito. É um silêncio interno à palavra.
Para ilustrar essa lacuna, esse furo no discurso, André (1986) retoma o Rascunho
K,. que Freud escreve a Fliess imediatamente após o sonho de injeção de Irma em janeiro
de 1896. Nesse ensaio, Freud esboça uma opinião substancialmente diferente sobre a
origem da histeria daquela que havia defendido em seu artigo “Psiconeuroses de
Desfesa”(1984).
Em 1894, Freud afirma que na origem da histeria uma representação
irreconciliável com o eu que geraria a separação da representação do afeto (excitação), que
acabaria gerando a conversão somática. nesse Rascunho K, redigido apenas dois anos
depois, ele não fala em representação irreconciliável, mas de um susto com uma lacuna no
psiquismo originando a histeria:
57
Esse primeiro estágio da histeria pode ser qualificado como “histeria de
susto”, acompanhada por uma lacuna psíquica (FREUD, S., 1896, p.
276).
Assim, o que Freud descreve se refere mesmo à pré-história da histeria, antes da
formação do sintoma histérico. Sobre o recalcamento e a idéia de “representação
inconciliável”, Freud ainda acrescenta:
O recalcamento não se pela construção de uma idéia antitética
excessivamente forte, mas sim pela intensificação de uma idéia limítrofe,
que, depois, representa a lembrança no fluxo do pensamento. Pode ser
chamada de idéia limítrofe porque, de um lado, pertence ao ego e, de
outro, forma uma parte não distorcida da lembrança traumática (idem, p.
276)
Essa abordagem traz a idéia de que o significante, que num segundo tempo marca
essa representação inconciliável, é eleito por estar de alguma forma à beira do furo que é
lacuna, que gera susto, que não pode ser representado. Essa idéia será desenvolvida mais
profundamente no capítulo 3.
André sublima o fato de que esses conceitos tão importantes como o de lacuna e o
de representação limite não voltam a aparecer na obra freudiana. Esses conceitos indicam
diretamente a presença do real, fora do significante, estar no epicentro do recalcamento
significante que gera os sintomas.
É importante destacar que nesse momento do sonho de injeção de Irma Freud
elabora duas abordagens com as quais tenta abarcar a questão da feminilidade: a questão do
real, do não reconhecível, do mutismo e da morte, em que se inscreve a repulsa; e a questão
da castração, em que o primado do falo se evidencia e se inscreve o horror da castração
feminina. Veremos que no percurso freudiano essa primeira vertente a do real vai se
extinguindo e sendo mesmo absorvida pela segunda. É como se a teoria da castração viesse
para recobrir o real, assim como o significante tenta incessantemente fazer.
A releitura atenta dos primeiros trabalhos de Freud nos mostra, então que
se sucedem em sua obra duas vias de abordagem da questão da
feminilidade: a primeira é a de um inominável, quer dizer, de um real que
faz furo na fala; a segunda, ao contrário, apóia –se num nomeado: o
primado do fala que nomeia a falta da castração. Vimos que Freud
encontra o inominável sob a forma de três figuras: a do real da carne,
onde o órgão sexual feminino aparece como dessexualizado; a da morte,
na medida em que o feminino aparenta com o mutismo; e a da lacuna no
58
psiquismo, umbigo em torno do qual giram as representações (ANDRÉ,
S., 1986, p. 64).
É nesse sentido que o Sonho de Injeção de Irma está diretamente relacionado com a
obra freudiana. É como se no momento em que ela abre a boca devidamente Freud tivesse
que dar conta daquele espetáculo aterrorizante, de maneira que pudesse trazer uma fórmula
que dissesse desse real inominável a fórmula que Freud encontra no sonho relaciona-se
também com sua obra diretamente, a fórmula vem dizer exatamente da questão da
sexualidade. Uma fórmula simbólica que vem marcar a tentativa de Freud, que se inaugura
por esse sonho, de demarcar esse inominável e inseri-lo numa formalização.
É essa tentativa que culmina nas teorias da castração e do Complexo de Édipo, que
acabam por eclipsar esse inominável que a feminilidade traz. Assim, nessa tentativa de
Freud de abarcar a questão feminina a partir de uma estruturação simbólica, o que acaba
por acontecer é que a feminilidade fica sem lugar na obra freudiana, sendo sempre
comparada e estudada a partir da sexualidade masculina. Freud acaba por dar conta da
feminilidade apenas no que se refere ao Complexo de Castração e à inveja do pênis, gerada
a partir do mesmo. É isso que iremos demarcar melhor a partir da abordagem da
feminilidade na primeira e na segunda tópica freudiana.
É nesse ponto também que Lacan, ao retomar os primeiros trabalhos de Freud, pôde
dar outra saída a essa problemática. E, principalmente, no seu Seminário XX, conclui que a
feminilidade só pode ser verdadeiramente compreendida se tomarmos seriamente a questão
da emergência do real, que faz com que uma mulher, mesmo que esteja enquadrada na
lógica fálica, não esteja completamente fixada nisso. um não todo que cada mulher
encarna, sendo testemunha da castração, já que vive em seu corpo a falta. Cada mulher vive
a questão de que o feminino aponta para algo que não pode se inscrever, algo de real que se
encerra no próprio corpo, que não pode ser demarcado nem englobado no sistema
simbólico e que aponta para a feminilidade enquanto causa: causa de um trabalho
incessante para cada ser humano, de desejar sempre dizer daquilo que a feminilidade aponta
que não pode ser dito, exatamente por ser essa dimensão que traz uma falta absoluta de
significante que a diga.
É esse trabalho incessante e impossível que traz a possibilidade de criação. Afinal,
se tudo já estivesse sido escrito e dito, nada restaria para advir. É nesse sentido também que
59
a mulher inspira: os poetas, os homens e as mulheres, que vão a busca de imagens que a
definam e que possam nomeá-la. Como Freud, que em todo seu percurso foi buscando
respostas para a questão da feminilidade, incitado pelo enigma do desejo feminino e pelas
demandas das histéricas, que lhe pediam que respondesse, que lhe exigiam algo de um
saber impossível a que ele se empenhou verdadeiramente em elucidar.
Do mesmo modo, procura-se aqui dissertar sobre esse tema, em busca de contornar
esse impossível de dizer, na tentativa de dizer alguma coisa disso que possa apontar uma
posição feminina, uma posição em que o sujeito possa se confrontar com a feminilidade
para além do horror e que no lugar do horror talvez pudesse advir algo da criação, do
trabalho que esse confronto com a feminilidade gera, como se apontou a partir do sonho de
Freud. Apontou-se, porque o encontro com a garganta de Irma parece ter sido crucial para o
trabalho de Freud, que vai se debruçar logo em seguida naquela que considerou sua obra-
prima: A interpretação dos sonhos, da qual esse sonho faz parte.
_______________________________________________________________
Capítulo 2:
A auto- análise de Freud e suas conseqüências para o desenvolvimento da
teoria da sexualidade e sexualidade feminina na primeira tópica
60
O capítulo 2 objetiva desenvolver a reviravolta que a auto-análise de Freud
proporciona em sua obra. Trata, portanto, de como se desenvolveu essa auto-análise e das
principais conseqüências para a obra freudiana, como a questão dos sonhos, do Complexo
de Édipo e da mudança de concepção no que tange à histeria e à sexualidade infantil.
Tomou-se, a partir disso, a questão do desenvolvimento da teoria da sexualidade
partindo da sexualidade infantil, tema de grande relevância para o entendimento da
abordagem da sexualidade feminina na obra freudiana. Desenvolveu-se, a seguir,
propriamente, a questão da sexualidade feminina na primeira tópica, sublinhando os
impasses e avanços da questão feminina na obra freudiana até 1920. A seguir,
desenvolveram-se os conceitos de Complexo de Édipo e de Castração, que correspondem
ao eixo central do entendimento da posição feminina em Freud.
A mudança que a obra freudiana empreende no que concerne à histeria a partir da
auto-análise será tratada no capítulo 3, que objetivou discutir exclusivamente a
problemática da histeria e sua relação com a feminilidade na obra freudiana.
2.1 Freud e sua auto-análise
A auto-análise foi uma decisão muito importante que Freud tomara a partir de
inúmeros eventos que aconteceram em sua vida. Ocorreu num momento em que Freud
começava a desenvolver a teoria psicanalítica e estava elaborando seu método de
associação livre. Estava vivendo também uma forte relação com Fliess, assunto discutido
no primeiro capítulo. Essa relação e seu trabalho, então, constituíam os focos principais de
sua atenção e lhe causavam também muita angústia e muitos impasses. O caminho que
escolheu não era nada fácil de trilhar, pois tinha de percorrer por objetos até então
desconhecidos e seu objeto de trabalho se relacionava diretamente com sua vida pessoal,
que tinha de estudar o inconsciente e o psiquismo.
O contato constante com os pacientes e suas demandas e os desafios que iam
surgindo em seu trabalho geravam-lhe angústia e até depressão. Não foi com pouco
sofrimento que Freud trilhou os caminhos para o desvendamento do inconsciente. Além
61
disso, a relação que estabeleceu com Fliess também provocava alguns impasses, por
exemplo, o que mostramos no Sonho de Injeção de Irma, no momento em que a relação
com Fliess atingia seu auge. Foi também a partir desse sonho que Freud iniciou sua auto-
análise, criando, no início, o hábito de analisar os próprios sonhos, enviando muitos deles a
Fliess.
A importância da auto-análise empreendida por Freud, para este estudo, dá-se no
que tange as suas conseqüências para a obra freudiana. Foi a partir dela que Freud pôde
mudar sua maneira de conceber a histeria, entrando então no terreno das fantasias. Além
disso, a existência do Complexo de Édipo foi estabelecida por Freud em 1897, uma
descoberta que fez também a partir de sua auto-análise, a que dedicava toda a atenção nessa
época. E, finalmente, a teoria da sexualidade infantil, bem como a dos sonhos, também
sofreu forte influência desse processo a que Freud se submetera. Tratar-se-á primeiramente
de como se deu essa auto-análise de Freud e depois trataremos dos temas da mudança de
concepção da histeria, do Complexo de Édipo e da sexualidade infantil mais detidamente,
bem como das conseqüências dessas primeiras fundamentações teóricas para a concepção
da feminilidade e da sexualidade humana nesse momento da obra freudiana.
Segundo o que relata Jones (1953), a própria decisão de empreender a tarefa foi
muito pouco uma decisão de vontade consciente ou de motivação deliberada. Ao contrário,
disso, foi tomada, a partir de uma necessidade que aumentava a cada dia com o trato com
seus pacientes.
Não houve súbito lampejo de gênio, mas crescente intuição de sua
necessidade. Uma necessidade imperiosa de chegar à verdade a todo
custo foi provavelmente a mais profunda e mais forte força motivadora
na personalidade de Freud, necessidade a que tudo mais—tranqüilidade
sucesso, felicidade — deveria ser sacrificado (JONES, E., 1953, p. 323).
A auto-análise prosseguiu simultaneamente com a composição da obra-prima de
Freud sobre os sonhos, trabalho que o próprio Freud acredita ser sua melhor obra. A auto-
análise fez com que, lentamente, Freud pudesse perceber que a inocência infantil não era
mais do que uma crença despropositada. Ele vai, então, mudando sua posição em relação à
infância de acordo com a evolução de sua auto-análise.
62
O princípio de todo esse processo se deu a partir do sonho de injeção de Irma, mas a
auto-análise se tornou um procedimento regular na vida de Freud apenas em julho de 1897,
no ano seguinte à morte de seu pai. Essa morte o afetou profundamente, pois seu pai era
alguém de extrema importância e por quem nutria grande afeto. Freud cita que fora esse
evento que o impulsionou a escrever A Interpretação dos Sonhos (1898). No prefácio da
segunda edição, ele acrescenta:
Ele se revelou para mim como uma parte de minha auto-análise, como
minha reação à morte de meu pai, ou seja, ao acontecimento mais
importante, à perda mais pungente, na vida de um homem (FREUD, S.,
apud JONES, E.,1953, p. 327).
No mês seguinte à morte do pai, Freud começa a acreditar que ele também teria
seduzido algumas de suas irmãs, que apresentavam sintomas claramente histéricos.
Acreditava que a principal causa da histeria era a sedução sexual de uma criança inocente
por parte de algum adulto, mais freqüentemente o pai. Essa crença foi mantida de 1893 até
1897, quando finalmente escreve a Fliess sobre o seu engano. Até então, para ele, as provas
da sedução infantil eram inegáveis, pois havia abundante material clínico que reforçava
essa tese, apesar de ficar cada vez mais surpreso com a freqüência de que isso ocorria. Foi a
partir de sua auto–análise que pôde descobrir que o que estava realmente em jogo na
histeria era muito mais uma fantasia de sedução a partir do desejo incestuoso dos filhos
com relação a seus pais do que uma sedução ativa por parte destes.
Ele chega a essa conclusão, finalmente, a partir de um sonho, três meses após a
morte de seu pai, um sonho de conteúdo incestuoso. Foi a partir desse sonho também que
Freud começa a esboçar as primeiras idéias sobre o Complexo de Édipo. Um mês depois
disso Freud fica deprimido e sofre do que chamou de paralisia intelectual’. Acreditava
estar passando por uma crise neurótica e não conseguia escrever, o que o levou a interpretar
esse sintoma como uma maneira de prejudicar seu relacionamento com Fliess que
acontecia, basicamente, por meio de correspondência escrita.
Para Freud, sua auto-análise era mais do que uma decisão; era uma necessidade,
numa época em que vivia uma crise transferencial com relação a Fliess e a elaboração do
luto da morte de seu pai. Vivia também um momento chave do percurso do seu trabalho,
cujo caminho estava sendo definido. Freud acrescenta, por várias vezes, que nada havia de
63
mais difícil do que sua própria análise, mas que ela havia de ser levada adiante pois era de
fundamental importância para seu trabalho psicanalítico.
Foi então em 21 de setembro que Freud relatou a Fliess que as histórias de sedução
que as histéricas lhe contavam não eram literalmente verdadeiras. Em outubro, segundo
Jones (1956), ele narra progressos em sua análise:
Havia reconhecido que seu pai era inocente e que havia projetado no pai
suas próprias idéias. Reacenderam-se lembranças de desejos sexuais com
relação à sua mãe, numa ocasião em que a viu nua. Relatamos seus
ciúmes e disputas durante a infância e a redescoberta de sua velha babá, a
quem ele atribui a maior parte de seus problemas (idem, p. 328).
Foi assim que Freud teria descoberto, em si mesmo, a paixão por sua mãe e o ciúme
por seu pai. Essa descoberta vem, então, a partir de lembranças que o levaram a achar
primeiro que fora seduzido pela sua mãe e por sua ama, que ele acredita tê-lo iniciado na
sexualidade. É então num segundo momento, após o sonho de incesto e da lembrança da
visão de sua mãe nua, que presenciou aos dois anos de idade, que Freud reconhece os sinais
dessa nova relação que se estabelece entre o menino e seus pais. É, portanto, o encontro
com a sexualidade feminina que leva o pequeno Freud à entrada do Édipo, assim como,
mais tarde, seria o encontro com a questão da sexualidade colocada pelas histéricas que
levaria o teórico a elaborar o referido Complexo. André fala sobre este momento como um
ponto de inflexão crucial:
É numa reviravolta de sua própria análise, no próprio momento em que
ele se descobre, assim como a histérica, ter sido objeto de manobras de
sedução pelo Outro, que Freud é conduzido a reformular de outra
maneira a relação com o pai, e a colocar este como uma função central
para o sujeito. De fato, se a histérica se queixa de ter sido seduzida (ou
violada) pelo pai, Freud se queixa de ter sido iniciado precocemente na
sexualidade por sua ama e sua mãe; esta evocação do sexo materno como
traumático vai remetê-lo imediatamente à lenda do Édipo e à idéia de
recalque. O Complexo de Édipo está, certamente, no fundamento da
psicanálise; mas seu alcance teórico não nos deve fazer esquecer que ao
efetuar essa descoberta Freud também está no lugar da histérica em
outras palavras, esse deciframento, por mais operativo que seja, constitui
para ele um ciframento (ANDRÉ, S., 1986, p. 68).
64
Assim, não somente a auto-análise de Freud produz efeitos em sua vida, tal como se
pode depreender do rompimento de sua relação de dependência com Fliess, mas também e
talvez, sobretudo, em sua obra que recebe um grande avanço. Novos campos se abrem para
Freud, uma nova maneira de entender a histeria e a teoria dos sonhos que desabrocha na
Interpretação dos Sonhos. Além disso, a questão da sexualidade infantil aparece como algo
fundamentalmente importante para o desvendamento da genealogia das neuroses, e o
Complexo de Édipo surge como questão central, estruturante mesmo das neuroses.
Segundo Jones (1956), a auto-análise de Freud persistiu no decorrer de seu percurso. Ele
dedicava sempre a última meia hora do dia para isso.
2.2 Freud e sua teoria acerca da sexualidade e da sexualidade infantil
É a partir de sua auto-análise que Freud (1905) se depara com a sexualidade infantil
e empreende seu estudo acerca da mesma, visando reconstruir o processo de constituição
subjetiva e, então, desvendar a estruturação neurótica. Ele elabora um enorme arcabouço
teórico acerca da sexualidade começando pelos conceitos de pulsão e de desenvolvimento
libidinal.
Nesse percurso, especificamente sobre o tema da sexualidade infantil, Freud
(1905) mostra que a sexualidade humana é essencialmente polimorfa e está presente desde
a mais remota infância, rompendo desde então com o que se entendia em sua época por
uma infância inocente e assexuada.
Faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual que ela está ausente
na infância e desperta no período da vida designado da puberdade.
Mas esse não é apenas um erro qualquer, e sim um equívoco de graves
conseqüências, pois é o principal culpado de nossa ignorância de hoje
sobre as condições básicas da vida sexual (FREUD, S., 1905, p. 85).
Ao trazer à luz o conceito de pulsão, Freud define-o como essencialmente sexual
e inerente a todos os seres humanos. A pulsão age desde o nascimento como uma excitação
nos órgãos que mobiliza o ser à ação em busca de satisfação ou seja, uma exigência de
trabalho, que se situa entre o somático e o psíquico. Com esse conceito, Freud imprime uma
65
transformação radical na maneira de pensar a infância e a humanidade, agora destituída de
instintos.
Desde o início de seu trabalho com a histeria e sobre a sexualidade Freud mostra
que a anatomia não ajuda em nada na compreensão da sexualidade humana, porque não
nada a priori no psiquismo do ser humano que diga como é ser homem ou ser mulher. Isso
não é dado por instinto, que o ser humano não os tem e tampouco a anatomia basta para
definir os destinos da sexualidade humana. O que realmente importa para o entendimento
da sexualidade humana está, antes, muito mais assentado sobre a dialética do desejo, em
virtude de seu aprisionamento na teia das representações. Assim, tanto o sujeito está
marcado desde o princípio como ser de fala quanto sua sexualidade será uma sexualidade
ao se articular no registro do discurso (e, portanto, do posicionamento subjetivo).
O que Freud traz como fundamental na sua teoria da sexualidade é, então, que no
ser humano não uma união entre o sexual, o genital e a reprodução. A escolha de objeto
também não é predefinida e há uma separação entre o desejo sexual e o objetivo sexual, que
seria a reprodução. Em virtude de a relação sexual no humano não estar ligada ao objetivo
sexual da reprodução, a sexualidade escapa ao registro da necessidade e é, mesmo, marcada
pela inutilidade. Não serve especificamente para nada; apenas inclui a obtenção de prazer, e
isso por todo o corpo. Não apenas genital, delineando um circuito pulsional que marca o
corpo com representações que definem em cada sujeito sua condição desejante.
O prazer é posto em cena por Freud como sendo o responsável pela definição da
fronteira entre o espaço interno e o externo do corpo humano. Cada ser humano, segundo a
teoria freudiana, tem, desde seu nascimento, a tendência a afastar estímulos, a reduzi-los ao
mínimo de tensão possível, segundo uma regulação que Freud nomeia como “princípio do
prazer”, ou “princípio de Nirvana”, concebido como essa tendência de reduzir os níveis de
excitação. O prazer coincidiria, segundo tal regulação com o mínimo desprazer, ou
Nirvana, um estado em que não há movimento, não há pulsação, o que mais tarde Freud
(1920) retoma e desenvolve a partir do seu conceito de pulsão de morte (como veremos no
capítulo 4).
A pulsão, nesse contexto primeiro da obra freudiana, atrapalharia esse princípio de
homeostase, já que ela é uma estimulação interna e constante, de modo que a única maneira
de abrandá-la é a partir de sua satisfação, a qual, como assinala Freud, é sempre parcial.
66
Neste sentido, a pulsão impõe ao homem um trabalho irrevogável, impulsiona ao
movimento, e sua grande peripécia é que esse movimento tem que passar pelas
representações, já que a pulsão não tem objeto definido. É por isso que a pulsão está situada
entre o somático e o psíquico, mas faz uma marca entre ambos, um outro corpo entre dois
registros. Nas palavras de Freud, em A Pulsão e suas Vicissitudes (1915):
Por pulsão deve-se entender provisoriamente o representante psíquico de
uma fonte endossomática e contínua e excitação em contraste com um
‘estímulo’, que é estabelecido por excitações simples vindas de fora. O
conceito de pulsão é assim um dos que se situam na fronteira entre o
psíquico e o físico. A mais simples e mais provável suposição sobre a
natureza das pulsões pareceria ser que, em si, uma pulsão o tem uma
qualidade, e no que concerne à vida psíquica deve ser considerada apenas
como uma medida de exigência de trabalho feita à mente. O que
distingue as pulsões uma das outras e as dota de qualidades específicas é
sua relação com as fontes somáticas e com seus objetivos. A fonte de
uma pulsão é um processo de excitação que ocorre num órgão e o
objetivo imediato consiste na eliminação deste estímulo orgânico (p.171).
A pulsão então não se encontra no registro das necessidades; ela é apenas o registro
de uma excitação interna e constante, que é sexual, que faz marcas e recria o corpo.
1
No que diz respeito à libido, ainda por volta da década de 1910, com a conceituação
do narcisismo, Freud tinha proposto a existência de dois tipos de libido: a libido do eu, não
sexualizada e dirigida aos objetivos egóicos; e a libido sexual, dirigida ao objeto. Mas a
teoria pulsional sofre nova reformulação quando Freud postula, finalmente, que somente
um tipo de libido, a “libido sexual”, e que a suposta ‘libido do eu’ não é mais do que a
primeira, retirada dos objetos e redirecionada ao eu. Assim, com a formulação em 1920 da
pulsão em termos de pulsão de vida e pulsão de morte, a libido passa a ser concebida como
o representante psíquico das pulsões de vida. Freud considerava que a libido era masculina,
estabelecendo um paralelo entre masculino e atividade.
Em A significação do falo, Lacan (1958), ao abordar a questão do falo como
significante, como marca simbólica do desejo (ver capítulo 3), observa que a libido seria
esse representante, na obra freudiana, de um corpo representado, falicizado. Portanto,
1
Trataremos disso mais profundamente no Capítulo 3, em que se examina como, a partir do processo de
recalque, o orgânico vai cedendo lugar ao corpo erótico, sexualizado, recortado por pulsões que são as
estruturas de borda, o limite, entre o sexual e o orgânico.
67
quando Freud formula que a libido é masculina, é nesse sentido de que ela é índice da
presença do regime fálico, da representação.
Vislumbra-se, correlativamente, a razão do traço nunca elucidado no
qual, mais uma vez, avalia-se a profundidade da intuição de Freud, ou
seja, porque ele afirma que existe apenas uma libido, seu texto mostrando
que ele a concebe como sendo de natureza masculina. A função do
significante fálico desemboca, aqui, em sua relação mais profunda (1958,
p. 703).
Na própria obra freudiana, porém, o fato de essa concepção de Freud sobre a libido
ser masculina gerou um impasse. Freud acabou por fazer uma associação do masculino com
a atividade e do feminino com a passividade e tratou, em diversos momentos, esses pares
como sinônimos. Isso trouxe diversas dificuldades para o entendimento da sexualidade
feminina (ver capítulos 3 e 4). Uma dessas dificuldades, entretanto, permitiu a Freud
formular, em toda sua complexidade, o problema teórico-clínico em que consiste a
condição feminina: como, a partir de uma libido masculina, a mulher poderia ocupar uma
posição feminina na atuação da sua sexualidade?
Freud, então, formula uma teoria da sexualidade assentada nas bases do conceito de
pulsão e de libido, marcando exatamente essa fronteira entre o sexual, impresso no registro
simbólico, e o orgânico que estaria fora da esteira das representações. Assim, é a libido que
faz com que essa divisão se formando e com que o corpo seja cindido entre o que é
libidinizado, que Freud chamou de “zona erógena” e o que não passa por esse processo, que
fica como o resto. É esse resto de ornico que aponta para uma faceta daquilo Lacan
conceitua como sendo o registro real, isso que fica de fora do processo de sexualização do
corpo e que Freud concebe, principalmente a partir da conceitualização da pulsão de morte
(1920).
A teoria sexual infantil
A teoria sexual infantil é desenvolvida quando a teoria pulsional ainda está
formulada em termos de pulsão sexual e pulsão de autoconservação. Assim, as pulsões do
eu representavam tudo o que tinha relação com a autopreservação e afirmação do indivíduo,
e as pulsões sexuais representavam a diversidade necessária à vida sexual infantil
concebida como polimorfa perversa. Essa foi uma conclusão difícil de ser alcançada para
68
Freud, que partia de um contexto em que se acreditava numa inocência infantil e que só aos
poucos foi podendo conceber uma infância sexuada e, mais radicalmente, polimorfa
perversa
1
.
Nos Três Ensaios... (1905), Freud mostra que a pulsão sexual no início é auto-
erótica; ou seja, não objeto externo e o objetivo sexual é o de substituir a excitação na
zona erógena
2
por uma satisfação vinda de um estímulo externo que reduz a tensão. A
atividade sexual se apóia na autopreservação, num primeiro momento, e, então, num
momento posterior, desliga-se da necessidade, e o objetivo sexual é dominado por uma
zona erógena. A zona erógena estabelece então uma borda para o processo de sexualização.
Trata-se da própria superfície corporal que, marcada pelo Outro, libidinizada, acaba por
tornar-se o corpo, tal como o experimentamos: corpo sexual, porque representado.
Ainda nos artigos de 1905, Freud indica um percurso da sexualidade infantil quando
ainda as zonas genitais não tinham ainda assumido o papel predominante na atividade
sexual. Nesse percurso, as pulsões das zonas erógenas oral e anal desempenham o papel
preponderante na demarcação do corpo erógeno infantil. Ele acaba por definir esses
períodos em que uma determinada pulsão desempenha papel preponderante na sexualidade
como modos específicos de organização da libido, que corresponderiam também a estádios
do desenvolvimento da libido na sexualidade infantil.
A primeira fase, ou estádio, é então a fase oral, também chamada por Freud (1905)
de “organização sexual pré-genital canibal”. Nela a atividade sexual apóia-se na oralidade e
na necessidade do alimento. O objetivo é promover a incorporação do objeto. A sucção dos
dedos ou da chupeta é um exemplo de deslocamento da atividade nutritiva, enquanto
necessidade, para a atividade sexual. Os cuidados do Outro vão erogeneizando a relação da
criança com a boca que vai se fazendo borda, perdendo a função original, que está no
registro da necessidade, deixando-se capturar para o registro da demanda, ascendendo
1
É importante salientar que essa divisão corresponde também claramente ao recorte significante que o
recalque introduz. As pulsões de autoconservação sustentam o registro da necessidade, estão fora do
arcabouço significante. E, como tais, não são sexualizadas. as pulsões sexuais são aquelas que foram
libidinizadas, ou falicizadas, pelo significante.
2
Freud (1905) define: “Trata-se de uma parte da pele ou da mucosa em que certos tipos de estimulação
provocam uma sensação prazerosa de determinada qualidade” (p. 172).
69
assim ao desejo erótico, por meio da busca de um objeto que complete a boca, que agora é
borda e, portanto, incompleta.
A segunda fase seria o que Freud chamou de “sádico-anal”, em que as correntes
ativa e passiva se desenvolvem. As fezes são tratadas como parte integrante do corpo e sua
retenção ou doação vem indicar o próprio relacionamento do infans com o ambiente. A
doação das fezes seria como um presente ao outro e a retenção como uma desobediência.
Assim, é da relação com o Outro que se trata aqui, no sentido de que é o Outro que pede
o dom dos excrementos, seu depósito num regime apropriado e prescrito pela cultura; dom
que o pequeno ser fará ou não. Nesse momento de controle do esfíncter, o sujeito pode
começar a posicionar-se enquanto sujeito, e não mais como objeto. Pode escolher entre
dar ao outro esse objeto que considera como sendo parte dele mesmo ou retê-lo. É nesse
sentido também que Freud afirma que as correntes ativa e passiva se desenvolvem ou
seja, o sujeito é chamado à ação, sua posição no mundo começa a mudar, dele é demandado
que exerça o controle do próprio corpo, e nesse sentido toda uma posição passiva vai se
tornando também ativa.
Quando, num momento posterior, a criança começa a tecer suas “teorias sexuais
infantis”, uma ressignificação do conteúdo intestinal. Ele passa a significar o próprio
bebê que seria adquirido pela boca e concebido pelo intestino.
Se a teoria cloacal do nascimento é preservada na consciência nos anos
posteriores da infância, como às vezes sucede, a ela se associa uma
solução, agora não mais primária, da questão da origem dos bebês. Essa
solução é semelhante à dos contos de fadas: a ingestão de uma
determinada comida ocasiona a concepção de uma criança (FREUD, S.,
1908, p. 199).
Depois da fase anal há, segundo Freud, uma período de latência, em que a
excitação sexual ficaria recalcada e seria utilizada para uma finalidade não sexual. Há nesta
fase a irrupção do processo sublimatório. Ao mesmo tempo, há a emergência de barreiras
contra os impulsos pervertidos, barreiras tais como a repugnância, a vergonha e os ideais
estéticos e morais.
Na puberdade, as genitálias tomam o primeiro plano no desenvolvimento sexual. As
outras zonas erógenas continuam atuantes, podendo atuar seja como pontos de fixação, seja
com o objetivo de gerar o prazer motor necessário para o ato sexual propriamente dito. O
70
olhar, a voz e o contato da pele se tornam dispositivos fundamentais para que se alcance o
objetivo sexual final, mas quando se tornam mais importantes do que o ato sexual em si
configuram, segundo Freud (1905), práticas perversas.
Essa concepção de que a zona erógena genital recebe importância após a
puberdade sofre importantes transformações em A Organização Genital Infantil (1923), em
que Freud afirma que o interesse pelas atividades sexuais e pelos próprios órgãos genitais
adquire importância desde o primeiro período da infância e que seu entendimento e
importância não sofrem muitas alterações no desenvolvimento ulterior. É importante
salientar que o primado da zona genital sobre as outras e também do que Freud vai
chamar mais tarde de “falo”, que remete ao representante do desejo, aquilo que sempre se
busca como substituto do objeto para sempre perdido traz como conseqüência que a
sexualidade humana (que a princípio é auto-erótica) passa, a partir do Complexo de Édipo e
do desejo fálico, a procurar no outro a satisfação. O objeto passa a ser externo e dependente
do outro.
Assim, a sexualidade na teoria freudiana, posta como elemento central no
desenvolvimento humano, define o tornar-se homem no sentido da virilidade, porém o
tornar-se mulher, ou a questão da feminilidade, permanece como problema. Nessa obra tão
importante sobre a sexualidade infantil, Freud baseia toda a sua teoria, fundamentalmente
no sexo masculino. o sexo feminino e a feminilidade estão estreitamente interligados
com a questão da passividade. Quando se refere ao desenvolvimento sexual das meninas,
Freud (1905) insiste, várias vezes, que ainda não teve material suficiente para desenvolver
essa questão.
2.3 A sexualidade feminina na primeira tópica freudiana
Como vimos no início deste capítulo, a obra freudiana sofre grandes alterações a
partir da auto-análise de Freud, que acaba por elaborar mudanças fundamentais no que
tange à histeria e à questão da sexualidade infantil. Porém, no escopo de teorização da
primeira tópica a questão específica da sexualidade feminina não é abordada de maneira
decisiva, e Freud acaba por estabelecer a sexualidade feminina a partir do seu estudo da
sexualidade masculina.
71
Desde Sobre as Teorias Sexuais das Crianças (1908) Freud afirma que o único órgão
sexual — reconhecido ou representado no psiquismo humano e marcado por essa cadeia de
representações que é o inconsciente é o pênis. Nas palavras dele, a primeira das teorias
sexuais infantis:
[...] consiste em atribuir a todos, inclusive às mulheres, a posse de um
pênis, tal como o menino sabe a partir de seu próprio corpo. É justamente
na constituição sexual que devemos encarar como ‘normal’que, na
infância, o pênis é a principal zona erógena e o mais importante objeto
sexual auto-erótico (p. 196).
A conseqüência dessa afirmação é fundamental para se entender o enigma que
envolve o sexo feminino. Afinal, a afirmativa de Freud que se desenvolverá a partir de
1920 com a questão do falo implica que tanto para o homem como para a mulher
haveria somente uma representação sexual, o masculino, restando o feminino, portanto,
obscurecido, sem representação.
Tal restrição compensada na suposição infantil de uma universalidade do pênis (ou
do falo, como se considerou depois) para ambos os sexos condena o feminino a um
eclipse. Freud marca por toda sua obra as conseqüências deste eclipse, assinalando as
dificuldades que encontrava para apreender a sexualidade feminina (1905), até o ponto em
que chega a formular que a feminilidade se apresenta como um enigma (1933-32). Mas o
que essa consideração registra mesmo que Freud não tenha podido tirar disso todas as
conseqüências em sua obra é precisamente o que Lacan viria a retomar mais tarde, a
saber: que não representação simbólica para a feminilidade enquanto tal, que o único
órgão sexual reconhecido pelo psiquismo é o nis enquanto representante, no corpo, do
significante fálico.
A direção que Freud segue, entretanto, é bem diferente de tomar essa impossibilidade
de representação no sentido de um inominável, vale dizer, como algo que, justamente por
esquivar-se da representação, marca o campo do sujeito. Ele não apreende esse inominável
como marca e questão fundamental do sexo feminino e não opera a partir dele para tentar
discernir algo de uma posição feminina. Ao contrário disso, a conseqüência que ele acaba
por tirar da falta de representação para a sexualidade propriamente feminina é a de que
72
que o marcas para o feminino, as mulheres estariam condenadas a penisneid
1
,
sentimento de desvantagem ou inveja feminino, vivido a partir do encontro com a falta do
órgão.
Assim, apesar da anatomia nos mostrar a presença de dois sexos, Freud revela, como
que retomando a teoria do sexo único da Antiguidade Clássica
2
, que o que é apenas um
sexo, a divisão fazendo-se entre os que possuem e os que não possuem o pênis, a ausência
ou presença do falo.
3
Em relação à existência desse único óro, Freud (1908) irá desenvolver a idéia de
que o menino, ao deparar-se com o sexo oposto, alteraria sua percepção em relação ao que
vê. O sexo feminino seria, então, visto como um pênis que inexistia, como se estivesse
escondido. Essa alteração da percepção é muito importante, pois é como se retomasse a
idéia que Freud expõe no seu Projeto para uma Psicologia Científica de que a percepção é
organizada pelas representações, como se o significante intercedesse e causasse uma
alucinação visual. Portanto, o menino a falta do pênis, mas nega isso, por meio de um
encobrimento significante. Recobre essa imagem real pela idéia primeira de que o pênis é
pequeno, mas vai crescer.
Com relação à menina, Freud acrescenta neste artigo que ela demonstra um grande
interesse no detentor de tal órgão, tendo em relação a ele sentimentos de desvantagem e
inveja. Enfim, poderíamos dizer que neste primeiro momento freudiano menino e menina
vivem essa questão da universalidade do pênis.
Partindo então do início do percurso freudiano acerca da sexualidade feminina, a
partir da conclusão da universalidade do pênis, em 1908, Freud acaba por esboçar uma
teoria da sexualidade feminina em comparação com a teoria da sexualidade masculina,
tentando traçar um paralelo entre os dois sexos, mas partindo da sexualidade masculina. Na
Conferência XXI (1916), ele afirma:
Como vêem, descrevi apenas a relação de um menino com seu pai e sua
mãe. As coisas acontecem exatamente da mesma maneira com as
1
Penisneid é o termo alemão que indica o que se traduziu para o português como “inveja do pênis”.
2
Birman J., Gramáticas do Erotismo, 2001
3
Apesar de ter mantido sempre sua questão por relação ao desejo feminino, Freud não hesitará em considerar
as mulheres como uma classe, agrupada em torno de um desejo peculiar – precisamente o de ter um filho, que
viria como substituto fálico. Mas o que se vê no próprio limite da teoria é que ele consegue ter êxito nesse
agrupamento de mulheres, eclipsando, mais uma vez, a feminilidade sob a maternidade .
73
meninas, com as necessárias modificações: uma ligação afetuosa ao pai,
uma necessidade de livrar-se da mãe, como supérflua... (p. 17).
Em sua investigação sobre a sexualidade feminina, Freud supõe que o
desenvolvimento libidinal das meninas é idêntico ao dos meninos, o que causa sérios
impasses em sua obra, como trabalharemos a seguir. A partir de 1919, porém, ele acaba por
mudar essa concepção ao concluir que a tentativa de comparação do desenvolvimento
masculino com o feminino é insatisfatória. Em 1925, acrescenta que o desenvolvimento
sexual masculino e o feminino são iguais mesmo na fase fálica, quando a diferença
(inclusive a questão da diferença sexual) aparece e é eclipsada:
Nas palavras de Freud (1933 [1932]):
[...] ambos os sexos parecem atravessar da mesma maneira as fases
iniciais do desenvolvimento libidinal. Com seu ingresso na fase fálica, as
diferenças entre os sexos são completamente eclipsadas pelas suas
semelhanças. Nisto somos obrigados a reconhecer que a menininha é um
homenzinho (p.118).
Todas essas considerações geram na obra freudiana até 1920 a seguinte lógica: já que
a menina seria um “homenzinho” na sua primeira infância, então, para que se torne mulher
teria que, obrigatoriamente, recalcar essa masculinidade primitiva, podendo somente a
partir do recalque atuar como mulher, mas mantendo sempre a sexualidade masculina
latente. Essa questão muda na obra freudiana, apesar de deixar algumas reminiscências. Em
1908, ao falar da importância do clitóris no desenvolvimento da sexualidade feminina
Freud acrescenta que:
[...] sua excitabilidade confere a atividade sexual da menina um caráter
masculino, sendo necessária uma vaga de repressão nos anos de
puberdade para que desapareça essa sexualidade masculina e surja a
mulher. Como a função sexual de muitas mulheres apresenta-se reduzida,
seja por seu obstinado apego a essa excitabilidade do clitóris, de modo a
permanecerem anestesiadas durante o coito, seja por uma repressão tão
excessiva que seu funcionamento é em parte substituído por formações
compensatórias histéricas tudo parece mostrar que existe uma dose de
verdade na teoria sexual infantil de que as mulheres possuem, como os
homens, um pênis (p.197).
Este ponto de vista encontrado desde os Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade e
até 1920 concebe a mulher a partir de uma ótica que a inclui exclusivamente como sendo
74
passiva. E esse é um dos grandes problemas conceituais da obra freudiana. Afinal, como
explicar que uma mulher possa realmente atuar como tal se a libido é considerada ativa e o
feminino é entendido simplesmente como passividade?
1 .
Isso podia ser feito pela via do
recalque, o que levava a uma falsa feminilidade, que mascarava o conteúdo masculino
recalcado. A problemática feminina, sendo reduzida simplesmente ao significante
passividade, acabava por obscurecer mais as coisas do que explicitar.
Uma vez que Freud afirma que a libido é masculina, ele pode garantir
conceitualmente o caráter ativo da libido, antecipando mesmo o que mais tarde Lacan
poderia elaborar com a noção de uma função fálica do significante presente no que Freud
articulara como libidinização. Porém, a redução da questão feminina à passividade cria o
impasse inevitável, determinando não somente que uma sexualidade feminina fique fora da
possibilidade de teorização nesse momento da obra freudiana, mas que uma posição
verdadeiramente feminina seja mesmo impossível, na medida em que a feminilidade é
reduzida aum recalque da masculinidade.
Ainda sobre essa questão, Freud, nesse momento, opera com a idéia de que o
masoquismo e o narcisismo seriam características fundamentalmente femininas. Essa
concepção é situada exatamente no contexto da associação da passividade com a
feminilidade, que o masoquismo, nesse ponto da obra freudiana, é considerado como
uma reversão ao oposto da pulsão sádica, ou seja, uma transformação de uma finalidade
ativa em outra passiva. Nesse contexto, o feminino estaria ligado ao masoquismo, porque
estaria, fundamentalmente, relacionado ao significante passividade. Quanto ao narcisismo,
a mesma lógica opera: é concebido como uma finalidade passiva da pulsão que, ao invés de
operar sobre um objeto, retorna ao eu. É a concepção de uma feminilidade totalmente
operante a partir da relação com a passividade que gera na teoria freudiana essa elaboração
do feminino com base em um tripé que se definiria pelo masoquismo, narcisismo e a inveja
do pênis.
1
“É indispensável deixar claro que os conceitos de ‘masculino’e ‘feminino’, cujo conteúdo parece tão
inambíguo à opinião corriqueira, figuram entre os mais confusos da ciência e se decompões em pelo menos
três sentido. Ora se emprega ‘masculino’e ‘feminino’no sentido de atividade e passividade, ora no sentido
biológico, ora ainda no sentido sociológico. O primeiro desses três é essencial, assim como o mais utilizável
em psicanálise. A isso se deve que a libido seja descrita no texto como masculina, pois a pulsão é sempre
ativa, mesmo quando estabelece para si um fim passivo(FREUD, S., 1905, nota de rodapé acrescentada em
1915 ,p. 207).
75
Até 1919 Freud não tinha se dado conta da importância do período pré-edípico para o
desenvolvimento da sexualidade feminina. O Complexo de Édipo era o fato marcante da
sexualidade, inclusive da feminina, e o núcleo das neuroses. Isso é ilustrado (ver capítulo
3), com o caso Dora, em que Freud mantém a equivalência simétrica ao Édipo masculino,
no caso da menina: ou seja, amor ao pai e rivalidade por relação à mãe. O resultado disso,
como se verá no Caso Dora, é uma insistência de Freud na questão paterna, que acaba por
deslocá-lo da questão fundamental de Dora, o tema da feminilidade.
Até o artigo “Uma Criança é Espancada” (1919), a problemática feminina é colocada
por Freud em termos de fixação amorosa ao pai. O ponto de saída do Édipo seria uma
identificação masculina, ou identificação paterna. Por força desta saída edípica, Freud
acrescenta que, quando as meninas se afastam da relação incestuosa com o pai,
desenvolvem um “complexo de masculinidade” e desejam ser meninos.
Assim, a menina partiria de uma atitude considerada feminina, que era passiva em
relação ao pai, e passaria para uma posição sádica após o recalcamento edípico. Em
fantasia, ela seria homem. O único destino possível para a mulher nesse momento da obra
freudiana seria “fazer-se de feminina”, agindo como se fingisse ser mulher, mascarando o
complexo de masculinidade. Esse impasse deriva, mais uma vez, do entendimento de Freud
de que a única busca da mulher seria o falo. Assim, a única identificação possível para o
sujeito seria a identificação fálica, ou seja, masculina. A demanda da menina ao pai seria
então de que este lhe desse o falo. É por isso que Freud, até 1920, acredita que a única saída
para a mulher é desenvolver isso que ele chama de “complexo de masculinidade”.
Parece que, diante de tal ótica, a mulher, segundo a gica fálica, estará também se
perguntando, do ponto de vista do homem, sobre o que é ser mulher. Tal questão é
fundamental para a problemática da feminilidade e, inclusive, vivida com intensidade na
histeria, mas que acaba por ficar em aberto na teoria freudiana, a qual acaba por abordar a
mulher fundamentalmente sob o ponto de vista fálico.
Diante disso, na primeira tópica freudiana a menina teria que fazer uma escolha entre
três soluções: recusar a castração e obstinar-se numa reivindicação fálica do tipo histérico;
obstinar-se numa posição toda masculina, como homossexual (mantendo-se então na idéia
do pênis escondido); ou, no máximo, tornar-se mãe. Nenhuma saída aponta para nada que
possa de fato levar em conta algo de propriamente feminino. A feminilidade está, sob esse
76
aspecto, fadada a desaparecer como causa, completamente eclipsada e sobrepujada pela
lógica fálica. E, se algo dessa questão ainda retorna na obra de Freud, nesse momento, é
simplesmente sob a forma de um enigma.
Assim, a posição da mulher ‘normal’ que Freud parece conceber neste momento é um
fazer-se feminina, buscando signos externos que a denominem. A mulher na primeira
tópica fica presa, portanto, a uma imagem perversa.
Tudo isso parece relevar da dificuldade que encontra o trabalho de Freud para
elaborar o que constituiria o real presente na condição feminina ou, antes, a condição real
que é a condição de uma mulher, cuja feminilidade pode se articular e se presentificar
em ato, e nunca inteiramente no registro da representação. O encontro com essa condição
real, todavia, marca Freud sobremaneira. Quando na sua relação com as mulheres ele se
encontra com esse inominável, por exemplo, como vimos a propósito do sonho de Irma, ele
deixa ao menos indicado este encontro afirmando reiteradamente que quanto à mulher
uma questão misteriosa, enigmática, além de um caráter ameaçador que a ‘natureza’
feminina parece carregar.
Freud o passo significativo e tão mal compreendido de ligar a mulher ao
primitivo, ao animal, num movimento que, ao mesmo tempo em que tenta apreender esse
inominável, tende também a repudiá-lo, já que, simultaneamente, propõe uma solução
unicamente fálica para a leitura da feminilidade.
A conseqüência é que a feminilidade se põe mesmo como ameaçadora, como se pode
verificar ao longo da trajetória freudiana. Freud busca saber desse indizível que vê na
garganta de Irma, mas também acaba por se esquivar disso ou, ao menos, acaba ligando
esse inominável ao imaginário ancestral e socialmente consagrado da mulher: seja a mulher
passiva, ou aquela cuja sexualidade estaria mais próxima da perversão masoquista, ou
aquela com uma demanda sexual mais acirrada, como ele trata no Mal Estar da Civilização.
Assim, a mulher ganha imagens diversas, em que Freud a associa, por exemplo, ao pólo da
natureza, enquanto o homem está associado ao pólo da civilização. Tais imagens
corroboram a concepção social da mulher na Modernidade, mas, verdadeiramente, não
contribuem para o desvendamento da feminilidade. É preciso salientar, no entanto, que
essas imagens têm seu sentido na tentativa de elaboração do feminino por Freud. São
imagens que indicam esse impossível de dizer, são maneiras de dizer que algo não pode
77
ser dito, modos que Freud vai buscando para tentar fazer borda para isso que não consegue
apreender.
Em Tabu da Virgindade (1918[1917]), essa ambigüidade de Freud com relação ao
feminino aparece claramente. Ele começa o artigo propondo-se a buscar os motivos que
levam nossa civilização e muitas outras a estabelecer um tabu sobre a primeira relação
sexual de uma mulher. Para ele, o foco das atenções psicanalíticas deve se colocar no fato
de que a mulher, naquele tempo, passava toda sua vida refreando seus impulsos sexuais e
que a primeira relação sexual é um momento único na vida sexual da mulher, o primeiro
em que essas resistências são vencidas. Fala também de um processo de sujeição sexual que
a mulher tem em relação ao homem, principalmente, observa, ao homem com quem
experimentou a primeira relação sexual. No decorrer do texto, Freud acrescenta que um
sentimento de amargura com relação a essa sujeição sexual, que teria raízes no Complexo
de Castração e decorrente inveja do pênis.
Para aprofundar o estudo do assunto, Freud vai buscar os costumes e tabus dos
povos primitivos, que, segundo ele, atribuíam também muito valor a virgindade, pelo fato
de existir sempre um tabu sobre esse ato. Argumenta que nos povos primitivos o marido se
abstém da primeira relação sexual com a mulher e vai à busca de compreender a genealogia
dessa prática. Com base nas teorias de antropólogos da época, enumera algumas razões
para o tabu da virgindade nos povos primitivos. A primeira seria a presença de sangue, ou
seja, do corpo puramente orgânico, presença assustadora que faria o marido se abster dessa
prática. A segunda seria um medo constante que se colocaria mais intenso frente a uma
experiência com o desconhecido, vivido com muita intensidade por esses povos. Freud
indica que se trata de um medo semelhante àquele presente na neurose de angústia. A
terceira estaria na teoria de um antropólogo chamado Crawley e se basearia no fato de que
o tabu da virgindade faria parte de uma soma de tabus que estariam postos em relação à
atividade sexual. Nas palavras de Freud:
Não é, apenas, o primeiro coito com uma mulher que constitui tabu e sim
a relação sexual de um modo geral; quase se pode dizer que a mulher
inteira é um tabu
1
. A mulher não é unicamente tabu em situações
especiais decorrentes de sua vida sexual, tais como a menstruação, a
gravidez o parto e o puerpério; além dessas situações, as relações sexuais
1
Grifo nosso.
78
com as mulheres estão sujeitas a restrições tão solenes e numerosas que
temos muitas razões para duvidar da suposta liberdade sexual dos
selvagens (FREUD, S., 1918[1917], p. 205).
Freud, nesse momento, busca uma explicação para esse mistério, esse tabu que
envolve as mulheres e sua sexualidade. Nessa busca, envolvendo outras civilizações,
encontra mais tabus envolvendo a mulher. uma divisão entre os sexos nas tribos. Ele
comenta: os homens parecem querer se afastar das mulheres, ficam separados, juntos com
outros homens, temem ser enfraquecidos pelas mulheres, como se elas pudessem
contaminá-los. “O homem teme ser enfraquecido pela mulher, contaminado por sua
feminilidade
1
(p. 206). Ele constata essa apreensão que se põe à mulher, que carregaria
algo que traz medo ao homem, algo desconhecido, que ele denomina de “feminilidade”.
São os tabus nas tribos, como a neurose na nossa civilização, que desvelam essa
hostilidade para com as mulheres, que se colocam em oposição ao amor. A explicação que
Freud propõe para essa hostilidade e para o medo dessa contaminação que a feminilidade
poderia produzir gira em torno da castração. A evocação da castração que a mulher traz no
seu próprio corpo levaria a essa hostilidade e receio masculinos. Freud credita toda a
questão que a feminilidade desperta à falta do órgão, entendida por ele por meio da ameaça
de castração. Entretanto, a julgar pela problemática da castração, a própria ausência do
pênis evocaria, como um significante, uma ausência radical de algo é o falo que nunca
existiu.
Mesmo que Freud recue nesse ponto, apontando a ameaça de castração como a
única causa para esse “horror” da feminilidade, o que ele acaba por apontar nesse artigo é
que o homem (e também a mulher) ressente este encontro forçado com o real da
feminilidade, que seria de fato assustador, mas não exatamente pela falta do órgão que lhe
teria sido tirado, mas pela experiência de um encontro com o real, especialmente com o real
da dor e da morte, tão poderosamente imajado quando Freud destaca a questão do sangue,
da menstruação, da virgindade.
A feminilidade encarna, portanto, essa figura maior da falta significante do que
Lacan mais tarde chamou de ‘não todo’, por se subsumir não todo ao registro significante
—, que convoca e exige a presença do sujeito e seu desdobramento no ato e no desejo.
1
Grifo nosso.
79
Assim, a falta do órgão, a castração, é apenas a uma maneira simbólica e imaginária de
“testemunhar”, essa falta significante que a feminilidade carrega.
São esses aspectos do feminino que Freud, ao mesmo tempo, valoriza e acaba por
negligenciar quando atribui toda a elucidação da questão da sexualidade feminina a partir
da problemática fálica e da inveja do pênis.
Ainda com relação à primeira relação sexual, Freud acrescenta que o primeiro ato
sexual ativaria na mulher outras pulsões antigas, que estariam em absoluta oposição à
posição feminina. Aqui, Freud aponta para a constituição da sexualidade feminina e para
uma posição da menina antes da castração – tomada como uma posição masculina –, que só
se destitui após a entrada no Complexo de Édipo, da menina. Aborda, mais uma vez a
questão do penisneid, ou inveja do pênis que a menina desenvolve por saber-se castrada.
Durante essa fase, as meninas, geralmente não fazem segredo de sua
inveja, nem da hostilidade para com seus irmãos favoritos dela
decorrente. Tentam até urinar de pé, como seus irmãos a fim de provar a
igualdade a que aspiram (1918[1917] p. 212).
É como se Freud ressaltasse assim, nessa busca da mulher uma tentativa mesmo de
inserção na lógica fálica, sempre frustrada. Afinal, não há como ela se colocar como
homem, pois seu próprio corpo evidencia essa impossibilidade. Mas também há uma
dificuldade enorme de se colocar como mulher. E por mais que ela busque uma
identificação que lhe diga sobre o que é ser uma mulher, ela sempre se encontra com o
significante fálico e, conseqüentemente, com a impossibilidade de significar sua própria
existência como mulher. Freud aponta essa dificuldade até mesmo a partir dessa ótica do
‘complexo de masculinidade’, que pode ser entendido como essa tentativa de algumas
mulheres de se inserirem completamente nessa lógica fálica.
Nesse artigo, Freud faz menção ao desejo da mulher de ter um filho, em
substituição ao desejo de ter pênis ou penisneid. Para ele, essa é a única saída possível para
um desejo propriamente feminino, que a feminilidade estaria conectada diretamente com
a inveja do pênis inteiramente inserida na dialética do ter ou não ter falo. Freud
acrescenta que um grande mero de mulheres que permanecem frígidas no primeiro
casamento, mesmo com o passar dos anos, que essas pulsões remanescentes da infância
80
continuariam presentes. O segundo casamento, então, teria muito mais possibilidade de
felicidade, já que a “reação arcaica” teria se esgotado com o primeiro objeto sexual.
Portanto, ao mesmo tempo em que aponta para esse enigma, essa falta de
representante que a feminilidade e o corpo feminino encarnam, Freud recua disso quando
formula a teoria da sexualidade feminina subsumida completamente na questão fálica.
Apesar de afirmar que o psiquismo só reconhece o falo como representante sexual, Freud
não chega a reconhecer que, em decorrência da polaridade excludente presença/ausência do
falo, advenha esse “fora do registro simbólico” que a feminilidade carrega. Pelo contrário,
ele não avança nessa questão e recua para entrincheirar o problema nos termos e no
enquadre da inveja do pênis. Assim, Freud insistirá cegamente na questão do pênis e do
Complexo de Édipo, não levando em conta os avanços que a teoria do recalque trouxera no
que concerne a um real traumático e a um inominável que a repulsa denuncia na histeria
(capítulo 3).
Ao fim da primeira tópica freudiana, as contradições se tornam cada vez mais
gritantes. Afinal, como nomear uma sexualidade feminina que está toda assujeitada à
questão masculina? com o advento da teorização acerca da pulsão de morte é que a
questão feminina na obra freudiana se reorienta de modo significativo. É a partir disso que
Freud, pode mesmo que não de maneira decisiva em relação à feminilidade voltar a
lidar com o excesso real, como o inominável que seu percurso tende a obscurecer. Então,
os problemas e enigmas da feminilidade voltam a repercurtir de fato na obra freudiana.
Trataremos especificamente dessas mudanças no percurso freudiano com relação à
conceituação da pulsão de morte e suas implicações para a feminilidade (capítulo 4).
2.4 Complexo de Édipo e Complexo de Castração na obra freudiana
Esses são os dois únicos conceitos da psicanálise que foram nomeados de
“complexo”. Esse termo, criado pelo psiquiatra Theodor Ziehen (1896-1950) e utilizado
principalmente por Bleuler e por Jung, indica o “conjunto de sentimentos e representações,
parcial ou totalmente inconsciente, dotado de uma potência afetiva que organiza a
81
personalidade de cada um, marca seus afetos e orienta suas ações”.
1
O que se verifica a
partir dessa definição é que os conceitos que agora tratamos se referem a material
inconsciente atuante no centro do desenvolvimento psíquico e sexual dos seres humanos.
São, portanto, conceitos chave na obra freudiana e que compõem o enquadramento
conceitual em que Freud embasa a teoria da sexualidade e da sexualidade feminina.
Neste capítulo, foi abordada a questão da genealogia do Complexo de Édipo no
percurso freudiano, ressaltando a maneira como seus próprios sonhos o fizeram deparar-se
com o fenômeno edípico a partir de sua auto-análise, assim como a maneira como a questão
da sedução histérica era abordada antes e depois do surgimento desse conceito na
psicanálise. Convém, todavia, retomar esses dois conceitos, que atuam um sobre o outro,
concomitantemente.
É somente a partir de 1920 que Freud faz do Complexo de Édipo um conceito
fundamental para a psicanálise, apesar de seu surgimento na obra freudiana datar de 1897.
Isso se quando Freud leva mais longe a problemática do chamado “estádio genital”
(1905), incluindo a questão fálica. Seguindo a tese de que toda criança, independente de
suas peculiaridades anatômicas, estrutura-se inicialmente de forma masculina, tendo a mãe
como o primeiro objeto de amor, Freud situará o tema da castração, como veremos, como
de fundamental importância.
Ao mesmo tempo, a característica principal dessa ‘organização genital
infantil’ é sua diferença da organização final do adulto. Ela consiste no
fato de, para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão
genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma
primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo (p. 158).
No Complexo de Édipo, o que há verdadeiramente, e para ambos os sexos, é a
entrada de um terceiro termo nessa relação mãe e filho. Essa entrada, que não fica sem
seqüelas, é marcada por sofrimento nessa primeira separação que o pai promove. Freud
ilustra essa questão com um mito, o de “Édipo Rei”, de Sófocles, aquele que, apesar de ter
tentado fugir de seu destino, defronta-se com ele, casando-se com sua mãe e matando seu
pai. É exatamente com essa cena que Freud ilustra o Complexo, enfatizando um amor do
menino pela mãe, que é o que caracteriza o Complexo de Édipo, e uma hostilidade do
1
Chemama, R.M (1993), Dicionário de Psicanálise, p. 33.
82
menino para com o pai, que ele promove a separação do seu primeiro objeto de amor
incestuoso. Assim, o que está em questão para além desta cena imaginária que ilustra o
Complexo é o pai como terceiro, atuando como agente da lei, introduzindo a proibição ao
incesto, agenciando o filho para outra direção que não a dessa primeira relação incestuosa.
Num primeiro momento, Freud acredita que para a menina o inverso se justifica
perfeitamente. Tratar-se-ia então, no caso da menina, de um amor ao pai e ódio à mãe. Mas
esta concepção sofrerá grandes transformações, principalmente a partir da segunda tópica.
Assim, o mito edípico, é concebido por Freud como estruturante na constituição
subjetiva. O modo como o sujeito reage a esta situação determina sua entrada na neurose,
na psicose ou na perversão e decide o futuro da sua sexualidade. É a partir do Édipo
também que a menina vai seguir um dos três destinos descritos por Freud (1931) com
relação a sua sexualidade (capítulo 4).
O Complexo de Castração é outro conceito fundamental para a psicanálise. É a partir
dele que se trata da questão da falta do objeto, sendo, portanto, imprescindível à
estruturação do psiquismo humano e do inconsciente. Lacan (1969), em sua retomada de
Freud, distinguiu os planos do mito e da estrutura e pôde mostrar como a ameaça de
castração (que faz o núcleo do Complexo de Castração) e o Complexo de Édipo são
maneiras imaginárias que Freud encontrou para ilustrar conflitos que têm raízes na relação
do sujeito com a ordem simbólica e estão relacionados à incidência particular do real para o
ser falante.
1
Para Lacan, o que se passa no Édipo em nível simbólico é a entrada de um
terceiro, o pai, na relação com a mãe, marcando o desejo da mãe e, portanto, sua castração.
O complexo de castração seria uma maneira de tornar dizível, de tornar a falta significante,
fazendo com que haja uma ausência, ou um resto de presença, para algo que nunca existiu.
Freud sustenta que a dissolução do Complexo de Édipo masculino tem como ponto
de partida o temor do menino de ser castrado pelo pai. É essa ameaça de castração que o
fará renunciar ao gozo da relação primeira com a mãe e desejar outros objetos,
identificando-se, a partir disso, ao pai e entrando para o registro da lei, marcado pelo
supereu. Na mulher, esse processo é muito diferente. A menina conclui que foi castrada, e o
Complexo de Castração determina sua entrada, e não a sua saída, no Complexo de Édipo.
1
Segundo CABAS, o Édipo “não é senão uma formação imaginária, uma colocação, em imagens, do drama
do sujeito, colocação em imagens que se apóia sobre as imagos de incesto e morte do pai” (1982, p. 101).
83
O Complexo de Castração remete à relação com o primeiro objeto de amor, a e,
nessa primeira relação em que a mãe aparece como fálica, detentora de todos os recursos. É
dessa mãe fálica que o Complexo de Castração imprime uma separação para ambos os
sexos, já que o infans se apaixonara por uma mãe onipotente, e não por uma mãe castrada e,
portanto, desejante.
É a isso que remete o confronto visual com a presença ou ausência do pênis: há nesse
momento o reconhecimento da diferença sexual, que produz no sujeito uma experiência de
castração. Afinal, ele uma presença e uma ausência e não apenas uma diferença. Desse
modo, o sexo feminino é vivenciado como ausência e, portanto, como testemunha “ocular”
da castração, da falta. É no confronto com a diferença que o ser humano de ambos os sexos
se encontra com sua própria sexuação, com sua parcialidade e, em última análise, como
mostrou Lacan (1964) com a própria mortalidade, na medida em que ser sexuado é o
mesmo que ser mortal. Eis aí, enfim, o pleno sentido daquilo que Freud formulara como
ferida narcísica, a perda da totalidade que atinge o sujeito sexuado.
Por tudo isso, não será sem resistência que a criança abrirá mão da mãe fálica, na
medida em que a oscilação entre ser/não ser o falo faz surgir a experiência de horror que
remete para a morte (narcísica). É nesse sentido que as fantasias infantis se organizam em
torno da primazia fálica. Para a criança, o encontro com o outro abre uma questão acerca do
desejo e da demanda maternos, desenhando no horizonte o lugar simbólico daquele que
viria a responder por este desejo. O infans, assim, identifica-se com este lugar simbólico
configurado como o falo da mãe, mas o faz pagando o preço e o risco de seu próprio
desaparecimento como sujeito subsumido no objeto da demanda da mãe. O medo de sua
castração é gerado nesse contexto, pelo medo do próprio desaparecimento. Assim, o
fantasma da mãe fálica é produzido para que se mantenha a crença na onipotência materna
e, portanto, na própria onipotência. Essa é uma crença anterior à fase fálica, ou seja, relativa
a um modo de organização libidinal em que ainda não foi introduzida a diferença sexual
pelo Complexo de Castração. Este tema da relação do sujeito ao Outro primordial será
analisado mais detidamente no capítulo 4.
Freud acrescenta sobre o tema da castração que esta gera angústia, uma angústia
estrutural que advém desse encontro com o real que a castração marca por meio do signo da
falta. A angústia é, então, uma reação que a própria condição humana impõe a partir da
84
passagem pela castração, desse encontro com a “intensidade pura” desprovida de
significante. Segundo Freud, essa angústia é irremediável e acompanhará o indivíduo por
toda a vida.
[...] da mesma forma que o pai se tornou despersonalizado sob a forma
do supereu, o medo da castração, a qual se encontra nas mãos dele, se
transformou numa angústia moral ou social indefinida. Mas essa angústia
está oculta. O eu foge dela obedientemente, executando as ordens,
precauções e penitências que lhe foram inculcadas. Se ele foi impedido
de agir, é imediatamente dominado por um sentimento extremamente
aflitivo de mal-estar, que pode ser considerado como um equivalente de
angústia e que os próprios pacientes comparam com essa última (p. 152).
Freud relata que a angustia, no caso da histeria, é revivida sempre que o sujeito se
diante da possibilidade da perda do objeto de amor. Sob esse aspecto, o medo da separação
da mãe, que representa a perda do objeto que lhe protege e lhe alimenta, é transformado, a
partir da fase fálica, em angústia de castração. Portanto, a angústia de castração é também
um medo de separação. A angústia de castração, segundo Freud, é gerada pelo medo da
castração por parte do eu, sinalizando uma situação do passado que originalmente teria
proporcionado efeitos traumáticos e viria, então, no lugar da repetição dessa situação.
O determinante mais antigo e original da angústia para Freud (1926) é o nascimento,
que é nesse momento que o indivíduo sai de um estado de suposta homeostase para uma
situação de desamparo em que se depara com a exigência pulsional crescente. É numa
situação de desamparo também que a incidência do Complexo de Castração coloca o
sujeito, a partir da decepção gerada pela conclusão de que não há ninguém que possa
ocupar o lugar absoluto, que o Outro primordial, ou seja, a mãe, parecia ocupar. O sujeito, a
partir dessa conclusão, oscila entre a negação dessa conclusão para que possa viver
novamente o narcisismo, em que qualquer diferença é uma ameaça ao eu e a castração,
que o coloca numa posição desejante. No capítulo 4, volta-se a este tema, especificamente
sobre as conseqüências da teoria da castração no que diz respeito à feminilidade.
É a angústia, então, que aponta para esse ‘horror’ narrado por Freud dos seres
humanos diante da visão da castração feminina. Aponta, portanto, para esse repúdio à
feminilidade, que Freud sublinha em diversos momentos, uma reação a essa angústia diante
do encontro com o real do sexo feminino, ou com a morte, reação diante de algo que se põe
como perigoso, o perigo no sentido de que, talvez, nesse encontro haja mesmo uma morte,
85
a morte narcísica. Aqui, abre-se mais uma questão: Como marcar uma aproximação com a
feminilidade se ela própria encarna algo que gera tanto horror, angústia e medo? Como uma
mulher poderia se apropriar da feminilidade para que pudesse se colocar numa posição
verdadeiramente feminina? Assim, para mais além: Como algo que provoca tanto repúdio
e horror poderia ser base para que cada mulher pudesse se colocar como feminina se para
ela mesma a feminilidade é marcada por algo que sua própria condição humana a faz
afastar-se repudiar, angustiar-se? Essas questões, apesar de serem apontadas no próprio
percurso freudiano, permanecem como questões até o fim da obra de Freud.
É exatamente sobre essa problemática da feminilidade que objetivamos apontar nesse
percurso, sobre isso da feminilidade que não se inscreve, mas que retorna e causa o sujeito,
que aparece para o sujeito sempre como Outro, na medida em que, por não ser inscrita, não
pode ser entendida como algo do próprio sujeito ou como parte do eu. Ao contrário, a
feminilidade aparece sempre como estranha ao eu e ao sujeito. Aparece sempre como algo
que incita a criar novas maneiras de tentar falar desse encontro, que pode ser em ato
porque que nunca é possível de se dizer. É nesse sentido também que podemos dizer que
não existe um sujeito feminino, mas sim uma posição do sujeito frente a esse encontro
desencadeador de angústia e horror com o feminino e, no caso da mulher, com a própria
“feminilidade corporal”.
Assim, uma tentativa de resposta seria que em face desse repúdio, na medida em
que pudesse se aproximar mesmo desse “horror”, é que cada mulher poderia se criar como
mulher e alçar uma posição feminina. A questão feminina parece que pode ser tratada a
partir de cada uma mulher, como Lacan apontou. Assim, o tornar-se mulher seria uma
construção no percurso de cada mulher na sua relação com essa angústia estrutural que
incide sobre esse encontro com a feminilidade. É nesse sentido também que Freud aponta
(1932-33) que o tornar-se mulher não se faz sem uma luta que vai contra a sua constituição.
Ele intui que, para a mulher atingir algo de verdadeiramente feminino, é necessário que se
coloque numa outra posição diante daquilo que ele vem apontando, ou seja, a tendência,
melhor dizendo, a condição humana de se posicionar a partir da primazia do falo, inserida
nessa lógica e que parece ser estrutural para ambos os sexos. Mas como fazer isso se nesse
percurso do tornar-se mulher não se poderia também abandonar essa dimensão fálica?
Como, então, uma mulher poderia se colocar numa posição verdadeiramente feminina se
86
essa aponta para tantas dificuldades estruturais? Freud tratará de tentar responder a essa
questão de várias maneiras, como se mostrano Capítulo 4, mas chegará a outros vários
impasses.
87
__________________________________________________________
Capítulo 3
O percurso de Freud em torno da histeria e a relação da histeria
com a problemática da feminilidade
__________________________________________________________
Neste capítulo, trata-se especificamente do percurso de Freud com relação à histeria,
desenvolvendo também a relação da histeria com a problemática da feminilidade e
ilustrando esse desenvolvimento teórico com o Sonho da Bela Açougueira, que aborda em
sua ‘Interpretação dos Sonhos”(1900) e com o Caso Dora, que atendeu também em 1900.
3.1 Os avanços na teorização freudiana acerca da histeria: o
recalque e o trauma
A abordagem de Freud da histeria desde os Estudos sobre a Histeria até o Caso
Dora modificou-se modificou profundamente. De 1892 a 1899 a apreensão da problemática
histérica e do papel do pai mudou radicalmente a partir da descoberta do Complexo de
Édipo. O pai passa de sedutor a eleito, mas o problema dessa primeira concepção edípica de
Freud é que ele aborda o Complexo de Édipo de forma simétrica para ambos os sexos.
Assim, o menino ama a mãe e tem ciúmes do pai e, com a menina, esse processo é
simétrico, ela ama o pai e tem ciúmes da mãe.
Essa maneira de entender o Complexo de Édipo feminino a partir do entendimento
do que se passa com os meninos traz uma incompreensão significativa para toda a
concepção da feminilidade e também para a questão da histeria, como veremos. Porém, é
importante ressaltar que a partir dessa nova abordagem da função paterna na histeria, a
própria histeria pôde mudar de estatuto: ao invés de um emaranhado de sintomas, passa a
ser o tipo fundamental e paradigmático da neurose, uma modalidade específica de encontro
com a sexualidade e, portanto, com a castração, que organiza a transferência.
A questão da bissexualidade, que está em voga nesse momento da obra Freudiana, a
partir da relação com Fliess, faz com que Freud, ao tentar desvendar o que se opera na
88
histeria, acabe estabelecendo um equivalente, quanto ao masculino, entre o prazer e a
perversão; e, quanto ao feminino, entre o desprazer e a neurose de defesa (que seria o
recalque atuando).
Freud, portanto, acaba por associar à feminilidade a histeria; e a uma repulsa ao
sexual: e à masculinidade a obsessão e o excesso de demanda sexual. Essas idéias aparecem
claramente descritas em “Novas Observações sobre as Psiconeuroses de Defesa” eA
Etiologia da Histeria”. É a partir desses dois artigos que Freud passa a associar a
feminilidade à passividade e a masculinidade à atividade. Essa idéia, como veremos, vai
persistir por todo o percurso freudiano.
Segundo André (1986), a partir da abordagem da noção de bissexualidade, herdada
de Fliess, com relação à teoria do recalque que tangenciaria as duas correntes sexuais
opostas. Nos idos de 1901, Freud acreditava que o recalque era possível devido a uma
reação entre duas correntes sexuais, uma ativa e outra passiva. Ele passa a entender a
histeria a partir do seguinte raciocínio: já que uma lacuna no feminino, um susto que
gera o trauma histérico, como visto a propósito do Rascunho K, um inominável que resiste
ao próprio discurso, é a partir do recalque que isso pode ser de alguma forma marcado,
representado, abarcado pelo inconsciente. Lá onde não há nada, onde mutismo, o
recalque instala um traço, uma marca, um dito para aquilo que não se pode dizer. Assim,
também seria este o princípio da teoria da castração; onde não o pênis, diz-se que ele foi
tirado; coloca-se uma marca onde a falta aponta para o indizível do real. Nas palavras de
André:
Ao fazer isso o recalque propõe à análise um material, uma alguma coisa
mais que coisa alguma. es, digamos assim, a primeira mentira, o
primeiro semblante que nos vem do Outro enquanto lugar da linguagem,
mas, por outro lado, é só por via desta mentira que o real vai ser investido
de seu verdadeiro valor; pois é a partir dessa representação malograda
(representação limite, diz Freud) que a idéia de um ‘algo mais’pode
emergir. Aí está toda a trama da teoria do recalque com relação ao
trauma, quer dizer, do ‘só depois’em que o trauma se constitui como tal.
E também, num segundo nível, o do saber psicanalítico, é isso que dá seu
valor à teoria da castração com relação ao sexo feminino: o dizer
castrado é uma mentira significante, e é só ao passar por esta mentira que
a ex-sistência de um real, não-castrado, pode emergir (1986, p 76).
89
Assim, a tese de André (1986) é que a teoria da castração tem a mesma função que o
recalque no sentido de que a castração seria uma maneira de dizer desse real inominável
que a feminilidade encarna, do mesmo modo que o recalque seria uma marca do trauma,
que também é real e, portanto, não pode se inscrever. Para ele, a teoria da castração vem
trazer um ganho muito grande à teoria freudiana, mas também uma perda, que ao fim de
sua elaboração o percurso teórico freudiano acaba por não desenvolver a questão do real
inominável. Mesmo que em diversos momentos, ele não vai ser tomado e interpretado na
sua conseqüência maior, que é a questão da feminilidade.
Sob esse ponto de vista, a teoria do recalque assume grande valor se for concebida
como aquilo que pode dar palavras ao trauma, que constitui, fundamentalmente, a
descoberta da feminilidade. Assim, a cena traumática só se torna de fato traumática quando
é de alguma maneira representada, transformada em lembrança. Freud aponta que é na
repetição de uma cena análoga que a excitação emerge sob forma de angústia e designa um
real irrepresentável pelo significante.
Assim, o real como tal, como o que se esquiva e resiste à simbolização, aparece
num ‘só-depois’. É isso que a teoria freudiana do recalque acaba por demonstrar, na medida
em que o recalque sexualiza o que antes não era sexual para o sujeito; é o recalque que
torna o real sexualizado ou, dito de outro modo, falicizado.
O Rascunho K (1896) ilustra de maneira bem adequada essas teorias de Freud
acerca da defesa e do trauma. Nesse momento de sua obra, ele argumenta que a defesa é
posta em ação quando um incidente provocador de origem sexual atua antes da maturidade
sexual. Assim, esse incidente, num primeiro momento, não é sentido como traumático; é
num “só-depois” que ele é traduzido como traumático. Freud diz que para essa
representação ser recebida pelo eu como irreconciliável, desencadeando a ação do recalque,
o que atua é o pudor.
Mas qual é a origem deste pudor? E o que nele desencadearia isso que Freud diz ser
o mecanismo que ativa o recalque? Se tomarmos o conceito de falo, que Freud desenvolve
mais tardiamente em sua obra, e tomarmos o artigo de Lacan “A significação do falo”
(1958), veremos que há uma ligação entre a questão do pudor e a função do falo.
90
Para Lacan, o falo é um significante que marca o desejo do Outro; marca a falta,
portanto. É um significante que vem dizer que o homem não é todo, que a ele falta e que o
que lhe resta é desejar:
Que o falo seja um significante impõe que seja no lugar do Outro que o
sujeito tem acesso a ele. Mas, como esse significante se encontra
velado e como razão do desejo do Outro, é esse desejo do Outro como tal
que se impõe ao sujeito reconhecer, isto é, o outro enquanto ele mesmo é
um sujeito dividido pela Spaltung
1
significante (Lacan, 1958, p. 700).
Assim, o falo faz marca, impõe representação ao que falta ao Outro e instaura uma
ordem onde a falta e o desejo estão no plano principal, mas, ao mesmo tempo, em que
simboliza, faz marca significante, também deixa resto, deixa o real emergir a partir do
momento em que o recorta. É por isso que Lacan diz que o “demônio do pudor” surge no
exato momento em que a ordem fálica emerge, para indicar que alguma coisa não deve ser
desvelada:
O falo é o significante dessa própria Aufhebung (suspensão), que ele
inaugura (inicia) por seu desaparecimento. É por isso que o demônio do
Aidos (Scham)
2
surge no exato momento em que, no mistério antigo o falo
é desvelado.Ele então se torna a barra que, pela mão desse demônio,
cunha o significado, marcando-o como a progenitura bastarda de sua
concatenação significante (idem, p. 699).
Portanto, na elaboração do Rascunho K., o que fica afetado pelo pudor,
desencadeando o recalque, é aquilo que de orgânico está no corpo, aquilo que não foi
falicizado, aquilo de real que o corpo evidencia. É isso que gera o pudor e a repulsa; é isso
também que torna o “só depois” uma cena traumática.
A concepção da histeria e da obsessão também é retomada por Freud no Rascunho
K. Freud associa a feminilidade à passividade e o recalque histérico a uma experiência de
desprazer relacionado à passividade. Quanto à masculinidade, ela é associada à atividade e
a obsessão, a uma cena de excesso de prazer. Mas por que o excesso de prazer geraria o
recalque? Quanto a isso, Freud acaba por acrescentar que observa também na neurose
obsessiva uma cena de pura passividade numa idade muito precoce. Essa cena
1
Fenda (traduzido no próprio texto).
2
Demônio do Pudor (tradução no próprio texto do autor em nota de rodapé p. 699).
91
desagradável, somada à cena agradável posterior, permitiria o recalque. Surge, então, uma
idéia que será desenvolvida em Novas Observações sobre as Psiconeuroses de defesa,
segundo a qual a neurose obsessiva se constrói em torno de um cleo histérico. Assim,
segundo André (1986), a obsessão é apenas um dialeto da histeria, sendo esta a única
estrutura neurótica.
Em suma, nesse estágio da elaboração Freudiana, o fundo da
problemática neurótica está ligado a uma experiência primária que ele
designa como uma experiência de passividade sexual. A noção de trauma
e a teoria da sedução encontram seu sentido: o sujeito foi aprisionado
numa experiência real com relação a qual ele não dispunha de
significante que permitisse lhe responder, ab-reagir, como dizem os
Estudos sobre a Histeria, ou seja, transformar esta cena passiva numa
cena da qual ele teria participado ativamente. Sem o significante que lhe
abre a possibilidade de ação, o sujeito aparece confrontado com uma
lacuna: aquilo que a histérica traduz em manifestações de susto.
Concebe-se a partir daí a função que, nesse processo, culmina no
recalque: segundo tempo, do ponto de vista cronológico, mas primeiro do
ponto de vista lógico (pois é a partir dele que se determina
retroativamente o trauma), o recalque teria por princípio fornecer o
significante, ou antes, o par de significantes (S1-S2) que permite
contornar a experiência do real pelo que Freud chama de ‘representação-
limite (ANDRÉ, 1986, p. 83).
É importante salientar também essa questão da relação entre o registro simbólico e o
registro real no ensino de Lacan. Para Lacan, o registro real só pode emergir logicamente a
partir do registro simbólico. depois que sexualiza o corpo é que o simbólico faz marca
significante, é que faz sentido falar de um real, que aparece como resto. Assim, como
aponta André (1986), se, de um lado, cronologicamente, seria evidente que o real precede a
simbolização, de outro, o real como tal pode ser pensado a partir desta organização
simbólica. Nas palavras de André (1986): “Só há inominável em função do nome,
real do corpo com relação ao limite da simbolização” (p. 104).
Assim sendo, é a partir da lembrança da cena traumática que o recalque atua,
fornecendo o significante necessário para contornar essa cena traumática, que Freud chama
de "representação limite”. Freud situa como origem de toda neurose como momento
retroativo do trauma — uma experiência de passividade que causou grande desprazer.
Essa experiência de passividade, bem como as noções de masculino e feminino,
coloca-se, na verdade, como questão nesse momento da obra de Freud, que vai mostrando
92
no decorrer de sua trajetória que a anatomia em nada auxilia para que se saiba da
masculinidade e da feminilidade, e, por isso, esses termos ficam em suspenso, esperando
significantes que possam defini-los. Freud acaba por associá-los à questão da passividade e
à da atividade, e essa associação é possível a partir de uma nova direção que ele ao
significante bissexualidade. Assim, os dois sexos são ativos e passivos, e associar a
feminilidade à passividade e a masculinidade à atividade significa engendrar, de alguma
maneira, essa “natureza bissexual” nos seres humanos.
Essa tese também carrega uma carga do estigma do tempo histórico em que Freud
vive, em que se acredita que a natureza da mulher seria mais passiva, ou mais sujeita à
passividade. Essa biologização ou naturalização feminina é uma concepção vigente na
época de Freud em que se acreditava que o corpo biológico seria determinante na função
das mulheres e dos homens, como visto no capítulo 1. Assim, quando formula uma
etiologia sexual da histeria, Freud esboça uma teoria original e divergente da concepção de
seu momento histórico que ditava uma concepção neurológica dessa patologia. Birman
observa:
Foi empreendida, nesse contexto, uma guinada decisiva da maneira de
conceber o ser da histeria. Esta outra concepção, sobre o ser da histeria,
define destinos inesperados tanto para a própria como para a
feminilidade. O erotismo foi então sublinhado no psiquismo do sujeito,
marcando definitivamente a leitura deste na modernidade. Situa-se aqui a
novidade do discurso Freudiana sobre o psiquismo. Este discurso jamais
vai abrir mão dessa intuição originária (2001, p. 138).
Freud também é inovador quando acrescenta à etiologia sexual da histeria a idéia de
que o corpo a anatomia nada pode dizer sobre a masculinidade e a feminilidade.
Porém, quando faz a associação com o par de opostos passividade e atividade, dá um passo
atrás, formulando a idéia de que as mulheres e os homens teriam uma natureza, uma
tendência, passiva ou ativa, o que acaba por fazê-lo associar a feminilidade ao masoquismo,
já que o masoquismo estaria diretamente ligado à passividade em sua leitura.
Com efeito, seria de uma relação diferenciada em face da passividade e
da atividade, pela qual se definiriam duas posições radicalmente diversas
de si mesmo e do outro, que as figuras do feminino e do masculino
fariam emergência no mundo. Isso circunscreveria não apenas duas
modalidades diferentes de gozo, mas também duas posições opostas no
cenário erótico. Com efeito, de uma das formas de gozar e de se inscrever
93
na cena erótica adviria uma modalidade de sujeito centrado no corpo e no
afeto, enquanto na outra adviria um movimento originário de domínio
sobre o mundo, que se revelaria num desenvolvimento do pensamento e
da vontade. A concepção do ser masculino e do ser feminino, enfim, é
bastante meticulosa ao se apoiar em pequenos e reveladores detalhes da
matriz imaginária da modernidade sobre a diferença sexual (idem., p.
193).
Assim, para Birman (2001), essa associação do feminino à passividade e à histeria,
e do masculino à passividade e à neurose obsessiva só vem confirmar a versão histórica da
época, em que o masculino se caracterizaria pelas faculdades morais superiores do
pensamento e da vontade, ao passo que o feminino se fundaria nas faculdades inferiores do
afeto e da dimensão corpórea. A feminilidade estaria, mais uma vez, associada à natureza, à
obscuridade e ao primitivismo, enquanto a masculinidade estaria ligada à civilização.
No entanto, Freud desmonta a idéia de que a feminilidade estaria exclusivamente
ligada às mulheres ou que a masculinidade seria uma faculdade dos homens. Pelo contrário,
com a noção de bissexualidade ele exatamente fundamenta que nos dois sexos a
presença de masculinidade e feminilidade. No próprio artigo sobre o masoquismo (1924), já
na segunda pica (capítulo 4), Freud encerra exemplos fundamentalmente masculinos do
tipo de masoquismo que ele nomeou de “masoquismo feminino”.
O verdadeiro impasse de Freud é que em vários momentos essa conexão da
feminilidade com a passividade encerra um preconceito no interior mesmo de sua obra,
onde as mulheres e a própria feminilidade acabam sem uma leitura original, na medida em
que a problemática feminina é irremediavelmente associada exclusivamente à questão do
falo e à inveja do pênis. Assim, essa apreensão da feminilidade como enigma, como
obscurantismo e, até, como algo associado ao primitivo, que poderia conduzir a uma leitura
original da questão do real que a feminilidade encarna, acaba por desembocar numa leitura
que subjuga a posição feminina à inveja e generaliza o desejo feminino a partir do desejo de
maternidade (ver capítulo 4).
Retomando a questão da primeira experiência traumática que Freud caracteriza
como sendo uma experiência passiva, é oportuno perguntar: Por que ele acredita que essa
experiência de passividade possa ser, num segundo momento, apreendida como traumática?
O que a passividade tem de tão traumático que seria a causadora da neurose histérica e da
neurose obsessiva? Essa problemática da experiência passiva do sujeito, que configuraria
94
num segundo momento numa cena traumática por causar desprazer, traz a questão do gozo
que se enquadra muito melhor do que o par prazer-desprazer no que se trata da experiência
primária da sexualidade.
A descoberta do gozo sexual pela criança é sempre vivida de forma passiva, já que é
por intermédio do Outro que o sujeito recebe a sexualidade. É a linguagem que inaugura a
sexualidade no humano, na medida em que contorna o corpo, fala o corpo, fazendo com a
que a carne se torne um corpo erótico, representado e marcado pela fala do Outro, que o
estimula. A sexualidade no humano, como Freud mostra, não é um dado biológico, como
vimos a partir dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905). O corpo humano vai
se erogeneizando a partir do Outro, que cuida e que fala. As zonas erógenas vão sendo
constituídas a partir da introdução do Outro, que toca o corpo com seus cuidados.
O gozo sexual é, então, uma experiência prematura, na medida em que ele é vivido
pela criança na sua relação primeira com o Outro. A princípio, é o gozo do Outro que está
em questão, na medida em que é o Outro que cuida, é o Outro que dá tudo o que o infans
precisa. Parece ser bem neste primeiro momento que Freud ligue sempre o encontro
traumático ou a descoberta do gozo a uma experiência de sedução. Não se trata de uma
sedução propriamente dita, mas sim do fato de que todo sujeito, todo bebê, é entregue aos
cuidados, às carícias e aos desejos daqueles que cuidam dele. É isso que Freud indica
quando, a partir da segunda tópica, retoma a primeira relação com a mãe, como sendo uma
relação fortíssima e decisiva para a estruturação do sujeito, pois a sedução primária vem
sempre dessa função materna, uma vez que, ao cuidar da criança, a mãe – ou quem
desempenha esta função a desperta para o gozo. aí, portanto, uma experiência de
passividade sexual, em que o sujeito é, por assim dizer, gozado pelo Outro e se encontra
numa posição de objeto que causa o desejo do Outro.
O que acontece realmente e é retomado por Freud, como veremos, a partir das
fantasias masoquistas, é que nesse momento, primeiro o bebê se experimenta nessa posição
de objeto que completaria a mãe e a quem a mãe deseja. É essa posição que Freud toma
como passiva, mesmo sem desconhecer que nisso toda uma atividade que é fundante do
trauma de toda a neurose; é a posição em que num “só depois” o sujeito se toma numa
posição que Lacan formalizará como a do objeto oferecido ao Outro e que faria o próprio
sujeito desaparecer, só subsistindo como instrumento de gozo do Outro.
95
É essa fantasia de desaparecimento do sujeito a partir do gozo do Outro que
representa o insuportável para a histeria. Ou seja, essa posição de objeto que o trauma faz
reviver é o que aparece nas fantasias histéricas como insuportável, mas que, ao mesmo
tempo, retoma um gozo primordial. Como Freud acrescenta em seu artigo “Fantasias
histéricas e sua relação com a bissexualidade” (1908), o sintoma histérico, bem como a
fantasia histérica, tem por objetivo mesmo o restabelecimento do que ele chama de
“satisfação sexual primária original” (p. 151) e que estamos chamando aqui, a partir do que
foi elaborado por Lacan, de “gozo”. É esse horror que esse primeiro gozo provoca, que
Freud acaba por retomar a partir da fantasia da “mãe devoradora”, o medo súbito das
mulheres de serem devoradas pela mãe, que retoma exatamente esse momento inicial em
que a mãe aparece como o Outro que goza e o sujeito aparece como objeto desse gozo.
Assim, a experiência que Freud descreve como primária traumatizante é essa
experiência de passividade em que o sujeito está à mercê do gozo do Outro. Entretanto, é só
a partir da atuação do recalque que essa primeira experiência pode se tornar traumática.
Freud (1896) esclarece que uma representação, para ser recalcada, precisa esboçar um
conteúdo sexual. Ou seja, a representação que sofre recalcamento é aquela que gera uma
excitação sexual. O recalque, nesse sentido, tem a função, o efeito, de transformar uma
excitação somática numa representação que aprendemos a reconhecer como significante. É
a partir dessa inscrição significante de uma experiência primária de excitação que o trauma
é constituído, a experiência se torna traumática depois que é contornada pelo significante
como aponta André (1986).
O recalque atua então transformando uma sensação indeterminada em gozo sexual.
É, então, um processo de sexualização do real, ou seja, um processo de inscrição do real na
lógica fálica. A cena traumática, portanto, acaba por ser remanejada no que Freud
considerou ser a fantasia primordial do sujeito, que é uma cena de sedução, ou seja, uma
cena em que o Outro “contamina” o sujeito com seu gozo.
Em relação ainda ao processo de recalcamento, Freud acrescenta que em alguns casos
de histeria é possível provocar um desaparecimento total da quota de afeto, ou seja da
excitação, gerando o que Charcot denominava de “la belle indifférence des hystériques”.
Ou seja, as histéricas parecem não se importar com seus sintomas ou com seu sentimento.
Em outros casos, porém, essa supressão não se mostra tão bem-sucedida: sensações
96
aflitivas podem ligar-se aos próprios sintomas ou que seja impossível impedir certa
angústia, o que gerou uma constatação de que o recalque sempre “fracassa”. E o fracasso
do recalque deixa aberta uma divisão por onde o real não sexualizado aparece. O que
queremos dizer com isso é que nem tudo pode ser simbolizado, nem tudo se pode dizer no
retorno do recalcado. Resta sempre uma excitação, como Freud precisa em sua obra, uma
carga de afeto, como ele chamou, em torno da qual vem se construir o sintoma. Assim, as
associações que se pode fazer numa análise chegam até o ponto de umbigo. Há um
momento em que não se pode mais dizer porque não mais representação. É, então, o
processo de recalcamento que torna o primado do falo operante, no sentido de que é esse
processo que põe em cena a representação significante, que sexualiza o real, torna-o fálico,
representado.
Assim, com base nestes primeiros textos de Freud acerca da histeria, analisando a
formação do sintoma histérico a partir do trauma e do recalque, no que tange à relação do
registro real com o registro simbólico no processo de erotização do sujeito, pode-se ver de
que forma a trajetória de Freud em torno da histeria aponta esse real que irrompe no campo
do sujeito por meio do trauma, do lapso e do próprio horror do encontro com o corpo
feminino no que ele encerra de não falicizado. A teoria de Freud acerca da histeria, a
descrição dos casos e, mesmo, a teoria do recalque e do trauma abrem sempre um espaço
para esse inominável que o encontro com a feminilidade evoca, mas que não será tomado
em suas conseqüências até o fim do percurso freudiano.
3.2 A repulsa e o sintoma de conversão na histeria
Em seu artigo “A Etiologia da Histeria”(1896), Freud alerta que as lembranças
recalcadas da histérica evocam o trauma, o que traz uma experiência de repulsa. Nesse
texto, ele ilustra essa experiência de repulsa com a imagem de um cadáver, um corpo inerte,
uma carne destituída de vida, à maneira do que tinha aparecido com a cena do sonho de
Injeção de Irmã, em que evoca a morte e apresenta o espetáculo de horror da garganta de
Irma, que é a carne bruta, desumanizada enquanto destituída de significantes. A experiência
de repulsa na histeria, então, está diretamente relacionada com esse encontro com o real,
97
que há no próprio corpo da mulher, destituído de significantes que digam de seu próprio
sexo.
André (1986) ilustra essa experiência de repulsa com o caso de Emmy Von N.,
apresentado por Freud nos Estudos Sobre a Histeria (1893-1895). Emmy apresenta lapsos
de linguagem, um sintoma como que uma gagueira e um estalar de língua que é
acompanhado de uma expressão de terror e de repulsa. Para esse autor, é exatamente esse
lapso de linguagem que aparece em Emmy que evoca a lacuna, o próprio trauma. Emmy
desenvolve um horror por ratos e fantasia o horror que seria encontrar um rato morto.
Assim o sintoma faz desenvolver uma verdadeira repulsa a ratos:
[...] isso ilustra perfeitamente a oscilação entre recalcado e traumático
que é subjacente à histeria: o que é recalcado é o rato enquanto símbolo
sexual do pênis, mas o que faz trauma é que este símbolo se desmancha e
deixa aparecer então o dejeto imundo que tem por função encobrir: o rato
morto (ANDRÉ, S., 1986, p. 94).
É esse encontro com a coisa morta, como esse resto real que o sujeito tenta dar
conta por meio dos significante, do registro simbólico, mas que não consegue. É esse então
o papel das lembranças, das fantasias e das alucinações de Emmy que não cessam de
marcar a mutação pela qual o vivo passa bruscamente para o estado inanimado, e vice-versa
na tentativa de marcar esse real que não se inscreve e que por isso se constitui como
traumático. Esse real é vivido pela histeria no encontro com o próprio corpo. algo desse
corpo que não passa pela simbolização, é o trauma do encontro com a própria feminilidade.
Pode-se então supor que é ao vel de seu próprio corpo que Emmy se
sente fantasmaticamente fixada, pregada, como um rato morto, quer
dizer, decaída de sua imagem e mais radicalmente de sua faculdade de
sustentar esta imagem pela fala (idem, p. 95).
O caso Emmy permite precisar a função da repulsa como um fenômeno primário da
histeria, a repulsa que aparece ligada ao encontro com o real dessexualizado, sobre o qual
nada pode ser dito. O que gera a repulsa é exatamente esse desumano que o real encarna já
que no ser humano o corpo ganha representação fálica, é vestido, é falado. O ser humano
não simplesmente come, bebe ou copula de acordo com a função orgânica; ele é um ser
98
erótico, em que as funções orgânicas são ultrapassadas e a necessidade ascende ao desejo,
como veremos com o Sonho da Bela Açougueira. Assim, a repulsa histérica se encontra no
nível em que a função erótica é rebaixada à necessidade orgânica, em que o desejo jaz e o
real aparece. Esse fenômeno da repulsa é tão importante no entendimento da histeria que
Freud (1905) chega a estabelecer como critério diagnóstico da histeria a incidência da
repulsa, colocando que define histérica toda a pessoa a quem uma excitação sexual
provoque repulsa.
Ainda com relação à problemática da histeria na obra freudiana e sua relação com a
feminilidade, é importante tratar daquilo que mais caracterizava a histeria na época de
Freud; o sintoma de conversão. A conversão histérica pode ser entendida a partir da questão
do fracasso do recalque, que ela é uma conseqüência, uma resposta em forma de sintoma
corporal ao fracasso do recalque que acaba por fazer uma divisão no corpo, formando um
corpo que Freud chamou de libidinal”, ou seja, erógeno, que é o corpo recortado,
representado pelo recalque, e o corpo orgânico, que fica de fora dessa representação, que
representa o furo na rede de significantes.
Assim, a conversão é uma reação a esse furo real, em termos de hipersexualização
de uma parte do corpo, que perde sua função orgânica e atua apenas simbolicamente.
Enquanto na repulsa a histérica se encontra com esse real que causa horror, na conversão
ela reage a esse real, fazendo com que naquela parte do corpo ele seja completamente
recoberto pelo significante. Na histeria de conversão, portanto, o processo de recalcamento
é completado pela formação do sintoma de conversão. A conversão histérica vem
exatamente para tampar esse real em que o recalque fracassou no seu processo de
simbolização.
Sob esse aspecto, é em torno desse resto real que se organiza o sintoma, trazendo o
simbólico como substituto desse resto de real não significantizável. Com a teoria da
castração e com a primazia do falo, como veremos a seguir, esse fracasso do recalque que
evidencia o furo real não é mais tomado como primordial na teoria freudiana. O falo passa
a ter uma primazia total sobre o orgânico e o recalque passa a ser o processo pelo qual o
falo pode exercer essa primazia. Discutiremos mais essa questão no capítulo 4.
Assim, o sintoma de conversão traz em si a oposição tão presente na histeria como
veremos a partir da análise do Sonho da Bela Açougueira, a oposição entre desejo e a
99
necessidade, ou seja, a diferença entre a pulsão sexual e a pulsão que está puramente a
serviço da causa orgânica, que Freud denomina nesse momento de seu percurso de “pulsão
de autoconservação”. Há, então, uma cisão fundamental do corpo sexual e do corpo
orgânico, em que as funções puramente orgânicas ficam fora do campo das representações
e o sintoma conversivo faz uma anexação pela função sexual da função orgânica.
Na conversão histérica, o conflito entre o orgânico e o sexual, entre a
necessidade e o desejo se resolve na invasão completa da função orgânica
pela função sexual. A cegueira histérica vem, em suma, do fato de que o
olho está destacado de sua função exterior e inteiramente consagrado a
sua função na fantasia. A conseqüência do fracasso do recalque, aqui, é
que a fronteira entre o sexual e o não-sexual não pode mais ser
estabelecida. Vai-se concluir, a contrario, que o papel do recalque
consiste em colocar essa fronteira e, a partir daí, em impedir que se
produza a ‘perda da realidade’, ou melhor, a exclusão do real que a
cegueira histérica manifesta ao nível da visão (idem, p. 107).
Assim, na histeria a relação do sintoma conversivo com o da repulsa se torna clara. A
conversão é uma resposta à repulsa que aparece como uma defesa, um recuo do sujeito
diante do encontro com o real. Enquanto a repulsa exprime o fracasso do sexual diante do
orgânico, o sintoma conversivo faz exatamente o contrário; é a resposta em que o sexual se
afirma frente ao orgânico.
Mas qual é o sentido dessa reação sintomática situada no corpo de maneira tão forte
na histeria? A histeria comporta, então, também a questão de uma imagem, a imagem
corporal, idéia que Freud (1914) constrói a partir da sua teoria acerca do narcisismo. É com
base nessa teoria que Freud pode constatar que é só a partir dessa imagem corporal, ou seja,
do narcisismo, que o sujeito pode se dirigir ao objeto sexual. É essa imagem totalizadora do
corpo que faz com que o sujeito possa se dirigir ao outro.
No que concerne à histeria, essa problemática da imagem corporal é, então, ainda
mais importante. Numa recusa a sua própria castração, numa reação mesmo a esta, a
histérica se coloca como sendo o falo. Ela encarna no seu próprio corpo esse significante,
coloca-se como toda potência, amparada por uma imagem sedutora que ela encarna.
Acontece que, de outro lado, essa imagem não consegue nunca revestir completamente o
real. Há sempre a ameaça de que ela se desfaça e de que o real do corpo feminino apareça.
100
Haveria, portanto, uma falta presente na própria imagem corporal que marcaria
decisivamente a histérica e que faz com que o real venha a emergir de maneira definitiva. O
sintoma conversivo vem exatamente como reparador dessa falta, a partir do simbólico.
Chega-se a um ponto do entendimento da histeria muito importante no que concerne ao
tema da feminilidade. Essa questão da falta presente na imagem corporal na histeria é de
fundamental importância para se entender tanto a problemática histérica como a apreensão
da questão da feminilidade. A interrogação necessária ao avanço desse tema é exatamente
de onde vem essa falta sentida pela histérica a partir da imagem corporal.
Essa falta presente na própria imagem corporal pode ser explicada a partir do
fracasso do recalque, mas é preciso entender melhor como essa imagem corporal é
construída para que essa ligação possa ser devidamente estabelecida. Lacan (1936)
desenvolve a teoria do estágio do espelho. Nessa teoria, a criança desenvolve a matriz do
eu, ou seja, seu narcisismo, a partir de uma imagem corporal unificada desenvolvida nesse
estágio do espelho. A criança apreende essa imagem totalizadora que o espelho reflete e
que contraria todas as experiências que ela vive no próprio corpo recortado por pulsões
parciais.
Assim, para que a criança possa de fato construir essa imagem, há que levar em
conta o papel decisivo do Outro, encarnado, por exemplo, naquele que segura a criança
frente ao espelho. É do que esse Outro diz para a criança quando a imagem se apresenta a
ela que depende a consolidação da mesma. Assim, Lacan distingue dois narcisismos, ou
dois espelhos: um imaginário, a partir da imagem corporal; e o outro simbólico, que
depende de um traço significante tomado do Outro.
Portanto, a construção da imagem corporal é extremamente dependente dessa
construção da identificação simbólica que depende do Outro. A imagem corporal serve
como uma “capa” para o corpo real recortado, cindido pelas pulsões. É ela que dá a unidade
ao sujeito, que, assim, cria uma identidade. Para que essa identidade possa ser construída, é
necessário que esse significante venha por meio da identificação paterna. Na mulher, há,
então, a falta ao nível da constituição da imagem corporal e uma outra falta correspondente
situada a partir da identificação simbólica fornecida pela instância paterna. Assim, é o pai
que falha e que não pode dar essa insígnia tão importante para a formação dessa imagem
corporal, desta identidade feminina:
101
Toda a clínica da histeria gira em torno deste ponto de umbigo: o falo
que a histérica encontrou em seu pai no Pai em geral é sempre
insuficiente: o pai da histérica é estruturalmente um impotente. Mas
impotente para que? A demanda da histérica se revela aqui em sua
dimensão de questionamento da feminilidade. Se o pai é estruturalmente
impotente, é de fato porque ele não lhe pode dar o apoio que ela conta
para assentar sua identidade feminina. A insígnia paterna indica o falo,
só sugere identificação fálica. O que se põe em causa a partir de então, na
demanda da histérica ao pai, é uma falta absolutamente radical: mais do
que um fracasso do recalque, é uma verdadeira impossibilidade de
recalcar que é designada. Pois o representante que deveria ser recalcado
falta, pura e simplesmente: não há no Outro, como Lacan vai desenvolver
magistralmente, significante do sexo feminino (idem., p. 112).
É essa falta de ancoragem para uma identificação especificamente feminina,
diferente da identificação fálica, que faz com que a imagem corporal numa mulher não
possa revestir completamente o corpo. Assim, é o próprio corpo da mulher que carrega esse
inominável próprio da feminilidade, que não significante que possa dizer do feminino
enquanto tal.
Portanto, é importante ressaltar: o que a histérica demanda do pai não é exatamente
o falo, como Freud formulou, mas sim algo que lhe diga da sua própria feminilidade. E,
diante dessa falta de resposta, dessa falta total de significante, a histérica se reduzida ao
estatuto de objeto. A impossibilidade de uma identificação propriamente feminina a faz
sentir impotente, reduzida a um objeto da fantasia masculina.
É por isso que Freud (1895) observa que a histérica é normalmente uma ótima
enfermeira, porque ela, que acaba padecendo mesmo da falta do Outro, tenta repará-la a
todo custo. Ela tenta sustentar o pai, na esperança que este possa lhe dar a chave para a
descoberta da sua própria feminilidade. Sob esse ponto de vista, a histeria não aparece
somente como uma neurose, mas como uma maneira de apontar para a problemática da
feminilidade.
É importante salientar que é essa falta ao nível da imagem corporal, que se
apresenta sob uma enorme fragilidade, podendo cindir-se a qualquer momento, que faz com
que a imagem seja tão importante para a mulher. E talvez seja por isso que Freud aponta
que a mulher é mais vaidosa e narcisista, numa reação a essa imagem tão fragilizada que
pôde construir do próprio corpo.
102
Há, portanto, uma dificuldade inicial para todas as mulheres em se colocar numa
posição feminina, na medida em que não há um modelo identificatório para a mulher.
Assim, cada mulher tem que se constituir sozinha, em seu próprio percurso. Isso não
representa uma tarefa cil, como temos apontando, que, para além dessa dificuldade
situada na formação da imagem corporal ou da identificação, também a questão da
inserção na lógica fálica e a do repúdio que a própria mulher tem com relação à
feminilidade, que aparece, como vimos, como um grande perigo. Todas essas dificuldades,
portanto, acabam “facilitando” o caminho para uma posição histérica.
A histérica se obstina numa demanda sem fim, em que se dedica a sustentar o pai
mais precisamente, o falo do pai para que este falo lhe entregue, lhe assegure algo sobre
esta identidade que lhe falta. Assim, a histérica vive apontando para a impotência fálica,
mas buscando algo ainda mais potente. É, portanto, nesse ponto da elaboração freudiana,
que ele não pôde avançar em relação à histeria ou à feminilidade, exatamente porque se
ateve à problemática feminina a partir da ótica fálica. Para Freud, as mulheres queriam o
falo. Era isso que ele acreditava que as histéricas demandavam do pai. Mas, na verdade, a
insatisfação histérica aparece porque elas demandam algo que está além do falo.
A emergência do corpo na repulsa histérica é também ponto de partida
para um novo sonho. Sonho de reparar o Outro, sonho de um falo todo-
poderoso que tem a eminente qualidade de ser um sonho sem fim
sonho de obturar a falha da imagem corporal. Esse novo sonho se
exprime no sintoma pelas simbolizações e conversões, bem como pela
superestimação da outra mulher, onde a histérica encontra o depositário
cômodo de uma feminilidade com a qual ela evita confrontar-se muito
diretamente (idem, p. 118).
Essa questão da demanda e do desejo histérico, bem como o manejo que Freud acaba
dando à questão histérica nesse momento de sua obra, será ilustrada a partir do Sonho da
Bela Açougueira e do Caso Dora.
3.3 Sonho e desejo na histeria: Freud e o Sonho da Bela Açougueira
103
A pesquisa da neurose histérica e do inconsciente fez com que Freud se deparasse
com a questão do desejo. Foi em sua obra A Interpretação dos Sonhos (1900) que falou
pela primeira vez sobre isso. Para Freud, o sonho é uma manifestação do inconsciente e
revela sempre um desejo, o qual pode ser desvelado a partir da fala do paciente sobre o
sonho.
A relação entre sonho e desejo na histeria é muito estreita e a questão da elaboração
da histeria na obra freudiana está diretamente relacionada, no que tange à sua teoria acerca
da feminilidade.
Nesse momento de sua obra, Freud estava lidando ainda com sua auto- análise e
descobrira que as histéricas lhe mentiam”. Até então Freud acreditava que a histeria seria
desencadeada por um abuso sexual na infância de suas pacientes. Então, é com grande
susto que descobre que esse abuso nunca existira factualmente, e essa descoberta evidencia
claramente a questão da realidade psíquica, do inconsciente e, então, da fantasia.
A histeria passa então de um arcabouço de sintomas conversivos para uma
modalidade psíquica estruturante, em que a fantasia e o trauma desempenhavam funções
determinantes. Freud se conta de que por trás da fantasia e do sintoma havia um desejo,
um desejo estranho à consciência, mas presente no inconsciente. A questão do desejo e da
histeria se torna ainda mais importante com o trabalho sobre os sonhos.
Freud (1901) conclui que a chave da histeria está realmente incluída no sonho. Ele
chega a relacionar sonho com ataque histérico no sentido de que os dois seriam uma forma
de realização de desejo. A partir do terceiro sonho analisado por Freud nessa obra é que se
pretende aqui desenvolver o conceito de desejo na histeria. O Sonho da Bela Açougueira,
como o chamou Lacan (1957-58), é um sonho de uma paciente histérica atendida por
Freud. Essa paciente traz o sonho a Freud dizendo que este sonho contrariava a teoria de
que os sonhos eram a realização de um desejo, já que no sonho ela não conseguia efetivar o
que teria desejado.
Eis o sonho:
Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um
pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas
então me lembrei que era Domingo à tarde e que todas as lojas estariam
fechadas. em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o
telefone estava com defeito. Assim, tive de abandonar o meu desejo de
oferecer uma ceia (Freud, S , 1900, p. 181).
104
Freud conta que ao ouvir o sonho deu, a princípio, razão à paciente dizendo que
aparentemente o sonho parecia contrariar sua teoria, mas pede para que a paciente analise o
sonho a partir dos últimos fatos ocorridos em sua vida: ela estava muito apaixonada pelo
seu marido, que era dono de um açougue e que também se achava muito apaixonado por
ela, a ponto de oferecer-lhe tudo o que ela desejava. O marido estava de regime e tinha dito
que queria fazer exercícios físicos e que não aceitaria convites para cear.
A paciente conta também um episódio que acontecera no restaurante onde
costumava almoçar:
[...] seu marido havia travado conhecimento com um pintor que queria a
todo custo fazer seu retrato, pois nunca havia encontrado um rosto tão
expressivo. Mas o marido respondera, com sua rudeza de praxe, que
ficava muito agradecido, mas estava convencido de que o pintor
preferiria a todo o seu rosto um pedaço de traseiro de uma moça bonita
(p. 181).
Ela, então, comenta com Freud que pediu ao marido que não satisfizesse a um
desejo que tinha, o de comer sanduíche de caviar pelas manhãs, já que isso representava
uma despesa grande e que assim podia continuar implicando com o marido. Freud toma
esse comentário com cuidado, que há nele uma lacuna de sentido. Havia algo nesse
pedido que não estava claro, e Freud sublinha esse ponto com precisão. Ele pontua: "Vi que
ela fora obrigada a criar para si mesma um desejo não realizado na vida real, e o sonho
representava essa renúncia posta em prática. Mas por que precisaria de um desejo não
realizado?” (p. 182).
Freud estava se questionando mesmo sobre algo de suma importância para a
histeria. Ele se depara com a insatisfação da histérica, com a necessidade que tem de sair da
necessidade para aceder ao desejo expressa numa insatisfação. Nas palavras de Lacan:
O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda
aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia
significante, traz à luz a falta-a-ser com o apelo de receber seu
complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também o lugar dessa
falta (Lacan, 1958, p. 633).
105
Este assunto seretomado mais adiante, no desenrolar da análise do sonho como
caminho para o entendimento do desejo na histeria.
Com relação aos elementos que temos do sonho e do que a paciente contara sobre o
que se passava na vida dela nos últimos dias Freud comenta ser insuficiente à análise. Então
ele continua:
Insisti. Passado um momento, como convém quando se tem de superar
uma resistência, ela me disse haver visitado ontem uma de suas amigas,
de quem sente muito ciúme porque seu marido fala muito bem dela.
Felizmente, a amiga é miúda e magra, e seu marido gosta de formas
rechonchudas”. (p. 182) A paciente conta que a amiga havia exatamente
lhe falado do desejo de engordar e acrescentara: “Quando é que vocês
vão nos convidar de novo? Sempre se come muito bem em sua casa (p.
182).
Freud acrescenta que agora o sentido do sonho estava claro. Diz a paciente que o
sonho havia sido motivado pelo ciúme que sentia de sua amiga e que realizava o desejo de
não cooperar com ela no desejo de engordar e ficar ainda mais atrativa para seu marido.
Freud, então, interroga a paciente sobre o sentido do salmão defumado no sonho. Ela lhe
responde que esse é o prato predileto de sua amiga.
É muito importante observar que Freud nesse momento não a análise do sonho
por encerrada; ele associa exatamente o salmão defumado da amiga com o caviar da
açougueira. Ele acrescenta que, por acaso, conhece a amiga e sabe que a amiga tem por
salmão defumado a mesma conduta que a paciente tem em relação ao caviar. Assim, Freud
avança na análise do sonho ao invés de dá-lo por decifrado. uma lacuna a ser
descoberta; e ele havia intuído isso anteriormente.
Faz então uma segunda interpretação do sonho em que a paciente estaria
identificada com a amiga no sonho. Freud fala da identificação histérica e expõe pela
primeira vez a importância da mesma para o mecanismo da histeria. Assim, teria sido na
medida em que se identificara com a outra, que ela se atribuiu na vida real um desejo não
realizado.
Freud faz uma exposição sobre a identificação histérica nesse ponto do sonho. Ele
coloca o quanto é importante diferenciar a identificação de uma mera imitação. A
identificação histérica se passa no plano inconsciente: “a identificação histérica não
106
constitui uma imitação, mas uma assimilação baseada numa alegação etiológica
semelhante” (p. 184).
A identificação posta em cena, então, é uma identificação com um desejo
insatisfeito. A questão que se coloca então é: Qual é a função desse desejo insatisfeito? Para
Lacan (1957-58), a resposta a essa questão está nas relações entre demanda e desejo.
Para que possamos avançar com essa resposta de Lacan, é importante que
ressaltemos o que está sendo entendido aqui como demanda e desejo. Para Lacan (1957-
58), a demanda é o que, ao manifestar-se como necessidade para o sujeito, é
significantizado e endereçado ao Outro. É o que se manifesta por meio de um pedido. A
demanda está sempre relacionada com o amor, segundo Lacan. É amor que sempre se
demanda ao Outro. O desejo não se dirige ao Outro como a demanda, mas é contornado por
esta. O desejo provém do outro, é “desejo do Outro”. Ele se funda na relação com o Outro
da operação significante, Outro necessariamente incompleto, que Lacan chamará de
“barrado”. Nas palavras de André (1986):
[...] o desejo nunca se dirige ao Outro enquanto tal, mas antes provém
dele. O que visa o desejo é o significante pelo qual o Outro aparece, ele
próprio, como desejante, e, portanto, desejável (p138).
Assim, a Bela Açougueira demanda amor; ela é muito apaixonada pelo marido e
deseja caviar. Mas exatamente ela não quer que lhe em aquilo que deseja. Mas por que,
então, ela precisa de um desejo de outra coisa que não o marido e ainda mais um desejo que
não deve ser satisfeito?
O que acontece é que a demanda não esgota nunca o desejo, e este é o que sustenta
o sujeito enquanto tal. Seu marido poderia dar-lhe caviar, mas assim ela não teria
aparentemente nada que ele lhe negasse, nada a desejar, nada que o fixasse como Outro
real, como alteridade, fora da demanda. Manter-se desejante é algo que resguarda seu lugar
de sujeito, lugar esse muito difícil de ser mantido para o sujeito histérico.
Segundo Lacan (1957-58):
Se é necessário ao sujeito criar para si um desejo insatisfeito, é por ser
essa a condição para que se constitua para ele um Outro real, isto é, que
não seja inteiramente imanente à satisfação recíproca da demanda, a
captura inteira do desejo do sujeito pela fala do Outro. Que o desejo de
que se trata é, por natureza, o desejo do Outro, é nisso precisamente, que
107
a dialética do sonho nos introduz, uma vez que o desejo de caviar, a
paciente não quer que ele seja satisfeito na realidade. E o sonho,
incontestavelmente, a satisfazê-la quanto à solução do problema que
ela busca (p. 377).
O problema colocado é o de que a demanda não satisfaz inteiramente o sujeito, e
nossa açougueira, apesar de não saber disso conscientemente, o intui. É o “resquício de
demanda”, como chamou Lacan, esse que não pode ser dito, que precisa ficar em suspenso
e é endereçado ao Outro sob a forma de identificação. É nesse ponto que o sujeito tem que
encontrar o seu desejo.
O que se apresenta no sonho é um entrecruzamento de desejos do marido e
da amiga. O marido que não quer comer para não engordar e a amiga que quer engordar e
espera ser convidada para jantar. É no cruzamento desses dois desejos que o enigma sobre a
verdade do desejo surge para a açougueira. Assim, o sonho é uma resposta à demanda de
sua amiga, que pede para jantar na casa dela. Mas o fato é que não se sabe o que a amiga
realmente quer com esse jantar. Afinal, apesar de alegar que a comida é habitualmente
servida, a paciente está ciente de que seu marido sempre elogia a amiga, o que gera uma
questão acerca do desejo do marido para a paciente. Afinal, o marido gosta de carnes
roliças, mas elogia a amiga. A questão que se coloca é se o próprio marido não teria outro
desejo quando tudo está satisfeito. Mas como um homem pode amar uma mulher que não
pode satisfazê-lo?
A paciente teria se identificado então com o marido, e a fatia de salmão
defumado surge no lugar do desejo do Outro. A questão que se põe por trás da identificação
com a amiga é sobre o desejo e sobre o desejo de um homem.
Não bastando esse desejo para nada (como receber, com essa única fatia
de salmão defumado, toda essa gente?) é preciso mesmo, no fim dos fins
(e do sonho), que eu renuncie a meu desejo de oferecer um jantar (isto é,
a minha busca do desejo do Outro, que é o meu segredo. Deu tudo
errado, e o senhor diz que o sonho é a realização de um desejo?
(LACAN, J, 1958, p. 632).
O desejo é então de ser o falo; aquilo que a amiga acaba representando. O que a
açougueira quer saber é o que a amiga tem, que, mesmo magrela, pode ser desejada. Essa é
108
a identificação última com o significante do desejo, o falo. Assim, a identificação histérica
ao desejo do Outro fundamento àquilo que o sonho apresenta como a não realização de
um desejo.
A renúncia ao jantar, nesse contexto, não é para contrariar o desejo de sua amiga; é,
ao contrário para sustentá-lo enquanto desejo insatisfeito. O desejo de sua amiga substitui o
seu próprio desejo. É menos com a sua amiga, portanto, que a paciente se identifica; mais
com o desejo dela. O que está em jogo é o reconhecimento do desejo, e não sua satisfação.
Os elementos da identificação histérica que aparecem no sonho levam à posição que
Freud nomeou como “bissexual própria da histeria”. Afinal, se, de um lado, a paciente se
coloca ao lado de sua amiga, na busca de uma misteriosa feminilidade à qual seu marido
seria sensível, de outro, adota uma posição masculina própria ao marido para formular a
questão referente à amiga: Quem é ela para que ele a ame?
O sonho da Bela Açougueira, segundo André (1986), vem exatamente demarcar a
importância da conexão de sonho e desejo na histeria. O sonho da histérica demarca a sua
ligação com o desejo.
O sonho da bela açougueira valoriza um traço específico: a promoção da
falta, do nada enquanto tal. O desejo histérico aparece na formulação
mais pura: a do desejo de ter um desejo sem objeto, ou seja, um desejo
que jamais possa ser satisfeito (ANDRÉ,S., 1986, p. 140).
André (1986) atenta para a oralidade que o sonho expressa. Para ele, o valor central
do objeto está tanto como causa do desejo como condensador do gozo. Ele aponta para o
texto A direção da cura, de Lacan (1986), em que o autor, algumas páginas depois de ter
discorrido sobre o sonho da açougueira, aponta para uma definição da anorexia mental.
Para ele, essa definição de Lacan poderia facilmente ser adaptada à bela açougueira: “É a
mulher a quem se alimenta com mais amor que recusa a comida (caviar ou salmão
defumado) e goza de sua recusa como de um desejo” (ANDRÉ, S., 1986, p.144).
Para ele, a açougueira, ao pedir ao marido que não lhe mais caviar, transmuta o
objeto de sua demanda em significante do seu desejo impossível de se satisfazer. Isso
ilustra a função de oralidade tão presente na clínica da histérica. Nas palavras de And
(1986):
109
[...] trata-se na oralidade histérica de fazer valer o desejo sobre a
necessidade, de demonstrar o primado do apetite sobre a satisfação
alimentar, e de testemunhar assim que o preenchimento da função oral
pelo alimento pode deixar alguma coisa - um nada- que estará sempre
a desejar. É este o nada que se trata de preservar, ao preço da
insatisfação. Nada tão impossível de engolir quanto de vomitar, nada que
não tem outra materialidade senão o que resta do seio ou do polegar
quando este deixou a boca da criança. É a este nada que a histérica se
reduz quando procura questionar o desejo do Outro para além da sua
demanda (p .144).
Outro aspecto importante do sonho denota uma característica importante da histeria
que Freud sublinha: o sonho deve ser analisado e situado em transferência. Afinal, a
paciente desafia o saber de Freud, colocado como o saber do mestre. O sonho é feito para
não responder à demanda do mestre, que ela não pode trazer um sonho de acordo com
sua teoria.
Sobre isso Lacan (1958) acrescenta:
Uma senhora pode ter um sonho que não é movido por outro desejo
senão o de dar a Freud, que lhe expôs a teoria de que o sonho é um
desejo, a prova de que não é nada disso. O aspecto a reter em mente é
que esse desejo se articula num discurso muito ardiloso (p. 626).
Lacan (1969) formaliza o discurso ardiloso” num matema: o S (barrado) no lugar
do mestre sobre a, no lugar de verdade. Do outro lado do matema temos S1 no lugar do
Outro e S2 no lugar da produção.
$ S1
____ _____
a S2
O S (barrado) na posição do mestre coloca o próprio sujeito faltante, atravessado
pela linguagem como agente. O sujeito não pode responder à demanda do mestre porque é
cindido, barrado. Seu saber é castrado e é por isso que a açougueira não tem o que o mestre
supostamente lhe pediria. A sua relação com a falta é colocada quando traz para a sessão o
sonho que contrariaria a teoria do mestre.
110
Colocar S1, ou o significante mestre no lugar do Outro, leva ao lugar da histérica
em relação ao mestre. Ela demanda que o outro a desvende, isto é, desvende isso que
funciona para ela como enigma. Talvez por isso seja suscetível à sugestão, mas o certo é
que essa demanda de saber ao mestre é destinada a ser frustrada. O S1 é um significante
sem significado. Ele é único, e por isso é impossível de significar.
A questão da insatisfação histérica também se inscreve sobre esse ponto. Para ela, é
necessário que se mantenha a insatisfação para que possa manter seu próprio desejo. É
nessa insatisfação que ela tem de se subtrair como objeto, única via que julga ter para
manter o desejo. Ao observar que o a no discurso da histérica está à esquerda é possível
perceber que o gozo não está no outro, mas no que ela é para o outro. Assim, a histérica se
identifica com o falo. Ela acaba sendo o falo, identificando-se ao desejo do Outro.
Com relação a S2 no lugar da produção, que colocar que a histeria é o discurso
que vem mostrar que o saber colocado pelo S2 jamais vai atingir a, causa do desejo e
ponto de gozo, pois este não se inscreve. Assim, a histérica interessa-se pelo objeto,
passando pela mediação do homem, mas furtando-se a ele. Trata-se do impossível encontro
com a onipotência fálica que ela almeja como resposta à sua condição de mulher. Faz,
então, da sua vida o incessante enigma do desejo.
Eis aí o que põe a bela açougueira e sua questão acerca do desejo, e que já pode ser
apreendido pela maneira como ela leva o sonho a Freud na sua relação transferencial. Já aí
a questão é de deixar a demanda insatisfeita para que se possa chegar ao enigma sobre o
desejo.
3.4 O Caso Dora
Decidiu-se abordar aqui esse caso freudiano por algumas razões importantes. Em
primeiro lugar, porque ilustra muito bem a questão do desejo na histeria e a questão da
busca incessante da histérica por algo que lhe diga sua própria feminilidade. Além disso,
porque sublinha a posição de Freud com relação às mulheres nesse momento de sua obra,
momento em que ele confere tal importância ao Complexo Paterno que não consegue
perceber a verdadeira questão de Dora, apesar de alguns anos depois, ele mesmo ressaltar
esse erro
111
É interessante também salientar a questão da facilidade como a histérica nesse
caso, Dora aponta para o inconsciente. Como a divisão psíquica está marcada com
transparência na medida em que o que a histérica demanda mesmo é um resto a mais de
inconsciente; um esforço a mais de simbolização que possa lhe dizer algo sobre o que é ser
uma mulher:
O caso Dora parece privilegiado para nossa demonstração, na medida em
que, em se tratando de uma histérica, a tela do eu é tão transparente que
em parte alguma, como disse Freud, é mais baixo o limiar entre o
inconsciente e a consciência, ou melhor dizendo, entre o discurso
analítico e a palavra do sintoma (Lacan, 1951, p. 225).
De qualquer maneira, este é um caso muito importante para o percurso que agora
trilhamos, porque Dora, como veremos, quer exatamente saber sobre A mulher; está cheia
de questões acerca da feminilidade e da sexualidade feminina.
O caso Dora é registrado por Freud em 1900, nesse momento mesmo de sua obra
em que ele desenvolve seu trabalho acerca da histeria. Neste caso, ele enfatiza novamente a
importância do sonho para o desvendamento da histeria. No relato que faz sobre esse caso
Freud o intitula de Fragmento da Análise de um Caso de Histeria” e o coloca como um
fragmento exatamente porque o tratamento durou apenas onze semanas, tendo sido
interrompido pela paciente no último dia do ano. Freud terminou de escrever a exposição
do caso em 24 de janeiro de 1901, mas, por questão de descrição profissional, só o publicou
em abril de 1905 (Jones, 1953, p. 363).
A história do caso parece mesmo um romance e trata de dois casais infelizes no
casamento, sendo um deles os pais de Dora. Ela tinha 18 anos quando foi levada, por ordem
de seu pai, a Freud. Dora faz parte de uma história com quatro personagens: seu pai, ela e o
casal que Freud chamou de Sr e Sra K. A Sra K cuidara do pai de Dora quando este se
achava muito enfermo na infância de Dora e em seguida tornara-se amante do pai. Fato
intrigante é que o pai de Dora era impotente, o que não foi impeditivo para que ele
mantivesse uma relação extraconjugal com a Sra K.
Por outro lado, havia Dora, que estava, de alguma maneira, exposta ao Sr. K. Ela
acreditava que seu pai incentivava os avanços que o Sr. K. tentava fazer sobre ela, levando-
a para passear e dando-lhe presentes. A situação se complica ainda mais quando Dora,
durante as férias, cuidou com muita dedicação das duas crianças do casal K., agindo como
112
se fosse mãe delas. O que acontece, então, é que cada casal nesse quarteto se ocupa de
resguardar o outro casal, atuando mesmo como cúmplice do outro. O pai fecha os olhos
deixando que o Sr. K. aproxime-se de sua filha, a ponto de Dora formular a fantasia de que
haveria um pacto no qual ela seria objeto de troca para os dois homens. Por outro lado,
Dora protege a relação de seu pai com a Sra. K. Ela cuida dos filhos dela a fim de que não
haja impedimentos para o casal.
A história estava assim colocada até que o Sr. K. faz propostas mais diretas a Dora.
Ela fica furiosa, esbofeteando-o. Quando volta para casa, exige que o pai corte suas
relações com o casal K. Como o pai não cede, Dora fica muito mal e chega até ameaçar
suicídio. É nesse momento que o pai decide levá-la a Freud.
Freud analisa o caso em 1900 da seguinte maneira: uma denegação do amor de Dora
pelo Sr. K que encobriria o amor ao seu pai e ciúmes da Sra. K. Ele sublinha também a
questão da oralidade nas fantasias sexuais de Dora. Em 1923, nas notas que ele acrescenta
ao relato do caso, Freud reconhece ter subestimado o amor homossexual de Dora pela Sra.
K. Lacan, em seu artigo “Intervenção Sobre Transferência” (1951), esclarece exatamente
essa questão da relação de Dora a Sra. K. que escapa a Freud.
Dora demonstrava um verdadeiro fascínio pela Sra. K. Para ela, a Sra. K. encarnava
a própria feminilidade. Estava envolta por esse enigma que Dora tanto se interessava em
resolver. Lacan chama de “feminilidade corporal”, esse mistério que a Sra. K aponta para
Dora. A paciente acreditara que a Sra. K. carregava a resposta para o seu próprio enigma.
Era nela que Dora achara o que tanto pedira para seu pai, e este, impotente, não atendera:
ela queria saber sobre essa feminilidade que acreditava estar presente na Sra. K. É por isso
que na cena do lago, quando o Sr. K se declara para Dora, ela o esbofeteia, já que durante
sua declaração ele enfatiza que a Sra. K. não era nada para ele, que ela não representava
nada. O Sr. K, tinha valor para Dora enquanto aquele que deseja a Sra. K. e as palavras
dele só têm como efeito desmontar, de uma só vez, a identificação histérica de Dora.
Sobre essa questão da identificação histérica de Dora, é importante apontar, como
no caso da Bela Açougueira, a dupla polaridade da mesma: ela se identifica ao mesmo
tempo com a posição masculina, do lado do Sr. K., ou de seu pai, para contemplar a Sra. K,
e tem uma identificação feminina, por outro lado, na medida em que desejaria ser amada
pelo Sr. K e por seu pai à maneira que a Sra. K. é amada por seu pai. A questão da Dora a
113
partir disso é também semelhante à da Bela Açougueira: Como a Sra. K. pode ser amada se
não pode satisfazer seu pai, que é impotente?
Lacan em 1951, não avança muito na interpretação de Freud, sustentando que o
destino feminino não teria outra via senão a de se aceitar enquanto objeto de desejo
masculino.
Mas essa homenagem, da qual Freud entrevê o poder salutar para Dora,
só poderia ser aceita por ela como manifestação do desejo se ela aceitasse
a si mesma como objeto do desejo, isto é, depois que houvesse esgotado
o sentido daquilo que procurava na Sra.K.Assim como em toda mulher, e
por razões que estão no próprio fundamento das mais elementares trocas
sociais (justamente nas que Dora formula nas queixas de sua revolta), o
problema de sua condição está, no fundo, em se aceitar como objeto do
desejo do homem, e é esse mistério, para Dora, que motiva sua idolatria
pela Sra.K., do mesmo modo que, em sua longa meditação diante da
Madona e em seu recurso ao adorador distante, ele a empurra para a
solução que o cristianismo deu a esse impasse subjetivo, fazendo da
mulher o objeto de um desejo divino ou um objeto transcedental do
desejo, o que dá no mesmo (idem, p. 221).
Essa leitura de Lacan vai se transformar substancialmente no contexto do
Seminário Mais, ainda (1972-73), momento em que Lacan enfatiza esse real que a
feminilidade encarna e que é de várias maneiras assinalado por Freud, como vimos, mas
nunca verdadeiramente tomado em suas conseqüências. E pode, a partir daí, elaborar a
problemática da feminilidade em termos do que a posição feminina exigiria para além ou
aquém – da referência ao falo.
1
Porém, é importante ressaltar que esta posição tardia de Lacan que não
trabalharemos aqui por fugir ao escopo de nosso esforço – não exclui a inserção das
mulheres na gica fálica. Sendo assim, não é uma incorreção dizer que as mulheres têm
que se haver com essa posição de objeto no desejo masculino como Lacan pontua em 1951,
ou seja, se haver com o fato de que estão inseridas na dialética do desejo. Acontece que
nem tudo na mulher (Lacan diz “não-toda” a mulher) se insere nesta gica, o que faz com
que essa dialética da ausência e presença do falo não conta de abarcar toda a questão
feminina. Assim, o que Lacan propõe é que o destino feminino não se esgota apenas nessa
1
Deixando aberta, até mesmo, a questão ou a possibilidade de pensar uma saída para o feminino para além do
falo e do objeto da fantasia masculina.
114
referência fálica, mas há algo suplementar, algo de uma relação com o real que as mulheres
acessariam a partir de certa posição e que os homens podem estabelecer pela
intermediação da fantasia. No entanto, para que se possa aceder a essa dimensão
suplementar, para que o real incida sobre o sujeito, é necessário que cada mulher passe pela
lógica fálica, passando pela condição de objeto que é a de todo sujeito.
Portanto, é por ainda não ter dado esse passo no desenvolvimento de sua obra que
Lacan só pôde apreender, em 1951, a ligação de Dora com a Sra. K. com relação à
homossexualidade, como o fez Freud a partir de sua autocrítica em 1923. Dora teria tido
que se ligar a uma identificação com o pai ou o irmão para, a partir de uma posição
masculina, saber do desejo de um homem por uma mulher, e só a partir disso saber do valor
de uma mulher no que se refere a esse desejo masculino. É por isso que Dora se acha nessa
posição de fascínio para com a Sra. K. É ela que personifica essa feminilidade que Dora
procura, o que não significa que haja uma formação de par sexual entre Dora e a Sra. K. Ao
contrário disso, Dora conclui que gostaria de ser amada por um homem, mais precisamente
pelo seu pai, do mesmo modo que a Sra. K.
Mas, para que Dora possa manter seu desejo, é preciso que nada no quarteto se
modifique; é preciso que a Sra. K continue a ser amada e desejada pelo seu pai e pelo seu
marido como aquilo que eles amam para além dela mesma. A partir disso, fica claro que a
frase que o Sr. K. diz na cena do lago joga por água abaixo todo o equilíbrio dessa dinâmica
de Dora.
Nesse processo vai se denunciar menos uma homossexualidade, no
sentido estrito, do desejo de Dora, do que a supervalorização que esta faz
da Sra.K. como encarnação da própria feminilidade, e a clivagem que ela
efetua assim entre a condição de objeto do desejo masculino e a condição
de mulher. Mediante a essa supervalorização e essa clivagem, Dora adota
finalmente um traço que Freud observou como pico da vida amorosa
masculina: a divisão entre duas mulheres uma hiperidealizada, que
suporta a figura da mãe respeitada e intocável, e outra, rebaixada ao nível
de prostituta, que simboliza o objeto sexual no sentido estrito. O fato de
que a lógica da histeria tenda assim a se moldar pelas regras da vida
amorosa masculina explica porque ela está impedida de responder à
pergunta que propõe: o que é uma mulher? (ANDRÉ,S., 1986, p. 151).
Dora parece apreender a feminilidade de uma maneira masculina, na medida
em que a evoca como algo de sagrado, como um segredo interno. O segundo sonho de Dora
115
descrito por Freud ilustra bem esse mistério que encarna para ela a Sra. K. mais
precisamente, o corpo dela. Esse sonho corresponde a uma geografia sexual simbólica”,
como descreve Freud. As associações de Dora desse sonho levam todas a uma relação
direta com o corpo feminino e culminam numa interrogação acerca do órgão genital. A
mulher aparece sob a figura de uma madona, figura que reúne duas imagens impossíveis de
serem conciliadas: a virgem e a mãe. A questão de Dora é realmente saber acerca dessa
feminilidade misteriosa que a Sra. K. encarna. É no momento em que o sonho aponta para
essa questão mais detidamente que ela se paralisa. O relato do sonho apresenta uma lacuna,
uma censura. Dora se paralisa diante do risco de descobrir o sexo feminino.
É num segundo tempo do sonho que Dora, como Freud fez no Sonho de
Injeção de Irma, tenta preencher essa lacuna, recorrendo a um dicionário onde são tratados
os temas que ela chama de ‘assuntos proibidos’. Ela tenta responder por meio do simbólico
(do dicionário) esse enigma do corpo feminino que se apresenta para ela no sonho, tenta
preencher a lacuna por meio da representação, que sexualiza o real do corpo e da
feminilidade em termos fálicos. Assim, no lugar da lacuna do sonho vem uma explicação
sexual que não é censurada, mas que é recalcada. A explicação então se desenvolve da
seguinte maneira: quando um dos primos teve apendicite, ela procurou o dicionário para se
instruir quanto aos sintomas. Esse fato é seguido por uma fantasia. Depois, de ela mesmo
ter se submetido a uma apendicectomia, passa a apresentar um sintoma de arrastar o pé
direito.
Freud acredita que esse sintoma está relacionado ao fato de Dora ter lido o
dicionário “proibido” e que por isso ela teria dado um “mau passo”. Afinal, quando ela lera
o dicionário havia se interessado por outras partes além das referentes a apendicite. que
isso teria ocorrido nove meses depois da cena do lago, Freud acaba por concluir que haveria
uma fantasia inconsciente de gravidez, na qual a operação de Dora teria representado o
parto. Dora não aceita essa interpretação de Freud e na sessão seguinte termina o seu
processo de análise.
Sob o âmbito da transferência, essa questão mostra que é a Freud que esse
segundo sonho de Dora se direciona. É a expectativa de Dora com relação a Freud que o
sonho aponta. Freud está no lugar do dicionário que Dora consultou sem encontrar a
resposta que buscava. A demanda de Dora é uma demanda de saber, saber a respeito do
116
corpo feminino. Ao mesmo tempo em que Dora quer saber, o sonho também aponta que
uma recusa ao saber, que Dora intui que nenhuma simbolização poderá dar conta de
nomear o vazio que tanto lhe interessa, o vazio que encarna o próprio órgão genital
feminino, que é censurado no sonho.
Aqui, é importante notar de que lugar Freud responde à busca de Dor. Ele
consegue dar resposta ao enigma feminino, como temos apontado nesse percurso, a partir
da ordem fálica, e é desse lugar que Freud responde a Dora. Sua resposta está em relação à
maternidade. Assim, sobre a questão de Dora acerca da feminilidade, do que é ser mulher,
Freud responde o que acaba por responder mesmo no momento final de sua obra, que a
verdadeira posição feminina está sempre relacionada com o desejo de ser mãe. É por isso
que Dora abandona a análise. Afinal, o que ela buscava saber estava muito além de
qualquer resposta que Freud poderia dar.
Assim, o caso Dora ilustra particularmente bem a posição da histérica com
relação à feminilidade. É a partir da sua própria questão acerca da potência paterna e de sua
capacidade de desejar. E, recusando-se a posição de objeto da fantasia masculina, a
histérica sustenta um questionamento que visa o limite edipiano e a potência do falo. A
histérica demonstra com seu discurso que o mito edipiano e a lógica fálica não dão conta de
dizer da mulher.
É nesse sentido também que Freud, tão imerso que estava com sua
descoberta recente do Complexo de Édipo, não consegue apreender a questão de Dora.
Desejando de qualquer maneira que ela reconhecesse sua posição de objeto de desejo
masculino não pôde perceber o que Dora verdadeiramente buscava saber e acabou
reforçando sua fantasia em que ela era objeto de troca entre seu pai e o Sr. K.
O caso de Dora é muito ilustrativo também com relação ao protesto da
histérica. Dora protesta contra a divisão subjetiva que lhe impede, coloca-a em posição de
impotência mesmo, de saber sobre o feminino. Ela protesta nessa busca sem êxito que faz
da Mulher, busca sem êxito, porque impossível, que o que ela procura o existe, não
nada que possa dizer da mulher enquanto um conjunto.
É nesse aspecto também que se evidencia como não foi por coincidência que
Freud mudou seu método de trabalho, que num primeiro momento, como vimos, era
estabelecido pelo desvendamento e relato ao paciente acerca das motivações inconscientes
117
e que depois passa a ser o método de associação livre. No período dessa mudança
metodológica, a clientela de Freud era basicamente de pacientes histéricos que rejeitavam,
em variadas ocasiões, as respostas que Freud ia formulando para seus sintomas. Freud
intuiu, então, que a posição de mestre não funcionava, que ele precisava deixar que o
próprio paciente chegasse e tivesse acesso ao seu inconsciente a partir do método que
desenvolveu de associação livre.
A posição de mestre pode paralisar um processo de análise se o analista
procurar impor, como vimos no caso Dora, à histérica a sentença que o inconsciente
enuncia.
Para além da lógica fálica da castração, o processo analítico revela, de
fato, ao sujeito que o objeto causa de desejo o objeto da pulsão sexual
é fundamentalmente assexuado, o que quer dizer que a sexualidade
humana não está ligada originalmente, a uma diferenciação entre sexos
sobre a qual o inconsciente permanece mudo. É na fantasia que o sujeito
procura dar figura de mulher a esse objeto, mas o esqueleto dessa
representação é um olhar ou um monte de excremento (ANDRÉ, S.,
1986, p. 15).
É importante salientar nesse ponto a questão da fantasia histérica, tema sobre
o qual Freud insistiu tanto em apontar a questão da bissexualidade. É que, diante dessa falta
de um significante próprio e distintivo da feminilidade, o sujeito faz uma divisão
imaginária, em que pode se colocar ao mesmo tempo nas duas posições da relação sexual.
Freud aborda essa questão no seu artigo “As Fantasias Histéricas e sua Relação com
a Bissexualidade” (1908) no qual formula que: “Os sintomas histéricos são a expressão, por
um lado, de uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro lado, de uma
feminina” (p. 153). Com essa formulação ele espera revalidar a tese de Fliess de uma
constituição bissexual de todos os seres humanos, mas o que ele verdadeiramente aponta
com essa questão de as fantasias histéricas colocarem o sujeito nos dois lados da relação
sexual é de que existe uma dupla modalidade de gozo presente na fantasia histérica. É a
divisão do sujeito histérico, então, que aparece nessas fantasias, um sujeito que busca se
situar na relação sexual, um sujeito em busca de alguma resposta para o enigma da
sexualidade.
118
______________________________________________________________
Capítulo 4:
A virada da obra freudiana: impasses e avanços sobre a problemática da
feminilidade e da sexualidade feminina na segunda tópica
_______________________________________________________________
119
No capítulo 4, trata-se da questão da feminilidade a partir da segunda tópica
freudiana. Analisa-se como a concepção da pulsão de morte transforma toda a abordagem
freudiana acerca do feminino, gerando um avanço em alguns pontos importantes. Mostram-
se os impasses e avanços de Freud no que tange à problemática da feminilidade a partir
desse passo tão importante que foi a concepção de uma pulsão que não se inscreve, uma
pulsão que tende ao inanimado e que Freud chamou de “pulsão de morte”.
Inicialmente, toma-se a concepção freudiana da pulsão de morte e a virada que opera
sobre a noção de masoquismo a qual Freud relaciona ao feminino. Trata-se, a seguir, da
teoria de Freud da sexualidade feminina, a partir da segunda tópica, sublinhando os avanços
teóricos, principalmente no que se refere à nova abordagem do que Freud chamou de
“período pré-edípico” nas mulheres. Assinalam-se, também, os impasses a que Freud
chegou com relação à problemática da feminilidade ao fim de sua trajetória e o campo, em
aberto, que ele logra delimitar sobre o tema.
4.1 Pulsão de morte e masoquismo
Com relação propriamente às pulsões de morte, a teoria freudiana passa por vários
desdobramentos até que o próprio Freud possa admitir uma pulsão que busca mesmo a
volta ao inanimado presente de forma inegável no ser humano. Desde o Projeto... (1895),
Freud preconiza uma tendência humana à inércia, que denomina, naquele momento, de
princípio de constância
1
, o qual corresponderia ao princípio do prazer ou seja, manter
as estimulações ao nível mais baixo possível. Em Estudos Sobre a Histeria (1893-95), ele
retoma essa idéia. Mas dessa vez é Breuer que vai desenvolvê-la no capítulo que escreve
nessa obra:
Mas essa hipótese sica foi formalmente enunciada e designada pela
primeira vez em 1895, na segunda parte da contribuição de Breuer ao
1
Tendo em vista que Q = que distingue a atividade do repouso, Freud acrescenta sobre as pulsões de vida
que, ao contrário do que acontece com os estímulos externos, no caso desse estímulo interno e incessante, “o
sistema nervoso é obrigado a abandonar sua tendência original à inércia (isto é, a reduzir o nível [da Q a
zero). Precisa tolerar [a manutenção de] um acúmulo de Q suficiente para satisfazer as exigências de uma
ação específica. Mesmo assim, a maneira como realiza isso demonstra que a mesma tendência persiste,
modificada pelo empenho de ao menos manter a Q no mais baixo vel possível e de se resguardar contra
qualquer aumento da mesma — ou seja, mantê-la constante [ ...]” (1950 [1895], p. 349).
120
presente volume. É curioso que esta, a mais fundamental das teorias de
Freud, tenha sido integralmente examinada, pela primeira vez, por Breuer
(se bem que, de fato, atribuída por ele a Freud), e que o próprio Freud,
embora retornasse vez por outra a seu tema (como nas primeiras páginas
de seu artigo sobre “As Pulsões e suas Vicissitudes”, 1915), não a
mencionasse explicitamente até escrever Além do Princípio do Prazer
(1920g) (FREUD,S.,1893-1895,Obras Completas-Notas do Editor).
Nas primeiras páginas de As Pulsões e suas Vicissitudes (1915), Freud coloca a
correlação entre o princípio do prazer e o princípio da inércia em dúvida. Porém, uma
distinção entre os dois princípios é elaborada com o conceito de pulsão de morte em
Além do Princípio do Prazer (1920).
Em 1920, o dualismo das pulsões que Freud apresentara até esta data como sendo
a distinção entre a pulsão sexual e a pulsão do eu é então substituído pela polaridade
pulsão de vida, ou Eros, e pulsão de morte. Para a elaboração desse conceito, Freud parte
de situações incompatíveis com o princípio do prazer, que ele julgava estar no centro de
todo o psiquismo. Toma como exemplo situações em que o recalque gera uma satisfação
direta ou substitutiva e o eu vive isso como um desprazer ou aquelas em que as pulsões
resistem ao princípio da realidade
1
, gerando igualmente desprazer.
Somando-se a isso, Freud observa que a compulsão à repetição em várias das suas
manifestações atua em oposição ao princípio do prazer, como se houvesse, segundo ele,
uma força demoníaca em ação:
[...] a compulsão à repetição também rememora do passado
experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que
nunca, mesmo longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para
impulsos instintuais que desde então foram reprimido (FREUD,
S.,1920, p. 31).
A compulsão à repetição testemunhada na neurose traumática, na transferência e no
impulso das crianças para brincar coloca Freud diante de uma repetição que traz à tona
lembranças que não incluem e nunca incluíram nenhuma possibilidade de prazer ou
satisfação
2
. A partir desse defrontamento, Freud (1920) conclui que na compulsão à
repetição há presença de uma pulsão:
1
Entendido como o adiamento da satisfação momentânea para que a satisfação possa ocorrer num momento
posterior.
2 [...] existe realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer, como
também ficaremos agora inclinados a relacionar com essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses
traumáticas e o impulso que leva as crianças a brincar” (Ibid., p. 33).
121
Mas como o predicado de ser ‘instintual’ se relaciona com a
compulsão à repetição? Nesse ponto, não podemos fugir à suspeita
de que deparamos com a trilha de um atributo universal dos
instintos e talvez da vida orgânica em geral que ao presente não
foi claramente identificado ou, pelo menos, não explicitamente
acentuado. Parece, então que um instinto é um impulso, inerente à
vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso
que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de
forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de
elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão
da inércia inerente à vida orgânica
1
(p. 47).
Essa expressão da inércia foi então denominada de “pulsão de morte”, inaugurando
um novo dualismo das pulsões:
Nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda
mais definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos
a oposição como se dando, não entre instintos do ego e instintos
sexuais, mas entre instintos de vida e instintos de morte (Idem, p.
63).
Em 1924, a partir da questão do masoquismo
2
, Freud postula que o princípio do
prazer e o princípio do Nirvana são separados. O primeiro está a serviço da libido ou da
pulsão de vida e o segundo, à pulsão de morte, pulsão conservadora que pretende que o
organismo volte ao estado inanimado. Portanto, a pulsão de vida derivaria da pulsão de
morte, mais primitiva; e seria uma transformação desta.
Em O Problema Econômico do Masoquismo (1924), Freud retoma a questão do
masoquismo, concluindo pela existência de um masoquismo original, e não derivado do
sadismo, como ele acreditava até 1920. Até então, Freud não podia conceber uma pulsão
que originalmente se voltasse contra o próprio. Isso só seria possível a partir de uma
vicissitude da pulsão. A questão, portanto, é que até 1920 não haveria no psiquismo lugar
para algo que não atendesse, ainda que indiretamente, aos objetivos do eu. Não havia lugar
para a questão de uma pura intensidade, que a pulsão de morte recoloca na obra freudiana.
O masoquismo será então concebido como proveniente da pulsão de morte que fica
como resto, numa operação em que a libido expulsaria parte dessa pulsão para fora, na
forma de agressividade ou sadismo. Assim, com o advento do conceito de pulsão de morte
o masoquismo passa a ser original. Freud, entretanto, mantém a associação do masoquismo
1
Grifos do próprio autor.
2
FREUD, S., O Problema Econômico do Masoquismo (1924).
122
e passividade. Ou seja, o masoquismo estaria presente em qualquer atitude passiva em
relação à vida sexual ou ao objeto sexual. O caso mais extremo seria aquele em que a
satisfação se condiciona ao sofrimento de dor física ou psíquica infligida pelo objeto.
Nesse texto, Freud define três formas de masoquismo:
O masoquismo apresenta-se à nossa observação sob três formas:
como condição imposta à excitação sexual, como expressão da
natureza feminina e como norma de comportamento (behavior).
Podemos, por conseguinte, distinguir um masoquismo erógeno, um
masoquismo feminino e um masoquismo moral. O primeiro
masoquismo, o erógeno prazer no sofrimento jaz ao fundo
também das outras duas formas (p. 179).
O masoquismo moral, que se apresenta sob forma do sentimento de culpa
inconsciente, tinha sido reconhecido há pouco pela psicanálise, apesar de se ajustar
perfeitamente à teoria que ele institui sobre o masoquismo. Em contrapartida, afirma Freud,
o masoquismo feminino é o mais fácil de ser reconhecido. É possível reconhecê-lo de
diversas maneiras, mesmo a partir da fantasia de homens. Assim, o masoquismo seria
feminino, porque estaria relacionado a uma posição passiva com relação ao ato sexual, que
para Freud corresponderia a uma posição feminina.
Ele conclui que essas fantasias masoquistas masculinas remetem a um desejo de ser
tratado como uma criança desamparada, ou seja, como objeto que completa a mãe, nessa
primeira relação plena com o Outro inicial, à qual Freud passará a dar a devida
importância a partir da formulação da pulsão de morte. É interessante observar que essas
fantasias remetem a uma posição que, segundo Freud, é caracteristicamente feminina,
exatamente porque relacionada com a passividade. E remetem ao desejo, que Freud
entende, nesse momento, como o desejo de ser castrado, de ter um filho.
É importante salientar então, a leitura de Freud desse desejo de ser castrado, que é, ao
mesmo tempo, um desejo e um horror para o sujeito. O desejo de ser castrado nesse
momento da interpretação freudiana está diretamente conectado com essa primeira ligação
com a mãe, em que tudo falta para o sujeito e é ao Outro que se está completamente
submetido. É a essa primeira experiência de satisfação que Lacan denominou de “gozo”
(ver capítulo 3) que acaba funcionando como enigma para o sujeito, que está ligado a
esse desejo de ser castrado, vivido na fantasia masculina como um desejo, mas também
como um horror para o sujeito.
123
O que aparece na fantasia então é essa repetição da relação primeira com o Outro, em
que essa satisfação, esse gozo, que ainda não foi sexualizado, representado, é posto em
cena. É a tentativa de representação dessa experiência primeira de satisfação, vivida como
traumática por sua incidência real, não simbolizada, que engendra esse estranho desejo, que
remete também à problemática da castração, pois não é tanto a castração do próprio sujeito
que aparece como intolerável, mas sim a castração do Outro, principalmente do Outro
materno, cuja representação desemboca no feminino. Na fantasia masoquista, trata-se do
Outro inicial como mãe fálica, não castrada. Por intermédio dela, o sujeito repete essa
relação primeira em que a passividade está diretamente ligada com a demanda de amor, a
qual Demanda que testemunha um desejo de completude, de que nada falte nem ao sujeito,
nem ao Outro e que encobre a questão da estimulação zero, representado pela pulsão de
morte.
Assim, o masoquismo aponta para algo dessa intensidade não representada e que
Freud define como sendo a pulsão de morte. Isso porque nas fantasias masoquistas o sujeito
abdica da sua posição de sujeito e se coloca a reviver a relação primeira com o Outro,
colocando-se numa posição de causar o desejo do Outro. Tal troca é feita porque a
satisfação (e, ao mesmo tempo, o desespero e a angústia) está exatamente em que, a partir
dessa posição, o sujeito pode desaparecer. Em fantasia aparece como sendo “devorado” por
um Outro que trataria de completar, possibilidade terrível, mas ainda assim uma
possibilidade (de completar o Outro) que retira o sujeito da posição daquele que tem diante
de si a impossibilidade que constitui seu próprio desejo.
Enfim, a relação do masoquismo com o feminino que Freud insiste em destacar,
coloca-se no horizonte da repetição desse encontro com um gozo primeiro, real, indizível
que o sexo feminino encarna. Mais isso do que simplesmente subsumir esse encontro à
questão da passividade. Como a compulsão à repetição, que impele o sujeito a repetir a
cena traumática, numa tentativa de representá-la, o masoquismo, colocado como esse resto
de pulsão de morte que permanece no corpo, poderia ser uma maneira de tentar fazer borda,
representar, por meio das fantasias e dos próprios atos, o inominável da feminilidade como
encontro com o que fica necessariamente fora da rede de representações e convoca o sujeito
a se arriscar no ato.
124
O conceito da pulsão de morte, então, é de extrema importância para nosso estudo da
feminilidade, porque reabre um espaço na obra freudiana que havia sido dissipado, como
visto no capítulo 2, o qual Esse espaço é o espaço do irrepresentável, daquilo que não cessa
de se repetir porque não pode ser representado, ou, como indica Lacan, do real.
A pulsão de morte marca a retomada da questão econômica na metapsicologia
freudiana, já que é no confronto entre a força e a representação que o conceito de pulsão de
morte pode advir. Nesse sentido, portanto, a compulsão à repetição surge na tentativa do
inconsciente de fazer inscrever isso que foge ao simbólico, tentando dar sentido e
ordenação ao inominável da experiência traumática, o resto que sempre sobra da cadeia de
significantes.
A pulsão sexual diferencia-se, ainda nesse aspecto, absolutamente, da pulsão de
morte, como aponta Freud (1920), mesmo que uma não exclua a outra e que as duas atuem
simultaneamente. A pulsão sexual é marcada pela representação e ordenação decorrente do
processo simbólico. Assim, na pulsão sexual há a presença do Outro, que as palavras
para aquilo que pulsa e que pode então ser representado e entrar nas leis da linguagem. Ela
está então na base do desenvolvimento sexual, incidindo sobre o corpo, marcando as zonas
erógenas e o próprio corpo, atuando como borda entre o real e o simbólico.
A pulsão de morte, de outro lado, entra na obra de Freud como uma verdadeira
revolução, pois acusa algo que está fora da representação e também fora da obra freudiana,
que tendia, como todo sistema de representação, a ir afastando-se deste ponto indicado
desde o início da obra: a dimensão do real que não se inscreve. A pulsão de morte se põe
exatamente naquilo que o Outro não pode dar como representação, porque ele mesmo não
tem. É o furo da linguagem, onde ela não alcança; é o resto que, mesmo sem se inscrever, e
justamente por isso, pulsa. Faz marca no aparato. Por não se inscrever, retorna e permanece
como algo disjunto dele.
A pulsão de morte coloca o sujeito diante de um desamparo fundamental, devido à
exigência constante que faz do encontro com essa intensidade impossível de se representar
e, portanto, traumática para o psiquismo. Assim, quando a representação nos falta à pessoa,
ela se encontra com esse desamparo vivido pelo humano como o trauma e é nesse sentido
que a pulsão de morte se caracteriza como traumática que remonta a origem mesmo do
trauma: a impossibilidade de dizer desse real que causa.
125
É nesse sentido também que a pulsão de morte se aproxima da feminilidade. A
feminilidade tem essa mesma propriedade real de não se inscrever, que não há nada,
nenhum significante, que a diga como tal. Não modelo que a represente. Está fora da
cadeia significante, fazendo com que retorne sempre, como Freud (1932[1933]) mesmo
admite, como um enigma. É nisso também que é traumática e repudiada Freud mostra
esse repúdio por toda sua obra e, mais propriamente, no Tabu da Virgindade (1917/1918)
—por parte tanto dos homens quanto das mulheres.
É importante salientar que o termo feminilidade (em alemão, Weiblichkeit) aparece
com mais preponderância na obra freudiana a partir de 1920. Não parece coincidência que
o uso mais freqüente desse termo venha ao mesmo tempo da fundamentação da questão da
pulsão de morte. É a problemática mesmo da feminilidade que é retomada a partir da pulsão
de morte, abrindo espaço para esse “enigma” que Freud tenta, por todo seu percurso,
abordar, mas que sempre lhe escapa.
Assim, principalmente no seu artigo “Análise Terminável e Interminável(1937), o
sentido do termo feminilidade denota exatamente aquilo que no psiquismo aponta para um
mais além das dualidades que para Freud são parte integrante do psiquismo. A feminilidade
estaria, portanto, num mais além da lógica fálica e se aproxima, portanto, da pulsão de
morte enquanto real, não representado. Na teoria freudiana, esse conceito teria um estatuto
semelhante à compulsão à repetição, à pulsão de agressividade ou de destrutividade, todos
esses relacionados diretamente com a pulsão de morte.
Nas mulheres, também, o esforço por ser masculino é
egossintônico em determinado período a saber, na fase fálica,
antes que o desenvolvimento para a feminilidade se tenha
estabelecido. Depois, ele sucumbe, ao momentoso processo de
repressão cujo desfecho, como tão freqüentemente foi
demonstrado, determina a sorte da feminilidade de uma mulher
1
(FREUD,S, 1937, p. 268).
Ou, ainda:
O repúdio a feminilidade pode ser nada mais do que um fato
biológico, uma parte do grande enigma do sexo (Idem, p.270).
Freud sublinha nessas passagens que há um desenvolvimento, um trabalho, que cada
mulher tem que empreender para avançar sobre aquilo que ele chamou de “feminilidade” e
que esse desenvolvimento depende de como cada mulher vai se posicionar diante da
1
Grifos nossos.
126
lógica fálica, a partir do processo de recalcamento. A feminilidade e o conseqüente repúdio
da mesma, então, são colocados como parte desse enigma que o sexo mais precisamente,
na obra freudiana, o sexo feminino carrega e que ele define como algo que se aproxima
do biológico, precisamente por escapar ao simbólico. Freud então “pede ajuda” ao
biológico, porque intui que chegou mesmo no cerne da questão, ao limite do processo
analítico, já que a análise, que ele concebia pode “dar conta” daquilo que é passível de
representação. O que a castração aponta é que no seu mais além há algo que não é
simplesmente uma ausência, mas sim um indizível. O que Freud não pôde apreender é que
o entrave não estava exatamente na castração ou na inveja do pênis, pois, para além dessa
reivindicação fálica, havia a questão da feminilidade, que permanecia não-descoberta.
A questão da feminilidade aponta para esse domínio das intensidades puras, que
Freud passou a considerar de forma mais evidente a partir da segunda tópica. A
feminilidade aponta para um mais além do sexual; é a marca de uma posição identificatória
impossível. Refere-se à própria inacessibilidade de se alcançar este objeto que venha
completar a falta no sujeito. Assim, é sobre esse enigma que o sistema simbólico se
organiza, apontando mesmo para um limite da estrutura, de caráter incognoscível,
inacessível, mas que, ao mesmo tempo, insiste em se fazer representar.
É nesse sentido também que o encontro com a feminilidade é essencialmente
traumático (ver capítulo 3). O encontro com a feminilidade trata-se exatamente do encontro
com esse real dessexualizado, que não se inscreve no corpo feminino pela falta significante.
No fim de seu percurso, Freud trata da questão da angústia do real como aquilo que
advém do encontro com essa intensidade traumática para o psiquismo, o que mostra
claramente a necessidade do aparato de manter um processo de elaboração constante na
tentativa de absorver o impacto traumático da pulsão.
4.2 Freud e a teoria da sexualidade feminina a partir da segunda
tópica
Freud, a partir da segunda tópica, retoma o tema da sexualidade feminina que sofre
algumas transformações fundamentais. Nesse momento de sua obra, faz suas considerações
127
finais sobre os destinos e a singularidade da sexualidade feminina. não postula uma
simetria no desenvolvimento sexual de meninos e meninas, mas, ao contrário, encontra-se
preocupado em estabelecer como se dariam as diferenças.
O grande passo que Freud dá a partir da segunda tópica, corresponde à atenção que se
volta ao período pré-edípico feminino, o que acaba por levá-lo a uma nova teorização
acerca da sexualidade feminina. Entre 1919 e 1925, a teoria freudiana muda de direção e
passa a ser marcada principalmente em Psicogênese de um Caso de Homossexualidade
Feminina (1920), A organização Genital Infantil (1923), A Dissolução do Complexo de
Édipo (1924) e Algumas Conseqüências Psíquicas da Diferença Anatômica entre os Sexos
(1925). É a partir deste último que a teorização sobre a sexualidade feminina amadurece e
se abre para as produções finais de Freud, em que ele trata especificamente sobre o tema:
“A Sexualidade Feminina” (1931) e “Feminilidade” (1933[32]).
É importante marcar essa mudança de posição de Freud a partir da segunda tópica,
pois, se até 1919 o ponto de origem da problemática feminina estava situado com relação a
uma fixação amorosa ao pai e a única saída possível para a mulher seria uma identificação
masculina, a partir de 1925 o ponto de origem da problemática feminina passa ser a mãe e o
desvio dessa fixação materna em direção ao pai passa a ser exatamente o que assegura uma
posição feminina. Assim, se no primeiro momento o Complexo de Édipo aparece como o
fundador mesmo dessa perversão feminina, que o complexo de masculinidade representava,
nesse segundo momento uma virada: a entrada no Complexo de Édipo passa ser a via de
possibilidade de uma posição feminina para a mulher.
Essa modificação da concepção da sexualidade feminina em Freud passa por todo
um percurso, em que ele parece estar mesmo interessado em sair do impasse que a
teorização da primeira tópica coloca o destino feminino. Em Psicogênese de um Caso de
Homossexualidade Feminina (1920), Freud vai verificar que a origem da homossexualidade
da jovem que ele atende não tem relação com uma fixação no pai, como ele esperava que
fosse, mas que, ao contrário disso, o que verdadeiramente há é uma fixação amorosa
anterior, a fixação à mãe. Surge então o que Freud vai chamar de “pré-história do Édipo”, e
essa pré-história acaba por mudar radicalmente a visão freudiana da sexualidade feminina.
Assim o caso da jovem homossexual inaugura um outro foco na obra freudiana, que
se baseava quase que totalmente no complexo paterno, mas que a partir de então passa a
128
voltar-se para a relação primeira com a mãe. Entretanto, ao mesmo tempo em que esse caso
inaugura esse novo foco, ele também gera novas questões, pois a partir de então o que se
verifica é que a homossexualidade da menina passa a ser uma possibilidade da própria
estrutura do Édipo feminino, sendo, até mesmo, um elemento base desse. Afinal, toda
menina passa por essa primeira relação com a mãe, em que, segundo Freud, ela adotaria
uma posição masculina para com esta. Assim a questão que se coloca verdadeiramente é:
Como escapar a essa posição homossexual a que toda mulher estaria exposta na primeira
infância? Abre-se, outra vez, um espaço na obra freudiana para se pensar especificamente
uma posição propriamente feminina que parece ser sempre muito difícil de ser apreendida,
haja vista todos esses impasses e dificuldades que Freud vai se deparando em seu percurso
de desvendamento da sexualidade feminina e da feminilidade.
O próximo passo que Freud em direção ao desvendamento da sexualidade
feminina é com relação à primazia do falo. Em seu artigo “A Organização Genital Infantil”
(1923)
1
, o avanço que Freud revela relaciona-se ao conceito de falo, e não mais ao pênis. O
que vem à luz é que para ambos os sexos o que é a primazia disso que representa
exatamente o que falta para ambos os sexos, o representante do objeto de desejo por
excelência. O que sai de foco, então, são os órgãos sexuais de maneira genérica para ambos
os sexos, como exposto nos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (1905), e entra o
falo como único órgão sexual a manifestar-se por sua presença e ausência. Nesse artigo,
Freud não avança com relação à questão feminina especificamente. Ao contrário, ele
reforça o desconhecimento da psicanálise acerca da sexualidade feminina e descreve o
Complexo de Castração unicamente pelo lado do sexo masculino:
Infelizmente, podemos descrever esse estado de coisas apenas do
ponto de vista em que afeta a criança do sexo masculino; os
processos correspondentes na menina não conhecemos (FREUD,
S., 1923, p.158).
Apesar disso, Freud faz um relato muito ilustrativo da descoberta da castração pelo
menino, que teria o interesse despertado pelo órgão genital devido às satisfações obtidas
pela manipulação do mesmo, o que segundo ele, acaba por desencadear uma pesquisa
1
“Ao mesmo tempo, a característica principal dessa ‘organização genital infantil’ é a sua diferença da
organização genital final do adulto. Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, entrar em consideração
apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos
genitais, mas uma primazia do falo” ( Freud, S., 1923, p. 158).
129
sexual. A pesquisa traz um resultado um tanto intrigante para o menino de que, na verdade,
nem todas as pessoas possuem pênis.
É da relação especular do menino diante dessa descoberta que essa marcação de
Freud sobre as pesquisas sexuais dos meninos apresenta toda sua riqueza. Ele descreve que
a primeira reação do menino em relação ao órgão sexual feminino é a de recusa. um
verdadeiro passo atrás no que tange a esse primeiro encontro com a falta pelo menino, a
ponto de Freud (1908) sugerir que os próprios órgãos sensoriais negam esse primeiro
encontro com a castração. Assim, o menino constrói uma teoria que contraria o que ele
realmente vê. Ele atua construindo uma primeira resposta simbólica que atue em relação a
esse encontro com o sexo feminino, para, exatamente, recobrir essa descoberta, esse
encontro, que aponta para esse real do órgão sexual feminino, essa ausência de falo, que
fica sem significante. Assim, a primeira teoria que o menino formula em relação a isso é a
de que, na verdade, todos têm o pênis, mas em algumas pessoas ele ainda não cresceu.
Num segundo momento, essa teoria não mais conta de tamponar essa falta. O
menino vai vendo que realmente pessoas que não têm o órgão e acaba por fazer uma
nova interpretação desse espetáculo real que ele presenciou. Ele formula então a teoria de
que o órgão existira, mas que fora retirado como punição. A tal castração, ele mesmo
pode estar sujeito. Assim, Freud elabora com essa passagem que a teoria da castração seria
formulada pelo sujeito masculino, diante desse encontro com o sexo feminino. Ou seja, a
única resposta simbólica possível diante desse esse encontro é a da castração: de uma
ausência, um resto de presença, que recobre algo que nunca existiu.
Freud acrescenta ainda nesse artigo que o menino chega ao resultado de que a
castração é generalizada para todas as mulheres depois de várias teorias e exaustiva
pesquisa. O menino acredita, a princípio, que apenas seres desprezíveis perderam o pênis,
mas que outras mulheres, como sua mãe, o mantém. mais tarde, quando entende a
origem dos bebês, é que faz a generalização de que todas as mulheres, inclusive a sua mãe,
não têm pênis.
Freud conclui o artigo fazendo uma correlação entre as fases do desenvolvimento
sexual e as antíteses presentes em cada fase. Há, primeiramente, a antítese entre o sujeito e
objeto. Depois, na fase sádico-anal, a antítese entre o ativo e passivo. E, então, na fase
fálica, ocorre a antítese entre o masculino e ser castrado, que existe apenas a
130
masculinidade, e não a feminilidade nesse ponto. Para ele, é na puberdade que a antítese
masculino-feminino é levada em consideração, em que o masculino é igual à atividade e
posse do pênis e o feminino é igual à passividade, sendo a vagina valorizada finalmente
como abrigo do pênis.
Aqui, Freud, mais uma vez, apega-se a essa significante passividade para que a
antítese masculino e feminino possa se estabelecer. Mesmo que ele avance nesse artigo
apontando que a única antítese possível, em termos simbólicos, é a masculino- castrado, ele
aqui tenta, mais uma vez, definir a feminilidade por esse significante, o que acaba por
encobrir o que seu percurso vai cada vez mais evidenciar: a feminilidade não faz par de
oposto com a masculinidade, que não essa relação de simetria, ou paralelismo, possível
entre esses dois termos. Porém, a posição de Freud é a de sempre tentar desvendar, por
meio do simbólico, essa questão feminina. É isso que acaba gerando os impasses em sua
obra acerca da feminilidade.
Em A Dissolução do Complexo de Édipo (1924), Freud situa definitivamente o
Complexo de Édipo como fenômeno central da primeira infância. Se antes ele era tido
como apenas uma das etapas do desenvolvimento libidinal, agora passa a ser o eixo central
do desenvolvimento sexual e dos destinos da sexualidade infantil. Nesse artigo, Freud
descreve esse complexo infantil novamente pela via masculina, representando-o pelo amor
à mãe e rivalidade ao pai. O amor dedicado à mãe é destruído pelo Complexo de Castração,
que o medo de ser castrado, como a mãe, e a repugnância que a castração desta causa
acabam por gerar um afastamento, que provoca o abandono dos investimentos libidinais,
que são substituídos por identificações. O pai acaba sendo introjetado, e forma-se o núcleo
do supereu, que perpetua a proibição contra o incesto.
Até esse ponto com exceção do caso da jovem homossexual, em que Freud
avança com relação ao período pré-edípico Freud descreve a problemática somente do
ponto de vista da sexualidade masculina. É em Algumas Conseqüências Psíquicas da
Diferença Anatômica entre os Sexos (1925) que ele introduz a problemática da sexualidade
feminina sob novo ponto de vista.
Freud, nesse momento, está ocupado em responder à questão que se abre em 1920
com o caso da jovem homossexual, a qual pode ser demarcada como a de saber se essa
relação ao pai, que na menina se instaura a partir do Complexo de Édipo, é apenas um
131
deslocamento da relação com a mãe ou se, verdadeiramente, ela imprime alguma mudança
que aponte para uma posição feminina.
É importante salientar que Freud retoma, nesse momento, um percurso que iniciara
vinte anos antes, quando formulou o projeto de dominar o “obscuro poderio do sexo
feminino”. O que ele parece empreender com esse projeto é uma tentativa constante — para
a qual tem-se nesse percurso — de capturar essa feminilidade a partir do registro simbólico,
da primazia do falo. Entretanto, nesse momento de sua obra ele vai se deparando com outro
obstáculo a esse projeto: constata que a relação com o pai nunca faz desaparecer para a
menina a relação primária à mãe. O impasse a que Freud chega é o de que a conseqüência
disso faria surgir uma relação estrutural de homossexualidade nas mulheres, o que o leva a
empreender um trabalho de desvendamento dessa relão primeira para saber o que
realmente se passa entre uma menina e a mãe.
Esse percurso se inicia em 1925, quando Freud formula que a relação da menina com
seu pai seria apenas uma transferência de uma relação inicial com a mãe. Ele introduz com
essa idéia uma dessimetria fundamental entre o Édipo feminino e o masculino, o que
acrescenta uma diferença fundamental entre o desenvolvimento sexual feminino e o
masculino: uma diferença na entrada e saída do Complexo de Édipo.
Assim, o menino entraria no Complexo de Édipo exatamente porque a relação
primeira que tem é de amor à mãe, e o pai apareceria como um rival que separaria o filho
do amor da mãe. Portanto, o menino só sairia do Complexo de Édipo a partir da ameaça de
castração que a conclusão de que sua mãe é castrada lhe traz. O que acontece na menina, a
partir desse novo enfoque de Freud, é diferente, na medida em que a primeira relação de
objeto que tem e que marca profundamente seus anos mais fundamentais do
desenvolvimento sexual é com a mãe. É a partir da conclusão de que sua mãe é castrada
e de que, portanto, ela mesma é castrada é que pode, a partir da hostilidade agora dirigida à
mãe, voltar-se ao pai como detentor daquilo que ela não tem. Assim, a partir desse enfoque
no período pré-edípico, é o Complexo de Castração que introduz a menina no Complexo de
Édipo.
O que o artigo de 1925 traz como avanço para obra freudiana é a demarcação da
maneira pela qual o primado do falo se revela para um e outro sexo. O ingresso no
Complexo de Castração ocorre para ambos, mas de maneiras diferentes. Freud sinaliza que
132
a anatomia não suscita o mesmo tipo de reação para o menino e para a menina. Cada um
reage de uma maneira diferente. No menino, há uma duvida: ele se movimenta em busca de
outras informações e constrói teorias sobre aquilo que vê. A menina compreende no
primeiro momento; ela vê e sabe que não tem (sabe também que nunca teve), e o mais
importante é que ela sabe que quer ter.
A diferença entre o desenvolvimento sexual dos indivíduos do sexo
masculino e feminino no estádio do desenvolvimento que
estivemos considerando é uma conseqüência inteligível da
diferença anatômica entre seus órgão genitais e da situação
psíquica aí envolvida (FREUD,S, 1925, p. 285).
O que Freud desenvolve com o “complexo de masculinidade” da menina, nesse ponto
de sua obra, apóia-se nesse primeiro encontro com a diferença anatômica. É no momento
em que o pênis, que ela instantaneamente conclui que não o tem e a partir daí pode se
colocar de duas maneiras: ou ela acredita que ainda pode ter o pênis um dia, o que a
tornaria semelhante aos meninos; ou denega essa constatação e recusa-se a reconhecer o
que lhe falta, obstinando-se a agir como um homem.
Assim, as diferentes reações do menino e da menina são resultados dessa descoberta
anatômica. Do lado do menino, a anatomia nada mostra, a não ser um furo, ou seja, alguma
coisa que só pode ser significada a partir do conceito da falta. É nesse aspecto que entra em
jogo o valor da ameaça de castração para o menino, que acaba por fornecer o conceito de
significante do falo. Portanto o menino, tampona o furo por aquilo que ele chama de
“falta”, de “ausência”. E é nesse confronto que ele pode apreender o falo como significante
para mais além do pênis, no sentido de que é a partir desse confronto anatômico que
apreende que ele também é faltante.
O menino não encontra nem um signo que possa dizer do sexo feminino quando ele
se defronta com a anatomia feminina, o que acaba por fazê-lo empreender um esforço
simbólico para dizer disso que como furo. A menina, ao contrário, logo num primeiro
instante, percebe algo que lhe diga sobre o sexo masculino: o pênis. Sobre isso, André
(1986) esclarece que o menino apreende a castração a partir do registro simbólico, pois ali
ele encontra uma falta de significante, a qual ele interpreta a partir de um significante que
remeta a essa falta. a menina aborda o sexo oposto a partir de uma imaginarização,
atribuindo ao pênis a função de signo de uma identidade sexual da qual se sente privada.
133
Freud alerta para o que ele chamou de “inveja do pênis”, que emerge no momento
mesmo em que a menina esse “traço identificatório” do sexo do seu pai e que lhe abre o
caminho para o complexo de masculinidade. Freud mostra que isso não fica sem
conseqüência com relação à maneira que a menina considera a mãe e nem ao julgamento
que faz de seu próprio corpo.
A primeira dessas conseqüências seria um sentimento de inferioridade. A castração
atuaria como uma ferida narcísica para a menina. É nesse vel das identificações que a
inveja do pênis deixaria sua primeira marca no psiquismo feminino. O que se e em jogo
aqui é que, ao deparar-se com a identificação sexual masculina, com o pênis, que ela
apreende como um signo da própria masculinidade, a menina conclui que para seu próprio
sexo não nada que a posicione. Freud pontua, então, que a menina acaba por partilhar o
desprezo do menino ao sexo feminino.
A segunda conseqüência da inveja do pênis seria o ciúme feminino, que se põe, mais
uma vez, com relação ao narcisismo. Para Freud, esse ciúme feminino seria sempre com
relação à imagem do Outro. Isso significa dizer que a mulher teria ciúmes dessa imagem
fálica que supõe num homem ou numa mulher e da qual sabe que ela mesma foi privada.
A terceira conseqüência da inveja do pênis é abordada por Freud com mais
veemência em 1931. Trata-se de um “afrouxamento” da ligação primeira com a mãe. A
filha acusa a mãe de o lhe ter dado aquilo que lhe falta. E, portanto, acusa-a de ser
responsável pela falta de identificação possível para seu sexo. É preciso ressaltar que o
protesto da menina nesse aspecto coloca-se exatamente sobre o fato de o sexo feminino
permanecer não descoberto.
Freud acrescenta que para a menina resta a identificação materna, haja vista que
identificar-se com a mãe é algo muito diferente de uma identificação feminina possível.
Assim, essa identificação com a mãe é profundamente ambivalente, principalmente porque,
com a descoberta da castração, a menina descobre que, além dela, sua mãe também é
castrada.
O último ponto que Freud aponta sobre as conseqüências da inveja do pênis, em
1925, é a de que essa provoca uma intensa reação contra a masturbação clitoridiana, que
representaria para ela, a partir de então, uma humilhação narcísica. Sob esse aspecto, ela se
recusa a obter satisfação desse órgão a menos que a faça sentir-se inferior em relação ao
134
sexo masculino. Freud, nesse ponto, traz, mais uma vez, à cena a questão da atividade e da
passividade. Para ele, essa inibição masturbatória gerada pela inveja do pênis seria a
alavanca que direcionaria a menina a aceitar a feminilidade.
Esse encontro da castração pela menina seria, então, cheio de conseqüências para o
seu narcisismo. Parece que Freud está mesmo apontando que nessa relação primeira com a
mãe o que está em jogo é uma relação em que o narcisismo é resguardado e que é apenas
no encontro com a falta que essa posição narcísica pode ser, de alguma maneira, rompida.
Mas, como Freud pontua, essa relação primordial não é completamente “superada” pelas
mulheres. um resto dessa relação que fica, e talvez seja por conta desse resto que Freud
sublinhe que as mulheres têm um narcisismo mais acentuado que os homens.
Ainda em relação à questão de a inveja do nis ser a alavanca que direciona a
menina a aceitar a feminilidade, este é mais um ponto de impasse na obra freudiana. Com
essa conclusão, Freud acaba por anunciar que o caminho para a feminilidade estaria
submetido exclusivamente à inveja do pênis e à ferida narcísica que esta inveja acaba por
gerar. A mulher se direcionaria para um destino feminino, sob essa ótica, a partir da
negação do próprio órgão e, portanto, de seu próprio corpo feminino. O impasse se instala
porque Freud, ao analisar a questão feminina, mais uma vez, a partir da primazia do falo,
encontra-se diante de um novo impasse: ele se põe na tarefa de explicar como o complexo
de masculinidade pode levar a menina a tornar-se feminina.
A esse impasse Freud (1925) responde com a entrada do Édipo nas mulheres. Para
ele, é esse direcionamento ao pai em substituição à mãe que permite que a mulher encontre
um caminho para a feminilidade. É a partir desta substituição que a menina pode trocar
também de objeto de desejo: renunciando ao pênis e desejando um filho. O fato é que essa
substituição do pai pela mãe, como Freud adverte, não apaga nunca a relação da menina
com a mãe. Portanto, constitui-se apenas como um deslocamento e não imprime uma
transformação. Além disso, a renuncia do pênis por um filho não se apresenta
verdadeiramente como uma renúncia, e sim como uma troca, uma substituição do signo
fálico do pênis, o que também não faz avançar muito nesse impasse. É também nesse
sentido que no final de seu percurso em Análise Terminável e Interminável (1937-1938)
Freud conclui que a inveja do pênis é algo de irredutível na mulher. Isso demonstra que o
ponto de chegada de Freud está exatamente marcado por esse impasse.
135
Sobre as conseqüências da castração e da inveja do pênis, Freud conclui, em 1931,
que o homossexualismo tanto feminino quanto masculino tem raízes na hostilidade. Ou,
talvez, possamos dizer mesmo no horror causado pela castração feminina, que nas mulheres
aparece como esse “complexo de masculinidade”, em que a mulher rejeita a castração e
deseja ser homem, podendo, então, até mesmo, desenvolver uma escolha objetal
homossexual e no homem o repúdio causado pela castração das mulheres acaba por gerar
uma escolha homossexual.
Em relação ao desfecho do Complexo de Édipo, Freud demonstra que as
conseqüências disso são também muito diferentes para o sexo feminino e o masculino. Do
lado do menino, o encontro com a falta e a ameaça de castração geram o fim do Complexo
de Édipo, fazendo com que o superego emirja como seu “herdeiro”. Do lado da menina, a
questão é, segundo Freud, bem mais complicada:
Nas meninas está faltando o motivo para a demolição do complexo
de Édipo. A castração já teve seu efeito, que constitui em forçar a
criança à situação do complexo de Édipo. Assim, esse complexo
foge ao destino que encontra nos meninos: ele pode ser lentamente
abandonado ou lidado mediante a repressão, ou seus efeitos podem
persistir com bastante ênfase na vida mental das mulheres (idem, p.
286).
Essa falta de razão para o desenlace do Complexo de Édipo feminino traz, segundo
Freud, várias conseqüências para a mulher. Afinal, segundo ele, o Complexo de Édipo, com
muita freqüência, não é jamais superado pela mulher. Em virtude disso, o superego
feminino não se formaria com o mesmo rigor do masculino, o que acarretaria muitas
conseqüências no que tange ao caráter social das mulheres.
Sobre as questões do Édipo feminino e da homossexualidade feminina, julga-se
necessário, para que se possa avançar e esclarecer essa posição de Freud em relação a essas
questões e a outras que se relacionem à sexualidade feminina, tratar de introduzir um
conceito que Lacan focaliza esse Outro inicial e, a partir disso, investigar melhor essa
relação primeira da menina com a mãe, que Freud aponta como fundamental para o
entendimento da sexualidade feminina e da feminilidade.
4.3 O Outro inicial e o período pré-edípico feminino
136
Lacan explicita que a constituição de um sujeito está sempre vinculada ao olhar do
Outro. Esse Outro a que ele se refere não se subsume ao outro que está ali, presente.
Freud (1912-1913) mostra, a partir do conceito de real originário, que este real
precede o sujeito por meio de sua própria mitologia, apontando que o sujeito é constituído a
partir de uma rede de relações que está para além dele. É essa rede de relações mais
precisamente, a rede significante que Lacan traz a partir do seu conceito de Outro da
linguagem, ou seja, a rede significante que preexiste ao sujeito e o constitui.
No entanto, o que interessa abordar aqui é exatamente o que Lacan (1956-1957)
identifica como um Outro imaginário, que é um Outro suposto a partir de quem a fala do
infans se constitui, na medida em que ele a acolhe e responde a ela. Este Outro inicial,
porém, também depende de Outro para se constituir, de forma que seu desejo também se
ordena a partir de um Outro. É por isso que, quando intervém, este Outro refere à criança ao
seu próprio universo de desejo. É nesse sentido que Freud (1914) aponta que o narcisismo
infantil nada mais é do que uma reinauguração do narcisismo dos pais.
Essa abordagem permite esclarecer o que Freud tentou marcar tão fortemente na fase
final de seu trabalho: a relação da menina com sua mãe, o Outro inicial. Assim, se se
considera que é o desejo do Outro que se coloca, de um lado, na formação deste sujeito que
nessa relação se constitui e constitui uma imagem, pode-se entender, ao tratar da questão
feminina, o que Freud ensina que à mulher falta falo e que isso está estreitamente ligado à
sua relação com a criança. Logo, a mãe e a criança se colocam numa relação intensa em
que o infans fica submetido a essa relação caracteristicamente fusional com o Outro, como
marca Freud em diversos momentos de sua obra, por ocupar o lugar em que se identifica
com o desejo do Outro inicial. Eis a grande questão: o infans vivencia essa relação de
maneira tão plena que acredita ser tudo o que o Outro deseja, enquanto esse Outro também
se manterá preso a ela. Na medida em que a criança vem tamponar a falta, funciona como
falo do Outro.
Acontece que a mãe é castrada, ou seja, é desejante. Portanto, seu desejo é
insaciável, e para além da criança deseja outras coisas, o que vai se tornando evidente para
o infans. Essa evidência, entretanto, não é aceita muito facilmente pela criança, que nessa
relação vai fazendo a si mesma de “assujeito”, ou seja, de objeto de desejo materno. Assim,
enquanto esse Outro inicial se apresenta como fálica, como Dom, o infans se dirige à mãe
137
como “toda potência”, no sentido de que dela depende inteiramente seu destino. É,
portanto, por esse Outro “inteiro” que o infans se apaixona. É a ele que se oferece também
“inteiro”.
O que se pretende ressaltar com isso é que essa primeira relação é
preponderantemente narcísica. Nela, a marca da castração ainda não está impressa no
psiquismo do infans, que, portanto, mantém essa ilusão de completude, de fusão com esse
Outro inicial. Nessa primeira relação, também a instituição de um gozo (ver capítulo 3).
A mãe é que cuida, que toca, que sexualiza e que acaba por imprimir um gozo no infans,
como se o contagiasse com o seu próprio gozo. Esse gozo primeiro não é marcado pelo
simbólico nesse momento; fica, portanto, não sexualizado, vivido apenas como intensidade
pela criança.
É nesse aspecto também que a castração materna se apresenta como fundamental para
os destinos da sexualidade feminina e também da masculina. O infans se relaciona com
esse Outro inicial acreditando que nessa relação uma completude. A criança não vive a
falta nesse momento; ela se coloca, ao contrário, como o falo da mãe e entende a mãe como
fálica.
É nesse sentido que a apreensão da castração materna rompe todo esse equilíbrio
definitivamente e coloca o infans diante da dimensão da falta, uma dimensão que remete a
um desamparo que contraria intensamente o narcisismo, um desamparo que coloca o sujeito
diante de sua própria condição de mortal e sexuado, uma posição, enfim, cuja falta está
instituída e na qual o sujeito é convocado a desejar. A partir dessa convocação, o sujeito faz
uma escolha de posição. A resposta que ele à dimensão da falta é que vai definir o
destino da sua sexualidade.
Assim, o desejo emerge dessa primeira relação com a mãe. A criança, seja de qual
sexo for, pode atuar como desejante a partir do desejo desse Outro inicial, que se coloca
para ela como um enigma.
É importante ressaltar que essa apreensão da castração materna se efetua com
a entrada de um terceiro nessa relação: o pai. Lacan (1957-58) sustenta que essa
mudança de status da mãe, que primeiro aparece como total, é, em dado momento,
apercebida como faltante, diante da lei que é imposta a essa mãe pelo terceiro, pelo pai.
138
Assim, a entrada do pai faz com surja um enigma para criança: o desejo da própria mãe,
que aparece, a partir desse momento, como faltante, e não mais como fálica.
Assim, é o plano da privação da mãe que num dado momento da
evolução do Édipo, coloca-se para o sujeito a questão de aceitar,
registrar, de simbolizar, ele mesmo, de dar valor de significação a
essa privação da qual a mãe revela-se objeto (LACAN, J., 1957-58,
p. 191).
É então, portanto, a apreensão dessa primeira relação com o Outro inicial que Freud
vai tentando fazer entre 1925 e 1932, buscando desvendar essa relação da menina com sua
mãe. Ele vai notando, cada vez mais, que essa relação é fundamental para o destino de cada
mulher.
Freud sustenta que foi a partir de sua experiência clínica que pôde perceber que a
relação da menina com a mãe, bem como a duração dessa relação, é fundamental para todo
o processo posterior do desenvolvimento sexual feminino. Lista alguns casos que analisou
de mulheres que tinham uma ligação particularmente forte com o pai, as quais mostraram, a
partir de análise, que a relação primeira com a mãe tinha sido também inteiramente forte e
intensa. Acrescenta, sobretudo, que um número grande de casos de mulheres que
verdadeiramente permaneceram nessa primeira relação e nunca realmente desempenharam
a mudança de objeto em direção aos homens.
Freud (1931) expõe a dificuldade de se chegar a essa fase por rememoração nas
análises com mulheres. Para ele, essa dificuldade de acesso a essa relação primeira ocorre
porque ela é recoberta pela relação posterior, em que o objeto é o pai.
Tudo na esfera dessa primeira ligação com a mãe me parecia tão
difícil de apreender nas análises — tão esmaecido pelo tempo e tão
obscuro e quase impossível de revivificar — que é como se tivesse
sucumbido a uma repressão especialmente inexorável. Mas talvez
tenha ficado com essa impressão porque as mulheres que estavam
em análise comigo podiam aferrar-se a própria ligação com o pai
em que se tinham refugiado da fase primitiva em questão (FREUD,
S., 1931, p. 234).
Segundo André (1986), essa dificuldade de apreensão seria redobrada pela própria
posição do psicanalista, que se colocava como substituto paterno, tendência que Freud
mesmo seguia. Assim, seria a própria posição de Freud enquanto posicionado do lado do
139
pai, ou seja, do lado em que opera a primazia fálica, que dificultaria ainda mais as
investigações sobre esse período tão fundamental para o destino feminino.
Freud (1931) acrescenta que essa fase está relacionada diretamente com a etiologia da
histeria, bem como à gênese da paranóia. Assim, ele passa a dar tanto valor a essa fase que
declara que é necessário rever a máxima de que seja o Complexo de Édipo o núcleo das
neuroses, já que o que ele tem encontrado é que todas as fixações e recalques que definem
uma neurose acontecem nesse período pré-edípico. Aponta, então, que é nessa relação que
nasce o medo paranóico das mulheres, que vem da fantasia de ser devorada pela mãe.
É nesse âmbito de apontamento de Freud que pode-se entender verdadeiramente essa
fantasia feminina, a partir do entendimento do que se disse sobre a maneira como se
estabelece essa ligação com o Outro inicial. Essa ligão primeira da menina com o Outro
inicial que aparece ainda não dividido pela lei mostra não ser completamente “apagada”
pela entrada do pai, como Freud sublinha.
Isso significa que a menina não é toda submetida à lei que o pai introduz, que é a lei
da primazia fálica, a lei do simbólico. Isso parece perfeitamente lógico do ponto de vista de
que essa lei que o pai introduz, que essa entrada do pai como terceiro propõe, não é uma lei
que diga algo acerca do próprio sexo feminino. Essa lei não introduz nada a respeito da
feminilidade. Há, então, algo que é próprio do sexo feminino, que não pode ser abarcado
por essa lei e que, portanto, não se submete a ela.
Seguindo ainda com Freud (1931), mesmo que a menina entrada no seu Édipo, ou
seja, imprima a mudança de objeto em direção a uma escolha heterossexual e faça uma
identificação paterna, a partir da lei que este introduz, ainda assim a relação pré-edípica
parece subsistir. A lei fálica que o pai inaugura na menina não vai operar por inteiro, pois
parte dela vai se manter fora desse registro fálico.
É sob esse aspecto também que mais uma dificuldade é apontada por Freud no que
concerne ao Édipo feminino. Pois é no mesmo momento em que a menina tem que
abandonar essa relação com a mãe, para que possa se direcionar ao pai, que precisa também
se identificar com a mãe, para que possa ocupar uma posição feminina diante do pai. Fica,
então, cada vez mais evidente a dificuldade que teve para compreender o que possibilitaria
essa entrada do Édipo pela menina.
140
Freud introduz então a idéia de que a menina tem que desempenhar duas funções a
mais que os meninos no seu desenvolvimento libidinal: trocar de objeto (a mãe pelo pai) e
de zona erógena (clitóris pela vagina). O que põe em evidência aqui é que a menina, para
que avance em direção a exercer a sua própria feminilidade, tem de trocar não só de objeto,
mas também de sexo. Assim, é o tipo de gozo que entra em cena e que deve ser modificado.
Para Freud, o gozo clitoridiano tem um caráter masculino, e é por esse motivo que ele deve
ser abandonado na verdade, substituído pelo gozo vaginal, para que a menina possa
exercer de fato sua feminilidade.
O que ocorre a partir dessa consideração é que Freud chega a um novo impasse: as
mulheres não abandonam a satisfação que obtêm pela via do clitóris, da mesma maneira
como nunca abandonam completamente a ligação com a mãe. Assim, na mulher o gozo
vaginal não exclui o gozo clitoridiano, mas apenas vem somar-se a ele. Não há, portanto,
uma verdadeira transição que essas tarefas que empreendem, conforme Freud aponta. Não
há, verdadeiramente, uma passagem em que a mulher troca de fato a mãe pelo pai e o
clitóris pela vagina. Há, sim, uma superposição, em que pai-mãe e vagina-clitóris
continuam atuantes.
Essa questão permanece como impasse a o fim do percurso freudiano. Ora ele
acentua o caráter bissexual das mulheres, ora coloca que a posição feminina reside na
abstenção da satisfação clitoriana e na substituição desta pela vaginal. Portanto, para tornar-
se mulher, há que se abandonar o clitóris em favor da vagina, o que demonstra que Freud só
concebe a mulher como toda. Ou seja, o tornar-se mulher exigiria um abandono total da
sexualidade fálica. Mas seria um paradoxo se de fato se realizasse. Afinal, como poderia a
mulher abandonar toda a sexualidade fálica e mesmo assim desejar um filho?
A problemática feminina vai se tornando cada vez mais complicada, na medida em
que as formulações que Freud aponta para que a mulher possa se colocar numa posição
verdadeiramente feminina parecem não exercer nenhuma transformação sobre essa posição
inicial da menina que Freud (1931) entende como masculina. Para ele, a menina atua até
sua entrada no Édipo como um “homenzinho”. Freud passa a se perguntar, então, sobre os
motivos que verdadeiramente levariam a menina a dirigir seu ódio à mãe e se separar dela,
mas que ao mesmo tempo deixaria um resto de amor, um resto de relação.
141
Freud cita o ciúme como o primeiro fator que abala essa relação. A presença de
irmãos e, mesmo, do pai se coloca também como interdito a essa relação total. Quanto a
isso Freud acrescenta que: “Com a primeira intervenção da proibição, o conflito se forma e,
doravante, acompanhará o desenvolvimento da função sexual” (1931, p. 2410).
Assim, a menina acusa a mãe por não lhe ter dado tudo
1
que ela queria, por não ter
recebido o pênis. Isso aparece de diversas maneiras, por exemplo, na acusação à mãe de ter
dado pouco leite, todas elas embasadas no sentimento de falta de amor. Essa demanda tão
incessante da menina para com a mãe é marcada fortemente na histeria, em que o objeto de
amor nunca lhe é suficiente, não lhe satisfaz e gera uma insatisfação ou, ao contrário disso,
a uma satisfação a mais, um excesso de amor, que pode caracterizar a frigidez.
Freud aponta que o motivo fundamental está mesmo no efeito da castração sobre a
menina que não tem pênis. Assim, o que marcaria, para Freud, verdadeiramente a saída da
menina dessa relação gozante com a mãe é, de fato, o “complexo de castração”. Segundo
ele, as meninas não perdoam a mãe pela falta de pênis, acreditam ter sido colocadas em
desvantagem, por falta mesmo de amor por parte dela.
Freud acrescenta que esse processo se lentamente. No início, a menina acredita
que só ela é castrada, estendendo aos poucos o seu infortúnio a outras mulheres. É por
último que estende a castração à sua mãe. Essa relação com a mãe é dirigida a uma mãe
fálica. Ao saber da castração materna, há a ruptura dessa relação primeira.
E essa castração materna no caso da relação da menina com a mãe é ainda mais
delicada. Isso porque a única identificação possível para a menina é a identificação com a
mãe, que não tem para lhe dar isso que ela demanda, ou seja, um significante que lhe diga
sobre seu próprio sexo, algo que a ajude a se posicionar como mulher. É com essa falta
radical do Outro que a menina tem que se confrontar a partir da castração da mãe. Assim,
na relação da mãe com a filha o que não é apenas uma falta, mas duas: a falta do
significante feminino e a falta de falo. Isso parece acentuar ainda mais a castração para a
menina. Essa elucidação parece esclarecer o excesso de demanda próprio da histeria e da
filha em relação à mãe. Essa demanda de amor está exatamente marcada pelo pedido
direcionado ao Outro de que ele possa dar aquilo que ele mesmo não tem, o qual não se
1
Grifo nosso.
142
resume apenas no falo. Mas, para além dele, a menina pede que o Outro lhe dê aquilo que a
asseguraria de seu próprio sexo feminino.
É nesse momento, em que a menina percebe a castração materna, ou seja, em que ela
se encontra com a própria condição faltante, é que, para Freud (1931), ela pode se
posicionar de três maneiras que definiriam os três destinos da mulher:
O primeiro leva à negação geral da sexualidade. A decepção com sua própria
condição leva a menina a suspender qualquer atividade sexual e, assim, a
manter-se afastada, portanto, da própria castração.
O segundo destino leva a uma negação da castração, em que a menina ou bem
alimenta por toda a vida a ilusão de conseguir um pênis ou denega a castração
e se posiciona como um homem.
É o terceiro destino que leva a mulher, na concepção de Freud, por vias
indiretas, a colocar-se no caminho para exercer uma sexualidade feminina
propriamente dita. Nessa posição, a menina faz a troca de objeto dirigindo-se
ao pai e encontra, enfim, o caminho para o Complexo de Édipo feminino.
A partir dessa ótica, a menina não tem outra possibilidade senão repudiar o próprio
sexo e desprezar as outras mulheres, inclusive sua mãe. E sobre esse repúdio à mãe que
Freud acrescenta ainda que essa ligação primeira com a mãe sempre apresentara muita
ambivalência; houve sempre um misto de ódio e amor dedicado a esse Outro inicial.
Freud propõe sobre isso que se estabeleça o entendimento dessa relação primordial
com a mãe a partir da dialética da atividade-passividade. Essa relação se estabelece de uma
maneira em que a menina desempenha um papel ativo e passivo, mas Freud (1931) ressalta
que há um conflito entre esses dois pólos de atuação da menina. Ele explica que tudo aquilo
que a menina experimenta passivamente num segundo momento ela tenta reviver de forma
ativa. Para ele, isso aponta para algo que acredita ser uma característica geral da pessoa
humana, uma “revolta contra a passividade”. Explicita essa dialética, de modo que ela toma
corpo num “tornar-se objeto da mãe” e “fazer a mãe de objeto”. Essa dialética parece
expressar verdadeiramente um desejo por parte do sujeito de separação desse Outro inicial.
Com efeito, é ao retirar-se da posição de objeto do Outro, de
objeto da mãe, que a menina pode assegurar sua posição de sujeito,
143
a partir da qual é o próprio Outro que se torna seu objeto (ANDRÉ,
S., 1986, p. 186.)
O que se destaca com isso é que nessa relação com o Outro inicial, para que o
sujeito apareça, é necessário que haja uma primeira separação; Afinal, nessa relação
narcísica o infans atua como objeto do Outro, numa posição em que o sujeito não pode
aparecer. Esta questão inaugura um novo paradoxo para o destino feminino. Afinal, se a
menina tem que se afastar da mãe para tornar-se um sujeito, ela deve tornar-se masculina.
É nesse sentido também que se formam as fantasias da menina de ser devorada pela
mãe, a qual estaria colocada do lado de uma representação desse momento primeiro de total
passividade, total submissão ao Outro inicial ou, ainda, a fantasia de ter um filho da mãe,
que seria então uma fantasia em que a menina tomaria o lugar da mãe, para que pudesse
atuar como sujeito.
A questão que se impõe é ainda a mesma do início desse percurso que Freud
empreende acerca da relação pré-edípica para as meninas. Assim, como a menina pode se
colocar numa posição feminina se ela deve abdicar da passividade para se tornar sujeito e,
ao mesmo tempo, tem que conservar essa passividade para poder se colocar como mulher?
Qualquer que seja o ângulo sob o qual se aborde o trajeto que a
menina deve percorrer, da relação pré-edipiana à relação edipiana,
vamos sempre esbarrar com a mesma objeção. Quer se considere
esta passagem do ponto de vista da troca de objeto, ou da mudança
de identificação, de zona genital ou de modo de gozo, chega-se
sempre à conclusão de que essas mudanças atuam menos como
substituições do que como desdobramentos. Por conseguinte, os
caracteres da relação pré-edípica jamais são verdadeiramente
eliminados, e estão sempre prontos a voltar à tona. O destino da
menina aparece, assim, como o de uma metáfora impossível ou de
uma luta permanente para se elevar do registro da metonímia para
o de metáfora (idem, p. 187).
Assim, retorna-se nesse ponto ao impasse de Freud com relação ao destino feminino
e passa-se a abordar a solução “manca” que ele dá para isso e para o desejo da mulher.
4.4 O impasse freudiano com relação ao tornar-se mulher
144
Freud retorna a essa problemática do destino das mulheres a partir de uma
conferência que se intitula justamente “Feminilidade” (1932-33), que é o último texto em
que ele aborda especificamente esse tema. Nesse texto, acentua o caráter de enigma que a
feminilidade traz. Algo que, segundo ele, por toda história, os homens tentaram desvendar,
mas que, a partir da ótica masculina, só pôde se manter como enigma.
Freud avança nesse raciocínio e aponta que a feminilidade é um enigma exatamente
porque não é um dado a priori, não algo definido anatomicamente. Ele é muito claro
quando evidencia que a anatomia nada pode dizer acerca da feminilidade ou, mesmo, da
virilidade. Acrescenta que o significante passividade, que usou para definir a feminilidade
durante todo o seu percurso, não parece de fato auxiliar na compreensão da mesma:
Até mesmo na esfera da vida sexual humana os senhores verão
logo como é inadequado fazer o comportamento masculino
coincidir com atividade e o feminino, com passividade. [...] As
mulheres podem demonstrar grande atividade, em diversos
sentidos; os homens não conseguem viver em companhia dos de
sua própria espécie, a menos que desenvolvam um grande
adaptabilidade passiva. Se agora os senhores me disserem que
esses fatos provam que tanto os homens, como as mulheres são
bissexuais, no sentido psicológico, concluirei que decidiram, na sua
mente, a fazer coincidir ‘ativo’como ‘masculino’e ‘passivo’com
‘feminino’. Mas advirto-os que não o façam. Parece-me que não
serve a nenhum propósito útil e nada acrescenta aos nossos
conhecimentos. [...] Poder-se-ia considerar característica
psicológica da feminilidade dar preferência a fins passivos. Isto,
naturalmente, não é o mesmo que passividade, para chegar a um
fim passivo, pode ser necessária uma grande quantidade de
atividade (p. 116).
É importante salientar que Freud fica, nesse ponto do artigo, sem nenhum
significante para dizer da feminilidade. É como se ele reencontrasse o momento em que vê,
no seu sonho, o fundo da garganta de Irma. Não nada que possa dizer disso e não há
nada que possa dizer da feminilidade. Mesmo a passividade, que lhe pareceu tão útil
durante todo seu percurso, nesse ponto exato do texto parece não lhe valer mais: a
feminilidade não se resume a isso; algo que está para além desse significante. É o que
Freud parece apontar quando abre mão desse par de opostos, mesmo que essa posição não
seja tomada em todas as suas conseqüências no percurso freudiano.
Freud afirma que a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher, que essa
tarefa é impossível. Ele intui esse impossível que carrega cada mulher, impossível de
145
descrever e de definir, e principalmente impossível de se agrupar. Ele, então, abre mão
dessa tarefa impossível e se propõe a investigar o tornar-se mulher. Para isso, parte de duas
premissas fundamentais:
A primeira é que aqui, novamente, a constituição não se adaptará à
sua função sem uma luta. A segunda reside em que os pontos
decisivos terão sido preparados ou completados antes da
puberdade (ibid., p. 117).
O que ele define a partir dessas premissas é que a feminilidade não é dada, mas, ao
contrário, é um tornar-se, um vir-a-ser. Ela não tem existência dada; não é. Por isso, Freud
declara que ser mulher não é para qualquer mulher, pois, na verdade, muitas mulheres
atuam como homens e nunca se tornam verdadeiramente femininas. Assim, a mulher tem
que se tornar mulher. Para isso, é necessária uma luta, um trabalho que vai contra a
constituição psíquica, ou seja, contra a gica fálica que rege o inconsciente. Isso se
porque, segundo Freud, a menina iniciaria seu desenvolvimento libidinal como um
“homenzinho” e é a partir dessa “luta” que ela pode ocupar a posição verdadeiramente
feminina.
O que Freud assinala quando faz essa afirmativa é que não nada dado na menina
que a diferencie do menino. Nesse primeiro momento, ambos vivem a primazia do falo,
ambos vão se inserindo nessa lógica igualmente, e Freud conclui que, na verdade, a vagina
está, para ambos os sexos, não descoberta. Isso não significa dizer que a menina não sabe
da existência sica da vagina, mas que esta não representa nada de definitivo, nada que a
represente como mulher.
Mas como seria essa luta em direção à feminilidade? Como será que uma mulher
pode, de fato, colocar-se como mulher segundo essa ótica freudiana? Quando trata dos
destinos possíveis para a sexualidade feminina, Freud afirma que a única posição
propriamente feminina seria aquela que faria a mulher abandonar a relação com a mãe e dar
entrada no Édipo. Mas essa posição só poderia ser atingida se a menina abdicasse de sua
posição ativa, o que para Freud significa abdicar do gozo clitoridiano.
Acontece que essa condição aponta para um paradoxo. Afinal, se a menina
abandona a atividade e, portanto, essa busca do falo (na leitura de Freud), ela não tem por
que se direcionar ao pai. Trata-se, então, de assumir uma posição mais passiva, mas não
146
totalmente passiva, porque se abdicar de toda a demanda fálica, ela também não pode se
posicionar de acordo com a solução que Freud propõe.
Freud vai além disso. Para ele, a situação propriamente feminina só se estabelece de
fato se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, aludindo a uma relação
filho-falo que ele estabelece como primordial para a questão feminina. Portanto, ela tem
uma saída propriamente feminina na obra freudiana: desejar ter um filho.
O desejo que leva a menina a voltar-se para seu pai é, sem dúvida
originalmente o desejo de possuir o pênis que a mãe lhe recusou e que
agora espera obter do pai. No entanto, a situação feminina se
estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê,
isto é, se um bebê assume o lugar do pênis, consoante uma primitiva
equivalência simbólica ( p. 128).
Outra ponderação importante é a de que o desejo de ter um filho após a entrada no
Complexo de Édipo feminino não é o mesmo que Freud apontava na fase pré-edípica,
quando o desejo de ter um filho não era expressão de feminilidade, e sim resultado da
identificação com a mãe, como intenção de substituir a passividade pela atividade. É,
portanto, somente, e paradoxalmente, a partir do desejo de ter pênis que a menina pode
aceder ao desejo de um bebê propriamente dito, desejo esse considerado por Freud o
objetivo mais intenso do desejo feminino.
Isso ilustra claramente que a posição de Freud é a de que a mulher só pode caminhar
em direção a uma posição feminina a partir da castração, tomada, então, da inveja do pênis.
Portanto, uma mulher pode se posicionar verdadeiramente como tal se repudiar a
feminilidade e, no fundo, desejar ser como ela acredita que é o homem; ou seja, desejar
possuir o falo. Uma mulher, desse modo, pode ser feminina, para Freud, se ela estiver
dirigida ao falo e se esse desejo se configurar como o desejo de ser mãe. Assim, mais uma
vez, Freud as mulheres a resposta que deu à Dora sobre o que é ser uma mulher. Freud
responde novamente: é ser mãe.
O resultado desse movimento é que Freud não chega a conceber em nenhum
momento de sua obra uma sexualidade propriamente feminina, ou uma especificidade
feminina, em relação tanto ao modo de satisfação pulsional (que aparece pela via da
maternidade) como na questão da frigidez feminina, que se mantém como um assunto sem
elucidação, mesmo que ele tente encontrar soluções a partir da negação da atividade sexual.
147
Desse modo, o desejo e o gozo feminino ficam praticamente intocados na obra freudiana. A
respeito da sexualidade feminina, Freud só conclui que existe um desejo de ser mãe.
Freud avança ainda nesse raciocínio acrescentando que no casamento a relação do
homem e da mulher pode ser, de fato, salvaguardada se a mulher atuar como mãe e o
marido atuar como filho. De outra maneira, a mulher pode fazer ressurgir com o marido a
sua relação primeira com a e, a qual é extremamente ambivalente e, portanto, geraria
graves conflitos no casamento. Assim, o amor da mulher e do homem só seria garantido por
essa “incorporação” feminina da e, já que do lado do homem isso também faria com que
ele pudesse retornar ao seu Édipo e, partir do antigo amor à mãe, enamorar-se da mulher.
A partir de tais desdobramentos do problema da feminilidade, o impasse freudiano se
torna cada vez mais evidente, residindo no fato de que o fim do percurso freudiano não
consegue circunscrever o tornar-se mulher. Colocando a mulher no lugar de mãe, Freud
pode fazê-la entrar na dialética fálica, porque nesta está em jogo exatamente o paralelo
criança falo. Mas o preço a pagar é o de não mais ressaltar que a feminilidade não se reduz
à lógica da mãe, o que conduz Freud a cernir a questão da maternidade, mas não o tornar-se
mulher.
O ponto de chegada freudiano corrobora, em alguma medida, a história da
feminilidade, que aponta sempre para a questão da maternidade, o perigo que a
feminilidade encarna, esse real dessexualizado que Freud traduz pelo que chamou de
“repúdio à feminilidade” e de também, de tantas outras maneiras, fica mantido
cuidadosamente a distância. Freud aponta para o inominável, para o que este produz de
enigma, mas o mantém como velado e mascarado. Recobrindo este inominável com a teoria
da Castração e do Édipo, termina o seu percurso sem tomá-lo em suas conseqüências. A
maternidade resta, assim, como ponto de chegada possível para Freud, nessa posição que
era a sua (única possível, talvez) de procurar analisar a questão feminina pela ótica fálica,
que tão bem lhe servira para definir a posição masculina.
Sob esse aspecto, os muros da castração e a inveja do pênis configuram realmente um
limite a que a mulher pode chegar se submetida apenas à lógica fálica. E foi esse o ponto de
chegada freudiano (1938-1939) acerca da problemática feminina, uma vez que, segundo
André (1986), para Freud:
148
A menina, só dispõe da referência à castração para tornar-se mulher. É
evidente que essa observação o basta, ficando o sujeito, aí, condenado
a se deter na inveja do pênis. Para Lacan, entre furo e castração, a relação
não é de simples recobrimento Isso por um motivo que a lógica do
significante permite perceber: o furo não deve ser considerado como
anterior ao significante que vem nomeá-lo... O significante, em outras
palavras, não faz significar, tem também como efeito o relançamento:
o falo não camufla o furo, fá-lo surgir no seu mais-além (p. 27).
É importante salientar que Freud deixa um espaço em aberto para a problemática da
feminilidade. Ele afirma em seu artigo “Feminilidade” (1932-33) que a problemática da
feminilidade não se encerra naquilo que ele pôde apreender. E propõe novas abordagens
dessa problemática que possam avançar naquilo que se mantém como enigma.
Em sua retomada do problema, Lacan (1975) se desvia da tentação de Freud de entender
a questão feminina a partir do funcionamento fálico do homem. A partir de uma série de
considerações, propõe que se pode tomar as mulheres uma a uma, na sua
singularidade. Aos impasses da posição feminina na teoria de Freud, Lacan (1975)
responde com a seguinte formulação: “A mulher não existe”. Isso significa que não
um significante capaz de definir A mulher; que a mulher não faz classe, não constitui
conjunto e, portanto, o pode ser agrupada ou entendida pela ótica do universalismo
fálico. Partindo dessa premissa, a problemática feminina muda completamente de
direção, e reinaugura-se a partir da tomada da feminilidade radicalmente enquanto algo
que não se inscreve.
Sob esta nova ótica, o feminino se posiciona para além da rede significante; excede a
organização fálica, fazendo objeção à ordem fálica do todo e recusando a reduzir-se a
ela. Porém, dizer que a feminilidade aponta para algo que está mais além do falo não
significa que a natureza feminina é antifálica; ela apenas não está reduzida a esse
significante. A mulher, na teorização de Lacan, torna-se inalcançável, o que gera esse
mal-estar, esse repúdio à feminilidade de que Freud falava, tanto para as mulheres
quanto para os homens.
É essa falta do significante de A mulher, diz Lacan, que leva à impossibilidade de
haver uma maneira definitiva para a relação entre os sexos. Para ele, a feminilidade se
funda na particularidade de cada sujeito, de cada história, existindo de maneira ímpar no
desejo de cada mulher.
149
[...] das mulheres, a partir do momento em que os nomes, pode-
se fazer uma lista, e contá-las. Se Mille e tre é mesmo porque
podemos toma-las uma a uma, o que é essencial. E é a coisa
completamente diferente do Um da fusão universal (LACAN, J.,
1972-73, p.19).
Nas chamadas “fórmulas da sexuação”, que Lacan propõe no Seminário XX, ele
fundamenta a submissão masculina à função fálica. Do lado da mulher, situa-se um além.
Ela não nega a ordem fálica, mas há quem fique fora dessa norma. Do lado do homem,
um lugar de exceção; ou seja, todos, menos um, estão submetidos à lei. E na mulher não há
esse lugar de exceção que pudesse fundamentar um conjunto. A lógica do todo é sustentada
pela exceção à regra, mas uma posição não-toda, que, apesar de não recusar o universal,
permanece não-toda referida a esse universal.
Não se pretende aprofundar nessa teorização que o Seminário XX propõe acerca da
feminilidade neste ponto de nosso percurso. Indica-se apenas, ainda que muito brevemente,
o encaminhamento que Lacan (1975) para a problemática da feminilidade tomando
essa questão do inominável da feminilidade como central para o desvendamento da questão
feminina para mostrar que a questão que se manteve durante toda essa investigação do
percurso freudiano sobre o tema da feminilidade ainda se mantém, mesmo que agora sob
nova perspectiva. Assim, a questão que se renova é a de verificar se, a partir dessa outra
maneira de tomar a problemática feminina, dessa constatação de um inominável e, portanto,
da abordagem da feminilidade como essa marca maior do não-todo que faz reviver para o
sujeito a questão do real, é possível demarcar uma posição verdadeiramente feminina do
sujeito.
Assim, marcando apenas em linhas gerais a teorização que Lacan faz sobre a
problemática da feminilidade, procurou-se fazer do ponto de chegada aqui proposto um
novo ponto de partida: partida para a proposta de um aprofundamento dessa abordagem
lacaniana da problemática da feminilidade, em busca de algo que aponte para uma posição
do sujeito propriamente feminina, ou seja, para além da maternidade e da histeria. Decidiu-
se, então, nesse momento de concluir, substituir o ponto final por uma interrogação.
_________________________________________________________________________
CONCLUSÃO
150
_________________________________________________________________________
A mulher no conjunto é muito mais real,
muito mais verdadeira pelo fato de que sabe a
medida daquilo com que ela lida no desejo, e
ela passa por isso com uma tranqüilidade
muito grande, é que ela tem, um certo desprezo
pelo engano, luxo que o homem não pode
oferecer (LACAN, J., 1962-63, p. 231-232).
Algumas questões incitaram e demarcaram o nosso ponto de partida: “O que
suscitou, no percurso freudiano, essa indagação contínua acerca do desejo feminino?”, “Por
que essa resposta lhe apareceu tantas vezes como um impasse?”, “O que significa o que
Freud indica ao final de sua obra como caminho para a feminilidade ou seja, como é que
uma mulher pode de fato se colocar numa posição feminina?”
Foi, então, partindo dessas questões que nos debruçamos sobre a obra freudiana
com o objetivo de pontuar e desenvolver os problemas e os avanços que foram surgindo,
para o próprio Freud, a respeito dessa enigmática feminilidade. Foi seguindo Freud em seu
próprio percurso, então, que trilhamos o nosso caminho em busca de uma elucidação no
que concerne ao tema da feminilidade e da sexualidade feminina em psicanálise.
Empreendemos uma leitura da obra de Freud a partir de uma ótica lacaniana; ou
seja, buscamos resgatar, com Lacan, algo que fica súbdito” na obra freudiana, nas
entrelinhas do discurso de Freud sobre a sexualidade feminina e a feminilidade. Partimos,
portanto, de uma leitura que levava em conta a presença de um real na feminilidade, um
real que diz respeito à condição do sujeito e não somente à da mulher –, um real advindo
da sexuação do sujeito pela palavra e da o complementaridade que a linguagem
determina entre os sexos e que situa a feminilidade como ato, contingência que excede o
registro simbólico e não se deixa jamais inscrever de vez. Essa presença a obra de Lacan
ressalta, em sua releitura da obra freudiana.
No entanto, mesmo que o trabalho dirigido à obra freudiana tenha sido realizado
numa clara referência ao que Lacan pôde apontar como realizações no discurso de Freud
sobre a feminilidade, não pretendemos tratar como tal, da concepção mais propriamente
lacaniana da feminilidade, desenvolvida sobretudo no Seminário Mais, ainda, de 1972-73,
uma vez que neste ponto do percurso nos faltam os recursos para tanto. Esperamos que em
151
tempo o próprio trabalho realizado neste ponto venha a prover novas bases para a
continuação desta pesquisa mais adiante.
Optamos por iniciar por meio de uma breve abordagem histórica do tema da
feminilidade e da histeria desde a Antigüidade a a Modernidade, época em que Freud
inicia seu percurso. Esse primeiro momento buscou indicar que a feminilidade e o corpo da
mulher se põem como enigma desde a Antigüidade. Enigma que cria imagens diversas para
o feminino, muitas vezes, interpretadas como algo que aponta para um grande perigo.
Sublinhamos também que a única posição apaziguadora desse perigo que encarna o sexo
feminino oferecida pelo imaginário social seria a mulher na sua função de mãe.
O início do percurso de Freud marca a maneira como ele foi tentando responder sua
questão inicial acerca do sintoma histérico, que surgiu a partir do seu trabalho com Charcot.
Pode-se dizer que foram as histéricas que guiaram Freud em direção à sua grande
descoberta: o inconsciente. Neste início do trabalho de Freud com as histéricas, abordamos
as dificuldades e os impasses que iam surgindo a cada passo que Freud dava no
desvendamento desse campo que hoje chamamos de “psicanálise”.
Em sua trajetória, Freud se depara com a questão da feminilidade e aponta, em
diversos momentos, que há algo como uma lacuna, um mutismo, um umbigo que o discurso
das mulheres e a relação ao seu próprio corpo feminino indicam. Ao retomar esta trajetória,
sublinhamos como esse inominável aparece no início do percurso freudiano e como esse
encontro com a feminilidade é tratado por Freud, principalmente por meio dos sonhos.
Enfatizamos nessa investigão o Sonho de Injeção de Irma (1895), por aquilo que tal
sonho registra da posição de Freud, enquanto sujeito, diante desse enigma que aparece no
fundo da garganta de Irma. Seguindo as pegadas de Lacan, tentamos mostrar que o impacto
desta visão do fundo de garganta de Irma tem raízes no inominável que encarna a própria
feminilidade, seu espetáculo real, marca desse resto real que fica necessariamente fora de
todo processo de simbolização.
Foi, então, para a busca do testemunho desse inominável que o encontro com a
feminilidade aponta que direcionamos a nossa leitura da obra freudiana. O objetivo desse
trabalho foi o de marcar a presença sutil e constante dessa dimensão real que a feminilidade
aponta na obra de Freud. Fomos, então, percorrendo a teorização freudiana, passo a passo,
em busca dos avanços e dos impasses em que foi chegando por seu esforço de
152
desvendamento do feminino. A partir disso, constatamos que esse lugar do inominável vai
desaparecendo gradativamente nesse trajeto.
A posição de Freud diante da problemática da feminilidade vai se mostrando sempre
muito paradoxal. Afinal, ao mesmo tempo em que ele aponta para esse real, para esse não-
descoberto, para esse indizível do sexo feminino, ele também recua diante dessa
constatação, na tentativa de tamponar, de sobrescrever esse indizível por meio da primazia
fálica. Freud vai então empreender uma tentativa desde sempre fadada a chegar ao limite da
impotência: a tentativa de ler o feminino a partir de uma perspectiva masculina, fálica.
Chega, então, a diversos impasses, que essa busca comporta mesmo um impossível: é
impossível ler – ou, no caso de Freud – interpretar, aquilo que não se inscreve.
Foi, então, a partir de um apontamento de Lacan, que indica que a feminilidade está
num mais-além do discurso e do registro fálico, que pudemos voltar a Freud e tentar indicar
em seu próprio percurso traços dessa presença da feminilidade como problema (enigma,
“continente negro”, nas palavras de Freud) ou, nos termos de Lacan, como não-toda
submetida à primazia fálica.
1
Na continuação de nosso percurso, remetemos à teorização freudiana acerca do
recalque e do trauma, que buscava responder às questões que sua clínica apontava sobre a
problemática da histeria. Vimos que o recalque funciona sexualizando o corpo do falante,
dando marcas simbólicas a ele. Mostramos como a teoria do trauma em Freud aponta para a
questão de que o real surge num ‘só depois’ do recalque; ou seja, é somente a partir do
processo de simbolização a que cada sujeito se submete que o real pode emergir, como
resto irredutível à representação.
Abordamos esses conceitos com o objetivo de apontar para a questão da condição
paradoxal do sujeito na primeira relação com o Outro inicial, da qual se extrai o que
poderíamos conceber, com Lacan, como um primeiro gozo, um gozo em tudo relacionado a
uma posição submetida (que Freud dirá passiva) de que o sujeito nascido justamente
deste gesto desfrutaria na relação com o Outro, e, assim, relacionar a histeria com a
problemática da feminilidade. Mostramos que essa aproximação é possível porque a
histérica aponta, sob a forma de um protesto contra a potência fálica, que não nada no
1
Embora sem a pretensão de desenvolver as conseqüências desta elaboração lacaniana neste ponto, como já
mencionado.
153
plano do discurso que possa resolver o enigma sobre o que é ser uma mulher. A histérica
aponta, então, diretamente para a questão de que não uma identificação possível para o
sexo feminino, na medida em que não um significante que possa dizer dessa
feminilidade que ela tanto busca desvendar. Assim, a histérica denuncia exatamente esse
limite da instância paterna ou seja, o limite do simbólico e, portanto, da primazia do falo,
que condena o feminino a permanecer não descoberto. Sob esse aspecto, apontamos o
quanto Freud relutou em apreender o próprio dessa questão feminina, imerso que estava no
desenvolvimento de sua teoria acerca do Complexo Paterno. Ilustramos essa
incompreensão de Freud a partir do Caso Dora, que tem como questão exatamente a
enigmática feminilidade. A resposta que Freud dá a Dora é a mesma que ele vai dar, ao fim
do seu percurso, a toda a problemática da feminilidade.
Nosso ponto de chegada foi, então, marcar que a resposta a que Freud pôde chegar a
partir de seu projeto de entender o feminino, sempre “todo submetido” à primazia fálica,
consiste naturalmente numa ênfase na maternidade. Para Freud (1932-33), uma mulher
pode se posicionar de fato como tal se substituir o seu desejo de ter um pênis pelo desejo de
ter um filho de seu marido. A mulher estaria então toda condenada à inveja do pênis. Não
haveria, a partir dessa ótica, nada de propriamente feminino na mulher, na medida em que a
sexualidade feminina estaria inteiramente submetida ao desejo de falo. Assim, ao tocar na
questão a respeito do que é ser uma mulher; Freud responde com a mãe. Essa resposta
tende a corroborar a resposta que o imaginário social foi dando na história da feminilidade,
como nos aponta Birman (2001).
Porém, Freud aponta, ao mesmo tempo, que a feminilidade se mantém como um
enigma e sublinha que termina seu percurso mantendo esse campo aberto para novas
abordagens. Assim, o impasse final de Freud revela que em sua teoria não lugar para
uma posição verdadeiramente feminina, que nessa tentativa que empreende de agrupar o
desejo feminino – e, portanto, as mulheres – só pode se encontrar com a mãe.
É sobre esse aspecto que Lacan vem prolongar a obra de Freud, isolando este
inominável, esse fora-da-lei presente no sexo feminino. Para Lacan (1975), a feminilidade é
a figura maior do que ele formula em contraponto e contraste com o Universal e o
Particular da lógica aristotélica como não-todo, que não-toda a mulher se submete à
primazia do falo. Esta indicação de Lacan permanece como horizonte apenas do nosso
154
percurso, um horizonte que abre, quiçá, uma nova possibilidade de apreensão do feminino
que dá valor às reticências...
É que no percurso de cada mulher sempre um encontro com as reticências...
Apesar de cada uma delas, a partir desse encontro, reagir de uma maneira própria diante da
importância deste encontro. Encontro com o fato de que, mais além do que é dito ou,
mesmo, escrito, há sempre algo por dizer, mas que não pode ser dito.
É nesse sentido também que Lacan (1964) aponta para uma relação mais facilitada
das mulheres com o Outro. Exatamente por elas freqüentarem, por assim dizer, esse limite
do Outro, esse furo na linguagem, que as próprias reticências testemunham.
Segundo Freud (1932-33), essa aproximação se dá para que elas possam tecer.
Afinal, ele nos conta que as mulheres, desde Penélope, são ótimas tecedoras. Elas podem
tecer mais facilmente por ter essa relação mais facilitada com o Outro, e elas tecem
palavras, sentenças, livros e demandas. Tecem na expectativa de que as reticências possam
dizer dessa feminilidade que não se inscreve, que, como diz o poeta, “não tem governo nem
nunca terá”, mas que, ao não se inscrever, exige um trabalho incessante e impossível de
cada mulher que tem como destino essa missão de continuar a tecer.
A feminilidade é mesmo enigmática, como Freud nos aponta por toda sua obra, pois
se coloca inevitavelmente como Outro do falo e desafia o sujeito do inconsciente,
impingindo-lhe uma escolha, a escolha que a esfinge enuncia: “Decifra-me ou devoro-te”.
Abre-se, então, para nós uma questão acerca de uma posição feminina possível, a
partir dessa constatação de que em cada mulher algo que se e como um inominável,
uma feminilidade que lhe impõe um mais-além do registro simbólico.
É sobre essa questão que desejamos continuar a “tecer” numa nova pesquisa que
parta dessa questão do inominável e de suas conseqüências para a feminilidade a partir da
teorização do Seminário Mais, ainda, de Lacan, em busca de uma posição feminina
possível para uma mulher. Mulher que se situe em outro lugar que não a histeria e a
maternidade... Mesmo que essa busca do possível tenha como ponto de chegada o limite
mesmo da impossibilidade.
“Escrever não posso. Ninguém pode. É preciso escrever. Não se pode. E se escreve”
(Duras, M, 1994, p. 19).
155
156
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRÉ, S., (1986) O que quer uma mulher.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1998
BIRMAN, J., (2001) Gramáticas do Erotismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
CABAS,A.C., (1982) Curso e Discurso da Obra de Jacques Lacan. São Paulo:Editora
Moraes, 1998.
CHEMAMA, R.M (1993), Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas.
_____________ (2002) Elementos lacanianos para uma análise do cotidiano. Porto
Alegre: Editora CMC, 2002.
DURAS, M. (1994) “Escrever”. Rio de Janeiro, Editora Rocco.
FREUD, S. ([1892-1899] 1950/ 1969) “Extratos de documentos dirigidos a Fliess”. In
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro:
Imago.Vol.I., 1996
_________ (1888) “Histeria”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago.Vol.I., 1996.
_________ (1893 [1888-1893) ] “Algumas Considerações para um estudo comparativo das
paralisias motoras orgânicas e histéricas”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago.Vol.I, 1996
_________ (1892) “Esboços para a ‘Comunicação Preliminar’ de 1893” In ESB. Rio de
Janeiro: Imago.Vol.I, 1996.
_________ (1895/1977) “Projeto para uma psicologia científica”. In ESB. Rio de Janeiro:
Imago.Vol.I, 1996.
_________ (1893) “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: Comunicação
preliminar” In ESB. Rio de Janeiro: Imago.Vol.II, 1996.
_________ (1893-1895) “Estudos sobre a Histeria”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago.Vol.II,
1996.
_________ (1893) “Charcot”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago.Vol.III, 1996.
__________ (1894) “As neuropsicoses de defesa”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago.Vol.III,
1996.
__________ (1896) “A Etiologia da Histeria”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago.Vol.III, 1996.
_________ (1896/1969) “Novas Observações sobre as psiconeuroses de defesa”.In ESB.
Rio de Janeiro: Imago.Vol.III, 1996.
_________ (1900-01) “Interpretação dos sonhos”. Parte 1. In ESB. Rio de Janeiro: Imago.
Vol. IV, 1996.
_________ (1901) “Fragmento da análise de um caso de histeria” In ESB. Rio de Janeiro:
Imago. Vol. VII, 1996.
________ (1905) “Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade”. In ESB. Rio de Janeiro:
Imago. Vol. VII, 1996.
157
_________ (1913 [1912-13]) “Totem e Tabu”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol. VIII,
1996.
_________ (1907 [1906]) “Delírios e Sonhos de Gradiva de Jensen”. In ESB. Rio de
Janeiro: Imago. Vol. IX, 1996.
__________ (1908 [1907]) “Escritores Criativos e Devaneio”. In ESB. Rio de Janeiro:
Imago. Vol. IX, 1996.
_________ (1908a) Fantasias Histéricas e sua relação com a bissexualidade”. In ESB. Rio
de Janeiro: Imago. Vol. IX, 1996.
_________ (1908b) “Sobre as teorias sexuais das crianças”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago.
Vol. IX, 1996.
_________ (1909 [1908] “Algumas considerações gerais sobre os ataques histéricos”. In
ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol. IX, 1996.
_________ (1910) “Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância”. In ESB. Rio de
Janeiro: Imago. Vol.XI, 1996.
__________ (1918 [1917]) “O tabu da Virgindade (Contribuição à Psicologia do Amor III),
In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XI, 1996.
_________ (1910) “A concepção psicanalítica da perturbação psicogênicada visão”. In
ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XI, 1996.
_________ (1913) “O tema dos três escrínios”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XII,
1996.
_________ (1914a) “Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da
psicanálise II)”, In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XII, 1996.
__________ (1914b) “Sobre o narcisismo: uma introdução”. In ESB. Rio de Janeiro:
Imago. Vol.XIV, 1996.
__________ (1915a) “Repressão. In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XIV, 1996.
_________ (1915b) “As pulsões e suas vicissitudes”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago.
Vol.XIV, 1996.
_________(1916) “Alguns tipos de caráter encontrado no trabalho analítico”. In ESB. Rio
de Janeiro: Imago. Vol.XIV, 1996.
________ (1919a) “Uma criança é espancada”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XVII,
1996.
_________ (1919b) “O estranho”, In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XVII, 1996.
_________ (1920a) “Além do princípio de prazer”, In ESB. Rio de Janeiro: Imago.
Vol.XVIII, 1996.
_________ (1920b) “A Psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher”. In
ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XVIII, 1996.
_________ (1923a) “O ego e o id”, vol. In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XIX, 1996.
_________ (1923b) “A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da
sexualidade”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XIX, 1996.
_________ (1924 a) “A dissolução do complexo de Édipo”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago.
Vol.XIX, 1996.
_________ (1924b) “O problema econômico do masoquismo”, In ESB. Rio de Janeiro:
Imago. Vol.XIX, 1996.
__________(1925 a) “Algumas Conseqüências Psíquicas da distinção Anatômica entre os
sexos”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XIX, 1996.
_________ (1925) “Inibições, sintomas e ansiedade” In ESB. Rio de Janeiro: Imago.
Vol.XX, 1996.
158
_________ (1927) “Fetichismo”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XXI, 1996.
_________ (1930 [1929]) “Mal-estar na civilização” . In ESB. Rio de Janeiro: Imago.
Vol.XXI, 1996.
_________ (1931) “Sexualidade Feminina”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XXI,
1996.
_________ (1933[1932]) “Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise:
Feminilidade”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XXI, 1996.
_________ (1937) “Análise terminável e interminável”. In ESB. Rio de Janeiro: Imago.
Vol.XXIII, 1996.
GARCIA-ROZA, L. A. (1991) Introdução a Metapsicologia 1. Sobre as afasias. O Projeto
de 185. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
JONES,E. (1989 [1953-55-57]) Vida e Obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1989.
JULIEN,P. (1989) Retorno a Freud e Jacques Lacan. Porto Alegre: Artes Médicas.
MELMAN,C. (2003) O homem sem gravidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.
LACAN, J. (1949) O estádio do espelho como formador da função do eu. In : Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
________ (1951) “Intervenção sobre a transferência”. In : Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998.
___________(1954-55) “O seminário 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise”, Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1985.
_________ (1956-57) “O seminário 4: A relação de objeto”, Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1995.
_________ (1957-58) Livro 5: As formações do Inconsciente”. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1999.
_________(1958a) “Diretrizes para o Congresso sobre a sexualidade feminina”. In :
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
_________ (1958b) “A Significação do Falo”. In : Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998.
__________ (1958c) “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. In : Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
_________ (1964) O seminário 11 : Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
__________ (1969-1970) Livro 17 : O avesso da Psicanálise . Rio de Janeiro : Jorge Zahar
Editor, 1992.
__________ (1972-1973) Livro 20: Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
LISPECTOR, C. (1994) A Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
MILLER, J.A.(2000) Os seis paradigmas do gozo. São Paulo. In: Opção Lacaniana
26/27.
TRILLAT, E. (1991) – História da histeria. São Paulo:Escuta.
159
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo