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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
A PROLE DO BEBÊ Nº 2 DE VILLA-LOBOS: CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE
MUSICAL E DO IMAGINÁRIO PARA SUA INTERPRETAÇÃO – UM
ESTUDO DE CINCO GRAVAÇÕES.
CARLA GORNI
Rio de Janeiro, 2007
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A PROLE DO BEBÊ Nº 2 DE VILLA-LOBOS: CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE
MUSICAL E DO IMAGINÁRIO PARA SUA INTERPRETAÇÃO – UM ESTUDO
DE CINCO GRAVAÇÕES.
por
CARLA GORNI
Dissertação submetida ao Programa de Pós-
graduação em Música do centro de Letras e
Artes da UNIRIO, como requisito parcial para
obtenção do título de mestre. Sob a orientação
da Prof.ª Salomea Gandelman.
Rio de Janeiro, 2007.
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Gorni, Carla.
G671 A Prole do Bebê Nº 2 de Villa-Lobos : contribuições da
análise musical e
do imaginário para sua interpretação ; um estudo de cinco
gravações / Carla
Gorni, 2008.
ix, 171f.
Orientador: Salomea Gandelman.
Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Federal do
Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
1. Villa-Lobos, Heitor, 1887-1959. Prole do Bebê Nº 2. 2.
Suítes (Piano)
Agradecimentos
Salomea Gandelman
Marcos Vieira Lucas
Martha Ulhôa
Sara Cohen
Daniel Marcos Martins
Nelson Luiz Gorni
Vera Lúcia Gorni
Gustavo Gorni
Osvaldo Murahara
Marco Antônio Lavigne
Ana Cristina Maia Raposo
Linda Bustani
GORNI, Carla. A Prole do bebê, n.º2 de Villa-Lobos: contribuições da análise musical
e do imaginário para sua interpretação um estudo comparativo de cinco gravações.
2007. Dissertação (Mestrado em Música). Programa de Pós-Graduação em Música do
Centro de Letras e Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Resumo
Esta dissertação tem por objetivo enfocar aspectos interpretativos da Prole do bebê 2
para piano solo de Heitor Villa-Lobos, a partir de um estudo comparado de cinco
gravações distintas, privilegiando a relação título da peça/performance. A criação de
indicadores para a escuta implicou na contextualização histórica da obra, no estudo de
suas características formais, texturais, harmônicas, rítmicas e melódicas, e na reflexão
sobre o ato interpretativo. Foi evidenciada a existência e validade de diferentes sentidos
em cada peça, sentidos cuja construção depende de um trabalho conjunto do
compositor, intérprete e ouvinte.
Palavras-chave: interpretação, interpretações gravadas, Prole do bebê n.º 2, Villa-
Lobos.
GORNI, Carla. The Prole do bebê, n.º2 by Villa-Lobos: musical analisys and
imaginary contributions for its interpretation a comparative study of five recorded.
2007. Dissertação (Mestrado em Música). Programa de Pós-Graduação em Música do
Centro de Letras e Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Abstract
This master’s degree dissertation consists of a study of a interpretative aspects of Villa-
Lobos “Prole do Bebê, nº2” for piano solo, focusing specially on the link between the
performance and the title of each piece. Five different recorded performances were
compared in terms of their formal, textural, harmonic, rhythmic, and melodic elements,
taking into consideration the historical contextualization of the piece and the nature of
the interpretative act. It became evident, in each piece, the existence and validity of
different meanings, whose construction depended on the combined interaction of
composer, interpreter and listener.
Keywords: interpretation, recorded performances, Prole do bebê n.º 2, Villa-Lobos.
SUMÁRIO
Introdução
1
1º Capítulo - Interpretação, imaginação e análise musical.
4
2º Capítulo - Contextualização histórica da Prole do Bebê nº 2.
23
2.1 Ruptura com o Romantismo: Modernismo e Nacionalismo.
23
2.2 Mário de Andrade e A Semana de Arte Moderna.
26
2.3 O nacionalismo moderno e Villa-Lobos na década de 20.
31
2.4 A Prole do Bebê nº2 .
33
Capítulo - Contribuições da análise musical e do imaginário para a
interpretação da Prole do Bebê 2. Influências na performance de cinco
pianistas.
36
3.1 A baratinha de papel (Le petit cafard en papier…).
37
3.1.1 Comparação entre cinco gravações de A baratinha de papel.
44
3.1.2 Quadro comparativo das gravações de A baratinha de papel.
50
3.2 O gatinho de papelão (Le petit chat en carton...)
51
3.2.1 Comparação entre cinco gravações de O gatinho de papelão.
58
3.2.2 Quadro comparativo das gravações de O gatinho de papelão.
62
3.3 O camundongo de massa (La (sic) souris en papier mâché).
63
3.3.1 Comparação entre cinco gravações de O camundongo de massa.
70
3.3.2 Quadro comparativo das gravações de O camundongo de massa.
73
3.4 O cachorrinho de borracha (Lê petit chien em caoutchouc).
74
3.4.1 Comparação entre cinco gravações de O cachorrinho de borracha.
80
3.4.2 Quadro comparativo das gravações O cachorrinho de borracha.
83
3.5 O cavalinho de pau (Le petit cheval de bois). 84
3.5.1 Comparação entre cinco gravações de O cavalinho de pau. 91
3.5.2 Quadro comparativo das gravações O cavalinho de pau. 94
3.6 O boisinho(sic) de chumbo(Le petit bois de plumb) 95
3.6.1 Comparação entre cinco gravações de O boisinho(sic) de chumbo. 101
3.6.2 Quadro comparativo das gravações O boisinho(sic) de chumbo. 105
3.7 O passarinho de pano.(Le petit oiseau de drap) 106
3.7.1 Comparação entre cinco gravações de O passarinho de pano. 115
3.7.2 Quadro comparativo das gravações O passarinho de pano. 118
3.8 O ursozinho de algodão. (Le petit ours de coton
)
119
3.8.1 Comparação entre cinco gravações de O ursozinho de algodão. 128
3.8.2 Quadro comparativo das gravações O ursozinho de algodão. 131
3.9 O lobosinho de vidro. (Le petit loup en verre) 132
3.9.1 Comparação entre cinco gravações de O lobosinho de vidro. 140
3.9.2 Quadro comparativo das gravações O lobosinho de vidro. 144
4º Capítulo - Aspectos composicionais recorrentes na Prole do Bebê nº2.
144
4.1 Na forma
144
4.1.2 Quadro comparativo
146
4.2 Na harmonia
147
4.2.1 Quadro comparativo
150
4.3 Na textura
151
4.3.1 Quadro comparativo
154
4.4 Nos ostinatos 155
4.4.1 Quadro comparativo 157
4.5 No ritmo 158
4.5.1 Quadro comparativo 160
4.6 Na melodia 161
4.6.1 Quadro comparativo 164
5º Capítulo -
Considerações finais
165
Bibliografia, musicografia e discografia
171
LISTA DE QUADROS
Página
Tabela 1. Quadro comparativo das gravações de A baratinha de papel. 50
Tabela 2. Quadro comparativo das gravações de O gatinho de papelão. 62
Tabela 3. Quadro comparativo das gravações de O camundongo de massa. 73
Tabela 4. Quadro comparativo das gravações de O cachorrinho de borracha. 83
Tabela 5. Quadro comparativo das gravações de O cavalinho de pau. 94
Tabela 6. Quadro comparativo das gravações de O boisinho (sic) de chumbo 105
Tabela 7. Quadro comparativo das gravações de
118
Tabela 8. Quadro comparativo das gravações de O ursozinho de algodão
131
Tabela 9. Quadro comparativo das gravações de O lobosinho de vidro
143
Tabela 10. Quadro comparativo – Forma 146
Tabela 11. Quadro comparativo – Harmonia 150
Tabela 12. Quadro comparativo – Text
uta
154
Tabela 13. Quadro comparativo –
Ostinatos
157
Tabela 14. Quadro comparativo – Ritmo 160
Tabela 15. Quadro comparativo –
Melodia
164
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS Página
Exemplo 1. A baratinha de papel, cs. 1 e 2 37
Exemplo 2. A baratinha de papel, cs. 5 a 18 39
Exemplo 3. A baratinha de papel, c. 10 39
Exemplo 4. A baratinha de papel, cs. 53 a 78 40
Exemplo 5. A baratinha de papel
, cs. 61 e 62
41
Exemplo 6. A baratinha de papel, cs. 66 e
67
41
Exemplo 7. A baratinha de papel, cs.
78 e 79
42
Exemplo 8. O gatinho de papelão, cs. 1 a 3
52
Exemplo 9. Oiseaux tristes, Ravel cs. 18 e 19 52
Exemplo 10. O gatinho de papelão, c. 20 e 21.1 52
Exemplo 11. O gatinho de papelão, cs. 24 a 27 53
Exemplo 12. O gatinho de papelão, cs. 40 a 43 54
Exemplo 13. O gatinho de papelão, cs. 4 e 7 54
Exemplo 14. O gatinho de papelão, cs. 24 a 40 55
Exemplo 15. O gatinho de papelão, cs.10 e 11 55
Exemplo 16. O gatinho de papelão, c. 30 56
Exemplo 17. O gatinho de papelão, cs. 31 a 40 56
Exemplo 18. O gatinho de papelão ,1º elemento da textura, a melodia 57
Exemplo 19. O gatinho de papelão, 2º elemento da textura, o ostinato 57
Exemplo 20. O gatinho de papelão, 3º elemento da textura, a harmonia 57
Exemplo 21. O gatinho de papelão, c. 44 57
Exemplo 22. O camundongo de massa, cs. 1 e 2.1 64
Exemplo 23. O camundongo de massa, cs.
12 ou 137
65
Exemplo 24. O camundongo de massa, c. 48 66
Exemplo 25. O camundongo de massa, cs. 49 a 51.1 66
Exemplo 26. O camundongo de massa, 1º elemento da seção B. 67
Exemplo 27. O camundongo de massa, 2º elemento da seção B. 67
Exemplo 28. O camundongo de massa, 3º elemento da seção B. 67
Exemplo 29. O camundongo de massa, 4º elemento da seção B. 67
Exemplo 30.4. O camundongo de massa, 5º elemento da seção B. 67
Exemplo 31. O camundongo de massa, cs. 49 e 50, 60 e 61 68
Exemplo 32. O camundongo de massa, cs. 54 a 56 68
Exemplo 33. O camundongo de massa, cs. 99 a 104 69
Exemplo 34. O cachorrinho de borracha. cs. 1 e 2 74
Exemplo 35. O cachorrinho de borracha. cs. 5 a 8 74
Exemplo 36. O cachorrinho de borracha. cs. 5 e 6, cs. 13 a 16 75
Exemplo 37. O cachorrinho de borracha. cs. 17 a 22 76
Exemplo 38. Melodia Mokocê-cê-maká 77
Exemplo 39. O cachorrinho de borracha. cs. 26 a 29 78
Exemplo 40. O cachorrinho de borracha. cs. 9 a 12 79
Exemplo 41. O cavalinho de pau. cs. 1 com anacruse a 3 84
Exemplo 42. O cavalinho de pau, cs. 47 a 50.1 85
Exemplo 43. O cavalinho de pau, cs. 58 e 59 85
Exemplo 44. O cavalinho de pau,
cs. 47 e 48 e 69 e 70
86
Exemplo 45. O cavalinho de pau, cs.131 a 138 86
Exemplo 46. O cavalinho de pau, cs. 17 a 21 87
Exemplo 47. O cavalinho de pau, cs. 35 a 50
88
Exemplo 48. O cavalinho de pau, cs. 58 a 63 89
Exemplo 49. O cavalinho de pau, cs. 69 e 72 89
Exemplo 50. O cavalinho de pau, cs. 34 e 35.1 90
Exemplo 51. O boisinho(sic) de chumbo, cs. 1 a 3 96
Exemplo 52. O boisinho(sic) de chumbo, cs. 14 a 15.1 97
Exemplo 53. O boisinho(sic) de chumbo, cs. 40 e 41 97
Exemplo 54. O boisinho(sic) de chumbo, cs. 64 e 65 97
Exemplo 55. O boisinho(sic) de chumbo, cs. 5 a 11.2 98
Exemplo 56. O boisinho(sic) de chumbo, cs. 50 a 54 99
Exemplo 57. O boisinho(sic) de chumbo, cs. 74 e 75 100
Exemplo 58. O passarinho de pano, cs. 44 a 45.1 107
Exemplo 59. O passarinho de pano, cs. 57 a 66 107
Exemplo 60. O passarinho de pano, cs. 83 e 84 107
Exemplo 61. O passarinho de pano, cs. 8, 9 e 10 108
Exemplo 62. O passarinho de pano, cs. 27 e 28 108
Exemplo 63. O passarinho de pano, cs. 32 a 36.1 109
Exemplo 64. O passarinho de pano, cs. 45 a 47 110
Exemplo 65. O passarinho de pano, cs. 58 a 66 110
Exemplo 66. O passarinho de pano, cs. 67 e 68 111
Exemplo 67. O passarinho de pano, cs. 77 a 79 111
Exemplo 68. O passarinho de pano, cs. 85 a 91 113
Exemplo 69. O ursozinho de algodão, cs. 98 a 110 119
Exemplo 70. O ursozinho de algodão, cs.1 a 2.1, 13 a 14.1, 27 a 28.1 120
Exemplo 71. O ursozinho de algodão, cs. 1 e 2 121
Exemplo 72. Visões fugitivas nº 11,Op.22, Prokofiev, cs. 1 e 2 121
Exemplo 73. O ursozinho de algodão, cs. 13 a 15 122
Exemplo 74. O ursozinho de algodão, cs. 30 a 33 122
Exemplo 75. O ursozinho de algodão, cs. 36 a 43 123
Exemplo 76. Chez Pétrouchka
, Stravinsky, cs. 98 e 99
Exemplo 77. O ursozinho de algodão, cs. 63 a 67
123
124
Exemplo 78. O ursozinho de algodão, cs. 76 a 83
125
Exemplo 79. O ursozinho de algodão, cs. 105 a 114 126
Exemplo 80. O ursozinho de algodão, cs. 131 a 134 127
Exemplo 81. O lobosinnho de vidro, cs. 1 a 10 133
Exemplo 82. O lobosinnho de vidro, cs. 105 e 106 134
Exemplo 83. Toccata Op.11, Prokofiev, cs. 11 a 14 134
Exemplo 84. O lobosinho de vidro, cs. 54 a 61 134
Exemplo 85. O lobosinho de vidro. cs. 102 e 103 135
Exemplo 86 O lobosinho de vidro. cs. 113 e 114.1 e Ursozinho de algodão,
cs.27 e 28.1
136
Exemplo 87. O lobosinho de vidro. c.116 e O boisinho (sic) de chumbo, c.14 136
Exemplo 88 O lobosinho de vidro. cs. 126 a 130 138
Exemplo 89 Chez Pétrouchka, Stravinsky, cs. 33 a 38 139
Introdução
De 2001 a 2003, realizei no interior de São Paulo uma rie de concertos
didáticos patrocinados pelo Sesc, que visava à formação de público para a música
erudita nessa região.
Decidi então, incluir em meu repertório, uma peça brasileira com porte
semelhante ao das outras executadas nesses concertos (como Carnaval Op. 9 de
Schumann, Concerto Italiano de Bach, Sonata nº 5 de Scriabin, alguns Klavierstücke de
Brahms e sonatas de Beethoven). Além de ambicionar divulgar a nossa música, eu
também desejava que esse público, não habituado a recitais, se identificasse com algo;
que pudesse reconhecer alguma melodia que fosse, em algumas das peças.
A idéia de estudar a Prole do Bebê 2
1
me pareceu boa porque a obra abarcava
todos os meus objetivos para a ocasião, assegurava a qualidade da música brasileira,
poderia fazer com que, de alguma maneira, o ouvinte se identificasse com partes dela
(provavelmente com as melodias folclóricas e com a rítmica) e que não fosse
demasiadamente extensa. Uma das razões pelas quais me lancei à coleção foi a de que
eu poderia tocar, em separado, qualquer uma de suas nove peças. Com esse ideal de
recital, comecei a leitura da coletânea.
Meu desejo de comunicabilidade fazia-me buscar “o Brasil” nas peças. Então eu
as lia ansiando captar nossa rítmica e o momento de entrada das canções folclóricas.
Além disso, como inerente à montagem de qualquer performance, eu buscava estruturar
possibilidades de interpretações convincentes e relevantes.
Nessa época, ainda sem o contato com os estudos ora realizados sobre a coleção,
eu percebia claramente o sarcasmo de Villa-Lobos na obra, principalmente, no
antagonismo entre os títulos, em diminutivo e infantis, e o conteúdo emocional denso,
dramático, irônico, por vezes até aterrorizante, do texto musical.
A recepção daquele público à Prole do Bebê 2, com peças tocadas
separadamente, foi calorosa, talvez porque era o único momento dos recitais em que as
pessoas, em geral, identificavam algo que tinham ouvido. Guardei carinhosamente
essa experiência e, como dizem os pianistas, “engavetei” a obra para estudar outras,
com outros propósitos.
1
A edição utilizada tanto para as récitas quanto para este trabalho foi MAX ESCHIG & Cia Editeurs, Rue
de Rome, Paris, 1927.
Em 2004, quando senti necessidade de retornar ao meio acadêmico, comecei a
pensar no assunto de meu mestrado. Era meu interesse trabalhar em algo que trouxesse
alguma contribuição às práticas interpretativas, não analisando e comparando
algumas gravações da obra, mas também investigando a idéia do texto musical como
fonte de inspiração de leituras sempre renovadas.
A Prole do Bebê nº2 era uma peça que eu havia executado (não toquei todas as
suas nove peças em público, apesar de tê-la estudado integralmente) e sobre a qual eu
poderia desenvolver uma pesquisa em meu curso de mestrado. Optei por estudar os
aspectos, a meu ver, marcantes, de cinco interpretações, por focalizar eventos musicais
cujos sentidos poderiam ser relacionados com o imaginário em mim despertado pelos
títulos das peças e observar como, em minha escuta, os cinco artistas respondiam (ou
não) àqueles eventos, ou se recortavam outros.
Esse objetivo me fez, primeiramente, pensar e pesquisar sobre o conceito de
interpretação. As principais questões que surgiram foram: o que significa interpretar,
quais competências estão envolvidas no processo, e o que faz uma performance ser
singular e marcante, atingindo o propósito de oferecer ao público um momento peculiar
de comunhão com a música. O primeiro capítulo trata, conseqüentemente, das questões
acima formuladas. Recorri, para tal fim, entre outros, aos dicionários Grove (conciso) e
Harvard de música, além de lançar mão do texto Execução/Interpretação musical: uma
abordagem filosófica de Sandra Neves Abdo, uma rica fonte com diferentes pontos de
vista sobre o ato de interpretar.
A reflexão conceitual permitiu-me estabelecer, até o momento, que as
competências inerentes ao ato interpretativo seriam: imaginar, ouvir (mental e
concretamente), analisar, experimentar (ouvindo sempre) e comunicar. De início eu as
separava, atribuindo-lhes subitens. Imaginação poderia incluir construção da imagem
estética da obra, intuição, relação título-conteúdo musical e sinestesias provocadas pelos
efeitos pianísticos. Análise compreenderia contextualização histórica e estilística,
análise musical propriamente dita, e identificação das principais características da
linguagem musical da obra em estudo. À comunicação estariam associadas clareza de
objetivos, expressividade e qualidade técnica. A construção de uma performance, no
entanto, me fez observar que qualquer uma das ações citadas é inseparável das demais,
sendo, pois, complementares e circulares, na medida em que uma remete às outras
No segundo capítulo, faço um estudo do contexto histórico do ciclo, abordando o
modernismo e sua ruptura com o romantismo, Mário de Andrade e a Semana de Arte
Moderna, Villa-Lobos da década de 20 e a Prole do Bebê n.º 2, propriamente.
O terceiro capítulo tem como base contribuições da análise da forma, textura,
harmonia, ritmo, melodia e, por sua importância no ciclo, do ostinato, das nove peças da
série, para o recorte dos eventos musicais que estimulam a criação de metáforas e
“fantasias”, combustíveis indispensáveis à performance.Vale ressaltar que a
subjetividade é inseparável da interpretação, mas deve estar ancorada na notação
musical.
Ciente de que o fazer interpretativo de uma obra, além de comportar um espectro
variado de versões, passa por mudanças ao longo do tempo, considerei necessário
agregar a esse capítulo as gravações
2
de cinco pianistas de nacionalidades diversas e
realizadas em diferentes momentos, comparando-as e observando, segundo minha
escuta, o que tinham em comum ou em que diferiam, e em que medida os títulos das
peças influíram nas interpretações. Para tornar a comparação mais clara, criei um
quadro, apresentado após o estudo de cada peça, contendo como indicadores:
andamento, variações de agógica, acentuação, dinâmica, pedal, realização das
polirritmias, valorização das dissonâncias e clima (ambiente, caráter, ênfase, ou não, de
elementos descritivos), os mesmos tratados nas análises musicais. Os quadros
comparativos, além de resumirem o texto relativo às gravações, evidenciam o quanto
interpretar é flexível e como as interpretações podem ser diferentes ao longo do tempo e
sujeitas ao gosto e à cultura da época, mas válidas.
O quarto capítulo objetiva constatar os aspectos composicionais recorrentes no
ciclo, grupando-os sob os indicadores forma, harmonia, textura, ostinatos, ritmo e
melodia (os mesmos usados para as análises, no capítulo anterior), incluindo também
quadros comparativos entre as peças, ao final de cada item tratado.
Nas considerações finais é apresentada uma síntese geral das comparações das
gravações seguida das observações pertinentes. Creio que os estudos empreendidos
podem trazer sugestões interpretativas valiosas e demonstrar a riqueza de possibilidades
de leituras de uma mesma obra.
2
A gravação de Aline van Barentzen, cedida pelo Museu Villa-Lobos, é em em Lp, e houve prejuízo na
percepção de alguns indicadores, porque o arquivo de áudio é de má qualidade.
1º Capítulo - Interpretação, imaginação e análise musical.
Interpretar não significa simplesmente transformar em som as indicações da
partitura com a maior fidelidade possível ou, com o máximo de autenticidade, termo em
geral empregado quando se trata de música de séculos passados. Apesar desses dois
alvos, associados ao ato interpretativo, apresentarem dificuldades para serem
alcançados, não dão conta das questões envolvidas na interpretação.
Na verdade, a fidelidade (relativa) à notação musical, bem como a busca de
autenticidade
3
, contribui para a criação de uma interpretação estilisticamente mais
adequada, mas não necessariamente melhor, no sentido de mais convincente e
expressiva
4
. Reduzir o ato interpretativo a essas duas idéias (fidelidade e autenticidade)
seria empobrecer o trabalho do instrumentista pois são insuficientes para responder ao
enigma de um fazer artístico completo.
Nos dicionários Grove e Harvard encontra-se uma distinção entre os conceitos de
interpretação e de prática de execução que, para esse trabalho, é muito pertinente.
No verbete interpretação do Grove, lê-se:
O aspecto da música que resulta da diferença entre notação, que preserva um registro
escrito da música, e execução, que da vida sempre renovada à experiência musical.
Tradicionalmente desde a era romântica, a interpretação era encarada como dependendo
da visão que o intérprete tinha da obra e de sua capacidade para apresentar essa visão de
forma plausível a uma platéia. Mais recentemente, também tem sido encarada como
abrangendo uma compreensão da obra como criada pelo próprio compositor, face às
convenções de notação e execução de sua época (...). Se é verdade que não existe um
substituto para o conhecimento de uma determinada prática de execução, os vislumbres
alcançados pela musicalidade intuitiva e pelo exercício da imaginação na expressão de
uma obra são vitais para sua interpretação. (1994, p.460)
3
Uma interpretação autêntica pretende fazer reviver uma obra como teria sido executada ao tempo de sua
criação, com os instrumentos da época, executados segundo técnicas da época, realizando o ritmo,
ornamentos, articulações, dinâmica, improvisação e emissão vocal segundo preceitos apresentados em
tratados, uma vez que a notação era então esquemática e bem pouco detalhada, e os registros fonográficos
(ainda muito precários) surgiram apenas no início do século XX.
4
Uma interpretação expressiva implica na compreensão do clima emocional e do caráter de uma peça e
de como ambos são projetados; na comunicação dos momentos de maior tensão e distensão; na distinção
dos planos sonoros em uma textura; no relacionamento entre seções; e no adequado uso das sonoridades,
timbres, luz e sombra. MCPHERSON, Schubert, E. Measuring Performance Enhancement in Music, in
Musical Excellence, Williamon, A. Editor. London, Oxford University Press, 2004, p.64.
O mesmo verbete no
Harvard:
Aspectos do trabalho de performance que resultam da particular realização de um
intérprete das instruções que o compositor escreveu na partitura. As fronteiras entre
notação e performance, no entanto, não são tão claras como parecem algumas vezes,
porque a notação para cada período é em certo grau incompleta e funciona dentro de um
conjunto de expectativas ou convenções que guiam (ou guiavam) esta realização. Então,
em senso estrito, a interpretação depende do gosto historicamente informado a respeito
da realização do trabalho que está sendo transmitido (a maioria em notação) pelo
executante. Este é o objeto de estudo da prática da performance. Além disso,
interpretação é freqüentemente entendida como uma única e pessoal contribuição do
executante à realização de um trabalho. Usado dessa maneira, o termo carregaria com
ele o sentido de expressividade. (2003, p.413)
5
.
O primeiro conceito afirma ser interpretação a diferença entre notação, cujas
indicações são imprecisas, e execução, o que possibilita performances sempre
renovadas. Este conceito subentende a imprescindível colaboração da imaginação e da
intuição na realização do ato interpretativo. O segundo associa interpretação à
expressividade valorizando a contribuição única que uma execução sonora pode dar à
obra de arte, e atribuindo especial participação, no ato interpretativo, da força
expressiva e da comunicabilidade com as quais o intérprete consegue transmitir as
idéias musicais contidas em uma peça.
No verbete práticas de execução (a expressão práticas interpretativas também é
usada), encontra-se:
Expressão originalmente criada em alemão, Aufführungspraxis. Aplicada à sica
ocidental, envolve todos os aspectos a respeito de como a música foi e é executada
;
seu
estudo é importante para o intérprete moderno preocupado com o estilo autêntico. Entre
os aspectos da prática da execução, incluem-se os notacionais (i.e., a relação entre as
notas escritas e os sons que simbolizam, especialmente as questões de ritmo, andamento
e articulação), de improvisação e ornamentos, dos instrumentos, sua história e sua
estrutura sica, alem de como podem ser tocados, emissão vocal, questões de afinação,
altura e temperamento, e às relativas aos ensembles, sua formação, disposição e
regência. As práticas de execução costumam ser abordadas através do estudo de
tratados e manuais, textos críticos, e material iconográfico, bem como os instrumentos e
a música em si mesmos. São também parte inerente ao campo de estudos de
etnomusicólogos que trabalham com repertórios transmitidos oralmente e de estudiosos
de música das civilizações antigas, como a do Egito, Grécia e Roma. (Grove, p. 306)
5
Those aspects of the performance of a work that result from the performer’s particular realization of the
composer’s instructions as set down in music notation. The boundary between notation and performance,
however, is not as clear as it has sometimes seemed, for the notation for every period is in some degree
incomplete and functions within a set of expectations or conventions that guides (or guided) its
realization. Thus, in its narrowest sense, interpretation depends on historically informed taste with respect
to the realization of a work as it has been transmitted (most of in notation) to the performer. This is the
subject of the study of performance practice. Beyond this, interpretation is often thought as of the
individual performer’s unique and personal contribution to the realization of a work. Used in this way, the
term is likely to carry with it notations of expression. (2003, p. 413)
Os conceitos de interpretação e prática de execução diferenciam-se em
determinados aspectos e assemelham-se em outros. Por exemplo, imaginação e intuição
permeiam ambas as atividades, pois, tanto intérpretes quanto musicólogos são impelidos
a usá-las - em doses diferentes e apoiadas no texto - em execuções e análises musicais
que levem em conta as características estilísticas do texto em estudo, visando a
determinar a ornamentação adequada, ou o melhor uso do pedal, ou definir uma
execução rítmica específica, ou, ainda, buscar respostas para outras questões. A prática
de execução ou a prática interpretativa (ambas as designações podem ser usadas com o
mesmo sentido) é mais incisivamente fundamentada nos tratados, manuais, textos
históricos e críticos, material iconográfico, instrumentos de época e suas respectivas
técnicas de execução, enquanto a interpretação é mais apoiada nas experiências culturais
prévias do executante e em como ele as elabora para transmitir suas idéias e seu modo
de senti-las, de forma inteligível, pertinente e relevante.
A maioria dos vários trabalhos inseridos na linha de pesquisa em práticas
interpretativas que li, trata mais, basicamente, de questões objetivas (o quanto possível),
como análises dos elementos estruturais das obras e sua contextualização histórica, do
que propriamente da interpretação, no sentido apresentado na definição, de contribuição
pessoal do intérprete à obra executada, lançando mão da criatividade, através do uso da
imaginação
6
e da intuição
7
. Aqueles trabalhos geralmente se constituem de uma análise
musical de determinada(s) obra(s), com sugestões de interpretação, muitas vezes,
tímidas, isto se não se apresentarem com caráter normativo.
Esta dissertação procura equilibrar a reflexão sobre as questões objetivas,
apontadas e justificadas pela análise musical, com as criativas, entendendo o intérprete
como um “reconstrutor responsável” da obra, como aquele que busca descobrir a
música dentro da partitura, com adequação ao estilo
,
comprometimento emocional,
eloqüência e vida, para que a performance seja significativa. Recriar expressivamente
uma peça musical implica em metabolizar os dados colhidos pelas análises, estudos
6
Imaginação, faculdade de representar-se um objeto ausente. Distingue-se a imaginação reprodutora, que
representa a imagem de alguma coisa que já conhecemos, e a imaginação criadora, pela qual o homem é
capaz de reproduzir obra de arte, fazer as ciências e as técnicas progredirem. In Dicionário de Filosofia,
Rio de Janeiro, Ed. Larousse do Brasil, 1969.
7
Intuição pode denotar conhecimento adquirido por meios que não intelectivos, ou seja, racionais, mas
através do afeto, entendido não como estado de espírito ou emoção eles mesmos, mas como suas
representações simbolizadas e freqüentemente formalizadas, em termos de morfologia e estrutura. A
intuição seria uma forma de experiência afetiva, difícil de ser verbalmente comunicada ou partilhada. In
EPSTEIN, David. A curious moment in Schumann’s Forth Symphony: structure as the fusion of affect
and intuition, in The Practice of Performance, edited by John Rink, Cambridge University Press, 1995,
p. 126-149.
contextuais e os sentidos subjacentes à partitura, transformando-os em uma “execução
musical da música” (expressão tomada de empréstimo de Swanwick, do título de seu
livro Ensinar música musicalmente, 2003), acrescida da vida que o intérprete lhe
insufla. E essa “vida” que faz a singularidade de uma performance (o “toque pessoal”),
provem, também, da imaginação criadora e do prazer que o instrumentista sente ao ler e
executar uma obra. O uso da imaginação em uma interpretação não significa menor
cuidado com as indicações registradas pelo compositor ou com o estilo da obra.
Imaginação e cuidado não se anulam, se complementam.
O artigo de Sandra Neves Abdo (2000, ps. 16-24) apresenta inúmeros conceitos
de interpretação que
,
por vezes, são conflitantes. Comento-os em vista de sua relevância
para este trabalho.
Benedeto Croce
8
(1866- 1952), por exemplo, define execução musical como uma
reevocação, o mais fiel possível, do significado original, recomendando ao intérprete
objetividade e impessoalidade. No fundo, execução seria “tocar como o próprio
compositor tocaria”. Tal posicionamento não se sustenta pela impossibilidade de
“reevocar (...) o significado original”, de “tocar como o próprio compositor tocaria”, e
por apagar a contribuição do intérprete, pretendendo que ele assuma posição impessoal
e objetiva.
Kaplan (1998, ps.129-133) em seu artigo A objetividade na interpretação musical
um mito, desmitifica essa objetividade e chama atenção para a virtualidade da partitura,
afirmando que:
a composição musical é um “composto” formado pelo que o autor pretendeu expressar
através de uma série de sinais colocados em um papel, somado à maneira como o
executante os interpretou, e ao modo como o ouvinte os percebeu na hora em que os
ouviu.
(1998, p. 130)
A postura, de respeito ou submissão do intérprete ao ideal do compositor, suscita
outra questão: podemos afirmar que o modelo que o compositor tem em mente é o
correto e o proposto por um intérprete experiente, inadequado? Podemos crer que a
execução da Prole do Bebê nº1 de Rubinstein (1887-1982) é artisticamente inferior a
aquela que estaria na mente de Villa-Lobos? Não podem os compositores se surpreender
positivamente com um novo sentido (por eles o imaginado) atribuído à sua música
por um bom intérprete?
8
Apud ABDO.
Em oposição ao primeiro, o segundo conceito de interpretação discutido por Abdo
é o de Giovanni Gentile (1875-1944) que, em sua Filosofia dell’Arte defende o
“atualismo” estético. Para ele, a obra de arte pode reviver através de uma
interpretação pessoal (posição bem afastada da idéia anterior de “reevocação da
intenção autoral”), que é indefinidamente reelaborada, tendo como critério real a
subjetividade do executante. A interpretação seria, então, uma tradução livre, uma
operação subjetiva e sempre renovada.
A terceira colocação de Abdo (2001, ps.17 e 18) é a de Gadamer (1900-2002), a
qual não invalida o estudo histórico, mas afirma que o significado original de uma obra
está perdido no tempo. Toda compreensão decorre do ponto de vista do presente e o
resgate do passado é infrutífero. A compreensão se constrói com a “fusão de
horizontes”, passado e presente (autor e intérprete) que
,
juntos, constroem, a cada vez,
um novo significado. Além disso, alega que o possível significado do autor
(compositor) é apenas um dentre os vários atribuídos à obra, legitimando todos os
alcançados pelas diferentes interpretações, e se opondo à idéia de autenticidade, que
considera inalcançável.
Não se pode, pois, afirmar que a interpretação do Cravo bem Temperado, de
Wanda Landowska (1879-1959) seja mais verdadeira do que a de Glenn Gould (1932-
1982), simplesmente por que foi executada no cravo e não no piano. E mais, também
não se pode assegurar que a gravação da Prole do Bebê n.º 2 de Ana Stella-Schic, que
recebeu orientação de Villa-Lobos e é uma pianista brasileira, seja melhor do que as de
Sonia Rubinsky (também brasileira), Alessandra Garosi (italiana) e André-Marc
Hamelin (canadense), as três últimas mais recentes. Cada uma dessas interpretações tem
seu mérito e oferece uma contribuição valiosa e incomparável: a “fusão de horizontes”
que constrói novos significados.
Derrida (1930-2004) e Barthes(1915-1980), outros dois autores citados por Abdo
(2000, p. 18), afirmam que “o autor é uma ficção que deve ser urgentemente
abandonada”
9
, que a obra não é algo fechado, com um único significado, mas um texto,
um espaço multidimensional, intertextual, constituído pela aglutinação de vários outros
textos. Essa posição valida positivamente o esforço musicológico sem, contudo,
minimizar a liberdade interpretativa.
9
O autor é uma ficção na medida em que a existência da obra se realiza através de seus intérpretes e
receptores.
José Alberto Kaplan (1998, ps.132 e 133) também escreve sobre essa
multiplicidade de significados, alegando que uma partitura executada por vários
intérpretes, se ouvida com atenção, produzirá inúmeras diferenças e até divergências em
sua concepção geral, como, por exemplo, na escolha de tempos, da dinâmica,
articulação e fraseado.
Koellreutter
10
(2000, p.18) afirma que o executante tem papel ativo e criador, pois
interpretar é decodificar signos musicais, sendo, portanto, um trabalho relativamente
subjetivo. Mas afirma ainda que a construção da interpretação não pode ser um
produto da subjetividade do instrumentista, porque ela também nasce da percepção das
relações criadas pelo compositor (procedimento relativamente objetivo).
Concordo com o posicionamento de Koellreutter, razão por que são tratados nesta
dissertação a contextualização histórica da coleção, os procedimentos composicionais
nela recorrentes, somados aos efeitos pianísticos que, como metáforas, remetem ao
título, contribuindo para a construção da imagem estética das peças, e comparadas cinco
diferentes gravações da Prole do Bebê nº 2.
Para Pareyson
11
(1918-1991), (2000, ps. 18 e 19), “a interpretação da arte é uma
‘posse’, que, se por um lado não é definitiva, por outro, é plena e verdadeira. E se não é
definitiva, não é porque seus termos sejam fragmentários, inacabados, mas porque são
inexauríveis”. Os termos plena (o), verdadeira (o) e inexaurível são os que têm a ver
com a performance relevante à qual antes me referi.
Após a apresentação e discussão dos posicionamentos anteriores sobre
interpretação, a referida autora conclui:
(...) Tratando-se de uma relação dialética, na base da qual estão dois pólos orgânicos,
constitutivamente multifacetados, plurissêmicos e inexauríveis, o que, em suma, se
pode esperar desse tipo de atividade [interpretação] é, ao mesmo tempo e
inseparavelmente, a revelação da obra em uma de suas possibilidades e a expressão da
pessoa que a interpreta, condensada em um de seus múltiplos pontos de vista. Nada é
mais falso e absurdo do que esperar coisa diversa, seja desconhecendo a natureza
pessoal do ato interpretativo e pregando uma “reevocação” fiel e impessoal, uma
réplica, enfim, do significado concebido pelo compositor; seja ignorando a
plurissemanticidade constitutiva da obra de arte e pretendendo uma única interpretação
correta; seja pregando uma execução tão pessoal e original que se sobreponha à obra,
forçando-a a dizer o que ela não quer ou mais do que quer dizer, como se fosse a pessoa
do executante, o centro primeiro das atenções e a obra um mero pretexto para sua
expressão. (ABDO, 2000, p.23, grifo original)
O processo de interpretar se inicia com a leitura (do titulo e da partitura), que
desperta a fantasia do instrumentista, disparando sua criatividade. O trabalho
10
Apud ABDO.
11
Apud ABDO
interpretativo exige duas ações: pensar e executar concreta e sonoramente. Como
pianista, primeiramente eu as considerava nessa ordem pensar (ouvir mentalmente,
observando os aspectos mais relevantes da obra a ser estudada - forma, agógica,
dinâmica, harmonia, ritmo, melodia, caráter da peça e questões especificamente
instrumentais) e depois tocar (ouvir concretamente). Mas, de fato, a experiência real
nem sempre segue essa ordem, os termos do processo são dinâmicos, ora pensamos
(ouvimos mentalmente e analisamos) como queremos tocar, ora, espontaneamente, e até
casualmente, tocamos algo que gostamos; enfim, tocamos, avaliamos e tomamos
decisões (que não são definitivas e imutáveis).
É esse também, o movimento circular e contínuo entre análise e escolhas
interpretativas. Às vezes, através da análise, fazemos uma escolha, outras, por
gostarmos de tocar de determinada maneira, analisamos buscando justificar nosso gosto.
A própria análise é um ato interpretativo, pois espelha uma certa visão do analista, em
determinado momento, em detrimento de outras.
A questão da materialidade na realização artística é tratada por Fayga Ostrower
(1920-2001) (1977, ps.31-51). A autora afirma que o fazer artístico é uma soma de dois
componentes que se reforçam mutuamente, idéia e materialidade. O princípio de que o
que está na cabeça é o melhor, o verdadeiro e o correto, e que a missão do artista é
concretizar fielmente a idéia, é invalidado, pois também ela é polida durante seu
processo de concretização material. Ostrower afirma, realisticamente e como artista
plástica “fazedora” (no sentido de Stravinsky, quando ele responde a Craft -1999, p.10,
sou um fazedor) que, no processo de materialização, muito do ideal é inevitavelmente
transformado, o que não implica, necessariamente, em perda de valor artístico.
As dificuldades da construção real das idéias nos obrigam a remoldá-las.
Conhecemos estudos dos originais de Beethoven, por exemplo, que mostram o quanto
ele refazia a construção melódica de um tema, ou de sua harmonia, ou modificava o
andamento de uma obra. Conhecemos também os estudos de Da Vinci e podemos
observar que esses grandes artistas tinham um alto grau de exigência e muita
flexibilidade, re-elaborando incansavelmente seus trabalhos, até alcançarem um
resultado final satisfatório.
A materialidade tanto pode nos limitar fazendo-nos crer que nossas aspirações
“nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente”
12
- quanto, por acaso, nos
surpreender positivamente – oferecendo uma boa solução não antes idealizada.
Tanto para criar ou compor quanto para recriar ou interpretar, intuição,
imaginação, reflexão e experimentação são forças dinâmicas e complementares.
Imaginar é fundamental tanto para escritores e compositores como para seus intérpretes.
A esse respeito Copland (1963, ps.11-66) escreve:
“quanto mais vivo a vida da música, mais estou convencido de que a mente livre e
imaginativa é o âmago de todo o fazer musical bem como do ouvir. Quando Coleridge
afirmou que ‘o senso do deleite musical com a força que o produz, é um presente da
imaginação’, ele estava se referindo ao deleite musical da poesia. Mas isto me parece
mais verdadeiro quando aplicado ao deleite musical da música” (1963, p.17)
13
.
Nesse texto o compositor enfatiza a importância da imaginação na escuta, na
compreensão do ouvinte, que pode ter variado grau de talento (para compreender e amar
a música) e afirma que os dois principais requisitos de um ouvinte talentoso são: a
habilidade de se abrir para a experiência musical e a habilidade de avaliar criticamente
essa experiência. E o intérprete é, sem dúvida, um ouvinte privilegiado que, por dever
de ofício, deve, necessariamente, estar aberto a múltiplas experiências e ter a
sensibilidade e competência para escutar-se e avaliar-se criticamente.
A imaginação faz parte de todo o processo de projeção da arte musical: do de
criação vivido pelo compositor -, do de recriação do texto vivido pelo intérprete -, e
do de recepção vivido pelo ouvinte. Intérprete e ouvinte, para apreciarem um texto,
devem internalizar as informações percebidas e transformá-las em poesia.
Ao entrevistar o escritor Carlos Fuentes (1928), o jornalista Ubiratan Brasil (2007,
p. 1), deixando entrever o papel da imaginação criadora, escreve: “a obra de arte
acrescenta algo à realidade que antes não estava ali, e, ao fazê-lo, forma a realidade que,
muitas vezes, não é imediatamente perceptível”; e sustenta tal afirmação com a citação
do escritor mexicano sobre o papel do romance: “(...) não mostra nem demonstra o
mundo, senão apresenta algo ao mundo. (...) A liberdade da arte consiste em ensinar-nos
o que não sabemos. O escritor e o artista não sabem: imaginam. Sua aventura consiste
em dizer o que ignoram”.
12
PESSOA.Fernando. Tabacaria. http://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/acampos/456.html
13
The more I live the life of music the more I am convinced that it is the freely imaginative mind that is
the core of all vital music making and music listening. When Coleridge put down his famous phrase: The
“sense of musical delight, with the power of producing it, is a gift of the imagination”, he was referring,
of course, to the musical delights of poetry. But it seems to me even more true when applied to the
musical delights of music. (1963, p. 17)
Escrever este capítulo e analisar as gravações do ciclo estudado fizeram-me
confirmar a posição de Gadamer quanto à interpretação. Dei-me conta que uma
infinidade de possibilidades interpretativas, todas válidas e únicas, porque os
intérpretes, dotados de personalidades próprias e vivendo em contextos diferentes,
imaginam e pensam distintamente. O vestígio, a partitura, é a mesma, mas o
processamento dos “ingredientes” e sua transformação em poesia são determinados pela
criatividade do executante, capacidade pessoal e única, relacionada ao seu contexto
cultural e às habilidades particulares de cada pianista.
As inúmeras interpretações conferidas a obras universais demonstram o inato
desejo humano de imaginar, de recriar. Copland
14
se pergunta sobre o porquê desse
insaciável desejo de inventar e reinventar e responde afirmando que um de nossos mais
profundos sentimentos em relação à vida é o de nos auto-expressar e de nos
autodescobrir, razão porque sempre recriamos ou trazemos algo novo à vida, à arte e ao
trabalho.
“Imaginar não é preciso”
15
; no entanto imprescindível. Certamente Villa-Lobos,
além de ter inventado os “personagens” de suas metáforas musicais, acrescentou um
mundo de fantasia a todos eles. Seus bichinhos não são de verdade. Na elaboração das
Proles, a imaginação se desdobra em camadas, por que o compositor, interessado no
mundo infantil, imaginou animaizinhos de brinquedo, como uma criança poderia tê-los
imaginado, em parte reais (por que são de papel, de pau, de chumbo...), e, em parte
imaginários, de “faz de conta” (eles se movimentam, produzem seus barulhos, fazem
suas peripécias e, algumas vezes, assustam e provocam terror). Anna-Stella Schic
reforça essa hipótese escrevendo que a execução pianística deve criar uma imagem
infantil de determinado animal que a criança faz viver na sua imaginação. “Não se
descreve um determinado bicho, se o representa transfigurado”. (1989, p. 114).
Para mim, o processo interpretativo começa na primeira leitura (quando a peça
ainda não é conhecida por gravações); é ela a primeira impressão da obra, aquela que
surpreende, o primeiro contato intuitivo com o som que emerge da notação, o resultado
sonoro naive que estimula uma fantasia cheia de singularidades, fatores que influirão
14
(...) why is the creative impulse never satisfied; why must one always begin anew? To the first question
– the need to create – the answer is always the same-self-expression; the basic need to make evident one’s
deepest feelings about life. But why is the job never done? Why must one always begin again? The reason
for the compulsion to renewed creativity, it seems to me, is that each added work brings with it an
element of self-discovery. (1963, p. 51).
15
No sentido de impreciso. Paródia com “Navegar é preciso, viver não é preciso” (in Navegar é preciso,
de Fernando Pessoa)
nas escolhas interpretativas, modificadas ao longo do tempo, acompanhando as
mudanças internas do pianista. Essa primeira impressão instiga questionamentos como,
entre outros: qual o sentido de tal trecho ou frase, por que tal recurso composicional está
em determinado ponto da peça, o que ele pode estar metaforizando, por que a obra tem
o título que tem como esse título se relaciona com os eventos musicais, e assim por
diante.
As respostas quase sempre vêm de uma combinação da imaginação (hipóteses
intuitivas) e justificativas (respostas pensadas que podem apoiar a imaginação).
O desenvolvimento da capacidade criativa (dependente da imaginação) foi e
continua sendo preocupação de vários arte-educadores como Fayga Ostrower (1977,
127), que dava ênfase a uma educação artística buscando extrair algo espontâneo de
crianças comuns, desprovidas de talento artístico especial. Diversos músico-educadores,
entre eles, John Paynter, Swanwick
16
e Koellreutter (1915-2005) também se têm
mostrado preocupados com o desenvolvimento da liberdade criativa e com o uso sem
censura da imaginação.
Grandes intérpretes, como Horowitz (1903-1989) e Glenn Gould (1932-1982),
por exemplo, foram artistas muito livres. Embora apoiados no conhecimento e na
tradição musical, também foram livres para, observados a notação musical e o estilo,
recriarem as obras que executavam.
Como exemplo vivo de que a imaginação é parte inerente do processo
interpretativo, trago o exemplo das master-classes
17
, transmitidas pela BBC inglesa, do
jovem violinista Maxim Vengerov (1974)
,
para estudantes da escola Menuhin, na
Inglaterra. Os alunos apresentaram-se impecáveis, com alto nível técnico e competência
musical e
,
no entanto
,
as palavras de Vengerov modificaram substancialmente suas
performances. O mais interessante é o modo como ele conseguiu tal resultado. Na
verdade, suas aulas consistiam em criação de fantasias que incitavam a projeção de
particularidades das obras, contribuindo sensivelmente para uma performance mais rica
e vibrante. Ele imaginou um ambiente particular para Sarasate (1944-1908), propôs
diálogos para um concerto de Mozart (1756-1791), fez metáforas ricas de profundo
valor emocional para o concerto de Tchaikovsky (1840-1893), e o resultado foi muito
16
Não foram encontrados dados sobre os dois músico-educadores ingleses, ambos vivos.
17
Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=-lrtgosKevE&mode=related&search
. Acesso em 2006
http://www.youtube.com/watch?v=-A2KYywP5v8. Acesso em 2006
http://www.youtube.com/watch?v=rFbL_3ucrrM&mode=related&search. Acesso em 2006
positivo. É preciso levar em conta que o próprio Vengerov é uma personalidade poética,
criativa, com grande energia e capacidade de comunicação.
Na verdade, a imaginação, menos assumidamente, permeia as análises musicais,
que fazem constante uso de metáforas, construindo imagens, por mais objetivas que
possam ser. Todos os trabalhos que li sobre a segunda Prole estavam carregados de
metáforas que recriavam, cada uma de modo específico, a interessante fauna infantil de
Villa-Lobos. A seguir estão compilados e agrupados (pelo título das peças) alguns
exemplos. Eles mostram o quanto a imaginação, usada para criar imagens sugeridas
pelo conteúdo sonoro, permeia qualquer análise musical, por mais objetiva que pretenda
ser.
A baratinha de papel
18
(...) Peça fina, só não encontrei a Baratinha... (Magalhães, 1994, p. 214)
O gatinho de papelão:
A intensidade emocional da peça determinada pela força harmônica e dinâmica do
genial “Un peu animé” até o “Muito Lento” não nos sugere nenhum gatinho!... Talvez
um felino bem maior! (Magalhães, 1994, p. 215, sic.)
(...) um acorde com si natural na região mais grave do piano em “pianíssimo” (ppp),
a impressão de um toque de gongo. (Souza Lima, 1968, p. 46 e 47)
O camundongo de massa:
O ostinato circular sugere a rapidez do camundongo. (Magalhães, 1994, p. 219).
No moto perpétuo (movimento do camundongo), entretanto, está embutido o
princípio do polichinelo (...) (Merhy, 1987, p. 14)
O cachorrinho de borracha:
(...) o cachorrão de borracha termina a peça com furiosos latidos. (Magalhães, 1994, p.
228).
A tremenda liberdade melódica das vozes desta peça sugeriria a elasticidade da
“burracha” (sic)? (Magalhães, 1994, p. 229).
18
Essas observações confirmam que tanto o intérprete quanto o analista procuram uma relação entre texto
e título.
O cavalinho de pau:
O Cavalinho de Pau é um verdadeiro Pégaso, o Passarinho de Pano um Condor e o
Lobosinho de Vidro é um monstro de dentes afiados... (Magalhães, 1994, p.210).
(...) o cavalinho resfolega 4 vezes no “sem rallentar” (pequena coda). (Magalhães,
1994, p. 234, sic).
O Cavalinho de Pau está baseado em um galope regular em dáctilo através da peça,
irônicas alternâncias de maior-menor e posições bitonais (modelo próximo às peças para
crianças de Khachaturian e Prokofiev). (Tarasti, 1995, p. 274)
O boizinho de chumbo:
Na peça, a geral qualidade massiva do som pictoricamente evoca o boi, com figurações
pesadas, acordes em blocos, e utilização da inteira gama de registros do piano, como
mostra a seção final “grandiose”. (Behágue, 1994, p. 65).
Parece-nos que o autor transportou para a profusão de realizações pianísticas todo o
volume e peso do animal que da o título a esse trecho, mesmo estando em diminutivo.
(Souza Lima, 1968, p. 50 e 51)
O passarinho de pano:
(...) a imaginação fértil de Villa-Lobos tece um rendilhado digno de um viveiro de
pássaros. (Magalhães, 1994, p. 241).
Súbito (c/83) um ffff ! : notável revoada de todos os pássaros do viveiro.
Os gorjeios do passarinho ou dos passarinhos têm ornamentação sempre em teclas
brancas, competindo com o trilo em teclas pretas. (Merhy, 1987, p. 27)
O ornitólogo Villa-Lobos prevalece aqui, pois a peça consiste em uma imitação de
cantos dos pássaros no registro agudo. (Tarasti, 1995, p. 274)
Menção especial merece nesta “Prole”, o “Passarinho de Pano”. Parece-nos que o título
poderia ser: “A Passarada de Pano”, tal a riqueza, podemos dizer mesmo, o tesouro de
efeitos descritivos dessa peça única: trinados, “apogiaturas”, arpejos, notas repetidas,
intervalos curiosos, combinações pitorescas, tudo resultando em efeitos de sonoridade
absolutamente inéditos! É a mais bela festa de pássaros! (...) Sempre obedecendo a uma
fatura perfeita, como construção, desenvolve-se até o“três vif”, quando um pouco de
calma nos mostra a paisagem onde depois, a passarada toda, numa algazarra feliz, faz a
sua revoada final para desaparecer. Depois de tudo acabado ainda são ouvidos quatro
pipilos muito bem imaginados (...) (Souza Lima, 1968, p. 52 e 53)
O ursozinho de algodão:
Não se sabe por que Villa-Lobos escreve “ursozinho” e“lobosinho” em vez de ursinho e
lobinho. Talvez estes diminutivos sejam pejorativos... (Magalhães, 1994, p. 244)
O “Animado e gracioso” (c/1 a 12) é uma dança do Urso com “acciaccaturas” e acentos
nos contratempos (...) (Magalhães, 1994, p. 245)
A dissonância está equilibrada com um descomplicado tema infantil [Carneirinho,
Carneirão]. (Tarasti, 1995, p. 274)
O Lobosinho de Vidro:
O autor explora dissonâncias, 2ªs., 7ªs., “clusters” e a peça é gigantizada. Este lobosinho
morde!... (Magalhães, 1994, p. 255)
Não se sabe se Villa-Lobos queria fazer aqui um auto retrato (“Lobos” significa lobo)
(...) (Tarasti, 1995, p. 276).
A eloqüência e comunicabilidade de uma interpretação dependem da construção
nítida da imagem estética da obra, além da intensidade empregada em sua projeção. Tal
assunto foi tratado por vários professores de piano importantes, como Heinrich Neuhaus
(1987, ps.21-40) e Alfred Cortot (1986, ps. 93-98). Para Neuhaus é necessário que o
intérprete compreenda o que vem a ser a imagem estética e seja capaz de construí-la -
condição para uma boa performance -, sob risco de transformar uma grande obra em
“um barulho confuso”. (1987, p. 21)
19
.
Em todo o seu livro, Cortot, oferece, assim como Vengerov o fez, imagens que
colaboram para a projeção mais nítida de uma idéia artística. Ele usa expressões como:
No con dolore (...), encontra-se uma terceira idéia, ou idéia complementar, como se
queira. É indispensável toca-la dolorosa, lamentosa, como o célebre canto da clarineta
na abertura de Freischütz (...) (p. 93, sobre uma Sonata de Weber).
O terror se abate sobre esta obra, desde sua introdução, semelhante a uma trágica
interrogação do destino (...) (p. 98, sobre a Sonata em Sol menor de Schumann).
19
Pero qué significa ‘La imagem estética’ sino la música misma, la materia sonora vivente, los discursos
musicales con sus leyes, sus componentes, que se llaman armonía, polifonía, etc…en la forma definida, y
en el contenido poético y emocional? Cuántas veces he oído a alumnos que no habían recibido verdadera
formación musical y artística, es decir, de educación estética musicalmente poco desarrollada, intentar
interpretar una gran obra! Por falta de comprensión del discurso musical lo transformaban en balbuceo
confuso. (1987, p. 21)
A própria notação musical inclui entre seus signos, os referentes à expressão
musical, como se observa em con dolore do exemplo acima e em tantas outras que
povoam os textos musicais.
E é ainda o próprio Schumann quem cita a beleza enigmática dessa sonata,
referindo-se a ela como “Um rosto de esfinge guarda-lhe o acesso do mesmo modo que
lhe veda a conclusão”. (Cortot,1986, p. 98)
A imagem estética é a representação mental das sonoridades, do caráter, do clima,
do andamento e suas variações, e da dinâmica, que o intérprete deseja imprimir à sua
interpretação. E na criação desta representação, o artista, conscientemente ou não, lança
mão de recursos provenientes da razão e de outros criados por sua imaginação, sem
necessidade de justificativas racionais. Entre os primeiros estão os colhidos através da
leitura crítica da peça, da análise de seus procedimentos composicionais, de sua
contextualização histórica e do conhecimento de seu estilo.
Quanto à leitura não podemos deixar de mencionar, no caso das Proles do Bebê, a
força do titulo. Wisnik (1983, p.39) afirma que Villa-lobos, a partir de 1925, não tinha
intenção de fazer música descritiva, mas, a meu ver, no caso das Proles, ele compôs
algo que sutilmente evoca os títulos das peças. Os animais de brinquedo da segunda
Prole, bem como as bonecas da primeira, são vivamente caracterizados. Villa-Lobos
deixa várias pistas descritivas que sugerem a movimentação dos bichinhos, constrói
onomatopéias e cria climas diversos que aludem aos títulos.
Em geral, não só no caso das Proles, o primeiro contato com novas peças suscita a
questão do quanto os títulos podem contribuir para a criação de imagens estéticas e
sugestionar uma leitura. Quando os lemos, começamos a nos perguntar sobre seus
significados e a buscar suas relações com o texto musical. Alguns deles referem-se à
forma, como por exemplo, sonata, tema com variações, fantasia. Outros, caso dos
Prelúdios de Debussy, não aludem a sensações específicas, que o compositor os
coloca entre parêntesis ao final da partitura
;
contudo, contaminam intérpretes e ouvintes
com suas imagens pictóricas e poéticas.
No caso da Prole do Bebê nº2, não sei se o título influenciou a leitura musical, ou
se esta me despertou novas idéias em relação aos pequenos animais-título. Fiz a
primeira leitura sem dispor dos dados que hoje conheço e, embora os bichinhos, na
minha fantasia, estivessem bem vivos, a imaginação, a experimentação e a reflexão me
possibilitaram recriá-los sonoramente com maior riqueza de detalhes (abordados no
capítulo).
algo no fazer artístico, uma descoberta genuína, espontânea que pode
independer do conhecimento racional, como escreveu Fuentes (2007, p.1) no artigo
supracitado: “A liberdade da arte consiste em ensinar-nos o que não sabemos. O escritor
e o artista não sabem: imaginam. Sua aventura consiste em dizer o que ignoram”.
Voltando ao título das peças, Eduardo Barbaresco Filho (2006, p.1) escreve “o título
tem força representativa de dizer algo à obra, sugerir motivar, envolver estruturas que
possibilitam uma interpretação (...).”.
Esse autor sustenta que, no momento da performance, da recriação do texto
musical, existe um extenso espaço de significados, onde a relação tulo, obra e som se
faz presente. O título aponta caminhos interpretativos através da semiose entre palavra e
música, obra e intérprete. Ou seja, os tulos (ainda mais, tão sugestivos como os da
segunda Prole do Bebê), induzem a leitura e a interpretação. Segundo o autor, a
interpretação provoca um jogo metafórico entre forma e conteúdo, expressão verbal e
som, que transforma um texto em outro, uma vez que o signo artístico é de natureza
inter-relacional, associativa.
Essa posição explica a questão colocada acima - a de quanto os títulos podem ter
influenciado a minha leitura, ou o quanto a leitura pode ter adjetivado e colorido os
títulos das peças da coleção. Há, na verdade, uma reciprocidade dinâmica entre a
construção sonora e o significado das palavras e vice-versa.
Ainda relacionado ao problema da construção da imagem estética, podemos citar,
além dos tulos, outras indicações metafóricas que Villa-Lobos deixou nas peças. Entre
imaginação e indicações textuais também reciprocidade. Para ser justificada, a
imaginação busca evidências no texto, as quais, por sua vez, oferecem inúmeras
possibilidades à imaginação. Na verdade, interpretar é um jogo metafórico intenso, que
busca e projeta significados.
O texto de Márcio da Silva Pereira (2003, p. 125-132) detalha o problema das
metáforas em música, a começar por sua própria terminologia, que é extraída de outros
campos, como, por exemplo, métrica, cor, equilíbrio. Caio Senna (2005, no prelo)
também coloca textura e forma como metáforas espaciais e ritmo como metáfora
temporal da música.
Pereira inclui, em seu texto, duas posições sobre o tema, a de Aristóteles
20
e a de
Eco
21
:
Aristóteles, na Poética, começa definindo metáfora como “(...) o transportar para uma
coisa o nome de outra.”; porém, para Umberto Eco, é na Retótica que o filósofo oferece
uma definição que antecipa a discussão atual sobre a metáfora, quando diz que “(...) é
pela metáfora que melhor podemos apreender algo novo”.
22
Algumas metáforas para
Aristóteles, “(...) nos passam a informação assim que as escutamos” e “(...) nos
transmitem alguma espécie de conhecimento”. (Pereira, 2003).
Entre metáfora e sinestesia pode-se perceber uma certa correspondência. Assim
como na primeira transporta-se “para uma coisa o nome de outra”, na segunda, associa-
se de imediato um determinado fenômeno a “imagens próprias de outra modalidade
sensitiva”. A propósito do conceito de sinestesia, Lívio Panizza
23
escreve:
(...)etimologicamente derivada de grego, significa syn, junto; aisthánesthai, perceber
significa, “percepção simultânea”. Pode ser definida como uma associação de sensações
diferentes percebidas contemporaneamente por um indivíduo, ou também como um
fenômeno no qual a percepção de determinados estímulos é acompanhada por
particulares imagens próprias de outra modalidade sensitiva. Pode-se assim falar de
fenômenos como a audição colorida ou a visão auditiva. (...) Outros tipos de sinestesia
são relações entre um campo sensorial e um extra-sensorial (...) um tipo se
correspondência que traça relações entre campos sensoriais e a abstração em forma
comparativa.
Como observado, Villa-Lobos não pretendia emprestar realismo às bonecas e
aos animais de brinquedos imaginários, construídos abstratamente, ou seja, a partir das
percepções desencadeadas pela escuta. Isso porque um brinquedo, na mente infantil, não
é só o objeto, mas, principalmente, aquilo que a criança, em sua fantasia, agrega a ele.
O texto musical de Villa-Lobos lança mão de inúmeras metáforas e nos coloca em
contato com representações que, suscitadas pela sinestesia, nos ajudam a imaginar os
animais, parados ou em movimento, emitindo seus sons peculiares e também mostrando
seus variados temperamentos. O compositor, a meu ver, tirando partido dos títulos das
Proles, associados à agógica e aos efeitos composicionais diversos, induz o pianista a
visualizar mentalmente as bonequinhas ou os bichinhos da família do bebê, e a ouvir
seus ruídos característicos. aqui um forte apelo à fusão de visão e audição que,
segundo Martinez
24
são os principais sentidos estéticos. Ele afirma:
(...) a música somente funciona como arte pura em uma de suas concepções
particulares, a música absoluta. Freqüentemente, a música faz referência a uma
20
Apud PEREIRA.
21
Apud PEREIRA.
22
Aristóteles. Poetics. Disponível em http://classics.mit.edu/Aristotle/poetics.html. Acesso em 2006.
23
PANIZZA, Lívio. A sinestesia na narrativa Dannuziana.
www.filologia.org.br/viiicnlf/resumos/asinestesianarrativa.htm, não
disponível.
24
MARTINEZ, José Luiz. A sinestesia da música com o visual e o verbal.
www.pucsp.br/pos/cós/rism/project-c.htm, agosto de 2000, p.1, não disponível
variedade de objetos acústicos e não-acústicos. Por outro lado, a música pode ser
associada a outras formas artísticas, pertencentes aos domínios da visualidade e do
verbal. Essas formas (...) canalizam suas significações através dos dois principais
sentidos humanos, a audição e a visão. Estes são os principais sentidos estéticos,
segundo vários autores (...). (2000, p.1)
O resultado sonoro obtido através da leitura nos incita a imaginar. Nossa
capacidade sinestésica de cruzar sensações colabora para a construção de fantasias e
imagens, as quais participam da concepção das sucessivas performances, entendidas,
pois, como atos reflexivo-criativos. Nesse sentido, quanto mais densa a rede de relações
sinestésicas e metafóricas criadas a partir do texto musical, mais nítida e rica pode ser a
imagem estética da obra.
A performance depende, entre outros fatores, da clareza e inteligibilidade da
imagem estética, da técnica do instrumentista, somadas à competência e à capacidade do
instrumentista de comunicar expressivamente suas idéias.
Mas o estudo histórico-estilistico e a análise musical contribuem igualmente para
a concepção da imagem musical. Como examinado, “conhecer” envolve reflexão e
intuição. Janet Schmalfedt
25
indaga se “alguém estabeleceu, de uma vez por todas,
como o ‘raciocínio’ pode, de alguma maneira, ser separado de ‘percepção’ e ‘intuição’
como atividade mental”.
Lendo sua entrevista concluímos que performance e análise são atividades
complementares porque envolvem intuição e reflexão, processos interdependentes, idéia
corroborada por Keith Swanwick (2003, ps.17-36), para quem o desenvolvimento
musical é estruturado através dos conhecimentos intuitivo e analítico. O educador
afirma que o primeiro é a base da experiência musical, adquirida por apreensão direta e
contato pessoal, e o segundo busca nomear, conceituar, tornar consciente o que jaz
escondido, reconstituir possibilidades, criando novas maneiras de sentir.
Na verdade, há interpretação convincente e informada quando se entrelaçam
análise e intuição. Isto porque os adjetivos “convincente” e “informada” sugerem que o
intérprete, para executar uma obra a tenha amado e entendido. Schmalfedt afirma que
“caso tenha chegado a amar uma peça, já comecei, de certa forma, a pensar nela
analiticamente (...)”.
25
CAVAZOTTI, A, GANDELMAN, S.Uma entrevista com Janet Schmalfeldt, Per Musi, Belo
Horizonte, v.5/6, p. 55
Inquestionavelmente
,
a análise musical contribui muito para a interpretação
porque nos faz perceber, de maneira consciente, as relações estruturais da peça a ser
executada. Analisar significa tomar consciência, organizar, classificar e hierarquizar,
verbalizando as características musicais da obra escolhida.
Analisar a Prole do Bebê 2 possibilitou-me entender a forma, compreender
como ela está segmentada (suas seções, subseções e a fraseologia), quais as
características de seu idioma (se tonal, modal, atonal ou politonal), a natureza de seus
acordes, como se apresentam sua textura (hierarquizando as camadas superpostas) e sua
rítmica (qual sua importância e função no conjunto), quais os procedimentos mais
usuais (repetições-ostinatos -, variações e contrastes) e o tipo de suas melodias (de
origem folclórica ou popular, ou criadas pelo compositor). Esse estudo fez com que o
entendimento e a projeção da coletânea fossem constantemente revistos e modificados.
Se, conforme Gandelman
26
a partitura é um “mapa”, um conjunto de signos e relações a
ser realizado sonoramente, seus sentidos vão sendo gradativamente descobertos pelo
intérprete no processo de estudo da obra musical. Os passos obrigatórios para esse
estudo, como observado, são: leitura-observação do mapa, estudo (técnico e analítico) e
memorização.
Schmalfeldt diz que “é compreensível que Charles Rosen [eminente pianista e
musicólogo], alegue que [suas] análises sejam apenas relatos verbais de [suas] prévias
interpretações em performances”
27
No entanto, a reflexão que colabora na montagem de
uma interpretação não pode negligenciar o estudo do estilo da peça
,
uma vez que
qualquer análise leva em conta o período em que a obra foi escrita.
Roy Howat
28
escreve que, por não estarmos lado a lado com a tradição do que,
geralmente, estamos tocando, os efeitos resultantes do desconhecimento de seu estilo
podem trazer conseqüências danosas à interpretação. Cita como exemplo uma escolha
inapropriada de ornamentação, para um trecho do terceiro movimento da Sonata para
violino e piano de César Franck, observando que iniciar nela um trinado (3º mov., cs. 4-
25) pela nota superior - podendo esta escolha, estar associada inconscientemente à
tradição dos recitativo - soa grotesco para o contexto e vai absurdamente contra a
26
CAVAZOTTI, A, GANDELMAN, S. Uma entrevista com Janet Schmalfeldt, Per Musi, Belo Horizonte,
v.5/6.
27
Apud GANDELMAN.
28
Apud GANDELMAN.
textura lida do piano e o cromatismo wagneriano, além de se perder o forte sentido
de fanfarra.
Epstein
29
alega que o pensamento estruturalista (racional) do século XX foi
aplicado à música, pretendendo que as análises fizessem “ver”, ouvir, e mostrassem,
através da linguagem verbal, as estruturas musicais. Tal ambição bem como a pretensão
dos analistas Edward Cone
30
, Wallace Berry
31
e Tovey de conferirem à análise musical
a autoridade para determinar a “verdade” sobre a interpretação de determinada obra, são
refutadas por Lester
32
, Meyer
33
e Rosen
34
, os quais argumentam que um analista, para
analisar, precisa antes ouvir mentalmente a peça, formando para isso um modelo
interpretativo. Ou seja, eles sustentam que qualquer análise parte de uma interpretação
mental, ao vivo ou gravada. Em seu artigo (já citado), Lester sugeriu usar gravações de
artistas consagrados para, a partir de suas decisões interpretativas, desenvolver análises,
o que implica na constatação e exame de suas vertentes subjetivas.
Assim como Gadamer
35
alega e justifica que uma interpretação constitui um dos
possíveis significados de uma obra, os analistas, através dos trabalhos que apresentam,
confirmam que uma análise também é um dos recortes possíveis de uma obra.
No processo interpretativo o esforço intelectual, a imaginação e intuição, as
associações sinestésicas, o vigor do título são vetores complementares. Não
possibilidade de determinação de uma ordem ou de uma hierarquia entre eles.
29
Apud GANDELMAN.
30
Apud GANDELMAN.
31
Apud GANDELMAN.
32
Apud GANDELMAN.
33
MEYER, Leonard. Explaining music: Essays and explorations. Berkeley and Los Angeles: University
of Califórnia Press. 1973.
34
ROSEN, Charles. Plaisir de jouer, plaisir de penser: conversasion avec Catherine Temerson. Paris,
Editions Eschel. 1993.
35
Apud ABDO.
2 Contextualização Histórica da Prole do Bebê nº 2.
2.1 A ruptura com o romantismo: modernismo e nacionalismo.
O nacionalismo musical brasileiro, em seus primeiros passos - final do século
XIX e início do XX -, ainda estava fortemente vinculado ao romantismo europeu.
Compositores como Carlos Gomes (1836-1896), Leopoldo Miguez (1850-1902) e
Henrique Oswald (1852-1913), que estudaram e viveram períodos mais ou menos
longos na Europa, embora permeáveis às influências do nacionalismo, mantiveram seus
elos com o verismo italiano, Liszt, Wagner e Fauré. Alexandre Levy (1864-1892) e
Alberto Nepomuceno (1864/ 1920), primeiro compositor a empregar texto em português
na canção, dão tratamento particular ao material de origem popular, “com especial
enfoque do caráter melódico” e “com aproveitamento consciente da rítmica afro
brasileira” (Neves, 1981, p.20). Levy baseia composições como Variações sobre um
tema brasileiro (1887), na canção infantil “Vem Bitu”, na chula paulista “Se eu te
amei” e na canção gaúcha “Balaio” (também usada na Sertaneja de Brasílio Itiberê, em
1860). Na sua Série brasileira, Nepomuceno utiliza a canção infantil “Sapo jururu”,
uma linha melódica alusiva ao maxixe e células rítmicas originárias de danças afro-
brasileiras. Segundo Luiz Heitor Correa de Azevedo (150 Anos de Música no Brasil,
1956, p.166), a Série Brasileira, malgrado a singeleza, quiçá mediocridade da
orquestração, fica sendo na música brasileira o marco inicial da orientação
nacionalista”. E José Maria Neves acrescenta: “E isto muito mais pelo clima e pelo
sentimento de brasilidade que a obra revela do que pelo emprego de forma ou estrutura
absolutamente original” (1981, p.21), ou seja, o tratamento dado ao material musical
seguiu modelos harmônicos e polifônicos europeus.
A busca de aproveitamento de material popular e da forma adequada de seu
tratamento apontam para o modernismo
36
, que procurou “um novo modo de
relacionamento entre a alta cultura dos letrados, academias, conservatórios, salões e
as culturas populares” (Travassos, 2000, p.16). Nas primeiras décadas do século XX era
marcante a insatisfação geral com o modo pelo qual compositores românticos se
relacionavam com a música popular, provocando, nos artistas modernistas, reações anti-
36
Designação comum a diversos movimentos da literatura, das artes plásticas, da arquitetura e da música,
surgidos a partir do fim do século XIX e que se estendeu, aproximadamente, até a década de 40 do século
passado, caracterizando-se pela constante busca do “novo”.
românticas e uma repulsa a tudo o que pudesse ser qualificado de sentimental.
(Travassos, 2000, p.43). O nacionalismo romântico que dominava a literatura e se
contentava, como na ópera O Guarani de Carlos Gomes, com a hipertrofia do
“nativismo” e com a construção superficial de personagens indígenas, então tomados
como símbolo mesmo do povo brasileiro, foi alvo de severos ataques. (Neves, 1981, p.
32).
Apesar dos esforços dos compositores anteriores ao modernismo, é justamente
nesse período que a música brasileira começa a se colocar no cenário mundial.
Para tal situação contribuiu um conjunto de circunstâncias favoráveis, principalmente a
de contar com Villa-Lobos como principal compositor, e Mário de Andrade no papel de
pensador e crítico da sica no Brasil. Assim se estruturou o modernismo nacionalista,
movimento predominante até mais ou menos 1940, segundo Travassos (2000, p. 33).
Seu impulso inicial veio da pintura e escultura, artes em que eram estimulados o
abandono do estudo acadêmico, o estudo livre para que a originalidade aflorasse, a
libertação da influência do passado e o combate ao sentimentalismo fácil e à crítica
profissional, declarada ignorante.
Afirma José Maria Neves (1981, p. 30) que o movimento modernista brasileiro
resultou da conjugação de vários fatores, entre eles: o retorno da Europa do poeta e
escritor Oswald de Andrade, a exposição de Anita Malfati e de Victor Brecheret e a
atuação de Mário de Andrade. Ao grupo juntaram-se o escritor e acadêmico Graça
Aranha, autor de Estética da Vida, e o escritor e jornalista Menotti del Picchia, autor de
um pequeno livro de poemas, Juca Mulato, onde ataca o tradicionalismo exacerbado e
lamenta a carência de figuras verdadeiramente representativas na literatura brasileira.
Declara-se contra o conservadorismo, a escravidão ao passado e a subserviência ao
obsoleto.
Segundo Neves (1981, p.30), a primeira manifestação do modernismo brasileiro
foi a exposição da pintora Anita Malfati em 12 de dezembro de 1917. Sua técnica e suas
idéias, bastante semelhantes às do cubismo, chocaram o público, despertaram a ira da
crítica especializada e foram o alvo da admiração da jovem intelectualidade paulistana.
A pintora contou com o apoio de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e
Menotti del Picchia, que a defenderam com o mesmo vigor com que os críticos, entre os
quais estava Monteiro Lobato, tentaram arruiná-la, afirmando que o futurismo e o
cubismo nasceram “com a paranóia e com a mistificação”, e que “não sinceridade
nenhuma nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura”.(Neves, 1981, p. 31). Mário de
Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Sergio Milliet, entre outros, não
eram partidários do futurismo europeu, simplesmente usavam essa “etiqueta” como
elemento de choque, bandeira de guerra; queriam apenas defender a liberdade de
expressão e a modernização das linguagens artísticas, sem com isto pretenderem seguir
fielmente a nova estética européia. Por volta dos anos 20, qualquer pessoa poderia ser
tachada de futurista, bastando manifestar-se partidária da necessidade de reformulação
das linguagens artísticas e da recusa do academicismo e do tradicionalismo. (Neves
1981, p.33).
No Brasil, a postura geral de todos os compositores, de reconhecimento da
necessidade de renovação do posicionamento estético e da linguagem musical, através
da busca de novos recursos técnicos, foi acompanhada da valorização do folclore e da
música popular, integrados como parte intrínseca do tecido musical, e não apenas como
citação ou elemento exótico. Assim, o modernismo deu ênfase ao nacionalismo,
firmando compromisso não com a renovação material e formal, mas também
objetivando compreender o caráter do povo e a terra brasileira. (Neves, 1981, p.34)
Apesar de conduzido por intelectuais, o movimento modernista, em sua busca de
reafirmação da nacionalidade brasileira, e em seu combate ao academicismo, mostrou-
se anti-elitista, que valorizava o emprego do popular, preocupando-se com o
entendimento, por parte dos ouvintes, das obras apresentadas.
2.2 Mário de Andrade e a Semana de Arte Moderna
Travassos (2000, p. 33 e 34) menciona que a racionalização da estética
nacionalista foi formulada e expressa por Mário em seu Ensaio sobre a música
brasileira, resumindo as idéias fundamentais sobre o tema em cinco proposições:
1) a música expressa a alma dos povos que a criam
2) a imitação dos modelos europeus tolhe os compositores brasileiros formados
nas escolas, forçados a uma produção inautêntica
3) sua emancipação será uma desalienação mediante a retomada do contato com a
música verdadeiramente brasileira
4) esta musica nacional está em formação, no ambiente popular, e aí deve ser
buscada
5) elevada artisticamente pelo trabalho dos compositores cultos, estará pronta a
figurar ao lado de outras no panorama internacional, levando sua contribuição
singular ao patrimônio espiritual da humanidade.
Estão claras as diretrizes que revelam a funcionalidade da arte, seu papel na
sociedade, alcançados através de um nacionalismo criteriosamente construído, e tendo
como fonte a cultura popular. Para Mário de Andrade, a música deveria sair do povo e
retornar a ele, que com ela passaria a se identificar, dando, assim, início ao processo de
criação de uma consciência nacional. Segundo Travassos (2000, p.44), Mário de
Andrade não destinava à música a função de descrever o mundo; ele afirmava que seu
poder residia na possibilidade de exteriorizar a dinâmica psíquica das comoções.
Para o musicólogo, era imprescindível o estudo sistemático do folclore, da arte
popular, bem como a pesquisa dos elementos característicos da música brasileira,
estudos que tiveram seu apoio quando diretor do Departamento de Cultura de São
Paulo. Sua honestidade intelectual jamais permitiu que ele concordasse com a simples
defesa da espontaneidade, cioso que era do trabalho artesanal, do conhecimento técnico
das tradições, do estudo e da responsabilidade social do artista. (Travassos, 2000, p. 46).
Mentor intelectual de novos compositores formulou os problemas do
nacionalismo e os respondeu de modo claro; segundo ele, a tarefa do compositor seria
“colaborar para a determinação (pelo estudo) e para a normalização (pelo emprego
sistemático) dos caracteres étnicos permanentes da musicalidade brasileira e colaborar
no trabalho de afirmação da nacionalidade”. (Andrade, 1972, pág. 153, apud José Maria
Neves, 1981, p. 45).
Mário foi um dos principais mentores da Semana de Arte Moderna, evento
ocorrido em fevereiro de 1922, que divulgou o pensamento modernista no Brasil.
De 1900 a 1920 a produção artística brasileira foi, na verdade, uma lenta
preparação para a grande revolução da Semana de Arte Moderna. O acontecimento
alvoroçou profundamente a vida cultural de São Paulo e essa agitação foi,
posteriormente, se estendendo a outros estados do país, levando o protesto anti-
acadêmico e enfatizando a necessidade de criação do caráter nacional. O evento foi
essencialmente paulista, mas contou com a colaboração dos cariocas Manuel Bandeira,
Sérgio Buarque de Holanda e Villa-Lobos, compositor especialmente convidado para a
ocasião, por sintetizar a ideologia artística dos mentores da Semana - fusão de
modernismo e brasilidade -, embora as obras por ele apresentadas nas três récitas desse
evento não tivessem tal perfil, mostrando ainda considerável influência francesa.
Esse importantíssimo acontecimento compôs-se de exposições, conferências
sobre a estética modernista, leituras de poemas e concertos. O radicalismo dos
conferencistas foi certamente o que primeiro chocou o público presente. As vaias e os
comentários irreverentes feitos durante as apresentações, são elementos constantes na
crônica desta Semana, bem descrita em O Coro dos Contrários de José Miguel Wisnik.
Os concertos contaram com a colaboração de músicos que vieram do Rio de
Janeiro (Paulina d’Ambrósio, Alfredo Gomes, Fructuoso de Lima Vianna, Lucília Villa-
Lobos, Ernani Braga, George Marinuzzi, Orlando Frederico, Alfredo Corazza, Pedro
Vieira, Antão Soares, Frederico Nascimento Filho, Maria Emma, Pedro Vieira) e com a
especial participação de Villa-Lobos e da pianista Guiomar Novaes.
Abaixo
37
está o programa de música da Semana de Arte Moderna:
37
WISNIK, José Miguel. O Coro dos Contrários, a música em torno da semana.São Paulo, Duas cidades,
Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977. ps. 67-70.
Programa do primeiro festival
Segunda-feira, 13 de fevereiro de 1922.
1ª parte
Conferência de Graça Aranha: A emoção estética na arte moderna
Música de câmera:
Villa-Lobos
1. Sonata II para violoncelo e piano – (1916)
Músicos: Alfredo Gomes e Lucília Villa-Lobos
2. Trio segundo: violino, violoncelo e piano – (1916)
Músicos: Paulina d’Ambrósio, Alfredo Gomes e Fructuoso de Lima Vianna
2ª parte
Conferência de Ronald de Carvalho: A pintura e a escultura moderna no Brasil.
3. Solos de piano: Ernani Braga
Valsa Mística (da Simples Coletânea (1917)
Rodante (da Simples Coletânea (1919)
A fiandeira (1921)
4. Octeto – (Três danças africanas)
Farrapos – (“Danças dos moços”, 1914)
Kankukus – (Dança dos velhos, 1915)
Kankikis – (“Dança dos meninos,” 1916)
Violinos: Paulina d’Ambrósio, George Marinuzzi
Alto: Orlando Frederico
Violoncelos: Alfredo Gomes, Basso: Alfredo Corazza
Flauta: Pedro Vieira, Clarino: Antão Soares.
Programa do segundo festival
Quarta-feira, 15 de fevereiro de 1922.
1ª parte
Palestra de Menotti del Picchia, “ilustrada com poesias e trechos de prosa por Oswald
de Andrade, Luiz Aranha, Sérgio Millet, Tácito de Almeida, Ribeiro Couto, Mário de
Andrade, Plínio Salgado, Agenor Barbosa e dança pela senhorinha Yvonne Daumerie.”
(WISNIK, 1977, p. 68)
1. Solos de piano:
E. R. Blanchet: Au jardin du vieux Serail (Andriniple)
H. Villa-Lobos: O Ginete do Pierrozinho
C. Debussy: La soirée dans Grenade.
C. Debussy: Minstrels
Guiomar Novaes
2ª parte
Palestra de Mário de Andrade e Renato Almeida: Perennis Poesia
2. Canto e piano
Festim Pagão (1919)
Solidão (1920)
Cascavel (1917)
Frederico Nascimento Filho e Lucília Villa-Lobos
3. Quarteto terceiro (cordas 1916)
Violinos: Paulina d’ Ambrósio, George Marinuzzi
Alto: Orlando Frederico
Violoncelo: Alfredo Gomes
Programa do terceiro festival
Sexta-feira, 17 de fevereiro de 1922.
1ª parte
Villa-Lobos
1. Trio terceiro – violino, violoncelo e piano (1918)
Paulina d’Ambrósio, Alfedo Gomes e Lucília Villa-Lobos
Canto e piano
2. Historietas de Ronald de Carvalho (1920)
Lune d’octobre
Voilà la vie
Jouis sans retard, car vite s’écoule la vie.
Maria Emma e Lucília Villa-Lobos
3. Sonata segunda – violino e piano (1914)
2ª Parte
Villa-Lobos
4. Solos de piano: Ernâni Braga
Camponesa cantadeira (da Suíte Floral, 1916)
Num berço encantado (da simples Coletânea, 1919)
Dança Infernal (1920)
5. Quarteto Simbólico (Impressões da vida mundana) – flauta, saxofone, celesta e
harpa ou piano
Allegro ma non troppo
Andantino
Allegro finale
Pedro Vieira, Antão Soares, Ernani Braga e Fructuoso de Lima Vianna
Como descreve Neves:
Tais obras não mereciam recepção hostil do público; elas são ainda derivadas do post-
romantismo, sem o modernismo de outras obras da mesma época, como o ballet
Amazonas, citado. Ainda que bem representativas da linguagem musical de Villa-
lobos dos primeiros anos do século, estas obras são construídas dentro dos cânones
tradicionais, com estrutura melódica, harmônica e formal facilmente reconhecíveis.
(1981, p.37).
No entanto, a aproximação com as poesias revolucionárias, fizeram-nas receber a
etiqueta de futuristas e incompreensíveis e foram vaiadas, assim como os poetas e
conferencistas que se apresentaram antes.
A Semana de Arte Moderna atingiu seus objetivos através do escândalo e da
indignação. O evento divulgou as reivindicações dos artistas, baniu os pastiches da arte
européia, estabeleceu uma consciência criadora nacional e atualizou a inteligência
brasileira.
2.3 O nacionalismo moderno e Villa-Lobos na década de 20.
A volumosa obra de Villa-Lobos sofreu, ao longo de sua vida, algumas mudanças.
Antenado com a produção musical de seu tempo, o compositor entrou em contato com
recursos composicionais diversos e linhas estéticas variadas que assimilou e empregou
em sua obra, sem, no entanto, jamais perder sua ligação com a música folclórica e
popular brasileira.
Segundo Tacuchian (1988, ps.104 e 105), o compositor passou por quatro
diferentes fases composicionais. A primeira foi a de formação (até 1919), quando
buscava seu estilo, compreendendo quatro sinfonias, quatro quarteto de cordas, três
óperas, a Suíte popular brasileira, as Danças características africanas, o concerto para
violoncelo, o Sexteto místico, e peças para piano como Carnaval das crianças
brasileiras, Simples coletânea, Suíte floral e a Prole do bebê nº 1. A segunda, da década
de 20, foi a de Vanguarda Modernista, fase em que participou da Semana de Arte
Moderna, empreendeu viagens a Paris, compôs a Prole do Bebê 2, os dezesseis
Choros, o Momo Precoce, o Rudepoema, enfim um período de profícua criatividade, em
que o compositor encarnou o modernista “avant la lettre”, sintetizando elementos da
música folclórica e popular brasileira e “técnica composicional que se ligava a
experiências musicais recentes” (Neves, 1981, p. 50).
Ainda segundo Tacuchian (1981, p. 104 e 105), na terceira fase, a das Bachianas,
compreendida entre 1930 e 45, Villa-Lobos foi “tocado pela febre do neo-classicismo”
(Neves, 1981, p. 53). Nessas obras, o compositor conciliou o “nacional com o universal,
o presente com o passado, o moderno com o formal” (Tacuchian, 1981, p.105),
retornando às estruturas clássicas por acreditar serem elas mais acessíveis às massas. A
partir de 1930, com apoio do então presidente Getúlio Vargas, deu início a um amplo
movimento de educação musical, criou o Serviço de Educação Musical e Artística do
antigo Distrito Federal e fundou o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico e a
Academia Brasileira de Música, da qual foi o primeiro presidente. São desse período a
Valsa da Dor e o Ciclo Brasileiro, obras para piano, além de inúmeras outras para
diversas formações. A última fase, a quarta, época em que viajou constantemente para
os Estados Unidos, estendeu-se de 1945 até sua morte. Tacuchian (1981, p. 105) a
denominou “universalista”, talvez por Villa-Lobos ser internacionalmente conhecido
e dedicar-se à divulgação de sua obra, compondo para o público tanto da Europa quanto
dos Estados Unidos. Durante essa fase, compôs nove quartetos de cordas (n.º 9 ao 17),
cinco concertos para piano e orquestra , o segundo concerto para violoncelo e orquestra,
além de concertos de harpa, harmônica e violão, Erosão, Emperor Jones, Genesis e os
Cantos da floresta tropical, Fantasia concertante, ópera Yerma, Hommage à Chopin
para piano e inúmeras obras sacras.
No entanto, nosso foco, é o Villa-Lobos da década de 20. A esse período, como
citado, Tacuchian se refere como sendo o de vanguarda modernista do compositor,
enquanto Neves (1981, p. 50) apenas o designa como modernista. O último autor
escreve que é justamente nessa década áurea do modernismo brasileiro que o
compositor produziu obras que foram a perfeita realização dos ideais do nacionalismo -
o de unir técnicas de composição avançadas da época com brasilidade. Por ter vivido a
experiência da música popular e ter se empenhado em coletas de melodias folclóricas,
Villa-Lobos conseguiu fazer transposição erudita da música popular urbana, somando-
lhe elementos folclóricos de diversas regiões, e criou, segundo Neves “um clima sonoro
que é ao mesmo tempo o reflexo da música popular urbana brasileira e um imenso
painel de toda a sensibilidade musical de seu povo” (1981, p.51).
Segundo Neves (1981, p. 50), Villa-Lobos se identificava com seu povo, como,
através do folclore e da música popular de diferentes regiões do país, se identificava
com sua terra. São dele as palavras: “Se [minha obra musical] é em grande quantidade,
é fruto de uma terra extensa, generosa e quente” (...).
38
“e escrevo música brasileira
porque me sinto possuído pela vida do Brasil, seus cantos, seus filhos e seus sonhos.
Suas esperanças e suas realizações”.
39
Essa postura o levou a um nacionalismo natural e
sem artifícios racionalizados. Na verdade, Villa-Lobos expressava os propósitos de
Mário de Andrade, antes mesmo da emergência das idéias do escritor. O compositor
desde sempre foi brasileiro e espontaneamente modernista. Os traços nacionalistas
encontram-se nas melodias folclóricas e na rítmica (síncopes e acentuação deslocada), e
os modernistas, principalmente na harmonização, na elaboração de ostinatos
40
, na
funcionalidade do ritmo (elemento integrador, ostinatos, fórmulas de compasso
inusitadas, quiálteras diversas, polirritmias, mudanças de agógica e de fórmulas de
compassos) e na construção da textura e da forma. Todos esses procedimentos
composicionais serão estudados separadamente, no quarto capítulo deste trabalho.
38
In Presença de Villa-Lobos, Rio de janeiro, Mec, Museu Villa-Lobos, vol. 4, p. 98
39
Idem, vol.3, pág.175.
40
No Grove (Sadie, 1980, vol. 14, pág. 11), ostinato é definido como “padrão musical em constante
repetição, enquanto os outros mudam ao seu redor”
2.4 Prole do Bebê nº2
A Prole do Bebê 2 de Villa-Lobos, com o subtítulo Os Bichinhos, constitui
um ciclo de nove peças para piano solo, independentes entre si, de grande dificuldade
técnica e interpretativa, cada uma envolvendo questões específicas, razão porque raras
vezes é integralmente executada. Como escreve Merhy (1984, p.3) “a impulsividade e o
jorro espontâneo são [suas] características predominantes”. Seu porte e importância são
consagrados tanto na literatura para piano no Brasil como no exterior (vários pianistas
nacionais e internacionais já lhe dedicaram estudo, performance e gravação).
Vale ressaltar o profundo interesse de Villa-Lobos pelo mundo infantil, assim
como sua cuidadosa observação desse universo. O compositor dedicou às crianças
várias outras obras como: Brinquedo de roda (1912), Petizada (1912), Suíte Infantil
(1912), as 12 Cirandinhas (1925), Histórias da Carochinha (1919), Fábulas
Características (1914), o Carnaval das Crianças (1919), os Guias Práticos (1941) onde
ele também recorre a animais, como o cuco, o rato, o gato e a araponga, além da própria
Prole do Bebê 1 (1918). Mas é importante lembrar que nem todas as obras que ele
compôs inspirando-se no universo infantil, são para executantes-mirins, como por
exemplo, as Cirandas (1926) e a própria Prole do Bebê nº2 (1921-1927).
Mário de Andrade, em Música, doce Música reconhece a capacidade de Villa-
Lobos em adentrar no mundo infantil, e comparando-o a Mussorgsky, Debussy e
Schumann, o coloca em posição de vantagem quanto à sua forma poética de tratar a
fantasia dos pequeninos:
Quem, a meu ver, conseguiu adquirir toda essa largueza interpretativa, e nos revelou a
criança, em mais audaciosa e larga escala, foi Villa-Lobos. É certo que o compositor
brasileiro não dedicou apenas um momento da sua criação ao tema, como fizeram os
outros três. Villa-Lobos, pelo contrário, compôs para perto de uma centena de peças
interpretando a criança, divididas em várias séries, de que as mais célebres são o Momo
precoce, a Prole do bebê e a esplêndida coleção das Cirandas. É certo que em tamanha
variedade de peças um pouco de tudo, peças apenas descritivas, peças interpretativas
da psicologia infantil, umas mais exteriormente dinâmicas, outras de sentido
psicológico (...). (1976, ps.306 e 307).
A respeito de segunda Prole ele escreve:
(...) agora com toda a liberdade da música instrumental, não apenas nos interpreta
com leveza o mundo infantil, como na “Prole do Bebê”, mas também todo o seu drama
interior. E surgem, então visões assombradas, de uma intensidade verdadeiramente
trágica, em que os ritmos se arrepiam, as melodias se quebram, as harmonias maltratam,
bárbaras e rijas; e a sentimental imaginação infantil, o campo grave, assustado, vibrátil
da sensibilidade descontrolada e ignara, vê fantasmas, dores e milagres no menor
brinquedinho de borracha. E surgem ursozinhos que são monstros fantasmagóricos. (...)
(1976, p. 307).
A segunda Prole é, como dito por Souza Lima (1976, p.44), muito mais
complexa que a primeira, e também bastante sarcástica, que os títulos sugerem uma
inocência, uma ternura e simplicidade, que contradizem sua estruturação, elaborada por
complexos processos rítmicos, de harmonização e de criação de texturas. A ausência de
pretensão dos tulos é pura ironia do compositor que também sofistica em alto grau a
dinâmica, as articulações, as acentuações e a agógica.
As citações de Arnaldo Estrella
41
e de Homero de Magalhães
42
, apresentadas a
seguir, oferecem uma visão geral da natureza e complexidade da obra:
O ambiente sonoro afasta-se definitivamente da sensualidade debussista; e o
compositor, através de uma rítmica estimulada por acentuações imprevistas, de uma
nitidez percussiva e de uma atonalismo mais ousado, enfileira-se entre os vanguardistas
contemporâneos, aproximando-se de Stravinsky, Prokofiev e Bártok sem que esse
paralelismo incorra em perda da substância nacional e das características pessoais.
(Estrella, apud HORTA, 1987, p. 38)
Esta série, como bem lembra Souza Lima, é muito mais rica e também mais irônica e
sacástica. O que tem a Prole do Bebê 1 de simples em suas miniaturas delicadas e às
vezes ao alcance do adiantamento musical das crianças, tem a Prole 2 de complicada
e elaborada. algo de maquiavélico no fato de Villa-lobos considerar “animaizinhos”
de tão colossais proporções como fazendo parte da família do bebê (...) As dificuldades
técnicas deste ciclo são realmente muito grandes; estes bichinhos metem medo em
qualquer criança e são brinquedos da criança grande Heitor Villa-lobos (...) A Prole do
Bebê 2, apesar da escrita carregada, ainda conserva a influência francesa, mas é mais
rude, dura e seca
,
à Stravinsky. (Magalhães, 1994, p.210)
É comum em Villa-Lobos, encontrarmos problemas quanto à veracidade das
datas (Béhague, 1994, p. 165 e 166). Na partitura da segunda Prole consta que ela foi
composta em 1921. No entanto, o ciclo foi dedicado à pianista Aline van Barentzen, que
o compositor conheceu na Europa, ou seja, depois de 1921, e que estreou a obra em
1927. Outras indagações - porque essa coleção não teria sido executada na Semana de
Arte Moderna, já que alguns pianistas como, por exemplo, Guiomar Novaes e Antonieta
Rudge poderiam tê-lo feito; e a razão do compositor não a ter mostrado para Rubinstein
(1887-1982), em 22, quando ele esteve no Brasil -, reforçam a dúvida sobre a datação.
Segundo Peppercorn “algumas de suas obras têm datas de composição bem anteriores
41
Comentário de Arnaldo Estrellain HORTA, Luiz Paulo. Villa-Lobos; uma introdução, Rio de Janeiro.
Editora Zahar, 1987, p. 38.
42
MAGALHÃES, Homero de. A Obra pianísitca de Heitor Villa-Lobos. Tese de doutorado: Instituto de
Artes da UNESP, 1994, p.
àquelas em que, de fato, foram escritas, embora seja bem possível que alguns esboços
tenham sido feitos muitos anos antes.”
43
Ademais, a análise dos procedimentos composicionais empregados nesse ciclo,
mostra que, alguns deles, provavelmente, o compositor teria começado a usar após seu
contato com as vanguardas da época, na Paris dos anos 20.
Considerando as questões abordadas, é possível que a série tenha sido iniciada
no Rio de Janeiro, em 1921, e levado longos seis anos para ser gestada e concluída,
provavelmente em 1927.
43
some of his works bear an early compositional date, but in all likelihood were written at a later
date,though, if at all, sketches may have been written many years before" In: PEPPERCORN, Lisa. Villa-
Lobos - The Music. EUA Pro/Am Music Resources Inc. 1991, s/n, s/d.
Capítulo Contribuições da análise musical e do imaginário para a
interpretação da Prole do Bebê nº 2. Influências na performance de cinco pianistas.
Este terceiro capítulo destina-se a uma breve análise musical das peças que
compõem a coleção
;
ao recorte e análise dos procedimentos composicionais e efeitos
que parecem levar nossa imaginação para os bichinhos de brinquedo que dão título a
elas; e à comparação das gravações do ciclo completo, realizadas pelos pianistas Aline
Van Barentzen (holandesa), Anna-Stella Schic, Sônia Rubisnky (brasileiras) Alessandra
Garosi (italiana) e Marc-André Hamelin (canadense). A primeira estreou a série, Schic e
Rubinsky gravaram a obra integral de Villa-Lobos, tendo Schic recebido orientações
diretas do compositor. Optei também pela audição de versões de artistas estrangeiros
por serem enriquecedoras, na medida em que lançam luzes diferentes sobre as obras,
talvez mais distanciadas do modo, até certo ponto característico, de o sico brasileiro
resolver questões rítmicas e fraseológicas.
Como escrito na introdução, o estudo pretende apresentar idéias e metáforas que
contribuam para construir interpretações criativas e consistentes, baseadas na concepção
estética (formada pela pesquisa do contexto em que as peças foram compostas e dos
procedimentos empregados pelo compositor), na intuição e imaginação do pianista,
despertadas pelos diferentes efeitos produzidos pelos recursos composicionais
explorados por Villa-Lobos, entre os quais se destacam:
a. efeitos onomatopaicos e de agógica, que aludem aos ruídos emitidos
pelos animaizinhos ou à sua movimentação,
b. efeitos descritivos da matéria-prima dos bichinhos (texturas),
c. efeitos que fazem o piano soar como outro instrumento,
d. efeitos virtuosísticos como, por exemplo, o resultante do “Princípio do
Polichinelo”
44
,
e. efeitos usando técnicas modernistas, principalmente em relação à
harmonização, à construção de acordes, à textura e à elaboração dos
ostinatos,
44
Princípio que consiste em criar harmonias e ou ostinatos a partir de intervalos, construídos em função
da topografia do teclado. Ou seja, um princípio que combina, com uma lógica própria, acordes,
acompanhamentos e ostinatos, usando a disposição das notas brancas e pretas. MERHY, Silvio. O
sistema de dissonâncias da Prole do Bebê 2. III Encontro Nacional de Pesquisa em música. BH:
UFMG, 1989, p. 9.
f. efeitos usando recursos nacionalistas provenientes do emprego de
melodias folclóricas ou pseudo-folclóricas e da rítmica.
A análise desses efeitos, percebidos tanto por meio de análise musical quanto
pela escuta das gravações, pode tornar mais nítida e rica, para o intérprete e para o
ouvinte, a imagem sonora de cada uma das peças.
3.1 A baratinha de papel
Le petit cafard en papier…
Eero Tarasti (1995, p.272) menciona a atenção do compositor aos insetos,
afirmando que ele dedicou alguns trabalhos a esses animais
45
, como o Martírio dos
Insetos, para violino solista e orquestra, de 1925, segundo catálogo da Academia
Brasileira de Música (http://www.abmusica.org.br/partiturasO.htm) ou para violino e
piano, segundo Mariz (1982, p.142). A escolha de aludir a insetos pode também lembrar
Musiques Nocturnes, para piano de Bártok, obra em que o compositor cria efeitos
pianísticos que imitam insetos, sapos e pássaros noturnos.
46
A peça, uma forma binária A (cs.1 a 50) /B (cs. 51 a 79), tem início com um
ostinato atonal que Homero de Magalhães (1994, p.211) denomina pendular (Exemplo
1), que nele há um claro direcionamento ascendente e descendente, movimento que a
mão do pianista também faz em sua execução.
Exemplo 1. A baratinha de papel, cs. 1 e 2 – Ostinato.
45
Além da citada peça há alusão a insetos na Dança dos mosquitos
46
Disponível em: http://www.bartokcds.com/interpretation.html. Acesso em 2007.
Nele (como em outros), o teclado é aproveitado topograficamente, explorando
determinado tipo de simetria entre teclas brancas e pretas, sem conformação rigorosa de
intervalos (Souza Lima, 1968, p.44).
Esse ostinato, gerador de efeito motóreo, é constituído por dezesseis notas das
quais emergem duas vozes
:
a mais grave é uma escala tetratônica defectiva nas notas
pretas, tocada com os polegares, e a mais aguda, formada por notas brancas (escala
diatônica)
,
é tocada com o terceiro, quarto e quinto dedos da mão direita do pianista (ou
2º e 1º da esquerda).
Na seção A (cs.1 a 50), o primeiro tema, na mão esquerda, tem início no
compasso 5, no pólo de maior (sua primeira nota é repetida, assim como a nota
inicial da canção folclórica, do#, dominante da tonalidade, fá# maior, em que ela é
apresentada), em escrita polirrítmica (3 quiálteras de semínimas na mão esquerda contra
oito semicolcheias, na direita, sobre as quais recaem acentos vigorosos e a indicação rf,
determinando grupamentos regularmente variados - 3+3+2). É ele constituído por uma
longa frase de 14 compassos (cs.5 a 18), subdivida em três segmentos (Exemplo 2). O
primeiro é uma linha ascendente que se estende do dó 2 (no c.5) ao lá 2 (no c.8), ao qual
se segue uma insistente repetição de três notas, lá 2, sol 2 e 2, (justamente as três
notas descendentes do ostinato) em rítmica variada (cs.8 a 13.1), repetição
acompanhada pelo encurtamento do ostinato, que se reduz ao seu desenho ascendente.
Dessa forma, superpõe-se o desenho ascendente do ostinato à sua parte descendente
(Exemplo 3). Esse conjunto de fatores, aliados à indicação molto affret, aponta para a
aceleração que conduz ao ápice da frase (c.13), após o qual um glissando descendente
leva ao –1, nota que é repetida em f por um compasso e prolongada até o final da
primeira subseção, a (cs.1/18). A ela se superpõe o 2, nota inicial do tema
(confirmação do pólo).
Exemplo 2. A baratinha de papel, cs. 5 a 18 - 1º tema e seus 3 segmentos.
Exemplo 3. A baratinha de papel, c. 10 -
Superposição de parte ascendente do ostinato (mão
direita) à parte descente do mesmo (mão esquerda).
Na 2ª subseção de A, b (cs.19/30), a 1ª é re-exposta, com inversão de suas vozes:
o ostinato passa para mão esquerda e o tema, encurtado e variado, para a direita. Já na 3ª
subseção, c (cs. 31/46), o primeiro tema volta para o baixo e o ostinato, entre os
compasso 37 e 42, se apresenta, como na subseção, reduzido ao desenho ascendente,
superposto ao seu segmento descendente - 2ªparte do 1ª tema. Mais uma vez um
glissando descendente se estende, agora até o –1, repetido em fff por dois compassos
produzindo grande volume sonoro - e prolongado até o final da seção (c.50), a ele
novamente se superpondo o 2. A repetição maçante, por sete vezes seguidas da
mesma nota grave, em fff , pode aludir a uma tentativa enfurecida de esmagamento do
perturbador bichinho.
Na seção B (cs. 51 a 79) é apresentada a canção folclórica infantil “Fui no
Itororó”.
47
(Exemplo 4)
Exemplo 4. A baratinha de papel, cs. 53 a 78 - Melodia folclórica“Fui no Itororó”.
Nas suas duas subseções d (cs.51/67.1) e e (cs.67.2/79), a melodia tem
tratamento diferenciado. No segmento da subseção d (c.51 a 60), ela é superposta ao
ostinato inicial que, na 3ª repetição (c.56), tem seu trajeto ascendente alargado, do mi ao
si; no segmento (c.61 a 66.2), é combinada a um cluster em trêmolo sobre a nota
pedal do# (dominante da tonalidade da canção), seguido de um glissando, agora
ascendente, e de arpejos em intervalos de que antecedem o início da 2ªsubseção, e.
(Exemplos 5 e 6).
47
Letra da canção: Ponha aqui o seu pesinho (sic). Bem juntinho ao pé do meu. E depois não vá dizer, Que
você se arrependeu. Eu fui ao Itororó beber água e não achei. Encontrei bella (sic) morena, que no Itororó
deixei. Aproveite minha gente, que uma noite não é nada. Se não dormir agora, dormirá de madrugada. Ó
D......., ó D............ Entrará na roda, ficará sósinha (sic). Sósinha (sic) não fico nem hei de ficar por que
tenho fulana para ser meu par! Ponha a- se arrependeu. In VILLA-LOBOS, H. Guia Prátic. Irmãos
Vitale Editores, 1941, ps. 73 e 74.
Exemplo 5. A baratinha de papel, cs. 61 e 62 - Cluster em trêmolo.
Exemplo 6. A baratinha de papel, cs. 66 e 67 - Glissando e arpejos em quartas.
Na subseção, e (cs. 68/79), a canção prossegue sobre um desenho em sextinas,
ora descendente, ora ascendente, no qual, como no ostinato inicial, distinguem-se duas
vozes, uma em teclas pretas (escala pentatônica) e outra em brancas (escala diatônica)
que, se conclui em um poliacorde
48
formado pela inversão da tríade de maior
(tonalidade do tema) à inversão com sexta acrescentada de fá# maior (tonalidade
da canção); vale lembrar que essa superposição em trítono foi amplamente usada por
Stravinsky em Pétrouchka.
Com o emprego, na primeira peça do ciclo, de ostinato atonal, ritmo assimétrico
(3+3+2 semicolcheias), polirritmia, cluster, glissandos, arpejos de quartas e
superposição de tema folclórico brasileiro a acompanhamentos tão ousados, Villa-
Lobos faz perfeita síntese do modernismo - integração de elementos nacionalistas com
técnicas composicionais modernas
.
Apesar de Homero de Magalhães dizer “só não encontrei a Baratinha...”(1994,
p.214), pessoalmente percebi vários efeitos que, para minha imaginação interpretativa,
remetem claramente ao animal-título.
48
Poliacorde: superposição de acordes em tons diferentes.
As variações da agógica da peça - Quasi Lento
49
, para a 1ª seção, na qual
aparecem molto affret. e a Tempo (indicações repetidas na 3º subseção); e Menos, para a
2ªseção, onde ocorre uma aceleração natural (cs.68 a 79), provocada pelas sextinas na
mão esquerda, seguida de um Pouco allarg., que direciona a música para o a Tempo do
final - podem aludir à movimentação inconstante do inseto.
Além da instabilidade trazida pela agógica, a polirritmia entre o ostinato pendular
e o primeiro tema (c. 5, 23 ou 35) pode sugerir a hesitação do bichinho quanto ao rumo
a tomar, efeito associado ao momento em que o inseto pára (cs. 6.1 ou 36) na nota de
maior duração que as três precedentes na esquerda, e depois decide o caminho a seguir.
O acelerando, crescendo, sucessiva repetição do final do primeiro tema, cujos valores
são diminuídos, e o glissando descendente geram efeito de aceleração do movimento do
pequeno animal. Os fatores apontados podem sugerir a corrida desenfreada da barata em
uma determinada direção, logo após o momento de indecisão anterior. As repetições das
notas graves, após o glissando (fá -1 no c. 14 ou -1 no c. 44) soam como o fim da
correria e uma repentina estaticidade, simulando a irregularidade da movimentação do
inseto. (ver Exemplo 2).
O glissando ascendente seguido dos arpejos de quartas descendentes e depois
ascendentes (cs. 66 e 67, ver Exemplo 6) podem, talvez, emular as mudanças bruscas de
direção do movimento do animal.
O contraste entre os acordes secos em trítonos e a nota fá# prolongada, pontua a
peça com estaticidade, descrevendo a imobilização da baratinha que, após momentos de
indecisão, corridas e mudanças de direção, finalmente para. Outra imagem que se pode
formar é a de um esmagamento repentino do animal.
Exemplo 7. A baratinha de papel, cs. 78 e 79 - Conclusão com acordes estáticos
e percussivos.
49
Villa-Lobos faz, em todas as peças da 2ªProle, as indicações de andamento em português e francês.
Quanto a efeitos descritivos da matéria-prima papel, não os encontrei. No
entanto, pode-se comparar os materiais usados para a baratinha e para o gatinho, o papel
e o papelão, respectivamente, ou seja, comparar texturas, a da baratinha, mais leve e
transparente, e a do gatinho, mais complexa e densa.
Resumo da análise musical de A baratinha de papel.
Forma
Binária (AB) articulada por diminuição da intensidade, das ressonâncias e do
andamento entre as seções, pela entrada da canção folclórica, glissandos
seguidos por notas-pedal ou por arpejo de 4ª e mudanças no tipo de
acompanhamento, entre as subseções.
Harmonia
Atonalismo + temas com pólo ou tonais, escalas pentatônicas, efeitos
construídos com o “Princípio do Polichinelo”, acordes por 4
as
, 2
as
ou 4
as
e 2
as
e poliacordes
Textura
Predominantemente homofônica. Nos acompanhamentos (ostinatos) pode-se
distinguir duas vozes (falsa polifonia), com densidade de duas a três vozes
(considerando a falsa polifonia) menos comprimida na 3ª subseção de A - após
o glissando e mais na 2ª subseção de B (no trêmolo).
Ostinatos
Encontra-se ostinato-clima (variado na primeira subseção de B), um segundo
ostinato – trêmolos -, na segunda subseção de B, e o ostinato rítmico –
sextinas – na terceira subseção de B.
Ritmo
Andamentos lentos, variações de agógica, acentos propostos (ou deslocados),
polirritmias e síncopes.
Melodia
Encontra-se melodias folclóricas, melodias construídas com elementos dos
ostinatos, melodias construídas com motivos das canções folclóricas ou
pseudofolclóricas e linhas-temas.
3.1.2 Tabela 1. Quadro comparativo das gravações de A baratinha de papel.
Pianistas
Barentzen Schic Rubinsky Garosi Hamelin
Andamentos
Inicia + lento do que 76 =
; acelera ligeiramente a
partir da 2ª subseção de A.
Faz nítida diferença entre
Quasi lento e Menos.
+ Lento do que o indicado
76 =
Sutil diferença entre Quasi
lento e Menos.
Início da peça em
andamento + lento que o
indicado; pequeno
acelerando até a entrada
do tema, seguindo no
tempo indicado.
Sutil diferença entre Quasi
lento e Menos
Andamento geral + rápido
do que o de Schic.
Execução no tempo
indicado
Execução no tempo indicado
Variações de agógica
Executa o molto affret. na
1ª e 3ª subseções de A e o
Pouco allarg. no final de
B.
Observa as indicações
com discreção. Rall no
final da 1ª subseção de B e
acelerando. a partir da 2ª
subseção de B, variações
não constantes da
partitura. Pouco allarg. no
final de B.
Aceleração do ostinato
quando repetido.
Acelerações e rall. +
acentuados.
Variações + contrastantes do
que das versões anteriores.
Acentuação
Os acentos > em A são
excessivos
Há discreta distinção entre
os estratos, a não ser no 2º
segmento da 1ª e 3ª
subseções de A, onde o
ostinato se impõe.
Pouco enérgica e até
suave, mas contribui para
a distinção dos estratos
sonoros. Menos evidente
no ostinato, quando este
está sobre notas e acordes-
pedal
Pouco enérgica embora os
acentos sejam bem
projetados. Menos
evidente no ostinato,
quando este está sobre
notas e acordes-pedal.
Enérgica, soando +
incisiva; a distinção entre
os estratos sonoros é bem
clara. Menos evidente no
ostinato, quando este está
sobre notas e acordes-
pedal.
Enérgica e brilhante. Menos
evidente no ostinato, quando
este está sobre notas e
acordes-pedal.
Intensificação do acento na
1ªsubseção de B (canção com
acompanhamento de clusters
em trêmolo).
Dinâmica
Diferenciações pouco
sensíveis.
As indicações são
observadas; rica paleta de
intensidades
Diferenciações pouco
sensíveis.
Grandes contrastes;
intensidades muito
diferenciadas.
Grandes contrastes;
intensidades muito
diferenciadas
Valorização das
dissonâncias
Parece não ter havido
preocupação em evidenciá-
las.
Bastante discreta,
parecendo não ter havido
preocupação em
evidenciá-las
+ enfatizadas que por
Schic, pois o menor uso
de pedal as deixa +
explícitas.
Muito enfatizadas; projeta
incisivamente o valor
expressivo da dissonância.
Bastante valorizadas.
Uso do
pedal
Abundante uso do pedal,
borrando os estratos
quando o tema é
apresentado.
Moderado, embora
chegando a borrar quando
os graves são repetidos
Parcimonioso, menos do
que o de Schic. Estratos +
claros; longo quando os
graves são repetidos.
Pouco pedal, estratos +
nítidos; longo quando os
graves são repetidos.
Em geral, emprego constante
e, por vezes, excessivo do
pedal.
Polirritmias
Nebulosas em função do
uso excessivo de pedal e da
pouca diferenciação entre
os estratos.
Realizadas com clareza,
sobretudo quando resulta
entre os acentos do
ostinato e os da linha
melódica.
Claras.
(Diferenciação criteriosa
entre os estratos sonoros e
pedal econômico)
Muito claras.
(Diferenciação criteriosa
entre os estratos sonoros e
pouco ou nenhum uso de
pedal).
Nem sempre muito claras; o
uso de muito pedal e a
velocidade impedem sua
clara percepção.
Ênfase nos elementos
descritivos
Aparentemente a pianista
não tem preocupações
descritivas. No entanto,
inicialmente, a Baratinha
parece sonolenta,
“acordando” na 2ª seção,
embora ela seja + lenta que
a primeira.
A pianista parece não ter
preocupação descritiva.
A pianista parece não ter
preocupação descritiva.
Alusões ao bichinho
através de uma série de
fatores (variações de
agógica, dinâmica;
articulações) que criam
um clima bem humorado,
quase infantil.
O pianista parece não ter
preocupação descritiva
Indicadores
Clima
Neutro, sem definição.
Molengo e com “charme”,
sem surpresas no humor.
Não é definido, mas
também sem surpresas no
humor.
Humor na descrição dos
movimentos da baratinha,
talvez resultado da
articulação do ostinato,
que se aproxima quase
sempre do staccato.
Tende ao brilhantismo, o
andamento, intensidade e o
uso do pedal são excessivos.
3.2 O gatinho de papelão...
Le petit chat en carton...
Souza Lima (1976, p.46) afirma que essa peça “não está concebida em espírito de
imitação como poderia parecer”, mas para minha percepção, ela é evidentemente
descritiva.
Tarasti (1995, p.273) faz referência à influência de Ravel em Villa-Lobos
,
comparando o ostinato (Exemplo 8) dessa peça com um desenho recorrente construído
com oscilações de e síncopes, que permeia a textura do Oiseaux tristes, da série
Miroirs (Exemplo 9). Miriam Rocha (2001, p. 54) afirma que O gatinho de papelão
apresenta atmosfera impressionista, ou seja “(...) transmite estados de espírito e
emoções em torno de um tema, em vez de apresentar uma imagem musical detalhada”
50
,
concordando, pois, com Souza Lima. Homero de Magalhães (1994, p.215 e 216) o
compara à Caboclinha, a boneca de barro, da Prole nº 1, apontando “uma certa
analogia rítmica e dinâmica” entre as duas peças; e como em O gatinho de papelão, um
ostinato em 2ªs maiores e menores a percorre.
Mais do que impressionista, considero a peça intimista, lânguida, até mesmo
estática - adjetivações alusivas ao gato características manifestas pelas ncopes e
pelas oscilações de 2ªmenor (láb 3-sol 3) do ostinato que, embora sujeito a sutis
variações na 2ªseção, atravessa a peça.
50
Verbete impressionismo, Grove, 1994, p.450.
Exemplo 8. O gatinho de papelão, cs. 1 a 3 - Ostinato em semitons.
Exemplo 9. Oiseaux tristes, Ravel, cs. 18 e 19 - Ostinato em semitons.
A peça tem forma binária simples A (cs.1 a 23) /B (cs. 24 a 43) - própria da
canção infantil. Em geral, em toda a segunda Prole, glissandos e arpejos rápidos são
elementos articuladores da forma, que não são as cadências os recursos que
comumente finalizam uma idéia ou segmento. Exemplificando, o glissando do
compasso 20, além de onomatopaico, prepara o fim da primeira seção, antecedendo a
extensão de três compassos que leva à segunda (Exemplo 10).
Exemplo 10. O gatinho de papelão, c. 20 e 21.1 -
Glissando (sugestão de um miado?).
Logo de início, o compositor informa que o andamento do gatinho é lento,
molengo Vagaroso (M: 69 = ) -, o que reporta à preguiça e à vagarosidade do
felino. As indicações cédez, rall., mollemente, rit. corroboram tal estado de ânimo do
bichano.
Em geral, a dinâmica vai de p à f, com um único ff na seção da peça (c.33,
soprano, oitava réb 4 e réb 5). Observa-se também grande número de decrescendos
acompanhando pequenos fragmentos ornamentais, basicamente em semitons
descendentes (uma relação com o ostinato), que podem lembrar o miado do
animalzinho (Exemplo 11).
Exemplo 11. O gatinho de papelão, cs. 24 a 27 –
Diminuendo nos fragmentos do contralto remetendo ao miado do bichinho.
Os efeitos onomatopaicos encontrados são: o glissando descendente do compasso
20 (Exemplo 10), que Homero de Magalhães (1994, p.217) considera ser um miado, e
as duas notas em intervalo de quarta, b 5 b 4, em movimento descendente
,
nos
últimos quatro compassos (Exemplo 12), sugerindo miado repetido, segundo Souza
Lima (1976, p.46). Minha imaginação, a partir da diferença de registros, dinâmica e da
acentuação, também cria perguntas e respostas entre dois gatos, dos compassos 40 a 43.
Um deles faz a terça descendente, b 4 – si b 3 (em ritmo sincopado, como no
ostinato), e o outro responde com a quarta descendente, ré b5 - lá b 4.
Exemplo 12. O gatinho de papelão, cs. 40 a 43 - Efeitos onomatopaicos.
A alusão ao comportamento preguiçoso do gatinho parece ganhar vida e
expressividade através de elementos de agógica, dinâmica e dos efeitos onomatopaicos,
com apoio de uma harmonia que soa estática. É ela o resultado do emprego, na 1ª seção,
de acordes em posição larga, em durações longas, que se deslocam por graus conjuntos,
aos quais são superpostos uma expressiva linha melódica mesclada a intervalos de
quinta, quarta e oitava; e, na seção, de acordes com décimas em movimento
cromático, apoiando a canção folclórica “Anquinhas”, de índole intimista, em réb
maior.
O motivo dos dois compassos iniciais da linha melódica de A (cs. 4 e 5) sofrem
elaborações, criando toda a linha da seção (Exemplo 13).
Exemplo 13. O gatinho de papelão, cs. 4 a 7 – Linha melódica de A.
A altura do ostinato, inicialmente b e em seguida sol b (c. 14), determina a
divisão de A (cs.1 a 23) em duas subseções a (cs.1/13) e b (cs. 14/21.1). É na
subseção que se observa a maior variação de agógica da peça e seu momento de
dramaticidade mais intenso.
A seção B (cs. 24 a 43) se apresenta em andamento ainda mais lento que o da
primeira, Muito lento, mollemente, e suas características harmônicas (cromatismo
abundante) e texturais (fragmentos ornamentais descendentes originários do ostinato, no
contralto, em decrescendo, e canção folclórica com síncopes e acentos Exemplo 14
51
)
realçam o clima tão bem expresso pela indicação mollemente.
Exemplo 14. O gatinho de papelão, cs. 24 a 40 -
Canção folclórica “Anquinhas”.
52
Além de articular a forma, arpejos ascendentes ou descendentes rápidos, como os
dos compassos 10, 11 e 18, também podem funcionar como elemento impulsivo -
anacruse -, ornamental e como reforço das ressonâncias (Exemplo 15), caso também da
escala cromática no contralto
,
no compasso 30 (Exemplo 16).
Exemplo 15. O gatinho de papelão, cs.10 e 11 Arpejos ornamentais como
anacruses e reforço das ressonâncias.
51
Errata: o primeiro dó 4 que aparece no tema é natural e não bemol.
52
Letra da canção folclórica: A moda dastas (sic) anquinhas, é uma moda estrangulada. Depois do joelho
em terra, faz a gente ficar pasmada. In VILLA-LOBOS, H. Guia Prático. Irmãos Vitale Editores, 1941,
p. 17.
Exemplo 16. O gatinho de papelão, c.30 - Escala cromática com
a mesma função dos arpejos.
A delicadeza e o gato em miniatura saem de cena a partir do compasso 33 da
seção B (cs. 24 a 43), onde há adensamento da textura e um aumento do volume de som
(ff), requerendo uso mais prolongado do pedal para uma maior ressonância do piano
.
Pode ser atribuído um cunho satírico ao contraste entre o diminutivo do título e a
proporção que toma o volume sonoro e, conseqüentemente, à imagem do felino, nesse
momento da peça (Exemplo 17).
Exemplo 17. O gatinho de papelão, cs. 31 a 40 – Dinâmica em ff, baixos oitavados e
aumento do volume sonoro.
Apesar da simplicidade formal, em O gatinho de papelão, a construção da textura
é complexa. Homero de Magalhães (1994, p.215) define a estrutura da idéia (cs.4 a
13) em seis vozes, considerando, talvez, a linearidade delas dentro dos acordes. Minha
escuta capta apenas a superposição de três camadas diferentes: a linha melódica, no
soprano (Exemplo 18), o ostinato em semitom na primeira seção (Exemplo 19) e suas
variações na segunda, no contralto, ambos apoiados por acordes largos em figuras
brancas, no baixo, formando um tecido harmônico tritonal (Exemplo 20).
Exemplo 18. O gatinho de papelão –1º elemento da textura, a melodia.
Exemplo 19. O gatinho de papelão –2º elemento da textura, o ostinato.
Exemplo 20. O gatinho de papelão –3º elemento da textura, a harmonia.
No último acorde da peça, Villa-Lobos faz o piano produzir um efeito de gongo,
segundo Souza Lima (1976, p.47).(Exemplo 21)
Exemplo 21. O gatinho de papelão, c. 44. - Efeito de gongo.
Resumo da análise musical de O gatinho de papelão.
Forma
Binária (AB) articulada por glissando, diminuição da intensidade e do
andamento entre as seções. Canção folclórica em B. Transposição do ostinato
e aumento da densidade da textura entre as subseções.
Harmonia
Atonalismo + temas com pólo ou tonais, politonalismo ou tonalismo +
modalismo, escalas pentatônicas e efeitos construídos com o “Princípio do
Polichinelo”.
Textura
Predominantemente polifônica, homofônica em B; densidade de duas vozes
(em B) e três (em A); menos compressão no tema oitavado em B e maior na
transição de A para B.
Ostinatos
Ostinato-clima fragmentado e variado em B.
Ritmo
Andamentos lentos, variações de agógica, mudanças de fórmula de compasso,
acentos deslocados, polirritmias e síncopes.
Melodia
Melodias folclóricas, pseudofolclóricas, melodias construídas com elementos
dos ostinatos, com motivos das canções folclóricas ou pseudofolclóricas e
linhas-temas.
3.2.1 Comparação entre cinco gravações de O gatinho de papelão.
As gravações de O gatinho de papelão apresentam entre si grandes diferenças de
interpretação.
Barentzen constrói clima sugerindo um gato preguiçoso. O andamento entre
Vagaroso e Muito Lento é indiferenciado, o último soando mais rápido que o indicado.
As variações de agógica são observadas e executadas em um fluxo contido, com o
ostinato em legato, a síncope valorizada e as acelerações e os rallentados em Un peu
animé e animé respeitados.
A acentuação é enfatizada com sonoridade aveludada e mesmo na projeção da
melodia a pianista apenas a ressalta. A construção da dinâmica apresenta expressiva
realização no ostinato inicial; os contrastes no decorrer da peça são discretos e o ff é
alcançado com expressividade.
Dentro da concepção da pianista para a peça, o uso do pedal parece adequado, as
polirritmias soam claras e as dissonâncias não são muito valorizadas, principalmente no
momento em que Barentzen decide cortar rápido demais a projeção do cluster final, o
gongo.
Percebo preocupação descritiva no andamento escolhido, na moleza da síncope,
na realização larga dos movimentos arpejados e no glissando.
Schic observa o andamento indicado para a peça e o faz em fluxo contido,
executando o ostinato sempre em legato. Entre Un peu animé, animé e Muito lento
discretas diferenças.
Até mesmo para as melodias principais, a pianista escolhe uma sonoridade
aveludada para projetar as acentuações que enfatiza. A dinâmica é construída com
grandes contrastes que geram clima dramático através do acentuado dimimuendo nos
compassos que antecedem a seção, e pelo grande crescendo na apresentação, em
oitavas, da canção folclórica
As mãos de Schic parecem ser pequenas, pois, na primeira seção, ela arpeja os
acordes em décimas. Para tal, acredito que ela precisou pensar e fazer experimentos de
pedalização que deve, simultaneamente, segurar o baixo e não borrar os três estratos.
Esse resultado foi alcançado com sucesso. Ela também usa o pedal para explorar
ressonâncias e na formação harmônica dos arpejos.
Na peça, Schic não enfatiza muito os elementos descritivos, mas, se o faz, é
através do andamento preguiçoso, vagaroso. Suas polirritmias não aparecem muito
porque são acentuadas as diferenciações entre os estratos sonoros, o que dificulta sua
percepção. A pianista parece fazer prevalecer o nacional sobre o moderno e não
costuma valorizar muito as dissonâncias; no entanto, em O gatinho de papelão, ela as
enfatiza mais do que em A baratinha de papel, principalmente quando encerra a peça
com o efeito de gongo produzido pelo cluster. A meu ver, o ambiente poderia ser mais
intimista e as características do gatinho mais bem delineadas.
Sônia Rubinsky cumpre o andamento indicado, mas o faz fluir mais do que Schic.
Para o ostinato ela escolhe uma articulação bem ligada. As variações de agógica são
também discretas, apresentando pequenas diferenças entre Un peu animé, animé e
Muito lento. Suas acentuações são significativamente diferentes das da pianista anterior.
Agora os acentos são produzidos com sonoridade penetrante, luminosa, além de
enfatizar a primeira colcheia do grupo de duas nos últimos quatro compassos, realçando
o efeito de ligadura entre as duas notas.
Rubinsky realiza expressivamente a dinâmica do ostinato inicial e, no decorrer da
peça, faz contrastes discretos. O uso do pedal é mais abundante que o de Schic, porém
não turvando a nitidez harmônica. Em O gatinho de papelão, Rubinsky prefere não
valorizar muito as dissonâncias. Sua interpretação elabora melhor os elementos
descritivos e o gato é percebido nos rallentando, no clima e no glissando, embora ela
aproveite pouco o “diálogo de miados” da última pauta.
Assim como na gravação anterior, as polirritmias não soam muito claras por que é
considerável a diferença de dinâmica entre os estratos sonoros. O ambiente para o felino
é, a meu ver, muito mais denso, triste e introspectivo que o de Schic; além de não haver
resquícios de infantilidade, o bichinho parece refletir profundamente...
Garosi surpreende em O gatinho de papelão. Sua interpretação é memorável, a
começar pela criação do clima, que entre todas as gravações, apresenta o ambiente
sonoro mais triste, intimista, profundo e até pungente. Para tal, a pianista italiana
associa uma dinâmica com contrastes acentuados a expressivas flutuações de agógica.
Os arpejos, que funcionam como anacruses, na primeira seção, são executados
lentamente e parecem prolongar a sensação de “o que irá acontecer depois’.
O andamento é mais lento que o das artistas brasileiras e as notas do ostinato são
escandidas e nítidas. Para atingir maior dramaticidade, suas variações de agógica são
contrastantes, havendo maior movimentação em Un peu animé e animé e um andamento
muito mais lento na segunda seção.
Ao contrário de Schic, Garosi parece fazer prevalecer o modernismo ao
nacionalismo, valorizando muito as dissonâncias, além de conferir sonoridade
penetrante e percussiva às acentuações. Sua pedalização é mais econômica do que a dos
outros pianistas, clareando as polirritmias, porém sem prejuízo da manutenção das
harmonias. Ela não parece preocupar-se em enfatizar os elementos descritivos; os
efeitos onomatopaicos soam mais como resultantes de técnicas modernas de
composição. A conclusão com o efeito de gongo é executada em p e, no entanto, o
compositor indica ff para o si b na mão direita.
Hamelin escolhe um andamento bem lento para a segunda peça da coleção,
fazendo seu ostinato em legato, com timbre aveludado. De todas as interpretações, é ele
quem faz variações de agógica mais numerosas. Elas são nítidas entre Un peu animé e
animé e, assim como Garosi, sua segunda seção é um pouco mais lenta que a primeira.
Os acentos não são executados como tal, apenas valorizam a voz principal. A dinâmica
é expressiva, sem contrastes acentuados. Os p são misteriosos e os f, na apresentação da
canção folclórica em oitavas, são intensos. No entanto, no contralto da seção B ele não
faz os requeridos diminuendos.
O uso do pedal é generoso turvando as polirritmias. O pianista não parece ter
intenção de descrever o gatinho e nem de valorizar as dissonâncias da peça. O ambiente
geral é misterioso, intimista; talvez esperava dele uma declamação mais en dehors”,
embora sua execução tenha atingido intensidade dramática.
3.2.2 Tabela 2. Quadro comparativo das gravações de O gatinho de papelão.
Pianistas
Barentzen Schic Rubinsky Garosi Hamelin
Andamentos
Indiferenciação entre
Vagaroso e o Muito Lento,
executado + rápido que o
indicado.
O indicado.
Indiferenciação entre
Vagaroso e Muito Lento.
Pequenas diferenças entre
Un peu animé e animé.
O indicado
Variações discretas, com
pequenas diferenças entre
Vagaroso, Un peu animé,
animé e Muito lento
+ lento que das pianistas
anteriores.
Variações nítidas, maior
movimentação em Un peu
animé e animé; segunda
seção pouco + lenta que a
1ª.
Lento como o de Garosi.
Maior diferenciação entre
Un peu animé e animé;
segunda seção pouco +
lenta que a 1ª.
Variações de
agógica
O indicado-fluxo contido;
ostinato em legato, com a
síncope valorizada.
Observa as acelerações e
rallentadi em Un peu
animé e anime
Fluxo do movimento
contido.
Fluxo do movimento
fluente.
Fluxo do movimento
contido. Rall. expressivos.
Fluxo do movimento
contido.
Rall e Accel. expressivos.
Acentuação
Enfatiza, com sonoridade
aveludada; não acentua
mesmo na projeção da
melodia.
Enfatiza, com sonoridade
aveludada; não acentua
mesmo na projeção da
melodia.
Acentos com sonoridade
penetrante, luminosa,
conduzindo o cantabile;
ênfase na acentuação da
primeira colcheia do grupo
de duas no final.
Acentos com sonoridade
penetrante e percussiva,
destacando a linha
melódica principal.
Os acentos não são
executados como tal;
apenas valorizam a voz
principal.
Dinâmica
Expressiva realização da
dinâmica do ostinato
inicial; contrastes discretos
no decorrer da peça. ff
alcançado com
expressividade.
Grandes contrastes,
criação de clima
dramático; acentuado dim.,
nos compassos que
antecedem a 2ª seção;
grande cresc. na
apresentação da canção
folclórica em oitavas.
Expressiva realização da
dinâmica do ostinato
inicial; contrastes discretos
no decorrer da peça,
excetuando em Animé (em
A) e Grandeoso (em B)
Contrastes acentuados,
associados às expressivas
flutuações de agógica,
conferindo grande
dramaticidade à peça.
Dinâmica expressiva, com
contrastes acentuados; p
introspectivo e f intenso,
na apresentação da canção
folclórica em oitavas; dim.
no contralto da seção B
pouco aproveitado.
Valorização
das
dissonâncias
Não as valoriza muito e
corta o som do gongo (um
cluster) rápido demais
Maior valorização do que
em A baratinha.
Expressiva no acorde
final.
Não as valoriza
particularmente.
Sempre valorizadas,
baixos bem conduzidos.
Não parece ter a intenção
de fazê-las
Uso do
pedal
Adequado.
Emprego moderado no
início, porém generoso nos
arpejos, explorando as
ressonâncias.
Uso + abundante que
Schic, sem turvar os
estratos, ouvidos com
nitidez.
Sem prejuízo da
manutenção das
harmonias, uso
parcimonioso do pedal.
Uso generoso do pedal.
Polirritmias
Claras.
Claras Claras e expressivas. Claras e expressivas Pouco perceptível.
Ênfase nos
elementos
descritivos
No andamento escolhido,
na moleza da síncope, na
realização larga dos
movimentos arpejados e no
glissando.
No andamento escolhido,
na realização larga dos
movimentos arpejados e
no glissando.
O gato está nos rall., no
gesto amplo da realização
dos acordes arpejados, no
glissando e no clima.
Aproveita pouco o
“diálogo de miados” na
última pauta
Clima evocativo da
lentidão dos movimentos
do felino; não explora os
efeitos onomatopaicos,
executa-os como efeitos
modernistas
Clima evocativo da
lentidão dos movimentos
do felino; não explora os
efeitos onomatopaicos.
Indiccadores
Clima
Sugestivo de um gato
preguiçoso.
Sugestivo de um gato
preguiçoso, mas desperto,
em função da qualidade
sonora – timbre mais claro
que o de Barentzen.
A meu ver mais denso,
triste e introspectivo que o
de Schic, não há
reminiscências da infância,
o gato parece refletir
profundamente...
Ótima construção do
clima, mais triste, intimista
e profundo, até pungente.
Excelente combinação
entre dinâmica e agógica,
ambas bem diferenciadas.
Misterioso, intimista, com
intensidade dramática
3.3 O camundongo de massa
La souris en papier mâché
53
A terceira peça dessa Prole apresenta grande diferença em relação às duas
anteriores, principalmente no que se refere à agógica, nela mais nuançada.
Em forma ABA’, o andamento geral da peça corresponde à movimentação do
animal-título. Tanto a velocidade quanto o movimento circular das quatro
semicolcheias, organizadas no ostinato, em intervalos estreitos (Exemplo 22), sugerem
a corrida rápida e regular do ratinho.
Os dois números anteriores apresentam indicações de andamento, na maior parte,
lentas, porém com diferenças entre si: O Quasi Lento de A baratinha de papel,
evidentemente soa mais movimentado que o Vagaroso de O gatinho de papelão, porque
o primeiro ostinato constitui-se de dezesseis semicolcheias distribuídas em quatro
tempos (Ver Exemplo 1, p.37), e o segundo, de colcheias e semínimas, com uma
síncope entre a segunda colcheia do primeiro tempo e a primeira do segundo tempo
(Ver Exemplo 8, p.51), o que produz o efeito de andamento mais largo, que pede do
pianista flexibilidade rítmica.
Em O camundongo de massa os andamentos se apresentam sob os termos: Très
animé, Vivo, Un peu moins, Rápido e Menos. Apesar das indicações Un peu moins e
Menos, a resultante sonora é sempre de um andamento bastante veloz, condizente com o
deslocamento do animalzinho. A diferença entre Très animé e Vivo é pouco clara, ainda
mais que não indicação metronômica. Pode-se pensar em diferença (sutil) de
caráter
54
, ou mínima aceleração ou mesmo desaceleração.
Esta é a terceira peça do ciclo que se inicia com um ostinato e, como o de A
baratinha de papel, é construído a partir da topografia do instrumento. No entanto, o da
primeira peça apresenta intervalos mais largos entre algumas notas, enquanto o de O
camundongo de massa mantém uma regularidade de intervalos (2ª e menores), as 3
as
sempre entre as e semicolcheias de cada grupo. O dedilhado é o padrão 4312, por
que a manutenção dos intervalos gera fôrmas pianísticas. Deste ostinato emergem duas
53
Talvez a tradução “de massapara papier mâché seja imprecisa, pois massa tanto pode ser, densa e
pesada como a de modelar, quanto leve como a de papel picado e esmagado.
54
Emprego o termo
caráter no sentido de conjunto de traços distintivos, peculiares a uma obra musical,
que lhe emprestam um cunho próprio.
vozes (criando uma falsa polifonia)
,
uma delas resultante da acentuação da primeira
nota de cada grupo de quatro semicolcheias. O quarto dedo da mão esquerda faz, no
baixo, uma seqüência pentatônica incompleta, com as notas brancas re 2, mi# 2, x 2,
mi# 2, que parte ascendente e retorna à segunda nota (mi# 2). As três notas seguintes de
cada grupo de quatro semicolcheias estão distribuídas nas teclas preta, branca e preta, a
e 4ª, articuladas sobre as pretas, traçando mais uma seqüência pentatônica
incompleta. O padrão se repete continuamente nos quatro grupos de semicolcheias em
todos os compassos, mesmo quando o ostinato se expande ou se reduz.
Exemplo 22. O camundongo de massa, cs. 1 e 2.1 -
Ostinato circular
Homero de Magalhães (1994, p.211 e 219) adjetiva os ostinatos de maneira
interessante, adjetivação que remete ao direcionamento do conjunto de notas. Acredito
que tal qualificação se deva ao movimento que a mão do pianista realiza para tocá-los.
O permanente “sobe-desce” das notas brancas, mi 3, 3, sol 3 e 3, do ostinato de A
baratinha de papel faz com que a mão execute um movimento pendular para a direita e
para a esquerda.(Ver Exemplo 1, p. 36). E para tocar as notas na seqüência branca-
preta-branca-preta em O camundongo de massa, o pianista acaba fazendo sutis
movimentos circulares com a mão responsável pelo ostinato.
Nessa peça, a articulação da forma foi elaborada por Villa-Lobos com
originalidade. As pequenas mudanças de agógica e as variações no ostinato e na textura
a tornam muito clara. Logo em a (cs. 1/12.4), 1ªseção de A,– Muito vivo (Très animé) -
o ostinato, na mão esquerda, acompanha a primeira apresentação do tema (cs. 1 a
7.1), na direita, logo seguido de sua resposta, na esquerda (c.7.2 ao 10.2), à qual se
superpõe o ostinato que, desde o c.6, se encaminha ascendentemente para sua
transposição, uma 5ªacima oitavada.
No Vivo, antecedido por um glissando em oitavas (Exemplo 23), Villa-Lobos
modifica novamente o ostinato, - o reduz a dois grupos de 4 semicolcheias - marcando o
início da subseção, b, de A (cs.13 com anacruse/27), onde se apresenta um 2ºtema
(derivado da seqüência descendente mib, ré, dó, sib, encontrada no e tempos do
tema, no c. 3), que, segundo Homero de Magalhães (1994, p.220), lembra um tema de
marcha de carnaval, resultado da ritmização do baixo entre os cs.10.3 e 12. A retenção
do andamento Menos um pouco (Un peu moins) -, o acréscimo ao ostinato, de uma
pequena seqüência descendente de quatro notas, nos compassos 20 e 28, e a mudança de
textura do tema, para o qual o compositor indica chanté, marcam o início de c (cs.28
/48), 3ª subseção de A.
Exemplo 23. O camundongo de massa, cs. 12 a 16 e 137 a 141 –
Glissando em oitavas.
Um arpejo descendente rápido em fff (c.48) (Exemplo 24) antecede a seção B
(cs. 49 a 125) que, segundo Magalhães (1994, p.221) e Tarasti (1995, p.274), lembra
Stravinsky. Para Tarasti, os acordes em staccato de B, agressivos, densos e percussivos,
seriam uma variação villalobiana dos acordes de Pétrouchka (Exemplo 25).
Exemplo 24, O camundongo de massa, c. 48
Arpejo que antecede a seção B.
Exemplo 25. O camundongo de massa, cs. 49 a 51.1 –
Acordes secos com influência stravinskiana.
Homero de Magalhães (1994, p.222) segmenta a parte central em quatro
subseções: d (cs.49/83) – onde tem início um tema curto, em terças duplas, no
contralto -, e (cs.84/96), f (cs.97/113) e d (cs114/125). As primeiras duas são
atravessadas por um ostinato rítmico em colcheias, em que é constante a presença de
segundas simultâneas, ostinato que se desfaz em f, no c.97, quando começa uma cascata
de acordes descendentes de 7ª, formados por superposição de intervalos de quarta. Em
cada subseção ocorre a inclusão de um novo elemento.
A seção B (cs. 49 a 125) da peça foi elaborada em textura complexa de várias
camadas segundo Magalhães (1994, p. 223), uma assombrosa construção vertical
constituída por 5 elementos musicais diferentes (Exemplos 26, 27, 28, 29 e 30) com
acentos que apresentam intensidades distintas (-,
V
, >,
rf>p, rff>p, rfff>p),
cuja
performance exige clara compreensão de sua gradação e grande controle do
instrumento.
Exemplo 26. O camundongo de massa, 1º elemento da seção B.
Exemplo 27. O camundongo de massa, 2º elemento da seção B.
55
Exemplo 28. O camundongo de massa, 3º elemento da seção B.
Exemplo 29. O camundongo de massa, 4º elemento da seção B.
Exemplo 30. O camundongo de massa, 5º elemento da seção B.
A escrita minuciosa do compositor mostra sua idéia da hierarquização desses
cinco elementos. Para as terças que integram o ostinato da mão direita (um tema
curto, variado e repetido), Villa-Lobos usa o acento
>
. Para destaque e maior duração
das notas mais agudas de ambas as mãos (cs. 60 a 64) - já que elas não podem
permanecer segurando as notas, pois devem se deslocar para executar os acordes que se
seguem -, ele emprega o acento
>
. E para a marcação dos primeiros tempos dos
compassos 57 a 69, Villa-Lobos escreve rf >p. Além dessas diferenciações, que
considerar as que dizem respeito às durações (superposição de valores diferentes e
55
Errata: no terceiro compasso do exemplo, o primeiro tempo é uma terça maior, está faltando a nota lá3.
indicação de staccato em apenas algumas camadas) e à execução da polirritmia.
(Exemplos 31 e 32)
Exemplo 31. O camundongo de massa, cs. 49 e 50, 60 e 61 -
Variedade de acentos e durações empregados na seção B.
Exemplo 32. O camundongo de massa, cs. 54 a 56 -
Polirritmia
A intensidade, diferente daquela das peças anteriores, é geralmente f e vigorosa,
encontrando-se poucas vezes a indicação de p
,
o que dá à peça um caráter brilhante e
enérgico, exigindo do pianista, além de recursos técnicos, fôlego e bravura, como atesta
Souza Lima (1976, p.47).
Na subseção e, entre os compassos 84 e 97.1, observa-se uma passagem com
acordes ascendentes por segundas, que preparam o clímax da peça, onde têm início os
acordes descendentes por quartas, superpostos em polirritmia a um tema em acordes
triádicos, na primeira inversão uma variação rítmica das primeiras notas em
movimento descendente do 2º tema – criando uma grande massa sonora de efeito
virtuosístico.
Exemplo 33. O camundongo de massa, cs. 99 a 101 - 4ºtema.
A peça é virtuosística, com inúmeros efeitos de bravura, como os glissandi dos
compassos 12 e 137 (ambos em oitavas e nas teclas pretas), arpejos e escalas velozes
funcionando como anacruses ornamentais (compassos 4, 48, 89 e 129), além das
questões rítmicas, de acentuação e vigor da seção B. Quem sabe, na imaginação infantil,
a seção B é uma sugestão ao medo do rato, ou ao terror com que o gato assombra o
rato?
Entre os procedimentos modernistas apontamos os acordes descendentes de sétima
(superposição de 4
as
), acordes por segundas acrescentadas, acordes de nonas, o arpejo
em teclas pretas e brancas (c.89) e o ostinato circular.
A alusão ao bicho está clara no andamento, na construção do ostinato com seus
acentos, no clima vivo, nos glissandi e nos arpejos velozes.
Geralmente o material que forma o animalzinho-título está associado à textura,
mais ou menos densa; nessa peça, o seu título, em português (diferente daquele em
francês), aponta para algo consistente, a massa, que pode ser associada à densidade das
texturas dos diferentes temas.
Resumo da análise musical de O camundongo de massa.
Forma
Ternária (ABA’) articulada por mudanças de agógica, textura e temáticas entre
as seções, glissandos de oitavas e arpejo em teclas pretas e brancas, entre as
subseções.
Harmonia
Atonalismo + temas com pólo ou tonais, politonalismo ou tonalismo +
modalismo, escalas pentatônicas e efeitos construídos com o “Princípio do
Polichinelo”; acordes por 4
as
, 2
as
ou 4
as
e 2
as.
Textura
Homofônica em A e A’, polifônica em B; duas vozes em A e
quatro, seis e três, em B, com menor compressão no final da 1ª subseção de A
e maior compressão no início da 2ª apresentação do tema, na primeira
subseção de A.
Ostinatos
Ostinato-clima (variado na 2ª e 3ª subseções de A) e
novos ostinatos em B.
Ritmo
Andamentos animados, variações de agógica, mudanças de fórmula de
compasso, acentos deslocados, polirritmias e síncopes.
Melodia
Melodias pseudofolclóricas, melodias construídas com motivos das canções
folclóricas ou pseudofolclóricas e linhas-temas.
3.3.1 Comparação entre cinco gravações de O camundongo de massa.
Os títulos infantis e o sarcasmo pressentido no ciclo encaminham, de certa
maneira, a interpretação. O pianista pode, respaldado no título, conceber o animal
pequeno, delicado e de brinquedo, ou então, baseado na aparente ironia da obra,
construir um animal em estado natural, selvagem, feroz ou agressivo, por conta da
fantasia e imaginação infantil a propósito desses mesmos bichinhos.
Apesar de se tratar de um ratinho de massa, Barentzen parece que escolhe
construir uma ratazana feroz em clima áspero e agressivo. As dissonâncias comumente
se apresentam indiferenciadamente agressivas; a acentuação, marcante no ostinato, de
modo geral, é violenta, dentro de um conjunto de estratos sonoros indiferenciados e de
uma dinâmica sem contrastes, quase sempre em f; e tudo acompanhado pelo uso
excessivo de pedal, que borra o ostinato quando simultâneo ao tema principal, além de
turvar a percepção dos estratos e das polirritmias.
Em sua escolha de andamentos distingue o Muito animado do Vivo, mas não
observa o Menos un (sic) pouco, mantendo o andamento inicial em Menos. As variações
de agógica são bem pouco aproveitadas, não se percebendo os rall. ou allargando.
Os elementos descritivos podem ser associados à execução das semicolcheias e
arpejos rápidos alusivos às correrias do camundongo.
Anna-Stella Schic não parece ser uma pianista que enfatiza os aspectos
virtuosísticos, como Hamelin. O andamento escolhido para delinear o ratinho é mais
lento que o indicado - “muito animado” -, e destoa das características do
animalzinho.Tampouco deixa perceber com clareza a diferença entre os andamentos.
A acentuação soa discreta no ostinato, marcante nos primeiros tempos dos
compassos da seção B e pouco enfática no final. A dinâmica geral da peça, em f,
somada ao toque pesado da pianista e ao uso excessivo de pedal (chegando a borrar o
ostinato inicial, além de manter o som dos esbarros nas cascatas de acordes de sétimas
na seção B) pode aludir ao material de que é feito o ratinho – a massa.
Schic parece não dar relevo aos elementos descritivos, o fazendo nas
semicolcheias e arpejos rápidos que podem sugerir as correrias do camundongo. Suas
polirritmias são claras e favorecidas pelo andamento não “Muito animado”. aqui
maior valorização das dissonâncias do que nas peças anteriores, sobretudo na seção B.
O conjunto dessas escolhas promoveu um clima enérgico, vivo e alegre, sobretudo na
“marcha de carnaval”.
O ratinho de Rubinsky é bem mais veloz, o andamento está de acordo com a
indicação “muito animado”, contribuindo para a execução clara e brilhante da peça. As
acentuações são mais enérgicas do que as de Schic, sendo bem definidas em B e
enfática no dó 3 que termina a obra. A pianista faz maior diferenciação entre os
andamentos indicados, mas menor contraste entre a primeira e segunda seção.
Para edificar o clima alegre e vivo, em geral, e peralta, na “marcha de carnaval”,
ela lança mão de grandes contrastes de dinâmica, usa parcimoniosamente o pedal e
enfatiza os elementos descritivos, com as correrias do bichinho bem expressas na
regularidade das semicolcheias e nos arpejos.
As polirritmias são claras em função do uso adequado do pedal e da discreta
diferenciação de intensidade entre os estratos sonoros; as dissonâncias são valorizadas,
sem se tornarem agressivas.
Garosi, por sua vez, usa o pedal economicamente, propiciando execução mais
seca e percussiva, além de tornar clara a percepção das polirritmias. Sempre valoriza
muito as dissonâncias. Faz acentuado contraste de andamentos entre a primeira e
segunda seção e um amplo rallentado não indicado para a volta de A’.
Sua acentuação é enérgica; em B, os acentos são bem definidos e no final da peça,
enfático.
Toda a dinâmica está em f, com poucos contrastes. A descrição do bicho pode
estar associada à articulação em non legato ou staccato e às quiálteras no baixo, em B,
en dehors. O clima geral é alegre e brincalhão, resultado do pedal mais econômico, da
articulação em staccato e maior andamento; parece que a pianista apresenta o mundo
infantil como vivido pela criança.
Hamelin, à exceção de O gatinho de papelão e de O cachorrinho de borracha,
tende a ser muito virtuosístico. O “Muito animado” de O camundongo de massa está
excessivamente rápido, não se percebendo variações explícitas de andamento, que são
pouco diferenciadas.
O excesso de velocidade promove alguns prejuízos, como a pouca sofisticação na
acentuação, particularmente requerida em B, e o obscurecimento das polirritmias. A
dinâmica, toda em f, apresenta pouco contraste, e o uso do pedal é excessivo. Não
percebo intenção descritiva nesta performance
;
o pianista opta pelo virtuosismo. Apesar
da não valorização das dissonâncias, o clima é mais agressivo e sem reminiscências da
infância. O mundo infantil se apresenta sob a ótica do adulto.
3.3.2 Tabela 1. Quadro comparativo das gravações de O camundongo de massa.
Pianistas
Barentzen Schic Rubinsky Garosi Hamelin
Andamentos
Distingue o Muito animado
do Vivo. Não observa o
Menos um (sic) pouco. Em
Menos é mantido o
andamento inicial.
Muito animado + lento do
que o indicado, destoando
das características do
animalzinho. Vivo no
andamento anterior.
Observa Menos um (sic)
pouco e Menos.
De acordo com a indicação
Muito animado. Execução
clara e brilhante.
Diferenciação cuidadosa
entre os andamentos
indicados. Menor entre a
1ª e 2ª seção.
De acordo com a indicação
Muito animado. Execução
seca e percussiva.
Diferenciação cuidadosa
entre os andamentos
indicados, contrastante
entre a 1ª e 2ª seção.
Muito animado em
andamento
excessivamente rápido.
Pouca distinção entre os
andamentos indicados.
Pouco contraste entre a 1ª
e 2ª seção.
Execução com ênfase em
aspectos virtuosísticos.
Variações de
agógica
O movimento é contínuo,
sem aproveitamento de
rall. ou allargando.
Aproveita o cresc. e o
allarg. do final de A e
acelera sutilmente em B,
antes do rall final desta
seção.
Observa as indicações de
allarg e rall. Antecipa o
Vivo (2ª subseção de A e
A’) com um pequeno
accel.
Observa discretamente as
indicações de allarg e rall
Antecipa o rall da seção
central, iniciando-o em c
de B.
Observa discretamente as
indicações de allarg e rall
Acentuação
Marcante no ostinato. De
um modo geral é violenta e
agressiva, em um conjunto
de estratos sonoros
indiferenciados.
Discreta no ostinato.
Marcante nos primeiros
tempos dos compassos de
B.
Pouco enfática no final da
peça.
Misturam-se na textura.
+ destacada que a de Schic
.
Acentos definidos em B.
Enfática no final da peça.
Enérgica.
Acentos bem definidos em
B, sem prejuízo da clareza
dos estratos sonoros.
Acentuação enfática no
final da peça.
Clara no ostinato e no
primeiro tempo dos
compassos em B.
Acentuação enfática no
final da peça.
Dinâmica
Sem contrastes, em geral,f.
Em geral, f e ff. Observa a
indicação de p em estratos
sonoros de B.
Em geral, f e ff. Observa a
indicação de p em estratos
sonoros de B.
Em geral, f e ff. Observa a
indicação de p em estratos
sonoros de B. Sensível
dim. acompanhando o rall.
do final
de B.
Toda entre f e ff.; pouca
diferenciação entre os
estratos sonoros em B.
Valorização
das
dissonâncias
De um modo geral, a
execução é
indiferenciadamente
agressiva.
+ valorizadas que na
execução das peças
anteriores, sobretudo na
seção B.
Valoriza, sem as tornar
agressivas
Intencionalidade em sua
valorização.
Parece não haver
intencionalidade em sua
valorização.
Uso do pedal
Excessivo, borrando o
ostinato quando simultâneo
ao tema principal, além de
turvar a percepção dos
estratos.
Excessivo, borrando o
ostinato inicial, além de
manter o som nos
esbarros.
Apropriado. Econômico. Excessivo.
Polirritmias
Obscuras em função do uso
excessivo de pedal e pouca
diferenciação dos estratos
sonoros.
Claras, favorecidas pelo
andamento não Muito
animado.
Claras, favorecidas pelo
uso adequado do pedal e
pela discreta diferenciação
de intensidade entre os
estratos sonoros.
Muito claras, favorecidas
pelo uso econômico do
pedal.
Pouco claras, obscurecidas
pelo andamento e
abundante uso do pedal.
Ênfase nos elementos
descritivos
Semicolcheias e arpejos
rápidos alusivos às
correrias do camundongo.
Apesar dos andamentos
escolhidos, semicolcheias
e arpejos rápidos alusivos
às correrias do
camundongo.
Correrias do bichinho
favorecidas pelos
andamentos escolhidos e
bem expressas nos arpejos
e na regularidade das
semicolcheias.
Correrias do bichinho bem
expressas pela
regularidade das
semicolcheias e nos
arpejos, favorecidas pelos
andamentos escolhidos,
pela articulação em non
legato ou staccato, e pelo
destaque das quiálteras no
baixo, em B, en dehors
Opção pelo virtuosismo.
Indiccadores
Clima
Áspero, agressivo.
Em geral pesado. Vivo e
alegre na “marcha de
carnaval” e enérgico e
áspero em B.
Alegre e leve.
Vivo e peralta na “marcha
de carnaval”, trazendo
reminiscências da infância.
Alegre e brincalhão,
trazendo reminiscências da
infância.
Agressivo, não trazendo
reminiscências da infância.
3.4 O cachorrinho de borracha
Le petit chien en caoutchouc
A quarta peça do ciclo se inicia diferente das três primeiras. Nas anteriores
,
Villa-
Lobos anuncia o ambiente, o clima da obra, com o ostinato que servirá como seu
elemento integrador.
O cachorrinho de borracha começa com um tema pseudofolclórico (Exemplo 34)
que, segundo Homero de Magalhães (1994, p.225) lembra “Na mão direita tem uma
roseira”. Esse tema, podendo ser entendido em lá eólio ou em maior, é conduzido
por acordes construídos com quartas superpostas - recurso modernista empregado para
evitar as terças geradoras da sensação de tonalidade “em textura a quatro partes, em
posição larga nos pontos culminantes” (Tarasti, p.274), duas em diálogo no soprano e
contralto, e duas no baixo, com notas ou acordes pedais (Exemplo 35).
Exemplo 34. O cachorrinho de borracha. cs. 1 e 2 –
Tema pseudofolclórico sobre acordes com quartas sobrepostas.
Exemplo 35. O cachorrinho de borracha. cs. 5 a 8 - Textura a quatro vozes.
No entanto, afirma Magalhães (1994, p.226) “apesar da aparência atonal da peça,
o maior se faz sentir”. Para Tarasti (1995, p.274), é o baixo que quebra o sentido de
atonalidade.
Outro elemento inovador empregado na peça é a fórmula de compasso 11/8 (6/8
ou 3/4 + 5/8), em andamento Lento (M.144= ). Dela resulta um ritmo flutuante que
cria um ambiente calmo e elástico - talvez uma alusão à borracha -, contrário à
exigência de precisão e violência dos momentos percussivos de outras peças da Prole.
Vários autores escreveram sobre essa fórmula de compasso, mas a interpretação
mais útil, a meu ver, é a de Magalhães (1994, p.225), que descreve a resultante sonora
da fórmula como uma valsa lenta estilizada.
A leitura dessa interpretação me fez entender a obra que inicialmente era um
enigma para mim. Tarasti (1995, p.274), por sua vez, levando em conta o andamento da
peça, considera a fórmula ineficaz.
Para exprimir flutuação e elasticidade, a mão esquerda foi genialmente
arquitetada.
Exemplo 36. O cachorrinho de borracha. cs. 5 e 6, cs. 13 a 16 –
Flutuação da mão esquerda.
A análise deste ciclo espanta qualquer pianista quanto à originalidade do
compositor e à sua inteligência na criação de ambientes sugestivos. Ele consegue fazer
obra descritiva, sem cair na música programática do fim do romantismo. Na segunda
Prole, Villa-Lobos apenas sugere, não é impositivo quanto aos efeitos nela produzidos.
Intérpretes diferentes podem analisá-los e considerá-los de maneiras diversas, propondo
diferentes soluções interpretativas
;
a “valsa lenta” do Homero de Magalhães é uma
delas. É possível encontrarmos vários desses efeitos descritivos em Debussy, como por
exemplo, em Poisson d’or ou em Feux d’artifice.
O andamento geral de O cachorrinho de borracha é Lento, com exceção do
Animé, ponto culminante da peça, em ffff
,
lentamente preparado desde o compasso 17,
onde a massa sonora começa a se avolumar e tornar-se mais densa, pois as seções
anteriores apresentam dinâmica máxima em f e suas vozes encontram-se em registros
distantes.
Exemplo 37. O cachorrinho de borracha. cs. 17 a 22 - Adensamento da textura e
intensificação da dinâmica até o ponto culminante.
O efeito produzido pelos acordes quebrados descendentes tocados em movimento
alternado sobre teclas pretas e brancas e apoiados por uma longa nota pedal no baixo,
sib, é grandioso. No Moins (passagem em que ligeira diminuição do andamento
estabelecido no Animé), nos compassos 20 e 21, que se seguem ao movimento
descendente, verifica-se novamente o “princípio do polichinelo”, resultante da
alternância de acordes entre mão direita e esquerda do pianista, produzindo um trêmolo.
A essa alternância é superposto o si 3
,
repetido várias vezes com sf., em ritmo
sincopado 3+3+3+3+4 semicolcheias. A diminuição do andamento, combinado a
decresc, rall e rarefação da textura preparam a volta do início. (Exemplo 37)
Não há nenhum estudo anterior sobre a forma de O cachorrinho de borracha.
Segundo minha percepção, a obra pode ser segmentada em 3 seções: a primeira -
A (cs.1 a 6), sobre o baixo 1 e depois sol 1, utiliza, no compasso 3, o acorde de
Prometheus de Scriabin sol/ reb/fa/si/mi/la (Tarasti, 1995, p.274); a segunda B (cs.7
com anacruse a 18), é marcada pelo diálogo do soprano com o contralto, diálogo
apoiado por acordes dissonantes na mão esquerda - que continua fazendo o movimento
de valsa -, acrescidos de um canto no tenor (cs. 9 ao 12), cujos fragmentos cromáticos
descendentes Homero Magalhães (1994: 227) relaciona à canção Mokocê-cê-maká,
baseada em uma cantiga de ninar dos índios Parecis.
Exemplo 38. Melodia Mokocê-cê-maká, Tarasti, (1995, p 223)
O Animé, seguido do Moins (cs.19 com anacruse a 23), funciona como elemento
articulador da forma ligando a segunda seção à terceira A’, muito breve (cs. 24/26.1),
onde volta a melodia pseudo-folclórica da introdução. A peça finaliza com uma codeta
(c.26 a 29), estruturada com acordes secos e percussivos que, segundo Homero de
Magalhães (1994, p.228), “são os furiosos latidos do cachorrão de borracha”.
Exemplo 39. O cachorrinho de borracha. cs. 26 a 29 -
Acordes percutidos produzindo efeito onomatopaico. (latidos do cachorrinho).
A peça não apresenta problemas de virtuosismo, mas requer cuidado com as
gradações de dinâmica, que variam de pp a fff, e controle sonoro na superposição dos
estratos. As mudanças harmônicas também devem ser acompanhadas de mudanças
timbrísticas como, por exemplo, usando um tipo de sonoridade nos compassos iniciais,
com o baixo em dó, e outro nos compassos 3, 4 e 5, onde é empregado o acorde de
Prometheus, e assim por diante.
Com a massa sonora se avolumando do compasso 17 ao Animé, a produção de
mais energia e força se torna necessária, até que seja alcançado o som brilhante
requerido para essa culminância, – ffff - seguido da diminuição da dinâmica em Moins.
A riqueza de ambientes criados, ora doce e plácido, ora de diálogo, ora de
bravura, a meu ver, aludem aos diversos comportamentos do cachorro, em minha
imaginação, fiel ao dono, bravo com os estranhos ou latindo com outros.
Os acordes finais, construídos com segundas acrescentadas, secos e sem pedal,
são efeitos onomatopaicos evidentes, produzidos através da rítmica e por conta da
sonoridade nas regiões, semi-grave e central, onde são articulados.
Aqui encontro uma alusão ao material do qual foi feito o bichinho, a borracha.
Para a percepção de Homero de Magalhães (1994, p.229) e também para a minha, a
larga distância entre soprano e contralto nos compassos 9 a 12 pode sugerir a
elasticidade do material.
Exemplo 40. O cachorrinho de borracha. cs. 9 a 12 - Espaçamento entre soprano e
contralto.
Homero de Magalhães termina o estudo da peça atribuindo à “tremenda liberdade
melódica das vozes” o sentido de elasticidade da borracha. Outra alusão ao material
pode estar na própria flutuação rítmica da mão esquerda proporcionada pela fórmula de
compasso 11/8.
Resumo da análise musical de O cachorrinho de borracha.
Forma
Ternária (ABA’e codetta) articulada por mudanças de agógica que anunciam a
entrada de idéias musicais diferentes, adensamento da textura, maior
movimentação das vozes internas e intensificação da dinâmica.
Harmonia
Atonalismo + temas com pólo ou tonais, politonalismo ou tonalismo +
modalismo e efeitos construídos com o “Princípio do Polichinelo”; acordes por
4
as
, 2
as
ou 4
as
e 2
as
Textura
Homofônica na apresentação do tema em A e A’ e no Animé; polifônica
nas demais partes. Densidade entre
três e cinco vozes, excetuando nas
passagens homofônicas,
com m
enor compressão no acorde inicial do Animé e
maior no Moins.
Ostinatos
Ostinato-clima rítmico com pequenas variações nos estratos inferiores, em A
e B.
Ritmo
Andamento lento, variações de agógica, mudanças de fórmula de compasso,
acentos deslocados, polirritmias e síncopes.
Melodia
Melodias pseudofolclóricas, melodias construídas com motivos de canções
pseudofolclóricas e linhas-temas.
3.4.1 Comparação entre cinco gravações de O cachorrinho de borracha.
De todas as cinco peças que, até o momento, tiveram suas gravações comparadas,
O cachorrinho de borracha é aquela em que menos se observam diferenças de
interpretação. Não percebo uma razão lógica para tal, pois nela não maior rigor na
notação, nem, tampouco, a meu ver, uma intenção descritiva mais nítida do que nas três
anteriores.
Todos os pianistas, com exceção de Barentzen, constroem sua interpretação
cumprindo o andamento Lento (M: 144= ) e todos, inclusive a holandês, excelente
enunciação do clima - intimista, com momentos de dramaticidade – já através do
primeiro acorde com harmonia de 4ªs, em pp e timbre aveludado.
Aline van Barentzen é a única que escolhe um andamento e o mantém sem
mudanças, apenas com gradações; o Lento é, porém, ligeiramente mais lento que o
indicado, prenunciando o clima, e o Animé bastante brilhante. As variações de agógica -
Rit. e rall. – são, no entanto, pouco perceptíveis.
A pianista constrói excelente polifonia em A e a acentuação contribui para a
clareza da condução das vozes nesta seção. A dinâmica permanece entre p e ff, não
alcançando ffff. O uso do pedal é adequado, apesar do corte brusco do Moins para a
seção (corte onde há uma fermata), e contribui para a nitidez das polirritmias da peça.
O clima é intimista, um pouco arrastado, construído com elementos descritivos
onomatopaicos nos acordes finais e com pouca valorização das dissonâncias.
Anna-Stella Schic faz as variações de andamento indicadas - Lento, Animé, Moins
e Tempo - pouco diferenciadas. No entanto, sua acentuação é cuidada para que o
tenuto e o acento > sejam bem discernidos. No tema oitavado ou em acordes - que
retoma a melodia inicial e anuncia o Animé - quando em ff, fff e ffff, o > ganha ênfase e
expressão, conferindo ao trecho grande dramaticidade. Acompanhando essa acentuação,
as dissonâncias são valorizadas, exceto nos acordes finais.
Para a criação de momentos contrastantes extremos, ela faz a dinâmica bem
graduada, de pp a ffff. O uso do pedal é adequado e segue a textura o que, somado ao
andamento lento, favorece a clara percepção das polirritmias
.
As variações (de pedal e
textura) no decorrer do texto colaboram para a projeção das diferenças de clima.
A pianista não enfatiza os elementos descritivos e os “furiosos latidos do
cachorrão de borracha
56
não são percebidos por mim, como efeitos onomatopaicos.
Não a ouço aproveitando a rítmica e dissonâncias sugestivas dos acordes finais, para
que soem como latidos. No trecho a cinco vozes, em B, ela elabora excelente diálogo
entre soprano e contralto. Sua interpretação diferencia-se das demais porque ressalta os
momentos de maior dramaticidade.
As interpretações de Schic, Rubinsky e Garosi são muito semelhantes, porém a
penúltima faz uma dinâmica que, apesar de bem graduada, apresenta contrastes mais
suaves, mas comunica nitidamente o efeito onomatopaico dos acordes finais.
Alessandra Garosi diferencia-se dos quatro outros por sua sonoridade, em geral com
timbre mais brilhante, por fazer as notas do soprano bem escandidas, destacando-o do
resto da textura. Valoriza mais as dissonâncias dos acordes finais e cria, como
Rubinsky, o efeito onomatopaico alusivo aos latidos do cachorrinho.
Hamelin faz as variações de agógica mais nítidas e, em sua articulação e
acentuação, o tenuto e o > estão menos diferenciados que nas versões anteriores,
embora o > seja muito mais enérgico quando o tema é oitavado ou em acordes em ff, fff
56
MAGALHÃES, Homero de. 1994, p. 228
e ffff. Assim como Schic, ele faz a dinâmica bem graduada e com grandes contrastes;
contudo, nos acordes da Codetta não se percebe um sentido onomatopaico.
Diferencia-se na valorização das dissonâncias, por ele mais enfatizadas, e
também pelo uso abundante de pedal, o qual não prejudica a clareza das idéias
superpostas. O pianista constrói um grande efeito dramático entre soprano e contralto
quando essas vozes dialogam em B.
3.4.2 Tabela 4. Quadro comparativo das gravações de O cachorrinho de borracha.
Pianistas
Barentzen Schic Rubinsky Garosi Hamelin
Andamentos
Ligeiramente mais lento
que o indicado,
prenunciando o clima..
Ligeiramente mais lento
que o indicado,
prenunciando o clima
Ligeiramente mais lento
que o indicado,
prenunciando o clima.
Boa escolha de
andamento, permitindo a
escuta da cadência de uma
valsa e prenunciando o
clima. Tempo elástico.
Ligeiramente mais lento
que o indicado,
prenunciando o clima.
Variações de
agógica
Em relação ao Lento
inicial, Rit. e rall. pouco
perceptíveis e Animé mais
brilhante.
Rit. e rall. expressivos,
Animé claro e brilhante.
Rit. e rall. expressivos,
Animé claro e brilhante.
Rit. e rall. expressivos,
Animé claro e brilhante.
Rubatos, tempo elástico.
Diferenciadas, Animé
claro, mais ‘virtuosístico’
que nas demais gravações.
Acentuação
Contribui para a clareza da
condução das vozes em A.
Tenuto e > diferenciados
na apresentação inicial do
tema.
> contribuindo para a
clareza da condução das
vozes em A.
> enérgicos no tema
oitavado ou em acordes,
quando em ff, fff e ffff
Tenuto e > bem
diferenciados na
apresentação inicial do
tema.
.
> contribuindo para a
clareza da condução das
vozes em A.
> enérgicos no tema
oitavado ou em acordes,
quando em ff, fff e ffff
Tenuto e > bem
diferenciados na
apresentação inicial do
tema.
> enérgicos no tema
oitavado ou em acordes,
quando em ff, fff e ffff.
Timbre + brilhante no
soprano
Tenuto e > menos
diferenciados que nas
anteriores.
> enérgicos no tema
oitavado ou em acordes,
quando em ff, fff e ffff.
Dinâmica
Permanece entre p e ff, não
alcançando ffff.
Bem graduada e com
grandes contrastes.
Bem graduada, variando
entre pp e ff.
Bem graduada, entre p e
ffff
Bem graduada, de pp a ffff
e com grandes contrastes
Valorização das
dissonâncias
Pouco valorizadas.
Valorizadas,
acompanhando a
acentuação, inclusive nos
acordes finais.
Valorizadas,
acompanhando a
acentuação, inclusive nos
acordes finais.
Valorizadas pela flutuação
do tempo,
acompanhanhando a
acentuação, inclusive nos
acordes finais.
Mais valorizadas que nas
anteriores, acompanhando
a acentuação, inclusive nos
acordes finais.
Uso do
pedal
Adequado, embora haja um
corte brusco do Moins para
a 3ª seção (corte do som
onde há uma fermata).
Adequado, acompanhando
a textura.
Adequado. Adequado, econômico.
Abundante, embora
mantendo a clareza.
Polirrit
mias
Claras. Claras. Claras. Claras. Claras.
Ênfase nos
elementos
descritivos
Onomatopéia nos acordes
finais.
Não perceptíveis.
Onomatopéia nos acordes
finais.
Onomatopéia nos acordes
finais.
Onomatopéia nos acordes
finais
Indiccadores
Clima
Intimista, um pouco
arrastado.
Intimista, com momentos
de dramaticidade.
Excelente diálogo entre
soprano e contralto, em B.
Intimista, sonoridade
aveludada, momentos
dramáticos.
Bom diálogo entre soprano
e contralto, em B.
Intimista, sonoridade “en
dehors”, momentos
dramáticos em tempo
elástico.
Bom diálogo entre soprano
e contralto, em B.
Intimista (porém menos)
que as anteriores. Diálogo
dramático entre soprano e
contralto, em B.
3.5 O cavalinho de pau
Le petit cheval de bois
Miriam B. Rocha (2001, p. 72) afirma que O cavalinho de pau é uma peça
descritiva; Souza Lima (1976, p. 49), por sua vez, observa que a descrição do galope se
desenvolve desde o início, enquanto Homero Magalhães (1994, p. 229) denomina o
ostinato inicial de “galope ostinato”.
Talvez a quinta peça da segunda Prole seja a mais evidentemente descritiva. O
efeito sonoro produzido pelo ostinato (c.1, com anacruse) é claramente onomatopaico
(Exemplo 41).
Exemplo 41. O cavalinho de pau. cs. 1 com anacruse a 3 -
Ostinato inicial.
Ouço dois diferentes eventos rítmicos sugerindo o movimento do animal-título.
Primeiro, o ostinato atonal, em ritmo (pé) anapesto (
u
u
- ), alusivo ao galope,
construído com intervalos harmônicos que se dilatam, na mão direita; o segundo, ao
qual o ostinato se superpõe, é um desenho rítmico em colcheias, na mão esquerda,
formado com intervalos de 2ª e 4ªaumentada.
Ao longo da peça, ambos os desenhos sofrem sutis variações; o ostinato, mesmo
quando variado, tem sua característica de anapesto garantida pelos diferentes contornos
melódicos com que se apresenta. O desenho, ora em divisão binária, ora ternária
quialtérica (cs.5,6,7,8), ganha em “Menos” (c.35) o perfil anapesto, mantido nos
acordes arpejados em “Muito animado”(c.47 a 50.1 (Exemplo 42) e 58 a 60 (Exemplo
43) – nesse último caso, a pausa de semicolcheia na divisão do tempo faz com que se
ouça, mais uma vez, o ritmo
u
u
- ).
Exemplo 42. O cavalinho de pau, cs. 47 a 50.1 – Acordes arpejados, ritmo
anapesto.
Exemplo 43. O cavalinho de pau, cs. 58 e 59 –
Ritmo anapesto assegurado pela pausa de semicolcheia.
Dependendo do andamento em que se ouve a peça, os arpejos de 7
as
(por 4
as
superpostas) da mão esquerda nos cs. 47 a 50.1, e as acciacaturas
57
no Vivo e alègre
(sic.), cs. 69 a 84, também podem ser considerados ostinatos-galope. No primeiro caso,
as notas curtas são ainda mais curtas, mas a colcheia está na cabeça do tempo. No
segundo, a figura formada por 2 curtas + uma longa é mantida, mas a longa, a colcheia,
esta na parte fraca do tempo. Esta distinção produz relevante diferença no fraseado. Na
primeira situação, o ponto de chegada (thesis) é a colcheia na cabeça do tempo, ela é a
figura mais acentuada; já na segunda situação, o ponto de chegada está na parte fraca do
tempo, ainda mais que as notas da canção folclóricas são articuladas, com acento, na
parte forte do tempo (ritmo trocaico -
u
).
57
(It. de acciacciare, “espremer”) (1) Uma “nora espremida”: ornamento que consiste numa nota
acessória adjacente à nota principal (habitualmente um semitom abaixo); sendo introduzida
imediatamente antes ou soando junto à principal, é logo liberada quando a principal continua ressoando.
In Dicionário Grove de Música, verbete Acciacatura, p. 4
Exemplo 44. O cavalinho de pau, cs. 47 e 48 e 69 e 70 Distinção rítmica produzindo
diferença no fraseado.
Nos últimos sete compassos da peça encontra-se a mesma rítmica e articulação,
mas a direção das três notas é invertida, formando um desenho descendente. Magalhães
(1994, p. 234) a interpreta como o “resfolego do cavalinho” e Miriam B. Rocha (2001,
p. 78) “como se esses galopes fossem se distanciando” (Exemplo 45).
Exemplo 45. O cavalinho de pau, cs.131 a 138 - Efeito onomatopaico em mf.
Diferente do que acontece na seção B de O camundongo de massa, onde se
encontram seis acentos diferentes, em O cavalinho de pau, os acentos dos ostinatos não
são tão sofisticadamente diferenciados, porém tão pianísticos (apesar do compositor não
ser uma virtuose no teclado) que os apoios acabam ocorrendo de maneira natural. No
ostinato inicial, o próprio movimento que as mãos fazem na execução resulta em apoio
nas primeiras colcheias de cada grupo de quatro semicolcheias. Dois fatores fazem com
que a colcheia receba apoio; - é antecedida por valores mais curtos; - é o ponto de
chegada do desenho.
Nessa peça, a harmonia soa dissonante e politonal; nela observam-se três estratos
sonoros diferentes (Rocha, 2001, p. 74 e Magalhães 1994, p. 230 e 231)
:
o efeito de
politonalidade se pela superposição do tema em mi menor e do ostinato atonal ao
baixo em lá menor. (Exemplo 46)
Exemplo 46. O cavalinho de pau, cs. 17 a 21 – Politonalidade: superposição do
ostinato atonal e do tema em mi menor ao baixo em lá menor.
Outros elementos harmônicos empregados no modernismo também são
observados nessa peça: seqüências de sétimas paralelas (acordes por quartas) na mão
esquerda (cs. 48 a 53), arpejos em intervalos de 2
as
, 4
as
e 5
as
(cs.34, 54 e 130) e
tratamento da melodia em 7
as
paralelas (cs. 74 a 89).
O tema folclórico usado, “Garibaldi foi à missa”
58
, se apresenta de inúmeras
maneiras: em modo maior e menor, em 7
as
paralelas, incompleto, estendido e com
aumentação de valores.
Em O cavalinho de pau a segmentação da forma não é evidente. Magalhães
(1994, p.229) propõe duas opções para sua subdivisão. A primeira seria ternária: A (cs.
1 a 34) / B (cs. 35 a 68) /A’(cs. 69 a 139); e a segunda, em quatro partes: A (cs. 1 a 34)/
B (cs. 35 a 68) /A’ ou C (cs. 69 a 101) / e D (cs. 102 a 139). Acredito que foram as
mudanças de andamento que nortearam a segmentação de Magalhães.
O fato de se encontrar, na Prole do Bebê 2, um efeito virtuosístico como
elemento de ligação entre seções de algumas peças caso de O cachorrinho de
borracha (cs.19 a 21), de O passarinho de pano (cs.83 e 84) e de O cavalinho de pau
(cs.61 a 68 ou cs. 92 a 101) -, fundamenta a segunda opção apresentada.
A articulação, somada ao ritmo, alude ao material de que o cavalo é formado, a
madeira. Os staccatos, as acentuações, a natureza áspera dos acordes ou mesmo de
algumas notas isoladas, acompanhados de menor uso do pedal, soam secos e duros, tal
qual o ruído produzido pela madeira e pelos cascos do animal em deslocamento.
Nos andamentos, expressos com os termos Animé, Menos, Très animé, Vivo e
alegre, e na rítmica, que reproduz os ruídos do galope, estão nítidas as menções ao
58
Letra da canção: Garibaldi foi á(sic) missa no cavalo sem esporas; o cavalo tropeçou, Garibaldi lá
ficou!
In VILLA-LOBOS, H. Guia Prático. Irmãos Vitale Editores, 1941, ps. 79 e 80.
movimento do eqüino. As variações de andamento e dos ostinatos podem aludir às
diferentes formas de deslocamento do cavalinho - marcha, trote ou galope, mais ou
menos rápidos.
Na seção A, o andamento Animé é regular, sem indicações de acellerando ou
ritardando. Já dos compassos 35 a 48 (em B), há uma aceleração gradual promovida
pela seqüência das indicações Menos, Animé e Très Animé, somada à repetição dos
grupos de 4 semicolcheias em staccato e em movimento ascendente. Nos compassos 45
a 47 ocorre um movimento descendente onde é mantido o Animé. (Exemplo 47)
Exemplo 47. O cavalinho de pau, cs. 35 a 50 – Movimento de aceleração.
Dos compassos 58 a 63 observa-se outra aceleração. O desenho começa com o
grupo de quatro semicolcheias ascendentes (a quarta é uma pausa) em non legato, com
dinâmica mf, f e ff. Em seguida, aumenta para seis notas em quiálteras, produzindo
aceleração. É como se o cavalinho estivesse galopando regularmente e depois
começasse a correr, parando no ré 4 do compasso 63. (Exemplo 48)
Exemplo 48. O cavalinho de pau, cs. 58 a 63 Aceleração promovida pela passagem
de quatro para seis notas por tempo e pela intensificação da dinâmica.
No Vivo e alègre (sic.) uma desaceleração porque o ritmo volta à divisão em
colcheias, a segunda, em ambas as mãos, precedida por acciaccaturas com direções
invertidas. O tema (cs. 69 a 89), no soprano, apresentado com aumentação de valores e
imitado pelo contralto, é construído com acordes de sétimas (cs.73 a 89) e depois de
nonas (c. 89 a c.92).
Exemplo 49. O cavalinho de pau, cs. 69 e 72 –Tema com aumentação de valores e
sua imitação.
Como observado, a acentuação em todas as notas da melodia realça o
nacionalismo imerso em recursos modernos mas, na peça, também pode estar
reforçando a articulação non legato do tema. Ao contrário das linhas melódicas cantadas
e em legato do romantismo, as do modernismo requerem toque mais seco e percussivo,
como em Prokofiev, Bártok, Stravinsky e em outras obras de Villa-Lobos.
Em O cavalinho de pau, como em outras peças dessa Prole, os efeitos
virtuosísticos demarcam sua segmentação. No compasso 34 temos no arpejo descente
em intervalos de quintas, um “divisor de águas”, da primeira seção para a
segunda.(Exemplo 50).
Exemplo 50. O cavalinho de pau, cs. 34 e 35.1 –
Arpejo descendente como elemento articulador da forma.
O arpejo ascendente do compasso 61 a 63 também anuncia o fim da seção B,
antecedendo a extensão que leva à nova seção C, no compasso 69.(Ver exemplo 48). A
última seção D (c.98) é igualmente precedida por uma série de rápidos arpejos
descendentes.
A poderosa massa sonora de D flui para a nota sol 1, em ffff (c.131), sustentada até
o final da peça, enquanto sobre ela soa o motivo rítmico do ostinato que se esparsa, até
desaparecer.(Ver Exemplo 45).
Resumo da análise musical de O cachorrinho de borracha.
Forma
ABA’C articulada por mudanças de agógica, arpejos com intervalos outros
que 3ªs, mudanças de textura e dinâmica entre as seções. Canção folclórica em
A e A’.
Harmonia
Atonalismo + temas com pólo ou tonais, politonalismo ou tonalismo +
modalismo, e efeitos construídos com o “Princípio do Polichinelo”.
Textura
Homofônica
em B e C e p
olifônica
em A e A’
. Predomínio de três
estratos e m
enor compressão em C (pesante) e maior em A (primeira
apresentaçãoda canção).
Ostinatos
Ostinato-clima rítmico (variado em A e B). Novo ostinato rítmico em A’ e C.
Ritmo
Andamentos animados, variações de agógica, mudanças de fórmula de
compasso, acentos deslocados, polirritmias e síncopes.
Melodia
Melodias folclóricas, melodias construídas com motivos das canções
folclóricas ou pseudofolclóricas e linhas-temas.
3.5.1 Comparação entre cinco gravações de O cavalinho de pau.
Observa-se que, excetuando O lobosinho de vidro - de andamento Presque vif
(M:108= ) - todos os outros animaizinhos velozes do ciclo, como o camundongo, o
cavalinho, o passarinho e o ursinho (cujo andar não é rápido, mas seu andamento é
animado e gracioso) não apresentam indicação metronômica que, nos bichos mais
lentos, é sempre colocada.
Não atinei a razão pela qual Villa-Lobos fez indicações metronômicas nas peças
mais lentas, mas não nas rápidas, pois é claro que, no ciclo, essas indicações (como em
outras obras) são fontes de informações valiosas para a concepção dos andamentos e
contribuem para o delineamento do caráter das peças.
Em O cavalinho de pau os cinco pianistas entendem o Animado com sutis diferenças.
Barentzen faz todos os andamentos rápidos, com sentido geral de aceleração, também
observada em Menos, que ela inicia mais lento e acelera muito em direção ao Muito
Animado. A dinâmica em geral é f, contribuindo para a aspereza dos acordes
dissonantes. O uso do pedal é excessivo e prejudica não o efeito de galope seco e a
inteligibilidade dos estratos sonoros, como obscurece as polirritmias. A acentuação é,
em geral, moderada, mas enérgica no fim, acompanhando as indicações de intensidade e
valorizando as dissonâncias. Suas escolhas criam um clima impetuoso e afobado.
Schic executa O Cavalinho bem animado (rápido, vivo), tendendo à aceleração,
excetuando em Menos de B. A pianista surpreende nesta interpretação, pois, dona de um
temperamento geralmente sereno, quase sempre, opta por maior suavidade no toque e
andamentos mais lentos que os dos demais, o que, não ocorre nessa peça. Schic também
contradiz sua maneira discreta de acentuar e, para o cavalinho, ela escolhe acentuação
enérgica, produzindo efeito percussivo; a dinâmica, com grandes contrastes, tende ao f e
ff, mesmo na canção folclórica, e os fortes são ásperos, adequando-se às dissonâncias
abundantes no texto que, nessa peça, são mais valorizadas que nas anteriores. De modo
geral, em sua execução, a sonoridade é áspera e até mesmo agressiva. O uso excessivo
do pedal prejudica o efeito seco do galope, obscurece as polirritmias e a percepção das
quiálteras. A intenção descritiva do cavalinho fica transparente, sobretudo devido à
rítmica e à letra da canção folclórica “Garibaldi foi à missa”. Suas decisões criam um
clima bem humorado e brincalhão, embora seu cavalinho seja um Pégaso grande e
fogoso.
Para essa peça, Rubinsky elabora interpretação competente e equilibrada, como,
aliás, em toda a coleção. Seu andamento é menos Animado que o de Schic e as
variações – Animado, Menos, Muito animado, Vivo e alegre -- são bem diferenciadas. A
acentuação, que acompanha as indicações de intensidade, é executada com moderação.
As dissonâncias são valorizadas proporcionalmente à dinâmica (quanto mais forte, são
mais realçadas), e os f e ff são bem contrastados.
O uso do pedal é adequado e econômico, favorecendo a sonoridade mais seca
requerida pelo material de que é feito o cavalinho e o ruído do galope. Essa escolha
também contribui para clarear as polirritmias que são facilmente percebidas em função
da diferenciação criteriosa entre os estratos sonoros.
Não necessidade de enfatizar os elementos descritivos porque o ritmo e a
canção folclórica já o fazem naturalmente.
Garosi escolhe andamento geral semelhante ao de Rubinsky, mas os ostinatos,
seções e subseções são iniciados um pouco mais lentamente do que o andamento
indicado e em seguida prossegue no tempo pedido. O tempo é flexível e as variações de
andamento são nítidas.
As indicações de dinâmica são seguidas com clareza e seus contrastes, bem vivos.
A acentuação acompanha as indicações de intensidade e contribui para a expressiva
valorização das dissonâncias. A pianista faz interessante interpretação da textura,
destacando as linhas escritas em registros contrastantes. A pedalização é bastante
econômica, permitindo que as polirritmias sejam ouvidas com clareza.
Garosi lança mão do ritmo, da agógica e da dinâmica para enfatizar os elementos
descritivos que são apresentados em um clima bem humorado, leve e peralta.
O Animado de Hamelin é excessivo e juntamente com o uso exagerado do pedal,
obscurece as numerosas polirritmias da peça. As variações de andamento são
proporcionalmente bem definidas e acompanhadas por acentuação enfática, por vezes
percussiva. Em função do toque, em geral percussivo, e da pedalização, as dissonâncias
são muito valorizadas.
A dinâmica é seguida com clareza e os contrastes são vivos. O pianista recria os
efeitos onomatopaicos, embora o galope seja excessivamente rápido e frenético. O
clima geral da peça é impetuoso e o cavalinho parece um Pégaso bravio, em oposição ao
título da peça.
3.5.2 Tabela 5. Quadro comparativo das gravações de O cavalinho de pau.
Pianistas
Barentzen Schic Rubinsky Garosi Hamelin
Andamentos
Todos os andamentos são
rápidos
Correspondente à indicação
Animado (Bem animado na
execução de Schic)).
Animado (menos do que
o de Schic).
Ostinatos, seções e
subseções iniciados um
pouco mais lentamente,
continuando nos
andamentos indicados.
Animado em excesso,
possível opção pelo
virtuosismo.
Variações de
agógica
O Menos inicia-se + lento e
depois é muito acelerado
até o Muito Animado
Sentido geral de aceleração.
Excetuando em “Menos”
(B), sentido geral de
aceleração.
Bem definidas
Diferenciações nítidas.
Tempo elástico.
Bem definidas.
Acentuação
Moderada, acompanhando
as indicações de
intensidade, e enérgica no
fim.
Enérgica, efeito
percussivo (a execução
tende ao f e ff), mesmo na
canção
folclórica.
Moderada,
acompanhando as
indicações de
intensidade.
Viva, acompanhando as
indicações de intensidade.
Enfática, por vezes
percussiva,
acompanhando as
indicações de
intensidade e agógica
Dinâmica
Em geral f além de conferir
aspereza aos acordes
dissonantes.
Grandes contrastes.
f ásperos, adequados às
dissonâncias.
f e ff sem exageros.
Contrastes vivos.
Indicações seguidas com
clareza, contrastes vivos.
Indicações seguidas
com clareza,
contrastes muito vivos.
Valorização das
dissonâncias
Valorizadas
proporcionalmente às
intensidades.
Valorizadas,
+ do que nas peças
anteriores.
Sonoridades ásperas, até
agressivas.
Valorizadas
proporcionalmente às
intensidades.
Muito valorizadas.
Ênfase nas linhas em
registros contrastantes.
Muito valorizadas, em
função do toque, por
vezes percussivo, e da
abundância de pedal.
Uso do
pedal
Excessivo, prejudicando o
efeito de galope seco e a
inteligibilidade dos estratos
sonoros.
Por vezes excessivo,
prejudicando o efeito de
galope seco.
Adequado e econômico. Econômico. Abundante.
Polirritmias
Obscurecidas em função do
uso do pedal e do
andamento rápido.
Nem sempre bastante
claras.
Claras
(Diferenciação criteriosa
entre os estratos sonoros
e pedal econômico)
Sempre muito claras.
(Diferenciação criteriosa
entre os estratos sonoros e
pedal muito econômico)
Obscurecidas em
função do andamento
muito rápido.
Ênfase nos
elementos
descritivos
Efeito galope prejudicado
pelo excesso de andamento
e pedal.
Ritmo e canção folclórica
naturalmente descritivos.
Ritmo e canção
folclórica naturalmente
descritivos
Realização do ritmo, da
agógica e da dinâmica
enfatizando os elementos
descritivos.
Galope
excessivamente rápido
e frenético.
Pégaso bravio, em
oposição ao título da
peça.
Indiccadores
Clima
Impetuoso, afobado.
Bem humorado, embora
pesado.
Bem humorado e mais
leve que o de Schic.
Bem humorado.
Leve, arteiro.
Impetuoso, veloz, em
função do andamento.
3.6 O boisinho(sic) de chumbo.
Le petit boeuf de plomb.
Como escrito, na Prole, O Boizinho, A Baratinha, O Gatinho e O Cachorrinho
fazem parte do grupo de peças compostas em andamentos mais lentos, enquanto O
Cavalinho, O Passarinho, O Ursozinho e O Lobosinho são mais rápidos.
É interessante observar que Villa-Lobos é mais preciso nas indicações dos
andamentos lentos. Para os animais mais vagarosos ele fixa um andamento
metronômico; para O Camundongo, O Cavalinho e para O Ursozinho ele indica
Trés animé, Ani e Animado e gracioso, respectivamente, sem cravar uma velocidade.
No Boizinho esta indicado Un peu modéré (80 = ), Trés vif (160 = ), Lent (69= )e
Grandeose (60 = ).
O chumbo, dentre todos os materiais papel, papelão, massa, pau, pano, algodão
e vidro - de que são feitos os bichinhos dessa Prole, é o mais pesado, razão
provavelmente, para a textura da peça ser muito densa e o volume sonoro requerido,
geralmente muito grande. O pianista usa todos os registros do instrumento e a
pedalização é fundamental para a produção correta das ressonâncias e dos inúmeros
efeitos solicitados.
O clima entre a quinta e a sexta peça é acentuadamente contrastante. O da anterior
é vivo, seco e percussivo, com pouca pedalização; já o da sexta, é melancólico, pesado e
vagaroso, exigindo intenso uso do pedal.
Vários autores fazem referência à relação entre o título da peça e o fator sonoro
correspondente. Miriam B. Rocha (2001, p.79) afirma que a escrita densa e sonora
sugere o peso do material (o chumbo) e do animal. Souza Lima (1976, p.50) cita:
“parece que o compositor transportou para a profusão de realizações pianísticas todo o
volume e o peso do animal”. Tarasti
59
(1995, p. 275) chama atenção para o fato de que
“a música logo se expande em uma explosão patética. Os rápidos glissandos
cromaticamente ascendentes (em notas de menor duração) fazem referência aos
trabalhos orquestrais de Villa-Lobos, nos quais ele escreveu tais passagens para os
metais”. E Béhaghe
60
(1994, p. 65) escreve que “a qualidade sonora massiva da peça
59
The music soon expands into a pathetic outburst. The quickly cromatically rising glissandos (in smaller notes) refer
to Villa-Lobos’s orquestral works, in which he wrote such passages for the brass.
60
The overall massive sound quality of the piece clearly relates to the depictive evocation of the ox, with heavy
figurations, thick chordal blocks, and the utilization of the whole gamut of the piano registers (...)
claramente se relaciona com a evocação descritiva do boi, com figurações pesadas,
blocos de acordes densos, e com a utilização de todo o registro do piano”.
Homero de Magalhães (1994, 210-255) faz várias interpretações a respeito dos
efeitos da peça, bem como do seu ostinato inicial, e cria imagens estéticas interessantes
e originais. Ele escreve (1994, p.235) que “a parte A (c.1 ao c.13) em si b menor com
nota de percussão no baixo, pretende talvez imitar a cabeça baloiçante do boi, para lá e
para cá, através de sugestivo ritmo com “appoggiaturas” superiores da Tônica”.
Exemplo 51. O boisinho(sic) de chumbo, cs. 1 a 3- Ostinato inicial.
Sob esse ostinato sincopado é percutido o –2 (última nota na região grave do
piano) em mf e staccato, de modo regular e isócrono, na cabeça dos três tempos do
compasso, aludindo, talvez, ao andar vagaroso e compassado do boi.
A forma da peça é dividida em 5 seções: A (cs.1 a 13.3.1)/B (cs.14 com anacruse
a 28.1)/C (cs.28.2 a 49)/D ou A’(cs.50 a 62)/E(cs.63 a 76), segmentação que é
acompanhada por mudanças nas indicações de agógica: Tempo nos compassos 14 e
28, Lent no compasso 50 e Grandeose no compasso 63.
Segundo Merhy (1984, p.21) “o elemento temático principal é cromático
(compasso 5)”. Homero de Magalhães (1994, p. 236) observa que “a continuação da
melodia, com melismas circulares é digna do gênio melódico do Mestre”. Os
cromatismos são profusos na peça e, tal qual os de O gatinho de papelão, podem sugerir
lentidão e efeitos onomatopaicos, representando mugidos para o boi e miados para o
gato. Miriam B. Rocha (2001, p. 81) considera que o glissando, um motivo cromático
no tenor (em seguida imitado no baixo), em B (Exemplo 52), remete ao efeito
correspondente no tímpano da orquestra. Esse motivo é pregnante na peça, aparecendo
também em C (Exemplo 53), dentro do tema (cs. 34.2/45.1), no tenor e, em seguida,
ampliado, no soprano; em D, no baixo; e em E (Exemplo 54), no contralto e no tenor.
Exemplo 52. O boisinho(sic) de chumbo, cs. 14 a 15.1 – Motivo cromático no tenor e no
baixo em B.
Exemplo 53. O boisinho(sic) de chumbo, cs. 40 e 41 - Cromatismos do 2º tema, em C.
Exemplo 54. O boisinho(sic) de chumbo, cs.64 e 65 Cromatismo no contralto e no
tenor, em E.
O primeiro tema (c.5 a 11.2) (Exemplo 55) apresenta uma idéia cromática
descendente. Merhy (1984, p. 22) ressalta “(...) [a] tendência geral da melódica de Villa-
Lobos: alterar descendentemente as notas da melodia, o que é um princípio fortemente
aparentado com as teorias estéticas do jazz”. Já Magalhães (1994, p.239) relaciona as
passagens cromáticas descendentes da peça (como em O cachorrinho de borracha) ao
tema indígena “Makocê-cê-maká”. (Ver Exemplo 38, p. 75)
Exemplo 55. O boisinho (sic) de chumbo, cs. 5 a 11.2 – cromatismos do 1º tema.
Na parte C (no tenor) está o segundo tema (cs.34 a 45.1) em mi b, cujos
intervalos mais largos são preenchidos pelos glissandos cromáticos ascendentes. (ver
Exemplo 53).
Em D combinam-se o ostinato, no baixo, no modo frígio, e o 1º tema, no
soprano, em lá b menor, e depois no tenor. (Exemplo 56)
Exemplo 56: O boisinho(sic) de chumbo, cs. 50 a 54 – Tema sobre o baixo no
modo frígio.
Tarasti (1995, p. 274) relaciona o caráter melancólico da peça ao estilo de tango
(principalmente por causa do ostinato inicial e dos cromatismos na melodia) e Bastos
(2001, p. 79) “ao olhar tristonho do boizinho”. Magalhães (1994, p. 239) refere-se ao
ambiente da peça com os termos: monotonia, sentido estático e passivo.
Apesar da abundância de efeitos descritivos, como referido, Villa-Lobos não
tinha intenção de fazer música programática (Wisnick, 1983). Merhy (1984, p.23)
refere-se à polêmica desatenção do compositor em relação às minúcias da escrita e à sua
espontaneidade advinda de um temperamento impetuoso. O alto grau de sofisticação na
estruturação da segunda coletânea, com as inovações harmônicas, no tratamento da
textura e do ritmo, e a originalidade de seus efeitos, contrastam com a liberdade formal
e o nacionalismo espontâneo do compositor.
em todo o ciclo diversos efeitos típicos da estética moderna. Cito a
abundância de polirritmias (Exemplo 53), a harmonização bitonal em E (Exemplo 54),
onde o tenor está em menor e o contralto em si b menor-, e a combinação modo-
tonalidade em C, com a superposição de um baixo em modo frígio a uma melodia em
menor. (Exemplo 56).
Nessa peça apresentam-se várias dificuldades técnicas. Souza Lima escreve
(1976, p.51) “as figurações pianísticas vão se ampliando, complicando-se: escalas em
intervalos variados, movimentação das partes nos graves, efeitos de glissando num
arrastamento de sons, passagens de oitavas em saltos”. Béhaghe
61
(1994, p. 64 e 65)
ressalta “as passagens rápidas de escalas com intervalos diferentes, glissandi de
configurações cromáticas e diatônicas, tocar em registros extremos do piano, a
acentuação rítmica, e os três planos distintos de dinâmica”.
Apesar do emprego de densa massa sonora, é interessante observar como Villa-
Lobos termina a peça. Ele renova o efeito onomatopaico do mugido em meio à
gradativa rarefação da textura, rall. pouco a pouco e dim. sempre, até alcançar ppp.
(Exemplo 57)
Exemplo 57. O boisinho(sic) de chumbo, cs. 74 e 75 - Efeito de mugido.
61
(…) calls for fast scale passages in different intervals (fourths, sixth, sevenths, ninths, etc.), both
chromatic skips (up to ascending ninths and descending sixths) in octaves (mm. 17-19), performance in
the extrme ranges of the keyboard, rhythmic involution with accentuations os difficult negotiation (mm.
5-10), andu p to three simultaneous dynamic planes (m.50).
Resumo da análise musical de O boisinho (sic) de chumbo.
Forma
ABCDE articulada por mudanças de andamento, efeitos virtuosísticos,
mudança de dinâmica e de material.
Harmonia
Atonalismo + temas com pólo ou tonais, politonalismo ou tonalismo +
modalismo, modalismo, escalas pentatônicas, efeitos construídos com o
“Princípio do Polichinelo” e acordes por 4
as
, 2
as
ou 4
as
e 2
as
Textura
Homofônica
em A, parte final de B, C e final de D, e p
olifônica na p
arte
inicial de B e D; e em E.
Densidade em
A de três estratos; B, Ce D iniciam
com três estratos e finalizam com dois; E com quatro estratos.
Ostinatos
Ostinato-clima variado em cada apresentação.
Ritmo
Andamentos em geral lentos, variações de agógica, mudanças de fórmula de
compasso, acentos deslocados, polirritmias e síncopes.
Melodia
Melodias construídas com motivos do ostinato e linhas-temas.
3.7.1 Comparação entre cinco gravações de O boisinho(sic) de chumbo.
Em O boisinho(sic) de chumbo, ao contrário de em O cachorrinho de borracha,
observam-se acentuadas diferenças nas interpretações dos cinco pianistas, a começar
pelo modo como cada um executa o ostinato inicial. Schic e Barentzen conferem a ele
um toque legato e realçam sutilmente o acorde (dó 3, réb 3 e 3) na síncope.
Rubinsky, usando menos pedal, separa bem o primeiro sib 2- que está em staccato - do
resto do ostinato, destacando a linha do contralto. Já Garosi, muito econômica no pedal,
confere aos quatro primeiros compassos da peça uma articulação em staccato do
primeiro sib 2 para o restante do ostinato, que está em legato, destacando sua parte
descendente (réb 3, 3 e sib2). Hamelin apresenta o início da peça com pouco pedal e
separa tanto o primeiro sib 2, quanto a parte descente do ostinato. A escolha
diferenciada da execução do ostinato pelos cinco pianistas encaminha a peça
musicalmente de maneiras diferentes, o que comprova a importância dos ostinatos no
ciclo em estudo.
Barentzen faz o Un peu modéré mais lento que o indicado (semelhante aos de
Rubinsky e Garosi), porém apropriadamente, pois, a meu ver, o andamento
metronômico proposto é rápido para representar o boi. em B, a pianista confere ao
fluxo do movimento um sentido geral de aceleração e, em D, opta por velocidade
demasiadamente rápida. Suas variações de agógica não são bem graduadas e os animé,
antes de B e de E, são abruptos.
Constrói dinâmica com predominância de f, e a acentuação, que de modo geral,
realça as linhas melódicas, é excessiva em relação a rfz ou rf> em C, que a
intensidade indicada é pp. Sua gravação não parece transmitir preocupação em valorizar
as dissonâncias da peça, além de apresentar uso excessivo do pedal, sobretudo em D, o
que, somado a uma diferenciação pouco criteriosa dos estratos sonoros, obscurece as
polirritmias.
A pianista parece não ter tido preocupação com aspectos descritivos e o clima
para o boizinho soa mecânico, em função da interpretação rígida das síncopes do
ostinato, da velocidade de execução dos efeitos onomatopaicos e da ênfase em f.
Schic interpreta O boisinho(sic) de chumbo de maneira tristonha, dramática e
grandiosa, em decorrência das escolhas do andamento, dinâmica com contrastes,
variações de agógica e seu toque profundo. Rubinsky, Garosi e ela fazem o andamento
pedido - Un peu modéré (M: 80 = ) mais lento, embora de maneiras diferentes.
Entre as cinco interpretações, é a de Schic que apresenta o andamento mais lento, porém
consoante com as características do animal. As variações de tempo, em geral,
acompanham as de dinâmica, mas ela faz pouca diferenciação entre Un peu modéré (A)
e Lent (D); porém ela é mais clara nos compassos anteriores à entrada do 2º tema, em C
e, em Grandeose (E), o tempo é mais lento que M:60= . Nessa última seção, a pianista
executa pequenas acelerações nas semicolcheias ascendentes, reforçando o caráter
dramático de E.
Em geral, a acentuação é pouco enérgica e na paleta de dinâmica predominam as
intensidades entre f, ff e fff, com pouco aproveitamento do pp. O uso abundante do pedal
é apropriado e colabora para a produção do som massivo solicitado, para a valorização
das dissonâncias que acompanham a dinâmica, embora obscureça a projeção das
polirritmias. A pianista enfatiza os elementos descritivos e comunica o efeito de
movimento do animal na rítmica sincopada do ostinato e o efeito onomatopaico do
mugido, através dos cromatismos e glissandos acompanhados de seus cresc.
Rubinsky escolhe um andamento mais lento do que o indicado, porém
ligeiramente mais rápido do que o de Schic. Suas variações de andamento também
acompanham as de dinâmica. A pianista faz pouca diferenciação entre Un peu modéré
(A) e Lent (D), e chega ao Grandeose (E) no andamento indicado (M:60=
), no qual a
acentuação, geralmente enérgica, é bem projetada, acompanhando as indicações de
intensidade. Sua construção da dinâmica enfatiza as intensidades entre f, ff e fff, embora
também use mf.
O uso do pedal é adequado, apesar de mais parcimonioso que o de Schic, o que
facilita a percepção das polirritmias que estão nítidas, também como resultado da
diferenciação criteriosa entre os estratos sonoros. As dissonâncias são valorizadas
proporcionalmente às intensidades e à densidade dos acordes.
Observa-se a descrição do bichinho no efeito onomatopaico do mugido reforçado
pela dinâmica, nos glissandos, nas durações isócronas do baixo, em região muito grave,
alusivas ao deslocamento do animal. Rubinsky constrói um clima introspectivo e
melancólico em decorrência do andamento e da sonoridade velada escolhidos.
Garosi, em geral, conduz muito bem a linha do baixo e valoriza a mão esquerda,
característica enfatizada em O boisinho(sic) de chumbo. O andamento escolhido é
semelhante ao de Rubinsky, e quanto às variação de andamento, a pianista italiana faz
pouca diferenciação entre Un peu modéré (A) e Lent (D), chegando ao Grandeose (E)
mais lento que 60= . Ao contrário das gravações anteriores, ela nem sempre executa o
cresc. acompanhado de aceleração.
O pedal, como já referido, é o mais econômico das cinco gravações e, em
conjunção com a diferenciação criteriosa entre os estratos sonoros, aclara as
polirritmias. A pianista faz a acentuação enfaticamente, por vezes percussivamente,
acompanhando as indicações de intensidade. As indicações de dinâmica são seguidas
com clareza e os contrastes são vivos, fazendo uso, além do f, ff e fff, do mf e p. Como
habitual, as dissonâncias são muito valorizadas.
Sua caracterização do boizinho é expressa na realização do ritmo, introduzindo
rubatos bem dosados, da agógica e da dinâmica. O clima criado é dramático, em
decorrência dos contrastes de dinâmica, da acentuação, da realização dos baixos e da
polirritmia. A pianista é muito criativa e nem sempre segue a partitura com rigor, o que
não impede que o resultado seja muito bom.
Hamelin respeita a indicação Un peu modéré (M: 80 = ) para o andamento. A
execução, porém, soa muito rápida, descaracterizando o movimento do animal. As
variações de andamento acompanham as variações de dinâmica e, embora definidas, são
pouco diferenciadas. A acentuação é enfatizada, por vezes percussiva, e acompanha as
indicações de intensidade. Apesar de observá-las, o pianista explora preferencialmente
as intensidades f, ff e fff.
O uso do pedal, apesar de abundante, é adequado. A seção D é iniciada sem
pedal, fazendo com que o baixo, no modo frígio, soe bem seco; no compasso 54, onde
se observa uma reapresentação do tema principal, o pianista canadense usa o pedal de
maneira abundante, fazendo lindo contraste com os compassos anteriores.
O andamento rápido e o abundante uso do pedal obscurecem as polirritmias e as
dissonâncias, principalmente quando associadas ao acento, são muito valorizadas.
O pianista não parece ter se preocupado com os aspectos descritivos; no entanto
criou um clima brilhante - em decorrência do andamento (mais veloz) e das intensidades
escolhidos – com momentos dramáticos associados às intensidades f, ff e fff.
3.6.2 Tabela 6. Quadro comparativo das gravações de O boisinho (sic) de chumbo.
Barentzen Schic Rubinsky Garosi Hamelin
Andamentos
+ lento que o indicado,
semelhante ao de Rubinsky
e o de Garosi. Seção D
demasiadamente rápida.
+ lento que o indicado –
Un peu modéré (M: 80
= ), porém consoante
com as características do
animal. Grandeose (E) +
lento que M:60= ,
porém adequado. Clara
diferenciação entre Un peu
modéré (A) e Lent (D).
+ lento que o indicado –
Un peu modéré (M: 80
= ), embora
ligeiramente + rápido do
que o de Schic. Pouca
diferenciação entre Un peu
modéré (A) e Lent (D).
Grandeose (E) no
andamento indicado
(M:60= ).
+ lento que o indicado,
embora semelhante ao de
Rubinsky. Pouca
diferenciação entre Un peu
modéré (A) e Lent (D).
Grandeose (E) + lento que
M:60=
Como indicado – Un peu
modéré (M: 80 = ).
Soa, porém, muito rápido,
descaracterizando o animal
e seu movimento. Lent (D)
também muito rápido.
Variações de
agógica
Animé abrupto antes de B e
de E. Sentido geral de
aceleração em B.
Rall.enfático nos
compassos anteriores à
entrada do 2º tema, em C.
Indicações de agógica bem
realizadas.
Indicações de agógica bem
realizadas.
Indicações de agógica
observadas.
Acentuação
De modo geral, realça as
linhas melódicas.Excessiva
em rfz ou rf> em C, em
função da intensidade
indicada, pp.
De modo geral, realça as
linhas melódicas. Enfática
no Grandeose.
De modo geral, realça as
linhas melódicas. Enfática,
principalmente no
Grandeose, e
acompanhando as
indicações de intensidade.
Enérgica, por vezes
percussiva, acompanhando
as indicações de
intensidade.
Enfática, por vezes
percussiva, acompanhando
as indicações de
intensidade.
Dinâmica
Indicações nem sempre
seguidas com clareza;
predominância de f.
.
Acompanha as variações
de agógica.
Predominância de
intensidades entre f, ff e fff.
Pouco aproveitamento de
pp..
Predominância de
intensidades entre f, ff e fff.
Emprego de mf.
Indicações seguidas com
clareza, contrastes vivos.
A dinâmica acompanha as
variações de agógica.
Emprego de mf e pp.
Nem sempre as indicadas,
explorando
preferencialmente as
intensidades f, ff e fff.
Valorização das
dissonâncias
Parece não ter havido
preocupação em valorizá-
las.
Valorizadas,
acompanhando a dinâmica.
Valorizadas
proporcionalmente às
intensidades e à densidade
dos acordes.
Muito valorizadas.
Parece não ter havido
preocupação particular em
valorizá-las.
Uso do
pedal
Excessivo, sobretudo em D.
Apropriado, produzindo o
som massivo esperado.
Adequado, apesar de +
parcimonioso que o de
Schic.
O + econômico entre as
demais gravações.
Pedal abundante mas
adequado.
Polirritmias
Não muito nítidas, em
função do uso excessivo do
pedal e da diferenciação
pouco criteriosa entre os
estratos sonoros.
Suficientemente claras.
Claras.
(Diferenciação criteriosa
entre os estratos sonoros e
uso adequado do pedal)
Sempre muito claras.
(Diferenciação criteriosa
entre os estratos sonoros e
pedal econômico)
Obscurecidas em função
do andamento rápido e do
uso do pedal.
Ênfase nos elementos
descritivos
Parece não ter havido
preocupação com aspectos
descritivos.
Efeito de movimento do
animal na rítmica
sincopada do ostinato.
Efeito onomatopaico do
mugido sugerido pelo
motivo cromático
ascendente, pelos
glissandos acompanhados
por cresc.
Efeito onomatopaico do
mugido reforçado pela
dinâmica e glissandos.
Durações isócronas, no
baixo (em região muito
grave), alusivas ao
deslocamento do animal.
Realização do ritmo, da
agógica e da dinâmica
enfatizando os elementos
descritivos.
Parece não ter se
preocupado com os
aspectos descritivos.
Indiccadores
Clima
Mecânico, em função da
interpretação rígida do
ostinato, da velocidade de
execução dos efeitos
onomatopaicos, e da ênfase
em f.
Dramático, em decorrência
do andamento e dinâmica
escolhidos, das variações
de agógica bem
explicitadas e da
sonoridade clara, “en
dehors”..
Introspectivo e
melancólico em
decorrência do andamento
e da sonoridade (velada)
escolhidos, e das variações
de agógica bem graduadas.
Dramático em decorrência
dos contrastes de
dinâmica, das variações de
agógica bem explicitadas e
da sonoridade clara, “en
dehors”.
Brilhante, em decorrência
do andamento (mais veloz)
e intensidades escolhidos.
Momentos dramáticos
associados às intensidades
f, ff e fff.
3.7 O passarinho de pano
Le petit oiseau de drap
Como O cavalinho de pau, O passarinho de pano é uma peça claramente
descritiva. Nas demais, é possível, um recorte de efeitos diversos, que não é o caso
nessa sétima peça da coleção, pois ela é praticamente toda constituída por uma sucessão
de efeitos sonoros imitando pássaros.
As análises de Béhague (1994, p.65), Tarasti (1995, p.275), Souza Lima (1976,
p.52 a 53) e Magalhães (1994, p.240 a 244) reforçam meu ponto de vista. Béhague
(1994, p.65) ressalta a habilidade de Villa-Lobos em representar todo o colorido dos
sons tropicais lançando mão de combinações de trilos, trêmulos, efeitos velozes de
grupos de quiálteras de 5, 7, 9, 11, 14 e 18 notas, appoggiaturas e outros ornamentos.
Tarasti (1995, p.275) atribui ao compositor o adjetivo de ornitólogo. Souza Lima (1976,
p.52) a qualifica de “tesouro de efeitos descritivos” constituído por trinados,
appoggiaturas, arpejos, notas repetidas, intervalos curiosos e combinações pitorescas”.
Homero de Magalhães (1994, p.240 a 244) usa expressões como “Villa-Lobos tece um
rendilhado digno de um viveiro de pássaros”, “motivos que sugerem pequenos saltos ou
pequenas revoadas”, “aparição de bem-te-vis em pergunta e resposta”, “revoada súbita
dos pássaros” e “o vôo do passarinho”, para descrever seus efeitos. Em algumas peças,
a região do piano mais explorada contribui sensivelmente para a criação de seu clima;
este é o caso de O passarinho de pano, onde são preferencialmente usados os registros
médio e agudo do instrumento.
Quanto à estruturação formal, divergências sutis entre a segmentação proposta
por Magalhães e por Rocha. Magalhães (1994, p.240) a considera ternária: A (cs. 1 a
66)/B (cs. 67 a 82)/C (cs. 83 a 91), enquanto Rocha (2001, p.87) a divide em quatro
partes: A (cs. 1 a 44)/B (cs. 45 a 66)/C (cs. 67 a 82)/D (cs. 83 a 91). Apesar da diferença
quanto ao número de partes, elas estão segmentadas nos mesmos compassos, embora
para Magalhães (1994, p. 240) a seção A esteja subdivida em duas menores, que Rocha
considera distintas. As diferenças de andamento Un peu animé e Vivo - e de tipo de
textura me fizeram optar pela segmentação de Rocha. Aliás, no início de cada seção,
Villa-Lobos faz uma indicação de andamento: Un peu animé (c.1), Vivo (c.45), Lento
(c.67) e Três vif (c.83).
Apesar da liberdade e do intuitivismo de Villa-Lobos para tratar a questão
formal, em O passarinho de pano, a segmentação das seções é definida pela diferença
de material empregado, pela rarefação de sua textura 3 camadas para 2, 3 para 2 e 5
para 3, respectivamente de A para B, B para C e C para D - e pela presença de um efeito
virtuosístico que antecede B (c.44.2), prenuncia o final desta mesma seção (c.57.2) e
inicia D (c.83.2 a 84).
Exemplo 58. O passarinho de pano, cs. 44 a 45.1 – Efeito virtuosístico que antecede B.
Exemplo 59. O passarinho de pano, cs. 57 a 66 Efeito virtuosístico que prenuncia o
final de B.
Exemplo 60. O passarinho de pano, cs. 83 e 84 – Efeito virtuosístico que antecede D.
Na seção A, uma linha formada pela repetição de uma nota (lá 5 e depois si 4)
intercalada por desenhos arpejados ora ascendentes, ora descendentes, é superposta a
trilos em ostinato (Exemplo 61), insinuando piado de pássaros seguido de vôos rápidos
com decolagens e pousos. Ao si 4 (compasso 25), é acrescentada uma figuração rítmica
sincopada (lembrança da rítmica brasileira), em 2
as
, alusiva ao canto de outro pássaro
(bem-te-vi ?) (Exemplo 62).
Exemplo 61. O passarinho de pano, cs. 8, 9 e 10 Repetição do 5 intercalado por
desenhos arpejados superpostos a trilos.
Exemplo 62. O passarinho de pano, cs. 27 e 28 – Figuração rítmica sincopada
em 2
as
, sobre a nota si 4.
Ainda no contralto, a partir do compasso 33 com anacruse, é antecipada uma
variação rítmico-melódica do tema folclórico “Olha o passarinho dominé”, utilizado na
seção C da peça. (Exemplo 63)
Exemplo 63. O passarinho de pano, cs. 32 a 36.1 – Variação rítmico-melódica do
tema folclórico “Olha o passarinho dominé”
Em B, contrastando com a seção anterior, Villa-Lobos reduz drasticamente a
densidade horizontal e rarefaz a textura, suprimindo o trilo e os arpejos, o que promove
a sensação de diminuição da velocidade, embora esteja indicado um aumento do
andamento (de = 96 para =126). Apesar do Vivo, ocorre em B, uma redução de
passeios, de vôos rasantes, e a música sugere que o passarinho, ou um conjunto deles
pia, saltita ou bica algo.
Nessa seção, o material é totalmente distinto: a linha melódica em staccato na
mão direita é agora formada por um intervalo de 3ª, as notas si b e ré b, respectivamente
ornamentadas por uma ou inferior (cs 45 a 50) (Exemplo 64). Essa linha,
sucessivamente transposta oitava abaixo e sobreposta à nota pedal lá 4, mais adiante lá 3
e 2, é apoiada também por 3
as
em staccato, na esquerda. Na transposição (cs. 58 a
66) (Exemplo 65), as 3
as
desaparecem e a linha melódica, sotoposta à nota pedal 2,
reduz-se ao si b 2 repetido e por fim se dissolve.
Exemplo 64. O passarinho de pano, cs. 45 a 47 - Textura em B.
Exemplo 65. O passarinho de pano, cs. 57 a 66 – 3ª transposição do tema de B.
No Lento, seção C, onde se ouvem reminiscências de A (notas repetidas, trilos e
desenhos ornamentais) e de B (prolongamento da nota pedal2 nos compassos iniciais
e intervalos de 3ª), encontra-se um ostinato construído em complexa textura de três
camadas duas notas pedal, 1, articulada no tempo de cada compasso, e si 2,
articulada ora no tempo, ora na metade do 1º, sobre a qual duas
s
duplas
sucessivas se abrem em uma 6ªaumentada – ao qual (ostinato) se superpõem duas outras
(a partir do c. 71), quando são inseridos um trêmolo (no contralto) e uma linha melódica
(no soprano) com notas repetidas, inicialmente fa# 5 e depois si b 4, essa última, uma
nota pedal, que passa a ser articulada ora pelo soprano, ora pelo contralto. O
deslocamento rítmico regular da camada do ostinato gera uma movimentação
lânguida que contamina toda a seção com seu balanço. Nessa mesma camada se observa
o “Princípio do Polichinelo”.
Exemplo 66. O passarinho de pano, cs. 67 e 68 – Ostinato e suas camadas.
Ainda em C, embora a harmonia da peça, de um modo geral, seja atonal, o
compositor usa a melodia folclórica “Olha o passarinho dominé”
62
em mi b menor, a
partir do c. 76, na região aguda (alusão clara ao canto de um passarinho), dobrada uma
4ª abaixo, em si b lídio, ambas sobre ostinato atonal. (Exemplo 67)
Exemplo 67. O passarinho de pano, cs. 78 e 79 – Melodia folclórica em mi b
menor com o dobramento inferior uma 4ª abaixo em si b lídio.
A seção D (cs. 83/91) se inicia com uma cascata de acordes descendentes (mão
direita em teclas brancas e esquerda em pretas) (Exemplo 60) concluída com um trinado
que permanece ao longo dela pedal de mi/ré#, reminiscência de A. Ainda da primeira
62
Letra da canção: Olha o passarinho, Dominé cahiu(sic) no laco(sic), Dominé dá-me um beijinho,
Domine dá-me um abraço, Dominé. Por esta rua Dominé passeiou(sic) meu bem, Dominé será por mim
Dominé por mais alguém. In VILLA-LOBOS, H. Guia Prátic. Irmãos Vitale Editores, 1941, p.116.
seção reaparecem fragmentos ornamentais (lembrança de L’île joyeuse de Debussy) e as
notas repetidas si4, lá4 e ré5. Também de B são reaproveitados a nota pedal e os
acordes ornamentados, em staccato. O trinado sofre um rall. controlado e se dilui, à
medida que, sucessivamente, passa de fusas para oito semicolcheias, seis colcheias
quialtéricas, quatro colcheias e três semínimas quialtéricas. Não densidade dramática
nessa seção; o fim é anunciado pela rarefação da textura, somada ao diminuendo e ao
rallentando final. Os últimos acordes no compasso 91 sugerem saltos pequenos e leves
do passarinho. (Exemplo 68)
Exemplo 68. O passarinho de pano, cs. 85 a 91 Elementos de A e B, rallentando
controlado e acordes sugerindo saltos pequenos do passarinho.
Em O passarinho de pano o clima geral é de vivacidade, alegria, leveza e
puerilidade, mesmo em C - Lento (M: 63= ) - e D - Comme avant (M: 63= ) - em
função da manutenção dos ornamentos.
Para expressar leveza, Villa-Lobos emprega dinâmica em geral p - com apenas
algumas indicações de mf, f, fff e uma única ffff, todas de curta duração, que soam mais
como acentuação do que propriamente modificação da dinâmica. Tal escolha faz de O
passarinho de pano uma obra bem menos pesada do que as peças anteriores; afinal, o
camundongo é de massa, o cachorrinho de borracha e o boizinho de chumbo.
Vale ressaltar que para representar o material de que são feitos os bichinhos, o
compositor quase sempre associa dinâmica à textura. A horizontalidade dos extratos de
O Passarinho de pano tem como resultado a produção de uma textura leve e
transparente, que torna perceptível a condução de cada uma das idéias musicais, mesmo
no Lento (seção C, cs. 67 a 82), onde a textura é densa.
Resumo da análise musical de O passarinho de pano.
Forma
ABCD articulada por mudanças de andamento, rarefação da textura,
mudança de dinâmica, m
udanças de material e efeitos virtuosísticos.
Harmonia
Atonalismo + temas com pólo ou tonais, politonalismo ou tonalismo +
modalismo, modalismo, escalas pentatônicas, efeitos construídos com o
“Princípio do Polichinelo” e acordes por 4
as
, 2
as
ou 4
as
e 2
as
Textura
Predominantemente
p
olifônica com densidade em
A de dois estratos, em
B de duas vozes, C de duas ou três vozes e em D de dois estratos. A maior
compressão está em c de A e a menor, em D.
Ostinatos
Encontram-se trilos variados ao longo da peça, excetuando em B, e ostinato-
clima em C.
Ritmo
Andamentos em geral animados, variações de agógica, mudanças de fórmula
de compasso, acentos propostos (ou deslocados), polirritmias e síncopes.
Melodia
Encontram-se melodias folclóricas, melodias construídas com motivos das
canções folclóricas ou pseudofolclóricas e linhas-temas.
3.7.1 Comparação entre cinco gravações de O passarinho de pano.
A meu ver, sob o ponto de vista técnico e de leitura, O passarinho de pano é a
peça mais difícil de toda a coleção. Fazer soá-la exigiu-me árduo esforço, desde a leitura
complexa, onde se encontram superposição de vários estratos sonoros, figurações
quialtéricas, polirritmias, sofisticada articulação, até a dificílima execução pianística,
que exige tocar arpejos velozes, ornamentação variada, acordes alternados e trilos
combinados à melodia superior, ambos concomitantes, na mesma mão. Com toda a
certeza, essa é uma peça que para sair da partitura, requer um pianismo profissional, o
que os cinco pianistas analisados têm em larga escala.
Barentzen é pianista com formação em escola francesa e seu toque leve e seu
pianismo sofisticado são consonantes com O passarinho de pano. Ela, em geral,
observa as indicações e com exceção do Lento, executa-as com fluxo movido. Suas
variações de agógica são suaves com rall. e acell. discretos.
A pianista faz as acentuações enfáticas e a dinâmica com gradações de p a fff
requeridas pela peça, onde as dissonâncias são projetadas naturalmente. O uso do pedal
é generoso e adequado, embora associado ao andamento geral rápido e à presença de
um trilo contínuo dificulte a percepção das polirritmias.
A peça é naturalmente descritiva e os efeitos são projetados sem maiores
problemas. Barentzen faz o efeito de revoada no final de C com leveza, diferente das
outras gravações. O clima resultante é vivo, leve e transparente.
Apesar de Schic nem sempre escolher lançar mão do virtuosismo, como faz em O
camundongo de massa e em O boisinho (sic) de chumbo, em O passarinho de pano ela
opta por uma versão mais virtuosística e se serve de um aparato técnico profissional e
amadurecido, executando a peça com brilhantismo, observado em O cavalinho de
pau.
Ela faz pouca diferença de andamento entre as duas primeiras seções por que,
embora observe o Un peu animé, (M: 92 = ) da seção A, faz o Vivo (M: 126 = ) de
B, mais lento que o indicado. Já nas seções C e D ela leva em conta o Lento (M: 63= ).
Seus Acell e Rall são sempre realizados com nitidez e respectivamente enfatizados antes
e durante a primeira transição, e na desaceleração escrita nos compasso finais. O último
acorde da peça é tocado com bastante atraso em relação ao penúltimo e, talvez, essa
escolha interpretativa realce a descrição do último pequeno salto do passarinho.
Suas acentuações são, em geral, pouco enérgicas, embora as notas agudas em A,
com o sinal de articulação V, sejam bem escandidas. Sua construção da dinâmica é
cuidadosa e mostra ampla paleta de gradações, indo de pp a ffff. O contato pessoal da
pianista com Villa-Lobos deu-lhe a noção de que o compositor desejava uma projeção
clara dos estratos sonoros das peças do ciclo, o que ela consegue, fazendo uso muito
apropriado do pedal, que dá brilho aos trilos sem borrar os arpejos.
Como já observado, essa peça é claramente descritiva; Schic, ao executá-la,
parece bastante preocupada em comunicar os elementos remetentes ao título: clima
vivo, efeito de movimento veloz, andamento Animé, arpejos emulando vôos, staccatos
sugerindo pequenos saltos ou bicadas e efeito de revoada, antes de D.
As polirritmias não estão nítidas por que a presença de um estrato em trilo
contínuo dificulta a percepção delas. As dissonâncias são valorizadas, acompanhando a
dinâmica. O conjunto de todas as escolhas citadas resulta em um clima leve, brincalhão,
descritivo e com reminiscência da infância.
Rubinsky torna mais flexível a realização dos andamentos requeridos. Faz o Un
peu animé (M: 92 = ) conforme indicação, mas com fluxo movido, o Vivo mais rápido
que 126 = e o Lento iniciado mais lento que a indicação e depois seguindo em
conformidade com e e da peça. As variações de agógica são menos evidentes que as de
Schic; os Rall. e Acell são pouco perceptíveis, embora se observem sutis variações
próximas ao final das seções. Vale ressaltar que as indicações são pouco numerosas e
não poderiam deixar de serem discretas devido ao contexto. Sua acentuação não soa
enérgica, o uso do pedal é adeqüado e há gradações de dinâmica de p a fff.
As dissonâncias são naturalmente projetadas e as polirritmias mais perceptíveis
que as de Schic, em função da diferenciação criteriosa dos estratos sonoros. Os efeitos
descritivos são notados por que a peça é naturalmente descritiva, embora eles sejam
bem projetados. O clima é leve e vivo.
Garosi segue os andamentos indicados, fazendo maior distinção entre o Un peu
animé , Vivo e Lento. As variações de agógica - próximas ao final e no final das seções
–são bem observadas, embora menos expressivas que as de Schic. A dinâmica é rica,
construída com contrastes vivos e emprego de pp a ffff. Como esperado, a acentuação é
mais enérgica que a das versões anteriores e as notas agudas, em geral, são bem
escandidas.
O uso do pedal é o mais econômico das cinco gravações e sem prejuízo do
resultado harmônico. Essa opção torna as polirritmias nítidas, resultado também, da
diferenciação criteriosa dos estratos sonoros. As dissonâncias são valorizadas
principalmente nas segundas em A e nos acordes descendentes em D.
Assim como em Rubinsky, percebe-se natural descrição do passarinho e suas
peripécias; os efeitos são bem projetados, criando um clima vivo, luminoso, com fortes
reminiscências da infância.
Antes de ouvir a interpretação de André-Marc Hamelin, eu previa o
brilhantismo, em função de suas escolhas sempre muito virtuosísticas para as peças do
ciclo. Minha expectativa foi fartamente satisfeita, pois a gravação do pianista canadense
é memorável. Como nas demais peças, seus andamentos são mais rápidos que os
indicados, com fluxo vivo e até mesmo acelerado, obscurecendo muito a percepção das
polirritmias. O pianista observa as variações de agógica que, no entanto, são menos
perceptíveis que nas outras quatro gravações. Ele rallenta de C para D, onde a indicação
é animé.
As indicações de dinâmica são observadas e os contrastes nítidos. A acentuação
acompanha as intensidades, as dissonâncias não merecem particular valorização, e o uso
do pedal é adequado, embora generoso.
Ele projeta os efeitos descritivos, mas parece que sua execução sobrepõe o
virtuosismo à descrição. O clima é brilhante, em decorrência do andamento mais rápido
e das intensidades escolhidos.
3.7.2 Tabela 7. Quadro comparativo das gravações de O passarinho de pano.
Pianistas
Barentzen Schic Rubinsky Garosi Hamelin
Andamentos
Em geral observa as
indicação; fluxo movido.
Lento (M: 63= ) com
fluxo um pouco +
contido.
Un peu animé,
(M: 92 = ), conforme
indicação.
Vivo (M: 126 = ) +
lento que o indicado.
Lento, no andamento (M:
63= ).
Como escrito -
Un peu animé(M: 92
= ) conforme
indicação, com fluxo
movido. Vivo (M: 126 =
) + rápido que o
estabelecido. Lento, inicia
+ lento que 63= , como
esta indicado.
Segue os andamentos
indicados, fazendo maior
distinção entre Un peu animé ,
Vivo e Lento.
Un peu animé
(M: 92 = ) e Vivo +
rápidos que o indicado
e com fluxo mais vivo.
Lento (M: 63=
)conforme
indicação, com fluxo
calmo.
Variações de
agógica
Rall. e Acell. discretos.
Rall. e Acell. Discretos.
Rall. e Acell. discretos.
Rall e acell bem observados,
além de outras não indicadas,
porém criativas e adequadas.
Rall. e Acell. discretos.
Acentuação
Enfática, adequada à
peça.
Enfática, adequada à peça.
Notas agudas escandidas,
em A. (V)
Enfática, adequada à peça.
+ enérgica que as pianistas
anteriores. Notas agudas
escandidas (V), realçando as
diferenças rítmicas entre o
de articulações por compasso.
Mostra com nitidez as
sinuosidades dos trêmolos da
mão esquerda, indicados por
rfz> , provocando uma escuta
diferente das demais.
Acompanha as
indicações de
intensidade. Timbra as
vozes assinaladas com
(V) e as notas em rfz>
da mão esquerda que
evidenciam as
sinuosidades dos
trêmolos.
Dinâmica
Gradação de p a fff.
Ampla palheta de
gradação (de pp a ffff).
Gradação de p a fff.
Indicações seguidas com
clareza, contrastes vivos.
Emprego de pp a ffff.
As indicações são
observadas e os
contrastes nítidos.
Valorização
das
dissonâncias
Naturalmente projetadas
Valorizadas,
acompanhando a dinâmica
e, às vezes, o registro do
piano (quanto + agudo, +
dissonante).
Naturalmente projetadas.
Sempre valorizadas,
principalmente nas segundas
em A e no efeito em acordes
descendentes no final de C.
Naturalmente
projetadas.
Uso do
pedal
Generoso e adequado.
Apropriado; dá brilho aos
trilos e não borra os
arpejos.
Adequado.
O + econômico das demais
gravações, sem prejuízo da
percepção dos baixos e do
resultado harmônico.
Pedal generoso e
adequado.
Polirritmias
O andamento geral
rápido e a presença de
um trilo contínuo
dificultam a percepção
delas.
O andamento geral rápido
e a presença de um trilo
contínuo dificultam a
percepção delas.
+ nítidas que as de
Barentzen e de Schic, em
função da diferenciação
criteriosa dos estratos
sonoros.
Sempre muito claras, em
função da diferenciação
criteriosa entre os estratos
sonoros e do pedal econômico
Obscurecidas em
função do andamento
escolhido.
Ênfase nos elementos
descritivos
A peça é naturalmente
descritiva e os efeitos são
projetados. O efeito de
revoada no final de C é
interpretado com leveza,
diferente das outras
gravações.
Efeito de movimento
veloz e de clima vivo,
manifestos através dos
andamentos, dos arpejos
imitando vôos, dos
staccatos imitando
pequenos saltos ou
bicadas e do efeito de
revoada no final de C.
A peça é naturalmente
descritiva, e os efeitos são
projetados.
A peça é naturalmente
descritiva, e os efeitos são
enriquecidos pela criatividade
na realização do ritmo e das
variações de agógica.
A peça é naturalmente
descritiva e os efeitos
são projetados.
Indiccadores
Clima
Vivo, leve e transparente.
Leve, brincalhão,
descritivo e com
reminiscência da infância.
Vivo e leve.
Muito vivo, “charmoso”,
travesso, com forte
reminiscência da infância.
Brilhante, em
decorrência do
andamento (mais
veloz) e intensidades
escolhidos.
3.8 O ursozinho de algodão
Le petit ours de coton
Para contrastar sensações táteis de peso e leveza, Villa-Lobos joga com recursos
texturais e de intensidade, capazes de despertar relações sinestésicas no intérprete e no
ouvinte. É o que se constata, observando e comparando o tratamento que o compositor
lhes confere, por exemplo, em O boizinho (sic) de chumbo e em O ursozinho de
algodão. Na última, a delicadeza do algodão é expressa por uma dinâmica geral em mf e
textura menos densa, enquanto o peso do chumbo se deixa perceber através de maiores
intensidades e texturas mais espessas.
A meu ver, o clima de O ursozinho de algodão é, assim como o de O passarinho
de pano, leve, bem humorado e traz reminiscências da infância. Minha interpretação
particular da obra é que mesmo nos momentos de dinâmica em ff (c.83) e na
culminância do final de C, não sensação de peso, dramaticidade ou aspereza; mesmo
quando ocorre sff em cresc. animando, antes de D (Exemplo 69), o clima continua
soando airoso. Todas as outras peças, excetuando O passarinho de pano, apresentam,
por vezes, certa dose de sarcasmo, ironia ou até agressividade, pois, como
mencionado, a fantasia das crianças também inclui essas emoções.
Exemplo 69. O ursozinho de algodão, cs. 103 a 114 - Culminânica sem agressividade,
antes de D.
Uma referência ao urso é, segundo Bastos (2001, p. 91) a maior regularidade
rítmica da peça as figurações rítmicas são menos variadas - e a gradação das nuances
de agógica, que podem remeter ao andar do bicho. Diferente do que se observa em A
baratinha de papel, em O Camundongo de massa e em O passarinho de pano, em O
ursozinho de algodão não se encontram arpejos articuladores da forma, as mudanças de
seção são preparadas por acordes (compassos 35-36.1, 65.2 a 71.2, 110.2 a 116)
;
o urso
caminha de maneira mais contínua, as mudanças de andamento são pequenas e graduais,
ao contrário da baratinha, do ratinho e do passarinho, animais pequenos, que mudam
mais freqüentemente a velocidade e a direção do seu caminhar ou vôo.
Relaciono a regularidade geral da pulsação e as seis diferentes indicações de
andamento (Animado e gracioso, Mais movido, Un (sic) pouco menos, Animado, Não
(sic) muito depressa (sic) e Muito vivo), à uma dança constante do ursinho, em passos
mais ou menos movidos, como ocorre em O cavalinho de pau, que se movimenta em
marchas variadas.
Como em O Passarinho de pano, a forma de O Ursozinho de algodão é
quaternária: A (cs.1 a 36.1) /B (cs.37 com anacruse, a 75.1) /C (cs.76 com anacruse a
116)/ D (cs.117 a 134), segmentação reforçada pelas indicações de andamento do
compositor: Animado (c.36), Não (sic) muito depréssa (sic) (c.76 M: 92= ) e Muito
vivo (117). Observa-se ausência de indicação metronômica para a maioria dos
andamentos, o que reforça minha suposição de que Villa-Lobos apenas sugere uma
gradação entre os seis andamentos da peça.
A (cs.1 a 36) é formada por 3 subseções a (cs.1 a 12)/ b (cs. 13 a 26.1)/ c (cs. 27
com anacruse a 36.1) segmentadas por mudança de emprego do material, assim como
por indicações de agógica Mais movido (c.13) e Un (sic) pouco menos (c.27). (Exemplo
70)
Exemplo 70. O ursozinho de algodão, cs.1 a 2.1, 13 a 14.1, 27 a 28.1 Materiais de a,
b e c da seção A.
Os materiais básicos utilizados em a são acordes precedidos por acciaccaturas
(cs.1 a 12) com acentos expressivos nos contratempos, sugestivos de uma dança do
ursinho
63
, lembrando a Visão Fugitiva Op. 22, 11 de Prokofiev (cs. 1 e 2) (Exemplos
71 e 72)
Exemplo 71. O ursozinho de algodão, cs. 1 e 2 Acciaccaturas e acentos expressivos
nos contratempos.
Exemplo 72. Visões fugitivas 11, Op.22, Prokofiev, cs 1 e 2 Acciaccaturas e
acentos expressivos nos contratempos.
Nos compassos 13 a 24, subseção b, apesar da métrica binária, os acentos >,
combinados à indicação rf>p e precedidos por um salto ascendente, estabelecem um
padrão ternário. (Exemplo 73)
63
No Quarto Quadro de Pétrouchka de Stravinsky também há uma dança de um urso, porém pesado e
real.
Exemplo 73. O ursozinho de algodão, cs. 13 a 15 Padrão ternário dentro de
compassos binários.
Em c (cs.27 a 36.1), a rítmica produz um efeito gingado em função do emprego de
quiálteras e, em seguida, de síncopes e de uma nota pedal (fá-1), articulada em 3+3+4
colcheias e 3+2+2 colcheias, ritmo apresentado em b (cs.18 a 20.1 e 22 a 23). No
final de c a textura se adensa, de duas para três camadas. (Exemplo 74)
Exemplo 74. O ursozinho de algodão, cs. 30 a 33 – Efeito gingado, tercinas, síncopes e
nota pedal.
A seção B (cs. 37 com anacruse a 75.1) pode ser compreendida como formada
por três subseções: d (cs.37 com anacruse a 57)/ e (cs.58 a 67.1)/f (cs. 67 a 75). Nela se
apresenta um ostinato rítmico que sofre transposições, elemento no qual é explorado um
recurso técnico pianístico comum ao compositor, o movimento alternado das mãos,
usado em o Polichinelo, da Prole do bebê 1 (1918), em A dança do índio branco, de
O ciclo brasileiro (1936/7) e em outras peças da Prole nº 2. O resultado sonoro,
segundo Rocha (2001, p.94) pode aludir ao efeito do atabaque (Exemplo 75); efeito
semelhante, também produzido por alternância de mãos é observado em determinados
trechos de Chez Petrouchka de Stravinsky (Exemplo 76), embora no primeiro caso, uma
oitava na mão esquerda e apenas uma nota na direita se alternem, enquanto no segundo,
a posição é inversa.
Exemplo 75. O ursozinho de algodão, cs. 36 a 43 Movimento alternado das mãos,
efeito de atabaque.
Exemplo 76. Chez Petrouchka, Stravinsky, cs. 98 e 99 semelhança com o ostinato em
B de O ursozinho de algodão.
Em d um tema (cs. 40 a 49) é superposto ao ostinato e em seguida repetido; no
compasso 58, início de e, observa-se a transposição variada do tema, seu dobramento à
oitava e a mudança de dinâmica de ff para p, o que justifica a segmentação. O tema, em
e, em suas transposições, faz um percurso que culmina com um movimento de
s
ascendentes, desaceleração rítmica passagem de grupos de quatro semicolcheias para
tercinas e desaparecimento do ostinato. A terceira subseção, f, é uma preparação para a
entrada da canção folclórica “Carneirinho, Carneirão”, em maior. A figuração
rítmica nela repetida é o prenúncio da cabeça do tema. (Exemplo 77)
Exemplo 77. O ursozinho de algodão, cs. 65 a 75 - Preparação de C
Assim como em O passarinho de pano, O ursozinho de algodão exibe o tema
folclórico na seção C. Villa-Lobos escolhe para a oitava peça da coleção uma ingênua
melodia em dó maior
64
superposta a “baixos errados” formando poliacordes que
produzem choques dissonantes (Magalhães, 1994, p. 245), imprevistos em uma canção
tão singela.
64
Letra da canção: Carneirinho, Carneirão, olhae p’ro céo (sic), olhae p’ro (sic) chão. Manda El Rei,
nosso Senhor para nós nos levantarmos. In VILLA-LOBOS, H. Guia Prátic. Irmãos Vitale Editores,
1941, p.41.
Exemplo 78. O ursozinho de algodão, cs. 76 a 83 Melodia folclórica “Carneirinho,
Carneirão” sobre “baixos errados”.
Algumas canções folclóricas empregadas na coletânea têm clara relação com o
título das respectivas peças, como por exemplo, “Garibaldi foi à missa” com O
cavalinho de pau, e o Passarinho dominé” com O passarinho de pano. Já em outras
peças como A baratinha de papel (com a melodia folclórica “Fui no Itororó”) e O
gatinho de papelão (com “Anquinhas”) não percebo relação explícita entre a escolha da
canção e o animalzinho ou sua matéria-prima. Mas em O ursozinho de algodão (com
“Carneirinho, carneirão”) talvez haja alguma associação entre um ursinho (de pelúcia) e
o pelo de um carneirinho; também se pode apontar relação de cor (branca) entre a do
carneirinho e o algodão.
A seção C pode ser dividida em três seções: g (cs.76 a 91.2)/h (cs.92 com
anacruse a 105.1)/i (cs.106 com anacruse a 116). Na subseção g (cs.76 a 91.2)
apresenta-se pela primeira vez a canção folclórica acompanhada por dois tipos de
acompanhamento: acordes formados pela superposição de quintas justas e sextas (cs. 76
a 79), acordes (cs. 80 a 83) formados por oitavas intercaladas da quinta, arpejados ou
simultâneos. O compositor, no compasso 83, termina a primeira apresentação da canção
de forma suspensiva, prolongando a subdominante no soprano, sob a qual se ouve
seguido de repetição, o início variado do tema, o mesmo acontecendo em h (cs 99 a
105.1). Em i (cs.105.1.2 a 116) se a preparação para D grupos de quatro
semicolcheias ascendentes em marcha harmônica por 3
as
(cs.103 a 110), seguidos de
tercinas em movimento contrário que, no compasso 115 se estabiliza em um acorde
de 4
as
, mantido em um ostinato rítmico-harmônico até o compasso 130.
Exemplo 79. O ursozinho de algodão, cs. 105 a 114 – Preparação para D.
A seção D (cs.117 a 135), dependendo da interpretação, pode funcionar como
coda. É construída com dois elementos básicos, o referido ostinato rítmico-
harmômico e o início (variado) da canção folclórica, em oitavas, que a ele se superpõe.
Assemelha-se à última seção de O passarinho de pano; ambas aproveitam materiais das
seções anteriores: de A (subseção b), agrupamentos de três acordes (cs.13 a 19) um
mais agudo, dois outros repetidos, mais graves
,
porém em ordem inversa (cs.117 a 130)
apenas uma nota mais grave e dois acordes mais agudos -, e tercinas (final de b e
compassos iniciais de c); de C, o baixo (cs. 118/119, 122/123 e 126/127 – início variado
da canção folclórica).
Embora a dinâmica predominante em A seja p e mf, em B observa-se um jogo
entre f e ff e um expressivo crescendo até a seção C, onde a canção folclórica se
apresenta em ff muito enérgico, que não apenas se mantem em D com grande volume -
resultante das oitavas no registro grave do instrumento e do ostinato agitado da mão
direita como continua em cresc. até a indicação de fff e ffff nos últimos compassos da
peça. Há, pois, uma tendência ao gradual crescimento da intensidade, do p ao ffff,
embora como observado, os fortes não sejam agressivos.
O arpejo final (c.131), único na peça, - construído com irregularidade intervalar,
leva à conclusão enfática em dó maior, assim como o compositor fez em O camundongo
de massa. (Exemplo 80)
Exemplo 80. O ursozinho de algodão, cs. 131 Irregularidade intervalar e da
topografia do piano, e terminação em dó maior.
Resumo da análise musical de O ursozinho de algodão.
Forma
ABCD articulada por
mudanças de andamento, mudanças de material e
mudança de dinâmica.
Harmonia
Politonalismo ou tonalismo + modalismo, atonalismo + temas modais,
modalismo, escalas pentatônicas, efeitos construídos com o “Princípio do
Polichinelo” e acordes por 4
as
, 2
as
ou 4
as
e 2
as
Textura
Homofônica em
A, B, início de C e D. P
olifônica em p
arte de C. Densidade
dois estratos em A, duas vozes em B, duas ou três vozes em C e dois estratos
em D. Apresenta maior compressão em c de A e menor em D.
Ostinatos
Encontram-se ostinatos em A, B e D.
Ritmo
Andamentos em geral animados, variações de agógica, mudanças de fórmula
de compasso, acentos propostos (ou deslocados), polirritmias e síncopes.
Melodia
Encontram-se melodias folclóricas, melodias construídas com motivos das
canções folclóricas ou pseudofolclóricas e linhas-temas.
3.8.1 Comparação entre cinco gravações de O ursozinho de algodão.
O ursozinho de algodão é carregada de reminiscências da infância por que Villa-
Lobos cria clima terno, ingênuo e gracioso. Apesar da seção C apresentar certa aspereza
na superposição de acordes meio tom abaixo da melodia folclórica (em maior), não
na peça o sarcasmo usual do ciclo. A meu ver, esta peça é menos evidentemente
descritiva que O cavalinho de pau, O boisinho (sic) de chumbo ou O passarinho de
pano.
Aline van Barentzen parece preferir o brilhantismo técnico ao ambiente de
ternura e delicadeza. Os elementos descritivos são realçados apenas nas duas primeiras
subseções de A, as únicas que a pianista executa com certa graciosidade.
Sua interpretação é bastante linear e assim como as variações de agógica, os seis
andamentos são pouco diferenciados e de modo geral muito rápidos, destoando das
características do animal.
Faz pouca diferenciação entre as notas acentuadas, o soprano dos acordes e as
condutoras da linha melódica; e a dinâmica, em geral linear, está entre mf e f. As
polirritmias são pouco tidas, em função do andamento excessivo e da pouca
diferenciação entre os extratos sonoros, em parte resultante do uso generoso do pedal,
que, mesmo assim, é adequado, dentro da concepção da pianista, que também opta por
não valorizar as dissonâncias da peça.
Minha impressão da execução de Schic é que a pianista entendeu o ursinho como
um animal pouco gracioso, muito grande e pesado, pois este foi o clima resultante da
sua gravação da obra. Para tal, ela escolheu uma dinâmica, em geral, com intensidades
entre f e fff, usou pedal por vezes excessivo, sobretudo em e e em i; e acentuou
vigorosamente os rf> em a - sobressaindo excessivamente a mão esquerda -, e os
acentos > das tercinas, no final de C. Já em B tocou o tema com pouca ênfase. As
dissonâncias foram evidenciadas e as polirritmias ouvidas com clareza, apesar do
excesso de pedal.
Em relação aos andamentos, optou em A, por discreta diferenciação entre
Animado e gracioso, Mais movido e Un (sic) pouco menos (indicações expressivas);.
Para a seção B escolheu andamento ligeiramente mais movido que em A; C, mais lento
que o indicado (M: 92= )e, em D, observa o Muito vivo. As variações de agógica são
levadas em conta e acompanham as variações de dinâmica; o rallentando no compasso
7, e o acelerando a partir do compasso 66 (final de B) são enfatizados. As dissonâncias
e os acentos são realçados em A, destacando-se os rf>, colocados nos contratempos.
O ursinho de Rubinsky é mais delicado, sua execução constrói a imagem de um
animal de pelúcia, um brinquedo concebido com fantasias singelas e amenas. Sua
dinâmica geral para a peça é mf e, em C e D, tendem ao ff na mão esquerda. As
diferenças entre os andamentos são sutis; e a pianista observa com precisão a única
indicação metronômica da peça - M: 92= - a qual é referência para as gradações dos
demais andamentos. A agógica é variada conforme as indicações.
A acentuação é enérgica, porém sem agressividade, e bem projetada. O tema de B
tende a ser mais cantado que acentuado, assim como o de Schic. Como sempre, o uso do
pedal é apropriado, contribuindo para a nítida percepção dos estratos e das polirritmias.
As dissonâncias não parecem particularmente enfatizadas, e o clima, de um modo geral,
é suave, leve, jocoso, com reminiscências da infância, mas também firme (em C e D). A
pianista enfatiza os elementos descritivos, executando a peça com leveza e fazendo a
acentuação jocosa; o ursozinho é muito gracioso...
Alessandra Garosi executa os andamentos semelhantes aos de Rubinsky, embora
tendam a levemente mais rápidos. Acelera no final de B e C e rallenta acentuadamente
no final de A e de g de C. Seu toque, sempre mais staccato que o dos demais pianistas,
confere a C um clima mais leve que o de Schic, mas não do que o de Rubinsky, por que
a última escolhe uma dinâmica geral mais piano. Sua maneira de acentuar é menos
enérgica que a de Schic e mais incisiva que a de Rubinsky, favorecendo a distinção
entre os estratos sonoros e reforçando as dissonâncias.
A dinâmica acompanha as indicações da partitura e as intensidades são
diferenciadas. O uso do pedal é econômico, contribuindo para a nitidez dos estratos
sonoros e das polirritmias. A descrição do ursinho é transmitida através do clima bem
humorado, leve, jocoso, mas também firme (em C e D). As dissonâncias são
valorizadas, embora menos percutidas que as de Schic.
Hamelin, como esperado, tende ao brilhantismo técnico. O clima é feroz e pesado.
O andamento, em geral, é excessivamente rápido. A seção A (subseção a) é muito mais
rápida que a das outras gravações, o Mais movido menos rápido que o Animado e
gracioso, o Un (sic) pouco menos mais rápido do que Mais movido; as seções B, C e D
também estão excessivamente rápidas. As variações de agógica são pouco
diferenciadas, a não ser entre A e B. A acentuação é enérgica e brilhante, favorecendo a
distinção dos estratos sonoros, e a dinâmica se faz com grandes contrastes, estando as
intensidades entre p a fff.
O uso do pedal é excessivo em c de A, b e c de B, c de C e D o que, somado ao
andamento, dificulta a percepção das polirritmias. As dissonâncias não parecem
particularmente enfatizadas.
Com tais escolhas, a gravação soa mais bruta do que as anteriores e o animalzinho
não parece transfigurado; apresenta-se como estaria em estado de natureza, parece um
urso pesado e violento.
3.8.2 Tabela 8. Quadro comparativo das gravações de O ursozinho de algodão.
Pianistas
Barentzen Schic Rubinsky Garosi Hamelin
Andamentos
Pouco diferenciados, de
modo geral todos muito
rápidos, destoando das
características do animal.
Em A, discreta
diferenciação entre
Animado e gracioso, Mais
movido e Un (sic) pouco
menos (indicações
expressivas).
Seção B ligeiramente mais
movida que A. C + lento
que o indicado (M:
92= ) e, em D, o Muito
vivo é observado.
Diferenças sutis entre os
andamentos. Observa a
indicação (M: 92= ) em
C e a de D.
Embora semelhantes aos
de Rubinsky, tendem a ser
levemente mais rápidos.
Seção A (subseção a)
muito mais rápida que as
outras gravações. Mais
movido menos rápido que
o Animado e gracioso. Un
(sic) pouco menos +
rápido do que Mais
movido. Seções B, C e D
excessivamente rápidas.
Variações de agógica
Pouco diferenciadas.
Observa as indicações que
acompanham as variações
de dinâmica. Acentuado
rall nos c. 7, e acel. a
partir de 66 (final de B)
Observa as indicações.
Acentuado rall nos c. 7;
pequeno acell. no final de
B e mais vivo no final de
C, embora seu fluxo seja
retido com um rall. não
indicado, no início do
movimento descendente
em tercinas.
Acelerações (final de B e
C) e rall. (final de A e de a
de C)+ acentuados.
Variações pouco
contrastantes, a não ser
entre A e B.
Acentuação
Pouca diferenciação entre
as notas acentuadas, o
soprano dos acordes e as
condutoras da linha
melódica
Rf> excessivo em a de A,
comprometendo a
percepção da harmonia,
nos acordes da esquerda,
em C; e nos acentos > das
tercinas, no final de C.
Pouco enfáticos no tema
de B.
Enérgica, porém sem
agressividade e bem
projetada.
Menos enérgica que a de
Schic e + incisiva que a de
Rubinsky, favorecendo a
distinção entre os estratos
sonoros. Reforça as
dissonâncias.
Enérgica e brilhante,
favorecendo a distinção
dos estratos sonoros.
Dinâmica
Em geral linear e entre mf e
f.
Em geral, intensidades
entre f e fff.
Tendem do mf ao ff em C
e D.
Acompanha as indicações.
Intensidades diferenciadas.
Grandes contrastes.
Intensidades de p a fff.
Valorização das
dissonâncias
Não são valorizadas
São evidenciadas.
Não parecem
particularmente
enfatizadas, criando clima
+ suave
Valorizadas; embora
menos percutidas que as de
Schic.
Não parecem
particularmente
enfatizadas.
Uso do
pedal
Adequado, dentro da
concepção da pianista.
Excessivo, sobretudo em b
de B e c de C.
Apropriado; estratos
nítidos.
Pouco pedal, estratos
nítidos.
Excessivo em c de A, b e c
de B, c de C e D.
Polirritmias
Pouco nítidas, em função
do andamento excessivo e
da pouca diferenciação
entre os extratos sonoros.
Claras, apesar do uso
excessivo do pedal.
Claras.
(Diferenciação criteriosa
entre os estratos sonoros e
pedal econômico)
Muito claras.
(Diferenciação criteriosa
entre os estratos sonoros e
pouco ou nenhum pedal).
Não muito clara; o
andamento impede a clara
percepção da polirritmia.
Ênfase nos elementos
descritivos
São realçados apenas nas
duas primeiras subseções
de A.
A pianista parece aludir a
um urso muito grande e
pesado.
Leveza e acentuação.
Ursozinho gracioso
Leveza e acentuação.
Ursozinho gracioso
O animalzinho não esta
transfigurado; apresenta-se
como estaria em estado de
natureza – pesado e
violento.
Indiccadores
Clima
Tende ao brilhantismo
técnico.
Pouco gracioso,
pesado.
De um modo geral, leve,
jocoso, mas também firme
(em C e D).
Bem humorado, leve,
jocoso, mas também firme
(em C e D).
Feroz, pesado.
3.9 O lobosinho de vidro
Le petit loup en verre
É com O lobosinho de vidro que Villa-Lobos finaliza a Prole do Bebê 2, em
clima seco, percussivo e sarcástico, que soa como uma longa toccata. A peça não se
apresenta evidentemente descritiva como O cavalinho de pau e O passarinho de pano,
mas observa-se que os andamentos são rápidos, alusivos à agilidade do animal que corre
bastante; além disso, minha imaginação associa a aspereza da harmonização dissonante
com aos lobos maus, astutos e comedores de vovozinhas e porquinhos (O chapeuzinho
vermelho e Os três porquinhos).
Magalhães (1994, p.248) e Bastos (2001, p.97) concordam quanto à segmentação
de sua forma. Ambos a dividem em: A (cs. 1 a 61)/B (cs. 62 a 133)/A’(cs. 134 a 181),
uma forma ternária, portanto, divisão condicionada por mudanças de andamento e dos
materiais empregados, cuja disposição pode sugerir um rondó pouco convencional (a,
refrão de A e A’; c, de B, e as demais letras, estrofes). A seção A é constituída pelas
seguintes subseções: a (cs.1/11.1) b (cs. 11.1.2/16.2) a’(cs.17/27.1) b(cs.27.1.3/31) a
(cs.32/42.1) b (cs.42.1.2/47.2) a
’’
(cs.48/62.1). Os compassos iniciais, a Presque vif
(M: 108 = ), - de caráter rítmico, são construídos com a repetição da nota si 2 tocada
com mãos alternadas; a ela vão se agregando segundas até formar o acorde completo
(cluster) no compasso 11.1. Os referidos compassos são repetidos intermitentemente
nas seções externas e, variados, em B, funcionando como impulso que antecede a
entrada de novo material. A alternância de mãos proposta nos cinco primeiros
compassos é interrompida quando a organização interna da pulsação é modificada,
gerando um deslocamento da acentuação, de grupos de quatro (a fórmula de compasso
inicial é 2/4), para [3+3+2]+ [3 x (3+3+3)]+10 semicolcheias.
A repetição da mesma nota até a formação de um cluster denso levou Tarasti
(1995, p.276) a associar esses compassos ao início do Choros 11.
Exemplo 81. O lobosinnho de vidro, cs. 1 a 10 Repetição da nota si 2 e agregação
gradual de segundas.
Na subseção b (cs. 11.1.2 a 16.2) Un peu moins - apresenta-se o primeiro tema,
em sol b maior, sobreposto a três camadas diferentes nota pedal em oitava (sol b),
cluster-ostinato e melodia cromática no tenor (reminiscência da canção de ninar
indígena Mokocê-cê-maká, apresentada em O cachorrinho de borracha e em O boizinho
(sic) de chumbo). A rítmica do tenor – escrita em colcheias pontuadas – cria uma
polirritmia com as demais camadas, em 3 ou 2/4.
Após uma apresentação de a, (a’, cs. 17 a 27.1) - a 5ª justa, no final da linha
do baixo, em a, é transposta em a’ -, onde volta o Tempo Iº, segue a subseção b’
(cs.27.1.3 a 31) - Un peu moins -, onde é exposto o segundo tema da peça, com as
mesmas características texturais de b, porém com o baixo e tenor transpostos e o
soprano agora em oitavas, em mi b eóleo, com direção descendente. Em seguida, a e b
são novamente reapresentados.
Apesar da repetição da nota si 2 e do movimento alternado, distinções entre a
e a
’’
(cs.48 a 62.1)(novamente Tempo ), subseção com função de transição, que liga A
à B. Nela, as segundas não são agregadas à nota si, que continua repetida ao longo da
subseção, porém entrecortada por poliacordes acentuados (rff >) - que lembram o início
da Toccata Op. 11 de Prokofiev -, e por sucessão de acordes de 4
as
superpostas em
movimento ascendente e descendente, respectivamente nas camadas superior, em quatro
semicolcheias, e inferior, em tercinas de colcheias (c.54 e 61), elementos que serão
explorados em B.
Exemplo 82. O lobosinnho de vidro, cs. 105 e 106, a’’’ semelhança com Toccata de
Prokofiev.
Exemplo 83. Toccata Op.11 de Prokofiev, cs. 11 a 14
Exemplo 84. O lobosinho de vidro, cs. 54 a 61,elementos da subseção a’ que serão
explorados em B.
A seção B, além de utilizar materiais de peças anteriores, apresenta maior
diversidade deles, grupando-os nas seguintes subseções: c (cs.62.2/77.1) c’
(cs.77.1/83.1) c (83.2/98.1) c’’ (98.1/103) a’’(104/112) d (113/121) e (122/133), para
as quais Villa-Lobos indica andamentos específicos Un peu marcial M: 88 = (c.
62); Un peu lent 132 = (c.77); Un peu marcial (comme avant) (c.83); Lent (c.98);
Toujours animé M: 96 = (c. 104); Moins animé M: 144 = (c.113); Marche M: 120
= (c.122).
Un peu marcial c - inicia-se enérgico, acentuado (>) em dinâmica com sentido
geral crescente. Sua textura é homofônica e densa, predominantemente organizada em
poliacordes e grupamentos descendentes de tercinas em blocos de 4
as
(teclas brancas
combinadas a variadas formações harmônicas em teclas pretas).
.
Os últimos, em novas
formações harmônicas, ganham relevo nas subseções d e e. A nota si 2 repetida, porem
em tercinas, e as 4
as
na camada superior, trazem de volta elementos da subseção a”. Em
Un peu lent (132 = ) e Lent - c’, - uma variação de c em andamento um pouco mais
lento, mas que se acelera em direção à volta de c (Un peu marcial (comme avant)), -
arpejos ornamentais virtuosísticos e superposição de blocos quartais e tríades adensam a
textura. À reapresentação de c segue c”, Lent, onde são combinados elementos de
c’(arpejos) e c (tercinas). A subseção pontua com um desenho virtuosístico em
movimento contrário e em polirritmia de 4 contra 3. A mão esquerda, em tercinas, faz
um movimento ascendente em teclas brancas, enquanto a direita faz o movimento
contrário, alternando terça em teclas branca e preta com uma nota simples branca (efeito
construído com o Princípio do Polichinelo). O desenho é em fff e termina com um
rubato sobre o si 2 do refrão, onde começa a’’’ , Toujours animé.
Exemplo 85. O lobosinho de vidro. cs. 102 e 103 – Efeito virtuosístico construído
com o Princípio do Polichinelo.
Na subseção a’’’ (cs.104 a 112), a nota repetida si 2 se agrupa em tercinas, como
em c, mas, como em a, 2
as
são acrescentadas até se formarem clusters repetidos com 4
sons. Em d (cs.113 a 121)Villa-Lobos indica Lourd animé para uma subseção em ff, de
textura homofônica acordal densa e harmonia dissonante, formada por tríades e blocos
de quintas e quartas superpostos - reminiscência da cascata de acordes com quartas em
B de O camundongo de massa. Duas outras peças podem ser lembradas nesta subseção:
O Ursozinho de algodão - comparar a célula dos 3º, e tempos do compasso 113 de
d de O Lobozinho, com a do e tempos dos compassos 27/28 de O Ursozinho de
algodão (Exemplo 86) e O boisinho(sic) de chumbo, como observado no baixo dos
3º, 4º e 5º tempos dos compassos 116 e 118 de O Lobozinho. (Exemplo 87)
Exemplo 86. O lobosinho de vidro. cs. 113 e 114.1 e O ursozinho de algodão, cs.27 e
28.1.
Exemplo 87. O lobosinho de vidro. c. 116 e O boisinho (sic) de chumbo, c. 14.
A Marche (subseção e, cs.122 a 133) apresenta material em textura homofônica –
linha melódica cromática no soprano, enfatizando a dominante sol do pólo dó do
ostinato rítmico-harmônico, no baixo, ao qual se sobrepõe uma sucessão de 5
as
diminutas harmônicas e melódicas, também com função rítmico-harmônica, no
contralto - soando, a meu ver, como uma junção do cavalinho em marcha (efeito
produzido pelo ritmo e acentos, no baixo, e no contralto) com o boizinho (linha
melódica cromática descendente).
A movimentação ascendente e depois descendente dos compassos 126 a 130 de e,
somada à densidade da textura e à dinâmica ff, agigantam o lobosinho. O desenho, na
esquerda, com 4
as
ascendentes, no qual se distingue a utilização de uma escala
pentatônica sobre as teclas pretas (cs.126.3/127.2), desemboca em um motivo
(cs.127.2.3/128.2) repetido em seguida, relacionado ao já apresentado em d
(cs.113.2/114.2). O motivo em questão e seu acompanhamento virtuosístico em acordes
quebrados descendentes lembram a seção B de A festa no sertão.
O trêmolo (c.130), um acorde de antecipado no final do referido
acompanhamento, traz à lembrança O Passarinho de pano e produz uma grande
ressonância resultante de tantos sons simultâneos misturados pelo pedal do instrumento,
que remete ao efeito dos acordes quebrados em Chez Petrouchka. A subseção termina
sobre a nota pedal e poliacordes, e um arpejo ornamental virtuosísitico (como nos. cs.
47 e 149) antecipa o refrão a da seção A’.
Exemplo 88. O lobosinho de vidro. cs. 126 a 134 Efeito virtuosístico agigantando o
lobosinho.
Exemplo 89. Chez Pétrouchka, Stravinsky, cs. 33 a 38 Semelhança com o trêmolo do
exemplo anterior.
Em A’ retornam as subseções de A: a’ (cs.134/144.1), b (144.1.2/149.2), a’ (150/
160.1) b(160.1.3/164) a’’’’ (165/181). O último refrão - a’’’’- é mais longo que os
demais, chegando a um cluster com apenas 4 notas que, como em a’’’, contem, entre
seus componentes, um intervalo de oitava.
A dinâmica da peça, de mf a ffff, associada às dissonâncias de
s
e 7ª
s
, à
acentuação e ao uso de todos os registros do piano gigantizam o lobinho que
morde!...(Magalhães, 1994, p. 255).
O término da peça com acordes espalmados, sem tonalidade e em ffff, foi
comparado por Tarasti (1995, p. 276) à sonata Concord de Ives.
Resumo da análise musical de O lobozinho de vidro.
Forma
ABA’ articulada m
udanças de andamento, de agógica, de andamento, de
material, de dinâmica, arpejo articulador da forma e efeito virtuosístico.
Harmonia
Modalismo, escalas pentatônicas, efeitos construídos com o “Princípio do
Polichinelo” e acordes por 4
as
, 2
as
ou 4
as
e 2
as
Textura
Homofônica em
a, a’ e a’’’’. P
olifônica em
b, b’, a’’, a’’’, c, c’, c’’, d e e.
Densidade de uma a quatro vozes em A e A’, e de um a três estratos em B, a
maior compressão está em a, a e a menor c’.
Ostinatos
Encontram-se
Cluster-Ostinato rítmico em b e em e, no baixo e no contralto
(trêmolo).
Ritmo
Andamentos em geral animados, variações de agógica, mudanças de fórmula
de compasso, acentos propostos (ou deslocados), polirritmias e síncopes.
Melodia
Encontram-se linhas-temas.
3.9.1 Comparação entre cinco gravações de O lobosinho de vidro.
Talvez em O lobosinho de vidro, Villa-Lobos confirme o caráter irônico desta
coleção. Como escrito, o compositor pode ter tentado fazer auto-retrato e observa-se
uma possível relação entre o lobosinho descrito com harmonias ásperas e acentuação
percussiva com seu temperamento impulsivo.
Barentzen constrói um clima que tende ao brilhantismo técnico, descrevendo bem
a agilidade do bicho. No entanto, a meu ver, sua interpretação alude a um lobo mau
imaginário, com uma selvageria “faz de conta”; seu toque leve apresenta o brinquedo
como um animalzinho não muito feroz.
Tal imagem foi edificada em função da harmonia dissonante e áspera, de
dissonâncias devidamente valorizadas, da palheta de dinâmica entre mf e ffff e da
acentuação enérgica, embora não percussiva, que em b e b’ não projeta a linha
cromática descendente do tenor.
Quase sempre a pianista “pesa o pé” no pedal, que é excessivo (sobretudo em b,
b’ e nos movimentos ascendentes por 4
as
), turvando as polirritmias, também em função
da insuficiente diferenciação entre vozes e estratos. Apesar dos andamentos serem
observados e diferenciados, às vezes, discretamente (entre Presque vif e Un peu moins),
a pianista tende a acelerar (a’’’’ ligeiramente mais rápido que a).
Com exceção da Marche que faz mais lento que o indicado, Schic segue os
andamentos, e faz expressiva diferença entre Presque vif e o Un peu moins. Como
Barentzen, tende a acelerar (já em c as tercinas são executadas no andamento das quatro
semicolcheias de a) e seu lobosinho parece correr bastante.
Em função do toque pesado da pianista, da expressiva valorização das
dissonâncias, da dinâmica com intensidades entre f e ffff, da acentuação áspera e
percussiva (com rff> muito expressivos), o brinquedo apresenta-se como um
animalzinho em estado de natureza, veloz, selvagem e mau, e o clima é agressivo e
feroz.
Seu uso de pedal é, em geral, adequado, embora excessivo nos movimentos
ascendentes por 4
as
; as polirritmias, por sua vez, são mais claras que as de Barentzen,
pois a diferenciação entre vozes e estratos é mais nítida.
Rubinsky realiza interpretação correta, seguindo todos os andamentos propostos;
faz nítida diferença entre Presque vif e Un peu moins; e assim como as pianistas
anteriores, tende à aceleração, fazendo as tercinas de c no andamento das quatro
semicolcheias de a.
Como esperado, o uso do pedal é adequado e colabora para a percepção das
polirritmias, também aclaradas pela diferenciação criteriosa entre os estratos sonoros e
pela acentuação enérgica que projeta vozes e estratos. A dinâmica soa entre mf e fff e
as dissonâncias são valorizadas, as quais, em minha opinião, não teriam como não o ser
em tal contexto.
Sua interpretação é vigorosa, mas o clima é menos agressivo e feroz do que o de
Schic. Talvez seu toque pesado (porém menos que o da outra pianista brasileira), aliado
às dinâmicas escolhidas e ao uso do pedal, apresenta o brinquedo como um animalzinho
em estado de natureza, veloz, selvagem e não muito feroz.
Garosi respeita as indicações de andamentos, fazendo nítida diferença entre o
Presque vif e o Un peu moins. Como as demais, tende a acelerar nas tercinas em c, que
são executadas no andamento das quatro semicolcheias de a, e acentua essa aceleração
no final da peça. Suas variações de agógicas promovem acentuados rall e a pianista
parece brincar com o tempo que é inteligentemente flexível.
O clima soa agressivo e feroz em função da acentuação enérgica, percussiva,
(projetando vozes e estratos) , da dinâmica entre f e ffff e das dissonâncias enfatizadas.
As polirritmias são claras por conta da criteriosa diferenciação entre os estratos sonoros
e do uso econômico do pedal que projeta estratos nítidos e staccatos bem secos.
Em função do toque percussivo da pianista e do uso econômico do pedal, o
brinquedo apresenta-se como um animalzinho em estado de natureza, veloz, selvagem e
muito feroz.
Hamelin constrói um lobosinho selvagem e feroz, tendendo ao brilhantismo
técnico, assim percebido por serem os andamentos mais rápidos que os das demais
pianistas, as tercinas sempre executadas no andamento das quatro semicolcheias de a, os
acell acentuados e os rall. discretos.
A acentuação é enérgica, brilhante, nem sempre favorecendo a distinção dos
estratos sonoros. A dinâmica da peça é de f a ffff.
adequação no uso do pedal, ênfase nas dissonâncias e clara percepção das
polirritmias, apesar dos andamentos escolhidos.
O toque brilhante do pianista, os andamentos escolhidos e o uso adequado do
pedal edificam um brinquedo que se apresenta como um animalzinho também em
estado de natureza, veloz, ágil, selvagem e muito feroz.
3.9.2 Tabela 9. Quadro comparativo das gravações de O lobosinho de vidro.
Pianistas
Barentzen Schic Rubinsky Garosi Hamelin
Andamentos
Presque vif (M: 108 = )
no andamento indicado.
Discreta diferença de Un
peu moins.
Un peu marcial (M:88=
) e Un peu Lent
observados e
diferenciados do
Lent.
Marche (M: 120= ) no
andamento indicado.
Presque vif (M: 108
= ) no andamento
indicado. Expressiva
diferença em Un peu
moins.
Marche (M: 120= ) +
lento que o indicado.
Presque vif (M: 108
= ) no andamento
indicado; nítida diferença
em Un peu moins.
Un peu marcial (M:88=
) e Un peu Lent
observados e
diferenciados do
Lent.
Marche (M: 120= ) no
andamento indicado.
Presque vif (M: 108
= ) no andamento
indicado; nítida diferença
em Un peu moins.
Un peu marcial (M:88=
) + lento que a
indicação.
Marche (M: 120= ) +
lento que o indicado.
Sempre + rápidoo que os
das demais. Presque vif
(M: 108 = ) + rápido
que a indicação. Mínima
diferença em Un peu
moins.
Como os andamentos
escolhidos são sempre
muito rápidos, em Un peu
marcial (M:88= ) e em
Marche (M: 120= )
eles são os indicados..
Variações de agógica
Tende a acelerar (a’’’’
ligeiramente mais rápido
que a).
Tende a acelerar (já em c,
as tercinas são executadas
no andamento das quatro
semicolcheias de a).
Tende a acelerar (já em c
as tercinas são executadas
no andamento das quatro
semicolcheias de a).
Tende a acelerar nas
tercinas em c, que são
executadas no andamento
das quatro semicolcheias
de a.
Acentuados rall e acell.
Acentuada aceleração no
final da peça.
As tercinas são sempre
executadas no andamento
das quatro semicolcheias
de a.
Acell acentuados. Rall.
discretos.
Acentuação
Enérgica, com exceção da
linha cromática
descendente do tenor, em b
e b’.
Em geral áspera e
percussiva. rff> muito
expressivos.
Enérgica , projetando
vozes e estratos.
Rff> expressivos.
Enérgica, percussiva,
projetando vozes e
estratos..
Enérgica e brilhante, nem
sempre favorecendo a
distinção dos estratos
sonoros.
Dinâmica
Palheta entre mf e ffff
Em geral, intensidades
entre f e ffff.
Em geral, intensidades
entre mf e fff.
Tendem ao f e vão até ffff.
Tendem ao f e vão até
ffff.
Valorização
das
dissonâncias
Valorizadas.
Valorizadas.
Valorizadas. Enfáticas. Enfáticas.
Uso do
pedal
Excessivo, sobretudo em b,
b’ e nos movimentos
ascendentes por 4
as
.
Em geral
adequado,embora
excessivo nos movimentos
ascendentes por 4
as
.
Adequado.
Apropriado; estratos
nítidos e staccatos bem
secos.
Adequado.
Polirritmias
Nem sempre nítidas, em
função do uso excessivo do
pedal e da insuficiente
diferenciação entre vozes e
estratos.
+ claras que as de
Barentzen; a diferenciação
entre vozes e estratos é
mais nítida.
Claras.
(Diferenciação criteriosa
entre os estratos sonoros e
pedal adequado)
Claras.
(Diferenciação criteriosa
entre os estratos sonoros e
pedal econômico)
Claras, apesar dos
andamentos escolhidos.
Ênfase nos elementos
descritivos
Em função do toque (leve)
da pianista, o brinquedo
apresenta-se como um
animalzinho em estado de
natureza, veloz, selvagem e
não tão feroz.
Em função do toque
(pesado) da pianista, o
brinquedo apresenta-se
como um animalzinho em
estado de natureza, veloz,
selvagem e muito feroz.
O toque pesado (porém
menos que o de Schic),
aliado às dinâmicas
escolhidas e ao uso do
pedal, o brinquedo
apresenta-se como um
animalzinho em estado de
natureza, veloz, selvagem
e não muito feroz.
Em função do toque
percussivo da pianista e
do uso econômico do
pedal, o brinquedo
apresenta-se como um
animalzinho em estado de
natureza, veloz, selvagem
e muito feroz.
Em função do toque
brilhante do pianista, dos
andamentos escolhidos e
do uso adequado do pedal,
o brinquedo apresenta-se
como um animalzinho em
estado de natureza, veloz,
ágil, selvagem e muito
feroz.
Indiccadores
Clima
Tende ao brilhantismo
técnico, deixando
transparecer a agilidade do
bicho.
Agressivo e feroz.
Interpretação vigorosa,
mas o clima é menos
agressivo e feroz do que o
de Schic.
Agressivo e feroz.
Tende ao brilhantismo
técnico. Clima selvagem e
feroz.
4º Capítulo - Aspectos composicionais recorrentes na Prole do Bebê nº2.
4.1 Na forma
A quebra do sistema tonal e do discurso narrativo ocorrida nas primeiras cadas
do século XX repercutiu profundamente na estruturação formal. Novas harmonias e
novos conceitos rítmicos levaram a novos processos de organização musical e
abordagens teóricas. Não podendo mais se apoiar na lógica da harmonia tonal, as
melodias sofreram radicais mutações; os temas tornaram-se mais concisos, os
procedimentos relacionados ao desenvolvimento, em função da comum justaposição de
blocos de idéias, são pouco evidentes ou mesmo ausentes, e a segmentação de mais
difícil determinação. Mudanças de textura, timbre, dinâmica, agógica, ritmo; e, recursos
específicos em substituição às cadências, passaram a ser elementos condicionadores da
forma (procedimentos observados e exemplificados na análise das peças do ciclo).
Segundo Caio Senna:
Forma diz respeito às maneiras com que os materiais e eventos musicais, em uma
determinada obra ou grupo de obras, são ordenados, conectados uns aos outros e
desenvolvidos de modo a criar um todo expressivo. A forma de uma peça confere a ela
sua individualidade. (2005, p. 5, no prelo)
A partir do modernismo, seria infrutífero tentar enquadrá-las dentro de rótulos
pré-existentes, pois elas resultam da maneira peculiar com que os materiais que as
engendram são organizados.
José Maria Neves (1977, p.8) e Bruno Kiefer (1981, p.46), ao escreverem sobre a
questão da estruturação formal empregada por Villa-Lobos na década de 20, ressaltam
sua liberdade e despreocupação em encaixar sua música em formas tradicionais
preestabelecidas.
Stravinsky, nas primeiras décadas do século XX, explorou o processo de
justaposição de materiais, quer por sua reiteração, quer pela adição de novos, quer pelo
acréscimo de camadas melódicas (verticalização de elementos), processo observado em
O cavalinho de pau, e em O boizinho de chumbo da Prole 2. Nessa obra encontram-
se peças em formas tradicionais, como ABA’ (O camundongo de massa), AB (A
baratinha de papel e O gatinho de papelão), ABA’Coda (O lobosinho de vidro), mas
também formas organizadas em livre justaposição de materiais, como ABCD em O
cavalinho de pau, e ABCDE em O boizinho de chumbo.
A segmentação da forma na coleção em estudo é aclarada pelos seguintes
elementos de articulação: mudanças de andamento (todas), agógica (A baratinha de
papel, O gatinho de papelão, O camundongo de massa, O cavalinho de pau e O
lobosinho de vidro), dinâmica (A baratinha de papel, O gatinho de papelão, O
cavalinho de pau, O boisinho (sic) de chumbo, O passarinho de pano, O ursozinho de
algodão e O lobosinho de vidro), tipo de acompanhamento (A baratinha de papel), do
material (em todas), adensamento (O cachorrinho de borracha e O lobosinho de vidro)
ou rarefação (O passarinho de pano) da textura, efeitos virtuosísticos (O cavalinho de
pau, O boisinho (sic) de chumbo, O passarinho de pano e O lobosinho de vidro),
arpejos (O camundongo de massa, O cavalinho de pau, O passarinho de pano e O
lobosinho de vidro) e entrada da canção folclórica (A baratinha de papel, O gatinho de
papelão, O cavalinho de pau e O ursozinho de algodão).
Tabela 10. Quadro Comparativo – Forma
Peças
Indicadores
A baratinha de papel O gatinho de papelão O camundongo de massa
O cachorrinho de
borracha
O cavalinho de pau
Forma
Binária: A - B Binária: A - B Ternária: A-B-A
Ternária: A-B-C e
Codetta
A-B-A’-C
Elementos
de
articulação
Diminuição da
intensidade, das
ressonâncias e do
andamento entre as
seções.
Canção folclórica em B.
Glissandos seguidos por
notas-pedal ou por
arpejo de 4ª e mudanças
no tipo de
acompanhamento, entre as
subseções.
Glissando, diminuição
da intensidade e do
andamento entre as
seções.
Canção folclórica em
B.
Transposição do
ostinato e aumento da
densidade da textura
entre as subseções.
Mudanças de agógica,
textura e temáticas
entre as seções.
Glissandos de oitavas
e arpejo em teclas
pretas e brancas, entre
as subseções.
Mudanças de agógica
sempre anunciando a
entrada de idéias
musicais diferentes.
Adensamento da textura,
maior movimentação das
vozes internas e
intensificação da
dinâmica; a seguir
processo inverso, entre as
seções.
Mudanças de
agógica, arpejos com
intervalos outros que
3ªs, mudanças de
textura e dinâmica
entre as seções.
Canção folclórica em
A e A’.
O boisinho (sic) de chumbo O passarinho de pano O ursozinho de algodão O lobosinho de vidro
Forma A-B-C-D-E A-B-C-D A-B-C-D A-B-A’
Elementos
de
Articulação
Mudanças de andamento.
Efeitos virtuosísticos (de B
para C, de C para D e D
para E).
Mudança de dinâmica
(de C para D)
Mudanças de material
Mudanças de andamento.
(com exceção de C para D)
Rarefação da textura.
Mudança de dinâmica (de
C para D)
Mudanças de material.
Efeitos virtuosísticos
Mudanças de andamento
(de B para C e de C para
D).
Mudanças de material.
Mudança de dinâmica. (de
A para B)
Mudanças de andamento entre as seções.
Mudanças de agógica entre as subseções de A e A’.
Mudanças de andamento entre as subseções de B.
Mudanças de material.
Mudança de dinâmica entre as seções.
Arpejo articulador da forma de b
para a’, de b para a’’; e de e para a’.
Efeito virtuosístico de c”para a’’’ .
4.2 Na harmonia
Na Prole 2, Villa-Lobos emprega rica variedade de processos harmônicos. É
importante ressaltar que o compositor não utiliza armadura de clave em nenhuma das
peças da série podendo sugerir opção pelo atonalismo como processo de composição
65
.
A impressão harmônica durante sua execução é de constante instabilidade tonal.
Segundo Fernandez
(...) a obra de Villa-Lobos apresenta enorme riqueza sob qualquer ângulo em que seja
observada. Inúmeros são os interessantes problemas e magníficas as soluções
apresentadas em sua obra, quer as vejamos sob o ponto de vista do ritmo ou timbre,
quer a estudemos em sua realização harmônica e contrapontística.
(1945, p.283)
Tanto Fernandez (1945, p.284) quanto Neves (1977, p. 10) afirmam que Villa-
Lobos foi o primeiro compositor brasileiro a romper com as normas harmônicas
tradicionais, enriquecendo extraordinariamente o campo harmônico e trazendo soluções
novas para a nossa música. O compositor, além de ter assimilado as estratégias
harmônicas de seu tempo, criou um recurso de composição inédito para o piano que,
embora simples, oferece grande número de possibilidades sonoras. Segundo Merhy
(1984, p.9), nas obras para piano, em boa parte das harmonias
,
o compositor utiliza
clusters, cujas estruturas podem ser determinadas, mas não suas funções. Ele
simplesmente não buscava coerência harmônica ao escolher os acordes. A
experimentação no teclado era o fator determinante, e o ouvido, o parâmetro.
O recurso citado foi denominado por Merhy (1984, p.9) de “Princípio do
Polichinelo”, princípio que consiste em criar harmonias e ou ostinatos a partir de
intervalos
,
construídos em função da topografia do teclado. Ou seja, um princípio que
combina, com uma lógica própria, acordes, acompanhamentos e ostinatos, usando a
disposição das notas brancas e pretas. Em apontamentos de aulas
66
especulou-se que
esse princípio tenha sido importado da experiência do shape do violão. Nele, uma
mesma posição, escorregando pelo seu braço, produz o mesmo intervalo com
transposições. Essa técnica foi amplamente usada pelo compositor nas obras para
violão, contemporâneas à segunda Prole do Bebê. Os exemplos clássicos de
65
MERHY, Silvio. O sistema de dissonâncias da Prole do Bebê nº 2. III Encontro Nacional de Pesquisa
em música. BH: UFMG, 1989, p. 4.
66
Curso de História Social da Cultura, Prof. Dr. Silvio Merhy; durante a apresentação de meu seminário
final, os alunos violonistas Humberto Amorim Neto e Cláudia Azevedo, que já haviam tocado obras do
compositor, sugeriram tal hipótese.
"paralelismos" na produção para violão do Villa-Lobos estão nos Estudos n.
os
1, 4, 7
(seção C), 11, 12 e nos Prelúdios 2 (seção B) e 4.
Merhy (1984) afirma que, na Prole nº 2, encontram-se dois tipos de dissonâncias:
a que reforça o conteúdo harmônico e a que é estabelecida pela topografia do piano.
Enumera, ainda (1984, p.7), entre outras inovações harmônicas: os acordes em que 3ªs,
as “blue notes”, aparecem em vozes diferentes (O camundongo de massa), estruturas
livres em teclas brancas e pretas (em todas as peças), a não resolução de acordes
alterados (as dissonâncias cumprem a função de evitar a escala diatônica), a
superposição de acordes maior e menor (O ursozinho de algodão) e notas ou acordes
pedais (O camundongo de massa).
Freqüentemente encontramos melodia tonal, superposta a ostinato em contexto
atonal, (A baratinha de papel e O camundongo de massa) e politonalismo (O gatinho
de papelão).
O ambiente áspero do primitivismo é criado por Villa-Lobos com acordes por
quartas (O cavalinho de pau), combinação de um mesmo acorde maior e menor,
clusters (O lobosinho de vidro), acordes por segundas acrescentadas (O cachorrinho de
borracha), superposição de acordes com intervalos de e de (O boizinho de
chumbo), quase sempre em dinâmica f ou ff, evitando 3ªs e 6ªs, para fugir da
diatônica.
67
Para expressar ambiente vago, flutuante, utilizou acordes alterados, acordes com
quartas e paralelismos
,
associados à dinâmica piano (O cachorrinho de borracha).
Quando manifesta seu sentimento nacionalista mais explicitamente, como nos trechos
com melodias folclóricas, é comum combinar atonalismo com tonalismo (A baratinha
de papel, O gatinho de papelão, O cavalinho de pau, O passarinho de pano e o
ursozinho de algodão).
Fernandez (1945, p. 285), em seu alentado estudo sobre a harmonia de Villa-
Lobos observa na linguagem do compositor, sua tendência à bitonalidade e à
politonalidade, atingindo, em alguns momentos, a atonalidade. Analisa detalhadamente
os processos harmônicos, os acordes empregados e aqueles mais usados em pontos
conclusivos. Menciona também sua despreocupação gráfico-harmônica, esclarecendo
que, para o compositor, um sol # não era diferente de um lá b, como seria na linguagem
tonal; seu ouvido estava muito mais atento ao resultado sonoro do que à função
67
Cada um dos procedimentos podem ser encontrados em outras peças.
harmônica de uma nota em um acorde ou em um ostinato. No entanto, importava-lhe
ser a tecla branca ou preta.
Tabela 11. Quadro Comparativo – Harmonia
Peças
Indicadores
A baratinha de papel O gatinho de papelão O camundongo de massa O cachorrinho de borracha O cavalinho de pau
Atonalismo + temas
com pólo ou tonais
Ostinato atonal agregado a
temas em pólo de dó maior (na
seção A) ou em fá # maior (na
seção B, canção folclórica “Fui
no Itororó”).
Ostinato atonal agregado a
linhas melódicas e acordes com
pólos pouco definidos, em A; e
agregados a canção folclórica
em ré b maior e blocos
harmônicos em fá maior, em B.
1º tema em Mib superposto a
ostinato atonal.
2º tema em mi b maior
sotoposto a ostinato atonal.
Melodia inicial em do (ou lá)
sobre harmonia em quartas.
Superposição de ostinato
atonal a tema em mi
menor, em A.
Atonalismo + temas
modais
Politonalismo ou
Tonalismo +
modalismo
Melodia em ré b maior e
harmonia em fá maior, em B.
Superposição de pólos fá e lá
em B
Estratos sonoros sem pólos
definidos sobre baixo em do,
em A.
Ostinato atonal e tema em
mi menor, superpostos a
baixo em lá menor, em A.
Modalismo
A melodia inicial pode ser
considerada em lá eólio
Escalas pentatônicas
Na voz inferior do ostinato
inicial.
Quatro últimos compassos, na
m.d.
Nas teclas pretas do ostinato
inicial e nos glissandos em
oitavas.
Efeito Polichinelo
No ostinato, nos acordes finais,
no cluster em trêmolo, no
acompanhamento da 3ª subseção
de B.
No ostinato, em A.
Nos quatro últimos compasso
em B.
No ostinato inicial.
No arpejo ascendente em B.
No Animé e Moins
Acordes por 4
as
, 2
as
ou
4
as
e 2
as
Em b. Em B. Tenor de A e A’.
Poliacordes
Os acordes finais Ao longo de toda a peça Ao longo de toda a peça
O boisinho (sic) de chumbo O passarinho de pano O ursozinho de algodão O lobosinho de vidro
Atonalismo + temas
com pólo ou tonais
Tema em mi b menor
sobreposto ao ostinato atonal
em C.
Atonalismo + temas
modais
Em B (tema em si b frígio)
Politonalismo ou
Tonalismo +
modalismo
Superposição de ré menor a si b
menor em E Superposição de lá
menor ao modo frígio em C
Politonalismo em toda a peça.
Politonalismo em b, c, f, C,
D.
Modalismo
Modo frígio no baixo em C Tema em B. Modo eólio em b’
Escalas pentatônicas
Movimento ascendente no
contralto, no final de A; m.d.,
em B; oitavas em tercinas, na
m.e. e Trés vif em B; oitavas em
tercinas, na m.e. no final de D.
Em b - m. d. em brancas e m.
e. em pretas. Em d e e, no
ostinato
Arpejos no Un peu lent.
Efeito Polichinelo
Ao longo da peça
No início de A: (pretas na
esquerda e brancas na direita),
nos sete compassos iniciais de
b de A e em c de A ; no final
de B, no arpejo que anuncia C.
No ostinato, nas quartas da
melodia folclórica, no efeito
final, em C; e no trilo e nos
acordes finais, em D.
Em C e D Ao longo da peça.
Acordes por 4
as
, 2
as
ou
4
as
e 2
as
Ao longo da peça.
Acordes por 2
as
na figuração
rítmica sincopada de A.
Acordes por 4
as
na melodia
folclórica e no final de D
Em b e D.
Em c, c’,c”.
Poliacordes
Ao longo de toda a peça.
4.3 Na textura
Segundo Senna (2005, p.1) a textura diz respeito à relação espacial, tanto que as
metáforas que a ela se referem são: linha, ponto, planos, camadas, densidade.
Assim
como outros parâmetros composicionais, no início do século XX, ela tornou-se mais
complexa, promovendo mudanças na forma, uma vez que ambas são complementares.
Senna (2005, p.2) escreve: “a textura é um elemento importante para o delineamento da
forma”, podendo, pois, determinar início de novas seções e entradas temáticas.
O estudo da textura da Prole 2, além de ajudar a compreender a forma, torna
mais clara a hierarquia sonora entre os vários estratos que Villa-Lobos usa
simultaneamente, ao longo do ciclo. As metáforas de figura e fundo, significando tema e
acompanhamento, descrevem justamente quais os coloridos timbrísticos que o pianista
deve dar a cada evento horizontal superposto.
Minha experiência como pianista mostra que o compositor tinha nítidos em sua
mente a hierarquia entre os estratos sonoros de suas peças para piano, bem como os
timbres que desejava para cada um deles. A especificidade da grafia (emprego de até
quatro sistemas), da acentuação, da dinâmica e das articulações espelham a necessidade
de um tratamento “polifônico” na execução do ciclo.
Essa hipótese foi confirmada por Schic (1989, p. 93) ao ressaltar a habilidade do
compositor, que, “apesar de não ser pianista, [era capaz] de extrair do piano um colorido
e uma riqueza de timbres raros de se ouvir”; além de “sua sabedoria no emprego do
pedal e no toque de certas passagens onde havia o relevo melódico em contraste com os
outros planos sonoros”.
Schic escreve ainda:
Não podemos esquecer a sua [de Villa-Lobos] admiração por Bach e o estudo constante
que fazia de sua obra não podiam deixar de impregná-lo do sentido polifônico e da
clareza absoluta necessária para bem transmiti-la. O paradoxo é que Villa-Lobos queria
muito pedal em suas músicas, mas exigia clareza ao mesmo tempo; o problema do
intérprete é, pois, dosar sabiamente para criar essa espécie de ‘cacofonia’ brilhante que
ele mencionava constantemente. (1989, p. 111)
Para gerar novos interesses polifônicos, Villa-Lobos construiu na Prole nº2 uma
textura complexa de estratos (camadas) ou vozes que soam com maior ou menor
independência, agregando acordes, linhas melódicas e canções folclóricas aos ostinatos
iniciais.
Além da superposição de vozes ou estratos sonoros, em alguns momentos desta
coleção, o compositor elaborou sua textura apresentando diálogos entre vozes de grande
força expressiva, como em O gatinho de papelão, em O cachorrinho de borracha, em O
passarinho de pano e em O lobozinho de vidro.
De um modo geral, quanto à textura, na Prole do Bebê 2, observa-se
homofonia - destaque de um tema ou melodia folclórica do tecido a ele ou ela
subordinados polifonia
68
de vozes ou de estratos (estratificação)
69
relativamente
independentes - e raros momentos de monofonia, razão por que este tipo de textura não
foi incluído no quadro respectivo.
Na obra, o compositor necessitou criar ambientes densos e pesados para as
situações dramáticas ou para aludir a matérias-primas mais espessas ou resistentes, caso
da massa do ratinho ou do chumbo do boizinho, empregando para isso harmonia
formada por acordes densos, complexa polifonia, timbres inusitados, registros do médio
ao grave, dinâmica em f e pedal generoso, mantendo a nota ou acorde pedal, bem como
toda a harmonia de recheio Pela diversidade de comportamento dos animais e de seus
materiais formadores, também precisou criar texturas rarefeitas para situações plácidas,
lânguidas ou graciosas, usando harmonia dissonante, rítmica flutuante (formada por
ritmos assimétricos) e dinâmica piano. Nas peças, a densidade textural
70
varia entre dois
e seis estratos ou vozes (com raros momentos de apenas um), segundo, provavelmente,
as necessidades de caracterização do animalzinho, o material de que é feito e seus
movimentos. A compressão
71
pode ser grande nos clusters (Moins de O cachorrinho de
borracha) ou pequena, quando o compositor usa os registros extremos do piano
(Grandeose de O boisinho (sic) de chumbo). Vale ressaltar que a medida da compressão
é inversamente proporcional à proximidade entre os estratos, ou seja, quanto maior o
afastamento entre eles, menor a compressão.
Nas peças da Prole nº2, apesar do predomínio da polifonia em O passarinho de
pano, em O boizinho de chumbo (de estratos) e em O cachorrinho de borracha (de
vozes); e da homofonia em A baratinha de papel e em O camundongo de massa
68
Polifonia: textura multivocal de considerável independência interlinear. In GUINGE, Didier Jean
George & Nascimento, Darlan A. A textura como elemento da forma em Amazonas.Em Pauta, Vol. 16,
27, julho a dezembro de 2005, p.30.
69
DELONE, Richard P. Timbre and Texture in Twentieth-Century Music In: WITTLICH, Gary E. (ed.)
Aspects of Twentieth-Century Music. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice Hall, 1975.
70
Densidade textural: número de vozes ou de estratos sonoros
71
Densidade-compressão: âmbito vertical (na partitura) dentro do qual são espacializadas as diversas
vozes ou estratos da textura. BERRY, Wallace. Musical Structure and Performance. New Haven and
London, Yale University Press, 1989.
(melodias tonais acompanhadas por ostinatos atonais), em O gatinho de papelão
(melodias acompanhadas por harmonizações cromatizadas), em O cachorrinho de
borracha (melodias modais com acompanhamento atonal, caso se considere sua
melodia inicial em lá eólio), a textura é, em geral, mista, combinando momentos de cada
um dos tipos.
Tabela 12. Quadro Comparativo – Textura
Peças
Indicadores
A baratinha de papel O gatinho de papelão O camundongo de massa
O cachorrinho de
borracha
O cavalinho de pau
Homofonia
Predominantemente
homofônica. Nos
acompanhamentos
(ostinatos) pode-se
distinguir duas vozes
(falsa polifonia).
Em B. (Melodia
folclórica “Anquinhas”
acompanhada por
pequenas intervenções do
ostinato variado e
intervalos de 10ª, no
baixo).
Em A.e A’
Na apresentação do tema
em A e Ae no Animé.
Em B e D.
Polifonia
Em A.
Em B.
Em toda a peça,
excetuando as passagens
homofônicas.
Em A e C.
Densidade
De duas a três vozes
(considerando a falsa
polifonia)
Duas vozes (em B) e três
(em A)
Duas vozes em A.
Quatro, seis e três, em B.
De três a cinco vozes,
excetuando as passagens
homofônicas.
Predomínio de três
estratos.
Densidade
compressão
Menor compressão na 3ª
subseção de A - após o
glissando; maior na 2ª
subseção de B (no
trêmolo).
Menor compressão no
tema oitavado em B e
maior na transição de A
para B.
Menor compressão no
final da 1ª subseção de A.
Maior compressão no
início da 2ª apresentação
do tema, na primeira
subseção de A.
Menor compressão no
acorde inicial do Animé e
maior no Moins.
Menor compressão em D
(pesante) e maior em A
(primeira apresentaçãoda
canção).
O boisinho (sic) de
chumbo
O passarinho de pano O ursozinho de algodão O lobosinho de vidro
Homofonia
Em A, parte final de B, C
e final de D.
Em A, B, início de C e D.
Em a, a’ e a’’’’.
Polifonia
Parte inicial de B e D; e E.
Predominante em toda a
peça.
Parte de C. Em b, b’, a’’, a’’, c, c, c’’, d e e.
Densidade
A (três estratos), B, Ce D
(iniciam com três estratos
e finalizam com dois) e E
(quatro estratos).
A (dois a três estratos), B
(dois estratos), C (cinco
vozes) e D (três vozes).
A (dois estratos),
B (duas vozes), C (duas
ou três vozes) e D (dois
estratos).
A e A
(de uma a quatro vozes); B (de um a três estratos).
Densidade
compressão
É bastante variável. Maior
compressão em C (na
apresentação do tema) e
em D; e menor em E.
Maior compressão em B e
menor em C.
Maior compressão em c
de A; menor em D.
Maior compressão em a, a’; menor em c’.
4.4 Nos ostinatos
Nas nove peças da Prole do Bebê 2, encontram-se exemplos de ostinatos,
geralmente no material de acompanhamento.
Bruno Kiefer (1981, p. 57), ao indicar os cinco aspectos que reputava
fundamentais na técnica de construção musical de Villa-Lobos, escreveu que “o ostinato
puramente rítmico ou melódico ou rítmico-melódico assume importância extrema”. o
estudo sobre textura de Maria Lúcia Pascoal (2005, p. 95-105) mostra que, em todas as
peças de ambas as Proles do Bebê, encontram-se desenhos rítmico-melódicos repetidos.
Andréia Lage, fazendo a análise formal da Branquinha, peça da Prole do Bebê 1,
também aborda a importância do ostinato escrevendo:
O ostinato rítmico-harmônico se constitui no principal elemento de sustentação e
ordenamento da peça. Confere unidade ao discurso que se utiliza de materiais
melódicos de sistemas diversos (tonal, modal). Sofre transformações constantes, de
acordo com os materiais melódicos apresentados, produzidas por alterações das
formações harmônicas, mudança de fundo métrico, alterações de acentuação, das
durações, etc. (1991, p. 72)
Homero de Magalhães (1994, p. 210-255) atribui importância a esses padrões
repetidos, adjetivando ou descrevendo todos eles, como por exemplo: “ostinato de
movimento pendular” em A baratinha de papel (p.211), ostinato circular” em O
camundongo de massa (p. 219), “galope ostinatoem O cavalinho de pau (p. 229),
“ambiente de monotonia, e sentido estático, passivo” em O boisinho de chumbo (p.239),
“ambiente timbrístico digno da Rapsódia Espanhola de Ravelem O passarinho de
pano (p. 242), “figuração percutida de mãos alternadas” em O ursozinho de algodão e
“ostinato rítmico” em O lobosinho de vidro (p. 251).
Guilherme B. Seixas
3
observa que o ostinato explorado nas primeiras décadas do
século XX, no modernismo, permanece sobre as mesmas alturas, é estático, não admite
o desenvolvimento tradicional, “agindo como notas pedais ornamentadas no
estabelecimento de centros tonais”. (In Dicionário Grove de música, 1994, verb.
Stravinsky, p. 910 e 911). E por não admitir o desenvolvimento tradicional, leva à
geração de formas aditivas, criadas pela justaposição de blocos de material postos lado a
lado. No entanto, por sua característica de pedal, propicia o desenvolvimento vertical
por acréscimo de camadas.
3
SEIXAS, Guilherme. O Primitivismo como alavanca para o modernismo - uma ideologia.2005, no
prelo.
Através das mudanças entre os materiais empregados em suas partes, o ostinato,
como observado, é fator de segmentação da forma - “é colocando ostinatos ora aqui
ora ali, interrompendo um ou criando outro novo, que o compositor organiza a estrutura
musical (...)”(Seixas, 2005, p. 5)
No caso da Prole do Bebê 2, a superposição de temas folclóricos ou pseudo-
folclóricos a ostinatos, geralmente atonais e elaborados em função da topografia do
teclado, sintetiza o ideal da época, o de apresentar elementos nacionalistas tratados sob
a ótica de uma estética moderna. À exceção de O passarinho de pano, de O cavalinho
de pau, e de O lobosinho de vidro, os ostinatos das demais peças são escritos segundo o
“Princípio do Polichinelo”.
Os ostinatos da coletânea não só produzem uma falsa polifonia, não indicada pela
notação, mas ressaltada na execução - excetuando o de O gatinho de papelão, em todos
os outros se ouve pelo menos duas vozes como ornamentam a textura, através de
variações melódicas, rítmicas ou transposições.
Tabela 13. Quadro Comparativo – Ostinatos
Peças
Indicadores
A baratinha de papel O gatinho de papelão
O camundongo de
massa
O cachorrinho de
borracha
O cavalinho de pau
Ostinatos
Ostinato-clima. Segundo
ostinato – trêmolos -, na
segunda subseção de B.
Ostinato rítmico
sextinas – na terceira
subseção de B.
Ostinato-clima.
Ostinato-clima.
Novos Ostinatos em B.
Ostinato-clima rítmico.
Ostinato-clima rítmico.
Novo ostinato rítmico em
C e D.
Variação do
ostinato
Na primeira subseção de
B.
Fragmentado e variado
em B.
Variado na 2ª e 3ª
subseções de A.
Ostinato-clima com
pequenas variações nos
estratos inferiores, em A
e B.
Ostinato-clima rítmico com
variações em A e B.
O boisinho (sic) de
chumbo
O passarinho de pano O ursozinho de algodão O lobosinho de vidro
Ostinatos
Ostinato-clima
Trilos ao longo da peça,
excetuando em B, e
ostinato-clima em C.
Ostinatos em A,
B e D.
Cluster-Ostinato rítmico em b.
Em e, no baixo e no contralto (trêmolo).
Variação do
ostinato
Em cada apresentação.
Ao longo da peça,
excetuando em C.
4.5 No ritmo
Embora tivéssemos assinalado os ostinatos, a textura e a agógica como
elementos unificadores do ciclo, seu fio condutor é mais contundentemente percebido
na força rítmica.
Guilherme Seixas (2005, p.1), escrevendo sobre a música de Stravinsky, confere
ao ritmo duas importantes funções, a de energia agregadora e a de força que define o
material empregado.
Para a primeira função ele escreve:
[a energia agregadora da obra vem do] ritmo, [ou] mais especificamente, [da] repetição
de curtas e marcantes figuras rítmicas com acentos imprevisíveis (causados por
articulações colocadas em locais improváveis do compasso ou por compassos em
constante mutação) e [da] a polirritmia (ou polimetria) resultante da sobreposição de
materiais ritmicamente conflitantes (em perfeita conjunção com o politonalismo
harmônico). É o ritmo que, com sua violência, poder de choque a todos os outros
elementos («la tension soutenue de cette musique, sa violence rythmique, sa rudesse
harmonique, cette agressivité… ») e que os organiza. Elementos diversos formam
ostinatos que ocorrem tanto em segundo plano, como acompanhamento, como em
primeiro plano, como protagonistas. E é o ritmo que serve como ‘energia agregadora’
da obra. (2005, p.2)
Para a segunda, afirma:
(...)
o aspecto rítmico para nós mais relevante é sua função como força definidora dos
materiais. É a força rítmica, ou seja, a ritmização dos elementos musicais, que
transforma fragmentos motívicos em padrões-motores e materiais harmônicos em
ostinatos. É dos materiais harmônicos transformados em ostinatos que parecem surgir
os materiais melódicos, como o “verdadeiro tema” da seção, derivado do impulso
rítmico e das acentuações do ostinato inicial. (2005, p.2).
O ritmo era preocupação de Villa-Lobos desde sua primeira obra para piano,
Primeira Suíte Infantil (1912) e
,
segundo Bastos (2001, p.20)
,
teria relação com a
riqueza rítmica de nossa música.
São comuns em suas obras três processos: primeiro - a acentuação em partes
fracas de tempo; segundo - o emprego de ostinatos rítmicos que podem se perpetuar por
toda a peça ou por parte dela; e terceiro - a superposição de diferentes planos rítmicos,
cada um dos estratos com características próprias.
Na construção de ritmos complexos, lançou mão de vários tipos de acentuação,
que transformaram toda a organização interna do compasso. Souza Lima (1946, p. 45)
escreve que Villa-Lobos se serve com muita freqüência de acentuações que perturbam a
métrica natural do compasso, produzindo um manancial de efeitos.
Anna-Stella Schic, por sua vez, menciona que “figuras constituídas de grupos de
acordes, acentuações sobre os tempos fracos, combinações complexas de ritmos
diferentes, tudo contribui para a originalidade do seu estilo (de Villa-Lobos).”(1989,
p.106).
Assim como o compositor empregou as melodias folclóricas, não apenas citando-
as, mas mergulhando em sua essência, e produziu outras pseudofolclóricas, o ritmo
popular também foi explorado, tendo sido, por vezes, alterado, sem, contudo, perder a
essência da brasilidade, como observamos na acentuação do ostinato de A baratinha de
papel, e na Parte B de O camundongo de massa, que sugere rítmica indígena.
Em toda a sua obra, esse parâmetro baseia-se tanto no ritmo encontrado no
populário brasileiro, como na linguagem musical da época, cuja evolução, durante as
primeiras décadas do culo XX, o compositor acompanhou de perto, e para a qual
também trouxe sua própria contribuição.
Para Villa-Lobos, o ritmo
,
como os demais elementos musicais, estava a serviço
da expressividade, traduzindo diferentes ambientes. Na Prole 2, para um ambiente de
monotonia, de sentido estático e passivo, Villa-Lobos lançou mão de andamentos
lentos, ostinati, acompanhamentos flutuantes, fórmulas de compasso inéditas -11/8 -
como em O cachorrinho de borracha, e síncopes, como em O gatinho de papelão, O
cachorrinho de borracha e O boisinho de chumbo. Em efeitos onomatopaicos, ele
empregou rítmica com pulsação regular, como em O cavalinho de pau e em O
passarinho de pano.
Magalhães (1994, p. 246) também atenta para a insistência dos detalhes rítmicos
em O ursozinho de algodão, que são as quiálteras, acentos no contratempo, aceleração
rítmica, e a produção de um padrão ternário dentro de compassos binários.
Outro procedimento comum do compositor, lembrado por Gerling (2000, p. 56) é
a elaboração de um ritmo complexo e variado, com passagens sincopadas, mas que
sempre mantém discernível a pulsação básica, como, por exemplo
,
o do ostinato de O
boizinho de chumbo.
Villa-Lobos empregou ainda diferentes técnicas vigentes no modernismo da
década de 20 como: quiálteras (de 3, 7, 9 e 11), polirritmia, acentos propostos ou
deslocados, compassos assimétricos e troca de fórmulas de compasso.
Tabela 14. Quadro Comparativo – Ritmo
Peças
Indicadores
A baratinha de papel O gatinho de papelão O camundongo de massa O cachorrinho de borracha O cavalinho de pau
Andamentos
Quasi lento(M:76 = )
Vagaroso
(M:69 = ) e
Muito lento
Muito animado
Lento (M:144= )
Animado.
Vivo e alègre (sic.) ?
Variações de
agógica
Affret., a Tempo, Menos,
No mesmo movimento,
Pouco allarg.
Lentement, Cédez, Un peu
animé,, Tempo Iº, Animé, a
tempo, rall., , mollemente,
Poco rall., grandeoso e
sempre mollemente, Ri
Très animé, Vivo, Un peu moins,
allarg., rápido, Menos, Tempo Iº
Lent, Rit., a Tempo, Animé,
Moins, Rall., tempo Iº
Animé, Menos, Très animé,
pouco (sic) rall., a Tempo,
allarg., pesante, Sem
rallentar.
Mudanças de
fórmula de
compasso
C e 6/4 2/4, 3/4 e C 13/8, 3/4, 8/4, C, 5/4, 11/8 2/4 e 3/4.
Acentos
propostos (ou
deslocados)
No ostinato, 3+3+2 Em toda a melodia.
> na 1ª articulação dos tempos, no
ostinato, no 2º e 4º tempos do
1ºtema.
rf> na melodia da “marcha de
carnaval”.
Superposição de acentos diferentes
em B.
No soprano, contralto tenor
de toda a peça, excetuando
no tema inicial em A e A’.
Na canção folclórica, no baixo
em C e no tenor em D.
Polirritmias
Quiálteras de 3 semínimas
contra 8 semicolcheias do
ostinato, em A.
3 colcheias contra 8 colcheias
do ostinato, em A.
3 semínimas colcheias 4
semicolcheias do ostinato, em A.
Quiálteras de 3 colcheias
contra 2, em B.
Quiálteras de 3 colcheias
contra 2, ou de 3 colcheias
contra 4 semicolcheias.
Síncopes
No tema, em A.
No ostinato-clima, e em
vários momentos da melodia.
No 1º e 2º temas, em A.
Na me, ao longo da peça (do
acorde do 3º tempo de 3/4
para o 1º de 5/8).
O boisinho (sic) de
chumbo
O passarinho de pano O ursozinho de algodão O lobosinho de vidro
Andamentos
Un peu modéré, Tempo Iº,
Très vif, Lent e Grandeose
Un peu animé , Vivo Lento e
Três vif, Comme avant.
Animado e gracioso, Não muito
depréssa (sic) e Muito vivo.
Presque vif, Un peu marcial, Un peu Lent, Lent, Toujours
animé, Moins animé, Marche.
Variações de
agógica
Animé, vite, rall. e allarg.
Rall, a Tempo, anim., allarg.
pouco a pouco, animado e
rall.
Rit., a Tempo, Mais movido, Un
(sic) pouco menos, animado, rall.
Très peu rall, Un peu moins, a Tempo,Vif, acceleré, rubato,
allarg.
Mudança de
fórmula de
compasso
2/4, 3/4, C e 9/8. 4/4, 2/4 e 3/2. 2/4, 3/4 e 5/4. 2/4, 3/4, 2/2, 5/4, 6/4.
Acentos
propostos (ou
deslocados)
Nos contratempos do
ostinato-clima; da linha
melódica em A e em D; e
no baixo e soprano em E.
rf> no contralto, em B, e > no
contralto em D.
Em A (rf>), tercinas no final de C.
> no contralto em b e b’, nos acordes em d; e no soprano em e,
rff> em a”e a’’’.
Polirritmias
Em A, C e D (melodia em
tercinas superposta ao
ostinato, em divisão
quaternária); em B
(tercinas superpostas a
quatro semicolcheias); e
em E (quatro
semicolcheias superpostas
a três colcheias).
Em A (quiálteras de cinco
sobre oito fusas, tercinas de
semicolcheias sobre oito
fusas, cinco colcheias sobre
oito fusas, seis sobre oito
fusas e nove sobre oito fusas).
Em C (quiáltera de onze fusas
sobre duas semínimas).
Final de B (quatro semicolcheias
sobre tercinas em colcheias).
Em b e b’;final de a’ e em e (tercinas sobre quatro
semicolcheias).
Síncopes
No ostinato-clima, no tema
e em E.
Figuração rítmica em A (b),
no ostinato- clima de C e
coincidentes com os acentos
deslocados.
Em a e c
e no tema de B.
Soprano e contralto de b, b’, e soprano de e.
4.6 Na melodia
Villa-Lobos deu grande importância às construções melódicas porque,
combinadas à rítmica, foram ferramentas poderosas para expressar seu sentimento de
brasilidade. Schic escreve:
O Maestro gostava de suas melodias bem cantadas, como se fosse uma voz humana,
clara e potente; os acentos rítmicos bem marcantes, sobretudo quando estiverem em
oposição com o tempo; as cores, em geral, expostas sem timidez, empregando–se uma
dinâmica bem diversificada, segundo os planos da construção (...).
(1989, p.114).
E para reafirmar que Villa-Lobos era um melodista privilegiado
,
recorro ao texto
de Cristina Gerling (2000, p.32), onde se encontra a citação de Elkins (1971),
“freqüentemente todos os elementos composicionais são calculados para que a
apresentação melódica seja a de maior efeito!”. Essa citação confirma a anterior, por
que expõe a preocupação villalobiana em deixar transparente uma hierarquia entre os
estratos sonoros, para dar realce à melodia principal.
Para destaque delas, o compositor, em muitos momentos, manteve a harmonia em
um plano remoto, chegando a acentuar todas as notas pertencentes a um tema. Essa
escrita deixa claro seu desejo de uma projeção tímbrica mais brilhante para a melodia, e
de um som com menos relevo para os acompanhamentos.
Em várias peças, como, por exemplo, em O cavalinho de pau e O gatinho de
papelão, percebe-se que o atonalismo dos ostinatos, somado à insistente acentuação em
todas as notas do tema folclórico, colocando-o em relevo, sintetiza perfeitamente a
intenção moderno-nacionalista, citada no 2º capítulo. No caso específico de A baratinha
de papel, observam-se características nacionalistas tanto no tema “Fui no Itororó”,
quanto na acentuação rítmica 3+3+2 do ostinato.
Na coletânea em estudo, encontramos material melódico de conteúdo temático
(entendido como melodia completa, “self-contained”) ou motívico.
73
Villa-Lobos emprega abundantemente a variação motívica, conferindo ao motivo
função unificadora. Essa elaboração pode tornar-se o ostinato da peça, como no caso do
motivo em O cavalinho de pau.
Pode haver mútua influência entre melodias e seus acompanhamentos em
ostinatos. Às vezes, um intervalo anunciado no ostinato reproduz o do contorno
73
Motivo: uma breve figura melódica, pequena para ser chamada tema, mas freqüentemente um
fragmento do tema) RANDEL, M. The Harvard Dictionary of Music, 4
th
edition, 2003, verbete melody, p.
499.
melódico - como no caso de O gatinho de papelão -, ou então, um intervalo da melodia
é insistentemente apresentado no ostinato – caso de O cavalinho de pau.
As melodias temáticas são, geralmente, longas e sentimentais, e muitas delas se
originam na música popular e folclórica brasileira, extraídas do universo do caboclo, das
serestas e das delicadas canções infantis.
Apresentam-se, também, melodias mais percussivas, mais movimentadas, usadas
em trechos que se assemelham a toccata. Elas podem estar relacionadas às culturas
indígena e africana.
Outra importante influência que Villa-Lobos sofreu no campo melódico foi a de
Chopin, tratada no estudo de Cristina Gerling (2000, p.11 a 71). Segundo a autora, tal
influência resultou da miscigenação de melodias européias do século XIX com a música
brasileira, e por ainda estar o pianismo no Brasil, no início do século XX, vinculado à
música de concerto européia, por influência dos pianistas estrangeiros que circulavam
pelo Rio de Janeiro.
Ela conclui que na construção dos temas villalobianos, merecem destaque as
melodias folclóricas tanto quanto as linhas cromáticas e sinuosas que atestam a
influência chopiniana.
Entre outros exemplos de linhas longas no ciclo, encontramos: os temas
folclóricos de A baratinha de papel (cs.53 a 78), de O gatinho de papelão (cs. 24 a 40),
e o de O boizinho de chumbo (linha melódica da mão esquerda, cs.34 a 47.2 ).
Na Prole 2 encontram-se exemplos de cromatismos com diferentes funções,
como os que ornamentam a melodia, preenchem intervalos da melodia, produzem
dramaticidade e servem de anacruse para um determinado ponto da linha melódica,
valorizando-lhe a semântica.
Gerling (2000, p.49) ainda cita outra semelhança entre Chopin e Villa-Lobos. A
construção que prolonga a arsis com floreios, para que sua resolução ocorra em tempo
forte, criando tensão e drama com tal procedimento. Villa-Lobos a emprega muitas
vezes, nessa coletânea, prolongando a tensão que antecede a tônica, através de uma
passagem virtuosística.
As melodias de Villa-Lobos podem ser construídas com a utilização de modos,
seqüências melódicas breves de mobilidade pentatônica, como escrevem Andréia Lage
(1991, p.74) e Merhy (1984, p.7), recursos que podem ser encontrados na Prole do Bebê
nº 2.
Béhague (1994, p.65) afirma que as idéias temáticas desse ciclo são melodias
elaboradas por invenção contínua que, evocando as canções das crianças, mantêm a
atmosfera brasileira. As canções folclóricas encontradas na série são: “Fui no Itororó”
em A baratinha de papel; “Anquinhas” em O gatinho de papelão ;“Garibaldi foi à
Missa” em O cavalinho de pau; “Olha o passarinho dominé” em O passarinho de pano;
e “Carneirinho Carneirão” em O ursozinho de algodão.
Mas a criatividade do compositor brasileiro vai além das citações diretas do
folclore. Com seu espírito nacionalista, metabolizou elementos da “alma brasileira” e os
colocou naturalmente na sua música. Encontramos em alguns trechos da Prole 2,
melodias que soam folclóricas, embora não o sejam.
A propósito do emprego do folclore na obra de Villa-Lobos, Adhemar Nóbrega
2
propõe uma subdivisão da obra do compositor em 5 grupos: - com interferência
folclórica indireta, - com alguma interferência folclórica direta, - com
transfigurada influência folclórica, - com transfigurada influência folclórica
impregnada do ambiente musical de Bach, - com pleno domínio do universalismo.
Para o referido autor, a Prole 2 está inserida no grupo. A análise apresentada no
capítulo anterior mostra que o ciclo compreende três grupos, 2º, 3º e 5º.
Várias melodias são bastante livres, despojadas e ritmicamente independentes de
seus acompanhamentos, com em geral todas as folclóricas sobre ostinatos.
Magalhães (1994, p.221) aponta no ciclo, a criatividade vilallobiana ao construir e
reconstruir temas a partir de outros existentes, variando-os, como em O camundongo
de massa.
Como referido no Capítulo, Villa-Lobos também usa características da melodia
com funções metafóricas, como em O cachorrinho de borracha e em A mulatinha, a
última da Prole nº 1. Magalhães (1994, p. 229) constata que a tremenda liberdade
melódica das vozes sugeriria a elasticidade da borracha e, para Vasco Mariz (1982,
p.99), a elasticidade horizontal da melodia de A mulatinha também aludiria ao mesmo
material
.
2
In Presença de Villa-Lobos, vol. VI, 1970.
Tabela 11. Quadro Comparativo – Melodia
Peças
Indicadores
A baratinha de papel O gatinho de papelão
O camundongo de
massa
O cachorrinho de
borracha
O cavalinho de pau
Melodias
folclóricas
“Fui no Itororó” “Anquinhas” Garibaldi foi à missa”.
Melodias
pseudofolclóricas
“Marcha de carnaval”, na
2ª subseção de A.
Segundo Magalhães, a
melodia inicial lembra
“Na minha mão tem uma
roseira”.
Melodias
construídas com
elementos dos
ostinatos
1º tema de A (repetição
das notas lá-sol-fá do
final do ostinato)
Aproveitamento do
cromatismo e das
síncopes oriundos do
ostinato-clima.
Construção melódica a
partir do motivo rítmico
inicial
Melodias
construídas com
motivos das
canções folclóricas
ou
pseudofolclóricas
1º tema (repetição do
início da canção)
1º tema (aproveitamento
do intervalo de 4ª da
canção folclórica)
Aproveitamento do
1ºmovimento
descendente do 1º tema
na cabeça do tema da
“marcha de carnaval”.
Reexposição do tema
antes do Animé.
Ostinato-clima extraído
do motivo inicial da
canção folclórica.
Linhas-temas
1º tema (e suas
variações) e canção
folclórica.
1º tema (e suas
variações) e canção
folclórica
1º, 2º e 3º temas
Melodias inicial e a
indígena
Mokocê-cê-maká.
Canção folclórica
O boisinho (sic) de
chumbo
O passarinho de pano O ursozinho de algodão O lobosinho de vidro
Melodias
folclóricas
“Olha o passarinho
dominé”
“Carneirinho, Carneirão”
Melodias
pseudofolclóricas
Melodias
construídas com
elementos dos
ostinatos
Tema em A, C e D
(síncopes e cromatismo
no contralto, do
ostinato-clima).
Melodias
construídas com
motivos das
canções folclóricas
ou
pseudofolclóricas
Contralto de A (em b) Em f e baixo de D.
Linhas-temas
Em A, B, C, D e E.
Tema de B
Tema de B. Tema de b, b’, soprano de e.
Capítulo - Considerações finais: Síntese da análise comparativa entre as cinco
gravações da Prole do bebê n.º 2.
Os quadros das recorrências composicionais no capítulo foram extraídos das
análises musicais e das performances apresentadas no 3º. Mostram características
próprias da linguagem de Villa-Lobos na década de 20 que cada intérprete,
necessariamente, deve, ou pelo menos deveria, ter incorporado em sua performance,
razão porque foram apenas indiretamente tratados neste capítulo.
Observando o desempenho de cada um dos pianistas na Prole nº2, em que pese
minha convicção da importância da imaginação e da criatividade, associadas ao domínio
do instrumento e ao conhecimento musical na interpretação pianística, podemos chegar
à evidência de que todos os cinco pianistas são profissionais competentes e, como
observado, cada um deles destaca com maior ou menor sensibilidade e competência
,
os
aspectos apontados pelos indicadores dos quadros.
Alessandra Garosi, a meu ver, apresentou a gravação mais interessante da
coleção
,
resultado de suas qualidades imaginativas e de seu humor; de seu adentramento
no mundo infantil e da capacidade de comunicar suas reminiscências; de sua maneira
particularmente charmosa de lidar com o tempo (fazendo-o muito flexível através das
variações de agógica e rubatos sutis); do uso econômico do pedal (sem prejuízo da
manutenção das harmonias ou condução dos baixos), da tendência ao toque desligado
(sem dispensa do legato, sempre que necessário) e da escolha de articulações nem
sempre escritas. Suas características em relação à produção sonora também a vinculam
ao pianismo contemporâneo da obra. Sua interpretação do ciclo é memorável por que
dentre todas as comparadas, ela foi a que mais imaginou, criou e surpreendeu.
Apesar de ter estreado a obra, Aline Barentzen parece não ter se identificado com
a sonoridade da música de seu tempo
74
. Tem um toque, em geral, leve, fazendo discreto
realce dos acentos. Tira pouco proveito das variações de andamento e de agógica; sua
paleta de intensidades parece pouco matizada, não se percebendo diferenciações nítidas
74
Nos indicadores dos quadros comparativos das gravações não se encontra o quesito sonoridade, pois a
apreensão da sonoridade geral de cada pianista, aconteceu após as várias escutas do ciclo, bem como
após o preenchimento de todas as tabelas. Portanto, o som geral que cada um confere à respectiva
interpretação é um produto de conclusão do trabalho e não um indicador.
na dinâmica. O pedal freqüentemente é excessivo, por vezes turvando a clareza das
vozes e estratos. A pianista não se preocupa em construir relações entre as idéias
musicais e a titulação das peças e os climas são elaborados com frágil criatividade e
pouco humor, não trazendo reminiscências da infância. No entanto, cabe registrar sua
magnífica execução de O passarinho de pano.
Ana Stella-Schic embora conheça em profundidade a obra de Villa-Lobos para
piano, não está livre de seu gosto pessoal. É uma pianista afeita ao repertório
contemporâneo, o que, com freqüência se percebe em seu toque profundo, por vezes
pesado e percussivo, na ênfase nos acentos e valorização das dissonâncias. Equilibra
alguns momentos de virtuosismo com outros de grande expressividade. Suas variações
de agógica são discretas, contendo o fluxo do movimento nas peças mais lentas e
liberando-o nas mais rápidas. Sua paleta de intensidades é rica, explorando com
competência as gradações de dinâmica. O pedal é, muitas vezes excessivo, perturbando
a inteligibilidade dos estratos sonoros e da polirritmia. Apesar de nem sempre enfatizar
os elementos descritivos, em algumas peças faz clara relação entre as idéias musicais e
os títulos das peças. Contudo a construção dos climas, por vezes, não é suficientemente
definida ou talvez comunicada de maneira pouco clara. Suas qualidades pianísticas são
evidenciadas na execução magistral de O boisinho (sic) de chumbo.
Em sua gravação da Prole nº 2, Sônia Rubinsky mostra qualidades que são
constantes em toda a performance da obra. Seu som é profundo, cantado, aveludado,
raramente percussivo, o que a aproxima do piano romântico. Observa cuidadosamente
as indicações da partitura referentes às variações de andamento, agógica e acentuação.
O pedal é sempre adequado e por vezes parcimonioso, o que torna claros as polirritmias
e os estratos sonoros ou vozes. Consciente da riqueza dos elementos descritivos do ciclo
e preocupada em comunicá-los, aproveita os efeitos onomatopaicos e cria climas
alegres, bem humorados, leves, jocosos e com reminiscências da infância, assim como
alguns profundamente introspectivos e intimistas ou vigoroso, porém sem
agressividade. Suas qualidades pianísticas são evidenciadas na excelente execução de O
camundongo de massa.
André-Marc Hamelin é o pianista onde as qualidades de virtuose se manifestam
inequivocamente. Seu domínio do instrumento se manifesta no controle das variações
de agógica e intensidade, observadas criteriosamente, na diferenciação dos estratos
sonoros e na execução brilhante de peças ou passagens onde a velocidade é exigida, a
qual, aliás, ele exagera, embora diferencie os andamentos com cuidado. A acentuação
quase sempre é enérgica e brilhante, realçando a melodia ou valorizando as
dissonâncias. O uso do pedal é abundante, por vezes obscurecendo a clareza dos estratos
sonoros. Não parece preocupado em evidenciar os elementos descritivos nem,
tampouco, se deixa levar pelas reminiscências da infância. Cria climas contrastantes e
igualmente bem elaborados, ambientes impetuosos, percussivos, selvagens,ou
misteriosos, intimistas e filosóficos. Dentre suas performances, destacamos O lobosinho
de vidro e O gatinho de papelão.
A análise dos quadros comparativos das cinco interpretações, bem como das
sínteses apresentadas nas Considerações finais, chama a atenção para o fato de que
muitos dados são coincidentes. No entanto, as interpretações são bastante diferentes; é o
tipo de relação criada pelos pianistas, entre os diversos indicadores, que responde pela
diferença. Ressenti-me, no entanto, da impossibilidade de captar e precisar sutis
gradações de andamento, agógica, intensidade, articulação e tipo de toque, pois exigem
instrumentos de precisão.
Mas a análise dos quadros bem como das nteses, também foi reveladora quanto
à imaginação e fantasia do intérprete. Garosi, algumas vezes não seguindo
rigorosamente o texto, insuflou a obra com surpreendente charme e originalidade, em
função de sua criatividade. Talvez Villa-lobos se espantasse com o sentido que ela deu
às noves peças. Concordando com o posicionamento filosófico de Gadamer
75
, citado no
primeiro capítulo, observei, nesse estudo, a “fusão de horizontes”, passado e presente,
autor e intérprete juntos, construindo novos significados. Ficou evidente o quanto a
natureza do ato interpretativo é aberta, desde que embasadas, podem ser diferentes, mas
válidas, embora dependentes do gosto e da cultura da época.
A análise das cinco gravações contribuiu muito para a montagem de minha
própria performance do ciclo.
Com Barentzen aprendi que uma pedalização quase sempre generosa em uma
peça longa, pode tornar sua audição bastante cansativa. Percebi também que o fato de
um instrumentista ter recebido conselhos do compositor da obra não assegura uma
75
Gadamer, apud ABDO, ps.17 e 18.
interpretação interessante
;
na verdade, imaginação e criatividade são mais decisivas
para a realização de interpretações marcantes.
Ouvindo Schic aprendi que contrastes de andamento e dinâmica entre peças de
um longo ciclo como essa prole, podem prender a atenção do ouvinte. A seqüência dos
caráteres bem definidos em cada uma das nove peças manteve minha atenção em toda
performance do ciclo.
A gravação de Rubinsky tornou evidente para mim, o quanto o equilíbrio, a
fidelidade às indicações da partitura e a competência técnica de um instrumentista,
auxiliam o ouvinte no entendimento de uma obra complexa como a Segunda Prole.
Garosi, minha pianista preferida, fez-me perceber a importância da criatividade e
o quanto o manejo flexível da agógica e das articulações pode enriquecer uma
interpretação. Depois de ouvi-la e de escrever esse trabalho, sinto-me mais livre para
experimentar e fazer escolhas.
Apesar de bastante impressionada com a habilidade técnica de Hamelin, a meu
ver, o mais virtuose dos cinco, percebi que o excesso de velocidade associado à
sonoridades muito fortes, em uma peça longa, também tornam sua escuta difícil e
cansativa.
A primeira leitura que fiz do ciclo foi descontextualizada e sem o conjunto de
conhecimentos de que ora disponho para tocá-lo. Constato, hoje, que a leitura, como de
hábito, foi cheia de surpresas; descobri efeitos e imaginei os bichinhos, mas, na verdade,
não entendi a obra. Meu foco era alcançar uma interpretação tecnicamente correta e fiel
à notação. Hoje, depois do estudo realizado, entendo que a aspereza de seus acordes é
um traço do modernismo através do qual o autor se refere ao universo infantil com uma
certa dose de ironia, ternura e até mesmo temor. Também fica claro que, combinando
temas folclóricos a uma linguagem moderna e avançada, Villa-Lobos cumpriu com
importantes objetivos da Semana de Arte Moderna de 1922 - rejeitar o academicismo na
música e criar obras de espírito nacional.
A memorização ficou muito mais sólida porque o que antes tinha um significado
emocional e intuitivo forte, agora se tornou consciente, possível de ser verbalmente
interpretado e explicado. A análise contribuiu positivamente para a elaboração de minha
interpretação, pois agregou novos significados aos já construídos.
No caso da segunda Prole, o estudo de seu contexto mostrou que ela teria sido
elaborada ao longo de seis anos, recebendo influência das vanguardas contemporâneas
na Paris da década de 20. Mostrou ainda que seus procedimentos composicionais não
estavam associados somente à criatividade do compositor ou ao contexto social do Rio
de Janeiro, mas também ao que estava acontecendo com a arte em Paris nessa época,
levando-me a valorizar a força rítmica da obra, a aspereza de suas harmonias e a
projetar, pela diferenciação de planos sonoros, a riqueza de suas texturas.
A orientação que Villa-Lobos deixou para Schic (1989, p.114) a respeito do
pedal e da hierarquia entre as diversas idéias musicais superpostas foi-me valiosa,
contribuindo para determinar, na interpretação, o que deveria estar em relevo ou em
plano, ou para escolher os timbres dos estratos sonoros de texturas complexas. A leitura
de seu livro, bem como as diversas gravações da obra, mostrando inúmeros outros
ângulos das peças, me fizeram conquistar maior intimidade com elas e entender melhor
e com mais detalhes o que, suponho, o mestre pretendia.
Como dito, a análise das gravações comprovou a plurissemanticidade de uma
obra de arte, e mostrou-me como múltiplas interpretações podem ser válidas. Como
resultado “soltei” mais minha imaginação porque percebi o quanto ela pode dar vida à
música.
a análise das recorrências composicionais me orientou na construção de uma
interpretação que “não force a obra dizer o que não quer ou mais do que quer...”
Escrever esse trabalho levou-me a perceber a razoabilidade do posicionamento
filosófico de Abdo
76
apresentado no primeiro capítulo. A autora legitima a importância
da expressão da pessoa que a interpreta lembrando que o intérprete não deve, no
entanto, colocar-se como centro primeiro das atenções.
Na impossibilidade de saber com precisão, através do estudo analítico de uma
peça e de seu contexto histórico, o que o compositor efetivamente terá pensado, fica
76
(...) Tratando-se de uma relação dialética, na base da qual estão dois pólos orgânicos, constitutivamente
multifacetados, plurissêmicos e inexauríveis, o que, em suma, se pode esperar desse tipo de atividade
[interpretação] é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, a revelação da obra em uma de suas
possibilidades e a expressão da pessoa que a interpreta, condensada em um de seus múltiplos pontos de
vista. Nada é mais falso e absurdo do que esperar coisa diversa, seja desconhecendo a natureza pessoal do
ato interpretativo e pregando uma “reevocação fiel e impessoal, uma réplica, enfim, do significado
concebido pelo compositor; seja ignorando a plurissemanticidade constitutiva da obra de arte e
pretendendo uma única interpretação correta; seja pregando uma execução tão pessoal e original que se
sobreponha à obra, forçando-a a dizer o que ela não quer ou mais do que quer dizer, como se fosse a
pessoa
do executante, o centro primeiro das atenções e a obra um mero pretexto para sua expressão.
(ABDO, 2000, p.23, grifo original)
para o intérprete a necessidade e o dever de sempre interrogar-se e refazer criticamente
sua interpretação, em busca daquela versão em que, reunindo sensibilidade e reflexão,
transmita para o ouvinte, o sentimento de sinceridade e envolvimento afetivo com a
obra.
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MUSICOGRAFIA
MAX ESCHIG & Cia Editeurs, Rue de Rome, Paris, 1927.
DISCOGRAFIA
As gravações de Aline van Barentzen e Anna-Stella Schic, sem dados, foram cedidas
pelo Museu Villa-Lobos
GAROSI, Alessandra:
Título: (H. Villa-Lobos) Children’s world.
Cd n.º: 40007
Emi Label, serie classica
Duração: sem dados
HAMELIN, André-Marc.
Título: A música de Heitor Villa-Lobos
CDA67176
Gravação no Henry Wood Hall, Londres, 6 e 7 de outubro de 1999.
Hyperion Records Ltd, London, MM
Duração: 63:57
RUBINSKY, Sônia:
Título: VILLA-LOBOS: Piano Music, Vol. 2 (A Prole do Bebê, No. 2 / Cirandinhas)
Cd nº: 8.554827
Naxos Label
Duração: 1:06:51
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
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