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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DIRCE FERREIRA DA CUNHA
CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE...É DIFERENTE NO FILHO ADOTIVO?
Rio de Janeiro
2007
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II
DIRCE FERREIRA DA CUNHA
CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE...É DIFERENTE NO FILHO ADOTIVO?
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio
de Janeiro como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Psicologia.
Orientador: Prof. Dr. Ued Martins Manjud Maluf
Rio de Janeiro
2007
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III
CUNHA, Dirce Ferreira
Construção da Subjetividade...É Diferente no Filho Adotivo? /
Dirce Ferreira da Cunha. Rio de Janeiro, UFRJ /CFCH/IP 118 p.
Tese (Doutorado em Psicologia)
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Psicologia, 2007.
Orientador: Ued Martins Manjud Maluf
1.Adoção. 2. Sujeito. 3. Subjetividade. 4.Filiação. 5. Diferença.
6. Psicanálise.Teses
I. Maluf, Ued Martins Manjud (Orient.)
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.
III.Título.
IV
DIRCE FERREIRA DA CUNHA
CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE...É DIFERENTE NO FILHO ADOTIVO?
Rio de Janeiro,........29...de.julho..........de 2007
Prof. Dr. Ued Martins Manjud Maluf
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Dr.Carlos Américo Alves Pereira
Universidade Federal do Rio de Janeiro
ProfªDrª.Lidia Levy
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Francisco Ramos Farias
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Profª Drª. Stella Luiza Moura Aranha Carneiro
Universidade Estácio de Sá
V
Agradeço àqueles que, nos diferentes momentos deste estudo e,
posteriormente, na sua realização, permitiram que ele chegasse a termo:
Ao Prof. Ued Martins Manjud Maluf pelo acolhimento, compreensão e
orientação.
À Prof.ªMaria Luiza Assumpção Lo Presti Seminério e Franco Lo Presti
Seminério (in memoriam) pela cultura,oportunidade e dedicação.
Aos professores do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia da
UFRJ, o agradecimento pela generosidade.
À Prof.ª Lidia Levy pela leitura sempre atenta de meu texto, pelo
apontamento de problemas e reconhecimento de soluções. Agradeço por seu
rigor e generosidade.
Aos colegas do Doutorado e em especial, ao colega e amigo Júlio Cesar
Mello D”Amato que com a afetividade das profundas amizades, “empurrou-me”
ao longo do processo de construção do trabalho.
Aos participantes das entrevistas que com suas histórias de vida,
possibilitaram este estudo e com os quais aprendi muito, principalmente
nas lições de amor. A eles meu carinho especial.
Aos colegas e alunos de Universidade Estácio de pelo incentivo e pela
torcida.
E finalmente, a todos aqueles que embora não estejam nomeados um a um,
sabem que um caminho, ou parte dele, foi trilhado em conjunto.
VI
“...nenhum indivíduo nasce homem, mas constitui-se e se
produz como tal, dentro do projeto de humanidade do
seu grupo social, num processo contínuo de passagem
da natureza para a cultura, ou seja, cada indivíduo, ao
nascer, vai sendo construído e vai se construindo
enquanto ser humano.”
(DAYRELL, J., 1999,p.141)
VII
À memória de meu pai
de minha mãe
de meu tio
Por me terem dado a oportunidade de construir minha trajetória.
A meu filho
Luís Antonio
Ao meu filho de coração
Ian, que com sua chegada me levou a refletir
Ao sempre amigo
Dilson
Pela presença e pelo estímulo.
VIII
RESUMO
Para que haja adoção, é preciso abandono. Partindo-se desse pressuposto, no presente estudo,
discute-se a complexidade da construção do sujeito, daquele que diferentemente exibe em sua história
mais uma separação. Um bebê não gerado por uma barriga própria, sem a marca da herança genética,
sem a marca do corpo se constitui psiquicamente da mesma maneira do que o filho biológico? Está em
pauta o sujeito como lugar da construção da subjetividade com seus desejos, sua relação com os outros
e com a própria vida. Abordamos, segundo vários autores, falhas, marcas e traumas como fenômenos
típicos da primeira infância, para depois apreciar na criança adotada a ocorrência do trauma cumulativo,
sempre dando relevância ao adotado pela privação física e psíquica que sofreu, sua gestação e sua
relação com os pais adotivos considerados como fatores determinantes das diferenças. Priorizamos,
também, o campo familiar em nossa busca incessante da diferença. Aprecia-se a filiação simbólica e a
transmissão psíquica como processos que garantem a estruturação familiar, qual seja, dar a uma cria
humana o lugar de filho. Como aporte teórico toma-se o discurso psicanalítico fora do setting analítico,
utilizado, inclusive, na compreensão e interpretação dos dados fornecidos pelos oito entrevistados
adotados no primeiro ano de vida e que evidenciam marcas, hoje, no discurso adulto. Pondera-se a
travessia de cada um. Não temos a pretensão de abordar o suficiente do tema, das diferenças na
construção da subjetividade do filho adotivo. Porém, se a psicanálise não admite um ponto de
acabamento, tampouco, o permite o assunto que agora investigamos.
PALAVRASCHAVES: ADOÇÃO, SUJEITO, SUBJETIVIDADE, FILIAÇÃO, DIFERENÇA E
PSICANÁLISE.
IX
ABSTRACT
So that there is an adoption, it’s necessary an abandonment. Believing in this firstling, in the present
study, the complexity of the subject’s construction is discussed, the construction of someone that
differently exhibits in his history one more separation. A baby no generated by na own belly, without tht
mark of the genetic inheritance, without the mark of the body is constituted psychically in the
same way of the biological son? We meet the subject as the place of the construction of the subjectivity
with his desires, his relationship with the other ones and with his own life. We approached, using several
authors, fissures, marks and traumas as typical phenomena of the first childhood, for appreciating later in
the adopted child the occurrence of the cumulative trauma, always giving relevance to the adopted for the
physical and psychic privation that he suffered, his gestation and his relationship with the adoptive fathers,
considered as decisive factors in the differences. We prioritized, also, the family field in our incessant
search of difference. It is appreciated the symbolic filiation and the psychic transmission as processes that
defend the family structuring, giving to this human created a son’s place. As theoretical contribution is
taken the psychoanalytic speech out of the analytical setting, used in the understanding and interpretation
of what is said for the eight interviewed adopted in the first year of life and that evidence marks, today, in
the adult speech. It’s considered the crossing of each one. We dont’t have the pretension of approaching
what wold be enough in this theme, in the differences in the constrution of the adopted son’s subjectivity.
However, if the psychoanalysis doesn’t admit a point of finish, either, it allows the subject that now we
investigate.
KEY-WORDS: ADOPTION, SUBJECT, SUBJECTIVITY, FILIATION, DIFFERENCE AND
PSYCHOANALYSIS.
X
SUMÁRIO
CAPÍTULO PÁGINA
I INTRODUÇÃO.......................................................................................9
II DO SUJEITO DO DESEJO À COMPLEXIDADE DA
SUBJETIVIDADE.........................................................................................14
2.1 Desejo inconsciente como determinante do “sujeito”.................................18
2.2 Sujeito e o outro..........................................................................................21
2.3 Falhas, Marcas e Traumas da Primeira Infância........................................28
2.3.1 Freud e a ansiedade original....................................................................31
2.3.2 Melanie Klein – Relação primária mãe/bebê prejudicada........................35
2.3.3 René Spitz – Formação da relação mãe/bebê no primeiro ano de vida..38
2.3.4 Donald W. Winnicott – Falhas na preocupação materna primária...........44
2.3.5 Margaret S. Mahler – Dificuldade da separação-individuação.................52
2.4 Trauma cumulativo da adoção ...................................................................58
III FAMÍLIA NA CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE DO FILHO
ADOTADO................................................................................ 63
3.1 Desejo de filhos............................................................................... .......66
3.2 Desejo de família.....................................................................................71
3.3 A transmissão psíquica na família do adotado........................................76
IV REFLEXÕES SOBRE ADOÇÃO..................................................................89
4.1 Conflitos ou problemáticas na adoção..........................................................92
4.2 Favorecimento advindos da adoção............................................................97
4.3 As diferenças...no diferente........................................................................103
V CONCLUSÃO...........................................................................110
REFERÊNCIAS.........................................................................115
ANEXO.......................................................................................120
XI
XII
CAPÍTULO I – INTRODUÇÂO
O que é inelutável é que somos postos no mundo por mais
de um outro, por mais de um sexo, e que nossa pré-história
faz de cada um de nós, bem antes de nascermos, o sujeito de
um conjunto intersubjetivo, cujos sujeitos nos têm e nos mantêm
como servidores e herdeiros de seus “sonhos de desejo
insatisfeitos”, de seus recalcamentos e de suas renúncias, na
malha de seus discursos, de suas fantasias, de suas histórias.
(KAËS, R. 2001, p.13)
Para que haja adoção, é preciso o abandono. Houve um rompimento, uma
separação, uma perda. Há um lugar que lhe é oferecido pelo grupo que o acolhe. O que
é oferecido à criança nos termos do contrato de vida, o que lhe é proposto, é um lugar a
ocupar, é uma carga a assumir, permitindo-lhe adquirir este lugar que a funda.
Em se tratando de adoção, cada situação é excepcional, cada experiência é
singular, cada trajetória é inteiramente única. Foi o tema porque nos apaixonamos. Traz
consigo controvérsias, questões e vivências carregadas de emoção. Além de
destacarmos o grande número de publicações, observarmos a falta no que se refere à
pesquisa científica, especialmente no estudo de acompanhamento longitudinal. Como
afirma Levinzon (2000), é surpreendente que os estudos psicanalíticos sobre a adoção
sejam tão esparsos na literatura. E quando existem, focalizam problemas nos filhos
adotivos como dificuldades de aprendizagem, sociopatias, distúrbios psicomotores e
emocionais. Conseqüentemente se trata, em geral, de sujeitos que já se tornaram
“pacientes” em tratamento psicoterápico ou psicanalítico. A maioria dos autores latinos
consultados atenta para o grande número de publicações acerca da adoção em nosso
meio, sem, contudo, nos contemplar com o aprofundamento do tema. O que, segundo
2
Caramuro (1990), pode estar refletindo os preconceitos e tabus que a sociedade
mantém sobre a abordagem do exercício não biológico da maternidade/paternidade.
Observa-se, além do silêncio significativo que envolve o tema, a falta de
formulações teóricas em trabalhos apresentados que permitam abrir discussão técnica,
principalmente segundo nossa pesquisa quanto à formação da subjetividade dos
adotados. Acreditamos ser a dificuldade de se fazer pesquisa, a falta de uma cultura de
pesquisa nessa área, ainda nova do conhecimento científico, o pouco espaço oferecido
pelas instituições legais e, as reduzidas informações sobre a dinâmica da família que
adota. São exemplos da complexidade para que os sujeitos e os processos de adoção
sejam abordados num setting diverso do consultório.
Uma outra questão que percebemos é a não existência de estudos longitudinais
em nossa literatura para melhor compreensão do processo de adoção. Pretendemos,
assim, abordar a construção da subjetividade do filho adotado, portador de um
“romance familiar” ampliado. A adoção pode provê à criança de um lar permanente e
uma boa base social, segura, que vai ao encontro de suas necessidades básicas. Da
mesma forma, a adoção também pode satisfazer as necessidades da família adotante
que desejou uma criança, mas que não pode se comprometer com o nascimento de um
filho biológico. Entretanto vamos abordar as diferenças, o que foge ao comum, tanto em
relação à criança adotada quanto aos pais adotivos. Ainda, diversos personagens
fazem parte do processo de aquisição de filiação quando não uma ligação biológica
direta. Em nossa tese, usaremos o referencial psicanalítico, tanto para a abordagem do
adotado como da família que adota. Consideramos, antes de tudo, que a psicanálise é
uma clínica do sujeito, de um sujeito que não pode se perceber como tal. A hipótese do
3
inconsciente supõe um sujeito que não é senhor de si próprio. Uma parte dele escapa.
O que o sujeito sabe, não deve afastá-lo do que ele ignora de si mesmo e, para chegar
à dimensão subjetiva, a atenção deve incidir sobre o que não pode ser dito.
Procuramos o nascimento subjetivo, para além das leis do organismo. Sabemos
que não nos humanizamos sozinhos. O sujeito surge do ser vivo por intermédio da
operação da linguagem, que passa pela anterioridade do Outro do simbólico. Trata-se
de situar o nascimento subjetivo a partir do Outro primordial. Pela linguagem somos
levados além das leis do organismo, além dos determinantes biológicos. De todo modo,
é isso que a psicanálise tenta explorar, pensar, explicitar; ela visa a uma teoria do
sujeito e das condições de sua assunção. Sem a dialética que implica, também, aquele
que está diante do sujeito, não emergência subjetiva possível. Sujeito é, pois, a
essência da subjetividade humana, no que ela tem de universal e singular.
O sujeito que abordamos não é, pois, o momento da subjetividade filosófica, ele é
o sujeito efetivo, totalmente penetrado pelo mundo e pelos outros.O conflito importante
a esse respeito não é somente entre pulsões e realidade, mas entre pulsões e
realidade, de um lado; a elaboração imaginária no interior do sujeito, de outro lado.
Em várias perspectivas, a subjetividade e, particularmente, a construção da
subjetividade do filho adotado é considerada, neste trabalho, pela ótica de diferentes
autores, como Freud (1915), Lacan(1956) , Klein (1959), Winnicott (1956), Aulagnier
(1979), Spitz (2000) e Mahler (2002).
De autores mais modernos como Giberti & De Gord, (1991), Puget e Berenstein
(1994), Dolto (1998), Kaës (1998) , Correa (2000), Levinzon (2000), Hamad (2002),
Ducatti (2003), Inglez-Mazzarella, T. (2006) e outros, utilizaremos as contribuições
4
teóricas para discutir a grande questão da possibilidade da constituição diferente dos
filhos adotados em relação aos filhos biológicos.
A compreensão a que queremos chegar sobre a subjetividade dos adotados situa-
se na encruzilhada de múltiplas abordagens psicanalíticas em seus amplos discursos.
Procurando o permanente movimento entre a teoria e a clínica, e considerando
esta, como o alargamento das fronteiras da compreensão e do conhecimento das
questões levantadas em nossa tese, utilizamos como ponto de referência o período de
zero a um ano, e em certas ocorrências, até as influências pré-natais, tendo como
conseqüência as possíveis marcas na vida adulta.
Para ilustrar algumas questões teóricas, utilizamos entrevistas com oito pessoas
adotados. Todos adotados durante o primeiro ano de vida.
O estudo é assim apresentado: do sujeito do desejo à complexidade da
subjetividade, onde procuramos compreender a diversidade de tais conceitos na
constituição do sujeito adotivo; o desejo inconsciente como determinante do “sujeito” -
desejo que nunca se apaga, que não é satisfeito, que é uma realidade psíquica e que é
da ordem do simbólico; sujeito e o outro sujeito que pode ser pensado na relação
com o desejo do outro. A criança desejada , precisa ser reconhecida, não importando,
inicialmente em nosso estudo, se esse outro é a mãe biológica ou adotada. Pensamos
na construção da subjetividade diferente diante de acontecimentos produzidos ou
percebidos de modo diverso por outro, no caso a mãe adotiva; falhas, marcas e lacunas
na ótica de diversos autores, possíveis de ocorrerem na construção do caminho do filho
adotivo; e trauma cumulativo na adoção a perda da mãe biológica, sentida e pensada
na adolescência ou na vida adulta como colapso do papel da mãe, como escudo
5
protetor. A família na construção da subjetividade... do filho adotivo , a apreciação da
participação da família na construção do sujeito como ponto de partida, determinando a
transmissão psíquica, destacando a importância da dimensão intersubjetiva, da
presença e da ausência do Outro e de suas qualidades na constituição do sujeito,
particularmente no adotado. Por último, as reflexões sobre a adoção onde vamos
procurar as diferenças e semelhanças entre filhos biológicos e filhos adotados,
considerando traumas que possam ocorrer e visando a uma consciência maior e
prevenção de distúrbios na vida adulta. Terminando ou tentando terminar, procuramos
amarrar, como o jangadeiro necessita amarrar diversas toras de madeira para construir
sua jangada, necessitamos também amarrar todos os conceitos, reflexões, questões
sempre na busca de possível diferença...nos diferentes.
6
CAPÍTULO II – DO SUJEITO DO DESEJO À COMPLEXIDADE DA
SUBJETIVIDADE
Alguma coisa é” significada para o sujeito”, como diz
freqüentemente Lacan. Mas o que lhe é significado,
o que se sujeita à lei do significante, ou seja, o
significado do significante é o desejo e a castração.
(JURANVILLE,1987,p.47)
Sujeito e Subjetividade são conceitos que vêm sendo definidos por grande
quantidade de autores pertencentes a vários referenciais teóricos e estes nem sempre
chegam a explicar claramente seu significado.
Rycroft (1975) afirma: “Todos os trabalhos psicanalíticos, mesmo os mais
abstratos, versam em última análise sobre determinada pessoa, que é o sujeito
sendo todas as outras pessoas mencionadas os objetos dele.”(p. 228)
Sujeito é, pois, a essência da subjetividade humana, no que ela tem de universal e
singular.
Em psicanálise, Sigmund Freud empregou o termo, mas somente Jacques Lacan,
entre 1950 e 1965, no âmbito de sua teoria do significante, transformou o sujeito da
consciência num sujeito do inconsciente ,conforme Roudinesco e Plon (1998,p.742).
Embora na concepção freudiana o sujeito ocupe um lugar central entre os
elementos irredutíveis que definem a compreensão psicanalítica do homem, o tema
aparece implícito nos escritos de Freud. O processo pelo qual o sujeito se constitui é de
natureza dialética e envolve a noção de que o sujeito é criado e sustentado (e, ao
mesmo tempo, descentrado de si mesmo) por meio da inter-relação dialética entre
7
consciência e inconsciente. A teoria da subjetividade envolve a formação de um
conceito de sujeito no qual nem o consciente nem o inconsciente detêm uma posição
privilegiada um em relação ao outro, ambos coexistem numa relação mútua de criação,
preservação e negação (segundo OGDEN, 1996).
A concepção do sujeito de Lacan (1966), diferente da expressa por Freud -
embora existam áreas de convergência em seu percurso conduziu-nos a da “pessoa”
até o “sujeito” e, em seguida, até o “sujeito do inconsciente”.
Tentaremos abordar nosso objeto de estudo pelo viés da Psicanálise, trabalhando
com a subjetividade, sempre visando a uma abordagem específica: a subjetividade do
filho adotivo.
Quem é este sujeito para a Psicanálise e para a nossa grande questão? E como
se desenvolve a estrutura psíquica do sujeito adotado? Será que sua constituição é
diferente do filho que permanece com os pais biológicos? O que está em pauta é o
sujeito como lugar da construção da subjetividade com seus desejos, na sua relação
com seu meio, com os outros e com a própria vida. E mais, os modos sob os quais o
sujeito vive sua história , as imagens, sinais ou mesmo ideais que chegam à
consciência e o valor representativo pelo qual o sujeito é afetado pelos outros.
Pensamos a subjetividade do ponto de vista psicanalítico. Subjetividade
referenciada ao Édipo, à Lei e à dimensão do Outro. O Édipo que implica a
triangulação freudiana – pai, mãe e filho –, os seus percalços e variações. Lacan (1956)
tornou a centrar a questão edipiana na triangulação. No âmbito de sua teoria do
significante e de sua tópica - imaginário, real e simbólico - , ele definiu o complexo de
Édipo como uma função simbólica: o pai intervém sob a forma da lei, para privar a
8
criança da fusão com a mãe. Segundo essa perspectiva, o mito edipiano atribui ao pai,
por conseguinte, a exigência da castração. É o complexo de castração, propriamente
desconhecido até Freud, e que foi introduzido na formação do desejo. A castração
que já não pode ser ignorada por nenhum pensamento que enfoque o sujeito.
Seguindo a Lei, no sentido que Lacan lhe oferece, situa-se em outro lugar, além
de todo o regulamento, como Lei da fala, onde se o advento do sujeito. É a Lei da
palavra, Lei da castração, onde Lacan reencontra o tema clássico da finitude do
homem. É esta lei que faz o homem, na medida em que fala e, portanto, deseja. Ela
institui uma distância irredutível entre o sujeito e o objeto do seu desejo, distância essa
que é o próprio desejo.
A interdição do incesto é a lei primordial na instauração da cultura, onde, ao
mesmo tempo, identifica-se o incesto como o desejo mais fundamental. È o desejo pela
mãe que não pode ser satisfeito, pois significaria a abolição do mundo da demanda que
estrutura o inconsciente humano.
Lacan (1955) introduziu a dimensão do Outro, do qual se trata na função da fala. O
Outro” para identificar o lugar a partir do qual, na relação linguajeira, se constitui o
sujeito, e que o introduz na relação simbólica. Precede o sujeito, cujo lugar já é
delineado por uma determinada constelação e pelos acontecimentos que marcam sua
concepção, a gravidez, seu nascimento.
A criança ao chegar ao mundo, está em relação com o Outro da linguagem. O
Outro age antes do seu nascimento. Dele o bebê recebe as bases de seu
comportamento, antes mesmo que possa interagir com seu meio. Bem antes de
qualquer manifestação da fala, o recém-nascido é testemunha de sua própria entrada
9
na dimensão simbólica. A fala tem uma função simbolizadora, mesmo aquela dirigida a
criança antes que ela possa falar. Ela entra no campo da fala, mesmo se ela ainda não
fala, porque a estrutura da fala preexiste à entrada que cada sujeito nela realiza. Isto
acontece porque existem outros sujeitos, os seus predecessores que a fazem nascer.
Então, a fala “...em sua função simbolizadora, ela não faz nada menos do que
transformar o sujeito a quem se dirige, através da ligação que estabelece com aquele
que a emite, ou seja: introduzir um efeito significante.”(LACAN, 1966, p.297)
Admitir a preexistência do Outro em relação ao sujeito faz com que o
desenvolvimento da criança não se reduza nem à sua maturação biológica, nem à sua
história.
Lidamos, assim, com a fundação do inconsciente, do aparelho psíquico, do sujeito,
com a subjetividade referida aos conteúdos inconscientes e também a dobra do “fora”,
o que se dobra sobre si mesmo. A subjetividade que dá aos homens a idéia de que são
compreensíveis para si mesmos. Referencial psicanalítico que a distingue do conferido
pela Psicologia e pela Filosofia. Partimos das construções imaginárias, das fantasias,
das origens até a entrada da ordem simbólica quando se pode falar em sujeito e em
subjetividade. Também consideramos o conceito de intersubjetividade, a questão da
constituição do sujeito a partir do lugar do outro e através das interações simbólicas e
lingüísticas, o que equivale a dizer que os fenômenos humanos estão imersos na
cultura e não se reduzem, apenas, à dimensão das forças pulsionais. Compreendemos
que para a Psicanálise, o inconsciente é a condição ou pré-condição necessária para a
intersubjetividade, o que vai permitir a comunicação entre as subjetividades. Trata-se
do inconsciente, concebido como esse Outro segundo Lacan (1966) a exterioridade
10
da estrutura em relação ao sujeito como ordem simbólica, articulador das
subjetividades individuais.
Partindo do princípio que, inicialmente, o psiquismo infantil é dotado de
representações que têm sua fonte na pulsão, iremos nos ocupar com as formações
imaginárias, seguindo para a construção do sujeito com a entrada no simbólico após o
recalque original, quando a subjetividade ganha de fato realidade psíquica.
Por isso, o indivíduo adotado desperta nossa atenção pela possibilidade de
inferirmos sobre seu processo de subjetivação, desde seus primórdios. Da criança
marcada pela vivência das origens com os pais biológicos, seguindo com a vivência
com os pais adotivos. Isto não implica no reconhecimento do filho adotado como
portador de dificuldades, ou de alguma inferioridade, mas sim na constatação das
possíveis diferenças.
2.1 – Desejo inconsciente como determinante do “sujeito”
Numa primeira aproximação de nosso tema, veremos o desejo como
determinante e decorrente do intercruzamento do sujeito desejante e sujeito da cultura,
ou seja , do privado e do público.
Entrando com os pressupostos psicanalíticos, nossa pesquisa terá como suporte
os escritos de Freud, continuando com as contribuições de Lacan, procurando a
explicação para o desejo inconsciente como determinante do homem. Completando
nossas considerações sobre o desejo, agora incluindo o desejo do outro, segundo
Aulagnier (1979).
11
O desejo de que nos fala Freud (1915) é o desejo inconsciente que constitui o
centro da teoria e prática psicanalítica, e que nada tem a ver com a concepção
biológica de necessidade. A diferença fundamental entre ambos está que, na
necessidade, a tensão interna é biológica, e encontra satisfação através da ação
específica, visando a um objeto específico que permite a redução da tensão, enquanto
o desejo não implica uma relação com um objeto real, mas com um fantasma. A
necessidade implica satisfação; o desejo jamais é satisfeito, ele pode realizar-se em
objetos, mas não se satisfaz com esses objetos. O desejo inconsciente não se apaga,
ele permanece indestrutível, pois implica essencialmente na inacessibilidade do objeto.
Freud (1900) é bastante claro, quando nos apresenta o modelo de constituição do
desejo, com base na experiência de satisfação. Um bebê recém-nascido, premido pela
fome, chora, esperneia e agita os braços numa tentativa inútil de afastar a insatisfação.
A intervenção da mãe, oferecendo-lhe o seio, tem como efeito a redução da tensão
decorrente da necessidade e pode ser atingida uma experiência de satisfação. Daí por
diante, uma imagem mnemônica permanece associada ao trabalho de memória da
excitação, produzida pela necessidade, de tal forma que na vez seguinte em que essa
necessidade emergir:
(...) surge imediatamente um impulso psíquico que procurará recatexizar a imagem
mnemônica da percepção e reinvocar a própria percepção, isto é, restabelecer a
situação de satisfação original. Um impulso dessa espécie é o que chamamos de
desejo. (Freud, 1900, p. 602-03)
Portanto, desejo, segundo Freud, é esse impulso para reproduzir
alucinatoriamente uma satisfação original, isto é, um retorno a um objeto perdido, cuja
presença é marcada pela falta. O objeto do desejo não é uma coisa concreta que se
12
oferece ao sujeito, ele não é da ordem das coisas, mas da ordem do simbólico. O
desejo é desejo inconsciente.
Em Freud, o objeto do desejo é um objeto perdido, uma falta, apesar desse objeto
perdido continuar presente como falta, procurando realizar-se através de uma série de
substitutos que formam uma rede, mantendo a permanência da falta. Enquanto a
necessidade é da ordem natural, o desejo é da ordem do simbólico. É no sonho que
reside a realização do desejo recalcado e a fantasia é a realização alucinatória do
desejo em si.
Na realidade, não existe satisfação do desejo. O desejo é um constructo que não
tem outra realidade, senão uma realidade psíquica, daí em Freud, o desejo é, antes de
mais nada, desejo inconsciente. Conforme diz Freud, o desejo não tem objeto na
realidade. Não existe uma encarnação real do objeto do desejo, conforme afirmam os
desenvolvimentos lacanianos.
Lacan (1954-1955) considera que “o desejo se satisfaz alhures e não numa
satisfação efetiva, ele é a fonte, a introdução fundamental da fantasia como tal.”(p.267)
Lacan, na releitura de Freud, contribui para aprofundar a noção de desejo, afirmando
que, no centro do discurso freudiano, está situado o desejo. Não o desejo tal como é
proposto pela filosofia; não o desejo como satisfação de uma necessidade, mas um
desejo que pode ser pensado na relação com o desejo do outro. Dessa forma, o
desejo nos remete não para o biológico, não para o adaptativo, mas para o registro do
imaginário. Considera-se, aqui, um dos três registros essenciais do campo da
Psicanálise, segundo Lacan: o real, o simbólico e o imaginário. Este último registro é
caracterizado pela preponderância da relação com a imagem do semelhante. Conforme
13
afirma Lacan (1964): “...os desejos da criança passam inicialmente pelo outro
especular. É aí que são aprovados ou reprovados, aceitos ou recusados.”(p. 207)
O conceito de desejo formulado por Lacan, a partir de Freud, indicando que “o
desejo do homem é o desejo do outro”(1964, p. 205), nos permite dizer que cada um de
nos deseja ser desejado pelo outro, exatamente como supomos que o fomos nas
origens, através das figuras parentais.
Sujeito e o outro
A criança para sobreviver, ou melhor, para manter-se na vida, precisa que um
outro que a pulsione a viver, ou ainda, que seja desejada, pensada na sua relação com
o desejo do outro.
Explica Garcia-Roza (1988,p. 139): “(...) aquilo para o qual o desejo aponta não é
o objeto empiricamente considerado, mas uma falta. De objeto em objeto, o desejo
desliza como numa série interminável, numa satisfação sempre adiada e nunca
atingida.”
A trama é infinita na medida em que o desejo não é desejo de nenhum objeto
natural suscetível de ser achado com maior ou menor sorte. O desejo é desejo de
“reconhecimento”; a criança pede para ser reconhecida, coisa que a mãe satisfaz com
sua atenção ao bebê, seja ela mãe biológica ou adotiva. Sucede que esse
“reconhecimento” repousa, com insistência, em toda a questão do outro do desejo.
Quem é esse outro, que características deve possuir para que o reconhecimento
equivalha a uma satisfação?
14
O objeto da satisfação dado pelo adulto, sob a forma mais elementar e mais vital,
é o alimento que aplaca sua fome, traz o valor do desejo de quem o e o da resposta
esperada por quem o pediu. O alimento pode ser aceito ou rejeitado em seu valor
simbólico, mais do que em seu valor de alimento. A esse mais-além de toda a
demanda, que faz com que ela se refira a outra coisa que não o objeto, a esse
conteúdo, Lacan o nome de amor. Toda demanda é demanda de amor: a criança
espera do outro, do adulto – o dom – não de um objeto, mas de seu amor.
Dessa forma, a criança, ao pedir, está buscando no outro o reconhecimento de
seu ser – de ser sujeito -, mais do que a satisfação de suas necessidades.
Quem impulsiona o desejo é a pulsão, radicalmente inconsciente. Podemos dizer
que a pulsão é condição de possibilidade do psiquismo; é, entretanto, o recalcamento
primário ou originário a marca que permite atualizar essa possibilidade, estabelecendo
a função do sujeito e de sua história.
Para Freud, a sexualidade, enquanto pulsão, visa ao prazer, ao gozo e à filiação. A
reprodução biológica, conseqüência do ato sexual, não seria, entretanto, o único
objetivo da sexualidade. Com Freud, a pulsão desvia do instinto, do comportamental,
para se inscrever, juntamente com seus representantes, na fantasia. Ao desvincular os
conceitos de sexualidade e reprodução biológica, inscrevendo no campo do desejo,
Freud levantou a questão da reprodução simbólica, enfatizando a relação parental na
constituição do sujeito, marcando a importância da filiação. O sujeito não se constituiria
sem o outro, necessitando do seu investimento libidinal para constituir sua vida
pulsional
15
Como sabemos, nas satisfações sempre falta alguma coisa para ser a
satisfação, o que equivale a dizer que o desejo não se satisfaz, embora se realize na
sua insatisfação. Realizar significa que o desejo se gasta a si mesmo, ainda no sentido
de se burlar, pois volta a aparecer, ora nos sonhos, ora nos atos falhos, ora nas obras
de arte, na literatura, sempre pedindo aquilo que lhe foi tirado na origem: a
completude.
Nascer é incompletar-se, é uma ruptura. Corte irreparável, separação de uma
origem para sempre faltante. Dessa separação primeira, nenhum sujeito se recupera
totalmente. Somente o desejo pode esboçar uma tentativa de redescoberta dessa
primeira perda.
O processo de filiação seria a prova de uma integração em um sistema simbólico
redescoberto na ruptura introduzida pelo nascimento. Tendo havido o nascimento
biológico do organismo, resta ao sujeito vir a ser, para tanto encontrando a trilha de sua
condição de filiação.
Tendo nascido de um pai e de uma mãe, ou de um pai desconhecido, e mesmo
de uma mãe desconhecida, o sujeito não deixa de ter a chance de vir a ser. Tudo
dependerá do que ele faz, com a criação e funcionamento de si mesmo o tempo todo,
e não somente de como o fizeram.
Antes do nascimento, a mãe surge como complemento biológico. Após o
nascimento, quando se rompe esse tipo de relação, a simbiose psicológica tomará seu
lugar. A imaturidade do recém-nascido precisa deste vínculo, pois é nele que se dará o
nascimento psicológico. Para sua sobrevivência, o bebê depende desta relação dual,
com a mãe ou sua substituta, a fim de recompor a fusão primitiva.
16
Aqui, diferentemente da fusão biológica, existe desde os primeiros momentos,
um registro por parte da criança. E, nesse instante ocorrem duas mudanças no registro
do bebê: no primeiro, surge a sexualidade que se separa da função nutriz, a partir de
um deslocamento do objeto leite para o objeto seio, agora objeto sexual. Com a pulsão
sexual, aparece o auto-erotismo, com a alucinação do seio. Nessa ocasião, surge a
primeira fantasia. A esse respeito, Aulagnier escreve:
A primeira representação que a psiquê se forja de si mesma como atividade
representante, se fará pelo estabelecimento da relação dos efeitos resultantes do
duplo encontro com o corpo e com as produções da psiquê materna.Neste
estágio
a única qualidade desses espaços, do qual o processo originário quer e pode ser
informado, concerne a qualidade prazer e desprazer do afeto, presente no
momento deste encontro.(1979, p.33)
Para a autora, o encontro inaugural entre a psiquê e o extra-psiquê se dá entre o
próprio espaço corporal do bebê e pelo espaço psíquico dos que o cercam e de
maneira mais privilegiada, pelo espaço psíquico materno.
Continuando nossa formulação do sujeito, cumpre lembrar, também, através de
Aulagnier, a participação da figura materna como porta-voz do infans, quando nos
fala:
Este termo (porta-voz) define a função atribuída ao discurso da mãe, na estruturação
da psiquê: porta-voz no sentido literal do termo, pois é a esta voz que o infans deve
desde seu nascimento, o fato de ter sido incluído num discurso que, sucessivamente,
comenta, prediz, acalenta o conjunto de suas manifestações, mas porta-voz,também,
no sentido de delegado, de representante de uma ordem exterior cujo discurso
enuncia ao infans suas leis e exigências. (1979, p. 106)
Podemos, ainda, acrescentar “o papel de prótese da psiquê materna,”(op. cit.,
p.106) que a autora coloca ao considerar o suporte que a figura materna, ou suas
17
substitutas, desempenham na constituição do sujeito. Este permite a psique da criança
encontrar uma realidade já remodelada, pela atividade psíquica materna e tornada
graças a ela, representável. Um material investido pela libido materna, mas que
respeita as exigências da repressão. A psiquê do infans remodelará este material, sem
poder, entretanto, impedir que surja a sua força arcaica que existia na figura materna e
que , em seu tempo, tinha-o recebido do outro.
O dizer e o fazer materno antecipam sempre o conhecimento que pode ter o
infans. A palavra é um fluxo criador de sentido, que antecipa largamente a capacidade
da criança reconhecer e assumir a significação das coisas. O discurso materno é,
portanto, o agente e responsável pelo efeito de antecipação ( AULAGNIER, 1979,
p.35), próprio do homem e que o confronta com uma experiência, um discurso, uma
realidade que, na maioria das vezes, se antecipa as suas possíveis respostas.
A mãe, em nossa cultura, é o enunciador e o mediador privilegiado do discurso
do ambiente (AULAGNIER, op.cit., p. 35). O humano se caracteriza pelo fato de
confrontar, desde a origem, a atividade psíquica a um outro espaço, o qual se revelará
sob a forma imposta pelo discurso que o fala: discurso que aprova a ação exercida pela
repressão.
Aulagnier (op. cit., p. 113) acrescenta o conceito de sombra:
O que chamamos sombra é, portanto, constituído de uma série de enunciados
que testemunham o desejo materno referente à criança; eles constituem uma
imagem identificatória que antecipa o que será enunciado pela voz deste corpo,
ainda ausente. Esta sombra, fragmento de seu próprio discurso, representa para
o
Eu materno o que o corpo da criança, numa outra cena, representa para seu
desejo inconsciente.
18
A sombra preserva a mãe do retorno de um desejo que foi, em seu tempo,
perfeitamente convincente e, em seguida, reprimido: ter um filho do pai. Mas anterior a
este, e precedendo-o, encontra-se um desejo mais antigo, e cujo retorno seria mais
grave: ter um filho da mãe. Porém, segundo Aulagnier, a sombra é o que o Eu pode
reelaborar, reinterpretar, a partir de segundo desejo reprimido, ficando o primeiro
forcluído.
O conjunto do discurso da sombra tem a marca do desejo de tornar-se: um
sujeito, um ser para o infans, mas é evidente que este desejo representa aquilo a que a
mãe teve de renunciar, aquilo que ela perdeu, ou que esqueceu ter desejado.
(AULAGNIER, op. cit., p.113).
Precedendo o nascimento do sujeito, preexiste um discurso que, segundo
Aulagnier, compreende: “espécie de sombra falada e suposta pela mãe que fala, e que
se projeta sobre o corpo do infans quando de seu nascimento tomando o lugar
deste a quem se dirige o discurso do porta-voz.”(op. cit.,p.109) Aqui, questionamos a
situação de nosso personagem – o filho adotado – que muitas vezes não teve a
oportunidade de viver com a mãe biológica a experiência da sombra, tendo, pelo
contrário, encontrado dificuldades na psiquê materna em conseqüência da própria
separação anunciada. Embora a mãe adotiva possa produzir este discurso da sombra,
já será num segundo momento. Ao ocorrer a falta da sombra falada, tanto como
antecipação como a inicial, não haverá diferenças na estruturação psíquica do sujeito?
Pensamos que sim, que o discurso da mãe, contando-lhe a história de sua própria
relação com o feto e com o infans, versão sobre um tempo que o precedeu, talvez uma
19
fábula: é melhor do que o silêncio, pois o eu infantil não pode auto-criar este primeiro
capítulo.
Durante uma primeira fase da vida infantil, a criança pode dar existência ao
infans que a precedeu, apropriadando-se de uma versão discursiva que lhe conta a
história de seu começo, conforme Aulagnier (1989 p.218).
O nascimento, ao separar o que já existia, abre espaço para que uma nova história
aconteça. E para cada sujeito, sejam quais forem os dados de sua história, alguma
coisa lhe escapa, da qual ficará separado para sempre. Houve o corte, uma distância
permanece irredutível. E nem sempre revelará para a criança o mistério de sua origem.
Ora, queremos focalizar a experiência vivida pelo filho adotado nesse momento
fundante, com perdas e distância mais acentuadas em relação ao filho genético. É
nosso desejo, simplesmente afirmá-lo o filho adotado como diferente,
especialmente pela perda original, sabendo-se, entretanto, que não retorno possível
à origem para todos -, pois o tempo nunca deixa as coisas em seu lugar. Assim,
pretendendo marcar a diferença, em certos momentos, nos deparamos com a
igualdade. Tudo no ser humano tem que ser aprendido, que ele nasce no
desamparo fundamental. E este homem sobrevive, em primeiro lugar, pelo fato de,
contrariamente aos demais seres que compõem o mundo animal, ser constituído, desde
o começo, na relação ao outro. O ser humano não é uma singularidade que se esgota
nele mesmo. Um sujeito não é ele mesmo singular, senão nesse desdobramento que o
revela como essencialmente relacional.
Considerando-se que o ser humano consiste em estar voltado para o mundo,
necessariamente ele está voltado para o outro. Esse outro, enquanto outro falante, não
20
é apenas um objeto, dentre os demais, mas o objeto por excelência, aquele sem o qual
a experiência humana e o próprio humano não se constituem. O outro é o mediador
necessário, através do qual se constitui o próprio mundo dos objetos para o sujeito.
Colocando nossa problemática da constituição do sujeito , nestes termos, cabe
dizer, então, que a subjetividade não se desenvolve a partir de um germe que se aninha
na interioridade do organismo. A subjetividade está sempre em germe no desejo do
outro; ela só precisa de um organismo, para poder se encarnar.
Se o ser humano é eternamente incompleto, que seu desejo nunca pode ser
satisfeito porque não existe o objeto adequado, ele pode, por outro lado, ser satisfeito,
parcialmente, de muitas maneiras pelos caminhos da arte, da ciência e da religião,
estes como diferentes modos de apresentação da linguagem do desejo inconsciente.
Constituem-se como manifestações pelas quais o homem, mesmo limitado pelo
desconhecimento de si, consegue alguma realização simbólica ou sublimada, não
negando, mas sim, presentificando o inconsciente.
Agora, a questão que se apresenta é se todas as considerações levantadas
sobre o sujeito do desejo inconsciente do referencial psicanalítico direcionam o
indivíduo a construir uma subjetividade diferente, entre o filho nascido e criado pelos
pais biológicos e o filho adotado. Essencialmente, se os pais, especialmente a mãe
biológica, difere da mãe adotiva na relação mãe/bebê, no acontecer do efeito de
antecipação, no papel de prótese do psiquismo do bebê, na vivência de desamparo do
recém-nascido e, em tantos outros episódios ocorridos na trama familiar. Para tanto,
vamos entrar na complexidade da construção da subjetividade, que compreende o que
há de mais íntimo e singular do sujeito: a memória dos acontecimentos de sua vida, sua
21
forma específica de estabelecer laços com os objetos que toma como exterior a si, seja
seu próprio corpo, sejam os outros próximos. Compreende, ainda, os modos de
produção desse indivíduo e as possibilidades que lhe são apresentadas na qualidade
de sujeito de seu próprio destino.
2.2 Falhas, Marcas e Traumas da primeira infância
Entrando propriamente na empreitada da subjetividade que se situa na
encruzilhada de múltiplos registros teóricos e diferentes ordens de discurso,
pretendemos compreender a questão da constituição da subjetividade, pelos desejos
do sujeito e na relação com o meio, com os outros e com a própria vida, enfim,a criação
de si.
Inserida historicamente entre os registros ético, estético e político, passando pela
ordenação dos discursos filosófico, religioso, científico e do senso comum, a
subjetividade passou a ser um objeto teórico e campo para a prática de discursos das
Ciências Humanas na modernidade: Sociologia, Antropologia e Psicossociologia.
A Psicanálise com os conceitos de inconsciente, de pulsão de vida e de pulsão
de morte, abriu um novo continente o da subjetividade como estrutura específica,
regida por leis tão necessárias quanto aquelas que governam qualquer outro objeto,
constituindo-se no imperativo ético de saber de si.
Com Freud (1915), o desejo enunciou-se como catalisador possível das
transformações, capacitando o sujeito a reinventar sua história, quando quisesse. Pelo
desejo, pois, o sujeito poderia mover montanhas. A fórmula freudiana do sonho como
22
realização do desejo é a condensação maior do ideal psicanalítico, o desejo seria a
condição de reinvenção do sujeito.
Desde o seu início, a Psicanálise identifica a subjetividade como pensamento
crítico que denuncia como insuficiente a razão da consciência, e nos remete ao
conceito de intersubjetividade e ao construto hipotético de um inconsciente.
A subjetividade por nós considerada não é uma imanência, mas intersubjetividade
produzida. Os elementos dessa produção estão articulados na cultura que os sujeitos
partilham uns com os outros, numa formação social determinada e em tempo histórico
delimitado. O meio ambiente se torna o fundo que oferece os elementos para a
produção da subjetividade.
Tornar-se um ser consiste em participar não somente em processos sociais
compartilhados, nos quais emergem significados, sentidos, ordenações e conflitos,
constituindo como afirma Birman (1999) “o fora-de-si que vem se juntar ao dentro-de-
si”, fazendo do sujeito o protagonista de sua vida até certo ponto.
Enfim, a subjetividade é a síntese singular e individual que cada um de nós vai
constituindo, conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando as experiências da
vida social e cultural. É uma síntese que nos identifica, de um lado, por ser única, e nos
iguala, de outro lado, na medida em que os elementos que a constituem são
experienciadas no campo comum da objetividade social. Esta síntese –a subjetividade-
é o mundo de idéias, significados e emoções, construído internamente pelo sujeito, a
partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição biológica: é,
também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais.
23
Dentro de nossa questão, o que pretendemos, agora, é compreender a
subjetividade nos seus primórdios, com suas falhas, traumas, marcas que tanto
acontecem com o filho biológico como com o adotado, porém com este podem se
acentuar devido as circunstâncias mais difíceis. Cumpre destacar que a teoria
psicanalítica, de maneira geral, tem atribuído cada vez mais ênfase às vivências iniciais
do bebê, à fase pré-natal e aos primeiros anos de vida como elementos determinantes
na formação do psiquismo dos indivíduos.
Talvez possamos entender a importância que tem as rejeições primárias, a privação
afetiva, os efeitos da perda do objeto libidinal, as separações precoces da criança com
relação às figuras parentais para chegarmos às questões relativas à adoção. Para
tanto, vamos usar as colocações de Freud, M. Klein, René Spitiz, Winnicott e M Mahler.
2.3.1 FREUD E A ANSIEDADE ORIGINAL
Iniciando com Freud, vamos considerar a ansiedade original que é a situação de
nascimento, nessa nossa busca de possibilidades de sofrimento e marcas no esboço
do psiquismo infantil.
Em Freud, a ansiedade deve ser vista como um produto do estado de desamparo
psíquico do latente, que é evidentemente a contrapartida de seu estado biológico. Para
ele, esta reação é o protótipo fisiológico de toda a ansiedade posterior. Outros autores,
como Rank (1924), citado em Roudinesco e Plon (1998), em primeiro lugar, deram
muita ênfase ao chamado “trauma do nascimento” e tentaram tornar esse “trauma” o
24
responsável por todos os problemas psíquicos posteriores. Freud não aceitou tal
hipótese, de que o bebê por ocasião do nascimento recebe impressões visuais, cuja
renovação traz à memória o trauma do nascimento fazendo surgir a ansiedade.
Acredita, sim, que o bebê tenha sensações táteis e gerais relacionadas com o processo
de nascimento
Para Freud : “ a ansiedade surgiu originalmente como uma reação a um estado de
perigo e é reproduzida sempre que um estado dessa espécie se repete” (1926, p.157).
No ato de nascimento há um verdadeiro perigo para a vida. Este tem significado
objetivo, mas num sentido psicológico não existe ainda qualquer conteúdo psíquico.
Entretanto, em 1933, em suas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise,
Freud acabou dando certa razão a Rank, ao destacar que ele tivera o mérito de
compreender a idéia da separação primordial da mãe.
Em Freud (1926), a reflexão sobre a ansiedade original nos leva à seguinte fala:
A razão por que a criança de colo deseja perceber a presença de sua mãe é
somente porque ela já sabe por experiência que esta satisfaz todas as suas
necessidades sem delongas. A situação, portanto, que ela considera como
um “perigo” e contra a qual deseja ser protegida é a de não satisfação, de
uma “crescente tensão devida à necessidade,” contra a qual ela é inerme.
(...) A situação de não satisfação na qual a quantidade de estímulos se
elevam a um grau desagradavél sem que lhes sejam possível ser dominadas
psiquicamente ou descarregadas, deve para a criança ser análoga à
experiência de nascer – deve ser uma repetição da situação de
perigo. (1978, p.161)
Em ambas as situações, um aumento de estímulos, que precisam ser
eliminados. O recém-nascido através do choro pode se livrar dos estímulos
indesejados. Para Freud, ao nascer e nas primeiras semanas, é desnecessário supor
que a criança traz mais alguma coisa no nascimento do que apenas a possibilidade de
25
indicar a presença do perigo. mais tarde, quando crescer um pouco, convoca, pelo
choro, alguém para cuidar dela.
Quando a criança houver descoberto pela experiência que um objeto externo
pode pôr término à situação perigosa da vivência do nascimento, o conteúdo do perigo
que ela teme é deslocado da situação de falta de satisfação , para a condição que
determina de fato essa situação, a saber, a perda de objeto. É a ausência da mãe que
agora constitui o perigo, e logo que surge esse perigo a criança dá sinal de ansiedade.
Daí começa a autopreservação da criança, representando, ao mesmo tempo,
uma transição do novo aparecimento automático e involuntário da ansiedade, para a
reprodução intencional da ansiedade como sinal de perigo.
A mãe biológica satisfaz todas as necessidades do feto através do corpo e após o
nascimento pode continuar a fazê-lo por outros meios.
A criança adotada nos primeiros dias e primeiros meses de vida é
caracteristicamente uma criança que viveu, no período inicial da vida, a separação
biológica, o contato íntimo ocorrido durante a gestação, e mais ainda, perdeu a
linguagem dos órgãos e das funções do corpo materno. Para se adaptar ao contato de
um ritmo corporal desconhecido. O vínculo corporal é definitivamente perdido, e se faz
necessário a aprendizagem da linguagem ou dos sinais de outro corpo. Assim,
podemos imaginar que a criança pode passar um tempo maior para se adaptar aos
pais adotivos, embora não possamos negar que o bebê junto aos pais biológicos
também pode necessitar vivenciar o afastamento, como numa necessidade de
hospitalização, e isto ter como conseqüências marcas no seu desenvolvimento. A mãe
original satisfaz todas as necessidades do feto através de seu corpo e, após o
26
nascimento, continua a fazer o mesmo, usando o próprio corpo e outros meios. Sua
ausência é sentida como um perigo, pois o bebê não tem certeza de que será atendido
em suas carências. Portanto, pode ficar exposto à intensa carga de ansiedade,
segundo Freud, e que poderá deixar falhas e seqüelas em seu desenvolvimento.
Entretanto, cabe a nós considerar mais uma colocação de Freud quanto aos
perigos futuros, oriundos das perdas iniciais da criança e determinantes da ansiedade
original.
(...) o perigo de desamparo psíquico é apropriado ao perigo de vida quando o
ego do indivíduo é imaturo; o perigo da perda do objeto, até a primeira
infância, quando ele ainda se acha na dependência de outros; o perigo de
castração, até a fase fálica; e o medo do seu superego, até o período da
latência. (1926, p.166)
Porém, Freud faz a ressalva de que todas essas situações de perigo e
determinantes de ansiedade podem persistir e fazer com que o ego reaja com
ansiedade em fases posteriores às indicadas. A justificativa é que os antigos desejos
devem permanecer no inconsciente.
Freud (1916 1917), ao explicar a origem da patologia psíquica com a expressão
“séries complementares”, baseada nas diversas combinações que compreendem a
nossa carga genética e as relações que estabelecemos com o ambiente desde o
nascimento, nos fala que estes fatores são complementares. Com isto, indica que não
há que escolher entre fator endógeno, representado pela fixação e fator exógeno
representado pela frustração; variam em razão inversa: para que a neurose se
desencadeie, pode bastar um traumatismo mínimo, no caso de fixação ser forte e vice-
versa.
27
A história da criança adotada, a idade em que se deu a adoção, o nível de
privação física e psicológica que sofreu, sua gestação, sua relação com os pais
adotivos são fatores a serem considerados como possíveis causadores de patologia
quando não ocorrem de forma adequada.
Ainda, para justificar nosso objeto de estudo – a construção da subjetividade
com suas falhas, marcas e traumas –, temos que, no nascimento biológico, estamos
aquém do nascimento subjetivo processo intrapsíquico mas que está em
elaboração. Consideramos que a ansiedade original seja mais pertinente no bebê que é
afastado da mãe, exatamente pela falta de contato corporal com esta, privando-o
do conjunto de símbolos que remetem à linguagem mais arcaica, ponderando-se que
nosso corpo é linguagem desde a origem e que materializa os desejos recalcados.
A questão da constituição da subjetividade do sujeito envolve a realidade do
“organismo e da psiquê” procurando restabelecer o ser vivo em sua realidade total. Isto
implica que mais abordagens apresentadas por outros autores sejam consideradas.
2.3.2 MELANIE KLEIN – RELAÇÃO PRIMÁRIA MÃE/BEBÊ PREJUDICADA
A autora deu especial ênfase às primeiras relações objetais entre mãe e bebê,
ressaltando sua importância no desenvolvimento do indivíduo, desde seus contatos
mais arcaicos com o corpo da mãe. Isto representa a única maneira de compreender a
origem dos distúrbios psíquicos.
28
Em 1932, M. Klein, ao considerar uma modalidade da relação de objeto,
introduziu a clivagem do objeto cindido em objeto bom e objeto mau. O objeto parcial,
tal como o seio, por exemplo, sofreu a clivagem num seio ideal, objeto do desejo da
criança (objeto bom) e num seio persecutório, objeto de ódio e de medo, percebido
como fragmentado. Esta concepção da realidade psíquica permite mostrar que a vida
fantasmática da criança, povoada por angústia, terror, ódio e idealização, encontra-se
não somente na psicose, na qual o sujeito não consegue ver sua mãe como um objeto
total e continua a compreendê-la à maneira de uma clivagem entre o bom e o mau
objetos, mas também ocorre na evolução normal do sujeito. Todo o sujeito no sentido
kleiniano, ao sair do estado persecutório paranóico passa à posição depressiva que
é própria da perda da mãe como objeto total.
A elaboração da posição depressiva depende, contudo, da capacidade de
reparação da criança. A experiência, que seu ódio e hostilidade destruíram ou
destruirão o objeto bom, mobiliza desejos de querer reparar o dano que acredita ter
sido capaz de onipotentemente danificar ou destruir o objeto bom. Klein acredita,
também, que o amor e carinho serão capazes de onipotentemente, reparar ou trazer
vida novamente ao objeto que acredita ter destruído ou danificado. O conflito
depressivo, portanto, representa uma luta constante dos sentidos de amor, ódio e
impulsos reparadores experimentados pela criança.
Em circunstâncias favoráveis, sem a ocorrência do abandono ou da rejeição, a
reaparição da mãe, após períodos de ausência, sua atenção, carinho e amor,
gradualmente modificam a fantasia onipotente da criança em relação ao seu poder de
destruição. De modo semelhante, falhas em reaparições mágicas diminuem a fantasia
29
onipotente da criança em relação ao poder de amor. Ela, gradualmente, descobre os
limites do seu amor e do seu ódio, e com o crescimento e desenvolvimento emocional
descobre também maneiras eficazes de afetar a realidade externa.
Relacionando as duas posições de Klein: posição esquizo-paranóide/posição
depressiva, encontramos a identificação projetiva que é uma modalidade de projeção
que consiste em introduzir a própria pessoa, totalmente ou em parte, no interior do
objeto para o lesar, para o possuir ou para o controlar. Trata-se de um mecanismo de
natureza psicótica, encontrado na vida fantasística de toda a criança.
É na posição depressiva que o sentimento de realidade também se desenvolve
gradativamente. A ansiedade depressiva pela falta do objeto/mãe conduz o bebê a
retirar suas projeções e a permitir que seu objeto tenha uma existência mais
independente e mais separada. Ao reconhecer sua própria ambivalência e fantasia, ele
se conscientiza de sua realidade interna e começa a diferenciá-la da realidade externa
de seu objeto. Uma elaboração bem sucedida da posição depressiva é essencial à
saúde mental. No processo de elaboração, o ego se torna integrado, apto para o teste
de realidade e para a sublimação, e se enriquece mediante a introjeção e assimilação
de bons objetos.
Para que a criança possa ter desenvolvimento normal, conforme afirma M. Klein, é
necessário:
Uma atitude amorosa por parte da mãe muito contribui para o êxito desse processo.
Se a criança coloca no seu mundo interno a mãe como um objeto bom e merecedor
de confiança, um elemento de vigor é adicionado ao ego (...) o ego se desenvolve
em grande parte em torno desse objeto bom, e a identificação com as boas
características da mãe torna-se a base para ulteriores identificações benfazejas.
(1959, p. 3)
30
O mundo interno da criança passa a conter predominantemente objetos e
sentimentos bons, o que contribui para uma personalidade estável e sentimentos
amistosos para com as outras pessoas. Ao lado desse quadro, a agressividade e o ódio
permanecem, mas são contrabalançados pelos objetos internos.
Entretanto, quando as experiências da criança forem de abandono, desamparo e
rejeição, vão ocorrer dificuldades para o estabelecimento de um objeto bom, confiável,
em seu mundo interno. Como diz M. Klein:
...embora o bebê reaja a outras características maternas – a voz, o rosto, as mãos –
as experiências fundamentais de felicidade e amor, de frustração e ódio, estão
inextrincavelmente ligadas ao seio da mãe. Esse vínculo primitivo, que é fortalecido
à medida que o seio é firmemente estabelecido no mundo interior da criança, influi
basicamente em todas as outras relações...( op. cit.,1959, p. 262)
Assim, a criança adotada, nos primeiros dias ou primeiros meses de nascida, tem
o contato rompido com a mãe nos aspectos: voz, rosto, mãos, seio, respiração e andar.
Precisa fazer um esforço de adaptação a uma nova mãe a mãe substituta. Não
podemos, porém, deixar de considerar que um bom contato com a mãe adotiva, nessas
fases, pode suprir pelo menos em parte - essas rupturas do desenvolvimento e as
condições adversas que dificultam a formação de um ego razoavelmente estruturado.
Sabe-se, porém, que esse primitivo relacionamento mãe/bebê caracteriza-se pelos
conflitos entre amor e ódio, desejos inconscientes de destruição e morte ao lado das
fantasias que transformam em bons os danos que inconscientemente praticamos e
pelos quais nos sentimos extremamente culpados.
M. Klein, através da psicanálise de crianças pequenas, tirou conclusões acerca do
funcionamento da mente em estágio primitivo, e concluiu que tais fantasias estão
31
ativas no bebê. Como, também, pela psicanálise de adultos, revelou que os efeitos
dessa primitiva vida-de-fantasias tem conseqüências duradouras, influenciando
profundamente a mente inconsciente do adulto.
Por tudo isso, pensamos na hipótese da diferença para o bebê, cuja relação é
rompida com a mãe biológica em tenra idade. A mãe é, antes de tudo, apenas, um
objeto que satisfaz a todos os seus desejos, para logo em seguida começar a
corresponder a essas gratificações e aos seus cuidados através de crescentes
sentimentos de amor para com ela como pessoa. Nossa questão é continuar a
pesquisar, se esta vivência de início de vida não será mesmo pertubada com a
interrupção e substituição dessa figura “mãe”.
2.3.3 RENÉ SPITZ FORMAÇÃO DA RELAÇÃO MÃE/BEBÊ NO PRIMEIRO
ANO DE VIDA
René Spitz (2000) considera, em seu trabalho, a gênese das primeiras relações
objetais. Para este autor, no mundo do recém-nascido não existe objeto, nem relação
objetal. E, denominou o primeiro estágio da vida do bebê de pré-objetal ou não-objetal.
Conseqüentemente pela proposição referente ao estudo da não-diferenciação do
recém-nascido, ao nascer, não existe ego, pelo menos no sentido usual do termo. Spitz
utiliza o conceito de Hartmann(1939) referente a fase indiferenciada, à falta de
diferenciação entre o ego e o id, o consciente e o inconsciente da personalidade do
recém-nascido. Dentro desse indivíduo indiferenciado, consciente e inconsciente e,
mais tarde, ego e id, se separarão um do outro. Assim, Spitz considera o recém-
nascido como uma totalidade indiferenciada em muitos aspectos. Lembra que a criança,
32
durante o seu primeiro ano de vida, é indefesa, incapaz de sobreviver por meio de seus
próprios recursos. O que falta à criança é compensado e suprido pela mãe. São
sentimentos maternos em relação ao filho os quais criam o clima emocional e que dão à
criança o início das experiências vitais.
Há, entretanto, infinitas variações de mãe, tanto para o papel de mãe biológica
como, para a que queremos considerar em especial: a mãe adotiva. Além disso, as
mães vão se diferenciando dia-a-dia já na relação com o bebê na vida intra-uterina.
Na relação da díade mãe-bebê, importa se é um bebê ”fácil” ou “difícil”, se dorme
bem, se come bem. Evidentemente, estas diferenças na atitude do bebê vão modelar
as relações da díade. Levando-se em consideração o processo de adoção, podemos
ter uma mãe mais segura, uma mãe mais ansiosa ou com sentimentos de culpa.
Na relação mãe-filho, a mãe é a representante do ambiente pelo menos no
primeiro ano de vida. As influências formativas que se originam no ambiente-mãe são
dirigidas a essa totalidade em desenvolvimento que é o bebê.
Spitz(2000) faz referências à sensibilidade quase telepática da mãe em relação ao
filho. Segundo ele, durante a gravidez e durante o período imediatamente posterior ao
parto, as mães interessadas em seus bebês aumentam sua capacidade potencial de
reação cenestésica. Incontestavelmente, numerosas pressões regressivas ocorrem no
curso da gravidez, parto e período de amamentação. Entretanto, não notícias de
averiguação das diferenças de sensibilidade perceptiva cenestésica entre uma mãe que
está amamentando e uma mulher que nunca engravidou e que pode assumir o lugar de
substituta pela adoção.
33
Afirma Sptiz: “Estou convencido de que uma mãe que amamenta percebe signos
que não percebemos”(2000, p.138).
As formas de comunicação, mãe e filho, continuam sem interrupção, mesmo que
a mãe não esteja necessariamente consciente delas. A forma de relação mãe e filho
exerce uma pressão constante, que modela a psiquê infantil.
Sentimentos de prazer e desprazer surgem no decorrer dos três primeiros meses
de vida, sendo que, a partir do quarto mês, a criança expressa desprazer quando seu
parceiro humano a deixa. Chora quando seu parceiro humano de jogos interrompe seu
jogo e a deixa. Cumpre aqui refletir sobre o bebê, cuja mãe, nesta fase, tem que
entregá-lo a uma substituta, muito embora, saibamos que essa mudança possa não
acarretar diferença na constituição do sujeito, em comparação com aquela que não
precisa passar por tal situação. casos de filhos adotados, como Artur¹, que indicam
em seu discurso seus sentimentos:
Soube aos 5 anos que permaneci o primeiro mês de vida com minha mãe de
origem. Sinto que fui muito amado nesse período, tenho essa sensação.
Spitz (1957), em um estudo sobre o uso do “não”, explorou o papel que tem para o
desenvolvimento os dois afetos prazer e desprazer - e chegou à conclusão que
ocorre o “não” quando os dois afetos operam de maneira complementar.
Prazer e desprazer têm um papel igualmente importante na formação do sistema
psíquico e da personalidade. Chegamos à importância da frustração para o
desenvolvimento – afinal é a própria natureza que a impõe. Então, temos a separação
¹ Todos os nomes são fictícios. Artur é um dos adultos adotado entrevistado.
pelo cordão umbilical e o desmame que mostram a frustração incorporada no
desenvolvimento.
34
Será que a separação da mãe biológica do corpo da mãe biológica - é mais uma
frustração acrescentada no caso da adoção? Parece que sim. Contudo é necessário
lembrar que esse relacionamento difere de todos os outros do mundo, pois o fato é que
este bebê, colocado nos braços da mãe, esteve dentro dela até recentemente e fez
parte de seu próprio corpo. Segundo Spitz, que defende o ponto de vista, compartilhado
por muitos, da existência de estado inicial indiferenciado e do desenvolvimento lento e
contínuo das funções, isto é, dos processos psicológicos que emergem gradualmente
dos protótipos fisiológicos que lhes são subjacentes. Segue a teoria da passagem lenta,
das formas primitivas para as mais complexas: formação do objeto e das relações
objetais.
Observando a identificação primária, Spitz discorre (op.cit.,p.234-236): que trata-
se de um constructo da teoria psicanalítica que se refere ao estado de não-
diferenciação, no qual não distinção clara entre psiquê e soma, entre pulsão e
objeto, e nem mesmo entre diferentes regiões do corpo. Nem ela é capaz de distinguir
dentro e fora, entre “eu” e “não-eu”. deficiência não apenas na estrutura psíquica,
mas também nas fronteiras psíquicas e somáticas. Aqui, a suposição da idéia de
onipotência infantil se ajusta perfeitamente, e a criança tem a vivência de que tudo o
que existe em seu ambiente, que se refere à satisfação das necessidades, faz parte de
sua própria pessoa e corpo, fora do qual nada existe. A identificação primária é
dificultada pelas mães ansiosas que recusam aos filhos a satisfação da necessidade
inerente ao fato de serem tocados. São mães que recusam as experiências táteis com
os bebês, restringindo as oportunidades de identificação primária. Então podemos
pensar que essas situações podem ser sentidas pelas crianças cujo abandono é vivido
35
com a mãe biológica, e, também, é possível tal ocorrência por parte da mãe adotiva por
sua insegurança e ansiedade. Entretanto, para que o bebê se diferencie da mãe, essas
identificações primárias táteis e outras têm de ser enfrentadas, rompidas e superadas
para que as identificações secundárias possam aparecer, dando à criança autonomia e
independência que começa na segunda metade do primeiro ano de vida.
No decorrer desse estágio, a criança adquire técnicas e mecanismos por meio dos
quais consegue a independência em relação à mãe (Spitz, 2000). Segundo o autor, a
criança precisa adquirir as técnicas que a mãe utiliza para cuidar dela, zelar por ela (e
pode fazê-lo por meio da identificação), antes de conseguir separar-se da mãe e
tornar-se um indivíduo independente.
Na identificação primária que é um estado conforme Spitz levanta, deve
existir um ego rudimentar, levando-se em consideração a identificação secundária que
é um processo inconsciente, cujo resultado é uma modificação do ego. Esse ego
rudimentar se separa da totalidade indiferenciada que ocorre no período da
identificação primária.
Segundo Spitz(2000), quando a mãe dificulta a identificação primária pela recusa
ao contato tátil, ela impede duas importantes realizações do desenvolvimento – a
formação do ego rudimentar e sua posterior modificação pela identificação secundária.
Penso nas dificuldades, tanto por parte da mãe biológica rejeitadora, como da
mãe adotiva, muitas vezes, inexperiente e insegura ao estabelecer essas relações
primitivas e, consequentemente, interferindo na construção da subjetividade do bebê.
O autor coloca que, no primeiro ano de vida, a “perda” da mãe pode ser sofrida,
especialmente quando ela entra em depressão; não é uma perda física como quando a
36
mãe morre ou desaparece por algum motivo. Equivale a perdê-la emocionalmente, o
que deixa marcas.
É uma perda emocional, pois a mãe, ao mudar sua atitude emocional, muda
radicalmente também os signos que a identificam, para a criança, como
objeto “bom”.(...) Esta é uma perda que só pode ser vivenciada dessa forma no
primeiro ano de vida, nesse estágio de desenvolvimento ; em outras palavras, é
específica desse estágio.( Spitz, 2000, p.263)
Dizer que as ações da criança na díade são uma extensão das ações da
mãe, e vice-versa, é apenas uma tentativa de explicar a formulação feliz de Anna
Freud (apud Spitz ,2000,p.267) de que “a criança acompanha a mãe na depressão”. E
isto pode ocorrer em qualquer tipo e momento de vivência da mãe. Portanto, neste
estágio, o objeto é o alvo da descarga da pulsões. O objeto “mau” exerce, a seu modo,
uma atração comparável à do objeto “bom”.
Segundo Spitz (2000), temos sempre que considerar a personalidade da mãe na
sua constituição e os primeiros anos de vida da criança. A carência afetiva resulta da
ausência física da mãe, devido à doença, morte, ou com o afastamento do filho por
motivo de hospitalização; como também, se a substituta da mãe for inadequada ou
praticamente inexistente afetivamente. A criança é privada dos cuidados maternos e
das provisões afetivas vitais que normalmente receberia nas trocas com a figura
materna. Vale ressaltar que isto não exclui a possibilidade de uma mãe, mesmo
presente, privar seu filho das provisões afetivas normais necessárias; nem exclui a
possibilidade de que a mãe negligencie seu filho por estar ocupada fora de casa, por
razões econômicas ou por falta de interesse para com a criança.
Entretanto, Spitz rejeita o conceito de uma relação objetal com a mãe, desde o
nascimento, o que é defendido por outras escolas psicanalíticas. Mas, ao mesmo
37
tempo, defende como de extrema importância a vivência dos primórdios da vida
psíquica, e apresenta teoria da personalidade, que reforça não só desenvolvimento dos
aspectos físicos, como também dos aspectos emocionais. Cremos ser este estudo de
extrema relevância para focalizarmos a importância da relação mãe/filho, mesmo
indiferenciada, incluindo conceitos do desenvolvimento físico e perceptual. Focaliza as
trocas que ocorrem no estágio narcisista do bebê, até a idade de três meses, quando o
pré-objeto se estabelecerá para depois chegar às relações objetais. Considerando-se a
passagem da indiferenciação para a diferenciação, levantamos o quanto a separação
nesses momentos poderá vir a dificultar a formação das relações objetais.
Por outro lado, a adoção nas primeiras semanas é vista por alguns
pesquisadores como mais satisfatória, podendo ser, inclusive, o caminho para um grau
de independência, às vezes, mais rápido e mais eficiente, tornando a criança mais ativa
em suas relações com o mundo exterior.
Estudos longitudinais, a partir do nascimento, nos proporcionam descobertas
necessárias que nos indicam que os distúrbios, tanto na criança como no adulto,
parecem estar ligados a cicatrizes psíquicas atribuíveis a relações pré-objetais e
objetais patogênicas em idades precoces. É claro que procedimentos terapêuticos
apropriados e de fundamentação psicanalítica devem chegar às representações do
período pré-verbal (Spitz,2000).
2.3.4 DONALD W. WINNICOTT – FALHAS NA PREOCUPAÇÃO MATERNA
PRIMÁRIA
38
Prosseguindo em nossa pesquisa com autores que abordam falhas, traumas e
marcas na constituição do sujeito, temos Winnicott, cuja contribuição é relevante para a
compreensão do mundo interno da criança e suas pré-determinações para a vida
adulta.
O autor apresenta elementos importantes para a percepção do que pode
representar a quebra do contato do bebê, depois da longa fase da gestação com sua
genitora. Ele valoriza os estádios mais iniciais da vida infantil no estabelecimento da
subjetividade.
Observa que a mãe do bebê torna-se biologicamente condicionada para sua
tarefa, que consiste em estar especialmente orientada para as necessidade de seu
filho, gerado pouco a pouco, em suas entranhas. Acredita que existe uma identificação
inconsciente, no que a mãe faz com seu bebê.
Winnicott, baseando-se nas pesquisas do período pré-natal, apresenta a condição
psicológica, o estado especial da mãe grávida, que nomeia de Preocupação Materna
Primária (1978, p. 491). Considera como tal um estado de sensibilidade aumentada
durante e especialmente no final da gravidez. Continua, ainda, algumas semanas após
o nascimento, o que não é recordado por ela e, segundo o autor, tende a ser recalcado.
É um estado como uma doença, é um estado de retraímento. Ou um estado dissociado
ou uma fuga, como uma perturbação que assume temporariamente o controle. É para
Winnicott como uma doença normal que capacita a mãe a se adaptar às necessidades
iniciais do feto e do bebê.
A mãe que desenvolve o estado que chamei “preocupação materna primária” fornece
fornece um setting no qual a constituição do bebê pode se mostrar, suas tendências
de desenvolvimento podem começar a se revelar e o bebê pode experimentar um
39
movimento espontâneo e dominar as sensações apropriadas a esta fase inicial da
vida. (Winnicott,1978, p. 495)
A saúde psicológica e física do bebê está na dependência da mãe ser capaz de
ingressar e sair desse estado tão especial de ser.
Sabe-se que uma provisão ambiental suficientemente boa, na fase de
dependência absoluta, permite ao bebê começar a existir e ter experiências, quando na
saúde a mãe está em estado de preocupação materna primária. Então o bebê que é
sadio estabelece um sentimento de self e de continuidade do ser. Isto pode se dar
apenas em um setting apropriado aquele que a mãe que ingressou no estado de
preocupação materna primária é capaz de fornecer.
Em 1942, Winnicott afirma num encontro: O bebê não existe!” Este foi para ele o
momento de nascimento de uma verdadeira descoberta. O indivíduo passou a ser, a
partir de então, não mais considerado como unidade no início de tudo, mas como uma
estrutura ambiente-indivíduo - o par mãe/filho, onde a mãe provê cuidados. Em outras
palavras, diz Jean Abram(2000), ao comentar Winnicott: “o que existe é o indivíduo em
relação ao mundo externo. Winnicott esforça-se, assim, em demonstrar que a relação
de uma unidade corporal não precede a relação de um par corporal, mas, sim, a
sucede.”( p.26)
São os cuidados maternos antes e depois do nascimento que convergem para a
composição de um ambiente de holding. Aqui se inclui a preocupação materna primária,
que lhe possibilita fornecer ao bebê o necessário suporte egóico.
(...) o bebê é amparado pela mãe, e somente compreende o amor que é expresso em
termos físicos, ou seja, através da vida, do holding humano. Eis a dependência
absoluta. A falha do ambiente nesse estágio inicial não pode ser contestada, a não
40
ser por um impedimento ao processo de desenvolvimento ou pela psicose infantil...
estamos mais interessados no holding que a mãe oferece ao bebê do que com a mãe
que o alimenta. (Winnicott, apud Abram, 2000, p.136)
A idéia de Winnicott de um ambiente de holding suficientemente bom inaugura-se
com a relação mãe-bebê dentro da família e expande-se a outros ambientes como o
setting-analítico mais tarde.
Winnicott emprega a palavra personalização opondo-se a despersonalização, a
condição através da qual o indivíduo experimenta a cisão mente-corpo em que não se
sente como pertencente a seu próprio corpo.
Isto é caracterizado pelo autor quando afirma:
No início, ser amado significa ser aceito... A criança possui uma cópia daquilo que é
normal, o que é certamente uma questão de forma e funcionamento de seu próprio
corpo...
A maioria das crianças foram aceitas no último estágio anterior ao nascimento, mas o
amor é demonstrado em termos de cuidados físicos, o que é geralmente adequado
quando se trata do feto que está no ventre. Nesses termos, a base daquilo que
denominei personalização, ou falta de uma possibilidade especial de despersonalização
tem sua origem antes mesmo do nascimento da criança. É com toda certeza uma
questão fundamental, uma vez que a criança precisa ser segurada por uma pessoa
cuja necessidade de envolvimento emocional esteja em jogo, assim como as respos-
tas fisiológicas. O início dessa parte do desenvolvimento do bebê a que chamo perso-
nalização, e que pode ser descrita como um habitar da psique no soma, encontra-se
na capacidade da mãe envolver-se emocionalmente, o que originalmente se dá em
termos físicos e psicológicos. (apud, Abram, 138/139)
Pelo objetivo de nossa pesquisa, falhas, traumas e marcas ocorridos na primeira
infância são importantes, e como cada sujeito os organiza, focalizando as
conseqüências, por exemplo, de uma falha no ambiente de holding. O ambiente
facilitador possibilita ao indivíduo a chave de crescer, freqüentemente, em direção à
41
saúde, enquanto que o ambiente que falha, principalmente no início, mais
provavelmente levará à instabilidade e à doença.
Winnicott situa a etiologia da psicose na estrutura ambiente-indivíduo. Se a mãe
não for capaz de apresentar o estado de preocupação materna primária, deixará que o
bebê caia. Essa queda é entendida como oposta ao holding, e significa que mais cedo
ou mais tarde irá se deparar com a situação de que falhou com seu bebê no mais
crucial dos períodos a dependência absoluta quando o bebê começa a existir como
indivíduo.
O sentimento de ser real, acentuado por Winnicott, não está disponível para o
bebê que não teve a sorte de experienciar uma dedicação regular:
(...) sem uma provisão ambiental suficientemente-boa este self (que pode dar-se ao
luxo de perecer) jamais se desenvolve. O sentimento de ser real está ausente. Se
não existir um caos externo, o sentimento definitivo é o de inutilidade. As dificuldades
inerentes à vida não podem ser alcançadas, muito menos as satisfações.
(1978, p. 497)
Para o autor , a mãe que não atravessar o estado de preocupação materna
primária torna-se incapaz de estabelecer uma empatia com o bebê e, portanto, não
poderá oferecer-lhe o necessário suporte egóico. O bebê é deixado por conta própria e
a falha ambiental por parte da mãe, não oferecendo o suporte egóico pode determinar
múltiplas marcas e traumas no desenvolvimento do sujeito, como a esquizofrenia
infantil e ou autismo, a personalidade esquizóide, como também a constituição do falso
self como defesa da criança. O emprego das defesas, em especial a de um falso self
que obteve sucesso, faz com que muitas crianças dêem a impressão de terem um bom
42
futuro, mas eventualmente um colapso revela o fato de que o verdadeiro self está
ausente.
Winnicott sustenta ainda que as ramificações da falha nesse estágio precoce
levam ao medo da mulher, o que se associa ao medo da dependência:
(...) o reconhecimento por parte da mãe, da dependência absoluta e capacidade de
ingressar na preocupação materna primária é algo de uma extrema sofisticação
que faz parte de um estágio que nem sempre é atingido pelos adultos. O fracasso do
reconhecimento inicial da dependência absoluta contribui para o medo da MULHER,
que é o destino de homens e mulheres. (op.cit. 1978, p.487)
Embora tendo sido mencionado o termo self ,achamos oportuno, colocarmos
como Winnicott o apresenta, ou seja, uma descrição psicológica de como o indivíduo se
sente subjetivamente, sendo o sentir-se real o que coloca o sujeito no centro de
sentimento self.
Em geral, Winnicott localiza o self (central ou verdadeiro) nos primórdios da vida,
mas quando se trata do self total, sua origem está situada no estágio de preocupação.
Na sua última década de vida, o autor diferenciou o verdadeiro do falso self, dando
destaque a um self não-comunicado, a um self central isolado que,em favor da saúde
mental, precisa permanecer protegido a qualquer custo.
Cumpre ressaltar que, embora Winnicott freqüentemente afirme que existe uma
diferença entre o self e ego, esta distinção nem sempre fica devidamente clara ao
longo de sua obra, pois o termo self geralmente é empregado alternadamente com os
termos ego e psiquê. O ego aparece em Winnicott como um aspecto do self que possui
uma função bastante particular. Ele afirma que o self não é o ego ,porém jamais
estabeleceu sua diferença.
43
Deste modo, o self é composto por todos os diferentes aspectos da
personalidade que, na terminologia de Winnicott, constituem o eu, uma forma distinta
do não-eu, de cada pessoa. A palavra self , por conseguinte, representa um sentimento
de ser subjetivo.
De uma maneira geral, Winnicott acreditava - ser a melhor coisa possível - que
houvesse alguém que fosse a principal pessoa a dispensar cuidados no princípio da
vida do bebê. Em circunstâncias ideais, esta pessoa seria a mãe biológica. Entretanto,
a polêmica desencadeada ao longo de toda a sua obra é se uma mãe adotiva, que seja
capaz de ingressar em um estado de preocupação materna primária, igualmente será
capaz de fornecer os ingredientes necessários ao desenvolvimento do ambiente de
holding, tanto físico como psíquico.
É importante destacar que Winnicott não crê em um instinto materno. Uma ênfase
demasiada, posta sobre os aspectos biológicos, faz diminuir a importância dos estados
emocionais existentes entre mãe e filho.
Fica bastante claro, através das colocações de Winnicott, que, se o toque materno
no bebê no decorrer da fase de holding não for suficientemente bom, jamais será
possível ao bebê sentir-se integrado a seu próprio corpo. Isto só será possível quando a
mãe depara com a onipotência do bebê e, de algum modo, lhe sentido. Se permite
fazê-lo em incontáveis vezes, fortalece o ego e facilita o surgimento do self verdadeiro
ou central, nos primórdios da vida. Segue para o self total, cuja origem está situada no
estágio da preocupação quando o bebê é capaz de ver a mãe como um outro que
não ele próprio. Winnicott descreve este fato como sendo a aquisição de um status
44
unitário, que se estabelece quando o bebê alcança o ponto em que pode distinguir
entre eu e não-eu.
Partindo da polêmica desencadeada por Winnicott ao longo de sua obra, se uma
mãe adotiva será capaz de ingressar em um estado preocupação materna primária e
se igualmente será capaz de formar com tudo que é necessário, um ambiente de
holding, levantamos a questão da diferença entre o adoecimento normal em função da
preocupação materna primária da mãe biológica e a mãe adotiva.
O ambiente tem como função assegurar o cuidado necessário e suficiente ao
bebê, e tem sua importância máxima na fase primitiva, no período de dependência
absoluta. A mãe ambiente é a pessoa que melhor desempenha a tarefa que é a
maternagem.
Uma conclusão bastante simples pode ser inferida das idéias de Winnicott a
respeito da mãe sadia, que é aquela que ingressa em um estado de preocupação
materna primária a partir da gravidez e estendendo-se após o nascimento. No entanto,
Winnicott é bastante flexível a esse respeito e reconhece, ainda assim, as mães
adotivas podem ser boas mães, no sentido de que se esforçam em oferecer algo de
melhor a seus bebês.
Entretanto, a tarefa de proporcionar certos cuidados à criança pode ser
prejudicada no futuro próximo, quando não são capazes de alcançar esse grau de
doença normal, que as possibilitam adaptar-se, delicada e sensivelmente, às
necessidades dos bebês.
Segundo Winnicott, o self verdadeiro da criança começa a ter vida pela força dada
45
ao ego fraco do lactente pela complementação por parte da mãe, às expressões de
onipotência do bebê. A maneira como a mãe se comporta e se sente em relação a seu
filho, exercerá uma grande influência sobre a saúde do bebê, particularmente durante a
gravidez e logo após o nascimento.
Encontramos entre nossas entrevistados, Marisa que apresenta um equilíbrio
psíquico que corresponde ao que Winnicott (1960) descreveu como falso self, cuja
etiologia situa-se na relação precoce mãe-bebê, quando o papel de mãe, conforme
vimos, é de fundamental importância. Marisa mostra a submissão e dependência ao
ambiente, tentanto corresponder ao que é esperado dela.
Fui adotada logo após o nascimento. Meus pais biológicos tiveram quatro filhos e
deram os dois mais velhos para a adoção, por dificuldades financeiras. Meu pai
ofereceu-me ao diretor da escola em que trabalhava. Assim, fui acolhida por uma
família composta de pai, mãe e três filhos já adolescentes, dos quais apenas
minha irmã gostou de minha adoção. Aos nove anos minha mãe adotiva faleceu.
Foi mais uma perda e que me revoltou muito. Minha irmã sempre gostou de mim
e me ajuda até hoje, ela desempenhou o papel de mãe. Aliás, acho que tive ou
tenho quatro mães: a mãe de origem, a mãe adotiva, minha irmã/mãe e no curso
que faço no SENAI sou a mais nova, e todas, as colegas procedem como se
fossem minha mãe. Isto eu curto muito.
2.3.5 MARGARET S. MAHLER – DIFICULDADE DA SEPARAÇÃO-
INDIVIDUAÇÃO
Nessa nossa pesquisa, temos interesse especial em considerar a interação e o
relacionamento inicial mãe-criança, prejudicado ou não pelo fato da situação de adoção
entre outras circunstâncias. Concordamos com MAHLER (2002. p. 202) ao indicar três
variáveis envolvendo a mãe e que possivelmente repercutem em particular na
46
formação, promoção ou impedimento do desenvolvimento da adaptabilidade, da pulsão
e do ego de cada criança. São:
1. A estrutura da personalidade da mãe
2. O processo de desenvolvimento de sua função parental
3. A fantasia consciente, mas particularmente inconsciente da mãe com
relação à criança.
Essas variáveis junto com as potencialidades da criança determinam até que
ponto a criança é capaz de preencher as fantasias e expectativas específicas da mãe.
Entre outros autores, escolhemos Mahler(2002) para continuar a abordagem de
possíveis vicissitudes da passagem do não-ser ao ser psíquico.
Antes do nascimento, a mãe surge como complemento biológico para o bebê, sem
que este tenha tomado conhecimento disso. Após o nascimento, quando acontece o
rompimento da membrana a pele que envolvia o recém-nascido, ocorre a
substituição da relação de interdependência biológica pelo vínculo simbiótico com a
mãe onde existe desde os primeiros momentos , um registro por parte da criança. E’
nele que se dará o nascimento psicológico. Para sobreviver, o bebê depende desta
relação dual com a mãe ou sua substituta, a fim de recompor a fusão primitiva de
origem física. Naturalmente, no curso normal do desenvolvimento, separações físicas
reais da mãe contribuem sobremaneira para o sentimento infantil de ser uma pessoa
separada –, mas é o sentimento de ser um indivíduo separado, e não o fato de estar
desligado de alguém que vamos discutir.
Mahler (2002) aborda a interdependência física entre a mãe e o bebê quando se
refere ao nascimento biológico e considera separado o nascimento psíquico como um
lento desdobrar do processo intrapsíquico e que tem seu ponto culminante por volta do
quarto ou quinto mês de vida do bebê, indo até o trigésimo ou trigésimo sexto mês,
47
período onde se concretiza a separação-individuação. Este ocorre após um período
simbiótico de desenvolvimento normal, fase que segue o chamado autismo normal.
Em primeiro lugar, vamos considerar a interdependência física entre mãe e bebê, como
é apresentada por Mahler (2002), quando a atenção da criança está dirigida para dentro
ou focada de um modo vago dentro da órbita simbiótica. Assim conceituada: “A mãe e
todas as partes e atributos da mãe – sua voz, seus gestos, sua roupa e o espaço dentro
do qual ela se movimenta que formam o círculo mágico do mundo simbiótico mãe-
criança.”(p.273)
Essa fase de simbiose normal se desenvolve concomitantemente à diminuição da
barreira inata contra estímulos que o bebê traz ao nascer e permanece até a terceira ou
quarta semana de vida. Trata-se da vinculação psicobiológica entre mãe e bebê, e que
complementa seu ego indiferenciado. É o elemento de sobrevivência da criança até o
quinto mês, um estágio pré-objeto ou de um relacionamento realizador de
necessidades, no qual as representações intrapsíquicas do Self e da mãe não foram
diferenciadas. Como acrescenta Mahler (ibid): “A partir do segundo mês, o bebê se
comporta e funciona como se ele e sua mãe fossem uma unidade onipotente dentro de
uma fronteira comum (a ‘membrana simbiótica’).” (p.273)
No ponto alto da simbiose e por volta do quarto ou do quinto mês de idade surge a
fase de separação-individuação e que deve suplantar a simbiose. A criança vivencia
dois momentos entrelaçados: “(...) o da separação, que leva à consciência intrapsíquica
do desligamento, e da individualidade distinta e única.” (MAHLER, p.272)
Acreditamos que o estudo do período simbiótico normal e dos processos de
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separação-individuação ajudam a compreender melhor as crianças com marcas e
traumas nos primórdios da infância.
Enquanto o bebê é completamente dependente do parceiro simbiótico, segundo
Mahler (2002), esta simbiose tem um significado bastante diferente para o parceiro
adulto da unidade dual. A necessidade que a criança tem da mãe é absoluta: a
necessidade que a mãe tem da criança é relativa. O conceito de simbiose, de maneira
diversa do conceito biológico de simbiose, não descreve o que realmente acontece na
relação mãe-filho: um benefício mútuo entre dois indivíduos. Descreve, sim,
aquele estado de indiferenciação, de fusão com a mãe no qual o selfnão é ainda
diferenciado do “não-self” e onde o exterior e o interior estão apenas começando a ser
gradualmente sentidos como diferentes. O ego rudimentar do recém-nascido e do bebê
ainda pequeno tem que ser complementado pelo vínculo emocional do cuidado
materno, uma espécie de simbiose social. E’ dentro desta matriz de dependência
psicológica e sociobiológica da mãe que se a diferenciação estrutural que vai levar
ao funcionamento autônomo.
Nesta fase importante da constituição do ser, cumpre ainda lembrarmos a
relevância do contato com todo o corpo da mãe, e mesmo, o amoldar o corpo e o
contato visual, especialmente quando a mãe amamenta ( ou a mamadeira) e ainda
fala ou canta para o bebê. São experiências que, segundo Mahler (2002), proporcionam
um desenrolar ideal da simbiose.
Então, a fase do autismo e a simbiose normais são pré-requisitos para o
estabelecimento do processo normal de separação-individuação e a emergência do ego
rudimentar como uma estrutura funcional .
49
Todos nós que lidamos com o psiquismo, sabemos quanto a ocorrência de falhas,
traumas e marcas decorrentes da vivência de dificuldades nas primeiras fases da
existência extra-uterina nos primeiros quatorze a quinze meses de vida levam a
dificuldades, em termos de desenvolvimento e para o funcionamento independente.
Nessas vivências sem o interesse de uma figura materna que o ajude a reduzir a
tensão, o bebê tende a ser assoberbado pelos estímulos, com o aumento do choro e
outras manifestações motoras de afeto indiferenciado negativo. O novo ser passa pelo
processo de familiarização com seu parceiro simbiótico, seus comportamentos se
amoldam ao seu corpo e suas variações: como a pressão que a mãe exerce ao
segurar a criança. Na fase da separação-individuação um aumento constante da
consciência do desligamento entre “self” e o “outro”, que coincide com as origens do
sentido de “self”, da verdadeira relação de objeto, e da consciência da realidade do
mundo externo.
Algumas considerações podemos levantar em relação à mãe adotante, diante do
fato de ter “ganho um bebê”, mas não ter “tido um bebê”, como também as implicações
do fato na representação mental de si mesmo, como mãe e de sua criança adotada.
Estas representações estarão projetadas no encontro mãe-criança adotada. Por
exemplo, enquanto a mãe biológica pensa na criança como parte dela mesma, a mãe
adotiva sabe que a criança era “parte” de alguma outra pessoa. A amamentação do
bebê pode ter modificações, e não representar uma aproximação ideal entre a mãe e
ele. Pode a figura materna sustentar seu bebê no colo, mas não embalá-lo, ou não
olhá-lo, ou não falar e não cantar para ele. Acreditamos que isto aconteça pela própria
50
inabilidade do papel de mãe e por não ter passado pelo processo de maternagem
suficiente.
O que queremos levantar é se essas ocorrências podem ter repercussão mais
significativa na constituição emocional da criança, quando no clima de adoção. Onde a
falta de envolvimento e de vivências podem ser destaque, na mãe adotiva, tais como: a
não existência da concepção, do período de gravidez e do próprio ato de nascimento.
Pelo lado do bebê, exatamente, no momento em que ele precisa construir com a
parteira-mãe um “útero-ninho”, necessário à estruturação de seu psiquismo, vamos
encontrar ocupando esse lugar a mãe substituta, que pode não atender as suas
necessidades.
No ínicio, a criança é moldada e desabrocha na matriz da unidade dual mãe-bebê.
Por mais que a mãe se adapte à criança, e seja qual for seu grau de sensibilidade e
empatia, cremos que a capacidade natural e flexível que a criança tem de se adaptar
de modo a obter satisfação – é bem maior que a da mãe, cuja personalidade, com seus
padrões de caráter e de defesa, está firme e, por vezes, rigidamente estabelecida
(MAHLER, 2002).
Ainda se considerando que o bebê nasce em uma unidade dual em que um
termo implica o outro: é a mulher, que deverá exercer o papel de mãe a partir de certas
funções, como narcisar o corpo do bebê e decodificar o que o bebê expressa por meio
do corpo. Através dessas funções surgem os elementos suficientes para o
desenvolvimento e crescimento do bebê que permitem o processo de individuação e
formação do aparelho psíquico, desde que a figura materna ou substituta tenha
disponibilidade para tanto.
51
Acontece que, dentre as representantes do sexo feminino, encontramos algumas
que entendemos serem portadoras de disponibilidade interna para esse desempenho
satisfatório. Outras, entretanto, parecem não apresentar tal condição pelo menos nos
relatos e observações na clínica psicanalítica. Porém achamos pertinente colocar
que essas mães seriam assim, quer seja o filho adotivo ou filho biológico.
Possivelmente são filhas de mães cuja forma de maternagem também foi deficitária.
Essa acessibilidade interna, dentro de nosso quadro de reflexões, constitui-se uma das
condições essenciais para o processo de filiação funcionar satisfatoriamente na
estruturação do psiquismo da criança.
De uma maneira geral, trabalhamos com vários autores procurando compreender
a subjetividade em sua constituição, nos seus primórdios e na ocorrência, durante seu
desenvolvimento no primeiro ano de vida e de possíveis interferências causadoras de
falhas, traumas e marcas na vida adulta.
Encontramos, em algumas pessoas, marcas relativas ao processo de adoção que
funcionam como verdadeira ferida aberta, como um trauma.
2.4– TRAUMA CUMULATIVO DA ADOÇÃO
As palavras trauma e traumatismo foram utilizadas originalmente no contexto da
medicina e da cirurgia. Em Freud (1940), retomamos estes termos psicologicamente,
quando se referem a um impacto psíquico violento ou a um acontecimento intenso na
vida do indivíduo, sendo este incapaz de reagir de forma adequada, metabolizando-o.
52
Como conseqüência, um transbordamento emocional que provoca efeitos
patogênicos duráveis, na organização psíquica.
Se apreciarmos o trauma como uma vivência cumulativa não elaborada, devemos
pensar os diversos mecanismos defensivos que o transformam em algo impensável, em
algo que não é representado porque envolve uma dimensão que inclui o meio ambiente
da criança. Nas situações traumáticas, o papel do meio ambiente/mãe é constituído
pelo “auxílio externo”,quando a figura materna pode desempenhá-lo, principalmente
nas ocorrências de desamparo que se situam bem no centro do conceito de trauma.
Freud, em seus escritos “Análise Terminável e Interminável(1937)” e “A Divisão do
Ego no Processo de Defesa (1940)”, focalizou sua atenção no ego, diante das
modificações sofridas no decorrer de conflitos defensivos da primeira infância, assim
como, através de variações primárias congênitas e dos distúrbios da função sintética
ocorridos no próprio ego. Essas formulações têm amplas implicações para avaliar a
origem e função do trauma.
Khan (1977), por exemplo, desenvolve o conceito de trauma cumulativo, dando
lugar preponderante às falhas da função de barreira protetora, representada pela mãe
junto à criança. Considera o autor a função de mãe assim: “O trauma cumulativo tem
início no período de desenvolvimento em que o bebê precisa e usa a mãe como seu
escudo protetor.” (p.70) Esta é uma situação tipicamente humana, que a
dependência do bebê é mais prolongada que de qualquer outra espécie. Esse
prolongamento garante o surgimento do bebê humano eminentemente diferenciado e
independente.
53
Khan constrói a hipótese de que a mãe tem papel preponderante de proteção,
desempenhando verdadeira função de pára-excitação diante da criança.
Com o papel de escudo protetor, a mãe constitui o ambiente normal, necessário
ao bebê. O trauma cumulativo resulta das fendas observadas no papel da mãe, durante
o desenvolvimento do bebê, em todas as áreas de experiência onde a criança precisa
da mãe como ego auxiliar. Tal conceito procura oferecer, em termos de
desenvolvimento inicial do ego e no contexto do relacionamento mãe-filho, uma
hipótese complementar ao conceito de pontos de fixação no desenvolvimento da
libido. Neste sentido, procura-se esquematizar os pontos essenciais de tensão,
existentes no relacionamento mãe-filho para formar um componente dinâmico na
morfologia de uma determinada subjetividade.
As fendas compreendem a participação pessoal da mãe junto à criança, tanto no
aconchego como através dos cuidados com a alimentação, com a mamadeira, com as
roupas, com o berço e o quarto, desvelos de que a criança depende para um mais
completo bem estar. A repetição das fendas no decorrer do tempo e entremeadas no
processo de desenvolvimento com outras ocorrências não-satisfatórias para a criança
se acumulam de forma silenciosa e invisível, e, pouco a pouco, vão-se fixando até
formarem características destacadas na estrutura subjetiva.
Khan (1977) admite que o emprego da palavra trauma - conceito de trauma
cumulativo - não nos deve levar erroneamente a considerar que as fendas observadas
no papel da mãe como escudo protetor, como traumático, na época ou contexto em
que ocorreu. adquirem valor de trauma cumulativo a posteriori, especialmente na
adolescência.
54
O colapso do papel da mãe como “escudo protetor” foi também discutido em
termos de perda e de separação da mãe. Gina Levinzon (2004) fala das marcas que
funcionam como verdadeiras seqüelas em pessoas adotadas, e nomeia tais situações
como “traumas cumulativos da adoção”, próprias de bebês que viveram situações
difíceis, de desamor, abandono, rejeição e separação no início da vida, quando o
sofrimento potencializa a sensibilidade para a vivência da falta e cujos efeitos são
percebidos e visíveis apenas no futuro.
A autora chama atenção para a grande freqüência e intensidade com que a
angústia de separação aparece na análise de crianças adotadas, em comparação com
a análise de crianças não-adotadas atendidas.
A separação da mãe biológica pode ser concebida como uma “falha básica”
(Balint, 1993), correspondendo aos efeitos de um trauma no desenvolvimento da
criança, influenciando no seu psiquismo. A situação ambiental que se segue pode
oferecer um ambiente de sustentação (holding) adequado, de modo que a marca
registrada passa a ser sentida apenas com uma cicatriz. Algumas vezes, no entanto,
encontramos em algumas pessoas marcas relativas ao corte primário, ou melhor, a
ausência da continuidade onde fica ameaçado seu ritmo maturacional e que deixam
feridas ou cicatrizes em sua vida adulta. Os fracassos ambientais não são sentidos
pelo bebê como fracasso da mãe, mas como ameaça à existência pessoal de seu self.
O colapso do papel da mãe como escudo protetor pode ser pensado em termos
de perda ou separação da mãe biológica, como foi observado no caso Ruth, uma das
participantes das entrevistas, por nós desenvolvidas, com filhos adotados adultos.
No discurso de Ruth, percebemos as marcas que repercutem na sua função de
mãe :
55
Fiquei muito alegre quando engravidei e pude sentir o que a minha mãe sentiu.
Mas no nascimento de minha filha tive muitas dificuldades por não ter
contrações para o parto normal embora desejasse, e também, quando não
não consegui amamentar minha filha por não ter leite.
Refletindo sobre a hipótese fundamental de WIinnicott (1956) de que o colapso
do papel da mãe como escudo protetor em relação às necessidades primárias do bebê,
determinam uma compulsão na criança e no adulto, com finalidade de corrigir os
desequilíbrios e dissociações na integração do ego, levando a certos tipos de defesas.
Vemos que isto ocorre pela regressão às necessidades de dependência que
evidenciam igualmente a vivência de situações transferenciais do passado para o
presente, como Ruth apresenta em vários aspectos de seu discurso: quando apresenta
falhas no que seria uma provisão suficientemente boa dos cuidados maternos. Como
também, acontecimentos psicofísicos do estádio pré-verbal do relacionamento mãe e
filha, influenciando, inconscientemente, agora, no relacionamento atual de Ruth com o
bebê, constituindo a estrutura e a função do trauma cumulativo.
Depois desta digressão, de refletir sobre a constituição da subjetividade na
referência de vários autores, tentando partir para a compreensão do indivíduo na
condição de adoção e começando muitas vezes das observações dos filhos biológicos
para o estudo apreciativo dos filhos adotados, vamos, agora, na busca do encontro do
individual e do familiar. Olhando o externo e o interno a família com sua vivência
participativa, a cada momento na construção da subjetividade.
56
CAPÍTULO III FAMÍLIA NA CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE...DO FILHO
ADOTADO
“Nenhum agente parece ser mais eficaz que
outra pessoa para tornar vivo o mundo de
cada um, ou para, com um olhar, um gesto,
ou uma observação, fazer estreitar os limites
da realidade em que cada um se encontra
confinado.”
(GOFFMAN, 1961, apud LAING, 1971,p.24)
Não escolhemos nossa origem, não podemos mudá-la. Ela é prévia a nós, não
depende de nós, participa na determinação de nosso vir-a-ser. Somos modelados pelo
que nos precede e não temos de fato acesso a isso.
De onde viemos? A vinda de uma criança ao mundo é, em sentido estrito, a
passagem do não-ser ao ser, o que é muito mais inimaginável que a morte. A origem é
a um só tempo determinante e inacessível.
Por outro lado, a filiação nada mais é que uma construção imaginário-simbólica
produzida a posteriori, pois o nascimento, ao separar o que existia, abre espaço para
que nova história aconteça, estabelecida a partir de fragmentos restantes e de
acontecimentos marcantes. A verdadeira história é uma produção do sujeito, uma
possível liberdade para constituir seu próprio vir-a-ser.
Partindo-se da dependência e do desamparo inerente ao ser humano, a finalidade
da família, embora sofra variações históricas, mantém-se essencialmente como
instituição estruturante do indivíduo. E de acordo com a trama familiar estruturada
consciente e inconscientemente, representada principalmente pela diferença dos
elementos que a compõem, serão determinados os lugares que o ser irá ocupar e as
funções diferentes que irá exercer.
57
Através dessas condições é que se desenvolvem os atributos humanos como o
pensamento, enquanto capacidade de simbolização, crítica, julgamento e criatividade,
entre outros. Podemos dizer que a família tem como finalidade propiciar o
desenvolvimento no ser humano de sua capacidade de pensamento em sintonia com
os sentimentos.
Na relação familiar existe um caráter simbólico subjacente à sua estrutura,
conforme nos fala Berenstein (1990), que diz respeito ao modo como a família se
organiza com relação aos costumes, aplicação de nomes próprios entre os membros,
manifestando-se no interrelacionamento por meio de aspectos inconscientes. A matriz,
a estrutura inconsciente, provê os significados para todos esses elementos. As tramas
familiares constituem o plano consciente e organizam-se em diferentes formas por
intermédio dessa matriz simbólica inconsciente que existe por trás da estrutura familiar
consciente. A estruturação do sujeito se faz dentro de uma rede de parentesco que
determina sua modalidade de funcionamento psíquico inconsciente.
Assim, a família é o locus de constituição do sujeito, onde é delineada a
construção ético-estética da subjetividade.
O sujeito, no percurso de sua estruturação, participa, então, do jogo presença/au-
sência do outro, impensável a princípio. Conforme Lacan (1972-1973, p. 148) nos diz:
“O Outro tem, para o homem, valor cativante, pela antecipação que representa a
imagem unitária tal como é percebida, seja no espelho, seja em toda a realidade
semelhante.”
Freud (1921, p.91), por sua vez, em seu estudo da psicologia do grupo escreveu:
58
“Só raramente e sob certas condições excepcionais é que a psicologia individual está
numa posição de negligenciar a relação entre indivíduo e os outros. Na vida mental de
um indivíduo invariavelmente há mais alguém envolvido (...).” Enfatiza que nossas
relações com outros sujeitos constituem o principal tema da pesquisa psicanalítica,
requisitando um status de fenômenos sociais contrastando com as abordagens
narcisistas. Portanto uma forma de abordagem contém necessariamente a outra. O
individual abrange o coletivo e este, por sua vez, o individual. Um não se faz sem o
outro.
Winnicott ( 1975, p.142 ), em seus trabalhos, considera que o ambiente influencia
no desenvolvimento humano, incluindo, em suas pesquisas, tanto a análise da situação
familiar quanto da cultura em geral. Para ele:
O espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o
indivíduo e a sociedade ou o mundo, depende da experiência que conduz à
confiança. Pode ser visto como sagrado para o indivíduo, porque é aí que este
experimenta o viver criativo.
Família é um sistema de vínculos afetivos, cuja especificidade se define por sua
função essencial, enquanto lócus de formação da estrutura psíquica dos seres
humanos. Esse processo se através das relações que a criança estabelece com as
figuras de apego, principalmente com a mãe e o pai - ou com os substitutos simbólicos
-, que lhes transmitem padrões de comunicação, afeto e disciplina. As primeiras
relações de um bebê e de uma criança são a origem da percepção de si próprio e do
outro, assim como de um estilo e capacidade de amar e interagir com a vida.
59
Sabemos que toda família elabora uma imagem interiorizada comum ao grupo cuja
função é, também, a de unir seus membros em seu projeto comum. A crença em um
mito familiar reforça o sentimento de pertinência a este grupo. Mas é também a partir
dela que se estruturam as fantasias individuais; mito e fantasias fazendo eco um ao
outro, isto é, aparelho psíquico familiar interagindo com o aparelho individual.
O problema a ser agora apresentado é a influência recíproca entre família e
indivíduo, considerando-se particularmente a existência de adoção. Um primeiro passo
importante é trabalhar o conceito de desejo de filhos que vai implicar no desejo de
família e, por último, a transmissão da vida psíquica entre gerações transgeracional
ou intergeracional que a família é fundamentalmente o espaço de circulação da
transmissão psíquica. Assim o processo de filiação, presente em todos os grupos
familiares, será discutido diante da questão da adoção.
3.1 DESEJO DE FILHOS
Fazer uma criança. Ter um filho. Dar um filho.
Trata-se de problemas que dizem respeito tão diretamente às relações entre os
sexos e a idéia de que comportam uma determinação inconsciente que se impõe como
uma evidência incontornável.
Por outro lado, temos a acrescentar que, cada vez menos, fazer filhos é ao acaso,
mas produto do desejo inconsciente marcando a submissão do sujeito à sexualidade,
considerando-se que fazer filhos dar-lhes condições de vir-a-ser é mais difícil do
que simplesmente procriar. Que contribuição pode dar a Psicanálise à compreensão
60
desses dispositivos e outros, como no nascimento, se os primórdios do surgimento da
subjetividade estão em jogo? Quando, até mesmo, na constituição do casal e nas
relações estabelecidas entre os parceiros temos determinantes da subjetividade.
A sociedade confere à criança um estatuto, porque a encarrega de realizar o futuro
do adulto: “a criança tem por missão reparar o malogro dos pais, realizar-lhes os
sonhos perdidos” (MANNONI,1987, p.9). Assim, quando nos deparamos com as
queixas dos pais nos consultórios, estamos, também, diante da problemática própria
dos adultos quanto às representações que trazem da própria infância. Estas situações
também são reconhecidas, na análise, quando o adulto nos fala do passado. O que nos
expõe não é tanto uma realidade vivida quanto um sonho irrealizado. O discurso, que
se processa na clínica psicanalítica, tanto o produzido pela criança como pelo adulto,
nos remete mais ao mundo de desejos e de sonhos do que à realidade.
Realizar um desejo de ter uma criança leva-nos a perguntar: como ocorre esse
desejo? Preferimos, em função de nosso objetivo, focalizar quando ele é satisfeito por
meio de adoção, sem relação sexual.
Sabemos que a filiação acontece, em primeiro lugar, em relação às estruturas de
parentesco, que passam por outras coordenadas que não a filiação biológica e as
histórias da instituição familiar.
A satisfação e o desejo de ter filhos, em princípio, abarca, entre outras questões:
satisfazer o desejo de eternidade;
passar o sangue/gens de geração em geração ;
superar a ferida narcísica da esterilidade;
lembrar o desejo de completude.
61
Podemos afirmar que o indivíduo tem necessidade de procriar para conservar o
patrimônio genético, para continuar a linhagem e, principalmente, para dar continuidade
à sua história. Queremos, porém, destacar como motivo precípuo o desejo de ter filhos,
desejo esse inconsciente, marcando a submissão do sujeito à sexualidade, em cujo
espaço a fantasia ocupa um lugar central.
Voltando à configuração inconsciente do desejo de filhos, conforme nos afirma
Tort (2001, p.37): “A procriação, pela qual dois sujeitos dão origem a um outro, é uma
operação simbólica, organizada socialmente em todas as culturas.” O processo
biológico de gerar é submetido ao desejo.
Continuando Tort (op. cit): “Trata-se de ter e de ser, de dar, de guardar, de aceitar,
de preencher, de roubar, de faltar, de substituir: nada a ver com a reprodução de
nossos amigos animais.” As forças que sustentam o desejo, a concepção, a gravidez, o
nascimento e a procriação são outras relacionadas com a representação e com “o
objeto” (perdido) e pelas relações dos sexos identificados como masculino e feminino.
São da ordem do simbólico. Este simbólico que como afirma Tort (op.cit) é originário
tanto da Psicanálise como da Antropologia, referenciais que, às vezes, trabalham de
mãos dadas. Em relação à diferença de sexos têm em comum a valorização simbólica
da paternidade como dominação, tanto assim que, na interdição do incesto que a
Psicanálise destaca, utiliza o pensamento do antrópologo Claude Lévi-Strauss (apud
Tort, 2001, p.47), quando diz:
Pois a proibição do incesto garante o afastamento radical, para os dois sexos, da
origem uterina, vale dizer, o distanciamento que lança o desejo para um futuro e
e para uma outra direção, em busca de um conhecimento diferente
daquele, dessa forma vedado, da mãe. A exogamia, neste sentido, pelo menos
em nossa civilização, abre para as alianças, as trocas sociais e econômicas.
Esta interdição, que acusa a diferença das gerações, tem a vantagem de acasa-
62
lar os indivíduos segundo sua própria ordem de atrativos e de potência
sexuada,
segundo a mesma idade, afastando as fixações, provenientes da infância, nas
mães cuja fecundidade está defasada.
O desejo de filhos e o desejo de ter um filho são noções que tiveram seu interesse
renovado desde a utilização dos métodos novos de procriação.
Esse desejo pode se apresentar em múltiplas formas, como na busca de pais
reprodutores ou mães reprodutoras para satisfazer a obtenção de filhos, através da
sexualidade entre os casais, ou ainda, há os que vivem suas questões de desejo
de filhos, adotando-os.
Com a perda da importância da reprodução para a consolidação da sociedade e
da espécie, cada vez mais o desejo de filhos está ligado aos determinantes psíquicos:
vivência da gravidez, usufruto da criança, experiências da maternidade e da
paternidade. Cada um atende, cada vez mais, aos objetivos narcísicos e edipianos de
sua história, considerando-se que nenhum dos motivos verificados está ligado ao outro
sexo, a não ser pela contribuição material para a procriação. A dependência recíproca
das condições da concepção, na qual se encontravam homens e mulheres, lugar
ao modelo de uma vontade individual, eventualmente concorrente, ou oposta, de obter
um filho para si.
Ainda assim, os critérios que determinam a filiação são plurais, e não podem ser
reduzidos apenas ao critério biológico. Conforme diz Tort (2001, p.310):
A tendência a privilegiar este critério, e mesmo reservar-lhe a exclusividade,
inscreve-se num total desconhecimento da dimensão simbólica da filiação.
A criança por nascer e a criança adotada inscrevem-se numa cadeia de desejos,
de expectativas, de fantasmas em parte conscientes nos quais jaz a verdade da
questão de sua origem como sujeito desejante.
63
E o autor demonstra que não é o desconhecimento da verdade biológica que
explica determinados transtornos na adoção, mas os elementos de identidade e de
desejos em jogo nas linhagens. Entre outras conseqüências, uma criança adotada pode
se interrogar, não sobre sua origem, mas sobre a ausência de relações sexuais dos
pais adotivos na sua produção. O uso da verdade biológica está sempre em vias de
funcionar, segundo Tort como o “verdadeiro sobre o verdadeiro”, o que nada tem a ver
com verdadeiro dos sujeitos tendo como referencial a Psicanálise. Entretanto, o
sistema jurídico no qual a verdade biológica é levada em consideração e onde ainda , o
“dizer a verdade” sobre a filiação e a origem, vem tendo um valor diferente,
suplementar, de natureza psicológica, desde que o conhecimento psicanalítico se
disseminou.
Nessas condições, a questão da verdade biológica da filiação pode ser usada
para “harmonizar” a verdade subjetiva ao sistema, ou para liberar os efeitos alienantes
do sistema sobre o sujeito.
Portanto, como podemos situar a criança adotada diante dessa dinâmica psíquica,
levando-se em consideração o desejo de filhos? É difícil determinar, de imediato, quem
foi desejado e quem não o foi. É a partir do vivido de cada indivíduo que se pode
responder, até mesmo ao filho biológico. Todo filho deve ser adotado por um desejo, o
laço de filiação deve ser construído, inventado, que o desejo não pára de se
construir. O sujeito tem sua existência falada antes da concepção, durante a gravidez,
ou antes da decisão de adoção, durante os procedimentos e após a acolhida da
criança, e consolidada, depois, nos anos em que se estruturará a relação pais-filhos. No
64
fundo, um filho desejado pode saber disso depois, como nenhuma figura parental,
pode afirmar, com toda a certeza, que deseja um filho.
Reforça-se a importância de se considerar, aqui, que a construção da
subjetividade nunca termina, que existe uma dialética que jamais se esgota entre a
criação da realidade psíquica e as imposições da realidade externa, representada pelo
contexto social onde se inscreve a família.
3.2 DESEJO DE FAMíLIA
Ao desejo de filhos vem se juntar o desejo de família, do sujeito pertencer ao mais
antigo grupo-instituição, como assinala Claude Lévi-Strauss (apud Roudinesco, 2003,
p.13): “a vida familiar apresenta-se em praticamente todas as sociedades humanas,
mesmo naqueles cujos hábitos sexuais educativos são muito distantes dos nossos.”
Roudinesco (op. cit ) nos apresenta o fato marcante de homossexuais,
homens e mulheres, manifestaram o desejo de se normatizar e reivindicar o direito ao
casamento, à adoção e à procriação medicamente assistida. Logo, pertencer à
instituição família que com a emergência da liberdade sexual foi tão rejeitada, tão
afastada da cogitação desse mesmo grupo.
Com base em Lévi-Strauss (1986), podemos dizer que família é uma estruturação
psíquica em que cada membro ocupa um lugar, uma função. Lugar de pai, lugar de
mãe, lugar de filho, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados pelos laços
biológicos. Porque a procriação, pela qual dois sujeitos dão origem a um outro, é uma
operação simbólica organizada socialmente em todas as culturas. O processo biológico
de geração lhe é subordinado. Tanto é que a questão do lugar ocupado por cada
65
membro pode ser percebida com diferentes composições intrapsíquicas da constelação
familiar. É como Laing (1971) nos apresenta uma família interiorizada em cada
membro, ao lado da família objetivamente percebida. O pai pode ocupar o lugar da mãe
na percepção de um dos filhos, e seu próprio lugar, na percepção de outro filho.
Por sua vez, Freud (1914,p. 108) nos fala: “A criança concretiza os sonhos
dourados que os pais jamais realizaram o mesmo se tornará um grande homem e um
herói em lugar do pai, e a menina se casará com um princípe como compensação para
sua mãe.” Assinalando o fato que o sujeito emerge e é, então, submerso na palavra e
no desejo das gerações que o precederam.
Dada a dependência emocional que é da natureza humana, a finalidade da família,
embora sofra variações históricas, mantém-se essencialmente como instituição
estruturante do ser, em função das diferenças entre os elementos que a compõem e
que determinam lugares que este ocupa e funções diferentes que exerce, de acordo
com o ciclo vital, dentro da estrutura. Dadas estas condições, vai-se formando o
pensamento, aliado às experiências emocionais vividas no ambiente familiar.
Como estas questões influenciam a criança adotada? Como levantamos
anteriormente, existem diferenças significantes entre uma família biológica e uma
família adotiva. A principal diferença é que a criança tem outro casal de pais, o que não
era comum em nossa cultura - até bem pouco tempo - e, às vezes, ainda é difícil para
ela entender isso.
A família adotiva se vê exercendo um papel inesperado, porque tanto as pessoas
fertéis, quanto infertéis não incluem em suas representações e fantasias de família o
tema da adoção. Por outro lado, na escuta dos pais adotivos, quando falam de seu
66
projeto de adoção, identifica-se o desejo de ter um filho, sua fantasia inconsciente que
se desvela nos interstícios de seu discurso. Sabe-se que somente o filho unifica o casal
em um ser “papai” e “mamãe” que se constitui a partir das particularidades
edipianas. Para que o Édipo seja normativo, o desejo de cada um com relação ao outro
é a chave da vinculação triangular, seja a criança filho biológico ou filho adotivo. Se o
desejo pelo parceiro do sexo oposto vier a faltar, entramos então na
monoparentalidade; não no sentido de um único pai, mas no sentido dessa modalidade
do desejo que exclui o outro em seus cálculos pessoais de ter um filho. Tais situações
poderiam explicar a esterilidade psicológica.
Entre os processos que garantem a estruturação familiar está o da filiação, a qual
seja, dar a uma cria humana o lugar de filho.
Por outro lado, os filhos biológicos podem não ser filhos do desejo e do amor dos
cônjugues um pelo outro. O conjunto das condições em que vivem, faz com que eles
tenham deixado a criança vir, porém, de certa forma, aceitaram sua existência sem
amá-la verdadeiramente. Algumas vezes, o trabalho de filiação simbólica não se
concretiza.
Dolto (1998b, p.237) diz: “...há pais que não são ‘o próximo’ dos filhos. Há pais que
fazem desse filho um objeto fetiche, proibido de autonomia, ou que o aceitam para
dele fazer um ser doméstico, domesticado, de que ‘necessitam’, mas que não amam.”
Então, a constituição da filiação simbólica aqui referida, está relacionada com o
lugar e a função do sujeito no desejo dos pais, e através dela a criança terá acesso à
linguagem. O pai, a mãe, o filho designam funções que têm sentido no sistema de
parentesco quando existe o desejo de família. Na construção psicológica da criança, a
67
identificação com seus pais e seus próximos é inevitável, mas a identidade do sujeito
precisa se constituir, o que é processo a partir dos três anos com a diferenciação dos
sexos e a dissolução da situação edipiana. Assim, tanto o filho adotado como o filho
biológico vivem uma primeira fixação amorosa e desejante com o genitor de sexo
oposto. O complexo de Édipo é inevitável, é um fenômeno interior do ser humano, ao
mesmo tempo de amor e ódio, incestuoso, rival, e que através da castração simbólica
a conhecer à criança a lei fundamental humanizadora que veda a realização do
incesto. A ética inconsciente se organiza no momento do complexo de castração.
Os pais adotivos podem complicar ou facilitar esse processo. O perigo para uma
criança adotada são as circunstâncias encontradas nas relações familiares, tais como:
o adotado substituir um filho morto, ou os abortos de filhos, ou após a morte do pai ou
da mãe de um dos genitores, ou ainda para substituir no casal o parceiro ausente por
falecimento ou separação. É importante lembrar que existe, nas relações familiares, um
caráter simbólico subjacente à estrutura familiar, que diz respeito ao modo como a
família se organiza com referência aos acontecimentos vivenciados. A matriz, a
estrutura familiar inconsciente, provê os significados para esses elementos.
As relações familiares constituem o plano consciente e se organizam em
diferentes formas por intermédio de uma matriz simbólica inconsciente. Entretanto,
estas e outras questões relativas ao surgimento do desejo da busca de um filho, da
necessidade de ter uma família, não são referentes a adoção mas, em geral, a
todos os seres humanos.
Dos dois organizadores essenciais do espaço familiar que são o discurso e o
desejo na família, decorre a carência de definir os parâmetros próprios da estrutura
68
familiar inconsciente, pela organização das forças libidinais que percorrem seu campo
e, mais particularmente, a ação exercida por e sobre a psiquê da criança - no nosso
caso da criança adotada.
Ao considerarmos o desejo de família , somos levados a pensar que a entrada de
um novo ser em uma família, em um grupo existente, representa partilhar certas
idéias, convicções, crenças, mitos e ritos concernentes ao grupo. Essas crenças estão
ligadas àquilo que convém chamarmos de “mito grupal” e onde cada grupo imprime
suas próprias características e desejos conscientes e inconscientes.
A família é um grupo particular, sobretudo no que diz respeito ao modo de entrada,
não é o único, mas é um dos raros grupos em que o desejo de pertencimento de seus
membros é pressuposto.
O psicanalista francês Neuburger (1995), em seu livro, nos apresenta ao que
chama de processo de “enxerto mítico” : “processo imaginário que leva uma criança
a entrar em grupo familiar, que a situa em uma filiação.” (p.76) Segundo o autor: “...é o
tecer o vínculo entre o ritual de adoção e um complemento mítico.” (p.77). Como
exemplo, pensamos no reforçamento narcísico esperado e necessário para um
determinado grupo familiar. Sublinha, também, que sendo um processo puramente
imaginário, os “laços de sangue” ou a “cor da pele” não têm grande coisa a ver com o
processo, portanto pode ocorrer tanto em relação ao filho biológico, quanto ao filho
adotado; o que de fato importa é o modo de entrada na família. Este irá permitir a
criança criar raízes, pois isso poderá dar um sentimento de estar segura e aceitar
seu pertencimento.
69
O indispensável em caso de adoção é a construção do vínculo, não somente com
os pais, mas do filho com seu grupo familiar , e deste com a criança, a exemplo da
operação de enxertar uma parte viva de um vegetal em outro vegetal, para neste se
desenvolver como se desenvolveria na planta de onde saiu.
Até aqui, em relação ao desejo de filhos que acompanha o desejo de família,
ponderamos que o nascimento seguido da adoção, ao separar o que existia, reduz a
questão da origem da criança, afastando-a da vivência de sua pré-história familiar para
construir nova história na família da adoção. Confrontamo-nos com algo que vem
romper –com a anterioridade do ser – que vai além e atinge profundidade maior do que
rompimento biológico.
Ao cair o bebê em nova família, terá um novo “locus” diferente daquele da
concepção, da gestação e do nascimento. Assim apreciada, a diferença na constituição
do sujeito localiza-se entre os desejos dos pais biológicos, especialmente a mãe, e os
desejos dos pais adotantes, e mais, a hiância que ocorre na história do adotivo e cujas
conseqüências serão percebidas no futuro. Sem atender ao que é mais positivo ou
negativo, levantamos a bandeira do diferente na constituição do filho adotivo.
Continuando a análise deste espaço psíquico familiar, espaço no qual a
subjetividade pode constituir-se, vamos privilegiar, agora, o grupo familiar como espaço
de circulação da transmissão psíquica, como matriz do trabalho intersubjetivo.
3.3 A TRANSMISSÃO PSÍQUICA NA FAMÍLIA DO ADOTADO
70
Através da compreensão psicanalítica da família, do casal e do trabalho de grupo,
chegamos à constatação de questões teóricas e práticas que superam as teorias
conhecidas para explicar o funcionamento do aparelho psíquico. Este é o espaço
familiar onde se articula e se efetua a circulação da transmissão da vida psíquica entre
gerações. Para que ela exista, é necessário que o potencial trazido pela criança ao
nascer seja ativado pelos vínculos intersubjetivos no grupo familiar. Tal conhecimento
se pelas cenas vividas pelo sujeito, em suas primeiras relações de objeto, em
função de sua vida pulsional e para dar conta do simbolismo nascido da falta. Aqui
também se inclui o imprevisível de cada encontro, como também, como o sujeito
constrói seu pertencer a uma estrutura em função de valores que presentificam o
posicionamento em um espaço. Nosso objetivo, neste momento, é contribuir para a
evolução do debate sobre a questão da transmissão da vida psíquica, especificando a
contribuição tanto da família biológica, como da família que assume a adoção da
criança e as possíveis conseqüências na vida adulta dessa criança.
Sempre nos perguntamos como se determinou nossa pertença a uma filiação e
como lidar com nosso legado geracional. Legado transmitido inconscientemente através
de dois modos complementares: o intergeracional que consiste no material transmitido
por uma geração próxima e o transgeracional que inclui os objetos psíquicos de uma
herança genealógica mais distante, na qual encontramos vazios e lacunas de
transmissão. O primeiro é considerado - segundo a linha de pensamento de Ruiz
(2000) - como a herança “positiva” da filiação, e a segunda como o “negativo” da
filiação pelo não revelado, que não apresenta possibilidade de simbolização. Inclui o
que foi escondido ou calado pelos ancestrais, bloqueando os processos de
71
transformação psíquica, como doenças, transgressões familiares e sociais, vergonhas,
desconhecimento da existência e destino dos pais biológicos e outras situações
traumáticas.
Por outro lado, desde o nascimento, e mesmo durante o período fetal,
“mensagens” são dirigidas à criança, passando pela relação educativa, pelos cuidados,
pelo modo de carregar e de se ocupar do bebê, mas também pelas palavras, pela
voz...,e a criança captadora vai tomar tudo o que se apresenta. Uma parte de
incompreensível e de desconhecimento vai infiltrar as “falas” carregadas de sentidos
trazidos para a criança nas mensagens cuja mão-de-obra principal é a mãe.
A criança é envolvida, mas também bombardeada com mensagens de todas as
ordens, mensagens mais ou menos compreensíveis, algumas das quais não têm
significado, inclusive para os pais. Algumas respondem à sua expectativa e à sua busca
de sentido; outras assumirão sentido apenas mais tarde; outras, enfim, permanecem
enigmáticas, incompreensíveis e que são impostas à criança e das quais ela se torna
depositária, herdeira forçada.
A título de exemplo, podemos apresentar a fala de duas de nossas entrevistadas
adotadas, denunciando o recebimento de “mensagens” nada explícitas:
Elis: Minha mãe (adotiva) costuma dizer que eu sou a mais bem ajustada (família
com quatro filhos adotados) porque fui levada para casa por minha mãe biológica
e entregue a minha mãe adotiva. Já meu irmão, Augusto, foi abandonado pela
própria mãe no hospital, motivo de suas maiores dificuldades.
Sonia: Gostaria de ver minha mãe, mas acho que nunca vai ser possível devido
regras da minha adoção. Entretanto acho que meu pai (adotivo) conheceu minha
mãe no Paraná, quando da adoção. Pouco comentou sobre ela. E eu fico na
incerteza...
Ambas falam do segredo, do enigma, do impensável, do irrepresentável, já que
72
tomam o lugar daquilo que deveria ser mantido escondido, em segredo seu
nascimento – e daquilo que determinou de fato os abandonos.
Existem diversas origens dos segredos de família. Encontramos acontecimentos
que são guardados como “segredos” porque incluem uma transgressão que, ao ser
descoberta, pode ser submetida a uma lei social que sancionaria, ao mesmo tempo que
geramos um sentimento de angústia ou vergonha de expor-se ao olhar do outro.
Outras situações são guardadas em função da vergonha que as acompanha.
Este é um sentimento que organiza o tecido grupal familiar e se solidariza
com a tarefa de escondê-lo. É oportuno lembrar, aqui, o caso de Sérgio, um dos
adotados entrevistados, quando se refere:
Gostaria de conhecer minha mãe. Sei que é bonita e que possivelmente é, ou
foi prostituta e mora em S. Paulo. Já consegui com uma namorada e pela
internet uma fotografia dela, mas nem meus pais e nem meus irmãos a
reconhecem na foto e ainda dizem:” esquece isso, de maneira nenhuma essa é
sua mãe.”
Aparecem na fala dos adotados, com certa freqüência, fantasias em relação à mãe
biológica, tais como, qual a sua maneira de ser: prostituição, viveu uma vida de
privações ou foi uma sofredora? Em relação à adoção são fantasias comuns e que
ficam no imaginário da criança, sempre como interrogação em relação aos pais, mais
especificamente quanto à mãe. Isto terá interferência na constituição do sujeito.
Surge, às vezes, o desejo de saber e compreender do filho adotivo quanto à
história familiar ,que pode entrar em conflito com a proibição latente, que opõe seu
próprio grupo familiar a seu desejo de saber. Como no caso de Sérgio, acima.
O segredo tem como função delimitar os vínculos intrafamiliares nas tarefas de
contenção e transformação, e ao mesmo tempo, interfere nos diversos processos
73
identificatórios. A família de Sérgio, ao preservar a imagem do “si mesmo familiar” com
a censura, efetiva uma filtragem na tradução ou recorte que faz da realidade do papel
dessa mãe.
Sabendo-se que, para a continuidade da vida psíquica ser viável, é preciso que as
disposições psíquicas herdadas devam ser estimuladas por alguns acontecimentos da
vida individual, ou seja, as estruturas potenciais com as quais a criança vem ao mundo
precisam ser ativados pelos vínculos intersubjetivos do meio familiar.
Assim, a questão do sujeito define-se, cada vez mais, necessariamente no espaço
intersubjetivo e, mais precisamente, no espaço e no tempo da geração, do familiar e do
grupal, até onde exatamente – segundo a formulação de Aulagnier (1979) – “o Eu pode
vir –a – ser” ou ter dificuldades de constituir-se.
Ainda refletindo sobre a fala de Sérgio, o adotado acima referido, lembramos o
discurso familiar “esquece isso, de maneira nenhuma essa é sua mãe”
Kaës(1989) chama de pacto negativo a formação que, em todo vínculo de casal,
grupo, família ou instituição, condena à repressão tudo aquilo que é capaz de
questionar a formação e a manutenção desse vínculo. O pacto negativo é uma forma
de acordo inconsciente entre as partes que recusam a negação radical e aquelas que
ligam as negações de obrigação. Por negação radical entende-se o que não pode ser
pensado, portanto correspondente à existência do não-vínculo. A negação por
obrigação baseia-se na necessidade do aparelho de efetuar operações de negação,
resistência, contestação, recusa e superação a fim de que aspectos importantes da
organização psíquica sejam preservados. Isso acontece tanto para o sujeito individual
como para o sujeito que se encontra vinculado a um grupo. Entendemos,que no caso
74
de Sérgio, essa negação parece necessária para que ele e sua família conservem o
vínculo.
No espaço intersubjetivo, o vínculo é privilegiado como estrutura que liga, abrange
e envolve os dois egos de forma duradoura, segundo Berenstein (1994). Este afirma
que, neste espaço, existiriam pelo menos dois egos, sendo que o contexto específico
em que ocorrem recorta o significado específico dos egos ligados.
Para o autor, o desenvolvimento mental pode ser considerado a partir dos tipos de
relações que se dão entre dois egos: uma parte da relação entre um ego cujo mundo
mental se supõe estar constituído, isto é, com o inconsciente e o pré-consciente
bastante diferenciado e sob o controle do reprimido; e um ego em vias de constituição
que, para conseguir se desenvolver, dependerá do primeiro, dotado com algo
denominado disposição. Esta seria a memória genética que permitiria o aparecimento
de oposições, reconhecimento de algumas estruturas e os vínculos entre elas que,
relacionando-se com o primeiro ego, contribuem para um registro que evolui até a
constituição das representações psíquicas.
Podemos compreender, neste momento, que a constituição do sujeito fica
assujeitada à existência de um ego constituído e que surge como constituinte de um
outro ego em formação. Tal posição é defendida pela psicanálise vincular cujas bases
Janine Puget e Isidoro Berenstein (1993), há muito tempo, tentam assentar.
Então, o que é que vem do outro, que me é transmitido e que eu transmito ou
transfiro -, a que me submeto, do qual me beneficio, ou me traz dificuldades, do qual
posso ou não me constituir herdeiro? O que organiza, nesta realidade psíquica de todos
nós, partilhada, nossa própria subjetividade?
75
Conforme afirma Kaës (1998, p.9):
o que e se transmite, seria então, preferencialmente, aquilo que não se contém,
aquilo que não se retém, aquilo de que não se lembra: a falta, a doença, a
vergonha, o recalcamento, os objetos perdidos, e ainda enlutados.
Tudo aquilo que concerne às vivências psíquicas ou representações na ordem
geracional. Algumas delas inconscientes poderiam ser elaboradas na forma de mitos
familiares ou culturais e outras não, são proibidas.
O que se transmite não é o negativo, é também aquilo que ampara e assegura
as continuidades narcísicas, a manutenção dos vínculos intersubjetivos, a conservação
das formas e dos processos de conservação e de complexidade da vida: identificações,
mecanismos de defesa, idéias, certezas e dúvidas.
Assinalamos que o espaço privilegiado em que circula a herança genealógica é o
grupo familiar formado a partir do encontro de um casal. Surge, assim, a transmissão
psíquica das diversas gerações, das duas linhas da aliança.
No processo de transmissão, temos a relação mãe-bebê, onde a pré-história
geracional da mãe é reativada pelas trocas cotidianas com seu bebê. Isto aconteceu na
relação de Ruth uma das entrevistadas - que menciona seu desejo de amamentar
seu bebê, não conseguindo pela falta leite. Isto a leva às marcas de seu sofrimento
e privações do início de vida: quando não foi amamentada pela mãe biológica nem pela
mãe adotiva. Assim também, há transmissão psíquica na aquisição da linguagem,
na passagem da língua materna, como no período das identificações edipianas com
cada um dos pais - vinculadas a seus desejos inconscientes em relação ao filho e a si
próprios. Estes mecanismos favorecem a repetição e a transmissão de uma geração a
outra.Nascimento e morte na família são acontecimentos que mobilizam a herança
76
geracional, como no caso da coincidência temporal dos dois acontecimentos, gerando
confusão entre vida e morte, assim como seus afetos correlatos. Em todas as etapas da
vida existem experiências que obrigam o sujeito a um novo trabalho de introjeção.
As experiências não integradas de forma harmônica na vida psíquica podem
obrigar os descendentes a simbolizar durante várias gerações o que não foi totalmente
elaborado por seus ascendentes.
O traumatismo individual ou coletivo não superado como forma de transmissão
psíquica entre as gerações permite compreender o caráter obsessivo e, às vezes,
insuportável de algumas imagens psíquicas que pesam sobre um sujeito ou grupo
familiar, e que se vinculam acontecimentos ocorridos com seus predecessores e que
permanecem. Tornam-se significativos devido à sua não transformação ou
representação.
Foram os trabalhos de Ruffiot (1979) que levantaram a idéia de um aparelho
psíquico familiar, seguido da comunicação de Kaës(1980), de um aparelho psíquico
grupal, que nos deram o suporte teórico-clínico para compreender a espécie de “tecido”
grupal que preexiste a todo o psiquismo individual, e depois continua a servir-lhe de
sustentação. O aparelho psíquico familiar funciona sempre, conforme Kaës como:
uma ‘matriz de sentido’ que serve de invólucro e de sustentáculo primários às psiquês
dos indivíduos que nascem no seio de uma família “(1998, p.132).
Cumpre lembrar, ainda, dentro do referencial psicanalítico, as produções de Janine
Puget e Isidoro Berenstein (1993) que propuseram um modelo de aparelho psíquico no
qual se organizam zonas diferenciáveis às quais chamam de espaços psíquicos.
Consideram o espaço intra-subjetivo, o intersubjetivo e o transubjetivo, sistemas de
77
inscrição das representações que determinam dinâmicas diferentes e que se iniciam
desde o começo da vida.
O espaço intra-subjetivo é o que na teoria clássica corresponde ao intrapsíquico
e compreende as representações, imagos, fantasias, sonhos, desejos, a pulsão e as
relações de objeto. Este é o mundo interno, as representações do corpo e do próprio
funcionamento mental que fazem parte desse mundo. Temos o inconsciente, tal qual
Freud o concebeu.
O outro espaço é o intersubjetivo. estão o sujeito e os outros, aqueles com
quem ele tem alguma relação de intimidade. as relações são reais, materiais, o
sujeito experimenta amor, ternura, ódio, irritação e a vivência do ódio e o amor dos
outros em relação a ele. A estrutura familiar inconsciente foi entendida como modelo
de intersubjetividade. A partir daí, podemos supor a existência de pactos e acordos
inconscientes importantes. Também, toda uma gama de sentimentos ambivalentes que
os autores denominam espaço psíquico intersubjetivo. É nesse espaço intersubjetivo
que se constitui a identidade sexual, o sentimento de pertença, primeiramente a uma
família, a uma árvore genealógica.
o espaço transubjetivo, é o sócio-cultural, o macrocontexto, onde cada sujeito
estabelece relações com os valores , as crenças, as idealogias, e a própria história.
Espaço onde são estabelecidas as relações com representantes da sociedade à qual o
sujeito pertence. Influências desenvolvidas com o auxílio das figuras parentais, tendo
a mãe como porta-voz da cultura.
Concluíndo, esses espaços psíquicos, cada um a seu modo, constituem o sujeito
desde sua mais remota origem até sua mais completa inserção na cultura. Mas com
78
o desenvolvimento do aparelho psíquico e, conseqüentemente, do espaço intra-
psíquico é que podemos pensar na existência dos outros espaços. Cada sujeito
componente de um casal traz em si a marca desse processo, determinando todo o
percurso de escolha do parceiro.
Freud já abordava o espaço transubjetivo, sem chamá-lo assim. Em obras como
Totem e Tabu (1912), Psicologia de grupo e a análise do ego (1921) e outras, está
presente a noção de participação da história da humanidade, da cultura e do contexto
social na constituição do sujeito.
Assim, o desejo presente na adoção parece ocupar todos os três espaços. Sendo
que no espaço intersubjetivo caracterizado pelas fantasias, pulsão e relação de objeto,
seria a origem do desejo em questão, já que ocorrem aí os acordos e pactos
inconscientes importantes.
Partindo do pressuposto de que durante a gravidez ocorre uma ligação imaginária
com o feto –bebê, na expectativa que antecede a adoção um vínculo de mesma ordem,
ou seja, fantasmático, estaria presente dentro de uma trama tecida a partir de uma
configuração vínculada com este bebê. De acordo com Bernard (1991), salientamos
que diante de tal situação podemos falar de genuíno desejo de adoção, pois haveria
uma espécie de integração simbólica entre pais e o bebê. Então, o desejo por um filho
fundamenta-se em um desses pactos inconscientes determinados pelos dois egos do
casal. Neste caso, não importa qual a natureza ou origem do filho, se biológico, adotivo
ou fruto de técnicas específicas de fertilização. Entretanto, o tempo de espera na
adoção não tem nove meses, mas tem um tempo específico para cada um, e que mais
ou menos pode mudar de perspectiva durante a espera.
79
Entendemos que é a partir da construção imaginária dos postulantes sobre a
adoção que poderemos obter uma compreensão mais específica sobre o
desenvolvimento das relações.
A filiação na adoção implica a fratura do mito das origens e necessita ser rearmada
e tecida na trama familiar. Isso determina um permanente trabalho de simbolização ,
mas que não se reduz em fazer com que a criança saiba “a verdade”, mas em resolver
dentro do mundo fantasmático a variedade de interrogações e enigmas que essa
vivência, sem dúvida, mobilizará tanto na criança quanto nos pais. Nestas filiações,
tanto o lado materno como paterno ficam desdobrados em mãe e pai biológicos e mãe
e pai adotivos. A nosso ver, tanto um filho biológico como o filho adotivo, desde que
fruto do desejo, terão condições de serem introduzidos em uma linhagem, uma vez que
esta não se caracteriza pela função genética mas pela função simbólica. Porém, na
constituição inconsciente familiar, é preciso que haja espaço para a filiação se
desenvolver.
Existe uma dimensão da transmissão que é censurada e da qual não se fala, onde
queremos destacar os denominados segredos da filiação. Os segredos de família são
de duas origens: os de origem biológica e os de origem psicológica. Daí encontrar-se
filhos adotivos que dizem ter duas mamães. Pensamos com relação à filiação, no caso
da adoção, ser um trabalho simbólico que oferece nova modalidade de ligação. A
adoção coloca a filiação como algo que rompe a continuidade imaginária e material.
Para a elaboração, é preciso um processo de reconstrução simbólica construída e
fantasiada. possibilidade de filiação de um filho adotivo a partir da compreensão de
que o biológico, como intransferível, possa ser elaborado. É a filiação entendida como
80
um processo psíquico vincular em que se insere uma criança dentro de uma linhagem
que ocorre a partir da transmissão, no momento do surgimento do sujeito, ou seja, a
partir da subjetivação. Pelo lado dos pais, é necessário que possuam disponibilidade
interna para a filiação, ou seja, que haja em seu funcionamento psíquico um espaço
para que este fenômeno possa se desenvolver. Ao se refletir sobre a filiação do
adotado, devemos, ainda, considerá-la não como um momento pontual, mas enquanto
dentro de um processo de desenvolvimento do desejo, não o desejo expressão da
vontade consciente.
A nosso ver, a grande dificuldade reside na questão psicológica do segredo.
acontecimentos que são guardados em função da vergonha que os acompanha. Este é
um sentimento que organiza a trama familiar e se solidariza com a tarefa de esconder a
transgressão.
Exemplos são os incestos ou filhos ilegítimos e, em alguns casos, os filhos
adotados ou gerados por inseminação artificial de doadores anônimos, que fazem parte
dos denominados segredos de filiação. Embora o conteúdo do segredo possa ser
ignorado, pode ser pressentida a existência de algo cuidadosamente guardado. Podem
determinar desde problemas simples até outras perturbações mais complexas, em
função das alterações presentes na transmissão psíquica.
A possibilidade da vivência de um segredo é verificada em uma das adotadas
entrevistadas. Luiza, quando se refere à circunstância do processo de adoção:
O casal que me adotou não eram casados mas tinham seis filhos adotados
todos
sobrinhos da minha mãe adotiva. Entretanto, fui a única adotada legalmente e
meu nome foi dado por meus pais adotivos. Minha mãe biológica era empregada
da casa e, logo após meu nascimento foi embora. Quando meu pai faleceu só eu
81
tive direito à pensão, digo eu e a primeira esposa com quem era casado perante
a lei. Por esse e outros motivos considero-me filha dele com minha mãe
empregada da casa. Nunca me foi revelada a verdade. Por isso sinto-me sem
“raizes”, olho para traz e vejo um vazio. Percebo-me inferior, pequena. Se estou
em um jantar e me oferecida uma travessa com bifes, sempre pego o menor.
Este é um segredo de filiação que traz sofrimento e incertezas a Luiza, mas
mantido e aceito pelo grupo familiar. Primeiramente como menina, e, depois, como
adulta, Luiza percebe em si emoções e sensações estranhas, às quais não consegue
dar um sentido a partir de sua própria história ou história de seu grupo familiar.
O desenvolvimento dos estudos sobre a transmissão da vida psíquica, a partir de
novos dispositivos psicanalíticos, implica um novo modelo da formação dos aparelhos
psíquicos e de novas perspectivas de compreensão e articulação entre os sujeitos do
inconsciente. Lembramos a importância de se integrar, no campo da Psicanálise , o
estudo da transmissão psíquica em relação ao filho adotado que tem uma pré-história
amputada com os pais biológicos, e faz um enxerto com uma nova família , um novo
grupo. Leva-se, principalmente em consideração,a exigência do trabalho psíquico que
impõe à psiquê sua inserção na geração da nova família e na intersubjetividade, sem
falar nos outros espaços psíquicos.
Depois de passar pelo eixo da transmissão psíquica através das gerações e dando
continuidade à tentativa de ampliar o estudo da construção da subjetividade do filho
adotado, compreendemos que pensar nesse estudo é procurar uma articulação entre
pré-história e história, entre constituição psíquica e intersubjetividade.
O grande tema se refere à necessidade de uma profunda reflexão sobre as
possíveis diferenças entre filho biológico ou adotivo, como também sobre a condição
82
de ser mãe e pai biológicos ou mãe e pai adotivos. Sendo que a diferença, em nosso
entendimento, passa muito mais intensamente pela questão psicológica e menos pela
questão biológica.
CAPÍTULO IV - REFLEXÕES SOBRE A ADOÇÃO
“Bem sabemos que o adotado não deixa indiferentes as
pessoas: algumas o sentirão dotado de certo fascínio pelo
seu misterioso passado, outras o julgarão merecedor de
amparo suspeitando antigas desproteções, outras mais
preconceituosas o julgaram inevitavelmente marcado por
características negativas...
( PICCINI, A. M.e MARQUÊS DE SÁ, 1984,p2)
83
A criança adotada chegou à família por outro caminho, diferente do usual. Tem
além disso, dois ambientes familiares: o de origem e o adotante. Ainda, a maioria das
pessoas imagina a relação pais-filhos como decorrente de filiação consangüínea, e
passando suas representações de família neste tipo de vínculo.
O filho adotado tem como referência uma quebra de continuidade, experiência de
perda, de rejeição e, mais tarde, o medo de perder as pessoas de quem passou a
depender. Por outro lado, o filho que convive com os pais biológicos muito
problemáticos, talvez sinta-se tão rejeitado ou abandonado e venha a desenvolver
sentimentos e fantasias semelhantes aos da criança adotada. Tudo depende de como a
criança é acolhida por seu entorno. Então toda a filiação caracteriza, de alguma forma,
uma adoção.
Os pais biológicos sabem desde o início que a criança é incondicionalmente sua,
enquanto que os pais adotivos se deparam, principalmente no início, com uma
incerteza quanto à solidez do vínculo com a criança. O medo de perder a criança está
freqüentemente à espreita. Uma criança que não passa pela adoção, recebe por
herança uma história familiar de seus pais sem precisar de grande empenho para ser
inserida na constelação familiar. Diferentemente, o filho adotivo depende muito dessa
construção, para ser inserido em uma história e, necessita ainda, da disposição
psíquica de seus pais para ser de fato integrado através do processo de filiação.
Contudo, ambos precisam ser inscritos na trama familiar constituída pelas relações do
plano consciente, mas que se organizam em diferentes formas por intermédio de uma
matriz simbólica inconsciente, a estrutura familiar insconsciente. Assim sendo, essa
estrutura surge como determinante das relações familiares.
84
Compreendendo-se que o processo de filiação é uma questão do desejo dos pais,
e concordamos com DUCATTI (2003), quando afirma:
A nosso ver, tanto o filho biológico como o filho adotivo, desde que engendrados
pelo desejo, terão condição de serem introduzidos em uma linhagem, uma vez
que esta não se caracteriza pela função genética, mas pela função
simbólica.(...) Não se trata aqui, evidentemente, de uma manifestação
consciente ou volitiva. Ao se pensar na questão da filiação do filho adotivo,
devemos fazê-lo desde o ponto de vista do desejo, da complementariedade.
(p. 54)
Pais e crianças ou adultos que fizeram parte de um processo de adoção
deparam-se com um buraco que passa a ser preenchido com as mais diversas
fantasias, por parte dos adotantes e dos adotados. Para que alguém receba um filho é
necessário que alguém queira dá-lo. Diante disto, a família biológica é vista e
interpretada, entre outras fantasias vividas pela família de adoção, como a possível
ameaça de destruição dos vínculos construídos com o adotado.
Portanto, acreditamos que antes de mais nada, diante da reflexão sobre a adoção,
temos que considerar na questão da transmissão de pais para filhos, que a criança é o
depositário; ela é quem dará lugar e sentido as predisposições que a precederam,
herdeira dos sonhos e dos desejos não realizados dos pais e, que constituem as
condições da sua concepção psíquica. Então, até que ponto, ao falar de adoção, não
estamos diante de dores, desafios e de desencontros. ou pelo contrário, diante da
solução que é a mais satisfatória, a mais saudável para o sujeito? Aqui, consideramos
que o entendimento e envolvimento no “processo de filiação”, realidade presente tanto
naqueles que geram, quanto naqueles que adotam um filho, contribui, de alguma forma
como a condição primordial na constituição da subjetividade dos filhos.
85
No desenvolvimento da teoria e da prática psicanalítica, uma questão se impõe
logo, a de que um ser humano é um ser de falta. Assim, todas as representações que
ocorrem sejam do espaço intra-subjetivo, intersubjetivo ou transubjetivo estariam a
serviço do narcisismo a fim de que a questão da completude buscada e desejada, seja
sanada em parte. Todos os movimentos psíquicos gerados durante a constituição do
sujeito, ocorrem no sentido de um preenchimento desse hiato.
Freud, em A Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921), discute a constituição
do sujeito a partir de duas vertentes: a psicologia individual e a psicologia social ou de
grupo. Enfatiza que nossas relações com outros sujeitos constituem o principal tema da
pesquisa psicanalítica. Atualmente podemos dizer que uma forma de abordagem
contém necessariamente a outra. O individual abrange o coletivo e este, por sua vez, o
individual. Um não se faz sem o outro: o individual e o familiar.
Em 1994 os autores Puget e Berenstein (apud Ducatti,2003, p.26) levantam a
possibilidade de a história individual reproduzir todo o sistema relacional cujos efeitos
podem ser observados através dos vínculos e dos mecanismos identificatórios. Assim
afirmam:
A consideração da subjetividade desenha os limites do ego com vários
prolongamentos, alguns incluindo outros, onde intervêm os mecanismos de
identificação. O conhecimento de um conteúdo mental, registrado como estando
na própria mente ou na do outro, estende o da subjetividade a espaços “intra”,
“inter’ ou “trans”: o intra-subjetivo , o intersubjetivo e o transubjetivo.
Isto se refere a onde é posto o destaque da distribuição de conteúdos. No caso do
espaço intra-subjetivo cabe destacar que essa distribuição é no mundo interno, ou
seja naqueles núcleos autogerados das relações do ego com o objeto dentro de
uma espacialidade própria com predominância das representações e dos afetos
86
ligados a elas.(1994, p. 10)
Os espaços referidos estão dentro do aparelho psíquico e funcionam segundo o
modelo metapsicológico proposto por Freud ao descrever o aparelho psíquico em
funcionamento.
O tema da adoção é apaixonante e amplo, traz consigo controvérsias, questões e
vivências carregadas de emoção. Pretendemos a seguir, abordar aspectos importantes
considerados por vários autores que ressaltam a interferência de acontecimentos
traumáticos ou não,e como são subjetivados pelo sujeitos .
Vamos fazer considerações, sobre alguns conflitos ou problemáticas, como
também favorecimentos ou facilitações advindas da circunstância da adoção.
4.1 Conflitos ou problemáticas na adoção
a) Em relação aos filhos – os adotados
Para a Psicanálise, ao se referir aos vínculos, a proposta é de que os aspectos
objetivos das relações possam ser revistos na compreensão não só da subjetividade
- vínculo consigo mesmo - mas também através de seus impasses nas relações, no
encontro do sujeito: com a família e com o social.
Teria a criança adotada, por sua condição, tendência a apresentar problemas
psicológicos ou de adaptação social, escolar ou familiar, comparada com a criança não
adotada? Existiriam conseqüências na vida adulta desses seres? As opiniões
encontradas na literatura psicanalítica são divergentes.
Feder (1974), ( apud LEVINSON, 2004, p.22) considera que a adoção é sempre
problemática. Para tal apresenta manifestações sintomáticas comuns no adotado, tais
87
como: impulsos e distúrbios do caráter. Afirma que: “... os adotados representam uma
parte significativa da população das clínicas psiquiátricas, reformatórios,
penitenciárias,hospitais psiquiátricos e pessoas que tentam o suicídio.”
Sorosky (1975), (apud LEVINSON, 2000, p.36) conclui através de pesquisas com
jovens adotados, que estes são mais vulneráveis a conflitos de identidade na
adolescência e idade adulta do que o restante da população. Observa que é comum a
estes, a preocupação com sentimentos existenciais, de alienação e sentimentos de
isolamento, resultado da quebra na continuidade da vida através das gerações, que sua
adoção representa. Para alguns autores, o corte relativo ao passado, cria um
sentimento de que há um bloqueio em relação ao futuro.
Problemáticas na formação da identidade são, de certo modo, para outros autores
decorrência natural na vida do adotado, na medida que dois grupos de pais e uma
origem muitas vezes desconhecida.
Wieder (1977) e Brinich (1980), (apud, LEVINSON, 2004, p.29) acreditam que a
adoção provoca danos específicos ao desenvolvimento da criança. O que pode ser
comprovado pelo maior número de crianças adotadas em tratamento psicanalítico,
cerca de duas a cinco vezes mais do que os filhos não dotados. Wieder aponta a
vulnerabilidade das pessoas adotadas e problemas emocionais, citando pesquisas que
revelam uma incidência de quinze a trinta por cento de adotados na população
psiquiátrica de países como Estados Unidos da América do Norte, Inglaterra Polônia e
Suécia. Verificaram também, tendência entre os adotados, para sintomas ligados a
comportamento impulsivos, agressivos e anti-sociais.
88
Em 1985, Nickman (apud Levinson,2000, p.21) afirma que há diferenças entre a
experiência de vida de pessoas adotadas e a de outras pessoas, e que estas diferenças
freqüentemente se manifestam sob alguma forma de psicopatologia. O autor acredita
que os adotados são mais frágeis e, que nem sempre expressam as fantasias
relativas a todo o processo de adoção. Freqüentemente são reprimidas, gerando
inibições em áreas importantes da subjetividade, o que pode representar para o
adotado uma ameaça à sua posição na família ou no mundo externo, ao apresentar
identificações inconscientes com progenitores imaginados “maus” ou sem “valor.”
Dolto chama a atenção para dificuldades advindas da adoção, quando observa as
diferenças entre filho genético - filho adotado, justificando que um filho nascido de seus
pais tem os gens deles, ao passo que o filho adotado não tem, e portanto, se aliena
muito mais na identificação – por compensação – do que o filho genético. Ele se
identifica a seus pais adotivos porque é um meio de evitar a erotização. Explicando
melhor, se ele não se identificar a relação com os pais pode ser erotizada e
conseqüentemente, não vai interiorizar a interdição do incesto.
Como questiona Dolto (1998b, p.93):
Como você nasceu de seus pais, eles são você, você começou sendo uma
parte deles, os lábios deles, as pernas deles, um objeto parcial. Uma pessoa
não pode se casar com a própria mão – é a masturbação - , uma pessoa não
pode se casar com um objeto parcial de si – não gera filhos.
Para a autora ser o centro do amor dos pais adotivos, ser o substituto do filho que
não veio, e não o filho deles simplesmente, pode levar a psicose. Presenciamos o
esforço que o filho adotivo terá que desenvolver, para se encaixar no molde do filho
imaginário dos pais. Ele precisa se identificar com eles, o que o filho genético não
89
precisa, pois, é a continuação deles. Assim, o filho adotivo é a continuação dos pais
imaginariamente, antes de o ser simbolicamente, correndo o risco de ser o fetiche dos
pais , em vez de ser seu descendente.
Ocorre-nos agora, as identificações de Sônia, uma das pessoas adotadas e
entrevistadas, quando diz:
Não gosto de pintura no rosto, não uso baton e não cuido muito do cabelo,
deixo-o bem natural. Não gosto de anéis, gosto de relógio bem masculino. Não
vejo nada de diferente em relação ao meu irmão (biológico) e aos amigos dele.
Estou fazendo Odontologia, sou estagiária de meu pai mas penso em fazer
Medicina e Obstetricia, pois, tenho grande prazer em assistir filmes sobre
nascimentos.
Conforme já nos referimos anteriormente, Sônia faz fantasias e sonha com a
possibilidade de ver o rosto dos que a abandonaram, bem como, verificar como foi a
barriga de sua mãe. Temos em primeiro lugar a identificação com o pai: os filhos
adotivos fazem de tudo para se parecerem carnalmente com os pais. A identificação
com os pais representa a resposta ao desejo dos pais. Trata-se de toda forma, de sua
estratégia inconsciente para entrar no gozo do Outro, a fim de se assujeitar a ele e se
tornar o objeto de seu gozo.
A literatura psicanalítica mais atual sobre os conflitos ou problemáticas advindas
da adoção, embora com algumas controvérsias, enfatiza alguns trabalhos sobre a
desorganização da família, outros sobre os traumas da adoção e ainda outros,
focalizam os preconceitos e pressões sociais sobre as figuras parentais.
b) Conflitos e problemáticas em relação aos pais – os adotantes
90
Videla e Maldonado (1981)(apud VARGAS, 1988,p.31)assinalam que quase todos
os pais adotivos têm a fantasia de que realizam algo delitivo e, em conseqüência,
alimentam culpas e temem represálias, como perder a criança supostamente “roubada”;
que a criança resolve retornar para os pais biológicos; que a sociedade os censure pela
não realização do processo biológico da gestação ou que o aspecto filantrópico seja
exaltado. Podemos acrescentar a esta seqüência, baseados em Marin
(1990),(VARGAS, op.cit.,31) temor dos pais de serem confrontados mais uma vez com
seu fracasso pessoal, ao serem questionados pelo filho quanto à sua origem, durante
as interrogações próprias das fases críticas da vida.
Outra questão que pode determinar a diferença são as expectativas de que os pais
adotivos, de alguma forma, devam ser melhores do que os pais que criam seus filhos
biológicos, pois, devem demonstrar antes da adoção sua capacidade para a
paternagem. Hartman & Laird (1990) (VARGAS,op. cit.,p31) por exemplo, atentam para
a possibilidade de casais inférteis que experienciam um sentimento de fracasso em sua
incapacidade de procriarem, terem a fantasia de serem pais extraordinários. Sobre isso,
Marin (1990),(VARGAS,op.cit.,p.31) conclui:
Quando a adoção está a serviço de esconder a carência de ser, tanto de pais, quanto
de filhos, funcionando para manter a onipotência de se julgar capaz de garantir a
felicidade plena ao outro, está sujeita a um provável fracasso.
4.2 Favorecimentos advindos da adoção
a) Em relação aos filhos – os adotados
Entretanto, pela contribuição de autores, como a própria Dolto (1998a) temos a
valorização da situação da adoção quando nos diz:
91
as crianças adotadas são com certeza filhos do amor, porque não houve, no caso
delas, todas as complicações e considerações não raro estranhas à adoção real,
que é sempre necessária, mesmo quando se trata de um filho carnal.” (p. 232)
É a necessidade que todos têm, e se caracteriza pelo entimento vivo de estar
ligado e em sintonia com alguém que lhe é importante.
Defende a autora que o nascimento de uma criança necessita do desejo
associado ao amor por parte dos pais, para que a criança seja possível e venha a
termo. Trata-se da “filiação simbólica” que muitas vezes não ocorre no casal de pais
biológicos, quando a criança acontece sem que haja o acolhimento verdadeiro por parte
desses pais.
Assim, a autora admite que as situações da criança adotada não são mais
complexas que da criança natural, mas são diferentes. pais de nascimento que dão
o filho para ser criado por uma babá, então esta situação, pode trazer complexidades
muito mais significativas do que a criança que não teve contato com a mãe biológica e
foi adotada. Justifica Dolto(1998a):
Não sabemos o que faz parte da hereditaridade dos genes constitutivos do
indivíduo e o que pertence aos significantes que circulam na identificação
estruturante inconscientemente e no amor que os seres têm uns pelos outros.
Intervêm o modo de adaptação ao mundo, a saúde, a compleição, o caráter
inconsciente e a linguagem inconsciente eficiente em seus efeitos de exemplo, eu
ousaria dizer de ética inconsciente. (p. 245)
Acreditamos sim, na relação que se estabelece entre pais e filhos e que vai ser
responsável, tanto pela saúde como pela doença, pelo ajustamento à vida, pela
92
constituição inconsciente do sujeito, pela sua linguagem consciente e inconsciente,
enfim pela elaboração de sua subjetividade.
Prosseguindo com nossa busca sobre as diferenças possíveis, entre a filiação
natural e de adoção, nos deparamos com alguns trabalhos de Winnicott que levantam
a possibilidade de um ambiente de holding , suficientemente bom que se inaugura com
a relação mãe-bebê adotado dentro da família e expande-se para outros grupos sociais.
Esta situação, até se mostra comum, de procurar proporcionar à criança um ambiente
de sentimento de verdadeira filiação, e esperar, como ela é capaz de aproveitá-lo.
A está altura, é necessário considerar com mais detalhes o sentido da expressão
de Winnicott (2001, p.196): “como a criança é capaz de aproveitar um bom ambiente.”
Observa o autor que a criança carente, com privação ambiental, se apresenta
perturbada, e essa perturbação não tem uma natureza tal que a simples mudança
ambiental possa transformar a criança em um ser sadio. Entretanto levanta que a
criança é capaz de beneficiar-se de um bom ambiente começando a melhorar; na
medida em que fica menos doente, torna-se capaz de colocar seu ódio para fora em
relação a carência vivida.
Isto nós lembra Ruth uma das participantes adotadas, por nós entrevistada e já
citada anteriormente, quando nos fala:
Logo ao nascer fui um bebê muito doente e entregue com duas irmães, por minha
mãe ao meu pai. Este resolveu dar-nos. Passei por três famílias, mas ninguém
queria ficar comigo porque me tornei um bebê muito frágil e doente. Quando meu
pai decidiu colocar-me num orfanato, fui adotada por um casal, estabelecendo
com minha mãe adotiva imediatamente uma relação afetiva muito forte. Contam
que logo chamei minha mãe adotiva de “mãe”.
Ruth vivenciou o colapso do papel da mãe biológica como escudo protetor nos
primeiros estágios, quando o bebê é extremamente dependente dos cuidados
93
maternos, da presença continua e, da própria sobrevivência da mãe. Ao ser adotada
realizou-se em si uma adaptação ativa e suficientemente boa as suas carências e
necessidades, sem a qual poderiam ocorrer dificuldades com seu processo de
crescimento e integração.
Se tudo correr bem, a criança adotada depois de conhecer sua situação, será
capaz segundo Winnicott de desenvolver fantasias acerca de lares bons e maus,
sonhando com eles e falando a respeito, e ao mesmo tempo saberá perceber o lar real
que lhe é proporcionado pelos pais adotivos, tal como é na realidade. Como afirma: “O
lar adotivo real tem a vantagem de não oscilar violentamente do bom para o mau e do
mau para o bom. Permanece sempre mais ou menos frustrante e mais ou menos
tranqüilizador.” ( WINNICOTT, 2001, p.212)
Continuamos abordando a possibilidade de facilitação e favorecimento na adoção
segundo Winnicott, que agora nos traz a seguinte questão: “mesmo a criança privada
da vida familiar pode ter vivido em condições favoráveis na primeiríssima infância, pode
até ter experimentado por certo tempo a vida em família.” (2001, p 200) Para o autor é
necessário que a criança confiada a pais adotivos deva ser capaz de responder a algo
tão bom. Na realidade, isso quer dizer que a criança deve ter tido, em algum momento
de seu passado, uma vida familiar suficientemente boa e ter podido responder a isso.
No lar adotivo ela têm a chance de redescobrir algo que foi seu e foi perdido. Numa
situação dessas acredita Winnicott ter ocorrido um bom lançamento da saúde mental do
bebê. Caso contrário, não tendo nenhuma experiência sadia, o ambiente bom tem de
ser criado pela primeira vez.
94
Acreditamos que algo parecido alguma experiência boa tenha sido vivenciada
por Artur, um dos nossos adotivos entrevistados, especialmente quando diz:
Fui adotado com um mês de nascido (segundo informações da família adotiva).
Minha família de origem, que tinha dificuldades financeiras, foi me deixando aos
poucos na nova família. Acredito que nesse pouco tempo de permanência com
meus pais biológicos fui amado. Acho que foi um enriquecimento para mim e para
minha família a minha adoção.
Da criança adotada espera-se que com o passar do tempo, recupere-se da
privação ou carência vivida na família biológica. Não acontecendo o encontro com um
ambiente de cuidados, essa vivência deixaria na criança, não apenas uma cicatriz pela
“quebra” mas sim, uma verdadeira mutação.
b) Em relação aos pais – os adotantes
Nos resta agora destacar os aspectos favoráveis à adoção pelo lado da família
adotante e que contribuiem para o bem-estar do adotado.
A adoção representa a possibilidade de serem pais, àqueles que não puderam
realizar seu sonho de procriação, e que desta maneira têm a oportunidade de exercer
esse papel. Na maioria das vezes são casais estéreis, e sua motivação pode ser o
equivalente ao desejo normal de ter filhos. Por outro lado, às vezes a esterilidade é de
origem funcional e pode cessar com a adoção. Neste caso, a esterilidade pode
corresponder ao fato da mulher buscar, inconscientemente, relações sexuais fora dos
dias onde tem a percepção de estar fértil.
Além disso a adoção de um bebê pode representar a continuação de um nome, de
uma casa ou de uma família.
95
Sabemos que para Winnicott o par mãe-filho forma o ambiente necessário que
auxilia ou pode impedir a tendência inata da criança ao crescimento e desenvolvimento
emocional. A situação ambiental de sustentação, de holding satisfatório conforme
descrito por Winnicott(2001) é o aspecto que mais favorece a adaptação de crianças
mutáveis. Mas para que esse holding, proporcionado em primeiro lugar pela
convivência com a mãe e depois pela convivência com pai e mãe, seja bem-sucedido é
necessário que a mãe, antes de tudo se identifique ( preocupação materna primária)
com o bebê e tenha a figura do pai como suporte ou promotor do estágio de
preocupação.
Para a construção da subjetividade é fundamental que haja um complexo interjogo
entre o bebê e a mãe e depois entre o bebê e os pais. Num primeiro momento, é por
meio do olhar da mãe que a criança vê, é com este olhar que ela se identifica, trata-se
aqui da identificação primária, em que não uma diferenciação entre o “eu” e o “não-
eu”, mas um esboço do sujeito. Este olhar define o tipo de investimento que essa mãe
faz e que vai favorecer a existência psíquica de bebê. A criança vive um processo de
constituição do “eu” numa relação funcional com a mãe.
Portanto, nos parece que o ambiente facilitador, que possibilita ao bebê a chance
de crescer em direção à saúde é proporcionado pela alegria, prazer e felicidade que os
pais se permitam sentir diante do acontecimento: adoção de uma criança. A qualidade
da relação parental, constitui o principal componente da atmosfera apropriada ao
enxerto da adoção.
O narcisismo é um elo necessário entre pais e filhos. Em “Sobre o narcisismo: uma
introdução” (1914) Freud destaca a posição dos pais na constituição do narcisismo do
96
filho: é por meio do filho que os pais têm seu narcisismo renascido, ou seja, o filho viria
realizar os sonhos de desejo insatisfeitos, desses pais, garantindo inclusive a
imortalidade do “eu” através do filho, no caso o adotado.
O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o
narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal,
inequivocamente revela sua natureza anterior. (FREUD, 1976, p. 108)
Para os pais trata-se de um retorno, de um narcisismo secundário revestido, agora,
de investimento objetal, numa associação indissolúvel entre a libido objetal do “eu”.
Esta posição é fundamental para sua sobrevivência psíquica. É desse lugar de objeto,
no qual a criança será investida libidinalmente, que se faz possível o devir sujeito.
A chegada de um novo integrante, na maioria das vezes um bebê, costuma ser
um momento muito esperado pelos pais. Embora se conte com uma pré-história,
recheada de expectativas e demandas, a realidade do acontecimento costuma gerar ou
atualizar um misto de sentimentos: alegria, apreensão, tristeza, medo e incerteza nos
que adotam.
Com o bebê, questões acerca da filiação aportam. Os protagonistas indiretos
desse nascimento são confrontados com a reatualização da filiação, tema tão caro a
todos nós. Muito trabalho psíquico se faz necessário! De saída, surge uma
reorganização familiar, os lugares relativos se movimentam com a chegada de novos
integrantes: filhos se transformam em pais, pais em avós...
Na adoção possibilidades de investimento narcísico no bebê conforme nos
referimos acima. Acontece que o investimento libidinal dos pais em seu filho está em
íntima associação com a imagem narcísica deles. È por meio desse “reviver” narcísico
97
dos pais investido no filho que se faz possível a este bebê ir aos poucos, tendo uma
imagem unificada de seu próprio corpo, pois a primeira unificação dá-se em torno do
“eu” corporal.
Acrescentamos que, se por um lado, fazem parte da contemporaneidade as
“novas formas familiares”, nas quais são identificadas dificuldades de
compartilhamento, nas quais procriação e filiação perderiam o lugar simbólico, nas
quais ato sexual e filiação deixam de ter elos indissolúveis devido às técnicas de
reprodução humana, por outro lado, assiste-se a um interesse de psicanalistas no
estudo da família e da intersubjetividade. uma busca pelo estabelecimento do lugar
do Outro na constituição psíquica.
O prazer autêntico no contato com o filho e no desempenho das funções parentais
são elementos importantes, que fazem com que o encontro seja sentido como algo
enriquecedor e único. E mais, ocorre o reconhecimento de quanto a vida fica
engrandecida pela oportunidade de arcar e criar uma criança.
Partimos agora, para o levantamento e compreensão das diferenças no que
possa ser considerado como diferente no filho adotivo.
4.3 As diferenças... no diferente...
Acreditamos que pelo todo levantado até aqui, as diferenças existem tanto pelo
lado do filho adotado como pela família adotante e que determinam de alguma forma
um ser com diferenças.
Independente da diversidade na adoção é possível falarmos de um verdadeiro
encontro, mas que se de outro modo que na concepção do filho. A concepção não é
98
uma questão de cálculo e domínio, como se poderia pensar: “Faremos um filho no
próximo ano quando estivermos mais independentes financeiramente...” O filho chega
antes da mudança econômica ou não chega, apesar de toda a melhoria do casal. É um
encontro entre um homem e uma mulher que faz com que a criança se anuncie,
levando-se em consideração que o tempo inconsciente não é o do projeto consciente.
Adotar uma criança é um ato que deve ser relacionado a uma certa disponibilidade
psíquica, que permite ao casal abrir-se para acolher uma criança. Não, porque não viria
mais, ou para reparar uma injustiça ou suprir uma falta , mas sim, ocupar o desejo de
um casal. É preciso solidez de desejo para chegar à adoção.
A gestão da emoção e do desejo é diferente na adoção e sua concretização, pelo
fato de que o pai e a mãe estão engajados da mesma maneira, implica os dois numa
espécie de igualdade mais perfeita para o futuro do filho do casal.
O encontro com o filho adotado é o resultado de procedimentos queridos e
mantidos de maneira mais constante e que, além disso, envolvem uma criança aí,
criança que, mesmo que não saiba, está à espera de uma mãe e de um pai. São
condições bastante favoráveis para uma estruturação familiar, porém com certa
diferença.
Uma das questões relevantes ao adotado, marcando a diferença, diz respeito à
história da separação de seus pais, e especialmente em se tratando de bebê a
separação da mãe. Mais ainda, o fato de saber se ele foi ou não desejado por sua mãe
biológica.
Não haveria adoção se não houvesse abandono, mas sabemos que os abandonos
não correspondem a um não-desejo de criança. Por outro lado, um desejo pode chegar
99
ao abandono. O não-desejo de criança por uma mãe, pode ter razões, às vezes até
elogiáveis, como quando vai a busca de substituta adequada para adotar seu filho, que
não pode manter dado seu estado de extrema pobreza.
Winnicott (1978) coloca a polêmica desencadeada ao longo de toda sua obra: se
uma mãe adotiva será capaz de ingressar em um estado de “preocupação materna
primária” e se igualmente será capaz de fornecer os ingredientes necessários ao
ambiente de holding. Para ele, de uma maneira geral, a melhor coisa possível para um
ser, e em circunstâncias ideais, esta pessoa seria a mãe biológica.
Parece que tudo depende do modo como a criança é acolhida por seu entorno,
inclusive no estágio da vida no útero materno.
Para que uma criança nasça, é preciso, antes de tudo, que ela se agarre ao corpo
da mãe e que esse corpo a tolere, a aceite e a deseje.
Dolto (2001) nos fala de uma mulher que não queria filhos e não queria casar-se
com o homem com quem vivia. Esta fica grávida e passa a odiar o pai e o feto, dizendo
sempre: “No dia em que ele nascer vou deixá-lo no hospital e não volto para ‘sua casa’
(apesar de viverem juntos havia vários anos).” (p. 264) Após o nascimento houve a
mudança, passou a amar a criança e o pai, aceitando tornar-se sua mulher. Vivendo
tudo pela alegria de ser mãe daquela criança.
Porém o que mais nos importa aqui, é a conduta desta criança: chorava toda vez
que a mãe a pegava, nunca aceitava o abraço ou beijo da mãe. Na escola era uma
criança inteligente, socialmente era líder mas não demonstrava vínculos afetivos com
ninguém. Quando a professora perguntava: “Você gosta da mamãe?” Ele dizia: “O que
quer dizer ‘gosta’?” E respondia: “gosto do papai, da mamãe, do meu irmãozinho.”
Comenta Dolto (2001):
100
Era uma criança que não tinha eleitos. E acho que foi por ter sido gerada assim.
Sua solidão in útero foi sua defesa. Graças a ela, sobreviveu até o termo,
desejada por aquela que o carregava. Inconscientemente, ela era boa mãe
gestante; conscientemente, não (p. 265).
Parece que a mãe não o abortou porque temia pela sua própria vida, e ele para
poder nascer, se agarrou ao corpo da mãe. Este corpo pelos menos o tolerou, o
aceitou e, o deixou nascer. Estes acontecimento se referem a relação mãe-filho
biológico. É nossa intenção, através dele, mostrar mais uma diferença na constituição
do filho adotivo.
O filho adotivo ao ser afastado da vivência com a mãe biológica, quando bebê, tem
uma pré-história amputada e ao ser entregue a outra mãe, a outra família adotiva vai a
partir daí construir uma nova história, perdendo-se todos os elos embora biológicos mas
determinantes das relações pré-vinculares. Esta diferença fundamenta-se na questão e
trama gestacional.
O processo de filiação sofre a interferência de como se deu a filiação dos pais
adotantes e está também, na dependência dessa nova construção, para quando o bebê
for inserido nesse trama familiar. Conforme coloca Hamad (2002, p.84): “São
necessários nove meses para fazer um bebê e três anos para um filho adotivo.”
Uma outra diferença que merece destaque e que já mencionamos anteriormente: é
levar em consideração a transmissão psíquica geracional e seus efeitos na adoção. Na
constituição do sujeito, temos pelo menos sete envolvidos: avós maternos e paternos,
pai e mãe e a própria pessoa. No caso do filho adotado temos pelo menos treze
envolvidos, além da complexidade das inter-relações, dos ditos e não-ditos, dos
101
segredos, das demandas que constituem o romance familiar da pré-história do bebê e
da história, depois de consumada a adoção.
A transmissão psíquica intergeracional é um trabalho que diz respeito ao sujeito
singular e o grupo. Os processos da transmissão implicam ligações com e entre
diferentes níveis intrapsíquicos e intersubjetivos intermediados pelo grupo, favorecendo
transformações e conduzindo a uma diferenciação, uma evolução entre o que é
transmitido e o que é herdado e depois adquirido. Esse trabalho permite a cada
geração, situar-se em relação às outras, inscrevendo cada sujeito em uma cadeia e um
grupo ou grupos, funda sua própria subjetividade, constiuindo sua história e tornando-
se proprietário de sua herança.
O que é transmitido por uma geração será recebido pelo filho ou filhos na malha
das identificações e no tecido complexo dos laços familiares, portanto depois do
nascimento é que o transmitido atua produzindo suas modificações.
Desde o nascimento, e mesmo durante o período fetal “mensagens” são dirigidas
ao feto, passando pelos cuidados, pela voz da mãe e depois pelo modo de carregar,
pela forma de amamentar, de olhar o bebê, mas também pelas palavras da mãe.
Quero agora, situar a questão da distinção, na dualidade de informações que
aparece na criança adotada, antes do nascimento, durante e depois da adoção. Ela
pode usar inclusões do material primário quando procurar incansavelmente
compreender, ou tentar encontrar um sentido para aquilo que não lhe pertence. Mas
casos em que o risco é maior: se a herança negativa é importante demais ou muito
invasiva para uma criança cujo psiquismo ainda não pode se fundar, esta pode correr o
risco de se identificar ao negativo, àquilo que não pode ser elaborado.
102
Mais tarde, é pela via das identificações primárias, inicialmente, depois edípicas,
que as mensagens negativas da transmissão transgeracional vão se infiltrar. A criança
vai acolher este material com outros processos de identificação e vai colocá-lo em
relação com o que já constituiu desde sua concepção.
Usando mais um referencial: a fala, continuamos a levantar a questão da
diferença.
É em função desse referencial que levantamos a questão da diferença,
particularmente, entre o recém-nascido e o bebê na relação com a mãe biológica, e
especialmente, se esse bebê é adotado por outra mãe , por outro casal, onde essa
diferença pela fala, vai se acentuar.
Consideramos como Lacan (1998, p.498): (...)a linguagem, com sua estrutura,
preexiste à entrada de cada sujeito num momento de seu desenvolvimento mental.”
Isto acontece porque existem outros sujeitos, os seus predecessores que a fazem viver.
Admitir a preexistência do “Outro” em relação ao sujeito faz com que o
desenvolvimento da criança não se reduza nem à sua maturação biológica, nem à sua
história. É aqui que apontamos a diversidade da criança adotada que apresenta todo
um referencial construído numa família e depois, passa para outro cenário familiar onde
a fala, a linguagem vai ser outra.
O diferente, na criança adotada, o não-conhecido está próximo, está presente a
partir da geração dos genitores.
Os pais costumam atribuir à adoção situações difíceis encontradas na criança e no
adolescente e até na vida adulta, como encontramos em nossos entrevistados
103
adotados, e que nós particularmente atribuímos ao resultado da convivência familiar
diversificada.
ainda, outras diferenças talvez menos significativas como alguns autores
apontam. Como Nazir (2002, p.140) :
As crianças adotadas não estão mais expostas que as outras a dificuldades
psicológicas. No entanto, quando elas acontecem, em geral são um pouco
dramatizadas, do lado da criança assim como do lado dos pais adotivos, pelo
fato, justamente dos não-conhecidos ligados a sua origem e a sua própria
adoção.(o grifo é meio)
Todos nós temos, sejamos adotados ou não, uma parte importante de um
patrimônio genético que nos escapa completamente, pois, tão logo possamos remontar
nossa história familiar, há um momento em que se cai no não-conhecido.
Acrescentaremos ainda que uma adoção só funciona se a criança adotar seus pais
adotivos. Antes desta constatação, nós pensávamos que era suficiente encontrar um
bom casal para que tudo corresse bem. Mas não é assim. A criança tem algo a dizer,
uma escolha a fazer e, se não levarmos isso em conta, a adoção se torna difícil e a
seqüência imprevisível.
O grande jogo verificado e observado parece referir-se ainda, à necessidade de
reflexões sobre as diferenças entre ser filho biológico ou adotivo, ser mãe/pai bológicos
ou adotivos. Destacamos, os estudos longitudinais que possam acompanhar os vários
ciclos familiares vividos em função da presença de filhos biológicos e adotados. A
grande dificuldade, por nós constatada até aqui, reside na estruturação psíquica e não
genética ao enfocarmos a constituição da subjetividade do filho adotado, terreno ainda
pouco visitado pelo pesquisa.
104
V – CONCLUSÃO
Quando você foi embora fez-se noite em meu viver...
forte eu sou, mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar...
minha casa não é minha e nem é meu este lugar...
Vou querer amar de novo, e se não der, não vou sofrer
(Milton Nascimento, Travessia)
É preciso concluir sem contudo dar um fim. E nada mais significativo, neste
momento, do que os versos de um filho adotado expressando talvez o luto, o vazio, a
ausência, a falta, o não-compreendido que nossos entrevistados na pesquisa, tantas
vezes denunciaram. Referimo-nos à constituição do sujeito nas suas demandas de
filiação que estão inevitavelmente relacionadas com sua história subjetiva. Tais
questões ficam mais evidentes quando consideramos a trilha constituída a partir da
adoção consumada no primeiro ano de vida e evidenciada através do discurso na idade
adulta, ponderando-se a travessia de cada um.
Muitas vezes, ao se falar de adoção, são sublinhadas as dificuldades que podem
ocorrer no processo de subjetivação do sujeito adotado. Foi exatamente o que nos
desafiou. Procuramos nos referir às “práticas de si” ou às “relações de si” que indicam a
participação da auto-criação, auto-determinação como parte não somente integrante,
mas como condição sine qua non da constituição da subjetividade. Porém, ao
nascermos biologicamente prematuros em relação à possibilidade de uma existência
autônoma, nossa constituição é marcada pela relação essencial com nossos
105
cuidadores fundamentais. Assim procuramos priorizar o campo do sujeito e, em
seguida, o campo familiar, desde a narrativa sobre seu início de vida até o momento
denominado muito mais simbolicamente da “revelação.” Essa está na dependência
direta da elaboração de aspectos inconscientes presentes, inclusive nos pais adotivos.
Acreditamos que nosso estudo contemplou o romance da adoção - com a busca
da pré-história e a história possível de se construir, dos acontecimentos que marcam a
vivência do desligamento da família biológica e entrada na nova família. Nossa busca
incessante foi pelas diferenças entre os filhos biológicos e adotados. Sendo que dos
acontecimentos que marcam a pré-história, apenas as relações táteis e gestacionais
com a mãe ou sua substituta, sendo que com esta, só as primeiras ficam na memória.O
sujeito poderá conservar cicatrizes desta época, feridas das quais poderá ignorar em
que tempo, em que lugar, porque razões foi ferido. Tomando como relato o discurso
dos sujeitos pesquisados, encontramos essas marcas, esses traumas ou essas faltas.
O percurso subjetivo do ser humano é construído através do estabelecimento de
uma relação pulsional entre ele e o Outro fundamental que lhe possibilita ocupar um
lugar simbólico do discurso e no desejo parental e lhe garante uma posição antecipada,
uma pré-história que funciona como uma ponte de ancoragem para sua existência física
e psíquica. Entra aqui a história edípica de cada um dos genitores, do lugar
fantasmático que o bebê vai ocupar em seu psíquismo , da possibilidade de um
investimento narcísico no bebê, antes mesmo de nascer. Foi assim que procuramos
abordar ou compreender a existência de filhos na trama familiar.
A diferença fundamental entre uma gravidez e uma adoção apresenta-se na
questão gestacional. Uma criança que não passa pela adoção recebe, por herança,
106
uma narrativa familiar de seus pais sem que haja necessidade de uma arquitetura que a
insira em sua família. Diferentemente, o filho adotivo depende dessa construção para
ser inserido por intermédio do processo de filiação. Essa empreitada será feita como
conseqüência de uma outra anterior, em que o ser foi subjetivado. A um filho
gestacional, essa história se faz pela transgeracionalidade, digamos espontânea. Ao
filho adotado, uma espécie de artificialidade manifesta-se desde a narrativa sobre seu
aparecimento até o momento da revelação. Essa está na dependência de como os pais
adotivos fazem a elaboração de aspectos inconscientes presentes nas relações.
Para que seja reconhecido na vertente de sujeito, o ser humano é marcado por
uma temporalidade retroativa dos pais, por uma ressignificação de sua própria história
através do filho.
O que dizer, no entanto, dos bebês que nascem e são entregues a outro casal
com o qual podem correr o risco de não serem antecipados como sujeitos, justamente
pela vertente traumática do abandono, da perda, da não continuidade de sua pré-
história, construída, na realidade, com outras figuras parentais? Ao ser separado da
mãe e sem estar adaptado a um outro ambiente, o bebê sofre um transbordamento
energético, da energia interna, como uma auto-intoxicação. É sentido como um ataque
interno que será reativado em toda a angústia posterior.
Então, a ansiedade que nos fala Freud (1926) é inicialmente acúmulo e descarga
da libido não empregada, produto do estado de desamparo psíquico do latente
provocado pela perda do objeto amado, ou melhor, do corpo amado.
Podemos, em relação ao fato da adoção, separando a criança da família de
origem, considerar que os efeitos psíquicos são determinados pelo seu nível de
107
organização psíquica no momento do drama. Todavia, uma outra variável é
determinante: a elaboração que os novos pais terão podido fazer pela entrada desse
novo ser. Surge, porém, um complicador maior quando a mesma configuração
aconteceu na própria história infantil de uma das figuras parentais ou de ambos.
Acreditamos ainda que uma outra circunstância possa ser observada: o luto pela perda,
pela separação que os pais biológicos possam ter desenvolvido.
Através das entrevistas com adultos adotados, podemos destacar algumas
questões marcantes com as quais o sujeito caracteriza suas relações intersubjetivas,
sinalizando algumas diferenças dos filhos biológicos, tais como, desconhecimento dos
genitores reais, desconhecimento de transformações familiares e sociais e as
dificuldades em estabelecer vínculos afetivos nas vivências, em geral.
Esperamos ter conseguido, à guisa de conclusão, marcar a relevância do tema
para a psicanálise em geral, para o atendimento às famílias.
conflitos e problemáticas como favorecimentos ou facilitações advindas da
situação da adoção, tanto para o lado dos pais como para o lado da criança. Mas
continuaremos como historiadores em busca das diferenças, é isso que somos, mas
também historiadores cuja busca tropeça sempre numa “já aí” de nós mesmos e do
outro que resiste à nossa elucidação das diferenças.
Na continuação da busca das diferenças, pretendemos seguir, no futuro mais pelo
viés do trabalho sobre a transmissão psíquica inter e transgeracional, que divisamos
a possibilidade de mais eficácia pela transgeracionalidade e menos pela genética da
constatação das diferenças dos sujeitos.
108
Por outro lado, a confirmação ou inviabilidade de nossa hipótese sobre a
constituição da subjetividade do filho adotado, serão possíveis quando um número
razoável de estudos longitudinais, sobre adotados – a partir do nascimento – nos
proporcionarem constatações necessárias.
Assim, mesmo como hipóteses provisórias de trabalho, abrem-se horizontes, tanto
no campo da prevenção como na área de tratamento psicanalítico dos distúrbios da
criança e do adulto adotado.
Temos questões em aberto. Como também é possível afirmarmos que as teorias
e os dispositivos dos quais dispomos atualmente, devem ser ampliados para podermos
especialmente abordar as questões da constituição do sujeito adotado, por
conseguinte, as diversas modalidades de transmissão psíquica.
A título de conclusão, mas prosseguindo no olhar e na escuta das diferenças,
temos falas que emergiram em nossa pesquisa. Falas que nos atravessam de maneira
decisiva e marcante:
Marina - “Acho que se nos compararmos com as outras pessoas, nós adotados
somos diferentes.”
Ruth - “Quando criança e adolescente sofri um pouco com a marca adotiva,
mas depois de dois tratamentos psicoterápicos passou.”
Arlete - “Comparando minha evolução com outras pessoas, me acho diferente.”
Elis - “Já pensei que posso no futuro adotar uma criança, mesmo tendo meus
filhos.”
Luiza - “Acho que me constituí como pessoa com muita luta, mas apesar de
tudo valeu ser adotada. Penso em fazer tratamento psicanalítico.”
109
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Fontes, 2001, p.3/21
_____________O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
ANEXO
DESCRIÇÕES SUCINTAS DAS ENTERVISTAS
114
Em entrevistas semi-estruturadas, procuramos obter dados acerca dos seguintes
pontos:
1. Revelação da adoção
2. Fantasias em relação aos pais biológicos
3. Elaboração da perda dos pais biológicos
4. Encontro com os pais biológicos
5. Comentário sobre a adoção
6. Conseqüências da adoção
7. Conseqüências para a família com a adoção
8. Sentimentos e relações na família da adoção
Foram entrevistados oito filhos adotivos (dois rapazes e duas moças), todos
adotados durante o 1º ano de vida.
ARLETE MARINA
ARTUR RUTH
ELIS SÉRGIO
LUIZA SONIA
Todos os nomes são fictícios.
ARLETE
32 anos, nível superior e faz análise alguns anos. Foi adotada nos primeiros
dias de vida mas sempre viveu a “dualidade” de passar as férias na roça com a família
de origem. Sua mãe biológica era empregada na casa da família que a adotou. O pai
era de classe média e casado. A família que a adotou é composta de pai, mãe e duas
irmãs e um irmão. grande diferença de idade entre mãe, irmãos e Arlete.
115
Considera-se a mais “mimada” por toda a família e, em conseqüência, sofreu com os
ciúmes principalmente das irmães. Entretanto, estas se preocuparam muito com seu
sucesso profissional. Sabe que quando tinha 4 anos de idade o pai biológico quis
assumí-la, mas não conseguiu. Tem curiosidade de conhecê-lo. Quanto à mãe
biológica nunca percebeu interesse dela por sua pessoa. Esta vivia namorando.
Sempre soube ser adotada e, agora está feliz, pois vai ser adotada legalmente e, vai
até mudar de sobrenome. Acha que tem problemas de relacionamento amoroso e,
comparando sua evolução com as outras pessoas, “acha-se diferente”.
ARTUR
28 anos, cursando o terceiro período de curso superior, trabalha. Foi adotado,
segundo informações da família, quando tinha apenas um mês de nascido. Tem a
sensação que nesse período foi muito amado. A família que o adotou era composta de
uma senhora desquitada e três filhas maiores. Ele foi o temporão desta família. Seu
nome foi dado pela mãe biológica, apenas acha que foi “furo” da mãe adotiva não trocar
o seu sobrenome. Conheceu o pai biológico com 22 anos e agora, pai e mãe biológicos
faleceram. Às vezes tem lembranças do irmão mais velho da família biológica, que
teve oportunidade de conhecer. Costuma se perguntar,e também a família adotiva, se
de fato é parecido com esse irmão. Sua irmã mais nova (família adotiva), sempre
manteve contato com sua família biológica. Acredita que sua adoção foi um
enriquecimento para ele e para família adotiva. Se ficasse com os pais biológicos seria
bem pior, existiam muitas dificuldades financeiras. Acha que a adoção não interferiu em
116
nada e, que o “vazio” sentido interiormente, às vezes, é apenas o “vazio existencial”,
sentido por todos.
ELIS
21 anos. Foi adotada com mais três outras crianças por uma família de poder
aquisitivo alto. A seqüência foi: primeiro a irmã que hoje tem 30 anos, o irmão que tem
também 30 anos e dez anos depois, ela e o irmão da mesma idade, todos de pais
biológicos diferentes. Alguns na família, a nomeiam juntamente com o irmão de
gêmeos, sem nem serem irmãos biológicos. Todos foram adotados através de um
pediatra amigo da família. Os irmãos sempre souberam que todos são adotados. Nunca
tentou encontrar a mãe biológica, até porque não tinha condições: o médico pediatra
faleceu. Acredita que a família teve ganhos com as quatro adoções. A mãe adotiva
costuma dizer, ser ela dos quatro a mais ajustada. E justifica, porque ela Elis, foi levada
pela própria mãe a casa da família para adoção, enquanto o irmão, que tem algumas
dificuldades, foi deixado no hospital onde nasceu. Tem algumas dúvidas e incertezas
como a respeito da data de seu nascimento: 27 de dezembro, data de nascimento
também do irmão. Como fato triste da infância considera as crises depressivas da mãe
adotiva e, recentemente com a separação dos pais adotivos, ficou com medo da mãe
tentar contra a própria vida. Quando os pais se separaram, chegou a pensar se o
motivo teria sido pelas quatro adoções. Está cursando nível superior, tem namorado e
já pensou que também poderia no futuro adotar uma criança, mesmo tendo seus
próprios filhos.
LUÌZA
117
55 anos. Ela e mais seis irmãos foram adotados por um Almirante da Marinha que
vivia com uma segunda mulher. Ela foi a única adotada legalmente, sendo que os
outros seis eram todos sobrinhos da mãe adotiva. Entretanto, ela foi a única adotada
legalmente e, seu nome foi dado por seus pais adotivos. Sua mãe biológica foi
empregada da casa, e logo após seu nascimento foi embora. Quando o pai faleceu,
surgiram as brigas familiares, pois a pensão do pai foi dividida apenas entre a primeira
mulher e ela filha adotiva. Por esse e outros motivos, considera-se filha dele, sendo
sua mãe biológica a empregada da casa. Essa situação nunca lhe foi revelada. A irmã
mais velha (adotiva) após o falecimento do pai, a repudiou dizendo que ela não tinha
direitos. Sempre sentiu que não tinha raízes e, olhando para o passado continuamente,
percebe um grande vazio. Teve juventude muito conturbada, usou maconha, teve de
fazer psicoterapia e, conseguiu sair do vício. É professora do ensino fundamental e
agora cursa o nível superior. Sente-se muito inferior, pequena. Se estiver num jantar,
pega o bife menor na travessa oferecida. Diz que é sempre assim, mas apesar de tudo,
valeu ser adotada. Pensa em fazer um tratamento psicanalítico.
MARINA
21 anos. Foi adotada após o nascimento, indo diretamente para a casa dos pais
adotivos. Soube da adoção por ocasião da novela “Barriga de Aluguel”. Os pais
aproveitaram e falaram, na época tinha quatro ou cinco anos. Aos 9 anos a mãe adotiva
faleceu. Quanto à família de origem a mãe teve quatro filhos , os dois mais velhos a avó
concordou em ajudar a mãe a criá-los. O pai aparecia e desaparecia. Marina foi
aferecida para a doção pela mãe ao diretor da escola onde trabalhava. A família que a
118
escolheu era composta de dois filhos homens e uma filha que aceitou muito bem a
adoção. Até hoje, está casada, a irmã a ajuda muito. Idade dos irmãos: 30 anos a
irmã e 40 e 41 os irmãos. Houve momentos difíceis na família adotiva mas conclui que
a adoção foi a melhor coisa para ela, e para a família, principalmente para a irmã.
Aconteceram muitas brigas e rivalidades entre os irmãos. Percebe que se comparando
com as outras pessoas, considera os adotivos diferentes. A irmã fez papel de mãe. E
agora tem quatro mães: a mãe biológica, a mãe adotiva, a irmã mais velha e no curso
que faz no momento, sendo a mais nova, todas as colegas procedem como se fossem
sua mãe.
RUTH
33 anos. Foi adotada enquanto bebê devido a mãe biológica ter abandonado o pai
com os filhos. Ela deixou três meninas e dois meninos. O pai ficou com os meninos e
deu as meninas. Ruth passou por três casas mas, as famílias não ficavam com ela por
ser muito doente. A família que a adotou era composta de mãe, pai (médico) e dois
filhos adolescentes do primeiro casamento do pai e que moravam com a mãe. Soube
ser adotada aos 8 anos mas o ambiente sempre foi muito aberto nessa família. Teve
desejo de procurar a mãe em certa ocasião, após ter sido visitada por uma das irmães.
Logo após desistiu. Quando criança e adolescente sofreu um pouco com a marca
adotiva, mas depois de dois tratamentos psicoterápicos e melhorou. Chegou a ver o pai
em certa ocasião e, apenas lembra que tinha cabelos brancos. Dos pais biológicos
soube a pouco tempo que faleceram e, não teve emoções pois não existiam vínculos. É
casada, tem uma menina de um ano e oito meses. Ficou muito feliz por ter
119
engravidado, queria sentir o que a mãe sentiu. O parto foi por cesariana feita pelo
próprio pai adotivo, mas quis também a presença da mãe. Depois que a criança nasceu
sentiu como perda e, também, pelo fato de não ter sido parto normal. Apesar de não
poder amamentar a filha, a segurava bem junto ao corpo como se fosse amamentá-la.
Acha que sua adoção foi benéfica para ela e sua família. Aos 12 anos, não sabe se foi
fantasia ou realidade, estava em casa e tocaram a campaínha. Acho que alguém disse
que era sua mãe biológica (não tem certeza). Então liga para a mãe adotiva e esta diz
para não abrir a porta, assim fez. Nunca viu a mãe, nem em fotografia, por isso hoje,
fotográfica muito a filha, acompanhando seu desenvolvimento. Considera que não tem
nada de diferente dos outros. Pretende trabalhar com crianças abandonadas quando
terminar o curso superior. Já estagiou atendendo adolescentes órfãos.
SÈRGIO
38 anos. Alto, bonito e muito falante: “encanta pela fala.” Bastante descontraído.
Veio para a companhia da família com 1 ano. Os pais adotivos eram tios do pai
biológico. A família adotiva tinha quatro filhos, sendo que Sérgio é da idade do filho
mais moço do casal. Sabe que foi abandonado pela mãe biológica, que era bonita e
possivelmente é , ou foi prostituta e morou em S. Paulo. Conseguiu com uma namorada
e pela internet uma fotografia dela, porém seus pais e seus irmãos não a reconheceram
na foto. Ainda comentaram: “esquece isso, de maneira nenhuma essa é sua mãe.” O
pai biológico faleceu alguns anos de AIDS. È muito dependente da família adotiva,
dizendo: “se eles morrerem eu vou junto.” Tem problemas nos relacionamentos
amorosos.
SONIA
18 anos. Adota enquanto bebê em uma Instituição. Descobriu aos 4 anos que era
adotada, quando sua professora, também, foi a mesma Instituição adotar um bebê.
120
Concluiu na ocasião: “todos os filhos são adotados.” Não se considera triste por ser
adotada. Tem um irmão que nasceu antes de sua adoção. Nunca percebeu nada de
diferente nos pais em relação ao irmão. Considera os pais muito rígidos e a mãe muito
ciumenta em relação a ela. Diz que gostaria de ver a mãe biológica, mas reconhece
não ser possível devido as regras da adoção. Entretanto, sente que o pai adotivo
conheceu sua mãe, quando da adoção. Porém, pouco comentou sobre ela. Isto lhe traz
muitas dúvidas e incertezas. Não gosta de pintura no rosto, não usa baton e não cuida
muito do cabelo. Não usa anéis, gosta de relógio masculino. Não percebe nada de
diferente em relação ao seu irmão e aos amigos deles. Está fazendo Odontologia, é
estagiária do pai (dentista), mas pensa em fazer Medicina e Obstetricia, pois, tem
grande prazer em assistir filmes sobre nascimentos de bebês. Tem curiosidade de ver
“o rosto dos que a abandonaram. Saber como foi a barriga da mãe.” Embora, julgue ser
difícil, devido a ser proibido o contato com os pais biológicos em função do tipo de
adoção.
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