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“raciocínio”. A consciência, em Nietzsche, adstrita ao raciocínio constitui a pequena
razão, porém quando se trata da grande razão, o corpo aparece como o grande
pensador. E aí há algo mais do que “saber”. A consciência é parte da percepção de
outra dimensão da vida. E daí a consciência, em nível da situação, do rebanho, do
gregário, é o começo de um processo, que depois precisa chegar a um ponto em que
é necessário o sacrifício dessa própria consciência, em função dessa outra
dimensão. A consciência vai ter que fazer precisamente isso: ela se auto-sacrifica.
A idéia central do iluminismo, nos seus diferentes matizes, que é exatamente a
de que a consciência é o lugar da verdade ou o lugar do absoluto, da revelação do
absoluto, e que, por conseguinte, todo e qualquer tipo de salvação, todo e qualquer
tipo de esclarecimento ou de ilustração, toda felicidade do homem, depende desse
processo de esclarecimento, de ilustração, que se funda na consciência; a crença e a
fé, inerentes a todas as formas de iluminismo, de que exatamente em virtude dos
progressos da consciência e da ilustração, vai ser possível construir uma espécie de
reinado da felicidade sobre a terra, ou seja, o estabelecimento das relações do
homem com a natureza e do homem consigo mesmo, fundadas em critérios pura e
simplesmente racionais; tudo isso é que vai ser completamente denunciado como
ilusão, precisamente a partir dessa crítica da consciência. Nossas ações são, no
fundo, todas elas, pessoais de uma maneira incomparável, únicas, ilimitadamente
individuais, sem dúvida nenhuma; mas, tão logo nós as traduzimos na consciência,
elas não parecem mais sê-lo porque cada uma das nossas ações só é
absolutamente singular na medida em que ela escapa a este plano gregário da
consciência. Se ela é traduzida para este plano gregário da consciência, ela já é
posta sob a perspectiva daquilo que é comum, por isso ela já não é mais única,
singular, pessoal. Isto é propriamente o fenomenalismo e o perspectivismo, assim
como Nietzsche os apresenta: a natureza da consciência animal acarreta que o
mundo, de que podemos tomar consciência, é apenas um mundo de superfícies e de
signos, um mundo generalizado, vulgarizado – que tudo o que se torna consciente
justamente com isso se torna raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo, marca
de rebanho, que, como todo tornar-consciente, está associado a uma grande e
radical corrupção, falsificação, superficialização e generalização.
Essa é uma das mais radicais formulações da crítica nietzschiana à crença
iluminista de que toda e qualquer forma de progresso, de acesso à verdade, passa
necessariamente pela clarificação ou iluminação da consciência.