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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Danúzio Ribeiro Alves
Aspectos do niilismo:
inocência e vida no pensamento de Nietzsche
Rio de Janeiro
2008
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2
Danúzio Ribeiro Alves
Aspectos do niilismo:
inocência e vida no pensamento de Nietzsche
Dissertação apresentada, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre, ao Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração:
Filosofia Moderna e Contemporânea.
Orientadora: Professora Doutora Rosa Dias.
Rio de Janeiro
2008
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3
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução parcial desta
dissertação: introdução e considerações finais.
_
____________________________ _______________________________
Assinatura Data
Danúzio Ribeiro Alves
N677 Alves, Danúzio Ribeiro.
Aspectos do niilismo: inocência e vida no pensamento de
Nietzsche / Danúzio Ribeiro Alves. - 2008.
126 f.
Orientadora: Rosa Dias.
Dissertação (mestrado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Bibliografia: f. 122-126.
1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Niilismo (Filosofia)
- Teses. 3. Filosofia alemã - Teses. I. Dias, Rosa. II. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
III. Título.
CDU- 1(430)
4
Aspectos do niilismo:
inocência e vida no pensamento de Nietzsche
Dissertação apresentada, como requisito para
obtenção do título de mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração: Filosofia
Moderna e Contemporânea.
Aprovada em 17 de junho de 2008.
Banca examinadora:
_______________________________________
Profª. Drª. Rosa Dias (orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
_______________________________________
Profª. Drª. Iracema Maria de Macedo Gonçalves
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
_______________________________________
Profª. Drª. Adriany Ferreira de Mendonça
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
Rio de Janeiro
2008
5
DEDICATÓRIA
Este trabalho é dedicado a Rejane, Elza Caroline e Francinete, companheiras das
horas difíceis, representando todos os brasileiros que apesar de todo o descaso cultural que
assola o país, ainda conseguem ser fortes e dar força àqueles que lutam por uma
sociedade esclarecida e feliz viabilizada pela leitura, pela educação e pela arte.
Àqueles que lutam pela efervescência cultural em nossas terras, dedico este
trabalho como homenagem e como um pedido para que continuem lutando, se não for
dentro de uma escola, que seja na praça pública; se não for na praça, que seja na rua; se
não for na rua, que seja dentro de casa; se não for dentro de cada casa, que seja dentro de
cada peito, em cada atitude, em qualquer lugar.
6
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Rosa Dias, pelo olhar maduro, pela serenidade constante,
pela compreensão, pela simplicidade. Por ter me apresentado, com a singeleza que lhe é
própria, as agradáveis idéias do “advogado da vida” e por ter sido a primeira pessoa a
valorizar e a compartilhar comigo, do espontâneo desejo que tive, já há alguns anos, de
estudar a inocência da vida no pensamento de Nietzsche.
À Rejane, a Leonardo e André, por tudo o que hoje é realidade, quando ainda era
dúvida: não é o sorriso na boca, mas sim o brilho nos olhos dos meus alunos, que me diz o
quanto vocês estavam certos.
À Rejane da Conceição Meirelles, companheira de longas horas de reflexões,
exemplo de estudante e professora, agradeço pela dedicação providencial nas minhas
horas de tensão e ansiedade e pela atenção cuidadosa durante a crítica e a revisão deste
trabalho. Você tornou mais fáceis os momentos mais difíceis.
Adriany e Iracema pela avaliação criteriosa, pelas críticas e sugestões permeadas
por apoio.
A todos, muito obrigado é pouco.
7
Súbita, uma angústia... Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido! Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos! Uma angústia, uma
desconsolação da epiderme da alma, um deixar cair os braços ao sol-pôr do
esforço... Renego. Renego tudo. Renego mais do que tudo. Renego a gládio e fim
todos os Deuses e a negação deles. Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me
no estômago e na circulação do sangue? Que atordoamento vazio me esfalfa no
cérebro? Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me? Não: vou existir. Arre!
Vou existir. E-xis-tir... E-- xis -- tir...
Álvaro de Campos
8
RESUMO
ALVES, Danúzio Ribeiro. Aspectos do niilismo: inocência e vida no pensamento de
Nietzsche. 2008. 126 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Esta dissertação tem por objetivo analisar uma perspectiva fundamental no
pensamento de Nietzsche: ver a vida sob a perspectiva da inocência, mediante uma
crítica da formação dos valores da sociedade ocidental que culminaram com a
produção do niilismo. A abordagem parte do pressuposto de que a crítica de
Nietzsche ao pensamento de Heráclito e da tragédia grega são verdadeiros pilares
para sustentação de um modo de dizer sim à vida, ao mesmo tempo em que revela
o pensamento de Anaximandro e grande parte da corrente filosófica derivada do
platonismo como um modo de dizer não à existência. O confronto entre essas duas
posturas, de afirmação e de negação da vida, constitui uma potente reflexão para o
entendimento do projeto de mudança de todos os valores e para a compreensão da
vida como um fenômeno estético.
Palavras-chave: Estética. Inocência. Moral. Niilismo. Modernidade. Racionalidade.
Verdade. Sujeito.
ABSTRACT
9
This dissertation has for objective to analyze a fundamental perspective in
Nietzsche's thought: to see the life under the perspective of the innocence, by a critic
of the formation of the values of the western society that culminated with the
production of the nihilism. The approach leaves of the presupposition that the critic of
Nietzsche to Heráclito's thought and of the Greek tragedy are true pillars for
sustentation in a way of saying yes to the life, at the same time in that reveals the
thought of Anaximandro and great part of the derived philosophical current of the
Platonism as a way of saying not to the existence. The confrontation among those
two postures, of statement and of denial of the life, it constitutes a potent reflection
for the understanding of the change project of all the values and for the
understanding of the life as an aesthetic phenomenon.
Keywords: Aesthetics. Innocence. Moral. Nihilism. Modernity. Rationality. Truth.
Subject.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................... 10
1 GENEALOGIA DO NIILISMO
1.1 As fases do niilismo .............................................................................18
1.2 Os antecedentes filosóficos do niilismo
1.2.1 Platão: um olhar moral, porém grego .................................................... 27
1.2.1.1 A descentralização do sujeito ................................................................ 36
1.2.1.2 A inconsciência da consciência e a razão do corpo:
a grande razão ....................................................................................... 45
1.2.2 Anaximandro: um olhar grego, porém moral ........................................... 58
2 O APOLÍNEO E O DIONISÍACO: UMA COMPOSIÇÃO ESTÉTICA
2.1 O resgate da tragédia............................................................................. 61
2.2 O resgate de Heráclito ........................................................................... 70
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................73
REFERÊNCIAS.........................................................................................80
11
INTRODUÇÃO
A única maneira de teres sensações novas é construíres-te uma alma nova. Baldado
esforço o teu se queres sentir outras coisas sem sentires de outra
maneira, e sentires de outra maneira sem mudares de alma.
Porque as coisas são como nós as sentimos
e o único modo de haver coisas novas,
de sentir coisas novas é haver
novidade no senti-las.
Fernando Pessoa
Quando estudamos o pensamento filosófico de Nietzsche, colocamo-nos
diante de um vasto campo de observações acerca do conhecimento humano. Tão
amplo é o alcance de suas idéias que ao conhecê-las não nos sentimos diante de
um homem, e sim de um universo. Além da riqueza poética, a sinceridade e o desejo
do novo são marcas que fazem do pensamento nietzschiano um importante
momento da filosofia, por conter o mais forte “apelo” à modernidade para pensar o
não pensado, comparar o não comparado e, principalmente, a desafiar-se a si
mesma, em seu próprio proveito.
Lançar um insólito olhar sobre a estrutura cognitiva construída pela tradição
filosófica, eis o propósito de Nietzsche. Naturalmente, tal finalidade implica a reflexão
sobre questões da verdade, da razão, do intelecto, enfim, sobre os temas que
nutrem os mais variados ramos do saber humano. Porém no que diz respeito à
Estética essa reflexão se faz peculiar: partindo dos impulsos artísticos da natureza,
Nietzsche observa a vida, abrindo mão de certos interesses morais. E com o
desinteresse próprio da estética, percebe que algo foi retirado da vida: a inocência. E
com ela, a criatividade.
Desse modo, o trabalho de Nietzsche nos quer abalar, expondo-nos que a
nossa ciência, a nossa arte, as nossas crenças e convicções, por fim os nossos
valores devem ser alvo de nossas críticas. Do contrário, não enxergaremos as vias
pelas quais negamos a nossa humanidade, ao mesmo tempo em que clamamos
tanto por ela. Porque atualmente é muito fácil reconhecer a carência de um
significado para o adjetivo humano. Basta um olhar superficial para qualquer região
das ditas sociedades civilizadas para repararmos a distância entre o que se espera
12
da civilização e a realização daquilo a que chamamos humanidade em suas mais
variadas formas. Mas o difícil – e é neste ponto que Nietzsche se faz importante – é
percebermos que construímos sistemas que vão desde os conceituais até os
estatais e econômicos os mais diversos possíveis e paradoxalmente não temos mais
em quê acreditar. Chegamos a ponto de clamar por vitalidade sem saber que o que
fazemos é dizer não à vida. Somos niilistas. Porém a par desta facilidade para
percebermos o niilismo decorrente da queda dos valores estabelecidos, Nietzsche
nos revela que no próprio nascimento dos valores já há uma face do niilismo. Ou
seja, somos niilistas há mais tempo do que pensávamos. E é preciso que saibamos
disso para que isso nos impulsione além de nós mesmos, pois existe uma outra
faceta do niilismo: sua dimensão criadora, de superação. Nietzsche deseja incitar, de
modo provocante, todas as cabeças pensantes a uma releitura altamente fecunda de
todas as suas bases conceituais, tanto na política, quanto na ética e na estética.
Sendo singularmente esta última o ângulo do qual mais extraiu Nietzsche o seu raro
olhar de filósofo do futuro.
Seu pensamento, no que concerne a este trabalho, promove um mapeamento
da trajetória do niilismo negador da vida, mas também desenvolve um alicerce para
que este mesmo niilismo se transforme em um processo criador do novo homem, do
além do homem. Nesse sentido, Nietzsche exalta a vitalidade do homem, de modo
diferente do humanitarismo do século XIX: devolvendo o homem à natureza e o
mundo ao mundo, para que possamos ver a vida sob um novo prisma, sob uma
ótica na qual não existam leis na natureza, mas vida, criatividade incessante e
inocência.
“Primeiro os homens projetaram-se na natureza:
em toda parte viram a si mesmos e seus iguais,
isto é, suas características más e caprichosas,
como se estivessem escondidas entre nuvens e
temporais, animais de rapina, árvores e plantas:
naquele tempo inventaram a ‘natureza má’.
Depois veio a época em que novamente se
imaginaram fora da natureza, a época de
Rousseau: estavam tão fartos uns dos outros, que
quiseram possuir um canto a que não chegasse o
13
homem e seu tormento: inventaram a ‘natureza
boa’
1
”.
Nesta dissertação, temos por objetivo geral analisar os modos pelos quais
Nietzsche desenvolve um pensamento afirmativo, avaliando alguns dos recursos de
que ele lançou mão para oferecer-nos o modo de pensar que diz “sim ao mundo”.
Fazemos isso tomando o cuidado de ressaltar que o pensamento de Nietzsche não
constitui uma proposição exclusivamente reformadora do homem e do mundo nem
uma proposta puramente epistemológica. Nietzsche, como disse Eugen Fink, “não
apresenta um inventário de fenômenos com a fria objetividade da ciência positiva.
Em Nietzsche nem uma imagem do homem é estática, nenhuma repousa satisfeita
sobre si mesma”.
2
Portanto, este estudo consiste em examinar a proposta de
Nietzsche de desnudar o homem “real” (possível), encoberto pela máscara
dissimuladora da “civilização racional”, na qual existe o homem “da verdade”
(acontecido, convencionado).
Delimitando o problema deste trabalho, partimos da hipótese de que no
pensamento de Nietzsche há uma preocupação crucial que é a de ver a vida sob a
perspectiva da inocência, o que nos leva a demonstrar que os principais problemas
existências, já abordados pela tradição, aos olhos de Nietzsche, conduzem-nos à
proposição inovadora de que a vida é um fenômeno estético. Para isso seria
imperioso sairmos da velha perspectiva moral arraigada na tradição para podermos
inocentar a vida em suas raízes mais profundas, pois, segundo Nietzsche, a cada
momento em que captamos o mundo sob a ótica do sujeito e do objeto, do bem e do
mal, da verdade e da mentira já nos valemos de uma moralidade velada que cerceia
o desinteresse próprio da atitude inocente. O passo que precisamos dar para
engendrar um novo olhar exige, necessariamente, uma nova concepção estética: a
de que é possível retirar da vida a culpa que a macula, extraindo dos valores
estéticos desprezados pela moral os substratos necessários para acessar uma nova
interpretação da vida, do mundo e do homem, o que põe a arte em um patamar bem
diferente daquele no qual ela tem sido tratada pela tradição filosófica. Entrementes,
é preciso uma nova perspectiva: a vida é um fenômeno estético.
1
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia. das Letras,
2004, p. 24.
2
FINK, Eugen. A filosofia de Nietzsche. Tradução de Joaquim L. D. Peixoto, Ed. Presença Ltda., Lisboa: 1983,
p. 65.
14
Uma nova perspectiva pede uma nova forma de abordagem. Por isso a
cronologia, neste trabalho, não se apresenta como elemento principal. Ao contrário,
os momentos observáveis da transformação dos valores, resultados da
preponderância desta ou daquela força, são o fio condutor de nossa pesquisa cujo
desiderato é elucidar, no pensamento de Nietzsche, aspectos do niilismo que
ensejem uma justificação estética da existência na qual inocência e vida sejam os
principais elementos.
Para isso estabeleci em duas partes os temas da minha investigação. A
primeira parte, intitulada Genealogia do niilismo, é estruturada de forma
aparentemente inversa, porque vamos analisar no capítulo I as fases do niilismo,
suas características psicológicas, religiosas, morais, enfim, culturais, bem como suas
transformações na modernidade e na contemporaneidade, com certa concentração
no século XIX e nos dias atuais. Em seguida estudaremos, no capítulo II os
antecedentes filosóficos do niilismo, alguns momentos da Filosofia antiga, aos quais
Nietzsche deu atenção. Nosso objetivo com essa aparente inversão de estudarmos
um ponto e seus antecedentes posteriormente é acompanharmos o próprio olhar de
Nietzsche e nos darmos conta da importância de sua potente perspectiva acima de
tudo cultural, cuja característica principal consiste no fato de ser uma perspectiva de
origem estética.
Com efeito, em nosso capítulo I as fases do niilismo, vamos esclarecer as
diversas nuances dos vários estados psicológicos denominados por Nietzsche de
niilismo, percebendo como ele indica que de um mesmo solo em que se germinou a
condenação da vida, ao mudarmos o olhar, germinará a sua inocência, mediante a
potencialização das capacidades criadoras do homem. Para isso estudaremos,
primeiramente, o caminho através do qual, nos primórdios culturais do ocidente, a
vida foi identificada ao sofrimento. Vamos verificar que a partir dessa identificação
criaram-se valores metafísicos de justificação do sofrimento, que acabaram por fazer
da finalidade da vida uma pretensão maior do que a própria vida. Investigaremos em
seguida as conseqüências da queda destes valores e a convivência da filosofia
moderna com estas mudanças. Finalmente, faremos uma análise dos alcances da
sentença nietzschiana “Deus está morto”.
O capítulo II, os antecedentes filosóficos do niilismo, é dividido em duas
seções. Na primeira, o tema central é o platonismo e seus desdobramentos na
filosofia ocidental, suas relações com o cristianismo e com a filosofia da
15
modernidade. Neste ponto abordamos assuntos tão importantes para a filosofia
contemporânea, que podemos afirmar sem medo de exageros que outros
pensadores como Freud e Wittgenstein, por exemplo, desenvolveram várias
proposições a partir deles. São os seguintes: a descentralização do sujeito,
trabalhada na primeira subseção e a questão da superficialidade da consciência em
contraste com “a grande razão” anunciada por Zaratustra. Os limites e as
possibilidades tanto do corpo quanto da consciência e as conseqüências desta
reflexão são o conteúdo da segunda subseção, intitulada A inconsciência da
consciência e a razão do corpo: a grande razão. Na segunda seção do capítulo II,
analisarei como Nietzsche nos mostra de que maneira o caminho traçado pela razão
moralizada, consolidada na filosofia moderna, teve seus primeiros passos em
Anaximandro de Mileto, embora sua consolidação se deva a Sócrates e ao
Platonismo. Anaximandro é acusado por Nietzsche de colocar na origem de todas as
coisas um problema moral, iniciando a negação da inocência da vida e colocando na
essência das coisas o mais terrível dos problemas éticos. A existência, com suas
contradições, é vista pelo pensador de Mileto como um pagamento de dívidas.
O modo como essa visão acaba por consistir num elemento gerador do
niilismo é o tema deste segundo capítulo.
Entretanto Nietzsche não encontra na história do pensamento ocidental
apenas conceitos negadores da existência. Ele também aponta idéias que
demonstram uma outra concepção da vida e do homem. Embora não aproveitadas
ou, segundo Nietzsche, mal interpretadas pela tradição, idéias propícias a uma
diferente postura de vida, cujas raízes não provêm da moral basilar tradicional,
podem ser hauridas nos próprios gregos. E é este o assunto da segunda parte desta
dissertação, O apolíneo e o dionisíaco: uma composição estética, na qual
investigarei no primeiro capítulo, O resgate da tragédia, a razão pela qual Nietzsche
recuperou uma cultura há muito esquecida pelos povos ocidentais, a tragédia grega.
O que há de sedutor, de impressionante, de vital nessa época remota da Grécia, que
tanto interessou a Nietzsche, em sua empresa pela afirmação da vida? O que
diferencia o modo de vida da época trágica dos gregos, do modo de vida pós-
socrático? Essas indagações norteiam a segunda parte deste trabalho, onde
estudarei o tema inocência e vida e sua relação com filosofia e modo de vida.
Analisarei, também, no segundo capítulo, O resgate de Heráclito, o motivo por que o
pensamento do filósofo Heráclito, assim como a tragédia, é um verdadeiro manancial
16
de força e inspiração para a mudança de valores almejada por Nietzsche. O estilo de
vida do poeta, do cidadão e do filósofo trágicos contém algo de importância capital
para a luta contra a negação da vida. Heráclito via na existência a necessidade do
vir-a-ser, desprovida de qualquer caráter teleológico-moral. Esses dois modos de
pensar e seus desdobramentos, no que tange à inocência e vida, no pensamento de
Nietzsche, constituem o encerramento de nossas reflexões.
A partir da modernidade, desenvolveu-se um estilo de cientificismo que
considera tudo o que é observável um fato e faz deste fato o propulsor do
conhecimento. Com a ascensão do positivismo, até no âmbito das ciências sociais o
fato adquiriu um caráter estático - veja-se a proposição de Durkhein: “os fatos
sociais devem ser vistos como coisas”
3
. Todavia, os fatos, para Nietzsche, não
passam de interpretações, razão pela qual ele entende que o que lhes confere a
solidez que possuem, no conhecimento racional, são as forças que deles se
apoderam e lhes atribuem valores. E esta valoração se dá conforme o tipo de força
que a exerceu, exigindo do filósofo do futuro uma multiplicidade de perspectivas e
uma variedade de experimentações.
“As paixões se tornam más e pérfidas quando
são consideradas mal e perfidamente”.
4
Uma nova questão se apresenta à filosofia mediante o olhar de Nietzsche.
Deleuze afirma, em Nietzsche e a filosofia: “nisto consiste o projeto mais geral de
Nietzsche: introduzir na filosofia os conceitos de sentido e de valor. É evidente que a
filosofia moderna, em grande parte viveu e vive de Nietzsche”
5
. Isso demonstra o
quanto Nietzsche se ocupou com a questão do “valor dos valores” por entender que
a tradição vinha tomando valores como estruturas prontas e acabadas inscritas na
realidade por um moralismo divinizado que acaba por distorcer a natureza,
enfraquecer o homem e culpar a vida. E isso vinha acontecendo em uma época em
que se acreditava superada a tradição religiosa da Idade Média. Grande parte da
intelectualidade européia se afirmava representante do rompimento das algemas
medievais que tanto condenavam. Todavia Nietzsche faz uma denúncia em seu livro
3
MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomo I, Edições Loyola. São Paulo: 2000, p. 783.
4
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia. das Letras,
2004, p. 59.
5
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976, p 13.
17
Ecce Homo: os filósofos são sacerdotes mascarados
6
. Seu objetivo é demonstrar
que se estava a trocar palavras, a trocar estados, a trocar governos, tudo sob uma
mesma moral que se mascarava. E como do século XIX para os dias atuais quase
nada mudou a esse respeito, uma pergunta ainda persiste: o que falta, então, para
que o novo seja realmente novo? Esta nova visão precisa de um terreno conceitual
formado a partir de outras perspectivas apartadas da fonte moral donde provinha a
maioria das idéias até então, para que o filósofo do martelo possa realizar um novo
julgamento cuja sentença será a inocência da vida.
Essa visão atipicamente naturalista da vida só encontrará vazão diante de um
novo modo de pensar o homem e o mundo. Por isso, em busca não só de um novo
conteúdo, mas principalmente de um novo olhar, Nietzsche enriqueceu a filosofia
com dois modos de expressão peculiares, o aforismo e a poesia. Estas formas de
expressão no interior das propostas nietzschianas trazem consigo uma concepção
inovadora do filósofo e da filosofia mediante a qual não se proclama mais a intenção
de procurar o ideal de um conhecimento verdadeiro, mas sim o desejo de interpretar
e de avaliar. Estes dois verbos são cruciais para a filosofia vindoura. A interpretação
procura fixar o sentido de um fenômeno, sempre parcial e fragmentário: uma
perspectiva. A avaliação tem por escopo determinar o valor hierárquico desses
sentidos, totalizando os fragmentos, sem, entretanto, minimizar ou subtrair a
pluralidade: uma experimentação. Desse modo, o aforismo nietzschiano é,
concomitantemente, a arte de interpretar e o evento a ser interpretado; e o poema
constitui a arte de avaliar e a própria coisa a ser avaliada. O intérprete se torna um
tipo de fisiologista e de médico, aquele que considera os fenômenos como sintomas
e por isso fala por aforismos; o avaliador se converte no artista que considera e cria
nuances, falando pelo poema. Somando estas duas aptidões, o filósofo do futuro
deveria ser artista e médico-legislador, ao mesmo tempo.
A filosofia de Nietzsche é um louvor à vida que se expande e se intensifica,
que se edifica sobre os mais inerentes instintos. A radicalidade com que Nietzsche
se expressou denota uma forte rejeição à concepção que sua época tinha dela
própria, enquanto cultura e valor. Por isso ele propôs uma perspectiva inaudita,
destinada a perturbar, a provocar, a queimar o que lhe tocaria.
6
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo. Tradução de Paulo Cesar de Souza, Max Limonad, São Paulo:
1985, p. 80.
18
"Conheço meu destino. Sei que algum dia
meu nome se aliará, em recordação, a algo
de terrível, a uma crise como nunca ocorreu,
a mais tremenda colisão de consciências, a
uma sentença definitiva, pronunciada contra
tudo aquilo que se acreditava, exigia e
santificava até então. Eu não sou um homem:
sou dinamite”.
7
Friedrich Nietzsche, em vários de seus escritos, deixou sua opinião a respeito
de si próprio. Como vimos nas palavras destacadas, ele não errou em afirmar-se
“dinamite”. Sua técnica de pensamento, seu psicologismo e seu estilo fragmentário,
aforístico, poético, imperioso e provocante exerceu forte turbação desde o início do
século. Tudo isso porque ele ousou denunciar a verdade como mais uma mentira;
arrojou-se em criticar a ciência, a razão e seus valores, criticando sua base
fundamental: a moral. E criticou o estatuto da moral, questionando o estatuto da
verdade.
Uma justificação estética da existência se sobrepõe a uma justificação
racional dos valores da existência em um mundo onde toda a esperança haurida em
um período distante, no qual surgiram os valores de democracia e de paz próprios
da estrutura greco-romana, mostra-se insuficientes para livrar-nos da guerra, da
destruição, e do fim do homem cujo Deus está morto.
7
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Nietzsche (coleção os pensadores). Tradução e notas de Rubens Rodrigues
Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural. 1978, p. XXIII.
19
1 GENEALOGIA DO NIILISMO
1.1 As fases do niilismo
O único sentido íntimo das coisas
é elas não terem sentido íntimo nenhum.
Alberto Caeiro
Quando pronunciamos a palavra filosofia, principalmente no sentido lato, uma
questão rapidamente ressoa: o que é a vida? Desde a criação do termo filosofia, na
Grécia, a vida e seus desdobramentos constituem o tema crucial a fermentar na
mente dos filósofos. Nesse sentido, a suprema pergunta filosófica, grosso modo, tem
sido a seguinte: qual o sentido da vida? Se fizermos uma pesquisa seja no âmbito
leigo, seja no ambiente acadêmico da Filosofia, verificaremos que o tema central
aludido será exatamente esse, mesmo que dele derivem outros. As pessoas em
geral acham que os filósofos vivem a tentar descobrir o sentido da vida. E vivem
mesmo! Mas existem exceções. Existem pensadores para os quais vida e sentido
não caminham tão emparelhados assim. Nietzsche é um deles. Entretanto, o fato é
que, exceções a parte, durante todo esse percurso pelo qual passa a célebre
indagação filosófica sobre o sentido da vida, uma palavra sempre aparecia para
justificá-la e para responder-lhe: a palavra sofrimento. Inserindo o sofrimento no
campo das respostas sobre o sentido da vida, automaticamente foi preciso colocar
na própria vida as causas do sofrer. E com isso, também as conseqüências. De
maneira que o fato de as pessoas sofrerem torna-se um instrumento para provar a
injustiça da vida e também para amparar uma justificativa externa, superior à própria
vida, uma justificativa divina. E isso não é novidade. Como veremos adiante, a vida
como um castigo vai ser cantada por um pensador pré-socrático, Anaximandro de
Mileto que surpreendentemente vai apresentar uma explicação moralizada para o
sofrimento, em um momento cultural no qual o pensamento grego ainda não era
muito inclinado a esse tipo de visão. Mas ainda não é o momento de aprofundarmos
o estudo específico da moral de Anaximandro. Vejamos, por ora, outras fases da
sedimentação dessa visão moral através da qual a vida foi aprisionada em grades de
culpa difíceis de serem arrancadas.
Começamos afirmando que os primeiros moralistas da natureza, ao
considerarem a vida culpada, chegaram à seguinte aritmética: vida + sofrimento =
20
expiação. Ora, fica perdida no tempo a origem exata desta simplória operação lógica,
uma vez que muitas culturas a manifestaram, antes de Cristo, depois de Cristo,
durante cristo, sempre... Mesmo que sob diferentes formas, essa relação entre vida,
sofrimento e recompensa permeia vultosa fração do pensamento ocidental. É por
essa razão que Nietzsche vai resgatar negativamente o pensamento de Anaximandro
e de Platão e positivamente o pensamento de Heráclito e a tragédia grega. Porque é
preciso queimar a moral em suas raízes mais antigas e salvar a vida em suas raízes
mais profundas. Bastou uma incursão na vida do filósofo Heráclito e na atmosfera da
tragédia grega para que Nietzsche, já dotado de um raro instinto, percebesse o grave
crime cometido contra a vida no fato de fazer da existência um fenômeno moral, pois
isso significa tornar a natureza passível de um juízo moral. E como a nenhum homem
cabia a inteligibilidade da emissão desse juízo, vez que todos os homens são
viventes e sofredores, torna-se preciso, sobretudo, um juízo de Deus. É preciso mais
que um vivo para julgar a vida. A vida se convola em algo menor, em algo sujo. Ela
foi julgada sem ter agido, pois nenhum filósofo até hoje deu à vida a chance do
contraditório e da ampla defesa. Nenhum pensador nos mostrou a consciência da
vida. Na verdade, foi julgando a consciência dos homens que os homens julgaram a
vida. E este juízo humano sobre as coisas pode receber vários nomes: filosofia,
sabedoria, religião, opinião... Mas não deixa de ser simplesmente um juízo.
Conforme Nietzsche afirma em Aurora, aforismo 31, essa idéia de afastar o homem
de uma natureza inocente é proveniente de um orgulho que se opõe a teoria de sua
descendência de animais e instala um grande hiato entre natureza e homem. Mas é
preciso convir que este orgulho tem fundamento num preconceito quanto ao que é o
espírito, e tal preconceito é relativamente novo. Na enorme pré-história da
humanidade o espírito pressupunha-se que o espírito pululava em todas as coisas
desvinculado de moralidade, de sentidos morais. Havia espírito em toda parte e não
se pensava em honrá-lo como privilégio do homem. De maneira que, sendo o
espiritual com todos os impulsos, maldades e inclinações, uma propriedade comum,
vulgar, não se sentia vergonha em descender de animais ou árvores. Nietzsche
chega, inclusive, a declarar no aforismo que as linhagens nobres viam-se honradas
por esta fábula, o que significa dizer que enxergava-se no espírito aquilo que nos une
à natureza, não o que nos separa dela. Porém o que a tradição nos legou foi um
preconceito contrário mediante o qual cavamos um abismo entre homem e natureza
e, conseqüentemente, entre homem e vida.
21
E o que resultou de tudo isto foram as mais diversas maneiras de negar, de
depreciar a vida, não restando a ela valor algum. Uma vida sem o menor valor; à qual
não pode ser atribuído nenhum valor devido a todas as características negativas que
depositaram nela: a vida negativa sobre a qual afixaram simplesmente um enorme
não. Uma vida que não significa nada. E por falar em nada, lembremos da palavra
Nihil. Esta é uma palavra latina que significa nada, coisa nenhuma. Nela reside a
origem da palavra niilismo, que significa aquilo que se baseia no nada, que aprecia o
nada que é a única coisa que vai restar após duas ocorrências na história do
pensamento ocidental: a criação de valores superiores à vida, extra-mundanos, e a
total descrença na qual decaíram estes mesmos valores. Vejamos com mais calma
este processo:
Ao transportar para a natureza uma moralidade negadora da vida, acaba-se
por apregoar uma desvalorização da existência como um todo, tendo em vista que a
verdade, conforme a noção positiva que possuía, não podia estar contida no mundo
sensível, fazendo-se necessária, então, a negação integral do mundo e de seus
atributos: a corporeidade, o caráter perecível e aparente, a falta de fixidez, a
transitoriedade. À sensibilidade, enfim, foram atribuídos valores negativos.
Um mundo de verdades eternas se ergue a partir da necessidade de negação.
O homem se direciona para o nada ao colocar sua existência como meio de alcançar
supostos valores superiores, renega a vida por medo de sua finitude, almeja a
eternidade imutável. Nessa perspectiva, o homem constrói fantasias (sendo ele
próprio uma delas), eleva suas ficções ao mais alto pedestal e concede-lhes o
estatuto de verdade. Vive para essa verdade, mas cadenciando-se com o nada, o
que pode ser caracterizado como a primeira fase do niilismo: o niilismo negativo, ou
seja, o estado no qual instaura-se uma conjuntura de valores metafísicos,
transcendentes, que acabam por anular a consistência da vida terrena, ao buscar no
outro mundo algo valoroso. Isso por si só já é niilismo na medida em que reduz a
vida a nada mediante a negativação de todo o seu conteúdo mundano. No entanto,
não podemos deixar de convir que esses valores supremos, a serviço dos quais o
homem passou a dedicar todas as suas energias, depositando neles sua total
confiança, isto é, abrindo mão da vida que ele tinha pela vida que ele queria, todos
estes valores surgiram em virtude de uma necessidade social; foram forjados sob a
condição de valores sociais com a finalidade de fortalecer e conservar um tipo de
homem. Nesse sentido, eles eram considerados vitais. Receberam diversas
22
nomenclaturas conforme as diferentes disposições de seus criadores que só se
diferenciam no tempo em que surgiam e nas diversas nuances culturais que
possuíam, mas que mantinham uma mesma linha mestra. Considerando esses
valores como “determinações divinas”, “mandamentos de Deus”, “realidades”,
“mundos verdadeiros”, “vidas futuras”, etc., obtinha-se um sentido para a existência:
a vida, com seus paradoxos, não era em vão.
Os valores metafísicos ao mesmo tempo em que negavam a vida, já
consistindo em uma espécie de niilismo, coroavam-na com uma finalidade.
Já pudemos perceber que estamos diante de um niilismo, porém este não é
ainda o que Nietzsche chama de “niilismo suicida”. Por não suportar a ausência de
sentido para o sofrimento da existência, o homem erige um ideal ascético justamente
para lhe fornecer esse sentido. O homem ainda cria um sentido, mesmo que alheio, a
partir de um tipo de interpretação. Destarte, o sofrimento é interpretado:
“A interpretação — não há duvida — trouxe
consigo novo sofrimento, mais profundo,
mais íntimo, mais venenoso e nocivo à
vida: colocou todo sofrimento sob a
perspectiva da culpa... Mas apesar de tudo
— o homem estava salvo, ele possuía um
sentido (...)”
8
A necessidade de um viés interpretativo se deu menos pelo sofrimento em si,
isto é, menos pelo fato de este não poder ser suportado, do que pela ausência de um
sentido para este. O que constituía um fardo insuportável era o “em vão” do sofrer.
Por não ser capaz de justificar a si mesmo, o homem sofria justamente por essa
lacuna. Tal situação é, segundo Nietzsche, uma marca de adoecimento, e o que
caracteriza essa condição de “animal doente” é a carência de sentido da qual ele
sofre.
Identificada a primeira aparição do niilismo, podemos avançar no processo de
sua configuração para entendermos que segundo Nietzsche o niilismo se delineia em
vários sentidos, não se trata simplesmente de acolher ou não um valor supremo, pois
8
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 184.
23
mesmo na primeira hipótese já há o encaminhamento para o nada, haja vista que a
vida nega a si própria em favor da “verdade”, em favor do nada. A mudança de
sentido do niilismo se opera quando não há mais em quê acreditar. Por isso, para
elucidar este momento de transição, Nietzsche faz uma afirmação que viria a ser
uma de suas sentenças mais famosas e paradoxalmente uma das menos
entendidas: a afirmação da morte de Deus. Interessante notar que esta declaração
traz em seu bojo a idéia de supressão do solo no qual germinou a concepção de
Deus: o solo metafísico transcendente, o mundo supra-sensível que o originou. Os
valores criados perderam sua eficácia: é, pois, necessário criar outros, porém isso
não acontece.
A perspectiva do homem como criatura em relação ao criador não se sustenta;
a promessa de um além redentor se esvai. Ocorre então uma negação mais radical
do que a própria negação da vida camuflada pelos valores do além; é a que paira
sobre os escombros do cristianismo. Ao mundo que já não se pode negar, dada a
contundência de sua realidade, não é concedido nenhum valor afirmativo.
Para Nietzsche, a “morte de Deus” marca a derrocada dos valores supremos
aos quais o homem se apegava; o ideal ascético esgota-se e o niilismo passa a
operar com uma postura destrutiva. Os antigos valores supremos são reiteradamente
negados; o niilismo assume esse caráter destrutivo, ao desempenhar ativamente o
seu papel de negação. Esse nível representa a vontade de nada em sua mais alta
potência, o homem deseja o nada. Esse niilismo coloca em questão os valores tidos
como supremos, todavia não apresenta ainda um princípio criador: não se coloca
nada no lugar daquilo que é derrubado. Ao contrário, uma vez ocorrido o niilismo
enquanto desvalorização dos valores supremos, o que surge diante de tal
constatação é o niilismo como desvalorização da vida, como se a vida estivesse
inelutavelmente adstrita a esses valores, ou melhor, como se a vida encontrasse
neles sua consubstanciação. Dessa química resulta o último niilista, o niilista perfeito.
Aquele homem que tem a percepção de que o cristianismo morreu, porém sua vida
ainda permanece sob a égide de uma série de determinações cristãs; seus passos
são regidos por reivindicações cristãs. Com a negação dos valores, ele readquire a
consciência de que a vida não tem sentido, razão pela qual ele conserva sobre si a
sombra de Deus, recôndito em que ele se refugia mudando apenas palavras, termos
ou cargos. Abrigar-se na sombra de Deus após sua morte é uma atitude social, tanto
24
quanto a própria criação dos valores supremos e, como esta, reflete a experiência de
uma carência. Essa experiência é a mais nítida demonstração de que a morte de
Deus ainda não foi realmente finalizada porque, sobretudo, o homem ainda precisa
dele.
Mas o que é importante ressaltar agora, antes de encerrarmos a questão das
fases do niilismo, é que ao estudarmos estes desdobramentos da formação do
niilismo (ou dos niilismos) podemos trazer luz à sentença nietzschiana da morte de
Deus e relacioná-la um pouco mais com a questão da justificativa estética da
existência e o projeto da transvaloração de todos os valores.
Primeiramente, para entendermos porque, segundo Nietzsche, a morte de
Deus implica a desvalorização de todos os valores, devemos, mormente, tomar estes
dois eventos, a morte de Deus e a desvalorização dos valores supremos, como
constituintes de uma relação necessária ou, se preferirmos, tomá-los como uma
relação silogística onde, obviamente, da premissa emerge a conclusão.
Para explicar este processo, Nietzsche começa por afirmar, em um de seus
Fragmentos Póstumos, que seria uma ingenuidade acreditar que é possível a
subsistência da moral quando falta um deus que a sancione, que a legitime. E diz
mais, que algum além é absolutamente necessário, quando se quer conservar
sinceramente a fé na moral.
9
No entanto essa demonstração do fundamento divino
da moral, isto é, a comprovação desta necessidade de algo extra-mundano como
condição sine qua non para sustentar a crença nos valores morais, não é tão
evidente para uma boa fração de filósofos que compõem a tradição. A história da
filosofia nos remete a considerações altamente díspares com relação ao pensamento
de Nietzsche. Todavia nada nos impede de fazer uso de alguns raciocínios extraídos
da própria história da filosofia para elucidar as propostas do pensador alemão.
Tomás de Aquino, por exemplo, não poupa palavras para declarar que é
estritamente necessário haver uma certeza teórica da existência de Deus para que
possa se estabelecer a validação dos valores morais. Isso significa que no tomismo
só podemos falar em “bem” se estivermos referendados pelo “bem supremo”, o que
leva Nietzsche a considerar que dentro desta perspectiva não existe valor algum sem
que haja uma autoridade legisladora que age do exterior, ou seja, os valores são
legitimados por uma instância exógena.
9
Nietzsche, Fragmentos póstumos, KSA, 2[165], voI. 12, p. 147.
25
Desse modo, conforme ensina o Professor Carlos A. R. Moura em seu livro
Nietzsche: civilização e cultura
10
, São Tomás, assinalará que Deus, na qualidade de
expressão máxima da perfeição, é também a Perfeição de todas as perfeições e, por
conseguinte, o Bem de todos os bens, e tudo aquilo que puder ser dito “bom” só o
será por participar da bondade divina, por ser análogo ao “Bom” que existe em Deus.
Tudo aquilo que pode ser visto como bem, enquanto algo a ser desejado, realizado,
alcançado pelo homem, direciona-se teleologicamente ao Bem supremo, vez que
este é o fundamento de todos os bens.
Podemos afirmar que, pelo menos neste ponto, o pensamento de Tomás de
Aquino vai ao encontro do de Nietzsche, tendo em vista que sendo Deus o alicerce
no qual repousa a legitimação de todos os valores superiores, sua morte resulta
necessariamente na pronta desvalorização dos valores. Seus fundamentos
desaparecem porque a certeza da validade dos valores morais depende da certeza
da existência do Bem supremo.
Entretanto, não podemos chegar a conclusões temerárias. Este acordo de
pensamento entre Nietzsche e Tomás de Aquino, no que diz respeito à proposição
de que a certeza da existência de Deus é o sustentáculo dos valores morais, só nos
concede o entendimento de que Nietzsche vê na própria lógica em que se estrutura a
teologia tomasiana a relação necessária entre a morte de Deus e a desvalorização
dos valores. São Tomás, ao contrário, no interior da mesma lógica, vai utilizar a
equação para afirmar a necessidade da existência de Deus, sem a qual não haveria
valores. Porém de qualquer forma seu pensamento corrobora o de Nietzsche.
Se avançarmos um pouco na história da filosofia, notaremos que Kant não fará
uso dessa correlação tomista: provar a existência de Deus para provar o valor da
moral. Escusas pela extremada síntese, a Crítica da razão pura deixa cristalino que
não há possibilidade de qualquer conhecimento teórico no que se refere à existência
de Deus, o que não causa nenhum pudor em Kant ao afirmar, já na Crítica da razão
prática, que estando Deus alijado completamente das raias do conhecimento teórico
pela Crítica da razão pura, ele se mantém como um “postulado” na Crítica da razão
prática, ou seja, a existência de Deus, apesar de não ser “conhecida” deve sempre
ser “suposta” pelo ser humano enquanto agente realizador da lei moral. Kant afirma
que a Lei moral é natural, racional e, por conseguinte, boa e necessária ao
desenvolvimento da humanidade, o que implica, diante da ausência da possibilidade
10
MOURA, Carlos A. R. de. Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 26.
26
de conhecimento, uma postulação de seus fundamentos. Esta postulação é válida
porque a razão, segundo ele, não é só teórica, mas também prática. Duas estradas,
um mesmo caminho.
Chegamos a um ponto em que facilmente se percebe que mesmo afastado da
dimensão do conhecimento teórico, Deus permanece na condição de “ideal”. E, no
que concerne ao modus operandi da cultura humana, o fato de algo não poder ser
objeto de conhecimento não o proíbe de ter significação. De modo que a complexa
teia moral na qual se engendrava toda a significação de Deus, ao perder Deus, não
ficou vazia, pois na significação residia um fortíssimo querer humano,
demasiadamente humano, que acabou por simplesmente realizar uma operação, por
assim dizer, natural, se levarmos em consideração a miopia do homem europeu com
relação à vida: a significação trocou de conteúdo, mas manteve a força sentimental,
o grau de crença, o querer, a vontade, a vontade de verdade.
Guardemos bem esta expressão “vontade de verdade”, pois um pouco mais à
frente ela ficará mais clara. Por enquanto, vamos prosseguir com a análise da
afirmação de Nietzsche quanto à relação necessária entre a morte de Deus e o
descrédito dos valores morais. Para dar um acabamento a esta questão, verificamos
acima que o tomismo faz dessa correlação um argumento para reafirmar os
pressupostos divinos, teológicos. Kant, por sua vez, assegura que a ausência de
segurança quanto à certeza teórica da existência de Deus não implica qualquer
derrocada das Leis morais, consolidando-as pela via racional do ideal, da
significação, da postulação necessária em virtude de uma racionalidade prática.
Portanto a morte de Deus enquanto necessária desvalorização dos valores morais,
que é uma forma de niilismo, ainda não estaria perfeitamente argumentada diante da
tradição, uma vez que o ideal moral persiste. E mesmo que o Deus tradicional
desaparecesse totalmente, isto é, até sob a forma de significação, de ideal, ainda
assim o niilismo não se apresenta como uma conseqüência inevitável. Sartre, por
exemplo, salienta que a existência precede a essência. Existimos antes de o saber.
Portanto o primeiro fato merece precedência, louvor, e deve ser o ponto de partida
para nossas reflexões. Nesta medida o existencialismo de Sartre não confere a Deus,
que estaria (ou não, mas isso não interessa) no campo da essência, importância
alguma para a criação e organização dos valores. Ao revés, Sartre coloca o ponto
inicial das reflexões existencialistas no pressuposto de que “se Deus não existe,
então tudo é permitido”. E ele explicita mais este pensamento quando em O
27
existencialismo é um humanismo assevera que “não encontramos, diante de nós,
valores ou imposições que nos legitimem o comportamento”.
11
Isto é, não há valores
prontos e acabados, determinados por algo extra-mundano, essencial ou o que quer
que seja. Segundo Sartre o homem é responsável pela criação de seus valores, sem
que haja qualquer contribuição transcendental independente do agente humano
12
.
Até aqui tudo está de acordo com aquilo que Nietzsche proclama, porém isso não
significa que o existencialismo seja niilista porque segundo os ditames
existencialistas o homem poderá avaliar moralmente suas ações, baseando suas
escolhas em critérios como certo/errado, verdadeiro/falso
13
. Até porque a simples
morte de Deus não excluiria um julgamento moral das ações humanas fulcrado no
erro ou na verdade, vez que estas são categorias da razão humana. Sartre, inclusive,
termina O ser e o nada, comprometendo-se a realizar um estudo sobre a moral
14
.
Pudemos perceber que, em princípio, de uma ausência de Deus, de um
ateísmo, não se deduziria um niilismo, uma descrença de valores morais. E mais: se
esta tese estiver correta, a relação que Nietzsche estabelece entre a morte de Deus
e o niilismo não teria fundamento. Por isso, precisamos nos deter em alguns pontos
do pensamento de Nietzsche para compreendermos com precisão a coerência de
sua argumentação.
11
SARTRE, J.P. O existencialismo é um humanismo. Editorial Presença, Lisboa: 1964, p. 253.
12
SARTRE, J.P. L'être et le néant, Gallimard, Paris: 1943, p. 674.
13
SARTRE, J.P. O existencialismo é um humanismo, cit., p. 285.
14
SARTRE, J.P. O ser e o nada. 9ª edição, Ed. Vozes, Petrópolis: 2001, p. 765.
28
1.2 Os antecedentes filosóficos do niilismo
1.2.1 Platão: um olhar moral, porém grego.
O universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do universo é que é uma idéia minha.
Alberto Caeiro
Comecemos pelo esclarecimento de que em Nietzsche tanto o Deus cristão
quanto o “verdadeiro mundo” platônico compõem um só enredo de uma mesma
história. Em Crepúsculo dos ídolos, “História de um erro”, o Deus cristão é descrito
como um dos capítulos pertencentes à história do verdadeiro mundo que nasce das
mãos de Platão. Ou seja, o cristianismo vem a ser uma das faces do próprio
pensamento platônico, uma das máscaras das quais se valeu o pensamento
platônico. Por este motivo é que Nietzsche afirma no prólogo de Além do bem e do
mal que o cristianismo é “platonismo para o povo”
15
. Esta identificação entre o
cristianismo, centralizado na figura de seu Deus, sem a qual toda a doutrina desaba,
e o platonismo, concentrado em seu mundo verdadeiro, revela dois momentos de
uma mesma concepção, de uma mesma fundamentação que nos permite inferir que
a morte de Deus, anunciada por Nietzsche, deve ser vista também como uma fase
da morte do platonismo, o que traz em seu bojo toda a motivação necessária à
desvalorização de todos os valores. Isto é, a “morte de Deus” é uma sentença que
traz consigo toda uma gama de componentes culturais muito mais complexos do que
uma simples afirmação anti-religiosa ou anticristã. É uma pequena frase que contém
um tempo muito maior que ela própria, muito mais contundente do que a palavra
“morte” vista como término de uma existência singular e do que a palavra “Deus”
vista como uma doutrina religiosa. Após a fundição do Deus cristão com o
platonismo, várias culturas se unem, muitos valores se desmascaram e vêm à tona
os sustentáculos subjacentes de uma tradição secular que se tornou fonte da
totalidade dos valores que compõem as sociedades até os dias atuais. É exatamente
nesse ponto que devemos procurar neste fim do platonismo a “desvalorização de
todos os valores”.
15
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia.
das Letras, 2003, p. 08.
29
Observemos seis explicações desta idéia, feitas por Nietzsche no já citado
texto “História de um erro” em Crepúsculo dos ídolos, transcritas abaixo, acrescidas
de nossos comentários:
Como o “verdadeiro mundo” acabou por se tornar em fábula
História de um erro
16
1. O verdadeiro mundo, alcançável ao sábio, ao devoto, ao virtuoso – eles vivem
nele, são ele.
(Forma mais antiga da Idéia, relativamente esperta, singela, convincente.
Transcrição da proposição “eu, Platão, sou a verdade”.)
Comentário: O “verdadeiro mundo”, tal qual um sujeito, agora tem um núcleo, um
centro em torno do qual tudo o que gravita é aparência.
2. O verdadeiro mundo, inalcançável por ora, mas prometido ao sábio, ao devoto, ao
virtuoso (“ao pecador que faz penitência”).
(Progresso da Idéia: ela se torna mais refinada, mais cativante, mais
impalpável – ela vira mulher, ela se torna cristã...)
Comentário: Forma sedutora do verdadeiro mundo. Instiga-se no homem a busca por
um caminho à verdade.
3. O verdadeiro mundo, inalcançável, indemonstrável, imprometível, mas já, ao ser
pensado, um consolo, uma obrigação, um imperativo.
(O velho sol ao fundo, mas através de neblina e sképsis: a Idéia tornada
sublime, desbotada, nórdica, königsberguiana)
Comentário: Introdução da idéia de recompensa apesar da obscuridade, que vingará
no cristianismo.
4. O verdadeiro mundo - inalcançável? Em todo caso, inalcançado. E como
inalcançado também desconhecido. Conseqüentemente, também não consolador,
redentor, obrigatório: a que poderia algo desconhecido nos obrigar? . . .
16
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Nietzsche (coleção os pensadores). Tradução e notas de Rubens Rodrigues
Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural. 1978, p. 332.
30
(Cinzenta manhã. Primeiro bocejo da razão. Canta o galo do positivismo.)
Comentário: introdução da idéia de sacrifício pela descoberta da verdade. Razão
instrumental.
5. O "verdadeiro" mundo - uma Idéia que não é útil para mais nada, que não é mais
nem sequer obrigatória - uma Idéia que se tornou inútil, supérflua, conseqüentemente
uma Idéia refutada: expulsemo-la!
(Dia claro; café da manhã; retorno do bon “sens” e da serenidade; rubor de
vergonha em Platão; alarido dos demônios em todos os espíritos livres.)
Comentário: Crepúsculo da insustentável inutilidade dos sistemas cognitivos.
Instauração da idéia da morte como um nada plausível (niilismo). Denúncia de que
no “verdadeiro mundo” se escondem muitas formas de um mesmo decadente Deus
apenas pluralizado e metamorfoseado nas “estéticas”, na “metafísica”, nas “ciências”,
na “moral”, nos “deuses todos”. Depois do mal estar, o regozijo dos filósofos que
empunham o martelo. Nas palavras de Guimarães Rosa: o diabo solto no meio do
redemoinho, após a percepção clara de que criar não é somente possível agora, mas
principalmente necessário.
6. O verdadeiro mundo, nós o expulsamos: que mundo resta? o aparente, talvez?...
Mas não! Com o verdadeiro mundo expulsamos também o aparente!
(Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais longo erro; ponto alto da
humanidade; INCIPIT ZARATHUSTRA.)
Comentário: instauração da realidade única do vir-a-ser; da aparência como única
instância e não como contrário do mundo real. Convocação de Heráclito.
Platão encarna o que Nietzsche vem a chamar de “dogmatismo filosófico”,
atitude que deixará alguns herdeiros entre os quais Kant, que, segundo Nietzsche, é
apenas um “dogmático a mais”. As bases deste dogmatismo são construídas por
Platão, incorporando na filosofia grega a ânsia por um conhecimento alijado do erro.
Segundo Victor Goldschmidt desde “a sua aurora a ciência grega procurou proteger o
conhecimento contra a dispersão, a hesitação e o erro, e procurou assegurar-lhe um
objeto um no seio da multiplicidade das coisas, estável através da mudança, real por
trás de sua aparência”.
17
17
GOLDSCHMIDT, V. A religião de Platão. Ed. Difel, São Paulo: 1963, p. 19.
31
Esta acusação de Goldschmidt sobre a busca do uno, do indivisível, neste
momento do pensamento grego corrobora as conclusões nietzschianas. O pensador
alemão profere um olhar para esse arquétipo da filosofia grega estampado no
pensamento platônico que o permite vislumbrar a exclusão de Heráclito desse tipo de
filosofia ideal: na realidade estável do uno não há lugar para a dança do vir-a-ser. O
vir-a-ser será, então, vinculado ao instável, ao incerto, ao erro, à aparência. Todos os
atributos do vir-a-ser serão produtos da aparência que, segundo os preceitos
platônicos, sai da condição de realidade e adentra o universo do erro. A aparência se
torna um erro. O erro dos sentidos.
O platonismo será, antes de tudo, a identificação do verdadeiro ao estável, do
vir-a-ser à aparência. Ele será a radicalização daquilo que Goldschmidt descreve
como o modelo do “grego”, e que para Nietzsche desenhará o perfil de sua
“decadência”: as formas são o “ser verdadeiro”, elas constituem o “verdadeiro
mundo”. Radicalização e preparação do cristianismo: as formas são incorporais e
invisíveis, logo, efetiva-se a distinção radical entre o “material” e o “espiritual”
18
.
Como as formas são o “verdadeiro ser”, a ordem material é refutada em sua
totalidade, a matéria é despojada de razão e de realidade, realidade que se
concentra inteiramente nas formas invisíveis, que se deixam imitar ou simplesmente
“participar”: o mundo do vir-a-ser, agora na qualidade platônica de mundo sensível,
passa a ser visto como a aparência de uma realidade que com ele não se confunde;
a aparência de uma realidade que está além dele.
Para Platão, o que oferece às formas a qualidade de “reais” é a eternidade, ou
seja, elas são reais porque elas são eternamente o que são, porque cada uma das
formas permanece idêntica a si mesma – porque aquilo que é real, dentro dessa
ótica, precisa excluir o vir-a-ser. Por outro lado, as formas também reduzem o
múltiplo à unidade, a alteridade ao mesmo: há uma infinidade de coisas belas, mas
uma só forma do belo, da qual as coisas belas “participam”. De maneira que todo
esse caminho revela a forte ligação entre o pensamento de Platão e o cristianismo: o
arremate final da estrutura de fundamentação do platonismo (o verdadeiro mundo,
real e único), o seu acabamento, já preparava o primeiro ato da comédia cristã. Se a
forma é “divina, imortal, inteligível”
19
, a multiplicidade das diferentes formas é
18
MOURA, Carlos A. R. de. Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 31.
19
Idem
32
unificada no “Bem”, forma suprema, causa primeira que dá “existência e essência”às
formas inferiores.
20
Desde então, o sábio platônico que se torna o modelo do grego decadente, ao
contrário do “amante de espetáculos”, deve desviar sua investigação da aparência
para a realidade, da mudança para a estabilidade, da multiplicidade para a unidade,
passando do vir-a-ser ao ser. É esse platonismo, compreendido estritamente em
função da doutrina das formas ou idéias, que para Nietzsche alonga-se nas
metamorfoses do “verdadeiro mundo”. E na medida em que Nietzsche explica este
processo de dissimulação ocorrido com o platonismo, vai se tornando mais claro o
alcance da sentença da morte de deus e a relação necessária desta ausência, desta
negatividade consecutiva ao óbito do todo poderoso, com o niilismo e a
transvaloração dos valores.
Na “História de um erro”, o “verdadeiro mundo” prolonga-se no "além" do
cristianismo, nos postulados da razão prática de Kant, no incognoscível do
positivismo, até a sua supressão. O Deus cristão é apenas uma de suas máscaras e
a "morte de Deus" deve ser compreendida, antes de tudo, como o fim do “verdadeiro
mundo” instituído por Platão, uma vez que é ele, o tal mundo verdadeiro, que
acomodará o ser, a verdade, o real, o supremo, o sumo, o Deus e outras tantas
categorias que acabam por consistir em simples sustentáculos de uma realidade, no
pensar de Nietzsche doentia, cujas origens remontam ao platonismo.
- Platonismo
MORTE DE DEUS = fim de - Cristianismo = Verdadeiro
- Categorias da filosofia mundo
moderna
Não é por menos que em vários textos, Nietzsche define sua filosofia a partir
da idéia de uma “inversão do platonismo”.
Compreendamos então que é daqui que se precisa partir para um bom
entendimento da relação entre a morte de Deus e a desvalorização dos valores. Mas
o que significa, exatamente, “inverter” o platonismo? Não significa, de forma alguma,
apenas inverter a hierarquia platônica, pois isso seria apenas uma mudança na
ordem dos fatores; apenas uma mudança de sinal. Enquanto Platão valoriza o supra-
20
Idem
33
sensível; Nietzsche, o sensível; Platão, o real; Nietzsche, a aparência. Se fosse
apenas esse tipo de inversão isso seria muito pouco, pois manteria uma estrutura
que já era platônica.
A “História de um erro” não carrega o termo história por acaso. Ela anuncia o
processo no curso do qual o supra-sensível, promovido por Platão a "verdadeiro
mundo", foi não apenas destituído de seu trono supremo e rebaixado na hierarquia,
mas sim posto no irreal. Segundo Carlos A. R. de Moura, Nietzsche afirma que a
oposição entre o mundo-aparência e o mundo-verdade se reduz à oposição entre o
mundo e nada
21
. Então “inverter” o platonismo não se reduz ao mero ato de inverter a
hierarquia platônica e declarar amor ao mundo sensível. E também não se restringe
a inversão do dualismo ontológico, pois se decapitamos o “verdadeiro mundo”, sobra
o mundo-aparência, e talvez permaneçamos platônicos desgostosos, por não termos
mais o mundo ideal. Não! O texto de Nietzsche, em suas últimas conseqüências,
também descarta essa possibilidade, haja vista que com o fim do mundo supra-
sensível, eliminou-se também o mundo “aparente”, o qual só merece essa tipificação
como contraposição ao mundo “verdadeiro”.
Entretanto, para continuarmos nossa jornada em busca da relação necessária
da morte de Deus com a transvaloração de todos os valores, precisamos, ainda,
identificar o que Nietzsche quer designar com esse “mundo” que restou após o fim do
"verdadeiro mundo", e que não é mais o mundo-aparência de um platônico infeliz.
Para isso vamos retomar um pouco a já citada afirmação nietzschiana de que Platão
é um grande dogmático.
No prólogo de Além do bem e do mal, Platão é censurado por ser o
responsável pela introdução do “dogmatismo” na filosofia. O seu pior erro teria sido
um erro tipicamente dogmático: a invenção do espírito puro e do Bem em si
22
. A
significação que Nietzsche dá a expressão dogmatismo é bastante própria. É um
significado bem diferente daquele atribuído por Kant, por exemplo, que identificava o
dogmatismo ao desconhecimento dos limites da razão. O filósofo dogmático é, para
Nietzsche, aquele que estabelece certo tipo de relação com a verdade. O
dogmatismo é a pretensão à universalidade da verdade, e o seu antípoda, o seu
oposto imediato, será o “filósofo do futuro”.
21
MOURA, Carlos A. R. de. Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 32.
22
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia.
das Letras, 2003, p.07.
34
Este tipo de filósofo pode até ser “amigo da verdade”, porém certamente não
será dogmático, uma vez que “seu orgulho, assim como seu gosto, se insurgirá em
face da idéia de que sua verdade deva ser uma verdade para todos, o que, até aqui,
foi secretamente o desejo e o pensamento reservado de todas as visadas
dogmáticas”.
23
Dessa maneira, podemos perceber que Nietzsche censura Platão não pela
sua duplicação ontológica do mundo, mas sim pelo sentimento, pela vontade que o
conduzia a essa duplicação, o páthos universalista que impulsionava o pensador
grego a buscar verdades válidas para todos e também pelo que isso representa
como negação da vida. Era o dogmatismo, assim interpretado, que levava Platão ao
essencialismo, à obsessão pela rubrica “em si”. Assim, enquanto Platão discorria em
tom definitivo sobre o “Bem em si”, o discurso do filósofo do futuro será muito
diferente; ele dirá que “é preciso desfazer-se desse mau gosto: querer pôr-se de
acordo com o grande número. 'Bem' não significa mais bem na boca do vizinho. E
como haveria um 'bem comum'? A expressão envolve uma contradição: o que pode
ser comum sempre tem pouco valor”.
24
Esse trecho de Além do bem e do mal é precioso para demonstrar qual o
ponto crucial da inversão operada pelo platonismo. Ele reside na certeza de que a
filosofia é capaz de trazer a unanimidade, de estabelecer verdades válidas para
todos. O dogmatismo é isso: a convicção de que um dia as polêmicas vão terminar, e
que enfim a filosofia chegará à “unanimidade”. E se existe a certeza do fim da
polêmica, é porque estamos seguros de que chegaremos a verdades universais,
válidas para todos, já que existem essências às quais a dialética, infalivelmente, nos
conduzirá, momento solene em que, enfim, obteremos a definição do “em si”. O
dogmatismo acaba sendo, sobretudo, uma confiança demasiada, cega, na palavrinha
“razão”, acompanhada da certeza acrítica de que existem “essências” às quais nossa
razão não deixará de nos conduzir, permitindo que possamos diagramar
definitivamente territórios como o “justo”, o “bem”, o “belo”, etc.
Com isso circunscrevemos os elementos principais do antiplatonismo de
Nietzsche que a esta altura dos fatos pode ser identificado com o anticristianismo e o
“antifilosofismo”, este último referindo-me aos “sacerdotes mascarados” da filosofia
23
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia.
das Letras, 2003, p.47.
24
Idem
35
moderna. Percebemos que a acentuada crítica do pensador alemão tem suas raízes
em uma desconfiança em face da razão e da verdade, no sentido clássico da
palavra. Mas o interessante é que o sentido e a presença do niilismo na Europa
podem ser muito bem entendidos ao dirigirmos nossa atenção para esta suspeita
contra a razão e contra a verdade. Nela se encontram latentes os questionamentos
centrais para a transvaloração dos valores: Nietzsche questiona o estatuto da razão,
questionando o estatuto da verdade. E a abrangência desta fina suspeita, que é na
verdade um amplo questionamento, também consiste em um questionamento do
estatuto da moral.
A desconfiança de Nietzsche em face da razão e da verdade não é assunto
apenas de seus últimos textos. Em 1873, em Sobre verdade e mentira no sentido
extra-moral, um escrito que, como ele mesmo confessa em Humano, demasiado
humano, foi produzido sob as fortes impressões causadas pelo advento do niilismo,
já se encontram fortes manifestações no sentido de declarar o intelecto como um
grande derramador de ilusões. No texto, Nietzsche já apontava o “quão lamentável,
quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano
dentro da natureza”.
25
Na verdade, pela conjuntura do pensamento de Nietzsche, a
questão nem é uma ausência de finalidade no intelecto, mas sim a percepção de que
ele possui uma finalidade bem mesquinha, muito menor do que pensamos, muito
mais funcional do que autoritária, muito mais participativa do que autoral. Nietzsche
apresenta o intelecto como “um meio para a conservação do indivíduo”, mas com a
ressalva de que ele só tem essa serventia para os seres “fracos”. Pior ainda, esse
intelecto, reduzido a instrumento de conservação da espécie, está longe de ter
compromissos com a verdade; e o conhecimento é apresentado ali como um
instrumento que só desdobra suas forças mestras “no disfarce”. Essa veemente
desqualificação da compreensão clássica de razão é retomada o tempo todo na
filosofia de Nietzsche e para expressá-la melhor proponho que analisemos mais
detidamente a crítica de Nietzsche com relação ao sujeito, a consciência e à
linguagem, haja vista que é a partir de uma determinada concepção de sujeito que
esses elementos: razão, consciência e linguagem ocupam lugar na estrutura lógica
mediante a qual o europeu se posiciona diante do mundo e da vida.
25
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Nietzsche (coleção os pensadores). Tradução e notas de Rubens Rodrigues
Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural. 1978, p. 45.
36
1.2.1.1 A descentralização do sujeito
Gente é a combinação de todas as forças transformadas em pessoa.
37
Iguaçu
O problema da unidade do sujeito em Nietzsche pode ser tratado de diversos
pontos de vista. O que faremos agora é iniciar as nossas reflexões a respeito da
questão com uma análise de um dos aspectos da relação entre consciência e
subjetividade: a relação entre consciência e linguagem.
Todo o parágrafo 354 de A gaia ciência é dedicado à questão da consciência.
O aforismo se chama do Gênio da Espécie e é importante ressaltar logo de início que
o título não é gratuito; é provocativo. Ao final, poderemos entender bem em que
consiste esta provocação. Vejamos as primeiras linhas do referido aforismo:
“O problema da consciência (ou, mais
precisamente, do tornar-se consciente) só nos
aparece quando começamos a entender em
que medida poderíamos passar sem ela: e
agora a fisiologia e o estudo dos animais nos
colocam neste começo de entendimento
(necessitaram de dois séculos, portanto, para
alcançar a premonitória suspeita de
Leibniz)”.
26
Comecemos por entender a que premonição de Leibniz Nietzsche se refere: o
fundamental na metafísica de Leibniz é que o homem, o ser humano não é só ser
racional, ele não é só racionalidade, mas ele é também apetite. A famosa frase de
Leibniz diz que o ser humano é perceptio, quer dizer, representação; e apetitus, isto
é, vontade, desejo
27
. Então, Nietzsche já começa aqui, provocativamente,
estabelecendo um curto-circuito entre o tema do tornar-se consciente-de-si e o tema
da fisiologia e da zoologia. Quer dizer, uma ligação que é efetivamente uma
provocação. Nietzsche, no fundo, esforça-se por expressar o seguinte: se você
observa a fisiologia e a zoologia verá que o problema da consciência é, na verdade,
um problema simplesmente superficial. Ou seja, que aquilo que define o essencial do
sujeito não é, como pretendia a tradição filosófica, a sua capacidade de tomar-
26
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia. das
Letras, 2004, p. 247.
27
MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomo III, Edições Loyola. São Paulo: 2000, p. 1712.
38
consciência-de-si, mas a consciência é precisamente um fenômeno secundário. O
problema do ter-consciência é precisamente aquilo que se constitui como problema.
Em outras palavras: por que é que nós tomamos consciência de nós mesmos? Em
que medida isto é importante? Tanto mais quanto nós podemos perfeitamente bem
passar sem isso. Então, a fisiologia e a zoologia aqui, na verdade, simplesmente
comprovam aquilo que Leibniz já tinha dito: que a consciência não é o essencial do
sujeito, da subjetividade; mas a consciência é uma ínfima porção da subjetividade.
Você pode ter vida, tanto animal quanto humana, sem que necessariamente o
fenômeno da consciência-de-si tenha que se apresentar. Poderíamos, com efeito,
pensar, sentir, querer, recordar-nos, poderíamos igualmente “agir” em todo o sentido
da palavra e, a despeito disso, não seria preciso que tudo isso nos “entrasse na
consciência”.
“A vida inteira seria possível sem que, por
assim dizer, ela se olhasse no espelho: tal
como, de fato, ainda hoje a parte
preponderante da vida nos ocorre sem esse
espelhamento – também da nossa vida
pensante, sensível e querente, por mais
ofensivo que isto soe para um filósofo mais
velho. Para que então consciência, quando no
essencial é supérflua?”
28
Ao falar da consciência mediante essa idéia da consciência como espelho,
Nietzsche está se referindo à reflexão, à consciência como superfície de reflexão
daquilo que se passa na nossa vida mental, na nossa vida anímica. Então, segundo
ele, toda a vida, tanto mental quanto sensível, como volitiva, etc., seria perfeitamente
possível sem que ela tivesse que refletir no espelho da consciência.
Para responder à pergunta Para que então consciência, quando no essencial
é supérflua? Nietzsche primeiro alerta sobre a extravagância de sua resposta, depois
a expõe dizendo que a sutileza e a força da consciência estão sempre relacionadas
com a capacidade de comunicação de uma pessoa ou de um animal. Então, os
primeiros elementos, isto é, a sutileza da consciência e a força da consciência
28
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia. das
Letras, 2004, p. 248.
39
subordinam-se a uma função comunicativa; estão em relação ou em proporção com
a capacidade de um animal ou de um ser humano. E Nietzsche dá mais um passo,
declarando que a capacidade de comunicação, por sua vez, está em proporção com
a necessidade de comunicação, frisando bem que não devemos depreender daí que
precisamente o individuo mesmo, que é mestre justamente em comunicar e tornar
compreensíveis suas necessidades, também seja aquele que em suas necessidades
mais tivesse de recorrer aos outros.
A equação que Nietzsche monta aqui é entre a capacidade ou entre a sutileza
da consciência e a capacidade de comunicação, por um lado. Por outro, entre a
capacidade de comunicação e a necessidade de comunicação; mas essa
necessidade de comunicação não pensada do ponto de vista do indivíduo singular ou
do homem enquanto indivíduo, mas sim em função de cadeias de gerações, raças
inteiras onde a necessidade, a indigência, coagiram longamente os homens a se
comunicarem, a se entenderem mutuamente com rapidez e finura. Isso acaba por
gerar um excedente dessa força e arte da comunicação, como que uma fortuna que
pouco a pouco se acumulou e agora espera por um herdeiro que a gaste
perdulariamente, que a esbanje.
Então, o plano em que Nietzsche coloca a reflexão não é o plano singular dos
indivíduos, mas é o macro-plano da sucessão das gerações, da cultura, da espécie,
e a relação continua sendo mantida entre a necessidade, a indigência e,
precisamente em função disso, o progresso da comunicação. A comunicação se
destina a comungar: comunicar é tornar-se comum. E a consciência é precisamente
o modo mediante o qual o indivíduo se torna comum. E como a consciência torna
comum o indivíduo? Pela linguagem. Em Nietzsche, devido ao caráter provocante de
suas palavras, o adjetivo comum pode ser interpretado em dois sentidos. Naquele
que se refere a algo que pertence a todos ou a muitos. E naquele que designa algo
medíocre. Nietzsche chama à atenção algo bastante insólito, pelo menos na filosofia
tradicional: que se existe algo de singular, de único, em um indivíduo, esse algo
jamais pode ser comunicado porque ao ser comunicado se torna raso. É nesse
sentido que nesse aforismo de A gaia ciência revela-se a gênese simultânea da
consciência, da linguagem e da sociedade. É isso que significa o Gênio da Espécie.
Esta tese tem um alcance bastante significativo, sobretudo porque ao longo da
tradição cuidou-se com muito cuidado, com muito valor, desse primado da
consciência como fonte, sede, locus da racionalidade; pensar era igual a ser
40
consciente. Outro elemento interessante é que precisamente nesta relação entre a
indigência, a carência, a necessidade e o poder de comunicação, surge uma fortuna.
Esta palavra quer dizer tanto a fortuna no sentido material, quanto o poder no sentido
de faculdade, capacidade. Ou seja, esta capacidade de comunicação é algo com que
o homem se enriquece, e é precisamente esta capacidade de comunicação, que uma
vez acumulada, desenvolvida, é depois, com o progresso da cultura, gasta por
esbanjadores. Segundo Nietzsche, os chamados artistas são esses herdeiros, assim
como os oradores, pregadores, escritores, todos eles pessoas que sempre vêm no
final de uma longa cadeia, “frutos tardios”; na melhor acepção do termo, e, como foi
dito, por natureza esbanjadores.
Mas o mais assustador para um filósofo mais velho e talvez para muitos de
nós, é que a consciência, em geral, só se desenvolveu sob a pressão da
necessidade de comunicação. E esta é mais uma tese iconoclasta porque para toda
a tradição a consciência é aquilo que constitui a espontaneidade do eu, é o núcleo do
eu, por assim dizer. Por conseguinte, aquilo que é absolutamente natural. E
Nietzsche está dizendo aqui que a consciência nuclear não só não é natural como se
desenvolveu em conseqüência de uma espécie de necessidade; que previamente só
entre homem e homem (entre mandante e obediente em particular) ela era
necessária, era útil, e que também somente em proporção ao grau dessa utilidade
ela se desenvolveu. Em suma, a consciência se desenvolveu porque era útil. E se
desenvolveu exatamente em proporção ao seu grau de utilidade. Vale dizer, se nós
não considerarmos o plano da relação entre os homens, se não considerarmos a
capacidade e a possibilidade de comunicação, a consciência não é nenhum dado
natural da nossa existência. Consciência é propriamente apenas uma rede de ligação
entre homem e homem - apenas como tal ela teve de se desenvolver: o homem
ermitão e o animal de rapina não teriam precisado dela. Aqui, começa a aparecer,
portanto, a simultaneidade do tema da consciência com o tema da sociabilidade.
Quer dizer, não fora a premência da vida social, não teria sido necessário o
surgimento e o desenvolvimento da consciência. A consciência se desenvolve,
precisamente, em função do caráter político ou, se quisermos, social das relações
entre os homens. Não é à toa que foi na polis grega que teve origem o primado da
razão alocada no sujeito consciente. Neste sujeito reside, adstrita à consciência, a
linguagem, estabelecendo através de sua evolução um grau cada vez maior de
sociabilidade, de coesão e de autoridade gregária ou, por assim dizer, estatal. Era a
41
palavra que formava, no quadro das cidades, o instrumento da vida política; é ela que
vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum e
possibilitar uma ampla divulgação de conhecimentos anteriormente reservados ou
proibidos. Tomada dos fenícios e transformada por uma mudança mais precisa dos
sonhos gregos, a escrita permitirá uma função de publicidade, uma vez que ela
mesma se tornou, quase com o mesmo direito da língua falada, o bem comum de
todos os cidadãos.
As mais antigas inscrições em grego que conhecíamos demonstram que,
desde o século VIII, não se trata mais de um saber especializado, reservado a
escribas, mas de uma técnica de amplo uso, livremente difundida no público. Ao lado
da recitação mnemônica de textos de Homero ou de Hesíodo - que continua sendo
tradicional -, a escrita constituirá o elemento de base da paidéia grega.
Compreende-se, desse modo, o alcance de uma reivindicação que surge
desde o nascimento da cidade: a redação das leis. Ao escrevê-las, não se faz mais
que lhes assegurar permanência e fixidez. Subtraem-se a autoridade privada dos
basileis, cuja função era “dizer” o direito; tornam-se bem comum, regra geral,
suscetível de ser aplicada a todos da mesma maneira.
No mundo de Hesíodo, anterior ao regime da Cidade, a dike atuava ainda em
dois planos, como dividida entre o céu e a terra: para o pequeno cultivador beócio, a
dike é, neste mundo, uma decisão de fato dependente da arbitrariedade dos reis
“comedores de presentes”; no céu, é uma divindade soberana, mais longínqua e
inacessível. Ao contrário, pela publicidade que lhe confere a escrita, a dike, sem
deixar de aparecer como um valor ideal, poderá encarnar-se num plano totalmente
humano, realizar-se na lei, regra comum a todos, mas superior a todos, norma
racional, sujeita à discussão e modificável por decreto, mas que nem por isso deixa
de exprimir uma ordem concebida como sagrada e altamente respeitável.
O fato de alguns grupos decidirem tornar público o seu saber por meio da
escrita, num cenário eminentemente político, nos revela que a ambição destes
grupos não será fazer conhecer a outros uma descoberta ou opinião pessoais; o que
quererão, depositando sua mensagem, é fazer dela o bem comum da cidade, uma
norma passível, como a lei, de impor-se a todos.
Uma vez divulgada, sua sabedoria toma uma consistência e uma objetividade
novas: ela constitui-se em si mesma como verdade. Não se trata de mais um
segredo religioso, reservado a poucos eleitos, favorecidos por uma graça divina.
42
Certamente, a verdade do sábio, como segredo religioso, é revelação do essencial,
descoberta de uma realidade superior que ultrapassa muito o comum dos homens;
mas entregue a uma linguagem determinada, ela é destacada do círculo fechado das
seitas para ser exposta em plena luz aos olhares da cidade inteira; isso significa
reconhecer que ela é por direito acessível a todos; significa aceitar submetê-la, como
debate político, ao julgamento de todos, com a esperança de que em definitivo será
por todos aceita e reconhecida. Eis a natureza estritamente política do
desenvolvimento da consciência: legitimar os valores de rebanho.
O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, e mesmo movimentos,
nos chegarem à consciência – pelo menos uma parte deles – é o efeito de uma
terrível, de uma longa necessidade, reinando sobre o homem, pois, diz Nietzsche,
“ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de
seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível - e para isso
tudo ele necessitava antes de ‘consciência’; isto é, ‘saber’ o que lhe faltava, ‘saber’
como se sentia, ‘saber’ o que pensava”.
29
Essa passagem do aforismo 354 de A gaia ciência é uma das mais
importantes e reveladoras. Primeiro quanto ao conteúdo, segundo, quanto ao recurso
lingüístico: as aspas são altamente significativas! Podemos reparar que a palavra
“consciência” aparece entre aspas e a palavra “saber” é grafada três vezes entre
aspas. Tudo isso propositadamente por Nietzsche. Senão vejamos:
A consciência que nós temos de nossas ações, de nossos pensamentos, de
nossos estados, não é algo também dado naturalmente, mas é o resultado, é
conseqüência de uma necessidade, de uma carência: a carência de comunicar esses
estados. Então, é porque o homem tem necessidade de comunicar esses estados
que ele precisa ter consciência desses estados ou, no mínimo, de uma parte desses
estados. Por ser o homem o animal mais ameaçado, mais frágil, em última instância,
ele precisava mais de proteção, mais de auxílio, portanto, precisava de comunidade.
Ora, não pode haver comunidade sem comunicação. Portanto, para que ele possa se
comunicar, ele precisa de “consciência”. É interessante que o termo consciência
tenha sido usado por Nietzsche propositadamente no sentido irônico (razão das
aspas); quer dizer, esta consciência de que os filósofos tanto falavam é, na verdade,
esta ferramenta, esse utensílio, de que é preciso lançar mão para se viver em
29
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo Cesar de Souza.São Paulo: Cia. das
Letras, 2004, p. 249.
43
comum. E as aspas prosseguem três vezes sobre a palavra saber. “Saber” ele
mesmo, o que lhe falta, “saber” como se sente, “saber” o que pensa. Ou seja, o uso
reiterado das aspas no saber tem também aqui uma intenção irônica no sentido de
mostrar que aquilo que nós conscientemente sabemos é certamente um falso saber.
É um saber entre aspas, isto é, é um saber parcial, limitado, calibrado na perspectiva
da consciência. Então, aquilo que a gente diz “saber conscientemente” é saber entre
aspas. Vale dizer: o saber consciente não é inteiramente consciente-de-si, daí
porque é preciso usar saber entre aspas. Um saber coletivo. Um saber na
perspectiva do coletivo, do gregário. Não é saber no sentido em que os filósofos
chamam de saber.
A relação da consciência com a linguagem se alumia ao analisarmos mais um
trecho do aforismo:
“Pois, dizendo-o mais uma vez: o ser humano,
como toda criatura viva, pensa continuamente,
mas não o sabe; o pensar que se torna
consciente é apenas a parte menor, a mais
superficial, a pior, digamos: - pois apenas esse
pensar consciente ocorre em palavras, ou
seja, em signos de comunicação, com o que
se revela a origem da própria consciência”.
30
Nesta altura do estudo, todos os argumentos estão lançados, todos os termos
trançados: consciência, sociabilidade e linguagem tendo como pano de fundo a
perspectiva gregária, o que nos permite deduzir que este saber consciente é o saber
necessariamente posto sob a perspectiva comunitária, gregária, por isso, para
Nietzsche, superficial, raso, uma vez que este pensamento consciente é nada
mais nada menos que o pensamento verbal. Em outras palavras, é aquele que se dá
em signos de comunicação, que ocorre em palavras.
Esse processo revela a origem da própria consciência; quer dizer, a origem da
consciência é gregária, é comunitária; e é precisamente por isso que ela é verbal,
lingüística, ou melhor, contemporânea do surgimento da linguagem ou dos signos de
30
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo:Cia. das
Letras, 2004, p. 249.
44
comunicação. Entretanto esta relação não é estática. O prolongamento da
sobrevivência humana, o transcorrer da história, traduz uma conformação recíproca
entre linguagem e consciência. Nas palavras de Nietzsche: “Em suma, o
desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão,
mas apenas do tomar-consciência-de-si da razão) andam lado a lado”.
31
Cabe lembrar que a linguagem está sendo considerada, por Nietzsche, não
somente do ponto de vista da linguagem verbal, mas da comunicação em geral. Ele
acrescenta que o olhar, o toque, o gesto também servem de ponte entre um ser
humano e outro e, igualmente, tudo aquilo que expressa a capacidade de situar fora
de nós nossas impressões. Capacidade esta que cresce na proporção em que
aumenta nossa necessidade de externá-las a outros mediante signos. Por
conseguinte, o tomar-consciência de nossas impressões, a força de poder fixá-las e
colocá-las fora de nós, aumentaram na mesma medida em que cresceu o mister de
transmiti-las a outros através de signos. O homem que constrói signos é,
entrementes, aquele homem cada vez mais agudamente consciente de si mesmo. E
a consideração crucial aqui é que somente como animal social o homem aprendeu a
tomar consciência de si mesmo. E isso ele ainda faz, cada vez mais.
Nietzsche prossegue em sua argumentação reforçando um ponto central da
questão, qual seja, a consciência não é um dado da natureza, ela não é a natureza
mesma daquilo que existe de singular no individuo. Ele entende que a consciência é,
antes de tudo, parte daquilo que no homem é, como já vimos, natureza comunitária e
gregária. Em conseqüência disso, sua funcionalidade se apresenta apenas em
ligação com a utilidade comunitária e gregária na qual ela sutilmente se desenvolveu.
O corolário disso é que, surpreendentemente, cada um de nós, com toda a vontade
que tenha de entender a si próprio da maneira mais individual possível, de “conhecer
a si mesmo”, sempre traz à consciência justamente o que não possui de individual, o
que em nós é “médio”. De modo que nosso próprio pensamento é continuamente
suplantado, digamos, pelo caráter da consciência, pelo “gênio da espécie” que nela
domina. Nosso pensamento mesmo é constantemente como que majorizado e
retraduzido para a perspectiva do rebanho.
32
31
Idem
32
Cf. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo Cesar de Souza.São Paulo: Cia. das
Letras, 2004, § 354.
45
1.2.1.2 A inconsciência da consciência e a razão do corpo: a grande razão.
Dizes-me: tu és mais alguma cousa que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm idéias sobre o mundo?
Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.
Se sou mais que uma pedra ou uma planta?
Não sei. Sou diferente.
Não sei o que é mais ou menos.
Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser. Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.
Alberto Caeiro
Já podemos imaginar porque esse “conhecer a si mesmo” aqui apareceu
também entre aspas: é o famoso dito socrático que é a origem da filosofia:
“conhece-te a ti mesmo”. Ora, mas conhecer-se a si mesmo é a maior mentira
possível, porque conhecer-se a si mesmo é a melhor maneira de ignorar-se tão
completamente quanto possível. Porque conhecer-se a si mesmo significa retraduzir-
se inteiramente na perspectiva do rebanho, do comum, por conseguinte, do não
próprio, do não pessoal, do não singular. Significa simplesmente o esquecimento do
individual.
Mas precisamos ter noção do que vem a ser uma vivência do singular, do
individual; como é que ela se expressa ou pode se expressar. Uma das suas formas
é, exatamente, uma forma negativa que consiste na denúncia das falsas formas de
auto-conhecimento. Como, por exemplo, esse famoso “conhece-te a ti mesmo”.
Como se você pudesse ter acesso ao si-mesmo via consciência. Como se a
consciência não fosse uma espécie de epifenômeno ou fenômeno de superfície
desse si-mesmo. Para mudar de perspectiva faz-se mister considerar o corpo. Aí sim,
46
para Nietzsche, temos um ponto de partida, que não é mais a consciência. É esta a
grande razão anunciada em Assim falou Zaratustra.
As possibilidades da grande razão devem ser pensadas para a superação do
gênio da espécie e para a transvaloração de todos os valores. Porém, o
entendimento desta suplantação carece de mais algumas considerações sobre esse
caráter da consciência no qual o gênio da espécie se constitui. Já conviemos que ele
seja visto aqui como um tipo de metáfora da natureza simplesmente comunicativa e
gregária da linguagem e da consciência que se funda nessa linguagem; tanto a
consciência quanto a linguagem são vistas a partir da mesma ótica, isto é,
consciência e linguagem são instrumentos de comunicação. Por conseguinte a
gênese simultânea da consciência e da linguagem que torna possível o
desenvolvimento e o refinamento de ambas, essa simultaneidade não retira delas o
seu papel simplesmente instrumental. Ou seja, a sua existência tem em vista a
possibilidade de tomar-consciência dos seus estados, das suas necessidades, e a
linguagem possibilita a comunicação cuja conseqüência é a cessação desse estado
geral de carência, de falta. Vimos também que a consciência evolui tanto no
indivíduo como na espécie. Porém não vimos nada que possa um dia retirar este
caráter comunicativo e gregário da consciência. O que é possível e o que é
efetivamente realizado é uma espécie assim de sofisticação tão extrema da
consciência, e mesmo da linguagem, que ela é capaz, então, a partir dessa extrema
complexificação, e ao mesmo tempo desse extremo movimento de aperfeiçoamento
da consciência e da linguagem, de gerar uma espécie de transformação dessa
indigência no seu contrário. Em suma, a consciência se torna tão desenvolvida e a
linguagem tão enriquecida, que ela dialeticamente se converte no seu outro, quer
dizer, de indigência, ela se torna riqueza excessiva e, portanto, dissipadora. É
precisamente aquilo que vai acontecer quando a linguagem já é suficientemente
rarefeita, sublimada, que ela perde exatamente a sua função instrumental meramente
representativa. É quando, então, a linguagem deixa de servir simplesmente para
comunicação destes estados comuns a todos, dessas vivências comuns a todos, e
passa a ser uma tentativa de expressão daquilo que é absolutamente singular e
inefável. Quando é possível fazer o uso poético, artístico da linguagem e igualmente
da consciência. Quando a manifestação das singularidades, em vez de comunicativa
sob a perspectiva gregária, passa a ser expressiva sob a perspectiva estética em que
47
o desinteresse comunicativo do singular ocupa o lugar do interesse comunicativo do
coletivo.
O que marca o ponto de partida de todo esse trajeto, digamos, revolucionário,
é uma espécie de retorno reflexivo contra si mesmo tanto da linguagem quanto da
consciência. Ou seja, a consciência faz a crítica da sua própria origem. E é isso que
marca a posição extremamente avançada de Nietzsche em relação com a tradição
do iluminismo. Vale dizer, como a crítica nietzschiana da ideologia, que é
necessariamente uma variante da sua crítica da consciência, ela é praticamente
única enquanto crítica à tradição iluminista, na medida em que, para ela, este
primado da consciência é simplesmente uma das figuras da ilusão. A verdadeira
natureza da crítica da consciência, em Nietzsche, é que toda e qualquer crítica da
ideologia, para ser conseqüente consigo mesma, tem que partir do dado de que a
consciência não é nem potencialmente onisciente, nem potencialmente onipotente. E
mais ainda, de que a ilusão da onipotência e da onisciência da consciência é um
perigo, precisamente porque é, como ilusão, inconsciente de si mesma. Ou seja, a
crítica nietzschiana da consciência desemboca na denúncia do caráter
necessariamente superficial da consciência. Para Nietzsche, não há outra saída fora
da auto-reflexão da consciência, isto é, a auto-reflexão da consciência é infinita. Só
que ela jamais pode chegar à transparência absoluta. Ela pode até buscar esse
movimento, mas é inatingível e é simplesmente pensado como uma das figuras da
ilusão. Porque a consciência necessariamente repousa sobre uma espécie de sem
fundo, de abismo, que ela não pode percorrer inteiramente. Por isso o ponto de
partida nietzschiano é exatamente aquele que se coloca em estrita rejeição e, ao
mesmo tempo, em estrita inversão do cartesianismo e do kantismo. Em resumo, é a
crítica da filosofia da consciência, lá onde essa filosofia da consciência chega ao seu
ponto máximo de aprofundamento. Então, a proposta nietzschiana vai ser uma
inversão do cogito kantiano e uma inversão do cogito cartesiano. Daí o ponto de
partida não ser mais a consciência, como para todo o iluminismo, mas justamente o
corpo.
E tomar o corpo como ponto de partida pressupõe uma outra concepção de
subjetividade. Suscita-nos uma concepção de subjetividade que não se funda mais
na unidade da consciência, seja ela consciência transcendental a modo kantiano,
seja ela a consciência transparente para si mesma, a modo cartesiano. Para estes
dois, o uso da palavra consciência está essencialmente vinculado a uma forma de
48
“raciocínio”. A consciência, em Nietzsche, adstrita ao raciocínio constitui a pequena
razão, porém quando se trata da grande razão, o corpo aparece como o grande
pensador. E aí há algo mais do que “saber”. A consciência é parte da percepção de
outra dimensão da vida. E daí a consciência, em nível da situação, do rebanho, do
gregário, é o começo de um processo, que depois precisa chegar a um ponto em que
é necessário o sacrifício dessa própria consciência, em função dessa outra
dimensão. A consciência vai ter que fazer precisamente isso: ela se auto-sacrifica.
A idéia central do iluminismo, nos seus diferentes matizes, que é exatamente a
de que a consciência é o lugar da verdade ou o lugar do absoluto, da revelação do
absoluto, e que, por conseguinte, todo e qualquer tipo de salvação, todo e qualquer
tipo de esclarecimento ou de ilustração, toda felicidade do homem, depende desse
processo de esclarecimento, de ilustração, que se funda na consciência; a crença e a
fé, inerentes a todas as formas de iluminismo, de que exatamente em virtude dos
progressos da consciência e da ilustração, vai ser possível construir uma espécie de
reinado da felicidade sobre a terra, ou seja, o estabelecimento das relações do
homem com a natureza e do homem consigo mesmo, fundadas em critérios pura e
simplesmente racionais; tudo isso é que vai ser completamente denunciado como
ilusão, precisamente a partir dessa crítica da consciência. Nossas ações são, no
fundo, todas elas, pessoais de uma maneira incomparável, únicas, ilimitadamente
individuais, sem dúvida nenhuma; mas, tão logo nós as traduzimos na consciência,
elas não parecem mais sê-lo porque cada uma das nossas ações só é
absolutamente singular na medida em que ela escapa a este plano gregário da
consciência. Se ela é traduzida para este plano gregário da consciência, ela já é
posta sob a perspectiva daquilo que é comum, por isso ela já não é mais única,
singular, pessoal. Isto é propriamente o fenomenalismo e o perspectivismo, assim
como Nietzsche os apresenta: a natureza da consciência animal acarreta que o
mundo, de que podemos tomar consciência, é apenas um mundo de superfícies e de
signos, um mundo generalizado, vulgarizado – que tudo o que se torna consciente
justamente com isso se torna raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo, marca
de rebanho, que, como todo tornar-consciente, está associado a uma grande e
radical corrupção, falsificação, superficialização e generalização.
Essa é uma das mais radicais formulações da crítica nietzschiana à crença
iluminista de que toda e qualquer forma de progresso, de acesso à verdade, passa
necessariamente pela clarificação ou iluminação da consciência.
49
Podemos dizer, em síntese, que é até bem possível, e até muito provável, em
termos nietzschianos, que os progressos da consciência sejam passos decisivos em
direção à paz e à felicidade, mas simplesmente à paz e à felicidade do rebanho.
Então, certo tipo de paz e de felicidade, que Nietzsche denomina muito
provocativamente, de paz e felicidade “à inglesa”, conforme explica o Professor
Oswaldo Giacóia Júnior, isto é, felicidade entendida como bem estar, conforto,
ausência de riscos, de perigos, de extremos; a felicidade simplesmente reduzida à
perspectiva do bem estar. Então, não somente não se deve esperar da ilusão de
onipotência da consciência alguma espécie de acesso efetivo a verdade, mas sim
corrupção, falsificação, generalização.
O que Nietzsche está fazendo aqui é, repetimos, uma crítica da consciência,
uma denúncia do caráter gregário da consciência. Mas de onde se faz essa crítica?
Evidentemente a partir da própria consciência filosófica. É, de certa maneira,
antitético o próprio movimento; porque, na verdade, aqui se trata de uma autocrítica
da consciência filosófica. É uma espécie de auto-reflexão da consciência acerca da
sua própria natureza. Ou seja, inequivocamente uma crítica radical da consciência e
da linguagem só pode ser feita a partir do ponto extremo a que chegou o
desenvolvimento da consciência e da linguagem, o que equivale a dizer que somente
a partir do momento do seu extremo amadurecimento, da sua extrema sofisticação, é
que a consciência é capaz de se tomar-a-si-mesma como objeto. É precisamente ao
longo ou ao termo de um processo histórico de profundo refinamento e sofisticação
que a consciência se torna autoconsciente. Isso não quer dizer que essa consciência
que ela toma das suas próprias limitações seja uma espécie de um sucedâneo
nietzschiano da onipotência da antiga consciência. Não significa que a consciência
se torna tão poderosa, que ela toma consciência das suas próprias limitações. Ela
toma consciência das suas limitações, mas tão radicalmente, que ela sabe que a
própria consciência que ela toma das suas limitações, também não é consciência de
todas as suas limitações, nem pode ser. É a experiência do sem fundo. A
consciência está sempre dançando sobre a sua própria cratera. Ou, como diria o
próprio Nietzsche, ela está sempre sonhando no dorso de um tigre. Quer dizer, ela
sempre é a superfície, é a fachada de uma espécie de abismo que ela encobre, cuja
profundidade não consegue atingir, jamais conseguirá.
O que Nietzsche está dizendo aqui não é que a consciência não deve ser
alargada, pelo contrário, ela deve ser alargada. Só que ela nunca escapa de um
50
fundo de ignorância que é constitutivo dela. Então, essa ilusão de que é possível à
consciência tornar-se inteiramente transparente para si mesma, isso é exatamente
uma ilusão herdada do iluminismo. Ela não é onisciente, nem pode ser porque há
certo grau de ignorância, que é absolutamente necessário para que a consciência
possa ser consciente, ou seja, para que ela possa executar exatamente as suas
funções. E isso é fundamental para a perspectiva da grande razão, tendo em vista
que para que a unidade subjetiva, pensada segundo o modelo do corpo, possa existir
é necessário que a consciência ignore determinadas perturbações dos demais
órgãos que compõem essa mesma unidade complexa, isto é, para que a consciência
possa manter e fazer funcionar adequadamente a sua função diretiva é preciso certa
ignorância; com a completa transparência ou com a consciência absolutamente
onisciente muito provavelmente não haveria possibilidade de que pudesse exercer
adequadamente a sua função. Essa ignorância de base é não ter o controle total, é
admitir que tem partes que escapam. A simplificação, o falseamento, a retórica
passam a compor uma perspectiva, de maneira que se obtém também uma
apreciação para o não-saber. A consciência na função de comandante e os outros
elementos funcionais, as outras partes do corpo, adquirem igual valor: comandante e
subalternos passam a fazer parte da mesma espécie, todos dotados de
sensibilidade, volição e pensamento.
Nietzsche trata esta relação com as expressões figuradas de governante e
governado no referido aforismo de A gaia ciência. E o mais relevante nessa metáfora
é que ele está, no fundo, se referindo à famosa oposição entre impulsos, afeto,
paixões, racionalidade, inteligência, consciência, ou seja, ele está se referindo à
diferença, à diversidade da vida psíquica. Porém, quando ele está dizendo que o
mais importante é que o comandante, - isto é, a consciência, a razão - e seus
subalternos, - isto é, os impulsos, os afetos - são de idêntica espécie
33
. Ele está
dizendo que aquilo que nós costumeiramente identificamos com o racional é também
impulsivo, sensitivo, volitivo, ou seja, que na verdade a racionalidade é apenas uma
transformação de um material pulsional, e que o próprio material pulsional, afetivo,
etc. é também pensante. Ou seja, existe um componente de pensamento nos
impulsos assim como existe um componente pulsional no pensamento. É
precisamente isso que o corpo expressa, ou melhor, dito de outra maneira, é
33
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia.
das Letras, 2003, p. 24.
51
exatamente isso que o corpo constitui como unidade. A unidade desta acomodação,
desse arranjo, desse ajustamento entre os diferentes componentes da vida, tanto da
vida somática, quanto da vida psíquica. O corpo é um sistema de energia que
comporta uma tensão permanente em diferentes centros de força. Ou seja, você não
pode ter a idéia de uma unidade simples se você parte da matriz ou do ponto de
partida do corpo, porque o que Nietzsche está dizendo é que o corpo fornece uma
indicação do tipo de sujeito que nós somos, na medida em que esse sujeito que o
corpo é constituído a partir de múltiplos centros de força, de maneira que a parte
racional é acrescida do elemento pulsional e o elemento pulsional é investido de
racionalidade. Ambos, juntamente com outros impulsos, todos equivalentes,
compõem um organismo que somente sob esta perspectiva múltipla pode ser
considerado uma unidade: uma unidade orgânica. Isso traz algumas implicações
relevantes para a questão da subjetividade no que concerne à liberdade e a vontade.
Segundo Nietzsche, o que nós vemos num ato volitivo é esta multiplicidade, uma
multiplicidade que diferencia tanto sentimentos, quanto pensamento, quanto afetos
em geral; mas existe um afeto, entre essa multiplicidade toda, ou alguns afetos que
são aqueles que comandam, isto é, aqueles que, na posição da relação entre as
diversas forças, implicadas num ato volitivo, são aqueles que exercem a posição do
mais forte. Então, o mais aparentemente elementar ato volitivo já porta nele toda
essa multiplicidade. E este equilíbrio do afeto que comanda é sempre instável, é
sempre mutável, porque este afeto que, num determinado momento é posto como
meta, como alvo desse afeto, não é desde sempre e nem para sempre fixado como
superior; é numa determinada correlação e aparece como um alvo principal, mas
que, em instantes seguintes, justamente em função deste jogo de tensão entre
aquele que domina e aquele que é dominado, pode ocorrer uma subversão. Em cada
ato volitivo existe uma multiplicidade de instâncias psíquicas, que estão em
permanente disputa pelo comando. Então, não há uma espécie de dimensão
psíquica intelectual, que seria inteiramente objetiva e neutra em relação ao pólo do
desejo, do apetite, da paixão, do impulso, da inclinação. Não se crê mais naquele
simplório conflito tradicional entre sensibilidade e intelecto. O que há é uma série
muito grande de instâncias psicológicas que estão numa relação de oposição entre si
e de combate pela supremacia, pela predominância; complexidade esta de que cada
elemento representa certo ponto de vista. Então, qualquer uma dessas instâncias e
qualquer um dos seus impulsos são igualmente interessados, o que significa dizer
52
que não há, de um lado, um intelecto puro que seria neutro e imparcial com relação
aos seus objetos e, de outro, um desejo, uma paixão, um interesse completamente
cego e unicamente fixado naquilo que representa a sua unilateralidade. Ao contrário,
todos os pontos são igualmente interessados e todos os pontos representam
precisamente um, uma perspectiva, certo ângulo de visão. Então, nesse sentido,
aquele afeto que comanda é da mesma natureza do que os outros; e o fato dele ter
obtido o comando depende exatamente da intensidade da sua energia. Ele não é
fundamentalmente diferente dos outros; não há, de um lado, por exemplo, a pura
racionalidade e, de outro, as emoções ou o plano do desejo. Para lembrar Deleuze:
tudo se passa em um cenário onde os elementos são da mesma natureza, todos eles
são “desejantes”. Caso seja o componente intelectual quem obtém, num determinado
momento, o predomínio, esse predomínio é devido unicamente à sua qualidade de
ser, nesse momento, o mais forte e mais nada. Quer dizer, é sempre essa idéia de
superioridade em relação àquele que obedece que caracteriza a liberdade da
vontade. A liberdade da vontade significa aqui, em última instância, de novo um
afeto, o sentimento de ser livre, sentimento esse que acompanha precisamente esse
estado em que uma instância comanda e outras obedecem ou determinados
arranjos, organizações, configurações de relação de poder, entre as diferentes
instâncias psíquicas envolvidas no ato da vontade, segundo o que algumas se
subordinam a uma ou a algumas, de tal maneira que se torna possível fixar uma
meta exclusiva; ou seja: aquele alvo que se põe como alvo dominante, como alvo
exclusivo. Aquela valoração de que agora se tem necessidade, e não de outra coisa.
Noutras palavras: o predomínio de certa perspectiva. Estas são as fundamentações
do perspectivismo nietzschiano.
Obviamente que o predomínio de certa perspectiva significa o predomínio de
uma perspectiva de valor, de valoração; e de valoração determinada a partir da
instância também psiquicamente dominante. Então, quando uma volição se completa
quando algo é, enfim, querido e posto como sendo o mais importante a ser
alcançado, denotando que o ponto de vista valorativo da instância psíquica para a
qual aquele objeto se revela como fundamental é o ponto de vista valorativo
triunfante, isto é, o mais forte. Por conseguinte, todos os outros elementos, todas as
outras instâncias, têm que obedecer ao comando daquele afeto. Querer significa
precisamente querer algo em especial, significa precisamente a expressão do
domínio de uma determinada instância psíquica atualmente dominante. Então,
53
quando se quer alguma coisa, se conquista com isso a certeza de que, nessa
multiplicidade inesgotável que nós somos, uma determina configuração de relação de
forças se estabeleceu, se consolidou, a tal ponto que se tornou possível, então, o
predomínio e a determinação de uma certa perspectiva de valor; e com isso, de um
certo objeto do desejo. Sempre que algo se define como objeto da volição,
necessariamente vários outros impulsos se apresentam concomitantemente como
dominados. Portanto, a relação com o impulso dominante se estabelece de várias
maneiras, como simples oposição ou como cumplicidade. De tal forma que, nesse
momento, definiu-se algo como efetivamente desejado, querido, o que significa dizer
que, com inteira necessidade, há uma infinidade de outros objetos, que foram
preteridos em função da determinação deste ato de volição. O que mostra, por
conseguinte, que todo ato de volição, que todo objeto do desejo, é necessariamente
precário, porque ele representa o triunfo de um ponto de vista, isto é, de uma
perspectiva necessariamente parcial que equivale ao triunfo de uma perspectiva cujo
domínio se deve a uma complexa configuração de forças, portanto, a um jogo de
pactos, alianças, resistências e oposições, ressaltando-se que é frágil o equilíbrio que
existe em cada volição. E é precisamente por isso que em cada volição não há
apenas a unilateralidade de uma direção sozinha, autárquica, mas a unilateralidade
de uma direção que é na verdade um ponto de vista valorativo, que se faz justamente
a partir de uma imensa rede de resistências e oposições. Daí toda a ambivalência,
ambigüidade do querer. Uma direção posterga, mas não anula o seu oposto. Como
em toda relação de dominação persiste a tensão entre o dominante e o dominado.
Como neste caso se trata de ordens complexas, de uma multiplicidade de diversas
ordens, que vai desde o sentir até o pensar, então a todo momento em que se
estabelece uma certa hierarquia e que, portanto, se define algo como objeto do
querer, necessariamente, essa definição supõe a acomodação, de alguma forma,
dessa multiplicidade, sob a forma dos pactos de cumplicidade, das alianças, das
satisfações parciais; portanto, ao buscarmos satisfazer um desejo dominante, com
toda certeza, há satisfações parciais de outros desejos que não estão claramente
manifestados aqui. Mas há resistências também. Há resistência precisamente
daquilo que deve obedecer. Ou seja, daquilo que não pode se expressar plenamente,
não pode ainda alcançar a sua expressão ao nível do afeto dominante.
34
34
Cf. A gaia ciência. 11
54
Com efeito, o que Nietzsche está dizendo é que, para poder explicar o que
significa a vontade, não podemos partir de uma entidade simples; que a vontade
talvez encontre o seu espelhamento mais claro justamente no ato político. Que
aquele que quer, ao querer tem de estabelecer o mesmo tipo de relações de
cumplicidade, aliança e oposição, que se estabelece na determinação da vontade
política de uma comunidade. Isso implica dizer que a alma que tradicionalmente
sempre se pensou como uma entidade simples, é, na verdade, mais bem expressa
se você a pensa sob o ponto de vista - usando uma metáfora -, das relações
políticas.
Observemos bem que Nietzsche não está legitimando esta ou aquela estrutura
de poder com esse pensamento. O que ele está dizendo é que não existe nada que
não seja relação de poder. Não são determinadas estruturas que se consolidam
desta ou daquela maneira; é que a relação de poder é a relação mais fundamental
com a qual você pode esbarrar, mesmo no nível das instâncias psíquicas, mesmo no
nível daquilo que você pode chamar de psiquismo ou eu; eu, na verdade, é
fundamentalmente um nós, e principalmente um nós que se estabelece a partir de
relações de força e dominação. E não somente o eu, pensado como sujeito, mas
cada ato específico de cada uma das suas faculdades. Ou seja: sem relação de
poder não se determina absolutamente nada, em qualquer uma das nossas
dimensões psíquicas. O último elemento ao qual você pode chegar, o último dado de
realidade, são relações de dominação, são relações de poder. Isso que você
observa, portanto, no plano macro-político da relação entre os homens, você observa
também no plano microscópico da sua própria individualidade.
Agora o fundamental, para Nietzsche, é renunciar de vez essa idéia de uma
unidade substancial, como se sujeito ou subjetividade fosse algo simples e pudesse
se identificar, por exemplo, com a consciência. Nietzsche anuncia com fervor que a
subjetividade e qualquer uma das suas manifestações são complexas e não somente
o pensamento é complexo; a vontade é igualmente complexa; e não encontramos
simplicidade em nenhuma instância da psique. Ao contrário, o que você encontra é,
em cada manifestação de qualquer dimensão da subjetividade, a pluralidade das
relações de poder. Esta idéia é bastante nova, considerando que os filósofos
modernos admitem só a complexidade do pensamento; não a do sujeito. Nietzsche
afirma que os filósofos são, na verdade, uns míopes, eles tomam um preconceito
popular e o consagram teoricamente. Descartes consagrou, metafisicamente, o
55
preconceito popular da unidade do eu como substância pensante. Schopenhauer
consagrou o preconceito popular da unidade do eu como vontade. Dos dois lados a
mesma cegueira, o mesmo feitiço da categoria de unidade, que ele está justamente
aqui se encarregando de desfazer. Quer dizer, a unidade gera esse feitiço, essa
sedução do simples, que a crítica nietzschiana se encarrega de dissipar.
Nós mesmos, no interior de cada ato volitivo, exercemos essa função
paradoxal de sermos tanto os que mandam como os que obedecem. Agora vem a
seguinte questão: então quem é esse nós? Percebemos que o eu pensado como
algo simples, como a consciência ou o núcleo da personalidade, simplesmente
desapareceu. Nós somos os afetos que comandam, mas nós somos também os
afetos que obedecem; nós somos essa multiplicidade em permanente oposição, em
permanente tensão. E, por conseguinte, quando dizemos “nós”, nós nos
identificamos com um ou alguns partidos e não com outros. E quando nós dizemos
que a nossa vontade é livre é porque nós nos identificamos com o partido que
governa e não com o governado, isto é, nós nos identificamos com o dominante. E é
por isso que o afeto do domínio é nosso. Quer dizer, nós assimilamos como nossa
identidade precisamente o afeto que predomina e chamamos de livre-arbítrio; temos
a sensação de livre arbítrio.
Nós somos aquele dominante, mas igualmente o dominado. E, sobretudo, num
jogo de alternância entre dominante e dominado que é perpétuo. Isso significa que
nós não somos permanentemente iguais a nós mesmos. Porque aquilo com que nós
nos identificamos hoje pode não ser mais aquilo com que nos identificaremos
amanhã. Logo, a idéia de uma subsistência do eu, de um eu invariável, desapareceu.
Ou seja: você tem a consciência como identidade do eu, mas uma identidade
puramente ilusória, porque a consciência não é senão a percepção dos estados
dominantes. E necessariamente a ignorância desta multiplicidade de dominados, que
são justamente a base da organização.
Por outro lado, não podemos perder de vista que aquilo a que a consciência
tem acesso é limitado porque a consciência é precisamente o afeto dominante. Logo
ela é ciente, mas apenas no seu próprio ponto de vista perspectivo, sobre o que ela
comanda. Mas ela é também inconsciente quanto aos demais, ela não sabe das
condições sobre as quais repousa o seu domínio, isto é, do conjunto, do complexo
jogo das alianças e de resistências que tornam possível a expressão do domínio da
consciência, ou seja: que tornam possível a identificação entre o eu e a consciência.
56
Portanto, este eu que a consciência diz que "eu sou", é o eu do ponto de vista da
consciência. Mas ela exclui necessariamente de si tudo aquilo ao qual ela não tem
acesso. Este outro eu que é infinitamente maior do que o eu consciente.
A necessidade de elevar a consciência acima dela mesma, segundo
Nietzsche, nasce com Platão e nos persegue até hoje, constituindo a fonte dessa
corrente que os modernos vão chamar de racionalismo. Desde Platão, a razão é
empossada em seu trono para lá permanecer incólume. Porém, ao lermos Nietzsche
notamos que a razão não é tão independente quanto parece. Por tudo o que
estudamos até agora, podemos concluir que a investida genealógica feita por
Nietzsche nos confere algumas elucidações a respeito do processo de
supervalorização da razão. Ele explica que, em sua ascensão, a razão, ao ser
investigada “à marteladas”, aparece de mãos dadas com Deus. Nietzsche sugere
que a confiança na razão permanece, até na filosofia moderna tributária, da crença
em um Deus veraz. É assim, por exemplo, quando ele afirma que a suposição de que
“a razão humana está justificada é a suposição de um caráter honrado e fiel, a
conseqüência da fé na veracidade divina, da idéia de um Deus criador de todas as
coisas”.
35
Para observarmos bem a evolução desse processo de origem platônica
devemos permanecer atentos à seguinte consideração: a vontade voltada para a
verdade encaixa-se na perspectiva niilista: “É preciso reconhecer então que a moral
substituiu a religião como dogma e que a ciência tende cada vez mais substituir a
moral”.
36
O conhecimento surge como dogma opositor da vida, configurando-se como
mais uma forte crença sem, no entanto, sustentar a existência.
O essencial está, como vimos acima, menos na desvalorização dos valores e
mais naquilo que ela acarreta, o niilismo enquanto desvalorização da vida. E isso
porque, profundamente, Nietzsche se pensa como quem nos propõe uma “filosofia
da existência”, não uma filosofia do conhecimento ou uma filosofia da ação. Donde o
sumo ridículo desta espécie de escroquerie intelectual que procura extorquir, de seus
textos, uma “teoria do conhecimento” ou uma doutrina da “práxis”. A tarefa da
filosofia é recuperar um certo modo de situar-se diante da existência: enquanto a
décadence se resume em um não dirigido à vida, para Nietzsche a sua filosofia
35
Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[132], KSA, vaI. 12, p. 133.
36
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976, p 80.
57
“quer, em vez disso, atravessar até ao inverso - até a um dionisíaco dizer-sim ao
mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção”
37
.
Os homens criadores, legisladores e senhores de si não têm vez ainda. Esses
homens verdadeiramente livres, nos quais a necessidade de artigos extremados de
fé é nula, são denominados por Nietzsche: espíritos livres. A aceitação do mundo
sem sentido requer um espírito forte, acima de tudo criador de novos valores. Ao
perpetuar uma verdade absoluta, suprime-se o aspecto criador, aduzindo então certa
finalidade ao existir, nesse ponto o teleológico ganha terreno. A busca por um sentido
verdadeiro e final do mundo peca duplamente: por inserir indevidamente sentidos
espúrios na vida, e por inibir o aparecimento do modo de ser trágico, ou seja, a
tipologia à qual pertencem aqueles que aceitam a vida em sua plenitude. Um tipo de
homem criativo e contente com a plenitude da vida dificilmente aparece em uma
estrutura cujas idéias não são mais do que a repetição acústica de velhas idéias
morais e religiosas. Mas, haverá na filosofia algum valor, algum conceito, algum deus
que possa conviver com a plenitude da vida? Somente um deus que saiba dançar. A
palavra é Dionísio. Por que resgatar a divindade dionisíaca? Responderemos a esta
pergunta na segunda parte não só com as palavras, mas com o estilo que tanto
afinizava Nietzsche com a tragédia. Enquanto isso, vejamos como foram os primeiros
passos da moralização da vida em Anaximandro.
1.2.2 Anaximandro: um olhar grego, porém moral.
De onde as coisas têm seu nascimento, ali
também devem ir ao fundo, segundo a
necessidade; pois têm de pagar penitências
37
Nietzsche, Fragmentos póstumos, 16[32], KSA, vaI. 13, p. 492, Obras incompletas, cit., p. 393.
58
e de ser julgadas por suas injustiças,
conforme a ordem do tempo.
Anaximandro de Mileto
Tales de Mileto, antecessor de Anaximandro, via na origem das coisas uma
unidade. Essa substância única, da qual se derivam todas as coisas, era a água. Já
Anaximandro perguntou-se: se há uma unidade, qual a razão da diversidade? E foi aí
que ele foi longe demais, no entender de Nietzsche. Com a frase em epígrafe,
Anaximandro dá uma sentença cuja finalidade é responder à questão da essência
das coisas com uma nova proposta. Por que nova? Porque até então, os filósofos se
valiam dos aspectos físicos, matemáticos e biológicos para sondar a origem das
coisas. Anaximandro envolve uma nova temática: a moral. Vendo nas coisas
nascidas uma soma de injustiças a serem expiadas, ele colocou no surgimento da
vida o mais profundo dos problemas éticos.
Conforme se depreende da filosofia de Anaximandro, cujo teor está contido na
frase acima destacada, existimos pura e simplesmente por nossa culpa e estamos
fadados à expiação, ao sofrimento. Essa proposição, pela ótica de Nietzsche, insere
na vida a culpa por todas coisas; faz de nossa existência um fenômeno moral, uma
instância na qual tudo o que existe se penitencia eternamente pelo sucumbir.
Anaximandro, em sua proposição, não se refere somente à vida humana, mas
a tudo que há de existente na face da Terra: a água, o solo, o frio, o calor, os
animais. Tudo isso tem destino certo: o sucumbir mediante “uma monstruosa prova
experimental”. Mas, o que é mais intrigante nesse tipo de conclusão é que ela nasce
de uma observação empírica, de uma investigação acerca da realidade concreta,
material, onde se expõe a cada instante um cenário diverso, determinado e finito que
é o mundo, e desemboca na proposição de uma outra realidade, geradora da
primeira, unívoca e indeterminada. Nesse componente intrigante do pensamento de
Anaximandro, Nietzsche vê o surgimento de uma corrente filosófica que vai
influenciar desde Parmênides até Platão e seguirá até a modernidade em
pensamentos como o de Kant, conforme o encadeamento que apresentamos acima.
Somos todos penitentes condenados à morte; estamos cumprindo pena ao
nascer, ao viver e ao morrer. Tal noção da vida já demonstra, em sua
intencionalidade, o quanto é difícil ao filósofo do tipo de Anaximandro, suportar-se de
59
perto, considerar-se atentamente. É muito difícil ao pensador moralista olhar de
frente para sua profundidade. Na sua luta por segurança, ele vê na inconstância
natural da vida um castigo. E ao ato de considerar a vida um mal merecido, ele dá o
nome de justiça.
Anaximandro vai além, em seu pensamento. Ele percebe que a expiação e o
sofrimento se dão em todos os seres que possuem, ou melhor, que consistem em
propriedades determinadas. Mas, se todos esses seres precisam ir ao fundo para
pagar penitências, eles não podem ser origem e princípio das coisas. Destarte,
concluiu o pré-socrático, o ser originário, o verdadeiro, não pode constituir-se de
propriedades determinadas, sob pena de ir ao fundo. E de um ingênuo silogismo
surge a seguinte inferência: para que o vir-a-ser não tenha termo, o ser originário há
que ser indeterminado.
Nietzsche, diversamente da maioria dos comentadores de Anaximandro de
Mileto, considera que no pensamento deste, a eternidade e a pureza do ser originário
são afirmadas justamente por ser ele destituído de qualidades determinadas, que
levam ao fundo. O ser originário, denominado indeterminado, está acima do vir-a-ser,
garantindo a eternidade deste. Aqui estamos, antes de Platão, às voltas com dois
mundos: o mundo do indeterminado, onde há eternidade, e o mundo do determinado,
no qual há o sucumbir.
Diante de tal postura, vejamos a dificuldade em que ficou o pensador de
Mileto. No mesmo momento em que se percebe na existência nada mais que um
palco de provas e expiações, percebe-se também que as coisas não deixam de
surgir. A todo instante ocorre uma nova existência. Isso nos suscita a seguinte
questão: por que motivo todas as coisas que vêm a ser já não se destinaram ao
fundo, de uma vez por todas, haja vista que já houve decorrida toda uma infinitude de
tempo? Qual a origem desse fluxo constantemente modificado do vir-a-ser? Também
a Anaximandro de Mileto ocorreram essas indagações, todavia, segundo Nietzsche,
“ele só sabe salvar-se dessas perguntas por possibilidades místicas”.
38
Não pôde o
pensador de Mileto demonstrar nenhuma solução de continuidade para aquele fluir
de seres determinados do seio do “indeterminado”. Como pode o justo originar o
injusto, do indeterminado surgir o determinado, do infinito, o finito?
38
Idem, p. 18
60
“Aqui ficou Anaximandro: isto é ficou nas
sombras profundas que, como gigantescos
fantasmas, deitam-se sobre a montanha
de uma tal contemplação do mundo.
Quanto mais se procurava aproximar-se do
problema (...) maior se tornava a noite".
39
2 O APOLÍNEO E O DIONISÍACO: UMA COMPOSIÇÃO ESTÉTICA.
2.1 O resgate da tragédia
O dizer sim à vida, até mesmo em seus
problemas mais estranhos e mais duros, a
vontade de vida, alegrando-se no sacrifício
39
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Nietzsche (coleção os pensadores). Tradução e notas de Rubens
Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural. 1978, p. 33.
61
de seus tipos mais superiores a sua própria
inexauribilidade - foi isso que denominei
dionisíaco, foi isso que entendi como ponte
para a psicologia do poeta trágico.
Nietzsche
Uma boa introdução ao estudo da importância da tragédia grega para
Nietzsche pode ser a leitura de uma lenda da antiga Grécia que foi utilizada por ele
próprio para marcar suas reflexões
40
. Ariadne, filha de Minos e Pasífae, ao
contemplar o monumental herói Teseu enclausurado no labirinto, na iminência de ser
devidamente devorado pelo monstruoso Minotauro, desenvolveu por ele um tipo de
amor tão arrebatador, tão intenso, que sem a menor dúvida assentou-se em seu
coração um único desejo: salvá-lo. Conduzida pela força de seu desiderato, Ariadne
entrega a Teseu um novelo de linha para que o belo herói o fosse desenrolando ao
mesmo tempo em que avançava pelo labirinto. Feito mediante o qual ele conseguiu
se desvencilhar das numerosas voltas do enorme labirinto após haver matado o
temido Minotauro. Depois disso nosso herói fugiu da ilha de Creta juntamente com
Ariadne, responsável por sua liberdade, e casou-se com ela, porém posteriormente a
deixou desamparada na Ilha de Naxos. Ocorre que Dionísio, passando pelo local,
dirigiu-se a ela com o intuito de consolá-la em virtude da infidelidade de Teseu.
Entretanto, Dionísio veio a se apaixonar pela triste e desolada princesa, razão pela
qual a desposou, ofertando-lhe como presente uma belíssima coroa de ouro e
pedrarias, obra-prima de Vulcano. Contudo havia um problema: Ariadne era mortal,
diferentemente de Dionísio que era imortal, um deus, o deus da embriaguez e do
desembaraço. De forma que, conforme prescreve a antiga lenda, depois de ocorrida
a morte da princesa Ariadne, sua coroa foi arremessada aos céus em sua
homenagem e eterna lembrança, de maneira que as pedras nela contidas se
transformaram em lindas estrelas do céu.
Esta singela história estampa uma concepção da vida que não exclui dela o
sofrimento. Um sofrimento natural e criador. Concepção que Nietzsche abraça ao
longo de todo o seu trabalho, marcando os momentos mais importantes de suas
40
NIETZSCHE, F.. Ditirambos de Dionisos, Lamento de Ariadne. N.S.W., KSA 6, Klage der Ariadne, s.398.
“Ich bin dein Labyrinth...”
62
reflexões, inclusive momentos de rupturas difíceis como as que ocorreram com
relação a Schopenhauer. Negar o sofrimento é negar a vida em suas raízes mais
profundas, é o que podemos depreender do pensamento de Nietzsche. Obviamente
ele não se refere ao sofrimento compassivo e provocado, próprio da atmosfera cristã
na qual o sofrer retira a dignidade do homem pelas noções de pecado, de culpa, e
pela afirmação de que a compaixão é uma virtude. Não! O pensador alemão não se
compraz nem um pouco em elevar este tipo de concepção do sofrimento. Ao
contrário, o motivo pelo qual Nietzsche recupera esta lenda quase perdida em nossa
cultura é que na relação entre Dionísio, um deus, e Ariadne, uma mortal, a vida
aparece sob várias formas, sob várias forças: amor, mulher, sofrimento,
compromisso... Tragédia. A vida com toda a sua plenitude, todas as suas nuances,
sem condenações.
Podemos entender a relevância do pensamento trágico para o pensamento de
Nietzsche, uma vez que, segundo ele, a tragédia é uma chave que abre caminho
para a potencialização do homem na efetivação de sua vontade criadora. Nietzsche
pode ser considerado um filósofo trágico na medida em que encontrou na psicologia
da tragédia uma afirmação da vida, que está presente em todas as suas obras.
A distinção fundamental nesse ponto é que o sofrimento ao invés de ser visto
como elemento propiciador da negação da vida; é visto como um componente da
afirmação dela; é mesmo um estímulo.
Nietzsche se distanciará de Schopenhauer muito mais pelo modo como este
insere o sofrimento na existência do que pela sua visão da consciência. A questão da
consciência em Schopenhauer é a seguinte: Em primeiro lugar, a consciência é
totalmente instrumental, ela é o instrumento da vontade, ela também fica no nível de
superfície; e assim como a vontade se vale de instrumentos de várias ordens e de
várias espécies para conseguir os seus objetivos, a vontade também se vale da
consciência. A consciência ou o intelecto é um instrumento da vontade. Ou seja, a
vontade é muito mais ampla, e para atingir seus fins, ela precisa do intelecto. O
intelecto é o meio de que a vontade se vale ou se serve para conseguir tudo aquilo
que quer. Isso, tanto o intelecto quanto a consciência. Então, a consciência, para
Schopenhauer, é também algo de superficial e que se mantém inconsciente da sua
função meramente instrumental. Até aqui não haveria oposição por parte de
Nietzsche, mas, em Schopenhauer, a consciência pode se desenvolver, de tal
63
maneira e em tal medida, que ela passa a renegar a sua origem instrumental e servir
como que de espelho da vontade: É a figura do gênio. O gênio é exatamente esta
consciência em que a vontade se projeta como um espelho. Instância na qual a
essência do mundo, como vontade, toma consciência de si, o que, segundo
Schopenhauer, vem a ser exatamente a obra de arte nas suas diversas figuras: a
obra do gênio. E mais: a consciência pode exercer ainda uma função mais elevada
do que a artística, que é a consciência ascética, no caso do asceta e do santo.
Aquela na qual a vontade não somente toma consciência de si, como num espelho,
no caso do artista, mas a vontade também se nega a si mesma. Se auto-renega. Ela
renuncia a si. Mas a consciência, aqui, é associada a uma espécie de sentimento
místico imediato, que não é necessariamente racional no sentido científico, é uma
espécie de vivência ou de consciência imediata da compaixão, isto é, da igualdade
ou da identidade em tudo aquilo que vive. Vale dizer, por conseguinte, no misterioso
sentimento de tomar parte na dor do outro. O santo ou o asceta é aquele que é
capaz de ser compassivo nesse sentido. Ou seja, ele é capaz de sentir a dor do
outro, não como simples projeção no outro da minha dor, mas sentir a dor do outro
como outro, enquanto minha. É somente neste plano que a vontade pode se negar a
si mesma. Ela toma consciência da natureza necessariamente sofredora da vontade.
Ora, como a vontade é a essência do mundo, como o mundo é vontade, então é
sofrimento. Logo a única possibilidade de redenção consiste na auto-negação. É isso
que faz o asceta, é isso que faz o santo, é isso que faz o artista. Só que o artista faz
isso de uma maneira simplesmente temporária, enquanto que o santo e o asceta
fazem isso permanentemente. Eis o alargamento da consciência em Schopenhauer.
Percebe-se, então, que apesar de apresentarem proposições inicialmente
semelhantes quanto ao papel da consciência, Nietzsche e Schopenhauer sofrem
uma separação radical quanto à inocência da vida. Se para ambos os pensadores,
na vida há sofrimento, para Nietzsche isto não é motivo para negá-la; não é razão
para condená-la em nome de figurações mirabolantes de um mundo sem dor. Negar
o sofrimento é negar a vida em suas raízes mais profundas. Em Nietzsche, na
verdade, no mundo há sofrimento, mas esse sofrimento não é negado, é afirmado. E
essa é a essência da tragédia.
Tanto Nietzsche quanto Schopenhauer não discordam de que o sofrimento é
sofrimento porque ele é individuação. Todavia uma diferença se estabelece na
medida em que, para Schopenhauer, o mundo como representação é
64
necessariamente individuação. Portanto, tudo aquilo que existe passa pelo contorno
da individuação e necessariamente traz consigo a marca do sofrimento. Entretanto
para Nietzsche o sofrimento não é uma objeção contra a existência, mas pelo
contrário, é um ingrediente a mais, um estimulante a mais para a existência.
Nietzsche diz que o espírito heróico é aquele que diz sim a si mesmo na
crueldade trágica, por ser bastante forte para experimentar o sofrimento como um
prazer, com alegria
41
. Esta idéia é tão presente no pensamento de Nietzsche que
podemos vê-la em O nascimento da tragédia quando ele define o mito trágico: um
acontecimento épico que glorifica o herói combatente, lutador, pela apresentação do
sofrimento existente no seu destino e em seus triunfos mais dolorosos.
42
Isto
equivale a dizer que durante a vigência da cultura trágica uma outra pedagogia, bem
diferente da pedagogia platônica, declarava que um grego adquiria o direito de se
tornar memorável á proporção que vivia com heroísmo os revezes que a vida punha
em seu caminho; à medida que glorificava suas ações no interior do sofrimento de
suas vitórias mais dolorosas.
É exatamente o que ocorre com Zaratustra: um herói, a princípio
fundamentalmente apolíneo, que no final de um processo de aprendizado no qual
teve que travar combates com o niilismo em suas diversas formas, toma consciência
de seu destino trágico, isto é, diz sim à vida como ela é, sem inserir no processo
qualquer oposição de valores, afirmando poeticamente seu eterno retorno, sua
simples entrega à vida que ele ama, e não o seu amor à vida à qual simplesmente se
entrega.
Segundo Roberto Machado,
“Radicalizando O nascimento da tragédia,
para o qual a finalidade da tragédia, ao exibir
os sofrimentos do herói, é produzir alegria,
Nietzsche, ao mesmo tempo filósofo do
sofrimento e da alegria, no momento em que
se sente o primeiro filósofo trágico, pretende
mostrar, com a trajetória de Zaratustra
pensada como uma tragédia, que, apesar de
41
MACHADO, Roberto. Zaratustra tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 29.
42
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo:
Companhia das letras, 1992, p. 140.
65
todo sofrimento, a afirmação do eterno retorno
torna o herói trágico fundamentalmente alegre,
o que teria escapado aos autores de tragédia,
clássicos ou modernos”.
43
Nietzsche afirma ser o primeiro a ter descoberto o trágico. E diz mais: que o
trágico foi mal compreendido entre os gregos devido a sua visão superficial de
moralistas.
44
Entre os modernos não poderia ser diferente, haja vista a trajetória
vitoriosa dessa mesma moral, consoante nossas explicações acima expostas.
Nietzsche quer desvelar, sobretudo, que, em linhas gerais, está contida no
ambiente psicológico da tragédia a interferência benéfica ou maléfica dos deuses.
Eles por várias vezes comandam a ação de seus heróis. Porém os deuses são
potências superiores e misteriosas, que são compreendidas por meio do
relacionamento com os homens. Essa compreensão retira do caráter divino a
incognoscibilidade porque mesmo quando simbolizam as forças da natureza os
deuses têm forma humana, familiar e mais confiável. A confiança exclui alguns
terrores que permeiam a mente humana nas outras noções de divindade. O divino
assume um aspecto luminoso, acessível porque feito à imagem do homem,
soterrando as visões sombrias da divindade em outras culturas.
Os deuses trágicos podem ser chamados acertadamente de propulsores da
superação do homem, suas formas humanas não são apenas exteriores. Tanto
quanto os humanos os deuses possuem as molas propulsoras da vida, ou seja, são
dotados de sentimentos e paixões, os deuses também desejam, de forma que o
“desejante”, em termos deleuzianos, também obtém uma apreciação e um valor
próprios de uma perspectiva múltipla, orgânica, ausente de qualquer hierarquia que
isole a consciência meramente racional. Pulsão e razão se equivalem nas linhas da
tragédia.
Se, por um lado, esse antropomorfismo aproximou os deuses do homem, por
outro lado deixou o universo totalmente dependente de comportamentos passionais e
arbítrios capazes de alterar o seu curso, uma vez que os deuses podem intervir nele
com seus caprichos e necessidades. Mas isso não pesa tanto para o homem que
43
MACHADO, Roberto. Zaratustra tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 29.
44
Fragmentos póstumos, primavera de 1884, 25 (95).
66
não quer somente a segurança, que não tem como fundamental o conhecer e sim o
pensar, que tem como pensador não o intelecto, mas todo o corpo.
A transfiguração humana dos deuses proporcionou ao trágico um mundo no
qual a vida e o tempo presente são exaltados em todas as suas qualidades.
Nas tragédias, em geral, o valor está na força e destreza dos guerreiros e
lutadores. Além da força física, as noções de honra e de dever representam um
atributo que o indivíduo possui desde seu nascimento, sendo descendente de ilustres
antepassados. Características como valentia, força, habilidade, valorizam o herói.
Com efeito, o homem se eleva a um deus na proporção em que um deus tem
caracteres humanos. A felicidade de um deus pode ser vivida por um homem. É o
que se dá nas conquistas e derrotas das tragédias.
É cristalino que a humanização dos deuses, comum no trágico, têm sido, ao
longo dos tempos, buscadas por pensadores das mais variadas ordens, com
diferentes finalidades: para buscar modelos poéticos, temas e personagens de
Homero são resgatados a fim de servirem de paradigma ou de recursos
argumentativos; as aventuras e o périplo de Ulisses foram tomados – sobretudo a
partir do socratismo dos cínicos – como símbolos morais na ascensão da alma a sua
pátria originária.
Mas o que têm a ver com inocência e vida no pensamento de Nietzsche, os
deuses trágicos? Não se trata de encarar alegorias metafóricas como realidade. O
que Nietzsche pensa é mais profundo. Ele não visa declarar que tudo o que conste
do pensamento trágico seja real. Muito menos legitimar a existência de qualquer
deus sob qualquer forma que se apresente. O que o pensador alemão considera de
alta relevância no grego trágico é o ato de criar por uma necessidade instintiva e vital
que afirma a vida em sua plenitude e não coíbe o pensamento.
"Assim os deuses legitimam a vida humana,
vivendo-a eles mesmos - a única teodicéia
satisfatória! A existência sob a clara luz solar
de tais deuses é sentida como o desejável em
si mesmo”.
45
45
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Nietzsche (coleção os pensadores). Tradução e notas de Rubens
Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural. 1978, p. 07.
67
O que causou a criação desses deuses, para Nietzsche, foi a mais profunda
das necessidades. Elas surgiram em uma época de sofrimento, de profundas
mudanças e perdas para o povo grego. Neles havia uma ligação entre a exaltada
faculdade de experimentar o sofrimento e a descomunal sensibilidade artística. Os
gregos arcaicos, vivendo em um cenário nauseabundo, tinham de criar esses
deuses, mas o faziam saindo desse mundo sem tirar os pés dele.
O homem do conhecimento racional cria a partir da consciência; o trágico cria
a partir dos instintos e do corpo tomado como uma grande unidade orgânica da qual
a consciência é também parte, sem perda da multiplicidade, conforme estudamos
acima.
À medida que o fenômeno da criação, nos moldes do trágico, foi abandonado,
rejeitou-se também a natureza, pois, com a perda da sabedoria instintiva contida na
arte trágica restou apenas um aspecto da vida, o do espírito, o aspecto lógico-
racional onde falta o “fogo” da vida, possuído que foi pela vontade de verdade.
Somente colocando o conhecimento no seu devido lugar, o de artifício,
poderemos entender as idéias não mais como verdade ou falsidade, mas
simplesmente como sinais.
Nietzsche via no poeta trágico o homem que trazia à vida prazer e alegria. O
fato de ter-se um deus parecido com o homem abrilhanta a vida humana. Nas
tragédias até os deuses vivem o mundo dos sentidos. Vivendo o homem sob a luz
resplandecente dos deuses que sentem, desejam, apaixonam-se, ele tende a se
iluminar cada vez mais. Esse tipo de visão faz do homem com seus instintos uma
força afirmativa, criadora, sem nenhum desprezo pelas raízes da vida nas quais
estão inclusive e ativamente os sofrimentos.
A tragédia havia reconciliado a embriaguez de Dionísio com a forma de Apolo,
o que pode ser considerado uma grande conquista para a concepção estética de
Nietzsche, pois ele vê uma distinção entre o apolíneo e o dionisíaco: Apolo é o deus
da clareza, da harmonia e da ordem; Dionísio, o deus da exuberância, da desordem
e da música, sendo que ambos são complementares entre si. Por isso Nietzsche
resgata a Grécia anterior a separação efetuada por Sócrates. Porque lá eram unidos
o artesão e o intelectual, o cidadão e o político, o poeta e o filósofo. E o povo não
era caçador da beleza, mas sim seu amante. Os homens da tragédia vislumbravam
uma unidade entre o pensamento e a vida. Esta unidade pode perfeitamente ser
68
apresentada como uma ilustração de uma estética consecutiva de todo um
imaginário próprio de um estatuto bem diferente do estatuto estético do iluminismo.
Um estatuto no qual não há o sujeito centralizado por uma consciência nuclear de
substância moral, ditando regras e parâmetros isoladamente, mas sim a grande
razão, na qual corpo e mente juntos estabelecem múltiplas perspectivas que
constituem uma relação de forças que põem em jogo muito mais que elementos
puramente racionais: sensações, prazer, dor, sofrimento, superação e criatividades
ilimitadas.
Nesse patamar, não se criam dicotomias a pretexto de encontrar a verdade.
Assim, o pensar e o viver eram, para o trágico, uma só e a mesma coisa, legitimando
cada vez mais a afirmação da vida.
A tarefa da transvaloração de todos os valores exigia de Nietzsche a
radicalização crescente de uma perspectiva trágica. Seus textos revelam o desejo
cada vez mais forte de se tornar um filósofo independente, sempre, no fim das
contas, contrariando as bases das idéias modernas, ele nos faz perceber que
somente a alegria dionisíaca é proporcional às imagens terríveis diante das quais ele
teria posto o conhecimento.
69
2.2 O resgate de Heráclito
Vejo o vir-a-ser, e ninguém contemplou tão
atentamente esse quebrar de ondas e esse ritmo
das coisas. e o que vi? conformidade à leis,
certezas infalíveis, trilhas sempre iguais do justo.
Por trás de todas as transgressões das leis vi
Erínias julgadoras. Vi o mundo inteiro como o
espetáculo de uma justiça reinante, e forças
naturais, demoniacamente onipresentes,
subordinadas a seu serviço. Não vi a punição do
que veio a ser, mas a justificação do vir a ser.
Quando se revelou o crime, o declínio, em formas
inflexíveis, em leis santamente respeitadas ? onde
reina a injustiça, há arbítrio, desordem,
desregramento, contradição; mas onde, como neste
mundo, regem somente a lei e a filha de Zeus, Dike,
como poderia ser a esfera da culpa, da expiação, da
condenação e como que o patíbulo de todos os
danados?
Heráclito
Nietzsche vê em Heráclito o tipo do filósofo instintivo e legislador apegado à
intuição e afastado do olhar extremamente racional.
“No meio da noite mística em que estava envolto o problema do vir-a-ser, de
Anaximandro, veio Heráclito de Éfeso e iluminou-a como um relâmpago divino”
46
.
Com essa frase Nietzsche inicia o parágrafo quinto de “A Filosofia na Época Trágica
dos Gregos”, reafirmando o que estamos ressaltando ao longo deste trabalho: a
perspectiva moral não é a única leitura possível do mundo.
Heráclito afirma que as noções de culpa, injustiça, expiação são próprias do
homem restrito, que visualiza as coisas isoladamente e não ao conjunto. Para o
indivíduo que vê o todo, a totalidade contraditória, conflitante, funde-se em uma
harmonia que é imperceptível, certamente, para o homem habitual, para o homem do
46
Idem
70
conhecimento. Porém é uma harmonia bastante visível ao homem cujo olhar é
instigado, pelo “fogo” da vida, à contemplação. A visão de Heráclito não permite que
nenhuma parcela de injustiça esteja presente no acontecer das coisas em nosso
mundo. Nietzsche percebeu isso com tanta intensidade que, em uma simples frase
demonstra-nos o quanto é importante o pensamento desse filósofo pré-socrático,
para a visão da vida sob a perspectiva de inocência:
"Um vir-a-ser e perecer, um construir e
destruir, sem nenhuma prestação de contas
de ordem moral, só tem
neste mundo o jogo do artista e da criança. E
assim como joga a criança e o artista, joga o
fogo eternamente vivo, constrói em inocência
- e nesse jogo joga o Aion consigo mesmo”.
47
Heráclito ilumina a vida com uma unidade entre pensamento, matéria e ação.
A contradição é inerente ao vir-a-ser. Tudo tem o oposto em si, para que tudo se dê.
Portanto qualquer coisa que pareça contrária ao mundo tem de pertencer ao próprio
mundo. Heráclito nega a dualidade do mundo, não traz conceitos como mundo físico
e mundo metafísico; não difere um reino de qualidades determinadas de um reino de
indeterminação indefinível. Ele chegou ao ponto de negar, em geral, o ser, pois lhe
restou um mundo onde tudo está em tudo, em eterna fluidez, protegido por leis não
escritas, sem nenhuma permanência tampouco indestrutibilidade. A única coisa que
existe, para Heráclito, é o vir-a-ser.
Uma sublime faculdade de representar o que é intuitivo dá ao pensamento de
Heráclito a principal diferença com relação à representação racional. Esta é
desempenhada em conceitos e combinações lógicas.
Impressionou-se Nietzsche com o modo de Heráclito contemplar o mundo.
Contemplá-lo como se contempla uma obra de arte, como um jogo de necessidade e
uma necessidade de jogo, onde há conflito e harmonia, mas não crime. Trata-se de
uma contemplação simplesmente estética do universo. Qualquer indício de
moralidade ou finalidade é extirpado. O componente intuitivo é tão grande na visão
47
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Nietzsche (coleção os pensadores). Tradução e notas de Rubens Rodrigues
Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural. 1978, p. 34.
71
de Heráclito que a humanidade antiga, segundo Nietzsche, o denominava "o filósofo
que chora".
72
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aceito por personalidade.
Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
mas nunca ao erro de querer compreender demais,
nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência,
nunca ao defeito de exigir do mundo
que fosse qualquer cousa que não fosse o mundo”.
Alberto Caeiro
Nos dias atuais, é bastante amplo, sob certos aspectos, o interesse pela arte.
Diversas são as vias pelas quais este interesse se manifesta. No entanto, há algo
comum nos diferentes olhares para o fenômeno artístico: o homem atual não quer
somente fruir, mas conhecer o objeto de seu interesse, o que denota uma
discrepância entre o modo como a arte é produzida e o modo como ela é vista. Mas
isso não é novidade. O modo de ver a arte, de pensá-la, julgá-la veio, ao longo da
história, a imprimir no próprio conceito de arte, muito do que havia no olhar, no
método e na linguagem daquele que via, julgava e conceituava. O “homem-moral”,
apoderando-se do poder de julgar, após toda a linha evolutiva do pensamento
moralizado, acaba por ver a arte como um veículo moral, de modo que, como
Nietzsche afirma, os próprios gregos viram mal a arte trágica. Cria-se um conceito de
arte dotado de interesse e de finalidade. Descuida-se de que a importância de uma
obra de arte está no tipo de impulso que ela imprime na vida daquele que a
contempla, e não na conclusão à qual ele chega. A vida se resume a um fenômeno
moral.
Ao contrário dessa visão, a concepção da vida sob a perspectiva da inocência
retira da vida, à pesadas “marteladas”, a finalidade e o castigo.
Já compreendemos, no pensamento de Nietzsche, este ponto da relação
inocência e vida, mas qual a importância dessa relação para a transvaloração dos
valores que possibilita uma justificação estética da existência? Mostrar-nos que todo
sentimento de abjeção, de vileza, de desprezo à vida tem origem nos valores e na
aceitação destes, no acreditar que a vida poderia ser de outro modo, no exigir do
mundo que seja outra coisa que não o mundo.
73
Para Nietzsche, após toda a escavação feita pela sua filosofia restou cristalino
o grande sim à vida: o homem está fadado a acontecer inúmeras vezes sem sequer
pensar nisso. Todo sentimento contrário a esse “querer mais” que é a vida, reside
nos valores negadores da inocência que agora podem ser mudados, bastando, para
isso, que amemos nossa inocente vontade criadora, com sua total ausência de
sentido, de finalidade, “porque quem ama, nunca sabe o que ama, nem porque ama;
amar é a eterna inocência”.
48
Amor fati: compreender as partes até então
desprezadas da existência não somente como necessárias ou inevitáveis, mas como
desejáveis, verdadeiras e fecundas porque a vida é um fenômeno estético: a
aparência importa mais do que a verdade. Apenas pela criatividade da aparência
artística podemos dar sentido humano a existência.
“A teologia inteira está edificada sobre o falar-se do homem dos últimos quatro
milênios como de um eterno, em direção ao qual todas as coisas do mundo desde
seu início tenderiam naturalmente. Mas tudo veio a ser; não há fatos eternos, assim
como não há verdades absolutas”.
49
A estrutura cognitiva criada pelos homens
almeja duas situações que perpassam a filosofia, a ciência, a religião e a arte ao
longo dos tempos: a produção da felicidade humana e a demonstração da realidade.
Essas duas esperanças se misturam e modificam de importância conforme a época e
as necessidades de cada reduto humano, mas estão sempre presentes. Homens do
conhecimento navegam por mares e caminham por estradas diferentes, porém
obstinados por um mesmo porto, por uma mesma “terra firme”, onde encontrarão sua
suposta conservação. Assim, o homem, o mais fraco dos animais, constituiu a
verdade: com sua pusilanimidade subjacente, exercendo a vontade de sobreviver e
permanecer sobre a terra.
Nietzsche questionou o estatuto da verdade de maneira inaudita. Não se
limitou à mesma esfera de argumentações de seus antecessores. Estes, apesar de
abordarem a temática da verdade, o faziam considerando-a um valor do qual não
podiam fugir; buscavam diferentes formas de verdade ou diferentes métodos de
48
Idem
49
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado, humano. Tradução de Paulo Osório de Castro. Lisboa:
Relógio d'água Editores, 1977, p. 77.
74
encontrá-la. A diferença, no pensamento de Nietzsche, já se apresenta no ponto de
partida que ele estabeleceu para sua crítica: a origem da verdade como valor.
Nietzsche percebeu que o homem, desprovido de meios físico-motores para
sair-se vencedor na luta pela sobrevivência, priorizou para isso o intelecto. Dentre
todos os elementos concernentes à tarefa da conservação do homem, o intelecto,
por possibilitar maior duração e diversificação ao mecanismo de sobrevivência,
passou a ser considerado órgão mor, em detrimento dos demais órgãos e de suas
manifestações. Nesse sentido, o ataque do pensador alemão ao conceito de verdade
ultrapassa o seu significado mais profundo, atingindo a sua própria
consubstanciação. Nietzsche não se detém apenas em afirmar que estamos
enganados em nossas convenções a respeito da natureza das coisas (incluindo no
significado desta palavra os fatos) que julgamos conhecer, mas que deturpamos
miríades de elementos que constituem cada coisa, desprezando as diferenças que
há em cada uma delas e criamos igualdades e classificações convenientes à
transformação de toda a natureza em tudo que o homem pode observar e teorizar.
Tudo isso performa a célula fundamental da sociedade, da moral e do conhecimento:
a verdade.
Podemos perceber que o trabalho crítico de Nietzsche, no que tange ao
conhecimento, parte sempre de onde se percebe a primazia do intelecto na atitude
humana. Ora, lembremo-nos da questão dos fatos, proposta por Nietzsche: os fatos,
como todas as coisas, não são apreensíveis em sua natureza. Por isso não se fala
sobre fatos, mas sobre interpretações dos fatos. O entendimento dessa observação
feita por Nietzsche é de capital importância para o estudo da relação entre a
inocência da vontade criadora e o caráter teleológico do conhecimento racional. Eis o
porquê:
Na instância dos fatos o homem está agindo por inteiro, não conseguindo
afastar-se de si mesmo. Todos os elementos de que o organismo precisar serão
usados, todos os atributos necessários entram em ação. O homem age como um
conjunto de fenômenos, embora por vezes possa intensificar o intelecto ou mesmo
uma outra faculdade. Já na interpretação dos fatos, não. Nesta ocorre
necessariamente o detrimento do “complexo” homem. Assim que o homem “apanha”
o fato e o coloca diante de si, ele o faz com a chefia do intelecto.
O homem do conhecimento tem um medo mortal da sua própria profundidade,
por isso nem sequer a sente. Em sua ânsia pela permanência, sua segurança tem
75
mais importância do que sua vida. E de onde vem a “sabedoria” que proporciona
segurança? Da escravidão à razão. O homem do conhecimento é um eterno
proletário da razão. O homem do conhecimento não quer se libertar da razão para
não sentir a magnitude do absurdo dos seus quatro milênios de “civilização”. Por isso
ele continua operando a repressão da vida: pela segurança. Por essa razão o niilismo
no conhecimento caminha com “pernas de gigante”.
Nietzsche, vivendo em uma época em que os meios de vida são mais
importantes do que a própria vida, viu que o conhecimento desde Sócrates tornou-se
“patrão” da vida. A maior censura a Sócrates feita por Nietzsche, provém do fato de o
primeiro ter colocado a vida (considerada em sua plenitude e não como “uma forma
de vida”) a serviço do conhecimento, o que inequivocamente a transformou em
reativa. Isso não quer dizer que o filósofo alemão seja contra o uso do intelecto, o
que seria um paradoxo tendo em vista sua luta pela expansão da vida, ou seja, a sua
visão da vida como intensidade, como um “mais”. Por que seria um paradoxo?
Porque Nietzsche considera vital o ato de “pensar com o corpo todo”, de fazer uso
das forças instintivas, de criar, de ser alegre, de tornar-se o que se é, criando-se a
cada instante. O intelecto sendo um dos atributos do homem necessariamente é
utilizado. Não se teria como negar o seu uso ou o uso de quaisquer outras
faculdades do ser humano. Elas tendem a se expandir em suas inevitáveis
manifestações. O que Nietzsche aponta como índice da negação da vida é a atitude
de ver nas criações do intelecto o absoluto expositor da realidade, a própria
realidade. Isso o homem do conhecimento faz em uma primeira fase. A segunda fase
da negação da vida consiste em fazer com que essa realidade, “filha de pai solteiro”
(somente do intelecto) seja a instância que proporcione e na qual se dê a segurança
e a perpetuação do tipo que a criou. Essa realidade, ao mesmo tempo objetivada e
objetivadora, engloba em seu âmago a própria vida, a natureza. Nessa realidade até
podemos vislumbrar a ação da força criadora, todavia não podemos associá-la à
inocência. Por que não é possível fazer isso? Porque no interior dessa realidade as
criações do intelecto acabam por gerar o conhecimento teleológico, o conhecimento
que precisa manter viva uma estrutura para não desaparecer junto com seus
inventores, mesmo que para isso destruam a aderência à vida. Só há um objetivo
nessa realidade: a permanência. Dessa forma, até podemos perceber nessa
realidade o exercício de uma força criadora, de uma criatividade, mas uma
criatividade condicionada, impotente, fraca, metafísica, moral. Cria-se um
76
conhecimento que não pode mais ser fértil porque precisa permanecer para fazer
permanecer o homem, o ser social. Um conhecimento que precisa perpetuar-se para
perpetuar.
Para Nietzsche, a vida sob a perspectiva da inocência, pressupõe a
criatividade inocente.
“Na busca do conhecimento, nunca sinto
senão o prazer da minha vontade, ocupada
em engendrar, em fazer crescer; e se o meu
conhecimento conserva em mim a sua
inocência, é porque ele mantém sempre a
vontade de ser fecundo. Esta a vontade que
me afastou de Deus e dos deuses; que
poderíamos ainda criar se existissem
deuses?”(grifos nossos)
50
Como podemos depreender da linguagem poética de Zaratustra, Nietzsche, na
frase acima, não se refere ao conhecimento (motivo pelo qual grifamos) como aquele
que se constitui no pensamento escravo da razão, a serviço da vida reativa, como
distinguimos ao longo deste estudo. Aqui, ele quer que se entenda por conhecimento
o próprio pensamento que se permite fluir, mesmo que esteja destruindo suas
próprias criações. Aquele que está sempre criando, inexoravelmente fértil. Isso
constitui uma instância em que se dá a ação do intelecto, mas como integrante de
um organismo, de um complexo de forças: a equivalência entre governante e
governados explicitada na primeira parte desta dissertação.
Longe daquela separação categórica entre governante (consciência) e
governado (corpo), estão os dois impulsos, apolíneo e o dionisíaco, que segundo
Nietzsche produzem efeitos diferentes, originando diversos tipos de satisfação
artística, mas refletindo o dinamismo da inocência da vida,
criadora de todas as coisas. Seja através das formas delimitadas de Apolo, seja
através da embriaguez de Dionísio, estes impulsos exteriorizam o conteúdo da nossa
experiência, arrefecendo a dureza da vida. Tanto derivando de um desses impulsos
quanto de ambos, as artes brotam do âmago da própria vida, refletindo o caráter
50
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1989, p. 101.
77
enigmático da existência e justificando uma relação estética com a realidade que é,
por si mesma, irredutível ao pensamento lógico. O que se quer, a partir da justifição
estética da existência, é uma espécie de “querer criativo” que combine com os
impulsos artísticos da natureza.
Zaratustra afirma que é este querer criador que o traz para junto dos homens.
O querer que permite o pensamento, que permite a vida. O querer que encara o
perecimento como um superar-se, que considera que a grandeza do homem está em
ele ser uma ponte e não um final. É este querer que possibilitará o advento do além-
do-homem, porém sua chegada se associa com o advento da transvaloração de
todos os valores, pois o “espírito” humano primeiro deve deixar de ser um solo fértil
para a moral, para se tornar um terreno fecundo aos “espíritos” livres. Pudemos
avaliar neste trabalho boa parte dos recursos teóricos dos quais Nietzsche lança mão
para a instauração de uma nova filosofia: a filosofia do martelo cujo protagonista é o
filósofo do futuro. A recuperação do pensamento trágico, com seu abrilhantamento
da vida humana; o pensamento de Heráclito de Éfeso, com sua noção de firmeza na
inconstância e de inocência no vir-a-ser; a denúncia de Anaximandro de Mileto, de
Platão e de todos os argumentos metafísicos como grandes propulsores da negação
da vida; tudo isso constitui o aparato nietzschiano para nos transportar além dos
livros, para nos levar aonde, na maioria das vezes, não queremos ir: à nossa
profundidade. Para, então, encontrarmos na terra um sentido humano que nos leve a
superar a nós mesmos, trazendo para o nosso reduto todos os valores que
colocamos alhures, transformando-os e superando cada um deles. Inocência e vida,
no pensamento de Nietzsche, significam aderência ao mundo, fidelidade à terra , e,
fundamentalmente, alegria de viver.
"Ora, foi a moral que protegeu a vida do desespero e do salto no nada naqueles
homens e classes que foram violentados e oprimidos por homens: pois é a impotência contra
homens, não a impotência contra a natureza, que gera a mais desesperada amargura contra
a existência”.
51
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51
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