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TATIANA GOMES DA ROCHA
A PARTILHA DO SENSÍVEL NA COMUNIDADE:
Encontros possíveis entre psicologia e teatro.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Psicologia.
Orientadora: Profª. Drª.Virgínia Kastrup
Rio de Janeiro
2007
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TATIANA GOMES DA ROCHA
A PARTILHA DO SENSÍVEL NA COMUNIDADE:
Encontros possíveis entre psicologia e teatro.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Psicologia.
Rio de Janeiro, 27 de setembro de 2007.
________________________
Profª. Drª.Virgínia Kastrup
Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________
Profª. Drª.Silvia Balestreri Nunes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
________________________
Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Virginia Kastrup, que se mostrou desde o começo confiante no meu
trabalho e me acolheu, forasteira, nesta terra maravilhosa;
À Silvia Nunes, grande colaboradora, que se fez presente de diversas formas, tanto na banca
quanto nas conversas via e-mail;
Aos professores Angela Arruda e Ronald Arendt, que contribuíram participando,
respectivamente, das bancas de qualificação e defesa da dissertação;
À CAPES, pelo indispensável auxílio financeiro;
A Ana e Giancarlo, secretários do PPGP/UFRJ, que correram para viabilizar a defesa;
À professora Yone, da Aliança Francesa, que me assistiu na revisão do resumo em francês;
Aos colegas dos seminários de pesquisa do PPGP/UFRJ, com os quais tive a oportunidade de
partilhar minhas experiências;
Aos amigos feitos no Rio: Magela, Vicente, Laura e João, companheiros de aventuras e
discussões sobre o teatro;
À professora Veriana Colaço, eterna tutora e amiga querida;
Ao amigo Pablo Pinheiro, pelo amor e pela grandeza dos nossos encontros;
À amiga Thais França, pelas nossas maravilhosas e cômicas conversas pelo skype;
Às queridas intercessoras Mariana Liberato e Eveline Nogueira, pelos planos e desejos em
comum;
Ao meu pai, Gilberto, e à Angela, que tornaram o Rio possível pra mim e me apoiaram de
inúmeras formas, com muito carinho;
Aos grupos de artistas que tive o prazer de conhecer no Rio, e que experimentam a virada
social da arte em seus projetos;
Ao tempo, um dos deuses mais lindos... Um dia, hemos de conciliar-nos mais suavemente!
A todos, muito obrigada!
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RESUMO
ROCHA, Tatiana Gomes da. A partilha do sensível na comunidade: encontros possíveis
entre psicologia e teatro. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Psicologia)
Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.
O objetivo desta dissertação é promover um encontro entre as forças que compõem a
psicologia e o teatro, buscando compreender os efeitos e as relações possíveis entre ambos
quando se voltam para a produção de subjetividade nas comunidades populares. Um conceito
central para essa tarefa é o de partilha do sensível formulado por Jacques Rancière. A partilha
do sensível define, ao mesmo tempo, que existe uma participação num plano comum, que
forma à comunidade, e o recorte desse comum sensível em partes espaço-temporais definidas.
As divisões recortadas determinam as relações entre as competências e as ocupações dos
espaços sociais, as relações entre maneiras de ver e falar, incluir e excluir, legitimar ou
desqualificar, caracterizando o próprio político. Nesse sentido, estética e política se
interpenetram na partilha e distribuição do comum. Pensa-se então as formas que a partilha do
sensível configura tanto no teatro quanto na psicologia comunitária quando se propõem a ser
vetores da transformação social. O primeiro capítulo apresenta e analisa o conceito de partilha
do sensível e sua afinidade com o pensamento de autores como Claire Bishop e Dénis
Guénoun. O segundo capítulo discute as políticas do teatro voltado às questões sociais e
comunitárias, dialogando com autores como Augusto Boal, Zé Celso e Maria Helena Kühner.
O terceiro capítulo busca analisar o pensamento produzido pela psicologia através das idéias
de Bader Sawaia, Cezar Góis, Maritza Montero, dentre outros, sobre a comunidade e suas
práticas profissionais com vistas ao seu desenvolvimento e autonomia. Por fim, percebe-se
um entrave em comum à psicologia comunitária e ao teatro quando eles operam a
representação convencional dos conflitos sociais, que dificulta a repartilha do comum e a
criação de novas formas de compreensão do social e da comunidade. Conclui-se que, para a
psicologia comunitária, se faz relevante voltar mais a atenção à produção de desejo na
comunidade, entendido por Gilles Deleuze como construção coletiva de um plano de
imanência possibilitador de transformação social.
Palavras-chave: psicologia comunitária, teatro, comunidade, partilha do sensível, produção
de subjetividade.
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RÉSUMÉ
ROCHA, Tatiana Gomes da. A partilha do sensível na comunidade: encontros possíveis
entre psicologia e teatro. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Psicologia)
Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.
L’objectif de cette dissertation c’est de promouvoir la rencontre entre les forces qui
composent la psychologie et le théâtre, à la récherche de comprendre les effets et les relations
possibles entre les deux quand ils se tournent vers la production de subjectivité dans les
communautés populaires. Un concept central pour ce travail c’est celui du partage du sensible,
créé par Jacques Rancière. Le partage du sensible définit, en même temps, qu’il existe une
participation dans un plan commun, qui donne forme à la communauté, et la division de ce
commun sensible en parts d’espaces et de temps définis. Les divisions determinent les
relations entre les compétences et les occupations des espaces sociaux, les rapports entre les
manières de voir et de parler, d’inclure et d’exclure, de légitimer ou de disqualifier, et celles-
ci se confondent avec la politique elle-même. Alors, esthétique et politique s’interpénètrent en
partage et distribution du commun. Ensuite, on pense aux formes que le partage du sensible
produit au téâtre ainsi qu’à la psychologie communautaire, quand ils se proposent à devenir
moyens de la transformation sociale. Le premier chapitre présente et analyse le concept de
partage du sensible et son affinité avec la pensée des auteurs comme Claire Bishop et Dénis
Guénoun. Le deuxième chapitre discute les politiques du téâtre concernant les questions
sociaux et communautaires, en dialoguant avec des auteurs comme Augusto Boal, Zé Celso et
Maria Helena Kühner. Le troisième chapitre analyse la pensée produite à la psychologie, à
travers des idées de Bader Sawaia, Cezar Góis, Maritza Montero, entre autres, sur la
communauté et ses pratiques professionnelles dans le but d’en encourager le développement
et l’autonomie. Enfin, on perçoit un obstacle commun à la psychologie communautaire et au
téâtre quand ils conçoivent la répresentation conventionelle des conflits sociaux, ce qui rend
difficile le repartage du commun et la création de nouvelles formes de compréhension du
social et de la communauté. À la conclusion, on comprend qu’il faut faire, à la psychologie
communautaire, plus attention à la production de sir dans la communauté, compris par
Gilles Deleuze comme construction collective d’un plan d’immanence qui rend possible la
transformation sociale.
Mots-clé: psychologie communautaire, théâtre, communauté, partage du sensible, production
de subjectivité.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 7
CAPÍTULO 1 – A PARTILHA DO SENSÍVEL: ESTÉTICA E POLÍTICA
NO TEATRO
20
1.1 Jacques Rancière e a partilha do sensível 21
1.2 Claire Bishop e a crítica da arte social 30
1.3 Dénis Guénoun: as necessidades do teatro e suas mutações
históricas
33
CAPÍTULO 2 À PROCURA DO TEATRO NA COMUNIDADE E DA
COMUNIDADE NO TEATRO
45
2.1 O teatro popular 45
2.2 Zé Celso e o Teatro Oficina (Uzyna Uzona) 48
2.3 Augusto Boal e o Teatro do Oprimido 50
2.4 O teatro comunitário 51
2.5 A comunidade como produção teatral 55
CAPÍTULO 3 A PSICOLOGIA E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE
NA COMUNIDADE
62
3.1 Perspectivas da psicologia social brasileira 62
3.2 A psicologia comunitária 65
3.2 A comunidade na psicologia comunitária 73
3.3 Repensando a comunidade: a constituição do comum 80
3.4 Arte e comunidades populares: produção de subjetividade nos
projetos sociais
85
CONCLUSÃO
95
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
103
7
INTRODUÇÃO
Esta dissertação se constrói na confluência de diversos vetores. Ela diz respeito a uma
tentativa de fazer aproximar campos que atravessaram muitas vezes nossas práticas
profissionais e acadêmicas, marcadas na interface entre uma psicologia social com enfoque
em comunidades e uma experiência teatral com ênfase na transformação da vida. Dois
campos distintos, cujos limites tentaremos desenhar neste trabalho, atentando para as
dimensões políticas e estéticas que ambos carregam. Essa procura não é recente, e tem sido
realizada sob diferentes perspectivas. Muitas são as possibilidades de empreender a
aproximação entre psicologia e teatro, e tanto em uma área como em outra foram colocadas
propostas nesse sentido.
Podemos pensar numa tentativa de psicologização” do teatro, cujas marcas são
observadas no percurso de sua história. Tem-se, por exemplo, o dito teatro psicológico,
originado das formulações mais conhecidas e da fase inicial do trabalho de Constantin
Stanislavski (1976), que busca a verrosimilhança plena da cena através do ilusionismo, pela
identificação estabelecida entre o ator e seu personagem e entre a platéia e a peça. Nesse tipo
de teatro e em outros mais contemporâneos que com ele se afinam, preocupa-se com a
representação fiel de sentimentos e pensamentos familiares e reconhecidos socialmente, com
a expressão dos estados da alma, com o desvelamento do mundo interior de um personagem,
seus dramas psicológicos, sua história, os conflitos daí decorrentes, que se desenvolvem na
relação com os demais personagens. A narrativa submetida ao texto, presa à palavra, induz a
caracterizações e explicações psicológicas que acabam por moldar a idéia de um indivíduo
centrado numa identidade do eu, que através do trabalho de representação se torna conhecido.
8
A esse tipo de teatro são feitas críticas como a de Antonin Artaud (1999), que opõe um teatro
que põe em cena “autos de ocorrência psicológica” a um teatro da crueldade ou metafísico
1
.
Por outro lado, podemos falar de uma “teatralização” da psicologia, como apropriação
para fins terapêuticos, apostando nos efeitos dessa arte sobre a emoção. Nessa empreitada
encontramos, por exemplo, o psicodrama de Jacob Moreno (1987). No psicodrama, a ação é
uma noção central que busca trazer à tona, através de recursos de dramatização, o conteúdo
psíquico dos indivíduos ou dos grupos, confrontá-los consigo mesmos para que as emoções
possam ser trabalhadas e transformadas. Moreno notou que quando uma pessoa se
prontificava a r em ato seus conflitos, vivenciando-os em cena conjuntamente com os
demais, ela atingia um novo plano de consciência e sensação que lhe permitia se desfazer dos
impulsos negativos e patológicos (MARINEAU, 1992, p.85). De forma semelhante, a
arteterapia
2
, área em expansão nas práticas psicológicas, também encontra no teatro uma
ferramenta na promoção do processo criativo e no fortalecimento da auto-estima. Nela, a
utilização da produção artística não tem preocupação imediata com fatores propriamente
estéticos, voltando-se para o trabalho de descoberta e expressão do eu.
Em relação a esse tipo crescente de uso da arte em práticas no campo da psicologia,
Luiz Antonio Baptista lança questões que atentam para os riscos de uma visão essencialista e
interiorizada de sujeito que atravessa essas iniciativas, cuja consideração é relevante no intuito
de delas nos diferenciarmos:
1
“Queremos fazer do teatro uma realidade na qual se possa acreditar, e que contenha para o coração e os
sentidos esta espécie de picada concreta que comporta toda sensação verdadeira. Assim como nossos sonhos
agem sobre nós e a realidade age sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia
com um sonho, que será eficaz na medida em que será lançado com a violência necessária. E o público acreditará
nos sonhos do teatro sob a condição de que ele os considere de fato como sonhos e não como um decalque da
realidade; sob a condição de que eles lhe permitam liberar a liberdade mágica do sonho, que ele só pode
reconhecer enquanto marcada pelo terror e pela crueldade” (ARTAUD, 1999, p.97) .
2
Segundo a Associação Brasileira de Arteterapia, a arteterapia é um modo de trabalhar utilizando a linguagem
artística como base da comunicação, cujas vantagens são: Diminuir o tempo de trabalho terapêutico devido à
diminuição da transferência; tornar o cliente ativo e mais criativo, mais independente; utilizar a comunicação
averbal, aumentando a comunicação plena, desenvolver maior adaptação, flexibilidade e originalidade;
influenciar no dia-a-dia relacionando harmonia e senso estético com maneiras equilibradas de viver (Disponível
em: www.arteterapia.com.br).
9
Sedução e êxtase caminham lado a lado nas concepções de arte comuns aos
profissionais da subjetividade. Sedução, quando indicam o refúgio nascente das
emoções secretas, requerendo a sagacidade sensível de um saber específico para
desvendar seus mistérios. A arte promete detectar indícios, decifrar pistas de uma
latência delicada, perigosa e invisível ao leigo, alojada em um mundo interior
intransponível e em permanente turbulência. Propõe-se a captar o que escapa ao olho
nu, desobstruir barreiras que impedem a passagem das expressões genuínas, desfazer a
arquitetura que projeta como autônomos e complementares, porém impermeáveis um
ao outro, o espaço interno e o do fora (BAPTISTA, 2005, p.110).
Evidentemente, nem todos os trabalhos de produção de subjetividade através da arte se
enveredam por esse tipo de concepção ou buscam esses efeitos depuradores. Com essa
passagem, apenas apontamos um modo específico de compreensão e tratamento dos resultados
produzidos num trabalho junto à arte, um modelo que está em sintonia com a concepção de
sujeito predominante na história da psicologia, que ganha matizes diferentes ao redor de uma
mesma idéia: a noção de um eu constituído, localizável, a ser descoberto, a ser nomeado e a
ser explicado. Seja afirmando o sujeito do conhecimento, seja pressupondo-o senhor de seus
domínios e auto-consciente, seja considerando-o cindido e não totalizável pela consciência, ou
mesmo falando de um sujeito cio-histórico, na tradição da psicologia se mantém a idéia de
um núcleo essencial e estável, que ora assume o lugar de estrutura, ora de uma imagem de si,
ora de um centro autônomo da psique, que em todo caso indica uma identidade do sujeito
naquilo que ele reconhece como sendo ele próprio, idêntico a si.
No entanto, se nos aprofundarmos não apenas na psicologia, mas no campo geral da
ciência e da filosofia, veremos que esta noção de sujeito se encontra imbricada com uma
ontologia herdeira do platonismo e reafirmada na modernidade, que julga o ser em termos de
unicidade e estabilidade, e prolongou suas raízes até os hábitos mais banais de nossa ação no
mundo, contaminando e mesmo formatando nossa linguagem e nosso pensamento. Deste
modo, a mudança e o movimento, como nos diz Henri Bergson (2006), o tomados não
como processos em si, mas respectivamente como sucessões de estados e de posições no
espaço:
10
Todos os modos de falar, de pensar, de perceber implicam, que a imobilidade
e a imutabilidade sejam de direito, que o movimento e a mudança venham
acrescentar-se, como acidentes, a coisas que, por si mesmas, não se movem e, em si
mesmas, não mudam. A representação da mudança é a representação de qualidades ou
de estados que se sucederiam numa substância. Cada uma das qualidades, cada um
dos estados seria algo estável, a mudança sendo feita de sua sucessão: quanto à
substância, cujo papel é o de suportar os estados e as qualidades que se sucedem, ela
seria a própria estabilidade. [...] O sujeito, pelo simples fato de que o nomeamos, é
definido como invariável; a variação irá residir na diversidade dos estados que dele
forem afirmados sucessivamente. Procedendo assim por aposição de um predicado a
um sujeito, do estável ao estável [...] (BERGSON, 2006, p.76-77).
Assim, a produção de subjetividade posta em marcha na contemporaneidade está
comprometida com o projeto epistemológico da modernidade e com uma teoria do
conhecimento então formulada. Neste sentido, as formas de se pensar a cognição estão
pautadas por esquemas de representação, estabelecendo lugares previamente determinados
para sujeito cognoscente e objeto cognoscível. Caberia à ciência onde a psicologia se inclui
traçar as funções naturais que regem esta relação, estabelecendo critérios e normas,
baseadas em termos de repetição, necessidade e previsibilidade. A cognição passa, deste
modo, a ser compreendida como organizadora de ações sobre um mundo dado a priori, cuja
tarefa dada ao sujeito é a de dominá-lo a partir da resolução de problemas (KASTRUP, 1999).
O processo de produção de conhecimento visa a eliminar o tempo e a intempestividade que
lhe é própria, negando-lhe, portanto, sua função criadora e inventiva.
No entanto, o problema da cognição e da produção de subjetividade não reside apenas
em sua análise crítico-teórica, como aponta Virginia Kastrup (2004). Ele nos faz pensar nos
tipos de políticas cognitivas que estão sendo engendradas, em formas e lugares concretos,
movidas por determinados objetivos, que podem se aproximar tanto do conhecimento como
invenção de si e do mundo como da crença de que o mesmo é configurado pelos esquemas
recognitivos, pelas regras e pelo saber anterior (2004, p.3). É necessário, portanto, que
retomemos determinadas concepções e nelas vasculhemos indícios e rachaduras que apontem
saídas, afirmando a processualidade da cognição como organização transitória de uma
11
realidade múltipla, submetida ao plano das forças moventes. A realidade é algo a ser
fabricado. Para tanto, Kastrup fala da importância do desenvolvimento de estratégias de
intervenção que orientem práticas de aprendizagem inventiva, articuladas com o plano da
subjetividade coletiva.
Partindo deste entendimento, faz-se necessário afirmar nossa participação nos
agenciamentos que compomos e assumir suas implicações práticas, sejam onde forem. Tais
políticas cognitivas fundamentam tanto práticas psicológicas como experiências artísticas
teatrais, e, por sua vez, ambas tomam parte nos dispositivos de produção de subjetividade da
contemporaneidade.
O conceito de produção de subjetividade, desenvolvido por Deleuze e Guattari (1995),
tem o intuito de dar outro relevo ao entendimento da subjetividade, termo tradicionalmente
reduzido a uma dimensão solipsista e interior do indivíduo. A subjetividade passa a ser
entendida como efeito de máquinas (de ver, de perceber, de sentir, de pensar, de falar etc.) em
ação conjunta e concomitante, que são tanto sociais quanto políticas, econômicas, culturais,
clínicas, midiáticas etc. Se comparados às dinâmicas que caracterizavam a sociedade
disciplinar para Foucault (1999), na contemporaneidade, estes processos parecem ter
adquirido modulações mais flexíveis, preconizando uma sociedade de controle, para Deleuze
(1992). Pequenas modificações nas regulações sociais buscam implodir a reclusão
institucional, instaurando o controle a céu aberto. Dentre as formas que o controle assume, a
mídia e a publicidade se apresentam como fortes estratagemas na captura e capitalização da
vida (PELBART, 2003), impondo estilos de vida serializados, segundo Félix Guattari (1986),
individualizações mais que singularizações.
Tais processos de produção de subjetividade, assim, o se reduzem a um campo
específico (por exemplo, às ciências humanas ou às práticas psi), pois perpassam as
capilaridades do fazer humano: as relações amorosas, os investimentos em tecnologia, as
12
estratégias na administração pública, as relações de trabalho, as ações em saúde, o âmbito
escolar, jurídico, acadêmico etc. Portanto, podemos afirmar que onde houver vida a ser
produzida, lá estarão sendo postos em prática processos de subjetivação.
Assim, compreendemos que a psicologia e o teatro também são produtores de
subjetividade, segundo seus expedientes singulares. Entre eles, existem fronteiras que
permitem encontros em lugares e sob formas bastante variados. Em relação aos lugares
possíveis, experiências na área clínica, por exemplo, na saúde mental. Existem trabalhos
em presídios, em empresas, em escolas etc., que buscam aliar as propostas psi e artísticas na
elaboração de mecanismos pedagógicos, ocupacionais e de construção de novas formas de
sociabilidade. Esta dissertação tem como objetivo discutir as relações e efeitos possíveis entre
a psicologia e o teatro quando o plano de intercessão
3
desses dois vetores é a vida produzida
na comunidade. O conceito de comunidade margem a diversas compreensões, que também
buscaremos discutir ao longo desta pesquisa. Num primeiro entendimento, a definimos como
aquele território urbano considerado como periférico em relação aos circuitos econômicos da
cidade, chamados habitualmente de comunidades carentes ou populares, favelas, morros etc.
No que diz respeito às formas que a relação pode assumir, não é nem no sentido de
uma “psicologização” do teatro nem no de uma teatralização” da psicologia, como discutido
acima, que esta dissertação busca se mover. Mostramos que existiram e ainda persistem
tentativas nessa direção, que possuem em comum a crença na totalidade da substância do eu,
numa identidade psicológica, que permea certos modos de fazer teatro (e a arte em geral) e
certos modos de fazer psicologia. Entretanto, devemos ter em consideração que a psicologia
não é una, tampouco o é o teatro. Compreendemos que arte e psicologia são dois campos
3
Falamos de intercessão segundo o entendimento de Gilles Deleuze (1992), em suas semelhanças com o
movimento do devir. O autor nos traz a idéia dos intercessores, que seriam elementos (coisas, pessoas, idéias)
que se encontram em dupla captura, cada qual roubando do outro algo que o altera e permite a criação de novas
formas. Um intercessor é algo que permite a expressão pelo contraste entre variações: “Eu preciso de meus
intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo
quando isso não se vê” (DELEUZE, 1992, p.156).
13
específicos, e apesar disso, procuramos investigar, como campo problemático desta pesquisa,
formas de encontro entre ambos que os potencialize, ao mesmo tempo prolongando seus
limites e reinventando-os mutuamente.
Assim, nos atrevemos a pensar nas possibilidades de um devir-artístico da psicologia
e um devir-psicológico da arte, sem que isso implique a sujeição de um domínio ao outro, a
submissão a um modelo, uma mera troca ou imitação, mas um compartilhamento de forças e
de afetos, a abertura de uma fronteira na qual podem acontecer passagens de um território ao
outro. Devires, para Gilles Deleuze (1998), o processos de dupla-captura, onde cada termo
“rouba” do outro algo que o faz arrastar para fora de seus contornos originais e permite a
criação de novas formas. As relações em devir ou dupla captura apontam para uma
exterioridade, para um movimento tecido no entre, uma multiplicidade que não diz respeito à
quantidade, mas às variâncias, às mutações:
Não é um termo que se torna outro, mas cada um encontra o outro, um único
devir que não é comum aos dois, já que eles não têm nada a ver um com o outro, mas
que está entre os dois, que tem sua própria direção, um bloco de devir, uma evolução
a-paralela (DELEUZE, 1998, p.14-15).
Não há ponto de origem a ser remontado, pois as capturas se colocam na crista de um
movimento de ondas que partem de outras preexistentes. Tampouco um estado ao qual se
chega ou onde se devia chegar. O conceito de devir em Deleuze nos aponta a
imprevisibilidade do que nasce do encontro entre heterogêneos. Pensando com ele, podemos
então por psicologia e teatro em devir, compreendendo que apesar de não se reuzirem uma ao
outro e de caminharem em direções próprias, existem espaços onde ambos estão se fazendo
conjuntamente e onde há transformações e possíveis ganhos mútuos.
No entanto, isso é algo a ser exercitado, arriscado, ensaiado. É uma tarefa que se
depara em seu caminho com diversos obstáculos, tanto de ordem teórica quanto prática e, se
nos enveredássemos por todas as bifurcações encontradas no interior dos dois campos, seriam
14
muitos os discursos e as experiências a serem analisadas. Assim, vamos falar a respeito de
uma proposta de fazer psicologia e uma proposta de fazer teatro que, se por aqui descritas
podem parecer irreais ou apenas imaginadas, na verdade não são, na medida em que são
perseguidos por pessoas e grupos que se arriscam na novidade que a experiência lhes traz
todos os dias.
Nos colocamos, então, ao lado daquela psicologia social que se faz junto a formas de
associação e grupos comunitários, que explora as formas que a vida organiza no espaço e
tempo, que acompanha as pluralidades e as diferenças que podem ser encontradas num
território, num certo comum. Pensamos naquela psicologia que atenta para os discursos, para
os regimes de visibilidades, para as relações de poder e para os modos de subjetivação que
produzem uma comunidade e que, ao mesmo tempo, são por ela produzidos. Tratamos de uma
psicologia comunitária que, mais que se propor a fazer diagnósticos, apontar carências,
desvelar e explicar realidades, enfim, prescrever soluções para problemas constituídos
maneira do tradicional cognitivismo), se propõe, como nos diz Jacques Rancière (2005b), a
confrontar uma vida com o que ela pode ser, a cartografar suas virtualidades, suas linhas de
fuga, a cavar espaços onde se permita experimentar o dissenso, o encontro dos heterogêneos,
os vazios de sentido, a criação de novas formas de sociabilidade, ou seja, novas maneiras de
partilhar o comum, que inevitavelmente esbarram na dimensão política do viver junto.
Por outro lado, falamos aqui de um teatro que se aproxima daquele experimentado por
Peter Pelbart em seu trabalho junto à Cia. Teatral Ueinzz, formada por atores usuários de
serviço de saúde mental. Em vez de itensificar psicologicamente os traços de cada um, nos
seus draminhas íntimos, iluminando a suposta verdade psíquica interior do sujeito, o teatro faz
esses traços conectarem-se com personagens da história, do mito ou da literatura, com
elementos cósmicos ou outros, enfim, com uma exterioridade que os faz reverberar com a
cultura como um todo e experimentar variações inusitadas (PELBART, 2000, p.106).
15
Perseguimos um teatro que pretende se abrir ao que esteve de fora ao longo de sua história
(GUÉNOUN, 2004). Um teatro do homem comum, onde a vida seja posta em cena, o no
sentido de ser explicada, mas de ser reinventada, de compor novas partilhas do sensível, de
misturar os tempos e as ocupações, de libertar os corpos de uma condição histórica de
passividade intelectual e sensível:
A arte do teatro deve se abrir aos fluxos da vida que continua estranha a ele.
[...] É a cena o que é preciso abrir; a cena como espaço prático, material. [...] É preciso
trazer os homens para a cena. Não sua imagem, mas suas singularidades e seus
grupos, efetivamente, vivos. É preciso abrir as cenas à vinda daqueles que foram delas
banidos: os ditos não-atores, os não-artistas (GUÉNOUN, 2004, p.156-157).
Falamos da tentativa de aproximação e abertura do teatro realizada por alguns artistas
e grupos que não se satisfazem com o confinamento da arte às antigas formas que persistem,
na tentativa de assegurar uma sobrevida ao teatro preso ao modelo da identificação e da
representação. Se o teatro passa por crises e desafios, se as necessidades que o movem hoje
são talvez ainda incertas ou informes, ao serem acolhidas lhe possibilitam sua auto-subversão,
sua reinvenção.
No desafio de representar o irrepresentável, de fazer ouvir o inaudível, de dar a ver
o invisível, de dizer o indizível e o invivível, de enfrentar-se ao intolerável, de dar expressão
ao informe e ao caótico (PELBART, 2000, p.104) através do jogo nico, esse teatro se
propõe a compor novas formas de experimentar a vida, de agenciar o desejo que emana dos
grupos, dos povos, dos corpos coletivos, enfim, ele se afirma em seu devir-político como
vetor de transformação social.
É aqui que podemos inferir uma dimensão política e estética em comum entre
psicologia e teatro, tomando de empréstimo o conceito de partilha do sensível de Rancière
(2005a). A partilha do sensível faz ver, concomitantemente, a existência de um plano comum
sensível e espaço-temporal dos corpos, das práticas, dos discursos e dos processos de
16
subjetivação, e a segmentação desse comum em partes definidas, seu recorte em tempos e
ocupações específicas, suas relações de inclusão e exclusão, de interioridade e exterioridade,
os regimes que organizam modos de ver e de dizer e que deixam folgas nas quais a
negociação de sentidos é possível. Essa partilha, como nos diz Rancière, é algo na qual
incidem tanto a política como a estética, pois para ele “a política ocupa-se do que se vê e do
que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para
dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo(RANCIÈRE, 2005a, p.17). A
partilha é estética ao ser efetuada num comum sensível,
como um sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir. É um
recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que
define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de
experiência (RANCIÈRE, 2005a, p.16).
No conceito de partilha do sensível, encontramos uma fronteira entre estética e política
na qual podemos pensar psicologia e teatro. Tal psicologia se faz política ao promover
deslocamentos, inventar novos problemas, construir entre os sujeitos implicações que
apontem para possíveis fugas (desterritorializações), dada a produção de desejo imanente ao
coletivo: desejo de transformação não apenas das condições físicas do ambiente, geralmente
perversas e indignas em vários aspectos, mas também desejo de criar novas formas de
(con)viver, formas mais flexíveis, plásticas, artísticas. O sensível é matéria na qual opera a
subjetividade, e esta psicologia também busca ativar a receptividade do corpo, sua relação
estética com o mundo.
Por sua vez, tal teatro participa da partilha do sensível ao produzir em suas ficções o
embaralhamento das legitimidades, das identidades, das atividades e dos espaços, dando a
pensar uma reconfiguração do comum, uma repartilha do social. O próprio momento do
encontro entre palco e platéia promove essa partilha, essa reconfiguração da experiência
política e sensível. Para Dénis Guénoun (2004), ao teatro cabe a tarefa de se abrir para o que
17
está à sua margem, o que lhe está fora. Mas o que constitui esse estar fora, a quem se convida
a também tomar parte na cena? De certa maneira, ele é justamente o que se encontra hoje à
margem no social, as minorias que povoam as comunidades populares e que carregam o
mistério de uma existência que também tem de se reinventar a fim de constituir território em
meio à cidade.
A modalidade da relação entre psicologia e teatro de que falamos nesse trabalho
afirma a potencialidade do encontro entre discursos e práticas que são, ao mesmo tempo,
políticos e estéticos, agenciando processos de subjetivação nas comunidades onde eles se
produzem. Tanto a psicologia quanto o teatro trazem consigo concepções e expectativas sobre
a comunidade, e têm formas específicas de ativá-la, de convocá-la, de compô-la. Ambas
trabalham com o desejo de comunidade, desejo de constituí-la, de dar alguma consistência ao
coletivo, de partilhá-lo de acordo com certos meios e horizontes próprios. Quem faz teatro
deseja um público e deseja comparsas que criem em conjunto. Quem trabalha com psicologia
comunitária deseja articular grupos. desejo de constituir comunidade, e desejo que
emana da comunidade quando ela se forma, desejo que se torna matéria-prima para ambos.
Nessas intercessões, o teatro carrega consigo o poder de engendrar novas formas da
relação de si com a alteridade, ao voltar-se para fora e trazer para a própria cena esse embate,
convocando jogadores que também se permitam entregar-se e expôr-se à vida. Para discutir a
abertura do teatro àquilo que lhe está fora, que vem sendo posto em cena e, ao mesmo tempo,
sendo alvo de práticas psicológicas, devemos pensar nas diversas políticas que agenciam esse
encontro na contemporaneidade. Pensar essas iniciativas se faz cada vez mais necessário, uma
vez que observamos uma onda crescente de interesse nas possibilidades de contribuição de
uma coletividade aos projetos artísticos, no engajamento a grupos sociais específicos, o que se
tem chamado de virada social da arte.
18
Esse deslocamento da arte em direção a espaços sociais e comunitários e sua
participação para a viabilidade de modos mais salutares à vida comum (onde artistas se
encontram e muitas vezes trabalham conjuntamente com demais profissionais da
subjetividade, como psicólogos, educadores, assistentes sociais etc.) se torna cada vez mais
visível e incentivado. São experiências apoiadas por incentivos governamentais, patrocínios
culturais, diferentes projetos sociais de formação de crianças e jovens, pequenas companhias
experimentais, grupos de teatro amador em comunidades, atividades escolares, instituições
psiquiátricas etc., pelos quais a arte afrouxa seus contornos e ajuda a compor novas
estratégias.
O que se tem observado nesse terreno o propostas que revelam a diversidade de
relações possíveis com a arte, inclusive no que diz respeito à qualidade das criações. A
compreensão da pluralidade dessas relações e de seus efeitos vem ao encontro dos objetivos
desta dissertação que busca, nos limites que o pensamento percorre entre a academia e a
vida que se agita fora dela, compor estratégias práticas que favoreçam a reinvenção do campo
profissional da psicologia comunitária.
No primeiro capítulo, apresentamos o conceito de partilha do sensível, que aponta para
uma concorrência simultânea do político e do estético no plano do comum, fornecendo
elementos para desmistificar os impasses entre a arte autônoma e a arte engajada.
Discutiremos as formas possíveis de partilha do sensível na contemporaneidade segundo
Rancière e Claire Bishop, suas positividades, desafios e perigos. Discutiremos as idéias de
Guénoun sobre a formação do teatro, apresentando os momentos de sua história onde ele é
levado ao limite e forçado a se re-inventar, redesenhar suas práticas, de acordo com as novas
necessidades de teatro que pedem caminho.
No segundo capítulo, discutimos as idéias de alguns homens de teatro que pensaram e
experimentaram aproximações entre as artes cênicas e as questões que atravessam a
19
comunidade, através de estéticas que buscavam afirmar a dimensão política da criação
artística. Abordaremos, por exemplo, as propostas do Teatro do Oprimido de Augusto Boal e
as do Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa, dois movimentos teatrais brasileiros
fortemente atuantes. Veremos como algumas propostas afirmam o teatro como ferramenta
para a discussão do social, posicionando-se a favor da autonomia dos coletivos e concorrendo
para a transformação da realidade.
No terceiro capítulo, discutiremos as formas de produzir psicologia na comunidade.
Buscaremos compreender como a comunidade é construída e significada pela psicologia
comunitária. Procuraremos expandir nosso entendimento sobre o que podemos chamar de
comunidade, e vislumbramos um outro sentido ainda pouco trabalhado pelas ações nesse
campo, que, na maior parte das vezes, se restringem aos fatores geográficos ou utilizam o
esquema das identidades como princípio de organização comunitária. Em função das
dinâmicas contemporâneas da vivência do espaço comum, acreditamos que as idéias de
unidade e identidade não bastam para sua compreensão. Com alguns autores como Pelbart
(2003), ao perceber o comum como constituído, isso pode servir para descobrirmos
comunidade onde não se via comunidade, e não necessariamente reconhecer uma
comunidadelá onde todos vêem comunidade(PELBART, 2003, p.41). Também discorremos
sobre algumas propostas de trabalho com a arte desenvolvidas por projetos sociais em atuação
nas comunidades populares e seus resultados, em termos de ganhos para a produção de
subjetividade.
Como conclusão, pensaremos as formas que a experiência suscitada pelo teatro pode
contaminar a psicologia para uma possível reinvenção da psicologia comunitária, na tentativa
de elevar a potência de seus agenciamentos e fazê-la dar passagem ao desejo de pôr a vida em
comum.
20
CAPÍTULO 1
A PARTILHA DO SENSÍVEL: ESTÉTICA E POLÍTICA NO TEATRO
Em nossa busca de compreensão das formas através das quais as práticas observadas
no campo da arte e, em especial, no teatro, se aproximam de uma proposta política de
transformação social, iniciamos este capítulo apresentando o conceito de partilha do sensível,
que aponta para uma concorrência simultânea do político e do estético no plano do comum.
Observamos, na contemporaneidade, uma onda crescente de interesse nas
possibilidades de colaboração coletiva junto à criação artística, no engajamento a grupos
sociais específicos, o que se tem chamado virada social da arte. Como comentamos
anteriormente, essa disseminação da arte em todas as esferas sociais se torna cada vez mais
visível, como em seu uso em atividades educativas, de formação de jovens, psiquiátricas,
terapêuticas, comunitárias etc, pelos quais a arte afrouxa seus contornos e ajuda a compor
novas estratégias. No entanto, o investimento das artes no social não é algo recente e, entre os
artistas, principalmente a partir do assim chamado modernismo, permanece uma querela entre
dois campos: os partidários da “arte pela arte” e os partidários da “missão social” da arte
(RANCIÈRE, 2005a). Os primeiros apontam o prejuízo da “pureza estética” e da autonomia
da arte quando ela se compromete a estar a serviço da revolução, da militância política de
propostas sociais definidas, e diminuem o valor das experiências que buscam incluir nas obras
a presença do coletivo, que por vezes ficam no limiar da arte e de eventos sociais,
manifestações, performances de suporte duvidoso. Enquanto isso, os simpatizantes da missão
social da arte os acusam pela posição supostamente apolítica e descompromissada em relação
às urgênciais sociais. O ponto nodal da polêmica é a afirmação de uma postura política ou não
a ser associada à arte, compreendida como uma prática social, ao mesmo tempo inserida entre
as outras e diferenciada em seu estatuto. Ou seja, por um lado, apóia-se o viés intríseco dessa
21
relação entre arte e as formas da vida comum e, pelo outro, defende-se a liberdade da arte em
suas criações, sem bandeiras a serem levantadas, a não ser a própria exploração dos limites do
sensível.
1.1 Jacques Rancière e a partilha do sensível
Jacques Rancière, ao formular o conceito de “partilha do sensível” (2005a), caminha
no sentido de desatar o nó dessa polêmica e investigar sua antinomia constituinte. Por partilha
do sensível, Rancière aponta uma dimensão estética da política, pois se refere, ao mesmo
tempo, a duas noções: a de que existe uma participação num plano comum, que forma à
comunidade, e ao recorte desse comum sensível em partes espaço-temporais definidas:
A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função
daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter
essa ou aquela “ocupação” define competências ou incompetências para o comum,
dotado de uma palavra comum etc. (RANCIÈRE, 2005a, p. 16).
No que diz respeito ao plano comum, é necessário compreendê-lo na singularidade
aqui proposta.:
diferentemente de algumas décadas atrás, em que o comum era definido mas
também vivido como aquele espaço abstrato, que conjugava as individualidades e se
sobrepunha a elas, seja como espaço público ou como política, hoje o comum é o
espaço produtivo por excelência (PELBART, 2003, p.29).
O comum não se coloca como um plano geral de igualdade e identidade entre
membros, uma vez que ele não é a priori, mas algo a ser sempre constituído:
trata-se de pensar o comum ao mesmo tempo como imanente e como em
construção. Ou seja, por um lado ele é dado, a exemplo do comum biopolítico, e
22
por outro está por construir, segundo as novas figuras de comunidade que o comum
assim concebido poderia engendrar (PELBART, 2003, p.41).
É dessa forma que Rancière nos fala de uma estética na base mesma da política, uma
compreensão que não é uma estetização da política como escolha ou partido, sua captura pelo
Estado ou pelo capital ou uso pela vanguarda. Ela se aproxima antes de um determinado
regime das formas que possibilita e regula a relação com o sensível, que define como e o que
pode ser visto e audível, incluído ou excluído, compondo o próprio sentido do político.
A partir dessa aproximação primeira do estético ao político é que se pode pensar a
questão da arte, ou antes, de suas práticas, em relação com as formas de segmentação e
visibilidade que ela introduz no comum, sendo elas formas de agir que entram em composição
com outras formas de agir, com modos de ser e modos de visibilidade, interferindo na
distribuição geral desse comum. Assim, Rancière esclarece o caráter político da arte,
entendida como prática estética: a arte não é política no sentido da transmissão de mensagens,
como meio de divulgação de palavras de ordem, panfletarismo, pregação ou messianismo. A
estética da política não se faz por uma estetização da política sua captura pela unicidade do
sentido, pela totalização da experiência, como usada nas campanhas do fascismo. A arte é
política mesmo antes de qualquer tentativa nesse sentido, mesmo quando pretende se afastar
radicalmente de qualquer intervenção social, de qualquer compromisso, qualquer aliança. A
arte é política pela participação na confecção do sensível comum e pela sua ordenação, pela
produção de regimes específicos de afetabilidade, visibilidade, discursividade. Como no
exemplo da escrita literária, que embaralha a partilha das identidades e das ocupações dos
espaços: circulando por toda parte, sem saber a quem deve ou não falar, a escrita destrói
todo fundamento legítimo da circulação da palavra, da relação entre os efeitos da palavra e
as posições dos corpos” (RANCIÈRE, 2005a, p.17).
23
Assim, também o teatro, a dança, a pintura etc. participam como formas da partilha do
sensível e engendram figuras diferentes de comunidade em seus domínios próprios,
comprometendo-se com regimes que ora promovem uma desregulação ora reforçam uma
segregação das espacialidades e temporalidades. “Essas ‘políticas’ seguem sua lógica própria
e repropõem seus serviços em épocas e contextos muito diferentes (RANCIÈRE, 2005a,
p.20), inclusive correndo o risco de servirem a paradigmas políticos contraditórios. Mais à
frente, buscaremos compreender como isso foi percebido nas políticas do teatro. Rancière
esboça uma sugestão nessa direção, ao pensar em como a política teatral se manifesta na
relação entre a cena e a sala, a significação do corpo do ator, a proximidade e a distância que
se promove no encontro com outros corpos.
Resumindo, a arte e a política estão conectadas desde o princípio pelas suas
incidências concomitantes no que diz respeito às posições e movimentos dos corpos, o
funcionamento e o sentido da palavra, maneiras de estar junto ou separado, fora ou dentro.
Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta e
as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela determina interferem com o
recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do blico
[...] que define uma comunidade política (RANCIÈRE, 2005b).
Não conseguimos pensar, a partir da obra de Rancière, se é a arte que se inclui na
politica ou se é a política que cabe na arte. Com Luis Camillo Osorio, concordamos quando
ele afirma acerca do pensamento do autor: Arte e política se misturam e se contaminam,
negociando continuamente a resistência e a gestão daquilo que é em relação ao que pode vir
a ser, pondo em questão o que está dentro e o que está fora do sistema instituído(OSORIO,
2005, p.48). Com Osoio, podemos pensar, desse modo, um devir-político da arte bem como
um devir-artístico da política, onde ambos estão se colocando sempre em questão, a arte
forçando e combinando temporalidades e sentidos heterogêneos e a política se mostrando
24
disponível em relação ao novo, tensionando suas práticas de convenções institucionais
(OSORIO, 2005, p.44).
Uma vez esclarecida essa questão, Rancière compreende ainda a possibilidade de
vislumbrar ao longo do tempo políticas da arte distintas, marcadas por transformações e
rupturas. Essas seriam: “um tipo específico de ligação entre modos de produção das obras ou
das práticas, formas de visibilidade dessas práticas e modos de conceituação destas ou
daquelas (RANCIÈRE, 2005a, p.28), e constituiriam, na tradição ocidental, três grandes
regimes de identificação da arte. Elas serão apresentadas brevemente a seguir, a fim de
melhor explicitar o surgimento do regime das artes ainda vivenciado pela contemporaneidade.
É importante salientar que, apesar da passagem de um regime ao outro seja
acompanhada de uma seta que avança no tempo, o que ocorre não é exatamente a substituição
completa de um regime pelo outro. Ocorrem com os regimes de arte algo semelhante às
observações de Michel Foucault (1999) a respeito das configurações da sociedade, as quais
ele destacou as sociedades de soberania, as sociedades disciplinares e plantou o entendimento
das sociedades de controle (DELEUZE, 1992). Esses modelos se superpõem temporalmente,
mas as lógicas que as regulam podem ser encontradas num mesmo presente, reordenadas,
sobrevivendo como vestígios de um passado e tecendo as nuances do futuro (por exemplo,
mesmo vivendo uma sociedade de controle, convivemos com dispositivos disciplinadores).
Primeiramente, Rancière identifica um regime ético das artes, no qual a arte ainda não
possuia um estatuto próprio. Podia-se falar então tão somente em artes como maneiras de
fazer que, nesse caso, tinham por função a produção das imagens, ou seja, a produção dos
simulacros. Esse é o regime definido basicamente pela postura platônica, que se atém ao
julgamento das imagens tanto em termos de suas origens e teor de verdade, como em relação
aos usos e efeitos obtidos em sua produção. Em relação à origem, existiriam artes verdadeiras,
correspondentes a saberes que concorrem na imitação do modelo, da Idéia, e haveria as artes
25
como o teatro que se reduzem à imitação de aparências. Em relação ao uso, essas práticas
seriam inferiores por confundirem, na educação dos cidadãos espectadores, a partilha das
ocupações da cidade como nas imagens do poema. O critério de julgamento diz respeito ao
valor das imagens produzidas em relação à afirmação da maneira de ser da comunidade, de
seu ethos. Por ser apenas uma atividade produtiva de imagens entre as outras, a arte não chega
a ser considerada em sua unidade e singularidade.
O regime representativo ou poético se opõe ao regime ético da arte, permitindo a
identificação da mesma pela mímesis como finalidade comum. O princípio mimético liberta a
arte da submissão ao modelo, ao mesmo tempo que estabelece, num campo de visibilidade,
um determinado tipo de práticas definidas pela produção das imitações. A atenção ao modelo
cede lugar à consideração da própria coisa representada, do ato de fabricação da cópia, a
concretização de seu fim.
Essa mudança tem sua origem em Aristóteles e sua elaboração é diferenciada da
mímesis em Platão, pois uma ambiguidade em relação à ênfase dada à representação.
Representar pode ser tanto relativo a algo de exterior, como pode ser a re-apresentação de
uma corpo, sua presença dada a ver. É preciso, portanto, considerar a ambiguidade como
estrutural e admitir que a mímesis aristotélica é relativamente indiferente à oposição entre a
figura e seu referente, e amesmo que ela é construída, precisamente, sobre a colocação
desta indiferença(GUÉNOUN, 2004, p.21). Assim, na tragédia pouco importa ao artista a
manutenção da fidelidade ao ser da imagem, e sim à elaboração minuciosa e consistente do
conflito e das ações, o que confere legitimidade à arte e à sua apreciação segundo novos
critérios de boa adequação, que atentariam para questões como:
separação do representável e do irrepresentável, distinção de gêneros em
função do que é representado, princípios de adaptação das formas de expressão aos
gêneros, logo, aos temas representados, distribuição das semelhanças segundo
princípios de verossimilhança, conveniência ou correspondência, critérios de distinção
e de comparação entre as artes etc. (RANCIÈRE, 2005a, p.31).
26
A legitimidade da obra mimetizada é garantida no seu processo de fabricação, ao se
valer do uso dos mesmos princípios geométricos que constituem a natureza. O objetivo da arte
nesse regime não é tanto apanhar o sensível, ou seja, as deformações encontradas na natureza,
mas produzir imagens de valorização da “bela-natureza”, onde ela é depurada e corrigida. Sua
imitação é, ao mesmo tempo, a exposição cognitiva dos princípios ideais de sua regulação, e é
tanto mais bem-sucedida quanto se orienta pelos critérios normativos. Em conformidade com
a normatividade hierárquica, observa-se também a primazia da ação sobre o caráter no teatro,
e da narração sobre a descrição na literatura, em analogia com a visão hierárquica da
comunidade desenhada por este regime.
Esse regime das artes, chamado por Rancière de poético por reunir as artes através da
classificação de maneiras de fazer e de apreciar imitações bem feitas, é ao mesmo tempo
representativo por ter como princípio de organização e visibilidade na partilha do comum a
noção de representação ou mímesis. As artes passam a se diferenciar das demais práticas e a
gozar de autonomia, na medida em que essa autonomia também se insere na ordenação geral
das formas de fazer e de ver.
A essa política da arte, Rancière contrapõe um regime estético das artes, surgido na
virada dos séculos XVIII e XIX, que modifica o esquema de visibilidade na identificação da
arte (baseada, até então, numa distinção dentre as maneiras de fazer, nas quais às artes cabia a
qualidade da imitação), passando a distingui-la em função das relações que ela estabelece com
um modo de ser sensível próprio a seus produtos, a um regime específico do sensível. Esse
regime define uma experiência sensível desconectada das condições normais da experiência
sensível e das hierarquias que a estruturam (2005b). O sensível assim compreendido é
marcado pela presença de uma potência heterogênea, a potência de um pensamento que se
tornou ele próprio estranho a si mesmo(2005a, p. 32), o que remete ao reconhecimento de
uma qualidade irrepresentável do sensível, de sua potência de diferenciação. Ele se torna o
27
único núcleo identificador das vontades e modos de fazer artísticos, por assim dizer, sua única
referência.
O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no
singular e desobriga essa arte de toda a qualquer regra específica, de toda hierarquia
de temas, gêneros e artes. [...] Ele afirma a absoluta singularidade da arte e destrói ao
mesmo tempo todo critério pragmático dessa singularidade. Funda, a uma vez, a
autonomia da arte e a identidade de suas formas com as formas pelas quais a vida se
forma a si mesma (2005a, p. 33-34).
O manifesto exemplar dessa virada no regime das artes é o estado estético de Schiller,
no qual ele aponta o princípio de uma revolução da experiência sensível: o estado estético é
pura suspensão, momento em que a forma é experimentada por si mesma (RANCIÈRE,
2005a, p.34). Essa concepção do sensível é assim marcada pela identidade fundamental dos
contrários: de um lado, a abolição completa de referentes, do outro, a identificação das formas
da arte às manifestações da vida de um povo em sua integridade e inteireza. O novo regime
estético, antes de ser uma ruptura com a tradição, põe em relação o presente com o antigo:
ele transforma em princípio de artisticidade essa relação de expressão de um tempo e de um
estado de civilização que antes era considerada a parte ‘não-artística’ das obras
(RANCIÈRE, 2005a, p.36). Sob esta perspectiva, ele se imcube de inventar novas formas de
vida no presente, o que equivale a uma identificação da arte com as práticas que imprimem
um ritmo e uma edificação do modo vida de uma comunidade, da emancipação de um povo.
Isso pressupõe:
a ruptura de um esquema de adequação entre a distribuição de corpos e
equipamentos corporais adaptados a essas condições e ocupações. [...] a neutralização
da oposição entre a atividade e a passividade, isto é, da partilha do mundo entre a
classe dos homens ativos, que são os homens ‘do lazer’ e a dos homens passivos, a
dos homens destinados à passividade do trabalho reprodutor (RANCIÈRE, 2005b).
28
Desta maneira, o que assinala o advento da revolução da experiência sensível é a
emancipação estética através da qual um trabalhador se torna capaz de se forjar um novo
corpo, com o que ele pode ir além dos esforços musculares capturados pelo capital e descobrir
novas formas de relação com a vida e com a sensibilidade, rompendo com seu lugar pré-
determinado na configuração espaço-temporal da comunidade, separando seu olhar
contemplador dos braços que trabalham para o patrão(RANCIÈRE, 2005b). Em oposição
ao estado de dominação, no qual o pensamento e o corpo sensível se encontram subtraídos de
potencial criador (a atividade da matéria é mecanizada e o pensamento é marcado por sua
passividade improdutiva), deve ser desenvolvida uma educação estética que restitua o caráter
ativo do pensamento e a ativação da receptividade sensível do corpo.
Schiller assinala a partilha política, ou seja, o que está em jogo nessa
operação: a partilha entre os que agem e os que suportam; entre as classes cultivadas,
que têm acesso a uma totalização da experiência vivida, e as classes selvagens,
afundadas nas fragmentações do trabalho e da experiência sensível. O “estado
estético” de Schiller, suspendendo a oposição entre entendimento ativo e sensibilidade
passiva, quer arruinar, com uma idéia da arte, uma idéia da sociedade fundada sobre a
oposição entre os que pensam e decidem e os que são destinados aos trabalhos
materiais. (RANCIÈRE, 2005a, p.66).
O regime estético nasce, então, marcado por sua contradição constitutiva de ser, ao
mesmo tempo, uma forma autônoma da vida (o que vale afirmar a autonomia da arte e sua
correspondência com o processo de criação da própria vida), e por isso dotado de um duplo
potencial de emancipação. Por um lado, ele reside em sua ociosidade, sua recusa à qualquer
forma de subordinação ou de funcionalidade, sua resistência ao controle social se
aproximando assim da postura do trabalhador que reivindica a si o direito ao ócio e à
contemplação, à liberdade de indiferença. Esta aparente recusa da arte em servir ao político
expressa, ao mesmo tempo, uma política da arte que persegue a reconfiguração e a renovação
da partilha do sensível, que se opõe a uma divisão do trabalho que separa os corpos e as
“almas”.
29
Por outro lado, a outra face constitutiva do regime estético advoga a auto-supressão da
arte em favor de sua integração plena na construção da vida comum renovada e que
indiferencia arte e política, trabalho e lazer, o público e o privado, enfim, promove a união
dos contrários. Ela promete um futuro:
onde a liberdade e a igualdade excepcionais da experiência estética serão
incorporadas nas formas da experiência comum. [...] Ela define portanto uma
metapolítica, isto é, o projeto de realizar realmente aquilo que a política realiza apenas
aparentemente: transformar as formas da vida concreta, enquanto a política se limita a
mudar as leis e as formas estatais (RANCIÈRE, 2005b).
Portanto, o caráter político e revolucionário que o regime estético traz consigo não
corresponde exatamente à tomada de consciência da condição de submissão. Pois não é a
consciência do trabalhador que garante sua emancipação; ao “conhecer” sua realidade
opressora, ele ao mesmo tempo a reconhece, e por outro lado, ao “des-conhecê-la”, ela a
refuta, não reconhece mais como válidas as regras da realidade, rompe com os recortes das
ocupações e dos lugares do mundo dado à vista. De forma semelhante, a emancipação não se
reduz a simples transformação de uma passividade em uma atividade, pois é antes a
passividade da matéria sensível que tem de ser redescoberta em sua capacidade de
receptividade e contemplação do mundo, em se fazer aberta e criativa no ócio indiferente:
uma arte que construa o ponto de equivalência de um saber e de uma ignorância, de uma
atividade e de uma passividade” (RANCIÈRE, 2005b).
É precisamente essa habilidade de pensar as contradições que define a estética. E é
esse paradigma que atesta a idéia de uma política da arte que independe mesmo da vontade do
artista de refutá-la ou de fazê-a servir a uma causa política. No entanto, o essa contradição que
a funda deu origem a duas formas políticas da estética, que marcam a divisão, por sua vez,
entre os acima mencionados partidários da “arte pela arte” e os partidários da sua missão
social. Essa dicotomia acirrada é fruto de uma incompreensão do fundamento do regime
30
estético, que toma por mutuamente exclusivas duas premissas que se interpenetram, apesar de
se afirmarem em seus sentidos opostos.
Rancière alega que não pretende definir o que ou como deve ser uma política da arte,
mas aponta alguns perigos nos rumos tomados na arte contemporânea. Nesse sentido, ele diz
do risco de anular na arte a potência do encontro dos heterogêneos, ao se furtar à ocupação
dessas formas de recorte do espaço sensível comum e de redistribuição das relações entre o
ativo e o passivo, o singular e o comum, a aparência e a realidade” (2005b). Um certo tipo de
arte crítica que busca produzir conhecimentos ou representações teima em persistir, se
limitando ao trabalho de separação das aparências da realidade e não atentando para as
possibilidades de embaralhar as próprias relações e regulações entre ambas. A suspensão das
explicações sobre as forças objetivas de produção da realidade podem dar lugar àquilo que
Rancière defende como realmente político: “não o conhecimento das razões que produzem tal
ou tal vida, mas o confronto direto entre uma vida e o que ela pode” (2005b).
1.2 Claire Bishop e a crítica da arte social
Assim como Rancière, Claire Bishop também faz uma apreciação dos caminhos da
arte contemporânea, em especial, daquelas que se afirmam pertencentes à virada social na
arte. Em seu artigo A virada social: colaborações e seus descontentamentos (The social turn:
collaborations and its discontents), ela discute determinadas práticas artísticas que se
constituem em projetos com a colaboração de coletivos sociais, e cujos resultados são,
geralmente, menos comerciais que trabalhos realizados individualmente. Segundo a crítica
inglesa:
Estas práticas estão menos interessadas em uma estética relacional do que nas
conquistas criativas da atividade colaborativa – seja na forma de trabalhos com
31
comunidades pré-existentes ou de estabelecer uma rede interdisciplinar própria
4
(BISHOP, 2006).
Bishop identifica como objetivo comum de grande parte dessas iniciativas a aposta na
criatividade e no compartilhamento de idéias nas ões coletivas e a restauração do vínculo
social perdido em meio à promoção do espetáculo e do individualismo, ou seja, a arte como a
produção direta de uma forma de sociabilidade específica:
Para esses e outros apoiadores da arte socialmente engajada, a energia criativa
de práticas participatórias rehumaniza ou, pelo menos, realiena uma sociedade
refém e entorpecida, fragmentada pela instrumentalidade repressiva do capitalismo
(BISHOP, 2006).
Mesmo favorável à investida da arte no campo social e às colaborações dos coletivos
sociais nos processos de produção das obras (colaborações que constituem, a seu modo,
partilhas do sensível), Bishop o se furta à crítica de certos aspectos dessas experiências, e
considera relevante que se faça uma análise desses projetos que inclua sua dimensão estética.
Caso contrário, corre-se o risco de reduzir a arte à produção de novas estatísticas sociais.
Outro risco percebido é relativo à discussão dos critérios que julgam o produtos dessas
práticas artísticas. Bishop se revela preocupada com a crescente moralização das críticas, que
substituem toda análise estética das obras pelos modos de condução do processo coletivo, em
relação a questões como a dissolução da autoria e da efetiva ou não efetiva participação dos
grupos nas decisões e idéias expressas pelo consenso. A ênfase no processo em detrimento da
qualidade final do resultado seria uma contrapartida à empresa capitalista que funciona pela
lógica contrária.
Uma consequência dessa visão é o obliteramento de ganhos estéticos significativos e
da produção do novo que aí se observaria, mesmo naqueles trabalhos onde a questão da
autoria se mantém centrada na figura do artista, que coordena e assina o trabalho junto aos
grupos. A ênfase é transferida da especificidade disruptiva de um dado trabalho para o
4
Todas as traduções são nossas.
32
interior de uma disposição generalizada de preceitos morais(BISHOP, 2006). Além disso,
ao se manter refém do politicamente correto quando da recusa de qualquer procedimento
ofensivo ou comprometedor, a arte perde uma de seus principais expedientes, a saber, sua
capacidade de promover experiências de choque do sensível, de encontro com sua dimensão
não-recognitiva, seja através do incômodo, da frustração, da excentricidade ou do absurdo. De
fato, Bishop aponta justamente os melhores exemplos de arte de colaboração social aqueles
trabalhos que se valem das potências do impacto estético e da consequente produção de novas
perspectivas na subjetividade, mais que das tentativas de restituir um vínculo social perdido
ou a abdicação da autoria em nome do respeito a um processo grupal consensual.
A diversidade de propostas possíveis nesse campo, que Bishop ilustra ao longo do
artigo, faz pensar no que realmente provê a “eficácia” da arte social. A autora indica
possibilidades, no sentido de valorizar trabalhos que, para além das boas intenções, possam
antes desdobrar um mais complexo de interesses sobre prazer, visibilidade, engajamento
e as convenções da interação social(BISHOP, 2006). Rancière se aproxima dessa posição
ao atentar para a qualidadenue e tencionada da proposta política da arte, e de uma
“eficácia” que aponta para outro lugar que o a arte em si: não é a arte que irá “salvar o
mundo”. No entanto, positiva a importância da exploração do dissenso pela arte, que busca
combater a ditadura do consenso que transforma todo conflito político em saber de
especialistas e em técnicas de assistência social. Na captura da arte pelas categorias do
consenso, esta fatalmente se aproxima do que ele denomina de medicina social, onde se trata
de, ortopedicamente, consertar as falhas do vínculo social em favor da unidade coerente do
comum partilhado.
Enfim, o encontro com as obras de arte promove uma reconfiguração da experiência,
uma partilha do sensível, que demarca novas formas da partilha quanto mais permite a mistura
dos heterogêneos. Na partilha do sensível, o estético e o político se decidem no espaço que se
33
institui entre a singularidade da experiência imediata com a obra – a indiferença e solidão que
são suas marcas e a relação da obra com a comunidade, sua disseminação nas práticas
sociais, que passam a promover novas formas de subjetivação política. Nesse sentido, nos
perguntamos como a partilha reúne as “reações” do esteta e do leigo na experiência com a
obra em função de um não-saber, visto que o sentido é conferido fora das convenções da
crítica e do partidarismo:
A necessidade de compartilhamento é o que diferencia a experiência estética,
é algo que nos faz sempre querer falar e dividir o acontecimento singular da arte.A
tradução de um sentimento inicialmente indefinido e a criação de um vocabulário que
uma voz e uma articulação ao sentir mudo e inarticulado, é algo que deve ser
exercitado continuamente por aqueles que convivem com a arte (OSORIO, 2005,
p.48).
1.3 Dénis Guénoun: as necessidades do teatro e suas mutações históricas
Assim como Rancière, o teatrólogo Denis Guénoun (2003) também se volta para a
identificação de uma política constitutiva da experiência teatral, em termos da própria
atividade que a representação agencia, sua disposição física, independentemente do que se
propõe a ser representado. A seguir, são apresentados alguns elementos analisados por
Guénoun que buscam enfocar esse pressuposto político.
Antes de qualquer coisa, o teatro requer um público reunido presentemente, e essa
convocação pública é, de saída, política. O próprio termo atual “teatro” se mantém como
resquício dessa ênfase na assembléia que vem ao encontro da experiência teatral: o théatron é,
originariamente, o espaço físico de onde se assistia a representação de onde se vê, eis sua
tradução mais próxima. O ato político dessa reunião é originário, e segundo Guénoun, a
assembléia disposta já contém em si os gérmens do político. A publicidade do chamado entra
em relação com questões políticas da cidade, de circulação, fiscalização, propaganda ou
manutenção da ordem (2003, p.15). Para o autor, esse esquecimento das origens do teatro e da
34
relevância da presença do público acompanha as os movimentos da sua história, cuja ênfase
vai, gradualmente, de deslocando da platéia e da globalidade do espaço para o palco, lugar
destinado ao representado.
A escolha do local da representação também é política: longe ou afastado do centro da
cidade, estabelece uma relação espacial com os grupos que a habitam. Assim como a escolha
da hora e da duração: durante o dia, horário destinado ao trabalho, ou à noite, reservado ao
descanso. O teatro se insere no espaço de organização da cidade, e o governo o lhe é
indiferente, seja para apoiá-lo, seja para pôr-se em alerta.
Guénoun, no que ele chamou de um romance das origens do teatro, dá realce à
ordenação do mesmo pela arquitetura. O círculo que lhe caracteriza o espaço é seu formato
originário. Por ser este a formação da assembléia dos espectadores que provê a melhor
disposição para ver e ouvir uns aos outros, o autor aponta a circularidade como uma “pré-
disposição” política. O formato circular sofre, no entanto, distorções no tempo. Seu extremo
oposto é a sala retangular, que denota uma certa frieza do espaço, em função da separação e
distância marcantes entre palco e platéia, embora favoreça a visão do todo da cena.
Guénoun discute então a importância originária da circularidade: o círculo permite que
o público não veja apenas a cena, mas que se veja, se diferencie da “massa”, se reconheça
como reunido. Há o desejo de reconhecimento como grupo, de ter o sentimento de sua
existência coletiva, perceber o contágio de suas reações frente ao representado. O público,
segundo Guénoun, quer experimentar seu pertencimento coletivo, compartilhá-lo, e em um
certo plano, ele compõe uma forma de comunidade
5
. A reunião do público é indício da
manifestação de um desejo de comunidade.
Em consonância com esse entendimento, o círculo é a condição histórica que favorece
a deliberação, o esquema próprio do coletivo na democracia (2003, p.23), e se diferencia de
5
Mais à frente voltaremos à essa questão da comunidade para melhor entendê-la.
35
um modelo de assembléia onde a atenção está centrada na tribuna, sinal diferenciado de
autoridade e de poder modelo que busca a desarticulação da comunidade. Assim, teatro e
democracia se afinam pela origem, pelo menos no que concerne às suas formas (GUÉNOUN,
2003, p.25).
Para Guénoun, os atores são o pólo que completam o círculo no teatro, e portanto, se
incluem de alguma forma entre os membros da comunidade reunida. O que se põe em jogo
não é heterogêneo ao que se mobiliza no público (2003, p. 27). Os atores compõem a
comunidade por delegação, não necessariamente por origem, mas antes pelo e no ato da
representação: o ator é o signo do estranho, do estrangeiro, está geralmente de passagem,
toma parte na experiência por convite do coletivo.
As alterações no formato circular do espaço físico do teatro podem ocorrer tanto
através do fracionamento do círculo (quando o palco se opõe ao resto, se eleva, e os efeitos de
luminosidade põe a platéia gradualmente nas sombras, em relação à iluminação direta do
palco) como por seu achatamento (o palco se estende em largura e em profundidade,
tornando-se pouco a pouco frontal: Face a face, o encontro de espaços que se afrontam
(2003, p.28). No entanto, esse caminho não é linear: há, na história do teatro, momentos de
irrupção bruta, quando da afirmação do espaço político e do desejo comunitário. São
momento nos quais o formato circular se renova e se recompõe.
Apesar de identificar os sinais do político na experiência teatral, pela reunião do
público que é potencialmente dotado de ação política, Guénoun não compreende que fazer
teatro seja fazer política da mesma maneira que a política propriamente dita. No entanto, o
autor pensa na relação entre a baixa afluência contemporânea aos teatros e o desapreço pelo
exercício do político no cotidiano da sociedade: essa abstenção afetaria a ambos, pois o
público só vai ao teatro quando quer ser politicamente ativo (2003, p.39).
36
Assim como Rancière põe em perspectiva histórica os modos específicos de
organização dos regimes que a arte engendrou, Guénoun (2004) investiga os movimentos e
rupturas que marcam a história do teatro. Seu intuito não é fazer uma historiografia dos
sedimentos, mas demarcar as transformações que arrastam internamente o teatro para outros
modos de funcionamento. Para tanto, Guénoun se pergunta a respeito da especificidade do
teatro, sua qualidade. Quais são as forças que o constituem e que o põem em movimento? Em
sua obra “O teatro é necessário?”, o autor coloca uma questão bastante contemporânea, numa
época na qual os espetáculos parecem ter perdido seu atrativo
6
e seu poder de congregação
social. O público nos espetáculos parece diminuir, e o teatro ficou órfão das revoluções
(2004, p.11). Dentre as artes, o teatro vive certamente um momento delicado, uma espécie de
crise reconhecida, como algo que insiste em sobreviver mesmo que fadado a aceitar seu
insucesso. Por outro lado e ao mesmo tempo, Guénoun fala de um movimento contrário na
cena teatral: ocorre hoje um aumento da procura por cursos de formação em teatro, e as
escolas se multiplicam ganhando mais adeptos, dentre os mais variados grupos: jovens,
idosos, usuários de psiquiatria, moradores de comunidades.
Isso pode ser pensado de formas diversas. Essa crise do teatro se inscreve justamente
no encontro dessas dinâmicas contrárias, o que o revela vivo, sob tensão, compelido a se
repensar, “porque o teatro, em suas formas estabelecidas, não encontra nenhum recurso para
responder à necessidade de teatro que a vida coletiva produz de forma tão intensa
(GUÉNOUN, 2004, p.13). A crise, para Guénoun, pode ser melhor analisada se
considerarmos a qualidade dupla da experiência teatral, que se constitui em atividades
distintas de ver (o que traz os expectadores ao encontro) e de fazer (a atividade própria ao
palco, no que se inclui tanto o trabalho do texto quanto o da passagem à cena), implicadas
6
Pelo menos em relação a uma época mais remota na história do teatro, na qual sua articulação com o poder do
Estado se fazia bem mais presente. Segundo Jean-Jacques Roubine (2003), a França do século XVII mantinha
uma forte relação pública com o teatro, onde a atividade teatral era, de fato, a única prática cultural “a reunir as
massas” (2003, p.56). De qualquer modo, é de um tipo de teatro específico que se fala aqui. Certamente se faz
notável uma demanda por espetáculos comerciais, feitos sob a encomenda do gosto do público.
37
simultaneamente, e que hoje parecem ordenar duas legitimidades distantes. Podemos pensar
que essa duplicidade da atividade vale para todas as artes, pois todas implicam um momento
produtivo e um momento receptivo. No entanto, o teatro essa relação de forma
indissociável: diferentemente de outras expressões artísticas, ele demanda um dispositivo
especial, um encontro marcado, exige a presença imediata do público e dos atores num
mesmo lugar e tempo.
Essas atividades, por sua vez, funcionam seguindo dinâmicas próprias e, segundo o
autor, são movidas por “necessidades” distintas. Nesse sentido, Guénoun não entende o termo
necessário como uma fatalidade do destino, uma determinação plena. inclusive casos de
sociedades que não experimentaram o teatro como nós o compreendemos em suas
características próprias. Para o autor, necessário é aquilo que quer um ser vivo que quer
viver, e se ele o obtém, usufrui de um novo chamado. Necessidade é, então, o nome da
brutalidade do chamado” (2004, p.16).
É interessante fazer uma observação sobre essa relação entre o fazer e o ver que estão
presentes no teatro. A divisão estabelecida por Guénoun o pretende dividir a experiência
teatral em dois pólos opostos de atividade e passividade, como se os atores fossem os
membros ativos e os espectadores assumissem uma postura passiva, apenas deixando-se
absorver pelo ambiente. Nesse sentido, John Dewey (1974) contribui com a questão ao falar
sobre a impossibilidade de disjunção absoluta entre fazer e padecer, entre o caráter técnico e
prático de quem produz e o caráter receptivo de quem contempla. A experiência estética
pressupõe uma relação percebida entre o fazer e o sentir, que se imprimem movimento e
direção mutuamente, bem como a apreciação o se iguala à passividade, demandando uma
atividade consciente intensa de produção de sentido pela percepção renovada.
Assim, mesmo o artista, trabalhe ele na solidão de seu ateliê ou no espaço imediato do
palco, é obrigado a atentar sobre os efeitos de seus atos sobre sua própria sensibilidade; sua
38
capacidade de perceber a si mesmo é o que confere a qualidade da realização do próximo
gesto, tornando única a experiência, onde cada momento conduz ao outro de forma articulada
e fluida.
Para Dewey, a apreciação de qualquer obra também implica um trabalho ativo por
parte do espectador, mesmo que isso não seja evidente:
Somos dados a supor que [o apreciador] simplesmente absorve aquilo que se
encontra em forma acabada, em vez de compreendermos que tal absorção implica
atividades comparáveis às do criador. o obstante, receptividade não é passividade.
É também um processo que consiste numa série de atos de resposta que se acumulam,
direcionados para a culminância objetiva. De outra maneira, o que haverá não será
percepção, e sim reconhecimento. (DEWEY, 1974, p.102, grifo nosso).
O reconhecimento é a suspensão da percepção, quando ela se depara com um esquema
previamente formado. Como diz Dewey, ele é cômodo demais para que se desperte uma
consciência vívida. No encontro com a arte, o ato de ver envolve uma atividade reconstrutora
da experiência e exige do apreciador uma consciência vívida, que percorra circuitos inéditos
na tentativa de dar sentido à obra.
Assim, Guénoun busca, desde as elaborações teóricas da arte trágica grega, investigar
os movimentos e rupturas que marcam a história do teatro, baseando-se na distância entre os
mecanismos que regulam o fazer e o ver teatrais e quais as necessidades envolvidas nessas
duas atividades que lhe são constituintes. Enfim, o autor investiga a maneira pela qual isso a
que se passou a se chamar “teatro” foi formado no tempo e compôs diferentes agenciamentos,
se transformando na relação que manteve e mantém com outras práticas, com os processos
econômicos, com as políticas de governo, com as mutações do social etc.
Pensar a constituição do teatro como agenciamento permite pensá-lo movido por
necessidades distintas que se articulam conjuntamente num mesmo espaço-temporal, tanto
histórico quanto presente. Essas necessidades podem ser pensadas estrategicamente, como
39
efeitos perseguidos que atravessam e costuram o agenciamento teatral; são suas faces mais
evidentes, reorganizando e pondo em marcha os elementos à sua volta.
Por agenciamento, Deleuze (1992) compreende a fabricação de uma rede onde
determinados elementos são colocados em relação, não somente do plano das suas formas
constituídas, mas principalmente no plano das suas forças constituintes. Os encontros travados
por agenciamento ocorrem sempre pelas fronteiras, pela franja de diferenciação que os
elementos possuem plano molecular, onde ocorre a invenção. O agenciamento é construção
de desejo; implica um conjunto, posto que o desejo não deseja um objeto em particular, ele
busca paisagens onde habitar. Para Deleuze, o agencimento comporta quatro dimensões:
estados de coisas, enunciações, territórios, movimentos de desterritorialização, onde o desejo
se fabrica:
Estados de coisas, estados de corpos (os corpos se penetram, se misturam, se
transmitem afetos); mas também enunciados, regimes de enunciados: os signos se
organizam de uma nova maneira, novas formulações aparecem, um novo estilo para
novos gestos (DELEUZE, 1992, p.84).
Assim, na obra de Guénoun são apresentados como marcos aqueles momentos onde o
teatro é levado a um extremo e forçado a se re-inventar, a adquirir novos horizontes, a
engendrar novas funções, a rever suas relações entre palco e platéia, texto e cena, enfim, a
redesenhar em suas práticas as novas necessidades de teatro que pedem caminho.
Nesse sentido, o autor mostra como a separação entre a ficção e sua representação em
cena não foram dois aspectos distintos tomados desde sempre na história do teatro. Essa
separação, bem como a diferença representativa entre ator e personagem, são produções de
sua história, com efeitos concretos. Guénoun inicia sua análise pelas idéias presentes na
Poética de Aristóteles, que se pretendeu um esforço teórico sobre a construção da tragédia,
atentando mais para sua dimensão poética que cênica. Não podemos, no entanto, determinar
ao certo se os assuntos tratados na Poética nos dizem de uma prática dramática verificada na
40
Grécia Antiga tal como aconteceu. Guénoun a considera pelas fortes influências que o texto
exerceu ao longo dos séculos na constituição das várias teorias e práticas sobre o teatro. O
texto da Poética é, até hoje, alvo de muita polêmica, e dele Guénoun só irá considerar alguns
elementos em sua análise.
Primeiramente, constata que, para Aristóteles, não se cabia colocar a diferença entre a
ação representada e a própria ação de representar, uma vez que, no teatro, o objeto
representado (ação) é feito da mesma materialidade: ação de representação de ação. A
mímesis é ao mesmo tempo representação e ação de representar. Assim, também não interessa
diferenciar os atores e os personagens no desenrolar da tragédia: ambos são agentes,
concorrem na ação, e é isso que importa nesse momento. Para Aristóteles, ao se perguntar do
motivo da existência de representações, ele se depara com necessidades distintas no homem:
haveria uma necessidade de “representar” pela ação, necessidade prática, mímesis ativa, e um
lado, e uma necessidade de ver representações, que é acompanhada de prazer.
A essa segunda necessidade, Aristóteles irá chamar de teórica. Para ele, o campo de
visão dirigido à tragédia operava um olhar cognitivo. Assitir a tragédia era uma atividade de
aprendizagem, de abstração das formas depuradas pelo drama. Em sua interpretação da
Poética, Guénoun deixa de fora um ponto que é central em diversas abordagens da mesma: o
processo de identificação do espectador com os heróis trágicos, através da catarse – fenômeno
no qual o terror e a piedade depurariam a emoção do público. Guénoun afirma que na Poética
essa relação de identificação ainda o existe, na medida em que não haveria algo com o que
a ser identificado. A identificação pode ser operada na distância entre coisa representada e
representante, o que só emerge séculos mais tarde, quando o aristotelismo é revisitado,
ampliado e servido de modelo à toda produção dramática.
É portanto, na revisita do aristotelismo, que tem início no século XVII, que vemos ser
interpretados da Poética diversos elementos que ganham novo relevo e incidem politicamente
41
nas experiências teatrais da época. É também então que os teóricos do teatro põem em marcha
das mais diversas formas possíveis a divisão entre os procedimentos de representação e a
verdade da representação em si, o que o abade d’Aubignac, em sua obra La pratique du
théâtre, de 1657, chamou de dois regimes diferentes: regime da verdade da ação teatral, da
história imaginária que se tece por trás da encenação, imanente, portanto, ao texto; e regime
da representação propriamente dita, no qual incidem os atores, os figurinistas, o cenário e
todos os aparatos que visam garantir o ilusionismo da cena.
O ilusionismo servirá de instrumento político fundamental às necessidades que se
valem do teatro para se promoverem. É desse modo que, dos séculos XVII ao XVIII, o teatro
serviu como pedagogia da virtude, atribuindo à representação uma finalidade utilitária.
Primeiramente, colaborando para a consolidação do Absolutismo: as cenas traziam então as
façanhas de príncipes e nobres de coração destemido, que defendiam a nação e os valores
reais e aristocráticos. A intenção era a de contaminar os súditos com esse mesmo espírito,
inspirando-lhes pelo apanhado sensível conferido ao teatro as virtudes elevadas que, sob
outras formas, eles não teriam instrução suficiente para compreender. Do mesmo modo a
estética e a moral se encontrarão para a defesa e a promoção dos valores burgueses à medida
em que a nova classe ganhava importância e espaço na sociedade surge desse empreitada o
drama burguês, que mesmo se opondo aos abusos do poder real se valerá do mesmo
dispositivo teatral, devendo promover o espírito cívico que, ao mesmo tempo, depura tanto o
espectador de suas emoções pessoais quanto o corpo social como um todo.
Segundo Guénoun (2004), a história do teatro consolidou duas grandes figuras: a do
personagem e a do espectador, unidas por uma relação imaginária entre o ator e a platéia. A
identificação acontecia de duas formas: de um lado, em cena, na relação entre o ator e seu
personagem como bem opera todo o sistema de Stanislávski, no qual o ator é levado a
efetivamente viver seu papel. Do outro lado, a identificação dos espectadores entre si produziu
42
a figura imaginária chamada o espectador, entidade virtual no público ao qual indentificam o
eu de cada espectador. Por sua vez, o espectador se identifica com o herói grandioso,
projetando seu ideal de eu. Assim, a necessidade de teatro até as primeiras décadas do século
XX se realizava pela identificação com o personagem no desdobramento de uma narrativa.
Para o autor, o teatro encontra no cinema um forte concorrente nesse sentido (ao
menos no princípio do cinema, quando este se propunha a ser uma espécie de teatro
fotografado). O cinema tomou para si com muita eficácia a manutenção da identificação do
expectador para com o personagem, uma vez que a técnica cinematográfica expandiu a
capacidade de dar vida à imaginação através das imagens na tela. Deste modo, o teatro
encontrou-se afetado em seu principal eixo de sustentação: a força imaginária do personagem.
Enfim, para Guénoun, na tentativa de estabelecer sua originalidade própria em relação
ao cinema, o teatro se voltou para aquilo que é sua essência própria, que é o acontecimento
mesmo de re-presentação das coisas, sua própria colocação perante o olhar e a existência. Sua
força está nesse movimento que a objetiva não pode reproduzir, pois ela só exibe a forma final
das coisas, não captura a intensidade cênica do ato de sua exibição ao mundo. Assim, hoje é o
ator e seu jogo que ocupam a cena, e se existem papéis, não é para que eles permitam a
passagem do personagem à cena, mas para que eles possam façam viver o jogo. O jogo é o
que revela uma presença despida de figurações: não se apela ao imaginário do público, não se
pretende enganá-lo, o espetáculo brinca com o que é, um modo de apresentação da vida:
O jogo talvez seja este afastamento de qualquer conduta em relação a si
mesma, que abre para sua exterioridade íntima, para sua não-identidade consigo [...]
Mas o sentido do jogo é um sentido imanente, um sentido da imanência que passa, por
default, a exterioridade transcendente do imaginário para reconduzir o sentido para o
âmbito da existência, o estar-aí, aí-diante, do ator: em sua prática. (GUÉNOUN,
2004, p. 138)
Assim, as necessidades cumpridas pelo ator em cena não estão mais submetidas às
exigências da confecção de identidades narrativas. Estas servem como passagens à lógica do
43
jogo, que busca mostrar uma verdade que coincide com a própria presença do corpo do ator
em ação. Desvelamento de uma existência em sua nudez, numa presença nica que o é
espontânea, ao contrário, segue com precisão o rigor da existência cênica: Os jogadores
querem uma verdade colada à vida, uma verdade cenicamente viva que dê testemunho do que
é propriamente vivo na vida, em qualquer vida” (GUÉNOUN, 2004, p.136-137).
Da mesma forma, as necessidades de se ver teatro também se encontram modificadas,
quando não se vai mais para desfrutar de personagens ou situações. O que, portanto, atrai o
público hoje? Segundo Guénoun, vai-se ao teatro simplesmente com a intenção de presenciar
e compartilhar uma operação de teatralização: para apreciar um acontecimento singular,
autônomo. se vai ver o que se conhece para desfrutar do como de sua nova
apresentação” (GUÉNOUN, 2004, p.140). Disso fica também notável a diferença do que é ir a
um espetáculo e o que era assistir uma peça: acompanhar uma história e seus conflitos se
distingue de deixar-se levar pelo ato de representação em si, pela teatralidade de um
fragmento de vida. E é isso que o olho olha: o mais o efeito de ilusão, mas a sobriedade
lúdica e operatória de sua vinda” (GUÉNOUN, 2004, p. 142).
O espectador não procura mais suporte na verdade do papel, mas na verdade do jogo.
É esta que lhe provoca os sentidos, que o afeta. As necessidades de fazer e ver teatro se
encontram nessa potência do jogo, do qual, em sua radicalidade, o espectador também faz
parte.
A necessidade do teatro que se faz é necessidade de jogadores, mas convoca
companheiros de jogo para fazerem os espectadores. Assim, do outro lado da platéia,
também o necessários jogadores que ofereçam ao jogo a benevolência de seu olhar
(GUÉNOUN, 2004, p.148).
Buscaremos, a seguir, mais elementos para a discussão entre a relação e os limites
entre os jogadores em cena e os jogadores constituintes da platéia, bem como as intercessões
44
que podemos estabelecer entre o desejo de constituição de uma comunidade na experiência do
teatro e o desejo de constituição de uma comunidade que atravessam as práticas da psicologia.
45
CAPÍTULO 2
À PROCURA DO TEATRO NA COMUNIDADE
E DA COMUNIDADE NO TEATRO
Assim como a psicologia, o teatro também buscou pensar suas implicações políticas e
suas relações com o social, ainda que em meio às dificuldades de compreendê-lo e conceituá-
lo. No seio dessas questões algumas expressões foram cunhadas e são empregadas de formas
variadas, gerando no campo teórico e prático do teatro uma certa imprecisão terminológica.
Assim, temos expressões como “teatro político”, “teatro épico”, “teatro social”, “teatro
popular”, cujas fronteiras não se encontram perfeitamente estabelecidas. Elas giram mais ou
menos em torno de questões muito próximas, mas carregam variações quanto à sua origem e
de ordem metodológica e ideológica, segundo Sábato Magaldi (1998).
Para o autor, o teatro político está mais relacionado às formulações de Erwin Piscator
e ao engajamento direto com as causas do proletariado no começo do século XX. O teatro
épico foi desenvolvido por Bertold Brecht, partindo das proposições do teatro de Piscator,
buscando conciliar drama e epopéia, dois gêneros presentes na Poética de Aristóteles. Visava,
através da narrativa, fazer do espectador um observador crítico. O teatro social é uma
expressão mais ampla, pois muitas seriam as formas de abordar o social na cena, e segundo
uma visão mais global, ao participar do complexo histórico, toda produção do teatro tem seu
caráter social.
2.1 O teatro popular
O teatro popular, entre os demais citados, é o mais uniformemente compreendido hoje.
As raízes do teatro popular se situam numa época bastante anterior, e remontam, por exemplo,
46
às performances das trupes de artistas da commedia dell’arte da Idade Média, que
interpretavam tipos populares num jogo de improvisação que se fazia muito próximo ao
público, em seu cotidiano. A formalização do teatro popular no século passado parece a
forma prática de exprimir uma arte social, rompendo as barreiras de classe(MAGALDI,
1998, p.106). A atmosfera cultural do período pós-guerra provocou mudanças no horizonte
artístico, e o confronto entre as vanguardas começou a ceder espaço para uma preocupação
geral em discutir e ampliar a relação entre espetáculo e público. As pessoas do teatro
começaram a buscar vias de democratização da sua arte, que até então havia se tornado
hegemonicamente voltada para as elites. Especialmente na França, a proposta era a de atingir
públicos os mais diversos, unindo o proletariado, a burguesia e os intelectuais, ultrapassando a
subordinação das montagens à diferenciação entre as classe sociais. A construção do Teatro
Nacional Popular por Jean Vilar procurou germinar no povo o sentimento de unidade
nacional, pela integração de seu povo na experiência teatral (ROUBINE, 2003).
No panorama artístico da América Latina, o teatro popular passou a ganhar uma
conotação mais política, defendendo que ao se produzir arte também se transformava a
realidade. Para concretizar esse tipo de teatro e de fato popularizá-lo, buscou-se compreender
o povo que constituía esse popular. Muitos autores de teatro problematizaram essa questão,
como Augusto Boal (1984), percebendo ainda que existem formas variadas de associar teatro
e povo: teatro do povo para o povo, teatro sobre o povo, mas que não é dirigido a ele, teatro
de perspectiva “antipovo” dirigida ao povo etc. De forma geral, existe uma compreensão
comum de que o povo é constituido pelo setor social oprimido que carrega as possibilidades
de transformação social pelo seu inconformismo.
A expressão teatro popular, assim como a de cultura popular, coloca em jogo uma
implícita diferenciação entre arte popular e arte erudita, historicamente considerada superior,
de difícil resolução. Maria Helena Kühner (1975) comenta esse aspecto que atravessa as
47
escolhas e posturas do artista contemporâneo, que, através de sua atividade, pode aprofundar
o fosso forjado entre a cultura erudita ou clássica e a cultura de massas, que nem sequer é
popular em seu sentido radical, uma vez que é feita para o povo (na lógica capitalista do
consumo, para ser mais sorvida que vivida), e não através dele. Segundo a autora, o trabalho
do artista que se volta para a arte popular contém riscos e paradoxos, pois compreende
diferentes formas possíveis de comunicação: elas seriam abertas e participativas, ou
codificadas, formatadas e autoritárias. A arte e o teatro popular necessitam construir uma
linguagem nova que ressoe junto ao povo, mas cuja especificidade deve ser tecida em sua
aproximação genuína com a vida do homem comum:
a linguagem atual só excepcionalmente tem conseguido traduzir as aspirações,
necessidades, valores, a forma de percepção e visão de mundo, a experiência, enfim,
que os trabalhadores e o povo em geral têm da própria condição. Especificidade que
não se atinge ou substitui por uma simplificação ou barateamento de esquemas do
grupo “superior”, pela busca de adequar às regras e modelos ou mesmo aos critérios
estéticos populares conteúdos simplificados ou esquematizados de uma outra forma de
pensamento e visão (KÜHNER, 1975, p.67).
No Brasil, o teatro popular foi vetor de formação de diversos grupos que buscavam
pensar as questões da cultura e do povo nacional. Dentre eles, podemos citar o Centro Popular
de Cultura (CPC), ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE), e composto por estudantes,
artistas e intelectuais. O CPC repercutiu nacionalmente de 1961 a 1964, quando foi
interrompido pelo golpe militar. Assim como ele, o Movimento Popular de Cultura (MPC)
foi um núcleo de atividade artística, fundado por Hermilo Borba Filho, Paulo Freire e Ariano
Suassuna em 1958 em Pernambuco, ligado ao Teatro Popular do Nordeste, e também extinto
com a ditadura em 1964.
A história de criação teatral, no Brasil, foi muitas vezes criticada em virtude da
importação de estéticas e metodologias de países cujas configurações sociais eram bastante
diferentes, o que endossava a relação colônia/metrópole que se percebia também em âmbitos
48
econômicos e políticos. Se, por um lado, a cultura brasileira e o homem brasileiro sempre
eram espelhados de um modo indireto, adaptado, como um reflexo de uma cultura e de um
homem estrangeiro(SILVA, 1981, p. 142), conjuntamente com o CPC e o MCP existiram
movimentos teatrais que buscavam se contrapor a essa postura e elaborar uma arte cênica que
colocasse os reais conflitos do povo brasileiro em questão, opondo-se também à hegemonia
de uma arte burguesa, alheia aos interesses e à vida do povo.
A busca por transformação o se dava apenas em relação ao conteúdo, porquanto
novas técnicas e métodos passaram a ser erigidos, que se contrapunham à fixação no estilo
realista de Stanislavsky e buscavam superar o teatro épico de Brecht. Segundo Boal, a catarse
proporcionada no realismo “purifica (suprime) o espectador de algo perturbador,
inquietador, algo transformador da sociedade(1984, p. 19), o que até mesmo Brecht não
havia conseguido superar, por apresentar ao espectador imagens acabadas do mundo.
Assim, podemos citar, entre outros, o Teatro Oficina e o Teatro de Arena como dois
movimentos teatrais de origem universitária fortemente atuantes do final dos anos 50 ao início
da década de 70. Com trajetórias paralelas, embora mantendo suas formas próprias de
conceber e de fazer teatro, ambos os movimentos buscavam afirmar em seus
empreendimentos a função política e social da arte, influenciando outros grupos e
mobilizando em cena desejos comunitários.
2.2 Zé Celso e o Teatro Oficina (Usyna Uzona)
Segundo José Celso Martinez Correa, diretor do Teatro Oficina, em determinado
período do grupo, a função do teatro seria a de agredir os bons costumes, desentorpecer o
corpo, desnudar o espectador no palco:
49
O teatro não pode ser um instrumento de educação popular, de transformação de
mentalidades na base do bom-meninismo. A única possibilidade é exatamente pela
deseducação, provocar o espectador, provocar a sua inteligência recalcada, seu sentido
de beleza atrofiado, seu sentido de ação protegido por mil e um esquemas teóricos
abstratos e que somente levam à ineficácia. [...] O sentido da eficácia do teatro hoje é
o sentido da guerrilha teatral. Da anticultura, do rompimento com todas as grandes
linhas do pensamento humanista [...] para essa classe que nos assiste, somente a
violência e principalmente a violência da arte [...] sim, da arte, sem o cartilhismo ou o
pedagogismo barato” (CORREA, apud SILVA, 1981, p. 160).
Mesmo que não se proponha a ser diretamente popular, o atual trabalho do grupo,
rebatizado como “Teatro Oficina Uzyna Uzona”, arrasta as forças que se movem no social
para serem “antropofagizadas” na experiência estética desenvolvida por Zé Celso e seus
companheiros. A idéia que move o trabalho é a de um teatro ritual, selvagem e potente. As
transformações da realidade são, antes de revoluções, “revolições”, “lição de voltar a querer”:
Para se conseguir a revolução, era preciso a revolição. Você tinha que passar por uma nova
observação do mundo, uma morte, para poder renascer, despertar. [...] A gente encontrou
uma fórmula muito rica de potencializar as energias (CORRÊA, 2007). Por vezes
condenado pelos próprios críticas de arte, Celso diz que as formas de contato social
prevalescentes hoje têm pavor de tudo o que não esteja enquadrado pela razão. Ao ser acusada
do irracional, ele argumenta que a noção de irracionalismo tal como colocada vem
exatamente da concepção acadêmica positivista, colonizada. Em que tudo o que não está
naquele padrão de racionalidade é irracional(CORRÊA, 1997). A procura de Celso é
outra, ao buscar um uso da razão que se faça presente pelo toque, pelo corpo. O corpo e o
teatro para o ele o lugares de aumento da potência, menos que de conscientização. A
liberação do desejo lhe parece uma atitude política:
Para mim, teatro é uma atividade política na medida em que é uma atividade
ligada ao poder, poder da presença humana, poder de viver a vida. Eu nunca achei o
teatro um instrumento da política, ao contrário. O teatro que acredito é o teatro capaz
de formar deres, pessoas que tenham uma confiança muito grande no seu poder de
presença, para poder interferir na estrutura da sociedade. [...] Cada um tem que
descobrir o potencial que tem. Cada indivíduo é uma fonte de intervenção no mundo,
50
uma fonte de liberdade. Isso não é uma coisa espontânea, é algo que precisa ser
desenvolvido, já que nós todos fomos formados para ser rebanho, fomos formados
para ser impotentes. A grande função do teatro - grego, shakespereano e todas as
demais vezes que ele foi grande no mundo - foi justamente reforçar esse grande poder
que existe no ser humano. A gente não vai ao teatro em busca de conscientização, a
gente vai em busca de energização, de percepção, de consciência, de que temos um
corpo, de que sentimos. (CORRÊA, 2007)
2.3 Augusto Boal e o Teatro do Oprimido
Na outra vertente, o Teatro de Arena, sob direção de Augusto Boal, desdobrou-se em
experimentos que deram origem ao Teatro do Oprimido, metodologia hoje amplamente
difundida em diversos países. Para Boal, o ato de representar teatralmente não é mera
interpretação da realidade, é antes convocação à transformação da mesma. De acordo com o
teatrólogo, essa proposta vai além da representação, na medida em que convoca o espectador
a compor a cena, tomando o lugar do protagonista e recriando a realidade, quando ele é
convidado a assumir o papel do personagem oprimido no palco e propõe novas formas de
resolução do conflito. O teatro seria um ensaio de preparação da ação com vistas à sua
concretização no futuro, mais que uma reflexão sobre o passado. A proposta do teatro do
oprimido é popularizar os meios de produção, não apenas o produto. Segundo Boal, a
atividade artística é natural a todos os homens, sendo necessário descentrar o artista do lugar
de protagonista da experiência: o teatro é possível para todos e em qualquer lugar. O teatro do
oprimido se define como uma forma concreta de luta do povo, como possibilidade de ensaio
da revolução, e quer penetrar na estrutura própria da realidade através da ficção:
O espectador [...] modifica a ação dramática, se julgar necessário, em função da
verdade de sua existência objetiva. Ensaia soluções e debate projetos de
transformações, exercitando-se a si mesmo, através de um processo artístico que se
torna uma espécie de ensaio geral” revelador e estimulante, para ser, não simples
espectados passivo mas sim agente ativo de seu próprio destino, capaz de agir sobre a
realidade, corrigindo-a, de forma mais efetiva e crítica, aguçando assim, através da
atividade teatral, sua potencialidade enquanto elemento transformador da sociedade
(PEIXOTO, 1984, p. 10-11).
51
2.4 O teatro comunitário
É dentro do campo do teatro popular que as relações entre teatro e comunidade foram
pensadas. Assim como diversidade nas relações que se colocam entre psicologia e
comunidade, no teatro também possibilidades distintas de promover esse encontro. Por um
lado, existem companhias de teatro itinerantes, formadas por artistas vindos de lugares
diferentes, que se reúnem e apresentam suas produções nas comunidades populares, no intuito
de incentivar a discussão e a participação comunitárias. Por outro lado, existem aqueles
grupos de teatro que nascem das próprias comunidades, e cuja produção está intimamente
relacionada ao seu cotidiano. Esse tipo de teatro tem sido denominado teatro comunitário.
O teatro comunitário ainda é uma categoria pouco sistematizada, e suas denominações
variam a depender do lugar. Na África, experiências nesse campo são chamadas de “teatro
para o desenvolvimento integrado” (ARIAS E NOLASCO, 1997). Ao mesmo tempo, a
expressão teatro comunitário o possui o mesmo sentido em outras partes do mundo, como
no teatro anglo-americano
7
. No Reino Unido, entre os anos 70 e 80 esse termo era comumente
usado para se referir ao movimento de algumas companhias de teatro profissional que
desenvolveram peças para comunidades específicas com interesses em comum, através da
representação das preocupações e das experiências vividas pelas mesmas. A metodologia
desses grupos era a de uma aproximação radical com as comunidades. Nos Estados Unidos, o
teatro comunitário é uma forma popular de teatro amador no qual a maioria dos artistas não é
paga, mas constituem por vezes grupos tradicionais. No entanto, esses grupos o se voltam
especificamente para abordar temas populares ou eminentemente sociais, praticando todas as
formas de teatro e geral. Na definição do teatro comunitário, podemos perceber que uma
7
Dados disponíveis em: http://en.wikipedia.org/wiki/Community_theatre.
52
concordância ou semelhança na sua concepção entre praticantes e teóricos nos países da
América Latina.
No Brasil, o teatro comunitário se desenvolveu caminhando ao lado das ações na área
da educação, em geral, na ação pedagógica conscientizadora baseada na educação popular de
Paulo Freire. A educação popular comunitária busca a práxis como superação do
conhecimento em si em direção à participação nas decisões políticas e à transformação social
(ARIAS e NOLASCO, 1997). Sua proposta é a de tornar o conhecimento fruto de uma
experiência dialógica, com a libertação das amarras do senso comum. Neste contexto, o teatro
aproxima-se da educação e de uma perspectiva pedagógica (teatro-educação).
O teatro comunitário surge como instrumento e técnica para uma educação
comunitária. Nele, um comprometimento do grupo de artistas com as causas da
comunidade, seus interesses, e a vontade de refletir sobre a realidade da mesma. Acredita-se
que a mudança é possível pela identificação dos mecanismos opressivos e da possibilidade de
suplantá-los. Num artigo sobre teatro popular, José Nolasco e Simone Arias assim definem o
teatro comunitário:
O Teatro Comunitário e a técnica de dramatização de problemas locais
penetram no universo cultural dos grupos populares, intensificando a troca de
informações e discussões no interior das comunidades, oportunizando a expressão e
participação de seus membros. Favorecem a promoção de mobilizão tanto no
plano dos membros atuantes, quanto da platéia, que é estimulada a refletir, opinar.
Através dos estudos realizados, o Teatro Comunitário [...] é aquele da comunidade,
pela comunidade e para a comunidade, quer dizer, sua origem, evolução e destino
estão indissoluvelmente vinculados à vida e luta comunitária, pelos seus interesses e
aspirações. É a expressão dramática da população. Seus grupos atuantes, formados
por moradores locais, não se inserem na categoria do teatro itinerante, em que
grupos de atores de diversas origens se reúnem e vão trabalhar em relação direta
com os espectadores de favelas, escolas, praças, comunidaes e vilas, partindo,
mesmo que assim, da identificação de seus problemas. (ARIAS e NOLASCO,
1997)
Segundo Narciso Telles, na pedagogia teatral existe a preocupação tanto com o
processo quanto com o produto do trabalho artístico, buscando uma tentativa de conciliação
53
entre ambos. Sua proposta artística ultrapassa os limites estéticos da cena na busca de uma
sociedade mais justa” (TELLES, 2005).
Zeca Ligiéro (2003) aponta a necessidade de distinção entre o campo genérico do
teatro popular e o do teatro comunitário que, segundo o autor, encontra-se bem menos
estudado e problematizado. Um dos obstáculos é que a historiografia teatral mais ênfase à
dramaturgia que às criações nascidas da cena em si (TELLES, 2005), pela sua natureza
imediata e fugaz, cujo apreensão torna-se um ponto delicado o que entra em conflito com o
tipo de criação textual do teatro de cunho popular e comunitário, que se baseia muitas vezes
em roteiros e improvisações. Em concordância com Arias e Nolasco, Ligiéro comenta:
Entende-se por teatro comunitário o teatro praticado nos bairros carentes, o
teatro amador não-subvencionado, o teatro espontâneo que surge embrionariamente
em conjuntos habitacionais dos subúrbios, em favelas ou mesmo em igrejas de
orientação progressista, tanto em pequenos grupos como em grandes centros urbanos
(LIGIÉRO, 2003, p.20).
Ligiéro, numa obra que comenta sua experiência de teatro comunitário junto à uma
comunidade carente, dá exemplos de temáticas que deram corpo ao processo de montagem do
espetáculo:
Desenvolvemos interessantes improvisações baseados nos problemas sociais e
ambientais do Tibery escolas decadentes, falta de consciência em relação às
condições de higiene, ausência de hospital local, transporte deficiente e também
violência contra as mulheres. s decidimos criar uma forma para aquelas
improvisações acreditando que a platéia iria se identificar com elas” (LIGIÉRO, 2003,
p.21-22).
O objetivo no teatro comunitário é promover uma mobilização dupla, tanto de quem
faz quanto de quem assiste, proporcionando um aprendizado mútuo, uma partilha de
pensamentos e desejos. É comum às metodologias utilizadas nessas práticas proporcionar um
54
momento de diálogo entre grupo teatral e o público sobre a experiência, após a apresentação
da peça.
O crítico cubano Omar Valiño aponta um problema que surge da indefinição do termo
comunidade: por um lado, todo teatro é comunitário,
porque reflete uma determinada comunidade e porque a inclinação do
conjunto dos artistas que o produzem persiste em inserir-se nela (essa comunidade,
segundo esse ângulo, não possui os estritos porém necessários limites científicos,
sem o que pode, poeticamente, ir de um bairro ao universo) (VALO, 2002).
Ao mesmo tempo, o teatro não é comunitário, porque todo grupo não consegue ter
êxito numa linguagem livre de obstáculos para a comunicação com os setores desta
comunidade marginalizados como espectadores teatrais(VALIÑO, 2002). Ou seja, o autor
remete à dificuldade de totalização da comunicação, da impossibilidade de obter uma unidade
na formação de um público, de um grupo comunitário. Para cada tentativa de inclusão resta
um fora que fugirá ao controle ou à vontade dos artistas.
O verdadeiro teatro comunitário, segundo Omar Valiño, transforma a comunidade de
objeto de estudo expressado para sujeito com expressão própria, promovendo o deslocamento
do foco de produção da arte, de consumidor para produtor. Segundo o autor, “frente à
atomização, à desordem e aos caos do mundo de hoje, é na comunidade onde o homem,
reconhecendo-se parte de um espaço coletivo, dialoga e se harmoniza com o cosmos
(VALIÑO, 2002). Assim, para ele o teatro é meio não de transformação das condições
ambientais ou econômicas de um lugar, mas se torna agente de construção de novas formas de
sociabilidade, por ser espaço de encontros. Esses encontros podem reverberar em outros
vetores da comunidade para além do artístico propriamente dito. Para Valiño, o teatro
desenvolvido pela própria comunidade pode
55
localizar vetores de desenvolvimento no seio da comunidade, gerar auto-
consciência e sentimento de pertença, encontrar líderes naturais, criar,
definitivamente, um perpétuo movimento de transformação de acordo com seus
objetivos” (VALIÑO, 2002).
Uma experiência marcante em relação ao teatro na comunidade é a realizada pelos
grupos comunitários do Centro do Teatro do Oprimido no Rio de Janeiro (CTO-Rio). Estes
grupos foram criados no mandato de Augusto Boal como vereador do município, de 1993 a
1996. Após o mandato, o centro conseguiu garantir a continuidade dos grupos comunitários
que haviam sido organizados naquele período pela capacitação dos curingas-comunitários
(que coordenam as sessões de teatro, organizando a participação do público na reconstrução
das cenas e promovendo a discussão) para dar autonomia aos processos coletivos. Foram
investigados nas comunidades locais de interesse em desenvolver e manter o trabalho
iniciado com a elaboração de projetos de sustentabilidade
8
.
2.5 A comunidade como produção teatral
Ao que nos parece, mesmo envolto em propostas de transformação da realidade, o
teatro (propondo-se, ou não, comunitário), não procurou compreender a comunidade como
conceito específico, o que nos faz crer que a concepção da mesma se reduz à identificação de
qualquer lugar popular que conviva com a pobreza, com carências, com a existência de
problemas em comum a serem resolvidos, com a opressão, uma vez que esses são os poucos
aspectos recorrentes nos estudos em teatro que tratam da questão. Ao entendimento da
comunidade, faltam elementos mesmo na sua apreensão como área urbana desfavorecida
economicamente, que compreendemos apenas como sua dimensão formal, e não a única
possível, para a exploração das virtualidades que a comunidade carrega. Acreditamos que
8
Dados disponíveis em: http://www.ctorio.org.br/gruposcomunitarios.htm
56
essas características não esgotam o que venha a ser a comunidade. Como o teatro poderia se
engajar na constituição da comunidade em termo de composição de forças coletivas?
Gostaríamos de pensar diferentemente as ressonâncias que são criadas entre o teatro e
a comunidade, quando uma experiência cênica é vivenciada junto ao público. Quando se fala
de teatro comunitário ou também de psicologia comunitária, a comunidade é campo de
atuação levado em consideração, e esta é, quase sempre, compreendida como compondo a
geografia urbana de forma bem específica, sendo identificada os bairros populares, as
periferias, as favelas, o morro. O que acontece quando o teatro é levado a esses lugares?
Podemos, num primeiro momento, buscar os efeitos imediatos da experiência teatral na
comunidade como um todo, em termos da ativação política da vivência comum e de uma
mobilização com vistas à transformação. Teríamos, nesses termos, um dispositivo de
confrontação imediata. De um lado, o desenrolar das cenas, a realidade re-presentada pela
exploração de suas virtualidades, provocando, agitando os nervos, o pensamento da platéia.
Do outro lado, a comunidade reunida, os moradores da favela que saíram de suas casas no
intuito de acompanhar a novidade trazida pelo espetáculo, no que a comunidade sairia
transformada nessa experiência, o teatro deixaria no ar os gérmens de um desejo de ir além
não somente na ficção.
Não acreditamos que essa idéia não seja possível ou que a realidade não funcione
também desse modo. Certamente, algumas experiências das comunidades populares com o
teatro se dão desse modo direto, onde o espetáculo é sediado na própria favela, por exemplo,
na rua, na arena, nas associações de moradores, igrejas, ou qualquer outro espaço onde os
moradores possam se reunir
9
. O que percebemos, no entanto, é uma dificuldade conceitual e
metodológica de apreendermos “a comunidade como um todo” nessa experiência. Por certo,
9
Embora muitas vezes o que percebemos no contato com outros projetos artísticos na comunidade foi a
dificuldade de articular um encontro nesses moldes. Em alguns casos, as comunidades não possuem espaço
físico grande o bastante para comportar o espetáculo de platéia numerosa, e algumas produções teatrais da
própria comunidade mantém mais relações com os espaços de fora dela que de dentro (o que pode em parte ser
explicado pelos maiores retornos econômicos nos espaços centrais do circuito cultural da cidade).
57
não podemos reduzir a comunidade àquelas pessoas que se fizeram presentes no público. Ao
mesmo tempo, podemos dizer que “a comunidade” se fazia presente naquelas pessoas, de
alguma forma. O que acontece com “a comunidade” depois do espetáculo e de um possível
debate sobre a peça?
Percebemos, então, algo curioso: a comunidade se divide, não se totaliza. A
comunidade não é uma consciência, ela não possui um centro que diz de si nem por si. Desse
modo, para nós “a comunidade” passou a ser compreendida em termos de configuração
momentânea que só aparece como tal naquelas experiências onde algo é dado a compartilhar,
onde se pede uma reunião, uma assembléia. A comunidade escapa, ela tem que ser
constantemente construída, remontada a cada chamado.
Constatamos a dificuldade de lidar com os efeitos imediatos do teatro na comunidade
quando esta é compreendida como entidade global, uma vez que sua fugacidade não permite a
visualização imediata desses efeitos. Eles às vezes não se localizam em lugar nenhum e, ao
mesmo tempo, continuam agindo num plano invisível do comum. Às vezes, percebemos que
certos grupos reagem mais diretamente à experiência, às idéias trazidas pelos atores, pelo
autor, e as tomam de empréstimo ou de inspiração, pensam formas de derivação em outras
atividades artísticas ou não, e assim se tecem redes de práticas que se contaminam umas às
outras, e juntas compõem a comunidade sem, no entanto, constituir um todo unificado e
coerente.
Ainda pensando as formas de compreender a relação colocada entre o teatro e a
comunidade, podemos buscar entre os espectadores os resultados desse contato com a arte, na
tentativa de captar algum efeito sobre a subjetividade, as impressões imediatas. Mas a relação
do sensível com a obra não termina quando a peça se conclui, a ressonância no plano dos
afetos muitas vezes pede tempo. E por mais que reunamos, muito cuidadosamente, todas as
impressões, sentimentos, e opiniões da platéia, e registremos tudo o que for dito e feito por
58
cada um, ainda assim esse esforço não esgota os desdobramentos estéticos e políticos que
experiência poderia trazer para o dia a dia da comunidade a longo prazo.
Dessa forma, é nas idéias de Dénis Guénoun (2004) que encontramos outras formas de
compreender a relação de mútua constituição entre o teatro e a comunidade. Levar trupes e
grupos teatrais às comunidades da periferia ou, como propõe o teatro comunitário
propriamente dito, fomentar que na própria comunidade surjam grupos dessa natureza é
apenas uma das formas de perceber essa relação. Também não é necessário limitar a cena, por
assim dizer, a algumas temáticas comunitárias recorrentes, como as relações de opressão, a
submissão aos poderes (tráfico, polícia, exploração pelo trabalho etc.), as carências, a fome, a
miséria, nem mesmo aos folclores do lugar, os “causos”, aos signos que a identificam. O
teatro pode encontrar a comunidade mesmo sem tentar “representá-la” nesse sentido, sem ter
a intenção de desvelar uma realidade. Que entendimento nos leva a essas outras
possibilidades?
Dentre as demais formas de expressão artística, o teatro demanda um dispositivo
especial: um encontro que exige a presença imediata do público e dos atores num mesmo
lugar e tempo. Assim, percebemos que, sem depender do lugar físico onde a representação é
realizada (teatro para a elite, praça no centro da cidade, associação de moradores na periferia
etc.), o próprio teatro como experiência constitui uma comunidade. Antes de qualquer coisa
que venha a ser representada, o teatro requer um público reunido presentemente, e essa
convocação pública é política, constrói um plano comum para a partilha da experiência,
configura uma comunidade.
Nesse sentido, lançamos mão das idéias de Guénoun (2004). Ao discutir a natureza do
jogo cênico do ator (jogo que lembra um pouco a brincadeira das crianças, um brincar com o
sentido sempre imanente, um brincar com uma verdade colada à vida), Guénoun compreende
que a exposição teatral da existência requer uma comunidade de pessoas que olhem, mas que
59
não apenas olhem. Quando uma existência se entrega à visão comum, o jogo do teatro não
pode mais ser feito apenas pelos atores, e convoca portanto companheiros de jogo que
também entreguem e libertem suas existências, partilhando o jogo, ou, como diz Rancière,
partilhando o sensível.
Assim, do outro lado da platéia, também são necessários jogadores que
ofereçam ao jogo a benevolência de seu olhar. [...] Trata-se de partilhar o jogo. Os
jogadores, sentados no chão, pernas cruzadas, diante dos parceiros que se expõem,
oferecem o seu olhar amistoso, enquanto esperam a sua vez (GUÉNOUN, 2004,
p.148-149).
Em sintonia com as necessidades de uma estética contemporânea que convoque o
corpo do espectador e seu plano dos afetos para compor conjuntamente a experiência teatral, a
discussão de Guénoun sua idéia de abertura da cena teatral à vida comum, de empurrar o
teatro para fora de seus circuitos instituicionais em direção aos não-artistas, ávidos de desejo
de jogo vem ao encontro do nosso próprio desejo. A princípio, fazer teatro é tanto
representar quanto compor o público. Como argumenta Celso, o público vai ao teatro
quando deseja ele mesmo fazer teatro, quando deseja se fazer ativo. Quando o teatro se abre
para “as alterações da vida externa, pela intrusão efetiva dos vivos que estão do lado de fora
(GUÉNOUN, 2004, p.159), ele permite que o público tome sua parte no jogo, que a
comunidade possa participar efetivamente dele: São necessários ali outros jogadores, que
conhecem regras que ainda estão por traduzir. [...] As cenas querem ser abertas ao jogo dos
outros” (GUÉNOUN, 2004, p.159-160).
Quando a comunidade que compõe o público se levanta e caminha em direção à cena,
quando os não-atores se propõem a fazer teatro (sejam estes os habitantes das periferias
urbanas, mas também aqueles de outros espaços marginais ao teatro instituído), o desafio de
reinvenção do teatro é colocado. Pensar que esse caminhar traz consigo as forças e os desejos
que animam a comunidade nos faz encontrar, de alguma forma, palco e platéia numa mesma
60
confluência, a comunidade não apenas assistindo a cena, mas entrando em sua composição
material.
Assim, vemos que a comunidade é constituída na experiência do teatro tanto no
sentido de encontrá-la como matéria de composição de um público como no sentido de ganhar
o palco através da extensão e projeção de suas forças, pelos desdobramentos de sua potência.
Nesse sentido, as produções teatrais de uma comunidade podem ser levadas a outras
comunidades, a diversos e distintos espaços. Os elementos mobilizados em cena irão
repercutir em outros públicos, constituindo outras e novas comunidades, estabelecendo
conexões com a comunidade original onde a peça foi construída.
Para Guénoun, como podemos encontrar no público que vem ao teatro de hoje a
constituição de alguma forma de comunidade? Confrontando-se com essa compreensão
encontramos Alain Badiou (2002), que vê o público como participante ativo no acaso trazido
pela experiência no teatro:
Mas, se o público faz parte do acaso, deve ser ele próprio o mais aleatório
possível. É preciso ir contra qualquer concepção do público que o veria como uma
comunidade, uma substância pública, um conjunto consistente. O público representa a
humanidade em sua própria inconsistência, em sua variedade infinita. Quanto mais
unificado (socialmente, nacionalmente, civilmente...), menos é útil à complementação
da idéia [...] vale um público genérico, um público casual (Badiou, 2002, p.99-
100).
No entanto, se prestarmos atenção ao texto de Guénoun, veremos que o é esse
modelo unitário e idealizado de comunidade a que ele nos remete. Sobre esse ponto, o autor
comenta:
O que resta na platéia do teatro, ao menos no momento em que as
representações acontecem? Algum público. Teremos de nos policiar e não dizer o
público, fórmula na qual se condensam outros desconhecimentos que devaneiam e na
qual se esconde uma outra ideologia. Algum público: espectadores, gente. A
assembléia teatral é devolvida à sua multiplicidade. Mas esta multiplicidade não é a
multiplicidade, ornica, da assembléia, segundo a idéia, que nos persegue da ecclesia
ateniense. Algum público forma uma assembléia incerta, aleatória. [...] Nossas
61
assembléias são frouxas: nenhum esquema de identificação coletiva potente as sustém.
Elas são acometidas por uma espécie de incerteza que remete os espectadores a uma
posição flutuante, sem dúvida mais singular. [...] É antes uma aglomeração, onde cada
um vive sua posição como sendo instável, suspensa, sempre na iminência de recuo ou
deserção. Um espectador de teatro, assim que chega, está potencialmente de partida.
Ele está ali só por esta vez, para experimentar, mesmo que a experiência se repita. [...]
Isto não deve ser lamentado como um mal, conjurado com a ajuda de números
mágicos ou com a incitação a um patriotismo de araque. Esta é nossa situação, nosso
problema, nosso teatro. É preciso, em primeiro lugar, olhar para ele. Como se olha
aquilo que se ama (se é que se ama). Para agir (se é que se quer agir) (Guénoun, 2004,
p.144-146).
Neste trecho, percebemos sua lucidez no diagnóstico da realidade teatral em mutação e
na postura frente à mesma, e porque não, a noção de uma comunidade que muda não apenas
no tocante ao público de teatro, mas onde quer que se fale dela, onde quer se ela seja
convocada. Arriscamos aqui pensar se não é justamente por se colocar numa posição
flutuante, não identitária, múltipla e transitória que a comunidade resiste à cooptação pelas
forças que querem dizê-la em seu nome, codificá-la, modelá-la, tanto na arte como no
trabalho social. Voltaremos a essa questão mais à frente, a tentativa de pensá-la também com
a própria psicologia.
62
CAPÍTULO 3
A PSICOLOGIA E A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE NA COMUNIDADE
Falar de psicologia, de produção de subjetividade e de comunidade é, sem sombra de
dúvida, um desafio dentro do qual nos confrontamos com diversos pontos intricados,
principalmente se tentamos refletir as intercessões entre esses campos. Buscaremos discutir o
que a psicologia se torna quando se afirma social e comunitária para o que precisamos
compreender o solo comum e as nuances entre essas duas áreas. Ao mesmo tempo, iremos
analisar como a psicologia compreende este conceito de comunidade ao qual ela se vincula, e
quais são seus projetos para ela.
3.1 Perspectivas da psicologia social brasileira
Ao dizer que toda psicologia é social, caímos no mesmo problema de indefinição do
teatro social, e não avançamos muito em dar mais clareza ao nosso campo. No entanto, nos
entendemos mais se falamos em Psicologia Social, e sofremos por vezes as críticas dos
sociólogos que nos acusam de adentrar seus domínios. A história da psicologia é marcada
pelas tentativas de esclarecer seus limites e objetos de análise. Mas ao invés do debate
epistemológico, talvez seria melhor perguntar uma outra coisa: para que fazer psicologia?
Deparamo-nos, então, com a inegável dimensão política de nossas práticas; do leque das mais
variadas abordagens e perspectivas teórico-metodológicas, os profissionais psi têm em
comum o trabalho com a produção de subjetividade. Não apenas os profissionais, mas aqueles
que prosseguem na vida acadêmica, na prática da pesquisa ou da formação de psicólogos.
Retornemos à psicologia social e a antigas questões que nos perseguem. Dentro da
área obtemos determinadas compreensão sobre a relação entre a psicologia e o social.
63
Segundo os organizadores do livro “Psicologia Social Contemporênea” (STREY et al., 1998),
observamos avanços nas concepções que definem a área. Num momento anterior ao final dos
anos 70, esta era tida como fruto do
desenvolvimento de teorias e métodos para explicar a influência dos fatores
sociais sobre os preocessos psicológicos básicos da percepção, motivação,
pensamento, aprendizagem e memória [...] Constitui-se como objeto dessa Psicologia
Social o estudo da interação entre indivíduo e sociedade (STREY et al., 1998, p.13).
Além de considerar indivíduo e sociedade duas instâncias distintas que, no entanto,
interagem entre si, esse tipo de abordagem se afastava de um pensamento crítico e político, ao
procurar por leis invariantes e universais da cognição e as regularidades do comportamento
coletivo. No final da década de 70, essa perspectiva foi sendo considerada adaptacionista, o
que, conjuntamento com o aprofundamento dos problemas sociais (brasileiros e da América
Latina em geral), impulsionou a revisão de seus fundamentos teóricos e epistemológicos. A
formação da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) é o marco dessa
mudança em direção a uma perspectiva crítica, que “ao invés de considerar indivíduo e
contexto social influenciando-se mutuamente, propõe a construção de um espaço de
intersecção em que um implica o outro e vice-versa (STREY et al., 1998, p.13) e que se
compromete a estar a serviço da melhoria das questões sociais específicas do nosso povo.
Como esse nova concepção se diferencia da anterior no que tange ao entendimento da
relação o indivíduo e o social? Para Silvia Lane, ela continua tendo por objetivo conhecer o
indivíduo no conjunto de suas relações sociais, tanto naquilo que lhe é específico como
naquilo em que ele é manifestação grupal e social(LANE, 1984, p.19). De um jeito ou de
outro, a psicologia social teve de fazer sua escolha: ou estava mais próxima ao indivíduo, ou
mais próxima ao social, e terminou por se posicionar ao lado do indivíduo, uma vez que o
social e a sociedade se fizeram domínios da sociologia, na história da ciência. De acordo com
os novos princípios, a relação que se estabelece entre este e o social não é de simples
64
influência, mas se constrói dialeticamente: o indívíduo é produto de seu contexto histórico,
cultural e social, ao mesmo tempo em que também tem o poder de transformar sua realidade,
sendo sujeito de sua história, do mesmo modo que a subjetividade mantém relação dialética
com a objetividade. Essa é uma forma de desnaturalizar ambos e imprimir a idéia de que os
fenômenos sociais e suas implicações com o psicológico são modificadas no tempo, são
processuais, não são dados prontos.
Mesmo nessa compreensão crítica e engajada socialmente, percebemos que indivíduo
e sociedade permanecem como duas existências sólidas, e no caminho que vai de um ao outro
se interpõem outras instâncias igualmente sólidas: grupos, comunidades, instituições etc. Até
então, o pensamento preponderante na psicologia social opera na dimensão das formas
constituídas, no que o próprio indivíduo é compreendido como uma instituição mesmo que
essas formas sejam frutos de processos dialéticos –, elas permanecem como formas, e não
conseguimos pensar as forças que se agitam e se contráem na delimitação de seus contornos,
no espaço fronteiriço que existe entre essas instâncias.
É no sentido de ir além das formas e de compreender os processos microfísicos que
constituem esse entre que alguns psicólogos sociais têm encontrado na noção de produção de
subjetividade uma ferramenta fecunda, tanto teórica quanto prática. Ao pensar a realidade
através dos agenciamentos, Deleuze e Guattari propõem uma análise que leve em
consideração um plano pré-formal que atravessa os corpos e os objetos, sejam eles físicos ou
conceituais. O pré-formal é chamado de plano das forças. Quando duas coisas se agenciam
(por exemplo, sujeito e objeto, indivíduo e sociedade), o encontro que se entre eles é
sempre produzido pelo plano das forças, pelas suas franjas, pelas zonas de indeterminação
onde partículas e fluxos de energia se dissipam ou se atráem também nessa zona que o
desejo é produzido). O embate de forças nessa fronteira arrasta os contornos consolidados no
plano das formas, provocando a falência e a reconstrução das mesmas quando a dinâmica e
65
composição das forças atinge um determinado limiar de sustentação. Quando isso acontece, o
agenciamento tem que fabricar novos corpos para abrigar as novas forças que pedem
passagem, como diz Suely Rolnik (1995).
Ao compreendermos que tanto indivíduo quanto sociedade ou comunidade são
constituídos pelos mesmos tipos de força, podemos lidar melhor com as dicotomias que se
insinuam quando operamos no plano das formas constituídas
10
. Assim, o é preciso escolher
entre o indivíduo e o social, pois o agenciamento que constrói ambos os termos se num
plano de consistência comum. É preciso que a psicologia social (de onde a psicologia
comunitária se alimenta em termos teóricos) se desfaça da idéia de indivíduo (de eu, de
sujeito soberano) como centro controlador do processo subjetivo, ou como instância pela qual
objetividade e subjetividade se transformam dialeticamente. A consciência que dá corpo e voz
ao indivíduo é apenas um cruzamento de diversos vetores (sociais, econômicos, políticos,
ecológicos, culturais etc.) que o páram de se agenciar, em relações de atração e
afastamento, velocidade e lentidão que se modificam a toda hora.
3.2 A psicologia comunitária
As discussões apresentadas sobre os caminhos da psicologia social são relevantes se
temos por intuito compreender a constituição recente da psicologia comunitária como campo
específico de trabalho da psicologia, posto que os questionamentos levantados pela primeira
serviram de base também para repensar e definir a práxis desta última. Segundo Góis (2005) e
Freitas (2002), principalmente nos países da América Latina, questionamentos foram sendo
feitos no sentido de problematizar a realidade social e propor um outro tipo de atuação. As
10
Para o maior aprofundamento na discussão e superação da dicotomia indivíduo x sociedade, indicamos a tese de Liliana
da Escóssia Melo, O coletivo como plano de co-engendramento do indivíduo e da sociedade(Tese de Doutorado não-
publicada vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2004).
66
práticas que agenciam psicologia e comunidade têm uma origem em comum com o
movimento geral das ciências humanas e sociais em direção às questões sociais e à realidade
comunitária empreendido nos anos 60.
O turbulento contexto social dessa década deu impulso a muitas mudanças, pois foi
marcado por uma exploo de greves, aumento do desemprego, inflação econômica com o
aumento do custo de vida, crescimento dos cinturões de pobreza urbanos etc. A conjuntura
social efervescente de movimentos populares urbanos e rurais (como por exemplo, as ligas
camponesas) foram favoráveis à multiplicação de lutas que buscassem fomentar a criticidade
dos coletivos sociais. Neste período e em todo aquele marcado pelas ditaduras instaladas não
somente no Brasil, a atividade de cunho reivindicatório-comunitário era vista como
clandestina, o que inclusive dificultou a sistematização das práticas que alguns psicólogos
realizavam no espaço da comunidade, pela dificuldade de comunicação e pela impossibilidade
de publicação e partilha dessas experiências. Aos poucos, esses trabalhos foram ganhando
mais atenção, à medida que o quadro político dos países foi se tornando mais brando com a
abertura democrática.
De forma semelhante à qual discutimos o momento do engajamento político no teatro
popular no Brasil (CPC, MCP, Arena e Oficina etc.), os movimentos de educação popular
também tiveram grande importância no campo da psicologia, quando ela começou a buscar
para si uma postura crítica e política de atuação junto às comunidades pobres, onde a urgência
é mais grave pelo acirramento da desigualdade social e da necessidade de justiça. Como o
teatro, a psicologia também era acusada de ser elitista e espelho da burguesia. Além disso,
também havia em comum a crítica à importação de modelos extrangeiros e a necessidade de
pensar a singularidade da realidade e do povo brasileiro.
Segundo Góis (2005), os primeiros trabalhos assumidos na psicologia comunitária
estiveram ligados aos movimentos de Saúde Mental Comunitária nos EUA também na década
67
de 60, embora existissem no Brasil programas de trabalho comunitário desde a década de
40. Essas primeiras formas de intervenção seguiam, no entanto, um viés paternalista, e suas
filosofias não se diferenciavam de uma perspectiva clínica dos problemas sociais, não
compreendendo as configurações sociais de exclusão como produtoras dos mesmos.
Para Freitas (2002), as intervenções da psicologia nas comunidades deram origem às
diversas expressões que existem associando os dois termos. Mas segundo a autora, cada
expressão traz conotações próprias de acordo com o contexto onde foi forjada. Assim, por
psicologia na comunidade, Freitas define aquelas práticas iniciais dos psicólogos nos espaços
comunitários a partir de meados da década de 60 que tinham por prioridade deselitizar a
psicologia e se aproximar das condições de vida da população. Psicologia da comunidade, por
sua vez, é definida por Freitas como uma forma desenvolvida em relação a essa primeira
iniciativa, que não tinha ainda consistência teórica significativa, e passou a se referir
às práticas ligadas às questões da saúde, ao movimento de saúde, e que envolviam
atividades que se realizam através da mediação de algum órgão prestador de serviços,
que se constituía na instituição na qual o psicólogo trabalhava (FREITAS, 2002.
p.73).
A psicologia da comunidade, apesar de gerar-se no meio comunitário, está, portanto,
mais voltada para o trabalho institucional que para a globalidade das dinâmicas nesse campo.
Enfim, a expressão psicologia comunitária, surgida no final dos anos 70, é atualmente a mais
escolhida quanto à definição do trabalho da psicologia em relação ao seu comprometimento
com a realidade comunitária em geral e ao seu entendimento.
No início dos anos 90, fortalecida pelo formação da referida ABRAPSO e pela
renovação que ela sinalizava, percebe-se a proliferação de trabalhos na área social, como na
área da saúde, da infância e adolescência, junto a instituições penais etc. A psicologia
comunitária passou a encontrar cada vez mais no Estado possibilidades de parceria, para além
do trabalho conjunto com organizações não-governamentais, associações comunitárias,
68
instituições religiosas etc., que em suas iniciativas buscam a promoção do desenvolvimento
social.
A perspectiva que mais ganhou terreno na renovação dos referenciais da psicologia
comunitária brasileira foi a do materialismo histórico-dialético, e que orienta as compreensões
preponderantes sobre a relação entre indivíduo e sociedade discutidas acima. No princípio, a
teoria e a prática próprias a esse campo ainda se encontravam num estado embrionário, de
pouca diferenciação com outros saberes, como a sociologia e a educação. Contudo, ao longo
do processo de amadurecimento de sua práxis, tem-se buscado uma melhor sistematização de
seu corpo teórico-metodológico. No trabalho de Góis:
víamos nesses trabalhos interdisciplinares sérias limitações quando penetravam nas
questões da subjetividade, da parte ideal do psiquismo, do modo de vida refletido na
mente do morador como imagem ativa de suas relações sociais e comunitárias. O
processo do reflexo psíquico da comunidade não era, muitas vezes, compreendido e
nem considerado na ação comunitária, a não ser de forma distinta do contexto
histórico-social do morador; uma separação entre indivíduo e meio que pouco atendia,
por mais que falassem de contexto, história, subjetividade, consciência e participação
comunitária (2003, p.13-14).
No entanto, mesmo com o favorecimento de sua realidade profissional, em suas
implicações práticas o psicólogo comunitário tateia um terreno nebuloso. Trabalhando na
maior parte das vezes de forma interdisciplinar, o que, sem dúvida, enriquece as intervenções
na complexidade constitutiva da realidade, o psicólogo ainda desliza num terreno
escorregadio quando tenta apreender a especificidade de sua atuação. vezes em que outros
profissionais também se afirmam aptos para fazer muitas das atividades que o psicólogo
comunitário propõe. Podemos dizer que o que nos distingue entre eles é a visão diferenciada
que a psicologia confere aos fenômenos sociais, nossa atenção ao que é propriamente
psicológico.
O que seria então esse psicológico que participa dos fenômenos sociais com que o
psicólogo lida cotidianamente, para os quais tem que dar sua contribuição? Segundo Ronald
69
Arendt e Francisco Albuquerque (2003), essa dificuldade conceitual reflete um certo impasse
entre o papel da instância acadêmica, que busca imprimir clareza teórica ao problema
mediante a desaceleração dos fenômenos, e o compromisso urgente do profissional com a
transformação social, como partes que aparentemente estão em choque.
Assim, o psicólogo comunitário tem por desafio descobrir a singularidade de sua
prática. Algumas categorias de análise psicológica aparecem nas formulações dos
pesquisadores da área. Para Góis, os referenciais que guiam a atuação prática nesse campo
seriam:
atividade comunitária como atividade social significativa (consciente), própria
do modo de vida (objetivo e subjetivo) da comunidade [...] construção do sujeito da
comunidade, mediante o aprofundamento da consciência (reflexivo-afetiva) dos
moradores com relação ao seu modo de vida e ao modo de vida da comunidade”
(GÓIS, 2005, p.51)
Para Góis, a consciência e a atividade são as categorias de análise centrais. Por
atividade, ele se baseia nos estudos do psicólogo soviétivo Leontiev e compreende que a ação
humana sobre o meio, diferente da animal, meramente cerebral, implica em transformação do
mundo e transformação de si, constituindo cultura e desenvolvendo suas funções psicológicas
superiores. Por outro lado, consciência é o que organiza, regula e sentido à atividade
psíquica e à própria atividade externa que, por sua vez, fornece a substância da consciência
(Góis, 2003, p.80).
Na compreensão de Freitas encontramos alguns pontos em comum:
A psicologia (social) comunitária utiliza-se do enquadre teórico da psicologia
social, privilegiando o trabalho com grupos, colaborando para a formação da
consciência crítica e para a construção de uma identidade social e individual
orientadas por preceitos eticamente humanos (FREITAS, 2002, p.73).
70
Para Arendt, a forma assimiladora como a psicologia comunitária se construiu em
meio à interdisciplinaridade põe em risco o esfacelamento da construção de referenciais
próprios, principalmente nas primeiras experiências de consolidação da área. O autor
apresenta sua posição sobre uma maneira possível de resgatar a especificidade do olhar do
psicólogo comunitário, ao se voltar para o conhecimento de base da psicologia como campo
científico distinto:
O problema com a emergente Psicologia Comunitária, é que ocorrem duas
reduções concomitantes, em dois níveis diferentes: num primeiro nível, ocorre uma
redução do psicológico ao histórico, antropológico, político, etc. Num segundo nível,
ocorre a redução no próprio contexto da Psicologia. Se o objeto da Psicologia é o
estudo dos processos cognitivos, dos processos de aprendizagem, dos sistemas
afetivos e emocionais dos seres humanos, das relações interpessoais e grupais que eles
estabelecem, o olhar psicológico seria o olhar fundado nas teorias que sustentam a
cognição humana, a aprendizagem, a emoção, entre outros processos que configuram
o comportamento humano (ARENDT, 1997, p.5-6).
Para Arendt, essa perspectiva não entra em choque com o desejo de afirmação política
da psicologia comunitária, e ao mesmo tempo lhe permitiria uma formulação mais adequada
dos problemas psicológicos.
Assim, por exemplo, um psicólogo envolvido num projeto de
desenvolvimento comunitário, fundado em uma teoria de dinâmica de grupos e
relações interpessoais, pode buscar a tomada de consciência do grupo da sua
problemática contextual e contribuir para o processo de auto-gestão grupal
(ARENDT, 1997, p.7).
Como observamos, para alguns teóricos o que à psicologia comunitária seu caráter
propriamente psicológico varia entre a investigação e atuação profissional em relação às
funções cognitivas (consciência, atenção, percepção etc.) e emotivas (sentimentos,
afetividade, processo grupal, vínculos etc.), que estariam na base mesma do objeto de estudo
da ciência psicológica.
71
Em relação a esse aspecto, não procuraremos nos posicionar no sentido de apontar
uma compreensão do que é propriamente psicológico à psicologia comunitária que
consideramos como mais interessante e mais clara ao campo. A própria necessidade de
definição de um objeto nos é problemática, apesar de ser um dos pilares onde a prática
científica se sustenta. Não saberíamos ainda dizer se é possível, de fato, delimitar esse objeto
para a psicologia comunitária, e mesmo para a psicologia em geral. Além disso, acreditamos
que se faz necessário um trabalho de reinvenção da própria maneira como a cognição e os
processos grupais são compreendidos na história da psicologia, o que tem sido
empreendido por alguns autores (KASTRUP, 1999, BARROS, 1996).
Uma idéia que nos chamou a atenção e com a qual nos afinamos é a de que, à
psicologia de perspectiva social e comunitária, tem faltado dar relevância ao lugar
privilegiado de escuta que o campo de intervenção constitui. A escuta, o inconsciente e o
desejo são conceitos originados na clínica e que ainda se mantém muito distantes quando
procuramos formas de pensar o social. Acreditamos que as possibilidades de uma reinvenção
da psicologia comunitária estejam latentes nas idéias que emanam desses conceitos, a serem
trazidas para o plano social das forças coletivas (como pensaram, por exemplo, Deleuze e
Guattari (1995)). Concordamos com Tatiana Ramminger (2001) quando esta aponta a
importância de compreender os caminhos que o desejo percorre na comunidade através da
atenção à construção das demandas (mas também das ofertas que dão respostas às demandas,
sabendo que elas não apenas respondem a elas, mas também as fabricam, inversamente,
especialmente nas práticas assistencialistas) e como meio de evitar a submissão dos espaços
de produção da vida comunitária aos nossos próprios desejos, às propostas de participação
que cremos serem as mais eficazes.
Embora pareça “clichê”, a intervenção do psicólogo que trabalha junto à
comunidade também passa pela “escuta”. Escutar os silêncios, os entraves, as
72
possibilidades, as entradas e saídas... [...] Indo um pouco mais além, poderíamos
colocar em questão o desejo: tudo aquilo que nos falta, nos excede, nos paralisa, nos
movimenta ou mobiliza a nós e a eles. [...] ao desconsiderar o desejo, infantilizamos
a população atendida. Desqualificamos e impomos nossos valores, transformando-os
de usuários em assistidos. Nos esquecemos que com isso, despontencializamos esta
mesma população que dizemos querer libertar. Impedimos que tomem seu próprio
rumo. Talvez por não aceitar a diferença de suas escolhas, talvez para que continuem
sob nossos olhares penalizados, sob nosso controle (RAMMINGER, 2001, p.4-5).
Gostaríamos também de pensar, com Deleuze e Guattari (1995), que a construção de
um objeto se no mesmo agenciamento que produz o sujeito desse conhecimento, e as
formas que o objeto assume são garantidas na própria experiência comum a ambos. Em
tempo, não podemos esquecer que mesmo que a psicologia social e comunitária se faça num
campo eminentemente inter ou transdisciplinar, seu estatuto vai além do fato de ser mais uma
disciplina em meio às outras, posto que é nesse entre feito de multiplicidades em ebulição que
a psicologia amplia seus horizontes, o que não significa confiscar territórios de outros campos
para si, mas pensar partindo de uma lógica conectiva, mais que exclusiva. A psicologia se
faz e se cria quando ela arrisca ser outra coisa que ela ainda não é. É nesse sentido
construtivista, como compreendido por Deleuze e Guattari, que nos arriscamos a pensar os
efeitos que podem ser extraídos dos encontros entre a psicologia e o teatro.
Por outro lado, consideramos mais produtivo pensar as implicações políticas que o
psicólogo estabelece em suas intervenções. Quais os pressupostos ou os princípios que
orientam o psicólogo na proposição de suas atividades? Como a psicologia comunitária tem
buscado construir seus agenciamentos com a comunidade? A noção de desenvolvimento
comunitário é uma constante nos trabalhos que circulam na área, mas é preciso, como diz
Arendt, evitar que nossas propostas se reduzam ao político entendido como reivindicação
social.
A idéia de atuar na promoção do desenvolvimento da comunidade é interessante à
psicologia comunitária. No entanto, o psicólogo o age com esse intuito da mesma maneira
que, por exemplo, o técnico em saneamento básico, pois o objetivo do psicólogo não é o de
73
“resolver problemas”; ele não é um tarefista, assim como a comunidade não é algo que está ali
para ser “diagnosticada” por um expert. As transformações perseguidas são aquelas suscitadas
através do trabalho com os moradores que a habitam, que ao construírem problematizações
com os elementos que a realidade da comunidade provê, podem gerar transformações tanto no
sentido de obter ganhos físicos (melhoria da infra-estrutura urbana, dos serviços de saúde, da
qualidade das escolas etc.) quanto no sentido de invenção de novas formas de sociabilidade na
comunidade, de novas formas de relação com a alteridade.
Nas produções recentes em psicologia comunitária, o conceito de autonomia tem sido
um dos suportes fortes dessa prática, o que nos faz pensar nas relações de poder que se
produzem quando os profissionais da subjetividade vão ao encontro da comunidade. Cada vez
mais, fala-se da importância de um trabalho centrado na comunidade que a considere como
responsável pelo seu destino, livre na escolha de seus caminhos e modos de vida.
Nas palavras de Maritza Montero, psicóloga venezuelana bastante conhecida na
psicologia comunitária latino-americana,
O objetivo da psicologia social comunitária é catalisar a organização e as ações
necessárias para que a comunidade use seus recursos, reconheça e empregue o poder
que tem, ou bem busque outros recursos e desenvolva novas capacidades, gerando
assim o processo a partir de si mesma (2003, p.35).
3.3 A comunidade na psicologia comunitária
Ao contrário do que percebemos nas teorias e práticas de agenciamento entre o teatro
e a comunidade, na psicologia comunitária o conceito de comunidade é alvo de investigação,
ainda que bastante tardiamente. Segundo Bader Sawaia (1996), o conceito é ausente na
história da psicologia até os anos 70, quando as primeiras iniciativas da área comunitária se
fizeram. Até então, a comunidade era entendida apenas como uma das formas intermediárias
entre o indivíduo e a sociedade.
74
De acordo com Sawaia (1996), o termo comunidade voltou à tona na
contemporaneidade, longe de ser um consenso entre aqueles que nela atuam, o que denota as
divergências quanto às formas de aproximação com o espaço comunitário. Vejamos aqui um
pouco das transformações que acompanharam a definição do termo. Primeiramente, situamos
os discursos sobre a comunidade na conjuntura da Revolução Francesa. O conceito de
comunidade foi hostilizado pelos intelectuais iluministas por se aproximar das estruturas do
feudalismo. No lugar da sociedade fundada na terra, nos vínculos sanguíneos e na tradição
que eram as marcas da comunialidade, defendia-se a idéia de uma sociedade fundada no
contrato entre homens livres, que se associam através de alianças pontuais e reguladas pela
racionalidade econômica. Sucedeu-se, no entanto, uma reação do pensamento conservador da
época no intuito de positivar e resgatar o ideário de comunidade como modelo do paraíso e da
boa vida e harmoniosa, preservada dos avanços terríveis da modernização. Segundo Sawaia,
em ambos os casos a idéia de comunidade aponta para uma utopia do passado, despertando
sentimentos de nostalgia ou de algo ultrapassado e nocivo.
Essas concepções continuam alimentando o pensamento sobre o social no século XIX,
e voltam ao centro de discussão entre os intelectuais sob outras roupagens, agora no contexto
formação da sociologia como ciência. Ferdinand Tönnies é um dos pensadores da comunidade
cujas formulações desdobram-se ainda hoje nos estudos da área. De acordo com Sawaia, foi
no século XX que a comunidade elevou-se à categoria analítica central do pensamento
social, e se estabeleceu a antítese de comunidade e sociedade (SAWAIA, 1996, p.39).
Tönnies diferenciou duas formas de organização social distintas e contrárias em seus valores e
princípios. A Gemeinschaft se baseia pelo paretesco ou pela vizinhança, pelo trabalho e pela
crença comuns e na capacidade de vinculação e identificação solidária entre seus membros,
enquanto a Gesellschaft é regulada pela lei do mercado e pela divisão entre os homens.
75
Gemeinschaft e Gesellschaft designam, respectivamente, as diferenças estruturais entre
comunidade e sociedade, ainda que Tönnies admita que a primeira venha a compor a última.
No século XX, as formulações teóricas sobre a categoria de comunidade prepararam a
penetração da administração direta do Estado nos espaços populares no período do pós-
guerra, colaborando na concretização das propostas liberais-populistas de modernização e
progresso que foram observadas no Brasil da década de 50. Ainda de acordo com Sawaia, na
época, essa era a concepção de comunidade que norteava as experiências práticas da
psicologia comunitária, então comprometidas por uma proposta muito próxima da assistência
social:
Comunidade era entendida como unidade consensual, sujeito único e
homogêneo, lugar de gerenciamento de conflito e de mudanças de atitude. Sua prática
visava a união de esforços entre povo e autoridade governamental para melhorar as
condições de vida de comunidades e, através delas, integrar a sociedade nacional,
construindo a prosperidade do país. E sua delimitação era espacial/geográfica
(SAWAIA, 1996, p.45).
Com as transformações em direção à emergência da psicologia social crítica na década
de 80, o morador da comunidade passou a ser considerado em sua dimensão política e de
agente ativo e modificador das estruturas sociais. No entanto, para Sawaia, em meio a essa
mudança conceptual, a psicologia ainda se encontra às buscas de superar uma visão de
comunidade como una e homogênea, em proveito de uma concepção que concilie as
aspirações individuais e coletivas.
Percebemos que, quando se fala em comunidade, mesmo que não se chegue ao
consenso, a noção de identidade é o eixo de sustentação que atravessa suas definições pela
psicologia, a base de compreensão da mesma. A identidade é o parâmetro para avaliar o nível
de consistência comunitária em relação a determinadas variáveis/características: convívio
próximo delimitado num mesmo espaço geogfico, história, cultura, características sociais e
psicológicas etc. Para Góis (2005), o espaço físico-social é um dos pressupostos
76
fundamentais, englobando aí tanto a questão da proximidade sica quanto a inclusão numa
mesma realidade social. Para o autor, ricos e pobres que dividem o mesmo espaço, como
observamos frequentemente nas metrópoles, não constituem uma mesma comunidade, pois
não possuem uma convivência social próxima.
A comunidade coloca-se para a psicologia comunitária como instância de construção
coletiva e consciente da realidade, no qual os indivíduos m espaço assegurado de
participação e expressão de suas posições. Nesse espaço de intimidade, a pessoa é
reconhecida e confirmada em sua identidade e como pertinente à comunidade, que garante a
proteção da individualidade frente à natureza e à sociedade” (GÓIS, 2005, p.61). Ela
corresponde a um agrupamento humano que expressa um sentimento claro de unidade e e
constitui um todo à parte(RIOS apud IS, 2005, p.63). Outro elementos agregadores da
comunidade são o conjunto das instalações, serviços e recursos materiais de que ela dispõe,
enfim, seus espaços institucionais (SÁNCHEZ VIDAL, 1991).
Observamos que as tentativas de definição do conceito de comunidade para a
psicologia, mesmo que variadas e imprecisas, são construídas a partir de uma compreensão
sociológica original, que relacionou comunidade e sociedade como categorias esquadrinhadas
por uma regulação social e disciplinar
11
, compartimentada. Neste modelo de entendimento da
organização social, as relações entre os indivíduos são mediadas por um dispositivo
transcendente que é espacializado no entorno da vizinhança o que esfacela as possibilidades
de constituição do comum, como entendido por Antonio Negri (2005). Os dispositivos que
11
Compreendemos o conceito de sociedade disciplinar com Foucault (1987). Segundo o autor, com a passagem
do modo de produção feudal ao capitalismo, o corpo passou a adquirir valor de mercado através do refinamento
da exploração de sua força de trabalho. Tornava-se, então, necessário desenvolver estratégias de controle sobre
esse corpo através de um domínio minucioso, que ao mesmo tempo que o tornasse dócil e obediente, o
potencializasse ao extremo, com um resultado máximo em termos econômicos de utilidade. O poder soberano,
exercitado basicamente através da repressão das coletividades, deu passagem a um poder capilarizado, centrado
na exploração dos detalhes, que, mais que reprimir, constituía identidades e sujeitos. A lógica do
enclausuramento é própria a esse poder disciplinar, marcado pelo surgimento de disciplinas que buscarão
mapear cada vez mais o indivíduo em meio à massa, catalogá-lo, normatizá-lo. A vigilância hierárquica, a
sanção normalizadora e o exame, instrumento que une mecanismos inerentes a ambos, são estratégias sutis que
permitiam aos indivíduos a introjeção de um ordenamento e de uma norma espaço-temporal.
77
fundaram a comunidade nasceram do programa disciplinar do biopoder
12
e que agora na
contemporaneidade (para o usarmos os conceitos polêmicos de pós-modernidade ou hiper-
modernidade) têm adquirido outras variações em relação ao controle. Mesmo quando se
enxerga a comunidade como espaço de comunhão e sentimentos puros, tal como propôs
Tönnies, de acordo com os poderes administrativos o espaço produtivo da comunidade não
deixou de ser cooptado como instância intermediária da sociedade. São níveis de mapeamento
em linhas concêntricas, onde num extremo tem-se o indivíduo, cuja individualidade está
protegida na comunidade, e no outro encontra-se a máquina estatal da administração pública:
Na obra de Hegel (Filosofia do direito) [...] o Estado é uma “Communitas
communitatum” e não a agregação de indivíduos pelo contrato como propunha o
Iluminismo. Sua visão de sociedade é concêntrica, formada por círculos interligados
de associações como a família, comunidade local, classe social e igreja, cada qual
autônoma nos limites de sua abrangência funcional, cada uma delas considerada fonte
de afirmação do indivíduo e, todos eles em conjunto, reconhecidos como elemento
formativo do verdadeiro Estado (NISBET apud SAWAIA, 1996, p.39).
De acordo com essa perspectiva, o próprio espaço aberto e territorial da comunidade
foi assumido funcionalmente como uma instituição social, ainda que não tenha funcionado
sob a lógica do enclausuramento que caracterizou a sociedade disciplinar. Esta análise impede
qualquer tipo de entendimento naturalizante da comunidade, como algo que se configura
espontaneamente em decorrência da convivência íntima sob um mesmo espaço. Nesse
sentido, é interessante pensar as formas pelas quais a comunidade está sendo reinvestida na
sociedade de controle, onde a delimitação física dos espaços de produção do social é
12
As formulações de Foucault sobre biopoder (1999, 1993) decorrem da observação do deslocamento sofrido
pelo poder, que, a partir do século XIX, ao invés de incidir diretamente sobre o corpo, passa a investir o próprio
homem como alvo de suas inflexões; não como individualidade, mas como espécie. O funcionamento desse
biopoder passou a se centrar nos processos vitais da população, com fins de mapear e reger a natalidade, a
mortalidade, a longevidade. É a partir de então que os procedimentos estatísticos e a demografia têm papel
fundamental como reguladores das curvas de normalidade. A questão sanitarista será alvo de uma atenção
especial; a descrição e a delimitação de doenças que não chegam a ser epidêmicas, mas que chegam a ser
encaradas como fatores permanentes que incidem em baixas de energias dos trabalhadores, em perdas de tempo
na produção, em tratamentos – tudo o que possa ter alguma interferência nas expectativas econômicas. Os efeitos
do meio também serão alvo de interesse em sua relação com a espécie humana, não mais entendido como meio
natural, mas como produto da mesma.
78
implodida. Isso explica porque as políticas que se voltam para o desenvolvimento ou
transformação da comunidade empreendem agora uma relação diferente no que diz respeito às
formas de aproximação com a mesma. As comunidades populares obtiveram meios de inserir-
se em outros circuitos produtivos da cidade que não são essencialmente espacializados, como
as redes que se formam através das novas tecnologias da comunicação e que permitem a
partilha de conhecimento e de projetos criativos.
No entanto, mesmo que o conceito de comunidade que aqui descrevemos como
sociológico-disciplinar esteja ficando para trás, o território urbano concreto que ele buscou
cobrir permanece em definitivo. A questão urbana hoje passa necessariamente pela urgência
de pensar a realidade das favelas, morros, periferias, comunidades populares, enfim, são
várias as formas de referir-se hoje a esse território forjado na margem do regime de produção
capitalista. Esses lugares crescem e ganham cada vez mais visibilidade, suscitando ora o medo
nas classes sociais média e alta, com as quais divide o uso dos espaços urbanos, ora a
curiosidade nessas mesmas classes, em relação à criação de novos estilos de vida gerados nas
comunidades, e que hoje se vinculam sobretudo à arte e à cultura.
Assim, acreditamos que, longe de estar esgotada pelo caráter institucional com o qual
a comunidade foi investida pelo poder disciplinar (posto que a crise das instituições como a
escola, o hospital psiquiátrico etc. são marcas da sociedade de controle), a comunidade
popular é hoje um território, no sentido empregado por Deleuze e Guattari (1995), em
constante ebulição de forças micropolíticas, onde encontramos um ambiente propício para
que política e arte revelem-se em sua condição de potências da vida humana potências de
resistência e de invenção, respectivamente” (ROLNIK, 2003).
De acordo com tal perspectiva, o próprio conceito de individualidade que a psicologia
comunitária entende (que pra ela se diferencia do individualismo) seria uma produção
disciplinar de mapeamento e normalização. Será necessário lançar o de uma gramática
79
diferente se a psicologia comunitária quer repensar a comunidade, deixando de enxergá-la
como unitária e totalizada e abrindo o campo para a produção das diferenças. Para isso, há de
se compreender a distinção entre individualidade e singularidade, bem como abdicar do
pensamento identitário. Sobre as diferenças entre individualidade e singularidade, Guattari
(1986) faz uma separação entre os processos de individualização, que modulam indivíduos
pela fabricação de blocos serializados de valores, hábitos, crenças e desejos, dos quais os
sujeitos seriam consumidores em busca de signos identitários, e processos de singularização,
nos quais os indivíduos ou grupos podem inventar modos próprios de relacionar-se com a
vida e consigo mesmo.
Dizer, como Góis (2005), que a comunidade não é homogênea porque carrega
contradições e conflitos não avança na questão, se a compreensão dessas contradições e
conflitos estão todas codificadas e pertencem à mesma lógica binária da luta pela tomada
do poder. Esse tipo de antagonismo não é suficiente o bastante para que as concepções de
comunidade em psicologia compreendam o funcionamento político das diferenças. Certos
tipos de conflito na ordem dos interesses comunitários não ativam a produção de diferentes
circuitos de efetivação e elevação da potência da comunidade, mas apenas confirmam e
preservam as formas engessadas que se chocam entre si, encarnadas nas figuras do opressor e
do oprimido.
A partir do estudo que Rosalina Silva e Cristiane Simon (2005) empreenderam sobre a
diversidade de sentidos de comunidades presentes das concepções e produções bibliográficas
da psicologia comunitária, confirma-se que a noção tradicional de comunidade ainda é
comum a esses trabalhos, permanecendo circunscrita em termos de homogeneidade e
unicidade:
O problema central é que muitos trabalhos têm por pressuposto a comunidade
como uma entidade natural igual às comunidades da época do feudalismo,
80
denominadas de “naturais”. Desta forma, alguns pensam que os vínculos, os
sentimentos de pertença, de compartilhamento de interesses e necessidades, de
solidariedade, cooperação, estão presentes no cotidiano das pessoas e que se
revelarão a partir do momento em que colocamos as pessoas juntas sob o critério de
semelhança por nós definidos (SILVA e SIMON, 2005, p.44).
A dinâmica da atividade comunitária por si mesma, compreendendo aqui a dimensão
de interação e proximidade física entre os moradores, não garante a unidade e a consistência
que a psicologia comunitária insiste em procurar e fortalecer. Como comenta Arendt (1998) a
respeito da emergência de “não-lugares”, que de acordo com Marc Augé, seriam lugares que
não se definem como identitários, relacionais ou históricos, poderíamos ver que: para os
psicólogos e as populações marginalizadas por eles estudadas a noção de comunidade é uma
invenção teórica, um princípio de sentido e inteligibilidade, mas também uma ilusão.” (1998,
p.4).
3.4 Repensando a comunidade: a constituição do comum
Em resumo, conseguimos extrair e sintetizar através deste percurso algumas formas de
abordar o conceito de comunidade que se assentam em dimensões diferentes.
Como ponto de partida, temos uma noção de comunidade oriunda da sociologia,
definida sobretudo pela circunscrição geográfica e por um modo de associação natural e
íntimo entre seus habitantes. A concepção de comunidade que prevalesce na psicologia
comunitária deriva dessa primeira noção, que engloba aspectos como signos linguísticos,
crenças, valores e objetivos em comum, e a identificação dos seus integrantes entre si e em
relação ao todo unitário que ela compõe é o que garante sua sustentação. Na prática do
psicólogo comunitário, as comunidades nas quais ele se insere são, muitas vezes, aquelas
81
áreas urbanas periféricas, que historicamente se constituíram à margem dos circuitos
econômicos e das possibilidades de efetivação dos direitos sociais
13
.
Por outro lado, existem alguns autores que, ao repensarem o conceito de comunidade
tal como formulado acima, propõem novas formas de definir as articulações comunitárias,
prescindindo da sua delimitação em um mesmo espaço geográfico, como nos apresentam
Silva e Simon (2005):
Segundo Petersen e Lupton (2003), as estratégias de trabalhos centradas na
idéia de comunidade baseadas na localidade, imem uma identidade de comunidade
que nega outras possibilidades de construções identirias que transcendam os espaços
físicos, principalmente, se pensarmos no avanço tecnológico e as novas formas de
comunicação, descritas anteriormente, como a internet”. Por exemplo, as formas
identitárias por gênero, classe social, etnia, raça, entre outras. As pessoas não
precisam estar no mesmo local para formarem uma comunidade. Os autores salientam
que a idéia de comunidade é util para aqueles que necessitam dar visibilidade para sua
identidade. São grupos, geralmente, que estão em desvantagens ou são marginalizados
(SILVA e SIMON, 2005, p.45).
Apesar de proporem novas formas de comunidade, os autores que seguem essa linha
de pensamento mantêm em comum com a concepção anterior o papel central da identidade
como eixo congregador de comunidades. O espaço comunitário seria, portanto, uma forma de
conjunção e sobreposição de identidades entre iguais, funcionando sob o princípio das
segmentaridades binárias descritas por Deleuze (1999). Elas podem dizer respeito a
indivíduos: ser homem ou mulher, criança ou adulto, saudável ou doente, branco ou preto. Às
vezes, as binarizações proliferam as dualidades, mas a aparição de uma terceira condição não
desmancha a dicotomia: se não se é nem branco nem preto, certamente se é pardo, ou
amarelo, opções mutuamente excludentes. As oposições também podem dizer respeito a
coletividades: existem os proletariados e os burgueses, ou ainda a sociedade civil e o Estado
etc.
13
Também compreendemos que existem iniciativas de psicologia comunitária em comunidades rurais, que, no
entanto, demandam formas de atuação específicas em virtude das diferenças em relação aos modos de
funcionamento das comunidades urbanas (mais próximas às nossas experiências práticas), sobretudo em termos
de trânsito com outras comunidades e vivência da temporalidade.
82
No entanto, o princípio da identidade como articulador da comunidade tem sido
diminuído em virtude de outras maneiras de pensar a constituição do comum, que levam em
consideração não aqueles elementos de representação de um coletivo, mas como zona de
ressonância tecida por um mesmo plano de imanência:
Aquilo que supostamente se perdeu da “comunidade”, aquela comunhão,
unidade, co-pertinência, é essa perda que é precisamente constitutiva da comunidade.
Em outros termos, e da maneira mais paradoxal, a comunidade só é pensável enquanto
negação da fusão, da homogeneidade, da identidade consigo mesma. A comunidade
tem por condição precisamente a heterogeneidade, a pluralidade, a distância. [...] a
comunidade, na contramão do sonho fusional, é feita da interrupção, fragmentação,
suspense, é feita dos seres singulares e seus encontros. Daí porque a própria idéia de
laço social que se insinua na reflexão sobre a comunidade é artificiosa, pois elide
precisamente esse entre. Comunidade como o compartilhamento de uma separação
dada pela singularidade (PELBART, 2003, p. 33).
A constituição do comum é um termo que se tem utilizado como forma de pensar o
desejo e o processo de formação de comunidades, de redes associativas de produção comum:
A propriedade comum não passa simplesmente pelo Estado, passa pelo exercício que as
singularidades fazem desse espaço comum, pela maneira de exercer esse espaço comum
(NEGRI, 2005). A singularidade expressa na idéia de comum de Negri se tece na formação de
um espaço cooperativo onde as singularidades possam se encontrar e assumirem juntas a
confecção de um território, mas esse processo não se dá pela conjunção de individualidades
ou pelo reconhecimento do outro como idêntico a si. O reconhecimento do outro que Negri
descreve se inscreve no plano de pluralidade pré-formal, no plano das forças moventes que
atravessam ambos ao mesmo tempo, apesar de originarem individuações diferentes.
Na ética do capitalismo ocorre uma espécie de valorização da diversidade, mas cuja
qualidade é a de uma diferença-identitária, que se vale apenas da redundâncias das formas
consolidadas. O que a subjetivação capitalística não controla é a produção de diferenças que
se processam pelas afetações vindas do encontro com a alteridade (tanto com pessoas, mas
também coisas, lugares, agregados sensíveis), e que nos desterritorializam de nós mesmos,
83
nos atualizando em nosso devir. No entanto, essas experiências de aproximação e contato com
a diferença e o distante o sentidas como ameaças de uma desintegração do eu e vividas
como mal estar (Rolnik, 2000), o que se torna para a psicologia uma questão presente tanto na
clínica quanto nas práticas comunitárias.
Negri e Hardt (2003) apontam o surgimento de um novo tipo de exploração do capital.
Para além do apoderamento dos corpos em termos de exploração de sua força material, o
novo alvo do capitalismo é a vida no que ela tem de mais inventiva. O trabalhador é exigido
em termos de sua capacidade criativa, dinâmica, autônoma, de gestar e operar informações,
seu poder de engajamento em redes comunicativas. Deste modo, não apenas suas funções
intelectivas estão em jogo, mas sua própria dimensão sensível, seus afetos, suas potências de
liberdade e de expansividade da vida.
Para além da organização da sociedade civil em instituições demarcadas, Negri nos
traz a noção de multidão como novo coletivo social, dotada de um poder constituinte que não
está submisso ao domínio do instituído. Multidão é um termo comumente designado de forma
pejorativa e negativa, historicamente compreendido pelas ciências políticas como massa
irracional e pré-social a ser dominada e adestrada, a fim de tornar-se sociedade. Hoje, com a
reconfiguração das classes sociais, cujos contornos específicos encontram-se indefinidos em
função das novas dinâmicas do trabalho, e com a emergência de um proletariado imaterial, a
questão da multidão reaparece. No entanto, ela traz características diferentes:
Existe hoje uma multidão de cidadãos, mas falar de cidadãos não é suficiente,
por que é apenas qualificar em termos teóricos e jurídicos indivíduos que são
formalmente livres. Seria antes preciso dizer que existe hoje uma multidão de
trabalhadores intelectuais. Mas isso pouco importa. Na verdade, é preciso dizer que
existe uma multidão de instrumentos produtivos que foram interiorizados, encarnados
nos sujeitos que constituem a sociedade. Mas isso ainda é insuficiente: é preciso
acrescentar à realidade afetiva, reprodutiva, os desejos de gozo. E hoje multidão é isso
uma multidão que subtrai ao poder toda transcendência possível e que não pode ser
dominada senão de forma parasitária, portanto, feroz (Negri, 2001, p.31).
84
A potência da multidão reside em seu poder constituinte, que por sua vez é um
exercício de resistência na invenção de formas democráticas de participação política. A
multidão opõe-se à massa pelo fato de que não vem a constituir-se como unidade nem é
homogênea,
é plural, centrífuga, ela foge da unidade política, ela não assina pactos com o
soberano, ela não delega a ele direitos, ela é resistente à obediência. O povo, ao
contrário, converge numa vontade geral, se reflete no soberano ou no Estado”
(Pelbart, 2003, p.115).
O poder constituinte da multidão pode firmar acordos e regras, mas que são
contingenciadas temporalmente a partir de questionamentos e reavaliações, e redefine a
concepção de poder político, não mais reduzido ao seu caráter representativo. A expansão de
seu poder se expressa através de atividades empreendedoras que atravessam o território social,
político, econômico, por atividades que reorganizam as situações de produção da vida e do
social, sem, no entanto tomarem por princípio único as demandas econômicas.
A potência da multidão reside justamente na riqueza de sua heterogeneidade, suas
singularidades, que circunstancialmente se agenciam através de esquemas de cooperação,
redes autônomas que se cruzam. São dessas formas associativas e solidárias que advém o
poder constituinte da multidão, sua capacidade de resistir. A resistência é colocada tanto no
sentido de se opor a uma racionalidade perversa como no sentido de inventar uma outra, um
empreendimento biopolítico o no sentido de um poder sobre a vida, mas de um poder da
vida: “Biopoder como um regime geral de dominação da vida, biopolítica como uma forma de
dominação da vida que pode também significar, no seu avesso, uma resistência ativa, e
biopotência como a potência de vida da multidão, para além das figuras históricas que até há
pouco tentaram representá-la.” (Pelbart, 2003, p.86).
É justamente essa biopotência da multidão, produtora de subjetividades abertas à
alteridade, estéticas, amorosas e apaixonadas, que busca parcerias mais que embates de
85
oposição, que não se verga frente aos discursos fatalistas de que “não há nada a fazer”, não
negando, entretanto, os constantes riscos de reterritorialização das experiências pela máquina
capitalística (ou por microfascismos de grupos). A multidão é a realidade onde Negri acredita
ser possível constituir o comum como atos de solidariedade que não são identitários (2005).
3.5 Arte e comunidades populares: produção de subjetividade nos projetos sociais
Gostaríamos, então, de discutir algumas das tentativas de constituição do comum nas
propostas que trazem as artes para as políticas de produção do social. Essas políticas, por sua
vez, não são consensuais no tocante às formas de inclusão e de produção artística feitas no
social e pelo social. O próprio social ainda é algo a ser melhor compreendido por essas
iniciativas na procura de se alcançar os efeitos estéticos e políticos desejados. Para
delimitarmos mais a discussão, iremos nos centrar naquelas políticas e projetos sociais que
estão voltados para o problema da formação da juventude através da arte. Discutiremos
algumas formas de articulação entre arte e psicologia, ou antes, entre arte e produção de
subjetividade, que adquirem contornos políticos e estéticos diferentes de acordo com os
pressupostos defendidos por quem aceita esse desafio.
Discutiremos brevemente as políticas e projetos sociais que estão voltados para a
formação da juventude através das artes e que, na contemporaneidade, tem se multiplicado na
rede de ões que atravessam as comunidades de periferia. Para tanto, é necessário
entendermos que a juventude tem sido alvo de significações distintas. Por um lado, o jovem
das comunidades populares é visto como marginal em potencial e despreparado para a
inserção no sistema produtivo pelo seu déficit educativo e familiar. Por outro, a noção de
protagonismo juvenil credita ao jovem a possibilidade de viabilização de projetos de vida pela
via da educação para a cidadania. Nesse entendimento, o jovem deixa de ser considerado
86
apenas por aquilo que ainda não é ou pelo que lhe falta e pode assumir um papel ativo,
produzindo um discurso próprio sobre si e seu mundo.
Neste sentido, nos voltemos agora para as iniciativas desenvolvidas nos mais diversos
tipos de projetos sociais e iniciativas pedagógico-educativas não-formais. Para a juventude, é
constituído um eixo de ações que se sustenta em sua maior parte na relação com a escola, com
a formação profissional e com a geração de oportunidades de trabalho e renda. Todas essas
políticas têm uma preocupação central em comum: a ocupação do tempo livre desses jovens.
Sobre esse aspecto, é bastante interessante o comentário de Jailson Silva, que afirma
que, mesmo em organizações que se afirmam como progressistas, a forte preocupação com o
combate ao ócio tem por intuito evitar que o jovem se torne infrator, o que fortalece uma
concepção naturalista de criminoso em potencial:
O uso dos projetos sociais como forma de prevenir a violência, e o em
função da condição cidadã dos adolescentes e jovens dos espaços populares, não
auxilia na consciência política dos membros dessas categorias sociais e na superação
do peso da discriminação que sobre eles pesam (SILVA, 2006).
Dentre as estratégias de ocupação do tempo juvenil, a multiplicação das propostas
de trabalho envolvendo recursos artísticos, a partir de perspectivas bastante variadas, e é nesse
sentido que essa discussão se insere nos objetivos dessa dissertação. No discurso geral desses
projetos, defende-se a idéia de inclusão social através da arte-educação, da importância da arte
na formação dos sujeitos ao contribuir para a construção de valores e a consolidação da
cidadania. É em relação à escolha política pela utilização da arte que nos aprofundaremos
agora.
De que arte se fala quando se defende sua relevância junto à juventude? O que se
produz, quando se trabalha com arte? Quais são, nos interstícios dessas práticas cotidianas, os
resultados buscados? De que forma a arte se libera de seu confinamento restrito ao processo
de criação do artista e passa a compor parte das estratégias de formação dos jovens? Esses
87
questionamentos nos forçam a responder pelas implicações políticas, éticas e estéticas dessas
práticas. É certo que o campo dessas propostas é demasiado amplo e diversificado; são
inúmeras as compreensões e objetivos diferenciados acerca das experimentações com a arte
entre os educadores sociais.
Podemos diferenciar, por exemplo, aqueles projetos nos quais intenção direta de
formar futuros artistas, funcionando como verdadeiras escolas, com graus distintos de
profissionalização nestes casos, as ações se desdobram também em geração de emprego e
renda para os jovens. Mas existem aqueles outros projetos que não têm esse fim específico,
pois não estão atuando tanto no intuito de formar artistas, mas apostam no caráter formador da
arte para o desenvolvimento dos jovens e para o fortalecimento de sua auto-estima.
No entanto, falar disso é pouco, pois a relação entre arte e desenvolvimento não é
espontânea ou evidente. De quais modos é compreendida a importância da arte na formação
desses sujeitos? A seguir, identificamos quatro formas recorrentes de apropriação da
experiência artística por essas propostas em suas práticas, formas que, por vezes, são
empregadas conjuntamente.
A primeira forma foi previamente comentada e diz respeito à utilização do trabalho
artístico com o objetivo de desviar crianças e jovens da ociosidade, servindo, portanto, como
prevenção à infração e à marginalização. Do ponto de vista estratégico, a arte se equipara
assim a outras atividades, tais como os esportes, as experiências profissionais, a participação
em grupos religiosos etc. O enfoque na noção de prevenção concede ao trabalho artístico um
status indiferenciado e uma propriedade mais negativa que positiva, uma vez que a arte é
tomada mais como barreira ao risco que como possibilitadora de formas alternativas e
singulares de vida e de produção de si. Felizmente, esse tipo de visão com enfoque na
prevenção, que era muito frequente no discurso das organizações sociais alguns anos,
parece estar diminuindo entre os profissionais da área.
88
Uma segunda forma de compreensão da utilização da arte é a de que a oferta de
atividades culturais à comunidade de baixa renda é uma maneira de levar cultura àqueles que
não a possuem, pois não tiveram oportunidades sócio-econômicas de acesso à educação.
Novamente as palavras de Jailson Silva vêm ao encontro do nosso argumento:
a valorização das ausências é eixo dos olhares dirigidos àquelas áreas urbanas: a favela
e a periferia são definidas, de forma quase homogênea, por uma pretensa carência, seja
de serviços públicos e equipamentos urbanos, de leis, de beleza e, no limite, de noções
básicas de moral e de ética. Seriam o espaço da violência e do caos, por definição
(SILVA, 2006).
A partir desse raciocínio, a comunidade é reconhecida como lugar produtor de uma
sub-cultura, deturpada e inferior. Assim, a arte erudita aparece como possibilidade de
formação cultural de valor e se torna modelo de produção e apreciação. No entanto, é curioso
notar que, apesar da adoção de recursos e técnicas convencionalmente aceitos como dotados
de bom gosto e de qualidade estética, o estigma do subdesenvolvimento cultural por vezes
ainda ocupa lugar de destaque nos trabalhos elaborados junto a crianças e adolescentes. Na
contemplação das obras de arte oriundas desse trabalho, muitas vezes a fruição estética é
tomada por uma comoção pela pobreza, e o público não se permite afetar pelo que poderia vir
a ser contato e abertura para a multiplicidade de formas e sensibilidades que a arte propicia.
Enfim, uma terceira forma de apropriação da arte diz respeito a um determinado uso
utilitário da mesma, quando passa a servir como mecanismo de transmissão de conteúdos
pedagógicos e/ou moralizadores. Os efeitos perseguidos pelas propostas que se utilizam desse
entendimento são os de retratar certas visões de mundo e certos aspectos da realidade,
apresentando um decalque de situações cotidianas e sociais. Dada a perspectiva de
transformação de realidade onde as propostas se inserem, muitas vezes são ilustradas
situações de embate onde as relações entre opressor e oprimido são reveladas e debatidas.
89
Essa mesma forma de emprego da arte desempenha aspecto moralizador, ao prescrever
posturas na relação do sujeito consigo, com os outros e com mundo, através de mensagens
implícitas ou explícitas que indicam valores a serem cultivados: obediência às normas,
atenção com os compromissos escolares, cuidados com a gravidez precoce, o perigo das
drogas etc. Disto depreende-se a necessidade de que a experiência artística se manifeste de
forma clara, compreensível, digestiva, que prenda a atenção de quem dela participa
preservando sua capacidade reflexiva, estabelecendo um modo específico e pré-determinado
de relação estética com os materiais produzidos.
A fim de entendermos esse uso da arte mais a fundo, precisamos compreender de que
arte é essa que se fala. Nesse caso, observamos que a maioria das propostas tomam por
modelo a compreensão hegemônica de arte como representação. Essa idéia tem suas origens
no regime representativo de Aristóteles se perpetua, embora que sob novos matizes, no regime
estético contemporâneo: a arte teria como objetivo a mímesis, a imitação da natureza, e
estaria, portanto, implicada com uma concepção ordenada de mundo, regido pelo planos das
idéias transcendentes. O artista seria aquele que possui a capacidade de dar verossimilhança
ao Belo. Essas concepções de arte são tomadas como produções de visões do mundo,
expressas por determinados grupos sociais e comprometidas com seus valores. De qualquer
forma, a arte é entendida como tradução do mundo em uma linguagem específica, de apelo
emotivo.
Enfim, gostaríamos também de esboçar uma quarta possibilidade de utilização da arte
como recurso produtivo no campo das iniciativas sociais. Para analisarmos os limites e as
restrições das propostas anteriores e para falarmos em outras possibilidades de pensar a arte,
trazemos aqui as contribuições de alguns autores, além das contribuições já apresentadas de
Rancière e Guénoun, que apontam uma relação íntima entre experiências artísticas, ontologia
e produção da vida, agora sob uma perspectiva mais próxima à produção de subjetividade.
90
Em um texto de Lawrence de 1925, ele nos fala a respeito da relação entre arte e
moralidade. Para ele, no bojo do instinto moral do homem reside a defesa emotiva de um
velho hábito, ou seja, a luta pela preservação da ordem e do funcionamento de seu mundo em
suas formas atuais, instituídas. Esse hábito corresponde ao que ele chama de o OLHO-QUE-
TUDO-VÊ, ao olhar fotográfico da KODAK, à ilusão de que o olho humano funciona como
espelho das coisas e as percebe exatamente do jeito que são. A fotografia endossa um regime
de visibilidade onde o homem aprende a ver-se, inteiro. O homem aprende a fazer de si e de
tudo uma imagem completa em si mesma, existindo de forma absoluta, e assim o universo é
apenas aquilo que sua absoluta pequena imagem envolve” (LAWRENCE, 1925).
Lawrence fala do escândalo que um certo tipo de arte provoca na sociedade de seu
tempo e da aura de imoralidade que esta ganha. Ele se refere à obra de Cézanne: estranhas
naturezas mortas, onde maçãs não se parecem com maçãs, onde a cognição não reconhece
mais os objetos, pois é forçada a dar-lhes sentido não-evidente. A princípio, não nada de
imoral em um cesto de maçãs, mas as maçãs estão erradas, uma visão universal não as veria
assim, com contornos tão imprecisos. A imoralidade se faz na distorção e corrupção da
imagem. Lawrence prossegue em defesa da liberdade do artista, no que ele chama de
substituir uma moralidade grosseira por uma moralidade mais delicada. Isso se explica
porque, para ele,
o objetivo da arte é, e deve permanecer sendo, mostrar as coisas sob suas diferentes
relações (...) O universo é semelhante ao Grande Oceano, um fluxo englobando tudo e
avançando lentamente. Nós avançamos, com a massa dos séculos. E como nós
avançamos sempre, sem saber em qual direção, esse movimento não tem centro para
nós. (LAWRENCE, 1925).
Para Lawrence, uma vida vivida através da arte se exerce ao manter-se relações
autênticas com as coisas, ao sabor da corrente e cada um segundo suas próprias
91
afinidades”. Pois as coisas vivem segundo suas próprias leis, se transformando a cada novo
encontro, deixando marcas e impressões distintas nos corpos que atravessam.
A idéia de visão-KODAK apresentada por Lawrence encontra ressonância nas
contribuições de Suely Rolnik sobre a relação entre arte e alteridade. Ao buscar compreender
de que forma se fala de alteridade no discurso em defesa da cidadania e da democracia,
Rolnik problematiza as operações de nossas dimensões subjetivas no encontro com o outro.
Nesse discurso, o outro é tudo aquilo exterior a um eu, é uma unidade separável e
independente uma imagem completa em si, como diria Lawrence. Cidadania e democracia
se definiriam, portanto, pelo respeito aos direitos e deveres de todos, reconhecidos como
individualidades pelo plano das formas visíveis.
Entretanto, seguindo Deleuze e Guattari, o que Rolnik defende é que esse
entendimento se limita a uma única dimensão de nossa subjetividade, e portanto não vai a
fundo na relação com o outro, pois a realidade não se restringe ao visível e a subjetividade
não se restringe ao eu(ROLNIK, 1995). Pensar o outro dessa forma seria pensá-lo somente
em termos de suas formas instituídas, seus limites circunstanciais. No entanto, se
considerarmos que a coexistência dos corpos no mundo produz em cada corpo turbulências,
variações e mutações irreversíveis, temos de reconhecer que se faz necessário pensar a
alteridade em sua dimensão invisível.
Esta dimensão corresponde ao plano de imanência (DELEUZE e GUATTARI, 1995)
onde ocorre o embate entre as forças que compõem o eu e o outro, que se constituem de
fluxos e partículas em relações de velocidade e lentidão, constituindo nossas composições
subjetivas atuais. Essas forças exercem pressão umas sobre as outras, arrancando-nos e
deslocando-nos de nós mesmos até um certo limiar, onde para além dele se faz necessária a
atualização de nossa forma visível, a encarnação de um novo corpo para acolher as forças que
pedem passagem. Expor-se às diferenças que vêm da alteridade é colocar em risco o tênue
92
equilíbrio do eu, essa identidade provisória onde nos reconhecemos e que não é idêntica a si
mesma, pois é produto de uma processualidade onde ordem e caos atuam conjuntamente. O
domínio do eu e das formas visíveis é dirigido pela consciência, que é serve de guia da
subjetividade frente aos territórios e paisagens da atualidade, permitindo ao sujeito que se
posicione, tome decisões, enfim, que consiga sobreviver.
O que Rolnik afirma é que essa exposição do corpo às forças caóticas da vida, ao
grande oceano de fluxos ao qual se referia Lawrence, desencadeia uma tensão permanente e
de difícil embate, pois o que se mantém como figura deve desaparecer enquanto tal para que a
diferença, que é a alteridade vindo ao nosso encontro, encontre espaço em nós e nos crie uma
nova figura. Para que a criação de novas formas de vida ocorram é exercida violência e
crueldade na destruição das formas, e esse processo é doloroso, incerto, impreciso. No
entanto, não deve ser visto como mera destruição, posto que é através dele que a vida é
renovada, pela afetação de nossa dimensão inconsciente.
Atentando para a dimensão estética que o encontro com a arte proporciona,
acreditamos que, para que o discurso sobre a cidadania como forma de inclusão social dos
jovens promova de fato as transformações éticas que ele almeja, faz-se necessário
compreender a produção da subjetividade em sua complexidade, relevando conjuntamente sua
dimensão visível, que são os modos de organização que se estabelecem no plano das formas,
nas práticas sociais a defesa dos direitos e deveres estendidos a todos, a efetivação da
democracia etc. e a dimensão invisível das forças, seu caráter movente e desestabilizador,
também necessária à conquista de uma cidadania plena e à criação da vida.
Uma abertura para essa dimensão inconsciente requer uma abertura do próprio
pensamento, e requer compreender que a arte é um domínio onde o pensamento se faz
presente, implicada com uma forma específica do processo de criação. A criação na arte
possui materialidade própria, pois, para Deleuze e Guattari (1993), esta é constituída por
93
blocos de sensação, são seres arrancados do caos imanente. No encontro com esses blocos nos
desfazemos de nós mesmos, tornamos o corpo poroso, compartilhamos novos afectos e
perceptos e entramos em composição com o mundo, nos colocamos em devir com a vida.
Embora percebam que é uma tarefa suspeita tentar chegar a um conceito uno do que seja arte,
Deleuze e Guattari compreendem que o fazer artístico localiza-se num ponto de convergência
marcado por uma vontade criadora específica. Essa vontade pode ser entendida como vontade
de resistência, não reduzida ao mero embate ou objeção a algo estabelecido:
Mas a resistência é ainda: resistência ao presente concebido como lugar de
delimitação do possível. A criação não é nesse sentido um ato puramente
voluntarioso, mas designa a própria vida que é tendência a se criar e se ultrapassar. O
ato de criação artística é um ímpeto primordial da própria natureza que o artista trata
de encarnar. Ao fazê-lo, ele (artista) se recria e nos abre para outras possibilidades de
existência, as quais não são éticas sem desembocarem concomitantemente sobre a
esfera do político (ONETO, 2004.)
Não temos o intuito de fazer uma crítica contundente às formas vigentes de
apropriação e utilização da arte, posto que, por mais que existam nós de estrangulamento que
repressam os fluxos em um agenciamento, alguma coisa sempre escapa às totalizações. A
ocupação do tempo livre dos jovens pode resultar em ações verdadeiramente libertárias, pela
criação de novas formas de atividade e sociabilidade que podem ser então inventadas. As
iniciativas de ação cultural junto às populações de baixa-renda é algo fundamental, e deve ser
pensado tanto em termos de democratizar o acesso a experiências artísticas plurais quanto no
incentivo à produção de manifestações estéticas próprias, produzidas por grupos locais. A
utilização da arte como forma de retratar determinados aspectos da realidade pode funcionar
como dispositivo de problematizações coletivas, dando origem a políticas de resistência e
produção de uma nova cartografia social.
No entanto, na quarta possibilidade de relação entre arte e produção de subjetividade
que apresentamos, tentamos pensar a experiência e a prática estéticas indo além dessas formas
94
de apropriação. Assim, a arte passa a ser compreendida como possibilidade de superação e
reinvenção de si, pelos encontros proporcionados e pelas rachaduras geradas num plano de
visibilidade presente, redesenhando a realidade e a relação consigo e com os outros.
Concluindo, compreendo que a ressonância entre as propostas políticas de formação e o
trabalho com os jovens e a arte pode propiciar maior proveito e potência nas propostas
desenvolvidas pelos projetos sociais, experimentando-a como forma de resistência aos
processos excludentes do capitalismo contemporâneo ao qual buscamos alternativas.
95
CONCLUSÃO
Enfim, saímos das discussões apresentadas nesta dissertação, no desejo que elas nos
tenham conduzido a algum lugar diferente. Procuramos pensar as formas possíveis de
encontro entre o teatro e a psicologia, cujas práticas e saberes são bastante peculiares. Se
acompanhamos o cursos de suas histórias, vemos que o teatro, como Rancière nos indica ao
refletir sobre as diferentes políticas da arte (regime ético, regime representativo ou poético e
regime estético), se formalizou no regime representativo. Situou-se dentre aquelas práticas
que foram agregadas numa mesma divisão no campo de visibilidade quanto aos modos de
fazer e ocupar os espaços, quando a arte ganha um estatuto próprio e socialmente
reconhecido. Em relação à psicologia, sabemos que sua formação é bem mais recente, e se
inscreve no campo das práticas científicas como necessidade da época de investigar os
processos mentais e o comportamento humano de forma mais sistemática, precisa e
controlada.
Desde então, o teatro e a psicologia têm, felizmente, ganhado outros horizontes nas
artes e na ciência, e vêm participando das formas gerais de partilha do sensível, tanto no que
diz respeito às formações e modulações históricas do social quanto às partilhas que se operam
no plano comum do presente, interferindo na organização e configuração das atuais divisões
espaço-temporais. Como procuramos mostrar, muitas são as possibilidades de ambas
fecundarem os coletivos e as comunidades, reunidas fisicamente ou não, no sentido da
construção de novas políticas sobre o sensível e a alteridade, bem como da construção de
outras compreensões sobre o próprio campo do político.
No entanto, os ventos nem sempre sopram por onde apostamos ser mais acolhedor.
Observamos que um ponto de entrave comum a ambos é a permanência de uma determinada
representação dos conflitos e problemas sociais, marcados por uma visão binária e codificada
96
da partilha do sensível, o que provoca a impossibilidade ou a dificuldade de pensar o
desfazimento das categorias e dos recortes tradicionais entre os espaços, tempos, ocupações e
competências compatíveis com os mesmos. Talvez se faça necessário à psicologia e ao teatro
se contaminarem mais pelo político, tal como vemos em Rancière, ao criar o conceito de
partilha do sensível. O político diz respeito à participação na confecção do sensível comum,
pela ordenação desse comum, pela produção de determinados regimes de afetabilidade,
visibilidade, discursividade que não se confundem com os partidarismos e palavras de ordem
que, tantas vezes, encontramos nas propostas desses dois intercessores.
Essa participação pode ser empreendida tanto no sentido de desregulação das divisões
molares, como diria Deleuze e Guattari (1995), promovendo o embaralhamento das
identidades e das ocupações, ou no sentido de reforçar a segmentaridade, quando as
identidades e a lógica das relações que as definem são confirmadas. A constituição do comum
se propõe ao embaralhamento quando rompe com as divisões, repartilhando os limites e os
possíveis de existência e modos de convívio e cooperação social, como pela formação das
redes solidárias de ampliação dos territórios e aumento da qualidade da produção inventiva. A
desregulação persegue as rachaduras no que é em direção ao que pode vir a ser, sem que se
retorne às posições e divisões já conhecidas.
As tentativas do teatro em se abrir para o popular e o político correm muitas vezes o
risco de confirmar os modos de representação da realidade em termos antagônicos e com uma
visão centralizadora e transcendente do poder, o que limita o espaço de invenção de outros
modos de apreensão e participação nas relações produtoras do comum e do social. O
engajamento do teatro popular e comunitário com as questões sociais corre o risco de, mesmo
assumindo o partido do povo, o causar grande impacto no que diz respeito à produção da
diferença, como discute Silvia Nunes (2004), quando busca fazer uma crítica amorosa ao
teatro do oprimido (TO):
97
O TO é um teatro e uma tecnologia “psi” que permite à militância se manter
no nível das representações molares. Por isso, também tem acolhida entre
trabalhadores sociais: o TO diverte, debate, bota alguns não-ditos (mas pensados)
em pauta, mas protege da vertigem da variação das linhas, protege daquilo que ainda
não se pensou (virtualidades/marcas que pedem atualização). Assim, tudo tem que
estar entendido no teatro do oprimido: tudo conscientemente apreensível, porque se
acredita e se aposta em mudanças na ordem de referência molar (NUNES, 2004,
p.142).
É como se, para Boal e para outros que se afinam com suas propostas, a política por
onde circula o desejo do povo é sempre macropolítica, reduzida e reforçadora do binarismo
opressor-oprimido, que ao mesmo tempo que persegue a libertação, se apega aos modelos
identitários, e a solução é concebida pela tomada de poder do opressor, de destrui-lo para
assumir os poderes que ele detém, o que mantém a lógica binária.
A análise que Rolnik (2003) faz dos mecanismos de manutenção da dicotomia
opressor-oprimido é bem vinda. A autora argumenta que uma compreensão acerca da
crueldade como dimensão da vida, que ela entende como processo no qual as configurações
da matéria-forma vigente são postas à prova no embate com a alteridade e desconstruídas para
dar passagem ao surgimento de novas figuras da subjetividade. No entanto, essa crueldade é
significada como luta entre identidades opostas que disputam sua preservação e controle pelo
poder, o que oblitera a dimensão micropolítica das forças de mutação que habitam os
interstícios do corpo social, interrompendo a resistência e a criação:
Nesta política da resistência reativa, a multiplicidade de forças em jogo é
silenciada e subordinada a seu enquadramento em apenas duas figuras subjetivas: a
vítima e/ou o algoz, avessos especulares de uma mesma lógica. Para o algoz a luta
visa submeter o outro para que, tomado como objeto, possa ser instrumentalizado a
serviço da conservação de si mesmo e de sua expansão enquanto tal. [...] Se para o
algoz a violência é ativamente assumida, para a vítima ela se justifica como reação
à violência do outro, confinado na figura do “inimigo”. Ela se exerce seja
implicitamente no estilo queixoso, sob a forma ressentida e/ou de auto-comiseração
melancólica, que detona o outro através da culpa; seja explicitamente no estilo
raivoso, sob a forma vingativa e/ou paranóica. Ressentimento e vingança: políticas de
resistência da vítima que respondem em espelho àquilo mesmo que pretendem
combater a lógica da violência e seus principais protagonistas, o par vítima/algoz,
que tais políticas alimentam voluptuosamente (ROLNIK, 2003).
98
Neste ponto, encontramos uma questão fundamental: como sair das fórmulas
enrijecidas pelo teatro popular ou comunitário, e ainda se manter dentro do plano político?
Enfim, como manter as intensidades políticas e sociais da arte de outra forma? Pensando no
teatro e na arte, mas também incluindo as propostas da psicologia social e comunitária: como
recolocar os conflitos, e sair da lógica do “caráter oprimido” (GÓIS, 2003)? Como se
pergunta Deleuze (1979): como “desinstitucionalizar” o teatro como órgão de representação
dos conflitos estabelecidos, que ele e controla, apoiando-se no historicismo, no narcisismo
do oprimido e no moralismo? No mesmo tipo de problematização de Rolnik, Deleuze
comenta o teatrólogo Carmelo Bene, que descreve os ricos e pobres como presos ao mesmo
sistema de dominação, que estabelece a divisão entre escravos pobres, escravos ricos e
escravos intelectuais, estes últimos como sendo os artistas. Enfim,como fazer valer o
trabalho subterrâneo de uma variação livre e presente, que se introduz entre as tramas da
escravidão e transborda o conjunto?” (DELEUZE, 1979, p.123)
14
.
Detectamos alguns pontos expostos nessa dissertação que vão nesse sentido. Por
exemplo, temos as contribuições de Claire Bishop sobre a criação estética na virada social da
arte, cujos ganhos políticos e subjetivos o se atêm à procura do consenso e do moralmente
correto. Encontramos elementos em Guénoun para pensar as mutações da experiência teatral
quando este aponta, no jogo entre atores e público, o desejo de comunidade não totalizante
como virtualidade dos espectadores. Vislumbramos nas idéias de Negri sobre a constituição
do comum e a biopotência da multidão formas de resistência imanentes e inventivas, que
podem contaminar a psicologia comunitária e os autores que perseguem uma nova postura na
fabricação dos seus problemas
15
.
14
A tradução deste trecho é de Sílvia Nunes.
15
É interessante que, como sugerido por Kastrup em seminários de pesquisa, façamos uma diferenciação entre
“problema” como deformidade ou disfuncionamento observado num organismo, como situação desagradável ou
desfavorável que tem de ser remediada através de uma solução, e “problema” como modo de aproximação com a
99
Em meio aos embates da psicologia e do teatro entre as formas constituídas e as forças
constituintes que os atravessam, algo escapa, algo sempre escapa, como diz Nunes, pois
pensar as transformações no social pelo político não é apenas uma questão de segregação
econômica e cultural, mas de caminhos que o desejo busca percorrer. O que a multidão
deseja, estará presente na arte? Será encontrado nos agenciamentos com a psicologia? Quem é
hoje esse homem comum que faz parte do povo? Muito se pergunta se o indivíduo pouco
instruído intelectualmente e com poucas oportunidades culturais na vida estaria em condições
de assimilar uma arte mais refinada e sutil. Mas a pergunta mais interessante não é se ele está
pronto para a experiência com a arte, que tampouco é questão de assimilação, mas se nela ele
encontra elementos que venham a lhe despertar as sensações de potência adormecidas no seu
corpo, e isso não tem necessariamente a ver com escolaridade ou inteligência, mas com a
produção e desejo. O desejo, para Deleuze (1998), é sempre revolucionário e coletivo, posto
que sua eclosão é ao mesmo tempo a construção de um plano imanente comum que diverge
das estruturas estabelecidas, e através dele uma nova visão do mundo é possível. O desejo é
imanente a um plano ao qual ele não preexiste, a um plano que precisa ser construído, onde
partículas se emitem, fluxos se conjugam.” (DELEUZE, 1998, p.105).
É também com Nunes que pensamos as rachaduras e as linhas de fuga aos princípios
de totalização da experiência teatral na unidade do sentido. Ainda discutindo os entraves e as
saídas do teatro do oprimido, ela comenta:
Daí se falar em “analogia”, em “identificação”, e “reconhecimento”, quando
se poderia falar de transversalidades: o que está atravessando esse campo? Como
facilitar – ou não atrapalhar – agenciamentos? Como fazer uma leitura do que se passa
numa dimensão molecular, por exemplo, em uma sessão de teatro-fórum? (NUNES,
2004, p.134).
realidade: A arte de construir um problema é muito importante: inventa-se um problema, uma posição de
problema, antes de se encontrar a solução (DELEUZE, 1992, p.9).
100
Para Nunes, contra a sobrecodificação e a reterritorialização da invenção, o melhor
remédio é a peste artaudiana, é a contaminação, pois se não há, tanto no teatro como na
psicologia, formas de prevenção e proteção ao que boicota, a saída possível é devir-
minoritário, furar os bloqueios, não pela oposição frontal com a molaridade do teatro ou da
psicologia, mas deixando a diferença fluir por dentro, cavando espaços de vazio a-
significantes no meio do campo para que daí possa se insinuar o novo (NUNES, 2004, p.144).
Rolnik vem ao nosso encontro quando pensamos os processos de transformação
social, que seriam efeitos da acumulação e precipitação das linhas de molecularidade
desenhando novas formas de sociedade. É nesse sentido que pensamos os agenciamentos
entre psicologia e arte, quando esta se coloca como possibilidade de rastreamento das
mutações de sensações em curso no presente e ao mesmo tempo constituindo um plano
comum sensível, onde a psicologia pode empreender suas próprias formas de resistência e
criação na comunidade.
Compreendo que o desejo de comunidade não é desejo de afirmação das suas maneiras
de ser, de fortalecimento de sua identidade, mas desejo de abrir espaço para a passagem dos
devires que ela comporta. Não transformação social possível cujas estratégias principais
estejam assentadas sobre a preservação do que existe. É preciso que a psicologia procure
efetuar suas potências pelo encontro dos heterogêneos que estão no avesso nas representações.
Assim como para as artes, a repartilha emancipatória do sensível não é um esforço por separar
as aparências das realidade, é antes embaralhar as relações e regulações que se confundem
entre ambas e explorar o plano de consistência que as fabrica.
Assim, acreditamos que a revisão da psicologia comunitária e do seu conceito de
comunidade o passa necessariamente pelo abandono dos espaços urbanos que foram local
de origem de sua formação, como as comunidades periféricas populares. necessidade de
reencontrar as potencialidades desses lugares, mesmo que, historicamente, tenham sido
101
moldados por uma engrenagem populista e assistencialista, e que ainda se faz presente nos
próprios meios onde nos propomos a fazer arte e psicologia: nos projetos sociais, nas
associações de moradores, nos órgãos públicos em ação na comunidade etc.
Compreendo que, nos enlaces possíveis entre psicologia comunitária e teatro, as
percepções e sensações advindas com a experimentação teatral (essas ondas de perceptos e
afectos que a arte emite, como dizem Deleuze e Guattari (2003)) desterritorializam o
pensamento, favorecendo um campo de atuação à psicologia para o agenciamento das
diferenças. Nos trilhos do prolongamento e da migração dos efeitos estéticos da arte, o
psicólogo trabalha junto às redes e aos grupos comunitários no intuito de cooperar na
construção das idéias e objetivos coletivos, e na viabilização dos meios de liberação dos
desejos ativados nas tramas da comunidade.
Enfim, à psicologia comunitária talvez mais falte a compreensão de que a comunidade
popular, mais que lugar social marcado pelas carências, é lugar de produção de desejo. E cabe
ao psicólogo agenciar os fluxos desejantes, como diversas iniciativas artísticas m revelado
como possível para a reinvenção da subjetividade e dos territórios urbanos. Seu desafio é
atentar para a escuta desse desejo, geralmente obliterado em meio aos projetos que buscam
mais preencher os vazios e as carências de saúde, moradia, escolaridade etc. (que também são
fundamentais à construção de um mundo novo, mas que o esgotam esse mundo). O desejo
não pode ser apenas desejo de não ser oprimido; como diz Deleuze, nunca se fez um desejo
com um não querer” (DELEUZE, 1999, p.112).
A abertura da cena e do teatro em geral aos fluxos da comunidade, suas forças e seus
desejos, convida a psicologia a se deixar contaminar pela arte, e apostar em seu agenciamento
como máquina-desejante, tal como descrita por Guattari (1986, p.239). Se nossa psicologia é
social e comunitária, também no social o desejo habita e se agita. Partilhar o sensível é
assumir o desejo como matéria de ação política, tanto para os artistas quanto para os
102
profissionais da subjetividade. Por onde tem passado o desejo na psicologia comunitária?
Talvez seja aí, neste território ainda pouco explorado do nosso campo, que conseguiremos,
com maior fecundidade, deslocar e recolocar nossos problemas.
103
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