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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Johnny Menezes Alvarez
O aprendizado da capoeira Angola
como um cultivo na e da tradição
Rio de Janeiro
2007
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O aprendizado da capoeira Angola
como um cultivo na e da tradição
Por Johnny Menezes Alvarez
Tese de doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia, Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como exigência parcial para obtenção
do grau de Doutor em Psicologia.
Orientação: Profª. Drª. Virgínia Kastrup
Rio de Janeiro, dezembro de 2007.
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Por Johnny Menezes Alvarez
O Aprendizado da capoeira Angola
como um cultivo na e da tradição
Rio de Janeiro, 10 dezembro de 2007.
______________________________________________
Virgínia Kastrup, Doutora em Psicologia - UFRJ
_
______________________________________________
Luciana Caliman, Doutora em Psicologia - UFRJ
_____________________________________________
Eduardo Passos, Doutor em Psicologia – UFF
_
____________________________________________
Pedro R. J. Abib, Doutor em Educação – UFBA
_
___________________________________________
Maurício B. de Castro, Doutor em História Social.
4
Ficha Catalográfica
ALVAREZ, Johnny Menezes
O aprendizado na capoeira Angola como cultivo na e da
tradição. Rio de Janeiro, UFRJ/Instituto de Psicologia, 2007.
Folhas: 227
Tese (doutorado em Psicologia) – Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 2007.
Orientador: Virgínia Kastrup
1- Aprendizagem. 2 – Capoeira Angola. 3 - Tradição
5
Resumo da Tese apresentada ao IP/UFRJ como parte dos requisitos necessários
para obtenção do grau de Doutor em Psicologia.
O aprendizado da capoeira Angola como um cultivo na e da tradição
Por Johnny Menezes Alvarez
Dezembro/2007
Orientadora: Virgínia Kastrup
RESUMO
Propomos neste trabalho descrever e analisar a experiência de aprendizado da capoeira
Angola. Utilizamos como metodologia análises de entrevistas, depoimentos, textos,
vídeo e áudio referentes ao mundo da capoeira Angola. Partindo de descrição histórica,
acompanhamos o nascimento das primeiras escolas de capoeira, a partir da década de 30
do séc. XX. Destacamos, assim, a formação da escola de capoeira Angola de Mestre
Pastinha, enfatizando uma descrição e análise de elementos desse aprendizado, desde os
movimentos da ginga, até a constituição da roda, passando pelas questões do
aprendizado de uma atenção à espreita, do tempo da vadiação, da musicalidade e o
ritmo do aprendizado, da ritualização da capoeira, da ética da mandinga, da política de
resistência e do papel do Mestre. Mostramos que por meio desses elementos amplia-se o
entendimento do aprendizado da Capoeira Angola para além de uma simples aquisição
de habilidades. Discutimos essa cultura do aprendizado presente na Capoeira Angola
estabelecendo um diálogo com a psicologia da aprendizagem e também com as idéias
de G. Deleuze, A. Kagame, M. Eliade, M. Sodré, V. Kastrup, entre outros. Pudemos
averiguar um modo de aprendizado encarnado em uma tradição, na qual aprendizes e
Mestres compartilham e cultivam saberes e práticas coletivamente.
6
Abstract
We propose in this work to describe and analyze the learning experience of capoeira
Angola. Our methodology consists of analyses of interviews, testimonies, texts, video
and audio referring to the world of capoeira angola. Starting with a historical
description, we accompany the birth of the first capoeira schools in the 1930’s onwards.
We give a special attention to the formation of Mestre Pastinha’s school of capoeira
Angola, emphasizing both a description as an analysis of the elements of that learning,
from the swaying movement up to the constitution of the circle, taking into account
questions related to the learning of a lookout attention, a vagrancy time, musicality and
the learning rhythm, the ritualization of capoeira, the ethics of the witchcraft, the
resistance politics as well as the role of the master. We demonstrate that through those
elements one gets a better understanding of the learning of capoeira angola that goes
beyond the simple acquisition of abilities. We discuss this learning culture present in
capoeira angola with the help of the psychology of learning as well as the ideas of G.
Deleuze, A. Kagame, M. Eliade, M. Sodré V. Kastrup, among others. We could verify a
way of learning that is rooted in a tradition where learners and masters collectively
share and cultivate knowledge and practices.
7
Agradecimentos
Ao Instituto de Psicologia da UFRJ por ter acolhido meu
trabalho.
Aos funcionários deste Instituto, principalmente a pessoa
encantadora de nossa querida secretária Ana. Incansável,
prestativa e carinhosa no trato da burocracia
À CNPq pela bolsa de estudos tão necessária para a conclusão
da pesquisa.
A Janice Mansur pela rápida e precisa revisão de texto.
A José Ferrão pela tradução do resumo.
Ao grupo de doutorandos e mestrandos que nos últimos 4 anos
estiveram comigo em discussões e debates importantes.
À minha querida orientadora Virgínia Kastrup que, desde o
mestrado, tem não só acompanhado este percurso como
participado de modo generoso e criativo nesta tarefa tão difícil
de orientação.
Aos professores Eduardo Passos, André do Eirado, João
Rezende, Cláudio Ulpiano e Clauze Abreu por terem, desde a
graduação cultivado, através da amizade, o interesse pelo
estudo e pelo magistério.
A Maurício Barros de Castro e Wallace de Deus pelo convívio
fraterno e mandingueiro desses últimos anos do “Inventário e
registro para Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio
Cultural do Brasil”.
A Frede Abreu pelo acolhimento pessoal, pelo farto material
disponibilizado em seu acervo da capoeira e principalmente
pelas conversas inteligentes e perspicazes sobre este
interessante mundo.
Aos colegas da experiência do “Casarão”, onde pude pela
primeira vez conviver com o aprendizado da capoeira Angola.
Aos Mestres de capoeira, representado pela pessoa de Mestre
Carlão, com quem tive o prazer de iniciar essa prática e por
quem tenho profundo respeito e admiração.
A minha linda e preciosa família: meus dois filhos João e
Morena, com quem tenho vivido a beleza dos ritos de iniciação
e da circularidade desta vida. Minha amiga, mulher, amante e
companheira de vidas Rejane, com quem tenho compartilhado
as belezas e dificuldades nos últimos 20 anos.
Aos meus principais mestres da vida, meu pai e minha saudosa
mãe. Com quem, desde muito cedo, pude vivenciar e cultivar a
rica experiência de aprender com e não como.
8
Para minha querida
e saudosa mãe Eliana
9
Sendo filho do mundo
O homem é natural
Como o vento ventando
E a chuva em temporal
Quem ensina o embalo do vento?
Percorrendo todo o espaço
Rodopiando ao firmamento
E a chuva o seu abraço
Quem ensina cá na terra?
Toda a semente de amor brotar
Como o sol que nunca erra
Faz a noite ter luar
E essa luz divina
É dos olhos a menina
De Pastinha o seu olhar
Capoeira é ventania
Luz do sol impoluta
Sempre viva dia a dia
Fruto povo e sua luta
Libertar do cativeiro
Cantando e batendo palma
Desejando ser ligeiro
Para iluminar a alma
Sonhando ser passarinho
Voar pelo azul do céu
Comungar nosso caminho
Tirando dos olhos o véu
Pois no mundo de rapina
Temos que ter muita fé
Só Deus sabe nossa sina
E foi Ele que fez mandinga
Para nos mantermos de pé
Antônio Gomide
10
INTRODUÇÃO.................................................................................................. 11
CAPÍTULO I – DA RUA PARA A ACADEMIA: O NASCIMENTO DAS
PRIMEIRAS ESCOLAS DE CAPOEIRA...................................................... 25
1.1 APRENDENDO NA RUA UMA ARTE MARGINAL..................................... 26
1.2 A CAPOEIRA REGIONAL BAIANA E A VERTENTE DESPORTIVA E MARCIAL
DA CAPOEIRA .................................................................................................... 34
1.3 - A CAPOEIRA ANGOLA E A ESCOLA PARA A VIDA: UMA RESISTÊNCIA À
MODERNIZAÇÃO DA CAPOEIRA ......................................................................... 42
1.4 - ALGUNS CAMINHOS DA CAPOEIRA NOS DIAS ATUAIS ............................... 50
CAPÍTULO II – APRENDER GINGANDO: DO APRENDIZADO DA
GINGA À GINGA DA APRENDIZAGEM .................................................... 57
2.1 O MOVIMENTO DA GINGA......................................................................... 57
2.2 O APRENDIZADO DA GINGA COMO AQUISIÇÃO DE COMPORTAMENTOS
AUTOMÁTICOS .................................................................................................. 61
2.3 O APRENDIZADO DA GINGA COMO AQUISIÇÃO DE HABILIDADES............. 75
2.4 A CIRCULARIDADE DA GINGA NA CAPOEIRA ANGOLA E OS PROBLEMAS DE
UMA APRENDIZAGEM DAS HABILIDADES .......................................................... 87
CAPÍTULO III - APRENDIZADO DA CAPOEIRA ANGOLA COMO UM
CULTIVO NA E DA TRADIÇÃO................................................................... 99
3.1 UM CULTIVO DE HÁBITOS E O APRENDIZADO DA ATENÇÃO................... 101
3.2 - O TEMPO NO APRENDER: A IMPORTÂNCIA DA VADIAÇÃO....................... 127
3.3 A MUSICALIDADE E O RITMO DO APRENDIZADO .................................... 146
3.4 A MAGIA E A ÉTICA DA MANDINGA: UM APRENDIZADO DA MALÍCIA..... 163
3.5 - O PAPEL DO MESTRE E A RODA COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO DO
APRENDIZADO DA E NA TRADIÇÃO.................................................................. 193
CONCLUSÃO.................................................................................................. 215
REFERÊNCIAS............................................................................................... 224
11
INTRODUÇÃO
Nosso trabalho tem como principal objetivo descrever e discutir a prática de
aprendizado comum à tradição da capoeira Angola. Afastando-se um pouco das
pesquisas em educação, que privilegiam os aspectos relativos a técnicas de ensino,
daremos destaque à descrição e análise da experiência de aprender capoeira. É a
experiência do aprendizado da capoeira Angola, seus processos, práticas e ritos que nos
servem de foco nesta pesquisa. Tais descrições serão acompanhadas de discussões com
algumas teorias psicológicas da aprendizagem. Buscamos, então, sempre seguindo as
pistas do aprendizado da capoeira Angola, apontar seus limites e indicar quais outros
modos de pensar a aprendizagem em psicologia.
Nesse sentido, nosso interesse é dar continuidade à dissertação de mestrado
defendida em 1999 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ, na qual
discutimos dois modelos construtivistas de aprendizagem: aquele proposto por Piaget e
o que se apresenta a partir do trabalho dos biólogos chilenos Humberto Maturana e
Francisco Varela, na conhecida como Teoria da Autopoiese. O interesse pelo
construtivismo se deve ao papel positivo que a experiência exerce enquanto prática de
transformação temporal.
No período em que desenvolvia essas questões em meu mestrado, começava a
me encontrar com o universo da capoeira Angola, participando ativamente do Grupo de
Capoeira Angola Pelourinho (GCAP) em sua subsede em Niterói, coordenada pelo
professor Carlo Alexandre Teixeira (Carlão)
1
. Nossas atividades aconteciam num
espaço conhecido como “Casarão” no Bairro de São Domingos, reunindo em nosso
grupo pessoas de várias idades e classes sociais.
1
Atualmente já como Mestre de capoeira, Carlão desenvolve um trabalho em seu novo grupo chamado
Kabula sediado em Londres e no Rio de Janeiro.
12
Durante mais ou menos quatro anos vivenciamos ricas experiências de
aprendizado da capoeira e de suas tradições, numa estreita convivência coletiva e
generosa. Diante do interesse em continuar pesquisando a aprendizagem e de minhas
vivências como aprendiz de capoeira Angola é que surgiu a idéia do presente trabalho.
Penetrar no universo do aprendizado da Capoeira Angola a partir da perspectiva do
aprendiz, descrevendo e analisando suas práticas. Empreender, à luz desses jogos de
aprender capoeira, um diálogo com o campo dos estudos de aprendizagem,
entrecruzando, para a sua compreensão, a psicologia, sociologia, antropologia, filosofia
e artes.
Em linhas gerais, a tradição dos estudos psicológicos da aprendizagem tem
buscado compreender o aprendizado como uma experiência de aquisição de habilidades
que nos permitam resolver problemas. Nesse aspecto, aprender é adquirir condutas
adequadas aos problemas que nos são postos de fora, pelo ambiente físico ou social.
Tais formas de entendimento parecem reduzir a aprendizagem a uma concepção
utilitária e adaptacionista, centrada nas ações que levam os sujeitos a aprender por
automatização. Suas divergências passam mais pelos modos distintos de explicação
desse processo de aquisição, permanência e extinção das habilidades, do que permite
refletir-se sobre novos problemas a respeito da prática de aprender.
Mostraremos como essas explicações psicológicas da aprendizagem visam a um
modelo geral que conta de amplas situações de aprendizagem. Inclinados numa
perspectiva teórico e experimental generalista, tais pesquisas acabam reduzindo as
experiências de aprender a “experimentos” de aprendizagem. Dito de outra forma,
algumas pesquisas em psicologia da aprendizagem visam a produção de um modelo, a
partir de experiências ou tarefas controladas pelo pesquisador, que acabam sendo
descritas e explicadas de fora por este. O acesso à experiência rica e fluida do aprender
13
acaba sendo reduzida a uma série de procedimentos homogêneos descritos de maneira
mediata pelo observador
2
. Tal perspectiva que de algum modo é predominante na
história da psicologia científica, é segundo veremos questionada pela tradição das
práticas de aprendizado da capoeira Angola.
Nesse sentido não utilizamos uma metodologia que de algum modo afaste o
pesquisador do objeto pesquisado. Apostamos assim, ser possível estudar as dinâmicas
do aprendizado da capoeira por dentro desta experiência, sem necessidades de
generalizações e mediações controladas pelo observador e seus métodos. Como
Deleuze, acreditamos que o caminho do aprendizado “(...) está, antes de mais nada, do
lado do rato no labirinto, ao passo que o filósofo fora da caverna considera somente o
resultado o saber para dele extrair os princípios transcendentais” (DELEUZE, 1988,
p.271).
Na ocasião da apresentação desse projeto eu havia interrompido meu convívio
de aprendizado da capoeira Angola. Visava então voltar a desfrutar desta convivência e
iniciar um trabalho de campo, elaborando relatórios qualitativos e participantes das
rotinas de treinos e rodas de capoeira. Mas por forças de ocasião cheguei ao segundo
ano do doutorado sem uma rotina de treinos, o que me forçou a mudar minha estratégia
metodológica. Comecei a procurar uma bibliografia de capoeira que contivesse de
algum modo descrições dos próprios capoeiras a respeito de seu aprendizado e das
práticas de seus grupos. Mergulhei numa busca de registros, manuscritos de próprio
punho dos Mestres, entrevistas e depoimentos, assim como reportagens jornalísticas,
textos literários, fotos, pinturas e desenhos que descrevessem este universo, tanto da
capoeira atual quanto de seus modos antigos de aprender. Procurei também estudar as
2
A respeito do nascimento da psicologia científica em meados do século XIX, Arthur Arruda nos mostra
que a psicologia “(...) para ser reconhecida como científica, seja mais do que a descrição do sujeito
empírico, ou das vivências imersas em um mundo de ilusões: ela deve ter, no trato com a experiência
imediata, todo o rigor de uma experiência cientificamente mediada e matematizada” (2006: 21).
14
diversas teses e livros que discutiam este tema. É bastante recente o interesse acadêmico
pela capoeira. A primeira dissertação que se tem notícia, tendo a capoeira como tema, é
a de Júlio Tavares defendida em 1984 no departamento de Sociologia da Universidade
de Brasília. É, portanto, a partir da década de 80 que a universidade abre suas portas
para pesquisas e publicações sobre a capoeira.
Também por força da ocasião recebo um convite para participar como
pesquisador da construção do Inventário para salvaguarda da capoeira como
patrimônio imaterial do Brasil
3
. Nestes dois últimos anos pude participar de vários
encontros de capoeira na cidade do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, onde consegui
não apenas um farto material para esta tese como também oportunas e ricas experiências
com diversos grupos e Mestres. Sem contar com a reconstituição da memória dos meus
não longos, mas intensos, anos de aprendizado da capoeira no “casarão”, que a pesquisa
para essa tese acabou por reavivar. Somadas a esse material a respeito da capoeira,
principalmente da capoeira Angola, foram acrescentadas análises de textos e livros de
psicologia, sociologia, antropologia, pedagogia, filosofia, literatura e artes em geral.
No primeiro capítulo da tese iniciamos nosso mergulho no universo do
aprendizado da capoeira por meio de uma descrição histórica da formação das primeiras
escolas de capoeira desenvolvidas no Brasil a partir da década de 30 do século XX.
Para chegarmos a estes anos de formação, iniciamos uma descrição dos modos antigos
de aprender capoeira. Destacamos um cenário em que os capoeiristas viviam e
realizavam estas tradições fora dos espaços oficiais, de academias e escolas
4
. Tempos
onde o aprendizado da capoeira estava ligado ao cenário da rua. Nas festas, no trabalho,
nas praças e botequins é que o capoeira aprendia. Aprendia-se “de oitiva”, ou seja, por
3
Este trabalho foi encaminhado pelo Ministério da Cultura e realizado pelo IPHAN (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pelo Museu da República do Rio de Janeiro. Sob
coordenação do professor da UFF Wallace de Deus e do pesquisador Mauricio Barros de Castro.
4
Final do século XIX e o início do XX na Bahia.
15
observação e prática, sem método ou sistematização. O capoeirista aprendia dentro
deste cenário sem pertencer a grupos ou agremiações, se aproximando daqueles que
melhor sabiam jogar. A relação do aprendiz com o capoeirista era aquela ligada aos
espaços abertos, do trabalho, das festas e reuniões públicas.
Mais tarde, a partir da década de 30 do culo XX, na cidade de Salvador,
surgem as primeiras escolas de capoeira. Damos destaque a duas delas, que marcaram
profundamente a história atual da capoeira. São elas: a Escola de Capoeira Regional
Baiana fundada por Manuel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, registrada no ano de
1937, e o Centro Esportivo de Capoeira Angola, liderado a partir de 1941 por Vicente
Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha. Tentamos mostrar e apontar as modificações no
aprendizado da capoeira que a criação destas escolas produziu. Ligados a espaços
privados, iniciam-se profundas transformações, como a criação de métodos de ensino,
de uniformes, estatutos, e principalmente de uma rotina ligada às tradições escolares.
A capoeira Regional, hoje hegemônica no Brasil e no mundo, procurou
privilegiar o aspecto esportivo e marcial da capoeira, o que a levou a destacar em suas
práticas de transmissão os esquemas tradicionais de aprendizagem das escolas formais
de uma prática desportiva. Além disso, buscou-se uma eficiência técnica visando a um
aprimoramento dos resultados atléticos, deu-se ênfase à criação de avaliações
sistemáticas [batizado] dos movimentos, golpes, toques e cantos e à criação de espaços
para a competição, inicialmente com outras formas de luta, e depois dentro dos próprios
grupos. Tal perspectiva buscava marcar uma ruptura com o passado marginal, ligado ao
modo de ser malandro, em nome da formação das bases do genuíno esporte nacional.
16
A capoeira Angola, que tem na figura de Mestre Pastinha um de seus principais
defensores
5
, parece empreender outro modo de inserção na modernidade. Mestre
Pastinha também era um crítico do modo antigo de praticar capoeira, discordando da
áurea de violência e marginalidade que a envolvia. Assim, buscava tal como a escola de
Mestre Bimba marcar profundas mudanças nessa tradição, fundando uma escola, com
nome, espaço, estatuto e regras de convívio em perfeita sintonia com esses novos
tempos.
Entretanto, desde o início o centro de capoeira Angola de Mestre Pastinha via
com maus olhos essa acelerada transformação da capoeira em um esporte ou luta.
Pastinha não negava que esses elementos estivessem presentes na capoeira, mas se
esforçava por marcá-la por um aspecto cultural, recuperando sua vinculação com os
ritos e tradições dos ancestrais negros. Aceitava as mudanças de modernizações sem,
contudo se afastar do passado e de suas ligações africanas, preservando a seu jeito seus
rituais e buscando resistir a uma assimilação plena pelos ares modernizantes. Nesse
sentido, as duas escolas nascem com discursos e práticas distintas que irão marcar
profundamente o futuro desta tradição.
Nosso histórico termina por apontar algumas tendências disto que hoje
chamamos de Capoeira Angola e Regional, cientes de que existem múltiplos grupos,
com inúmeras variações desse universo que se transforma e persiste até hoje em nosso
país e no mundo. Esta inserção histórica não visa encontrar uma linha de
desenvolvimento, como caminhos únicos e lineares das práticas de aprendizado da
capoeira, mas apresentar algumas questões que podem nos ajudar a entender o que hoje
se faz para aprender capoeira.
5
Não é certo dizer que a Capoeira Angola tem seu início com Mestre Pastinha, que este mesmo
procura afirmar que a Capoeira Angola é a própria capoeira mãe. Mestre Pastinha para nós é importante
porque se deve a ele uma tentativa mais clara de resistência aos ares modernizantes que a capoeira de
origem regional procurou realizar a partir da década de 30 do século passado.
17
Além disso, diante de minha inserção como praticante no mundo da capoeira
Angola e da colocação do problema do seu aprendizado, como indica o título do
trabalho, estarei quase sempre me referindo a esse campo. É sobre ele que se situam
minhas considerações. Não é objetivo deste trabalho criticar ou analisar outras formas
de praticar e aprender capoeira, que não as da prática da capoeira Angola, centrando
minhas descrições, análises e críticas nesse campo específico. Assim toda vez que me
referir à “capoeira”, falo da capoeira Angola, com exceção do primeiro capítulo, onde
trato da história recente das escolas de capoeira. Se por ventura, ao longo dos outros
capítulos, me referir a outras formas de capoeira serei explícito em sua referência. Tal
particularidade deste trabalho não impede que essas descrições e análises sirvam para as
outras escolas e grupos de capoeira. Mas isso é outra história.
No segundo capítulo iniciaremos a discussão do aprendizado da capoeira por
uma descrição do seu principal movimento que é a ginga. Mostraremos a dinâmica da
ginga e sua importância para o jogo de Angola. Já que é nela que os outros movimentos
se encontram, numa circularidade. Inicialmente desconexos os movimentos e a ginga
vão ganhando com os treinamentos uma maior continuidade e velocidade. À luz dessas
transformações indicaremos como a psicologia da aprendizagem as explicariam.
A primeira vertente é a da psicologia americana conhecida como behaviorista
cujo principal autor é Burrhus Frederic Skinner. Após a apresentação sucinta de alguns
de seus principais conceitos, como o de condicionamento operante e de reforço,
mostramos como o aprendizado da ginga pode ser entendido sob às vistas desses
conceitos. O aprendiz começa imitando e de acordo com os efeitos de suas ações, as
condutas são modeladas. O ambiente exterior vai condicionando, por meio dos
reforçamentos, os comportamentos operantes adequados. Deste modo, o aprendizado da
ginga se explica por um condicionamento que leva o movimento a se realizar cada vez
18
mais automático e continuo, se fixando melhor às circunstâncias estimuladoras.
Aprender é, assim, superar as hesitações iniciais em busca dos comportamentos
automáticos.
Depois, pautando-nos no aprendizado da ginga, analisamos como a teoria de
aprendizagem social de Albert Bandura pode explicar esse aprendizado. Insatisfeito
com o behaviorismo, por ter considerado unicamente os aspectos reforçadores do
ambiente físico e social, Bandura tentará acrescentar às ferramentas
comportamentalistas fatores cognitivos que atuariam como mediadores no processo de
aprendizagem modelada. Propõe no lugar de modelagem o conceito de modelação. Os
fatores cognitivos (atenção, memória, motivação e inteligência) atuam como
mediadores na adequação das condutas aos modelos sociais. Para Bandura na maioria
das vezes aprendemos indiretamente pela observação das condutas dos outros, numa
aprendizagem social. A ginga seria considerada uma habilidade social e o seu
aprendizado se daria por uma modelação desta pelo aprendiz a partir das observações
dos outros. Ainda dentro de uma concepção utilitária e adaptacionista, a teoria das
habilidades sociais restringe o aprendizado a uma prática geral de adequação a certos
modelos sociais.
Após esta discussão mostramos como as principais características da ginga na
capoeira Angola não estão contempladas nessas explicações. Ao contrário de ser um
movimento que busca um automatismo, de respostas cada vez mais submetidas aos
estímulos do ambiente ou as expectativas subjetivas do gingador, mostramos como a
ginga envolve elementos que normalmente são considerados antagônicos. E até mesmo
inversamente proporcionais, nos quais o desequilíbrio seria superado pelo equilíbrio,
hesitação pela continuidade, lentidão pela velocidade, particularidade pela generalidade.
19
Tentamos mostrar que a ginga e os demais movimentos da capoeira atravessam
uma experiência distinta daquela da automatização e adequação a modelos. Isto pode
dar certo numa coreografia encenada, na qual cada participante é condicionado a
realizar movimentos previsíveis e velozes, mas num jogo de capoeira não há encenação,
pelo menos nesse sentido. O que os jogadores aprendem é que a ginga é um movimento
de surpresa e de ilusão. Ginga-se para justamente fugir da previsão do golpe seguinte.
Assim o aprendiz vai descobrir o caráter paradoxal que envolve esse movimento. A
ginga atravessa por momentos de indeterminação, ou pequenas interrupções
desequilibrantes. Para tanto utilizamos a noção de “ circularidade criadora” de Francisco
Varela e a de “equilíbrio precário” do artista pernambucano Antônio Nóbrega.
No terceiro capítulo vamos procurar ampliar o sentido de aprendizado da
capoeira. No lugar de treino de habilidades vamos propor a noção de cultivo na e da
tradição. Deslocando o aprendizado da idéia de controle e adequação do aprendiz a
situações prévias e movimentos pré-existentes, a noção de cultivo vem se aproximar
de um cuidado com o aprendiz, criando circunstâncias para que este possa encontrar
os caminhos do aprender. No lugar de um aprender como um aprender com.
Vamos propor também uma alteração no entendimento da noção de hábito ou
rotina. Normalmente atribuída a um processo de fixação de um comportamento que
se repete, vamos mostrar, a partir do trabalho de Félix Ravaisson, que o hábito não é
um estado, mas uma tendência que se forma na repetição de diferenças. Esse autor
compreende que esta constituição se numa transformação pela experiência de uma
posição inicialmente receptiva até o advento de uma espontaneidade. Ampliando essa
idéia mostramos como a formação do hábito na capoeira concilia receptividade ou
abertura aos acontecimentos e espontaneidade ou naturalização dessas condutas.
20
O cultivo do hábito como um processo, sempre em construção, exige um
ritmo. Tal ritmo, normalmente ligado à dinâmica dos fazeres, deverá no cultivo da
capoeira Angola, levar o aprendiz a salientar uma mudança na disposição da atenção.
Normalmente associada a um papel de seleção dos estímulos que devem ser focados
para a ação, tentaremos mostrar a importância para a prática da capoeira Angola um
aprendizado de uma atenção desfocada e aberta.
Utilizamos os trabalhos que Virgínia Kastrup tem desenvolvido referentes ao
tema do aprendizado da atenção. No aprendizado da capoeira o aprendiz é levado
6
a
cultivar uma atenção flexível e desfocada que serve para distrair o adversário
iludindo-o. A capoeira Angola, por ser mais manhosa e malandra, cultiva nos
angoleiros um jeito de ser imerso numa atenção desfocada que permite ao jogador
sair do esquema sensório-motor que muitas vezes o jogo de capoeira acaba recaindo.
O cultivo de uma outra forma de atenção, menos focada é fundamental para a prática
da capoeira Angola.
Depois de expor as noções de cultivo de um hábito e de uma atenção
desfocada, mostramos a importância do tempo no processo de aprendizado,
enfatizando - a partir dos estudos de Aléxis Kagame a respeito da percepção empírica
do tempo nas culturas de tradição Bantu - um tempo dos eventos, diferente do tempo
homogêneo e geral do relógio, tempo abstrato e desencarnado. Um aprendizado que
exija um tempo a perder, permitindo-nos uma atenção às nuances dos
acontecimentos. Para salientar a importância do cultivo de um tempo qualitativo e
colado nos eventos, abordamos o sentido da vadiação no aprendizado da capoeira
Angola. Vadiamos quando podemos sair do controle do tempo homogêneo e
6
O termo levar é utilizado aqui no sentido musical e rítmico. Como uma levada de forró, samba etc.
Portanto somos levados por um ritmo e não para algum lugar prévio.
21
histórico, penetrando no tempo próprio dos eventos, tempo das brincadeiras, das
práticas destituídas de objetivos utilitários.
Nesse tempo próprio, no qual os capoeiras cultivam hábitos, localizamos
outros vetores ou forças que atravessam este aprendizado. A paisagem da capoeira
Angola ficaria muito restrita se reduzida aos seus movimentos e hábitos corporais,
visto que estes estão imersos numa tradição. Tradição viva, e não uma mera
reprodução folclorizada. Nesse sentido, abordamos algumas destas dimensões da
tradição viva da capoeira Angola, seus ritos, suas expressões estéticas, seus ritmos, a
magia e a ética da mandinga, os aspectos políticos de resistência e negociação com o
adversário, a dimensão coletiva e em comunhão dos capoeiras, a roda e o papel do
Mestre de capoeira; tudo isso a fim de descrever e compreender suas práticas de
cultivo e aprendizado.
Mostramos a importância dos aspectos estéticos, do grego aisthesis que
significa uma sensibilização à beleza. Tal sensibilização estética é vital para que o
aprendiz da capoeira Angola possa cultivar os aspectos estéticos envolvidos nesta
arte, elementos artísticos tão próprios das tradições afro-brasileiras, do batuque dos
atabaques e pandeiros, dos toques dos berimbaus, da canto das ladainhas, chulas e
corridos. Destaca-se o valor dessa questão rítmica, não apenas por sua beleza, mas
por sua integração com os movimentos ou danças, formando uma circularidade
criativa. Os dançarinos vão se sensibilizando aos toques e ritmos e esses vão
indicando os passos, numa dinâmica auto-regulada. Para tanto usamos o trabalho de
Muniz Sodré a respeito do samba. Aprender dançando e cantando onde os
movimentos seguem uma cadência própria desta estética da existência.
Analisamos o papel que o mistério e o sagrado desempenham no aprendizado
do angoleiro, pensando a importância da ritualização dos fazeres da capoeira Angola,
22
cuja convivência permite ao aprendiz se envolver e respeitar as dimensões sagradas
desta prática. O sagrado aqui será descrito a partir do trabalho de Mircea Eliade que
vislumbra a manifestação das forças misteriosas, dos deuses e dos antepassados nos
eventos e no tempo natural da história. Mas essa forma de ritualização é própria de
culturas que de algum modo se conjuram à importância da história e das
determinações próprias ao tempo dos homens. Desse modo, a ritualização comum da
capoeira ocorre em uma sociedade onde o tempo histórico e cronológico é
determinante. A mandinga, portanto, seria um modo de negociação que Sodré diz se
sustentar numa “forma dissimétrica”. Assim, a noção de mandinga se afasta um
pouco de sua acepção religiosa e se aproxima mais de uma ética, na qual o sagrado e
os ritos se realizam nos espaços profanos, das festas, das ruas e academias; de uma
sacralização do cotidiano, das pequenas coisas, da confecção de um berimbau, da
comida e etc.
Assim, realizamos a análise dos aspectos éticos implicados no aprendizado da
capoeira Angola. A importância da manha e de certa malandragem como um ethos
cultivado pelo capoeirista, e ao mesmo tempo o aprendizado dos fundamentos, dos
valores e regras desta tradição. Vimos como o fundamento ou a regra não se
confundem como os fundamentos e regras morais, descoladas das experiências, mas
como princípios e valores que a seu tempo permanecem sempre de modos diferentes.
Estratégia própria dos povos africanos, que buscam manter os fundamentos se
misturando com o inimigo. Vimos que essa tendência malandra é uma importância
prática política de resistência, que nem se rende ao moderno nem busca a pureza das
tradições do passado. Nela o que fica do passado é o exemplo de combater nos
interstícios do mundo presente de modo dissimulado e iludindo os adversários.
23
Por último vamos tratar de dois temas importantes no aprendizado da
capoeira. O papel dos Mestres e da paisagem da roda como sendo o grande
“professor” nesse cultivo da e na tradição. De saída mostramos existir dois sentidos
para o que seja Mestre. O primeiro, mais próximo dos espaços escolares trata o
Mestre como àquele que sabe algo e por isso pode ensinar. Esse conhecimento será
melhor compreendido e transmitido quanto mais conceitual, sistemático e simples.
Conhece melhor quem não faz e quem faz, por estar muito próximo da ação, não
conhece de modo claro e sistemático. Tal sentido se afasta daquele que encontramos
na tradição da capoeira. Mais próximo dos Mestres de ofício e das artes da cultura
popular, o Mestre da capoeira conhece por que sabe fazer. Mas o fazer da capoeira
não se restringe aos movimentos do corpo, como temos visto até aqui. Assim, uma
das principais tarefas do Mestre na capoeira é ser o guardião dos fazeres e saberes
envolvidos nesta tradição. Assim ele cria com seus companheiros de grupo as
situações ou liturgias próprias para a prática da capoeira.
Porém, realizar com zelo e dedicação as liturgias da capoeira não garante o
aprendizado da capoeira, assim como a continuação da tradição. É necessário cultivar
um engajamento dos aprendizes. E entra a segunda função do Mestre. Atuar como
intercessor, como um falseador. Deleuze (1992) propõe esse conceito como forças
transversais que atuam impedindo as formas comuns dos valores dicotômicos; sujeito
e objeto, interior e exterior, certo e errado, bom e mau, verdadeiro e falso etc. O
Mestre atua, portanto quebrando as formas fixas para que o aprendiz possa acontecer
com o acontecimento. Acolhimento e desapego, cuidado e falseamento. Estas duas
posições atuam juntas mostrando na prática que ninguém ensina e ninguém aprende
nada, já que a idéia psicológica de apropriação é justamente o que cega o aprendiz. O
24
falseador atua para que a o aprendiz possa se desapegar de si. Algo aprende e algo
ensina.
Na roda, e não no Mestre e no aprendiz, é que encontramos as grandes
condições para aprender, pois essa ritualística pode reunir todos os elementos
descritos até aqui. O cultivo de uma atenção aberta, o tempo da vadiação, a ética da
mandinga, as manifestações do sagrado, a política da resistência, e os cuidados do
Mestre. A roda, portanto, assim como a grande roda da vida, é onde podemos cultivar
não um saber, mas um aprender a aprender, uma disponibilidade e uma atenção à
vida.
25
CAPÍTULO I – Da rua para a academia: o nascimento das primeiras
escolas de capoeira
A capoeira enquanto uma expressão cultural afro-brasileira vem se mantendo até
os nossos dias, sobretudo, graças a uma memória oral, transmitida de geração para
geração por meio de suas práticas e rituais. Por isso, podemos destacar a importância de
seu aprendizado justamente porque são as práticas de iniciação e de desenvolvimento da
capoeira que tem mantido essa cultura viva. Podemos afirmar também que durante a
sua longa história a capoeira vem se modificando, incorporando e abandonando algumas
das tradições de aprendizado e transmissão.
Nesse sentido, buscaremos neste capítulo narrar e descrever alguns aspectos da
história recente da capoeira no Brasil e de seus processos de aprendizado, indicando
características importantes e discutindo, quando necessário, algumas diferenças que o
tempo se encarregou de gerir. Como toda narrativa sobre a história, principalmente de
uma tradição que se mantém pela oralidade, não pretendemos esgotar o tema, nem
determinar uma única direção histórica dos processos de aprendizado da capoeira, como
se houvesse uma linha em desenvolvimento. Mais do que determinar uma única e
verdadeira linha do tempo, nossa narrativa visa trazer histórias, contadas pela tradição
da capoeira, que nos permitam visualizar a diversidade e riqueza das práticas de
aprendizado de uma cultura popular enraizada em nosso povo.
Essa diversidade começa com as discussões, nem sempre consensuais, a respeito
da origem da capoeira. Como diz Waldeloir Rego no livro Capoeira Angola: ensaio
sócio-etnográfico escrito em 1968: “... no caso da capoeira, tudo leva a crer seja uma
invenção dos africanos no Brasil, desenvolvida por seus descendentes afro-brasileiros
(...) (p.31)”. Nesse sentido, nossa narrativa se prenderá à história brasileira da capoeira,
26
o que não nos impedirá de apontar, quando necessário, para as raízes africanas desta
tradição. Pois como dizem os capoeiristas “a capoeira é brasileira, mas seu fundamento
é africano”.
Nosso roteiro será dividido, então, em três momentos históricos que parecem
caracterizar fases marcantes e distintas da capoeira e de seus modos de aprendizado. A
primeira fase destacará as formas de aprendizado da capoeira existentes no período de
sua completa criminalização (séc. XIX e inicio do XX), até sua descriminalização em
1937. Posteriormente, abordaremos o período que chamamos “escolarização da
capoeira”, no qual são formadas as primeiras academias oficiais e institucionalizadas de
capoeira, destacando-se principalmente as vertentes Regional, de Mestre Bimba, e a
Angola, de Mestre Pastinha. Tal período abarca quatro décadas que se seguiram à
descriminalização da capoeira (década de 30 até os anos 80). Por último, abordaremos o
período que vai da década de 80 até os nossos dias, ou fase contemporânea da capoeira,
no qual podemos observar o crescimento e difusão da capoeira baiana (Regional e
Angola) por todo o Brasil e o mundo, numa proliferação de grupos e vertentes.
1.1 – Aprendendo na rua uma arte marginal
Desde sua origem, no período colonial brasileiro, a capoeira tem sido
considerada uma prática marginal e os seus participantes apresentados muitas vezes
como delinqüentes que a sociedade deve vigiar, controlar e punir. A primeira
codificação penal brasileira, intitulada de “código criminal do Império do Brasil”,
datada de 1830, não possuía uma referência explícita quanto aos praticantes da capoeira,
mas os chefes de policia os enquadravam no capítulo que tratava dos vadios e
mendigos. Com o fim da escravidão e o início da República, a capoeira é inserida “com
27
todas as letras” no Código Penal brasileiro através do decreto de 11 de outubro de 1890,
que assim dizia:
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza
corporal, conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias,
com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal,
provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou
incutindo temor ou algum mal:
Pena: de prisão celullar de dois meses a seis meses. (BARBIERI, 1993, p.
117).
Munida agora de um instrumento jurídico específico de incriminação da
capoeira, a polícia pôde reprimir com extrema violência os praticantes desta tradição.
Deste modo, o final do século XIX e o início do século XX é marcado, principalmente
nos arredores das cidades de Salvador, Rio de Janeiro e Recife, por histórias de
combates e conflitos entre as maltas dos capoeiras e as forças policiais.
Esses praticantes, em sua maioria descendentes dos escravos, eram moradores
das comunidades populares nas quais o samba, o candomblé, o batuque e a capoeira
estavam enraizados. Na Bahia (principalmente na região do Recôncavo e na cidade de
Salvador) a presença dos capoeiras era em tudo notada, muito especialmente nas festas
populares, fossem elas profanas ou religiosas. Como não havia academia organizada, a
reunião dos capoeiras se dava em torno dos principais acontecimentos festivos da cidade
ou nos ambientes de trabalho (principalmente o cais do porto), durante as horas de
descanso ou de espera por uma oportunidade de trabalho, assim como nas ruas,
botequins e quitandas. Essa característica informal e não profissionalizante dos
capoeiras desta época vai marcar profundamente o modo como as práticas de
aprendizado serão exercidas. Por serem eles perseguidos pela sociedade oficial e legal,
sua organização deveria ser móvel e dinâmica, dissimulada e malandra. Nesses espaços
sociais, os capoeiras eram identificados por seus feitos individuais, cada praticante
28
trazia para o jogo da capoeira suas singularidades que eram marcadas por características
de sua vida pessoal, sua profissão, suas roupas etc.
A capoeira, dessa forma, era aprendida e desenvolvida no cotidiano, sem ocupar
lugares específicos e próprios para o seu cultivo. Na paisagem dos grandes centros
urbanos é que nasciam os grandes mestres
7
. Carregando seus instrumentos e armas para,
se caso fosse preciso, usá-las os capoeiras se dirigiam para esses espaços públicos.
chegando abriam uma roda e iniciavam seus rituais de vadiação, movimentos, golpes,
cantos e danças. A rua, portanto, era o lugar principal onde o capoeira praticava sua arte
e desenvolvia suas capacidades. Dentre os nomes famosos dos capoeiras desta época na
Bahia podemos destacar: Besouro Cordão de Ouro (Besouro Mangangá), Dois de Ouro,
Chico Porreta, Sete Mortes e Samuel Querido de Deus, entre outros. (REGO, 1968).
Por não haver um lugar específico para o treino e o jogo da capoeira, o ensino e
a transmissão das tradições dessa arte giravam em torno daqueles espaços abertos e
públicos. Entretanto, por seus praticantes serem considerados ilegais e ate mesmo
imorais, tais relações de ensino e aprendizagem deveriam se dar num ambiente de
enorme cumplicidade e dissimulação por seus integrantes e, por isso, os capoeiras não
viviam exclusivamente de sua prática, todos tinham outras maneiras de ganhar o seu
sustento. A capoeira, portanto, vivia uma relação de ambigüidade, sendo, ora altamente
pública, que eram naqueles ambientes que as vadiações e combates ocorriam, ora
dissimulada, com rigorosas estratégias de acobertamento. É nesse cenário que os
aprendizes da capoeira deveriam se inserir para instruirem-se nos mistérios dessa arte.
7
Usamos a terminologia “Mestre” para nos referir àqueles que eram reconhecidos nas rodas da vida como
excelentes capoeiristas. Mas é importante frisar que além de não ser comum o uso desse termo nesta
época, (segundo o relato de Ângelo Decânio (1997-A) é somente após o início da escola de Bimba é que
se iniciou a referencia destes como mestres ) o seu sentido é diferente do que hoje, muitas vezes, se
entende por mestre, vinculando-o a uma prática de ensino e transmissão da capoeira organizada em
escolas.
29
Uma primeira e importante característica dessa forma de aprendizagem é a
relação entre o “mestre” e o aprendiz. Esta relação tem que ser direta, e deve ser
acompanhada de enorme afinidade e ligação afetiva. Não havendo espaços
institucionais específicos para o treino e cultivo da capoeira o aprendiz deveria se
vincular diretamente aos mestres e praticantes. Seu engajamento para com a capoeira
teria de ser pleno, aproveitando sempre as oportunidades para extrair conhecimento dos
mestres, seja numa briga de rua ou tomando uma bebida juntos. Aprendia-se nos
terreiros abertos em frentes às quitandas, botequins, festas e até mesmo no quintal das
residências. Sobre isso nos diz Waldeloir Rego:
Não havia Academias de capoeira, nem ambiente fechado, premeditadamente
preparado para se jogar capoeira. Antigamente havia capoeira, onde havia
uma quitanda ou uma venda de cachaça, com um largo bem em frente,
propício ao jogo. Aí, aos domingos, feriados e dias de santos, ou após o
trabalho se reuniam os capoeiras mais famosos, a tagarelagem, beberem e
jogarem capoeira. (REGO, 1968 p. 35-36).
Outra característica também muito importante dessa forma singular de
aprendizado é a inexistência, por parte dos mestres, de uma metodologia ou pedagogia
específica para a transmissão de sua arte. Como é na roda da vida que se aprende e se
ensina, podemos dizer que o aprendizado não passa por técnicas formais. Os capoeiras
vão para as rodas para vadiar e jogar e não especificamente para ensinar ou para
aprender. O foco não é o aprendizado ou a transmissão. O mestre não é um professor no
sentido estrito da palavra. O aprendiz deve aproveitar das situações, manter-se atento e
principalmente arriscar-se a realizar o jogo da capoeiragem. De algum modo, o
aprendizado fica muita mais a cargo do aprendiz, que engajado afetiva e
existencialmente na paisagem da capoeira, vai, aos poucos e sem perceber, se inserindo
nessa tradição, a partir da observação e da experiência de suas rotinas. Desse modo, o
aprendizado da capoeira se produz “de oitiva”, ou seja, por observação e prática. Os
30
mestres antigos diziam que aprendiam capoeira de oitiva”, sem método ou pedagogia
formalizada. O termo “de oitiva” significa no dicionário “de ouvir dizer”
(FERNANDES, 1993). Na capoeira indica um estado de espreita ou espera de um
acontecimento cuja surpresa é eminente. Mestre João Grande numa entrevista dada a
Maurício Barros de Castro afirma:
(...) que oitiva era o nome dado para a atividade dos que ficavam no porto à
espera de trabalho. Normalmente a oferta de emprego repentino era gritada
por um capataz para o grupo de trabalhadores que passavam o dia na zona
portuária na ‘escuta’, de ouvidos abertos, atitude que o falar do povo chamou
de oitiva.(Castro, 2007, p. 144).
Assim como não havia um local específico para os treinos e rodas, muito menos
havia um tempo próprio para se dedicar a capoeira. O trabalhador e o capoeirista eram
um só, quer reunidos no cais do porto ou em outros ambientes de trabalho à espreita das
oportunidades de tarefas pesadas, quer vadiando nas horas vagas. Continua Mestre João
Grande em sua entrevista a Maurício:
Capoeira Angola vem do trabalhador, vem de baixo. Trapicheiro, ajudante de
caminhão, carregador, doqueiro, pedreiro, carroceiro, pescador, vem de
baixo. Quando parava o trabalho já tinha um berimbau lá. O couro comia nas
docas. ‘Não tem trabalho hoje não?’. Hoje é capoeira. Debaixo do da
tamarineira o berimbau fazia sucesso. O pessoal jogava ali. Camisa de
saco, descalço. (Ibidem, p. 146).
O aprendiz convivia desde o início com as situações próprias do jogo. O lugar
por excelência do aprendizado da capoeira é a experiência concreta e encarnada do
contexto da rua, vinculado aos ambientes de ofício, lazer ou festas; onde o novato
envolvido nestas atividades vai aos poucos e a seu tempo, “de oitiva”, adquirindo um
estilo e um lugar nessa tradição. Tais características exigem que o aprendiz “aprenda a
se virar” desde cedo. Os mais experientes não tratavam o recém chegado como
principiante, exigindo desde o início uma postura de um capoeira. “É na roda que se
aprende” e, entrando nela, o aprendiz não encontrava facilidades, não lhe era dado o
privilégio de ser incipiente. Diante de tremendas exigências, o aprendiz teria que estar
31
sempre atento a se virar de algum modo com os golpes que lhe chegassem. Mestre
Waldemar, importante capoeirista da Bahia, descreveu assim o seu encontro e
aprendizado em 1936 em Periperi, subúrbio ferroviário de Salvador:
Eles (os mestres) vinham para Periperi, aquela roda danada. Foi quando eu
peguei a aprender com eles. Eu era rapazinho. Comprava duzentos reis de
vinho tinto, aquele copo branco de alça, ele tomava e dizia: ‘pegue na boca
de minha calça!’ Eu levava pra pegar na boca da calça dele e ele virava
aquela cambalhota desgraçada e cobria [com] o rabo de arraia. Quando eu
ia levantando ele dizia: ‘não levante não, lá vai outro!’ Os alunos deles
jogavam com a gente como que [se] a gente já era [fosse] bom. (apud
ABREU, 2003 p. 16)
Nessa prática, não lugar para atitudes de principiantes, ao entrar na roda
todos lidam com o aluno como capoeirista, jogando com ele como se soubesse jogar.
Isso não significa que o aprendiz o saiba, mas que sua postura enquanto tal não pode
ser passiva, ele deve jogar com tudo que sabe, agitar-se e expressar os movimentos que
o seu corpo pode realizar, pois a partir de sua prática, através das rasteiras e golpes,
pode aprender a se esquivar, experimentando concretamente suas falhas e acertos.
Outra característica importante era a não profissionalização do ensino da
capoeira. Nenhum mestre desse período vivia do ensino da capoeira. Neste ponto
destacamos a existência de uma vinculação mais informal e afetiva. Sem a mediação de
aspectos profissionais, como o pagamento de uma mensalidade, a ligação entre o mestre
e aprendiz é profundamente afetiva e torna-se efetiva. A proximidade e a admiração
mútua conecta ambos de modo singular. A autoridade de um mestre, necessária para a
transmissão de uma prática, não se estabelecia por meio de títulos, mas por meio de toda
uma tradição que o seu corpo e sua vida representavam. A proximidade entre os mestres
e seus aprendizes era tão forte e afetiva que não era raro o aprendiz freqüentar os
espaços familiares e até aprender as profissões dos mestres. Sobre essas situações
aplicadas no cotidiano em que os aprendizes da capoeira antiga vivenciavam, nos fala
Abib:
32
Às vezes, esse aprendizado se dava também individualmente, nos quintais e
terreiros das casas, onde a proximidade entre o mestre e o aprendiz era um
fator essencial. Muitas vezes, como lembra o mestre Moraes coordenador
do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, em Salvador em seu
depoimento, o aprendiz de capoeira era também aprendiz de ofício do seu
mestre de capoeira, que podia ser um marceneiro, um sapateiro ou um
artesão, profissões comuns entre os mestres de capoeira de antigamente.
Moravam no mesmo bairro e tinham, geralmente, a mesma situação
econômica, pois eram oriundos da mesma classe social. A convivência entre
mestre e aprendiz era então um fator que auxiliava muito o processo de
aprendizagem da capoeira (ABIB, 2006, p. 89).
Diferente das práticas de aprendizagem formais, nas quais o vínculo do aprendiz
e do professor é estritamente relacionado às habilidades a serem desenvolvidas, e para o
aprendiz são criadas situações artificiais de treinamento, cujos exercícios devem ser
repetidos exaustivamente de modo serializado e descontextual, para somente no futuro
serem realizados em seu conjunto, as práticas de aprendizagem da capoeira tal com é
ensinada, nesse momento de sua história, prioriza desde o início um aprendizado
encarnado, nas quais evidencam-se as situações reais do jogo e o aprendiz “se vira” para
“de oitiva”, observando e praticando, desenvolver o seu jogo.
Podemos perguntar se os aprendizes da capoeira não recebiam instruções e dicas
dos seus mestres. Por certo, mas aquelas não se reduziam a regras gerais, ou modelos
como um código geral de condutas. Durante as rodas ou nas conversas do dia-a-dia, os
mestres instruíam ou davam “uns toques” nos aprendizes, que diziam respeito às
experiências concretas dos mesmos. É a experiência do aprendiz que guia o modo das
instruções do mestre e não o contrário. Pois nessa tradição o conhecimento não é um
patrimônio formal, estando diretamente relacionado aos problemas reais do cotidiano.
A maior preocupação é que a transmissão dessa prática ou “toque” dos mestres possa
aproveitar-se da experiência concreta das situações de aprendizado.
Não espaço para formalizações ou teorias, muito menos técnicas ou métodos
gerais para o aprendizado da capoeira. Não preocupação em esquematizar o
aprendizado segundo técnicas, seqüências de movimentos a serem exaustivamente
33
repetidos. A prática e o cultivo dos movimentos devem ser realizados no calor do jogo,
envolvidos no contexto amplo dos espaços de trabalho ou de festa, onde o aprendiz deve
cultivar os seus conhecimentos auxiliados pelos “toques” do mestre. Se a relação com o
mestre é de proximidade implicando estreita cooperação, podemos dizer que a
transmissão da capoeira não é de responsabilidade direta do “mestre”. Este não ensina
direta e explicitamente, atua diante das situações concretas e cotidianas para, por meio
delas, formar os aprendizes. Nesse tipo de prática é o aprendiz que, de algum modo,
deve tomar para si a responsabilidade direta por seu aprendizado. Suas motivações e seu
engajamento nas rodas e grupos de capoeiragem é que o tornarão um capoeira. Não
possibilidade de aprender capoeira de fora, pois é no calor da experiência que a capoeira
pode ser aprendida ou entendida na sua acepção concreta.
Segundo Muniz Sodré, algumas tradições asiáticas e africanas se constituem
lado a lado com simbologias basicamente corporais, pois partem do corpo para se
inscreverem no mundo. Sodré indica que “o mbolo ao contrário do signo, não se
universaliza nem se reduz ao conceito. Precisa do aqui-e-agora de uma situação, da
concretude corporal de um indivíduo para interpretá-lo e vivê-lo” (SODRÉ, 2002: 16).
Tal experiência de aprendizado implica a vivencia da capoeira em seus múltiplos
aspectos (arte, luta, jogo, malandragem, mandinga, vadiação, resistência etc.). Sobre
isso continua Sodré:
A capoeira dos velhos mestre baianos jamais foi esporte, e sim um jogo. É o
mesmo que dizer que sempre foi arte, cultura. De um lado, a brincadeira, o
descompromisso com a seriedade, tudo aquilo que restitui no homem a
disponibilidade mental e física da criança. De outro, uma prática integrada de
luta, dança, canto, toque e forma de pensar o mundo (SODRÉ, 2002, p.22).
É nesse ambiente perigoso e festivo, de trabalho e de vadiação que os mestres
antigos da capoeira ensinavam e passavam à frente essa tradição, sem escolas formais,
grupos com estatutos, uniformes e métodos específicos. A vadiação da capoeira reinava
34
sem muita visibilidade institucional, nas bordas da ilegalidade. Aprender capoeira
estava diretamente associado a esse cenário no qual as práticas da capoeira mantinham-
se de modo criativo e dissimulado às margens da sociedade que, não não as
reconheciam, como as criminalizavam. Para se manter nesse mundo o capoeira tinha
que se revelar sempre de modo dissimulado.
1.2 – A Capoeira Regional Baiana e a vertente desportiva e marcial da capoeira
Após anos de criminalização e marginalidade, a capoeira vai aos poucos,
principalmente a partir da década de 20 do século XX, sendo absorvida “oficialmente”
pela sociedade brasileira. Tal absorção permitiu que a capoeira experimentasse
inúmeras transformações. Dessas, a que nos interessa descrever mais de perto, é o
surgimento das primeiras escolas ou academias de ensino e aprendizagem de capoeira.
O primeiro mestre a abrir uma escola de capoeira foi Mestre Bimba (Manuel dos
Reis Machado), em 1932 na cidade de Salvador – BA, no engenho Velho de Brotas. Por
volta de 1937, consegue o primeiro registro oficial do governo para sua academia. O
então Secretário da Educação, Saúde e Assistência Pública registra a academia de
Mestre Bimba como uma escola de educação física, com o nome de Centro de Cultura
Física e Capoeira Regional, destacando o papel desportivo e marcial da capoeira
8
·.
Mestre Bimba nasceu em 23 de novembro de 1899 no bairro do Engenho Velho,
freguesia de Brotas em Salvador. Seu pai era praticante do batuque, antiga tradição de
disputa e luta, em que dois jogadores, reunidos numa roda disputam um estranho
combate. Um deles unia firmemente as duas pernas, permanecendo imóvel. O
8
Sobre esta história inicial da capoeira regional cf. ABREU, 1999; CAMPOS, 2001; PIRES 2002;
SODRÉ, 2002; VIEIRA, 1990, 1998; entre outros.
35
adversário buscaria por meio de golpes desequilibrar o oponente que se esforçaria para
manter-se no lugar sem cair ou se deslocar da base. Tudo isso acompanhado de cantigas
marcadas por palmas, tambor e pandeiro.
Aos doze anos de idade Mestre Bimba é iniciado na capoeiragem pelo africano
Bentinho, capitão da Cia. de Navegação Baiana. Ele, portanto, inicia seu aprendizado na
arte da capoeiragem do modo antigo, “de oitiva”, freqüentando as rodas nas festas e
feiras populares, jogando nas horas vagas de seu trabalho como estivador no cais do
porto, na rua onde executava pequenos serviços, enfim, freqüentando os espaços
públicos de salvador. É justamente com esta tradição que Mestre Bimba buscará uma
ruptura, inventando a Capoeira Regional Baiana. Segundo ele, a capoeira deveria se
transformar para se inserir de modo mais efetivo na sociedade. Estas transformações
deveriam abandonar toda e qualquer vinculação da capoeira com a vida malandra,
enfatizando os seus aspectos desportivos e marciais. Mestre Bimba tenta, portanto,
transformar a capoeira numa ginástica genuinamente nacional.
A capoeira Regional nasce tentando um rompimento da imagem do capoeira
vadio e desordeiro, em nome do capoeira como um desportista saudável e disciplinado.
A construção de uma academia, reconhecida oficialmente pelo estado, onde se realiza a
prática e o treino da capoeira, foi com certeza uma grande idéia de Mestre Bimba para
levar esta tradição para além dos bairros populares. Desse modo, a capoeira Regional
começa a atrair o interesse cada vez maior de um público diversificado, de diversas
camadas sociais, com destaque para estudantes. Esse movimento de Mestre Bimba veio
ao encontro de diversas tentativas desta época, de absorver as culturas e práticas
marginais, buscando, desta forma, a construção de uma identidade nacional, que
desembocará no chamado Estado Novo. Movimentos semelhantes ocorrem com o
36
samba e o candomblé. Essa confluência de interesses políticos é muito bem aproveitada
por Mestre Bimba e sua nascente Capoeira Regional Baiana.
Outra marca empreendida por Mestre Bimba na prática de sua jovem capoeira é
a necessidade de afirmar o seu caráter marcial. Mestre Bimba realiza uma análise
pessimista em relação aos caminhos que a capoeira tradicional vinha ganhando, a qual
os contornos alegóricos e exibicionistas são por eles questionados. Para ele, os aspectos
marciais da capoeira estariam cedendo espaços para um jogo cada vez mais lúdico e
alegórico. Nesse sentido, a capoeira Regional dará destaque à eficiência do combate
marcial, misturando movimentos da capoeira antiga, conhecida como capoeira Angola,
com o batuque e principalmente incorporando movimentos de ataque e de defesa de
outras artes marciais, como o jiu-jitsu. Tais modificações visam elevar a capoeira
Regional à categoria de uma singular e eficiente arte marcial de origem brasileira.
Com o intuito de propagar a eficiência desta capoeira enquanto uma arte de
combate, Mestre Bimba e alguns de seus principais alunos começam a participar de
torneios e lutas, enfrentando oponentes de diversas modalidades marciais. A violência
da capoeira que antes era exercida nas ruas, muitas vezes em combates com a polícia,
passa agora a ser realizada num ringue, com regras e juízes credenciados. O resultado
dessas disputas, muitas vezes favoráveis à capoeira Regional, chega aos principais
jornais da época. Mestre Bimba e sua capoeira passam a ser reconhecidos e sua
academia procurada cada vez mais por jovens interessados a aprender esse esporte
marcial nacional. Deixando de lado o sentido lúdico, malandro e vadio anteriores, a
capoeira Regional se desenvolve como uma prática desportiva e sistemática de luta.
Mais à frente, brecando um pouco esses encontros da capoeira com outros
grupos nos ringues de luta, Mestre Bimba começa a restringir os embates dos capoeiras
a rodas exclusivas. Não interessava mais a ele desafiar e ser desafiado em lutas com
37
outras modalidades, mas afirmar a particularidade da capoeira enquanto um luta
esportiva cujas regras deveriam ser respeitadas. Tal posicionamento ainda mantém
intacto o valor marcial de defesa e ataque da capoeira, mas enfatiza a necessidade de
treinar e jogar apenas com os próprios capoeiristas, segundo as regras e os critérios
particularizados.
Sua escola seguia se desenvolvendo e no final da década de 40 as relações
sociais de Mestre Bimba encontravam-se ampliadas, liderando assim o movimento de
escolarização da capoeira na Bahia. Inicia-se um movimento de retirada da prática e do
cultivo da capoeira das ruas e espaços públicos para os espaços privados constituídos
especificamente para essa prática. Um desses primeiros lugares específicos para o treino
da capoeira foi o conhecido “Roça do Lobo”, criado por Mestre Bimba e seus
companheiros. Sobre este espaço revela Pires:
A roça do lobo era um fundo de quintal, um terreiro. Esse local aparece nos
primeiros movimentos de retirada da capoeira das ruas para levá-la ao que
hoje, em sua forma de organização de base: as academias, instituições sócio-
culturais, enquadradas em uma demanda comercial. Bimba fundou a roça do
lobo, nos anos 40, e uma reportagem, que relaciona Bimba a cultura negra,
escrita por Ramagem Badaró em 1944, nos dá uma visão desse local de
treinamento. (PIRES, 2002, p. 05).
O movimento da capoeira Regional empreende uma padronização e
institucionalização das práticas da capoeira. São realizados estatutos, manuais de
técnicas de aprendizagem, descrição objetiva dos golpes, toques e cantos, utilização de
uniformes e indumentárias especiais, entre outras coisas. No que diz respeito ao
aprendizado da capoeira Regional podemos perceber, nesta prática, a inclusão de todo
os referenciais pedagógicos e educacionais de uma escola tradicional. O fim da
criminalização da capoeira e o crescente interesse dos segmentos sociais médios e altos
da sociedade, permitiram formas novas de sua realização e de seu cultivo.
38
Assim, o aprendizado é cada vez mais desenvolvido nos ambientes fechados das
academias, onde são realizadas rotinas sistemáticas de treinos voltadas para o
aprendizado da capoeira, acompanhadas por sistemas de avaliações. As rodas passam a
ser o lugar para onde os aprendizes vão aplicar os movimentos que treinaram. Nessas
rotinas, Mestre Bimba inclui: exame de admissão, seqüências básicas de ensino,
seqüências de cintura desprezada, batizado, formaturas, cursos de especialização e
toques de berimbau. Segundo Frede Abreu (2003) Mestre Bimba contrapôs, aos velhos
jeitos de se ensinar por ele denominado “oitiva”, um método didaticamente articulado
de ensino da capoeira. É interessante observarmos através do relato de Frede Abreu que
o jeito antigo de aprender e ensinar capoeira ganha um nome e, portanto uma referência,
justamente quando um outro modo mais sistemático e cnico de aprendizado é criado
por Mestre Bimba.
Segundo Mestre Xareu (2001), aluno de Bimba, o exame de admissão consistia
de três exercícios básicos cocorinha, queda de rins e ponte –, cuja finalidade era
verificar o equilíbrio, a força e a flexibilidade do jovem aprendiz. Mestre Bimba dizia
que, ao contrário dos meninos que aprendiam capoeira na rua, que traziam consigo no
corpo toda a ginga referente à prática da capoeira, o corpo da maioria dos seus alunos,
provenientes da classe média, desconhecia completamente esses movimentos. Sendo
assim, seria necessário um exame adicional para verificar aspectos básicos dos
movimentos dos recém-chegados à sua academia.
Quanto à seqüência de ensino, Mestre Bimba criou o primeiro método de ensino
da capoeira. Trata-se de uma seqüência lógica de movimentos de ataque, defesa e
contra-ataque, podendo ser ministrada para iniciantes numa forma simplificada. Estes
alunos repetiriam estas seqüências fora do contexto do jogo, como movimentos frios e
descontextualizados. Essa repetição mecânica e artificial levaria o aprendiz a realizar
39
determinadas seqüências mínimas necessárias para um jogo. Segundo Mestre Bimba, se
o aprendiz, fosse ele quem fosse, realizasse com afinco e regularidade tais exercícios, no
final de mais ou menos um mês estaria apto para jogar capoeira com relativa eficiência
e segurança. É claro que este recém-praticante não estaria totalmente pronto, mas esta
técnica permitiria que ele pudesse iniciar suas histórias na roda. A estas seqüências
iniciais Mestre Bimba acrescentava treinos específicos denominados por ele de
seqüência de cintura desprezada. Neles são treinados balões e um conjunto de
movimentos ligados, também conhecidos como “projeções”, nas quais o capoeirista
projeta os companheiros para o alto e estes devem cair em ou agachados, jamais
sentados. Seu objetivo é desenvolver autoconfiança, responsabilidade, agilidade e
destreza.
O batizado é um dos momentos de grande significado para o aluno, que após
todos esses treinamentos iniciais ele será apresentado ao grupo e poderá participar pela
primeira vez de uma roda. Coloca-se em cada calouro um nome de guerra, cuja alcunha
doravante passa ser a sua identidade no grupo. Para seu jogo de estréia é escolhido um
aluno veterano, que na qualidade de padrinho, entra na roda para desafiar o calouro, que
deve responder à altura os seus golpes. Sendo aprovado o aluno é recebido por seu
Mestre, que no centro da roda, levanta a mão do calouro, pronuncia seu apelido e o
apresenta para a comunidade. A partir desse momento em diante o aluno poderá
participar das atividades regulares do grupo. Sua aprendizagem começa, na verdade,
com o batizado.
Após todo percurso de desenvolvimento das habilidades básicas do jogo da
capoeira Regional, realizados com eficiência e plasticidade os repertórios de golpes, os
toques dos instrumentos e os cantos, o aluno pode se formar. A formatura é um dia
especial para o mestre e seus alunos. Trata-se de um ritual semelhante à formatura de
40
qualquer escola de ensino formal, com direito a paraninfo, orador, madrinha e medalha.
No inicio, Mestre Bimba realizava a festa de formatura no Sítio Caruano no Nordeste de
Amaralina, na presença de convidados e de toda a Academia Regional Baiana. Os
formandos, todos de branco, eram chamados por Mestre Bimba e diante de todos
exibiam seus repertórios de movimentos, toques e cantos. Ao final desta exibição eles
deveriam passar pela prova de fogo, jogando com um capoeirista graduado, o que ficou
conhecido como “tira medalha”. Nesse desafio o graduado tentaria tirar a medalha do
peito do formando com os pés, manchando assim a roupa e a dignidade deste. Se no
final do jogo a medalha estivesse ainda no peito do formando este era considerado pela
Escola Regional Baiana formado. Por último eram realizadas atividades festivas com
apresentações de maculelê, samba de roda, samba duro e candomblé. É importante frisar
que mesmo incorporando elementos formais e institucionais à atividade da capoeira,
Mestre Bimba mantém vivo os aspectos ritualísticos e festivos das tradições afro-
brasileiras.
O curso de especialização foi criado por Mestre Bimba para ser realizado
secretamente com os seus principais alunos já formados. Tinha como objetivo aprimorar
golpes de defesa e de ataque advindos de adversários perigosos e bem treinados. Sua
duração era de três meses dividido em dois módulos. O primeiro que durava 60 dias era
dentro da academia, onde Mestre Bimba desenvolvia estratégias de combate específicas
e sofisticadas. O segundo módulo, com duração de 30 dias era realizado na Chapada do
Rio Vermelho, e tinha como principais atividades as chamadas “emboscadas”. Seus
alunos veteranos eram colocados na mata com o objetivo de escondidos ficarem
esperando a passagem do aluno especialista. O objetivo do aluno era chegar a um
determinado ponto específico, lutando com “soldados” que sorrateiramente o
41
emboscavam. Ao final do curso, Mestre Bimba realizava uma festa nos moldes da
formatura e entregava aos seus alunos de elite um “lenço vermelho”.
Interessado, de modo nítido, em inserir essa prática tradicional da cultura
popular brasileira nas esferas oficiais da sociedade brasileira, a capoeira Regional de
Mestre Bimba assume um perfil específico de uma prática desportiva e marcial com
elementos culturais e artísticos como música e dança. Seu ensino deve se guiar nos
moldes de uma atividade física e marcial qualquer, obedecendo a técnicas de ensino e
avaliação, que permitam desenvolver no aprendiz habilidades específicas aos
movimentos da capoeira. Estes treinamentos devem ser divididos, tal como na escola ou
nas forças armadas, em etapas hierarquicamente bem definidas, visando a determinados
objetivos que devem ser conquistados no final. Para isso devem ser estabelecidos
rigorosos exames de avaliação.
Essa massificação sistematicamente estruturada do ensino da capoeira leva a
uma mudança radical no seu perfil, seus jogos, seus ritos e suas rodas. Prevalecem os
aspectos atléticos, esportivos e marciais, cultivando nos capoeiras o espírito competitivo
e de auto-superação. Essa preocupação utilitária, individual e competitiva da capoeira
Regional muitas vezes tem levado como veremos, mais à frente, a uma perda de
importantes marcas da capoeira antiga, dos seus aspectos culturais, de sua resistência
política, de sua expressão artística, de seu caráter ritualístico, de sua malandragem,
gozação e vadiação.
Seria radical demais afirmar o total esquecimento desses aspectos pela Capoeira
Regional Baiana, mas parece, que estes novos tempos da capoeira ajudam um certo
tecnicismo, uma automatização do jogar capoeira, supervalorizando seus aspectos
acrobáticos, atléticos e marciais. Tais modificações podem ser observadas pela continua
42
e cada vez maior aproximação da capoeira com as escolas, como práticas de uma
educação física.
É certo que mesmo assumindo para si alguns princípios das escolas de educação
física, a Capoeira Regional Baiana e suas diversas vertentes atuais, têm ajudado bastante
a resistir a Lei (Nº. 9.696/98) que restringe aos profissionais de educação física, o
ensino sistemático de qualquer atividade física. Em sua maioria, ainda hoje, os Mestres
de capoeira não são formados e legitimados por possuírem diplomas universitários.
Alguns até têm se dedicado a uma formação universitária para inserirem estudos e
práticas nesses centros. Todavia, é visível que nos diversos grupos o reconhecimento
não passa pelos títulos acadêmicos. Pires assim escreve sobre a importância de Mestre
Bimba para a história da capoeira:
As mudanças que Mestre Bimba efetivou na prática da capoeira podem ser
demarcadas em pelo menos três níveis: as relacionadas à educação física, as
relacionadas aos aspectos artísticos e as relacionadas à organização social e
política. Os aspectos relacionados à educação física colocaram o corpo em
um sistema de desenvolvimento regrado, dirigido para a repetição dos
movimentos em séries temporais. Os aspectos artísticos receberam uma
forma pré-determinada surgindo uma organização e hierarquia dos
instrumentos. Os aspectos sociais e políticos redimensionaram a prática da
capoeira, retirando-a das ruas e inserindo-a no contexto de construção dos
símbolos nacionais (PIRES, 2002, p. 55).
1.3 - A Capoeira Angola e a escola para a vida: uma resistência à modernização da
capoeira
Os capoeirista tem que aprender, o mundo é a escola que nos aprendemos, é a
natureza que nos prazer, procuramos os elementos de bôa vontade, que
ofereça a lições para o bem-esta dos nosso interesse. (apud DECÂNIO, 1997-
B, p. 50)
9
Em 1941, Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha) se junta a outros
capoeiristas da época e assume a liderança do CECA (Centro Esportivo de Capoeira
9
Vamos manter as citações originais de Mestre Pastinha, sem consertar os seus erros de português, para
que estas sejam mais fiéis ao texto do Mestre.
43
Angola). Pastinha nasceu em 1889 na cidade de Salvador, e segundo seus relatos iniciou
seu processo de aprendizado da capoeira por volta dos seus 10 anos. Seu mestre foi Seu
Benedito, um negro natural de Angola na África. Do mesmo modo que Mestre Bimba e
tantos outros mestres da capoeira antiga, Mestre Pastinha aprendeu “de oitiva” a
capoeira freqüentando e vadiando as rodas da cidade de Salvador. Durante toda a sua
adolescência freqüentou a Escola de Marinheiros, onde, segundo seu relato, ensinou
capoeira nas horas vagas para seus colegas de arma. De novo podemos notar a mistura
do aprendizado e do ensino da capoeira com os espaços de ofício. Saiu da Marinha aos
20 anos. Trabalhou como engraxate, vendendo gazetas, no garimpo e na construção do
porto de Salvador. Segundo ele “tudo passageiro, sempre quis viver de minha arte.
Minha arte é ser pintor, artista” (apud PIRES: 2002: 63). É interessante que no início de
sua vida Pastinha tenha tido como grande sonho o de se tornar pintor, e que por mais
que praticasse e ensinasse a capoeira nas horas vagas de seus diversos trabalhos, ele não
parecia ter, nesse tempo, a intenção de se dedicar única e exclusivamente à capoeira.
Assim como Mestre Bimba, Mestre Pastinha não via com bons olhos o momento
que a capoeira baiana atravessava no inicio do século XX, cercada de grupos
desordeiros e de violentos embates entre si e com a polícia
10
. Segundo ele, essas práticas
não traziam nenhum benefício às formas de resistência da capoeira e sua ascensão
social. A situação de ilegalidade e perseguição da capoeira impedia que esta
desenvolvesse todas as suas potencialidades. Para ele:
A capoeira que veio com os africanos no tempo da colonização, não teve
maior desenvolvimento por razões óbvias. Os negros africanos, no Brasil
colônia, eram escravos e nessa condição tão desumana não lhes era permitido
o uso de qualquer espécie de arma (...) viu-se nessas circunstâncias, a
capoeira, tolhida em seu desenvolvimento sendo praticada às escondidas ou
disfarçada cautelosamente com danças e músicas de sua terra natal
(PASTINHA, 1988, p. 31).
10
Muitos historiadores m se debruçado sobre este momento (fim da escravidão até a inicio da era
Vargas) na história da capoeira, principalmente nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Os
capoeiras se organizam em grupos de “desordeiros sociais”, conhecidos como maltas, produzindo
situações de brigas e conflitos entre si ou com a polícia. Período conhecido como era dos valentões.
44
Nesse sentido, tal como Mestre Bimba, Mestre Pastinha pautara sua vida
tentando encontrar caminhos oficiais que permitissem retirar a capoeira do gueto no
qual ela se encontrava desde seu nascimento. Ambos os mestres aprenderam capoeira na
rua e vivenciaram todas as características dessa época de violência e repressão, tendo
inclusive problemas com a polícia, no entanto, ambos insatisfeitos com este estado de
coisas, procurarão, cada um do seu jeito, modificá-lo.
Essa desilusão com a capoeira malandra” faz com que Mestre Pastinha fique
mais ou menos 20 anos afastado de sua prática (1920-1940). Nesse curto tempo a
capoeira e o Brasil atravessam importantes mudanças. Sua prática já não é proibida nem
violentamente reprimida pela polícia, já existem centros ou academias oficiais de
cultivo e treinamento desta arte e a sociedade começa a olhar para a capoeira e seus
integrantes de modo menos resistente. É neste período, de importantes transformações
na pratica da capoeira, que Mestre Pastinha vai se aproximar do Centro de Capoeira
Angola. É importante destacar que o CECA não é o primeiro a se dedicar a capoeira
Angola, que antes dele existia o centro de mestre Noronha e Mestre Livino. Outro
dado importante a respeito da origem do CECA é que este já existia antes da chegada de
Mestre Pastinha. Pires escreve que:
segundo Mestre Noronha, o Centro Esportivo de Capoeira Angola teria
nascido na Ladeira de Pedra no bairro da Liberdade, sendo Amorzinho,
Daniel Coutinho, Totonho de Maré e Livino seus ‘donos proprietários’.
Somente com a morte de Amorzinho, eles teriam entregue à direção do
Centro a Mestre Pastinha (PIRES,2002, p. 67).
Outro Centro importante de capoeira Angola formado nesta época foi o terreiro
de Mestre Waldemar. Situava-se na rua Pero Vaz, no bairro da Liberdade. Um barracão
construído de madeira com cobertura de palha, cercado por ripas de madeira que
separavam os jogadores do restante da platéia. Nesse lugar eram realizados treinos,
45
rodas de capoeira, de candomblé e outros tipos de encontros festivos. Assim como
Mestre Waldemar, podemos destacar também os Mestres Caiçara, Canjiquinha,
Cobrinha Verde, entre outros que pertencem ao bastião da capoeira Angola dessa
virada. Verdadeiros personagens híbridos que quando jovens vivenciaram e aprenderam
capoeira na rua e “de oitiva” e alguns mais velhos serão os primeiros a desenvolverem-
na em novos espaços, implementando as mudanças necessárias para a manutenção da
capoeira.
Outra característica importante na formação da capoeira Angola é sua
proximidade com a intelectualidade da época que irá tomá-la, em comparação à
Regional, como a verdadeira e pura capoeira, que ainda respeitava suas raízes. Num
livro recente cujo título é “O Barracão do Mestre Waldemar” Frede Abreu assim retrata
este novo convívio, que a partir da década de trinta passa a existir nos espaços de
capoeira:
O barracão de Waldemar, localizado na periferia da cidade, era de difícil
acesso para os que não moravam no local. Apesar dessas condições e de
outras adversidades, esses três mestres (Waldemar, Bimba e Pastinha) foram
capazes de atrair turistas, estudiosos, intelectuais, artistas, folcloristas,
jornalistas, transformando seus espaços em agências culturais de referência
nacional e internacional.
Jorge Amado, Pierre Verger, Mário Cravo, Eunice Catunda, Alceu Maynard,
Oneida Alvarenga, Odorico Tavares, Carlos Ot, Carybé e outros
freqüentaram as rodas da liberdade, sendo recebidos por Waldemar, da
mesma forma diplomática a eles destinada por Bimba, Pastinha, Noronha e
outros mestres (ABREU, 2003, p. 43).
É para esse novo cenário que, no inicio da década de 40, Mestre Pastinha retorna
assumindo a direção do CECA, no qual permaneceu até sua morte em 1981. Nesse
longo tempo de dedicação à capoeira Angola ele ajudará de modo marcante a definir os
fundamentos desta prática de capoeira até os nossos dias. Como o nome insinua, o
Centro Esportivo Capoeira Angola para Mestre Pastinha é um lugar onde se cultiva e
se transmite os fundamentos de uma prática desportiva que visa alcançar o equilíbrio
46
entre o corpo e a alma. Mesmo considerando a capoeira um esporte, Mestre Pastinha
tentará demarcar diferenças importantes com o esporte praticado pela capoeira
Regional.
Possuindo características próprias, a capoeira Angola não poderia se misturar
com as outras práticas desportivas e marciais como o judô, jiu-jitsu, luta livre entre
outras. Mestre Pastinha aponta:
É lógico que nos referimos a Capoeira Angola, a legítima capoeira trazida
pelos africanos e não a mistura de capoeira com boxe, luta livre americana,
judô, jiu-jitsu etc. que lhe tiram suas características, não passando de uma
modalidade mista de luta ou defesa pessoal onde se encontram golpes e
contra golpes de todos os métodos de luta conhecidos (PASTINHA, 1988, p.
35).
A capoeira Angola de Mestre Pastinha surge então com a vontade evidente de se
diferenciar da capoeira Regional que se difundia cada vez mais. Seu principal
diferencial será a tentativa de, mesmo empreendendo inúmeras transformações nos
fazeres da capoeira, preservar elementos dos antigos, de sua ancestralidade. Em
distinção a de Mestre Bimba que visa construir uma identidade da capoeira como sendo
genuinamente brasileira, Mestre Pastinha e sua Capoeira Angola visa a manter viva sua
origens afro-brasileiras.
Desta maneira, a capoeira Angola de Pastinha dará um maior destaque aos
elementos ritualísticos, artísticos, políticos e culturais das tradições afro-descendentes.
Segundo Mestre Pastinha, o aluno de capoeira não pode, de modo algum, se dedicar
única e exclusivamente a treinamentos atléticos e marciais próprios à prática da
capoeira. Esses movimentos, toques, e cantos devem ser vivenciados a partir de todas as
suas cargas ritualísticas. Ele encontra, nos rituais religiosos do candomblé e dos
caboclos, assim como em um ritual de dança e luta praticados na região de Angola na
África, chamado de N’golo, as origens da capoeira Angola.
47
Ciente das dificuldades de tal preservação, e principalmente descontente com os
rumos da capoeira do inicio do século e dos novos ares da capoeira Regional, Mestre
Pastinha avalia ser necessário constituir em seu centro de capoeira Angola regras e
hierarquias que possam ajudar na constituição do cultivo e transmissão da capoeira mãe
(Pastinha, 1969, Pires, 2001). Assim, incorpora à prática da capoeira e de seus treinos
regras e hierarquias novas. Na roda, desenvolve a figura do juiz, ou daquele que
responde pela organização desta, mantendo-a dentro de seus fundamentos. Na rotina
diária do centro, Mestre Pastinha cria funções específicas ocupadas por determinadas
pessoas que se responsabilizarão por elas. Os responsáveis pela orquestra, dos cantos,
dos treinos de movimentos, arquivistas, contra-mestre e mestres. Escolhe um uniforme
que passará a identificar os seus alunos, calça preta e camisa amarela, em homenagem
às cores de seu clube de coração Ypiranga Futebol Clube. Impede seus alunos de jogar
descalços e sem camisa. Proíbe alguns movimentos. Enfatiza o lado lúdico e artístico da
capoeira, destacando os treinos de cantos e toques de instrumentos. Define a “bateria”
ou a “orquestra” com três berimbaus (gunga, médio e viola), dois pandeiros, um
atabaque, agogô e reco-reco. Destaca a importância dos toques e cantos na condução
dos ritmos do jogo. Enfatiza a necessidade de desmistificar a capoeira como a arte dos
valentões, mostrando que esta não deveria ser exercida pela valentia mas pela busca da
integridade física e espiritual. Se necessário a capoeira seria uma excelente arte de
defesa e ataque, mas seus fins principais não podiam ser estes. Destaca a necessidade
dos valores éticos e políticos da capoeira, como a lealdade aos companheiros e à
capoeira, a obediência a regras principais do jogo, e à construção coletiva e social que
esta pressupõe.
Pastinha encontra na tradição conceitos centrais como malícia”. Ser angoleiro
para ele é usar o tempo todo a malícia, nos golpes, nas defesas e contra-golpes. Iludir
48
sempre que possível o adversário, evitando com isso movimentos mecânicos e
previsíveis. Com isso destaca no aprendizado da capoeira condições para que cada
aprendiz desenvolva estilos próprios de dissimulação, beleza, continuidade e elegância
em seus movimentos, toques e cantos. Seus treinos não visam uma repetição automática
e mecânica dos exercícios, mas uma expressão de estilos próprios. Para Mestre Pastinha
ninguém joga igual a ninguém. Mesmo dentro de um jogo de movimentos e golpes
definidos é a expressão de cada um que marcará sua singularidade e o seu estilo como
jogador.
Diante de todas as características acima mencionadas podemos perfeitamente
destacar a importância da ritualística na capoeira Angola. Destacando-a como elemento
principal em sua transmissão. Mestre Pastinha elaborou com minúcias os procedimentos
de entrada e saída do jogo, a importância das chamadas de mandinga, quando os
oponentes paralisam o jogo num desafio de intensa representação simbólica, a relação
estreita entre os toques e cantos com o tipo de jogo, entre outra coisas. São buscadas,
deste modo, a manutenção das referências dos rituais afro-brasileiros. Tratando a
capoeira como um rito, Mestre Pastinha procura impedir a sua total absorção às práticas
físico-desportiva-marciais. A capoeira é sem dúvida uma atividade física, um esporte e
uma luta, mas é acima de tudo uma reza, um lamento, uma brincadeira, uma resistência,
uma vadiação, uma dança, um canto, uma comunhão. Mestre Pastinha procura, assim,
aproveitar os novos espaços que a sociedade do seu tempo finalmente abriu para a
capoeira, sem aderir plenamente às mudanças impostas a ela por esses novos espaços.
Mudar para manter, esta talvez seja para Mestre Pastinha a urgência do seu tempo.
Daí a necessidade de fundar uma escola. Mestre Pastinha entende ser necessária
a construção de escolas, por meio das quais um ensino sistemático da capoeira seja
mantido e onde possam ser transmitidos os principais fundamentos da capoeira mãe,
49
numa resistência às tendências modernizantes que esta começa a sofrer. Para Mestre
Pastinha a capoeira deve ser encarada como um modo de vida, e o capoeira deve
dedicar-se exaustivamente à sua escola, colaborando da melhor maneira possível na
manutenção e transmissão desta tradição. Aprender capoeira para Mestre Pastinha não
se restringe à realização de movimentos, toques e cantos, mas passa pelo engajamento
do aprendiz para com as raízes e suas tradições. O aprendiz de capoeira Angola não
pode encarar seu aprendizado como uma simples atividade física e marcial, que lhe trará
benefícios individuais de saúde atlética e beleza. O ensino da capoeira Angola deve
formar para a vida.
Considerado por muitos como filósofo da capoeira, Mestre Pastinha nos deixa
por intermédio de suas práticas e de seus inúmeros manuscritos, a idéia de que o
universo da capoeira engloba todos os elementos inerentes à vida, como um
microcosmo em que o universo ali se encontra em sua totalidade. Na roda da vida como
na roda da capoeira o mundo comparece de modo pleno. O aprendizado da capoeira
Angola que Mestre Pastinha ajudou a construir incorporou às formas antigas do
aprendizado da capoeira elementos próprios das escolas formais, sendo criados, então:
um estatuto, cartilhas de procedimentos, treinos e exercícios específicos, hierarquias e
rotinas. Mas estas adesões são para Mestre Pastinha o caminho para preservar e manter
viva, em um mundo radicalmente novo, as antigas tradições da capoeira mãe.
O descompromisso alegre da vadiação, a malícia ácida da malandragem, a
espiritualidade dos rituais religiosos, a beleza das danças e toques, a celebração e a
comunhão de um povo, não cabem em técnicas ou conceitos que consideram apenas as
habilidades. Por isso a escola de Pastinha tende a fundamentar sua transmissão na
capoeira antiga, privilegiando a vivência, ou melhor, a convivência entre os capoeiras
que “pegando pelas mãos os aprendizes” convidam-no a penetrar e desenvolver
50
coletivamente os múltiplos aspectos desta rica tradição. O desafio de Mestre Pastinha
talvez seja conciliar o novo das técnicas e procedimentos das escolas formais com os
ritos e mandingas da antiga capoeira.
Nessa forma de aprendizado o principiante tem que tomar para si a
responsabilidade na aquisição do conhecimento desejado. É ele que deve ditar o ritmo,
sabendo ou procurando saber os seus limites, não se comprometendo com mais do que
possa cumprir. Para Mestre Pastinha um bom aprendiz não é o que obedece cegamente
ao mestre, mas aquele que almeja tomar atitudes próprias. O capoeirista para fortalecer
sua academia ou grupo deve chamar para si a responsabilidade, tornando-se mais atento,
vigilante e convicto. “Grande parte dos capoeiristas prefere que os outros pensem em
seu lugar; o que é raciocínio? É uma faculdade do espírito, devemos fazer uso de
executar uma função” (Pastinha, 1996). Ao mestre caberia a função de ser livre dando o
exemplo para inspirar os aprendizes a buscarem sua liberdade e suas convicções.
1.4 - Alguns caminhos da capoeira nos dias atuais
Entre os anos 30 e os 80 do século XX a capoeira vive mudanças que
fundamentarão a capoeira contemporânea. As escolas de capoeira baiana,
principalmente as vertentes da Regional de Mestre Bimba e a Angola de Mestre
Pastinha se expandem, alcançando o Brasil e o mundo. Dessas sementes nascerão
diversos grupos, cuja filiação aos dois mestres nem sempre será explícita, mas talvez
seja certo dizer que implicitamente a capoeira, tal como ela hoje se apresenta, deve
muito às escolas desses dois mestres. Essa herança é percebida na organização em
diversos grupos e escolas de capoeira.
51
Podemos perfeitamente dizer que a capoeira antiga, que existia de modo
informal, vinculada diretamente a um ethos muito próprio das cidades e suas
comunidades do início do século XX, praticamente desapareceu. A rua, as quitandas e
festas públicas vão cedendo lugar para as academias e espaços privados na prática da
capoeira. O aprendiz, agora deve se matricular numa escola ou grupo de capoeira,
freqüentando regularmente esses espaços e respeitando suas regras e procedimentos.
Não se aprende mais ao modo antigo, “de oitiva”, numa vivência coletiva em espaços
abertos e públicos. A rua que era o espaço próprio para a vadiação é ocupada agora
para demonstrações, como divulgação dos grupos privados. A capoeira agora ganha
contornos de uma instituição privada, proliferando os grupos particulares com seus
nomes, uniformes e regras de procedimentos particulares.
Diante dos desafios de enquadrar-se aos novos tempos sem perder o contato com
as tradições, a capoeira Angola vai experimentar uma difusão mais tímida, atravessada
por inúmeras crises. a Regional que sempre considerou em seus fundamentos uma
ruptura maior com as antigas tradições, vai vivenciar um crescimento ampliado e
diversificado.
Um dos motivos mais marcantes desse crescimento da capoeira Regional é a sua
assimilação plena às práticas físicas e esportivas. Tratada como um genuíno esporte
nacional a capoeira Regional se infiltra rapidamente nas escolas, no currículo das
universidades de educação física, nas academias militares, assim como nas academias
de malhação. Somada à eficiência atlética e marcial da capoeira, podemos também
destacar, como importante aspecto de sua difusão, a manutenção de alguns aspectos
ritualísticos (cantos, movimentos, toques, etc) que de algum modo criam um fascínio, de
uma mística folclórica e de certo modo exótica e “primitiva” que tem sido associada a
capoeira.
52
Encarada desta forma, muitas vezes a capoeira contemporânea tem reduzido o
seu aspecto cultural à uma apreensão folclórica e descontextualizada, que representaria
tradições antigas por meio de simbologias acerto ponto românticas. Essa percepção
da capoeira contemporânea, como um esporte exótico e folclórico de raízes primitivas,
tem ajudado a despertar cada vez mais o interesse de pessoas de diversas origens e
países a aprender o exótico esporte brasileiro. O aumento dessa demanda tem levado à
proliferação de grupos, e à formação cada vez maior de “mestres” de capoeira. De certo
modo, a intuição que levou Mestre Bimba a transformar a capoeira num esporte
nacional, deu certo. Suas transformações, principalmente suas técnicas de ensino e
transmissão da capoeira, têm facilitado sua prática cada vez maior por pessoas muito
diversas.
Por outro lado a capoeira contemporânea vem experimentando uma aproximação
cada vez maior com os espaços escolares. Mestre Xareu, num livro recente intitulado
Capoeira na universidade: uma trajetória de resistência vem indicando a trajetória da
capoeira Regional em direção à escolarização. Em 1972 a capoeira é registrada
oficialmente na Confederação Brasileira de Pugilismo e em 1973 no Conselho Nacional
de Desporto (CND). A partir daí o “esporte” capoeira estreita suas relações com a
formação dos educadores físicos. Assim:
Mestre Carlos Senna, ex-aluno de Mestre Bimba, um defensor ferrenho da
capoeira esporte e fundador da Senavox (Centro de Pesquisa, Estudo e
instrução de capoeira, fundado em outubro de 1955), em 1980, publicou um
inusitado trabalho denominado Capoeira: arte marcial brasileira. Essa
publicação mostra a preocupação do autor com os exames, corpo docente,
regulamento de competição e súmulas. Ele, fundamenta, também, seu projeto
nos valores educacionais e reconhece ser a capoeira uma ‘... incomparável
forma de educação física ... (CAMPOS, 2001, p. 70).
Dessa maneira a capoeira penetra nos programas de educação física de três
modos: incluída nos métodos de ginástica tradicional; como conteúdo diferenciado de
ginástica escolar ou como disciplina esportiva de caráter optativo. Destacam-se assim os
53
efeitos da prática da capoeira sobre a força, flexibilidade, resistência, habilidade
específica e composição corporal.
A capoeira passa a ser entendida como um esporte popular, com vigoroso
substrato cultural, que suscitaria nos aprendizes interesses maiores que aprender golpes
e movimentos. Amplia-se assim o conceito da capoeira enquanto um instrumento
completo de educação integral dos jovens estudantes. Sobre isto diz mestre Xaréu:
É importante frisar que o ensino/aprendizagem da capoeira não deve ser
voltado apenas para o aspecto técnico de aprender determinada forma de luta
e de esporte. O ensino de golpes, contragolpes, esquivas e seqüências deverá
ser acompanhado de transmissão de todos os elementos que envolvem a sua
cultura, história, origem e evolução, ao tempo em que se estimulará a
pesquisa, debate e discussão em seminários, para que o educando tenha
participação efetiva no contexto da capoeira como um todo (apud CAMPOS,
2001, p. 87).
Esse encontro com as escolas formais e suas pedagogias centradas no
conhecimento intelectual não deve ser entendido como um caminho de mão única, no
qual a capoeira cede para incluir em suas práticas os ritos da academia. Devemos
considerar que a própria academia também se transforma absorvendo elementos das
tradições da capoeira. Como exemplo desta resistência por dentro dos muros, podemos
destacar o movimento que os profissionais de educação física ligados à capoeira têm
liderado, junto com outras entidades de artes marciais e práticas orientais, para
questionar e derrubar a Lei 9.696/98 que, através de um enorme lobby dos
profissionais de educação física, regulamenta a autorização do ensino sistemático de
qualquer atividade física exclusivamente aos profissionais da área. Segundo essa lei,
somente os graduados nessa disciplina poderiam exercer o ensino sistemático da
capoeira. Por outro lado, esta aproximação do universo da capoeira com as escolas e
suas construções sistemáticas de ensino e aprendizagem alteram a divulgação da
capoeira, muitas vezes afastando-a dos ambientes de tradição popular. Este crescimento
contemporâneo da capoeira Regional deve ser encarado como um desafio: ampliar e
54
difundir a capoeira para outros países e espaços acadêmicos, mantendo vivo os aspectos
ricos e singulares dessa tradição.
A capoeira Angola ao contrário, não experimentou uma difusão como a
Regional. Se perguntarmos a alguém a respeito da capoeira Angola, é muito comum
que se obtenha uma resposta de surpresa, que aponte para o seu desconhecimento,
enquanto que a capoeira Regional é bem mais conhecida. Após uma queda,
principalmente, com a morte e envelhecimento dos antigos mestres de capoeira Angola,
observamos uma retomada deste movimento a partir dos anos 80. Segundo Abib
(...) a capoeira Angola retoma, sobretudo a partir das duas últimas décadas
do século XX, um fôlego e um vigor admiráveis, justamente em função de
um processo muito bem articulado por importantes lideranças baianas, no
sentido de valorização da consciência negra e da africanidade. Segundo o
pesquisador Jair Moura (2003), esse processo iniciou-se na década de oitenta
daquele século, e teve um caráter político importante, envolvendo militantes
do movimento negro e intelectuais baianos, mas também nele, tiveram um
papel fundamental alguns mestres tradicionais da então agonizante capoeira
Angola, como mestre João Pequeno, mestre João Grande, mestre Curió e
mestre Moraes (ABIB, 2004, p. 43).
Tal retomada terá como marca a construção de alternativas à hegemonia da
capoeira Regional. Dentre muitas outras formas de quebra dessa hegemonia, podemos
destacar a recuperação dos antigos modos de aprender capoeira. Frede Abreu num
depoimento dado a Abib (2004) diz que a capoeira Angola se caracteriza justamente por
ter surgido a partir dacultura do instantâneo”, do improviso” e donão racional” nas
senzalas, ruas e praças deste país, e que a sua transmissão tem que considerar essa
atmosfera informal. As regras do jogo da capoeira devem se inscrever no corpo do
capoeirista, sem necessidade de uma apreensão intelectual delas. Sobre isto Abib (2004)
cita Jocimar Dolio que aponta para a importância de aprender com o corpo, e não com a
razão, pois é o físico que estabelece o modo de contato primário com o entorno do
aprendiz que vai “assimilando e se apropriando dos valores, normas e costumes sociais,
num processo de incorporação. Mais do que um aprendizado intelectual, o indivíduo
55
adquire um conteúdo cultural, que se instala no seu corpo, no conjunto de suas
expressões” (Ibidem, p.34). O angoleiro, centrado nessa sua referência corporal
encarnada, construirá seu aprendizado sempre de modo singular. Mestre Moraes define
com muita presteza, a relação do angoleiro com a capoeira que segundo ele:
(...)é muito mais com o sentimento do que com o movimento”. O sentimento
do angoleiro expresso na sua forma de jogar, durante a roda, traz a
subjetividade como algo característico da estética da capoeira Angola. E a
subjetividade não é quantificável, por isso, pode manifestar-se de várias
formas segundo cada situação enfrentada pelo capoeira durante o jogo. Essa
pode ser considerada uma estética de aprendizagem contínua. (ABIB, 2004,
p. 145).
Nesse processo de aprendizado, como vimos acima na tradição dos antigos
capoeiras, cabe a relação mestre e aluno, a toda a atmosfera que inclui elementos éticos,
estéticos e políticos, o aprendizado e a prática da capoeira. Os aprendizes são forçados a
abrir-se às experiências de improviso, comum à vadiação. Esse processo busca
recuperar na capoeira os aspectos lúdicos, da brincadeira, da mandinga, da manha e da
criatividade. Ao mestre não caberia a arrogância de adequar os aprendizes a um
esquema sistemático e automático de movimentos sincronizados, mas oferecer
exemplos e oportunidades para que o aprendiz encontre o seu jogo. Mestre João
Pequeno em seu depoimento a Abib nos diz a respeito de seu aprendizado e de seu
ensino de capoeira Angola hoje em dia no forte de Santo Antonio em Salvador: “eu
aprendi, e dou os golpe que ele dava, eu passo pros meus aluno...mas eu não tinha
aquele jogo, aquele manejo de corpo que ele tinha...é por isso que aqui [referindo-se à
sua academia], eu não forço aluno nenhum que ele pegue meu jeito de corpo, né...”
(ABIB, 2004: 146).
Nessa construção a partir de suas experiências encarnadas são valorizadas os
truques, manhas e malandragens que cada um pode tirar da “cartola” sempre de modo
imprevisto e inusitado. À difusão cada vez mais ampliada da capoeira Regional que
56
privilegia o combate frontal, direto e objetivo, com movimentos que buscam um
aprimoramento técnico de golpes perfeitos e velozes, a capoeira Angola coloca um jogo
mais manhoso, estético e dissimulado. Frede Abreu relata assim a impressão que lhe
causou a visão do jogo de João Grande e João Pequeno:
Quando vi os dois jogando eu senti uma profundidade naquilo, que era uma
coisa incrível...as manhas, as gingas. Eu me lembro que eu pensava
assim...eles eram os caras que faziam da simulação, a verdade...eles
simulavam tanto que a simulação virava verdade, como se eu dissesse assim:
o jogo da capoeira é isso aqui (...) É a coisa mais completa de insinuações
que eu já vi: os dois jogando (Ibidem, p. 148).
Com essa revitalização, a capoeira Angola contemporânea também ganhou o
Brasil e o mundo. Mas os riscos que a capoeira Regional tem experimentando em sua
difusão também devem ser considerados pela capoeira Angola. É nesse sentido que nos
parece premente explicitar o modo tradicional de aprendizado da capoeira (“de oitiva”).
Deste modo, estamos diante de duas tradições de ensino e aprendizado que
atravessam a história da capoeira. O modelo da escola tradicional, voltado para a
sistematização, racionalização e competição, onde o que importa é o resultado ou a
eficiência do processo de aprendizado e o modo africano e antigo de aprender, onde a
vadiação, a brincadeira e estética de si tornam-se base. Não é justo afirmar que a
capoeira Angola é o patrimônio da forma antiga de aprender e a capoeira Regional da
forma escolar e formal, mas apenas constatar nelas o que historicamente se apresenta
como forma hegemônica de aprender e ensinar. Existem grupos e grupos de capoeira
Angola e Regional. Se olharmos bem de perto para cada um deles poderemos
perfeitamente encontrar no aprendizado do dia-a-dia marcas destas duas tendências. A
história e a tradição da capoeira e de suas formas de aprendizado ainda continuam
abertas, num jogo incompleto sem vencedor ou vencido.
57
CAPÍTULO II – Aprender gingando: Do aprendizado da ginga à ginga da
aprendizagem
2.1 – O movimento da ginga
No início do processo de aprendizado da capoeira Angola o aprendiz se
depara com um movimento de suma importância para essa prática, comumente
denominado de ginga. Trata-se de um movimento de deslocamento, para frente e para
trás, no qual as pernas e os braços se alternam inversamente de modo que, quando a
perna esquerda está na frente o braço direito deve estar também à frente próximo ao
rosto e vice-versa. Desde que surgiram espaços próprios para o treinamento da
capoeira, o aluno é levado a repetir exaustivamente esse movimento, procurando
imitar o Mestre e os outros colegas de treino. Com a ginga vão sendo apresentados os
outros movimentos do jogo de Angola: o aú, o rôle, o rabo-de-arraia, a meia lua, a
esquiva, a negativa etc, que vão formando, com ela, séries alternadas em que esses
movimentos se repetem. Vamos aprendendo que a ginga é um dos movimentos
principais, que é dela que se iniciam os demais movimentos, assim como esses
também devem se encerrar nela. Espécie de ponto de ancoragem dos movimentos da
capoeira a ginga se alterna o tempo todo. Iniciar e encerrar devem ser aqui
compreendidos como estados provisórios de experiências de treino
11
, pois o jogo da
capoeira pressupõe uma continuidade de movimentos, dispostas numa circularidade
na qual o começo e o fim da ginga ficam difíceis de serem identificados. Nesse
sentido, mais do que encerrar ou iniciar podemos dizer que ela é um movimento que
mantém o jogo sempre em movimento. Ou seja, o angoleiro quando não está
11
É comum nos treinos de capoeira, exercícios que partindo da ginga se desenrolam em outros
movimentos que ao seu fim devem concluir na ginga.
58
realizando os golpes de defesa e ataque deve estar necessariamente gingando,
encaixando nessa os demais movimentos. Gingando, sempre gingando; é assim que o
aprendiz vai aprendendo os golpes da capoeira. Quanto mais contínua e imediata for a
movimentação da ginga e dos outros movimentos maior a destreza do jogador. No
início, o aprendiz é levado a experimentar situações que lhe permitam coordenar seus
movimentos em torno da ginga, buscando encontrar a suavidade de sua continuidade.
Sob este momento diz Mestre Bola Sete:
(...) constatei que, a princípio, eles (os Mestres antigos) transmitiam para os
alunos os movimentos básicos de defesa, iniciando as aulas sempre com o
treinamento da ginga, a exemplo do Mestre Pastinha, que costumava segurar
na mão do aluno durante algum tempo, até que ele dominasse os seus passos,
passando a colocar os braços na posição defensiva. (...) Tudo isso sob os
olhares atentos dos demais alunos que aguardavam a sua vez. (Cruz, J. L
Oliveira ‘Mestre Bola Sete’, 2003, p.34)
Cada aprendiz vai encontrando, auxiliado pelo Mestre e pelos demais
companheiros, o tempo de seu aprendizado da ginga. Nossos Mestres nos indicam o
tempo todo a necessidade de soltar a ginga de modo que os movimentos ganhem uma
suave continuidade. Para tanto o treinamento da capoeira Angola geralmente se
abstém de exercícios distintos dos movimentos da capoeira. Os Mestres raramente
propõem exercícios físicos separados, visto que mesmo os de alongamento são
ensinados a serem feitos durante a ginga, assim como o desenvolvimento de
resistência e força muscular. É gingando que vamos entrando como alunos nos
movimentos do jogo da Capoeira Angola.
Numa série de aulas-espetáculo ministradas em todo o Brasil, o músico,
dançarino e cantor Antônio Nóbrega usa uma definição bastante interessante para a
ginga da capoeira, apontando para uma característica paradoxal desse movimento.
Nóbrega começa dizendo que nas danças clássicas como o balé, o bailarino procura
movimentar-se dentro de uma zona em que o que se busca é o equilíbrio. Nesse
sentido, os principais movimentos são realizados respeitando os eixos horizontais e
59
verticais, gerando deslocamentos equilibrados, perfeitos, suaves e precisos, quase
geométricos. O desequilíbrio torna-se fatal para o bailarino, propiciando geralmente
uma queda ou a deselegância do movimento. O bailarino procura produzir
movimentos contínuos e equilibrados alterando os eixos horizontais e verticais,
evitando sempre o desequilíbrio.
Para Antônio Nóbrega a capoeira e algumas outras manifestações corporais
brasileiras, como o frevo, se caracterizam por um outro tipo de movimento que
perpassa o tempo todo por um estado paradoxal que ele chama de “equilíbrio
precário”. Momentos em que os limites da estabilidade ou da instabilidade do
equilíbrio parecem se confundir numa estranha circularidade. Vendo um angoleiro
jogando observamos movimentos que não estão imersos em zonas de estabilidades,
como no balé, em que o desequilíbrio é evitado. Observamos um movimento que
quase sempre atravessa zonas de equilíbrio precário, lembrando bastante o
movimento de um bêbado voltando para casa andando. Um observador externo ao se
deparar com um bêbado andando tem a estranha sensação de que a todo momento ele
vai cair, mas ele consegue, inexplicavelmente, se reequilibrar e assim novamente se
desequilibrar, num estranho movimento indeterminado e surpreendente. O observador
fica então perplexo, pois não consegue ter a certeza do próximo movimento do
bêbado, nem a segurança de que ele não vai cair. Sobre este estranho movimento nos
fala Mestre Pastinha:
E jogar precisa ser jogado sem sujar a roupa, sem tocar o chão com o corpo.
Quando eu jogo, até pensam que o velho esta bêbado, porque fico todo mole
e desengonçado, parecendo que vou cair. Mas ninguém ainda me botou no
chão, nem vai botar (Pastinha, 1967).
A ginga na capoeira é, portanto, segundo brega, um movimento que
atravessa zonas de equilíbrio precário. E aqui gostaríamos de enfocar essa estranha
situação do movimento da ginga. Como vimos acima a destreza dos movimentos da
60
capoeira visam a manutenção de uma certa continuidade dos movimentos, mantendo-
se sempre gingando. Mas como conciliar a continuidade suave de movimentos com
zonas imprevisíveis de equilíbrios precários em que temos a nítida sensação de
paradas e cortes da continuidade? Como manter a cadência das seqüências dos
movimentos atravessando zonas de equilíbrio precário? Tais indagações podem
parecer contraditórias principalmente se pensarmos esses dois estados, o do equilíbrio
em continuidade e do desequilíbrio descontínuo como sendo opostos e contraditórios.
Tal dificuldade de tratar a ginga como um movimento que atravessa zonas de
equilíbrio precário pode ser atribuída a idéia recorrente de que um movimento
contínuo deve se realizado de modo automático e sem hesitações.
A idéia de que a continuidade do movimento é o objetivo de todo e qualquer
capoeira, tem como correlato treinamentos e exercícios que vão estimular a
automatização. Tal compreensão dos movimentos da capoeira e de seu exercício o
levaria a achar que, quanto mais contínua e automática for a transposição entre os
diversos golpes e a ginga, maior é a destreza e a eficiência do capoeira. Esse
entendimento tem encaminhado o aprendizado dos movimentos da capoeira para
exercícios que estimulem, através de repetições exaustivas, a execução mecânica e
automática de seqüências de golpes e contra-golpes cada vez mais rápidos.
Velocidade, continuidade e automação seriam assim, sinônimo de habilidade e
destreza de movimentos. Nesse processo de treinamento o capoeira passaria, da
posição de principiante, na qual os golpes são realizados de modo descontínuo e
lento, à posição de iniciado, em que seus movimentos cada vez mais seriam
executados com velocidade e continuidade. A velocidade de golpes contínuos e
automáticos seria considerada como estágio superior da habilidade do jogo da
capoeira.
61
2.2 – O aprendizado da ginga como aquisição de comportamentos automáticos
E aqui podemos discutir à luz do aprendizado da ginga na capoeira, algumas
ressonâncias com os estudos da aprendizagem em psicologia. Será que quando
aprendemos capoeira, o que está em jogo é a aquisição de um comportamento
automático, mecânico, resultado de uma série de condicionamentos, de conexões
cegas entre situações e condutas específicas? Trata-se de um esforço de repetição de
certos movimentos, que devem ser automatizados à exaustão?
Normalmente, e a tradição dos estudos da aprendizagem não deixa negar, a
explicação desses processos se reduz a técnicas de formação de habilidades que
permitam aos aprendizes se comportarem adequadamente a dadas circunstâncias.
Nesse sentido, apresentaremos agora, sempre à luz da experiência do aprendizado da
capoeira Angola, uma abordagem da psicologia, que buscou compreender este
processo como uma prática de adequação, cada vez mais automática, às
circunstâncias do ambiente.
Uma das primeiras abordagens do pensamento psicológico a privilegiar o
tema da aprendizagem foi o Behaviorismo. Nascido a partir do manifesto de J. B.
Watson “A psicologia tal como o behaviorista vê” (WATSON, 1913) surge criticando
a abordagem mentalista da psicologia clássica (o estruturalismo de Titchener e o
funcionalismo de William James), que consideravam, para explicar o comportamento
humano, variáveis subjetivas ou mentais. Segundo Watson: “O que precisamos fazer
é começar a trabalhar na psicologia fazendo do comportamento, e não da consciência,
o ponto objetivo de nosso ataque(Apud CANÇADO et al, 2006, p. 181).
62
Mas o interesse do behaviorismo em abandonar o projeto de uma psicologia da
mente, segue na empresa de Watson uma inclinação fundamentalmente metodológica.
Com uma marcante influência do positivismo, o behaviorismo nasce não
abandonando a noção de consciência, como também tratando o comportamento por
meio de um método objetivo e experimental. Como diz Cançado a respeito do interesse
de Watson:
Ele (Watson) propõe que a psicologia que seja uma ciência empírica e que
leve a generalizações amplas sobre o comportamento humano, mantendo-se a
uniformidade do procedimento experimental, para que os experimentos dos
psicólogos possam, assim como o dos físicos e químicos, ser replicados em
qualquer laboratório (Idem, p. 182).
Mas se é com Watson que o behaviorismo se inicia, podemos dizer que é com
Skinner que ele assume características mais bem acabadas. Para Watson o estudo do
comportamento, desprezando a variável mental, era uma imposição de caráter
metodológico, podendo com o tempo ser reconsiderada. Watson não leva às últimas
conseqüências o desenvolvimento da psicologia como um estudo exclusivo do
comportamento. É com Burrhus Frederic Skinner que o Behaviorismo encontra sua
concepção radical. Para ele a necessidade da psicologia se restringir ao estudo funcional
do comportamento não é apenas metodológica, mas filosófica. Ou seja, o
comportamento não deve ser o objeto de estudo da psicologia apenas por não existir na
época (primeira metade da século XX) uma abordagem científica da mente ou do
cérebro, mas por ser esse o único e verdadeiro objeto da psicologia.
Segundo Cançado, Skinner vai criticar a psicologia existente até o início do
século XX, por sua opção atomista e causal do comportamento. Influenciada pela
ciência do XIX, tal psicologia tentava encontrar nos fenômenos psicológicos relações
causais e deterministas, numa espécie de atomismo psicológico. Nesse modo de
compreensão haveria um determinismo causal, estabelecendo relações de necessidade
entre causa e efeito. No início de século XX começam a aparecer críticas ao
63
entendimento dos fenômenos naturais segundo o modelo da causalidade mecânica. No
lugar de relações causais propõem-se relações funcionais. Segundo Cançado (2006,
p.184) isso ocorre tanto com a física do austríaco Ernst Mach, quanto com a teoria da
relatividade de Einstein. Imerso nessa atmosfera, Skinner irá propor uma a psicologia
funcional do comportamento.
Para Cançado a idéia de função deve ser compreendida em termos matemáticos,
de uma relação contingente. A maior parte do repertório de nossos comportamentos
devem ser entendidos como relações contingentes entre circunstâncias ambientais e
determinadas respostas comportamentais. A explicação psicológica deve evitar a queda
nas armadilhas de uma estruturação ou substancialização das variáveis em jogo nas
condutas, sejam elas a consciência, a mente, o cérebro, o meio ambiente e o
comportamento, cujo estudo deve levar em conta apenas as relações funcionais entre
esses últimos. Fica claro o privilégio que esta teoria pretende dar aos comportamentos
como resultantes dos usos e interações do corpo com o seu entorno, e assim, elevar os
estudos da aprendizagem ao aspecto principal de sua psicologia.
Para Skinner os “homens agem sobre o mundo, modificam-no e, por sua vez, são
modificados pelas conseqüências de suas ações” (1978 p. 15). Do ponto de vista
behaviorista o comportamento se refere ao ambiente e ao organismo de modo funcional.
Cabe ao psicólogo comportamental compreender como se constituem, se mantém e se
extinguem determinadas relações entre as circunstâncias e a conduta. O estudo
behaviorista, não considera importante a análise estrutural do ambiente ou do
organismo, cérebro ou consciência como fontes explicativas do comportamento, mas
pretende apenas descrever como se formam, se mantém e se extinguem as relações
funcionais entre o comportamento e o meio ambiente. Desde modo, o behaviorismo vai
dar destaque à aprendizagem, ou seja, vai mostrar como determinadas condutas se
64
originam, se mantém e são suprimidas, sem que para isso lance mão de qualquer forma
explicativa estrutural ou substancialista.
Para Skinner, com exceção dos comportamentos reflexos, todas as nossas
condutas são aprendidas. Nesse modo funcional de compreensão da aprendizagem,
destacam-se a ação, a repetição e as contingências reforçadoras do ambiente como
principais conceitos do behaviorismo. Mas, a principal noção desta psicologia é a de
operante. Inspirada no conceito darwiniano de seleção natural, Skinner vai considerar,
tão-só no plano ontogenético, a seleção das condutas de acordo com seus efeitos.
Segundo ele, como toda conduta é uma ação numa certa circunstância, ela sempre vai
produzir determinados efeitos, que retroativamente selecionam, aumentando ou
diminuindo a probabilidade de, no futuro, tal conduta se repetir em circunstâncias
semelhantes.
Num livro publicado em 1989, um ano antes de sua morte, Skinner aponta para o
que ele julga ser a base explicativa da aprendizagem. Diz ele:
‘Os membros de outras espécies’ adquirem conhecimentos uns dos outros
através da imitação, um processo tributável tanto à seleção natural quanto ao
condicionamento operante. Às vezes eles modelam o comportamento a ser
imitado, mas apenas os membros da espécie humana parecem fazê-lo para
que os outros o imitem. Modelação é uma forma de ensino, mas a
permanência de seu efeito depende do reforçamento positivo ou negativo
(SKINNER, 1995, p. 122)
Mais à frente, Skinner descreve o que seria a aprendizagem da prática japonesa
de dobradura de papel o “origami”. O aprendiz inicialmente vai imitando o professor,
repetindo um a um os movimentos realizados por este. No final ambos fizeram, por
exemplo, a figura de um pássaro. O aprendiz reproduz com exatidão o processo de
dobradura, mas tal processo ainda não está consolidado, ou melhor, ele não consegue
realizá-lo sozinho. Houve modelação, mas não permanência ou automatização da
prática da dobradura. Os movimentos do aprendiz estão ainda dependentes do instrutor.
A seguir o professor inverte o processo. Ao invés dele servir de exemplo para o
65
aprendiz imitá-lo, propõe que este inicie os movimentos da dobradura para que ele
possa imitar. O aprendiz realiza uma primeira dobradura, se essa for de acordo com o
modelo, o professor imita aquela dobradura (reforço positivo)e, nesse caso o aprendiz
segue para a próxima etapa do processo de dobradura. Se o aprendiz efetivar um
movimento que esteja inadequado à seqüência, o professor fica parado até que aquele
conserte o movimento (ausência de reforço). Nessa seqüência invertida as
conseqüências dos atos do aprendiz atuam como seleção das condutas adequadas. Ao
concluir o processo várias vezes, o aprendiz consegue realizá-lo cada vez mais rápido e
automaticamente, diminuindo os erros e as hesitações. Aprender aqui é adequar-se
funcionalmente a um conjunto de ões prévias guiadas por estímulos ou determinadas
situações (o modo de fazer dobraduras de origami) por meio de um processo de
imitação, repetições e reforços.
É importante destacar que em tal processo o aprendiz experimenta modificações
comportamentais a partir de uma prática corporal sem mediações de aspectos
cognitivos: representações simbólicas ou modelos mentais. Não é uma estrutura lógica
que deve ser aprendida (esquema de relações entre as dobraduras), mas apenas
associações, seqüências de condutas que são selecionadas, aumentando a probabilidade
de sua ocorrência no futuro em circunstâncias semelhantes. É agindo, ou melhor,
reagindo, que o comportamento do aprendiz se molda a um modelo que também é
comportamental
12
. Tanto o do modelo que se imita quanto o do aprendiz são práticas
concretas que articulam estímulos, respostas e seus efeitos. Não se trata de “esquemas”
de “algo” que se deve imitar, mas de comportamentos, seqüências de práticas reforçadas
pelas circunstâncias do aprendizado. Aprender é condicionar seu corpo a responder de
12
O termo Modelo deve ser aqui entendido como um conjunto de ações que por serem bem sucedidas se
repetem. Nesse sentido destacamos que para o behaviorismo radical o modelo a ser imitado não são
regras lógicas ou estruturais, mas usos e práticas comportamentais, são hábitos e não sistemas. Nesse
sentido o termo indicado é modelagem e não modelo.
66
modo específico a determinadas situações também específicas, aprendendo a
discriminar os estímulos, comportando-se de modo adequado. A aprendizagem é sempre
empírica e prática, feita de repetições e reforçamentos, fora da qual nada acontece.
Portanto, desde sempre, é através de nossas práticas que vamos formando um conjunto
de habilidades. Não aprendizagem, para Skinner, fora do comportamento ou fora da
ação. O indivíduo é por excelência o lócus do aprendizado, que é sobre ele que as
contingências reforçadoras atuam, sempre de modo direto.
Podemos, à luz da teoria skinneriana, argumentar que o aprendizado da capoeira
não pode ser reduzido a uma mera aquisição de habilidades motoras individuais,
desconsiderando o ambiente cultural ou social desta prática. Aprendemos capoeira
apenas diante de nossas práticas, de nossos êxitos e fracassos? Ou também podemos
aprender como os outros, trazendo para o condicionamento uma noção de aprendizagem
social?
Para dar conta desse tipo de aprendizagem Skinner considerou a necessidade de
apontar um terceiro nível de atuação das contingências reforçadoras, alem do
filogenético (seleção natural) e do ontogenético (seleção individual), que ele chamou de
nível cultural ou social (1957, 1974, 1978, 1989). Para ele o comportamento humano é
fruto inseparável da ação integrada destes três níveis. O primeiro se refere à seleção de
condutas características da espécie ao longo de seu processo evolutivo, que são
transmitidas de modo hereditário, que Darwin chamou de seleção natural. O segundo
diz respeito à história de reforçamentos de cada indivíduo ao longo de sua vida, que
Skinner chama da aprendizagem condicionada segundo ações do próprio indivíduo. O
terceiro, que Skinner chama de nível cultural, é sobre os comportamentos selecionados
pela interação do organismo humano com seu ambiente social específico, que
selecionam determinadas práticas e usos sociais.
67
Neste aspecto, o “Comportamento Verbal” trouxe um benefício adaptativo
enorme para o animal humano, que, por meio dele o indivíduo consegue assumir um
grau avançado de cooperação, podendo aprender a partir daquilo que os outros
aprenderam anteriormente, seguindo padrões de conduta socialmente estabelecidos. Os
comportamentos verbais, seja nos domínios da escrita ou da oralidade, vão desempenhar
um papel importante nas seleções sociais, que disseminam com maior facilidade
determinados usos e práticas por diversos locais e através dos tempos. Nesse sentido,
para Skinner é perfeitamente possível falar em “regras sociais” desde que as
entendamos como um conjunto de descrições de contingências reforçadoras, que
selecionam determinadas práticas sociais. Por exemplo, no futebol, toda vez em que a
bola sair da marcação do campo a partida é interrompida, para recomeçar com a posse
de bola para o time adversário. Essa regra é reforçada socialmente, na medida em que
todo mundo assim se comporta e um jovem que vai aprender a jogar bola, aprende de
acordo com as condutas dos outros. Observando essas condutas, ou por meio da leitura
das regras ou do que se fala entre os convivas, as condutas vão sendo selecionadas.
É importante frisar que esses três níveis são indissociáveis, fazendo com que os
comportamentos humanos respondam à história das espécies, dos indivíduos e da
sociedade. Nas condutas humanas convivem as interações orgânicas da espécie, da
pessoa e do eu. Considerar esses três níveis de contingências reforçadoras é vital para
compreendermos a aprendizagem para Skinner, pois é através deste caminho que ele
evita incorporar variáveis cognitivas de mediação da conduta. O behaviorismo de
Skinner pode ser, conseqüentemente, considerado um funcionalismo empirista radical.
Todos os comportamentos são adquiridos ao longo de histórias filogenéticas,
ontogenéticas e sociais, e são mantidos porque foram selecionados através do tempo
68
e ainda continuam sendo no presente. As condutas vão se moldando e se especializando
conforme suas ações e reforçamentos.
Os organismos não aprendem apenas em função dos efeitos provocados por suas
condutas, mas também baseados na observação do comportamento de outros
organismos e com eles. Nesses casos, os estímulos a serem discriminados são oferecidos
por outros comportamentos de outros organismos e não por objetos ou eventos; como,
por exemplo, em um vôo de pássaros, nos quais cada ave molda o seu vôo segundo o
vôo das outras ou o canto de uma delas ativa em outras a fuga de predadores; ou,
ainda, quando o galope de um boi desperta o estouro da boiada etc.
Segundo Catania (1999) a discriminação dos comportamentos de outros
organismos, sejam da mesma espécie ou não, possui uma forte vantagem seletiva. Um
predador que pode distinguir se foi notado pela presa tem vantagens enormes para
realizar o comportamento da caça. Desta forma, nos seres vivos mais complexos a
discriminação de comportamentos sociais pode se tornar mais importante para a
adaptação destes do que a de aspectos físicos do ambiente.
Catania julga ser possível encaixar na análise comportamental os chamados
comportamentos complexos, tais como, julgar, avaliar, pensar, falar etc. Tomemos o
exemplo da linguagem. Os estudos de psicologia da linguagem tendem a privilegiar
aspectos estruturais e cognitivos, de regras formais que se aplicariam ao universo
sofisticado dos comportamentos humanos. Separam, de algum modo, os aspectos
referentes a esses processos superiores significação, entendimento, memória etc. de
nossas práticas comportamentais. Catania mostra que uma análise puramente estrutural
restringe a psicologia da linguagem a uma busca de regras invariantes e formais da
sintaxe e da semântica, levando-nos a três equívocos “substancialistas”. O primeiro
deles é que “(...) falamos freqüentemente do uso das palavras, como se elas fossem
69
coisas e não um comportamento” (1999, p. 251). O segundo equívoco é que (...)
também falamos da linguagem como se ela fosse direcionada a eventos ou objetos”
(Ibidem, p. 251). Por último Catania aponta para o equívoco de considerar a linguagem
um receptáculo de significados. Falamos apenas metaforicamente quando dizemos que
as palavras possuem um significado.
Se a linguagem transmite algo, esse algo é o próprio comportamento verbal;
na audição e na leitura, nosso próprio comportamento recria alguns aspectos
do comportamento dos falantes e dos escritores, os quais constituem nossa
comunidade verbal. Compartilhamos nosso comportamento verbal; ele é
acima de tudo um comportamento social (ibidem, p. 252).
As palavras, frases ou proposições escritas ou faladas segundo este autor não são
coisas, não se referem às coisas e nem são receptáculos de significações. São
comportamentos e como tal devem ser explicados a partir de uma análise funcional.
Significar, metaforizar, referir etc. são condutas que se explicam a partir de uma
associação de respostas a determinados estímulos, sejam verbais ou o-verbais. O
comportamento verbal não se localiza acima dos comportamentos não-verbais, visto
que, como esses, eles precisam ser discriminados pelo meio ou circunstâncias
ambientais, sejam físicas ou sociais
13
. Quando uma criança aprende a responder “maçã”
na presença de um objeto, ou observando os outros falando, dizemos, por exemplo,
segundo Skinner, que ela está “tateando” o objeto. Dar uma resposta verbal a um
estímulo não-verbal não significa que a criança aprendeu o que é uma maçã real ou
apreendeu seu significado, mas que uma resposta verbal específica está sendo
discriminada por um estímulo ambiental específico. Do ponto de vista comportamental
não há nem uma maçã real, nem uma maçã ideal (conceitual ou simbólica) que pode ser
substituída por um signo. Trata-se apenas de comportamentos que são construídos
através de uma prática controlada pelas circunstâncias reforçadoras. Na aquisição da
linguagem os estímulos discriminativos são inicialmente aspectos físicos do ambiente
13
Tal descriminação dos estímulos Skinner define como “tato”.
70
(cores, formas, eventos, ações etc), mas com o desenvolvimento do comportamento
verbal, aspectos de um meio verbal podem ser discriminadores para determinados
comportamentos (aprendizagem social). Ser repreendido em público provoca reações
diferentes do que individualmente. Com a sofisticação dos comportamentos verbais e
não-verbais os organismos passam a reagir não apenas aos aspectos físicos do ambiente,
mas também e primordialmente aos aspectos sociais do ambiente, ou ao modo como um
grupo de pessoas se comporta.
Quando alguém sorri para você em certas situações, podemos atribuir a este
sorriso uma intenção de aproximação, o que nos permite agir de acordo com este
estímulo por meio de uma discriminação social. O discernimento desse ato enquanto um
estímulo para uma aproximação depende de um pertencimento social, de relações entre
pessoas numa determinada cultura. Catania chama isto de ambiente social. Mas este
autor adverte para uma conclusão apressada. Dizer que um comportamento social pode
servir de discriminação de atitudes diversas variando o contexto e a cultura não é o
mesmo que dizer que o comportamento social deve ser entendido como transmissão de
informação ou de significações. Os estímulos sociais não carregam em si um sentido ou
significado a ser transmitido. Sorrir não significa algo que devemos interpretar, mas
indica segundo experiências anteriores como devemos nos comportar. Assim, com base
no comportamento dos outros passamos a discriminar o nosso próprio. que essa
discriminação não passa por mediações cognitivas ou por representações mentais. Trata-
se ainda de modelagem, de adequação comportamental e não de modelização como
veremos mais a frente com Bandura.
A emergência do comportamento verbal teria permitido que a cooperação
entre os seres humanos fosse mais bem-sucedida. Da mesma forma, as
pessoas passaram a aprender a partir daquilo que outros haviam aprendido
(...) (CANÇADO et al, 2006, P. 187).
71
Ampliando o entendimento de ambiente reforçador podemos dizer que, segundo
os estudos do behaviorismo, na capoeira o aprendiz não aprende com os efeitos de
seus atos, mas também e fundamentalmente através dos efeitos das condutas alheias,
que chegam a ele através dos comportamentos verbais e não-verbais. Portanto, amplia-
se a noção de ambiente, incluindo o entorno social, no qual os comportamentos são
resultados das interações com os outros. Não jogamos da mesma maneira numa roda ou
num treino, com um Mestre ou com um aprendiz, com um desconhecido ou conhecido,
diante de um público ou em uma roda vazia. Uma rasteira pode ser carinhosa ou
violenta. Amplia-se a noção de determinante físico de nossos condicionamentos para
um determinante social. Nossas condutas não são fruto de nossas experiências
individuais, mas também das experiências dos outros e das relações que estabelecemos
com eles. Um ambiente social nada mais é do que um conjunto de práticas comuns que
um grupo de indivíduos realizam, marcando entre si uma identidade operacional.
Dizemos que um grupo de capoeira porque vários corpos realizam entre si condutas
marcadas por uma identidade.
Mesmo admitindo um condicionamento em nível social Skinner ainda encontra
no corpo individual o local próprio dessa incidência. Mas com o cuidado de distinguir o
que é local do que é condicionado, o lócus é o corpo individual, todavia o que é
condicionado é o comportamento. Não conduta fora do corpo. O social pode
perfeitamente ser reduzido a práticas individuais comuns. As seleções filogenéticas,
individuais ou sociais ainda recaem sobre o nosso corpo individual. A aprendizagem
social de Skinner ainda é centrada no indivíduo particular, que se molda aos efeitos da
espécie, de suas práticas e das práticas dos outros. Somos resultado do como nos
comportamos e do como os outros se comportam diante de nós.
72
Nesse sentido “um comportamento que tenha sido aprendido pode sobreviver à
morte do organismo que o aprendeu. Assim, o comportamento sobrevive no que os
outros fazem” (Catania, 1999, p. 235). Podemos, portanto aprender por observação, sem
nenhuma representação mental ou cognitiva, mas desde que consideremos esta
observação como uma ação reforçadora do comportamento dos outros sobre nossa
conduta. Sentado numa roda posso observar determinados movimentos ou atitudes e a
partir deles mudar meus comportamentos.
Segundo Catania “a aprendizagem por observação, às vezes, é tratada como se
fosse, ela própria, um tipo fundamental de aprendizagem (Bandura, 1986), mas
provavelmente ela seria melhor tratada como uma variedade de comportamento de
ordem superior” (Ibidem, p. 239). Encarada como uma forma distinta de aprendizagem
incorporam-se aos aspectos ambientais e comportamentais, aspectos cognitivos,
enquanto vista como uma variedade de comportamento as explicações da aprendizagem
social mantêm-se imersas nos mesmos princípios comportamentalistas.
Uma vez que alguns indivíduos tenham começado a repetir o que outros
vocalizavam, o comportamento verbal tornou-se um tipo de comportamento
que sobrevive no comportamento do grupo, como um candidato para o
terceiro tipo de seleção que discutimos antes, o da transmissão cultural.
Dessa forma, o cenário estava pronto para a memória verbal humana, para os
sistemas instrucionais e educacionais e para a rápida e ampla disseminação
das práticas culturais (Ibidem, p. 241).
Na aprendizagem social nosso comportamento também é reforçado pela
observação do procedimento do outro. É na observação dos outros ou nas histórias
contadas ou lidas, que na maioria das vezes aprendemos a discriminar propriedades de
nosso próprio proceder. Tal fato fica mais evidente no caso do comportamento verbal,
onde aprendemos com os outros a linguagem que escreve nosso próprio desempenho.
Deste modo, o que sabemos sobre nós mesmos é um produto social. “Não vemos a nós
mesmos como os outros nos vêem; vemos a nós mesmos como vemos os outros”
(idem., p. 241). Aprendemos a discriminar nossos comportamentos de acordo com as
73
contingências reforçadoras do grupo social. No exemplo da capoeira, segundo tal
perspectiva, vamos por meio da participação no grupo (treinos, conversas, rodas etc)
aprendendo a discriminar nossas condutas referentes à dinâmica social (como
discriminar um movimento, um canto, um toque, as brincadeiras, brigas, os costumes
sociais). É ainda um corpo se moldando ao ambiente, só que a um ambiente social. Mas
entendendo sempre que este não é composto por um conjunto de práticas que trazem em
si uma dimensão simbólica ou estrutural que o determine, mas um ambiente funcional,
ou um conjunto de práticas ligadas à espécie, ao indivíduo e ao grupo dos indivíduos
que se repetem em função de seus ganhos adaptativos e utilitários.
Vejamos como alguns exemplos do aprendizado da capoeira poderiam ser
explicados pelo Behaviorismo de Skinner. No aprendizado da capoeira tal como no do
origami temos um aprendizado centrado na prática. É fazendo os movimentos, tocando
os instrumentos e cantando que se aprende a jogar, tocar e cantar. Tais condutas
podem ser aprendidas pelo homem, devido à herança de um corpo, constituído por um
conjuntos de órgãos, que foi selecionado ao longo da filogênese humana. podemos
aprender a cantar porque possuímos órgãos fonadores, cérebro etc., assim como
podemos tocar o berimbau porque nossas mãos podem se amoldar ao instrumento. Mas
não basta nascermos com um corpo humano para sermos capoeiristas. Precisamos
modelar esse corpo de acordo com as condutas específicas dessa prática. Nesse sentido,
as primeiras aulas são de ambientação com os “fazeres" do jogo de capoeira. Nosso
corpo acostumado a outras utilizações deve se adaptar aos movimentos, sons, cantos,
enfim, ao ambiente comportamental da capoeira. São propostos inúmeros exercícios,
que devem ser imitados e realizados repetitivamente, o que permitirá seu refinamento
ou aperfeiçoamento. Para tanto, o professor, geralmente, fica de frente para os alunos e
estes procuram imitar, como num espelho, seus movimentos. A repetição e imitação são
74
determinantes nesse processo de aprendizagem. Mas não basta imitar. É necessário que
o aprendiz ganhe autonomia em relação ao modelo. Sendo assim, o ambiente da
capoeira, cujo principal agente é o professor, começa a reforçar as condutas adequadas
ou punir as inadequadas. O reforço e a punição vão modelando as condutas do aprendiz,
de acordo com suas práticas. Com o tempo e suas repetições, o iniciante vai ganhando
autonomia e adequando-se cada vez melhor às práticas do universo da capoeira. Porém,
como vimos acima, não é apenas o ambiente físico que seleciona as condutas
adequadas, mas também o ambiente social da capoeira. O aprendiz vai sendo moldado
também pelas práticas de seus colegas. Aprende-se por meio das condutas dos outros,
das conversas ou leituras que vão implementando no corpo do principiante hábitos
ligados ao mundo da capoeira.
A prática é o lugar por excelência do aprendizado behaviorista, no entanto, é
ainda utilitária, adaptacionista e principalmente passiva. O aprendiz vai se moldando
aos usos e ritos da capoeira, reproduzindo a tradição. Não espaço para pensar a
criação de novas formas de condutas, a não ser pela mera casualidade. A tendência é a
repetição do mesmo, esforçando-se sempre por achar uma adequação às circunstâncias.
O behaviorismo de Skinner, no a de realizar uma psicologia objetiva, parece
radicalizar os princípios funcionais utilitaristas, dando muita importância ao caráter
passivo e adaptativo da aprendizagem. Mesmo ampliando a noção de ambiente,
incorporado a noção social, ainda mantém o entendimento passivo e automático da
prática da aprendizagem, como se esta não comportasse uma atenção e um esforço do
aprendiz. nitidamente nesse modo de explicação da aprendizagem uma ausência de
domínios subjetivos como a atenção, o entendimento e afecções.
Dessa forma, as ações ou as práticas seriam explicadas unicamente por
mecanismos automáticos de fixação de condutas, como se a aprendizagem fosse
75
garantida apenas pelo reforço, no qual um corpo totalmente maleável seria modelado e
alcançaria cada vez mais automatizações. Não importa se o iniciante está atento ou não
no momento em que realiza os treinamentos, se compreende ou não os movimentos que
realiza, se esses o marcam afetivamente ou não. Essa explicação não consegue
classificar os diversos modos de engajamento do aprendiz, não consegue discriminar o
que o faz voltar ou continuar treinando. Reduz tudo a automatização de movimentos
sem sentido, esquecendo de abordar as dimensões estéticas, éticas, políticas e místicas
que a capoeira traz. Entende a realização da capoeira como se esta pudesse ser reduzida
à execução automática de seqüências de movimentos em geral. Mestre João Pequeno
diz o seguinte a respeito dos movimentos da capoeira Angola:
Capoeira Angola só tem nove golpes, multiplicados por 2 ou 3: Aú – que
você pode dar de vários golpes; Negativa – golpe principal defensivo. Tem a
negativa descida e tem a negativa do golpe que a gente faz que vai dar e não
dá; Rateira – alta e baixa; Meia lua – de frente e de costas; rabo-de-arraia;
cabeçada – baixa e alta; tesoura; corta capim; chapa – de frente, de costas e
de lado. (João Pequeno, s/d, P. 13)
Reduzidas à realização mecânica desses movimentos estaríamos simplificando
demais o aprendizado da capoeira. O que com certeza não o faz Mestre João Pequeno
quando afirma que, depois de aprender sua realização, o aprendiz de capoeira pode
entrar numa roda, mas que isso é o início, já que lhe falta experiência. Continua o
Mestre (idem, p. 13) (...) a capoeira se aprende com o amadurecimento, cada dia que
passa a gente aprende mais” e conclui citando Mestre Pastinha e “ainda estou
aprendendo Capoeira”. Nesse modelo de aprendizagem a técnica assume papel de
destaque, tanto na transmissão quanto na avaliação do processo de aprendizagem.
2.3 – O aprendizado da ginga como aquisição de habilidades
76
Comparado ao principiante que não consegue realizar de modo contínuo uma
seqüência de golpes, podemos dizer que o jogador que apresenta movimentos
contínuos e automáticos desenvolveu habilidades que o credenciam a jogar capoeira.
Mas como afirmou acima Mestre João Pequeno ele ainda não é um capoeirista. A
automatização prepara nosso corpo a reagir de modo cada vez mais rápido e preciso a
estímulos ou situações. Somos condicionados a encaixar respostas comportamentais
adequadas a determinadas situações do jogo. Um movimento de rabo-de-arraia, em que
um dos pés do adversário passará com força na altura de nosso tronco e rosto, nos
indica imediatamente, como num reflexo, que o movimento da esquiva deve ser
adequado para evitar tal golpe. Como o jogo da capoeira é jogado por dois oponentes,
podemos dizer que o encadeamento dos movimentos contínuos e automáticos tem que
considerar a movimentação do adversário. Tal automatização não pode ser apenas de
um, mas sim de dois corpos que se entrecruzam em seqüências de movimentos. Um
observador externo ao mundo da capoeira pode perfeitamente avaliar um jogo pela
velocidade e sincronia dos golpes e contra-golpes que dois capoeiras realizam no
interior de uma roda. Podem, perfeitamente, acreditar que tais golpes são realizados
por exímios capoeiras que conhecem a fundo esse belo jogo. Isso seria absolutamente
verdadeiro se a capoeira fosse jogada visando fundamentalmente uma exibição que
agrade os olhos do expectador. E aqui talvez nos deparemos com uma tendência
importante do aprendizado da capoeira que vem assumindo cada vez mais destaque
nos dias de hoje: considerar a capoeira como uma atividade esportiva e marcial de
exibição. Tendência que não parece ser exclusiva da capoeira, mas que atinge também
outras atividades, como é o caso do futebol, entre outras práticas corporais
14
.
14
Mais à frente destacaremos mais este aspecto de exibicionismo ligado ao entretenimento, quando
analisarmos as questões políticas ligadas ao aprendizado da capoeira Angola.
77
Como vimos no capítulo anterior, a capoeira vem sofrendo aos poucos
inúmeras transformações, que de algum modo vão privilegiando o lado esportivo
voltado para a exibição. Quando o interesse da capoeira é agradar, a tendência é que o
jogo ganhe uma dinâmica atlética e acrobática, aos olhos do expectador que avalia de
fora. Embora ainda não esteja presente na capoeira o sentido de competição, comum
em outros esportes nos quais o jogo geralmente termina com um vencedor
15
, podemos
perfeitamente dizer que ela vem se aproximando dos esportes de exibição. Nessa
tendência exibicionista o jogo da capoeira ganha uma dinâmica em que a luta, a
vadiação e a malícia cedem lugar à dimensão coreográfica. Nesta, os jogadores-
atletas devem representar com grande eficiência um certo padrão de movimentos, que
leva à formação de um estereótipo da capoeira. Corpos nus e atléticos, que realizam
movimentos acrobáticos entre si sem interrupção. Seqüências repetidas de
movimentos cada vez mais ágeis, numa coordenação concatenada de ataques e
defesas.
Nessas seqüências ininterruptas de golpe velozes constatamos a ausência de
pausas ou momentos de hesitação. Os movimentos se desenrolam como se
encenassem a representação de um escript. Os jogadores não antecipam os
movimentos do oponente como também realizam movimentos facilmente
antecipáveis. Nesse balé ágil e preciso de movimentos de pernas, cabeças e braços, a
surpresa dos golpes pouco ocorre para aqueles que ali jogam. O que é surpreendente
aos olhos de um expectador pouco afeito a esses movimentos, acaba sendo recorrente
para os jogadores, que repetem, no jogo, os seus exaustivos treinamentos, procurando,
sobretudo, oferecer à platéia um espetáculo da “cultura afro-brasileira”. De algum
15
Por mais que alguns grupos de capoeira, principalmente da vertente Regional, tentem realizar
campeonatos e competições nos quais são avaliados vários quesitos do jogo, a capoeira em geral não se
deixou transformar completamente num esporte de competição. Não competições entre grupos
diferentes, assim como não há regras universais desta prática.
78
modo, a rotina dos treinos se transforma numa busca mecânica de superação física
visando ao aperfeiçoamento de habilidades atléticas.
Essa tendência do aprendizado da capoeira está em consonância com as
principais linhas da psicologia do esporte, que pretendem auxiliar os atletas
profissionais ou amadores “(...) com a finalidade de desenvolver uma boa
performance, uma satisfação pessoal e um bom desenvolvimento da personalidade
por meio da participação” (WEIBERG & GOULD apud SAMULSKI, 2002, p.03).
Esse campo da psicologia aplicada, herdeiro da tradição behaviorista, entende a
prática corporal como superação individual, que engloba aspectos físicos e mentais,
privilegiando vantagens competitivas de performances atléticas. Além disso, por
meio de exercícios mentais e físicos na intenção de controlar o desempenho
individual, visam a uma adequação cada vez maior dessas habilidades às
circunstâncias do esporte. Às habilidades atléticas, que o behaviorismo soube muito
bem descrever e explicar são acrescentadas, na esteira da psicologia cognitiva, a
necessidade de incluir aspectos cognitivos e emocionais na aquisição destas e de
outras habilidades. o basta desenvolver um condicionamento atlético, é necessário
também um condicionamento mental. Nasce a noção de habilidades mentais, que
devem também ser exercitadas com o objetivo de aumentar o desempenho do atleta.
Caberia ao psicólogo do esporte treiná-las. Nesse sentido é que são desenvolvidos
programas de THP (treinamento de habilidades psicológicas). Segundo Weinberg, R
& Gould, D.:
O treinamento de habilidades psicológicas (THP) refere-se à prática
sistemática e consistente de habilidade mentais ou psicológicas. cnicos e
atletas sabem que as habilidades físicas devem ser praticadas regularmente e
refinadas por meio de literalmente milhares e milhares de repetições. Tal
como as habilidades físicas, habilidades psicológicas como manter e focalizar
concentração, regular os níveis de ativação, aumentar a confiança e manter a
motivação também precisam ser sistematicamente treinada (2001, p. 248).
79
Até que ponto essas correntes da psicologia, que incluem no entendimento da
aprendizagem variáveis mentais ou cognitivas ainda se mantém no modelo
behaviorista? Como essas novas variáveis atuam na aprendizagem? Para responder a
essas perguntas analisaremos uma vertente importante dos estudos cognitivos conhecida
como “Teoria Social Cognitiva” cujo principal expoente é o psicólogo americano Albert
Bandura. Herdeiro da tradição behaviorista, mas descontente com esta por ter
considerado unicamente os aspectos reforçadores do ambiente físico e social, Bandura
tentará acrescentar às ferramentas comportamentalistas fatores cognitivos que atuariam
como mediadores no processo de aprendizagem. Ciente de que a aprendizagem humana
é iminentemente social, Bandura, ao contrário de Skinner, sente a necessidade de
incorporar a variável cognitiva a ela.
Segundo Juan Ignácio Pozo (2004) a teoria de aprendizagem social de Bandura
realiza de modo explícito uma abordagem mista a respeito da aprendizagem,
considerando tanto aspectos comportamentais próprios do behaviorismo como
formulações cognitivas. Bandura julga necessário implementar modificações nos
princípios behavioristas, introduzindo características cognitivas na explicação da
aprendizagem, mas tentando, ainda, manter-se fiel àquela tradição comportamentalista.
Segundo ele as condutas humanas são iminentemente sociais e adquiridas, o que aponta
para a importância do meio social em sua constituição. Porém, ainda que tentando
preservar facetas importantes do funcionalismo behaviorista, Bandura julga necessário
acrescentar aspectos indiretos ou cognitivos como mediadores no processo de aquisição
das condutas. Para ele, na aprendizagem social aprendemos mais de modo indireto que
de modo direto. A noção de condicionamento e, portanto, a influência das contingências
ambientais continua pertinente, todavia sua atuação deve ser cognitivamente mediada. O
reforço atua melhor quando seu reconhecimento. As reações condicionadas são em
80
grande parte “auto-ativadas”, portanto cognitivamente selecionadas, a partir das
expectativas geradas por nossas experiências passadas, e não por processos diretamente
evocados. O mecanismo de automatização direta behaviorista cede lugar a um processo
de automatização mediado pelo reconhecimento cognitivo, que analisando as
circunstâncias presentes, evidencia nos repertórios adquiridos aquele que melhor se
ajuste à situação problema. Os efeitos de nossos comportamentos continuam sendo
importantes na determinação de nossas condutas futuras, mas ao invés de um
reforçamento direto, esse efeito fornece informações, que geram hipóteses, que sim
serão testadas e, se bem sucedidas, produzirão efeitos reforçadores. A influência do
efeito deve ser analisada cognitivamente para que gere conseqüências reforçadoras no
comportamento futuro.
Quando as pessoas observam os resultados de seu comportamento e do
comportamento dos outros, elas desenvolvem hipóteses sobre as prováveis
conseqüências de produzir aquele comportamento no futuro. Essa informação
serve de guia para o comportamento subseqüente. As hipóteses exatas
produzem bons desempenhos e as hipóteses inexatas levam a um
comportamento ineficaz (HALL, 2000, p. 463).
O reforço passa a ser muito mais uma operação informativa e motivacional do
que um mecanismo automático e probabilístico. Para tanto, Bandura considera o
conceito de regulação mais apropriado do que o de reforço. Uma diferença é que toda
regulação é antecedente e não conseqüente. O bom regulador se antecipa ao evento e
por isso fortalece uma conduta futura adequada. Na noção de reforço o que importa são
os efeitos de uma ação, desconsiderando aspectos cognitivos como a atenção e o
entendimento. Bandura vai desconsiderar a existência de uma ação “cega” e casual
como base da aprendizagem, inserindo a importância de uma atenção antecipatória
guiada por um modelo cognitivo. Como construímos esse modelo antecipatório?
Através de observações atentas das condutas realizadas pelo agente ou por outras
81
pessoas. A observação de si e dos outros vai gerar modelos ou esquemas que vão
regular nossas ações futuras em circunstâncias semelhantes.
Desse modo, toda conduta é regulada por um modelo cognitivo antecipatório
que se desenvolve a partir de representações mentais das condutas. Na teoria
skinneriana, o reforço age retrospectivamente fortalecendo uma resposta imitativa em
uma associação às circunstâncias anteriores. Para Bandura, entretanto, o reforço facilita
a aprendizagem por permitir que o iniciante atento antecipe (mentalize) a conduta e com
isso possa ensaiar (na prática ou de modo mental) o comportamento observado. Não
para Bandura necessidade de uma ação direta do reforço sobre a conduta, mas sua ação
é mediada por representações mentais.
Nessa forma de entendimento da aprendizagem, na qual a cognição desempenha
papel de destaque, Bandura sente a necessidade de desenvolver o conceito de “auto-
reforçamento”. Segundo ele, todo comportamento produz sempre dois tipos de
conseqüências: auto-avaliações e resultados exteriores. As últimas teriam um maior
valor de aprendizagem se compatíveis com as primeiras. Não basta efetuar uma
atividade de acordo com a situação, mas aquela deve ser compreendida pelo sujeito da
ação, para que este possa não só repeti-la, como aperfeiçoá-la. Não basta ser eficaz, tem
que se saber eficaz. Poderíamos nos perguntar se esta consciência daquilo que devemos
fazer atua como uma espécie de senso moral ou um guia de nossos deveres. Bandura
esforça-se por mostrar que não é um controle moral, do certo ou do errado, do justo ou
injusto, mas apenas uma consciência prática e utilitária, do adequado e do inadequado.
O “auto-reforçamento” não atua apenas a partir da atenção que temos dos efeitos
de nossas próprias condutas, mas a simples observação da conduta dos outros e das
conseqüências reforçadoras de suas ações podem perfeitamente regular nossos
comportamentos em situações semelhantes. Bandura denomina esse tipo de
82
reforçamento indireto de “reforço vicariante”. O indivíduo pode ser reforçado sem ter
feito nada, apenas observando atentamente os outros se comportarem. Segundo esse
psicólogo a maioria das situações da aprendizagem humana são desta natureza, tendo
como princípios quatro processos constituintes: Atenção, Retenção, Produção e
Motivação.
A atenção inicia o processo da aprendizagem observacional ou vicariante na
medida em que ninguém pode aprender se não estiver atento aos aspectos significativos
do comportamento a ser modelizado. Para Bandura não basta observarmos algo para
aprender, devemos estar atentos, destacando alguns aspectos da situação observada. A
atenção desempenha a função de selecionar o que deve ser fixado ou retido. Todavia,
não basta estarmos atentos, as circunstâncias dos eventos observados devem facilitar
essa escolha, sendo apresentadas com eficácia e simplicidade repetidas vezes,
despertando nossa atenção. Condutas complicadas e não eficazes dificultam nosso foco,
podendo, portanto passar despercebidas. Mas não podemos considerar, apenas, os
aspectos exteriores para explicar o funcionamento da atenção, já que nossos
conhecimentos e orientações atuais influenciam diretamente naquilo a que prestamos
atenção. Tanto as características do observador (sujeito cognoscente) quanto do modelo
observado (objeto cognoscível) influenciam, em geral juntas, o processo atencional.
Não havendo uma sintonia entre esses dois aspectos da atenção, dificilmente estaremos
numa circunstância adequada de aprendizagem. Podemos perfeitamente afirmar, a luz
da teoria de Bandura, que a atenção é fundamental para a seleção dos aspectos
subjetivos e objetivos próprios à aquisição de habilidades e de que não espaço nessa
teoria para um aprendizado da atenção. Esta atua como uma condição da aprendizagem,
não podendo, portanto ser aprendida.
83
Após selecionarmos atentamente aspectos relevantes do modelo observado e de
modelos antigos retidos em nossa memória, devemos reproduzi-lo mentalmente para
que possa ser fixado por essa aptidão para recordar. Para Bandura, o modelo observado
pode ser reproduzido pelo aprendiz se houver uma retenção codificada mentalmente.
O aprendiz retém na mente representações simbólicas (imagens ou signos verbais) do
evento observado. Tal como no processo atencional, a retenção é influenciada tanto pelo
modelo observado quanto pelos conhecimentos e expectativas do principiante. O Evento
que nos serve de modelo ocorre e o aprendiz observa atentamente fixando ou retendo na
memória uma representação simbólica do mesmo. Nesse sentido, acontecem dois
processos de escolha fundamentada procedentes do ambiente. Um próprio à atenção e
outro próprio à memória. Ambos entendidos como condição para um aprendizado
adequado e eficaz.
O próximo passo é reeditar o comportamento selecionado e retido, o que
significa traduzir o conhecimento em ação, a representação em atividade. Essa fase da
aprendizagem vicariante é denominada por Bandura como “processo de produção”. Na
verdade o que ocorre é uma reprodução do comportamento eficaz por meio de um
modelo cognitivo. O esquema de aprendizagem vai dos atos para sua representação e
parte desta para ser executado. Tal como nas etapas anteriores, não basta ao iniciante
ter efetuado uma boa e atenta análise e por sua vez conseguido apreender com eficácia o
modelo observado para que ele possa executá-lo. As condições prévias do aprendiz,
tanto motoras como cognitivas, ajudam ou atrapalham a atualização do modelo retido,
assim como as circunstâncias do meio onde o aprendizado ocorrerá também. Seja numa
aprendizagem atlética ou intelectual, a estrutura prévia do seu corpo, bem como da
cognição influenciam na aprendizagem observacional. Portanto, não basta representar
adequadamente um modelo, mas é necessário realizá-lo, colocá-lo em prática. Para tanto
84
deve-se aprender a realizar o modelo e avaliar as circunstâncias propícias. Os resultados
serão avaliados e corrigidos, gerando novos modelos do auto-reforçamento, que por sua
vez acarretarão novas metas e assim por diante, num processo em que a ação é guiada
por modelos mentais forjados a partir das experiências de si ou dos outros.
Entretanto, nem tudo que aprendemos ou que sabemos fazer são transformados
em ações, mesmo que as circunstâncias sejam adequadas. Nesse sentido, Bandura
acrescenta à descrição um quarto elemento que integra com os outros o processo de
aprendizagem social, a motivação. Para ele uma diferença entre adquirir uma
habilidade e encená-la, entre habilidade e desempenho. Podemos ser habilidosos,
portanto possuir modelos de condutas adequados às situações e por sua vez não
conseguir desempenhá-los adequadamente. Não basta saber fazer, é necessário, segundo
essa teoria, acreditar que podemos fazer. Para que algo que aprendemos seja encenado é
preciso um incentivo. Não se trata de um reforçamento, mas de um processo
motivacional. Devemos construir uma crença de que somos capazes de realizar o
modelo aprendido. A motivação Bandura chamou de “percepção de auto-eficácia” que
é definida por ele “como um julgamento pessoal da capacidade para organizar e
executar cursos de ação para alcançar metas designadas” (BANDURA apud
BORUCHOVITCH, 2006, p. 93). Aquela pode ser obtida direta, indiretamente
(vicariante) por persuasão social ou por estados físicos e emocionais.
A experiência direta é a fonte de informação mais importante de auto-
eficácia, pois se baseia na realização do indivíduo. (...) As informações
obtidas por meio da observação e comparação com modelos sociais
constituem a segunda fonte de auto-eficácia. (...) a outra fonte de informações
diz respeito à percepção dos estados físicos e emocionais como ansiedade,
estresse, cansaço, dor, alegria, bem-estar etc. (AZZI, 2006, P. 16)
Uma auto-eficácia bem realizada, por sua vez, estabelece um elevado nível de
motivação que se traduz em maior esforço, persistência perante as dificuldades e
85
obstáculos, propósitos mais condizentes com o aprender e com o interesse em cumprir
as metas.
Para explicar a importância da auto-eficácia, Bandura distingue dois
componentes na regulação da aprendizagem: O primeiro é o de uma “expectativa de
eficácia” e o segundo é o de uma “expectativa do resultado”. A expectativa de eficácia
diz respeito à convicção de que podemos realizar o comportamento indicado, enquanto
a expectativa de resultado indica a crença da pessoa de que dado comportamento levará
a dado resultado. A primeira é uma regulação do relacionamento entre o sujeito e o
comportamento, e a segunda entre o comportamento e a circunstância. Podemos estar
convencidos do que fazer (boa expectativa do resultado), mas não nos sentirmos
capazes de realizar (baixa expectativa de eficácia); ou podemos nos sentir capazes,
entretanto não sabermos o que fazer. A auto-eficácia percebida não garante o sucesso da
aprendizagem:
Entretanto, dadas as habilidades apropriadas e os incentivos adequados, as
expectativas de eficácia são um determinante maior da atividade que a
pessoa vai escolher, de quanto esforço vai dispender e de quanto tempo vai
manter o esforço de lidar com situações estressantes. (ibidem, p. 17.)
O acento dado por Bandura aos aspectos cognitivos da aprendizagem social
indica uma consideração das dimensões valorativas e intencionais no aprendizado de
uma atividade qualquer. Tal atitude se afasta da posição reducionista e fisicalista do
Behaviorismo Radical. Mas ainda mantém o cerne do comportamentalismo, na medida
em que aprender é adaptar-se ao ambiente, mesmo que mediado por aspectos
cognitivos. O fundamento da aprendizagem ainda gira em torno da idéia de adequação
eficaz às situações. Centrado na idéia de controle do reforço, Bandura inova
introduzindo a dimensão do auto-controle, de uma aprendizagem auto-controlada. Mas
ainda é a antiga idéia de aprendizagem como adequação, própria às psicologias da
aprendizagem tradicionais.
86
Para aprender capoeira o importante ainda seria, tal como no Behaviorismo
Radical de Skinner, nossa adequação ao ambiente físico ou social desta prática. Ao
esforço corporal segue-se um esforço mental ou cognitivo, de um controle pessoal e
subjetivo que analise todas as situações pessoais (cognitivo e afetivo), comportamentais
e ambientais para gerar uma conduta adequada. Este controle passa por uma
ambientação real ou antecipatória que nos acostume a lidar com as situações exigidas.
Este reforçamento mental e físico parece levar a uma dessensibilização do aprendiz, que
caminha sempre no sentido da automatização. Podemos até melhorar nosso
desempenho, mas esta melhora é acompanhada por uma performance que privilegia o
automático, que não diz respeito a nenhuma capacidade de improvisar e inovar. Ainda
se trata de um modelo de aprendizagem centrado em automatização. Os aspectos
cognitivos atuam apenas para otimizar nossa capacidade de agir adequadamente. Tanto
o aprendiz quanto o perito são explicados pela adequação às circunstâncias, que atuam
como elemento modelador, direta ou indiretamente. Não há espaço para a inovação.
Respondemos melhor ou pior, mas a todo momento estamos constrangidos a responder
adequadamente. Permanecemos ainda em um entendimento da aprendizagem como a
aquisição de uma habilidade, como uma busca constante de nos adaptarmos às
circunstâncias que condicionam a forma de aprender. Mesmo levando em conta a
cognição, a teoria de aprendizagem social de Bandura permanece dentro dos princípios
funcionais e utilitaristas da tradição behaviorista.
87
2.4 – A circularidade da ginga na capoeira Angola e os problemas de uma
aprendizagem das habilidades
Considerando este aprendizado como um treinamento de habilidades físicas e
mentais que leva o jogador a adquirir movimentos cada vez mais automáticos e
precisos das situações do jogo, nos perguntamos sobre a eficácia desse modo de
entender o aprendizado para dar conta do jogo de Angola. Seria adequado o
adestramento físico e mental às práticas da capoeira Angola? Como encaixar tais
movimentos acrobáticos às situações paradoxais que os movimentos da ginga do
angoleiro apontam?
Muitas vezes, e isto é muito comum até mesmo dentro da capoeiragem,
pessoas estranhas ao jogo de Angola descreverem essa prática como uma capoeira
jogada devagar, comum aos mais velhos, que não conseguem realizar os
“verdadeiros” movimentos acrobáticos da capoeira. Mas com a aproximação e
vivencia na roda de Angola, notamos que ela não é mais lenta, mas é, sobretudo, mais
pausada. A ginga e diversos outros golpes devem, como vimos no início deste
capítulo, desempenhar um estranho e paradoxal movimento, que insinuam o tempo
todo a possibilidade de paradas, instantes de hesitação que quebram a continuidade
natural e previsível dos golpes. Mas, surpreendentemente, essas quebras não devem
conduzir necessariamente à perda da continuidade dos movimentos, e por ventura à
queda. Ludibriar o oponente sem perder a continuidade do movimento parece ser uma
das sabedorias própria da ginga na Angola. Se o movimento é continuo, sem paradas
de hesitação, o adversário pode antecipá-lo e neutralizá-lo. Sobre isso nos diz Mestre
Pastinha:
A palavra ‘ginga’, em capoeira, significa uma perfeita coordenação de
movimentos do corpo que o capoeirista executa com o objetivo de distrair a
atenção do adversário para torná-lo vulnerável à aplicação de seus golpes.
88
Os movimentos da ginga são suaves e de grande flexibilidade confundem,
facilmente, a quem não esteja familiarizado com a capoeira, tornando-o presa
fácil de um agressor que conheça esta modalidade de luta. (PASTINHA,
1988, p. 50)
Como manter a continuidade de movimentos sem reduzi-los a um
automatismo que seria fatal num jogo como a Capoeira Angola? Como conciliar a
suavidade de movimentos contínuos imersos em zonas de hesitação e paradas?
Num texto publicado na década de oitenta, Francisco Varela (1981) esboça o
que ele denomina de circularidade criativa. No início do artigo, apresenta a figura do
renomado artista holandês Escher, na qual duas mãos se desenham mutuamente,
numa estranha e paradoxal circularidade. Diz ele:
Uma mão se alça do papel e se eleva a um mundo mais vasto. Quando
pensamos que abandonou definitivamente o plano de origem, eis que ela
recai novamente sobre ele e desenha seu próprio relevo na folha branca. Um
círculo se fecha e ao mesmo tempo dois planos coincidem, superpõem-se,
confundem-se. Nessa coincidência observa-se que o que desejamos manter
em campos separados é inseparável (VARELA, 1981, p. 302).
O segredo em descrever os círculos criativos é a paradoxal situação em que
planos distintos desenho da mão e a mão que desenha, ao mesmo tempo que se
separam para se destacarem –, permanecem juntos, surgem com características
próprias sem que possam se apartar do seu próprio processo de produção. Os produtos
encontram-se juntos ao processo de produção. Nesta circularidade criativa elementos
que normalmente são pensados como dicotômicos e separados como opostos,
mesclam-se num acoplamento de mútua implicação. Abrindo o movimento para
bifurcações criadoras, que paradoxalmente impedem que os contrários se oponham.
Observando esta obra de Escher fica difícil determinar uma origem do desenho, e
muito menos o seu fim. Algo semelhante ocorre com o movimento da ginga, no qual
planos distintos se destacam sem conseguir se separar, equilíbrios e desequilíbrios,
ataques e defesas. Tal circularidade pode ser quebrada em situações padronizadas de
treinamento, nas quais os exercícios ficam presos à imitação de modelos. Gingar é
89
manter o movimento, porém, como estamos procurando mostrar, essa movimentação
constante e circular, comporta de modo paradoxal hesitações e paradas que se diferem
sem se opor. Pelo contrário, permitem que os movimentos se justaponham em
hesitações, alargando de modo surpreendente suas possibilidades, numa circularidade
criativa. “Circularidade” porque uma dupla determinação, que impede a abertura
da causalidade linear, criativa” porque nesse processo tanto o movimento quanto as
paradas se diferenciam, trazendo sempre a dimensão da surpresa e da
imprevisibilidade.
Diante desta característica muito peculiar do movimento da ginga no jogo de
Angola, podemos nos perguntar como aprender a gingar sem cair nas formas usuais
de aprendizagem como adequação a modelos prévios. Como se adequar a um
movimento circular e criativo que de algum modo resiste a uma modelização? Será
que o aprendizado da capoeira Angola nos oferece de singular não é um jeito de
ensinar e aprender o qual se afasta da adequação aos modelos?
Incapaz de ser imitada ou representada em conceitos ou fórmulas, a própria
experiência da ginga na capoeira Angola força o aprendiz a experimentar e sustentar a
estranha e paradoxal situação desses movimentos circulares. Não há, portanto, no
ensino do movimento da ginga um privilégio à preparação física e mental como
aspectos determinantes, mesmo que o aprendiz acabe desenvolvendo o seu físico e
ampliando o seu conhecimento da capoeira. O que destacamos é que conhecer
capoeira ou realizar seus movimentos de modo automático não torna ninguém um
bom capoeirista. Nesse sentido o aprendizado da capoeira Angola vai criando
situações em que o modelo atlético e intelectual seja “furado”, propiciando situações
paradoxais em que somos forçados a gingar. A imitação, repetição e reforçamento dos
modelos, do aprender como o Mestre, cede lugar a um aprendizado com o Mestre, em
90
que inspirados no seu jogo, buscamos encontrar o nosso. É claro que existe uma idéia
de cópia no aprendizado com, mas esta deve ser entendida como a oportunidade para
se contagiar pelo que o outro faz. A imitação como entusiasmo criador nos leva para
além do modelo, ou melhor não imitamos mais, ao contrário, nos contagiamos por
práticas e movimentos que nos servem de inspiração para continuarmos a
experimentar o aprendizado do jogo de Angola. Imitar para diferir é outra forma
paradoxal do aprendizado da ginga, que nos força a encontrar na experiência o tempo
de nossa ginga, já que a pura e simples adequação aos movimentos básicos da
capoeira Angola e seu arremedo pode nos levar a desenvolvermos uma espécie de
ginga automática, que romperia o círculo criativo.
O aprendiz vai aos poucos encontrando nos treinamentos e nas rodas, com a
incrível e paradoxal situação do movimento da ginga, numa continuidade com
pequenas hesitações ou falsos desequilíbrios que abrem o movimento para uma
continuação circular inesperada. Essas zonas de equilíbrio precário da ginga
incorporam ao movimento da capoeira determinadas paradas ou hesitações, que
servem para falsear a continuidade deste, como que abrindo perspectivas de
bifurcações que surpreendam o adversário sem que o movimento perca sua fluidez. A
ginga atravessa por momentos de indeterminação, ou de pequenas interrupções
desequilibrantes que dificultam antecipar os movimentos seguintes. Tais hesitações
ludibriantes assumem na capoeira Angola várias formas, e cada jogador deve ir
descobrindo no seu aprendizado como encontrá-las no seu jogo.
Porém, existe um movimento próprio ao jogo da Angola que encarna a
necessidade de ludibriar o adversário conhecido como parada de chamada ou
chamada de mandinga. Nesse movimento um dos oponentes interrompe o seu jogo,
permanecendo parado ou fazendo pequenos movimentos no mesmo lugar, esperando,
91
ou melhor, desafiando o adversário a se aproximar. Existem diversas posições para a
chamada, como se posicionar de frente ou de costas para o colega de braços abertos,
ou com um dos braços levantados etc. O adversário, no seu tempo e com extremo
cuidado, aproxima-se do oponente, buscando, também a seu modo, impedir que este
saiba como e quando irá abordá-lo. Para isso este realiza, sempre a seu tempo,
movimentos de aproximação. Com extrema cautela, realiza movimentos de defesa,
escora de baixo para cima o corpo do oponente, protegendo-se dos golpes da perna,
cotovelos, mãos e cabeça. Após essa ludibriante proximidade os oponentes se
encontram para iniciar movimentos como numa dança a dois, até que, também no seu
tempo, voltem ao jogo.
A chamada é considerada pelos angoleiros como um dos momentos mais
perigosos e traiçoeiros, justamente porque de uma pessoa parada podem advir golpes
inesperados. Aprender a hesitar, ou a não responder afoitamente com um movimento
ou seqüência, talvez seja uma das principais características desta arte. Não responder
diretamente aos estímulos, aprendendo a parar o movimento sem quebrar a sua
suavidade. Aproveitar as circunstâncias do jogo, criar movimentos inesperados,
ludibriar o adversário, surpreendendo-o com golpes, é uma das principais
características da ginga na capoeira Angola.
Nos parece ser este também o sentido que normalmente damos a jogadores de
outros esportes, quando conseguem realizar jogadas que fogem ao previsível do jogo.
É comum, por exemplo, no futebol, ser atribuída aos jogadores brasileiros a
capacidade de serem bons “gingadores” no trato da bola. Ronaldinho Gaúcho,
Romário, Garrincha são considerados exímios gingadores da bola. Escapam,
surpreendem os marcadores com jogadas inesperadas e belas, que mesmo não
resultando em gol encantam a platéia e principalmente os amantes do futebol.
92
De algum modo o corpo do aprendiz vai cultivando uma atenção ao tempo
desse estranho movimento. Mais do que um aprendizado centrado na atividade de
movimentos como respostas condicionadas às situações do jogo, o aprendizado da
ginga abre-se para a atenção. Esta não é tratada, como em Bandura, como uma
condição seletiva dos estímulos a serem aprendidos, mas como um processo que deve
ser cultivado e aprendido. A atenção da ginga deve ser aprendida. Mas que atenção é
essa que aprendemos com a capoeira Angola? Virgínia Kastrup (2004) num texto em
que discute o aprendizado da atenção inventiva, discute alguns problemas que podem
nos ajudar a entender o aprendizado da ginga. Diz ela:
Os problemas de atenção comparecem hoje em dia na escola, na clínica, nos
ambientes de trabalho e nas famílias. É cada vez mais freqüente o diagnóstico
de TDA Transtorno de déficit de atenção que tem como sintomas baixo
rendimento na realização de tarefas, dificuldades de seguir regras e
desenvolver projetos a longo prazo e a cujo quadro pode estar associado a
hiperatividade e à impulsividade. No contexto escolar o problema é
diretamente colocado como incidindo sobre a atenção que é requerida no
processo de aprendizagem (KASTRUP, 2004, p. 02).
O que está em jogo nesse processo de aprendizado da atenção é o modo como
fazer com que as pessoas se concentrem mais nas tarefas que lhes são propostas.
Dessa maneira, estar atento é condição sine qua non para que o desempenho da tarefa
se realize com sucesso. Se não estivermos atentos, a nossa aprendizagem, para com as
tarefas propostas, não ocorre. Haveria, portanto dois funcionamentos da atenção, um
estado atento e outro desatento, que de alguma forma estaria inapto para responder
adequadamente às tarefas propostas.
Kastrup (Idem, p.04) propõe “uma ampliação do conceito de atenção em
relação ao ato de prestar a atenção a tarefas e de buscar informações”. Propõe com
isso entender a atenção como um processo variável e não binário, entendo haver tipos
ou formas de se estar atento, escapando da dicotomia presença ou ausência dela.
Desse modo podemos nos perguntar se a atenção que utilizamos na ginga é a mesma
que usamos no conjunto de operações necessárias a tarefas cotidianas, como, por
93
exemplo, ver televisão. O efeito provocado pela ginga, de que nos fala acima Mestre
Pastinha, como um elemento importante de envolvimento ludibriante do oponente,
pode ser considerada como um estado desatento ou como uma outra forma de
atenção? A atenção seria reduzida a um processo de focalização ou poderia existir na
atenção distraída ou uma concentração desfocada? O que nos parece importante frisar
aqui é que o modo de se compreender a atenção como um estado consciente e focado
é incompatível com o movimento da ginga. Imerso nesse estado de imprecisão, no
qual as continuidades do movimento são atravessadas de hesitações e paradas, o
capoeira que está totalmente focado no oponente acaba por ceder aos estímulos,
respondendo afoitamente às armadilhas da ginga.
Nesse sentido, podemos dizer que a ginga exige um funcionamento desfocado
da atenção, uma espécie de atenção flutuante, semelhante a um caçador que num
estado de espreita espera algo que ele não sabe bem quando, de onde e de que modo
virá. Esse estado de espreita é muito parecido com o aprendizado antigo dos capoeiras
que “de oitiva” aguardavam no cais do porto acontecimentos referentes ao trabalho
que podia ou não acontecer. Diferente de situações nas quais o que importa é o foco, a
atenção da ginga exige uma espécie de distração atenta. Uma atenção à duração
(Bergson, 1934/1962), que supõe um problema temporal e não espacial. A prática da
ginga, portanto, seria simplificada se reduzida à prática dos seus movimentos. Mais
do que isso a dificuldade em jogar capoeira não está em saber ou não realizar os
movimentos com destreza, mas principalmente encontrar o tempo para o golpe. Como
vimos acima com Mestre João Pequeno, os movimentos da capoeira são poucos,
cerca de nove, que multiplicados por dois ou três daria no máximo vinte e sete
variações. Como o jogo da capoeira não se confunde com a execução espacial dos
golpes e sim com o tempo de execução deles, a variedade de jogos alcança o infinito.
94
O aprendiz vai, portanto, do seu modo e a seu tempo, forçado pelas inúmeras
situações de jogo, cultivando uma atenção distraída ou desfocada ao tempo do
movimento. A isto, o que é raro e que não se repete, que surge sem avisar, que
desaparece sem deixar rastros: o tempo da oportunidade.
Quando Garrincha ganhou fama internacional com as conquistas das copas de
1958 e 62, vários técnicos e marcadores estudaram seus estonteantes dribles e
descobriram estupefatos que o seu principal recurso era um movimento muito simples
e pouquíssimo original. Driblava sempre com a perna “direita”, para a “direita” no
canto “direito” do ataque. Inúmeros marcadores treinavam exaustivamente um modo
adequado para marcar “Mané”
16
e o resultado era um “baile” do jogador brasileiro. O
drible de Garrincha não podia ser compreendido por uma análise de seus
movimentos, mas pelo tempo de sua execução. O que era absolutamente simples e
repetitivo enquanto movimento, ganhava uma dimensão sublime enquanto drible. Tal
como Mané um bom jogador de capoeira Angola não é aquele que varia o tempo todo
seus movimentos, mas que o espera distraído, executando-os de modo inesperado e
preciso “no tempo” e não de acordo com o espaço. Para aprender a gingar, devemos
portanto cultivar uma atenção desfocada ao tempo do movimento, aprendendo a não
reagir imediatamente às situações do jogo, a não ceder aos estímulos.
De algum modo o corpo do aprendiz vai cultivando uma atenção ao tempo
desse estranho movimento que é a ginga. Movimento extensivo e intensivo aberto a
bifurcações temporais. Quem viu dois bons angoleiros jogando deve ter se
surpreendido com o entrelaçar dos corpos numa plástica de dobras ao infinito, que
os golpes não interrompem definitivamente o movimento em momento nenhum
podemos segurar o movimento. A estratégia tanto de defesa quanto de ataque não é
16
Modo como Garrincha era chamado por seus colegas.
95
interromper o movimento, mas aproveitá-lo a seu favor, sem abrir demais sua guarda.
O aprendiz da ginga imerso nesse estranho e paradoxal movimento circular é levado a
cultivar uma experiência corporal atenta às dobras dos paradoxos, da continuidade
descontínua, da abertura fechada, do equilíbrio precário, do se mostrar dissimulando.
Esse estranho modo circular e inventivo de gingar, que de algum modo é
comum à tradição brasileira
17
, ao samba, ao futebol entre outros, pode ser aprendido?
Vimos, em consonância aos modelos do behaviorismo e do cognitivismo
comportamental de Bandura, que a aprendizagem é entendida como um processo de
aquisição de habilidades, como uma passagem de um não-saber para um saber, que
como tal, é avaliado como um estado adquirido, como um modo de ser geral e
permanente. A transformação é tratada apenas como um estágio intermediário entre
um saber inadequado e um saber adequado, como a passagem de uma inabilidade
para uma habilidade. Essa compreensão acaba por reduzir a aprendizagem da ginga à
uma passagem de movimentos lentos, desequilibrados, hesitantes e descontínuos para
movimentos rápidos, automáticos, equilibrados e contínuos. Incapazes de pensar os
movimentos da ginga numa tensão dinâmica, circular e paradoxal desses pólos
tratados como opostos e excludentes, a psicologia comportamental e cognitiva
acabam sendo insuficientes para compreender o processo de aprendizagem da ginga
na capoeira Angola.
Câmara Cascudo (2001) após uma viagem à África, onde foi buscar os relatos
orais da cultura africana e suas sintonias com os aqui existentes, escreve o livro
intitulado “Made in África”. Num dos capítulos deste livro cujo titulo é “A Rainha
Jinga no Brasil”, Cascudo apresenta através da memória oral dos africanos a história
da rainha Jinga que viveu em Angola por volta do fim do século XVI e início do XVII.
17
Veremos mais a frente a importância da tradição no aprendizado da capoeira Angola.
96
“(...) uma soberana autêntica, na legitimidade de todas as tradições africanas, luxo,
armas, festins, invasões de fronteiras, massacres de suspeitos, consolidação militar”
(Idem pg 36). Guerreira contumaz Jinga é lembrada por suas habilidades de resistir ao
julgo da colonização portuguesa em Angola. “Rendeu-se várias vezes. Ficava serena,
gentil, concordadora, até que brilhasse a hora da reação. Erguia o braço de comando e
os batalhões negros atiravam-se contra os portugueses” (idem pg 33). Mas à frente de
seu texto Cascudo nos mostra como hoje nas tradições brasileiras uma das únicas
rainhas africanas que permanece na memória do povo é a rainha Jinga. A guerreira que
não se mostra inteiramente, que não se deixa ser plenamente identificada pelo inimigo
que por isso é sempre surpreendido. Exemplo de uma guerra de resistência, que alterna
a violência dos combates com momentos de diplomacia e sedução ao colonizador. O
movimento da ginga na capoeira talvez traga consigo tais características. Numa luta
em campo aberto (capoeirão) onde seu corpo é sua arma tanto de defesa quanto de
ataque, a ginga apresenta-se como um movimento de espreita e dissimulação sem
poder se esconder numa tocaia. De novo observamos o caráter paradoxal dessa luta. O
lutador deve seduzir o oponente, oferecendo facilidades, abrindo suas guardas, criando
armadilhas para que este tenha a sensação da facilidade do golpe. O adversário certo de
sua vitória sempre é um oponente mas fácil de ser derrotado, que displicente, ataca
sem se defender. A ginga astuta não se defende mas nessa defesa abre a estratégia
do ataque. Do mesmo modo o ataque proveniente de um angoleiro deve considerar
também a defesa. Atacar e defender não são aqui dois movimentos isolados mas que
jogam juntos numa circularidade paradoxal. Nessa luta defender é atacar e atacar é
defender. Para que isso seja possível é necessário que todo o golpe seja velado, pois o
aspecto defensivo do ataque é sempre dissimulado assim como o aspecto ofensivo da
defesa. Mas uma vez a capoeira angola penetra os seus movimentos numa zona de
97
indeterminação, onde os golpes de ataque e defesa sempre agem de modo dissimulado.
O angoleiro é levado por seu mestre a soltar sua ginga para que ela seja bem manhosa,
malandra, mandingada.
Partindo dessa dimensão circular e paradoxal entre equilíbrio e desequilíbrio,
continuidade e hesitações, paradas e movimento do aprendizado da ginga é que nós
vamos, no capítulo seguinte, tratar o tema do aprendizado da capoeira Angola como
algo mais que um treinamento para aquisição de habilidades atléticas e sociais.
Mostraremos como o aprendizado da capoeira Angola tenta resistir às transformações
da transmissão da capoeira ao que Luiz Renato Vieira (1998) chamou de ethos da
eficiência”. Segundo ele este se define (...) por oposição ao que chamamos (...) de
ética da malandragem, integrando-se a uma leitura metódica e racional do mundo
com vistas ao incremento da eficiência” (VIEIRA, 1998, p. 131). Dentre inúmeras
características o autor destaca, como marco dessas transformações, as inovações
instituídas por Mestre Bimba na concepção pedagógica da capoeira Regional, que
vão se afastando do ethos popular e “sem método” do aprendizado da capoeira
Angola. Luiz Renato descreve essas mudanças como a transformação da “ética da
malandragem” – imersas na informalidade própria aos espaços da capoeira tradicional
ou Angola por práticas de ensino que visam a “(...) inculcação dos princípios da
obediência, disciplina, organização e respeito à ordem (...)” (idem, p. 158). Continua
o autor:
Certamente não foi em função de seu caráter lúdico e improvisado que a
capoeira obteve uma significativa ascensão social a partir de Mestre Bimba.
Ao contrário, apenas na medida em que se procurava suprimir a
‘brincadeira’ ou a ‘vadiação’ da luta é que sua aceitação por parte de setores
sociais privilegiados tornou-se possível. A capoeira Regional consubstancia
um esforço de eliminação, ainda que muito mais presente no âmbito
discursivo do que na prática, dos aspectos da capoeira tradicional que
estivessem de alguma forma comprometidas com o que chamamos, no
capítulo anterior, de ética da malandragem. (idem, p. 163)
98
O aprendizado da capoeira vai se tornando, ao longo do século XX, segundo
Vieira, uma prática disciplinada de treinamentos que visam o rendimento ou a
eficiência do jogar capoeira, perdendo ou pelo menos diminuindo a influência dos
fatores lúdicos, das brincadeiras das rodas de rua, em prol de um treinamento, quase
militar, dos movimentos e golpes. Tal posição nos parece ter de algum modo reduzido
o aprendizado da capoeira, por desconsiderar a importância dos fatores políticos,
estéticos, éticos e místicos que atravessam seu mundo, os quais deveriam e devem
estar presentes na compreensão do aprendiz.
Vimos como a noção de habilidade social reduz todo o processo de
aprendizagem ao plano pessoal, “(...) como um conjunto de desempenhos
apresentados pelo indivíduo diante das demandas de uma situação interpessoal” (DEL
PRETTE, 1999, p. 47). Esses desempenhos podem ser adequados ou não a estas
demandas e os indivíduos devem treinar para adquirir uma competência social que é
definida como: “(...) a capacidade de o indivíduo expressar-se honestamente, defender
direitos, atingir objetivos próprios e de outrem, maximizando as conseqüências
positivas e com perda mínima de reforçadores”. (idem, p. 47-48). Tentaremos no
próximo capítulo abordar, à luz da capoeira Angola, modos de aprendizado que
resistem ao “ethos da eficácia”.
99
CAPÍTULO III - Aprendizado da capoeira angola como um cultivo na e da
tradição
Vimos no capítulo anterior que a noção de habilidade acaba por reduzir o
aprendizado da capoeira Angola a um condicionamento físico e mental de certos
movimentos previamente estabelecidos. Tal compreensão não conta do caráter
circular e criativo do jogo da Angola. Buscando, neste capítulo, ampliar o sentido de
aprendizado da capoeira, vamos inicialmente propor uma mudança no modo como
iremos nomear o processo de aprendizado da capoeira. No dicionário encontramos
alguns sentidos para o termo cultivar. Dentre estes destacamos aquele que se
aproxima do ato de plantar. Cultivar é “dar condições para o nascimento e o
desenvolvimento de (uma planta)” (FERREIRA, 1993, p. 97). Portanto não é apenas
o processo de plantio, mas tudo aquilo que lhe envolve. No cultivo a relação
plantador e planta não é de submissão, mas de imbricação e complementação, tanto o
plantador cultiva a planta quanto esta também cultiva nele o interesse pelo cultivo.
Esse fato permite ao plantador um “Dedicar-se, aplicar-se a” (FERNANDES, 2000),
dispondo de tempo e principalmente de cuidado que permite o desenvolvimento de
uma atenção que lhe propicia “ver” o processo de dentro, acompanhando-o.
Cultivar aproxima o aprendizado a um processo de criação, no sentido de criar
uma planta, um animal ou um filho. Neste processo de criação o controle e o
resultado não o mais tão importantes, abrindo o caminho para um processo de
cuidar, dando condições para que as sementes se desenvolvam, permitindo que elas se
expressem. Exige, portanto uma mútua imbricação, um duplo aprendizado, onde
aprendiz e mestre, planta e plantador cultivam-se mutuamente. Assim o cultivo traz
para o aprendizado um cenário onde aprendiz e Mestre fazem parte de uma mesma
100
paisagem. A noção de treinamento reduz o processo de aprendizado a modelação do
aprendiz, buscando enquadrá-lo em esquemas prévios, anteriores a portanto fora da
paisagem do aprendizado. No cultivo abertura para uma inclusão desses
elementos, normalmente separados - aprendiz e Mestre, teoria e prática, condições e
fazeres dentro de uma mesma paisagem. O aprendiz e o mestre vão “tateando”
compondo com os elementos da paisagem os caminhos do aprendizado. No cultivo o
processo de aprendizado será destacado sem diferenciação com o produto ou conduta
aprendida. Não haverá separação entre meios e fins, produção e produto.
Além disso mostraremos que o aprendizado da capoeira angola está
diretamente ligado a práticas e fazeres que podem ser compreendidos à luz da
tradição. Daí também o encontro com um outro sentido do termo cultivo, mais ligado
a noção de cultura. Segundo o dicionário cultivar também é “adquirir cultura”
(FERREIRA, 1993, p. 97). Assim este termo está relacionado a ideia de ser culto, de
aquisição ou apropriação de conhecimento. Segundo Deleuze (2005)
18
, em suas
longas entrevistas, dadas a Claire Parnet, onde discorre de modo informal por temas
organizados pelas letras do abecedário, ser culto é ter saberes de reserva, saber falar
de tudo. Assim propõe uma outro modo de entender cultura. “Tudo que aprendo,
aprendo para certa tarefa, e, feita a tarefa, esqueço. De modo que se dez anos depois
sou forçado, e isso me alegra, se sou forçado a me colocar em algo vizinho ou no
mesmo tema, tenho que recomeçar do zero” (2005, p. 04). Deleuze nos mostra que
não é muito adequado adquirir ou se apropriar da cultura. Assim cultura estaria muito
18
O Abecedário de Gilles Deleuze é uma realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions
Montparnasse, Paris. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. Tradução e
Legendas: Raccord [com modificações].
A série de entrevistas, feita por Claire Parnet, foi filmada nos anos 1988-1989. Como diz Deleuze, em sua
primeira intervenção, o acordo era de que o filme só seria apresentado após sua morte. O filme acabou
sendo apresentado, entretanto, com o assentimento de Deleuze, entre novembro de 1994 e maio de 1995,
no canal (franco-alemão) de TV Arte. Deleuze morreu em 4 de novembro de 1995.
Algum internauta paciente e muito bem intencionado tomou a iniciativa de fazer a tradução das mais de 7
horas de entrevista feitas a Deleuze por Claire Parnet, compiladas em vídeo. Da onde tiramos nossa
referência.
101
mais próximo da idéia de cultivo, de cultivar uma disponibilidade aos encontros, de
estar à espreita (...)” (Ibidem, p. 05). A tradição veremos, muito mais do que um
contexto cultural, de acumulo de saberes e conhecimentos, são as paisagens onde se
cultivam modos de ser, sentidos e práticas, ritos e histórias. Sendo assim, pensar o
aprendizado da capoeira angola como um cultivo da e na tradição trará algumas
conseqüências.
Dentre estas, destacaremos neste capítulo, o aprendizado da capoeira Angola
como um cultivo de hábitos. Tal afirmação deverá se sustentar numa ampliação da
noção de hábito corrente nos estudos psicológicos. Reduzido a condutas automáticas,
o hábito é compreendido como um tipo de conduta adquirido através de uma prática,
cuja repetição, leva a um enrijecimento e fixação desta. Veremos que essas análises
psicológicas compreendem o hábito somente como uma conduta aprendida. Ao
contrário tentaremos ampliar esse conceito, definindo-o como um processo, sempre
inacabado, como um cultivo de uma disposição ou tendência, cuja formação se refere
às mudanças que o engendram. A rotina será vista como um importante espaço de
repetição e diferenciação, no qual as mudanças importantes nos ocorrem, muitas
vezes sem a nossa percepção. Forjado em práticas que colocam num mesmo plano a
repetição e a diferença, o hábito será pensado como uma tendência ou disposição em
aberto, que concilia necessidade e criação, receptividade e atividade, esforço e
repouso, concentração e relaxamento, ação e contemplação, antecipação e hesitação,
repetição e diferenciação.
3.1 – Um cultivo de hábitos e o aprendizado da atenção
Virgínia Kastrup (2001) num texto em que discute o caráter inventivo da
aprendizagem vai marcar uma distinção fundamental entre dois modos distintos de
102
tratar este tema. A aprendizagem como recognição ou solução de problemas e a
aprendizagem como experiência de problematização. Afirma que a primeira reduz a
aprendizagem a modos de aquisição de novas formas de solução de problemas que
nos são colocados de fora. Enunciado como um processo de aquisição de habilidades,
que se desenvolvem numa adequação, cada vez maior, aos problemas que nos
acometem. O aprendizado se explicaria como um caminho que atravessa fases, que
vão de uma etapa inicial onde as condutas são realizadas pelo aprendiz de modo
precário e pouco costumeiro até transformarem-se em habilidades próprias e
comuns, portanto habituais (automáticas e fixadas). Vimos nos capítulo anteriores
como a psicologia comportamental e a teoria das habilidades sociais acabam por
reduzir o aprendizado a uma adequação cada vez mais automática aos problemas que
a sociedade nos coloca. O aprendizado dentro destas teorias se encaminharia para
condutas cada vez mais automáticas e adequadas às circunstâncias. Deste modo uma
habilidade bem aprendida se aproxima bastante do sentido que a psicologia tem
proposto para a noção de hábito
19
. Um comportamento adquirido que se desenvolve
na prática, cuja realização plena são respostas automáticas que damos às
circunstâncias.
Tanto a noção de habilidade quanto a de hábito acabam por se fixar de mais
no plano das ações realizadas. E essas são analisadas como ações gerais realizadas em
ambientes também gerais e homogêneos. Nesse modo de aprendizagem o objetivo
final é que os aprendizes realizem com precisão e automatismo atividades
padronizadas e homogêneas. Como em uma escala de produção industrial o aprendiz
é submetido a práticas técnicas cujos resultados são avaliados segundo um padrão. Os
movimentos do aprendizado representariam a forma geral da adaptação a esquemas
19
Por mais que a escola behaviorista não tenha utilizado o termo “hábito” em seus trabalhos podemos
deduzir que a noção de condicionamento operante como uma ação cujo caminho é a automatização, possa
ser aqui relacionada à idéia de hábito que buscamos superar.
103
prévios. Caberia aos professores formular técnicas ou meios que possam encurtar e
simplificar a adequação dos principiantes a estas práticas homogêneas.
Luiz Renato Vieira cita uma passagem de um livreto lançado por Mestre
Bimba e seus alunos mais próximos no inicio da construção da Capoeira Regional
Baiana, chamado de “Curso de capoeira Regional”. Afirma Vieira: “Mestre Bimba e
seus colegas mais velhos tem um desejo (em relação aos novos alunos): torná-los
melhor no menor tempo” (Apud VIEIRA, 1998, p.168). Vieira chama este aspecto da
capoeira Regional de ethos da eficiência”, que acaba por privilegiar no aprendizado
um modo de encaixar os aprendizes, num menor tempo possível, nos movimentos e
golpes gerais e homogêneos da capoeira. O que reduz esse aprendizado a um
treinamento de respostas ou ações gerais. Diante desse fascínio pela técnica e
eficiência nos diz Deleuze:
(a psicologia) fez da atividade o seu fetiche. Seu pavor obstinado da
introspecção faz com que ela observe o que se mexe. Ela se pergunta
como, agindo, se adquire hábitos. Mas, assim, todo o estudo do learning
corre o risco de ser falseado, enquanto não se coloca a questão prévia: é
agindo que se adquire hábitos... ou ao contrário, contemplando? (Deleuze,
1988, p. 100).
No entanto, parece mais adequado considerar o hábito não como um produto
ou o estado geral de um ato permanente, mas como um processo, sempre em estado
de mudança. Assim, o aspecto motor ligado às ações deve ceder espaço para o papel
da contemplação, de mudança na atenção e na sensibilização. Como nos mostra
Deleuze não se adquire hábitos se mexendo ou buscando se adequar, mas modulando
nossa atenção. É nítido que um capoeirista ao habitar o mundo da capoeira
experimenta modificações em sua sensibilidade, permitindo-se a atentar para
aspectos antes desconhecidos.
Contraímos hábitos o tempo inteiro sem que tenhamos a menor ciência disso.
Há, portanto um caráter espontâneo na formação de nossos hábitos que indica uma
104
mudança, não em nossos modos de agir, mas na maneira em como percebemos o
mundo (DO EIRADO, 1998). Tal mudança perceptiva impede de amarrar a formação
dos hábitos a rotinas automáticas, repetitivas e cegas. Mais do que automatizar nossas
condutas, os hábitos transformam o modo como percebemos e interpretamos a
realidade. Um capoeirista que participa cotidianamente dos treinos e das rodas não se
conta como sua rotina transforma os modos como ele percebe e atribui sentidos a
esse mundo que se lhe afigura tão próprio. E, surpreendentemente, um mundo que se
assemelhava ao principiante como simples e dividido em tipos ou formas gerais,
ganha contornos nunca antes experimentados.
Quando comecei a treinar capoeira Angola, no final da década de noventa,
rapidamente construí modelos ou formas gerais de entendimento. Tanto a
compreensão dos movimentos quanto a dos tipos de capoeira perpassavam por
esquemas simplificados e gerais. Alunos ainda pouco afeitos a essa prática tendíamos
a simplificar a capoeira: dois tipos de capoeira a capoeira Angola e a Regional.
Com o tempo nossa sensibilidade foi se ampliando e fomos vendo as várias nuances e
diferenças dentro do universo da capoeira Angola. Ao invés de irmos em direção ao
automatismo e às formas gerais, experimentamos o contrário, um alargamento de
nossas percepções e compreensões da capoeira. Ao invés de nos tornarmos
especialistas e realizadores de uma única habilidade, o hábito amplia nossas
capacidades de ser, inserindo a mudança e a variação. Assim, como, por exemplo, a
visão homogênea e geral que podemos ter de uma cidade é sobre àquela que
desconhecemos ou pouco conhecemos, posto que sobre a que vivemos possuímos
uma visão muito mais diferenciada e ampliada. Não se trata de uma diferenciação por
especialização, cuja tendência é diminuir o foco, mas de uma diferenciação por
ampliação, que não obedeça à generalização. Assim o hábito, enquanto um processo
105
de transformação de nossas sensibilidades e de nossas condutas, não se dirige do
heterogêneo e diferente para o homogêneo e geral; da conduta hesitante para a
automática e reflexa; do particular para o universal.
Antes de analisarmos um pouco mais de perto essas transformações que a
experiência do hábito produz, traremos uma discussão epistemológica desenvolvida
pela teoria da Autopoiese a respeito da construção do conhecimento. Críticos
contundentes do realismo epistemológico que vêem o conhecimento como uma
representação objetiva da realidade, Maturana e Varela (1987, p.69), afirmam que o
conhecer produz um mundo. “O produzir do mundo é o cerne pulsante do
conhecimento, e está associado às raízes mais profundas de nosso ser cognitivo, por
mais sólida que nos pareça nossa experiência”. Esse gerar se estende sobre todas as
dimensões de nossos atos, apontando para uma realidade construída ou como os
autores da autopoiese costumam dizer “uma objetividade entre parênteses”.
No caminho da objetividade entre parênteses, a existência é constituída com
o que o observador faz, e o que o observador faz traz à mão objetos que ele
distingue em suas operações de distinção (...). Além disso, os objetos que o
observador traz à mão em suas operações de distinção surgem dotados das
propriedades que realizam as coerências operacionais no domínio da práxis
do viver no qual eles são constituídos (MATURANA, 1997, p.250).
Nos acostumamos a pensar a interação como o resultado de relações entre dois
domínios preexistentes e independentes, o que leva o entendimento da relação interativa
como a representação de um desses domínios sobre o outro. O construtivismo da
biologia da autopoiese pensa radicalmente diferente, pois é a interação que produz os
domínios que irão interagir. É o agir autopoiético que produz, como duplo efeito, o si e
o mundo.
O privilégio dado às definições dicotômicas, sujeito/objeto, realismo/idealismo,
organismo/meio, exterior/interior etc., em que um dos pólos atua como o fundamento da
interação, parece encontrar nesta teoria uma imbricação criativa. Essas idéias são
106
possíveis em sistemas auto-regulados calcados em uma clausura operacional, nos quais
os pólos da atividade cognoscente estão sempre imbricados. A teoria da autopoiese
parte das interações, que produzem como um duplo efeito os pólos da relação cognitiva.
Há, portanto, uma coexistência paradoxal entre o interior e o exterior, o organismo e o
meio, o sujeito e o objeto, uma coexistência em clausura operacional. Eles são distintos,
mas tal distinção obedece à estranha e paradoxal realidade expressa pelas formas
circulares semelhantes a da “banda de Moebius”. É fácil experimentarmos tal situação
inusitada com o uso, por exemplo, de um cinto de calça. Pegamos um cinto e o
esticamos, depois giramos por 180 graus uma de suas extremidades; feito isso,
juntamo-las e começamos a passar nosso dedo numa de suas superfícies. Tal
experimento nos coloca em contato com a incrível sensação de freqüentarmos, sem tirar
o dedo, as superfícies interna e externa do cinto, que se diferenciam, mas coexistem
numa mesma experiência. Uma banda uniface, que se torce de tal forma que seu lado
exterior é uma versão de sua face interna. Tal exemplo nos mostra que os sistemas
autopoiéticos se organizam num fechamento operacional ou numa clausura operacional,
o que inviabiliza a tese de que haja um mundo pré-estabelecido que o sujeito representa.
As modificações que acontecem num sistema operacionalmente fechado não são
determinadas por uma interação instrutiva, mas por uma estrutura atual, que por sua vez
possibilita novas formas de interação do sujeito com o seu mundo. Com efeito, podemos
afirmar que o mundo não preexiste ao sujeito que o conhece, nem tampouco este
responde por si pela construção do mundo. É conhecendo que se constrói um mundo
e construindo um mundo é que se conhece. “Todo ato de conhecer traz um mundo nas
mãos”. Essa afirmação é importante porque este caráter paradoxal não pode ser tratado
como uma descrição esquemática ou puramente conceitual, mas deve ser colocado em
funcionamento, em experiência. A estranha e paradoxal situação da “banda de moebius”
107
não pode ficar restrita a uma descrição topológica e abstrata, mas deve ser
experimentada. No exemplo acima do cinto, uma necessidade de passar as mãos em
suas superfícies para experimentar o caráter paradoxal de uma exterioridade interior ou
de uma interioridade exterior. Não se trata, quando falamos em aprendizagem
construtiva, de uma lógica, mas de uma prática ou de uma experiência.
Daí nossa utilização para a descrição do aprendizado da capoeira Angola do
conceito de hábito, e todas as suas implicações com a prática do aprender fazendo. A
ênfase dada ao fazer ou a ação pode se confundir com o que mais criticamos até aqui
neste trabalho, a saber: o aprendizado como um caminho em direção às ações
automatizantes e especializadas. Mas, como vimos, a ação na teoria da autopoiese não
é de um sujeito sobre um mundo, mas produz sujeito e mundo. Nesse sentido esta
noção de ação autopoiética realiza o que Deleuze em seu livro, Diferença e
Repetição, chama, a partir do trabalho de David Hume, de “síntese passiva”: uma
contração no espírito, produzida pela repetição dos eventos, que cria uma diferença.
“Não é feita pelo espírito, mas se faz no espírito que contempla, precedendo toda
memória e toda reflexão.” (DELEUZE, 1988, p. 129).
O hábito é, em si mesmo, anterior a qualquer atividade do sujeito, seja ela
motora, cognitiva o motivacional. Enquanto estivermos presos ao mero
aspecto psicológico do hábito, estaremos condenados a não enxergar seu
problema fundamental, a saber: a emergência do subjetivo, a invenção da
subjetividade (DO EIRADO, 1998. p 06).
Nesse sentido, a constituição de si e do mundo como efeito do hábito nos leva
a pensar uma experiência pré-subjetiva e pré-objetiva que produz não apenas um
sujeito capaz de realizar práticas e ações novas, como também a constituição de um
mundo no qual nos tornamos sensíveis. Uma experiência de produção tanto de si
quanto do mundo.
108
Mesmo considerando o hábito como efeito de contrações pré-subjetivas e pré-
objetivas que constituem um mundo e um si, portanto como efeito da criação e da
diferença, ainda podemos pensá-lo como um modo de vida que se preserva? De
algum modo o hábito, liberto do viés realista, ainda traz consigo um caráter de
manutenção ou de preservação de algo que nele se constrói? Como resultado da
diferença, os hábitos se mantêm? Como conciliar diferença e repetição? De novo o
paradoxo nos bate a porta forçando um deslocamento.
Félix Ravaisson (1997) num livro escrito sobre o hábito em 1838 nos diz: “O
hábito é então uma disposição, em relação a uma mudança, engendrada em um ser
pela continuação ou a repetição dessa mesma mudança” (Idem, p.31). Ravaisson
mostra que a repetição própria ao hábito não pode ser uma repetição do mesmo, mas a
de uma mudança. Já que tudo que é suscetível a um hábito é suscetível à mudança. É
a mudança e sua continuidade que deve servir de condição para o desenvolvimento
dos hábitos. Mas se tudo o que é suscetível ao hábito, o é também à mudança, nem
tudo que é suscetível à mudança, é por vez ao hábito. A fim de exemplificar, o autor
mostra que:
(...) se jogarmos uma pedra cem vezes numa fogueira ela permanece a
mesma após isso, ao contrário, se jogarmos um gato ele reage, e se o
jogarmos cem vezes essa reação persiste de modo cada vez mais
consistente, mais precisa, mais imediata, ela torna-se ser (hábito)
(RAVAISSON, 1997, p. 31).
A repetição, que para um observador é rotineira e igual, torna-se distinta para
o gato que a experimenta. O modo como ele reage à repetição transforma-se de modo
qualitativo conforme esta se dá. E essa transformação, que no ser que a experimenta
é novidade, e, portanto, não habitual, passa de algum modo a se tornar própria e,
portanto, habitual. “O hábito não implica somente a mutabilidade em qualquer coisa
que dura sem mudar, ele supõe uma mudança na disposição, na potência, na virtude
109
interior desse no qual a mudança se passa, e que não muda” (RAVAISSON, 1997,
p. 31).
A duração da mudança é o paradoxo do processo de criação de hábitos. Não se
trata de uma mudança para algo que dura, mas da duração da mudança. O hábito é
então um processo de mudanças que duram. Essa durabilidade da mudança não é
governada por um princípio de adequação a um suposto mundo prévio, como se
adquirir uma conduta adequada, muito pelo contrário, o hábito vai produzindo uma
individuação, fugindo das existências homogêneas e criando uma necessidade
particular e singular, portanto uma variação. Ao contrário de se encaminhar cada vez
mais às exigências de leis gerais por uma necessidade padrão (realizar movimentos
cada vez mais de acordo com os modelos), o hábito contraído por repetições enseja o
diferente e a singularidade, não sendo, portanto incompatível com o estilo e os modos
próprios de jogar capoeira.
Neste sentido a noção de hábito que aqui buscamos desenvolver se aproxima
bastante do modo como Hubert L. Dreyfus compreende o desenvolvimento de uma
habilidade. O autor expõe o que ele chama de teoria clássica das habilidades. Ele
localiza essa teoria em toda a tradição filosófica racionalista “que vai de Sócrates a
Platão, Leibniz e Kant, depois às formulações clássicas da IA (Inteligência Artificial) e
da Engenharia do Conhecimento (...)” (DREYFUS, 1998, p.303).
Seu principal fundamento se sustenta na idéia de que “compreender um
domínio consiste possuir uma teoria sobre ele” (ibidem, p. 304), entendendo teoria
como a formulação de leis ou princípios gerais e abstratos. O expert ou aquele que
melhor se conduz num certo engenho estaria para esse modo de pensar, realizando ou
atualizando de modo automático e não consciente princípios ou regras gerais dessa
habilidade. Nesse sentido o aprendizado dela se encaminharia de um plano individual e
110
concreto para uma teorização que a descola do lugar em que habita para um plano
abstrato e descontextualizado das regras ou leis da ação.
Dreyfus propõe uma outra perspectiva de análise para se compreender a
formação do expert. De saída, ele inverte o ponto de partida desse aprendizado. Ao
contrário da teoria clássica das habilidades, o iniciante não parte dos casos particulares
para depois com a prática atingir o “olimpo” das idéias puras e abstratas. O autor
trabalha com uma idéia oposta na qual o iniciante parte de regras abstratas e
descontextualizadas para mais tarde, quando se tornar expert, alcançar os casos
particulares. Para explicar sua tese Dreyfus irá dividir o aprendizado em cinco estágios
ou fases, nos quais irá propor uma análise fenomenológica de cada uma dessas fases.
A primeira fase ele chama de “estágio do principiante”, descrita assim:
O processo de instrução começa normalmente pela decomposição do meio
da tarefa em traços acontextuais que o debutante pode reconhecer sem
reconhecer à experiência. Dá-se, em seguida, ao principiante, regras que lhe
permitam determinar, em função dos ditos traços, o que convém fazer
assim como um computador aplica um programa” (DREYFUS, 1998, p.
306).
Seguindo sua descrição, o aprendiz de capoeira é tratado do modo como
Mestre Bimba estabeleceu com os módulos iniciantes, decompondo e
descontextualizando os principais movimentos da capoeira. Treinamento repetitivo no
qual o principiante vai aprendendo algumas regras gerais das seqüências básicas dos
movimentos. O mesmo podemos falar do aprendizado dos instrumentos. As regras
ainda muito gerais e desencarnadas não levam em consideração o contexto.
Na medida em que o aprendiz vai exercitando estas regras gerais ele vai
fazendo face a situações reais. Ele vai enriquecendo suas experiências, alargando ou se
encontrando com outros componentes de variação dessa situação que é, a princípio,
muito abstrata. Assim, ele vai entrando na segunda fase de “principiante avançado”.
Ainda aplicando as regras gerais, o principiante avançado consegue variá-las
111
conforme as circunstâncias. Vai se encontrando com as variáveis situacionais, o que
lhe permite avançar sobre o meio. Começa a reconhecer nelas os esquemas e padrões
das regras abstratas. Aprende a reconhecer na sua prática, por exemplo, as seqüências
que ele treinou, bem como se está sendo bem desenvolvida ou não. No terceiro estágio
o principiante torna-se um aprendiz da “competência”. A experiência vai aumentando
e com isso as variações situacionais e possibilidades de movimentos também se
ampliam. Essa ampliação das exigências de decisões leva o aprendiz a desenvolver
uma escala hierárquica que lhe facilitará em suas tomadas de decisão. Ele forjará à luz
das situações, planos ou esquemas de atitudes que possam não somente facilitar suas
escolhas como também agilizá-las. Com isso, ele melhora e otimiza sua performance.
Mas nosso competente aprendiz ainda tem muitas surpresas que entre os seus
planos e objetivos, suas realizações e êxitos ainda há muita pouca precisão. Na maioria
das vezes ou o seu plano não funciona ou ele descobre tardiamente qual plano teria
sido melhor. Esses métodos ou regras de resolução ainda são um pouco frustrantes
para o aprendiz competente, visto que tanto podem dar certo quanto não. Diz Dreyfus:
Escolher é inevitável. Enquanto o principiante avançado pode prescindir de
reconhecer e de utilizar um aspecto situacional particular até que um
número suficiente de exemplos torne a identificação fácil e segura, o nível
imediatamente superior, o da competência, exige a escolha de um projeto ou
de um objetivo organizador. Além disto, a escolha de uma perspectiva de
conjunto afeta o comportamento, de uma maneira mais profunda do que faz
geralmente um ponto de vista particular (DREYFUS, 1998, p. 308).
Nesse estágio Dreyfus localiza uma importante e fundamental diferença entre
ele e os dois iniciais. Enquanto nos dois primeiros o aprendiz executa respostas
segundo às regra gerais por ele aprendidas, no estágio da competência o aprendiz se
responsabiliza pelas suas estratégias de execução. Mesmo quando não exitosas essas
práticas são experimentadas com muito mais emoção, haja vista terem sido forjadas
por ele e não mais extraídas das regras gerais. Há segundo Dreyfus um engajamento do
aprendiz que é ele responsável por suas escolhas. É essa importante mudança no
112
papel do aprendiz, de uma posição passiva e obediente às regras para uma posição
ativa e engajada que Dreyfus acredita abrir no aprendiz as portas para o
desenvolvimento do expertise.
O quarto estágio é denominado pelo autor de “proficiência”. O executante
competente engajado que esta mergulha cada vez mais na atividade que ele exerce.
Mas esse encantamento com o concreto de seu mundo terá que ser momentaneamente
rompido para que o aprendiz consiga avaliar melhor suas decisões. O que o
engajamento lhe trouxe de vantagem é a avaliação cada vez mais encarnada das
circunstâncias, mas isto não pode levá-lo a agir imediatamente como se reagisse às
situações-problema. Uma hesitação é necessária para que haja uma escolha mais
proficiente.
na quinta e última fase denominada de “expertise” encarna tanto a avaliação
quanto a decisão. O esforço inicial tende a sumir e o expertise consegue “assim...
responder a cada situação da maneira imediata e intuitiva (...)” (Ibidem, p.311). Ao
contrário, então, da tradição dos estudos da habilidade, Dreyfus propõe uma mudança
na atitude do aprendiz que inicialmente avalia e decide as situações vividas mediadas
por regras gerais e abstratas e conforme vai aprendendo, vai cada vez mais encarnando
e ampliando estas regras, aumentando assim as variações de casos e exemplos. Tal
direção encaminha o aprendiz para posições espontâneas, imediatas e intuitivas, que
ampliam suas percepções do mundo. Segue, portanto um caminho do geral e
desencarnado para o singular e encarnado.
Esta apresentação de Dreyfus é bastante ilustrativa para o nosso trabalho. Do
mesmo modo que tentamos tratar a noção de hábito como uma experiência que amplia
nossos modos de agir e perceber o mundo, enriquecendo-nos e e propiciando nosso
engajamento, afastando-nos do sentido comum de uma automatização, Dreyfus
113
também o faz com a noção de habilidade. O modo como ele a compreende se distancia
daquele apresentado por nós no segundo capítulo. Ao contrário de levar o aprendiz a
uma aquisição cada vez mais automática e geral das situações, a habilidade é vista
como uma experiência criativa que se dirige para o mundo singular e imediato das
experiências. Desde modo podemos perfeitamente observar o risco de utilizarmos
esses conceitos, visto que nem todo o entendimento de hábito o coloca numa abertura
à criação numa vinculação com a experiência concreta, assim como, nem toda a
compreensão da habilidade a coloca como uma forma de adequação e automatização
dos comportamentos. É importante destacarmos que Dreyfus mesmo empreendendo
uma crítica a teoria clássica da aquisição das habilidades se mantém dentro desses
estudos. Já que ainda trata do aprendizado da habilidade como uma adequação a
tarefas previamente definidas.
Do mesmo modo que, em princípio, o hábito enquanto um cultivo de um modo
singular e próprio, através da experiência, pode e deve ser considerado algo cotidiano e
comum, será que algumas práticas facilitariam esse processo de criação e de cultivo?
Como não buscamos aqui encontrar fórmulas gerais e universais que garantam o
aprendiz a encarnar o seu aprendizado, e muito menos julgamos existir situações ideais
ou propícias para que este aprendizado se dê, procuraremos responder a essa pergunta
indicando os modos que a capoeira Angola tem construído para encaminhar a
transmissão de sua prática. Para tanto continuemos a tratar da noção de hábito.
Como estamos vendo através da tese de Ravaisson, o entendimento do hábito se
desloca de um modo de ser geral e permanente, para um processo de contração pela
continuidade de uma mudança. Em tal processo o hábito atravessa por mudanças
qualitativas nos modos de ação e de percepção das condutas realizadas. Segundo este
autor o aprendiz vai superando os momentos iniciais submetidos a uma
114
receptividade transformando-se numa espontaneidade crescente. “A continuação e
repetição da mudança têm efeitos opostos: a receptividade diminui, a espontaneidade
aumenta; tal é a lei geral do hábito: a espontaneidade predomina cada vez mais sobre a
receptividade” (RAVAISON, 1997, p.39). Ravaisson entende que no hábito opera-se
uma distinção, não uma separação, entre as formas iniciais receptivas e submetidas às
situações e as mudanças que ele começa a operar e das quais emergirá a
espontaneidade. A receptividade e dependência do meio externo tende a diminuir
conforme a espontaneidade e independência do meio externo aumenta. O que justifica
a distinção destas duas tendências impossibilitando sua separação.
Mas não confundamos a receptividade inicial de um hábito cultivado com a
passividade de estar entregue às circunstâncias. Ser receptivo a uma mudança não é o
mesmo que ser passivo às circunstâncias. Diferente de na passividade, na receptividade
uma contração que nos lança em uma atividade que com o tempo irá se impor,
marcando com isso a constituição de um propósito que nos força a seguir cultivando
algo. Se fosse passividade estaríamos completamente refém das mudanças exteriores.
Dizemos que o hábito no início tem uma tendência receptiva alta, justamente para
marcar esse caráter impessoal e ocasional do início de nossos hábitos, visto que não
mudaríamos nossa rotina se não houvesse uma abertura, uma receptividade aos
acontecimentos em nossa volta, que nos force a sair dela, ou melhor, a cultivar novas
rotinas. Essa tensão em nossa rotina não se dá quando nos deparamos com situações de
ignorância ou de não-saber, as quais parecem se colocar os aprendizes iniciantes. O
ignorante é por demais passivo, enquanto o receptivo é por demais curioso.
portanto uma distinção entre quem se dedica por passividade e obediência a
determinadas práticas e aquele que por curiosidade e estranhamento se lança a perder
um tempo com o cultivo de uma experiência.
115
Sendo assim, a receptividade que rompe nossas rotinas pode ser produzida
por uma abertura ao estranho, por uma curiosidade criativa. Isso é importante para a
compreensão do aprendizado da capoeira Angola, pois delimita essa fase inicial pela
qual muitos capoeiristas passam e sobre a qual comentam. Esse momento é mágico.
Algo até então desconhecido e estranho vai ganhando um sentido cada vez mais
encarnado a ponto de muitas vezes o iniciante julgar-se como tendo nascido para isso.
É um desafio que nos convida a explorar o mundo novo que se avizinha, que
estranhamente nos chama a atenção, nos forçando a vasculhar.
Podemos citar relatos dos nossos maiores Mestres de capoeira sobre o início de
seu aprendizado, como também convidar cada um de nós a perscrutar os grandes
encontros, que de algum modo marcaram nossas vidas, nos desafiando a aprender.
Mestre Pastinha assim descreveu seu primeiro encontro com a capoeira:
Quando tinha 10 anos eu era franzininho um outro menino mais taludo
que eu tornou-se meu rival. Era eu sair para a rua lá na venda fazer
compra, por exemplo e agente se pegava em briga. sei que acabava
apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondido, de vergonha e de
tristeza. Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu uma briga
da gente. Vem cá, meu filho, ele me disse vendo que eu chorava de raiva
depois de apanhar. Você não pode com ele, sabe, porque é maior e tem mais
idade. O tempo que você perde empinando raia, vem aqui cazuá que vou lhe
ensinar coisa de muita valia (PASTINHA, 1967. ).
Como é bonita essa narração! Encontramos nela elementos de rotina como
apanhar todos os dias de um garoto mais forte e elementos de desafio e surpresa,
“vem menino que vou lhe ensinar coisa de muita valia”. O mistério, o
estranhamento de um convite. Se o jovem Pastinha não estivesse receptivo ao convite,
curioso por desvendar o mistério colocado pela situação, certamente deixaria a
oportunidade passar.
Mestre João Grande numa entrevista que deu ao instituto Nzinga de
Capoeira Angola (INCAB) em 2004 relata assim seu encontro com a capoeira:
Foi o corta-capim (movimento da capoeira)! Foi o seguinte: passou dois
meninos de mais ou menos 19 anos, passou assim na rua e fizeram o corta-
116
capim. Tinha dois senhores na porta de uma venda. Chico falou para
Pedro: Pedro, isso é dança de nego nagô. Passa na pessoa ali e a pessoa
cai. O senhor que falou ficou e o que ouviu foi embora. Eu fiquei ali
escutando toda a conversa deles. Eu sou muito curioso. Eu tinha 10 anos
nesse dia. Depois eu perguntei ao que ficou: o que é dança nagô? E ele: não
sei, é o pessoal que veio da África, que trabalha no engenho de cana. E saí
procurando o que era corta-capim. Andei por e trabalhei em fazenda de
gado, como ajudante de vaqueiro, de lavrador plantando feijão, mangalô,
arroz, café, cacau, tudo. Trabalhei como ajudante de tropeiro. Procurei o
que era corta capim e ninguém me informou. Em 1953 eu já tava com 20
anos e vim morar em Salvador ... Quando é um dia, passei na ponte que
ligava o Tororó ao Garcia, e por ali tinha a roça do lobo. Embaixo da
mangueira que tinha ali, os peões faziam uma roda de capoeira. Cheguei
e encontrei João Pequeno, Barbosa, Gordo, Cobrinha Verde, Tiburcinho,
Manuel Carregador. E roda rolando. Eu via os três paus dos berimbaus. Eu
perguntei a Barbosa e a João Pequeno: o que é isso? E eles responderam:
isso é capoeira! Na hora que eu tava perguntando um cara fez o corta-capim
e me lembrei de quando tinha 10 anos. Perguntei onde era que se
aprendia e João Pequeno disse que me levava lá em Brotas, onde seu
Pastinha dava aulas (Mestre João Grande, 2004).
Esse depoimento traz ainda mais dados interessantes. Como é marcante o
encontro do Jovem João com os mistérios do “corta-capim”. Tal acontecimento se
estende ao longo de dez anos e numa tarde em Salvador, em outro cenário, João se
reencontra com aquilo que tanto procurava e que de nada sabia. De novo um exemplo
duradouro de uma receptividade, de uma abertura ao mistério, ao novo que se
avizinha.
Numa interessante entrevista
20
que pude fazer com o Mestre Nestor Capoeira
recentemente este faz um interessante relato sobre seu encontro com a capoeira. De
origem de classe média Mestre Nestor desconhecia completamente a capoeira até os
seus dezessete anos. Após iniciar faculdade de engenharia no campus do fundão da
UFRJ, Mestre Nestor conta que durante um descanso no pátio da faculdade acontece
uma cena que será determinante em sua história da capoeira. Nos conta Mestre
Nestor:
20
No último ano (2006) fui convidado a fazer parte como pesquisador do projeto de Inventário e
Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio Imaterial do Brasil idealizado pelo Ministério da Cultura e
realizado pelo IPHAN e Museu da Republica do Rio de Janeiro. Este projeto, que termina agora em
setembro de 2007, foi coordenado pelo prof. Wallace de Deus e sub-coordenado por Maurício Barros de
Castro. Dentre muitas atividades realizei junto com Maurício uma longa entrevista com o Mestre carioca
Nestor Capoeira.
117
Logo no primeiro mês que eu cheguei vi um cara chegando montado numa
bicicleta, negão, com uma calça toda riscada, aqueles sapatos plataforma da
época, que chamavam de cavalo de o, com um solado que devia ter
seguramente uns sete centímetros. Em ele com aquela calça riscadinha, com
um coletizinho, um colete desses que usam com paletó, mas sem camisa. O
cara entrou e segurando, como se fosse uma baqueta toda listrada, na boca,
ou um galho de árvore, sei o que era. ele salta da bicicleta e quando ele
se vira para treinar é que eu saco - ele encosta o queixo no pescoço - que era
uma cobra, maluco. A cobra toda riscadinha, falsa coral, preta, vermelha e
branca, sai da boca dele e se enrosca. Criava cobras o Leopoldina. Era o
Leopoldina. Eu falei assim “Quem é esse diabo?”. Ele com aquele
chapeuzinho dele todo trançado, todo magro, mas todo musculoso com
aquela cara. Naquela época o Leopoldina, eu tinha dezoito e ele é treze anos
mais velho que eu, tinha 31. Mas ele tinha essa cara de hoje em dia,
parecia ter uns 55, 60 anos de idade. que hoje em dia ele tem 74. Tem a
mesma cara de 55. Então, a maior loucura. E então quem é esse cara? Pô,
esse cara aula de capoeira aqui. capoeira pra mim, eu ouvia histórias de
capoeira da Lapa.
21
(Mestre Nestor Capoeira, 2007).
A partir deste encontro inusitado o jovem Nestor irá buscar Mestre Leopoldina
e começará sua longa história na capoeira. Nos dois exemplos acima poderíamos
dizer que tanto Mestre Pastinha quanto Mestre João Grande estavam ambientados
com a tradição afro-brasileira, diante de suas origens. no caso de Mestre Nestor o
fato é surpreendente, pois o mesmo descreve seu total desconhecimento da capoeira,
além de sua origem absolutamente distante das práticas afro-brasileiras. Acaso e
coação, oportunidade e necessidade, o fortuito e o inevitável. Atentos ao que não
procuravam esses Mestres recebem ou acolhem os mistérios de um mundo que
estranhamente se avizinha. Seus encontros absolutamente fortuitos marcam de tal
maneira a vida dos citados impondo-os uma necessidade de decifrar esse mundo
estranho e atrativo que se apresenta.
No caso dos Mestres acima esses encontros ocorrem em domínios próprios,
não podendo ser estendidos para outros como modos gerais. Não são exemplos a
serem seguidos, mas a serem inspirados. Não se trata de uma situação que pode ser
generalizada, mas de algo que nos empenha e amarra em um modo de expressão,
como que predestinados a um certo domínio. Isto é importante porque os encontros
21
Entrevista realizada em 31 de julho de 2007 na casa do Mestre Nestor Capoeira no Leblon, Rio de
Janeiro, por mim e por Maurício Barros de Castro. Transcrição realizada por Axel Mello.
118
são sempre singulares e trazem com eles a força da ocasião, não podendo abstrair-se
em generalidades sob risco de perder sua força.
Nesse sentido o aprendiz é forçado por experiências concretas a explorar o
mundo da capoeira, construindo cada qual o seu caminho, sempre tateando a seu
tempo um cultivo de novos hábitos. Mas é certo que não basta apenas a receptividade
estranha de um “chamamento”, é necessário transformar o que ainda é misterioso e
estranho, portanto receptivo, em algo familiar e próprio, ou seja, espontâneo. Assim
os Mestres citados foram cada um a seu tempo, dentro das suas condições e contextos
diversos transformando o estranho e receptivo mundo da capoeira num espontâneo e
familiar mundo, em que hoje são Mestres.
De novo o caráter circular e paradoxal deve ser aqui pensado, pois o repetível
comporta em sua experiência os aspectos da diferença, da transformação e da criação.
A hábito não comporta apenas o aspecto de manter a rotina enquanto repetição do
mesmo, mas traz consigo a diferenciação como fonte da própria experiência. Calcada
apenas em nossos atos, de suas descrições objetivas e exteriores, a experiência de
repetir pode parecer cansativa e enfadonha. Em geral nas descrições feitas de fora,
por observadores, são desconsideradas as dimensões de novidade e de transformação
que as experiências de repetição nos fazem sentir. Como é fantástico depois de vários
exercícios em repetição experimentarmos mudanças qualitativas tanto ao nível motor
das condutas quanto em termos sensoriais. Como é gostoso experimentarmos as
dificuldades iniciais, nas quais nosso corpo se esforça sobremaneira a desempenhar
movimentos tão confusos e estranhos. Quem não se lembra da experiência dos
primeiros movimentos, aqueles em que nossa atenção e sensibilidade se colocam de
modo altamente receptível aos movimentos e exemplos do Mestre ou do professor.
119
Aos poucos, e sem nos darmos conta, esses movimentos vão ganhando autonomia,
tornando-se espontâneos, portanto cada vez mais habituais.
Devemos diferenciar espontaneidade de automatização e receptividade de
imitação. Como vimos no capítulo anterior a aprendizagem de uma habilidade como
uma conquista da automatização não se liberta do modelo que inicialmente imita.
Pelo contrário ela apenas consegue realizá-lo de modo próprio, que ele se tornou
seu. Não mudança ou diferenciação na passagem da imitação do modelo para sua
automatização. As rotinas de treinamento não consideram estas diferenciações, a não
ser as mudanças ou desenvolvimentos em direção a automatização do modelo.
Na noção de hábito o que ocorre é diferente. Dizer que no início do hábito
uma posição receptiva, não é o mesmo que afirmar uma passividade imitativa. A
receptividade indica uma atenção desfocada e concentrada nos encontros e seus
mistérios. O que faz do hábito algo totalmente singular e concreto. Enquanto que na
imitação a atenção é focada no exemplo e a repetição constitui a reprodução deste, a
receptividade inaugura no mundo dos hábitos caminhos da singularidade, das marcas
de acontecimentos que se repetem para diferir. Em ambos repetição, todavia na
receptividade do hábito essa repetição produz e instaura diferenças. Ela não é
enfadonha e mesmo havendo dificuldades estas serão encaradas como desafios e não
como obstáculos.
Espontaneidade significa aumento da liberdade dos recursos às situações de
nossa rotina. A automatização traria vantagens em relação à imitação graças a sua
independência e abrangência generalista. Se for possível um desempenho rápido e
adequado às diversas situações é porque o modelo automatizado possui uma
abrangência e generalidades suficientes para subsumir os casos particulares. Já na
espontaneidade o caminho é outro, pois o hábito cria uma familiaridade que permite
120
uma ampliação tanto de nossa sensibilidade quanto de nossos atos. O que Ravaisson
diz quando aponta para as mudanças qualitativas que a experiência do hábito traz,
afirmando que se encaminham de uma receptividade para uma espontaneidade cada
vez maior, deve ser aqui comentado. Diz ele:
Essa ampliação e complexificação das ações espontâneas, em detrimento
das ações passivas, se intensifica com o hábito e sua lei geral. A disposição
que configura o hábito se caracteriza por essa ação ‘independente’, cada vez
mais regular e precisa, sem nenhuma determinação externa aparente
(RAVAISSON, 1997, p. 50).
Que o hábito libera o aprendiz das dependências externas do modelo, parece
ser um certo consenso até aqui, o que Ravaisson traz de novidade é que essa
libertação não pode ser entendida como um caminho da automatização e
generalização, mas como a construção da singularidade e da autonomia. Faz-se
melhor com os hábitos porque se constrói através das repetições uma mudança em
direção à espontaneidade. Entretanto, ainda devemos ir além de Ravaisson. Temos
visto ao longo do nosso trabalho que a capoeira traz para a psicologia da
aprendizagem situações bastante incomuns. Ravaisson por mais que tenha colocado o
hábito num processo de diferenciação e criação ainda o trata como um
desenvolvimento. Neste caminho da formação dos hábitos comportamentos passivos
e dependentes do mundo exterior vão se transformando e ganhando liberdade e
autonomia, perdendo os constrangimentos. A liberdade é vista como uma
autonomização no que tange ao mundo exterior, que vai desembocar, ao final do
livro, em um espírito pouco encarnado e por isso muito livre. Estamos tentando ver
que no mundo da capoeira Angola a liberdade e a autonomia não são conquistadas
como uma libertação espiritual do mundo no qual habitamos, como um abandono do
convívio, principalmente, com as perturbações que a vida nos traz. É certo que um
aprendiz de capoeira é muito mais afoito e preso aos estímulos, portanto muito mais
passivo e previsível. E que o seu aprendizado lhe permite se libertar um pouco do
121
jugo do sensório-motor. Mas constatar isto não quer dizer que o caminho do hábito é
um desenvolvimento no qual o processo de receptividade e espontaneidade sejam
inversamente considerados, no qual o aumento de um leve a diminuição do outro.
E aqui parece haver uma diferença entre o modo de tratar o hábito em
Ravaisson e o que procuramos pensar no que diz respeito ao aprendizado da capoeira
Angola. Nos parece que o lugar do aprendizado, seja do principiante ou do Mestre,
sempre é o concreto. Como nos diz Varela: “O concreto não é um degrau para algo de
diverso: é como chegamos e onde estamos” (VARELA, 1992, p.17). Portanto as
mudanças qualitativas que um aprendiz conquista não o aproximam ou afastam da
posição em que sempre estivemos e que sempre estaremos: o mundo concreto da
experiência. Outra importante diferença diz respeito a este tratamento dado por
Ravaisson ao domínio receptivo do hábito.
Tentamos mostrar acima que a receptividade enquanto uma abertura para
encontros inesperados é vital para o aprendizado. Mas dizer isso não é o mesmo de
dizer que uma passividade ou uma total dependência do mundo exterior. uma
atividade nessa receptividade, um esforço da atenção, que turva o foco abrindo-se
àquilo que ainda não possui contornos definidos. Veremos adiante, no tópico do
aprendizado da vadiação, a importância da atenção da espreita. Tal abertura não é um
entrega total aos estímulos, mas uma atitude de disponibilidade, de atenção às
oportunidades. Ravaisson ainda trata a receptividade como um comportamento
natural, como se fosse natural cedermos inicialmente aos estímulos. Já a posição da
receptividade como estamos tratando aqui neste trabalho não é nada natural, visto que
comporta uma mudança de atitude frente à vida ordinária.
Outra diferença diz respeito a esta “ficção” de um ato espontâneo e liberto da
receptividade. Se entendemos a receptividade de maneira diferente, o cultivo do
122
hábito não pode operar sua diminuição. Pelo contrário, os atos livres e singulares
estarão totalmente vinculados a essa capacidade de abertura de uma atenção à
espreita. Nesse sentido a atenção enquanto uma abertura para o mundo não é nem
passiva nem uma atitude natural. O aprendizado da capoeira Angola passa assim por
um aprendizado dessa atenção, na qual o hábito não é compreendido como perda da
receptividade ou abertura à experiência concreta em nome de um livre arbítrio. Este é
visto como um cultivo da receptividade atenta, na qual a liberdade se apoiará para
formar avaliações concretas e localizadas do que e como fazer. Há sem dúvida um
aumento da espontaneidade no hábito, mas este não diminui a capacidade de se
surpreender com e estranhar o mundo. Pelo contrário, a espontaneidade aumenta em
proporção ao aumento da abertura e da disponibilidade às circunstâncias.
Num livro em que Loïc Wacquant relata o seu aprendizado de boxe
encontramos a seguinte passagem: “É a partir do momento que o habitus do
aprendiz de boxe sabe ‘reconhecer’ os estímulos e os apelos do gym que a
aprendizagem torna-se plena. (...) Há um ‘olho de boxeador’ que não se pode adquirir
sem um mínimo de prática efetiva do esporte, e que, por sua vez, a torna significante
e compreensiva” (WACQUANT, 2002, p. 138) Este “olho” do boxeador que se
cultiva nos treinamento é que estamos chamando de um aprendizado da atenção. Do
mesmo modo o capoeirista deve cultivar no seu aprendizado um “olho de
capoeirista”, uma atenção da espreita que mais à frente enfocaremos melhor.
Antes de qualquer coisa, inventamos na formação de nossos hábitos, novas
experiências, entendidas como diferenças de qualidade, de gosto, de sensações e de
movimentos. O que está em jogo, portanto, no aprendizado da capoeira Angola, não é
simplesmente a adequação de nossos corpos aos movimentos, cantos e toques, mas,
antes de tudo, uma disposição do aprendiz a penetrar de modo singular e encarnado
123
no mundo da capoeira. um convite, que se reapresenta ao longo das práticas do
aprendizado, e que aos poucos, sem se sentir, transforma nosso corpo permitindo
mudanças qualitativas, tornando-o sensível a elementos totalmente estranhos, que de
antemão não tinham o menor sentido. Sobre este aspecto escreve Wacquant:
É claro que seria totalmente fútil tentar distinguir o que, no saber adquirido
pelo aprendiz de boxe, vem das intervenções deliberadas de Dee Dee
(treinador) do que vem da influência dos pares ou de esforços e ‘talentos’
pessoais. Porque a energia motriz dessa máquina pedagógica auto-regulada
que constitui o gym não reside nem na imitação mecânica de um gesto, nem
na soma de exercícios incansavelmente repetidos por todos, e menos ainda
na ‘saber-poder’ de algum agente (no caso, o treinador) situado no ponto
nevrálgico do edifício, mas, antes no sistema indiviso das relações materiais
e simbólicas que se estabelecem entre os diferentes participantes, e
principalmente na disposição de seus corpos no espaço físico da academia e
em seu tempo específico. Em uma palavra, é o ‘pequeno ambiente’do gym
como um todo, como ‘feixe de forças físicas e morais’, que se fabrica o
boxeador. (WACQUANT, 2002, p. 147).
Interessante citação que marca o aprendizado em uma experimentação a qual
integra toda uma paisagem da luta de boxe sem indicar um determinismo ou do
ambiente, da imitação ou dos conhecimentos do treinador. Tudo isto se integra nesta
paisagem. Não sujeitos e objetos, figuras e fundo, ambiente e comportamentos
pois o cenário inclui todos esses elementos sem separá-los ou imporem um caminho
único de determinação. O convívio nessa paisagem que é ‘o pequeno gymcomo um
todo é que responde pelo aprendizado do boxe.
Outro aspecto importante na noção de hábito é a constituição involuntária e
inconsciente desta dobra de si e do mundo. Estranha e qualitativa mudança que não
ocorre segundo nossas escolhas conscientes nem muitos menos por meio de
mecanismos de condicionamento a situações exteriores. “Trata-se de entender o
hábito como vetor de produção de subjetividade, portanto, antes que se torne uma
realidade psicológica” ( DO EIRADO, 1998, p. 05). Continua André do Eirado:
A sensação aglutina justamente o peso do passado e essa inclinação para o
futuro, ela é ao mesmo tempo consciência e movimento nascente. Tanto a
consciência quanto a ação têm sua origem no hábito. Todos os elementos
124
germinais do sujeito estão aí: ele é como uma expectativa, quer dizer, uma
espera e uma ação nascente. Mas, como ele começa por ser uma pura espera,
ele não faz nada por ele mesmo, mas espera que algo se faça nele (ibidem, p.
05).
Parece que a circularidade criativa inerente à prática da capoeira Angola nos
tenciona na direção do cultivo de um outro e de um distinto modo de atenção e
sensibilidade, conforme Do Eirado numa pura “espera que algo se faça” em nós. Não
é o mundo que nos condiciona, muito menos nossas intenções ou motivos, mas uma
qualitativa mudança em nossa atenção. É interessante, por exemplo, quando
descobrimos na capoeira Angola que uma boa rasteira não é aquela produzida por
uma imposição das condições objetivas do jogo (o adversário se mostra aberto
indicando a possibiidade da rasteira) ou por uma imposição subjetiva (querer por
qualquer jeito realizá-la). Nesses dois exemplos a rasteira se pautará pela força
(imposição do sujeito) ou pela fraqueza (submissão às circunstâncias). Mas o
aprendiz da capoeira Angola vai descobrindo que a boa rasteira é aquela que
surpreende tanto as circunstâncias quanto o próprio autor dela. Imprevisibilidade
objetiva e subjetiva. Adiante, quando formos falar do aspecto ritualístico e sagrado da
capoeira, veremos que talvez seja por essas ocorrências tão cultivadas pela capoeira
Angola que a força do mistério e do mítico apareça. Não é nem o mundo objetivo
nem o mundo subjetivo que governa o jogo da capoeira, e o aprendiz de algum modo
deve cultivar sua sensibilidade para essa misteriosa e mágica situação.
Virgínia Kastrup (2004), num texto em que discute o aprendizado da atenção
inventiva, considera a necessidade de pensar o fenômeno atencional para além da
dicotomia atento e desatento, comum às abordagens contemporâneas da psicologia
cognitiva. Para ela existem muitos mal-entendidos quando se confunde a atenção
como um único estado no qual a consciência estaria presente. a desatenção seria
um estado de ausência de consciência. Porém, o que percebemos na espreita é um
125
outro tipo de atenção que reúne distração e concentração. Kastrup tenta mostrar como
a psicologia acaba por restringir o estudo da atenção a um processo que é condição
para a realização de tarefas. Na capoeira nem sempre estamos realizando uma tarefa
pré-definida. Na maioria das situações de jogo o capoeira não sabe muito bem o que
esperar e, portanto, o que privilegiar como foco. Desliza sua atenção aos eventos,
fazendo-a flutuar sem muito foco. A atenção sem foco não pode ser confundida com
uma distração (perda da concentração) e, sim, deve ser vista como uma concentração
sem foco (espreita). Embora desfocada e fluida, podemos chamá-la de uma atenção à
oportunidade. Tal atenção torna o capoeira mais sensível às oportunidades
inesperadas que se apresentam. Uma espécie de presença plena (VARELA, 1991) em
relação aos acontecimentos da vida e especificamente da roda da capoeira. César
Barbieri descreve assim essa atenção da espreita:
(...) estar constantemente presente na roda, ou seja, perceber, utilizando-se
de sua visão periférica, todos os movimentos realizados pelo seu adversário-
companheiro, mesmo que o esteja fitando-o diretamente; perceber todos
os movimentos realizados pelo Mestre que dirige a roda; perceber todos os
movimentos que são feitos pelos outros capoeiras que compõem a roda;
perceber a movimentação das pessoas que assistem ao jogo; além de poder
perceber o ritmo ditado pelo berimbau, letras das músicas que são cantadas
(...) esse ver o momento, essa realidade concreta que se apresenta nessa
ocasião (...) (BARBIERI, 1993, p.62).
Ao entrar na roda o aprendiz iniciante reduz sua atenção aos focos do seu
movimento e quando pode aos movimentos do oponente. Rígido e muitas vezes
nervoso, ele deve aos poucos ir desenvolvendo um relaxamento, uma distração, sem
que para isso perca a concentração a suas ações. Aprende-se a tornar sensível aos
elementos da capoeira, sem precisar se focar neles. “Está envolvida uma
aprendizagem da sensibilidade, o que significa a aprendizagem de uma atenção
especial que encontra a música, deixando-se afetar por ela e acolhendo seus efeitos
sobre si” (KASTRUP, 2004, p.11). Neste momento do seu texto kastrup tenta
126
exemplificar sua idéia de aprendizado de uma atenção concentrada e desfocada no
aprendizado da música. Mais a frente continua Kastrup:
Para a invenção, a questão é antes de concentração que de focalização. A
subjetividade contemporânea não sofre de falta de foco, mas antes de
excesso de focalização. Mas a focalização, por si só, é estéril para a
invenção. Por isto a dispersão é um problema. Uma pessoa dispersa e ávida
de novidade responde automaticamente às informações externas que se
proliferam e que convocam uma atenção sempre focada e ao mesmo tempo
fugaz (Ibidem, p.15)
É interessante a partir desta citação procurar diferenciar distração de
dispersão. Kastrup tenta em seu trabalho nos mostrar a compatibilidade da
concentração com a distração e desfocalização. Com isso busca discutir as
dicotomias correntes da concentração/focalização versus dispersão/desfocalização
encontrando outras combinações, como, por exemplo, de uma atenção focada e
dispersa. Mostra que esse tipo de atenção é produzida o tempo todo em nosso mundo
contemporâneo. Nela somos convidados a manter uma focalização dispersa, “ávida de
novidade”. O que nos parece essencial na idéia defendida por Kastrup é não confundir
foco com concentração, que podemos perfeitamente experimentar uma atenção
focada, porém dispersa e desconcentrada e também (o que para nosso trabalho é
fundamental) pensar uma atenção distraída e desfocada, porém concentrada e
aplicada.
Nesse sentido o aprendiz de capoeira Angola vai precisar de um tempo para
cultivar entre outras coisas a atenção da espreita. Mantendo a concentração, só que se
abrindo a um desfocamento, a uma sensibilização às oportunidades. Tal mudança na
atenção do capoeira é fundamental para que ele deixe de jogar de modo esperado e
automático e consiga desenvolver um jogo atento e aberto às diversas oportunidades.
Mas para isso precisamos dedicar um tempo. Ninguém aprende sem perder tempo.
127
3.2 - O tempo no aprender: a importância da vadiação
"Capoeira de Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da
pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada qual.
Ninguém luta do meu jeito, mas no deles toda a sabedoria que aprendi:
cada um é cada um” (PASTINHA, 1967, p. 07).
Deleuze (2003) num belíssimo livro, sobre a obra literária Em busca do
Tempo Perdido de Marcel Proust, apresenta idéias que podem nos ajudar a entender a
importância do tempo no aprendizado da capoeira Angola. Define o “Em Busca” do
título como o caminho de um aprendizado, como uma busca da verdade, de um tempo
perdido. Mas logo no inicio de seu livro Deleuze se preocupa em definir o que Proust
entende como tempo perdido. Não se trata, como o “senso comum” poderia supor da
busca de um passado já vivido, de uma redescoberta do passado. Mas, sobretudo, de
um aprendizado que busca descobrir verdades a respeito do tempo, de um “tempo que
se perde”.
Segundo Deleuze o narrador constrói sua história de modo que determinados
fatos são expostos no tempo de sua descoberta. Coloca-nos em contato com uma
história, que ao contrário de revelar as dimensões de um passado vivido, convida o
leitor a perder um tempo diante das verdades aparentes, suplantando-as.
Podemos também situar nesse plano a obra prima da literatura brasileira
Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa. Nessa obra o personagem principal, o
jagunço Riobaldo, narra, para nós leitores, sua história. Mais do que relembrar o
passado atualizando-o pela narrativa, Riobaldo vai construindo os elos que vão dando
sentido a sua narrativa. Assim, o que importa não é a seqüência linear dos
acontecimentos, mas o tempo de sua (e do leitor interlocutor) descoberta das
verdades. O tempo de um aprendizado. Os acontecimentos são narrados trazendo com
eles a força das reviravoltas do destino, seus encontros, as paisagens, suas decepções,
128
seus amores. Diante deles os caminhos e decisões que lhe permitiram viver no Sertão,
ser jagunço, líder, amar. Cada linha desse livro traz os caminhos de um aprendizado
nas trilhas de um jagunço no interior do sertão. Com ele, numa conversa com um
interlocutor que somos nós leitores, Riobaldo percorre sua história, cuja descrição nos
permite redescobrir juntos os sentidos do tempo que perdemos em nossas buscas de
sentido. Mas o que nessas narrativas constitui a matéria prima do aprendizado? O
sertão, o amor, a arte? Continua Deleuze:
Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objeto de um
aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, de início,
considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a
serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja
‘egiptólogo’de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se
sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da
doença. (DELEUZE, 2001, p.04).
A matéria prima são os signos. Mas como enfatiza o autor, os signos por mais
que precisem ser decifrados não podem decolar ou se afastar dos acontecimentos que
lhes dão corpo. Não se trata de uma busca dos sentidos abstratos dos signos, enquanto
entidades imateriais e puras, porém da descoberta dos sentidos de experiências
encarnadas, de sentidos que estão amarrados aos acontecimentos. Do mesmo modo
não se pode confundir os signos com as matérias que lhes dão suporte. Por isso,
devido à dificuldade de decifrar os signos sem cair nas abstrações ou no realismo
materialista, Deleuze fala de um aprendizado. na aprendizagem um aprendizado
dos signos.
Mais do que reagir aos eventos e situações, conforme as expectativas sociais e
pessoais, o aprendiz é levado a se preocupar com os enigmas e mistérios que os
signos emitem. Ser sensível aos signos, considerar o mundo uma coisa a ser decifrada
é uma dádiva, que permaneceria oculta se os nossos encontros não nos marcassem
com necessidades. Alguns encontros, ao contrário de nos manter em nossas rotinas,
129
nos forçam a sair delas, e, por vezes, as circunstâncias não são frutos de escolhas ou
de decisões, mas de necessidades, conforme vimos no item anterior na citação do
encontro de Mestre João Grande com a capoeira. O Mestre diante do mistério do
“corta-capim” é impelido de uma necessidade, que o acompanha por cerca de 10 anos
até o encontro com os capoeiras e de novo com o “corta-capim”. Não houve escolha,
mas a incrível força de um encontro, cujos signos o lançam numa busca de sentido.
Busca essa que, talvez dure até os dias de hoje, quando em Nova York, um Mestre,
continua decifrando e encontrando-se com os signos da capoeira.
Mas esses encontros seriam totalmente sem efeito se não vencêssemos as
barreiras de nossas crenças. Essa é para Deleuze a trajetória do aprendizado,
encontros fortuitos que nos marcam com uma necessidade de penetrar nesses mundos
e decifrar seus signos, aprendendo, ao seu tempo, a vencer as ilusões que as crenças
em relação aos signos apontam. Mas se não aprendizado sem encontros com os
signos, não basta que esses aconteçam para que o caminho se faça. Para tanto o
aprendiz deve, perder tempo, para vencer o que Deleuze chama de falsas crenças
suscitadas por esses encontros com os signos.
A primeira crença é atribuir aos objetos os signos que eles portam. Segundo
Deleuze tudo no encontro nos leva a crer nisso. uma tendência ao objetivismo.
Como os signos só existem no suporte material de um objeto, é comum confundir este
com aquele. O amante diante da força do encontro com os signos do amor acaba por
acreditar que é a amado, portanto o objeto, que é o signo do amor. Essa crença
objetivante nos impede de ver que os signos estão a um tempo nas matérias dos
objetos, mas não são materiais. Se é verdade dizer que não encontro com signos
sem um objeto que lhe materialidade, também é verdade que esse não pode ser
confundido com o objeto que lhe porta. Confundimos o significado do signo com o
130
ser do objeto que ele encarna. O impacto inicial e prazeroso dos encontros com os
signos acaba se perdendo numa ilusão fácil do objetivismo, tornando algo que é
próprio e singular em um objeto geral: a mulher, a capoeira ou a música. Ilusão, pois
os mesmos objetos podem e é o que acaba acontecendo, trazer novos e diferentes
encontros, e com eles, novos e diferentes signos. Diante dessa ilusão o aprendiz acaba
por se fixar na percepção e na memória do objeto e não na experiência do encontro.
Numa direção prática e utilitária que o lança na consumação das coisas, numa ilusão
objetivante. Tal atitude aprisiona a percepção, que passa a ansiar pelo objeto,
esquecendo-se da raridade do encontro proporcionado pelos signos. Mais importante
do que o encontrado é aquilo, que nos encontros, nos mobiliza ou nos força a
aprender. Mas tal posição objetivante, que se fixa no objeto, tende sempre a nos
decepcionar, pois as experiências continuam a nos mostrar o quanto um mesmo
objeto pode trazer signos distintos.
Diante desta decepção com a objetivação do mundo, Deleuze aponta para uma
nova e perigosa crença, que se dirige para outra direção, oposta ao objetivismo. Nesta
o aprendiz acaba por produzir, a título de contrapartida: uma compensação subjetiva.
Buscamos com ela justificar nossas decepções, preenchendo os acontecimentos com
signos menos profundos, porém apropriados às expectativas da inteligência, que tudo
reduz para encaixar suas definições. As interpretações subjetivas das definições
inteligentes também acabam isolando o aprendiz em fórmulas gerais e abstratas.
“Cada linha do aprendizado passa por esses dois momentos: a decepção provocada
por uma tentativa de interpretação objetiva e a tentativa de remediar essa decepção
por uma interpretação subjetiva, em que reconstruímos conjuntos associativos”
(DELEUZE, 2001, p.34). Vencer as barreiras das ilusões realistas e idealistas requer
um tempo a se perder.
131
Nossas experiências são repletas de signos diferentes e singulares, cujo
encontro nos força a decifrá-los. Tal caminho é atravessado de ilusões objetivantes e
subjetivantes, que a seu modo prendem o sentido dos signos em objetos, e idéias fixas
e gerais. Numa roda de capoeira aprendemos, também, aos poucos a decifrar os
diversos signos que possam aparecer. Signos éticos, estratégicos, estéticos, políticos e
também sagrados. Atravessamos também por esse jogo de decifração pelos perigos
das ilusões subjetivas e objetivas.
O aprendizado segundo Deleuze nos leva a encarnar nossas interpretações,
mantendo-nos ligados à experiência, sem confundi-la com os objetos encontrados, e
aos seus sentidos, sem confundi-los com idéias ou crenças subjetivas de nossas
expectativas de sujeitos. Esse é um aprendizado cujos sentidos e significados estão
encarnados nas experiências, o que inviabiliza a construção de significações
simbólicas ou ideológicas que, fora da experiência, as explica e prevê. Desse modo,
os signos e suas interpretações dizem respeito aos mundos próprios e singulares.
Cada experiência traz consigo as marcas e sentidos próprios, lançando-nos em
histórias de aprendizados que não podem ser repetidas ou reapresentadas. Sendo
assim não podem ser objetos de sistematizações e interpretações abstratas e
intelectuais, pois estas perdem o sentido temporal daqueles, reduzindo-os a formas ou
tipos abstratos.
Entretanto muito cuidado deve ser tomado, pois nos mostra Deleuze que a
descoberta da verdade não ocorre por afinidade, pois as significações explícitas e
convencionais nunca são profundas e verdadeiras. Daí a necessidade de perder tempo
para construir os sentidos profundos da experiência. Os sentidos explícitos, como, por
exemplo, os sentidos da moda, geralmente não tem a força e a necessidade dos
sentidos profundos que nos levam a despender tempo e trabalho. De que tempo
132
estamos falando? O tempo cronológico? Ou uma outra noção de temporalidade que
de algum modo passa ao largo do tempo quantitativo e homogêneo do relógio?
Tais experiências acabam por indicar a necessidade de pensar o aprendizado
da capoeira Angola dentro de uma outra concepção de tempo, que escapa das
apropriações do tempo abstrato e cronológico que muitas vezes tem regulado nossas
práticas diárias e os modos de aprender e ensinar. Parece fundamental pensar em uma
outra forma de tempo, um tempo do aprender encarnado na experiência. Para tanto
nos aproximaremos da concepção empírica que as nações africanas de tradição Bantu
possuem da percepção do tempo. Utilizaremos como referencia principal um texto
escrito pelo professor da universidade de Rwanda Alexis Kagame (1975), cujo título
é Apercepção empírica do tempo e a concepção da história no pensamento Bantu.
A definição “Bantu” se referia originariamente classificação proposta por
W. H. J. Bleek em 1851 em sua tese de doutorado – a um conjunto de etnias africanas
que falavam uma língua comum. Mais tarde este nome passou a representar não
somente a língua desses povos como também suas culturas e tradições. A área das
culturas de tradição Bantu abarca quase todo o sul e centro-sul da África. Grande
parte dos contingentes de escravos trazidos para o Brasil veio desta região, o que nos
parece bastante interessante, que a capoeira Angola encontra nestas culturas, e em
suas práticas e rituais, o seu berço.
Como os Bantu tinham e ainda têm uma cultura sem escrita, a concepção
descrita por Kagame (1975) é puramente empírica. Ou seja, não nessas culturas
uma teoria ou um conjunto de preceitos ou documentos escritos que indiquem a
noção de tempo. No entanto, encontram-se nos seus usos, principalmente nos
lingüísticos, uma concepção empírica do tempo. Kagame inicia seu texto
apresentando as quatro categorias de seres existentes. O ser-inteligente (homem), o
133
ser-sem-inteligência (a coisa), o ser-localizador (lugar-tempo) e o ser-modal
(acidentalidade ou modificação do ser). Apenas o ser-modal não existe por ele
mesmo, precisando dos outros seres para existir, aderindo-se a eles. O que vai
interessar ao autor é a terceira categoria de seres, a saber: os seres-localizadores, o
tempo e o espaço. A sua questão principal é compreender por que os Bantu realizam a
unificação do lugar e do tempo para marcar uma existência. O ser puro ou universal
não pode ser localizado, portanto não existe. Para que algo exista precisa ser
localizado no tempo e no lugar, portanto podendo deixar de existir. O ser universal
não pode existir, pois se existisse teria que um dia deixar de existir, o que é
incompatível com alguma coisa que é universal. Nesse sentido os Bantu realizam a
unificação tempo-lugar justamente para localizar não os seres universais, mas os seres
existentes. Mas para localizar os existentes não bastaria a noção de espaço ou lugar?
Parece que não, vejamos porque. Em primeiro lugar, diz Kagame, nas culturas Bantu
qualquer existente que surja pressupõe um antes e um depois, um tempo. “Daí resulta
que o existente – animado ou não, dotado ou não de movimento imanente, imóvel, em
repouso ou fixo é febricitante do movimento existencial, em sua trajetória para a
consumação conatural” (KAGAME, 1975, p.106). Esse movimento existencial o
pode ser confundido com um movimento físico, como um deslocamento no espaço,
sendo entendido como um movimento meta-físico, portanto inacessível a qualquer
observação direta. Como por exemplo, o movimento do envelhecimento. Só podemos
observar os seus efeitos. Tal fenômeno os Bantu chamam de movimento existencial.
Nesse sentido, cada existente deve ser compreendido dentro do tempo, diferenciando-
se do antes e do depois. É importante frisar que esses movimentos existenciais não
são propriedades apenas dos seres-inteligentes (homens), mas de todo e qualquer
existente. Existir é necessariamente realizar um movimento existencial. Mas haveria
134
ainda um problema; essas “entidades-movimento” não podem ser pensadas como
gerais e incluídas na quarta categoria dos seres-modais. Precisam se individualizar, ou
seja, se localizar num evento, sob o risco de serem tomadas como entidades abstratas
e, portanto, fora dos existentes. Como vimos acima os seres-modais não existem por
si mesmos. Como então eles se individualizam? Num ponto do espaço? Kagame
responde que não, pois o espaço enquanto um lugar qualquer pode receber uma
infinitude de movimentos e ao receber e se fixar num deles, ficaria preso eternamente
neste mesmo ponto, deixando de ser um movimento. “É, portanto, impossível que
qualquer movimento seja individualizado pelo ponto do espaço em que será
executado” (idem, p.108).
Por outro lado poderíamos dizer que o movimento se individualizaria se
distinguindo dos anteriores e dos seguintes, ocupando, portanto um instante ou ponto
do tempo? De novo a resposta é negativa, “(...) pois um mesmo instante é receptáculo
de uma infinidade de movimentos que todos os Existentes desenvolvem ao mesmo
tempo” (idem, p.108). Como então chegamos à individualização dos movimentos
existenciais de cada Existente? Somente combinando o ponto do espaço com o ponto
do tempo, “em-tal-ponto-em-tal-instante”(idem p.108). Deste modo o movimento se
torna uma entidade única e impossível de ter se realizado no passado ou de vir a
realizar-se no futuro. Ele se prende ao evento que realiza.
O mesmo Existente nunca repetirá um movimento análogo no mesmo ponto
do Espaço; ser sempre um outro, pois o instante do precedente nunca se
reproduz, como também nunca se repetiu anteriormente. (Idem, p.108).
À unificação do lugar com o tempo Kagame chamou de “coordenada
individualizante” dos movimentos dos Existentes. Portanto, nas culturas Bantu não
podemos falar de uma Existência ou de um ser sem darmos a sua localização espacial
e temporal. Não existe uma pedra, mas esta pedra aqui e agora. Nesse sentido essa
cultura privilegia e compreende os existentes sempre no tempo e no espaço. Mas onde
135
se encontraria esta dimensão do tempo/espaço? O passado enquanto um movimento
existencial realizado é uma idéia imprecisa, por não se situar num localizador
presente. Já o futuro enquanto movimento que virá, também é impreciso, cabendo
apenas como uma projeção do espírito. A essência do tempo é o presente. Mas onde
está o presente? Não em um instante qualquer, geral, fixo e imóvel, mas coincide com
o próprio movimento existencial, desde o seu inicio até o seu fim. O presente,
portanto, está marcado pelo evento que realiza, e persiste enquanto este dure. Uma
colheita enquanto dure é presente, um reinado que por ventura dure cinqüenta anos
também é considerado como presente. Nesse sentido a concepção de tempo para a
cultura Bantu estaria incompleta se a considerássemos abstraída do onde e do quando.
O tempo estaria, pois “selado” pelo evento, agarrado aos existentes, impedido de ser
pensado aquém ou além desses. O tempo não seria uma entidade abstrata e
homogênea que caminharia paralela aos acontecimentos os medindo ou marcando.
“Entre os Bantu, entretanto, não existe substantivo teórico para indicar o TEMPO
como nas línguas da cultura europeu-americana. Entre os Bantu, o que importa é o
tempo disso ou daquilo, o tempo propício para isso ou aquilo” (KAGAME, 1975, p.
115). O eventos não poderiam ser medidos por um tempo em geral, conforme as
horas. Duas horas de leitura não possui a mesma temporalidade comparada a duas
horas de praia, pois são dois eventos distintos. Até mesmo a dedicação de leituras
diárias por duas horas, de um mesmo texto obedecem a tempos diferentes, pois
podem ser eventos distintos.
Mas aqui devemos ter um certo cuidado, pois um evento dura o tempo de seu
movimento, e assim as próprias concepções de dia, mês, ano, cadas estão
amarradas a certos eventos e, portanto não podem ser pensadas como formas gerais
do tempo. O interessante é que, amarrado aos eventos, o tempo, enquanto movimento
136
existencial, no aqui e no agora, portanto no presente, é sempre singular. O tempo
presente é o único real, pois está sempre marcado pelos Existentes, numa expansão
em sua trajetória existencial.
Eles também não confundem o evento com o autor do evento, podendo um
mesmo autor realizar eventos distintos. Isso permite que o Existente que permaneça
em sua marcha existencial possa trazer consigo uma marca de vários eventos que já se
realizaram, encarados como eventos passados ou atividades que marcaram o tempo.
Tal posição diante do passado será importante quando mais à frente destacarmos o
papel da ancestralidade no aprendizado da capoeira. Já que o passado, enquanto um
conjunto de eventos que marcaram um tempo que passou, continua de algum modo
existindo no presente, influenciando e marcando os eventos presentes. que ao se
encarnarem num evento atual, passam a realizar sua existência de modo diferente e
singular. Portanto, mesmo acreditando que os eventos passados realizados possam
influenciar os eventos atuais, estes, como atuais, acabam por constituírem a sua
própria temporalidade.
Podemos nos perguntar se a cultura Bantu serializa o tempo. E como ela o
faz? De saída devemos ter em mente que qualquer forma de serializar o tempo deve
ser marcada pelo evento, não permitindo marcações gerais e homogêneas do tempo e
do espaço. Nesse sentido uma primeira diferença desta concepção empírica do tempo
é a idéia de futuro.
O ‘futuro’, sem as possibilidades de ser marcado por eventos reais, não
responde à noção de tempo conhecível. O homem que nele projeta suas
previsões não tem certeza de se encontrar no dia seguinte, segundo um
provérbio ruandês: ‘as coisas de amanhã entram na conversação das pessoas
de amanhã’ ou por outra: ‘se eu chegar até amanhã, tratarei disso
(KAGAME, 1975, p.118).
Não significa que na prática os Bantu não façam planos. Mas sabem que o
futuro deve se tornar um evento e como tal existir para ser, o que os coloca numa
137
experiência temporal em que o futuro é sempre tratado como algo próximo. Portanto,
os planejamentos não o sobre algo que se realizará, mas sobre algo que está se
realizando. Eles podem perfeitamente pensar os dias seguintes da plantação, mas
estes dias estão impregnados de um movimento existencial atual e portanto dizem
respeito ao tempo presente, o que faz com que o passado e o futuro sejam avaliados
pelos eventos que se realizam nesse presente. Dentro da seriação dos Bantu, veremos
que o ano é o máximo de futuro que um indivíduo Bantu planeja ou ao qual ele se
refere. Não significa que suas práticas não visem a duração no tempo, mas sim que
seus planejamentos são a garantia dessa duração, mantendo-as encarnadas nos
eventos, no tempo presente.
Essas características fazem com que suas serializações do tempo obedeçam
aos eventos que eles encarnam. O evento dia é caracterizado pelos Bantu através da
sua ligação com o evento sol. Inicia-se com o nascer do sol e encerra-se com o
crepúsculo. O dia é vivenciado como uma jornada, como um evento em movimento
existencial. O que faz do dia um evento distinto da noite. Durante o dia ou à noite,
vários outros eventos marcam o que podemos chamar de “horas”, mas estas não são
relacionadas ao movimento regular de um relógio, e sim são medidas pelas atividades
desempenhadas. Se durante o dia os indivíduos vão caçar, as horas passam e duram
de modo diferente das que passam se eles forem plantar ou se dedicar aos festejos.
Assim, também o instante, ou o tempo mínimo é determinado como ocasião, tempo
favorável, momento de realizar isto ou aquilo. Em vez de perguntar que horas são,
pergunta-se: “é ocasião de quê?”. É hora de plantar, hora de comer etc. Não é
portanto, um hoje qualquer, um presente em geral, mas o dia é o hoje específico, que
varia de acordo com os eventos realizados nessa jornada.
138
Verifica-se que existem duas atitudes distintas entre os povos de cultura Bantu
para a referência aos dois dias anteriores e posteriores ao hoje. Muitas etnias
empregam o mesmo termo para designar o ontem e o amanhã, assim como o
anteontem e depois de amanhã. Ao passo que outras etnias dispõem de termos
distintos para se referir a esses eventos. Não podemos esquecer que o evento que
marca o dia é o sol, mas dependendo das tarefas ou práticas, o tempo presente pode se
estender ao de um dia, já que o princípio é o da marcação do tempo pelo evento.
A semana, enquanto marcação de tempo, parece inexistir para a maioria das
populações Bantu, que em suas práticas não existem eventos que marquem este
tempo. Já o mês é marcado pelo evento lua, ou seja, os tipos de lua marcariam o
tempo que nós chamamos de mês. Mas de novo essa marcação das fases de lua se
experimenta por eventos próprios e destacados. Lua nova é propícia, uma boa ocasião
para cerimônias. A lua cheia indica o fim das noites claras e inicio das escuras. Em
geral os meses são indicados por nomes próprios, mas são marcados por eventos,
como época de chuvas femininas (fracas), chuvas masculinas (fortes), chuvas
longínquas, terra ressequida etc.
O ano é determinado pelo evento das estações, do movimento da terra em
volta do sol. São nomeadas as estações enquanto formas de marcar eventos próprios
como o frio o calor entre outros. “(...) o ano, ao que tudo indica, é a unidade de tempo
mais longa, correspondendo, em princípio, ao lapso de 12 meses, mas com a
possibilidade de ser projetado para além” (KAGAME, 1975, p.125). Além dessa
unidade de tempo, os Bantu jamais conceberam outras como séculos, e muito menos
milênios. É importante destacar que mesmo o ano, quando é considerado, o é como
tempo presente, sempre marcado por eventos que realizam seus movimentos
existenciais.
139
Quanto aos modos como os Bantu se referem ao passado não ao anteontem,
nem a estação anterior, já que essas, marcadas por eventos, são constituídas e tratadas
como presente os fazem com expressões como o tempo dos antigos, o “tempo de”,
“no tempo de”, “na idade de”, como os tempos de outrora, porém essas o utilizadas
sempre em sintonia com os fazeres do tempo presente. Desse modo, as noções de
sempre ou de eternidade são ininteligíveis para os Bantu, que uma inteligência
finita e situada num evento não pode captar algo infinito e, portanto não Existente.
Kagame conclui o seu texto apontando para uma questão que, segundo ele,
não é explicitamente considerada pelos Bantu, que é a da direção do tempo.
uma reflexão atribuída a uma mulher que viveu sob o reinado de
Mibambwe III Sentabyo, monarca que reinou por volta de 1741-1746. Essa
mulher teria exclamado: ‘Uma vez que é dia, depois noite, qual será o fim
deles? (KAGAME, 1975, p. 127).
Depois da noite é outro dia e depois outra noite ... Há, portanto uma concepção
cíclica, o que é reforçado pelas cerimônias cíclicas de iniciação, da reutilização de
nomes dinásticos. Tal circularidade do tempo convive com a idéia de irreversibilidade
dos eventos, que não podem de modo algum ocorrer de novo ou já ter ocorrido.
Desse modo a irreversibilidade do tempo serve de certa maneira de eixo
central em volta do qual giram os ciclos, à semelhança de uma espiral, que dá
a impressão de um ciclo aberto. Cada estação, cada geração a iniciar, cada
quarto nome dinástico volta à mesma vertical, mas num nível superior. Em
outros termos, eles não voltam nem ao mesmo ponto do espaço nem ao
mesmo instante, o que corresponde logicamente à nossa individuação da
entidade ‘movimento’ (idem, p. 127).
Uma primeira e importante ligação deste modo de experimentação do tempo
nas culturas Bantu com a capoeira Angola é a de que o seu aprendizado parece se
vincular muito mais aos tempos dos eventos, do que os tempos e seus marcadores em
geral. Não importa quantos dias por semana se treina, ou quantas horas se treina por
dia. Tal regulador não preenche os critérios do movimento existencial do aprendiz de
capoeira, não sendo, portanto, o que está em jogo neste aprendizado. Não se trata de
uma percepção subjetiva do tempo, como uma sensação psicológica, mas de um
140
tempo real, tempo dos acontecimentos, ou seja, que pode ser acessado
experimentando os eventos que lhe dão corpo. Esta consideração é importante, pois é
muito comum atribuirmos a essa variação temporal, nuances subjetivas, ou modos
ilusórios de perceber um tempo que, na realidade, seria homogêneo e serial. Diante de
uma aula de duas horas constatamos, surpresos, impressões muitas vezes distintas
desta duração. O que para nós é uma percepção subjetiva de um tempo homogêneo e
objetiva é para os Bantu a dimensão real e verdadeira do tempo. Sendo assim, os
eventos, e não as diversas impressões deles, é o que varia no tempo. Tal colocação é
importante, pois amplia essa variação aos eventos de qualquer existente. Por exemplo,
o evento de curtir-se um pedaço de couro tem um tempo próprio que deve ser
respeitado e compreendido, assim como o de cortar e preparar uma biriba
22
para que
esta se torne um berimbau. Não são as apreensões subjetivas e humanas que permitem
uma variação qualitativa do tempo, mas elas são as próprias marcas do tempo como
evento. O interessante é que, visto deste modo, até mesmo os eventos que parecem se
repetir trazem características próprias e únicas, portanto irrepetíveis. Cada um desses
eventos deve ser considerado ao mesmo tempo único e irrepetível, porém pertencente
a uma circularidade, ou seja, dentro de um retorno, todavia, de uma outra forma e em
um outro evento. A situação é paradoxal, como aquela de uma circularidade em
espiral, que coloca o aprendiz dentro de uma experiência, que como qualquer evento,
é própria e singular. A experiência de algum modo está marcada por uma
temporalidade circular, pois onde existem os fins podem-se marcar sempre novos
recomeços, podemos dizer que por mais que esse evento seja irrepetível, ele nunca
começa do zero. Este evento é único e singular e é ao mesmo tempo contínuo,
diferenciando-se de toda uma tradição de eventos que já se realizaram no passado.
22
Biriba é o nome da árvore da onde se extrai a madeira para se construir o berimbau, que é um dos
principais instrumentos para a prática da capoeira.
141
Essa compreensão do tempo faz com que as marcações de ciclos ou etapas de
desenvolvimento gerais e formais, que busquem uma homogeneização, não sirvam
para indicar os caminhos do aprendizado. Isso não é o mesmo que afirmar o
relativismo ou o individualismo desse aprendizado, pois como vimos a aqui os
eventos enquanto existentes, que duram num presente do aqui e agora, não são
qualidades ou propriedades subjetivas, relativas às variações de cada um. Os sujeitos,
tais como qualquer existente, devem ser localizados e como tal desempenhar
movimentos existenciais. Assim, o aprendizado encarnado nos eventos deve
considerar não apenas os eventos do ser-inteligente, mas integrá-los aos outros
eventos, respeitando e compreendendo suas temporalidades.
Mas de algum modo esse processo singular e único, que é o tempo dos
eventos que habitam o evento capoeira Angola, vem ao longo de sua tradição
recomeçando, o que permite aos indivíduos desta tradição, principalmente aos mais
velhos, terem uma sabedoria acerca dos seus segredos. Digo sabedoria porque, ao
contrário da noção ocidental de conhecimento, a sabedoria não se julga conhecedora
dos rumos que os eventos vão tomar, mas de algum modo continua, junto aos eventos
do passado, a exercer o cultivo de práticas.
Cultivar é diferente de dominar e controlar. O conhecimento tem buscado
através do seu desenvolvimento, controlar e dominar cada vez mais os eventos
presentes e futuros, segundo modelos gerais que contam com uma repetição no futuro
de regras gerais e quantitativas. Já a sabedoria aprende com os eventos e reconhece
neles a necessidade de e o respeito por suas singularidades. Compreendem de modo
encarnado que não evento em geral, mas este ou aquele evento. Ao invés de
controlá-los os Bantu inserem-se neles, incluindo-se em sua paisagem,
acompanhando os seus ritmos. Nesse sentido, os sábios do tempo dos eventos estão
142
muito mais interessados em agir de acordo com esses diversos eventos, atentos às
suas diferenças, do que em amarrá-los aos seus desejos e ambições pessoais. E é essa
sabedoria que se dedica a uma atenção e um acompanhamento dos eventos,
integrando-se neles, realizando-os em conjunto.
de novo uma estranha circularidade que atravessa o aprendizado da
capoeira Angola, segundo esta tradição da temporalidade Bantu, em que o aprendiz é
convidado com os demais companheiros a penetrar nos segredos dos eventos da
capoeira Angola, tendo o cuidado e sua atenção cultivados para esse tempo dos
eventos.
Desse modo, aprender capoeira é realizar em grupo e de modo singular uma
penetração nos tempos e ritmos, tateando-os e experimentando essas ocasiões,
ajudados, ou melhor, acompanhados por um cuidado dos Mestres e da tradição que
possuem, não um conhecimento, mas a sabedoria de dispor dos eventos passados para
recriar no presente seus ritos e práticas. Imerso nessa circularidade criativa, o
aprendizado da capoeira Angola se constrói com força e presença num cultivo na/da
tradição, mais do que meramente submetido ao treinamento de habilidades gerais.
Sabemos o quanto o tempo abstrato das horas, dias e anos, é hegemônico e até
mesmo comum em nossos dias. Diariamente somos governados pelo tempo das horas,
coagidos a encaixar e submeter nossa rotina a este senhor exterior e homogêneo.
Nesse sentido, cada prática que realizamos acaba sendo avaliada segundo os critérios
abstratos de um tempo de ninguém. Como este tempo é homogêneo e comum à
qualquer evento, a sensação que acabamos experimentando é a de que nunca temos
tempo para fazer nada. que poderíamos estar, nesse mesmo tempo, em outros e
possíveis eventos. Assim os instantes são avaliados de fora dos eventos. Os
momentos são vivenciados de modo cada vez mais perene e fugidio, diante das
143
inúmeras possibilidades que o tempo homogêneo nos oferece. Os eventos são tratados
como instantes esquadrinhados pelas marcações impecáveis de um tempo por vir.
Parece que temos que prestar contas com um futuro que nunca chega, ansiosos por
não perder tempo. Marcados, então, pelo futuro que não chega, os eventos presentes
só são experimentados como meios de atingir objetivos futuros.
Nas práticas de aprendizado tal situação tem levado a se buscar cada vez
menos tempo para se aprender. Técnicas e métodos são elaborados visando diminuir
o tempo do aprendizado. Tal como os animais que comemos que são submetidos a
técnicas das mais perversas para que atinjam o mais rápido possível o tamanho e o
peso do abate, ou como nossas hortaliças que o levadas também a diminuir o seu
tempo de amadurecimento, nossas práticas de aprendizado tem cada vez mais se
submetido ao encurtamento e homogeneização dos saberes. As escolas e os pais
maravilham-se diante a velocidade com que seus filhos aprendem a escrever e a ler.
Somos massacrados pelos tempos gerais e técnicos, que não cansam de nos informar
o quanto ainda precisamos fazer. Até mesmo os momentos de tempo livre são
governados por fazeres e tempo gerais e desencarnados. Isto é tão recorrente nos dias
atuais que quando por algum descuido experimentamos momentos próprios e únicos
nos assustamos e muitas vezes “metemos os pés pelas mãos”, que não tempo
(geral das horas) para perder tempo (dos eventos) com momentos sem utilidade, sem
perspectiva de futuro.
A prática da capoeira Angola tem um modo muito particular de definir o
tempo do seu cultivo. Desde os tempos mais antigos os angoleiros encaram,
principalmente, as rodas e festividades como tempo de vadiação. Mesmo atravessados
pelos tempos do trabalho, que como poucos submete o nosso corpo ao controle do
tempo geral e cronológico, os capoeiras aproveitavam as horas vagas para vadiar, ou
144
melhor, para parar o tempo do relógio e contemplar os tempos dos eventos. Frede
Abreu num lindo livro a respeito da capoeira na Bahia do século XIX (2005) destaca
esta atmosfera dos capoeiras, ao se referir a uma posição característica do jogo da
capoeira que é a “cocorinha”. Esta é o modo de ficar agachado, como que sentado nos
calcanhares sustentando o corpo sob os pés. Além de ser uma posição de defesa e
esquiva, a cocorinha é a posição em que os angoleiros iniciam, ao do berimbau
(diante da orquestra) e ao lado do oponente, o seu jogo. Frede Abreu relata assim essa
posição nos capoeiras do século XIX na Bahia:
A cocorinha. Eis aí outro cruzamento do mundo do trabalho do negro com a
capoeira: a posição de cócoras em que os ganhadores ficavam (em repouso),
às vezes horas a fio, como se não quisessem nada, desbastando o tempo,
esperando a hora passar, adivinhando, intuindo, espreitando uma nova
chance de trabalho. Torcendo para surgir um novo biscate, pois o trabalho
do carregador (principalmente ligado ao cais) também dependia do acaso,
das flutuações da maré, do tempo, das chegadas e saídas dos navios, da
força da economia, da quantidade de carga disponível etc. Na beira do cais,
enquanto a hora da labuta não chegava, podiam ficar esperando o
relaxamento da vigilância policial para armarem rodas de jogos proibidos,
cultuar vícios e iniciar as vadiações. (...) O hábito da cocorinha se repetido
automaticamente pelos carregadores, todos os dias podia funcionar como
um rito. Um rito de repouso e espera (faces da preguiça) estado de vigília
no qual pessoas que dispunham de tempo indeterminado para assim ficar,
terminavam por marcar um lugar, estabelecer um ponto fixo seu canto.
(ABREU, 2005, p. 103-104)
É impressionante a beleza dessa cena. Nela encontramos todos os elementos
da vadiação e de sua estreita relação com o tempo dos eventos. Primeiro elemento
presente é o repouso, ou melhor, o desligamento dos planos da movimentação
automática e claudicante do dia-a-dia. Ficar horas a fio numa mesma posição. Mas
esse repouso “como se não quisessem nada” não se confunde com uma dispersão da
atenção, um desligamento dos acontecimentos, mas a concentração de uma estranha
atenção desfocada, uma espreita atenta a diversos eventos inesperados. Repouso dos
movimentos automáticos e espreita aos movimentos existenciais dos eventos, “do
acaso, das flutuações da maré, do tempo, do relaxamento da vigilância policial ...”
Espera atenta mas não ansiosa, ciente e respeitosa do tempo dos eventos e da
145
necessidade de não atropelá-los, estando o sujeito disposto a aproveitá-los. Tal beleza
de cena e os seus elementos é que a capoeira Angola busca repetir nos ritos de
vadiação. “(...) um rito de repouso e espera”. “Vamos vadiar na roda de fulano!...” É
com esse espírito que os angoleiros se dirigem para a festas e suas rodas, relaxados e
dispondo de um tempo a perder. Despreocupados com as horas ou pelo menos não
deixando que elas lhe indiquem o rumo do dia. É dia de brincadeira, de atenção aos
tempos dos eventos, dos jogos, das conversas, dos encontros, das disputas. Sem presa
para realizar o que pretende, melhor ainda sem muitas pretensões. Na espreita,
portanto, em espera dos acontecimentos, rindo quando conseguem o tempo de uma
rasteira e rindo quando lhe passam as pernas. Afinal o riso na vadiação não surge
apenas quando o tempo lhe é oportuno, mas também quando não lhe é. De qualquer
modo é um evento e como tal devemos lhe render as homenagens devidas. A
vadiação é conseqüentemente um excelente professor de capoeira, permitindo ao
aprendiz cultivar uma disponibilidade, uma disposição ao tempo dos eventos, atentos
as dobras dos acontecimentos e a sua espreita sem ansiedade e pré-julgamentos.
Nesse sentido, nos parece ser a vadiação um dos elementos mais importantes
para o aprendizado da capoeira Angola, visto que, como vimos, esta situação o
pode ser antecipada ou controlada, o que impede de ser treinada ou até mesmo
conhecida como algo geral e antecipável. Por isso, não como explicar a vadiação,
nem muito menos treiná-la, a não ser na convivência com situações propícias a ela.
Seu aprendizado, como tudo que diz respeito aos eventos singulares e irrepetíveis,
necessita de um fazer com, realizando com os aprendizes situações abertas e
propícias para o tempo da vadiação, sensibilizando-os, abrindo em suas experiências
sua atenção desfocada. Mostrando, na experiência, com situações vivas e o
estereotipadas, o quanto a ansiedade e a atenção focada podem ser incompatíveis
146
com a posição da espreita. A vadiação leva (levada de uma dança) os aprendizes a
disporem de uma atenção ao tempo dos eventos, a perderem tempo, para que os
signos possam ser contemplados e decifrados na atualidade dos encontros, sem pressa
ou ansiedade dos seus planos com o futuro. Um cultivo de uma disposição a perder
tempo. Essas práticas, cada vez mais raras em nossas vidas, e podemos perfeitamente
dizer, cada vez mais raras em nossas rodas de capoeira, que acabam se fechando aos
tempos alheios à viração da vadiação, são ritos que a capoeira Angola ainda tenta
manter.
3.3 – A musicalidade e o ritmo do aprendizado
Não se pode esquecer do berimbau. Berimbau é o primitivo Mestre. Ensina
pelo som, vibração e ginga no corpo da gente. O conjunto de percussão
com berimbau não é um arranjo moderno, não, é coisa dos princípios. Bom
capoeira, além de saber jogar, deve saber tocar berimbau e cantar
(PASTINHA, 1967, p.08).
Como estamos vendo até agora, o aprendizado da capoeira Angola atravessa o
tempo dos eventos, em que os aprendizes “de oitiva”, evitando os lugares comuns das
técnicas gerais e prontas para serem replicáveis, vão cultivando hábitos que
perpassam toda uma tradição. Dentro desta tradição que a capoeira tem construído ao
longo dos tempos podemos destacar os aspectos estéticos, éticos, políticos e sagrados
que atravessam essa cultura.
Nesse sentido o aprendizado da capoeira Angola também tem que de algum
modo considerar esses pontos. Veremos nos próximos tópicos uma descrição destes
elementos e dos modos de sensibilização e contágio que atravessam o seu
aprendizado.
A tendência, cada vez maior, de esportização da capoeira, que apontamos ao
longo do trabalho, tem deixado de lado os elementos estéticos envolvidos no seu
147
jogo. A musicalidade, os toques, os cantos e a compreensão dos movimentos como
formas de expressão estética têm sido esquecidos ou pouco trabalhados em seu
aprendizado. Além de luta, a capoeira também é uma dança, um bailar que se
expressa em ritmos, músicas, sons e cantos. Isto indica a necessidade do aprendiz de
cultivar essa prática como uma arte por meio da expressão de movimentos plásticos e
belos. Para isso, veremos ser importante também para esse aprendizado o saber tocar
os diversos ritmos e músicas do jogo de Angola.
Cada angoleiro é desafiado a encontrar-se com as levadas e os ritmos. Muitas
vezes este aspecto da capoeira é taxado de exibicionismo, como se os floreios fossem
desnecessários à objetividade do jogo. Veremos que estes aspectos estéticos não
elevam nosso espírito como fazem parte da ritualística e de seu aprendizado, inclusive
servindo como um importante elemento para ludibriar e surpreender o oponente num
jogo.
Na seção sobre o aprendizado da ginga vimos a importância de um
movimento que encarne um equilíbrio precário, evitando as automatizações
previsíveis. Estes movimentos gingados e criativos são melhor compreendidos e
cultivados pelo aprendiz quando o aspecto estético da capoeira atua como professor.
O ritmo da Angola ajuda a ditar o ritmo dos movimentos, integrando-se numa
paisagem única. Veremos que ritmo e movimento estão diretamente ligados. o
basta movimentar-se, é preciso gingar dançando, expressando um movimento
ritmado. Ao som da orquestra de berimbaus, pandeiros, atabaque, agogô e reco-reco,
e dos diversos cantos dos angoleiros, o aprendiz vai se deparando e pulsando com o
aspecto rítmico dos seus movimentos.
148
Muniz Sodré (1998) mostra que o ritmo da capoeira, assim como o do samba e
também do Jazz americano, expressam-se através da “síncope”, definida por ele como
uma batida que falta.
(...) é a ausência no compasso da marcação de um tempo (fraco) que, no
entanto, repercute noutro mais forte. De fato, tanto no Jazz quanto no
samba, atua de modo especial a síncopa, incitando o ouvinte a preencher o
vazio com a marcação corporal palmas, meneios, balanços, dança. É o
corpo que também falta no apelo da sincopa. Sua força magnética,
compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se
completar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento no espaço
(SODRÉ, 1998, p. 11).
O ritmo da capoeira dita, de algum modo, o ritmo do aprendizado dos
movimentos, numa espécie de complementação. Corpo e ritmo se integram numa
contínua e inesgotável imbricação. Diante das batidas e levadas da capoeira somos
levados a movimentar nosso corpo, e movimentando-o somos levados a tocar os
instrumentos. Isso faz com que o aprendizado dos movimentos da capoeira fique
bastante empobrecido quando destituído dos sons e ritmos. Assim como o
aprendizado dos sons e dos ritmos também se empobrece na ausência dos
movimentos. Muitas vezes nossas ‘academias’ de capoeira, por questões técnicas ou
até mesmo por dificuldades práticas (falta dos instrumentos, ausência de tocadores ou
baixo numero de praticantes), acaba separando o aprendizado do ritmo e aquele dos
movimentos. Inserido num modo técnico e pedagógico que procura separar e
especificar os elementos da prática da capoeira, observamos em muitas escolas de
capoeira esta cisão. A utilização de ritmos gravados no aprendizado dos movimentos
(prática usual hoje em dia) acaba por prejudicar esta sintonia ritmo-corpo, pois essa
simbiose deve ser exercida ao vivo, expressando suas influências recíprocas e
circulares.
Nas escolas tradicionais de capoeira Angola observamos um cuidado em criar
espaços de cultivo e treinamento em que os praticantes executam em grupo e ao vivo
os movimentos, os toques e cantos, aprendendo todos esses elementos em conjunto.
149
Como num ensaio de uma banda, a capoeira Angola, em seus treinos, deve reproduzir
o máximo possível a atmosfera das rodas. Quem treinou num ambiente deste sabe
perfeitamente o quanto o seu aprendizado dessa maneira “rende mais” do que quando
aprendemos esses tópicos separadamente. Tocar e cantar integram-se na paisagem do
jogo, modificando completamente os movimentos que cultivamos na roda da Angola.
Mas esta relação entre os elementos rítmicos e corporais deve ser cultivada e
incentivada, para que o aprendiz consiga aperfeiçoar esta sintonia rítmico-corporal.
Os instrumentos musicais e os seus diversos toques, as músicas e suas letras, os
cantos e seus lamentos, os coros e suas intensidades vão servindo como guia, como
verdadeiros Mestres, abrindo as condições desse cultivo. Essa característica integrada
é muitas vezes criticada pois de algum modo dificulta aos aprendizes iniciantes a se
integrarem a paisagem. Buscando talvez “facilitar” o aprendiz, as escolas ou
academias separam esses elementos nos treinos.
É comum observamos nesses espaços seqüências separadas. Por exemplo,
observamos treinos em que no início são realizados exercícios de alongamento e
aquecimento, depois seqüências de movimentos, golpes e contra-golpes, nos quais o
aprendiz sozinho imita ou acompanha o Mestre ou o professor. Note-se que os treinos
de movimento ocorrem fora do contexto ou da paisagem da capoeira. Na roda sempre
jogamos com alguém, mas nesses treinos os exercícios são individuais para que
possamos realizar os movimentos prestando a atenção apenas neles. É possível
perdermos horas realizando esses exercícios. No final são propostos exercícios em
duplas para que realizem os movimentos que se treinou sozinho. Logo após a
“malhação física”, às vezes são propostos treinos de toques de instrumentos e cantos
das músicas da capoeira. Sentados os praticantes são estimulados a repetir os toques e
as canções, indicando a necessidade de prestar atenção ao que o Mestre faz e nas
150
respostas do aprendiz, seja você ou outro companheiro. Quando dá tempo, realiza-se
uma pequena rodinha, onde aí sim os elementos se reúnem. Podemos reparar a
fragmentação do processo de aprendizado.
Talvez isso seja feito para facilitar o aprendiz iniciante, porém notamos nessa
simplificação um aprisionamento e até mesmo uma “infantilização” do aprendiz,
como se ele não pudesse entrar nos ritmos e movimentos sem que os professores
“mastigassem” os ritos pedagogicamente. Esta é uma importante diferença entre os
modos de aprendizado “de oitiva” e na rua para as técnicas de aprendizado das
escolas. Nesse sentido, entendemos e apostamos que as escolas de capoeira Angola de
influência de Mestre Pastinha têm tentado preservar seus fundamentos para que
mesmo em outros contextos, no tempo presente, consigam realizar um aprendizado
mais encarnado nos rituais da tradição.
Entretanto, o aprendiz não consegue essa integração apenas escutando ou
assimilando os sons da capoeira, sendo preciso praticá-la. Tal aspecto é considerado
um ponto essencial no aprendizado da capoeira Angola. Desde o início o aprendiz é
apresentado e incentivado pelos Mestres a aprender a tocar os instrumentos e cantar
as músicas. Nesse processo são incluídas também a escolha dos materiais e a
construção dos instrumentos, bem como a criação e improvisação dos cantos. Hoje
observamos o quanto as academias deixam de lado a transmissão dos modos de
construção, afinação e execução dos principais instrumentos da capoeira.
A escola de Mestre Pastinha nos ensinou que a aula de capoeira deve ter,
necessariamente, espaço para as oficinas dos instrumentos. Recordo-me que em
minha primeira aula de capoeira Angola, tendo no grupo apenas três pessoas, fomos
iniciados na construção dos caxixis
23
. E durante os meses seguintes construímos
23
Um chocalho feito de fios de palha, pedaço de cabaça e sementes de lágrimas de nossa senhora.,
importante para o toque do berimbau.
151
nossos berimbaus, desde a biriba crua (madeira que dá o nome ao instrumento),
passando pelo processo de descascá-la, alisá-la encontrando a grossura ideal do arco,
“descarcar” os pneus velhos para obter os arames propícios, limpá-los, preparar o
couro, a corda, cortar e limpar as cabaças até o encontro das afinações e do
acabamento com pinturas e desenhos. Mas não se trata apenas de um aprendizado
técnico ou industrial dos instrumentos, pois essas oficinas serviam também integrar o
grupo. Nelas, perdendo um tempo, ou até mesmo parando o uso ordinário do tempo,
íamos nos conhecendo, ouvindo as histórias da capoeira, aprendendo com o grupo a
não somente construir os instrumentos como a mantê-los e principalmente formar a
“paisagem” ou o contexto do nosso grupo. Como os horários de treino acabavam
sendo pequenos para tantos afazeres, acabávamos marcando encontro nos finais de
semana para continuar os trabalhos. Nestes dias preparávamos comidas, realizávamos
treinos mais longos e podíamos, sem pressa, ir cultivando e integrando nosso grupo
nos diversos elementos que a paisagem da capoeira traz e mobiliza.
Uma vez, na ocasião de uma roda festiva em que nosso grupo realizaria num
domingo, e diante da dificuldade de continuarmos utilizando um atabaque
emprestado, decidimos encontrar um cabrito e matá-lo para construirmos um.. Como
haveria roda e a ocasião era festiva, saímos à procura do cabrito no sábado,
resolvemos que sua carne poderia ser oferecida num churrasco de confraternização
após a roda. Pois bem, sábado pela manhã bem cedo, fomos Mestre Carlão, um
colega chamado Axel e eu em meu carro tentar encontrar um cabrito. Nos dirigimos
para Itaboraí, município rural próximo de Niterói, e começamos a parar,
principalmente nos bares, tentando obter informação a respeito de alguém que
quisesse vender um cabrito. Depois de uma longa e agradável manhã de procura,
encontramos um senhor que o tinha. Negociação realizada, nos dirigimos para a casa
152
de um amigo veterinário do Axel, onde sacrificamos o animal, separamos o couro e a
carne e, no caminho de volta, passamos na casa onde a mãe de santo do Mestre
Carlão realiza seus cultos, deixando o couro para ela preparar e secar. Por último,
bem de noite, voltamos para o casarão do bairro de São Domingos, então, sede de
nosso grupo e passamos a noite toda limpando e temperando o cabrito.
No dia seguinte, após a roda de capoeira realizamos um samba de roda
acompanhado de cerveja e de cabrito. Até hoje e se vão uns 8 anos, o couro desse
cabrito continua cantando no atabaque de nosso Mestre, em seu grupo Kabula
sediado em Londres, Inglaterra. Podemos notar que esta experiência realizada fora do
horário dos treinos, serviu bastante para o nosso aprendizado. São nesses momentos
que podemos não apenas manter os ritos da capoeira, mas, sobretudo construí-los no
presente. Rica experiência na qual, encarnados na tradição da capoeira, vivenciamos
sua construção em consonância com os fazeres de nossos ancestrais. Passado e
presente não entraram em contradição, mas se misturaram em uma imbricada
circularidade paradoxal, que conciliava tradição e modernidade, passado e presente.
O berimbau é formado por uma madeira, normalmente da árvore da biriba. Ele
deve ser descascado e alisado até encontrar a resistência de um arco, podendo ser
envergado de modo a permitir uma tensão apropriada para esticar um arame entre as
duas extremidades. O arame utilizado na confecção do berimbau é tirado dos pneus
usados, cujo tamanho e resistência é muito propício para o berimbau. Assim
construído, traz um elemento de modernidade, já que nossos antepassados utilizavam
tripas de animais. Depois de limpo, o arame deve ser medido e suas extremidades
envergadas formando um anel. Um desses anéis será preso a uma das extremidades da
“verga”
24
e o outro será amarrado num barbante de algodão. Esta extremidade servirá
24
Nome da biriba depois de pronta.
153
para amarrar na verga no momento em que esta for envergada. Para prender o arame
na verga afiamos uma de suas pontas para que o anel de arame entre e se fixe,
enquanto que na outra extremidade é fixado um pedaço de couro, que servirá de apoio
para se obter a envergadura do arco. Ao arco de biriba envergado juntamos uma
cabaça furada e oca, que desempenhará o papel de caixa de ressonância do som do
berimbau. A cabaça é uma fruta, da família da abóbora, quase sempre de forma oval,
que possui uma casca bastante dura. No seu interior encontramos algumas sementes
que são retiradas, permitindo um espaço vazio e oco. A cabaça é utilizada,
principalmente no nordeste do Brasil, na confecção de muitos utensílios domésticos,
tais como a cuia, e também na confecção de bonecas, mamulengos etc.
Na orquestra da capoeira Angola são utilizados três tipos de berimbau, cuja
variação diz respeito ao tamanho da cabaça. O de cabaça grande é conhecido como
“gunga” e emite um som mais grave; o de cabaça média é conhecido como “médio” e
emite um som intermediário, nem muito grave nem muito agudo; e o de cabaça
pequena que emite um som agudo é chamado de “violinha”. Gunga, médio e viola
alternam-se nos ritmos da capoeira Angola. Para estabelecer o contato com o fio de
arame e com isso tirar um som do berimbau utilizamos um extenso pedaço de pau
(normalmente feito da própria biriba) denominado de “baqueta”. Junto a esta baqueta
utilizamos um chocalho, o caxixi, que deve ser colocado entre os dedos na palma da
mão, para que fique chacoalhando no ritmo de nossas batidas com a baqueta. O caxixi
é feito de palha trançada, cuja base deve ter um pedaço de cabaça no formado de um
círculo, desde que sua superfície mais dura e lisa esteja disposta no interior do caxixi.
Dentro dele colocamos umas sementes pequenas e duras denominadas de “lágrimas
de nossa senhora”. Com o movimento, essas sementes tocam a superfície lisa e dura
da cabaça, emitindo um singular som de chocalho.
154
O berimbau deve ser erguido por umas das mãos, segurado e equilibrado com
os três dedos mais fracos da mão, sendo que um desses, o dedo mindinho acaba sendo
sobrecarregado do peso. O dedão (polegar) e o indicador ficam livres para segurar
uma moeda grande e grossa, mais ou menos do tamanho de uma moeda de um real,
chamada de “dobrão”. Conforme vamos batendo a baqueta no arame esticado
podemos extrair três tons distintos, conforme o encosto do dobrão nesse arame.
Conseguimos um tom mais grave e aberto quando realizamos um batida em que o
dobrão não esta encostado no arame, um tom mais agudo quando o dobrão toca o
arame de modo firme, e um som intermediário quando o dobrão toca o arame
frouxamente. O tocador também deve movimentar afastando e encostando a cabaça
no peito o que permitirá uma variação de sons mais abafados (encostado no peito) e
“aberto” quando desencostado do peito. Assim conseguimos muitas e infinitas
variações de sons do gunga, do médio e do viola. O tocador deverá aprender a
segurar e equilibrar esse instrumento e conseguir com a baqueta, o caxixi e o dobrão
executar as variados ritmos da capoeira Angola.
Segundo o dicionário de Câmara Cascudo o berimbau é um “instrumento
musical dos escravos africanos por eles popularizados no Brasil” (CASCUDO, 1988,
p. 120-121). “O berimbau não existiu somente em função da capoeira, era usado pelos
afro-brasileiros em suas festas e sobretudo no samba de roda” (REGO, 1968, p.71).
Segundo a maioria dos historiadores da capoeira, ele se popularizou nessa prática a
partir do final do século XIX e início do XX, principalmente com os capoeiras da
Bahia.
O atabaque e o pandeiro são instrumentos de percussão e exercem no rito da
capoeira a função de marcação dos compassos. O atabaque é um tambor, feito com
peles de animais estendidas sobre um tronco de árvore oca. Seu fundo redondo,
155
mantido aberto, é por onde ecoa o som. “A origem do atabaque é dada como
africana” (CASCUDO, 1988, p. 83). o pandeiro “é um aro de madeira, em cuja
altura vãos, e neles uns arames em que estão enfiadas várias lâminas de latão, ou
soalhas, que, batendo uma nas outras, quando se brande, tange, ou vibra o pandeiro,
fazem um som agudo” (BARROS, apud CASCUDO, 1988, p. 574). Existem dois
tipos, uns com pele de animal esticado no aro de madeira e um sem pele. O utilizado
pela capoeira Angola é o com pele esticada. Foi trazido ao Brasil pelos portugueses,
que o conheceram através dos romanos e árabes. O atabaque e o pandeiro funcionam
como instrumentos de marcação, e suas batidas no ritual da capoeira não permitem
muitas variações. Mas esta marcação simples é fundamental, pois indicam o tempo
todo a cadência da orquestra e dos jogadores.
O agogô e o reco-reco completam os instrumentos de percussão da orquestra
de capoeira Angola. O agogô é um “instrumento idiofone, constituído por uma dupla
campânula de ferro, que se percute com um pedaço de metal, produzindo dois sons,
um de cada campânula” (CASCUDO, 1988, p. 19). o reco-reco é um instrumento
de percussão que:
traduzem um som de rapa, causado pelo atrito de duas partes separadas. No
seu feitio talvez mais conhecido, o reco-reco consiste num gomo de bambu
com talhos transversais, friccionados com um pauzinho, (...) que na Bahia
dão o nome de ganzá (Idem, p. 665)
Nesse sentido os instrumentos de percussão, atabaque, pandeiro, reco-reco e
agogô, desempenham o papel de marcadores dos compassos dos ritmos e músicas da
capoeira Angola. Os berimbaus é que vão entoar os ritmos e suas variações, portanto,
são eles que ditam os ritmos que são marcados pelos instrumentos de percussão. Vão
assim formando a orquestra numa sincronia que mantém o ritmo afinado e propício
para a prática da capoeira. Quem toca o gunga é que comanda o tipo de toque que a
156
orquestra deve seguir. O médio acompanha o gunga, que invertendo o seu toque, e
o violinha também acompanha o ritmo, podendo variar livremente os toques.
Existem vários toques na capoeira, sendo cada um representativo do tipo de
jogo que deve ser jogado. Entre as escolas e diversos Mestres de capoeira Angola
existem particularidades quanto a esses toques, seus tipos e suas variações. O que nos
impede de afirmar neste trabalho uma dessas formas como a mais usual. Mesmo na
escola dos descendentes de Mestre Pastinha observamos alterações e ordens de toque
diversos. São os toques que, de algum modo, ditam os ritmos do jogo, sua velocidade
e cadência, assim como o tipo de jogo, mais aberto, fechado, entrecruzado (jogo de
dentro), alto ou baixo. O que faz com que o aprendiz não apenas saiba reconhecê-los
e tocá-los, mas jogue no ritmo indicado por eles.
O aprendizado da capoeira Angola deve inserir o aprendiz ao seu tempo, tanto
nos modos de confeccionar, manter e afinar os diversos instrumentos envolvidos na
arte da capoeira, quanto permitir que eles possam saber tocar todos eles. Abrir
espaços de cultivo da parte musical da capoeira é vital no seu aprendizado. Tais
espaços têm sido negligenciados em nome dos movimentos. Graças às novas
tecnologias, é possível treinar capoeira com sons gravados, levando muitos capoeiras
a desenvolverem seu jogo desconhecendo completamente a arte de tocar e ouvir as
diversas variações da orquestra.
Num depoimento a Maurício Barros de Castro e a mim, Mestre Nestor
Capoeira, que mesmo sendo de uma origem distinta da capoeira Angola, mas tendo
uma larga experiência no jogo, fala um pouco da perda do sentido do ritmo pelos
atuais capoeiras.
O que eu vejo, tanto na Angola quanto na Regional, é que ninguém ginga no
ritmo. Em 1980 estava uma loucura, tinha capoeira em todo lugar. E nas
academias de status as rodas não tinham som ao vivo, era eletrônico. Nas
academias de São Paulo os caras sabiam tocar, mas achavam brega tocar
157
berimbau durante a roda ou dentro da aula. Eles tocavam somente em casa
ou quando faziam batizado.(CAPOEIRA, 2007, p. 20)
O Mestre aponta para uma perda cada vez maior da questão rítmica da
capoeira. Poucos são os capoeiras que construíram um instrumento. A maioria
absoluta, se tem um berimbau em casa, comprou de alguém. Assim como são poucos
os que se dedicam aos toques e prestam um tempo ouvindo, cantando e tocando as
músicas da capoeira.
As academias ou escolas de capoeira Angola, diante dos fundamentos
deixados por Mestre Pastinha, buscam criar espaços para que os aprendizes de
capoeira possam experimentar toda a rítmica envolvida nesta tradição. Tal cuidado
que o movimento da capoeira Angola a questão rítmica é reconhecido até por
aqueles que não participam diretamente da Angola. Mestre Nestor Capoeira neste
mesmo depoimento diz:
Mas apesar das críticas que eu tenho da Angola, acho que uma das coisas
que ela mais trouxe foi a música. A Angola que trouxe o lance do berimbau
de volta, porque os caras estavam na eletrola. Os grupos Abada, Muzenza,
Capoeira Geraes usam três berimbaus porque viram que o negócio é forte.
Se bem que eles não tem aquele cuidado, nem organização, nem
sensibilidade no toque. (CAPOEIRA, 2007, p. 21)
Existem algumas maneiras de ensinar os toques e os ritmos da capoeira. Mas
a mais comum na capoeira Angola é aquela da tradição oral. Ou seja, aqueles que
sabem vão mostrando os toques, nomeando-os e realizando suas variações e os
aprendizes vão, do seu jeito, imitando. Esta tradição não com “bons olhos” as
separações ou especializações desse aprendizado. Nesse sentido, ensinam ou buscam
ensinar do modo antigo, sem infantilizar o aprendiz e seu ouvido. Este convive desde
o início com os instrumentos e seus toques no seu conjunto, aprendendo, no “calor”
da orquestra, a sensibilizar sua percepção e seus movimentos “de oitiva”, sem método
ou técnicas pré-definidas. Conforme cada aprendiz vai tocando, os Mestres vão
pontuando o que eles acham que deve ser melhorado. Esses exercícios são praticados
158
quase sempre em grupo e às vezes individualmente para que o aprendiz possa escutar
o que esta tocando. Na tradição da capoeira Angola são reservados as horas iniciais
dos treinos para o exercício dos ritmos, toques e cantos. Se o grupo for grande, a
orquestra fica ativa o tempo todo, alternando os seus tocadores para que todos possam
tocar e exercitar os movimentos numa paisagem mais completa de sons, toques,
cantos e movimentos. Todos são estimulados e até mesmo constrangidos a tocar os
instrumentos, buscando suas variações e também os cantos. Os aprendizes também
são estimulados a realizarem fora dos treinos a prática do ritmo. Construindo o seu
próprio berimbau, os aprendizes aproveitam as oportunidades para treinar, seja em
casa ou nos lugares que acharem melhor. Mas o que a tradição de aprendizado da
capoeira Angola ensina é que nas rodas ou nos treinos é que se aprende, o que estende
o aprendizado do ritmo para além de um domínio técnico de uma habilidade musical.
Os cantos e louvações também são importantes nos ritmos da capoeira
Angola. Existem três tipos de cantos. A ladainha é constituída por textos longos onde
os capoeiras discorrem sobre temas e assuntos próprios da tradição. Para Maurício
Barros de Castro:
Canções que abrem a roda de capoeira Angola, as ladainhas costumam
recorrer ao lamento do negro marcado por uma experiência capturada na
África e remodelada numa situação escravista. Um lamento que permaneceu
nas trajetórias futuras, pois a experiência da afro-descendência no Brasil
não se resume ao episódio da escravidão. O que permanece é um costume
antigo que se realiza no jogo, no qual os capoeiristas, agachados ao do
berimbau, a espera do momento para jogar, envoltos em um silêncio
religioso que apenas se rompe com o canto sofrido, louvam a memória de
uma arte que se expressa sobre o signo da alegria, da vadiagem, da
brincadeira e da luta. Ao narrar a trajetória do negro, a ladainha evoca deus
e santos católicos, orixás, figuras lendárias, antigos Mestres, ou ainda os
casos de repressão que se impuseram aos capoeiristas (CASTRO, 2007,
p. 103)
Nesse canto apenas um dos componentes canta sem que os demais respondam
ou imitem. No ritmo da orquestra um dos jogadores, normalmente aquele que está
tocando o gunga, puxa a ladainha. Durante a ladainha não há jogo. Todos devem estar
159
atentos para ao que é cantado, louvando e reverenciando a mensagem das ladainhas.
Uma delas criadas por Mestre Pastinha
25
diz assim:
Bahia minha Bahia
Capital do salvador
Quem não conhece a capoeira
Não lhe dá o seu valor
Todos podem aprender
General e também que é doutor
Quem deseja aprender
Venha a Salvador
Procure o Pastinha
Ele é professor
camaradinha
Ou ainda uma outra ladainha de Mestre Canjiquinha:
O calado é vencedor
Mas pra quem juízo tem
Quem espera ser fisgado, o meu bem
Não roga praga pra ninguém
A mulher é como a cobra
Tem sangue de Peçonha
Deixa o rico na miséria, o meu bem
Deixa o pobre sem vergonha
Vou dizer pra meu amigo
Que hoje a parada é dura
Quem ama mulhé dos outros, o meu bem
Não tem vida segura
Camará
As ladainhas são, portanto cantos que devem ser escutados, sem respostas ou
jogos. Imediatamente após as ladainhas entramos nas “chulas”. Estas são marcadas por
frases simples que são repetidas em coro pelos praticantes. Durante a chula também não
25
Faixa 1 do CD Pastinha uma vida pela capoeira.
160
há jogo e devemos escutá-la repetindo em coro suas frases. Mestre João Pequeno (2000,
p. 26) dá um exemplo de chula:
Que vai fazer?
Coro: Que vai fazer camarada?
Oi, oi, ô, com capoeira?
Coro: E, ê, com capoeira camará?
Oi, oi, ô sabe jogá!
Coro: Iê, sabe jogá, camará!
Oi, oi, ô joga-te pra lá
Coro: Iê, joga-te pra lá, camará!
Oi, oi, ô joga-te pra cá
Coro: Iê, joga-te pra cá, camará!
Volta que o mundo deu
Coro: Iê que o mundo deu camará
Volta que o mundo
Coro: Iê que o mundo dá camará
Imediatamente após a chula iniciam-se os “corridos” e os jogadores podem
começar o jogo.
O lamento (das ladainhas), no entanto não é o único cântico da roda. A maior
parte do ritual se desenrola através do canto dos corridos, cuja expressão
musical se dá, na sua execução, de forma bem semelhante às canções de
samba de roda baiano e das variações do partido-alto carioca (CASTRO,
2007, p. 105).
Os corridos são cantados por um solista e respondidos pelo coro. O cantador,
respeitando o enredo do corrido pode improvisar, inserindo situações presentes ou
versar segundo as tradições. Os corridos seguem a alternância do coro e do cantador.
Durante os jogos o cantador pode mudar de corrido, de preferência aproveitando as
situações do jogo, da data, da localidade e de muitos outros elementos para louvar e
comunicar suas mensagens. Entre muitos escolhemos um bastante cantado nas rodas de
Angola citado por Waldeloir Rego (1968, p. 96):
Sô eu Maitá
Sô eu Maitá
161
Sou eu
Coro: Sô eu Maitá
Sô eu Maitá
Sou eu
Puxa, puxa
Leva, leva
Joga pra cima de mim
Coro: Sô eu Maitá
Sô eu Maitá
Sou eu
Quem tive mulé bonita
É a chave da prisão
Maitá
Coro: Sô eu Maitá
Sô eu Maitá
Sou eu
Vô dizê pra meu amigo
Qui hoje a parada é dura
Coro: Sô eu Maitá
Sô eu Maitá
Sou eu
Quem ama mulê dusôtro
Não tem a vida segura
Coro: Sô eu Maitá
Sô eu Maitá
Sou eu
Ou então (Idem, p. 96-97):
Até você
Coro: minha comadre
Falo de mim
162
Coro: minha comadre
Eu não falei
Coro: minha comadre
Falo que eu vi
Coro: minha comadre
Falô de mim
Coro: minha comadre
Os corridos respeitam o formato de diálogos ou conversas que são marcadas e
respondidas pelo coro. Dentro destes cantos destacamos a importância do coro, que
deve ser de todos e buscando da melhor maneira a sintonia da roda. Os toques e os
cantos dão a dinâmica tmica de uma boa roda de Angola. O aprendiz deve, portanto,
auxiliado pelos Mestres e pelos alunos mais antigos, aprender a tocar e cantar, seja no
coro ou puxando os cânticos da capoeira.
Podemos aprender estes toques, ritmos e cantos da capoeira ouvindo em casa ou
escutando fitas e discos, mas a tradição da capoeira Angola indica que a melhor maneira
de aprender é nos treinos e nas rodas, onde o coletivo e com ele o astral do grupo ajuda
a sintonizar o ritmo, aprendendo as diversas variações e suas relações com a dinâmica
do jogo. Portanto, nos treinos e nas rodas é que o aprendiz deve se exercitar, procurando
sempre que possível pegar os instrumentos, variá-los, cantando sem parar. O
aprendizado da capoeira Angola como veremos mais à frente é marcado pela tradição e
principalmente pelo coletivo. É um trabalho do grupo, pelo grupo e em grupo.
O elemento rítmico ou estético da capoeira Angola não pode ser encarado como
mero complemento, pois nessa tradição um ritmo que ensina. Se bem realizado,
aprendemos melhor os movimentos, entendendo na prática que jogar também é dançar.
Um bom jogo deve, portanto envolver através do ritmo os movimentos floreados e
expressos com arte e sensibilidade. Sobre isto diz Muniz Sodré:
163
Na cultura tradicional africana, ao contrário, a música não é considerada uma
função autônoma, mas uma forma ao lado de outras danças, mitos,, lendas,
objetos (...) O ritmo da dança acrescenta o espaço ao tempo, buscando em
conseqüência simetrias às quais não se sente obrigada a forma musical no
Ocidente. Na cultura negra, entretanto, a interdependência da música com a
dança afeta as estruturas formais de uma e outra, de tal maneira que a forma
musical pode ser elaborada em função de determinados movimentos de
dança, assim como a dança pode ser concebida como uma dimensão visual da
forma musical” (SODRÉ, 1998, p. 21-22).
Assim, vemos que na capoeira o elemento rítmico não se reduz à música ou aos
toques dos instrumentos, mas se integra com os movimentos ou danças, formando uma
circularidade criativa. Os dançarinos vão se sensibilizando aos toques e ritmos e esses
vão indicando os passos, numa dinâmica auto-regulada. Quando Mestre Pastinha diz
que o berimbau ensina, não o faz de modo metafórico, mas no sentido real de um bom
guia, que indica os caminhos dos movimentos. Podemos perfeitamente dizer que a
dança e seus movimentos também ensinam, indicando os caminhos dos ritmos, toques e
canções. A sensibilização que envolve esses ritmos também envolve os movimentos, e
vice-versa. Preenchendo as lacunas da síncope das batidas e dos cantos surgem os
movimentos das danças, que realizados em sintonia com o ritmo com estilo e beleza,
indicam e contagiam os cantadores e tocadores na busca de inspirações. Talvez seja essa
integração ritmo-corporal um dos muitos sentidos do que nós capoeiristas chamamos de
“axé”, quando vadiamos nas rodas de Angola. Uma roda encarna o “axé” quando
tocadores, cantadores e jogadores dançam juntos numa dinâmica alegre e criativa.
Como afirma Sodré “cantar/dançar, entrar no ritmo, é como ouvir os batimentos do
próprio coração” (SODRÉ, 1998, p. 23). Diríamos é como ouvir o coração da roda.
3.4 – A magia e a ética da mandinga: um aprendizado da malícia
Coro: Oi sim sim sim Oi não não não
164
Mas hoje tem amanhã não
Hoje tem amanha não
Coro: Oi sim sim sim Oi não não não
Eu falei sim sim não não sim
Eu falei não sim sim não não
Coro: Oi sim sim sim Oi não não não
Que o negro já é livre
Ai meu bem já tem a libertação
Coro: Oi sim sim sim Oi não não não
Se você dizer que sim
Eu vou a dizer que não
Coro: Oi sim sim sim Oi não não não
Até o momento, vimos que o aprendizado da capoeira Angola deve ter o seu
entendimento ampliado para além da mera aquisição de habilidades. Nessa tentativa de
ampliação, destacamos o cultivo de hábitos e um aprendizado da atenção que desloca o
aprendiz de um lugar de total passividade, de um adequado condicionamento, de uma
atenção focada, para um cultivo de uma atenção concentrada e aberta, próxima da
posição da espreita. Vimos também que o cultivo desse hábito requer um tempo. Não do
tempo geral e abstrato do relógio, mas de uma temporalidade do evento, que varia e
dura conforme a experiência vai exigindo.
Mostramos também a importância do perder tempo, da disponibilidade do
aprendiz ao tempo da vadiação. Vimos também a importância do elemento estético no
aprendizado da capoeira Angola. Destacamos um ritmo do aprendizado no qual o corpo,
a música e os toques dos instrumentos se enlaçam numa estranha complementaridade
que não se fecha, mantendo sempre o movimento. A síncope da batida no ritmo da
Angola força o corpo a uma dança que por sua vez força o ritmo, numa circularidade
criativa. Todos esses elementos do aprendizado acabam por remeter a situações
circulares, cujo retorno não encontra o caminho inicial. Veremos agora um pouco mais
165
de perto a importância da dimensão ritualística e dos elementos mágicos e éticos na
formação do aprendizado da capoeira Angola.
A dimensão mágica e misteriosa tem um nome especifico na tradição da
capoeira Angola: mandinga. Segundo Waldeloir Rego o termo é devido a uma “região
da África Ocidental, habitada pelos povos banhados pelos rios Níger, Senegal e
Gâmbia, onde havia excelentes feiticeiros” (REGO, 1968, p. 13). Segundo o dicionário
de folclore de Camara Cascudo mandinga é um “feitiço, despacho, mau olhado, ebó. Os
negros mandingas eram tidos como feiticeiros incorrigíveis” (CASCUDO, 1988, p.
161). Esses feitiços ou mandingas eram manifestados por objetos que se transformavam
em patuás ou amuletos carregados pelos negros. Estes patuás ganhavam, através de
feitiços, poderes gicos, representando no mundo “profano” os domínios “sagrados”
do sobrenatural (antepassados mortos e os deuses).
Mircea Eliade em seu livro O sagrado e o Profano aponta para algumas
características que a experiência do sagrado forja nos povos arcaicos e “primitivos”
26
.
Mostra como essas populações vivem buscando um contacto com o sagrado, através de
suas manifestações nos eventos mundanos e profanos. O mundo sagrado precisa se
manifestar nos eventos do tempo presente através dos ritos e dos seus mitos. Sem estas
manifestações, os homens primitivos não conseguiriam se guiar no mundo natural,
transcendendo-o. Nesse sentido, quando o sagrado se manifesta, por exemplo, num
objeto, este perde suas vinculações terrenas passando a expressar os poderes atemporais
e eternos dos mundos sobrenaturais.
O sagrado precisa de eventos do mundo natural para expressar os poderes
sobrenaturais, manifestando uma transmutação. Eliade chamou tal manifestação de
26
Respeitaremos em nosso trabalho o uso do termo “primitivo”, que é assim que Mircea Eliade se
refere a esses povos antigos. Sabemos que ao longo da história da antropologia este termo foi muitas
vezes usado num sentido “pejorativo”, dando o significado de “povos atrasados”. Principalmente depois
de Levi-Strauss o termo primitivo caiu e acabou entrando em desuso. No entanto, o sentido dado por
Mircea Eliade não parece se confundir com este ligado a uma antropologia evolucionista.
166
hierofania cujo sentido é que “algo de sagrado se nos revela” (ELIADE, 2001, p. 17).
Tal manifestação pode se dar nos planos mais comuns dos objetos, pedras ou amuletos,
indo até as mais supremas formas, como a encarnação de Deus no homem Jesus Cristo.
Mas esses corpos terrenos que manifestam a dimensão do sagrado não são venerados e
adorados por eles mesmos, mas por aquilo que eles expressam. Nesse sentido, o poder
de um amuleto não é proveniente dele, mas daquilo que ele porta. Sobre isto nos diz
Eliade:
Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania, até a
mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra
coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do
meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma
pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista
profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos
olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuta-se numa
realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que m uma
experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como
sacralidade cósmica. O cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma
hierofania” (ELIADE, 1992, p. 18)
Era muito comum a utilização de amuletos ou patuás pelos angoleiros de
antigamente. Como nos mostra um corrido cantado até hoje nas rodas:
Quem não pode com mandinga
Não carrega patuá, Iaiá
Desse modo, a mandinga pode ser entendida como uma manifestação
sobrenatural ou mágica que encarna (hierofania) em objetos, templos, cidades, ou
mesmo pessoas. Estes elementos sagrados do mundo sobrenatural dispunham aos
objetos encarnados poderes mágicos. Se, por exemplo, um capoeira conseguisse sair de
uma cilada, resistir a combates violentos ou até mesmo conquistar uma mulher, esses
feitos eram logo atribuídos pelo povo aos poderes sobrenaturais das rezas ou feitiços. O
homem comum logo se torna herói e lenda nas histórias e cantos da capoeira. Mestre
Cobrinha Verde, que aprendeu capoeira com seu primo Besouro Mangangá descreve
assim os poderes da mandinga: “não era com capoeira que eu me livrava dos meus
167
inimigos. O bom capoeirista é mágico. Ele tem poder de aprender boas orações e usar
um bom breve (patuá), porque a capoeira não livra a gente de bala” (SANTOS, 1991,
p.17). E continua:
Na mandinga está o segredo da dinâmica que fazia com que o Ninguém,
Manuel Henrique virasse Besouro; Rafael Alves França virasse Cobrinha
Verde; e um capoeirista mandingueiro se transformasse num pedaço de pau,
quando estivesse apertado num ‘beco sem saída’ (idem, p. 40).
Estas místicas encarnadas nos objetos ou nas pessoas os transformam em seres
misteriosos, dotados de poderes que permitem façanhas inexplicáveis. Tais façanhas são
contadas pela cultura oral da capoeira, criando assim o universo mágico que a cerca.
Como contou Mestre João Grande num depoimento a Maurício Barros de Castro sobre
o episódio da morte de Besouro mangangá:
Besouro Mangangá, é porque prenderam ele, que se transformou num
besouro e saiu a voar, fugiu da cadeia. O carcereiro não viu ele sair, ouviu
o zum, zum, zum... que ficou o nome de Besouro. Ele tinha muita oração
forte. Mangangá é um besouro muito perigoso. Fica num toco de madeira e
se descarrega em qualquer pessoa. Quando eu cheguei a Salvador e entrei na
capoeira já tinham matado ele.
Mataram em Maracangalha, morreu no hospital. Assim Cobrinha Verde
falou. Besouro bateu no filho do prefeito de Santo Amaro. Depois o prefeito
mandou abrir sete covas para ele, ia cavando e benzendo as covas, depois
pagou uma mulher para ficar com ele. A mulher pegou o patuá dele. Quando
ele passou debaixo de uma cerca o arame cortou ele. Estava derrotado.
Tinha uma venda que ele bebia cachaça todo dia. Quatro homens foram
mandados por este prefeito para pegar ele. Quatro homens bons de facão.
Dois de um lado e dois do outro lado do balcão. Besouro botou uma cachaça
e bebeu. O outro disse: ‘Você bebe e não oferece para a ninguém que ta
aqui?’ ‘eu não, se quiser você bebe. Compra e bebe’. Eles discutiram e
jogaram cachaça no pé dele. Antigamente se jogasse cachaça no pé da pessoa
era briga. Derrubou a cachaça nos pés dele aí, pronto. Foram pra fora, os
quatro pra cima dele, facão pra cá, pra lá, mas por detrás veio um e cortou a
barriga dele com uma faca de ticum. Faca de ticum quebra qualquer
mandinga. Foi que Cabrinha Verde falou.
Ele tinha corpo fechado. Bala batia nele e caía no chão. Depois quebrou a
força. A mulher abriu o corpo dele. A faca de ticum cortou porque a mulher
abriu o corpo dele. Pegou o patuá dele... quebrou a força. Quem tem proteção
assim mulher não pode pegar. Quem tem essas mandingas não pode passar
debaixo de cerca de arame, não come mingau de tapioca, não pode passar
debaixo de vestido de mulher estendido em varal. Tem os dias certos de
dormir com mulher. Diziam que era muita mulher que ele tinha. pronto
morreu (CASTRO, 2007, p. 151).
Tal como o personagem de Aquiles em a Ilíada, Besouro era um escolhido dos
deuses, mas tinha o seu ponto fraco que, atingido, o levaria à morte. Essas histórias que
168
vão passando pela boca do povo abrem espaço para que o nosso mundo ordinário e
natural possa ser atravessado por forças sobrenaturais e misteriosas, que transcendem a
experiência comum. Tais manifestações permitem um contato entre dois mundos
distintos e opostos, num limiar, numa fronteira, num lugar paradoxal onde eles se
comunicam, efetuando a passagem do profano para o sagrado. Tirando-nos de certa
forma do tempo histórico, lançando-nos num mundo imemorial das façanhas
miraculosas.
Mircea Eliade aponta esta como sendo uma das principais funções dos mitos e
dos diversos ritos: lembrar aos homens de agora as façanhas e memórias dos homens de
outrora. Só que esses homens de outrora também só conseguiram realizar aquelas
façanhas porque, de algum modo, foram lembrados pelas façanhas de seus antepassados
e assim acabaram chegando nos mitos fundadores que remetem não aos homens, mas
aos seres atemporais, aos deuses. Dessa forma, os rituais servem não somente para nos
lembrar dos homens de outrora, como também para marcar a impotência da história ou
dos fatos ordinários e humanos diante do sagrado dos deuses; recordar os tempos
imemoriais, os tempos e façanhas dos deuses que inspiraram e deram a potência das
realizações mundanas.
Nesse sentido, continua Eliade, o tempo deve ser pensado como tempo cíclico,
como um eterno retorno aos tempos imemoriais através dos ritos de iniciação e
recomeço. Mas não se trata de um retorno histórico do tempo, de uma volta aos tempos
ou existências do passado, mas da volta a um passado que de algum modo nunca
passou. Portanto, não é o registro dos fatos que importa - se realmente a morte de
Besouro foi tal qual a narrativa de Mestre João Grande - mas o vínculo, a liga que
permite unir os feitos imemoriais aos homens do agora. Por isso os ritos e histórias
míticas marcam os mistérios e magias da vida, servindo para lembrar que o homem
169
sozinho não pode nada. A história, enquanto uma realização dos homens e para os
homens, é de algum modo desprezada nessas culturas primitivas.
um tempo complexo e paradoxal, no qual o sagrado, o imemorial, se
expressa nos acontecimentos existentes, portanto, no presente. Nesse sentido, os homens
do presente, principalmente os mais velhos e sábios, devem criar as condições, na forma
das ritualizações, para que os mais jovens possam experimentar as dimensões do
sagrado. Esses sábios não possuem um conhecimento que deve ser passado, mas,
cientes de que são os poderes místicos que ensinam e atuam no mundo natural,
reproduzem os rituais sagrados para que os mais novos possam se encontrar também
com essas forças. Não se trata apenas de um conhecimento abstrato, de histórias que
passaram e se tornaram gerais, mas de ritos e experiências que possam revelar a força
do sagrado. Os deuses e os antepassados não são apenas lembrados, contudo, de alguma
formam, retornam nos ritos para marcar o tempo, conjurando assim sua determinação
histórica. Tal condição indica uma responsabilidade dos existentes, dos homens de
agora, com a salvaguarda das tradições, sem as quais os mais novos podem esquecer de
lembrar do passado imemorial, entregando-se ao tempo histórico.
Todavia devemos atentar para a situação paradoxal dessa responsabilidade dos
homens do presente para com os ritos, já que “nessas condições, nenhum acontecimento
é considerado como puramente profano, nem fortuito, nem como dependente
unicamente das atuações do homem, por mais hábil que seja. Sempre na base uma
intervenção suposta do sobrenatural” (KAGAME, 1975, p. 33). Estranha e paradoxal
situação na qual os existentes são responsáveis, e ao mesmo tempo impotentes, para
sozinhos, ou melhor, por eles mesmos, garantir a memória e a revelação das verdades
sobrenaturais. Por mais que o tempo do aprender esteja no presente dos eventos e com
isso marcado pela singularidade e situações próprias desse tempo, os eventos não seriam
170
absolutamente nada se deixados ao sabor das casualidades e dos destinos humanos. Daí
o paradoxo: estar atento ao tempo dos eventos e as suas singularidades, sem, contudo
achar que por isso temos o seu controle.
Apenas sob a luz do tempo ordinário, linear e profano
27
seria uma estupidez ou
mesmo uma contradição pensar o tempo cíclico do retorno. Restrito à história factual,
seria o mesmo que negar a mudança ou a própria característica do tempo, que é passar.
Segundo Eliade, os modernos fazem isto quando tentam dessacralizar o mundo.
Experimentam o tempo como uma reta irreversível, como algo que passa e nunca mais
volta.
Reconhece-se como único sujeito e agente da história e rejeita todo apelo a
transcendência. Em outras palavras, não aceita nenhum modelo de
humanidade fora da condição humana, tal como ela se revela nas diversas
situações históricas. O homem faz-se a si próprio, e consegue fazer-se
completamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo.
(ELIADE, 1992, p. 165).
Mas a posição dessas culturas “primitivas”, que ainda preservam o cultivo do
sagrado, não é negarem a história, e, portanto as transformações, e sim não se
submeterem totalmente a ela. Assim, história e mito se entrelaçam num tempo circular
que retorna, num retorno ao que nunca foi história, a um início mítico. Esse
atravessamento da dimensão sobrenatural reduz as possibilidades nessas sociedades de
uma organização fundada nos eventos históricos, nos poderes dos homens de
escolherem e gerirem a vida. São sociedades que lutam contra a história.
Será que podemos entender nas manifestações mágicas dos eventos dos
capoeiras de antigamente o mesmo sentido que Eliade à hierofania dos povos
primitivos? A capoeira Angola estaria assim, na realização dos seus ritos, marcando em
nosso tempo o contacto com o sagrado do passado de nossos antepassados? Seriam
essas histórias e lendas de mistérios e feitos heróicos da capoeira uma tentativa de
27
Mircea Eliade chama de profano tudo aquilo que envolve o tempo da natureza, no qual o homem está
inserido. Tempo das ocorrências históricas.
171
manter uma tradição mágica e religiosa, através de rituais, que nos aproximam de
nossos ancestrais míticos, tornando-nos seus contemporâneos?
Sim e não. Sim porque a capoeira Angola tenta preservar liturgias e ritos dos
antigos, numa espécie de retorno ao sagrado. Tais repetições Mircea Eliade chama de
“mito do eterno retorno”. O tempo se constitui como um tempo cíclico, no qual
sempre a volta ou o recomeço da história, tal como os seres divinos viveram no começo
dos tempos.
O mito em si mesmo, não é uma garantia de ‘bondade’nem de moral. Sua
função consiste em revelar os modelos e fornecer assim uma significação ao
mundo e à existência humana. Daí seu imenso papel na constituição do
homem. Graças ao mito, como já dissemos, despontam lentamente as idéias
de realidade, de valor, de transcendência. Graças ao mito, o mundo pode ser
discernido como Cosmo perfeitamente articulado, inteligível e significativo
(ELIADE, 1972, p. 128).
Não, já que essa repetição pura e simples dos rituais e das histórias sagradas só é
compatível em um mundo “fechado” como o dos chamados povos primitivos. Como
ficariam esses ritos e mitos numa sociedade como a nossa, em que o tempo histórico e
suas transformações atingem quase todas as práticas culturais? Mais do que uma luta
tradicional e mítica contra a história profana do tempo linear e humano, a capoeira
Angola parece realizar através de outros meios seu combate; imersa em seus “jogos de
negociação e de mandinga” em que são incorporados elementos modernizantes.
Veremos agora um pouco dessa outra estratégia de resistência, inserida por dentro da
cultura moderna. E aqui nos distanciamos um pouco da experiência do sagrado que
Mircea Eliade atribui aos povos primitivos e arcaicos.
Temos tentado até agora mostrar os caminhos de transformações e manutenções
das práticas de aprendizado que a tradição da capoeira vem cultivando até os nossos
dias. Vimos como a escolarização e sua inserção nos ambientes acadêmicos marcou o
nascimento das duas principais vertentes da capoeira contemporânea. As academias de
Mestre Bimba e de Mestre Pastinha inseriram a tradição da capoeira em novos
172
caminhos e com isso desenvolveram novos modos de aprendizado. Essas mudanças
apontam para práticas que, ao contrário de repetirem os ritos e costumes da tradição
procuram inseri-los, com algumas modificações, no tempo histórico e profano, no
tempo dos homens.
Entretanto, essas inserções não ocorreram sem resistência ou sem o ilusionismo
próprios da capoeira, pois como temos tentado mostrar - no movimento da capoeira
Angola
28
, inspirada na tradição da escola de Mestre Pastinha é que junto às mudanças
modernizantes, ocorrem certos “retornos” que buscam a manutenção do contato com os
segredos dos antepassados míticos. E está a maior dificuldade desse caminho de
modernização, assim como o seu maior valor: atestar como a capoeira pode mudar
mantendo-se a mesma, ou pelo menos resistindo a se igualar a uma prática desportiva de
habilidades sociais múltiplas.
Não se trata de mero jogo de palavras, mas de uma luta. Luta que incorre em
inúmeros riscos, que os caminhos dos opostos e das dicotomias (capoeira mãe versus
capoeira contemporânea ou capoeira primitiva versus esporte brasileiro entre outras
dicotomias) são mais simples e coerentes com definições fixas e apressadas. Afirmar
que os modos de aprendizado da capoeira Angola atualmente são iguais aos modos
antigos “de oitiva” seria fechar os olhos para as transformações nas formas de
transmissão da capoeira ao longo dos anos. Desde os espaços de cultivo e treinamento
até os contextos históricos, geográficos, políticos, etc.
Se encararmos essas mudanças como os únicos dados dessa história
incorreremos no perigo de esquecer o que se fez, ou melhor, esquecer de lembrar os
28
Como já tivemos a oportunidade de dizer, na introdução e durante todo o nosso trabalho, a ênfase dada
a capoeira Angola se faz por ser ela o objeto principal de minha tese. Nesse sentido, me restrinjo a
destacar os seus modos de inserção e resistência à modernização da capoeira. Não estou de modo algum
que não tenho um trabalho mais apurado em relação aos outros movimentos e escolas da capoeira
contemporânea afirmando ser este um movimento exclusivo da capoeira Angola. E até mesmo não
tenho nem certeza, nem muito menos a ambição de fechar a discussão mesmo no interior da escola de
mestre Pastinha. Meu objetivo é suscitar um debate e me posicionar frente algumas destas questões.
173
antepassados e a importância dos seus ritos para a compreensão do que hoje somos e
fazemos na capoeira. Talvez compreensão não seja a palavra mais adequada, visto que
pode parecer uma representação, uma encenação desses ritos, o que seria absolutamente
equivocado e destituído de força ritualística; sem falar no risco de cairmos nos
saudosismos, das lembranças tristes e queixosas de tempos que não voltam mais. Daí a
força e a resistência dos ritos na capoeira.
Olhando para os capoeiras de hoje, podemos perfeitamente dizer que a mandinga
dos mistérios e poderes dos patuás, ou dos capoeiristas que de corpo fechado paravam
as balas dos policiais e matadores, desapareceu. Essa perspectiva da perda ou
distanciamento de um passado fundador pode nos levar para duas posições políticas e
eticamente perigosas. A primeira é aquela em que os novos tempos modernizantes são
saudados como modos de evolução e adequação da capoeira às questões atuais. Essa
posição é de algum modo hegemônica nas capoeiras contemporâneas. Ou então
podemos cair numa posição saudosista e até mesmo conservadora de que o trabalho da
verdadeira capoeira é retornar a um passado perdido, reencontrar suas raízes, com sua
“mãe mítica e fundadora”. Essa posição muitas vezes assumida pela capoeira Angola, e
comum a certos movimentos afro-brasileiros, podem levar a um saudosismo que parece
não combinar com a capoeira. Este saudosismo de um passado arcaico e puro que deve
ser recuperado, muitas vezes tem levado a capoeira Angola a se colocar numa posição
defensiva e purista que nos parece ser pouco mandingueira.
Nesse sentido nos parece mais interessante buscar um outro entendimento da
mandinga na capoeira que se afasta um pouco da posição religiosa e sagrada dos mitos
arcaicos para uma afirmação de uma ética da mandinga que nos leva para um novo
entendimento político da luta e da resistência dos capoeiras no Brasil. Frede Abreu em
174
seu livro a respeito da capoeira na Bahia do séc. XIX afirma que o sentido da mandinga
na capoeira nunca esteve tão atrelado à noção religiosa da\cultura africana. Diz ele:
Mandingueiro era o refinado, o rei das simulações, dos logros e truques. O
cismado. O manhoso capaz de falsear a falsidade. O que era apreciado por
jogar dominando os segredos e mistérios que o imaginário atribui ao jogo da
capoeira. O que advinha situações e para elas se preparava (com rezas e
patuás). O que preferia fazer tudo isto em segredo, como um feiticeiro, para
não dar na pinta. Nestas acepções, o feitiço da mandinga era mais valorizado
por ensinar o capoeira a lidar com estas coisas do que mesmo pelo seu poder
essencialmente, exclusivamente religioso (ABREU, 2000, P. 121)
Frede Abreu não entende que a mandinga referente às histórias de Besouro ou de
Cobrinha Verde aponte para um cenário religioso e sagrado. De algum modo a
mandinga seria um modo de ser que o capoeira tem buscado cultivar para enfrentar o
dia-a-dia, profano e ordinário, de seus problemas no trabalho, na vida pessoal, nas festas
etc., portanto, uma ética. Diferente de fazer feitiços ou rezas para fechar seu corpo ou
amaldiçoar o adversário, não havendo inviabilidade para que o capoeira,
malandramente, se aproveite das crenças do povo para assumir posições de misticismo
como Besouro e seu primo Cobrinha Verde. Frede Abreu parece indicar é que a
mandinga na capoeira do século XIX é um pouco distinta da mandinga religiosa e,
portanto, mais próxima do modo como hoje nós a compreendemos.
Muniz Sodré em seu livro A verdade seduzida aponta para o caráter duplo e
ambíguo do jogo, que as culturas negras expressam no contato com a cultura branca e
colonizadora. Ocorre uma espécie de coexistência, sem a predominância explícita de
nenhuma destas culturas.
No entanto, é preciso deixar claro que não se tratou jamais de uma cultura
negra fundadora ou originária que aqui se tenha instalado para,
funcionalmente, servir de campo de resistência. Para vieram dispositivos
culturais correspondentes às várias noções e etnias dos escravos arrebatados
da África entre os séculos XVI e XIX. Tais culturas conheciam mudanças
no próprio continente africano (...) No Brasil, as mudanças são evidentemente
mais radicais (SODRÉ, 2005, p. 92).
175
Nos espaços inicialmente proibidos e posteriormente nos espaços oficiais, o que
se é uma é estratégia ética e política de jogar com as ambigüidades do sistema
hegemônico, agindo nos interstícios da coerência oficial. Nestes interstícios são
desenvolvidas práticas mistas, que até hoje não se encaixam perfeitamente em esquemas
gerais e abstratos de classificação.
Seja nos terreiros de candomblé ou nos espaços de capoeira são mantidas as
forças das tradições afro-brasileiras encobertas e transformadas por novas formas.
Quando procuramos uma escola de capoeira acreditamos que vamos encontrar os
procedimentos técnicos e práticos de qualquer outra escola. E inicialmente é isto mesmo
que acabamos vendo. Mas aos poucos, dependendo do modo de inserção do aprendiz,
vamos encontrando diferenças importantes. A prática ou treinamento se apresentam
como formas modernas, mas nessas ainda encontramos as forças dos antigos rituais de
iniciação, “processo complexo de entrada do indivíduo no ciclo das trocas simbólicas”
(idem, p. 96). O interessante dessa força é o seu modo de persistir e encantar, pois este
contato iniciático não se dá pelo entendimento conceitual e abstrato dos significados dos
ritos. Pelo contrário há de modo implícito e velado (mandinga) uma espécie de quebra
das tentativas de redução do jogo da capoeira em formas rígidas e bem definidas. Estes
ritos e jogos de mandinga questionam:
(...) implicitamente a ordem abstrata dos valores e dos conceitos. Os
conhecimentos iniciáticos passam pelos músculos do corpo, dependem –
ritualização que são do contato concreto dos indivíduos, por intermédio do
qual o axé se transmite. Axé é força vital, sem a qual, segundo a cosmogonia
nagô, os seres não poderiam ter existência nem transformação. (idem, p. 96).
O axé enquanto um domínio de forças não pode ser reduzido às práticas
materiais da capoeira nem muito menos a um conhecimento simbólico que os
capoeiristas e Mestres possuam. Ou seja, o axé não é compreendido nesta tradição como
um domínio pessoal, seja uma conduta material, um conhecimento abstrato ou uma
moral, que possa ser de algum modo transmitido ou comunicado. Desse modo, ele
176
pode ser experimentado através das práticas ritualísticas dotadas de força e presença,
nas quais o aprendiz não observa de longe, mas participa de corpo pleno. O axé não é
um saber, mas uma força viva que encarna nos objetos e seres nos rituais. Isso não
significa que os rituais não possuam uma forma específica. Desde a organização do
espaço, dos seus elementos (instrumentos, toques e cantos), até a organização e
disposição dos capoeiristas na roda, e as diversas regras de conduta que devem ser
conhecidas e respeitadas. Chamamos esses procedimentos de liturgia. Mas estes por si
só não garantem o axé.
Quantos de nós capoeiristas participamos de rodas, nas quais, mesmo
realizando uma liturgia impecável, está não acontece. Saímos dizendo que a roda não
estava com axé. Aprendemos com essas experiências que o trabalho humano, que pode
ser controlado e planejado é importante e deve ser feito, mas não garante por si a
dinâmica e a força da capoeira. Não adianta treinar e dominar os segredos e as
habilidades da capoeira, o domínio individual de suas habilidades é muito pouco para
que o axé seja expressado. Ele ao contrário não é um poder pessoal ou sócio-histórico.
Se encarna nas pessoas e nos acontecimentos sócio-históricos, mas não se reduz a eles.
Muitas vezes a sua função é justamente a de derrubar essas falsas ambições humanas de
tudo controlar e gerir. Vimos quanto a ginga, a atenção da espreita, o tempo da vadiação
e agora a ética da mandinga “driblam” as formas fixas das habilidades sociais.
Desse modo Muniz Sodré afirma que não são os ritos, ou melhor, suas liturgias
que se destacam nas tradições afro-brasileiras, o que permite e explica as contínuas
mudanças das liturgias ao longo do tempo nas escolas de capoeira. Cada grupo, mesmo
os que se vinculam à tradição da capoeira Angola de Mestre Pastinha, constroem, de
modo particular e próprio, algumas mudanças nessas liturgias. Mas o cultivo do axé
permanece importante e inegociável. E está, para Sodré a originalidade da cultura
177
negra que consiste em ter vivido uma estrutura dupla, em ter jogado com as
ambigüidades do poder e, assim, podido implantar instituições paralelas” (SODRÉ,
2005, p. 99).
Nesse sentido a história que a diáspora negra desenvolve aqui no Brasil segue
uma “forma dissimétrica” em relação à manutenção pura da história tradicional africana,
assim como não se encaixa totalmente numa história de modernização. É isso que,
segundo nos parece, dificulta as tentativas de enquadrar a tradição viva da capoeira ou
nos modos tradicionais da cultura africana ou nos modos atuais e contemporâneos das
escolas. Tal dificuldade de adesão plena às formas puras e padronizadas, tem marcado
este modo singular e diferente de difusão, escapando ou se esquivando das definições
plenas de cultura africana ou brasileira, ancestralidade ou modernidade, criando uma
posição que é denominada por Sodré de “heterogeneidade atuante”. Heterogeneidade
porque busca fugir dos processos de homogeneização, purificação e abstração das
formas gerais e atuantes porque não se sustenta numa questão de definição ou de
conhecimento, mas numa prática ativa de resistência e atuação ética e política.
As bases dessa estratégia de combate e resistência são as dissimulações de um
“jogo das aparências”, de mandinga, nas quais as avaliações e estratégias de lutas são
definidas segundo as potencialidades da situação. Ligados a um tempo presente, das
circunstâncias, as decisões e juízos são produzidos durante o calor das disputas,
obedecem suas potencialidades, o que exige uma posição ética ligada às trocas e
negociações, num jogo de diferenças, deslizamentos, modulações, mandinga.
Nesse combate ético e político o capoeira consegue jogar segundo uma
sabedoria da ocasião e não através de um conhecimento das regras gerais de uma moral.
François Jullien em seu livro Tratado da eficácia discute os modos como o oriente,
dando destaque ao mundo chinês, pensa a noção das estratégias de guerra, de
178
diplomacia e de política. Para tanto ele constrói segundo os tratados chineses de
orientação e deliberação da guerra e da diplomacia o que ele chama de tratado da
eficácia. Entre muitas discussões ele destaca uma ética da circunstância que se aproxima
um pouco do que estamos discutindo aqui neste momento. Diz Jullien:
(...) em vez de traçar um modelo que sirva de norma a sua ação, o sábio
chinês é levado a concentrar a atenção no curso das coisas, tal como está
envolvido nele, para descobrir-lhe a coerência e tirar o proveito de sua
evolução. (...) em vez de fixar um objetivo para sua ação, deixar-se levar pela
propensão; em suma, em vez de impor um plano ao mundo, apoiar-se no
potencial da situação” (JULLIEN, 1998, p. 30).
Tal posicionamento nos interstícios impede, ou dificulta as classificações que as
formas tradicionais e abstratas de avaliação moral procuraram e ainda hoje procuram
realizar a respeito da capoeira. No passado procurou-se enquadrar os capoeira em
imagens pejorativas e definitivas dos tipos “malandros”, “improdutivos”,
“descansados”, “preguiçosos”, “incapazes” entre outros. Mas no “jogo das aparências”
os capoeiras atravessaram estes rótulos, aderindo ou negando de acordo com estratégias
bem pontuais e circunstanciais, quase sempre se divertindo e aproveitando as vantagens
e desvantagens desse lugar incomum.
Hoje estes rótulos não “colam” com tanta facilidade, porém o “jogo das
aparências” continua. O perigo pode vir de outros lugares, um pouco mais diferentes do
que o convívio com a ilegalidade, com a polícia e a marginalidade. Vemos se
destacando uma tentativa de enquadrar a atividade da capoeira como um esporte e suas
diversas conseqüências como, por exemplo, a lei aprovada no final do governo do
presidente Fernando Henrique Cardoso, que pretende restringir o ensino da capoeira aos
profissionais de educação física. A este exemplo se somam muitos outros como os que
têm sido objeto principal desta tese que é a redução do aprendizado da capoeira a uma
questão de aquisição de habilidades sociais, centrada na forma de um sujeito que
179
aprende essa prática, acabando por desconsiderar os aspectos políticos, éticos, estéticos
e ritualísticos envoltos na tradição da capoeira.
Nesse sentido, acreditamos profundamente que o aprendizado da capoeira como
um cultivo da/na tradição resiste e combate de modo envolvente e circunstancial essas
tentativas de reduções psicológicas. É interessante destacar o modo hábil com que os
capoeiras negociam com esses modos de simplificação. Ao invés de se fecharem para a
universidade, mas precisamente a de educação física, os capoeiras penetram nelas para
mostrar o quanto são legítimos os saberes de um Mestre, mesmo que este não saiba ler
uma linha. Quantos Mestres antigos acabaram recebendo títulos de doutor honoris
causa, como os próprios Mestre João Grande e Mestre Bimba (pos mortem), entre
outros. Exemplos de uma ética das circunstâncias que não fecha o movimento, nem
muito menos adere aos restos e marcas que estes vão deixando no caminho.
Pois como se explica posteriormente, ao mesmo tempo em que não se deve
cessar, durante as operações, de enganar o adversário, convém adaptar-se
constantemente a ele; se ele é tentado pelo proveito, eu o ‘seduzo’; se está em
desordem, ‘apodero-me’ dele; ou se está cheio de ardor, ‘lanço a confusão
nele’; se adota prudentemente uma atitude modesta, eu o envaideço’; ou se
está em plena forma, eu o canso etc. Posto que, em presença do inimigo, não
cesso de evoluir, não posso declarar de antemão como vencê-lo. Em outras
palavras (Li Quan): ‘a estratégia carece de determinação prévia’e é somente
‘em função do potencial da situação que ela adquire forma’ (JULLIEN, 1998,
p. 37).
Jogos de negociação em que por mais que se tenha perfeita noção do que se
quer, consegue-se lançar e dançar com as circunstancias prestando atenção não em seus
planos mas nas oportunidades para agir em sua conformidade. Tendo paciência para ver
seus efeitos, mudando suas estratégias. Lançar-se numa disputa na qual o adversário é
avaliado constantemente numa aproximação e adaptação às suas circunstancias. Não se
ganha pela força, porém levando o inimigo, de preferência dentro de e em seu
domínio, com suas regras, a agir conforme seus anseios. Conseguindo o êxito com o
mínimo de esforço e um máximo de efeito.
180
Todavia, para que a ética desses jogos de aparências possa continuar o seu
movimento, Sodré aponta para dois importantes elementos: o segredo e a luta.
O termo (segredo) vem do latim secretum, passando do verbo secernere, que
significa separar, colocar à parte. Realmente, é de separação o ato inaugural
do segredo, um ato de hierarquia daquele que sabe ‘alguma coisa’- que o
outro não sabe (SODRÉ, 2005, p. 103).
O capoeira é um fingidor. Esse entendimento aponta para o surpreendente,
aquilo que trazemos escondido, em segredo. Entretanto, esse segredo não pode ser
plenamente escondido, que seu principal objetivo não é o êxito do esconderijo, mas a
disputa que se instala no momento que alguém tenta desvelá-lo, fato que leva o jogador
a entrar no jogo. Nesse jogo vão se instaurando regras e tipos de procedimentos que
passam a circular entre os componentes, permitindo sua extensão e duração. Isso nos
lembra que o jogo da capoeira tem que ser considerado sempre em uma relação dual, na
qual o companheiro joga tentando subtrair o segredo do outro, que por sua vez joga
tentando guardá-lo. Nesse sentido o segredo impõe sempre uma relação de desafio ao
outro. Esta relação, de desafio, mantém o jogo sempre numa tensão.
Não podemos esquecer que se trata de um jogo de aparências e de ilusionismos.
Diferente de uma acepção comum e cotidiana de segredo em que seu objetivo é
decifrar o enigma chegando a verdade que se encontra por trás do segredo essa não
visa a sua revelação, mas a manutenção desse jogo. Trata-se de um jogo de aparências,
pois o nenhuma verdade ou razão por trás dos segredos. O segredo não esconde
uma verdade oculta, mas instaura uma brincadeira de jogo de ilusão. É o jogo que se
quer gerar com o segredo e não a vontade de verdade que possamos encontrar por detrás
dele.
Conhecer a regra, entretanto, não implica acabar com o segredo. A idéia
corrente nas sociedades modernas é a de que, em todo segredo, o
fundamental é o que se esconde. A modernidade, assentada na onipotência
racionalista, põe diante de si mesma a meta de uma sociedade sem segredos,
sem obstáculos à manifestação da verdade. (...) O grande imperativo da
ideologia moderna é a transparência absoluta: tudo deve ser tido, tudo deve
ser revelado (SODRÉ, 2005, p.106).
181
No jogo de esconde-esconde não há nada a ser revelado para além das
aparências, o que poderia acabar com o mistério. Daí a sua força. Manter o jogo em
movimento tal como uma criança que estando com outras não cansa de continuar
brincando, impedindo que haja um vencedor ou perdedor definitivo. Isso não que dizer
que se jogue para perder, mas que vencer ou perder não faz do jogo um bom jogo. O
adversário na capoeira é fundamental, pois sendo ele bom mandingueiro certamente o
jogo será mais rico e atravessado de maiores surpresas.
Entretanto, o segredo que aciona uma disputa é encarado também como uma
luta. Não no sentido reduzido de força e violência. A luta ainda preserva o sentido de
uma disputa, na qual a astúcia, a coragem e o humor são mais importantes do que a
força, a habilidade e a verdade. Lutar não é vencer pela força, mas duelar com ela,
provocando-a, desafiando-a, extraindo dela o máximo de efeito com o mínimo de
esforço. Sem luta a existência seria imóvel, que os seres, segundo esta tradição, estão
sempre respondendo aos desafios e às provocações. É preciso muito cuidado para não
ceder completamente às provocações, entregando “de bandeja” seus segredos. Deve-se
fazer uma luta de desafios e provocações, na qual o segredo, a “carta na manga” deve se
mostrar se escondendo, sem se deixar revelar ou se esconder plenamente, mantendo a
superficialidade de um jogo de aparências sempre em movimento. É assim que se
destaca a força ou do axé de um capoeira mandingueiro tanto na roda de Angola quanto
na roda do mundo.
Como vimos um pouco mais acima o axé enquanto força vital não se confunde
com as liturgias ou formas dos elementos contidos na roda da capoeira Angola. Não está
no golpe, no movimento ou no que quer que seja analisado em sua dimensão formal e
abstrata. Nem muito menos, se revela como um atributo pessoal ou social pertencente a
alguém ou a uma sociedade. Também não é uma atitude voluntária ou involuntária. Não
182
nasce de dentro do jogador nem é um aspecto ambiental ou social que nos condiciona
por fora. Não escolhemos ao decidirmos sermos mandingueiros, nem muito menos,
somos condicionados a sê-lo. Tal análise privilegia as formas de ação, seja do sujeito ou
do mundo social.
Para François Jullien o pensamento ocidental acaba por restringir as estratégias
militares a um culto da ação. Citando Aristóteles como um exemplo desta tradição,
Jullien afirma que para este filósofo grego há duas modalidades de ações que se
opõem; aquelas que são realizadas segundo nossas vontades e contra as nossas
vontades. Caberia então ao sujeito analisar e decidir quais ações pretende tomar,
antecipando-se ao ato, ou se render às paixões, se submetendo às condições exteriores,
reagindo às circunstâncias. Sempre ações, ativas ou passivas. Jullien continua nos
dizendo que a tradição chinesa não opõe categoricamente ação e paixão, ativo e passivo.
Na maioria das vezes os chineses deixam essa diferença indecisa. Diz Jullien:
A clivagem ativo/passivo, tal como é estabelecida em nossas gramáticas, é
demasiado estreita para apreendê-la. Porquanto o que me ‘porta’ desse modo
não é devido a mim nem tampouco é sofrido por mim, isso não é nem eu nem
não-eu, mas antes passa através de ‘mim’(1998, p. 69).
Nesse sentido entendemos que a mandinga também não é um atributo pessoal
nem não-pessoal, mas ela nos atravessa. Daí a importância dos referenciais da tradição
para impedir as reduções desse jogo de aparências a habilidades subjetivas e sociais. A
mandinga, logo, não se define por uma ação eficaz. Por mais eficiente que possa ser um
golpe, ele não garante ao seu executor um caráter mandingueiro.
Numa roda de capoeira Angola chamamos de mandingueiro aquele capoeirista
que encarna e expressa um jogo encoberto de certo ilusionismo. Um fingidor que arma
as mais diversas ciladas ao oponente, aproveitando-as para os seus golpes e
movimentos. Tal destreza não se confunde com uma habilidade atlética ou social, com
movimentos regulares e encaixados, mas com uma espécie de “pedagogia do segredo”
183
(ABREU, 2000, p.121). Atento aos movimentos o mandingueiro aproveita as situações
sem que o adversário se dê conta e realiza golpes surpreendentes, mantendo-se fechado,
guardando sempre na manga uma cartada surpreendente.
Uma estratégia muito mais política e ética do que religiosa, o mandingueiro se
recusa a responder às situações como dele se espera. Longe de ser um conformado ou
um revoltoso, o mandingueiro negocia, participa dos jogos sem com isso se mostrar
completamente. Se conforma quando necessário, porém como tudo está sempre em
movimento, esse conformismo é apenas aparente, que dele pode advir
inesperadamente uma atitude de revolta, apesar da revolta também ser sempre aparente.
Não se trata de uma posição ou qualidade pessoal, mas de estratégias decididas no calor
das disputas, atentos às oportunidades das ocasiões. Mais do que responder às
provocações o mandingueiro sabe “preparar o momento de aplicá-la, aguardar a
surpresa, esperar o adversário facilitar” (idem, p. 122). Tem atenção ao acontecimento,
calma para esperar essas oportunidades e inteligência para aproveitá-las a seu favor.
Sem falar no humor e falta de vaidade para rir também dos momentos impróprios e
pouco oportunos. A capoeira Angola uma importância vital ao cultivo dessas
disposições no aprendiz capoeirista.
Chamado de “negaça, engano ou floreio”, Jair Moura afirma que a base da
mandinga “(...) visava desnortear o oponente, enganando-o com trejeitos de corpo, de
mãos, de pés, tronco, cabeça, ou de tudo isso conjugado formando o que chamava ‘jogo
de corpo’, para atingi-lo imprevistamente, ou seja, de ‘corpo aberto’, num determinado
golpe de ataque” (MOURA apud CAPOEIRA, 1992, p. 117). No entanto, tal malícia
não depende de força, agilidade ou condição física, e sim de uma certa astúcia, uma
disposição, uma ética da circunstância.
184
Na roda da capoeira, tal como na roda da vida aquele que muito se prepara ou
fica de “bobeira” pode acabar tomando uma rasteira, perdendo o tempo do
acontecimento. Apesar da naturalidade e da espontaneidade com que um mandingueiro
desfere movimentos ilusionistas, que vão fluindo sem esforço aparente é possível pensar
o seu aprendizado ou o seu cultivo. Como então cultivar a mandinga? A pista que
seguiremos indica a impossibilidade de tratá-la como um aprendizado atlético ou físico,
bem como um conhecimento moral. Nenhum mandingueiro é reconhecido por seus
movimentos e discurso bonitos, mas por seus posicionamentos diante das
circunstâncias, muito mais ligadas a um senso de oportunidade do que a uma conduta
bem realizada. Não se trata da habilidade da rasteira ou da cabeçada, mas do como e
quando realizá-la. Estamos diante de uma ética do bem fazer, que vai além da simples
questão utilitária, do simples fazer. Essa dimensão nos traz uma outra discussão sobre o
aprendizado da capoeira Angola, pois mais do que aprendizado de uma conduta ou
habilidade trata-se de um aprendizado do sentido da conduta: de uma ética.
O domínio do sentido da conduta nos faz penetrar no mundo dos valores, das
questões que remetem ao certo ou errado, ao bem e ao mal. Normalmente este tema
recai sobre um entendimento moral, que busca compreender os princípios gerais e
comuns dos valores de uma cultura ou tradição. O moralista, de algum modo,
compreende ser necessário saber de antemão as regras ou os códigos de conduta
apropriados aos acontecimentos, para sim decidir o que fazer e de que modo. Desse
modo, um aprendiz iniciante vai se interessando e experimentando esses princípios ou
sentidos do jogo da capoeira. Depara-se com questões ou perguntas a respeito de valores
que possam nortear estas práticas: quando devemos cantar uma ladainha? É correto
pegar o berimbau com o jogo andando? Quando devemos atacar e como avaliar essas
condições? Como e de que modo devemos entrar na roda? Entre outros
185
questionamentos. Surge diante de si um mundo novo e estranho, no qual não apenas são
propostos exercícios e práticas corporais inéditos, como também brota outra atmosfera
de valores e sentidos que ele precisa entender ou compreender para poder avaliar e
decidir sua prática e ações.
Uma posição comum ensinada por uma tradição moralista é a de que, quando
desconhecemos os valores e regras de princípios de certa prática, devemos buscar
compreendê-los para aí sim agirmos. Essa tendência nos indica a necessidade de separar
a teoria da prática, os meios dos seus fins, como se pudéssemos compreender de fora,
com certa neutralidade, os fins e motivos principais da capoeira. Essa compreensão deve
obedecer a um certo afastamento da prática, numa espécie de reflexão e entendimento
anterior ao fazer. É por isso que muitos aprendizes de capoeira sentem-se impedidos de
jogar e praticar a capoeira sem a compreensão prévia de suas regras. Esses aprendizes
buscam se informar a respeito desses princípios gerais, procurando conhecer um código
de condutas. Assim muitas vezes se esquecem de se entregar às situações investigando
de modo isento e afastado, compreendê-las. Tal posição pode levá-los a um
entendimento geral e abstrato do mundo em que habitam, numa espécie de momento
reflexivo no qual se tenta compreender as diversas possibilidades antes de fazê-las. O
moralista precisa entender de fora tudo muito bem entendido para poder entrar nos
eventos e com isso se conduzir adequadamente. Diferente das crianças que brincam na
rua constituindo no brincar as regras do jogo, ou aprendendo brincando a relatividade
dessas, os moralistas acreditam que pode haver jogo se todos compreenderem de
modo claro e geral os princípios que os norteiam. Ou seja, o moralista evita ao máximo
ter que decidir ou valorar no calor dos acontecimentos.
Tal posicionamento, comum em muitas práticas do nosso mundo, encontra um
pouco de resistência no aprendizado da capoeira Angola e principalmente no
186
aprendizado da malícia. O aprendiz nunca será mandingueiro se procurar racionalizar ou
imitar a malícia. Resistente a qualquer apreensão sistemática ou racional ela não pode
ser definida como uma postura geral ou universal às situações. Munis Sodré comenta
em um livro do Mestre Nestor Capoeira a respeito da malícia, quando este diz “que a
malícia desconhece a ética” (CAPOEIRA, 1992, p. 132):
Talvez fosse mais correto dizer que a capoeira desconhece a ‘moral’, pois
ao contrário a ‘malícia’é muito ética no sentido de que ela tende à regra
fundamental para o grupo, que é navegar nos interstícios. A ética é a ordem
da grupalidade, a moral é a ordem do indivíduo (do ego), e a capoeira é
justamente aquilo que ilude o ego: você pensa que o camarada vai te chutar
em cima e ele te arrasta para baixo; você pensa que ele vai te enfrentar e ele
sai correndo (SODRÉ apud CAPOEIRA, 1992, p. 132)
E aqui se evidencia um dos objetivos principais da tese aqui apresentada, a
saber: evitar os caminhos das definições em geral do aprendizado da capoeira Angola. E
parece ser esse mesmo o espírito da malícia e do seu aprendizado. Fugir das
possibilidades de definições gerais e a priori, criando situações em que o aprendiz possa
ir cultivando uma sensibilização, um senso de oportunidade e uma calma para não cair
nas armadilhas das condutas marcadas de intenção ou regras pré-definidas. O aprendiz é
forçado pelas circunstâncias do jogo de Angola a relativizar um pouco seus estreitos e
fixos códigos morais. Percebe aos poucos que as avaliações na capoeira Angola, assim
como na vida, são marcadas pelo senso da oportunidade, do segredo e da luta. Isso não
quer dizer que não haja regras ou fundamentos na capoeira Angola e na vida, mas que
essas regras e esses princípios servem apenas para colocar o grupo em sintonia para as
improvisações e truques. Não são essas regras que garantem o jogo, mas é este que
garante que as regras se sustentem.
As regras ou fundamentos da capoeira garantem apenas a liturgia ou as formas
do jogo, colocando-o em movimento, mas é no movimento do jogo que se revela a
mandinga. O aprendiz vai descobrindo que de nada adianta um conhecimento
desencarnado das regras. Não repetimos essas regras por uma questão de obediência,
187
mas por servir de instauração litúrgica para a manifestação ritualística das forças que
são as verdadeiras professoras. Francisco Varela num belo livro em que discute o que
ele chama de “competência ética” também busca uma distinção desta em relação a uma
competência moral.
No centro deste ponto de vista (Ético) reside a convicção de que as unidades
apropriadas de conhecimento são, antes de mais nada, concretas,
corporificadas, vividas. O conhecimento é contextualizado, e a sua
unicidade, a sua historicidade e contexto, não são ‘ruídos’que impedem a
compreensão do fenômeno cognitivo na sua verdadeira essência, a de uma
configuração abstrata. O concreto não é um degrau para algo de diverso: é
como chegamos e onde estamos (VARELA, 1992, p. 17).
O aprendiz inicialmente inseguro por não conhecer as regras do jogo vai
descobrindo aos poucos que elas não existem de modo rígido e universal, como não
garantem nada. Vão sendo provocados pela malícia dos angoleiros a saírem das formas
rígidas da moral e experimentarem na vadiação a avaliar e tomar decisões encarnadas na
experiência concreta. Vão desenvolvendo uma mudança em sua atenção focada e
reduzida para uma atenção desfocada aos espaços e tempo dos movimentos. Os
movimentos da capoeira, como vimos no segundo capítulo, expressam-se em formas
circulares, que nos colocam muitas vezes de costas para o companheiro de jogo. Por
isso desde o inicio de nossos treinos somos instruídos a manter sempre o olhar no
oponente, mesmo quando estivermos de costas. Mas de modo bastante interessante o
olhar focado não consegue ser exercido, o que nos força a desenvolver um olhar
periférico.
Os aprendizes vão percebendo que não outro caminho para o aprendizado
senão aquele que se encontra encarnado nas situações. Mais do que um aprendizado de
regras, o aprendizado da malícia implica numa ambientação aos espaços da capoeira,
nos quais podemos realmente treinar nossa paciência e atenção ao acontecimento. Tais
sensibilizações, quando vêm, pressupõem experiência e tempo, sendo cultivadas nos
jogos e nas disputas que a roda da capoeira e do mundo nos oferece diariamente,
188
esvaziando o aprendiz das armadilhas da moral e de todas as amarras que o ego ou o
sujeito e suas verdades pré-definidas tendem a buscar.
Esta parece ser uma das principais características do mandingueiro. Ao contrário
de um jogador vaidoso que acredita, graças as suas habilidades e conhecimentos, poder
resolver qualquer situação, o mandingueiro sabe que o “vento que sopra lá, sopra cá”, e
mesmo que seus movimentos se realizem com êxito, esses não se devem
exclusivamente a seus poderes pessoais. Mesmo quando o jogo flui e as oportunidades
são aproveitadas devemos ainda manter a posição da espreita, atentos e disponíveis para
qualquer reviravolta.
É interessante observarmos os mandingueiros que riem e se divertem mesmo
com seus erros e quedas. Fazem isso, talvez, por saberem de modo implícito e
encarnado que o jogo de capoeira é maior do que suas pequenas vontades e desejos
individuais, visto que os êxitos e fracassos não são nunca pessoais. Eles servem,
portanto, como um aprendizado para si e para o grupo, daí sua tranqüilidade de rir
mesmo de “seus” fracassos.
Esse aspecto impessoal da mandinga aponta um pouco para aquilo que Mircea
Eliade afirma em seu livro O sagrado e o Profano. Ele mostra como as sociedades
modernas perdem o contato com o sagrado. Elas vão encarando e reduzindo os
caminhos da sociedade a esforços e conquistas unicamente pessoais e humanos. Isso
impõe uma severa e rígida responsabilização do homem com relação as suas condutas e
de seus semelhantes. Para o bem ou para o mau essa responsabilidade acaba por inflar
demais os nossos “egos”, numa vaidade e num orgulho desmedidos. O que nos acontece
de bom ou ruim acaba sendo sempre avaliado segundo nossa culpa ou por culpa de
alguém. Tanto a humildade quanto a soberba acabam recaindo sobre o mesmo ponto,
que implicam uma forma pessoal e humana de nos responsabilizarmos.
189
Entretanto, Eliade indica que, mesmo em nossa sociedade, imersa no tempo
histórico e humano, as manifestações do sagrado não deixam de nos marcar. Embora
muitas vezes possamos não temê-las, mas também classificá-las como momentos de
perda de controle; por exemplo, como quando nos perdemos em horas de conversa, ou
assistindo a um filme cujas horas não passam, ou durante uma dança em que deslizamos
sem pensar ou refletir nossas ações. Tais experiências são vistas como mágicas e
perigosas já que durante elas supostamente perdemos o controle da situação.
A grande maioria dos ‘sem-religiãonão está propriamente falando, livre dos
comportamentos religiosos, das teologias e mitologias. Estão às vezes
entulhados por todo um amontoado mágico-religioso, mas degradado até a
caricatura e, por esta razão, dificilmente reconhecível. O processo de
dessacralização da existência humana atingiu muitas vezes formas híbridas de
baixa magia e de religiosidade simiesca” (ELIADE, 1992, p. 167).
A capoeira Angola talvez, mesmo aceitando algumas mudanças da modernidade,
ainda tenha mantido em seus treinos os aspectos dos ritos. Dentre estes destacamos os
ritos da mandinga, que permitem aos jogadores não apenas experimentar esses tempos
do sagrado, como também relaxar e curti-los quando presenteados por eles. Ao
contrário de muitos outros espaços sociais, na roda de Angola é fundamental se entregar
aos ritos; desfazer-se das amarras e dos preconceitos subjetivos e objetivos que cercam
o mundo histórico. Na mandinga não somos nós que exercemos diretamente o papel
principal, mas nos colocamos a serviço do jogo, abrindo-nos à oportunidade e rindo
tranquilamente dessa gica relação. O aprendiz vai sendo levado a cultivar uma nova
postura que lhe permite atravessar com mais serenidade e sabedoria os êxitos e os
fracassos, dando e recebendo rasteiras, compreendendo que não importa ser vencedor
ou o vencido, mas a manutenção do jogo.
A importância da ritualística para o cultivo da mandinga nos parece ser capital.
Sem reduzir é claro a ritualística à liturgia. Não se trata de repetir os jeitos e trejeitos
que os angoleiros fazem, porque isso rebaixaria a prática da capoeira Angola a uma
190
encenação formalizada pouco atenta e cultivadora das forças do sagrado. É claro que
essas formas são importantes, mas não devemos restringir os ritos a elas, não obstante a
capoeira Angola ainda se mantenha como um importante espaço de resistência e cultivo
de seus ritos. O espaço de resistência, talvez, aponte um elo disso que nós inicialmente
chamamos de “mudar para permanecer o mesmo”. Até uma sociedade mais dura e
esquecida da magia e dos mistérios do mundo pode se abrir e se render a esses encantos,
quando diante de uma roda de capoeira experimenta as forças do axé expressadas nas
danças de um capoeira mandingueiro.
Nesse sentido, a maior vítima da malícia não é o principiante atabalhoado, mas o
jogador orgulhoso e senhor de si, pois é este que precisa aprender os segredos da
mandinga. Nesse ponto, a malícia ou mandinga desempenha na capoeira Angola um
papel importante em seu aprendizado. Podemos perfeitamente dizer que a malícia é um
grande professor. Aquele que consegue se encantar por ela, procurando compreender
em sua experiência e no seu tempo seus segredos, conseguirá conviver no mundo onde a
moral mais atrapalha que ajuda, podendo sem dúvida estender a nova visão adquirida
para outras situações da roda da vida.
Antes de concluirmos esse ponto do aprendizado da malícia, usaremos uma
última palavra sobre um outro aspecto também muito importante na composição dessa
descrição da malícia. Trata-se do riso, do bom humor ou da ironia. Sobre isto afirma
Muniz Sodré:
(...) a ironia, sim... a compreensão do limite, que é a risada. Tem uma frase de
um dos personagens do quarteto de Alexandria: ‘... até os 18 anos eu me
achava um gênio, até que um dia eu descobri o sorriso’. Descobrir o sorriso é
descobrir o limite. Vejo o sorriso como o esvaziamento destas identidades
que parecem sólidas... (SODRÉ apud CAPOEIRA, 1992, p. 134)
Reconhecer o mundo na forma da alegria, não levá-lo muito a sério, numa
aprovação inconteste de nossa pequenez diante das coisas e da vida, parece estar por
traz do aprendizado da mandinga. Nossa sociedade muitas vezes nesses
191
comportamentos o sinal do caos, da falta de ordenamentos, da imoralidade, da preguiça
e da irresponsabilidade desses malandros que riem e se divertem nas rodas da vida.
Apontam para eles acusando-os de improdutivos, pois não passam o seu tempo tentando
amarrá-lo em atitudes funcionais e utilitárias. Vadios e malandros que perdem o seu
tempo com práticas improdutivas e preguiçosas.
Entretanto, na roda da capoeira quem quiser ser produtivo pode esbarrar nos
risos e golpes dos mandingueiros. Tal postura pode parecer ao homem “educado” e
moralista um acinte ou uma falta de educação. Porém, ao contrário do que possa
parecer, a mandinga realiza um combate ou uma resistência às apropriações utilitaristas
que formam o ethos de certa moralidade. Mais do que uma postura inconseqüente a
mandinga é uma ética, um modo de ser, por isso cabe ao aprendiz se posicionar com
humor e tranqüilidade e, talvez quem sabe, penetrar nessa paisagem, e aos poucos
encarnar esta ética entregando-se à sadável vadiação da roda de Angola.
Na Bahia os descendentes de escravos, Mestres de terreiro, ainda hoje
comentam: ‘o branco faz letra, o negro faz treta’. ‘treta’significa estratagema,
astúcia ou habilidade na luta. Significa, para o negro brasileiro, atuar nos
interstícios das relações sociais de um modo próprio (ritualista) e oposto não
à técnica da escrita, mas à ordem humana por ela representada até agora. A
‘treta’ (outro nome para ‘jeito’, que na sociedade brasileira é uma esquiva à
rigidez das leis e dos regulamentos) faz parte da ordem das aparências, é um
jogo dos menos fortes. Mas não é um jogo infeliz, que incite à depressão ou à
passividade (por exemplo, essa passividade pós-moderna que consiste em
‘assumir’ as coisas). É algo que surge da atividade e da alegria, de jogar com
o singular, com o instante (SODRÉ apud CAPOEIRA, 1992, p. 134).
Essa ética da ocasião encarada como uma política de resistência tem sido
até aqui descrita com o cuidado de não reduzi-la a um poder pessoal. Cuidado esse que
pode levar a um entendimento perigoso, por esse aprendizado se sustentar em um
domínio social. Se salientarmos uma discussão desse teor, ela pode nos levar a uma
oposição entre comportamentos individuais e pessoais, versus comportamentos sociais.
Como temos de algum modo recusado a ênfase individualista no processo de
192
aprendizado da capoeira, poderia ser entendido que nosso ponto de ancoragem é um tipo
de psicologia social da aprendizagem. Segundo Liliana de Escóssia:
(...) psicologia social se propõe a estudar a interação social, colocando a
ênfase na análise de fatores históricos, culturais e políticos que condicionam
os processos psicossociais. A atenção aqui é dirigida ao pólo social, o que
acaba por levar alguns autores a afirmar uma supremacia do social sobre o
individual” (ESCÓSSIA, 2004, p. 01).
E esse modo de entendimento nos faria esbarrar em uma dicotomia indivíduo
versus sociedade que temos aqui tentado evitar. Tratar o aprendizado da capoeira como
uma adequação social ou individual é para o presente trabalho um perigo que deve ser
evitado e combatido. No lugar da idéia de social entendemos que o aprendizado da
capoeira é um aprendizado coletivo. E aqui devemos estabelecer algumas distinções
entre o coletivo e o social.
Uma primeira e importante diferença é a totalização porta a noção de social e de
sociedade. Tratar a capoeira como uma prática social acaba por pressupor que exista
uma entidade global abrangente O social - que “paira” sobre os indivíduos,
determinando suas práticas. a noção de coletivo pode ser compreendida como um
processo no qual as classificações totalizantes não conseguem atuar com clareza e força.
As maltas dos capoeiras
29
do século XIX, no Rio de Janeiro, não se encaixam em um
movimento social totalizante e rígido, mas deve ser visto como um domínio coletivo.
Assim o coletivo se define por um processo aberto cujas relações são estabelecidas e
negociadas. Outra importante diferença que a noção de coletivo traz é a superação dos
registros individuais e sociais como determinantes, abrindo o espaço dos
acontecimentos para um domínio de forças e não de formas. Voltaremos adiante a este
assunto quando formas falar da roda da capoeira.
29
Sobre estas formas de organização dos capoeiras do século XIX no Rio de Janeiro cf: DIAS, 2001;
HOLLOWAY, 1989 entre outros.
193
3.5 - O papel do Mestre e a roda como espaço privilegiado do aprendizado da e na
tradição
“Porque o Mestre é aquele aluno que quer aprender”
(CANJIQUINHA, 1989, p. 27).
“era eu ...
era meu mesti ...
era meu mesti maiz eu ...
nois troquemu’z idea ...
i num sei maiz ...
queinh é meu mesti ...
neinh quim é eu!
30
(canto de capoeira. In DECANIO, 1997-A, p. 25)
Temos visto até agora os diversos sentidos implicados na prática e no
aprendizado da capoeira Angola. Compreendendo a dificuldade de reduzir este
aprendizado a uma aquisição de habilidades vimos à importância da idéia de cultivo.
Cultivar como uma prática atenta às oportunidades que de algum modo vai nos
permitir uma maior sensibilização e receptividade a elementos importantes na
capoeira Angola. Vimos o quanto à noção de hábito é perigosa, visto ser atravessada
por forças reificantes e automatizantes. O hábito como uma tendência adquirida
naturalizada vai contra a abertura atenta e aberta da espreita. Por isso, tentamos
ampliar essa noção apontando para uma idéia de hábito como um processo sem fim,
de diferenciação e transformação, no qual receptividade e espontaneidade são
reciprocamente trabalhadas. Cultivar um hábito na capoeira leva o aprendiz a entrar
numa outra temporalidade, o tempo do evento, tempo de vadiação. Vimos também a
importância do cultivo de hábitos estéticos e da mandinga. Mostramos a relevância da
dimensão ritualística, na qual se expressam as forças mágicas e sagradas da capoeira
Angola. Vimos a sua dimensão política e ética de resistência, de um “jogo das
aparências”. Veremos agora outra dimensão importante e vital para a experiência do
aprendizado da capoeira Angola que é figura do Mestre. E por último traremos uma
30
“Era eu ... era meu mestre ... era meu mestre mais eu ... nós trocamos as idéias ... e não sei mais ...
quem é meu mestre ... nem quem sou eu!.
194
descrição da paisagem da roda, mostrando sua importância no cultivo da capoeira.
Mostraremos como a roda reúne de modo encarnado e vivo todos estes aspectos que
até agora discutimos.
No dicionário o termo Mestre é definido como “professor; aquele que ensina;
aquele que é versado numa arte ou ciência” (FERNANDES, 1993, p. 477). Na tradição
da capoeira o uso deste termo tem uma história recente. Ângelo Decânio Filho, um dos
primeiros alunos de Mestre Bimba ainda vivo escreveu sobre o assunto. Diz ele:
Na minha infância não se usava a palavra Mestre para o dirigente de um
grupo de praticantes de capoeira, referiam-se ao que chamamos hoje ‘roda de
capoeira’ apenas como ‘roda de fulano’ (...).
Os acadêmicos, afeitos às láureas universitárias, logo o (Bimba) equipararam
aos Mestres das escolas superiores, passando a usar o honorável título de
‘Mestre’, reconhecendo-o como catedrático da capoeira da Bahia
(DECÂNIO, s/d, p. 11 e 12)
Bimba começou a ser chamado de Mestre. Desde então, principalmente no interior
das academias de capoeira, esse modo de se referir ao capoeira “professor” se
incorporou à tradição caracterizando uma posição de hierarquia e de capacidade de
transmissão desta prática. Assim, podemos destacar o sentido acima descrito pelo
dicionário para inicialmente definir Mestre. É Mestre de capoeira aquele que por ser
versado nesta arte está autorizado a ensinar. Essa história marca um pouco o sentido da
mestria relacionado à sua prática de transmissão.
Contudo, se por um lado o ser Mestre na capoeira se aproxima daquilo que as
escolas chamam de professor, também outros sentidos para este termo nas culturas
populares afro-brasileiras. Dentre eles destacamos as referências aos Mestres de ofício.
“Título dado aos peritos trabalhadores manuais. Mestre carapina, Mestre pedreiro,
Mestre sapateiro” (CASCUDO, 1988, p.492). E aqui o sentido é o de dominar
determinados modos ou práticas de ofícios. Aquele que preserva e encarna um saber
fazer. Por isso, eram chamados pela população, em tom respeitoso, de Mestres. O
aspecto referente ao ensino e transmissão de saberes não estava diretamente ligado a
195
este sentido de ser Mestre. Estas práticas eram estendidas também aos artistas populares
que como os Mestres de ofício detinham os saberes e práticas de sua arte. Mestre de
bonecos, Mestre de viola, Mestre de reisado. Estes Mestres populares eram os
mantenedores de saberes e práticas artesanais. Eram respeitados e reconhecidos como
Mestres por dominarem com maestria todas as etapas e processos de sua arte. No caso,
por exemplo, dos Mestres de mamulengos do nordeste brasileiro, seu trabalho se
estende desde a escolha e preparação dos materiais, passando pela construção dos
bonecos, dos cenários e das histórias, indo até sua encenação.
Não separação entre aquele que sabe e aquele que faz. Tal separação é mais
comum à tradição moderna de produção e transmissão de conhecimento, na qual os que
sabem devem se dedicar apenas ao saber (abstração) e os que fazem devem se dedicar
apenas ao fazer (automatização dos fazeres). Tal cisão comum às escolas tradicionais
tem na prática e transmissão da capoeira, assim como em outras tradições populares,
uma forma de resistência. Aproximando-se disto é que temos destacado em nosso
trabalho um cultivo e transmissão dos saberes/fazeres “de oitiva”, sem método e fins
definidos. “Mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e
seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.” é frase de Mestre Pastinha escrita por
ele na entrada de sua academia no pelourinho em Salvador.
O Mestre de capoeira traz consigo essas duas acepções, pois desde o surgimento
das escolas de capoeira no início do século XX os Mestres também se apresentam como
professores, propondo técnicas de ensino e criando espaços próprios para essa
transmissão. Temos visto aqui que, por mais que estas escolas se aproximem dos
espaços escolares tradicionais, o cultivo da capoeira Angola ainda tenta manter nessas
escolas uma prática de cultivo e transmissão ligada ao sentido da mestria das tradições
populares afro-brasileiras, evitando separar o fazer dos saberes, a prática da teoria. Tal
196
característica é encontrada desde a escolha, preparação e construção, execução dos
instrumentos, cantos e toques da capoeira, até o cultivo das paisagens estéticas, éticas,
políticas e ritualísticas que envolvem esta tradição, como o cultivo dos tempos da
vadiação, dos rituais e da ética da mandinga, assim como de uma política da malícia e
da esquiva.
Dessa forma, o papel do Mestre como professor não se separa de sua posição de
capoeirista e de cuidador desta tradição. Não é possível ensinar algo que ele não viva e
cultive, conhecer e ensinar algo de modo teórico, assim como, também, o é possível
aprender de modo teórico. Ensinar e cultivar os ritos e práticas da capoeira são coisas
que não podem estar separadas. Tal afirmação requer uma mudança no papel do Mestre
enquanto cultivador/professor daquele que, nas escolas tradicionais é apenas professor.
Uma primeira e importante diferença entre esses dois tipos de aprendizado é
referente ao engajamento do professor e do aluno em relação àquilo que se ensina e se
aprende. Observamos cada vez mais em nossas escolas - não apenas de capoeira, mas do
ensino de tipo tradicional - uma atmosfera de desengajamento tanto dos professores
quanto dos alunos. Preocupados com questões formais, de preparação e criação de
técnicas de ensino que possam garantir e facilitar os resultados do aprendizado, vem-se
gerando nas escolas o que chamo de “pedagogia da infantilização”. Nesse processo, o
conhecimento é tratado como algo dado, que deve ser separado e “mastigado” para que
sua absorção pelos alunos seja facilitada. Tenho visto isto em minha prática de ensino
universitário
31
. A atenção dos acadêmicos vai sendo atraída por criação de meios e
técnicas de avaliação e transmissão do conhecimento. Vão sendo criadas apostilas,
textos didáticos e outras fórmulas de simplificação do tema. Professores e alunos vão se
31
Tenho trabalhado como professor universitário no curso de psicologia desde 1997. Passando desde
então por três universidades, duas privadas e uma pública. FAMATH - Faculdades Maria Thereza,
UNESA Universidade Estácio de e UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Atualmente
estou trabalhando apenas na UNESA.
197
acostumando com essa prática de simplificação do ensino. É usual receber pedidos de
meus alunos de psicologia para criar materiais simplificados, nos quais eles poderiam se
guiar em seus estudos. Assim a escala industrial de separação, aceleração e
desemplicação daquilo que se vivencia na escola tem sido levada a extremos.
O aluno e o professor, nesses espaços tradicionais, vão ocupando cada vez mais o
papel de retransmissor de informações gerais e simplificadas. Tal característica, me
parece, tem facilitado um certo desengajamento do aprendiz e do professor com o seu
processo de aprendizado. Viabilizando suas passagens por esse cenário escolar como se
estivessem passeando num shopping center. Num funcionamento de uma atenção
dispersa e desencarnada, prontos para a qualquer sinal dos estímulos responder
consumindo produtos prontos e vazios. É claro que nesta paisagem gélida e formal
ainda encontramos contra-exemplos, mas que de modo algum, são vivenciados como
rotineiros e comuns.
Estariam os Mestres de capoeira reproduzindo esse papel simplificador destas
pedagogias de infantilização? De saída indico que os espaços artesanais e de cultivo
dos ofícios próprios ao cultivo das culturas populares pode nos indicar pistas para
responder a essa pergunta. Nesses espaços o saber ou o conhecimento não são
considerados como algo que esteja separado da vida e das experiências cotidianas.
Não há uma tendência de separação entre o saber e o fazer, prática e teoria. Quem
quiser aprender um ofício já inicia nos fazeres. Como na tradição Bantu não há
espaço para formações discursivas descoladas do tempo dos eventos. Portanto, é na
prática, nos eventos que os Mestres cultivam suas transmissões. Uma prática
encarnada “fala” mais do que mil discursos vazios. Para tanto eles não criam espaços
ou técnicas específicas para os principiantes. Não entendem que esse ainda não possa
freqüentar os espaços tal como eles são. Não há infantilização do principiante.
198
Entendem que uma separação poderia impedir ou dificultar a sensibilização e
engajamento do aprendiz pela paisagem da tradição. Portanto, avalia-se não ser esse
o melhor meio de inserir o aprendiz nesta paisagem. Este é que deve se aproximar e
ao seu modo se engajar nos trabalhos do Mestre, acompanhando suas rotinas,
dirimindo suas dúvidas e questões durante estas práticas.
O que o aprendiz encontra do Mestre não é um cuidado especial e infantilizador,
mas um acolhimento paciente. O aprendiz não é visto como um ignorante, como
desprovido de algo, como alguém que não sabe. Tal mudança de atitude coloca o
aprendiz numa posição de ajudante e não de aluno. De saída lhe são propostos fazeres e
responsabilidades, assim como lhe é passado todo o processo. Aquele que se aproxima
dos Mestres de capoeira que ainda cultivam esta como uma prática encarnada, são
recebidos como companheiros desse cultivo. hierarquia, mas não formalidades,
pois a prática tem que ser engajadora e “quente”, afastando-se dos ambientes frios e
formais. O Mestre tenta colocar o aprendiz numa posição em que se aprende com e não
como
32
. Indicando de saída que o trabalho é muito mais ligado a uma disposição de
composição do que de domínio técnico. Não se visa a uma submissão ou domínio da
técnica, mas a um fazer com, compondo com os elementos envolvidos. Desde o trabalho
como os materiais até a realização dos ritos da roda, o Mestre vai indicando ao aprendiz
um certo cuidado de composição. Quando escolhemos uma cabaça para se compor uma
verga e gerar um berimbau, o que descobrimos é que o nosso trabalho ou cuidado não é
submeter o material a uma idéia ou forma pré-estabelecida, mas construí-lo com a
composição dessas matérias. Abrir-se para o que essas forças naturais podem nos
ensinar. Do mesmo modo podemos dizer a respeito do jogo, do canto, do tocar e de
qualquer coisa envolvida na capoeira. Como não há nestas tradições populares de
32
Sobre este tema Cf. DE BARROS, L. P. 2006.
199
aprendizado uma separação do cultivo de uma tradição e de sua transmissão, entre o
aprendizado e a produção dos saberes, o aprendiz se sente desde sempre convidado a
pertencer a uma cultura viva e atuante. Nas escolas, muitas vezes, os alunos não se
sentem construtores de algo, mas apenas reprodutores.
Esse aprender com acaba por cultivar no aprendiz a necessidade e a disposição do
engajamento nesta tradição. Mas existe uma outra importante questão envolvida nesse
aprendizado com. Aquela que aponta para o sentido da idéia de coletivo. Habitualmente
oposta à idéia de individual, o conceito de coletivo acaba sendo entendido como uma
reunião de individualidades. Neste sentido, o conceito de coletivo parece identificar-se
ao de social. Todavia, Liliana da Escóssia aponta a diferença entre eles em sua tese de
doutorado.
Partimos da constatação de que há, no âmbito das ciências sociais, em
especial, na psicologia e na sociologia, uma certa confusão entre a noção de
coletivo e a de social. Empregados freqüentemente como sinônimos
designam uma dimensão do real que pode ser apreendida através de grandes
representações como Estado, Família, Igreja, Comunidades, Povo, Nação,
Massa ou Classe, ou através do jogo de interações individuais ou grupais
(ESCÓSSIA, 2004, p. 01).
O que enfatizamos no que diz respeito ao aprendizado da capoeira como
eminentemente um trabalho coletivo não é, portanto, na direção desta oposição
dicotômica entre indivíduo e sociedade. Não nos interessa distinguir se o que fazemos é
ditado por interesses individuais ou sociais. Acredito profundamente que um bom
Mestre de capoeira não compreende essa discussão do individual e do social, do
domínio de um sobre o outro. Dizer que na paisagem de uma tradição os elementos que
lhe constituem estão imersos numa coletividade, não é o mesmo que dizer que suas
individualidades estão submetidas ao interesse do grupo ou do social. Mas é
compreender que na paisagem os elementos são comuns, estão em comunhão. A
dimensão dessa comunhão não atesta apenas uma integração física de objetos e seres,
mas uma combinação de forças. O que abre nossa atenção para além do plano das
200
formas individuais, sejam elas corpos, sujeitos ou sociedades. Aprender num coletivo é
abrir-se a uma combinação de forças pré-individuais, que estão aquém e além dessas
formas
33
, é compor na paisagem com forças estéticas, éticas, políticas e sagradas. A
noção de paisagem é interessante porque foge da idéia de palco, da representação, onde
o lugar em que se desenvolve a peça e um lugar para os expectadores na platéia.
Havendo uma tida separação entre as formas do sujeito que observa e objeto
observado. Já na noção de paisagem não elementos, formas ou forças que estejam
fora. Assim tanto o Mestre como os aprendizes compõem a paisagem da capoeira,
cultivando coletivamente com as forças naturais e sobrenaturais.
Cultivar uma experiência coletiva e encarnada na e da tradição é uma das funções
do Mestre de capoeira. Desde sempre o aprendiz é convidado a participar desse fazer,
convidado e estimulado a se engajar no processo de construção não apenas do seu
aprendizado, mas de toda a paisagem que o engloba. Tal experiência encarnada força o
cultivo de uma comunhão e pertencimento a algo. Mas pertencer não pode ser
confundido com ser proprietário ou propriedade de algo ou alguém. Pertencer se afasta
de todo e qualquer pretensão de apropriação, seja de um saber ou de qualquer outra
coisa. Essa construção ou cultivo não visa a produtos para serem apropriados e
consumidos, seja algo material como um instrumento, ou algo imaterial como um saber
ou prática. Daí o sentido de coletivo como um cultivo em comunhão engajada.
Pertencimento a algo que não lhe é próprio indica uma perda das formas subjetivas
do eu ou do sujeito. Esse sentimento de pertencimento à uma tradição Simone Weil
chama de “enraizamento(2001). Esta importante pensadora e ativista da Europa do
inicio do séc. XIX, que buscou como ninguém, a construção de uma prática política de
enraizamento de um povo, que segundo ela estava cada vez mais desenraizado. Simone
33
A respeito dessa discussão cf. ESCÓSSIA, 2004.
201
Weil nos mostrou ao longo de sua curta vida exemplos de como as práticas de
desenvolvimento do capitalismo vão produzindo o pior de todos os flagelos que um
povo pode padecer: o desenraizamento. Dentre os fenômenos que ela analisa como
práticas de desenraizamento Weil destaca o modo como o ensino e a instrução estavam
sendo desenvolvidos na Europa moderna.
O renascimento provocou em toda a parte um corte entre as pessoas cultas e a
massa; (...) disso resultou uma cultura que se desenvolveu num meio muito
restrito, separado do mundo, numa atmosfera confinada, uma cultura
consideravelmente orientada para a técnica e influenciada por ela, muito
tingida de pragmatismo, extremamente fragmentada pela especialização,
completamente desprovida ao mesmo tempo de contato com este universo e
de abertura para o outro mundo (espiritual) (WEIL, 2001, p. 45).
Simone Weil oriunda de uma família abastada, cedo se revolta com essas práticas
que provocam o desenraizamento do povo. Numa bela passagem deste mesmo livro
Weil diz de que adianta um camponês, aluno de escola primária, saber mais do que
Pitágoras - na medida em que repete que a terra é que gira em torno do sol - se ele
não se encanta mais pelo céu e pela observação das estrelas. “Esse sol de que lhe falam
na aula não tem para ele nenhuma relação com aquele que ele vê” (idem, p.45).
Continua afirmando chamar-se de instrução do povo nada mais do que uma
vulgarização de uma cultura desenraizada, depositada na memória dos jovens, na qual
“o desejo de aprender a aprender, o desejo de verdade tornou-se raríssimo. O prestígio
da cultura tornou-se quase exclusivamente social (...)” (idem, p. 46).
Mas na prática de cultivo com, que certos ambientes populares ainda preservam, o
que encontramos são modos de enraizamento. A capoeira Angola também pode e de
algum modo tem atuado como uma importante prática de enraizamento. O coletivo é
então uma comunidade composta de forças e matérias engajadas em saberes que não se
separam das dos fazeres, e nem se submetem a apropriações são fortes estratégias de
enraizamento. Buscando resistir ao modo de aprender como um consumo de uma
202
técnica de luta pessoal a fim de prestígio social, nos dedicamos ao cultivo de
paisagens, nas quais a prática da capoeira é exercida em sua integridade, imersa em
todos os seus elementos de tradição e ritualística; construindo um ambiente onde os
participantes sintam-se pertencentes a algo maior do que suas vaidades e pretensões
pessoais; vencendo a solidão e a preguiça de uma atenção dispersa, engajando-se numa
construção coletiva e solidária.
Todavia, esse trabalho não é tão simples e sua realização exige estratégias de
combate bastante sofisticadas. Descritos ao longo da tese vimos descrições e análises
dos modos como a capoeira tem evitado em suas diversas manifestações os lugares
comuns da dicotomia e da contradição, afastando-se dos purismos das definições
dicotômicas tão fáceis para o entendimento da razão e tão ineficientes nos combates das
práticas de desenraizamento. Vimos como o movimento do gingar não se reduz a uma
seqüência constante de movimentos, mas a uma composição paradoxal de movimentos e
paradas, num equilíbrio precário. Vimos como a noção de hábito pode comportar
permanência e mudança, receptividade e abertura com espontaneidade. Vimos como a
atenção não se restringe a busca de um foco, mas pode ser tratada como uma atenção
aberta e desfocada. Vimos como a experiência temporal engloba uma atenção aos
eventos e suas singularidades e também uma propensão a recomeçar e renascer. Vimos
como o ritmo e o movimento se compõem numa circularidade criativa. Vimos a
importância da ritualística e da dimensão do sagrado se encontrando com e nos espaços
profanos. Vimos a importância de uma ética e de uma política da mandinga, que atua
nos interstícios das formas prontas e dicotômicas.
Mas a resposta à questão principal proposta por este trabalho, que de algum modo,
foi sendo construída e até mesmo respondida de forma implícita e indireta, pode nesta
altura da tese, ser mais bem analisada e respondida. Como se consegue aprender
203
capoeira considerando estes elementos que compõem uma paisagem paradoxal e fluida?
Já que vimos acima que este não se reduz a uma função professoral de transmitir
conhecimentos formais, reproduzindo liturgias vazias e desenraizadoras, qual seria o
papel do Mestre de capoeira nesse cultivo da paisagem capoeirista?
Deleuze (1992) apresenta o conceito de intercessor para mostrar como a criação
(aprendizado) não é espontânea, mas se faz a partir da interferência ou transversalização
entre forças. Para tanto esse autor propõe o conceito de intercessor ou uma força
transversal que desempenha uma função falseadora. O intercessor é um falseador, não
necessariamente algo ou alguém, mas a própria experiência do encontro, o que, portanto
não pode ser antecipado nem muito menos aprisionado em formas prontas. Essa
potência do falso, que é o intercessor, segundo Deleuze, intervém onde a atitude
natural ou o senso comum tende a dicotomizar, caindo na representação (certo ou
errado, saber ou não saber, justo ou injusto, movimento ou parada, equilíbrio ou
desequilíbrio, receptividade ou atividade, atual ou virtual etc.). O intercessor falseando
instaura a hesitação de um paradoxo que prolonga a experiência e a bifurca.
Num livro, escrito por Herrigel, em que este descreve sua experiência de
aprendizado da arte oriental do tiro com arco, há uma passagem em que indaga a seu
Mestre “como o disparo pode ocorrer se não for eu que o fizer?”, “como acertar sem
mirar?”, ao que seu Mestre responde: “você crê que o que você não fizer não se fará”,
“algo atira e algo acerta”; “E eu o conseguirei?” pergunta Herrigel, ao que o Mestre
novamente responde: “Espere pacientemente o que vier e como vier!”. Notemos que as
perguntas do aprendiz induzem a uma resposta dicotômica, que de algum modo pode
fechar o entendimento em uma ou outra direção. Mas o Mestre Zen se esquiva de modo
sutil a cair nas ciladas dicotômicas que a pergunta do aprendiz induz. Não se trata de
não responder ou relativizar, como talvez ..., é possível .... ou cada um é de um jeito.
204
Mas de dar respostas afirmativas e ao mesmo tempo abertas e paradoxais. Fazer sair da
armadilha da oposição, dessa expectativa ilusória que muitas vezes nossa experiência
acaba recaindo. O Mestre Zen se esquiva das formas abstratas.
Para se ter uma noção desta “esquiva” dos capoeiras, principalmente dos
grandes Mestres, trarei a descrição de algumas situações vivenciadas por mim em
meu aprendizado na capoeira Angola, que ilustram de modo claro essas
“esquivas”. Meu grupo era formado devido a proximidade de sua sede com o
campus da Universidade Federal Fluminense (UFF) hegemonicamente por
estudantes e ex-estudantes universitários. Recordo-me que sempre ao final de nossos
treinos realizávamos conversas nas quais cada um de nós, junto ao nosso Mestre,
podia comentar ou pedir explicações sobre o treino e a capoeira. Dentre os debates
era muito comum, devido a um costume universitário, perguntas que exigiam uma
definição geral e abrangente dos diversos elementos que compõem o universo da
capoeira. Tais como “é melhor jogar fechado ou aberto?” Ou “a capoeira é uma dança
ou uma luta?” Ou “Quanto tempo é necessário para se tornar um bom capoeirista?
Ou “A capoeira é africana ou brasileira?Na maioria das vezes o Mestre e os alunos
mais antigos tentavam se esquivar de respostas definitivas que pudessem simplificar
em fórmulas claras. Mas também ficaria chato não responder ou deixar a impressão
de que tudo pode. Portanto, as respostas atravessavam o tema sem esgotá-lo.
Respostas oblíquas que forçavam os aprendizes a saírem das posições cômodas e
inseguras das fórmulas gerais, incitando-os a pensarem e refletirem nas situações
concretas, como se estivessem nos dizendo que não havia a possibilidade de antemão
de conhecer e se preparar para os eventos da capoeira. Escutávamos respostas do tipo
“Sim a capoeira é uma luta, nos ensina e defender e atacar, mas nem sempre ela é
205
isso, podendo ser uma dança, um lamento, um canto, um abraço...” ou quem não
treinar e se esforçar não será bom capoeirista, mas não basta só treinar e se esforçar”.
Para estudantes universitários acostumados a perguntas em geral e respostas
também em geral, envoltas em definições claras e extensas, confesso que muitas
vezes achei que estava sendo confundido ou enganado. Notei também, aos poucos,
que perguntas feitas por pessoas diferentes ou pelas mesmas pessoas em situações
diferentes, tinham respostas também diversas. aos poucos principalmente por
meio do convívio com os meninos e meninas do bairro, moradores dos cortiços, que
também faziam parte do nosso grupo pude perceber que a compreensão teórica e
conceitual dos elementos da capoeira mais atrapalhava que ajudava meu aprendizado.
Esses meninos, que poucas vezes tinham dúvidas profundas sobre a capoeira,
realizavam de modo encarnado os seus fundamentos, entravam e saiam das rodas,
brincavam e cantavam. Aprendiam sem muitas questões jogando e vadiando nas
rodas e treinos. Fui percebendo que havia duas maneiras de saber e aprender capoeira:
uma ligada a reflexão e abstração de fórmulas gerais, que de algum modo não
facilitava o aprendizado da capoeira Angola – e mais que isso, não era estimulada em
nosso grupo e uma outra mais silenciosa e bastante exercida, uma espécie de
saber-fazer, que para ocorrer deveria exercitar um impedimento constante e difuso
das apropriações apressadas de nossas definições globais. Esse saber-fazer encontrava
nesse domínio uma legitimidade que eu havia encontrado nas práticas de infância
dos jogos de rua.
O Mestre de capoeira assim como o Mestre Zen budista intercede sobre as formas
pessoais e sociais que podem dispersar atenção do aprendiz sobre o acontecimento no
qual ele se encontra. O Mestre quebra na própria experiência a submissão do aprendiz
às formas fixas, forçando para que o aprendiz desperte ou concentre sua atenção e
206
paciência ao tempo do evento. O interessante nesse exemplo é que o que se tira não é
uma espécie de “moral da história”, mas uma impossibilidade de fechá-la, o que nos
lança de volta para a experiência. Por isso as tarefas, corporais ou intelectuais propostas
pelos Mestres são apenas os meios, os modos para ludibriar as formas rígidas do
aprendiz. A tarefa, sua execução e seus resultados não são muito importantes. Daí o
desprezo do Mestre com os resultados práticos ou utilitários dessas tarefas. Já o
aprendiz entra querendo dominar e controlar seus eventos constituindo uma habilidade e
melhorando seus resultados. Por isso deve ser falseado. O objetivo dos Mestres não é
diretamente o êxito ou os resultados das tarefas, porém “o como” os aprendizes
aprendem. Mas se as tarefas não são encaradas como o objetivo principal desse modo de
aprendizado não como ensinar o aprender fora delas. Não se trata de um
entendimento intelectual e abstrato do paradoxo, mas de sua experimentação.
A tarefa não ensina mas é uma boa ocasião para se aprender a aprender. Tal como
vimos acima nas práticas da capoeira, as liturgias não garantem o axé, mas este se
expressa nesses eventos. Ciente de que não são as tarefas nem muito menos o seu
conhecimento que atuam como professor, os Mestres ao mesmo tempo em que as
propõem as falseiam. O Mestre não ensina, as tarefas não ensinam e muito menos um
suposto conhecimento abstrato também não. O que ensina é a força do acontecimento
ou o que chamamos de axé. De novo o paradoxo, pois o aprendizado pelo axé não pode
ser intelectual e conceitual, nem muito menos se restringe aos eventos que às vezes o
portam. De novo as crianças nos ensinam, como verdadeiros Mestres. Quando estão
jogando ou brincando elas se esmeram em suas pequenas liturgias, pequenas regras são
criadas. Mas essas regras não garantem a magia da brincadeira, elas apenas podem
iniciar ou preparar a mesma. Mas se ao longo dessa tentativa de ritualização a
brincadeira não acontecer com o acontecimento, a criança não se prende às regras
207
criadas, não se apaixona pela simples formalização da brincadeira, mudando-as se
necessário em nome da magia do brincar.
Acontecer com o acontecimento é o que devemos cultivar, aprendendo a aprender.
Por isso, como a criança, o Mestre é um falseador, já que ilude com suas proposições de
regras e tarefas, desprezando-as e até mesmo transformando-as. Como se estivessem
desligados de suas formas e ligados naquilo que elas podem ou não vir a portar. Essa
atitude intercessora marca o Mestre não pelo lugar tradicional de Mestre, mas pela
maestria, a qual não se confunde com ensinar, mas reger uma composição, como o
maestro que rege a composição dos diferentes ritmos e sonoridades a partir do qual a
música acontece e ele acontece com a música.
Nesta paisagem o Mestre não é aquele que detém um saber que por sua vez pode
ser transmitido. Ele compreende que a capoeira não pode ser aprendida ou ensinada
segundo modelos a serem imitados, visto que o que ensina é algo que atravessa esses
modelos. Assim, o Mestre cultiva fundamentalmente duas posições. A primeira diz
respeito ao cuidado com os elementos ou fundamentos da liturgia da prática da capoeira,
ciente de que são essas práticas, realizadas com cuidado e atenção, que podem vir a
encarnar o a, os planos invisíveis das forças. Mas não basta esse cuidado, pois a
liturgia não garante nada. Ele deve atuar como intercessor ou como falseador,
quebrando as amarras que podem estar impedindo aos capoeiras o aproveitamento da
oportunidade na qual essas forças invisíveis tocam o acontecimento; cultivar por
provocações e segredos uma abertura ao regime das forças, atuando na intersecção da
experiência. Como o aprendizado não pode ser garantido pelo Mestre ele cria as
situações e intercede nelas para que o aprendiz consiga se engajar no tempo dos
acontecimentos e aprender com este. Não como aprender se colocando de fora, nem
sendo colocado para dentro.
208
Estranha e encantadora prática de aprendizado. Encantamento e sedução de um
lado e falseamento e ilusão de outro. Acolhimento e abertura, cuidado e desapego. O
Mestre é assim responsável e impotente para o aprendizado. Responsável, porque tem o
cuidado de criar as melhores condições para as sementes florescerem, mas impotente
porque é só o acontecimento e a experiência que vai poder gerar as flores. Circularidade
da vida, pois como nos diz Simone Weil somente aqueles que estão enraizados podem
enraizar. O Mestre, então, cultivando esses eventos permite que seus aprendizes possam
também com ele ajudá-lo nessa tarefa. O que o Mestre de capoeira na verdade quer não
são discípulos obedientes, mas companheiros e colegas para continuarem a jogar e rir
nessa jornada de magia e segredo que é a vida.
Neste mundo não moral da história ou verdade absoluta. Nesse sentido mais do
que domínio técnico e pedagógico o Mestre tem que ter a sensibilidade da circunstância
e o cuidado para com o aprendiz. Cuidado não é proteger ou impedir este de ganhar
autonomia, mas um cuidado com os ritos da capoeira, que são eles que ensinam. É
impressionante quando em sala de aula damos uma boa aula, alguns alunos se
aproximam e relatam o quanto foi legal e contagiante aquele evento. A sensação muitas
vezes é a de que fomos encantados por forças misteriosas que se apoderam de nossa
paisagem. Não significa com isso ficar desleixado e se esquecer de cuidar da liturgia do
curso, mas de algum modo compreender que esta não garante a boa aula. Não se trata de
um poder pessoal ou uma habilidade social, porém de acontecer com o acontecimento.
O Mestre atua como um intercessor um falseador. Reconhece que a potência do
aprendizado está nas forças impessoais e mágicas expressas nos ritos. O espaço da
escola ou da academia tem que ser transformado numa paisagem propícia aos poderes
ritualísticos. Não se trata de uma igreja, já que vimos antes que o sagrado ou ritualístico
da capoeira Angola se expressa em ambientes profanos e informais. Mas esta
209
informalidade dos espaços profanos não impede de se ter um cuidado com esses
espaços. É profano por que atravessado de eventos cotidianos, de circulação de pessoas,
histórias, portanto de um mundo natural. Entretanto é sagrado porque reúne
diversidades em práticas e rituais que a integram. Desde um nome do grupo, seu
uniforme, suas cores etc. Todo esse cuidado com a liturgia recai sobre o Mestre e seu
grupo.
A verdade realizada ou enunciada, não importa, pois de qualquer modo se
colocam aquém e além da experiência, como formas a priori que servem de condição
para a aprendizagem. Ao contrário, o aprendizado da capoeira Angola, segundo os
velhos Mestres, aproveitam as ocasiões (na rua) ou tentam criar situações (na academia)
para oferecer ao aprendiz oportunidades para encontrar-se com as forças, compondo
com ela sua formação. Desse modo é muito comum notarmos nos ambientes da capoeira
Angola e principalmente em nossos Mestres sinais de resistência às definições
intelectuais, preferindo, de algum modo, os caminhos “rudimentares” dos signos que
precisam ser decifrados. Mesmo com o advento das academias e das escolas de
capoeira, e a incorporação de técnicas e teorias a respeito desta, ainda encontramos
Mestres e grupos que resistem a essa apropriação intelectual, que busca encaixar a
capoeira em modalidades e tipos de atividades distintas. Como um sabonete, a capoeira
escorrega das definições que a fecham numa única modalidade.
Mas se o Mestre atua como intercessor é a roda que consegue reunir todos esses
elementos atuando como principal espaço de cultivo de um aprendizado na e da
tradição. Os capoeiristas reúnem-se numa roda onde alguns assumem (sempre
provisoriamente) certos papéis, com exceção do papel de Mestre. Portanto, numa
roda há Mestres e aprendizes (única hierarquia) Mestre é Mestre e aprendiz é
aprendiz. Não há níveis de hierarquia entre os Mestres e entres os aprendizes, logo
210
um aluno novato é “igual” a um veterano. Não há nenhuma marca nos uniformes
(cordéis etc) que possam diferenciar isto. Esse detalhe é importante, pois, qualquer
praticante da capoeira está apto, desde sempre, a freqüentar uma roda de capoeira.
Alguns capoeiristas assumem os instrumentos da orquestra: três berimbaus com
tamanho de cabaças diferentes (sons grave [gunga], médio [médio] e agudo [viola]),
dois pandeiros, um atabaque, um reco-reco e um agogô. A orquestra se inicia e um dos
capoeiristas, geralmente pertencente à orquestra, inicia os cânticos. Neste momento, aos
pés dos berimbaus, dentro da roda, se reúnem e se cumprimentam dois capoeiristas que
irão jogar entre si. O cântico inicial é conhecido como ladainha, no qual o cantador
solitário realiza uma canção sem a participação de ninguém, todos sem exceção escutam
a ladainha, inclusive os dois jogadores agachados nos pés dos berimbaus. Ao seu fim, o
mesmo cantador inicia uma chula, cuja principal característica é a repetição em coro dos
versos cantados pelo cantador. Finda a chula iniciam os corridos, canções de letras
variadas, cujos refrões são repetidos pelo coro dos demais. Nesse momento os dois
capoeiristas iniciam o jogo. Quem está tocando o berimbau maior (gunga) comanda a
roda. É ele quem indica quando o jogo começa e quando ele termina, assim como pode
efetivar outras intervenções. Também o Mestre, esteja ele onde estiver, pode intervir.
Um observador diante da roda, impactado com a sincronia dos movimentos do
jogo, pode imaginar o trabalho e o esforço para que os jogadores atinjam tal destreza.
Para o observador, também parece que esta destreza é a aquisição de uma habilidade
sensório-motora, uma espécie de reação motora a estímulos do jogo. Nesse sentido, os
movimentos seriam um esforço para atingir determinados objetivos, tais como, dar uma
rasteira, ou proteger-se de uma cabeçada. Segundo essa perspectiva, o jogador estaria
presente numa atenção focada no resultado ou na habilidade, o tempo todo tendo que
avaliar a situação e reagir a ela, o que implica um grau enorme de esforço. O iniciante
211
tal como um observador entra no jogo dessa maneira. Seu esforço é manter-se focado
nas variáveis e procedimentos (regras), o que subsume a roda a uma prática guiada por
funções gerais: como devo cantar, tocar, ou jogar. O aprendiz age, circunscrevendo o
seu campo de ação, sempre buscando um foco específico, e deste modo, ao fim do jogo
ou da roda ele experimenta um cansaço, tanto físico, quanto mental. Assim, podemos
dizer que o aprendiz atua um pouco como quem quer entrar e participar, procurando
sempre se adequar a uma suposta situação de movimentos e sons, mas sua participação
ainda é como a de um observador desencarnado, que se esforça para aprender
movimentos e sons em geral.
A roda, encarnada de toda a tradição
34
da capoeira, sinaliza e apresenta situações
que nos forçam a sair da posição em geral e penetrarmos na experiência rica e “quente”
da capoeira. Elementos de mistério, risos, malandragem, mandinga, vão “exigindo” do
aprendiz um refinamento de sua prática. À atividade física e suas habilidades
específicas vão se incorporando outros elementos, e com eles novas formas de
engajamento e de emoção. O capoeirista é levado
35
a deslocar sua atenção, do como se
comportar para o estar atento ao espírito do jogo, liberando-se do sensório-motor e
expandindo-o, abrindo-se ao plano dos sentidos numa experiência encarnada e com a
atenção desfocada, a qual enseja o enraízamento e a surpresa acontecer com o
acontecimento.
Numa roda em Niterói, anos atrás, por exemplo, espantava a alguns principiantes
como o Mestre Moraes
36
podia ao mesmo tempo jogar e ouvir detalhes dos instrumentos
34
Nos referimos a tradição num sentido ampliado. Não se trata de um passado que pode constranger e
discriminar, mas da presença de um “espírito”, que os capoeiristas denominam de “axé”. Uma roda é
considerada boa quando esse “espírito” está presente, quando tem “axé”. Portanto a tradição não é o
retorno a um passado, mas é a própria continuação encarnada de um “espírito” que se faz presente, na
forma da própria experiência da capoeira Angola se fazendo.
35
Utilizamos aqui o verbo levar no sentido da levada de uma dança, de um jogo ou de um som, e não no
sentido do encaminhamento a um lugar pré-determinado.
36
Discípulo indireto de Mestre Pastinha. Atualmente é o líder do grupo GCAP (Grupo Capoeira Angola
Pelourinho) na Bahia.
212
da orquestra, numa atitude totalmente encarnada e plena. Para isso, é preciso treinar a
sensibilidade, deixando-se afetar por aquilo que se faz e acolher seus efeitos sobre si. Há
uma força afetiva na capoeira, assim como no tiro com arco, e essa é sua dimensão não
recognitiva ou impessoal, imediaticidade da experiência concreta e afetiva. Essa força
afetiva produz, do ponto de vista do aprendiz, uma sensibilização que engaja (dá
“onda”): pratica-se pela experiência afetiva de praticar. É pelo engajamento que o
aprendizado ocorre.
No exemplo do arqueiro Zen, a respiração o liberta das forças do ego e dos
interesses adaptativos da ação (querer acertar o alvo). Na capoeira podemos destacar a
importância de todo o ritual da roda, principalmente os sons dos instrumentos e os
cânticos que vão embalando em uma misteriosa intervenção o jogo. Sendo assim, o
“espírito da roda”, e não apenas a figura do Mestre, atua como intercessor na
experiência, rachando as representações e expectativas que o iniciante/observador
julgava serem necessárias para aprender. O tempo todo a roda falseia introduzindo o
paradoxo, como dar uma rasteira sem nenhuma intenção, ou como a capacidade do
Mestre Moraes de jogar e escutar a orquestra ao mesmo tempo.
Portanto, o salto do aprendizado é quando o aprendiz entende/fazendo que não
como saber sem sujar as mãos, estando atento à experiência da roda na qual o paradoxal
não assusta, mas persiste e insiste. O paradoxo assusta ao expectador curioso, ao
intelectual que o trata como uma questão lógica. "Amigos o corpo é um grande systema
de razão, por detraz de nossos pensamentos acha-se um Snr. poderoso, um sabio
desconhecido”(PASTINHA apud DECANIO, 1997, p. 9). É notória nesta arte a
distinção que os capoeiristas fazem entre um golpe forçado, cuja força e violência atuam
em primeiro plano e um golpe “natural e espontâneo”. Neste último, considerado um
golpe de Mestre, os capoeiristas dizem que “o oponente já ia cair”, e a rasteira só ajudou
213
o movimento da queda. Para realizar tais golpes “espontâneos e naturaisestando
numa atenção plena e desfocada. Não adianta saber tocar berimbau, cantar, realizar
golpes espetaculares se não se está entregue às situações do jogo. A roda de Angola
cultiva
37
desde o início esse espírito de experimentação de uma presença plena e
encarnada.
Presente em todos os momentos nesse aprendizado o Mestre atua, mas, nem
sempre sua atuação ou presença é percebida. Ciente de que o espírito da capoeira”,
enquanto uma experiência viva é o lugar onde se aprende, o Mestre muitas vezes atua
garantindo as condições mínimas para que o “axépossa acontecer. Tal como na vida,
na capoeira qualquer vantagem é impossibilitada àquele que entra na roda com a
expectativa de enfrentar uma situação pré-estabelecida. Tudo é capoeira, e por isso não
podemos nos preparar antecipadamente. O Mestre vai ambientando os aprendizes nestas
situações estranhas e paradoxais no se fazendo da própria capoeira, falseando suas
expectativas e representações. A quebra de tais mediações coloca o aprendiz na relação
imediata de uma prática efetiva e essa relação imediata é a própria experiência na qual
não distinção entre sujeito e objeto, ou, entre quem aprende e o que é aprendido:
“Sua habilidade se revela no momento em que a mão, dominadora incondicional da
técnica, executa e torna visível a idéia que naquele exato momento está sendo criada
pelo espírito, sem que haja qualquer distanciamento entre a concepção e a realização”
(HERRIGEL, 1977, p. 96).
Nem sempre quem treina buscando estar de antemão preparado para o jogo é um
bom capoeirista. Sem garantias de que esse “espírito” se presentifique, intervém como
uma espécie de maestro da orquestra. Atua como um provocador, instigando quando a
“axé” ainda não aconteceu. É importante distinguirmos o provocador daquele que se
37
Ressaltamos a diferença entre cultivo e exercício. O exercício é marcado pela atenção aos resultados, ao
comportamento. Já o cultivo é marcado pela atenção à experiência encarnada.
214
julga responsável, como aquele que sabe. O espírito da capoeira não pertence a
ninguém, nem mesmo a um Mestre. O que podemos fazer é iniciar o ritual e permanecer
atentos, abertos à experiência. Tal como um surfista ou um piloto de asa delta, que
aproveita as ondas e os ventos, o capoeirista também é levado pelas ondas da roda.
Esses casos de aprendizado da capoeira Angola e do tiro com arco no zen budismo
são intercessores para pensarmos o que é aprender. Dessa forma, dão expressão para
questões que estão em ressonância direta com a posição deleuziana discutida acima. O
ponto principal que buscamos desenvolver aqui foi o da experiência como eixo para o
aprendizado e a virada na colocação do problema que ele implica, o qual deve ser
colocado do ponto de vista do aprendiz e não do ponto de vista de quem ensina ou de
um observador intelectual. Do ponto de vista do aprendiz a ênfase deve ser posta no
aprender e não na aprendizagem submetida ao aprendido e aos resultados. O aprender
não é pessoal e nem circunstancial, não está amarrado a práticas “frias” (métodos e
técnicas), mas está ligado à experiência de uma tradição impessoal, ao “espírito” da
capoeira.
215
Conclusão
Durante esse percurso colocamos alguns temas e problemas referentes ao
aprendizado da capoeira Angola. O que nos permitiu desenvolvê-los e agora extrair
algumas conclusões. É claro que como todo final de roda, esta conclusão não fechará de
modo definitivo nenhum dos assuntos propostos. Assim, uma primeira e importante
observação a respeito deste trabalho é a necessidade cada vez mais premente de nos
voltarmos para as experiências concretas e encarnadas de nosso povo. Conforme contei
na introdução, meu interesse pela capoeira se iniciou através de um grupo de capoeira
Angola em Niterói. Narrei sua relevância assim como algumas de suas singularidades.
Depois de alguns anos de afastamento dos treinos e da capoeira, resolvo voltar como
pesquisador a tratar do tema. Do projeto, que foi apresentado em outubro de 2003 até a
presente conclusão se passaram 4 anos de idas e vindas. Inicialmente ligado a uma
tradição de capoeira Angola, minha visão era restrita a esse lugar, me levando muitas
vezes a desconsiderar as outras diversas formas de capoeira. Ao longo da tese, através
dos textos, da pesquisa de campo e principalmente através da participação do Inventário
como Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio do Brasil, me foi permitido ampliar
conhecimentos e ver por meio da prática a riqueza e variedade do universo da capoeira.
Deste modo, um desfecho que me parece pertinente é a circunscrição deste
trabalho numa visão singular e própria a respeito do aprendizado da capoeira Angola. Se
permanecesse mais dois meses rodando este país, certamente a resultado seria outro. Tal
constatação ao contrário de restringir o universo deste trabalho me parece indicar sua
riqueza e diversidade. Por isso, ao contrário de obter uma compreensão cada vez mais
geral do aprendizado da capoeira, o que tal experiência de engajamento me propiciou
216
foi uma abertura e um encontro com modos singulares e locais, que vistos com cuidado
e calma indicam estratégias próprias no que tange ao aprendizado. Mergulhar e ampliar
nossas pesquisas a respeito de algo não nos colocou no caminho do geral e abstrato.
Então, como primeira conclusão esta tese permitiu compreender que o mundo da
capoeira é amplo e diversificado, e mesmo dentro da perspectiva da capoeira Angola o
que encontramos nas diversas localidades e grupos não nos autoriza falar em capoeira
Angola como uma unidade geral.
Se em relação à capoeira Angola esse perigo de generalização e formalismo
corre o risco de acontecer, o que dizer da área especifica da psicologia da aprendizagem,
de onde falo como professor e como pesquisador? Marcada por uma prática hegemônica
de pesquisa experimental de método quantitativo, a maioria dos trabalhos de
aprendizagem visam a encontrar, a partir de experimentos, formas e leis gerais. Visam,
com isso, o controle e a previsão dos meios para atingir os fins desejados. Desse modo,
outra conclusão importante deste trabalho é referente a necessidade de suscitar nos
pesquisadores em psicologia da aprendizagem a vontade de construir novas formas de
metodologia de pesquisa, que de algum modo tragam a inspiração, a beleza e a
implicação com o objeto de estudo como formas de engajamento e expressão. Permitir
ao pesquisador sair dos lugares rígidos que sua posição de saber às vezes o coloca, indo
na direção do seu campo problemático, se transformando com ele, descobrindo-se com
ele, abrindo-se à rica e encantadora experiência da pesquisa encarnada.
Vimos como na tradição da capoeira Angola os modos de aprender, desde os
tempos antigos, estão vinculados a um cultivo de uma experiência ampla e
contextualizada, e não um treinamento de habilidades. No cultivo de uma tradição
existem tarefas, mas essas não são vistas como o que mais importa no aprendizado. As
tarefas e os seus resultados não surgem como figuras num fundo descontextualizado,
217
mas como modos de integração do aprendiz nos espaços e tempo do cultivo de suas
tradições. Não aprende capoeira Angola quem desempenha bem certas tarefas, porém
aquele que se mistura e se engaja com os cuidados desta prática. Nesses espaços os
produtos ou fins cedem o seu acento ao caminho ou processo. Tanto o ponto de partida
quanto o de chegada são esquecidos e desconsiderados. O aprender como é substituído
pelo aprender com. Não há outro fim senão a manutenção dessa circularidade que
retorna sempre de modo diferente. O tempo do aprendizado na tradição é o tempo dos
eventos e do retorno dos ritos de iniciação, que voltam justamente para impedir o seu
fechamento, reiniciando assim, de novo o processo circular. Aprender capoeira Angola
como cultivo da e na tradição força a desconstrução do tempo técnico dos resultados,
abrindo ao aprendiz uma experiência com o tempo circular e criativo dos recomeços.
Outra conclusão importante é o modo ou a forma com que a tradição da capoeira
Angola tem mantido essas práticas num mundo hostil e refratário a esses rituais.
Descobrimos ao longo deste trabalho aquilo que Sodré chamou de “forma dissimétrica
de uma heterogeneidade atuante” cujas tradições afro-brasileiras conseguem resistir às
formas hegemônicas, sem com isso cair nos saudosismos tradicionalistas. A mandinga
como prática política de “negociação” transversal e intersticial, permite a realização de
um jogo de aparências, no qual a capoeira vai incorporando alguns formados novos e
modernizantes, tornando-se aceita e próxima de práticas escolares tradicionais. Mas tal
aproximação pode apressadamente ser considerada como uma adesão plena a esses
modos de aprender e ensinar.
Vimos aos poucos, durante a tese, que a capoeira ainda mantém, de modos
diferentes, o modo antigo de aprender “de oitiva”, cultivando a atenção de espreita, de
um tempo dos eventos, de seus rituais e de toda uma tradição. Esse modo de resistência
é, segundo nos parece, uma das grandes contribuições que a capoeira pode dar para
218
pensarmos uma política de resistência que não recai nos maniqueístas dos juízos morais
de certos movimentos sociais, como se houvesse duas posições possíveis: ou a
adesão à modernidade ou a manutenção dos rituais em sua pureza. Tais perspectivas têm
colocado o pensamento político num conflito entre os puros e os pragmáticos. De um
lado, aqueles que tudo criticam por ver nos novos eventos a perda de um passado
glorioso e puro, nos quais o futuro nada mais pode ser do que o resgate do passado
perdido, o que muitas vezes tem colocado os movimentos sociais numa posição
defensiva e sectária. Por outro lado, existem aqueles que diante dos acontecimentos e de
suas mudanças não veriam necessidade de uma resistência política, já que tudo se
resumiria em modos de adequação e adesão às formas atuais. Nesse pragmatismo
haveria uma espécie de fim da história, perda da perspectiva de mudança e
transformação. Diante dessas duas posições, absolutas e puras, a capoeira tem realizado
uma política de resistência que ludibria essas definições simples, escorregando e criando
caminhos próprios e engajados.
Nessas novas práticas de resistência a política desloca-se para as avaliações e
considerações dos espaços minoritários ou das chamadas lutas locais, em que os
critérios ficam mais próximos do nosso cotidiano. A tradição da oralidade típica da
capoeira facilita tal modo de realizar essas lutas, pois acabam por desconsiderar a
história como o domínio dos fatos, relativizando suas determinações. Pertencer a um
contexto histórico acaba por nos restringir, através dos rótulos sociais, a ver o
verdadeiro domínio da política, ou seja, o plano das forças. A história acaba por reduzir
a política ao plano das formas e de suas significações rígidas, fazendo-a recair a termos
moralizantes e sectários. Para de algum modo fugir desses moldes duros da história a
capoeira Angola tem cultivado uma ética da malícia. O ser mandingueiro não é outra
219
forma, portanto uma moral, mas um jeito de realizar avaliações engajadas e locais,
possibilitando uma maior mobilidade e resistência.
Como vimos na roda da capoeira, os praticantes procuram penetrar numa
disputa paradoxal, num jogo de aparências no qual as posições dicotômicas e
formalizadas são evitadas. Atentos a essa dinâmica das forças, o capoeira meio que
suplanta as formas dicotômicas, atravessando situações paradoxais, como a de um
equilíbrio precário, de uma continuidade descontínua, de uma espontaneidade receptiva,
de um golpe de defesa que é também de ataque, de uma repetição da diferença, do
mostrar se escondendo, do cair levantando etc. Tal forma de resistência política
pressupõe o cultivo de uma ética da malícia.
Vimos também a dimensão do sagrado ou da ritualística na tradição da capoeira
Angola. Onde os ritos devem ser encarados como modos de atingir ou manifestar as
forças sagradas ou aquilo que está aquém ou além do plano histórico e determinista. Da
mesma maneira que no candomblé, no qual os participantes atuam como cavalos” dos
orixás, os rituais da capoeira também portam um domínio de mistério e magia,
representado pelas figuras dos antepassados. Porém, tais dimensões não são expressas
em domínios fechados dos espaços religiosos. A capoeira não é uma religião, o que
possibilita sua transição por espaços profanos, como as escolas, academias, praças,
festas e universidades. Assim, essa tradição traz consigo um estranho modo de
manutenção das forças do sagrado numa troca com os espaços profanos, reservando a
magia do sagrado às manifestações mais simples e cotidianas, como, por exemplo, tocar
um instrumento, cantar uma ladainha ou realizar um movimento. Entretanto, se essa
estranha maneira de ritualização abre as manifestações do sagrado para os espaços
profanos da história do dia-a-dia, a capoeira corre o risco de acabar por reproduzir esses
ritos apenas nas suas formas, mantendo apenas suas liturgias. É muito comum vermos
220
angoleiros ao do berimbau, realizando os comprimentos, sinais de cruz, louvando o
berimbau, os Mestres e os antepassados apenas de modo formal, repetindo uma liturgia
ou apenas sua exterioridade. Tal redução acaba por criar as apropriações folclóricas que
ao contrário de manifestar as forças sagradas acabam por reduzi-las a modos antigos e
fora de contexto. Essa folclorização encaminha os ritos para formas exóticas e sem
sentido, pois representam aquilo que não somos. Esses perigos é que vão exigir do
Mestre uma posição destacada e vital nesse cultivo da capoeira.
O Mestre como aquele que segundo a tradição da capoeira reúne todas as
condições de preservação e cultiva essa, não reúne os atributos de um professor
tradicional. Desse modo uma das mais importantes conclusões do presente trabalho é
justamente o deslocamento, a partir do exemplo da capoeira, do sentido de ser Mestre.
Vimos como a capoeira tem se aproximando das formas tradicionais de ensino e
aprendizado dos espaços escolares, o que muitas vezes acaba por circunscrever a figura
do Mestre à de um professor, como aquele que sabe e, portanto pode ensinar. Nessa
paisagem própria das tradições escolares o professor assume o lugar e o papel de saber.
Cabe a ele, diante de suas virtudes e conhecimentos pessoais, ensinar. O professor é o
que ensina. Na capoeira, segundo vimos, a noção de Mestre se aproxima bem mais dos
chamados Mestres de ofício ou dos Mestres das artes, que a cultura popular brasileira
tão bem nos presenteou e presenteia de exemplos. Uma diferença importante dessas
duas maneiras de ser Mestre é o modo como são encarados os aprendizes. Como é a
escola e os professores que sabem, o aprendiz acaba sendo considerado alguém
destituído de saber. O que o aprendiz traz, suas origens e história devem ser
desconsideradas, pois muitas vezes podem dificultar sua prática de aprendizado.
uma espécie de “infantilização” do aprendiz, que deveria se deixar levar por práticas
específicas e destituídas de sentido, como se no final viessem a entender que
221
realmente está aprendendo. Os mestres de ofício, ao contrário, recebem o aprendiz e sua
história, aproveitando essas singularidades em sua inserção na prática. Assim, parece
que para estes Mestres não são eles que ensinam mais a própria prática é que vai
ensinar.
Mas de que tipo de prática estamos falando? Ao contrário da prática como um
aplicação da teoria, ou de uma execução de um planejamento teórico, a prática é vista
pelos Mestres da capoeira como o único e real lugar. Assim os Mestres não enchem os
aprendizes de aulas teóricas ou preparatórias da prática da capoeira, mas recebem desde
o início o aprendiz dentro de suas rotinas próprias. Não havendo necessidade de separar
teoria e prática, espaços de aprendizagem e espaços de atividade. Aprendiz e Mestres
devem conviver sem nenhuma redução da rotina destes fazeres. O aprendiz é convidado
a aprender com e não como.
Nesse convívio rico e localizado o aprendiz vai aos poucos sendo apresentado e
convidado a experimentar os fazeres, os materiais e elementos desta prática. Junto a
esses aspectos são contadas histórias, realizadas discussões, nas quais o que vai sendo
privilegiado não é um saber ou instrução teórica, mas um saber fazer, uma sabedoria. O
aprendiz vai aprendendo a cultivar, preparar e realizar todos os elementos das liturgias
da capoeira. Desde a escolha e manipulação dos materiais, instrumentos, cantos, roupas,
espaços, comidas etc. até suas ritualizações. Como uma espécie de guardião destas
liturgias o Mestre vai criando nestes aprendizes o interesse e a necessidade de cuidar
desses fazeres. Assim o aprendiz vai se sentindo cada vez mais atraído, engajando-se,
tornando-se pertencente aos domínios antes estranhos e desconhecidos.
Todavia, ainda outra função bastante importante do Mestre no aprendizado
da capoeira. Vimos neste trabalho os perigos da folclorização, da redução desses fazeres
a habilidades pessoais, afastando-se dos domínios mágicos e sagrados da capoeira.
222
Assim, como cabe ao mestre zelar pelas liturgias, propiciando aos aprendizes a
experiência rica desta tradição, também lhe é dada a tarefa de impedir as apropriações
equivocadas em que muitas vezes a capoeira acaba recaindo. Estas são de novo, os
perigos das formas prontas e dicotômicas. Capoeira é esporte? É uma habilidade social
que cada um de nós tem que desenvolver numa competição e disputas pessoais? Contra
as apropriações reducionistas das formas gidas e excludentes o Mestre usa o artifício
do falseamento. O Mestre, conforme define Deleuze, é um intercessor, falseando as
formas prontas e dicotômicas do estar certo ou errado, da capoeira ser luta ou dança,
lenta ou rápida. Quando diante das oportunidades os aprendizes caem nestas
simplificações cabe ao Mestre interceder, falseando. É interessante que essa intercessão
tem que ser muito bem realizada, o que coloca o Mestre em uma abertura e
disponibilidade para com as oportunidades. Todas as intervenções que mexem com
valores também podem acabar caindo nas formas dicotômicas da moral da história; por
isso os Mestres não se aproveitam dessas situações para ensinar uma moral da história,
mas realizando-as junto aos acontecimentos, aproveitam essas oportunidades para
acontecer com o acontecimento. Agem como um falseador, impedindo as conclusões
definitivas, o que acaba por impulsionar o aprendiz a resolver problemas e
responsabilizar-se com as ocasiões.
Desse modo me parece que a principal função do presente trabalho é combater
as formas gidas da aprendizagem das habilidades que têm sido bastante hegemônicas
numa certa psicologia do esporte. Para elas o aprendizado reincide em uma apropriação
pessoal e individual, de certas habilidades. Reduzidas a uma aquisição pessoal o
universo da capoeira, e por que não de outras práticas, esquece completamente das
questões políticas, éticas, estéticas e ritualísticas, como se a capoeira fosse
simplesmente certos modos descontextualizados de habilidades, nos quais se
223
centralizasse a questão do seu aprendizado a problemas individuais e pessoais, da
maneira como no futebol os louros e os fracassos são pessoais. Dessa forma, perde-se a
dimensão coletiva e impessoal em nome de certo individualismo. Foi por isso que
escolhi, por exemplo, a noção de hábito para opor a de habilidade. Ciente de que tanto
uma como a outra podem ser tratadas de vários aspectos, escolhi a noção de hábito
porque vejo neste um pouco mais de impessoalidade e contextualidade do que na noção
de habilidade. É muito mais recorrente falarmos em habilidades como sendo uma
propriedade pessoal, parecendo haver no hábito uma dificuldade maior de atribuir à
pessoa sua apropriação.
Portanto, o que podemos tirar desse percurso pelo aprendizado da capoeira
Angola como um cultivo na e da tradição, é justamente esse caráter político e ético de
deslocamento do tema da aprendizagem. Das perspectivas individualizantes e ligadas a
apropriações pessoais para um aprendizado coletivo e impessoal, no qual aprendemos
na pequena roda da capoeira aquilo que acontece na grande roda da vida, a cultivar e
cuidarmos em coletivo de nossas tradições. Mais do que as apropriações históricas e
pessoais, das escolas ou tipos de capoeira o que vimos é que a capoeira é uma paisagem
em movimento, e o seu aprendizado também deve ser construído em movimento.
224
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