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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA
JÓE JOSÉ DIAS
EXPANDINDO O OLHAR: DAS PÁGINAS LITERÁRIAS AO CINEMA
a caricatura do Jeca na expressão de Lobato e Mazzaropi
ILHA DE SANTA CATARINA
2007
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JÓE JOSÉ DIAS
EXPANDINDO O OLHAR: DAS PÁGINAS LITERÁRIAS AO CINEMA
a caricatura do Jeca na expressão de Lobato e Mazzaropi
Dissertação apresentada ao curso de Pós-
graduação em Literatura da Universidade
Federal de Santa Catarina como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Literatura Brasileira.
Orientador: Prof. Dr. João Hernesto Weber
ILHA DE SANTA CATARINA
2007
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(folha de aprovação)
Aos meus pais, Jair José Dias e Lindalva
Febrônia Alves Dias, a minha avó, Julieta
Galdino Dias, e em memória de meu avô, Jóe
Dias. Porque a luz não se apaga.
A arte, dizem-nos, não é um espelho, mas um martelo. Ela
não reflete, modela. Ensina-se o manejo do martelo com o
auxílio do espelho sensível que registra todas as etapas do
movimento.
Leon Trotsky
A arte é uma mentira que nos ensina a compreender a
verdade.
Pablo Picasso
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, a Deus. Sem a força maior planejar e edificar um projeto
sólido é uma tarefa mais do que complicada: é desesperadora;
Agradeço também, com muito carinho, aos meus pais, Jair José Dias e Lindalva
Febrônia Alves Dias, que nunca se esquivaram de me proporcionar as condições necessárias
para que eu conseguisse trilhar o caminho sem maiores percalços;
Aos meus avôs maternos, João Marcolino Alves e Febrônia Manoela Alves (In
Memoriam), e paternos, Jóe Dias (In Memoriam) e Julieta Galdino Dias, que passaram aos
meus pais os conceitos básicos de respeito, responsabilidade, humildade e humanidade, que
guiaram meus passos até aqui, e guiarão ainda mais. Sem essas “almas” certamente não teria
chegado “tão longe”;
Aos meus irmãos (Juliano e Amanda), tios e primos, pela colaboração e paciência: às
brincadeiras de infância e à pertinente insistência de todos para que eu nunca desistisse da
caminhada, e aos meus Amigos-família Dario, Gamgi, Gói, Gustavo e Rômulo, companheiros
para a vida toda e de todas as horas.
Aos professores em geral, de dentro e fora da Academia, que contribuíram muito para
a formação de minha personalidade. Dentre esses profissionais ressalto dois: o meu
Orientador, o Professor Dr. João Hernesto Weber, pela atenção, compreensão, conselhos e
paciência, e a Professora Dra. Tânia Regina de Oliveira Ramos, uma grande conselheira e
amiga;
Ressalvo também um agradecimento todo especial a minha namorada, Juliana Cidrack
Freire do Vale, que, mais do que me apoiar e me incentivar, me trouxe nova esperança e me
fez desejar a vida com outros olhos. Sem ela esse trabalho seria mais árduo e doloroso;
Aos meus colegas de graduação e pós. Foram inesquecíveis as reuniões e conversas
regadas a risos e café nos corredores e dependências da Universidade;
Aos funcionários da Universidade Federal de Santa Catarina, em especial a Vice-
Diretora do Centro de Comunicação e Expressão, Lúcia Nassib Maluf Olímpio, a Rosilda e
Valdete (DLLV) e a Elba (PGLB);
Aos meus novos amigos de Fortaleza-CE, que me acolheram muito carinhosamente e
me ensinaram que a vida tem vários e múltiplos ângulos e olhares;
Por fim, a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram de alguma forma para que
esse trabalho se concretizasse. Fica aqui minha saudosa lembrança. Muito Obrigado!!
RESUMO
A construção da imagem e do tipo caipiras, dentro da literatura e do cinema, foi elaborada à
luz de imagens e conhecimentos pré-estabelecidos e estagnados no tempo. A representação de
sua imagem está, ainda hoje, atrelada a um modo de ver externo a sua cultura e corresponde
aos interesses de quem detém o poder. A contingência dessa caracterização guarda máculas
desse embate cultural e de classe entre o caboclo e o senhor de terras, detentor dos meios de
produção. Analisada devidamente a “pluralidade” de tipos caipiras em Monteiro Lobato, na
literatura, e Amácio Mazzaropi, no cinema, o que se é a perpetuação dessa imagem e a
instituição de uma identidade de certa forma anômala do caboclo, o que fez com que fosse
pintado, nos dizeres de Antonio Candido, de maneira bela, injusta e caricatural. Mesmo
buscando a verossimilhança, ambos os autores acentuaram e fizeram retumbar com mais força
e amplitude a marca negativa desse estereótipo, imprimindo-lhe de novo apenas um olhar
piedoso e/ou analítico acerca das condições “paupérrimas” de vida do caipira paulista, sem,
entretanto, irem a fundo em aspectos pertinentes a sua cultura e modo de vida.
Compreendendo os períodos entre 1914 e 1970, o trabalho apresentado faz um passeio pelo
breve século XX, mostrando de que forma acontecimentos como as duas grandes guerras e a
Revolução Soviética de 1917, e suas posteriores conseqüências, por exemplo, foram
encaradas no país, não se esquivando, por certo, de uma pertinente leitura das adaptações da
imagem do caipira nesse período.
Palavras-chave: caipira, identidade, literatura, cinema, Monteiro Lobato, Mazzaropi.
ABSTRACT
The construction of image and of type rednecks, inside of the literature and of the cinema, it
was elaborated to the light of images and pré-established knowledges and stagnated in the
time. The representation of his image is, still today, harnessed it a way of seeing external his
culture and it corresponds to the interests of who have the control. The contingency of that
characterization keeps stains of that cultural collision and of class among the mestizo and the
farmer, holder of production means. Analyzed correctly the “plurality” of redneck type in
Monteiro Lobato, in literature, and Amácio Mazzaropi, in movies, which one see it is the
perpetuation of that image and the institution of an identity in a certain anomalous way to the
mestizo, what did with that it was painted, in Antonio Candido's sayings, of way beautiful,
unjust and caricature. Same looking for the verisimilitude, both authors accentuated and they
made to resound with more force and width the negative mark of that stereotype, printing him
again just a glance merciful and/or analytical concerning the conditions “very poor” of life of
the rustic from São Paulo, without, however, they thoroughly go in pertinent aspects his
culture and life way. Embrancing the periods between 1914 and 1970, the presented work
travels for the brief century XX, showing that it forms events as the two great wars and the
Soviet Revolution of 1917, and their subsequent consequences, for instance, they were faced
at the country, not dodging, for right, of a pertinent reading of the adaptations of the redneck
image in that period.
Keywords: redneck, identity, literature, cinema, Monteiro Lobato, Mazzaropi.
RESPOSTA DO JECA TATU
Catulo da Paixão Cearense
Intérprete: Rolando Boldrin (1989)
Eu sou o Jeca Tatu.
Vancê só sabe de lezes
Que se faz com as duas mão.
Mas porém num sabe as lezes
Da natureza, que Deus
Fez pra nóis com o coração.
Vassuncê é um Senadô,
É um conseiêro, é um dotô,
É mais que um Imperadô,
É o mais grande cirdadão
Mas porém eu lhe agaranto
Que nada disso seria
Naquelas mata bravia
Das terra do meu sertão.
A misera, sêo doto
Também a gente consola.
O orguio é que mata a gente.
Vancê qué ser Presidente...
E eu só quero ser rocêro
E tocadô de viola.
Vancê tem todo o direito
De ganhá cem mir pru dia
Pra mió podê fala.
Mas porém o que num pode
É a inguinorânça insurtá.
A gente, sêo conseiêro
Tá cansada de esperá.
Vancê diz que a gente veve
Com a mão no queixo, assentado
Sem fazê causo das coisa
Que vancê diz no senado.
E vassuncê tem razão.
Se nóis tudo é anarfabeto,
Cumé que a gente vai lê
Toda aquela falação?
Preguiçoso? Madracêro?
Não sinhô, sêo conseiêro.
É pruquê vancê num sabe
O que seje um boiadêro
Criá cum tanto cuidado
Cum tanto amô e alegria
Umas cabeça de gado
E despois, a impedemia
Carregá tudo com os diabo
Em meno de quatro dia.
É pruquê vancê num sabe
O trabaio desgraçado
Qui um homi tem, sêo dotô
Pra incoivará um roçado,
E quando o ouro do mio
Vai ficando embonecado
Pra gente entonce coiê...
O mio morre de sede
Pulo sor esturricado
Sequinho cumo vancê.
É pruquê vancê num sabe
Quanto é duro um pai sofrê
Vendo seu fio crescendo
Dizendo sempre... papai,
Vem me ensiná o ABC.
Pru móde a politicáia
Vancê qué que um homi saia
Do sertão pra vim votá
Em Joaquim, Pedro ou Francisco
Quando vem a ser tudo iguá.
Vancê tem um casarão
Tem um jardim, uma chacra
Tem criado de casaca
E ganha todos os dia
Quer chova quer faça sor,
Só pra falá... cem mir réis...
Eu trabáio o ano inteiro
Somente quando Deus qué
Eu vivo do meu roçado
Me esfarfano cumo um burro
Pra sustentá oito fio,
Minha mãe, minha muié.
Eu drumo em riba de um couro
Numa casa de sapé.
Vancê tem seu otromóve,
Eu pra vim no povoado
Ando dez légua de pé.
O sor teve tão ardente
Lá pras banda do sertão
Que em meno de quinze dia
Perdi toda a criação.
Na semana retrasada
O vento tanto ventô,
Que a paia que cobre a choça
foi pulos mato... avuô.
Minha muié ta morrendo
Só por farta de mezinha...
E por farta de um dotô.
Minha fia que é bonita
Bunita cumo uma frô...
Sêo dotô.. num sabe lê...
E o Juquinha que ainda tá
Cheirando memo a cuêro
E já ponteia a viola,
Se entrasse lá pruma escola
Sabia mais que vancê.
Preguiçoso? Madracêro?
Não sinhô, sêo conseiêro...
Vancê diga aos cumpanhero
Que um cabra, o Zé das caboca,
Anda cantando estes versos
Que hoje lá no sertão
Avôa de boca em boca.
(canta) Eu prantei a minha roça
o tatu tudo comeu
prante roça quem quizé
que o tatu hoje sou eu...
Vassuncê sabe onde tá
O buraco adônde veve
O tatu esfomeado?
Tá nos palaço da corte,
Dessa porção de ricaço
Que fez aquele palaço
Cum o sangue dos desgraçado.
Vancêis tem rio de açude
Tem os dotô da hingena
Que é pra cuidá da saúde...
E nóis, o que é que tem?
Arresponda?
No tempo das inleição
Que é o tempo das bandaiêra
Nóis só tem uma cangáia
Pra levá toda a porquera
Dos dotô puliticáia.
Vancê qué ser Presidente?
Apois seja, meu patrão.
A nossa terra, o Brasí
Já tem muita intiligênça,
Muito homi de sabença
Que só dá pra espertaião.
Leva o diabo à falação.
Pra sarvá o mundo inteiro
Abasta ter coração.
Pros homi de intiligênça
Trago cumigo esta figa
— Esses homi tem cabeça,
mas porém o que é mais grande
do que a cabeça... é a barriga.
Sêo conseiêro... um consêio.
Dêxe toda a birboteca
Dos livro... e se um dia vancê quizé
Passá uns dia de fome
De fome e tarveis de sede,
E drumi lá numa rede
Numa casa de sapé,
Vá passá comigo uns tempo
Nos mato do meu sertão,
Que eu hei de lhe abrir as porta
Da choça e do coração.
Eu vorto pros matagá,
Mas porém oiça premero:
Vancê pode nos xingá,
Chama nóis de madracêro...
Pru que nóis, sêo conseiêro,
Num qué ser mais bestaião...
Inquanto os homi de riba
Só trata de inleição,
Sêo conseiêro hai de vê
Pitando seu caximbão,
O Jeca Tatu se rindo,
Cuspindo, sempre cuspindo,
Com o quêxo em riba da mão.
Eu sei que sou um animá
Eu não sei memo o que eu sô
Mas, porém eu lhe agaranto
que o que vancê já falô,
e o que ainda tem de falá,
e o que ainda tem de inscrevê...
todo... todo... o seu sabê
e toda a sua saranha,
num vale uma palavrinha
daquelas coisa bonita
que Jesus numa tardinha
disse em riba da montanha.
SUMÁRIO
RESUMO....................................................................................................................................6
ABSTRACT................................................................................................................................7
APRESENTAÇÃO...................................................................................................................12
1. OS CAIPIRAS DE LOBATO...............................................................................................31
1.1. VELHA PRAGA E URUPÊS: os estereótipos conservadores do caipira.....................31
1.2. PROBLEMA VITAL e a ressurreição do Jeca sob um outro prisma...........................40
1.3. ZÉ BRASIL: a pré-consciência de classe do caipira lobatiano.....................................49
2. MAZZAROPI E “SEU” JECA TATU: O CAIPIRA REVISITADO NAS TELAS DO
CINEMA...................................................................................................................................61
3. O JECA E A FREIRA: UM DOCE VENENO EM TEMPOS DE DITADURA.................98
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................140
FILMOGRAFIA DE MAZZAROPI.......................................................................................147
ANEXOS................................................................................................................................149
Anexo 1 — Créditos e Frames do filme Jeca Tatu (1959).....................................................i
Anexo 2 — Créditos e Frames do filme O Jeca e a Freira (1967).......................................iv
Anexo 3 — Cenas lobatianas...............................................................................................vii
Anexo 4 — Cenas mazzaropianas.........................................................................................ix
Anexo 5 — Artigos Velha Praga e Urupês..........................................................................xi
Anexo 6 — Almanaque Biotônico Fontoura.....................................................................xxvi
Anexo 7 — Zé Brasil....................................................................................................xxxviii
Apresentação
12
APRESENTAÇÃO
Como analiso no capítulo 1, a seguir, assim que escrito, no mês de novembro do ano
de 1914, o artigo Velha Praga chocou a opinião pública paulistana. Isso porque o então
estreante Monteiro Lobato escreve um texto em que a imagem do caipira, ou melhor, do
caboclo, é pintada contrariamente à sua imagem então em voga. É que anteriormente à
publicação de Velha Praga o caboclo era laudado e superestimado por uma literatura
portadora ainda de padrões estéticos românticos, e que foram desaparecer, em parte, somente
com o advento do Modernismo, em 1922. Enfatizando a fraqueza do caboclo e
menosprezando suas qualidades e capacidades, Lobato, segundo ele mesmo, não faz mais do
que “retificar” a imagem do caipira, estilizada ao extremo.
Em dezembro desse mesmo ano, no dia 23, é publicado um outro artigo, desta vez
intitulado Urupês. Ambos foram escritos para o jornal O Estado de São Paulo e serviram não
somente para polemizar a imagem do caipira, mas também para inserir o jovem escritor
Lobato na carreira literária. Como se verá, Monteiro Lobato não ambicionava apenas extrair
qualquer vestígio de romantismo da imagem do caboclo, retratando-o de maneira quase
naturalista. Sua ambição ia mais além: para o estreante escritor o que estava em jogo não era
apenas o de desejo de “purificar” a imagem perturbadora do caipira, mas também de expor o
subdesenvolvimento de um país semi-arcaico, que se moderniza em partes, nunca
completamente.
Escrito como resposta aos indignados pelo primeiro artigo, Urupês é ainda mais
avassalador em sua crítica ao caipira. Aqui, o caboclo é tido como um parasita, uma qualidade
negativa, que vive às custas da natureza, explorando-a até a estagnação. Neste artigo, todas as
qualidades negativas do caboclo, impressas no artigo anterior, são acentuadas: a marca da
preguiça, a falta de senso crítico do caipira e a sua desconformidade com o meio em que vive
são levados a um extremo inverossímil e caricatural. Nesta primeira versão do Jeca Tatu, o
caboclo paulista não é mais do que uma construção inacabada, no sentido em que ainda não se
constitui como um personagem, mas sua caracterização servirá de base para os estereótipos
posteriores.
Distorcendo a realidade, sempre pelo olhar do outro, Lobato buscou criar um caipira
nacional (já que o caipira era o “Ai Jesus!” Nacional). Pelo viés da sátira, ou simplesmente
pela crítica ferrenha que imprime aos sistemas políticos e produtivos da nação, o seu caipira é
13
construído com uma identidade diversa daquela veiculada até então pela literatura.
Vários críticos e escritores a ele contemporâneos censuraram seus artigos e sua
postura, incondizentes, segundo eles, com o verdadeiro caboclo nacional. Para a literatura
vigente no início do século XX na então pequena cidade de São Paulo, o caipira é tido como
um audaz, um forte e sadio homem brasileiro. Isto é, nesse momento toda a crítica literária se
pauta por um viés nacionalista, muito semelhante ao ideal romântico, no sentido da exaltação
da Pátria.
Por inovarem na estética e no conteúdo é que os artigos de Lobato chocam. Livre do
rebuscamento viciante e não dotada dos períodos longos e desgastados da estética fim de
século XIX, a linguagem desses textos (Velha Praga e Urupês) estão longe de se constituírem
como modelos de seu tempo. Mesmo que relativamente rebuscados, são construídos numa
linguagem sintética e com períodos curtos. Ademais, com exceção de Euclides da Cunha, que
o fez de maneira um tanto diferenciada, é a primeira vez que se retrata, na literatura brasileira,
um homem do sertão fraco, grotesco e desfigurado. O caboclo era visto como um forte, um
obstinado caracterização que o transformava em apenas uma “idéia”, ou seja, uma
imagem, uma caricatura. Essa caracterização, por sua vez, era calcada em ideais românticos e
tendiam à mitificação da figura do caipira
1
.
Nesse sentido, Velha Praga e Urupês rompem com toda uma tradição literária, embora
o seu conservadorismo ideológico. É a primeira identidade do Jeca Tatu, a primeira das três
desenhadas por Monteiro Lobato que serviu, posteriormente, de base ideológica para a
readaptação dessa figura para o cinema, por Amácio Mazzaropi.
E como Monteiro Lobato constrói de fato seu caipira? Primeiramente observando o
caipira real e readaptando-o para as páginas literárias segundo seus ideais. Apropriando-se de
um estereótipo previamente estabelecido, o escritor aplica outros elementos extraídos da sua
observação, buscando acentuar, nesse momento, as qualidades que para o escritor eram
negativas emseu” caipira. E para isso, Lobato se apropria de um discurso de autoridade, que
é amparado pelo fato de o escritor conviver “lado a lado” com o real caipira paulista (Venha,
pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que se fora o fogo da terra lavra
implacável, fogo não menos destruidor devasta nossa mata com furor não menos
germânico
2
).
1
Na origem desse processo, encontram-se, por certo, os romances “regionalistas” de Alencar, como O Gaúcho
e O Sertanejo.
2
LOBATO, Monteiro. Velha Praga. In: Urupês (Obras completas, vol. 1). São Paulo: Brasiliense, 1961, p.269.
14
Em relação ao “outro” (o caboclo), esse primeiro Lobato guarda uma vasta distância,
na medida em que o lugar social de fato e de fala não promove aproximações nem trocas. O
escritor não atenta para o “outro”, para as condições históricas de expropriação e espoliação a
que sempre estiveram expostos os caipiras. Em razão disso, cria um caipira estilizado, avesso
ao “ser real”. “O imaginário construído sobre esse homem povoa a visão que temos dele e, a
partir deste imaginário, passamos a fazer coincidir, como identificação de uma verdade, o ser
real com o imaginado”
3
.
Como se pode observar, nesse momento Monteiro Lobato o caipira sob a ótica do
fazendeiro, do senhor da casa-grande, representante da decadente oligarquia rural brasileira.
Lobato o sertanejo com o bolso, não com os olhos. Baseado por uma ideologia
eminentemente classista, de valorização de uma classe dominante em detrimento de uma outra
dominada, o Jeca dessa primeira fase é acabado e localizado, um títere na pena do escritor,
que o visualiza de maneira unilateral, excluindo-o de seu contexto e posição social.
Em 1918, quatro anos antes da Semana de Arte Moderna, porém quatro anos após os
polêmicos textos Velha Praga e Urupês, reaparece no cenário literário paulista a figura do
caipira lobatiano. Intitulado de Jeca Tatu: a ressurreição, o texto corresponde a uma segunda
personificação do Jeca de Monteiro Lobato.
Embora o ponto de vista com que olha o caboclo paulista seja ainda externo a sua
realidade, ou seja, exterior ao seu modo de ser e pensar, o autor reinterpreta o Brasil segundo
suas aspirações de escritor crítico e combativo. É uma afronta às estruturas nacionais,
saturadas e excludentes (O Jeca não é assim: está assim), que enxotavam o caipira de um lado
para outro e acentuavam ainda mais as contradições existentes no país. É também, de certa
forma, um alerta para o modo de como se pensava a nação: com idéias de fora, não
condizentes com os desejos e a realidade do país.
Em suma, é a consciência, por parte do escritor, das reais condições de vida do
caboclo. Condições alicerçadas também por seculares relações de classe entre dominantes e
dominados, que desde sempre expropriam o caboclo de suas terras, tornando-o uma espécie
de exército de reserva do poder produtivo local. Essa imagem criada alegoricamente do
caipira é fruto dessa disputa de classe. Satirizando-o, ridicularizando-o, depreciando-o, o
Senhorio não fazia mais do que “pôr as coisas no seu devido lugar”. O caipira, então, é um
3
GOUVÊA, Luzimar Goulart. O Homem caipira nas obras de Lobato e de Mazzaropi: a construção de um
imaginário. 145 p. Dissertação (Mestrado) Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de
Campinas, 2001, p.41.
15
conjunto de imagens formadas no consciente coletivo do paulista e do brasileiro em geral.
Escrito de maneira mais didática e, de certa forma, mais alegórica que os textos da
primeira fase, Jeca Tatu: a ressurreição expressa um sentimento nacionalista diferenciado
dos modernistas. Enquanto estes buscam no elemento primitivo sua base para a valorização da
cultura nacional, Lobato não cita esse primitivismo como algo construtivo de nossa
superioridade, mas sim como de nossa fraqueza.
Ademais, esse Jeca é, segundo o que tentarei explicar, decorrência de toda essa visão,
ou melhor, (re)visão identitária nacional, que visava a consolidar e acentuar um caráter para a
nação e para o povo que nela vive. É um modo de pensar o Brasil pelo próprio Brasil, sem ter
que simplesmente acoplar à nossa realidade o elemento externo.
Tratando-se desse Lobato de 1918, o que se quer mostrar é o quão avassalador é para
com as políticas instituídas no Brasil e como essas são representadas por uma linguagem
finissecular. Isto é, como o escritor combate as estruturas econômicas, políticas e culturais
vigentes no país e, concomitantemente, como combate uma forma de pensar e entender a
literatura. Um intelectual que se manifesta avesso ao antigo e ao ultrapassado, mas que não os
despreza de maneira alguma.
Outro fator relevante ainda nessa segunda encarnação do caipira lobatiano é o fato de,
em 1927, ser impresso nas páginas do “Almanaque Biotônico Fontoura”, onde viraria
propaganda contra a ancilostomose e seria difundido no país inteiro. É o momento em que se
consolida, de fato, a figura do Jeca Tatu, tornando-se um dos personagens mais conhecidos da
literatura brasileira.
A partir da década de 1930 o modernismo muda seu foco, dando mais ênfase a
questões ideológicas que propriamente estéticas, embora ambas, segundo Lafetá
4
, estejam
intimamente ligadas. Ou seja, não é possível dissociar completamente estética de ideologia, na
medida em que ao se alterar a estética, está se alterando também o modo como se e pensa
determinada realidade. Os escritores, mais preocupados em debater o país pelo viés social e
não mais estritamente literário, buscam traçar um repertório do Brasil exigido pela época.
O surto de industrialização encabeçado pela revolução de 30 tornou ainda mais latente
a necessidade de se redescobrir o Brasil pelo próprio Brasil. Trata-se de temas relacionados
aos problemas sociais e ao futuro da nação. Há, nesse período, a pré-consciência do nosso
4
LAFETÁ, João Luiz. 1930. A crítica e o Modernismo. 2.ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
16
subdesenvolvimento, no dizer de Antonio Candido
5
. Ou seja, ocorre a maturidade da escola
modernista, agora em sua segunda fase, que se estende de 1930 a, mais ou menos, 1945.
Todavia, se ao mesmo tempo se tem a maturação do Modernismo, tem-se igualmente um
processo de diluição de sua estética. A modernidade agora está no conteúdo e não mais na
forma.
Combatendo igualmente as estruturas nacionais, aparece, em 1947, Brasil, última
representação do caipira lobatiano. Surgindo para atacar o sectarismo político que jogou o
Partido Comunista na ilegalidade, é uma personificação muito mais madura e politizada das
condições de vida do caipira. Mantendo, em parte, a perspectiva adotada em Jeca Tatu: a
ressurreição, Lobato contesta e desafia a “ordem”, enfrentado o modelo capitalista, sem,
contudo, esquecer de associá-lo como fator preponderante para a desgraça do caipira.
Seguindo a ótica proposta pelos “romancistas de 30”, Zé Brasil se insere nesse
contexto como elemento contestador e combativo dos ideais vigentes de produção e relação
de classes. É uma laudação a Luiz Carlos Prestes, em defesa do povo oprimido, e em
detrimento de um sistema capitalista de produção estritamente burguês e excludente. Trata-se,
como já dito, de um estágio de pré-consciência do subdesenvolvimento, segundo Antonio
Candido
6
.
Anos mais tarde, mais especificamente em 1959, entraria novamente em cena a figura
estereotipada do caipira esculpido por Monteiro Lobato. Amácio Mazzaropi, nesse ano,
produzia o filme Jeca Tatu, então inspirado na obra Jeca Tatu: a ressurreição (ou
simplesmente Jeca Tatuzinho), de Monteiro Lobato. Na verdade, Mazzaropi, além de se
basear no texto lobatiano, decalcou seu filme no Jeca Tatuzinho do “Almanaque Biotônico
Fontoura”, imagem do Jeca Tatu propagada largamente pelas cidades e pelo interior
brasileiro, se internalizando no imaginário popular do brasileiro.
Em outras palavras, Amácio Mazzaropi recorre, como fonte primária de seu filme, não
propriamente aos textos literários” de Monteiro Lobato, mas ao texto de Lobato divulgado
pelo “Almanaque Biotônico Fontoura” juntamente com as ilustrações que o acompanham. O
“Almanaque”, nesse sentido, é a mediação entre a literatura “séria” de Lobato e o filme de
Mazzaropi, dedicado, nos créditos, certamente que não por acaso considerando-se o
público-alvo dos filmes —, mas também com justiça, a Monteiro Lobato. Não havia, no
5
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite & outros ensaios. São
Paulo: Ática, 1989.
6
Idem, Ibidem.
17
momento em que foi produzido o filme Jeca Tatu (1959), uma família sequer, nas cidades e
no interior do Brasil, que não conhecesse a figura do Jeca Tatu, propagada pelo “Almanaque”.
Mesmo quem não dominava o código escrito, acabava tomando ciência do personagem por
meio da tradição oral. Mesmo quem dominava a escrita acabava tendo contato com o texto de
Lobato não através do Lobato literato, mas do “Almanaque”. Essa passagem do escrito para o
oral, ou, até mesmo, do escrito para o “Almanaque”, possibilitou a Mazzaropi essa inteligente
“jogada” de se lançar ao cinema, e ao mercado, de maneira independente.
Como Monteiro Lobato, que se aproveita do “Almanaque” para difundir seu
personagem, Mazzaropi se aproveita desse alcance extraordinário do “Almanaque Fontoura”,
e conseqüentemente, da figura do Jeca Tatuzinho, para recriar para o cinema o seu caipira. Os
dois projetos, na verdade, se inserem na indústria cultural, e estão voltados quase que
unicamente para o consumo, independente da função conscientizadora e de saúde pública que
assumiu o personagem de Monteiro Lobato nos “Almanaques”, distribuídos gratuitamente à
população. Isso fica bem claro, no filme, em duas cenas específicas: uma em que o caipira
compra no armazém uma caixa de Biotônico Fontoura e outra em que aparece um galo
trajando calças e botinas, assim como no conto, e no “Almanaque”.
Surgindo para o cinema em 1952, com a produção Sai da frente, Mazzaropi, mais do
que ninguém, soube passar, com o “Jeca”, para as telas do cinema a imagem estilizada do
caipira. Uma imagem calcada em uma trama de representações que faz com que se forme e se
fortaleça uma vasta gama de imagens criadas acerca desse homem. O caipira de Mazzaropi,
assim como todas as estilizações, nada mais é que a formalização do imaginário coletivo
forjado por uma cultura dominante que ridiculariza o caipira, ao mesmo tempo em que aponta
para a sua redenção.
Vivendo em condições de extrema miséria e não se adaptando à jornada de trabalho
regular imposta pelo sistema capitalista, o caipira passa a ser ridicularizado pelos donos do
poder que não vêem nele utilidade alguma. Por ser um tipo relativamente livre, típico do
modo de produção de subsistência, o caipira é “posto no seu devido lugar” pelos senhores do
poder. Além de ser vítima de uma complexa teia de relações sociais, o caboclo de São Paulo e
região é incompreendido por muitos justamente por não se adequar à ordem institucionalizada
pela classe dominante.
Dessa forma, é pintado como um fraco, um indolente, um incapaz, qualidades que o
depauperam enquanto tipo humano e classe social. Representante da classe dominante, o
18
Lobato de 1914 não conseguiu ou não quis ver o caipira como ele o é de fato. Todos os
elementos inerentes a esse estereótipo estão, de certa forma, nos três caipiras lobatianos,
embora tenha-se alterado a ótica em que foram analisados pelo escritor. Assim, se em 14 o
caipira era um, em 18 já era bem outro, embora muito parecido.
Essa diferença entre os caipiras é bem visível e recai no fato de que o primeiro (de
1914) é desenhado enquanto um parasita, inadaptável à civilização, e o segundo (de 1918)
enquanto vítima dela. Mesmo que os estereótipos relativos ao jeito de se portar e vestir sejam
praticamente os mesmos, o que se alterou foi o olhar que o escritor aplicou ao homem do
campo. De parasita a vítima, eis o percurso do primeiro para o segundo estereótipo do caboclo
de Monteiro Lobato.
Surgindo praticamente quatro décadas após o primeiro caipira lobatiano, o Jeca
mazzaropiano não é construído de maneira diversa daquele. Muito pelo contrário. Neste, a
identidade dada ao caboclo é idêntica à daquele. Mesmo com o roteiro baseando-se no
segundo caipira de Lobato, Mazzaropi não recria seu caboclo à luz do Jeca Tatuzinho, como
era, a princípio, de se supor. Ao contrário de Monteiro Lobato, que nessa segunda estilização
recria o Jeca como vítima, o caipira de Amácio de vítima nada tem. No Jeca Tatu de 1959, o
filme, o Jeca é pintado como um preguiçoso, um indolente, um moleirão, que vive às custas
do trabalho doméstico da esposa e da filha, características, como se viu, típicas do Jeca Tatu
de 1914, e que nada, ou pouco, se alinham ao ideal proposto pelo caipira recriado por Lobato
quatro anos depois. A bem da verdade, o caipira de Mazzaropi conserva características tanto
do caipira de Velha Praga e Urupês, quanto do caipira do Jeca Tatuzinho. Tanto é que, a
exemplo do que acontece neste, o caipira do filme de 1959 passa de moleirão a rico, o que não
vem a acontecer, de fato, naquela primeira caracterização lobatiana de 1914.
Em plena década de 50, com o Cinema Novo em voga, Mazzaropi retrabalha as
questões nacionais sob outro viés: não o da contestação pura e simples, reivindicando uma
identidade para o povo, calcada em preceitos revolucionários. Muito pelo contrário. Sua
maneira de contestação quando se pela via do riso, do cinema-comédia voltado
para as massas, sem muito rebuscamento estético. Acontece que, satirizando o caipira,
Mazzaropi acaba detratando sua imagem, já impregnada de preconceitos. Ao invés de diluir o
estereótipo, mostrando os reais problemas que afligem aquele povo, Mazza” reforça o
preconceito pré-estabelecido. Mas não só: enquanto reforça o estereótipo do caipira
19
“indolente”, aponta-lhe uma “saída”, mesmo que compensatória: através da malandragem
7
,
chega à riqueza. Utiliza-se, nesse sentido, de um esquema folhetinesco, em que o personagem,
após passar por uma série de reveses no caso, a miséria e indolência do caboclo —, chega
à vitória.
Todas essas questões relativas aos problemas do caipira são levantadas por Mazzaropi
no filme através do aparente confronto entre o imigrante italiano Giovani e sua fazenda com
empregados assalariados e mecanizada por tratores. Porém, as relações de classe são
amainadas através de um discurso conciliador que põe o caipira de Mazzaropi no mesmo
patamar do imigrante abastado. Ou seja, o fazendeiro não é tratado como o “outro”, o que
indica a inexistência, ou melhor, o amaneiramento da luta de classes na narrativa. Em
substituição a esta, o artista opta por uma saída mais simplista e conservadora. Assim, a luta
de classes é resolvida pela distinção entre o bem e o mal, que gravita pelos personagens,
independente de sua localização na estratificação social. O Jeca ainda é um títere.
Produzido em um momento em que o modelo econômico privilegia a abertura do
mercado brasileiro ao capital externo, Jeca Tatu se mantém alheio aos problemas enfrentados
pela cinematografia nacional. E não à toa, que Mazzaropi, além de resgatar todo um
imaginário coletivo relativo ao homem do campo e ao campo, atraindo assim um vasto
público, já nessa época, para as salas de exibição, que iam assisti-lo para matar as saudades da
terra de origem, cria um sistema relativamente organizado de produção e distribuição de suas
produções.
Dirigidas aos “novos trabalhadores” das cidades, aqueles trabalhadores retirantes,
advindos do interior, ou das regiões mais pobres do país, para trabalhar nas indústrias das
grandes cidades em busca de uma vida melhor, tentando vencer na vida, as produções de
Amácio Mazzaropi resgatam o imaginário romântico e poético do campo, trazendo à tona um
complexo sistema de imagens que se identificavam diretamente com esses novos homens, não
somente por trazerem um caipira eivado de nobres sentimentos”, mas principalmente por
trazerem a imagem de um homem simples que, no final, vence na vida. O caipira de
Mazzaropi significava, nesse sentido, um sopro de alegria e esperança a essa parcela da
população oriunda principalmente do interior do país. Daí seu vasto público, daí seu
reconhecimento enquanto artista do povo, artista das multidões.
7
CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um
sargento de milícias. Edição Crítica de Cecília de Lara. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos
Editora, 1978, p.317-342.
20
Mazzaropi leva pessoas às salas de exibição em tempos em que o cinema vira
“problema de governo”
8
. Pretendendo fortalecer as bases do cinema brasileiro, um grupo de
intelectuais passa a se envolver em uma luta político-teórica que consiste também em
qualificar o cinema como indústria. Com ideais herdados do período varguista e com a
incipiente industrialização decorrente da revolução de 30, esses cineastas se propunham
manter e reforçar os desejos de industrialização do cinema. O problema é que o Brasil assistia,
à época de Mazzaropi, a um espetáculo diferente: a abertura do mercado brasileiro para o
capital estrangeiro, propiciado pelo governo Kubitschek (1955-60), inviabilizou qualquer
investimento do Estado para a criação e consolidação de uma indústria nacional de cinema.
Esse projeto seria de fato possível e até viável se a política brasileira fosse a nacional-
desenvolvimentista de Vargas, que visava ao fortalecimento da indústria nacional, com vistas
ao mercado interno, em substituição ao modelo agro-exportador das grandes lavouras de café
e cana de açúcar. Todavia, a política encampada por Juscelino Kubitschek vai na contramão
daquela proposta por Getúlio. D o pouco-caso por parte do poder público para com a
indústria brasileira do cinema.
Em consonância com a política varguista, esboçava-se também um projeto cultural
centrado no resgate literário de escritores da geração de trinta, como Graciliano Ramos,
Drummond, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e o próprio Monteiro Lobato. Surgia um esboço
de concepção de cultura brasileira, alicerçada na elaboração de histórias de fundo nacional.
Nesse sentido, Mazzaropi participou desse movimento, na medida em que criou tipos e
caracteres extraídos da cultura nacional. Seu próprio Jeca é um exemplo. Não por Mazzaropi
ter se preocupado exclusivamente em desvendar as mazelas da sociedade agrária brasileira, ou
da sociedade em geral, mas por ter criado um tipo nacional como o seu caipira. Tipo que, sob
certos aspectos, representou uma resistência ao modelo de produção capitalista no campo.
Ademais, com a criação da PAM-Filmes, em 1959, Mazzaropi comprova também sua
preocupação com a indústria nacional do cinema. Preocupado em produzir e distribuir sua
produção cinematográfica, Amácio, além de participar como protagonista, produzir e
distribuir seus filmes, alavancou uma considerável melhora na indústria cinematográfica
como um todo, desde materiais de iluminação até laboratórios de acabamento dos seus
produtos. Enquanto os intelectuais do Cinema Novo buscavam a criação de uma indústria
nacional de cinema, mantida e financiada pelo estado, porém independente deste, buscando
8
Para esse assunto ver RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e lutas culturais (anos 50, 60 e 70). Em
especial o capítulo 1, que trabalha o período anterior ao golpe militar de 1964.
21
meios para tirar o cinema nacional de sua condição de subdesenvolvido, Mazzaropi
comercializa com sucesso seu produto feito às custas de seu trabalho. Em suma, Mazzaropi,
assim como os chanchadistas do Rio de Janeiro, mostra que cinema brasileiro pode ser um
bom negócio.
Representante mais expressivo da chanchada paulista, Amácio Mazzaropi cria, com
Jeca Tatu, a imagem de um caipira que se cristalizaria. Isto é, em duas décadas de produções
fílmicas, onde o homem do campo é a temática principal, os seus personagens, em termos
físicos e psicológicos, pouco mudam. Mesmo aqueles trejeitos característicos, como o andar,
por exemplo, já presentes antes mesmo de 1959, permaneceriam em seus personagens até o
final de sua carreira, que se em 1980, ano de produção de O Jeca e a égua milagrosa. O
caipira mazzaropiano permanece praticamente inalterável, praticamente idêntico ao primeiro
estereótipo do caipira lobatiano: um parasita, mas com sucesso!
Todavia, não são somente de semelhanças que são criados os dois caipiras, o de
Lobato e o de Mazzaropi. Talvez em decorrência dessa mitificação do campo, visto de uma
maneira romantizada, com paisagens belas e bucólicas, o Jeca de Mazzaropi se torna, em
alguns pontos, mais estilizado que o de Lobato. Isso significa dizer que o caipira de
Mazzaropi sofre algumas alterações em suas linhas gerais, com intenção até decorativa. Um
exemplo disso é o fato de o personagem Jeca, de Jeca Tatu, estar completamente integrado ao
meio em que vive, tornando-se parte desse interior belo e bucólico criado por Mazzaropi.
Outro fator interessante, ainda concernente a esse assunto, é o fato de o Jeca não consumir
uma gota sequer de bebida alcoólica. É como se o álcool fosse despurificá-lo, ou algo
semelhante.
Além do mais, Jeca não deseja nada mais do que já possui. Para o personagem a vida
está boa como está e não precisa mudar. Jeca não tem ambição nem perspectiva de ascender
socialmente; daí a estranheza que causa no espectador a sua abrupta ascensão social. Sem
indagar a respeito das contradições de classes inerentes no campo, Mazzaropi confere ao seu
caipira o status de coronel, tal qual o conferido por Lobato em Jeca Tatuzinho. A diferença é
que, por ser um moleirão do início ao fim da narrativa e não tendo essa injeção de ânimo que
passa a ter após curado da ancilostomose, como o Jeca Tatuzinho da historieta de Lobato,
muito estranha esse desfecho na narrativa fílmica.
O cinema de Mazzaropi é comercial, como é comercial a imagem de seu caipira,
sempre impregnada de um sentimentalismo às vezes exacerbado. Condenado pela falta de
22
ousadia estética, o cinema de Amácio foi de vital importância para a cinematografia brasileira.
Além de fortalecer e criar um público que se acostumou a ir anualmente assistir suas
produções, a PAM-Filmes, por ele criada, mostrou-se uma alternativa viável para uma
possível consolidação da indústria brasileira de cinema. Na verdade não somente a PAM, mas
também outros estúdios, como a Atlântida, no Rio de Janeiro, por exemplo.
Embora não contribuísse para a conscientização das platéias, as chanchadas provaram
que cinema pode ser uma empresa lucrativa. Empresas como a Atlântida, por exemplo,
faturaram milhões com a exibição de chanchadas. Desvinculadas do gosto do ocupante
9
e
contrárias aos interesses estrangeiros, as chanchadas proporcionavam ao espectador um
envolvimento tamanho que sua participação era direta, a ponto de a platéia ser considerada
barulhenta. Dessa forma, tal qual o Jeca de Mazzaropi, a chanchada sugeria uma polêmica do
ocupado contra o ocupante. Neste pela figura do caipira, que resistia aos interesses externos;
naquela pela adoção do malandro, do pilantra, por parte da platéia. Em ambos os casos, o que
está em jogo é, em última instância, uma resistência à cultura dominante, que deprecia a
cultura popular.
Ao contrário dos cinemanovistas, que recorriam ao Estado no intuito de conseguir
ajuda para se manterem, as chanchadas produziram sua própria indústria de cinema. Além do
mais, mesmo não indo a fundo nas críticas sociais, os chanchadistas, de maneira sarcástica,
criticam a xenofilia da classe média e da elite, sempre voltadas para os modelos culturais de
centros como a Europa ou os Estados Unidos. O que a chanchada propõe é um modelo
diferente do que o Cinema Novo convencionou como sendo o modelo a ser seguido. Nesse
sentido, tanto a chanchada carioca, quanto os filmes de Mazzaropi, foram bem sucedidos.
Carnavalizando a sociedade criaram um mundo às avessas
10
.
Nos anos 50 um grupo de jovens começa a discutir a idéia de se criar um cinema
nacional, que construísse uma identidade político-cultural para o povo brasileiro. Essa geração
viria a criar, posteriormente, o Cinema Novo. Seguindo a mesma ótica proposta pelos
modernistas de 1922, esses intelectuais buscaram definir, indo às raízes” do país, as
características e especificidades do povo brasileiro. O ponto de partida era um mergulho na
realidade sócio-político-cultural brasileira. A identidade que buscaram criar para o povo era
eivada de elementos anti-imperialistas.
9
Para este assunto ver: GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. In: Cinema:
trajetória no subdesenvolvimento (Coleção leitura). 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
10
Ver BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. (Tradução de Yara Frateschi Vieira). 4.ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UNB, 1999.
23
Com uma proposta de cinema anti-industrial e combatendo a postura adotada pela
classe média e pela burguesia frente ao jeito americano de ser, o Cinema Novo, em
decorrência de seu acabamento estético mais apurado e das premiações conquistadas em
vários festivais pelo mundo, acabou sendo reconhecido por essas classes, especialmente pela
classe média e pelos principais críticos do país. Antes do Cinema Novo nem se questionava a
existência de um cinema nacional, com exceção das produções da Vera Cruz.
Nesse período, a questão colonial era um dos importantes temas políticos que
dominavam as esquerdas mundiais, juntamente com as guerras nacionais anti-imperialistas.
Assim, problemas da esfera política, não somente no Cinema Novo, mas em várias áreas do
campo artístico, eram transpostos para as áreas culturais. O que se pretendia era, a partir da
arte, discutir os problemas nacionais com o intuito de preparar o povo para a sua libertação.
Esse é um dos propósitos pretendidos pelos cinemanovistas. Outro propósito era a criação de
um cinema anti-industrial, portanto avesso ao modelo de produção implantado pela Vera
Cruz, pelas grandes produtoras das chanchadas cariocas e pela própria PAM-Filmes, de
Amácio Mazzaropi.
Em vista disso, e também em vista de a chanchada parodiar os filmes hollywoodianos,
é que o Cinema Novo fez uma ofensiva contra os chanchadistas. Enquanto os intelectuais do
Cinema Novo buscam se atrelar ao Estado no intuito de formular uma política de apoio ao
cinema nacional, os chanchadistas e Mazzaropi buscam lucrar com filmes de cunho mais
industriais. Essas as principais divergências entre os dois grupos: enquanto um era avesso ao
cinema industrial, com um propósito mais revolucionário e esteticamente mais elaborado, o
outro, dentro do propósito da indústria cultural, fazia filmes para multidões. O próprio
Mazzaropi, questionado se era ou não a favor do Cinema Novo, afirmaria:
Não, eu não tenho nada contra ele. acho que a gente tem que se decidir: ou faz
fitas para agradar os intelectuais (uma minoria que não lota uma fileira de poltronas
de cinema) ou faz para o público que vai ao cinema em busca de emoções diferentes.
O público é simples, ele quer rir, chorar, viver minutos de suspense. Não adianta
tentar dar a ele um punhado de absurdos: no lugar da boca põe o olho, no lugar do
olho põe a boca. Isso é para agradar intelectual.
Ainda na mesma entrevista, e sendo indagado se tem raiva dos intelectuais, continua:
E tenho mesmo. É fácil um fulano sentar numa máquina de escrever: “Hoje estréia
mais um filme de Mazzaropi. Não precisam ir ver, é mais uma bela porcaria”. Mas
24
não explicam por quê. Talvez com raiva pelo fato de eu ganhar dinheiro, talvez por
acreditarem que faço as fitas para ganhar dinheiro. Mas não é verdade, porque o
maior de todos os juízes fugiria dos cinemas se isso fosse verdade – o público.
11
Todavia, essas diferenças foram amainando com o tempo, a ponto de os intelectuais do
Cinema Novo reconhecerem a importância que teve a chanchada, e também Mazzaropi, para
o cinema brasileiro, inclusive para a formação de um público, principal problema enfrentado
pelos cineastas do Cinema Novo. Aliás, alguns elementos estéticos usados pelas chanchadas
foram, posteriormente, incorporados aos filmes produzidos por essa geração.
A partir de novembro de 1966, com a criação do instituto Nacional de Cinema (INC),
o cinema nacional passa a ter um caráter muito mais industrial que outrora, no sentido de
investimentos governamentais com vista a financiar uma indústria cinematográfica brasileira.
É que o governo ditatorial pós-64 passa a investir maciçamente na produção local, ficando a
cargo do novo órgão a administração e a regulamentação de normas e recursos que
viabilizassem a produção de filmes e o controle quase que total do cinema brasileiro.
Com os recursos oriundos do INC o cinema brasileiro atingiria o status de indústria e
poderia enfim alcançar o nível estético almejado pelo Cinema Novo não fosse essa indústria
voltada para o consumo imediato. Isso porque esse incentivo financeiro destinado à criação de
uma indústria brasileira de cinema surgia num momento histórico diferente daquele em que o
Cinema Novo aparecera enquanto corrente estética e ideológica.
Assim, o incentivo financeiro proporcionado pelo INC foi aplicado com o intuito claro
de injetar capitais de empresas estrangeiras (empresas cinematográficas hollywoodianas) na
produção cinematográfica brasileira. O intuito, nesse momento, é um só: reforçar a indústria
de cinema local, acrescentando-lhe um novo vigor técnico, sem, contudo, tocar nos interesses
das produtoras estrangeiras, interessadas em manter seus lucros estáveis.
Essa postura político-cultural encabeçada pela Ditadura Militar e pelo INC foi o
estopim de uma guerra ideológica entre o Estado e um pequeno setor da intelectualidade
cinemanovista, representada, principalmente, pelas figuras de Glauber Rocha e Luiz Carlos
Barreto. Isso porque esses intelectuais se engajam numa luta contra o estatismo
cinematográfico e cultural implantado pelo aparato governista ditatorial, preocupado tão
somente em controlar os meios de comunicação e culturais capazes de dialogar com as massas
populares.
11
SALEM, Armando. O Brasil é meu público (entrevista com Mazzaropi Veja, 28/01/1970), p.5. Disponível
em: <http://www.museumazzaropi.com.br/sucesso.htm>. Acesso em: 07 de julho de 2006.
25
Como saída a esse projeto cultural do INC, os cinemanovistas lançam um outro
projeto como saída para acabar com o subdesenvolvimento do cinema brasileiro: uma
indústria de cinema financiada sim pelo Estado, porém independente deste. Como se verá no
capítulo 3 deste trabalho, o objetivo desse projeto é criar um cinema engajado, empenhado em
dialogar com as massas e “educá-las”.
Desejava-se, por parte dos cinemanovistas, criar uma indústria cinematográfica
desalienante e nacional, com base ainda no projeto populista de substituição de importações e
calcado na indústria nacional. Com o golpe de abril de 1964 e com a institucionalização de
uma ditadura militar, o cinema, que até então passava esquecido pelas políticas governistas,
passa a ser financiado. O paradoxo é que, nesse momento, com a indústria adquirindo um
status de produto e passando a ser um artefato de consumo, e não um mecanismo educacional
que visasse a suprir ou amenizar a carência cultural do povo, essa proposta cultural do
Cinema Novo se tornava ainda mais utópica.
Nesse contexto turbulento é que Mazzaropi produz, em 1967, o filme colorido O Jeca
e a Freira. Sendo uma produção mal acabada, com vários problemas de edição, tais como
cortes abruptos entre uma cena e outra, transformando o filme num emaranhado quase que
esparso de cenas avulsas, o filme é válido mais pela crítica que imprime, mesmo que
indiretamente, à ditadura militar, do que por questões técnicas e estéticas propriamente ditas.
Mesmo porque nunca foi intenção de Mazzaropi produzir um cinema politicamente engajado.
Ademais, qualificar como “boa” uma produção artística pelo critério puro e simples de seu
engajamento político, seria limitá-la a mero reflexo da sociedade em que foi produzida.
Assim, mesmo não se preocupando em questionar diretamente o regime ditatorial pós-
64, as produções de Amácio Mazzaropi do período compreendido entre 1964 e 1968
demonstram uma certa astúcia, por parte do diretor e produtor “Mazza”, em captar, para a
lente de sua câmera, alguns dos elementos sócio-político-culturais de seu tempo. Dessas
produções, talvez a que mais claramente abarque esses elementos seja O Jeca e a Freira,
produção analisada neste trabalho.
Inserido numa ótica comercial, ou seja, em consonância com os propósitos da indústria
cultural, o filme O Jeca e a Freira é, como praticamente toda a obra de Mazzaropi, uma
expressão artística avessa à acadêmica, à produção intelectual. Seguindo sempre esse
parâmetro, Amácio produziu filmes que dialogavam diretamente com o imaginário de uma
parcela da população brasileira, em especial aquela oriunda do interior, que se transferiu para
26
as grandes cidades atrás de uma vida melhor. Talvez por isso os personagens de Mazzaropi
pouco evoluíram em termos psicológicos. Tendo descoberto uma fórmula, ou melhor, tendo
readaptado, para o cinema, uma fórmula que já havia dado certo com Monteiro Lobato,
quando escreveu Jeca Tatuzinho para o “Almanaque Biotônico Fontoura”, Mazzaropi não fez
mais do que reproduzi-la para todos os seus filmes posteriores.
Em O Jeca e a Freira não é diferente. Seu caipira, aqui, pouco muda em termos
psicológicos se comparado ao caipira de Jeca Tatu, de 1959. Inclusive no que diz respeito à
visão conservadora com que é mostrada a figura do caboclo. O caipira, em última instância,
ainda continua um títere, manipulado não mais pela máquina de escrever do escritor, mas
pelas lentes do diretor e produtor.
No entanto, em O Jeca e a Freira, o caboclo vive em um ambiente em que o tempo e
o espaço são meio turvos, ou seja, não andam em sincronia. Tanto que os personagens muitas
vezes se assemelham mais a caricaturas jogadas a esmo num ambiente do interior paulistano,
deixando ao espectador da trama a dúvida, inclusive, da época em que se passa a narrativa. Do
figurino dos personagens aos tipos humanos, como os capangas dos coronéis, mais
semelhantes a cowboys hollywoodianos do que a sertanejos propriamente ditos, tudo se
mistura, de maneira desuniforme. Espaço e tempo são “borrados”, turvos: uma mistura
nada harmônica de elementos que acaba por descaracterizar a figura do próprio caboclo,
também, de certa forma, contaminado por esses elementos externos. A única certeza de que o
espectador pode ter, ao assistir ao filme, é que a narrativa se passa em uma fazenda onde
existem escravos. Mais nada. Nem mesmo a aristocracia se porta e se veste como tal, pois o
figurino desses personagens se parecem muitas vezes com os figurinos de caracteres
mexicanos de filmes de far-west.
Do ponto de vista técnico, O Jeca e a Freira é um filme assaz limitado. O que o torna
de fato diferenciado de boa parte da filmografia de Amácio Mazzaropi é o ataque sutil e
camuflado, porém até certo ponto despretensioso, que lança sobre a ditadura militar.
Despretensioso pelo simples fato de que a fórmula é a mesma de outros filmes: paisagens
bucólicas, deixando desnudar um interior semiparadisíaco que se confronta com o ambiente
prosaico das cidades; atores da moda; trama adocicado, dentre outros. Ademais, dentro dessa
atmosfera de crítica ao regime ditatorial, o coronel Pedro representa a ordem e a família de
Sigismundo a desordem. Isto é, Pedro representa a figura máxima do poder instituído,
enquanto a família do caipira a resistência a este.
27
Mesmo após o golpe de 1964, uma elite intelectual de esquerda continuou atuando no
intuito de “educar o povo” para uma possível revolução. Em decorrência disso, o governo
ditatorial militar se esforçou em manter afastada dos setores populares essa “cultura
esquerdizante”, sempre contrária aos seus interesses. Essa disputa ideológica, que foi
encerrada somente a partir da derrota dos movimentos populares de 1968, culminou na
criação do polêmico INC.
Independente da disputa de projetos culturais entre o Instituto Nacional de Cinema e
intelectuais mais engajados do Cinema Novo, como Glauber Rocha, a verdade é que
rapidamente a maioria dos intelectuais do movimento aderiram ao instituto por se tratar, em
última instância, de um órgão financiador do cinema brasileiro. Antes do INC nada, ou
praticamente nada, existia em termos de um projeto estatal que visasse a incentivar a
produção cinematográfica brasileira. Pelo contrário, tudo o que se tinha pensado em termos de
uma política, por parte do Estado, mais voltada para a implementação e o fortalecimento do
cinema nacional, esbarrava ou no descaso do governo ou nos interesses de empresas
estrangeiras em manter a produção no Brasil escassa. O que o INC fez foi juntar as duas
pontas do fio: o Estado passaria a controlar a cultura, sem deixar de cooperar com os
interesses de empresas estrangeiras, entendendo-as como hollywoodianas.
Todavia, mesmo com o apoio e o incentivo do novo órgão, somente em 1969, mais de
três anos após a sua criação, surge, dos quadros do Cinema Novo, um longa metragem de
sucesso de renda e bilheteria: o famoso Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade
conseguiria aliar, em seu longa, uma postura cultural com uma proposta mercadológica, como
propunha o INC. Aliás, Macunaíma passaria a ser considerado um marco do novo cinema
brasileiro. Se anteriormente o Cinema Novo se apegava a uma proposta cinematográfica
esquerdizante, com vistas a educar as massas e a desalienar a nação, agora o foco muda.
Assim, a partir de 1969, o “filme ideal” teria que ser como Macunaíma: filme de boa
qualidade e capaz de atrair público para as salas de cinema. Eis a tônica de toda a década de
1970.
Totalmente isento de uma política cinematográfica, no sentido de pensar e preparar o
cinema brasileiro para o futuro, o INC praticamente inicia uma nova etapa do cinema
brasileiro, na medida em que força o Cinema Novo a mudar o seu foco, a sua política para o
cinema, eximindo-se do seu “compromisso com o povo”. Com uma produção menos
politizada e mais voltada para o mercado aberto pela indústria cultural, o Cinema Novo, com
28
exceção de alguns intelectuais, se aproxima do modo de fazer e pensar cinema proposto por
Mazzaropi. Praticamente despreocupado em desnudar as mazelas do país, assim como
Amácio, produz um cinema-produto, feito para atrair vasto público para as salas de cinema.
No caso mais específico de O Jeca e a Freira, por exemplo, a crença em um mundo
justo e livre, igual para todos, perpassa toda a narrativa. Esse mundo maquiado, numa época
em que se vive uma crise de identidade nacional, é reflexo dessa suavização social comum em
Mazzaropi. Nesse sentido, as relações sociais no filme embora existentes são relegadas
a um segundo plano. Tanto que Sigismundo transita não sem constrangimento, é claro
de uma esfera social a outra sem maiores problemas. Somente Pedro, Sigismundo e Floriana,
conforme se verá, têm suas posições devidamente firmadas na esfera social. Os demais
personagens poderiam ser tidos como “fracos”, desde que se adote esse parâmetro como
referência para a caracterização psicológica de um personagem.
Persistindo ainda nesse embate social, caracterizado no filme pelas figuras centrais de
Floriana, Sigismundo e Pedro, ver-se-á que ele não se entre todos os personagens.
Fernando (filho do casal caipira), por exemplo, namora Sônia, filha do coronel Orlando, o
futuro aliado da família caipira na disputa direta por Celeste, filha legítima de Sigismundo e
Floriana. Otávio, filho do mesmo coronel e ciente da origem humilde de Celeste, apaixona-se
por ela e ajuda o Jeca a se aproximar da filha. É desse trânsito social que Sigismundo e
Floriana alcançam êxito na investida contra o coronel ditador Pedro. Não fosse o exército do
coronel Orlando a família do caipira jamais resgataria a guarda da filha. Aliás, passando-se
esse conflito entre exércitos de capangas armados para a situação da época, Mazzaropi não
estaria mais do que dando uma saída para se combater a ditadura: uma revolta armada. Como
se verá no trabalho, isso ocorre, embora de maneira não intencional, até mesmo porque não há
intenção, por parte do artista, em fazer um cinema engajado. Um “Viva a Liberdade!”,
cantado por um personagem coadjuvante no desfecho da narrativa, corrobora esses
argumentos.
Como se vê, a vasta obra de Mazzaropi se situa em um período conturbado da história
nacional. Período confuso e turbulento e de proibições e prisões de intelectuais e mortes de
vários militantes políticos que combatiam o sistema. A atmosfera dos filmes de Mazzaropi
deixa-nos descortinar, apesar de tudo, um outro mundo, menos turbulento que a realidade
político-social que vivia o país.
Essa contextualização histórica pretendida no trabalho não servirá, contudo, para
29
indicar as veredas que supostamente Mazzaropi deveria ter ou não trilhado, mas pura e
simplesmente servirá para situar e localizar a produção de Amácio, mostrando os caminhos
trilhados pelos intelectuais e artistas do período, contrários, muitas vezes, à sua concepção
cinematográfica. Esse embate provocaria uma disputa no campo ideológico que se estenderia
por boa parte de um dos períodos mais produtivos do cinema brasileiro.
1. Os Caipiras de Lobato
31
1. OS CAIPIRAS DE LOBATO
Caipira é uma denominação tipicamente paulista. Nascida da primeira miscigenação
entre o branco e o índio, “Kaai'pira”, significa, na língua indígena, “o que vive afastado”,
(“Kaa” mato) (“Pir” corta mata) e (“pira” peixe). Também o cateretê, inicialmente uma
dança religiosa indígena, na qual os índios batiam palmas, seguindo o ritmo da batida dos pés,
deu origem à “catira”. A catira passou a ser um costume de caboclos, antigamente chamados
de cabolocos”. Com o avanço dos brancos em direção ao Mato Grosso e Paraná a cultura
caipira foi junto, levada principalmente pelos tropeiros. Hoje o termo “Caipira” generalizou-
se sendo para o citadino uma figura estereotipada. É a caracterização dessa generalização,
criada e recriada por Monteiro Lobato, que se pretende trabalhar no presente capítulo.
1.1. VELHA PRAGA E URUPÊS: os estereótipos conservadores do caipira
(...) cada pessoa não é, para nós, nada mais do que
essa estrutura ou esse modo de estar no mundo.
(Maurice Merleau-Ponty)
Em novembro de 1914, o então estreante escritor Monteiro Lobato lança, no jornal O
Estado de São Paulo, um artigo intitulado Velha Praga. Nele, o escritor e fazendeiro busca
“retificar” a imagem do caipira paulista, tido até então como audaz, forte e sadio: construções
herdadas do Romantismo e que perduraram, em larga escala, até 1922, quando eclode a
Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Neste primeiro artigo, o escritor enfatiza a fraqueza
do “caboclo”, menosprezando suas qualidades e capacidades. É uma visão preconceituosa,
calcada em uma percepção urbana, detratora do mundo, modo, vida e cultura caipiras.
No mesmo ano, e ainda n’O Estado de São Paulo, o autor publica, em 23 de dezembro
de 1914, um outro artigo, desta vez intitulado Urupês. De maneira ainda mais chocante e
avassaladora, o texto amplia largamente a imagem pejorativa do caboclo paulista,
imprimindo-lhe com mais vigor a marca da preguiça, a falta de senso crítico e estético e a
aptidão para adequar-se à lei do menor esforço”, aquele que vive às custas da natureza,
explorando-a e sufocando-a até a estagnação total. Nascia a primeira versão do Jeca Tatu, um
dos personagens símbolos mais bem construídos e acabados da obra de Monteiro Lobato.
Com uma visão distorcida da realidade, baseada não somente numa “observação de
32
fora” sua, mas também num estereótipo já previamente fincado, Lobato pretende, às vezes por
meio da sátira, às vezes pela crítica ferrenha que imprime aos sistemas políticos e produtivos
da nação, criar um caipira nacional com uma identidade diversa daquela veiculada até então
pela literatura: o seu caipira é construído como um anti-herói.
Observe-se que a intenção dessa primeira estereotipação do Jeca é, nas palavras de
Lobato, de caráter explicitamente literário, oriunda de uma vontade de retificar a imagem do
caboclo forte, sadio, audaz, construções herdadas do Romantismo. Era contestação do
“caipira” romântico então em voga, mas também a perpetuação, em última instância, de um
estereótipo e uma identidade previamente estabelecidos. Como exemplo, indica-se uma carta
enviada a seu amigo Godofredo Rangel, datada de 20 de outubro de 1914, vinte e três dias
antes da publicação de Velha Praga. Nela o escritor enfatiza a sua intenção de construir um
caipira profundamente nacional, sem laivos sequer remotos de qualquer influência européia:
Rangel, é preciso matar o caboclo que evoluiu dos índios de Alencar e veio até
Coelho Neto.(...) A nossa literatura é fabricada por sujeitos que não penetram nos
campos por medo dos carrapatos.
12
Nesta primeira estratificação do caipira está, em suma, a pena do fazendeiro capitalista
que o retrata segundo suas aspirações, seus anseios, prejudicado pelas queimadas intensas em
suas terras, promovidas pelos caboclos.
Nem é preciso enfatizar a dimensão que tomaram os artigos de Lobato. Chocaram toda
a opinião pública, a ponto de vários críticos e escritores a ele contemporâneos censurarem
seus artigos, acusando-o de não nacionalista. Isso porque toda a crítica literária vigente se
pautava, nesse momento, por uma estética parnasiano-formalista, atravessada por um filão
nacionalista, que ainda tinha muito a ver com o Romantismo, no sentido da exaltação da
Pátria.
Por inovarem na estética e no conteúdo é que chocam. Livres do rebuscamento
viciante da linguagem do tempo, estes textos (Velha Praga e Urupês) estão longe de se
constituírem como modelos de seu tempo. Embora relativamente rebuscados, são construídos
numa linguagem sintética e com períodos curtos. Ademais, é a primeira vez, na literatura
brasileira, que se retrata um fraco, grotesco e desfigurado homem do sertão. Antes desses
artigos, o caboclo era visto como um forte, um obstinado figura que proliferou e se
12
LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre, Tomo (Obras completas, vol.11). São Paulo: Brasiliense, 1959,
p.364.
33
deturpou com os ideais românticos, que tendiam à mitificação e à valorização da figura do
caboclo.
Porém, Monteiro Lobato o caipira com um ponto de vista de um fazendeiro com
idéias liberais (e, por isso mesmo, exterior ao mundo caipira) numa região decadente do
estado de São Paulo. Monteiro Lobato o sertanejo com o bolso, não com os olhos. O Jeca
dessa primeira fase é acabado e localizado, um títere na pena do escritor, visualizado de
maneira unilateral e excluído de seu contexto e posição social. Lobato acerta na forma, não no
conteúdo.
Trata-se de uma visão um tanto equivocada e arbitrária, pintada, do ponto de vista de
Antonio Candido, “de maneira brilhante, injusta e caricatural”
13
. E não está equivocado
Candido ao afirmá-lo, se partirmos do pressuposto de que o narrador de Lobato imprime, em
sua descrição do modo caipira, uma visão distorcida da realidade, ou seja, baseada numa
observação de fora, alheia aos sentimentos e à realidade do caipira. Daí a caricatura, escrita de
maneira, senão bela, bem trabalhada no contraponto do Modernismo paulista, de
“mitificação” do interior.
Para Candido, em seu Os Parceiros do Rio Bonito, esse modo de ver e pensar o caipira
decorre do fato de o observador seja ele estudioso ou não configurar um olhar (sócio-
político-econômico) urbano sobre a cultura e modo de vida caipiras, fator aniquilador para a
compreensão desse homem brasileiro. Como exemplo comprovador, basta observar-se o quão
rude é Lobato com o caboclo nestes seus dois artigos de estréia. Vejamos, como exemplo
meramente ilustrativo, este trecho extraído de Urupês:
Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras
da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene da tabuinha no
beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao
progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé.
Quando Pedro I lança aos ecos o seu grito histórico e o país desperta estrovinhado à
crise duma mudança de dono, o caboclo ergue-se, espia e acocora-se de novo.
14
Primeiramente, é de se constatar o tom irônico dirigido à figura desse homem do
sertão paulista, um tom que soa a galhofa. É claro que seria um equívoco afirmar que Lobato
escreve linhas como essas baseando-se apenas em “estudos” seus acerca do caboclo para
13
CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito. 3.ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975, p.82.
14
LOBATO, Monteiro. Urupês. In: Urupês (Obras completas, vol.1). São Paulo: Brasiliense, 1961, p.279.
34
usar as palavras do autor
15
. Outros fatores fizeram-no focar o caipira sob esse prisma. Um
deles e nisto insisto diz respeito a ser ele um fazendeiro
16
de Taubaté, região que, já no
fim do Império, encontrava-se em plena decadência, dada a migração da cultura cafeeira para
a zona de Campinas, tornando-se cada vez mais, a região na qual se encontrava a fazenda de
Lobato, insignificante em população e produção, modorrando no vale as “cidades mortas”,
para usar a expressão do próprio autor.
Ademais, o que Monteiro Lobato pretende, no campo literário, é (re)formular uma
identidade do caipira, um tanto quanto estilizada até o momento. Daí a crueldade, a aversão
ao “caboclismo”
17
tão fortemente marcada em Urupês. O escritor alia ao seu projeto literário
um olhar preconceituoso e pré-estabelecido por uma imagem previamente construída.
Dessa forma, buscou criar, na literatura, um caboclo nacional localizado, tipificado e,
por isso mesmo, estereotipado, um caboclo inverso do que então era tido como expressão de
nacionalidade: o caboclo é o “Ai Jesus!” Nacional
18
. Note-se, contudo, o quão diferente é
essa identidade se comparada com a herdada do Romantismo de Iracema e O Guarani, ou dos
romances regionalistas de Alencar. Se Lobato almeja construir uma visão, mesmo que
pautada numa ótica classista, real do caboclo brasileiro, o Romantismo de Alencar e
Gonçalves Dias baseia-se numa valorização de classe necessária para uma nação recém
independente e que precisa mostrar toda sua pujança
19
. É claro que são visões antagônicas,
mas nem por isso “adversárias”, do ponto de vista de classe, mesmo porque Monteiro Lobato
não fez escola, ao contrário dos românticos, que, juntamente com os modernistas, formam os
dois momentos mais decisivos da literatura brasileira, na ótica de Antonio Candido
20
.
Contudo, se não temos nesses dois artigos uma atitude revolucionária no sentido em
15
Estudos de base empírica, mas nem por isso estudos científicos.
16
Todas as referências biográficas a respeito do autor foram retiradas de: Monteiro Lobato: furacão da
Botocúndia. 2.ed. Editora Senac, de Carmen Lucia de Azevedo, Márcia Camargo e Vladimir Saccheta.
17
O indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado. Crismou-se de “caboclismo”. (LOBATO.
Urupês, p.166)
18
LOBATO, Monteiro. Urupês. Op.cit., p.279.
19
Veja-se, a título meramente descritivo, um trecho extraído de Caminhos do romance brasileiro: Ora, esse
quadro tem muito a ver, certamente, com a criação do Estado Nacional brasileiro pelos senhores-de-
escravos, após a independência política e conseqüente implantação do Império sob o domínio das elites
escravocratas. Nesse contexto, Iracema assume a feição que marcaria a fortuna crítica na literatura
brasileira: trata-se da legitimação e laudação do Estado Nacional implantado pela classe dominante da
costa, a quem empresta um passado heróico e lendário. Não somos portugueses, não somos indígenas.
Somos frutos da melhor cepa: filhos de fidalgos portugueses e indígenas heróicos. (WEBER, João Hernesto.
Caminhos do romance brasileiro: de A Moreninha a Os Guaianãs. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990, p.
33)
20
Ver CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: Literatura e sociedade. 7.ed. São Paulo:
Companhia e Editora Nacional, 1985.
35
que o pretendeu o Modernismo
21
, a temos na maneira como foi desenhada a figura do caipira
paulista. Incentivados pelo beletrismo do fim do século XIX, os escritores contemporâneos a
Lobato, ao menos os que estavam em voga, imprimiam aos seus caboclos qualidades heróicas
típicas do Romantismo, levadas a um extremo caricatural e inverossímil. Nos textos desses
escritores o caipira é engajado numa moral romântica, às vezes fruto do meio em que vive, às
vezes não. nos dois artigos lobatianos, estas não são qualidades pertinentes aos textos, ou
seja, o caipira aqui é visto como dissociado do meio em que vive. É um arquétipo do anti-
herói. Ele é fraco, não por causa do meio que o cerca, mas em decorrência de sua preguiça e
indolência. Por outro lado, a natureza não tem influência nenhuma sobre o Jeca. Muito pelo
contrário, este, com sua voracidade apática, é que a transforma em sapezeiro, a destrói,
incapaz que é de viver em harmonia com a natureza que o cerca e o protege:
Vem de sapezeiro para criar outro.
Coexistem em íntima simbiose; sapé e
caboclo são vidas associadas. Este
inventou aquele e lhe dilata os
domínios; em troca o sapé lhe cobre a
choça e lhe fornece fachos para
queimar a colméia das pobres
abelhas.
22
Por isso o caboclo é um fraco, justamente por ter
tudo em mãos e por nada precisar fazer para conquistar
aquilo de que precisa. A propósito deste fato, Antonio
Candido
23
afirma e com toda razão que essa
“preguiça”, tão citada por Lobato e por outros, deve-se
ao fato do caipira não sofrer estímulos nem apoio para
fugir da vida seminômade centrada na economia de
subsistência. É semelhante à conclusão tomada por Lobato em 1918 em sua segunda
reescritura do caipiratratada no próximo subtítulo deste trabalho. Perante o exposto, volta-
se ao tema abordado citando um exemplo:
21
Veja-se, em Lobato, a estrutura e a temática dos textos: ambas assumem papéis diferentes da perspectiva
modernista. O popular, aqui, não é tido como busca de redefinição identitária, nem a escrita é revolucionária
(como no Modernismo da primeira fase); revolucionária é, sim, a figura do Jeca (caipira), no sentido da
inversão de ótica quanto à construção do tipo “caipira”.
22
LOBATO, Monteiro. Velha Praga. Op.cit., p.272.
23
Ver CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Op.cit.
Ilustração 1: Uma homenagem ao
"criador do Jeca, uma estilização de
Monteiro", autor desconhecido
36
Quando comparece às feiras, todo o mundo logo advinha o que ele traz: sempre
coisas que a natureza derrama pelo mato e ao homem custa o gesto de espichar a
mão e colher cocos de tucum ou jiçara, guabirobas, bacuparis, maracujás, jataís,
pinhões, orquídeas.
24
Neste trecho fica evidente a ênfase que o autor ao meio físico em detrimento do
caipira: o caboclo é uma qualidade negativa. Enquanto a natureza se apresenta quase
onipotente, magnífica, o caipira é um fraco a viver às custas daquela. Na visão do autor, o
caipira é incapaz de viver longe do meio físico, dependendo dele e explorando-o até a
degradação, até ao sufocamento, até a morte. O caipira é um parasita, o que, na voz do autor,
representa o mesmo que adepto da “lei do menor esforço”.
Para Candido, “O ponto de partida para se conhecer essa situação deve ser buscado na
própria natureza do povoamento paulista, desde logo condicionado pela atividade nômade e
predatória das bandeiras”
25
. O caipira, segundo o mesmo autor, deve ser estudado sob dois
aspectos que se intercruzam: o bandeirismo como forma predatória e como tipo de
sociabilidade, com suas formas próprias de ocupação, deve ser compreendido como forma de
fusão e ajustamento do explorador português com o primitivo habitante da terra, que o
elemento negro chegaria um pouco mais tarde naquelas regiões.
O que Monteiro Lobato no caipira como prejudicial, Antonio Candido como
elemento estrutural de sua cultura, inadequada, na verdade, às novas forças produtivas de
trabalho que surgem no Brasil no final do Império e intensificam-se no início do século
XX.
É que o caipira, conforme estudos como Os parceiros do Rio Bonito, entre outros, é
decorrência da sua economia seminômade, com base na agricultura de subsistência
26
, não se
adaptando ao modo produtivo em mudança. está o fulcro da questão: Monteiro Lobato não
teve a sensibilidade suficiente para perceber elementos inerentes à cultura do caboclo do
interior paulista, tão entranhada estava a norma de produção vigente em São Paulo, inserida
por uma burguesia essencialmente urbana. Esse ponto de vista transpassa também para a
escrita de Lobato, elaborada em norma culta urbana.
Do lugar em que estava, e pelas intenções pretendidas pelos textos, o escritor não
percebe elementos essenciais e de extrema relevância para a sobrevivência do caipira como
tal. Tudo neste caipira de primeira fase remete à fraqueza, à preguiça e à incapacidade,
24
LOBATO, Monteiro. Urupês. Op.cit., p.281.
25
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Op.cit., p.36.
26
Idem, p.37.
37
inclusive de pensar e discutir. É uma construção lapidada por uma norma culta urbana e
regular, embora muito diferente do estilo vigente na época. Ou seja, a escrita lobatiana é,
nesses textos de estréia, sintética, com frases curtas e desprovidas de figuras de linguagem
batidas. O desprezo pelo rebuscamento exacerbado é igualmente evidente nesses ensaios,
fatores que os fazem não se constituírem em modelos de seu tempo.
Em Velha Praga e Urupês, o “sertanejo” come mal porque é fraco e preguiçoso (Para
comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostar um cabo de foice, fazê-lo noutra
posição será desastre infalível. de ser de cócoras
27
), além de nada produzir, a não ser
pequenos utensílios domésticos e ralas e sujas hortas. O que não corresponde à realidade,
pois, como é sabido, o caipira nutria-se principalmente ao modo dos sertanistas, contentando-
se com um mínimo para não demorar as interrupções de jornada.
É o que corresponderia a um mínimo vital, segundo Antonio Candido
28
, alimentação
apenas o suficiente para não morrer. Mais uma herança dos bandeirantes que, por não
poderem se demorar muito em viagem, espalhavam nos trajetos pequenas plantações de
feijão, milho, mandioca etc., sementes na sua maioria nativas, de conhecimento dos indígenas,
e que não precisavam de cuidados especiais. As próprias construções onde vivem, construídas
para passar pouco tempo, denominadas por alguns de rancho e vistas como fruto da preguiça e
da incapacidade do caipira, são oriundas dessa vida nômade dos bandeirantes:
Tendo conseguido elaborar formas de equilíbrio ecológico e social, o caipira se
apegou a elas como expressão da sua própria razão de ser enquanto tipo de cultura e
sociabilidade.
29
Daí o atraso pintado tão injustamente, por Monteiro Lobato, em seu Jeca Tatu.
Vale lembrar, é claro, que estamos em 1914, numa região decadente do interior
paulista, onde a maioria absoluta é de uma população marginalizada pela economia de
mercado que não dava azo à economia caipira, dotada de técnicas rudimentares de produção
para consumo próprio.
Uma época, na verdade, de transição entre dois períodos: um mais estável e estagnado,
outro mais dinâmico e de estruturas de classes mais definidas
30
. Um período onde o antigo
27
LOBATO, Monteiro. Velha Praga. Op.cit., p.280.
28
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Op.cit., p.48.
29
Idem, p.82.
30
CARONE, Edgard. A República velha (Vol. 1): Instituições e classes sociais. 3.ed. São Paulo: Diefel, [s/d],
p.147.
38
padrão ainda existe, mas não prevalece, e um novo padrão passa a existir, mas não é
dominante:
O surgimento da divisão social do trabalho, conseqüência do desenvolvimento
progressivo das forças produtivas, resulta em mudança das velhas camadas sociais e
o aparecimento de novas.
31
Entendendo estruturas como relações de produção e classe vigentes no país e
superestruturas como o mundo das idéias”, artísticas, jurídicas ou políticas, vê-se o quão
voraz é o ataque ataque que se intensifica, como veremos, nas outras personificações do
caipira às estruturas nacionais. Atacando o modo de produção caipira calcado na vida
seminômade e na economia de subsistência, sistema muito diferente do encontrado na cidade
de São Paulo, por exemplo, Lobato, através da figura do Jeca, ataca, mesmo
despropositalmente, as estruturas nacionais. É o velho e o novo lado a lado, como haviam
percebido outros escritores
32
. Mesmo em São Paulo, o modo de pensar o Brasil com idéias da
Europa, causava um estranhamento nas estruturas nacionais. Para isso, observemos o papel do
movimento modernista aqui e lá (na Europa):
Mais uma vez, vai-se à Europa, em troca de novos padrões estéticos: o simbolismo
europeu, o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo, enfim, a estética do mundo
fragmentado, do caos, da linguagem em crise. Na Europa, essa estética era expressão
do fim da hegemonia mundial européia e, conseqüentemente, expressão da
impotência histórica da Europa no início do século. Aqui, esses papéis estéticos
deveriam servir à expressão de um caos de outra ordem: o caos de um novo mundo,
burguês, urbano, complexo, para o qual se vislumbrava, ainda assim, um futuro
promissor.
33
Mais uma vez retorna-se à Europa para pegar modelos estranhos à realidade nacional,
uma realidade não tão urbana assim, como comprova Edgard Carone
34
. Mesmo que com um
ideal preponderantemente revolucionário, no que diz respeito à estética, o Modernismo — não
31
Idem.
32
Raul Pompéia, Machado de Assis, Cruz e Sousa, Aluísio Azevedo, Euclides da Cunha e Lima Barreto são
alguns dos escritores que perceberam essa dicotomia entre o sistema vigente na nação e as idéias vindas de
fora. Se por um lado tínhamos, no século XIX, uma Rua do Ouvidor rica e mercantilizada, comprávamos e
vendíamos, nesta mesma rua, escravos e escravas para trabalhar em casas ou fazendas. Liberalismo e
escravismo num mesmo círculo social. Mesmo depois da abolição da escravatura, estrutura e superestrutura,
decorrência do velho e do novo estarem tão entranhados, mesmo nas grandes cidades, nos modos de
produção e relação nacionais, não caminham juntas, como no velho continente, donde provêm as idéias.
(WEBER. Caminhos do romance brasileiro. Op.cit.)
33
WEBER, João Hernesto. Do Modernismo à nova narrativa. Porto Alegre: Metrópole, Instituto Estadual do
Livro. 1976, p.88-89.
34
CARONE, Edgard. Op.cit.
39
por incapacidade dos intelectuais do movimento, mas por causa da nossa situação de país
subdesenvolvido que coloca os intelectuais brasileiros sempre numa balança, pesando de um
lado a Europa, moderna, desenvolvida, do outro o Brasil, até certo ponto arcaico e
subdesenvolvido — ainda assim recorre a padrões externos, que seriam, no entanto, adaptados
ao avanço burguês no Brasil emperrado, ainda assim, pela condição colonial
35
.
É em cima dessa contradição que, mesmo sem querer, ou sem perceber, os textos de
Lobato constroem o caipira. Se, por um lado, a escrita
lobatiana expõe o caboclo ao ridículo, ataca também de
frente os “modelos” de pensar e construir o Brasil. Vejamos:
Andam todos em nossa terra por tal forma estonteados com as
proezas infernais dos belacíssimos “vons” alemães, que não
sobram olhos para enxergar males caseiros.
Venha, pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que se
fora o fogo da terra lavra implacável, fogo não menos
destruidor devasta nossas matas, com furor não menos
germânico.
36
Dessa ambigüidade — oriunda de um modelo
político neo-colonial resultou, em termos
superestruturais, uma peculiaridade bastante significativa: se por um lado havia uma
preocupação em explicar e criar um Brasil moderno à altura das grandes nações do ocidente,
por outro, essas idéias importadas acabavam por flutuar no modelo sócio-histórico brasileiro,
na medida em que ainda se mantinham as estruturas coloniais de produção
37
. Nesse sentido,
Velha Praga e Urupês rompem com toda uma tradição literária, embora o seu
conservadorismo ideológico.
35
Para melhor compreender este assunto ver o livro Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr.
36
LOBATO, Monteiro. Velha Praga. Op.cit., p.269.
37
Ver WEBER, João Hernesto. Do Modernismo à nova narrativa. Op.cit.
Ilustração 2: Jeca Tatu em charge
feita por Belmonte
40
1.2. PROBLEMA VITAL e a ressurreição do Jeca sob um outro prisma
O Jeca não é assim: está assim.
(Monteiro Lobato)
Em 1918, a meio caminho entre o primeiro caipira de Velha Praga e Urupês e o
acontecimento da Semana de Arte Moderna (de 1922), reaparece no cenário literário paulista
a figura do caipira lobatiano. Intitulado de Jeca Tatu: a ressurreição
38
, corresponde a uma
segunda personificação do Jeca de Monteiro Lobato, desta vez ao revés da primeira, embora
com os mesmos preconceitos ideológicos. É um momento de renovação literária, esboçada
desde o advento da República e acentuada depois da primeira grande guerra (1914-1918) e
que, a partir do Modernismo, alcançaria foros de “nova”.
Isso porque o Modernismo da primeira fase
39
se ateve a um projeto estético,
“propondo uma radical mudança na concepção de obra de arte, vista não mais como mímese,
mas como objeto de qualidade e de relativa autonomia”
40
. Por outro lado, inserindo-se em um
projeto de conhecimento e interpretação da realidade nacional, procurou abalar uma visão do
país que abrangia toda a produção cultural anterior à sua atividade:
(...) assumindo a modernidade dos procedimentos expressionais o Modernismo
rompeu a linguagem bacharelesca, artificial e idealizante que espelhava, na literatura
passadista de 1880-1920, a consciência ideológica da oligarquia rural instalada no
poder, a gerir estruturas esclerosadas que em breve, graças às transformações
provocadas pela imigração, pelo surto industrial, pela urbanização (enfim, pelo
desenvolvimento do país) iriam estalar e desaparecer em parte.
41
Indo buscar nas vanguardas européias sua concepção artística, os modernistas, num
processo antropofágico, degustaram o que de mais substancioso continham esses movimentos:
a fragmentação da linguagem, o popular e o grotesco como contraponto ao falso
academicismo vigente e a recusa à idealização do real. Com isso tentaram revolucionar a
estética passadista e acadêmica do período. É claro que todos esses padrões estéticos oriundos
38
Em 1924 Monteiro Lobato publica esse conto com o título de Jeca Tatuzinho. Em 1927, já com o título atual,
é adaptado para o “Almanaque Biotônico Fontoura”.
39
A crítica costuma dividir o movimento modernista em duas distintas fases: a primeira (de 1922 até 1930)
com um projeto mais estético e centrado na atualização das estruturas propostas pela classe dominante; a
segunda (que compreende o período de 1930 a 1945) com um projeto ideológico preocupado em discutir as
funções do escritor e da literatura. Nesse segundo momento, o Modernismo extravasa os quadros burgueses,
derivando em posições extremamente esquerdizantes, de denúncia aos males sociais, ou em posturas
conservadoras e de direita ou francamente reacionárias, como o integralismo, por exemplo. (Ver LAFETÁ,
João Luiz. Op.cit.)
40
Idem, p.21.
41
Idem. Ibidem, p.21-22.
41
da Europa sofreram aqui conotações diferentes em decorrência de momentos históricos
diferenciados. Ou seja, se aqui deslumbrava-se um futuro promissor, calcado numa sociedade
burguesa e capitalista, na Europa, destruída pela guerra, se assistia a um período inverso: o
do fim de um processo hegemônico mundial que se arrastara por séculos, mas que agora
“mudara de mãos”
42
.
Essa impotência européia mundial foi transfigurada pelas vanguardas de início de
1920 que assumiram o caráter pessimista em que vivia a Europa. Daí a estética fragmentada
de um mundo fragmentado, a estética do caos e da linguagem em crise. No Modernismo
brasileiro, entretanto, esses fatores ideológicos são escoimados a ponto de assumirem aqui
uma ressonância mais otimista e de classe definidas.
Os movimentos de vanguarda europeus encontraram ressonância, no país, porque o
Brasil assistia a um período de alterações sociais importantes, promovidas pelo surto de
industrialização. Configurada principalmente nos anos de guerra, porém aqui estabelecida
muito antes, possibilitaria a urbanização acelerada e conseqüentemente o surgimento de mão-
de-obra mais qualificada, se atentarmos para os imigrantes europeus, mais tecnicamente
preparados que a mão-de-obra nacional, de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro
43
. É
certo que não se pode, entretanto, achar que transformações no sistema de produção datam
dessa época. Surgem com a abolição da escravidão e com o advento do trabalho assalariado.
Apesar de não afastar do poder as oligarquias, a burguesia se encontra em franco processo de
ascensão; cresce também o proletariado. Data igualmente dessa época o surgimento, em 1922,
do Partido Comunista Brasileiro.
É nesse contexto que se deve situar o Modernismo: um período, na verdade, de
ascensão do capitalismo no Brasil. Isso porque “o escravismo fora extinto a menos de três
décadas, o novo regime político não estava isento de crises que denunciavam a presença de
graves contradições, que se aprofundavam agora. Em escala geral, assistia-se à crise geral do
capitalismo. A Revolução de outubro e a consolidação subseqüente do poder soviético
abalavam o mundo. No Brasil, que recebia os reflexos das gigantescas transformações em
processo, as mudanças acompanhavam o que ocorria no exterior, mas refletiam também o
avanço da produção capitalista e o avanço de maior participação da burguesia no poder”
44
.
42
Ver WEBER, João Hernesto. Caminhos do romance brasileiro. Op.cit., p.89.
43
Para informações mais precisas, ver SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 10.ed. Rio
de Janeiro: Graphia, 2002; CARONE, Edgard. Op.cit.; FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil.
22.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987.
44
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Op.cit., p.573.
42
Daí acontecimentos como a Semana de Arte Moderna, a rebelião tenentista de
Copacabana e a formação do Partido Comunista datarem de um mesmo ano. Todos são peças
de um mesmo e amplíssimo mosaico, configurado pela ascensão burguesa que começava a
esboçar acanhados passos.
Veja-se que é um período de grandes revoltas e de discussões apaixonadas no campo
das idéias. A estrutura institucional se encontra gravemente abalada por movimentos de
rebelião militar e pelo levante mais ou menos organizado da classe proletária. Esse clima de
ameaça atinge também o campo das artes, e em especial o da literatura
45
.
É praticamente nesse momento que entra Lobato com a figura “ressuscitada” do Jeca
Tatu. Se o Modernismo da primeira fase propunha-se uma revolução no campo estético
46
,
demolindo tabus e preconceitos, numa iconoclastia ferrenha e protegida pela aristocracia
cafeeira e latifundiária
47
, o Jeca lobatiano, um pouco antes, propunha-se, em suma, uma
espécie de “pedido de desculpas” ao homem do campo (o caipira), incompreendido em Velha
Praga e Urupês.
A propósito de uma campanha nacionalista de saúde pública promovida por Lobato,
em 1918 publica-se Jeca Tatu: a ressurreição
48
. É uma pequena história, composta de 18
pequenos capítulos que narram a saga do caipira doente pelo amarelão que, ouvindo a
sapiência da ciência, transforma-se de um “moleirão” em um homem rico. É uma visão
georgista
49
, evidentemente, mas que, de certa forma, põe em xeque ao contrário dos
45
Ver SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Op.cit.
46
É preciso entender projeto estético de uma maneira não dissociada de projeto ideológico. Ambos se
confundem em determinado momento, na medida em que ao se alterar o discurso e a maneira de ver
determinado objeto, se altera, de certa forma, o modo de pensá-lo. Ou seja, o simples fato de revolucionar-se
o campo estético vigente na literatura de um tempo acarreta numa mudança ideológica, pois é na e pela
linguagem que nos expressamos. Essa dissociação feita entre projeto estético e ideológico funciona apenas de
maneira a mostrar a diferença de pensamento, e de atitude, entre as duas fases do Modernismo. Para esse
assunto ver LAFETÁ, João Luiz. Op.cit.
47
Para explicitar melhor a idéia explanada, cita-se um pequeno trecho de SODRÉ: Era uma ruptura com as
idéias vigentes, mas uma ruptura sob proteção das representações mais consagradas do regime, as mais
austeras, as mais conservadoras. A burguesia brasileira, sempre conciliadora com o latifúndio,
impulsionava a subversão das artes e a impulsionava. (SODRÉ, História da literatura brasileira, p.575)
A verdade é que essa primeira fase do Modernismo traz consigo um ranço: o patronato cafeeiro. É um
paradoxo um movimento que se propõe a reformas estéticas de tamanha importância, se firmar justamente
nas barbas dos coronéis do latifúndio brasileiro. O certo é que a semana foi um acontecimento de toda a alta
sociedade paulista, uma movimentação da aristocracia.
48
Essa pequena história teve um interessante destino. Adotada, em 1927, por Candido Fontoura para
propaganda de seus preparados medicinais contra a malária e a opilação, foi espalhada pelo país em edições
que ultrapassaram milhões de exemplares. Com o nome de Jeca Tatuzinho, por causa do caráter didático que
apresenta e do tamanho das edições distribuídas, essa história tornou o Jeca Tatu a construção de identidade
mais consolidada e difundida da literatura brasileira, ficando, até praticamente os dias de hoje, no imaginário
popular brasileiro.
49
Para entender o georgismo ler Comunismo ou georgismo. In: LOBATO, Monteiro. Prefácios e entrevistas
(Obras completas, vol. 8) São Paulo: Brasiliense, 1972.
43
primeiros artigos — as estruturas agrárias e, conseqüentemente, políticas da nação.
Vejamos, contudo, que o modo de pensar e construir embora a visão ainda seja a
mesma, externa à realidade do caboclo paulista o caipira sofre significativas alterações,
não na forma, porém no conteúdo. Como foi visto, Urupês e Velha Praga são textos de
caráter menos didático, e por isso mesmo mais rebuscados, ao passo que a segunda construção
do Jeca é de caráter mais didático, com um texto menos rebuscado. Basta, para isso,
observarmos o tom de “historinha” que assume desde o início (Jeca Tatu era um pobre
caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé.
Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher,
muito magra e feia, e de vários filhinhos pálidos e
tristes.
50
).
É uma construção ainda alegórica do caipira,
com características ainda semelhantes ao Jeca da
primeira fase (Que grandessíssimo preguiçoso!, Alem
de vadio, bêbado..., Que criatura imprestável! Não
serve nem para tirar berne de cachorro..., Alem de
preguiçoso, bêbado, e alem de bêbado, idiota, era o
que todos diziam.). Não aqui, a exemplo do
primeiro estereótipo, uma observação mais aguçada
do modo de vida sócio-econômico-cultural do
caboclo paulista, como a fez Antonio Candido
51
,
muito menos uma visão menos classista. O que de
novo é a consciência do escritor, pintando o caipira
como um homem abandonado e jogado às traças (O Jeca não é assim: está assim) por leis,
organizadas obviamente pelo poder público, que privilegiam os latifúndios em detrimento do
homem do campo, do camponês.
Não se trata de um texto de cunho marxista, nem tampouco laudatório à revolução
soviética de 1917. Trata-se de um texto meramente didático, muito mais ficcional do que
propriamente “realista”. Atentando para esse fato, constata-se que tal texto é de caráter menos
experimental que os primeiros
52
, na medida em que aqueles, além de estarem inserindo
50
LOBATO, Monteiro. Jeca Tatu: a ressurreição. In: Mr Slang e o Brasil e Problema vital & Mundo da lua e
Miscelânea (Obras completas, vol. 5). 13.ed. São Paulo: Brasiliense, 1972, p.170.
51
CANDIDO, Antonio. Parceiros do Rio Bonito. Op.cit.
52
Velha Praga e Urupês.
Ilustração 3: Capa da 30ª edição de Jeca
Tatuzinho, feita pelo Biotônico Fontoura,
em homenagem aos 30 milhões de exem-
plares distribuídos gratuitamente (1961)
44
Monteiro Lobato no ramo literário, o que os tornam de certa forma experimentais,
calcavam-se numa visão distorcida proveniente deestudos” acerca do caipira. este texto
53
foge dessa armadilha, formulando seu discurso no campo literário, com um linguajar simples,
urbano e, aparentemente, despretensioso.
É a consciência da situação do caipira submetido às políticas nacionais que o
abandonam e o enxotam de um lado para outro como um pobre coitado. É igualmente, de
certa forma, a consciência dum primitivismo brasileiro (já inerente, mas não bem assimilado
nos textos da primeira fase) que se mistura à vida cotidiana ou é reminiscência viva de um
passado recente. Nesse sentido, a criação nacionalista de Lobato se aproximaria dos ideais
propostos pelos futuros modernistas, embora a eles não se alinhe. Ou seja, enquanto os
modernistas revelam esse primitivismo, ainda latente na nação, com o intuito de exprimir um
sentimento nacionalista laudatório ao que temos de mais autêntico e genuíno, Monteiro
Lobato descortina esse elemento primitivo justamente para expor sentimento contrário ao dos
modernistas. Isto é, mesmo sendo o elemento primitivo abordado tanto em Lobato quanto nos
Modernistas, o é para diferenciados fins. Para aquele é uma forma de criticar o atraso cultural
e o latente subdesenvolvimento brasileiro, já para estes uma maneira de valorizar as “genuínas
riquezas nacionais”, formadoras da identidade e do caráter do povo brasileiro.
Dessa forma, é relevante afirmar que Monteiro Lobato adota a figura do Jeca Tatu
para atacar as políticas brasileiras, sendo o “primitivo” um dos principais focos de ataque.
Para o escritor, esse primitivismo é fruto de um atraso político e cultural já entranhado,
historicamente, no subconsciente de nossa gente. Para Lobato, o primitivismo do Jeca é
oriundo de políticas errôneas e predatórias que excluem o caipira e impedem o seu
desenvolvimento. Esse atraso cultural é, para Lobato, responsável pela caracterização de seu
modo de vida e pela formação de seu caráter, ou seja, em última instância, pela formação de
sua própria identidade. Daí a visão antagônica à do Modernismo.
Perceba-se, contudo, que embora seja diferente o modo de ver e captar esse elemento
primitivo, ambas as visões são de cunho nacionalista, embora com propósitos diferentes.
Segundo Antonio Candido, “(...) o nacionalismo acentuado desta geração renovadora [a
geração modernista], que deixa de lado o patriotismo ornamental de Bilac, Coelho Neto ou
Rui Barbosa, para amar com veemência o exótico descoberto no próprio país pela sua
curiosidade liberta das injunções acadêmicas”, faz com que “Um certo número de escritores
53
Jeca Tatu: a ressurreição.
45
se aplique a mostrar como somos diferentes da Europa e como, por isso, devemos ver e
exprimir diversamente as coisas”
54
. É o que, de certa forma, busca fazer Lobato, embora com
objetivo diverso, conforme anteriormente exposto.
Captando o exótico, o escritor desvenda, “liberto das injunções acadêmicas”, um outro
país ainda não desvendado na literatura: o Brasil da endemia e da opilação, pobre e sem
maquiagem que esconde o que tem de mais fraco”. A nossa fraqueza é ressaltada também
pelo exótico, ao contrário dos escritores modernistas que captavam o exótico para valorizar o
que tínhamos de mais “puro” na cultura brasileira.
Sobre esta geração modernista é preciso, aliás, analisar alguns pontos cruciais antes de
retomarmos o Jeca. Primeiramente, é notável frisar a importância dada à Semana de Arte
Moderna, meramente episódica, e que vem sendo superestimada por muitos críticos que a
estudam. É certo que o movimento rompeu radicalmente com o passado, e que esse
radicalismo se deu por meio da galhofa, oriunda do bom-humor tomado como arma de luta
como meio de demolição, na primeira fase
55
. Contudo, o movimento muitas vezes ficou
somente nisso, tornando-se muito difícil nesta prosa saber onde inicia a blague, onde principia
a seriedade.
Essa radicalização, que seria ampla no nível da linguagem
56
, se amenizou nos anos 30,
tornando-se mais ideológica, no sentido de tentar desvendar as mazelas do país. Todavia, esse
esforço de interpretar o Brasil data de muito antes de 1922. O próprio Jeca lobatiano é um
esforço de tentar desvendar a nação. A renovação interpretativa, a busca do conhecimento da
realidade brasileira, ou seja, a busca por uma identidade nacional, por circunstâncias de
necessidade, é anterior à Semana e tem um dos seus principais momentos no Romantismo,
quando se pretendeu criar uma identidade para uma nação que surgia independente de
Portugal
57
. O que alterou, no Modernismo, foi o foco dessa busca incansável de identidade. Se
54
CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. Op.cit., p.121.
55
Ver Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande (1923 e 1933 respectivamente), de
Oswald de Andrade e Macunaíma (1928), de Mário de Andrade.
56
Cita-se, a exemplo ilustrativo, um trecho extraído de SODRÉ: O mais importante da ruptura com que o
Modernismo radicaliza sua revolução está precisamente na linguagem: nenhuma revolução literária se
prova revolução sem mudar a linguagem. não digo mudar o tom, o metro, a imagem, a sintaxe e o
vocabulário, mas alterar tudo isso e transformar, antes de mais nada, a relação de distância entre povo e
poesia. Essa distância se torna menor. (SODRÉ. Op.cit., p.582)
57
Veja o que diz Alencar em seu “relato pessoal em forma de carta” Como e porque sou romancista. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1998, p.65:
No Guarani [e Iracema] o selvagem é um ideal, que o escritor intensa poetizar, despindo-o da crosta
46
no Romantismo a preocupação era emancipar-se culturalmente de Portugal, sem contudo
perder o contato com a Europa, no Modernismo essa preocupação não mais existia, pois
Portugal não exercia mais nenhum tipo de influência sócio-econômico-cultural sobre o Brasil.
Sob essa perspectiva, Monteiro Lobato aproxima-se ao grupo dos modernistas, pois,
antes mesmo do surgimento de escritores como Mário e Oswald de Andrade, pensava o
Brasil desvencilhado dos ideais românticos. Tanto Lobato quanto os modernistas foram
exemplos probantes de inconformismo cultural, pois tanto aquele quanto estes representam
um esforço de penetrar mais fundo na realidade brasileira. Lobato, pela crítica que exerce às
políticas brasileiras, poderia ser tido como um dos precursores da Semana, embora Velha
praga e Urupês não possam ser consideradas obras essencialmente modernistas.
Primeiramente por causa da linguagem adotada, calcada toda ela em norma culta padrão, que
não direito de voz ao caboclo; depois, por causa da desvalorização do elemento exótico,
posto em evidência pelo Modernismo. Veja, por exemplo, Macunaíma, de Mário de Andrade.
Mesmo Jeca Tatu: a ressurreição não traz essas qualidades, tão marcantes nos textos
modernistas. Com uma linguagem relativamente próxima à adotada por seus livros infantis,
Monteiro Lobato dialoga com seu público por meio de um linguajar simples e sofisticado,
sem contudo deturpar as “normas gramaticais” de seu tempo, como faria Oswald, em
Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, por exemplo
58
. Todavia,
seria equivocado afirmar não ser combatida, nessa segunda construção do caipira, a estética
passadista. Pelo contrário, além de quebrar com a narrativa vigente, o texto ataca as estruturas
nacionais, na medida em que condena as políticas brasileiras, tão preocupadas em formular
suas leis baseadas nas da Europa, que deixam o caipira à margem da sociedade, na penumbra
da civilização. É o que ocorre, de forma menos amadurecida e bem menos consciente, é claro,
nos dois primeiros artigos.
Em Jeca Tatu: a ressurreição, o caipira é posto em evidência e toda a atmosfera que
grosseira do que o envolveram os cronistas e arrancando-o o ridículo que sobre ele projetam os restos
embrutecidos da quase extinta raça.
Era preciso estilizar o indígena (tirá-lo da Ilíada, citando Lobato) e dar-lhe uma roupagem mais europeizada,
para, com isso, conferir-lhe uma identidade com foros de nacional. Uma identidade forjada, é certo, mas que
exprimisse o sentimento de uma elite nacional (escravocrata, como o próprio José de Alencar) que regia um
país recém independente de Portugal. Nesse sentido, tanto Iracema quanto O Guarani foram de suma
importância para o projeto da época. Ambos, afinal, pretendiam simbolizar a união entre o colonizador e o
colonizado, fundamento da nova nação. (Para esse assunto, ver WEBER, João Hernesto. Caminhos do
Romance brasileiro: de A Moreninha a Os Guaianãs. Op.cit.)
58
A não ser a pontuação, que dava outro ritmo para a obra, e a acentuação, totalmente diferente da
convencional, adotada na obra de Monteiro Lobato.
47
perpassa a narrativa envolve o personagem. Ou seja, se nos artigos da primeira fase o
ambiente é alheio ao caipira, não envolvendo-se este com aquele, no texto da segunda fase os
dois se fundem, parecendo, por vezes, ser um só. É claro que essa simbiose entre homem e
meio é rompida no momento em que chega o Doutor com os conhecimentos científicos da
costa. A partir desse momento, na visão lobatiana, o Jeca se transforma em um forte e, graças
à ciência, ascende socialmente.
Daí por diante, o caipira vence uma a uma as dificuldades e o ambiente se transforma
segundo as suas necessidades e aspirações. Em suma, em Jeca Tatu: a ressurreição Lobato
faz um pedido de desculpas formal ao caipira incompreendido quatro anos antes. Significativa
mudança no modo de ver o caboclo, embora não menos preconceituoso, na medida em que o
escritor o pinta sob a perspectiva de quem está de fora, ou seja, ainda sob o olhar do homem
da cidade. Se em 1914 o caipira é fraco, agora pode ser um forte, desde que tenha condições
para superar sua inanição. Todavia, mesmo se transformando num homem vencedor por meio
do trabalho, visão que por si parece não combater as políticas brasileiras, essa
personificação do caipira não deixa de ser combativa às estruturas mentais da nação.
Isso somente é possível graças às contradições acentuadas, nesse período, em
decorrência dos novos padrões de vida e de produção conviverem lado a lado com os antigos
padrões, calcados ou no modo de produção familiar ou em sobrevivências do modo escravista
existentes no nosso país
59
. Se por um lado temos São Paulo como pólo industrial do país,
uma vasta gama da população vive ainda de maneira rudimentar como nos tempos do
Império.
Todos esses fatores acarretam lutas violentas em todos os campos, incluindo as lutas
sociais e as do “mundo das idéias”. É um período turbulento da história brasileira, de
crescimento lento do capitalismo e de grandes contradições, expressas, principalmente, por
essa dubiedade entre o velho e novo conviverem em um mesmo patamar de igualdade.
Debaixo de um Brasil de fisionomia “moderna”, há, aí, um outro Brasil, de enlaces
insondáveis, ainda incógnito, por descobrir. O movimento modernista, portanto, seria de
descida às fontes genuínas”, ainda “puras”, para captar os germens de renovação; retomar
esse Brasil subjacente, de alma embrionária, carregado de assombros, e procurar alcançar uma
síntese cultural própria, com maior densidade de consciência nacional, esse o projeto
modernista
60
.
59
Ver CARONE, Edgard. Op.cit.
60
Ver, para maiores detalhes, SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Op.cit.; ver também
48
Esses fatores, de certa forma, os desvendam Lobato. Representa, conforme dito, a pré-
consciência da função do intelectual brasileiro, gerado sob enormes contradições culturais e
sociais. Um intelectual que se manifesta avesso ao antigo e ao ultrapassado, que encontra na
figura do Jeca seu meio de fustigar as estruturas nacionais.
Todavia, que relação pode haver entre os dois Jecas: “o Jeca parasita” de 1914 e “o
Jeca parasitado por verminoses” de 1918? Nenhuma, pois o primeiro é inadaptável à
civilização e o segundo é vítima dela. Essa a principal mudança na concepção da construção
do seu caipira nesse momento. Embora continue com a mesma roupagem e captado sob o
mesmo olhar do “estrangeiro”, o caipira passa de praga a vítima.
A que então deve-se tamanha mudança de ponto de vista de um Jeca para outro?
Obviamente que às influências “modernas”, proporcionadas por uma sociedade em transição,
estritamente contraditória, que obrigou os intelectuais a uma reconfiguração, tanto estética
quanto ideológica do Brasil. Com as mudanças iminentes na sociedade brasileira, os
intelectuais obrigaram-se, nesse período, a configurar uma nova realidade (e,
conseqüentemente, uma nova identidade) para um país em transformação.
O que não significa, de outra parte, que a maneira como Monteiro atacou as estruturas
estéticas seja idêntica às visões abordadas pelo Modernismo. A atenção dos modernistas, no
que concerne à linguagem, está mais voltada, nesse momento, para uma crítica dirigida ao
beletrismo parnasiano da época, como bem fez Oswald. Mário de Andrade, em
Macunaíma, busca centrar “seu” Modernismo noutra vertente, visando resgatar um
imaginário brasileiro, no intuito de construir uma identidade para a nação brasileira.
Em Jeca Tatu: a ressurreição, entretanto, essa articulação narrativa e fantasiosa,
voltada para o mito, não existe. Se é correto afirmar que ruptura com a estética vigente do
século XIX (embora não de maneira estrutural, como propôs Oswald, misturando prosa com
verso, numa linguagem fragmentada), seria incorreto afirmar que o mito é abordado na
perspectiva modernista. Isso porque o autor do Jeca não adota o misticismo do caboclo no
intuito de torná-lo, como o faria Mário de Andrade, uma qualidade. Muito pelo contrário,
quando o fez em Velha Praga e Urupês, que na segunda versão do Jeca o misticismo
nem surge, pois esse espaço da crença, da fé, é tomado pela ciência — foi para degradar ainda
CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. Op.cit.; BOSI, Alfredo. História concisa da
literatura brasileira. 2.ed. São Paulo: Cultrix, [s/d]; WEBER, João Hernesto. Modernismo, dependência e
Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. In: DACANAL, José Hildebrando;
FISCHER, Luíz Augusto; WEBER, João Hernesto. O romance modernista. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 1990.
49
mais a imagem do caipira, que somente poderia ser redimido pela intervenção do Estado,
através da ciência o que, em última instância, o faria deixar de ser um caipira, o que, de
fato, no texto, vem a ocorrer. A “salvação” do caipira, enfim, encontrar-se-ia na sua extinção.
Nesse sentido, Lobato diferencia-se, e muito, do projeto estipulado em Macunaíma, na
medida em que, quando se vale do misticismo do homem do sertão (nos dois primeiros
artigos), por exemplo, é para reforçar uma identidade pejorativa, inversa à proposta por Mário
de Andrade.
Apesar de toda essa alteração no conteúdo da
obra, o que a fez assumir as proporções de
divulgação que teve, e a consciente consolidação da
identidade do caipira brasileiro, foi a sua adoção, em
1927, pelo “Almanaque Biotônico Fontoura” como
propaganda do medicamento. Foi esse o principal
meio de divulgação da figura do caipira de Lobato.
Sem ele (o “Almanaque”) este personagem não
assumiria esta consolidação na cultura popular, quem
sabe nem mesmo indo parar nas telas do cinema,
adaptado que foi por Mazzaropi.
1.3. ZÉ BRASIL: a pré-consciência de classe do caipira lobatiano
E acha justo isso, Zé? Acha justo que tudo fique
como está, isto é, uns tendo tudo e a imensa maioria
não tendo nada, de nada, de nada?
(Monteiro Lobato)
Com o advento da década de 30, o Modernismo se reveste de outra face: o foco muda,
passando a ser um movimento com finalidades muito mais ideológicas que propriamente
estéticas, embora, como afirmado, as duas dimensões não se dissociem inteiramente. Os
escritores e pensadores desse período estão mais preocupados em debater, pelo viés artístico,
aspectos econômicos e sociais do Brasil e não em discutir literatura em sentido estrito.
É um combate às políticas de desenvolvimento nacionais assentado em uma pré-
Ilustração 4: "Caipira picando fumo", Óleo
sobre tela de Almeida Jr. (1893)
50
consciência de cidadão (artista) semi-colonizado. Sente-se a necessidade de se (re)descobrir o
Brasil pelo próprio Brasil, de se tratar temas como seca, miséria, colonização, entre outros.
Daí livros como Casa-grande & Senzala (1930) e Raízes do Brasil (1936) na sociologia e
Jubiabá (1935) e Vidas Secas (1938), entre outros, na literatura. Busca-se, na verdade, uma
redefinição identitária para a nação
61
.
A segunda fase do Modernismo vincula-se a este processo. Todas as contradições
profundas contidas na sociedade vinham agora à tona, e não podia ser diferente. Com a
ascensão de uma pequeno-burguesia, industrial e urbana, e a sua conseqüente tomada do
poder, as contradições na sociedade brasileira, já existentes, se acentuam, aumentando, assim,
o nível de consciência e a mobilização das forças. Trata-se, em suma, de uma tomada geral de
posições e de um desencadeamento geral de hostilidades, geradas pelas enormes contradições
existentes que se desvendam agora nuas e cruas.
É o momento em que o movimento modernista se politiza, daí as manifestações
direitistas de reação, como o integralismo, por exemplo, e as manifestações de esquerda. A
politização dos anos 30 descobre e desvenda novos ângulos, que passam a centrar os
intelectuais, principalmente os de esquerda, nos problemas sociais que assolam a nação.
“Desvenda-se, quase de súbito, a paisagem real do Brasil
62
, com tudo o que continha de
grande e de pequeno, de arcaico e de moderno, quase sempre em singular vizinhança”
63
.
Nesse sentido, não seria incorreto inserir Brasil no contexto literário desse período.
Escrito em 1947, ou seja, dois anos após o desfecho da Segunda Guerra Mundial, período em
que o mundo já não vive (desde 1918) sob a regência de um capitalismo competitivo, mas sim
de um capitalismo monopolista com sede nos Estados Unidos, Brasil surge no momento
em que o Partido Comunista encontra-se então na ilegalidade. Indignado com o que lhe
parecia brutal violação da lei básica do país, e estúpido atentado contra a liberdade de
pensamento
64
, Monteiro Lobato toma a defesa dos comunistas e invectiva os inimigos da
61
Definição de identidade diferente da proposta pelo Modernismo da primeira fase, na medida em que a
construção dessa identidade se deu pelo viés estético e assumiu uma conotação ufanista de um futuro
promissor para um país novo e em crescimento como o Brasil. É a época de expansão da indústria nacional e
da conseqüente ascensão de uma pequena burguesia que tomaria o poder na década subseqüente, com a
chamada revolução de 30. Enquanto na década de 20 pode-se caracterizar o Modernismo como otimista, na
década de 30 o entusiasmo de um provável crescimento se esmorece, cedendo lugar para a investigação do
país, que precisava ser explicado e reformado, na ótica de alguns, e também um ceticismo com relação ao
futuro da nação como um todo, por parte de outros, como Graciliano Ramos, por exemplo. (WEBER, João
Hernesto. Caminhos do romance brasileiro: de A Moreninha a Os Guaianãs. Op.cit.)
62
Daí a caracterização, por parte da crítica, de literatura neo-realista (ou neo-naturalista).
63
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Op.cit., p.605.
64
Veja-se, como exemplo meramente descritivo, a entrevista concedida em 09 de maio de 1947: quando o
jornalista lhe pergunta se é comunista, Lobato responde-lhe: Não. Sou georgista por convicção absoluta,
51
liberdade e do direito de cada um pensar. É um ataque tão brutal às estruturas nacionais, que,
mal lançada, a pequena obra provoca a ira da polícia mecanismo de repressão do estado
burguês — e o veto da igreja católica.
A crítica de Lobato visa bater de frente com o latifúndio espoliador e o burguês
urbano, mantenedor dessa ordem e incapaz de compreender a realidade do caboclo do interior
paulista:
A gente da cidade como são cegas as gentes das cidades!... Esses doutores, esses
escrevedores nos jornais, esses deputados, paravam ali e era crítica: vadio,
indolente, sem ambição, imprestável... não havia o que não dissessem do Brasil.
Mas ninguém punha atenção nas doenças que derreavam aquele pobre homem
opilação, sezões, quanta verminose há, malária.
65
É uma crítica, às vezes em forma de sátira, ao “homem mantenedor da ordem”, uma
ordem sustentada, do ponto de vista do narrador, na monocultura e no latifúndio. Veja-se que
é uma personificação, muito mais madura e politizada, das condições de vida do caipira.
Mantendo, em parte, a perspectiva adotada em Jeca Tatu: a ressurreição, Lobato contesta e
desafia a “ordem”, enfrentado o modelo capitalista, apontando-o como fator preponderante
para a desgraça e opilação do caipira.
Seguindo a ótica proposta pelos “romancistas de 30”
66
, Brasil se propõe reformar,
ou melhor, reformular a realidade vigente brasileira para além da proposição burguesa. Em
suma, Zé Brasil se propõe uma luta contra os antagonismos de classe, em defesa do camponês
e do trabalhador assalariado e contrária à política opressora de um Estado Nacional burguês e
capitalista, porém periférico. Segundo Dacanal:
Então parece claro: o romance de 30 é integrante, produto e reflexo dos primórdios
do Brasil moderno, que se superpunha ao Brasil arcaico/agrário da costa e de suas
imediações. E “moderno” quer dizer marcado pelas estruturas urbano-industriais de
um capitalismo cujos centros situavam-se e situam-se no exterior.
67
mas sempre tive muita simpatia pelo comunismo. Agora, entretanto, que vejo o comunismo proscrito e
perseguido, e proibido pelos governos, sou forçado a acolhê-lo no coração, porque nunca admiti que
governo nenhum determine as idéias que os homens devem ter. Idéia é a única coisa realmente sagrada que
há. As idéias formam-se em nossa consciência, como em nossa cara se formam o nariz, os olhos, a boca. É
tão absurdo que um governo nos proíba de ter tal ou tal idéia como nos proíba de ter nariz ou boca.
(LOBATO. Conferências, artigos e crônicas, p.319-320.)
65
Idem, p.329.
66
Para citar o termo proposto por José Hildebrando Dacanal. In: DACANAL, José Hildebrando. O romance de
30. 3.ed. Porto Alegre: Novo Século, 2001.
67
DACANAL, José Hildebrando. Op.cit., p.22.
52
Com a revolução de 30 e com a liquidação, em parte
68
, do modelo exportador, passou-
se a um modelo nacional com base na formação de uma sociedade urbano-industrial
69
.
Acelerou-se o “fenômeno” da industrialização e um nível ideológico, decorrente deste, deu
margem ao chamado “mito de desenvolvimento auto-sustentado” de independência latino-
americana com relação às nações detentoras do poder hegemônico mundial. É um estágio de
pré-consciência do subdesenvolvimento: “vislumbravam-se as mazelas da nação dependente,
mas crê-se em sua superação pelo desenvolvimento possível se se percorrer o caminho
trilhado pelas nações industrializadas”
70
.
A Revolução de 30, se não foi suficiente para romper com as formas de organização
social, ao menos abalou as linhas de interpretação da realidade brasileira — já arranhadas pela
intelectualidade que emergia da semana de 22, de um lado, e da formação do Partido
Comunista, de outro. Dessas obras que representaram a reinterpretação do Brasil, uma das
mais importantes foi certamente Evolução Política do Brasil (1933), de Caio Prado Jr. Isso
porque, além de ser a obra inicial de todo esse processo, anuncia um método praticamente
inédito nos estudos sociais e políticos do Brasil, dado pela interpretação materialista
71
.
Essa geração de intelectuais mostrou-se disposta a auxiliar o Estado na construção da
sociedade em bases racionais. “Participando das funções públicas ou não, manteve uma
linguagem que é a do poder. Ela proclamou, em alto e bom som, sua vocação para elite
dirigente”
72
. O objeto é tão somente um, nesse momento: tornar-se “força social”, isto é, traçar
a política no país, tomando de duas tarefas de suma importância no contexto da época: forjar
uma realidade e uma consciência nacionais e promover a organização nacional.
A esse projeto ideológico é que se prestam as correntes ideológicas: elas pretendem
repensar a nação”. Todos, nesse momento, estão convencidos de que a República fora incapaz
de formar as elites necessárias a qualquer modernização
73
. Visão elitista, como se percebe, e
68
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 22.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987,
p.190, diz: Consideremos mais detidamente as conseqüências da política de retenção e distribuição de parte
da produção cafeeira seguida, com o objetivo explícito de proteger o setor cafeicultor. Ao garantir preços
mínimos de compra, remuneradores para a grande maioria dos produtores, estava-se na realidade
mantendo o nível de emprego na economia exportadora e, indiretamente, nos setores ligados ao mercado
interno.
69
WEBER, José Hernesto. Do Modernismo à nova narrativa. Op.cit., p.39.
70
Idem, p.39-40.
71
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 2.ed. São Paulo: Ática, 1977, p.28.
72
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. (Tradução de Maria Júlia
Goldwasser). São Paulo: Ática, 1989, p.22.
73
Eis o centro norteador de toda a política erigida pelo Partido Comunista, que consistia não em uma revolução
socialista e permanente, nas linhas de Marx, Lênin e Trotsky, mas na “revolução por etapas”, fortalecendo o
Estado e a burguesia nacional num primeiro estágio e possibilitando as ferramentas para, num segundo
estágio, os trabalhadores tomarem o poder. Esse projeto consistia não somente em uma análise do Partido,
53
que proclama o intelectual como governante nato e preparado.
Inclusive no campo artístico era essa a palavra de ordem. Munidos de um chavão
nacionalista, os artistas de 30, em especial os escritores, forjaram uma consciência nacional
adequada para o período revolucionário que se vivia. Nunca na literatura brasileira um grupo
de intelectuais combateu as estruturas nacionais com maior veemência. Combate, entretanto,
apoiado pelo Estado, que “gratificava” os intelectuais com cargos públicos. Daí o surgimento
de uma literatura como a produzida por um Carlos Drummond de Andrade, tão combativa ao
capitalismo em geral, porém nunca combativa às estruturas do capitalismo brasileiro.
Para aquilo que denomina de “literatura de 30” (ou romance de 30) e que a maior parte
dos críticos denomina de Modernismo em seu estado de amadurecimento”, ou seja, em sua
segunda fase, José Hildebrando Dacanal faz semelhante análise. Para o estudioso, toda a (boa)
literatura que perpassa esse período, não somente no Brasil, mas na maioria absoluta da
América Latina, tenta organizar as nações “recém (re)descobertas” numa concepção moderna
e autônoma
74
.
É claro que todos esses fatores levantados são decorrentes de uma atitude crítica mais
sólida e competente, que somente nas décadas de 20 e 30, principalmente nesta, se pôde
alcançar. Ou seja, graças à crise das velhas estruturas de produção, oriundas ainda da era
colonial e da ascensão de uma classe eminentemente capitalista, desenvolveu-se,
principalmente no campo das artes, uma pré-consciência política de uma parcela da elite
intelectual brasileira. É o momento em que o intelectual, o artista, tem que se posicionar
politicamente. “Fascismo, Nazismo, Comunismo, Socialismo e Liberalismo medem suas
forças em disputa ativa; os imperialismos se expandem, o capitalismo monopolista se
consolida e, em contraparte, as frentes populares se organizam para atacá-los”
75
. Tudo isso
numa década turbulenta para o mundo, como foi o decênio de 1930.
É dessa época, também, que no Brasil se consolida o Partido Comunista e que se
organiza a Aliança Nacional Libertadora
76
. Isso porque a década de 30 e também a de 40
que via o país como feudal, mas também era baseado na política estalinista da “revolução em um único país”.
Para esse assunto ver, MOTA, Carlos Guilherme. Op.cit; PÉCAUT, Daniel. Op.cit.
74
Ver DACANAL, José Hildebrando. Op.cit.
75
LAFETÁ, João Luiz. Op.cit., p.28.
76
No segundo semestre de 1934, um pequeno número de intelectuais e militaresentre os quais Francisco
Mangabeira, Manuel Venâncio Campos da Paz, Moésia Rolim, Carlos da Costa Leite e Aparício Torelly
começou a promover reuniões no Rio de Janeiro com o propósito de criar uma organização política capaz
de dar suporte nacional às lutas populares que então se travavam. Dessas reuniões surgiu a ANL, cujo
primeiro manifesto público foi lido na Câmara Federal em janeiro de 1935. O programa básico da
organização, divulgado em fevereiro, tinha como pontos principais a suspensão do pagamento da dívida
externa do país, a nacionalização das empresas estrangeiras, a reforma agrária e a proteção aos pequenos e
54
possibilita essa vasta abertura onde tudo se discute e tudo se questiona. Correntes políticas
antagônicas disputam, pela base e no campo superestrutural, a consciência das massas. Nesse
âmbito, a literatura nordestina de 30 e início de 40 desempenha papel importante, na medida
em que se reveste de um fundo ideológico esquerdizante para atacar as velhas estruturas e
também a nova ordem liberal imposta pelos Estados Unidos. São dessa época obras como
Jubiabá, de Jorge Amado, Vidas Secas, de Graciliano Ramos e O Quinze, de Rachel de
Queiroz.
É claro que não podemos esquecer que tais obras somente afloram porque, em 30,
ocorre uma fase de liberdade fases essas que, no Brasil, além de serem seguidas por fases
de repressão, não são completas que possibilita uma discussão mais acirrada no campo das
idéias. Daí também a militância de alguns de nossos principais escritores, que se digladiam
entre ideologias contraditórias. É uma fase de radicalismo tanto da direita quanto da esquerda
médios proprietários, a garantia de amplas liberdades democráticas e a constituição de um governo
popular, deixando em aberto, porém, a definição sobre as vias pelas quais se chegaria a esse governo.
No mês de março, constituiu-se o diretório nacional provisório da ANL, composto, entre outros, por
Herculino Cascardo (presidente), Amoreti Osório (vice-presidente), Francisco Mangabeira, Roberto Sisson,
Benjamim Soares Cabello e Manuel Venâncio Campos da Paz. No final do mês, a ANL foi oficialmente
lançada em solenidade na capital federal à qual compareceram milhares de pessoas. Na ocasião, Luiz
Carlos Prestes, que se encontrava na União Soviética, foi aclamado presidente de honra da organização.
Prestes, que nessa época já aderira ao comunismo, desfrutava de enorme prestígio devido ao seu papel de
líder da Coluna Prestes, que na década anterior havia tentado derrubar o governo federal pelas armas.
Nos meses seguintes, calcula-se que dezenas de milhares de cidadãos filiaram-se formalmente à ANL,
embora o número exato dessas filiações jamais tenha sido conhecido. Houve adesões importantes, como as
de Miguel Costa, Maurício Lacerda e Abguar Bastos. Diversas personalidades, mesmo sem se filiar,
mostraram-se simpáticas à Aliança, como os ex-interventores Filipe Moreira Lima, do Ceará, e Magalhães
Barata, do Pará, o deputado federal Domingos Velasco e o prefeito do Distrito Federal, Pedro Hernesto. A
entidade promoveu concorridos comícios e manifestações públicas em diversas cidades e teve sua atuação
divulgada por dois jornais diários a ela diretamente ligados, um do Rio de Janeiro e outro de São Paulo.
Em abril de 1935 Luiz Carlos Prestes voltou clandestinamente ao Brasil. Incumbido pela direção da
Internacional Comunista de promover um levante armado que instaurasse no país um governo nacional-
revolucionário, recebia a colaboração de um pequeno mas experiente grupo de militantes estrangeiros,
entre os quais se incluía sua esposa, a alemã Olga Benário.
À medida que a ANL crescia, aumentava a tensão política no país, com freqüentes conflitos de rua entre
comunistas e integralistas. No dia 5 de julho, a ANL promoveu manifestações públicas para comemorar o
aniversário dos levantes tenentistas de 1922 e 1924. Nessa ocasião, contra a vontade de muitos dirigentes
aliancistas, foi lido um manifesto de Prestes propondo a derrubada do governo e exigindo "todo o poder à
ANL". Vargas aproveitou a grande repercussão do manifesto para, com base na Lei de Segurança Nacional,
promulgada em abril, ordenar o fechamento da organização.
Na ilegalidade, a ANL não podia mais realizar grandes manifestações públicas e perdeu o contato com a
massa popular que com ela se entusiasmava. Ganharam então força em seu interior os membros do Partido
Comunista e os "tenentes" dispostos a deflagrar um levante armado para depor o governo. Em novembro de
1935 estourou em Natal (RN) um levante militar em nome da ANL. Em seguida ao movimento em Natal, que
obteve apoio popular e chegou a assumir o controle da cidade por quatro dias, foram deflagrados levantes
em Recife e no Rio de Janeiro. O governo federal não teve dificuldade para dominar a situação, iniciando
logo a seguir intensa repressão contra os mais variados grupos de oposição atuantes no país, vinculados ou
não ao levante. A ANL, alvo principal dessa onda repressiva, foi inteiramente desarticulada.
Aliança Nacional Libertadora (ANL). Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos30-37/ev_radpol_anl.htm>, acesso em 01/11/2006.
55
e de um sectarismo oriundo dessa luta.
Ressalta-se que praticamente toda a literatura produzida nos anos 30 é de temática
agrária
77
, com características realistas, fato que levou a que esses escritores fossem
qualificados de “neo-realistas”, ou simplesmente regionalistas”
78
. É, igualmente, o período
de expansão do Modernismo e de apuramento de sua contribuição, de complementação do
que a fase anterior preparara:
(...) Na segunda fase, por força do afloramento da luta ideológica, denunciando o
caráter agudo das contradições sociais, o projeto seria de outra natureza, guardando
embora continuidade: vinha carregado de substância ideológica.
79
O projeto agora transborda os quadros da burguesia. Se na primeira fase (a
denominada fase heróica”) o movimento é
essencialmente burguês, patrocinado pelo
patronato cafeeiro e caracterizado pela ruptura
estética e lingüística da obra de arte, na segunda
fase (a fase de amadurecimento e expansão do
movimento modernista), o Modernismo atinge o
campo da disputa ideológica. Por isso, mas não
somente, que extravasa o campo burguês:
(...) enquanto nos anos 20 o
projeto ideológico do
Modernismo correspondia à
necessidade de atualização das
estruturas, propostas por
frações das classes dominantes,
nos anos 30 esse projeto
transborda os quadros da
burguesia, principalmente em
direção às concepções esquerdizantes (denúncia dos males sociais, descrição do
operário e do camponês), mas também no rumo das posições conservadoras e de
direita (literatura espiritualista, metafísica, definições políticas tradicionalistas, como
a de Gilberto Freyre, ou francamente reacionárias, como o integralismo).
80
toda uma “diluição” dos conceitos mais revolucionários de obras da primeira fase,
77
Os Ratos, de Dyonelio Machado, é uma das exceções.
78
DACANAL, José Hildebrando. Op.Cit., p.17.
79
SODRÉ, Nelson Werneck. Op.cit., p.608.
80
LAFETÁ, João Luiz. Op.cit., p.28-29.
Ilustração 5: Capa de "Zé Brasil"
56
como Memórias Sentimentais de João Miramar ou Serafim Ponte Grande, por exemplo. O
que na verdade ocorre nessa segunda fase é um amadurecimento, ou melhor, um quase total
esmaecimento da radicalidade estética da primeira fase, havendo a opção por uma linguagem
mais simples e mais didática, que pudesse contribuir para a luta político-ideológica no
“campo das idéias”. É um momento muito interessante da literatura brasileira justamente por
causa dessa dicotomia ideológica entre os pensamentos de esquerda (inovador e, até certo
ponto, “iconoclasta”) e de direita (conservador e autoritário, às vezes até reacionário).
Partindo-se desse pressuposto, insere-se Brasil, terceiro e último estereótipo do
caipira lobatiano
81
, nesse contexto literário brevemente apresentado. O texto, como se sabe, é
de 1947, e encerra uma trilogia iniciada em 1914, com Velha Praga e Urupês, passando por
1918, com Jeca Tatu: a ressurreição, até desembocar na construção do último Jeca. É a pré-
consciência do caipira enquanto classe e enquanto força de trabalho.
Escrito de forma didática e simples, inserindo diretamente o leitor na problemática
central da narrativa ( Brasil era um pobre coitado. Nasceu e sempre viveu em casebres de
sapé e barro, desses de chão batido e sem mobília nenhuma a mesa encardida, o banco
duro, o mocho de três pernas, uns caixões, as cuias... Nem cama tinha. Brasil sempre
dormiu em esteiras de tábua.
82
), o texto lobatiano combate as estruturas nacionais vigentes,
centradas no modo de produção capitalista, e coloca em xeque todas as contradições
existentes na estrutura social brasileira. Com um texto muitas vezes sarcástico, muitas vezes
bombástico, o autor vai em defesa do Partido Comunista, oprimido pelo Estado novíssimo
83
.
No Brasil, as fases de liberdade, geralmente breves, são interrompidas por fases de
repressão mais ou menos longas e profundas à liberdade. A fase de liberdade, iniciada no
início da década de 1930, ou seja, na segunda fase do Modernismo, encerra-se,
81
Veja-se que Zé Brasil é de 1947, ou seja, dois anos após o desfecho da 2
a
grande guerra e do “fim” do
Modernismo, movimento paradoxal nas raízes e que compreendeu todo o período entre os dois conflitos
mundiais. Contudo, delimitar no tempo o início e o fim dos movimentos culturais como o Modernismo, é
sempre difícil, e a mesma dificuldade se apresenta quando se trata de apreciar a passagem de um
movimento a outro, de uma fase a outra. A complexidade dos processos culturais resiste aos esquemas,
divisões e delimitações. As mudanças não são marcadas por datas ou acontecimentos especiais, ainda que,
por vezes, escolhas convencionais pretendam fixá-las assim. (SODRÉ. Op.cit., p.624-625.)
82
LOBATO, Monteiro. Brasil. In: Conferências, artigos e crônicas (Obras completas, vol. 15). São Paulo:
Brasiliense, 1959, p.327.
83
Vejamos mais um trecho extraído da entrevista concedida por Lobato em 09 de maio de 1947: respondendo a
uma pergunta relativa ao fechamento do Partido Comunista, Lobato responde: Ótima! Tenho duas razões
para dizer isso. Uma, pessoal: a aposta que fiz com o meu amigo Yan, de que a democracia dutrina,
inaugurada depois da queda da tirania getulina, não duraria muito tempo, sendo decaído o Estado Novo
pelo Estado Novíssimo, no qual a nova Constituição seria pendurada (suspensa) num ganchinho do quarto
de badulaques. Ganhei essa aposta. A outra razão é política: a certeza de que fiquei da futura vitória
comunista ou socialista. (LOBATO. Conferências, artigos e crônicas, p.319.)
57
aproximadamente, em 1937, quando se abre uma nova fase de repressão, com a implantação
de um regime totalitário, denominado de Estado Novo. Essa fase de repressão se extinguirá
parcialmente em 45, quando, a “pedido” do novo Império, os Estados Unidos, o Estado
Nacional declara-se “liberal” e repudia toda e qualquer forma de pensamento contrário à
ordem liberal instituída.
É uma época difícil para o Partido Comunista Brasileiro, fato que obriga Monteiro
Lobato, georgista por convicção, mas simpático ao Comunismo, a escrever, em defesa dos
“comunistas” do PCB, Brasil. É nesse contexto que se deve olhar esta obra. É sob essa
ótica que deve-se estudá-la. Isso porque Monteiro Lobato faz parte de uma geração combativa
e atuante, que é a geração de 30. Uma geração que atinge um estado dematuridade” política
jamais vista, até então, na literatura brasileira.
É nessa época, ou sob influência dessa época, que devemos inserir Brasil.
Contestando ou não os ideais do Modernismo, Lobato viveu a maior parte de sua vida literária
dialogando com ele, às vezes antecipando-o, como é o caso de livros como Urupês, ou como
o próprio Jeca Tatu, de Velha Praga e também de Problema Vital, que traz em si elementos
inerentes ao Modernismo. Aliás, das três personificações do caipira, criadas por Monteiro
Lobato, nenhuma assume tanto as características modernas como Zé Brasil. Nesta
personificação, o caipira (Jeca Tatu) aparece em sua forma mais completa, porém também
mais estilizada.
É nessa obra que a perspicácia observacional do narrador surge em sua forma mais
aguçada e mais desabusada. Aqui o narrador onisciente situa o personagem no seu ambiente
natural, tornando-o igual ao meio em que vive. É esse o momento em que o Jeca ficcional de
Monteiro Lobato mais se assemelha com o caipira social e real de Antonio Candido
84
. É
justamente nessa etapa que, por instantes, os caipiras se fundem em um só. Mesmo criando
um caipira “escoimado” de preconceitos, num texto onde as mazelas da vida do caboclo são
desvendadas, Monteiro Lobato não deixa transparecer o primitivo como algo inerente à
cultura do caipira.
Em Brasil, o caipira ainda é visto sob o olhar metropolitano da costa e não sob a
própria ótica, ou seja, sob seu próprio ponto de vista. Ainda um narrador onisciente que se
sobrepõe ao personagem e que não o deixa criar independência. Sua identidade ainda é
“forjada” à luz daquele estereótipo conservador de 1914, embora seja trabalhada numa
84
Ver CANDIDO, Antonio. Parceiros do Rio Bonito. Op.cit.
58
perspectiva completamente diferente. O personagem é uma idéia” e com palavras e modos
estranhos à sua realidade. Segundo Bakhtin, seria o personagem monológico:
No universo monológico a idéia conserva a sua significação como idéia, ela se
prepara inevitavelmente da imagem sólida do herói e artisticamente não se
combina com ele: ela é apenas colocada em sua boca assim como poderia ser
colocada na boca de qualquer outro herói. (...) Por si mesma essa idéia não é de
ninguém. O herói é apenas um simples agente dessa idéia-fim; enquanto idéia
verdadeira, significante, ela tende para um contexto sistêmico-monológico
impessoal, por outras palavras, para a visão sistêmico-monológica do próprio
autor.
85
Brasil não é um personagem desvencilhado e relativamente independente do
narrador. Não trazendo em si elementos na fala e no jeito de ser que o qualifiquem
como ser autônomo, objetivado segundo a expectativa de quem o escreve, o personagem
passa a ser um títere na pena do escritor.
Lobato pretende falar em nome do caipira ( Está uma coisa que vendo! Minha
idéia é que nem deixam minha alma entrar no céu. Tocam ela de lá, como aqui na vida o
coronel Tatuíra me tocou das terras dele.
86
), conscientizá-lo e educá-lo. O Jeca, aqui, entra
como representante legítimo do povo, do trabalhador urbano e do camponês em prol da causa
comunista. É uma laudação a Luiz Carlos Prestes, o cavaleiro da esperança, e a sua causa
87
.
Todas as vezes em que emite opinião é intercedido pelo narrador que o conduz e
conduz o ritmo da narrativa. Na verdade, o caipira, neste texto, surge como elemento
simbólico de uma vasta parcela da população oprimida pelo sistema capitalista de produção.
Não é, teoricamente, a voz do caipira do sertão, nem tampouco a do pequeno agricultor do
interior, impressa nessas poucas páginas. É sim a voz de todos os “desprivilegiados” pelo
sistema.
Daí a linguagem urbana e didática e certa “aversão” pelo elemento mítico, ou melhor,
primitivo. Daí também a idéia de cultura brasileira, fechada em si mesma, e da importante”
função doutrinadora que assumiu o intelectual do tempo. Para Lobato, nesse estágio, o nosso
primitivismo não decorria simplesmente de políticas errôneas para o país, mas sim de
políticas errôneas decorrentes de um sistema que, por si só, já exclui e erradica qualquer
85
BAKHTIN, Michail. Problemas na poética de Dostoiévski. (Tradução de Paulo Bezerra). 2.ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997, p.78.
86
LOBATO, Monteiro. Zé Brasil. Op.cit., p.329.
87
É de se ressaltar que o propósito do PCB nunca foi encaminhar o povo para a revolução, tal qual a pregava
Karl Marx, Lênin e Trotsky. Consistia, em última instância, em uma conciliação de classes. Sob esse prisma,
o PCB foi muito mais útil à ordem instituída, que contrário a ela. (MOTA, Carlos Guilherme. Op.cit.)
59
possibilidade de igualdade social. É uma visão trabalhada no estilo dos nossos melhores
romancistas e escritores do período.
Não é um texto em que pretende firmar a identidade do caipira, nem tampouco vê-lo
sob outro prima, como o segundo estereótipo firmado em Problema Vital. É pura e
simplesmente a pré-consciência daquele segundo Jeca vítima do meio em que vivia. Um
caipira que já começa, nesse instante, a migrar, ainda que lentamente, do interior para servir
de mão-de-obra nas indústrias de São Paulo e região. É dessa forma, também, que se deve
olhar Brasil: vítima de um sistema opressor e excludente, não solidário com as
necessidades das massas, porém não totalmente inconsciente de sua posição e lugar. Sendo
laudatório à campanha dita comunista pregada pelo PCB, torna-se um texto inocente por
acreditar que tal campanha acabaria com as desigualdades sociais promovidas pelo Estado
secular brasileiro. É, também, um tributo ao “Modernismo da segunda fase”.
2. Mazzaropi e “seu” Jeca Tatu: o Caipira revisitado nas telas do cinema
61
2. MAZZAROPI E “SEU” JECA TATU: O CAIPIRA REVISITADO NAS TELAS DO
CINEMA
A peculiaridade do processo, o fato de o ocupante
ter criado o ocupado aproximadamente à sua
imagem e semelhança, fez desse último, até certo
ponto, o seu semelhante.
(Paulo Emílio Sales Gomes)
Analisadas devidamente as encarnações dos estereótipos do caipira postuladas por
Monteiro Lobato, retoma-se a mesma figuraou melhor, a mesma imagem conservadora, já
que o escritor paulista, mesmo alterando o olhar, mantém o produto idêntico — adaptada para
o cinema, por Amácio Mazzaropi. O imaginário construído sobre esse homem povoa a visão
que se tem dele e, a partir desse imaginário, passa-se a fazer coincidir, como identificação de
uma verdade, o ser real com o imaginário:
A representação do homem caipira, ainda hoje, está quase sempre atrelada a um
modo de ver advindo de um lugar social externo a essa cultura representada. A visão
que se construiu, ao longo dos anos, atende, assim, aos interesses e corresponde à
limitação desse olhar. Ora, esse é o olhar daquele que sempre deteve o poder. A
contingência desse ponto-de-vista guarda máculas desse relacionamento social: a
atribuição de características próprias aos caipiras sempre encerra uma negociação
mal resolvida, uma exploração feliz ou frustrada entre eles e os senhores das terras,
desde a colonização, desde as entradas e bandeiras, desde a mineração, desde a
empresa cafeicultora.
88
Assim, estabelecer o caipira, para o senhorio, significou, desde sempre, “colocar as
coisas nos seus devidos lugares”, localizando a supremacia dos senhores perante os caboclos
na luta de classes. Esse procedimento, ao mesmo tempo que institui a identidade do outro,
nesse caso o caipira, constrói para este um lugar social em que pode exercitar a resistência.
Sob esse prisma que é trabalhado o caipira em Mazzaropi.
Surgindo para o cinema na década de 50, especificamente em 1952, com a produção
em preto e branco Sai da frente, Mazzaropi, mais do que qualquer outro, readaptou a figura do
caipira, estereotipada por Lobato, para as telas do cinema. Com uma linguagem bem
humorada e de fácil assimilação para o público, o autor/ator divulgou e difundiu ainda mais a
imagem do caipira, estabelecendo-o de uma vez por todas no imaginário popular do brasileiro.
Readaptando, para o cinema, a figura do Jeca “criada” por Monteiro Lobato, Mazzaropi não
fez mais do que validar e reforçar um estereótipo fixado na tradição popular brasileira.
88
GOUVÊA, Luzimar Goulart. Op.cit., p.41.
62
É claro que, ao se afirmar isso, não se está isentando a existência de um estereótipo
pré-concebido, anterior mesmo ao caipira literário extraído das páginas lobatianas de 1914. O
campo e o povo que nele vive
89
são, de alguma forma, reflexos daquilo que se postulou, que
se convencionou sobre ambos. Principalmente a partir de meados do século XVIII
90
, período
em que as cidades, no Brasil, adquiriram certa importância sócio-econômica-cultural,
descentrando, gradualmente, a vida em sociedade das malhas do patriarcalismo rural.
O intuito nessa afirmação é bem outro e recai no fato de ser o caipira mazzaropiano
construído à imagem e semelhança do primeiro caipira de Monteiro Lobato. Assim, ao
atentar-se para as duas décadas (1959 a 1980)
91
em cujas temáticas cinematográficas de
Amácio Mazzaropi a temática do homem do campo é explorada, não se perceberá uma
substancial revisão da figura do caboclo paulista que o ponha de fato como representante de
uma classe a dos trabalhadores rurais, ou melhor, a dos homens do campo sufocados pela
cultura do “outro” explorada e expulsa do campo pela grande e poderosa máquina rural
capitalista.
O que não vem a ser um fator negativo na obra de Amácio Mazzaropi, na medida em
que, ao adaptar a figura do caipira para o cinema, a fez buscando não inseri-lo dentro de uma
concepção fechada de cultura brasileira, como os intelectuais de seu tempo, apresentando um
caipira não mais através da caneta do escritor, ou da mera atuação do ator, mas sim por meio
do próprio caipira. O que, de certa forma, não o torna um títere, como em Monteiro Lobato,
mas um agente de suas próprias ações. Ademais, como se verá, seu caipira torna-se símbolo
de uma resistência à cultura do dominante, na medida em que é propositalmente construído
com um anti-herói e contrário aos interesses do dominante, que preferem passar a imagem de
um país maquiado a desvendar todas as mazelas sociais da nação.
Ademais, para a elaboração do filme Jeca Tatu, Mazzaropi não buscou Monteiro
Lobato em livros. Foi buscar em uma outra fonte as idéias necessárias para a produção de seu
primeiro “filme independente”: é do “Almanaque Biotônico Fontoura” que “Mazza” extrai os
elementos necessários para a construção de seu caipira. Isso porque a história do Jeca
Tatuzinho, no “Almanaque”, era passada em forma de quadrinhos (tipo gibis), o que facilitava
bastante não somente a visualização da imagem estereotipada do caboclo, mas também e
89
Refiro-me ao caboclo, ao sertanejo, ao matuto (açoreano), enfim, ao homem do interior e/ou do litoral, que se
utiliza dos meios fornecidos pela natureza para sobreviver em relativa liberdade, firmando-se numa cultura
de subsistência, onde o mínimo vital e social são imprescindíveis para a sua sobrevivência física e psíquica.
90
Para este assunto ver SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Op.cit.
91
Neste trabalho postulam-se as datas de produção dos filmes e não as de lançamento, que ocorrem, no caso
específico de Amácio Mazzaropi, na sua maioria, no ano subseqüente aos da produção.
63
principalmente, a divulgação e a propagação da história lobatiana pelo interior de um Brasil
praticamente analfabeto.
Isso quer dizer que Amácio Mazzaropi resgatou a imagem do Jeca Tatu não
diretamente no texto “literário” de Monteiro Lobato, mas sim no “Almanaque Biotônico
Fontoura”, amplamente difundido no país. Muitas vezes, e na maioria das cidades interioranas
brasileiras, os almanaques eram as únicas formas de contato direto com a literatura escrita.
Por meio dos almanaques que o povo do interior tinha contato com a cultura urbana, expressa,
nesse caso, por meio de propagandas de medicamentos, charges, piadas e até por meio de
historinhas como as de Jeca Tatuzinho. Dentre esses almanaques, o mais propagado foi o
“Almanaque Biotônico Fontoura”, chegando à marca, na década de 50, de 3,5 milhões de
exemplares distribuídos gratuitamente em todo o Brasil, num único ano. Não havia família
brasileira que não conhecesse a figura do Jeca Tatu.
Antonio Candido, em Literatura e Subdesenvolvimento, afirma com razão ser o
escritor latino-americano um produtor de bens culturais para minorias, entendendo estas não
como grupos de boa qualidade estética, mas simplesmente como grupos de indivíduos
dispostos a ler. Para o crítico, modernos recursos audiovisuais podem motivar mudanças
significativas nos meios de comunicação, na medida em que grandes massas, alcançando
enfim a alfabetização, vão buscar nesses meios, e não nos livros e na literatura, satisfazer suas
necessidades de cultura, ficção e até poesia:
(...) na maioria dos nossos países grandes massas ainda fora do alcance da
literatura erudita, mergulhando numa etapa folclórica de comunicação oral. Quando
alfabetizadas e absorvidas pelo processo de urbanização, passam para o domínio do
rádio, da televisão, da história em quadrinhos, constituindo a base de uma cultura de
massa. Daí a alfabetização não aumentar proporcionalmente o número de leitores da
literatura, como a concebemos aqui; mas atirar os alfabetizados, junto com os
analfabetos, diretamente da fase folclórica para essa espécie de folclore urbano que é
a cultura massificada.
92
Ora, no interior brasileiro o que tinha de mais moderno, no momento, eram os
almanaques e jornais. Num país onde a maioria da população, na década de 1950, vive ainda
sem energia elétrica, e onde até mesmo na maioria das cidades praticamente inexiste televisor,
ficava a cargo desses pequenos livretos satisfazer” as necessidades culturais da grande
maioria da população interiorana brasileira. Daí a propagação gigantesca da figura do Jeca
Tatu. Mesmo aqueles que não decodificavam o código lingüístico tinham acesso à figura do
92
CANDIDO, Antonio. Literatura e Subdesenvolvimento. Op.cit.
64
caipira por dois meios básicos: o próprio “Almanaque”, que difundia a imagem do caipira
lobatiano por meio de histórias em quadrinhos, e por meio da própria tradição oral. Muitas
crianças brasileiras primeiro ouviram a história do Jeca Tatu, para depois sim terem contato
com ela.
Dessa maneira, produzir um filme usando esse tipo conhecido por todos, não foi
somente uma jogada inteligente de se lançar no cinema como caipira, mas também de se
firmar enquanto ator e produtor. Da mesma forma que Monteiro Lobato se aproveitou do
“Almanaque Biotônico Fontoura”, e dos mecanismos da indústria cultural, para se tornar
famoso, Amácio Mazzaropi se aproveita do Jeca Tatu lobatiano, conhecido graças ao
“Almanaque”, para igualmente se tornar conhecido do público. Essa passagem do
“Almanaque” para o cinema fica claramente exposta nas cenas em que Jeca vai ao armazém
do Bento comprar mantimentos e acaba levando uma caixinha de Biotônico Fontoura e na
cena, no final do filme, em que aparece um galo trajando botinas, assim como na narrativa
de Lobato.
Todavia, não são apenas nessas cenas em que fica clara essa adaptação do
“Almanaque” para o cinema. Em todo o filme esse diálogo fica claro. Está no filme o italiano,
com o nome de Giovani, a preguiça que depois se transforma em fortuna, o próprio biotônico
e até mesmo o galo de botas, como exemplificado, um exagero, como diz o médico da
história. O norte-americanismo de Lobato, que mesmo se pautando numa leitura crítica do
Brasil pelo Brasil, tem como modelo de civilização os Estados Unidos, está fortemente
marcado na narrativa de Mazzaropi. Para quem toma contato com o “Almanaque”
impressiona a quantidade de elementos trazidos diretamente dele, e não propriamente do
“Lobato literato”, como seria de se supor.
Mesmo representando uma ordem contrária aos interesses da classe dominante, a
pobreza decorrente do modo de produção capitalista é tratada nos filmes de Mazzaropi de
uma maneira assaz simplista, em que o latifundiário não é tratado como o “outro”. Há, como
se percebe, uma mera dicotomia entre o bem e o mal, onde o personagem representado por
Mazzaropi é retratado quase como um mártir. Uma concepção cristã que o encastela em um
invólucro moral, na intenção de fazer o público se posicionar sempre contra seus malfeitores e
não a indagar sobre as reais condições de vida e de classe da personagem e de si próprios.
Assim, o público de Mazzaropi, como todo o público do cinema mais inserido na
indústria cultural, não é levado a abstrair da arte os reais problemas que o norteia. Ele vai ao
65
cinema para relaxar e se preparar para a jornada de trabalho diária. Enquanto o “jeca real”
depaupera, vítima que é das malhas da produção capitalista, os filmes de Mazzaropi nos
apresentam um sujeito indolente, mole e preguiçoso, “malandro” o suficiente para se
beneficiar com os conchavos feitos contra ele e sua família.
É, em suma, o
inverso do que afirma
Luzimar Goulart Gou-
vêa, dotando-se de con-
ceitos extraídos de Pau-
lo Emílio Sales Gomes,
no artigo Panorama do
cinema brasileiro:
1896/1966
93
, ou seja,
não é o ocupado
94
to-
mando a voz e atuando
com agente político, mas sim o ocupado na perspectiva do ocupante, aquele sufocado por este,
que o satiriza, expondo-o muitas vezes ao ridículo. Assim é desenhado, em linhas gerais, o
caipira de Mazzaropi.
E nem poderia deixar de o ser,que o caboclo de Mazzaropi faz, acima de tudo, rir e
chorar. Mesmo conservador, no que diz respeito ao estereótipo do caipira, a produção em
preto e branco Jeca Tatu (1959) desvenda um caipira humanizado e repleto de valores morais
que o identifica com as parcelas mais humildes da população brasileira. Dessa relação entre o
caipira e o público, Mazzaropi e espectador, é que deriva, em parte, a aceitação do grande
93
Paulo Emílio Sales Gomes, em seu Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, adota os termos ocupado e
ocupante para remeter à situação imposta pelo imperialismo às suas colônias. O ocupante representando o
europeu e o estadunidense que impõem ao ocupado, ou seja, às “culturas subdesenvolvidas”, uma cultura
alienígena aos povos dos países subdesenvolvidos.
Porém, segundo o próprio autor, aplicando essa lógica de cultura dominante e dominada ao Brasil, perde um
pouco o contexto, pois “Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original,
nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética
rarefeita entre o não ser e o ser outro”. Ao primeiro dominante europeu aqui chegado coube a tarefa de impor
sua cultura sobre as culturas dos indígenas, na medida em que estas em nada ameaçavam ou contribuíam para
o modelo colonizador que aqui se pretendia. Dessa, forma, mesmo o Brasil sendo fruto de três principais
raças, em linhas gerais somos continuidade do modelo sócio-urbano-cultural europeu. (GOMES, Paulo
Emílio Sales. Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966. Op.cit, p.90.)
94
Conforme se verá adiante, mesmo não sendo a voz do ocupado se pronunciando, e sim a do ocupante se
sobrepondo à voz daquele, reforçando o estereótipo do caipira, ainda assim o jeca de Mazzaropi encarna uma
resistência do ocupado em relação à cultura imposta pelo ocupante, na medida em que contesta a ordem,
mostrando-nos o quanto somos subdesenvolvidos.
66
público para com os filmes daquele caipira que emociona e encanta milhões.
Vê-se que esse tom conservador deriva do primeiro caipira lobatiano, de 1914, e não
do segundo, de 1918, como propõe o filme. Neste, diferentemente daquele, embora com uma
imagem à semelhança do primeiro, havia uma espécie de mea culpa do escritor, que
reconhecia seu erro e isentava o caipira de qualquer culpa por suas reais condições de
existência. D a antológica epígrafe: O Jeca não é assim: está assim”. O personagem de
Mazzaropi não é pintado dessa mesma maneira.
Todavia, mesmo que se afirme que esse caipira de Mazzaropi é construído à luz do
caipira lobatiano de 1914, é inegável que o filme de 1959 traga imbuído em si elementos da
narrativa lobatiana de 1918. Esse propósito o deixou bem claro Mazzaropi nos créditos do
filme: “Essa história é baseada no conto 'Jeca Tatuzinho', cujos direitos autorais foram
cedidos graciosamente pelo 'Instituto Medicamento Fontoura s/a'. Expresso aqui meu
agradecimento. Mazzaropi”. Veja como foi uma boa jogada de marketing do produtor
“Mazza”, que se adotou de uma imagem assaz conhecida, que era a do Jeca Tatu do
“Almanaque Biotônico Fontoura”, para a concepção do primeiro filme seu gravado em uma
produtora sua.
Ao contrário, todos os elementos satirizantes presentes nos textos lobatianos de
1914 se não são aqui acentuados, ao menos são mantidos, conforme fica expresso claramente
desde o início da narrativa, quando Jerônima, a esposa do caipira Jeca (interpretada por Geni
Prado), o adverte pela sua indolência
95
:
Jerônima: (em close up) Jeca, levanta, homem. Faz duas horas que eu levantei e
você ainda está dormindo.
A câmera muda de posição, remetendo o espectador até a figura do Jeca, que
encontra-se então deitado, coçando um com o outro. A câmera, que então focava
apenas os pés, vai subindo até alcançar a altura do rosto, ainda tapado pela coberta.
Jeca então retira do rosto a coberta, deixando-se mostrar.
Jerônima: (pilando) esse serviço que eu estou fazendo não é meu, hein.
Jeca apenas se espreguiça.
Jerônima: Jeca, você não vai levantar? (Acenando negativamente com a cabeça)
Oh, bicho preguiça!
95
Por compreender que a grande maioria dos termos usados pelo caipira de Amácio são similares
semanticamente como foneticamente, resolvi não transcrever a fala dos personagens ipsis literis, mas sim
normatizá-las em norma culta padrão. Respeitamos, não obstante, expressões regionais e “neologismos” dos
personagens.
67
Isso acontece porque o intuito primeiro da narrativa é causar riso no espectador. Daí a sátira a
um tipo, ao invés da diluição desse estereótipo. Não que o filme Jeca Tatu não tenha
retrabalhado a releitura feita por Monteiro Lobato em Jeca Tatuzinho. O que acontece é que,
ao invés de retrabalhar essas questões no intuito de diluir esse estereótipo, alenta a imagem
cristalizada, reforçando o preconceito para com o homem do campo.
Ademais, essa visão simplista entre o bem e o mal, em que o latifundiário não é visto e
tratado como o “outro”, como “comprador de força de trabalho”, encarna um
conservadorismo por parte do artista
96
, que faz com que se amaine tanto qualquer
questionamento real de classe e ao sistema capitalista e às reais condições de trabalho no
campo, que, por vezes, parecem inexistir na narrativa
97
. Segundo Octávio Ianni
98
:
As contradições inerentes às relações de produção, na sociedade rural, somente
adquirem pleno caráter político quando aparecem os componentes próprios da
situação de classe. Enquanto o universo social e cultural está predominantemente
impregnado dos valores e padrões comunitários e patrimoniais, os trabalhadores não
podem formular as suas reivindicações em termos propriamente políticos.
Somente quando se modificam as condições de produção é que as relações de trabalho
perdem conteúdos comunitários e patriarcais, adquirindo conteúdos explicitamente políticos.
Em Jeca Tatuzinho, a situação não é diferente. Na verdade, o intuito primeiro do autor
Lobato nesse texto, além de retificar o erro acerca da imagem negativa imposta ao caipira em
1914, é apresentar a teoria política elaborada por Henry George, o georgismo, que em última
instância é conciliatória com a sociedade e economia capitalistas. Somente na década seguinte
é que o autor iria se aproveitar da campanha pública idealizada pelo Biotônico Fontoura, em
seu almanaque, um produto largamente consumido pelas massas, no intuito não somente de
divulgar o seu personagem e sua literatura, mas também de conquistar mais fama.
Assim, o que Monteiro Lobato faz em 1918 é também uma campanha anti-comunista,
mostrando para milhões de brasileiros que o problema do caipira não é a preguiça, mas sim a
doença, e que se um homem sem instrução e opilado feito o Jeca conseguiu ascender
96
Vale lembrar que o argumento do filme é de Amácio Mazzaropi.
97
O que não desmereceria a narrativa em si, caso não existisse lutas de classes no enredo do filme. Todo o bom
artista tem que ser capaz de captar os elementos de seu tempo, independente de seu posicionamento político.
Assim, se o momento for revolucionário, o bom artista, mesmo contrário à revolução, capta em sua obra os
elementos inerentes que levam a sociedade a aspirações revolucionárias. Um dos pontos positivos no Jeca
Tatu de Mazzaropi é a capacidade de tratar com temas tão pertinentes da época sem ser panfletário, embora,
como já salientado, o caipira ainda seja visto como um preguiçoso e um indolente.
98
IANNI, Octávio. O colapso do populismo no Brasil. 2.ed. São Paulo: Civilização brasileira, 1971, p.78.
68
socialmente na vida, com a força do próprio trabalho, qualquer um consegue. Assim,
Monteiro Lobato não somente salva o caipira acabando com ele, mas também coloca seu
personagem na discussão política de seu tempo, firmando posição. Todavia, ao mesmo tempo
em que se mostra favorável ao georgismo, nega o capitalismo nacional ao expor com crueza
as mazelas do nosso subdesenvolvimento, mostrando um Brasil arcaico e doente.
No Jeca Tatu de Mazzaropi o argumento não recai numa análise puramente político-
sociológica do país, mas centra os olhares no estereótipo do caipira. D o abrasamento das
discussões político-sociológicas de seu tempo e a aparente resistência, por parte de alguns
críticos, em afirmar que Mazzaropi se esquiva completamente das preocupações do cinema
brasileiro de seu tempo, em especial das preocupações que impregnavam o Cinema Novo.
Ademais, se inexiste em Jeca Tatu um questionamento, por parte do caipira, de sua situação
social é mais por causa do lugar ocupado pelo caipira, que o impossibilita de qualquer
questionamento, do que da inexistência de luta de classes no filme, embora essa seja
amainada, como se viu. Embora os modos de produção no campo sejam capitalistas, o
Jeca não parece consciente de sua posição e não contesta essa ordem. O caboclo não pela
coisa
99
.
Como é sabido, a sociedade caipira tradicional elaborou técnicas que permitiram
estabilizar as relações do grupo com o meio (embora em nível que reputaríamos hoje
precário), mediante o conhecimento satisfatório dos recursos naturais, a sua exploração
sistemática e o estabelecimento de uma dieta compatível com o mínimo vital tudo
relacionado a uma vida de tipo fechado, com base na agricultura de subsistência
100
.
O modo de produção capitalista imposto pelos fazendeiros latifundiários vem a
aniquilar essa cultura, na medida em que provoca sua anquilose. “Como tinha visto no seu
antepassado índio, verificou-se nele certa dificuldade de adaptação rápida às formas mais
produtivas e exaustivas de trabalho no latifúndio da cana e do café. Esse caçador subnutrido,
senhor do seu destino graças à independência precária da miséria, refugou o enquadramento
do salário e do patrão, como eles lhe foram apresentados, em moldes traçados pelo trabalho
servil”
101
. O escravo e o colono europeu, sucessivamente, desempenharam o papel que o
caipira deixou vago.
Essa evocação de alguns traços do caipira não passou desapercebida de Monteiro
99
LOBATO, Monteiro. Urupês. Op.cit., p.280.
100
Ver CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Op.cit.
101
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Op.cit., p.107.
69
Lobato, em 1914, nem tampouco de Amácio Mazzaropi, quando, em 1959, resolveu rodar
um longa metragem baseado na obra Jeca Tatuzinho
102
, do primeiro. Ambos oriundos de
Taubaté, região localizada no Vale do Paraíba, interior do estado de São Paulo região de
cultura caipira —, conheciam os valores e costumes do povo da região. Lobato, mais pelo
aguçado instinto observacional, Mazzaropi pela infância e adolescência vividas à luz da
cultura do caboclo paulista.
Lobato, como ninguém até então, pintou de maneira bela, injusta e caricatural o
caboclo paulista, captando algo de seus trejeitos e costumes, deixando de lado, porém, sua
essência. O caboclo é aqui indolente e madraceiro em decorrência da falta de percepção do
escritor em captar e realçar os costumes do caipira. Esse é seu intento, posteriormente, quando
escreve Jeca Tatu: a ressurreição e Brasil. Mazzaropi extrai seu caipira (de 1959) tanto
das páginas de Lobato, como de sua intimidade com a cultura do caboclo, vestindo-o com
uma roupagem cristã e humanitária, embora muitas vezes contestadora. Em Mazzaropi o
caipira é também uma caricatura.
As duas caricaturas (de Lobato e de Mazzaropi) se parecem e se confundem em muitos
pontos. Na verdade, ao adaptar o conto Jeca Tatuzinho, Amácio não adota o mesmo ponto de
vista empregado por Monteiro nessa obra. O Jeca Tatu de Mazzaropi não é um opilado pela
ancilostomose, mas um preguiçoso mesmo, com todas as qualidades pejorativas inerentes a
esse adjetivo. A caricatura do Jeca cinematográfico é reflexo da caricatura do Jeca literário de
Velha Praga e Urupês. Ou seja, nada o desperta. Nenhuma ferroada. Social como
individualmente, em todos os atos da vida, Jeca, antes de agir, acocora-se”
103
. “Seu grande
cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do menor esforço — e nisto vai longe”
104
.
Porém, ao Jeca de Mazzaropi acrescentam-se outras características não comuns aos
caipiras de Lobato. Enquanto neste o caipira é apresentado pela voz e visão do escritor,
naquele o caipira é apresentado pela ótica do próprio caboclo, o que, de certa forma, o torna
agente de seu próprio destino. Tanto é assim que, em Jeca Tatu, o personagem Jeca acaba
sempre tirando proveito das situações e adversidades que o destino lhe proporciona, como o
caso em que se aproveita do uso político de sua imagem em um palanque eleitoral para
angariar os bens que necessita para continuar a vida. Ademais, essa imagem cristianizada que
102
É de se frisar que Jeca Tatuzinho é uma obra mais ficcional, se é que para se expressar com esses termos,
que Velha Praga e Urupês, na medida em que estas estão alicerçadas mais na observação do autor que a
primeira. Isso não quer dizer que estas não sejam literárias, nem tampouco que aquela historieta seja
totalmente despida de elementos extraídos da realidade, da observação.
103
LOBATO, Monteiro. Urupês. Op.cit., p.280.
104
Idem, p.281.
70
Amácio empresta ao seu personagem, acaba por cativar o espectador, fazendo-o, quase que
concomitantemente, rir e chorar. Esse recurso é muito explorado por Amácio Mazzaropi,
sendo inclusive um dos responsáveis pela dicotomia, em seus filmes, entre o bem e o mal.
No filme Jeca Tatu, de 1959, o caboclo é desprovido de força de vontade e de energia;
é um adepto da lei do menor esforço, para citar mais uma vez Lobato. Exemplos para firmar
este argumento são fartos no filme. No primeiro contato direto que tem, na trama, com o
fazendeiro latifundiário Giovani, segue o seguinte diálogo:
Giovani: (aproximando-se da cerca arrombada que faz extrema com o terreno do
Jeca) Jeca, Jeca. (Nesse momento Jeca encontra-se sentado no chão da varandinha
de sua casa de sapé pitando um cachimbo, juntamente com seus dois filhos que
brincam sentados ao seu lado. Nem pelo chamado de Giovani) Jeca, anda logo,
homem, anda depressa.
Aparece em cena sua esposa, que o alerta para o chamado do fazendeiro.
Jerônima: Vá ver o que o Giovani quer. Ande. Uh, homem mole.
Lentamente se levanta e avança em direção ao fazendeiro.
Jeca: Que foi, seu Giácomo?
Giovani: Que Giácomo, é Giovani meu nome.
Jeca: Pois é, seu Giovão, que foi?
Giovani: Eu vim te buscar para você ver o belo serviço que o teu burro fez na minha
horta.
Jeca: Agora não porque eu estou muito ocupado. E depois eu acho que o senhor
está enganado, porque o burro nem não é meu. Eu não tenho burro.
Eis o estereótipo caipira encarnado por Mazzaropi. Como é sabido, todo o estereótipo
por ser também uma caricatura é eivado de preconceito, independente do uso que se
dele se faça. Assim, não se questiona o estereótipo em si, ou não somente isso, mas a maneira
como é retrabalhado no filme. Se no Monteiro Lobato de 1918, o caipira é caricaturado, o é
no intuito de denúncia ao abandono e à exploração do qual é vítima. O caipira não é mais um
vadio, e sim um doente. Se no Monteiro de quatro anos antes a modorra do caboclo paulista
residia na sua falta de disposição ao trabalho, no caipira de 1918, essa indisposição tinha
nome: ancilostomose. O caipira é fraco porque está opilado. Monteiro altera o conteúdo, não a
forma; seu caipira continua fraco, mas agora sua fraqueza é explicada e esses argumentos
lançados a seu favor.
Nesse sentido, Mazzaropi leva a caracterização dessa imagem fixada pelo Monteiro de
14 às últimas conseqüências. O seu caipira é mesmo um madraceiro, um moleirão. É uma
71
figura representativa dessa imagem que se cristalizou do homem do campo. Figura que, no
filme, não contesta a ordem estipulada, ao contrário, reafirma-a. Em seu trajeto
cinematográfico são poucas as vezes em que o jeca mazzaropiano é retratado segundo a ótica
empregada em Jeca Tatuzinho, sendo que, em hipótese alguma, alcança uma pré-consciência
de classe, como a alcançada em Zé Brasil, texto lobatiano de 1947.
Isso nada tem a ver com o processo de adaptação do personagem literário para o
personagem da ficção cinematográfica. Em absoluto, mesmo porque a fidelidade ao texto ori-
ginal, no cinema, deixa
de ser o critério maior
de juízo crítico, valendo
mais “a apreciação do
filme como nova expe-
riência que deve ter sua
forma, e os sentidos
nela implicados, julga-
dos em seu próprio di-
reito. Afinal, livro e fil-
me estão distanciados
no tempo; escritor e cineasta não têm exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo,
portanto, de esperar que adaptação dialogue não com o texto de origem, mas com o seu
próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a
identificação com os valores nele expresso”
105
.
A fabricação do modelo caipira foi intensa, porém nunca se fez reconhecer, na medida
em que foi elaborada para o consumismo exacerbado proporcionado pela indústria cultural.
Isto é, entre o caipira real, homem do campo, e o ficcional, caricatural, há um abismo que nem
mesmo a mudança de juízo de valor adotada por Monteiro Lobato conseguiu amainar. O que
Mazzaropi faz é manter esse abismo, perpetuando uma imagem estereotipada que, tirando
alguns aspectos da forma, muito pouco tem a dizer do caráter e tipo caipiras.
Veja que a produção aqui analisada (Jeca Tatu) é de 1959, período em que o
populismo, ou nacionalismo
106
, está em franco confronto político-ideológico com as políticas
105
XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: PELLEGRINI,
Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac; Instituto Itaú cultural, 2003.
106
Para uma melhor exemplificação do assunto ver: IANNI, Octávio. O Colapso do populismo no Brasil.
Op.cit.; MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira ( 1933-1974). Op.cit.; PÉCAUT, Daniel.
72
de abertura ao capital externo, encampadas nesse momento por Juscelino Kubitschek de
Oliveira (1956-1960). O nacionalismo, que surge com força com a revolução de 30, e que tem
como mote um projeto de “substituição de importações”, calcado no mito de auto-
desenvolvimento sustentado, como contraponto ao modelo agro-exportador dos grandes
latifúndios, agora vive um dos seus piores momentos no campo político, que a
internacionalização da economia, nesse momento, visa a captar recursos internos e externos
na intenção de modernizar os meios de produção principalmente industriais —, abrindo
espaço para que grandes grupos industriais estrangeiros se estabeleçam no Brasil e propiciem
um ambiente fértil para o surgimento de outras pequenas e médias indústrias dependentes
desses grupos estrangeiros. É o caso, por exemplo, da Volkswagen, que fez surgir em torno
dela outras tantas empresas dependentes, responsáveis pela fabricação de placas de aço,
plástico, borracha, dentre outros acessórios essenciais para a confecção dos automóveis.
Esta, contudo, não é a única divergência política entre os modelos de
internacionalização econômica e getulista. Outras divergências são a ênfase dada ao modelo
exportador industrial e à abertura das fronteiras para o capital externo. Esse é o momento em
que diminuem as divergências entre campo e cidade, o momento em que a indústria é colo-
cada no mesmo patamar econômico do modelo agrário (exportador). Esse embate político-
ideológico se prolongaria até o 1º de abril de 1964, com a instauração do Regime Militar
107
.
Até 1964, esse combate político-ideológico possui duas fazes: “Em 1930 a 'autonomia'
é a construção de uma cultura que justifica a ordem social; em 1960 é a construção de uma
sociedade livre e desalienada, aderindo ao projeto nacional. Tanto em um caso, como no
outro, a cultura divide com a esfera política o privilégio de vincular-se ao 'real' e, ao mesmo
tempo, construir esse real”
108
.
Assim, mesmo no campo cinematográfico, esfera por si subdesenvolvida,
remetendo-se ao cinema brasileiro
109
, interpenetravam-se questões de política cinematográfica
com a situação mais abrangente do país. Surgia um esboço de concepção de cultura brasileira,
Os intelectuais e a política no Brasil. Op.cit.
107
Dar-se-á uma maior ênfase a este assunto no próximo capítulo.
108
PÉCAUT, Daniel. Op.cit., p.162.
109
Veja-se este trecho extraído de Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966, In: Cinema: trajetória no
subdesenvolvimento, de Paulo Emílio Sales Gomes (p.85): O cinema americano, o japonês e, em geral, o
europeu, nunca foram subdesenvolvidos, ao passo que o hindu, o árabe ou o brasileiro nunca deixaram de
ser. Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países
desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é
incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à condenação do
subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na
fabricação de filmes.
73
centrada na idealização de “histórias de conteúdo nacional”, de assuntos ligados ao país e à
“nossa gente”. Com o trauma ocorrido após o encerramento das atividades da Vera Cruz em
1954, surge em São Paulo um núcleo que sistematizará análises sobre a situação
cinematográfica nacional, visando culminar numa relação íntima com o Estado
110
.
Cinema passa a ser então “problema de governo”
111
e os cineastas passam a se
enquadrar numa luta político-teórica que consiste também em qualificar o cinema como
indústria nacional. O campo cinematográfico é, nesse momento, inundado pela ideologia
desenvolvimentista herdada da política populista de Vargas. A caracterização que norteava o
período entre 1955-1960 era a de “manter e reforçar os desejos de industrialização do cinema,
propugnada pelo período anterior, seguindo o ritmo de um propalado desenvolvimento
independente do sistema capitalista no Brasil”
112
.
Transportava-se para o campo cinematográfico os ideais herdados do populismo de
Vargas, em um momento em que o país assistia a um espetáculo diferente: a era do
desenvolvimento associado, através da associação dependente com o capital externo.
Extinguiu-se o sonho de um desenvolvimento autônomo do cinema nacional. Graças à
incipiente industrialização dos anos 30, criou-se um campo fértil para a institucionalização do
cinema enquanto indústria nacional. É no interior das balizas do desenvolvimentismo e do
nacionalismo que se posicionava, no seu Introdução ao cinema brasileiro, de 1959, ansioso e
repleto de esperanças, Alex Viany:
Por outro lado, entretanto, a súbita e vertiginosa industrialização do Brasil cria para
o cinema condições favoráveis que bem poucos anos não existiam. Com o
aumento da produção de filmes, por mais desordenada que seja, dentro em breve o
cinema brasileiro estará inevitável e firmemente no caminho da industrialização
total.
(...) A legislação pedida, indispensável, terá de vir, como veio a legislação
petrolífera. Por isso mesmo, é tempo de pensar num programa de ação no terreno
das idéias, dos temas, do que se pretende fazer para “realizar o nacionalismo” em
cinema.
113
Em consonância com essa postura política, esboçava-se também um projeto cultural
que visava ao resgate literário dos anos 30 escritores como Graciliano Ramos, Jorge
Amado, Rachel de Queiroz e Monteiro Lobato, por exemplo, tiveram obras adaptadas pelo
110
Para esse assunto ver RAMOS, José Mário Ortiz. Op.cit. Ver, em especial, o capítulo I, que trabalha com o
período anterior ao golpe militar de 1964.
111
RAMOS, José Mário Ortiz. Op.cit.
112
Idem, p.20.
113
VIANY, Alex. Apud RAMOS, José Mário Ortiz. Op.cit., p.21.
74
cinema da época como forma de engajar a cinematografia num cenário de crítica social
então em voga.
Mazzaropi, como se vê, não se isentou desses problemas. Desde seus primeiros filmes
trabalhou com tipos e caracteres nacionais. Não que tenha criado seus personagens para
deflagrar uma crítica social às injustiças impostas pela elite brasileira, nem que tenham seus
personagens relativo grau de consciência política. A bem da verdade, os personagens
mazzaropianos passam à margem, nesse período, das discussões políticas da época, embora
delas não se distanciem completamente. Em Jeca Tatu, por exemplo, o Jeca é resistente a tudo
que vem perturbar a ordem instituída na sua casa. O caipira não reluta em defender seu ponto
de vista e honrar sua dignidade. Para o Jeca de Mazzaropi, a palavra é um bem a ser
preservado
114
, assim como a honra e a dignidade valem mais que ouro. É que repousa a
crítica de Mazzaropi. É aí que seu personagem ganha força e adquire consistência.
Assim também como adquire muita força o filme ao trabalhar questões como a
mecanização do campo, imposta pelo capitalismo um tanto tardio e pelas relações de trabalho
oriundas deste. A primeira cena do filme nos uma visão mais geral das relações de
trabalho no campo. Ao se abrirem os portões da Fazenda São Giovani, a câmera descortina ao
espectador as relações trabalho e o mecanismo de produção na fazenda. A modo de passar
também para o espectador toda a atmosfera do lugar, a fazenda vai sendo descortinada logo
no início, assim como todo o sistema de produção que sustenta não somente a fazenda, mas o
patronato rural brasileiro.
Surgem, na primeira cena, os cortadores de cana, bóias-frias, lado a lado com
modernos tratores trabalhando no arado das plantações. Arcaico e moderno em um único
plano, ou melhor, dentro de um único sistema de produção: o capitalismo implantado pelo
imigrante fazendeiro Giovani. Em apenas um pouco mais de um minuto de filme se
mostram desvendadas as relações de trabalhos existentes naquele meio. Se por um lado
existem os tratores como forma de representação da mecanização e modernização do campo,
sobrevivem ainda os bóias-frias, como contraponto aos primeiros.
114
Isso fica mais claro se acompanhado o dialogo a seguir. Posteriormente se adotará novamente este trecho
para outros fins: Jeca: O que que vocês estão fazendo aí? / Trabalhador: Nós não temos culpa, Jeca. Foi seu
Giovani que mandou. / Trabalhador: Nós somos empregados, nós temos que obedecer, né? / Giovani: O
quê, vai começar com encrenca? / Jeca: Eu não estou fazendo encrenca, o senhor é quem está
começando. Olhe bem onde está botando essa cerca aí. / Giovani: Ela vai ficar aí. / Jeca: Mas, seu Giovão,
olha bem. Está quase dentro do meu terreno tudo já. / Giovani: Mas você vendeu. / Jeca: Mas não foi para o
senhor, né. Eu vendi para o seu Bento da Venda com o trato de não tirar nós daqui. / Giovani: Ora, mas eu
comprei dele, e vou plantar aqui. / Jeca: Ah, não vai, né, porque eu não vou deixar, né. (...)
75
Esse é apenas o início da narrativa fílmica, que ainda reservaria, na cena seguinte, a
apresentação do caipira. Contrapondo ao sistema de produção da fazenda, alicerçado na
relação de trabalho entre patrão-empregado, surge o modo de sobrevivência do caipira
paulista, representado, no filme, pela família do caipira Jeca. Esta é uma das cenas mais belas
e poéticas de todo o filme por dar um panorama geral do campo fora dos padrões hierárquicos
e mecanizado do latifúndio. Esse campo onde sobrevive à margem o caipira é o campo
bucólico e semi-paradisíaco desenhado por Mazzaropi. O outro, o campo da fazenda, tem
em si algo de prosaico e decadente, embora seja dominante.
Envolta por um fundo musical suave e pelo gorjear dos pássaros ao fundo, a paisagem
se desvenda bela e encantadora, com o carro de boi ao centro e em primeiro plano. Veja-se
de início a diferença de ritmo entre a cena anterior e essa cena. Naquela o ritmo é ditado pelo
barulho dos motores dos tratores, sempre coordenados; já nesta é o inverso, quem determina o
ritmo é todo o ambiente, do qual o caipira faz parte. O próprio carro de boi surge como
elemento dessa ruptura. A paisagem também realça ainda mais essa quebra. Se no centro tem-
se o carro de boi estacionado, na direita tem-se a casa do caipira e à esquerda duas cabeças de
gado, comendo sossegadamente e um estaleiro com mais uma vaca. O fundo é pintado e
cortado de lado a lado por uma onipotente serra. Como contraponto ao trabalhador assalariado
da fazenda, surge Jerônima, a esposa do caipira Jeca, que vai com o machado cortar um
punhado de lenha para arder nas chamas do fogo de chão do casebre.
Outro dado importante a ser ressaltado nesse início de narrativa diz respeito ao
proprietário da Fazenda São Giovani ser um imigrante italiano. Como se sabe, São Paulo foi
o estado brasileiro que mais recebeu imigrantes oriundos da Itália para trabalhar nas indústrias
dos centros urbanos ou na fazendas de café e cana de açúcar do interior. Alguns, como
também é sabido, graças às habilidades e ao trabalho, ascenderam socialmente, como
Giovani, representante dessas levas de italianos. Esse dado é muito importante para o filme,
pois é por essa dicotomia imigrante/caipira, sempre associada à constante diferença entre
capitalismo/agricultura de subsistência, que se estenderá o enredo do filme. Diferenciação
deflagrada também em Jeca Tatuzinho, de Monteiro Lobato.
Com a forte expansão capitalista no campo, nos anos 50 a 70, o sitiante independente,
o caipira, em última instância, que não se submete tão facilmente às relações de produção
capitalistas, tem que migrar das áreas ocupadas pela monocultura latifundiária e pela
urbanização, para regiões territoriais não propícias às lavouras, ou longínquas, buscando
76
manter seus elos culturais tradicionais. Resistência denominada por Antonio Candido
115
de
“movimento de permanência”.
Em seu estudo antropológico sobre as comunidades caipiras, o autor chega à
conclusão de que o caipira é homogêneo, não apresentando códigos e valores diferenciados
uns dos outros. Por seu passado bandeirante o caboclo se como livre, independente,
negando-se a subordinar-se a alguém. Outro dado importante ressaltado pelo autor condiz
com o fato de que o caipira não é indolente como o pintam, que o trabalho é realizado na
medida do necessário. Como sua cultura erigiu-se sobre a relação direta do homem com a
terra, as condições mínimas de sobrevivência e sociabilidade lhe são suficientes. A esses
quadros denomina Candido de “mínimo vital” e mínimo social”. Daí a importância da terra
para o mantenimento de sua cultura. Sem a terra o caipira claudica e morre, e com ele seu
arcabouço cultural. A terra é para o caipira o que o trabalhador rural assalariado é para o
latifúndio
116
.
Mazzaropi parece ter dado alento a isso. Todavia, se ao mesmo tempo que deu
importância devida à terra, associando-a ao caboclo, assim não o fez com o caipira
antropológico, na medida em que não considerou elementos inerentes importantes ao modo de
viver do caboclo paulista, como os acima citados, caricaturando seu Jeca tal qual o havia feito
Monteiro Lobato em 1914, 1918 e 1947. A expansão do capitalismo impôs uma reorganização
ecológica e cultural, trazendo uma nova estrutura de relação com o meio ambiente, e novos
valores. Ao caipira coube a tentativa, muitas vezes frustradas, de adaptar-se a essa nova
ordem.
A inserção do lavrador no mundo urbano, como foi demonstrado, atingiu o seu
ápice nos anos 50 e manteve-se bastante alta nas décadas de 60 e 70. Fosse ele o
caboclo, o sertanejo, o gaúcho, o açoriano, ou o caipira, pode-se afirmar que, frente
a imposição do novo modelo econômico, não lhe restou saída senão conviver com os
“traços impostos” pela modernização, como a transformação de sítios em bairros e a
inter-relação monetária dos meios de vida.
117
Esse desequilíbrio de forças, proporcionado pelo advento de uma ordem estranha ao do
caipira, não é totalmente explorado por Amácio Mazzaropi em Jeca Tatu, mesmo com toda a
resistência imposta pelo seu personagem.
115
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Op.cit.
116
Ver BERSALINI, Glauco. Mazzaropi: o Jeca do Brasil. Campinas: Editora Átomo, 2002.
117
BERSALINI, Glauco. Op.cit., p.106.
77
Ao jeca mazzaropiano resta o papel de se dirigir aos novos trabalhadores urbanos”,
descendentes do campo. Os filmes de Mazzaropi, e isso fica bem claro em Jeca Tatu, atuam
com o objetivo de proporcionar-lhes a redescoberta de valores inexistentes no meio urbano.
Mazzaropi idealiza um
ambiente rural com lai-
vos de pureza, poético
e, nesse ambiente bucó-
lico, semi-paradisíaco,
constrói seu persona-
gem. O caipira é “puro”,
sem mácula no caráter e
na alma, ao contrário do
fazendeiro Giovani e do
cowboy Vaca Brava,
representantes natos da “nova ordem”. O campo assim estilizado funciona como contraponto
ao mundo prosaico da cidade.
Assim, o que Mazzaropi tem de louvável é a capacidade de resgatar o imaginário
popular que se tem do campo e de sua gente e transportá-lo às telas do cinema. “No nível da
indústria de consumo, Mazzaropi proporcionava a esse trabalhador a reelaboração de sua
identidade. O seu público não se dirigia ao cinema para ver algum filme em que um dos
autores fosse Mazzaropi, mas freqüentava as casas de projeção para ver Mazzaropi que estava
em algum filme”
118
.
Com essa fórmula, base para muitos filmes, o cinema de Mazzaropi conquistou uma
legião de fãs e foi recordista de público e renda. De fato, toda essa fama lhe rendeu uma cifra
consideravelmente alta para investir em sua PAM-Filmes
119
, na intenção de consolidar,
futuramente, uma indústria cultural local, como fica expresso neste trecho da entrevista
concedida à Revista Veja do dia 28 de janeiro de 1970:
Veja: Tem sócio?
Mazzaropi: Não, não tenho. Tenho o necessário para pensar em fazer amanhã a
indústria cinematográfica de que falei. Tenho meras de filmar, holofotes,
lâmpadas, cavalos, cenários, agências em São Paulo, Rio, Norte do país e uma
fazenda de 184 alqueires no Vale do Paraíba Taubaté que serve perfeitamente
118
Idem, p.108.
119
Produções Amácio Mazzaropi.
78
de estúdio para os filmes que rodo. Como vê, tudo que ganho é aplicado na Pam-
Filmes, no cinema brasileiro. (...) Eu faço o cinema-indústria e vou fazer a indústria
brasileira de cinema.
Veja: Acredita mesmo nisso?
Mazzaropi: Acredito e não estou longe dela. Não uma indústria exportadora. Não
sou um visionário. Uma indústria que seja capaz de suprir o mercado interno de
filmes é o suficiente. Não podemos pensar em conquistar o mercado externo nós
não temos nem lâmpadas aqui. Tudo que temos vem de lá. Mas, se nós pudermos ter
uma indústria produzindo fitas nacionais, se nossas salas ficassem ocupadas por fitas
nacionais, quanto dinheiro nós não estaríamos evitando de mandar para fora.
120
Essa é uma política que permeia a produção de Mazzaropi desde, pelo menos, 1959,
quando produziu Jeca Tatu, já pela PAM-Filmes, nos estúdios alugados da extinta Vera Cruz.
Como se vê, o cinema pensado enquanto indústria, com uma produção local de consistência,
capaz de disputar espaço nas casas e salas de projeção com o cinema estrangeiro, esteve desde
cedo nos planos do cineasta-autor. Conforme anuncia o próprio Mazzaropi: Eu faço o
cinema-indústria e vou fazer a indústria brasileira de cinema”. Empreendimento, entretanto,
que seria possível pensar somente após a criação da PAM-Filmes, em 1959.
Enquanto aspirava-se, num plano político mais geral, à passagem de um cinema
“inferiorizado”, “subdesenvolvido”, para uma cinematografia forte, nos moldes dos países
desenvolvidos, Amácio Mazzaropi criava a sua própria indústria cinematográfica. Em suma,
Mazzaropi não recorreu ao protecionismo estatal para produzir e comercializar seu produto,
inseriu-o no mercado através de seus próprios meios.
Eis a política cinematográfica da época (55-60): o desejo de industrializar o cinema,
juntamente com a necessidade de um apoio legislador e disciplinador do Estado, apoiado pela
inciativa privada, criariam as condições necessárias para tirar o cinema brasileiro de seu
patamar de subdesenvolvido
121
. Alternativas que seriam viáveis não fosse o fato de se viver
sob a égide da era Kubitschek, que privilegiava a associação com o capital externo em
detrimento da indústria nacional, voltada para o consumo interno, e o fato de em cinema,
conforme bem explanou Paulo Emílio Sales Gomes, o subdesenvolvimento não ser uma
etapa, mas um estado.
Essa evocação de alguns traços da situação da cinematografia brasileira serve de base
para se observar a divergência política da época. O embate político, que polariza o populismo
de um lado e o internacionalismo de outro, ou melhor, a conjuntura política em lato senso, é
120
SALEM, Armando. O Brasil é meu público. Op.cit., p.4-5.
121
Ver RAMOS, José Mário Ortiz. Op.cit.
79
quem funda, sob certos aspectos, uma cultura nacional. Por diversos desvios estabelece-se a
convergência a fim de fazer da arte a testemunha ou a protagonista da coesão do todo
social
122
. “A cultura não se politiza, é um dos modos de instituição do político”
123
.
O desenvolvimentismo associado do governo Juscelino Kubitschek, responsável pelo
salto qualitativo da indústria brasileira dos anos 50, apoiava-se em menor medida que o
nacional-desenvolvimentismo do último governo Vargas (1951-1954) — nas teses da CEPAL
(Comissão econômica para a América Latina, 1946) e, internamente, nas reflexões do ISEB
(Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1955) e numa gama de partidos, como o PTB e o
PSD, ambos criados por Getúlio Vargas em 1945, e o PCB, então na ilegalidade.
Todos esses “instrumentos políticos” reivindicavam, cada um a sua maneira, um
projeto de cunho nacionalista. A CEPAL é um órgão independente nas mãos dos latino-
americanos; o PTB é um partido imerso nos sindicatos, tendo por propósito desenvolver uma
política de conciliação de classes. Já o ISEB e o PCB são ambos instrumentos políticos que se
“metamorfoseiam” aquele mais do que este conforme as circunstâncias históricas.
Tanto o ISEB quanto o PCB se preocupam em formular idéias e políticas, embora com
objetivos muitas vezes diferentes, com o propósito de se colocar em defesa da unidade
nacional.
Oriundo do IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política), criado em
1953 por um grupo de intelectuais cariocas, o ISEB é, inicialmente, a junção de um grupo de
intelectuais com o intento de assumir um papel de liderança na política nacional com seus
próprios meios
124
. Com a posse de JK em 1956, parece surgirem as condições necessárias para
se fazer do ISEB uma peça fundamental da nova administração. Contudo, até 1958 o grupo se
conserva sobretudo como um centro de estudos. Segundo Daniel Pécaut, o ISEB:
Era, portanto, um núcleo de intelectuais dispondo de um estatuto oficial e
convidados pelo próprio poder senão para intervir diretamente na gestão da política
econômica, pelo menos para participar da construção da nova legitimidade,
colocando-se a serviço da criação da síntese nacional-desenvolvimentista. Nesse
sentido, foram chamados a completar a obra dos responsáveis pelas decisões
econômicas, ressaltando-lhe o alcance político e social.
125
122
Para ver as questões relativas à ideologização da cultura brasileira, recomenda-se a leitura de MOTA, Carlos
Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). Op.cit.
123
PÉCAUT, Daniel. Op.cit., p.163.
124
Do ISEB participaram Hélio Jaguaribe e Nelson Werneck Sodré, dentre outros.
125
PÉCAUT, Daniel. Op.cit., p.110.
80
Essa a primeira fase do ISEB.
Com a mudança de seus estatutos, em 1958, em decorrência do pluralismo teórico, o
grupo entra numa segunda fase, agora não mais nacional-desenvolvimentista, mas nacional-
populista. Com ênfase nas campanhas nacionalistas
126
, o ISEB passa a ser, desde então, nas
palavras de Corbisier: “um organismo dedicado a participar do que poderíamos denominar
precisamente: a revolução brasileira”
127
.
Assumindo gradativamente um caráter explicitamente político, ao lado da esquerda
considerada radical, o ISEB adentra na sua terceira e última etapa, a nacional-marxista.
Privado de seu financiamento essencial, reduz as atividades de ensino, participando, porém,
da redação de diversos cadernos, com vistas a “educar o povo”.
Todavia, por mais que a esquerda tenha se posicionado, o grupo propunha uma
revolução no campo das idéias, e não no da estrutura, já que os intelectuais do ISEB não
tinham como objetivo se posicionar enquanto vanguarda, mas simplesmente enquanto elite
pensante”. Posição concomitantemente cômoda e estratégica, que se situavam à margem
dos problemas sociais.
Com um projeto um tanto diferente do isebiano, embora na prática não tenha
ultrapassado as fronteiras do campo ideológico, o PCB, fundado em 1922, foi outro
importante instrumento político-ideológico no agitado cenário dos anos 50-60. Na verdade, de
1954 a 1964 este partido foi adquirindo um papel crescente na estruturação do movimento
nacionalista, sempre com ideais modernizantes, tentando se inserir no aparelho administrativo
e agir a partir do Estado. Ou seja, a sociedade civil comunista” era mais civil em relação à
direção do Partido do que ao Estado. Todavia, as “massas populares” concretas e o “povo”
128
unem-se apenas na ideologia, em nada mais. Em suma:
126
O ISEB organiza cursos para os sindicalistas, para os militares-nacionalistas e, principalmente, para os
estudantes em busca de uma ciência social mais engajada do que a ensinada nas Universidades.
127
PÉCAUT, Daniel. Op.cit., p.112.
128
O PCB adota, nesse momento, a expressão “massa popular” para se referir ao atraso da classe operária
brasileira e da população em geral. Assim, a expressão sugere um trabalhador inconsciente de sua força e do
seu “poder de mudar as coisas”, isto é, um trabalhador sem consciência revolucionária. Atingir essa massa
informe e conscientizá-la, transformando-a em “povo”, é um dos projetos do Partido Comunista Brasileiro.
Os intelectuais se posicionavam como porta-vozes do povo, pretendendo, na verdade, defender os seus
próprios interesses, enquanto que na disputa político-ideológica a atuação dirigia-se para uma revolução por
etapas, buscando primeiramente fortalecer uma suposta burguesia nacional, que, em suma, não existia. Isso
porque acreditava-se que somente consolidando o capitalismo no país seria possível criar as ferramentas
adequadas para que o proletariado cumprisse seu papel histórico e realizasse a tão esperada Revolução
brasileira.
81
Esse diagnóstico retrospectivo foi também uma forma de admitir a distância entre as
“massas” e os intelectuais. Ao enfatizar aquilo que, nos esquemas do Partido,
expressava uma aspiração à modernidade, à unidade social e à concretização da
Nação, quisemos sugerir que os intelectuais encontravam, dentro do Partido,
maneiras de defender seus próprios interesses e representações. Não tinham
necessidade de expor seu vanguardismo; bastava se fazerem porta-vozes do
“povo”.
129
Com uma proposta modernizante, ou seja, com aspirações à modernidade, o PCB atua
em diversas frentes, buscando difundir sua política por meio de mecanismos que visem a
“educar o povo”, tal qual o terceiro ISEB, então influenciado, nesse momento, por este
partido. É um período com aspirações revolucionárias, principalmente após 1954, ano em que
é escrita, por Getúlio Vargas, antes de suicidar-se, sua carta testamento, que reforçaria e poria
na ordem do dia a política nacional-populista. Política que tinha como estratégia incentivar a
produção da indústria nacional.
Após a criação da Petróleo Brasileiro Sociedade Anônima (PETROBRÁS), em 1953,
e com a carta-testamento de Getúlio, no ano seguinte, o PCB, antes crítico mordaz ao
programa populista de Vargas, assume como bandeira o programa nacionalista com base na
indústria nacional e contrário à política agro-exportadora e de associação de capitais
130
.
Tanto é assim que, em 1961, sentindo-se próximo do poder, o PCB cria os CPCs
(Centros Populares de Cultura) com a finalidade de ser um dos principais componentes do
vasto movimento que levaria os intelectuais ao encontro das massas populares. A atmosfera
que reinava na marcha ao povo era “uma mistura de euforia e didatismo, de improvisação
criadora e doutrinação política, com que os artistas incitavam o 'povo' unir-se à revolução em
curso e pretendiam, convencidos dos poderes ilimitados da cultura, conduzir a toque de caixa
uma epopéia coletiva digna da história em processo”
131
.
Para tal tarefa, uma série de materiais didáticos foram elaborados com o objetivo
simples de colocar a teoria” ao alcance de todos, visando eliminar a defasagem entre as
“massas” e o “povo”. A idéia é, nesse momento, fazer com que a consciência subjetiva
responda às novas “condições objetivas” que levariam a sociedade brasileira à tão esperada
revolução.
Fazendo-se de protagonista da “cultura popular revolucionária”, os intelectuais do
129
PÉCAUT, Daniel. Op.cit., p.151-152.
130
Essa política pela estatização das nossas riquezas e serviços, corrente no PCB, foi uma das responsáveis pela
aproximação dos intelectuais ao Partido.
131
PÉCAUT, Daniel. Op.cit., p.152-153.
82
CPC proclamavam, na verdade, o desdém a essa mesma cultura própria das classes populares,
tidas então como pré-políticas. Isso não deixa de lembrar o antigo desprezo aristocrático em
relação à ignorância do povo.
Veja-se que essa metodologia didática, aplicada pelo Partido Comunista Brasileiro e
pelos seus mais variados “mecanismos doutrinadores”, provém não somente daquela geração
de 30 da segunda fase modernista —, porém vai mais fundo: é calcada no “realismo
socialista”, política estalinista para a cultura, institucionalizada na URSS em 1931, mas que
na prática era adotada por uma gama considerável da intelectualidade soviética dos finais
da década anterior.
Eis um dado considerável a se pensar, que foi uma prática constante dos CPCs, que
viam na simplificação da forma, ou seja, na simplificação da própria arte, a maneira mais
propícia para se educar
o povo”. O vanguardis-
mo parece, para esses
intelectuais, menos mar-
cante que a certeza de
viver uma situação re-
volucionária. Assim,
“Essa obra revolucioná-
ria se apóia na constata-
ção de que a mobiliza-
ção camponesa e operá-
ria estava crescendo; ao mesmo tempo, percebe que grande parte dos setores populares
continuava incapaz de se unir a ela”
132
. Daí seu caráter eminentemente didático.
Consistia nesta fórmula o projeto pecebista: fortalecer a burguesia nacional, e com ela
o Estado nacional, pretendendo criar as condições necessárias para se fazer, num futuro
próximo, a revolução brasileira. repousa a importância de se defender o Estado brasileiro;
fortalece-se o Estado capitalista, criando-se as condições estruturais necessárias para que os
trabalhadores tomem o poder.
É nesse turbilhão político-ideológico-social que se insere o primeiro filme de cunho
rural
133
de Amácio Mazzaropi, inaugurando uma fase que se estenderia de 1959 a 1980, ano
132
Idem, p.159.
133
Glauco Bersalini classifica a produção de Mazzaropi em duas distintas fases: a primeira, denominada de
83
em que foi lançado nos cinemas O Jeca e a égua milagrosa.
Representante paulista da Chanchada, Mazzaropi, que até então se inserira, como ator,
no ramo cinematográfico com filmes com temáticas eminentemente urbanas, se “aventura”
agora como produtor de seu próprio filme. De temática rural, conforme salientado, Jeca
Tatu inicia uma seqüência de filmes cujo foco principal é o homem do campo. Não que os
outros filmes não tenham misturado elementos rurais com os urbanos, nem que as produções
posteriores a 1959 não tenham tratado da temática urbana. Absolutamente não é esse o caso.
O que acontece é que, com Jeca Tatu, Mazzaropi muda o foco, indo buscar no homem do
campo e no meio rural os ideais para a realização de sua obra.
Em Jeca Tatu é que a imagem de seu caipira é de fato cristalizada. Quem fosse ao
cinema assistir Mazzaropi queria-o da forma como apresentada aqui, com todos seus trejeitos
e manias. De 1959 a 1980 pouco mudam, em termos físicos e psicológicos, seus personagens.
Mesmo construindo a cada filme um caipira diferente, localizado e “idealizado” para o
contexto do enredo, em linhas gerais, seu caipira não muda. E, nesse sentido, corre o risco de
tudo passar a ser chavão, lugar comum. Comentando o filme Meu Japão Brasileiro, de 1964,
Ignácio de Loyola afirmaria o seguinte:
(...) Uma vez dissemos aqui que a linha de comédias do Mazzaropi era aceitável.
Não deixa de ser um gênero que tem seu público.
Não contávamos, todavia com a inexistência, em Mazzaropi, do fator evolução,
natural no artista (...) Bitolado, fora de época, ausente de tudo que se passa a seu
redor, a Mazzaropi interessa apenas explorar e fomentar o gosto equívoco, não
possuindo o cinema, para ele, qualquer implicação cultural.
Infelizmente “Mazza” está certo dentro do seu raciocínio que não é longo, ao
contrário. Primarismo ainda faz dinheiro. (...)
134
De fato, quando é explorada a imagem do homem do campo, do caipira, cristalizada
por Mazzaropi, nada muda, ou praticamente nada. São praticamente duas décadas produzindo
o mesmo personagem, com algumas qualidades que os distinguem, nada mais. Em suma, são
idênticos todos, em forma e cor. Preguiçoso, esperto, com aquele andar típico e com sua
espingarda pica-pau. Assim é o caipira mazzaropiano, assim é o primeiro caipira lobatiano.
Todavia, não são apenas de semelhanças que são criados ambos os caipiras. Com
urbana, que vai de Sai da frente, produzido em 1951 e lançado em 1952, até Chofer da Praça, produzido em
1958 e lançado em 1959; já a segunda, rural, iniciada com Jeca Tatu, produção de 1959 lançada em 1960,
indo até 1979/80 com o filme O Jeca e a égua milagrosa.
134
LOYOLA, Ignácio de. A contribuição de Mazzaropi para o retrocesso (Coluna Última Hora, 4 de fevereiro
de 1965. Cine Ronda), p.2-3. Disponível em: <http://www.museumazzaropi.com.br/sucesso.htm>. Acesso
em 07 de julho de 2006.
84
algumas características importantes que os distinguem, algumas oriundas talvez dessa
mitificação do campo, visto de uma maneira romântica, repleto de paisagens bucólicas, o
caipira de Mazzaropi é tanto ou mais estilizado, em alguns pontos, que os de Lobato. No filme
Jeca Tatu, por exemplo, o personagem Jeca, além de ser uma pessoa íntegra e honesta, não
bebe nem adota de meios ilícitos para conseguir aquilo que deseja. Aliás, o Jeca não deseja
nada mais do que tem. Para ele a vida é boa do jeito que está (tal como o caipira do primeiro
Lobato); Jeca não tem ambição nem perspectiva de ascender socialmente. Por isso muito
espanta a sua ascensão social no filme.
Sem indagar a respeito das contradições de classe existentes no campo, Amácio
Mazzaropi confere ao Jeca o status de coronel, tal qual foi conferido, por Lobato, em Jeca
Tatuzinho, ao seu caipira. Contudo, se neste o caboclo enriquece pelo esforço do seu trabalho,
naquele a riqueza é inexplicavelmente conquistada. O Jeca do filme é completamente
diferente do Jeca do conto. Aqui é um opilado que, após curado, se torna um forte; um
preguiçoso. Enquanto no conto Monteiro Lobato expõe, conforme afirmado, uma visão
georgista, no filme esse ponto de vista inexiste. Mazzaropi pinta seu caipira de uma maneira
também conservadora. O que de fato não desmerece a produção de Amácio, mesmo porque
adaptação não é sinônimo de cópia. Adaptar é traduzir o “espetáculo” para a época em que é
produzido, inserindo a peça ou filme no tempo presente, adequando-o à linguagem em
questão, no caso a cinematográfica.
A bem da verdade a riqueza do caipira não se torna tão inexplicável assim se tomar-se
como pressuposto o aproveitamento que o Jeca tirou de seu “uso político”
135
. Ou seja, após
abandonar suas antigas terras espoliadas por Giovani, Jeca é ajudado por alguns amigos que
não querem que parta para Brasília. Para que isso não ocorra, é preciso conseguir algumas
terras para o Jeca. A saída que encontram é propor ao coronel Florêncio, cabo eleitoral do Dr.
Felisberto, político da capital, ajudar o Jeca em troca de 2000 votos na região.
Dessa forma Jeca vai parar na cidade de São Paulo. Acompanhado de seu cachorro
Brinquinho, Jeca salta da Rodoviária em meio a uma cidade movimentada, com automóveis e
ruas largas; é o seu primeiro contato com a cidade grande. Acostumado com o modo pacato
proporcionado pelo seu modo de produção no campo, Jeca encontra dificuldades até para
atravessar a rua, precisando, por vezes, da ajuda de um cidadão para tal tarefa. Esse choque
135
Não se está discordando do argumento acima, mas apenas prolongando a argumentação. O caipira, mesmo
tirando proveito da situação que lhe impuseram, enriquece de uma maneira surpreendente para quem assiste
ao filme, por ser um indolente.
85
entre o Jeca e a cidade grande, que em larga escala poderia ser explicado pela dicotomia então
em voga pela esquerda brasileira, entre campo e cidade, não passou desapercebida por
Amácio Mazzaropi, como é de se observar. O caipira é um estranho na cidade, um sujeito
praticamente inadaptável, em primeiro momento, à urbs.
O ritmo que imprime a cidade é rápido demais para Jeca, que estranha tudo e todos a
sua volta. Até mesmo após a chuva que o pegou praticamente de surpresa e fez com que seu
guarda-chuva e suas roupas encolhessem, ridicularizando-o ainda mais, pega um taxi para a
casa do político Felisberto sem saber que o tem que pagar. Obviamente que, não tendo
condições de financiar as despesas da corrida, recorre a Felisberto que, com um discurso
ironizando o tom pomposo dos políticos, paga a corrida para o Jeca. Porém, um pouco antes,
na mansão do político, é ridicularizado por algumas garotas que pertencem ao mundo
urbano. Mais uma alegorização da dicotomia campo/cidade.
Normalizada a situação, Jeca conversa com Felisberto, que lhe promete arrumar as
terras em troca dos votos. Assim, Jeca vai parar no palanque de Felisberto
136
. Mais uma vez
ironizando o discurso do político brasileiro, repleto de palavras vagas e vazias”, Felisberto
faz uma porção de promessas ao povo agrícola (Felisberto: É preciso que alguém na câmara
defenda os interesses do homem agrícola, muito condignamente aqui representado pelo
amigo Jeca. Jeca: Deus lhe pague. Felisberto: Homem como este é que eu proponho ajudar,
dando as condições necessárias ao desenvolvimento do seu trabalho. Mas essas condições
também estão na dependência de você, meu povo. Levando-me à câmara eu prometo... Jeca:
Olha, prometer não resolve, precisa coisar mesmo. Felisberto: Bonitas palavras, nada de
promessas inúteis, o Jeca precisa de terras [...]), às vezes interrompido pelo caipira que o
alerta a respeito dos perigos de suas palavras. Jeca é usado como palanque eleitoral, mas
consegue tirar proveito dessa situação.
Singelo, às vezes poético e bem acabado, o filme Jeca Tatu narra a vida de um caipira
de nome Jeca e de sua família esposa, a filha Marina e o cão Brinquinho seu dia-a-dia,
seus amores e conflitos. Inspirado no conto Jeca Tatuzinho, a trama ressalta também o
trabalho regular calcado na agricultura de subsistência. No filme, quem trabalha é a mulher.
Tanto sua esposa, quanto sua filha Marina é quem trabalham. Ao Jeca fica a responsabilidade
de trazer mantimentos para casa. Tarefa que cumpre quitando as dívidas e trocando alimentos
por terras.
136
Ver poema de Catulo da Paixão Cearense transcrito nas primeiras folhas deste trabalho.
86
É nessa incumbência de trocar alimentos e quitar suas dívidas por terra no Armazém
do Bento, que é explorado. Não tendo maneira de tirá-lo de suas terras (do Jeca), o fazendeiro
Giovani compactua com o comerciante português Bento para lhe extorquir terras. Como o
caipira deve uma quantia alta em dinheiro para o comerciante, o fazendeiro compactua com
aquele. O objetivo de tal acordo é tirar o Jeca e seus familiares da localidade. Sendo vítima de
um conchavo entre os que representam a moral capitalista no filme (o fazendeiro latifundiário
e o comerciante pequeno-burguês), Jeca é ludibriado até perder tudo o que tinha.
Nesse ínterim, percebendo o desentendimento entre o caipira e o fazendeiro, surge a
figura de Vaca Brava, típica alegorização do cowboy hollywoodiano. Interessado pela filha do
caipira, começa a prejudicá-lo no intuito de jogá-lo contra o fazendeiro, pretendendo assim
acabar com o namoro de Marina e Marcos, filho de Giovani. O filme é todo narrado em cima
desses fatos. Muita coisa acontece até que Vaca Brava é descoberto e preso e Jeca se
reconcilia com o fazendeiro. Marina e Marcos casam, gerando netos de Dona Jerônima e Jeca,
agora ricos e representantes da oligarquia latifundiária.
O italiano Giovani quer tirar Jeca de suas terras por ganância e Jeca não as cede tão
facilmente. Todavia, o que seria para se configurar como fundamento básico para ser
explorado nesse sentido, acaba tomando rumo diferenciado na narrativa. Dessa forma, o que
era para se tornar um conflito de classes, acaba se tornando algo como briga de vizinhos, ou
melhor, com essa discussão, Mazzaropi amaina a luta de classes. Em dois trechos da narrativa
escolhidos para melhor exemplificar o argumento exposto, registra-se a discussão entre
Giovani e Jeca que, à primeira vista, poderia ser vista como uma alegorização para a luta de
classes. Trata-se do “diálogo” entre ambos após Giovani mandar pôr fogo na casa do caipira:
Os funcionários da Fazenda São Giovani estão trabalhando na nova cerca, agora
dentro do terreno do Jeca. Giovani se encontra dentro do trator, que nesse instante
está em movimento. Jeca abre a janela de sua casa e retira as flores que Baratinha,
diariamente, deixa para ele. Vendo o ocorrido, perturba-se e dirige-se diretamente
para os trabalhadores.
Jerônima (já fora de casa, juntamente com Jeca): Cuidado com esse homem.
Jeca (aproximando-se dos trabalhadores): O que que vocês estão fazendo aí?
Trabalhador: Nós não temos culpa, Jeca. Foi seu Giovani que mandou.
A câmera focaliza o fazendeiro Giovani, que desliga o trator para indagar do Jeca o
motivo de sua aparição. Após a fala (abaixo) do trabalhador, emitida enquanto a
câmera focaliza Giovani, Jeca dirige-se ao trator, onde ainda se encontra o
fazendeiro.
Trabalhador: Nós somos empregados, nós temos que obedecer, né?
87
Giovani: O quê, já vai começar com encrenca?
Jeca: Eu não estou fazendo encrenca, o senhor é quem está começando. Olhe bem
onde está botando essa cerca aí.
Giovani: Ela vai ficar aí.
Jeca: Mas, seu Giovão, olha bem. Está quase dentro do meu terreno tudo já.
Giovani: Mas você vendeu.
Jeca: Mas não foi para o senhor, né. Eu vendi para o seu Bento da Venda com o
trato de não tirar nós daqui.
Giovani: Ora, mas eu comprei dele, e vou plantar aqui.
Jeca: Ah, não vai, né, porque eu não vou deixar, né.
Giovani: Ah, faz favor vai. Eu vou plantar e não tem conversa, não me aborreça.
Jeca (exaltado e dirigindo-se à cerca para derrubar um dos mourões): Pois não vai,
bom. Vai tirar essa porcaria daqui já. Tira tudo, eu não quero ninguém aqui
dentro. Tá bom?
Giovani, irritado com a atitude de Jeca, desce do trator. A câmera muda de ambiente
e focaliza, nesse instante, atrás de uma árvore, Vaca Brava, que a essa altura está
pensando em uma maneira de terminar o namoro de Marina com Marcos. Giovani se
arma de um pedaço de pau.
Giovani: Não mexe em mais nada senão eu faço uma besteira, hein.
Jeca: Então espera aí que nós vamos fazer duas.
Jeca (se dirigindo para a sua casa para pegar a sua espingarda pica-pau): Miserável,
com tanta terra ainda precisa tomar a dos outros.
A cena muda para uma rápido diálogo entre os trabalhadores. Jeca sai de sua casa
munido de sua pica-pau.
Trabalhador 1: O seu Giovani é muito ganancioso.
Trabalhador 2: E eu não esperava isso do Bento do armazém. Ele e seu Giovani
estavam combinados.
Jerônima (pressentindo a gravidade do problema): Jeca, o que você vai fazer?
Larga isso, homem.
Jeca: Espera aí, eu vou mostrar para esse homem com quantos furos se faz uma
peneira.
Giovani: Larga isso, porco..., que hoje eu não estou bom, hein.
Jeca: E se eu te der uns tiros você vai ficar muito pior.
Jeca: Não chega, italiano. Minha Nossa Senhora de Aparecida, não chega, italiano.
Jerônima chega para interceder e evitar que se agrave o confronto. Marcos, filho de
Giovani, que namora com Marina, vendo a discussão dos dois, corre para segurar o
pai e acabar com o confronto.
Marina (vendo a discussão): Marcos.
Jerônima: Jeca, vê se lembra que você tem filho para criar.
Jeca: Me larga, mulher. Me larga, me larga, me larga.
Marcos: Pai, o que é isso? Vamos acabar com essa briga, pai.
Jeca: Pode deixar que eu acabo com esse infeliz já.
Jerônima: Vamos embora, Jeca. Vamos embora.
Jeca (arrastado pela esposa): Deixa, deixa.
Jerônima: Vamos embora. Minha Nossa Senhora, será possível...
Marcos: Vamos embora.
Giovani (arrastado pelo filho): Ainda acabo com esse caipira.
Marcos: Vamos embora.
Jeca (virando-se para Giovani, já na frente da porta da casa): Correu de medo,
cuspiu no dedo. Embora para dentro, mulher.
88
Eis o primeiro trecho selecionado. Conforme dito, à primeira vista esse diálogo
poderia ser tido como uma alegorização da luta de classes entre o homem explorado do campo
e seu explorador direto, o fazendeiro latifundiário. Porém não é. Não que não se a luta de
classes no filme. Essa
ocorre, que de ma-
neira sutil, o que com-
prova a destreza de
“Mazza” para tocar
nesse problema. Desse
momento em diante a
narrativa converge para
uma linha onde o para-
digma não é a aborda-
gem de temas sociais
então em voga no cinema nacional. Muito pelo contrário. A função do cinema de Mazzaropi é
divertir e entreter o público. Dentro de uma concepção puramente mercantilista é que é
produzido seu cinema. Embora às vezes trate de questões atuais, não as aborda
profundamente. Daí o seu enredo cair sempre na relação simplista entre bem e mal, conforme
exposto no diálogo a seguir:
Giovani manda incendiar a casa de Jeca e de sua família. Triste, o caipira põe-se a
olhar o fogo tomar conta da casa, enquanto sua esposa e filha choram. Aproxima-se
Giovani.
Giovani (de costas): Está satisfeito agora? Viu o que você arranjou com suas brigas,
seus roubos, sua covardia? Fui em quem fez isto. Está contente agora, não está?
Jeca: Não, eu estou triste, seu Giovão. Muito triste.
Giovani (em close up): Pois é, que isso te sirva de lição. Nem casa mais você tem
para morar.
Jeca: Mas não é por causa da casa que eu estou triste; casa tem muita. Eu estou triste
é, é por causa do senhor mesmo.
Giovani: Por mim? Não te compreendo.
Jeca: Do senhor sim. O senhor queimou minha casa, queimou todas as minhas
coisas. Mas isso foi maldade porque eu não roubei nem matei galinha de ninguém.
Não fui eu que estraguei sua plantação, você não devia ter feito isso. Tenho mulher e
filho para sustentar, e o senhor não teve de mim. O senhor sempre procurou me
encrencar falando mal de mim por aí, mas Deus sabe que eu nunca fiz nada de mal
para o senhor. E ele sabe também que o senhor não presta. Não sou eu que vou fazer
justiça; nem eu nem o delegado e nenhum homem aqui da terra, é ele mesmo que
está lá em cima olhando tudo.
Giovani:Não vejo ninguém.
Jeca: Ah, não porque está escuro. Homem, nem que tivesse claro, você não veria
89
mesmo porque para homem de sua marca ele não aparece. O senhor não é justo, seu
Giovão, e por isso ainda vai receber um castigo muito grande. Não é praga que eu
estou rogando não, mas quem na terra faz, na terra de pagar. Eu sinto é pelo
senhor mesmo.
Giovani retira-se triste e envergonhado, enquanto o Jeca dita essas últimas palavras.
Se a função principal do texto cinematográfico de Mazzaropi é o entretenimento, é
indiscutível sua importância na cinematografia brasileira. Primeiro porque Mazzaropi, a
exemplo dos chanchadeiros cariocas, mostrou que cinema pode ser um bom negócio, até
mesmo no Brasil. Começando como ator de circo e teatro, Mazzaropi ingressou no cinema
representando personagens urbanos, porém nunca deixando de ser “ele mesmo”, como dizia.
No cinema fez fama e criou sua própria indústria cinematográfica, a PAM-Filmes. Com o
dinheiro adquirido com suas bilheterias investiu em equipamentos, exigiu bons laboratórios
para o tratamento final de suas produções, modernizou o cinema nacional e criou uma rede de
distribuição pelos quatro cantos do país para seus filmes.
É certo que essa industrialização do cinema de Mazzaropi seria em vão se seus filmes
não se dirigissem a um público específico, não remetessem a alguém de fato. De nada serviria
toda a estrutura se suas produções não se enquadrassem dentro de um propósito
mercadológico, dirigido a um determinado público. O que Mazzaropi fez com seu Jeca, desde
1959, quando o readaptou do difundido Jeca Tatu do Biotônico Fontoura, foi se aproveitar
dessa imagem conhecida por todos os brasileiros da época para difundir seu filme e faturar
dinheiro. Nisso foi longe, se pensarmos toda a fusão que fez tanto dos caipiras lobatianos de
1914 e 1918, este readaptado posteriormente pelo folhetim do Biotônico Fontoura.
No Jeca Tatu de 1959 o que sofre maior adaptação do Jeca Tatuzinho é o enredo e não
o tipo caipira. Tanto é assim que, no desfecho da narrativa, quando Jeca é coronel,
aparece uma cena em que um galo veste calças e botas, tal qual as galinhas do Jeca
Tatuzinho; o nome do cachorro também é o mesmo: Brinquinho. Aliás, ainda no início da
narrativa, na primeira vez em que aparece o Jeca com o personagem Bento do Armazém,
quando sofre a primeira extorsão, Jeca compra um frasco do Biotônico Fontoura, fazendo
alusão ao Jeca Tatuzinho do manual Fontoura. Essa adaptação de um tipo conhecido
alavancou mais rapidamente sua carreira e a divulgação de seu personagem.
Graças a seus esforços, o cinema nacional deu um salto de público considerável. Aliás,
não somente aumentou o público, como também contabilizou lucro, muito lucro. Não tendo
nenhuma produção premiada em algum festival, seus filmes, geralmente estreados em janeiro,
90
estavam sempre entre os primeiros da lista dos mais assistidos. Mazzaropi era sinônimo de
sucesso de público, embora nem sempre de crítica. Seu público era fiel e fazia fila para vê-lo
nos cinemas de todo o Brasil, inclusive das cidades interioranas. Esse foi um dos fatores mais
relevantes na cinematografia de Mazzaropi: a formação de um público, mesmo em épocas em
que a televisão já era o principal veículo de comunicação e entretenimento das massas.
Conseguindo firmar um público para seus filmes, público já um tanto afeito ao cinema
nacional, graças à chanchada carioca, Amácio Mazzaropi pôde planejar uma indústria
cinematográfica brasileira que visasse a suprir as necessidades do mercado interno. Nesse
sentido, a PAM-Filmes surge como uma alternativa. Mesmo com o malogro da paulista Vera
Cruz, em 1954, Mazzaropi, que conhecia a política cinematográfica da falida empresa, cria a
PAM-Filmes no intuito de produzir seus próprios filmes. Assim, suas produções, mesmo
sendo em estúdios, são relativamente mais baratas que as produzidas outrora pela extinta Vera
Cruz. De fato, o aparecimento da produtora, em 1959, marca uma nova etapa para o cinema
produzido por Amácio Mazzaropi. É por meio desta que produz a grande maioria de seus
filmes. Somente a partir da PAM-Filmes suas produções passam a ser mais difundidas.
Isso porque a produtora propiciou um sistema de distribuição jamais antes visto no
cinema brasileiro. Uma verdadeira malha difusora que se estenderia por todo o território
nacional, propiciando, assim, que muitas cidades interioranas, antes desconhecedoras da
sétima arte, assistissem em telões, algumas vezes improvisados, àquele caipira de jeito
engraçado. Indagado em uma entrevista a respeito de sua fortuna, afirma Mazzaropi:
Veja: Sua história parece girar em torno de cifras. Você é louco por dinheiro?
Mazzaropi: Não, acho que dinheiro não traz felicidade na vida. certo que ajuda,
mas, em compensação, quem tem, além de viver intranqüilo, passa a ter
desconfiança em vários setores da vida. Quem tem dinheiro sempre duvida de quem
se aproxima – não sabe se é um amigo ou se vem dar uma bicada.
Veja: Quanto você ganha?
Mazzaropi: Mas por que vocês se preocupam tanto com o que eu ganho? Vão
perguntar para o Pelé, que marcou mil gols. Ele é muito mais rico que eu. Tudo que
tenho em meu nome é a casa onde moro. O resto está tudo em nome da PAM-
Filmes.
137
Representante maior da chanchada paulista, na verdade uma diversificação desta,
Amácio Mazzaropi fez cinema comercial. Mais que isso: trouxe de volta a figura do caipira
representada por Genésio Arruda. “Durante dez anos foi Mazzaropi a principal contribuição
137
SALEM, Armando. O Brasil é meu público. Op.cit., p.4.
91
paulista à chanchada brasileira, embora não tivesse aquela crueza burlesca do seu antecessor,
compondo um Jeca impregnado de um sentimentalismo que Genésio evitava”
138
.
Condenada por sua falta de ousadia estética, por seu caráter de imitação do cinema de
Hollywood, por ser um cinema primário e que não ajudava no trabalho de conscientização do
público e de mudanças na realidade do país, a chanchada foi um acontecimento importante no
cinema nacional. Trazendo para os filmes os grandes artistas de rádio e circo, como Oscarito,
Trindade e Grande Otelo, a chanchada, por meio da carnavalização, parodiava não
somente o cinema estrangeiro, em especial o hollywoodiano, mas também alguns
acontecimentos político-sociais de seu tempo.
Mesmo não aumentando o nível de consciência das platéias
139
, as chanchadas serviram
para provar que o filme brasileiro podia ser um bom negócio. Empresas como a Atlântida, por
exemplo, faturaram alto com exibições de comédias por cerca de vinte anos. Desvinculada do
gosto do ocupante e contrária aos interesses estrangeiros, a chanchada proporcionava ao
espectador um envolvimento de tamanha intimidade que sua participação adquiria elementos
de criatividade, na medida em que a adoção pela plebe, do malandro, do pilantra, do
desocupado da chanchada, sugeria uma polêmica de ocupado contra ocupante.
Ao contrário do cinema novo, que procurava no Estado a ajuda para se manter, a
chanchada era produzida pelas indústrias cinematográficas, como a Atlântida, que tinham sua
própria política de produção e comercialização dos filmes produzidos. Todavia, esse suposto
descomprometimento com o Estado, atrelado às medidas de distribuição adotadas pelos
estúdios, não impediu o certo repúdio que recebeu das camadas mais elevadas da sociedade
brasileira, inclusive da classe média.
A chanchada critica de maneira sarcástica a xenofilia tanto da elite brasileira, quanto
da classe média, sempre conservadoras, e apresenta um modelo diferente daquele da elite
letrada da época. Discorrendo sobre a intimidade do público com a chanchada, Rosângela de
Oliveira Dias afirma que:
Os espectadores barulhentos das chanchadas estariam criticando a forma sisuda e
tradicional de assistir aos filmes. As chanchadas não eram assistidas de forma
disciplinada e imóvel, comum à missa católica. A platéia não ficava quieta e bem
comportada diante desse tipo de filme; transformava-se em artista, como na festa
138
GOMES, Paulo Emílio Sales. Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966. Op.cit., p.79.
139
As críticas à sociedade e ao sistema de produção capitalista, que levam o trabalhador ao esgotamento e à
alienação, eram feitas de maneira supérflua, nunca atingindo um grau de consciência político mais avançado,
como o alcançado pelo Cinema Novo, por exemplo.
92
carnavalesca, ignorando distinção entre atores e espectadores, colocando o mundo
ao “revés”.
140
Por último ainda o carnaval, elemento do qual a chanchada é quase um sinônimo e ao qual
o Cinema Novo quase não deu importância. “As chanchadas, ao carnavalizarem a sociedade
tornam-se um ritual carnavalesco que procura colocar o mundo às avessas”
141
. A estrutura da
chanchada era semelhante à do carnaval. Inversões a toda hora:
(...) nobres em plebeus, ricos em pobres, homens em mulheres etc. Os filmes sempre
acabavam em festa. O Cinema Novo pouco considerou esta particularidade. O
carnaval é até hoje a principal forma espontânea de organização e representação
popular. (...)
142
Mesmo não sendo chanchadas em estrito senso, e sim variações dela, os filmes de
Amácio Mazzaropi não descartam praticamente nenhuma qualidade estética proveniente
daquelas. Em Jeca Tatu, por exemplo, têm-se, mesmo que inocentemente, uma crítica ao
latifúndio espoliador e às relações de trabalho no campo. A problemática central da narrativa,
tendo como personagem principal um caipira avesso aos modelos heróicos do cinema
hollywoodiano, é amplamente contrária aos interesses do dominante, embora não seja esse
caipira a encarnação da voz do dominado, o seu grito de protesto, e sim o seu inverso, na
medida em que, ao final do filme as eventuais contradições se aplacam, com o enriquecimento
do caipira e com o casamento da filha com o filho de Giovani.
Outro fator que prepondera na obra em questão, ou seja, Jeca Tatu, é a polarização
entre o bem e o mal. Herança herdada talvez do Romantismo e que se consagrou no cinema
hollywoodiano principalmente nos filmes de ação e western, sempre sendo os “mocinhos” os
dominantes e os dominados os “vilões”. Aliás, no filme Jeca Tatu, essa distinção entre bem e
mal está bem delineada no perfil de cada personagem, independente da classe social de cada
um, o que vem a comprovar certa sutileza de que Mazzaropi se utiliza para abordar questões
pertinentes ao cinema da época, tais como a deflagração de um Brasil até certo ponto
patriarcal e arcaico.
140
DIAS, Rosângela de Oliveira. O mundo como chanchada: cinema e imaginário das classes populares na
década de 50. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993, p.45.
141
Idem, p.44.
142
SIMONARD, Pedro Henrique. Origens do Cinema Novo: a cultura política dos anos 50 até 1964, p.10-11.
Disponível em: <http://www.achegas.net/numero/nove/pedro_simonard_09.htm>. Acesso em 10/07/2006.
93
Assim, um personagem como Marcos, filho do fazendeiro Giovani, encarna o papel de
mocinho da narrativa, enquanto que Vaca Brava, outro fazendeiro e típico cowboy
estadunidense no sertão paulista, encarna o papel inverso. Esses jogos de poder transpassam
toda a narrativa, a ponto de cada personagem, com exceção de alguns personagens coadjuvan-
tes, representar uma ou
outra ordem. Ao mitifi-
car o campo, pintando-o
de uma forma poética,
singela e bela, Mazzaro-
pi delimita as fronteiras
entre o bem e o mal.
Dessa forma, persona-
gens que não se ade-
quam dentro dessas ca-
racterísticas, que não
contêm dentro de si certa pureza d'alma, são figuras representativas do mal, como é o caso do
Bento, do Giovani e do Vaca Brava, todos representantes de uma outra ordem que não se
adequa à vida bucólica, gostosa e singela do campo.
No filme Jeca Tatu, o mal é representado, em última instância, pelo elemento externo
à terra. Giovani é um italiano que se tornou um latifundiário, Bento é um típico pequeno-
burguês português e Vaca Brava, fazendeiro abastado e viajado, aos moldes dos cowboys dos
filmes de Hollywood. Marcos é a expressão do filho da terra, mesmo que seja filho de dois
italianos. Daí sua seu amor por Marina, filha de Jeca e Jerônima. Veja que não
praticamente relação de classes; toda a problemática entre o rico e o pobre, entre o patrão e o
empregado, é transferida para a distinção entre o bem e o mal, entre o nobre e o injusto,
valores que no enredo independem de classe social. Nesse sentido, não apenas um
conservadorismo classista, mas também uma crítica ao cinema de Hollywood, em especial ao
werstern e aos filmes de ação, que pinta o dominante como o doutrinador de valores cristãos
em detrimento do homem da terra do indígena, no caso do primeiro, do homem-animal,
ainda mais barbarizado, canibal, geralmente negro e africano, no segundo —, inadaptável à
ideologia pregada pelo cristianismo. Por isso o confronto entre as duas “raças”. Em Jeca Tatu
de Mazzaropi é justamente o inverso: o doutrinador” da nova política, representante do
capital e, por isso, avesso aos ideais românticos do campo, é o “vilão”, e não o homem da
94
terra.
Nos anos 50 um grupo de jovens começa a discutir a idéia de se criar um cinema
nacional, que construísse uma identidade político-cultural para o povo brasileiro; essa geração
viria a criar, posteriormente, o Cinema Novo. Porém essa geração dos cinemanovistas não
foram os primeiros a lutar pela consolidação de um cinema nacional independente e que
expressasse a cultura brasileira. Uma geração anterior, no início dos anos 50, poria esses
problemas no centro das discussões teóricas.
Segundo a mesma ótica proposta pelos modernistas de 1922, esses intelectuais
buscaram definir, indo às “raízes” do país, as características e especificidades do povo
brasileiro. O ponto de partida era um mergulho na realidade sócio-político-cultural brasileira.
A identidade do povo e a cultura nacional que pretendiam forjar tinham um forte componente
anti-imperialista.
Em nome do desenvolvimento do país era preciso transformar a postura adotada pela
classe média e pela burguesia frente ao american way of life, que molda ainda hoje o
imaginário dessas classes. É redundante afirmar que o cinema hollywoodiano assume um
papel central na construção desse imaginário. Assim, no caso específico do cinema brasileiro,
fazia-se necessário tomar o lugar ocupado pelo cinema estrangeiro, criando e transformando
nossa própria identidade. O cinema brasileiro assumia assim a tarefa de deixar de ser
estrangeiro em seu próprio país.
A questão colonial era um dos grandes temas políticos que dominavam as esquerdas
mundiais, juntamente com as guerras nacionais anti-imperialistas. Dessa forma, o problema
da esfera política era transposto para a esfera cultural e servia como pressuposto básico para a
atuação dos cinemanovistas
143
.
Com uma proposta de um cinema anti-industrial, o Cinema Novo, em decorrência de
seu acabamento estético e das premiações conquistadas em diversos festivais pelo mundo
afora, conseguiu uma importante vitória ao fazer com que o cinema brasileiro fosse
reconhecido pelos principais críticos do país e pela classe média, sempre xenófila. Antes do
Cinema Novo a existência de um cinema brasileiro era sequer questionada, com exceção das
produções da Vera Cruz.
No Brasil dos anos 50 e 60, dos estúdios paulistas e das chanchadas cariocas e
mazzaropianas, fazer bons filmes é sinônimo de fazer filmes nos moldes dos filmes
143
SIMONARD, Pedro. Op.cit., p.4.
95
produzidos em Hollywood. A chanchada, conforme salientado, parodiou esse cinema
estrangeiro. Mazzaropi também não ficou atrás, criando tipos que parodiavam os heróis
estadunidenses. O próprio caipira, em última instância, é uma alegorização ao revés desse tipo
heróico, na media em que representa o anti-herói.
Como alternativa ao cinema de “nível internacional” da Vera Cruz, e à chanchada, o
cinema novo propunha um cinema anti-industrial, “aberto, sem nenhum dogma (...)
autoral, sincero, criativo, revolucionário e que olhasse a realidade social e
econômica do Brasil com vontade de analisá-la, transformá-la num mundo melhor
para todos” (SARACENI, 1993, p.118) e com um “alto nível de compromisso com a
verdade” (ROCHA, 1981, p.30). Podemos acrescentar a isso a palavra moderno.
Moderno porque contemporâneo aos cinemas novos que se fazia em outros países
naquele momento e porque diferente do antigo cinema brasileiro. (...) O Cinema
Novo, como todo movimento que propõe uma mudança radical e precisa demarcar e
conquistar seus espaços, tinha que definir os inimigos a combater. Seu alvo principal
foi a chanchada.
144
Assim como a chanchada, o cinema de Mazzaropi serviu para mostrar que cinema
brasileiro podia ser bom negócio. Enquanto aos intelectuais do Cinema Novo coube o
importante papel de se atrelar ao Estado no intuito de formular uma política, mesmo que
reducionista, para incentivar a produção do cinema brasileiro, os produtores dos grandes
estúdios não deram pela coisa e fizeram do cinema nacional uma forma de conquistar vasto
público e ganhar dinheiro.
Eis um dos pontos de divergência entre Mazzaropi e o Cinema Novo. Aquele
discordava deste que produzia um cinema esteticamente avesso aos interesses da indústria
cultural e, portanto, avesso aos interesses do grande público. Nas palavras de Mazzaropi: um
cinema feito para meia dúzia de intelectuais. Já os cinemanovistas condenavam os
chanchadistas e Mazzaropi por produzirem filmes com baixa qualidade estética e estritamente
voltados para o mercado cultural.
Essa divergência estética entre um grupo e outro foi amainando a ponto de os
cinemanovistas reconhecerem, posteriormente, a importância que a chanchada teve para o
cinema nacional e para a formação de um público. Público que o Cinema Novo nunca
adquiriu na medida em que se postulavam e cometiam os mesmos erros dos intelectuais do
terceiro ISEB e dos CPCs: pretendiam educar o povo para a revolução, menosprezando a
cultura popular, mesmo que nela se apoiasse para algumas de suas produções.
Com o passar do tempo os cinemanovistas diagnosticaram alguns desses problemas,
144
Idem, p.8.
96
dentre eles também a falta de uma política de distribuição adequada para seus filmes. Fator
tão importante quanto a produção e que, a Mazzaropi, não passou despercebido. Criando um
estúdio com suas secretarias regionais, o produtor Mazzaropi conseguiu levar seu cinema para
lugares que praticamente desconheciam uma sala de projeção. Ademais, foi política entre os
cinemanovistas mesmo que na contra-mão da história, que pretenderam, em última
instância, institucionalizar uma indústria nacional de cinema em plena era Kubitschek —,
lutar igualmente pelo fortalecimento do cinema nacional, almejando que um dia se tornasse
desenvolvido, o que de fato não veio a ocorrer.
3. O Jeca e a Freira: um doce veneno em tempos de ditadura
98
3. O JECA E A FREIRA: UM DOCE VENENO EM TEMPOS DE DITADURA
A América Latina, inegavelmente, permanece
colônia, e o que diferencia o colonialismo de ontem
do atual é apenas a forma mais aprimorada do
colonizador.
(Paulo Emílio Sales Gomes)
O lento engajamento do Estado nos problemas do cinema brasileiro vai desembocar na
criação de um novo órgão: O INC (Instituto Nacional de Cinema)
145
. Fundado em novembro
de 1966, na forma de uma autarquia federal subordinada ao MEC, o INC surge com a
proposta de que o cinema deve ser multinacional, ou seja, cabia ao novo órgão a tarefa nada
simples de “centralizar a administração do desenvolvimento cinematográfico”
146
e criar
normas e recursos, sempre respeitando uma política liberal para a importação de filmes
147
.
Ademais, era também função do órgão ser um organismo “neutro” no que diz respeito
ao seu posicionamento político, devendo atuar apenas como um organismo com o sentido de
operacionalidade, tarefa que exigia do INC não somente a regularização e o financiamento de
boa parte das produções cinematográficas brasileiras
148
, mas também o forçava a aliar-se a
uma política aberta ao capital estrangeiro, estratégia central em toda a política econômica
pós-64. Segundo José Mário Ortiz Ramos:
O pólo nacionalista, marginalizado e sem grandes influências no jogo de poder, é
atravessado por reações diversificadas diante da criação do INC, que o interesse
do Estado pelo cinema surgia numa situação política adversa, e era capitaneado por
145
O INC foi instituído durante o Regime Militar, pelo Decreto-Lei nº 43, de 18 de Novembro de 1966, mas a
sua criação já era discutida há quase 20 anos. Em 1947, o senador e escritor Jorge Amado, em nome do
Partido Comunista Brasileiro, propôs a criação do Conselho Nacional de Cinema, com o objetivo de “regular
normas de produção, importação, distribuição e exibição de filmes”.
Em 1952, um grupo de trabalho instituído pelo presidente Getúlio Vargas e formado por Vinícius de Morais,
Décio Vieira Ottoni e outros intelectuais brasileiros, sugeriu que estas funções fossem desempenhadas por
um órgão que viria a se chamar Instituto Nacional de Cinema. A proposta, redigida pelo cineasta Alberto
Cavalcanti, transformou-se em novo projeto de lei, que em 1957 foi incorporado ao de Jorge Amado.
Em seus 10 anos de existência, o INC baixou 112 resoluções, relativas a assuntos como o ingresso
padronizado, as quotas de exibição de filmes brasileiros (que era de 63 dias em 1969, para 112 dias em
1975), a instituição do Prêmio INC, dentre outros. Além disso, tornou obrigatório o uso do ingresso
padronizado, de borderô e de caixa registradora nas salas de cinema de todo o país, atendendo a uma antiga
reivindicação dos produtores que não tinham como controlar o número real de ingressos vendidos, a fim de
receber a sua porcentagem da bilheteria.
146
RAMOS, José Mário Ortiz. Op.cit., p.51.
147
Ver RAMOS, José Mário Ortiz. Op.cit.
148
É importante frisar que Mazzaropi, em decorrência de seu projeto industrial cinematográfico audacioso,
Glauber Rocha, pelas suas divergências políticas com o órgão, e, mais tarde, o “Cinema do Lixo”, por seu
caráter explicitamente independente e “marginal”, não recorreram ao protecionismo e às verbas, destinadas
ao cinema, pelo Instituto.
99
um grupo de críticos avessos às propostas do Cinema Novo.
149
Com a instituição do golpe de de abril de 1964, os militares passam a investir em
cultura com o propósito claro de controlar esse setor, em especial o cinema e a literatura,
engajados que eram nos “problemas nacionais”. A idéia, para o cinema, partia do pressuposto
de incentivar a produção cinematográfica nacional, com propósitos que iam desde a
necessidade de se fazer um cinema com dimensões industriais, passando pela associação em
co-produções com empresas estrangeiras e desembocando, por fim, em medidas
modestamente disciplinadoras, que visavam controlar a penetração de filmes estrangeiros no
mercado nacional.
Dessa forma, eram mantidas as balizas do “desenvolvimentismo cinematográfico” do
momento anterior, mas que agora não escapavam dos parâmetros mais gerais traçados pela
ditadura nascente. O cinema brasileiro então passa a viver um novo e polêmico período: se
por um lado obtinha os tão aguardados apoios financeiro e institucional, ainda que restritos,
do Estado, por outro tinha que se submeter aos desígnios impostos pelo controle estatal cada
vez maior sobre o cinema. Com a criação do INC, a preocupação com a centralização dentro
de uma política cultural mais ampla, juntamente com o claro intuito de reforçar o caráter
industrial do cinema, deixa de ser meramente uma ideologia utópica para ser uma realidade
concreta.
Todavia, se cabia ao Instituto Nacional de Cinema o incentivo financeiro direto do
cinema nacional, era sempre com a premissa de não tocar nos interesses das companhias
cinematográficas estrangeiras. Esse fator perturbou, de fato, alguns intelectuais do Cinema
Novo, como, por exemplo, o conceituado Glauber Rocha, que se viu praticamente excluído
dos demais cinemanovistas, atraídos, pouco a pouco, pela política cultural controladora
institucionalizada pela ditadura militar.
Influenciado ainda pela política cultural implantada pelos cinemanovistas da década de
1950, política não totalmente desvinculada das teorias do PCB, Glauber ataca severamente o
projeto cultural institucionalizado pelo INC
150
, propondo como saída um outro projeto, que
pretendia uma indústria cinematográfica financiada pelo aparato estatal, porém independente,
livre de influências externas e controlada não por intelectuais ou políticos, mas sim por
149
RAMOS, José Mário Ortiz. Op.cit., p.52.
150
Refiro-me ao texto Oito autores em busca do seu público, escrito ainda em 1966.
100
administradores e especialistas em cinema
151
.
A bem da verdade, essa perspectiva política, no seu contexto geral, traz em si um certo
fundo contraditório, na medida em que quando se chega à conclusão de que “não pode haver
cultura popular sem que haja intenções políticas, chega-se a uma visão, digamos, stalinística
do problema”
152
. Ou seja, apesar de sua coerência formal, o paradoxo está no fato de que se
negue a arte advinda do próprio povo, criando uma outra arte não somente para o povo, mas a
favor do povo. Acaba-se, dessa forma, criando uma arte elitizada que nega a arte e cultura
populares, a maioria das vezes muito mais orgânicas que a cultura e arte eruditas
153
. Além do
que, essa postura “implica em negar que haja nos produtores dessa arte a possibilidade de uma
abertura para uma consciência maior de sua própria situação”
154
.
É claro que o propósito político por trás da onda de protestos encabeçada
principalmente por Glauber Rocha e Luiz Carlos Barreto centrava seus ataques na falta de
participação dos cineastas na elaboração do projeto e dos perigos do dirigismo estatal em
períodos de ditadura militar e de abertura econômica ao capital externo. Em suma, o que se
buscava, nesse momento, é o que pretendia o Cinema Novo nos idos dos anos 50: criar as
condições necessárias para tirar o cinema brasileiro de seu estado de anemia, equiparando-o
às principais potências cinematográficas do mundo, um projeto à altura do modelo
desenvolvimentista do populismo getulista. D sua proposta de “industrialização
independente”, subsidiada, porém, pelo Estado.
Todavia, com o interesse tardio do Estado pelas questões culturais, o projeto cultural
de Glauber torna-se insustentável, pois a partir do Estado ditatorial pós-1964 a cultura
conquista enfim o status de produto, passando a ser financiada e produzida com intuito
primeiro de vender, e não de “educar”, como propunham muitos intelectuais e artistas
nacionalistas. Dessas questões nasce a necessidade de transformar o cinema em uma indústria
associada ao capital estrangeiro, adequando-a à ideologia do novo regime. Desejava-se uma
indústria menos politizada, que não atacasse os interesses do governo.
Com a inciativa, a partir de 1929, de alguns países latino-americanos em tomar o
próprio controle do seu desenvolvimento econômico iniciativa que desaguaria na política
151
Ver MOTA, Carlos Guilherme. Op.cit.; PÉCAUT, Daniel. Op.cit.; RAMOS, José Mário Ortiz. Op.cit.;
XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. Op.cit.
152
MOTA, Carlos Guilherme. Op.cit., p.212.
153
Leonardo Arroyo, em A cultura popular em Grande Sertão: Veredas, realiza, dentre outras coisas, um estudo
minucioso a respeito da relação entre cultura popular e cultura erudita.
154
MOTA, Carlos Guilherme. Op.cit., p.212.
101
de Getúlio Vargas, a partir de 1930 ―, o Brasil industrializa-se, deixando, em um curto
período, de importar vários produtos dos países desenvolvidos. Essa política visava ao
engrandecimento da pátria por meio da industrialização nacional e da conseqüente
independência que esta traria, em relação aos países capitalistas desenvolvidos. O golpe de
1964 vem como resposta a esse modelo que, principalmente a partir do governo de João
Goulart (07/09/1961 a 01/04/1964), segundo os militares, estaria aproximando o país de uma
política socialista. O país estava perigosamente tomando as rédeas de seu crescimento, através
de medidas que iam desde a industrialização com vistas a substituir as importações, até a
proletarização da classe média, que via seus salários cada vez mais equiparados com os dos
trabalhadores. Daí a necessidade de se associar capitais externos com nativos, como técnica
para fazer frente ao nacionalismo populista. Foram esses elementos, combinados com outros
de contradição interna do próprio populismo, os principais fatores que acarretaram no golpe
de 1º de abril de 1964:
Como vemos, a forma pela qual estava ocorrendo a ruptura político-econômica, que
fundamentava a transição da sociedade brasileira para uma civilização urbano-
industrial, não era compatível com os interesses externos. Em outros termos,
tornava-se necessário corrigir o modo pelo qual o Brasil estava ingressando na era
industrial. Portanto, o golpe de 1964 destinou-se a conferir uma nova direção ao
processo histórico nacional.
155
Em outras palavras, fazia-se necessário recolocar o país no eixo de crescimento do
capitalismo mundial, sem perder de vista o interesse da elite local. Nesse vasto processo,
situavam-se também a classe média fortalecida em termos de número de componentes, em
decorrência da expansão do setor técnico e o proletariado, inerte em decorrência das
políticas até certo ponto reacionárias do PCB e seus organismos mais próximos, como a UNE,
por exemplo.
Falando-se em classe média, é de se ressaltar a certa “docilidade” com que aceitou e se
adaptou ao golpe. Sempre conservadora e, portanto, avessa a qualquer expressão
revolucionária, ambiciona a ascensão social a qualquer preço.
156
O universo cultural e mental
dessa classe está impregnado de valores da classe dominante, que se difundem nos mais
variados meios de comunicação de massa. Por isso nas lutas do operariado um perigo para
a sua ambição. Desse choque de concepções é que resulta sua “amabilidade” para com a
155
IANNI, Octávio. Op.cit., p.149.
156
Ver LÊNIN, Vladimir. O Estado e a Revolução; IANNI, Octávio. O Colapso do populismo no Brasil. Op.cit.
102
solução autoritária que determinados setores da classe dominante lhe apresentaram.
A marcha da família com Deus, pela liberdade, ocorrida em 18/03/1964, na cidade de
São Paulo, é uma dessas manifestações massivas que contou com vasto apoio da classe média,
e ocorreu como resposta dada pelos paulistas ao Comício das Reformas
157
, realizado seis dias
antes no estado da Guanabara. Mais do que isso, a marcha mostrou-se um poderoso
instrumento político-ideológico, por fazer parte de uma campanha de tantas campanhas de
opinião pública, dirigidas especificamente à classe média, que visou preparar a população
para a iminente queda do governo de João Goulart, e também para a conseqüente reorientação
da política-econômica até então vigente.
Em boa parte, o golpe representa uma restauração dos vínculos internos e externos
que se estavam rompendo desde a Primeira Guerra Mundial e, em especial, durante
a era getuliana, isto é, entre 1930 e 1954. Instaura uma etapa de dependência
estrutural.
158
Em suma, o que tinha então valor depreciativo no populismo getulista, passa a ter, a
partir de 1964, um sentido quase ufanista, de valorização e grandeza da pátria. Nosso
“complexo de inferioridade” é então substituído por um discurso que ambicionava enfatizar as
grandezas da nação. Esse era o tom do governo de Juscelino Kubitschek, que realizou
vastas obras pelo Brasil inteiro, dentre elas a imponente capital federal. Como se vê, o
governo ditatorial imposto pelos militares ― em substituição ao outro, calcado na substituição
de importações ―, não visava “reestruturar” o país em um plano apenas estrutural, mas
também superestrutural. Daí a importância de se controlar os meios de comunicação de massa
e de criar mecanismos, ou melhor, organismos que possibilitassem o controle sócio-político-
cultural. Eis o objetivo central do INC: garantir a produção cinematográfica brasileira, como
forma de garantir a hegemonia do sistema político.
Mazzaropi, mesmo não ambicionando um confronto direto com nenhuma espécie de
poder ou instituição política, não deixa de dar suas alfinetadas a essa nova visão político-
cultural implantada pela ditadura. Os filmes produzidos nesse período pelo artista
(1964-1968) vêm a comprovar isso. Não que Mazzaropi tenha comprado uma briga direta
com o regime ditatorial, ou contra qualquer outro tipo de poder político; muito pelo contrário,
pois é sabido que não são esses os objetivos primeiros de suas produções. Porém, mesmo não
157
Foi um ato político que contou “com a presença do Presidente da República, Ministros de Estado, líderes
nacionalistas, operários, estudantes, intelectuais, etc”. (IANNI. Op.cit., p.130-31)
158
IANNI, Octávio. Op.cit., p.145.
103
se dirigindo às massas, ao seu público, com uma linguagem e uma proposta eminentemente
políticas, não quer dizer que tenha se esquivado por completo das discussões e dos problemas
políticos que o cercavam.
Ao que consta, os filmes de Mazzaropi do período compreendido entre 1964-1968, um
dos mais críticos e conturbados da história político-social brasileira, são eivados de pequenas
críticas dirigidas sutilmente ao Regime Militar
159
. Dentre estas produções, talvez a que mais se
destaque, e a que melhor englobe a complexidade do momento em que passava o país, seja O
Jeca e a Freira, produzida em 1967 e lançada no ano seguinte.
Ambientado no século XIX, antes da proclamação da Lei Áurea, e tendo como cenário
para enredo da trama a Fazenda Santa, situada na cidade de Taubaté, interior do estado de
São Paulo, o filme O
Jeca e a Freira talvez
seja a produção de
Amácio Mazzaropi em
que mais se percebe “di-
retamente” uma postura
estritamente crítica e
combativa a um regime
político. Não perdendo
de vista seu projeto ci-
nematográfico, mera-
mente mercadológico, o diretor Mazzaropi, além de postular o caipira com o mesmo olhar de
O Jeca Tatu, de 1959, com todos os seus modos e trejeitos
160
, dialoga com os problemas
político-sociais de sua época
161
. Não podendo ser explícito, sob pena de sofrer duras
represálias, nem perdendo o foco de seu fiel público, Mazzaropi, em O Jeca e a Freira,
personaliza seu caipira da mesma forma conservadora que outrora, ambientalizando-o, porém,
em uma fazenda de café do século XIX, sob a vigência do modelo escravocrata.
À primeira vista pode nada representar o fato de o artista inserir seu caipira em um
159
Os outros filmes compreendidos nesse período são, especificamente, O Lamparina (1964), Meu Japão
brasileiro (1964), O Puritano da Rua Augusta (1965), O Corintiano (1966) e No paraíso das solteironas
(1968).
160
Essa fórmula sempre se mostrou muito eficiente, de maneira tal que seu personagem permaneceu o mesmo
no decorrer de sua carreira de mais de 30 filmes.
161
Conforme analisada em capítulo precedente, a obra mazzaropiana acaba, direta ou indiretamente, por
dialogar ― com raras exceções ― com o momento político-social no qual se insere.
104
Brasil escravocrata. Contudo, se bem assistido e analisado, o filme remete diretamente,
embora de maneira assaz sutil, ao regime ditatorial então vigente. Tanto é assim que o
escravo, ou melhor, a escravidão
162
, embora presente, assume um papel secundário na trama
da narrativa. O foco é dirigido aos mecanismos de repressão adotados pelo coronel Pedro, que
não mede esforços para conseguir o que almeja. Em outras palavras, Mazzaropi não faz uma
reflexão sobre a escravidão e suas causas, ou sobre a luta pela libertação dos negros
163
. Faz
sim uma reflexão sobre o conturbado período que atravessava o país.
Essa ordem de considerações, no entanto, deve ser complementada. É preciso lembrar
que “Mazza” tem um projeto cinematográfico distinto e um público fiel a zelar. Seus filmes,
para continuarem com o sucesso de renda que sempre tiveram, precisam não somente
apresentar aquele caipira por todos conhecido, mas remeter diretamente para o “novo
trabalhador”, aquele sujeito que saiu do campo, do interior ou do Vale do Paraíba para ir
trabalhar como pequeno comerciante, ou empregado da construção civil ou como funcionário
das indústrias automobilísticas de grandes cidades como São Paulo, Belo Horizonte ou Rio de
Janeiro, por exemplo. Esse é o grosso do público de Mazzaropi; é para esse público que
desenvolve seus enredos poeticamente adocicados.
Em O Jeca e a Freira não é diferente. A narrativa inicia com o coronel Pedro indo à
casa de Floriana (Geni Prado) e Sigismundo (Mazzaropi) avisar-lhes que sua filha, Celeste,
está para chegar, após 13 anos confinada em um colégio de freiras. Até tudo normal, não
fosse o fato de o coronel, arbitrariamente, informar-lhes que não pretende deixar a filha ir
morar com os pais genitores, evitando inclusive uma possível aproximação entre Celeste, eles
e Fernando, seu irmão sangüíneo. O intuito é um só: evitar que Celeste descubra a verdade:
que foi “roubada” dos braços da mãe verdadeira com o pretexto de retornar após 5 anos.
Porém, nesse meio tempo vem a falecer a esposa do coronel Pedro, que resolve
assumir interinamente a guarda da criança, enviando-a para um colégio interno com o
pretexto de educá-la. Eis o argumento do filme; a partir de então é que se desenvolve toda a
narrativa. Observe-se que o argumento, e sua respectiva problemática, é apresentado ao
espectador logo nas primeiras cenas do filme, inserindo-o diretamente na narrativa central e
mostrando-lhe o tom e o ritmo que tomará o enredo. É justamente nos primeiros diálogos que
162
Embora Mazzaropi não produza um filme de época com o intuito de discutir a escravidão enquanto sistema
político e suas conseqüências para o país ou para o homem caipira, a escravidão no sentido de relação
patronal (patrão-empregado/agregado) é bem marcante e significativa. A ponto tal de a uma determinada
altura da narrativa, o próprio personagem Sigismundo afirmar ser um escravo do coronel Pedro.
163
Se há essa reflexão no filme é mais para comprovar que poucas são as diferenças entre o período antecedente
(escravocrata) e o atual (liberal-capitalista). Como se dissesse: “Vejam, nada mudou!!”
105
são lançadas essas informações. Nessas primeiras cenas se torna possível diagnosticar o
caráter dos personagens centrais, ao mesmo tempo em que familiariza o público com o enredo
apresentado. Logo de início deixa-se transparecer o ritmo da narrativa, juntamente com as
críticas dirigidas ao regime ditatorial abarcados no filme:
Coronel Pedro chega a cavalo na casa de Sigismundo e bate na porta, onde é
atendido por Floriana.
Floriana: Quem que é?
Pedro: Vai chamar seu marido.
Floriana (abrindo a porta): ele está no mato.
Pedro: Cortando madeira?
Floriana: Não, ele levantou agora. Espera aí que vou chamar ele lá no fundo.
Floriana fecha a porta e deixa o coronel esperando. Em seguida dirige-se à janela
para chamar seu marido, que aparece em seguida vindo do mato arrumando as
folgadas calças.
Floriana: “Sujismundo”!
164
Sigismundo: O que é?
Floriana: O patrão tá aqui; tá querendo falar com você.
Sigismundo: Vai falando com ele aí que agora não posso.
Floriana: Ele quer falar com você, não comigo.
(...)
Pedro: Bom dia, “Sujismundo”.
Sigismundo (retirando o chapéu em sinal de respeito): Bom dia, Sinhorzinho. Eu
não fui trabalhar hoje porque amanheci com a...
Pedro: Eu não vim lhe chamar para trabalhar. O que acontece é que eu tenho um
assunto muito sério para tratar com você e sua senhora.
Sigismundo: O senhor quer tratar aqui fora, ou quer tratar lá para dentro?
Pedro: Você é quem sabe.
Sigismundo: Então vão para dentro, né, Senhor.
Sigismundo (dirigindo-se para a porta da frente, enquanto a vizinha se aproxima
mansamente da casa, tentando saber o que se passa): Espera um pouco.
Sigismundo: Oh, mulher?
Floriana: O que é?
Sigismundo: Tá tudo em ordem aí?
Floriana: Em ordem para que?
164
A respeito da linguagem é interessante frisar que em O Jeca e a Freira ela é usada mais claramente que em
Jeca Tatu, como forma de repressão e também como maneira de diferenciação de classes. O que me levou no
trabalho a padronizá-las foi o fato de eu achar desnecessária a transcrição do modo de falar dos personagens
de Mazzaropi. Isso porque diferenciar a fala do caipira da dos demais personagens, principalmente no
capítulo 2, assumiria, além de tudo, um caráter preconceituoso, na media em que muitos termos poucos se
diferenciam da linguagem cotidiana do meio urbano também. Em vista disso, resolvi adotar o mesmo critério
de transcrição no capítulo 3, mesmo ciente da importância que essa assume aqui.
Todavia, é importante frisar mais um trecho do filme. Trata-se do diálogo entre Sigismundo e a freira, no
estábulo, em que o personagem de Mazzaropi esclarece a real pronúncia de seu nome e critica a postura
autoritária e classista de Pedro: Sigismundo: Oh, dona freira. (pausa) Sabe, dona freira, conforme nós
estávamos conversando lá dentro, o Seu Pedro está errado. Porque, a senhora veja bem: foi ele quem criou,
mas ele não é o pai. / Freira: Mas, seu “Sujismundo”... / Sigismundo: Espera aí, espera aí... Esse negócio
de “Sujismundo” ainda vai dar briga aqui, porque o meu nome não é sujo não. Ele, Seu Pedro, é que quer
chamar eu de sujo. Por isso que ele fala “Sujismundo”, mas o que a minha mãe botou mesmo, minha mãe
botou mesmo foi sujo... Sujismundo..., não foi sujo, Sigismundo. (...)
106
Sigismundo: Pra nós receber o seu..., como é mesmo o seu, seu..., o seu coisa aqui.
Sigismundo: Nós estamos querendo entrar.
Floriana: Espera, que eu estou botando a saia;
Sigismundo: Vamos esperar um pouco, que a mulher não está, não está... resolvida
ainda.
Nesse meio tempo, a vizinha, que desconhece o assunto, mas sapiente da chegada do
coronel, corre para avisar Fernando, filho do casal, da visita inesperada. Fernando,
que encontrava-se trabalhando, larga dos seus afazeres e dirige-se rapidamente para
casa dos pais, a cavalo.
Pedro (rindo): Vim trazer uma notícia que vocês vão chorar de alegria. Vamos
tomar um bom vinho e comer uma leitoa.
Sigismundo: Ih, estragou tudo. Logo hoje que eu acordei destemperado.
Pedro: Ah, “Sujismundo”. Se você souber do que se trata, eu tenho certeza que você
vai sarar imediatamente.
Nesse momento Floriana sai, trocada, de dentro de casa.
Pedro: o dia de hoje para nós é muito significativo. Acabo de cumprir uma
promessa que foi confiada a mim e a minha finada senhora.
Sigismundo: Que Deus tenha ela no bom proveito.
Floriana e Pedro: Amém!!
Sigismundo: Na glória de Deus.
Floriana e Pedro: Assim seja.
Sigismundo: Mulher, vai colocar água no fogo para fazer um cafezinho bem
gostoso para o Seu Pedro, viu.
Floriana: A água já está fervendo.
Sigismundo: O Senhor toma café?
Pedro: Tomo.
Sigismundo: Não vai tomar; o coador furou.
Floriana: Consertei o coador.
Sigismundo: Hoje cedo eu coei o café e o pó esborrifou tudo por baixo.
Floriana (contrariada): Sigismundo, eu consertei.
Sigismundo (contrariado): Floriana, o pó desceu.
Todos se viram para trás pressentindo a chegada de alguém. A câmera então foca
Fernando vindo em seu cavalo e saltando rapidamente.
Fernando: Como vai, Seu Pedro?
Pedro: Tudo bem.
Floriana: Mas continue falando, Seu Pedro.
Pedro: Celeste, vossa filha, deve chegar dentro em pouco.
Floriana: Viche, Maria. Nós vamos morrer de alegria hoje, Sigismundo.
Sigismundo: Larga, mulher, de alegria ninguém morre.
Pedro: Ela terminou o curso no colégio e vem morar aqui.
Floriana: Ela veio sozinha do Rio para cá?
Pedro: Não, a Madre se prontificou em acompanhá-la.
Sigismundo (para Floriana): Você sabe o que é “Madre”?
Floriana: Não.
Sigismundo: Mas você continua analfabeta. “Madre” é freira, mulher.
Floriana: Eu estou pensando onde é que a gente vai botar a menina pra dormir.
Sigismundo: Taí, você está com o problema errado, o maior problema não é a
menina. O Fernando dorme lá pra banda da cozinha, você dorme na sala comigo, né.
E a freira, Cristóvão Colombo, onde é que nós vamos botar a freira?
Fernando: Eu falei: vamos fazer uma casinha melhor.
Sigismundo: Você falou, mas não fez, né.
Floriana: Até que foi bom a gente ter comprado aqueles sacos.
107
Sigismundo: Ah, é, ignorante. Agora você enfia a freira no saco, amarra a boca e ela
dorme lá.
Floriana: Ara, Sigismundo, você nem deixa a gente acabar de falar. Olha, está tudo
alvejadinho, já fiz dois lençóis.
Sigismundo: E mantimento, tem aí?
Floriana: Mantimento tem, o que não tem é mistura.
Pedro: Espere, vocês estão se preocupando a toa.
Sigismundo: Se preocupando o que, a filha é minha. Hoje ela vai ter, nem que seja
para mim roubar, ela vai ter um bom almoço.
(...)
Pedro: Celeste vai almoçar lá em casa e ela vai ter um almoço como nunca teve.
Floriana, inesperadamente, principia a chorar. Todos dirigem-se a ela.
Sigismundo: Por que vocês está chorando, mulher?
Floriana: É porque eu queria que nossa filha viesse almoçar aqui em casa.
Sigismundo: Ah, mas que bobagem, que bobagem. Olha, para nós é até melhor, nós
vamos tudo comer na casa dele.
Pedro: Não, “Sujismundo”. Você não está entendendo. Está tudo arranjado e ela vai
continuar morando em minha casa.
Sigismundo: Isso nunca. Faz treze anos que nós estamos esperando esse dia.
Floriana: É isso mesmo, Seu Pedro. Nós sentimos muita falta dela. Eu não agüento
mais essa separação.
Fernando: O Senhor faz a festa e depois nós trazemos ela aqui para a nossa casa.
Pedro: Casa? Que casa? Isso lá algum dia foi casa?
Floriana (ainda chorando): Então quer dizer que o Senhor veio aqui para tomar
nossa filha?
Sigismundo: Que tomar filha, mulher, deixa de ser besta. Nem que seja para eu ir
para a cadeia, ninguém vai tomar a Celeste de nós.
Pedro: Procure compreender, “Sujismundo”, sua filha nunca será feliz aqui nessa
casa.
Fernando: Eu vou trabalhar dia e noite para não faltar nada pra ela.
Fernando vira as costas para o coronel e retira-se para dentro da casa, acompanhado,
logo em seguida, por Floriana e Sigismundo, fechando a porta antes que Pedro
pudesse adentrá-la.
Pedro: Como vocês podem ficar com a menina, se nem educação vocês têm?
A porta se abre novamente, saindo de dentro da casa a família, enquanto Pedro se
afasta furioso.
Pedro: Celeste vai morar na minha casa. E tem mais: eu não quero que ninguém
saiba quem são seus pais. Se eu souber de algum comentário eu acabo com a sua
vida (pausa) e com a raça de todos vocês.
Pedro ameça ir embora, mas Fernando corre para agredi-lo. Porém Floriana evita o
confronto do filho com o coronel, agarrando-o de joelhos e dizendo: “não, não, não,
meu filho”. Pedro então vai embora, deixando a família desconsolada.
Percebe-se claramente o tom repressivo com que o coronel se dirige à família de
Sigismundo, contrastando com o tom irônico que perpassa boa parte da cena. Essa postura
adotada por Pedro até o desfecho da narrativa será a principal responsável pelo seu destino
nada honroso: a morte, dentro de sua própria casa, vítima de tiroteio em sua fazenda, e
108
completamente desprezado por Celeste. Na verdade, o coronel simboliza, no filme, a ordem.
Todos os acontecimentos significativos da trama passam, de uma forma ou de outra, por ele,
pelo seu aval. Todas os fatos convergem para a Fazenda Santa e todas as decisões tomadas
afetam diretamente a narrativa. Para conquistar os objetivos que tanto almeja, Pedro se dota
de meios nada incomuns para um ditador: se mune da força e da repressão, medidas que são
efetivadas pela sua polícia, isto é, pelos seus capangas.
Pedro é o típico personagem movido pelas suas ambições e anseios. Todos os seus
desejos devem ser respeitados e todas as suas decisões têm que ser rigorosamente cumpridas,
com o risco de sofrer severa pena quem o contrariar. Desse seu caráter arbitrário é que decorre
seu status de ditador, e
sua “patente” de coronel
alcança uma impor-
tância tirânica não mui-
to diferente das patentes
e postos erigidos pelo
aparato militar. Sua au-
toridade tem vasto al-
cance, estando sempre
bem informado, e seus
atos mais arbitrários, na
narrativa, são alimentados pela possibilidade de perda de sua “maior conquista”: Celeste.
Para o personagem Pedro, a filha postiça representa harmonia, é um arauto de
felicidade. D sua tirania frente às intenções de Sigismundo e Floriana ao tentarem se
aproximar da garota. Nesse sentido, a obtenção da guarda de Celeste é tida como o poder
máximo, a maior conquista alcançada no interior da narrativa, sendo, em torno dela, que
ocorrem todos os principais acontecimentos. Embora permaneça relativamente alheia às
discussões, ou seja, ao foco principal do filme, a personagem Celeste assume papel central na
narrativa, pois é ela o “objeto” em disputa.
Para evitar que a família do caipira resgate a guarda de sua legítima filha, o fazendeiro
não poupa esforços e parte, desde o início, numa investida contra essa hipótese, impondo
desde logo sua decisão. Não obstante, mantém a postos seu exército armado como forma de se
manter no poder. Não fosse seu exército todos os seus vitupérios não seriam sequer postos em
109
prática e sua tirania não seria exercida
165
. Não fosse o policiamento constante de seus
capangas e Sigismundo e sua família nem precisariam recorrer ao coronel Orlando, bom
amigo de Pedro, porém imune às ambições provocadas pelo poder
166
. Em poucas palavras,
Pedro representa a ordem e a família de Sigismundo a resistência, a desordem
167
. Uma
resistência que de início é relativamente contida, porém nunca silenciosa, por ser temerária ao
jogo de forças que se coloca em órbita, mas que em oportuno momento, com a ajuda do
exército do coronel Orlando, contra-ataca, obtendo êxito.
Na verdade em O Jeca e a Freira o caipira está meio desrritorializado, na medida em
que o autor Mazzaropi “borra” o tempo e o espaço, fazendo uma verdadeira miscelânea
cultural e histórica, de modo tal a não deixar claro ao espectador o momento histórico exato
em que é contextualizada a narrativa. Basta, para tanto, perceber as vestimentas dos
personagens, como os capangas, que lembram os cowboys dos filmes de far-west
hollywoodiano, ou como os próprios personagens que representam a elite, trajados com
roupas excessivamente coloridas, semelhantes às vestimentas características aos mexicanos
em filmes também de faroeste, por exemplo.
Essa desrritorialização do caipira, assim como esse ato de borrar o tempo, além de
tornar o filme historicamente inorgânico, acaba influenciando, de certa maneira, no
acabamento estético da produção, como ocorre logo no início do filme, quando a narrativa é
paralisada repentinamente para focar uma cena completamente descontextualizada de canção
de escravos. Esse problema de montagem é constante em O Jeca e a Freira, porém esse é o
165
Em algumas vezes, durante o transcorrer da narrativa, Sigismundo afirma que Pedro é corajoso apenas
cercado de capangas por todos os lados, sendo incapaz de assumir as conseqüências de seus atos sozinho.
166
Coronel Orlando, e sua família (os três filhos: Sônia, Otávio e Cláudio), são, em termos psicológicos dos
personagens, o ponto fraco do filme. Por serem de família também tradicional e membros da elite
escravocrata brasileira, não é de se esperar que tenham relações de compadrio com pessoas de classes
inferiores. Ao se esforçar por unir Celeste, filha dos caipiras, com o seu filho Otávio, e ao aprovar sem
relutância o namoro entre Sônia e Fernando, caipira e filho de Floriana e Sigismundo, coronel Orlando se
mostra “desconhecedor” das relações de classe existentes. Por ser relativamente livre, o caipira é, antes de
tudo, seu inimigo, assim como os escravos sua propriedade. Firmando essa relação entre os personagens,
Mazzaropi, a exemplo do ocorrido em Jeca Tatu, despe dessa vez não completamente seu caipira da
noção de classes, o que acaba ocasionando um pequeno “equívoco”, na medida em que seu caboclo passa a
tratar os fazendeiros não como o “outro”, julgando-os tendo em vista a dicotomia simples entre o bem e o
mal.
Na verdade, Sigismundo, em O Jeca e a Freira, é muito mais consciente de sua posição que seu antecessor
Jeca, pois sabe tirar proveito dos sentimentos que o filho do coronel tem por Celeste e do namoro entre Sônia
e seu filho. Todavia, mesmo se assim não fosse, seria um “equívoco” justificável esse de Mazzaropi, na
medida em que seu propósito não é “educar” o povo, nem nunca foi. Seu intuito ao fazer cinema é outro e
recai no fato de produzir um filme repleto de valores tradicionais para famílias campesinas, mas que agora
moram e trabalham em grandes cidades do Brasil. Mazzaropi resgata esse campo idealizado, alimentando o
imaginário dessa parcela da população. Por isso também é tão amado e assistido.
167
Mais adiante ser verá como o personagem Sigismundo contesta de uma outra forma a ordem instituída,
pondo em xeque, inclusive, o próprio conceito de Justiça.
110
momento em que se torna mais perceptível.
Como reflexão dramática acerca do golpe militar, O Jeca e a Freira combina
impressões do autor captadas em elementos extraídos da realidade, com a certa “inocência”
característica das produções fílmicas de Mazzaropi. Isso porque “Mazza” produz, segundo ele
mesmo, filmes para toda a família
168
, em específico aquelas famílias oriundas do interior, que
vêem nas cidades grandes a oportunidade de melhorarem seus padrões de vida. Por isso a
atmosfera leve de seus filmes, passando uma imagem semi-poética do campo
169
e de sua
gente. Daí as belas e bucólicas imagens captadas pelas lentes das câmeras de O Jeca e a
Freira. Mazzaropi, sob esse prisma, ainda é fiel à fórmula aplicada em Jeca Tatu, e que daria
a tônica para todos os seus filmes posteriores.
Embora relativamente alheio às discussões políticas e culturais que preocupavam os
intelectuais e cineastas do Cinema Novo, filmes como O Jeca e a Freira comprovam que
Amácio Mazzaropi não se isentou completamente das questões que tanto preocuparam artistas
e intelectuais de seu tempo
170
. Sutilmente, com umas alfinetadas aqui e outras ali, a política e
168
Vejamos mais um trecho extraído da entrevista concedida, por Amácio Mazzaropi, à Revista Veja, em
28/01/1970, intitulada O Brasil é meu público (op.cit.): Veja: O que você pensa do novo teatro, do palavrão
do nu? / Mazzaropi: Não tenho nada contra ele. Pelo contrário, até gosto das peças que têm nu, palavrão,
mas quando elas vêm por necessidade, por decorrência da própria história. Não do palavrão, do nu
forçados. De um punhado de gente pelada se esfregando maliciosamente pelas paredes do teatro; do
sensacionalismo para ganhar público. (...) O grande público fica em casa. (...) Vai ao cinema assistir meus
filmes e depois eu passeio pelas ruas e ouço um pai de família: “Mazzaropi, seus filmes são ótimos. A gente
pode levar a família para assistí-los”. Já imaginaram se eu aparecesse pelado para esse público? Ele nunca
mais iria me assistir no cinema.
169
Esse filme, embora menos poético e bucólico que Jeca Tatu, é também muito competente no que diz respeito
à mitificação do campo.
170
Isso não quer dizer que seu cinema fosse de fato revolucionário. Augusto Boal, em 1973, afirma que peças e
filmes como os produzidos e criados por Mazzaropi se inserem no que o autor conceitua de “Sistema trágico
coercitivo de Aristóteles”. O Sistema funcionaria segundo regras estabelecidas na Poética, de Aristóteles, e
teria como função principal a coerção do espectador e funcionaria, grosso modo, da seguinte maneira: cria-se
uma empatia (relação emocional) entre personagem e espectador, por este se assemelhar, de alguma forma,
com aquele. Essa empatia é a responsável pela escolha do público entre esse ou aquele personagem, entre o
“mocinho” e o “vilão” da trama. Nas tragédias gregas esses personagens principais tinham alguma harmatia,
ou seja, falha trágica, único defeito de caráter do personagem e principal causador do conflito.
Nos filmes de Mazzaropi a harmatia causadora do conflito não é a de seu personagem (preguiça), mas a do
vilão da narrativa. É a única coisa que deve ser destruída, para que a totalidade do ethos (conjunto de ações,
emoções e paixões) do personagem se conforme com o total do ethos da sociedade. Da relação desse
confronto ocasiona-se a catarse (purificação do espectador aterrorizado pelo “espetáculo”), ou seja, o
espectador, não querendo que seu final seja como o do personagem, purifica-se da sua catarse, que é, antes de
tudo, uma harmatia social, propensa a causar a desordem.
Perceba-se que no filme Jeca Tatu, o personagem Giovani se purifica de sua harmatia, vivendo em paz com o
caipira. no filme O Jeca e a Freira, Pedro não tem o mesmo destino, morrendo por causa de sua cobiça e
arrogância. Uma coisa interessante a se notar nesse tipo de espetáculo é o fato de espectador assumir uma
atitude passiva, em decorrência da empatia com a personagem, delegando sua capacidade de ação. O
espectador se entrega para a narrativa e sai dela purificado de sua falha trágica e totalmente desmobilizado. É
um meio artístico ainda muito usado e contribui, a sua maneira, para a manutenção da ordem. Todavia, é
claro que a relação filme x público, em Mazzaropi, não se limita a essas questões, como vemos, embora não
se poder descartá-las por inteiro de seus filmes. (In: BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas
111
a cultura oficiais eram discutidas e, muitas vezes, questionadas.
Todavia, está claro que não é esse o intuito primeiro da obra mazzaropiana. Conforme
visto, seu cinema é industrial, entendendo como industrial algo semelhante ao modelo
cinematográfico implantado pela Companhia Vera Cruz ou até mesmo por Hollywood
171
. De
Jeca Tatu (1959), sua primeira produção enquanto caipira, a O Jeca e a égua milagrosa
(1980), o eixo que norteia sua produção é renda e público. Por isso também os dramas
relativamente fáceis e adocicados, interpretados, muitas das vezes, por atores e atrizes da
moda. No filme que se analisa nesse capítulo não é difícil de perceber a aplicação dessa
concepção de se fazer cinema. Drama fácil, que exige pouco do espectador e belos e
conhecidos atores dão a tônica ao filme. É também dessa “fórmula” que provém a certa
“inocência”, anteriormente referida. Essa concepção meramente mercantilista da obra de arte
norteia todo o fazer artístico de Mazzaropi.
Ao assumir, no início dos anos 60, uma oposição ferrenha ao cinema industrial
cinema do colonizador, espaço de censura ideológica e estética —, o Cinema Novo foi a
versão brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da
burocracia da produção, em nome da vida, da atualidade e da criação. Aqui, atualidade era a
realidade brasileira, vida era o engajamento ideológico, criação era buscar uma linguagem
adequada às condições precárias e capaz de exprimir uma visão desalienadora, crítica, da
experiência social”
172
.
Todavia, a partir do golpe de 1964, a nova conjuntura política incide diretamente no
trajeto do Cinema Novo, como não poderia deixar de ser. Mesmo após o golpe, a “hegemonia
cultural de esquerda” continuou atuando, cabendo ao governo ditatorial isolar essa política do
seu pretenso interlocutor: o setor popular. É desse contraste político-ideológico que é criado o
INC, sendo esse processo de disputa ideológica predominante até a crise de 1968, que
culminou na criação do AI-5
173
. Ou seja, ainda existia uma elite intelectual preocupada em
“educar” a massa alienada, incapaz de agir com as próprias pernas. No entanto, essa elite foi
facilmente deslocada, pelo governo, para um terreno menos pantanoso, pelo simples fato de
não se comunicar diretamente com o setor popular. Segundo Ismail Xavier:
políticas. 4.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.)
171
É de se notar que, embora industrial, a Cia Vera Cruz se preocupou, enquanto viva, em produzir um cinema
artístico, como forma de oposição aos chanchadistas cariocas. Nesse sentido, Mazzaropi e Vera Cruz nada
têm de idêntico a não ser o espírito empreendedor de ambos.
172
XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. Op.cit., p.57.
173
O Ato Institucional Número Cinco, ou AI-5, decretado pelo Presidente Arthur da Costa e Silva em 13 de
dezembro de 1968, foi um instrumento de poder que deu ao regime poderes absolutos e cuja primeira e maior
conseqüência foi o fechamento por quase um ano do Congresso Nacional.
112
De 1965 a 1968, a demanda de comunicação e o simultâneo impulso de
modernidade autoral marcaram uma nítida oscilação da postura do Cinema Novo. A
proposta de um ajuste maior à linguagem do cinema narrativo convencional
permanece mais uma palavra de ordem nos textos do que uma realidade na tela.
174
Até mesmo o conjunto de “filmes mais comportados”, baseados em obras literárias, se
mantém, com raras exceções, afastado do grande público
175
. Somente em 1969, com a produ-
ção do longa metragem
Macunaíma, de
Joaquim Pedro de
Andrade, é que um
filme oriundo do quadro
do Cinema Novo
consegue repercussão
junto ao público.
Intermediado pelo INC,
essa produção se desta-
ca pelo fato de conse-
guir, sem se esquecer de uma proposta cultural, penetrar junto ao grande público. Macunaíma,
aliás, transforma-se em um estandarte de resistência aos eternos ataques ao “elitismo” e
“hermetismo” do Cinema Novo e “vai ser um ponto de inflexão para os anos 70, forjando uma
nova concepção de cinema no grupo anteriormente tão apegado aos objetivos de 'desalienar a
nação'”
176
.
Para o Instituto Nacional de Cinema, e também para a maioria dos intelectuais do
Cinema Novo, com exceção de Glauber e outros poucos, o cinema brasileiro tinha que ser
como Macunaíma: filme considerado de boa qualidade e de grande bilheteria. Forçados, pelo
mecanismo de produção acionado pelo INC, a trabalharem juntos com empresas estrangeiras,
os intelectuais “movimentavam-se num campo que associa organicamente dimensões
artísticas e econômicas, campos em que a cultura e a indústria são indissociáveis”
177
.
174
XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. Op.cit., p.60.
175
Ismail Xavier, na página 60 do seu Cinema brasileiro moderno, cita algumas dessas produções. São elas:
Menino de Engenho (Walter Lima Jr., 1965), A Hora e a vez de Augusto Matraga (Roberto Santos, 1965), A
Falecida (Leon Hirzman, 1965), O Padre e a moça (Joaquim Pedro de Andrade, 1966), Capitu (Saraceni,
1968), dentre outros.
176
RAMOS, José Mário Ortiz. Op.cit., p.62.
177
Idem, p.62-63.
113
Dentro de uma nova etapa do capitalismo nacional, de captação de recursos externos,
o Cinema Novo, para sobreviver enquanto movimento, teve que se adaptar e se “moldar” a
essa nova realidade, eximindo-se de seu “compromisso com o povo”. Esse é o momento em
que as propostas cinematográficas de Mazzaropi e dos Cinemanovistas se aproximam e, por
vezes, até se confundem. O forte tom social e político que o Cinema Novo tivera na década
precedente, limitava-se, no final da década de 1960, a meros percalços políticos. Assim como
a cinematografia de Amácio Mazzaropi, mais preocupada em cativar o público que proclamar
uma postura político-ideológica que visasse a combater as estruturas vigentes. Retornando-se
mais uma vez a José Mário Ortiz Ramos, conclui-se:
A passagem definitiva do filme preto e branco para o colorido e dos 21 projetos
aprovados pelo INC em 1969, 20 eram de filmes em cores com um substancial
aumento de custos de produção, bem como o próprio processo de desenvolvimento
capitalista dependente do país e a conseqüente mudança no perfil da indústria
cultural, forçavam o cinema brasileiro, e com reflexos mais agudos o Cinema Novo,
a uma reorientação no sentido de preocuparem-se cada vez mais com a repercussão
dos filmes junto ao público.
178
Uma situação como essa, articulada com uma forma de produção incrementada pelo
INC, vai obrigar o cinema comprometido com os planos cultural e político a correr por fora,
buscando recursos alternativos para se manter vivo. Isso porque tanto o Estado quanto o INC
procuravam apenas concretizar a sua proposta de industrialização cinematográfica, isentando-
se de elaborar uma política para os rumos que deveria tomar o cinema brasileiro.
Ainda confusos com os acontecimentos políticos, os intelectuais de esquerda, por sua
vez, elaboram, nesse momento, políticas e teorias que iam de encontro às ideologias
anteriores ao golpe de 1964. O conceito de “povo”, por exemplo, ao menos no sentido em
que era usado, de massas populares ―, torna-se longínquo e ineficaz. Isso porque as teorias
― principalmente as elaboradas nas malhas do Partido Comunista Brasileiro ― mostravam-se
ineficazes quanto aos rumos tomados pelas massas populares
179
. A falta de reação coletiva
diante do golpe e a posterior marginalização dos movimentos sociais encabeçado pelo regime
autoritário forçam os intelectuais de esquerda a darem um giro de 180º, afastando-se
praticamente dos andrajos populares.
A bem da verdade, a política encampada pelo PCB, e pela grande maioria dos
intelectuais de esquerda, próximos ou não do aparato ideológico partidário, mostrou-se
178
Idem. Ibidem, p.63.
179
Ver PÉCAUT, Daniel. Op.cit.
114
ineficaz e inadequada por se limitar a diagnosticar a situação brasileira, excluindo-a em parte
do contexto internacional
180
. Ademais, tais diagnósticos serviram mais para propósitos
partidários e individualistas do que para encaminhar as massas e o proletariado rumo ao seu
propósito histórico: a Revolução. Inclusive após o golpe, quando a política do PCB exerce
ainda influência nos intelectuais de esquerda, embora o partido se mostre ineficaz em nortear
os intelectuais em torno de seu eixo, os desvios oportunistas impossibilitaram que as lutas
contra o Regime Militar, cujo ápice se dá em 1968, se tornassem unificadas e plurais. Tanto é
assim que os resistentes em 1968 compõem-se praticamente de poucos intelectuais engajados,
de estudantes universitários, ligados ou não à UNE e oriundos de uma fatia pequena da classe
média, e de alguns militantes radicais.
A busca da verdade, por meio do discurso, segundo Foucault, é sempre apoiada sobre
um suporte e uma distribuição institucional, tendendo a “exercer sobre os outros discursos (...)
uma espécie de pressão e como que um poder de coerção”
181
. Ou seja, nessa busca incessante
pela verdade, recorrendo sempre à ciência, os intelectuais forjaram uma concepção política e
cultural que se viu excludente, pois deslocou a classe e cultura populares, colocando-as em
um segundo plano. Dessa forma, tanto os intelectuais ligados diretamente ao Partido
Comunista Brasileiro, como os intelectuais ligados à fase mais radical da Revista Civilização
Brasileira (1966-1968)
182
, formularam, na sua grande maioria, teorias que acabaram
contribuindo mais à manutenção da ordem que a “subversão” desta
183
.
Assim, após o golpe de 64, ao estilo dos anos 30, delineia-se mais uma vez o espectro
180
Segundo Michael Denning (A cultura na era dos três mundos, 2005), esse posicionamento dos intelectuais
brasileiros decorre de um momento em que a cultura era posta em segundo plano nas discussões político-
ideológicas. Um momento em que o terceiro mundo, em descolonização segundo o autor, se organizava
numa política de independência, calcada principalmente na substituição de importações, com vistas a
fortalecer as indústrias e os comércios nacionais. Assim, as Novas Esquerdas, como denomina, foram
solidárias e dependente às inflexibilidades do marxismo soviético, que internacionalizou o conceito de
cultura enquanto fruto de questões meramente econômicas e de particularidades nacionais e regionais.
No campo político criou-se uma cultura nacionalista-comunista, que visava desvendar as mazelas, no campo
estrutural, particulares das nações terceiro-mundistas, que escapavam da política geral soviética. Assim, um
aspecto comum entre as novas esquerdas da era dos três mundos foi a volta às superestruturas, a
reconsideração da cultura: ela é evidente na fundação do Centro Popular de Cultura (CPC).
Dessa forma, “a Nova Esquerda que floresce depois de 1955-1956 (...) se destaca como o primeiro de três
momentos. Se esse primeiro momento assistia à ressurreição do jovem Marx “humanista” e uma série de
radicalismos existenciais e fenomenológicos, o segundo momento, o da onda mundial de levantes e
insurreições em 1968, assistiu à popularização da virada cultural na forma tanto de denúncias da cultura
dominante, como aparelho ideológico de Estado, imperialismo cultural, indústria da consciência ou sociedade
do espetáculo, quanto de teorizações da revolução cultural”. (DENNING, p.16.)
181
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. (Tradução: Lara Fraga de Almeida Sampaio). 11.ed. São Paulo:
Edições Loyola, 2004.
182
Muitos desses intelectuais mantinham uma certa independência em relação ao PCB ou outra organização
política de esquerda ou direita.
183
Para maiores informações ver PÉCAUT, Daniel. Op.cit.; MOTA, Carlos Guilherme. Op.cit.
115
de um país desarticulado, de massas amorfas, de classes sociais sem identidade e de um
Estado alheio à sociedade. Ressurgem, no mesmo período, reflexões sobre a impossibilidade
de um sistema de representação política
184
. Em suma, há, a meu ver, uma crise crônica de
instituições políticas e político-partidárias, que teria seu início nas décadas precedentes de
1920-1930, mas que agora assumia proporções gigantescas, a ponto tal de desarticular o
próprio aparato estrutural do PCB. Esse partido que, nas décadas de 1920 a 1950, tivera
relativa importância no pensamento social e nas decisões políticas, a partir de 1968 pouco ou
nada representaria em termos de uma alternativa político-ideológica não somente para os
trabalhadores, mas para os intelectuais também.
Totalmente desarticulado em decorrência da ascensão dos militares, o Partido
Comunista, intentando fazer-se ouvir, objetiva manter gravitando em torno de sua órbita os
intelectuais anteriormente ligados aos quadros do partido. Mesmo aqueles que formalmente
ainda estão filiados ao PCB, fazem-se ouvir mais facilmente que este. Essa a única maneira
encontrada pelo Partido Comunista Brasileiro para manter-se em voga nas discussões políticas
do período. Todavia, mesmo desarticulado, suas idéias permanecem relativamente atuais,
obtendo relativa influência no campo superestrutural, no período compreendido entre
1964-1968.
Aquele velho discurso da revolução por etapas, de um Brasil quase medieval, a rigidez
dos conceitos para entender as variações de uma sociedade de massas e a concepção de que
existia uma burguesia nacional, e que esta ainda não tinha cumprido seu papel histórico
enquanto classe, era parte integrante do aparato ideológico e retórico do partido. Ao que
parece, a “velha receita comunista” permanece em voga não somente no campo político-
ideológico, mas também no campo cultural em estrito senso. A idéia rígida de que a arte
somente é válida enquanto expressão direta da sociedade e de que a maioria do público não
abstrai da arte moderna o seu verdadeiro conteúdo porque essa arte não fala de sua vida é
ainda muito comum e corrente.
No fundo, continua-se pensando numa rígida sociedade de classes (diferente de
sociedade de massas), como se o golpe de de abril não tivesse aberto um novo e decisivo
momento político-social na história do país
185
. Ou seja, a política rígida ministrada pelo PCB é
não somente insuficiente, mas infrutífera para responder à complexidade que o conturbado
momento exigia.
184
Ver PÉCAUT, Daniel. Op.cit.
185
Ver MOTA, Carlos Guilherme. Op.cit.
116
Ademais, os intelectuais não demonstram bem claros conceitos como democracia”,
ou “socialismo”, por exemplo. Esses fatores comprovam a confusão ideológica que o golpe e
o “novo” momento histórico causaram. Para a intelectualidade, a ditadura estava com seus
dias contados, pois era apenas uma fase passageira (e rápida) do capitalismo, sendo logo
substituída pelo rumo de crescimento e desenvolvimento da fase anterior.
É no interior desse turbilhão político-ideológico que Amácio Mazzaropi escreve,
dirige, atua e produz o filme O Jeca e a Freira. Numa época de crise de identidade nacional,
“Mazza” realiza um filme em que a esperança e a crença em um mundo melhor subsiste,
sendo não somente necessário, mas possível e viável. Se nesse período viver no país significa
um intercruzamento de sentidos, uma agonia, onde a esperança é substituída pelo
desencanto
186
, em Mazzaropi os tons marcantes são justamente o inverso. E assim os são não
por deixar transparecer em seus filmes um mundo justo e livre, mas por criar um mundo
maquiado, onde é possível, por dentro da ordem e da lei, superar as dificuldades e alcançar a
paz e a felicidade terrenas.
Todavia, seria sofisma não afirmar que essa maquiagem é relativa, na medida em que
a obra mazzaropiana pode ser medida por dois fatores que se relacionam e intercruzam, sendo
cruciais para compreender o universo criado por Mazzaropi. A saber: um mundo com
“estratificações sociais diluídas” simultaneamente a um “mundo avesso aos interesses do
colonizado”
187
. Ambos são resquícios das chanchadas e contestam, a sua maneira, a ordem
institucionalizada pelo Regime Militar. Isso porque vão diretamente de encontro não somente
aos interesses da política cultural erigida pela nova ordem política, mas à própria estrutura
política em si.
Quando, por exemplo, o caipira Sigismundo invade o espaço que supostamente é
destinado ao “outro”, assim o faz porque o mundo com que interage lhe permite agir dessa ou
daquela maneira. nesse processo, como se constata, uma certa diluição das estratificações
sociais, que autorizam — não sem resistência — que o caipira (Jeca) ultrapasse
constantemente as fronteiras pré-estabelecidas pela sociedade, e que o separam do coronel
Pedro, por exemplo. Isso ocorre porque as relações sociais entre as classes é posta em um
segundo plano
188
, cedendo lugar a valores outros mais importantes na concepção de
186
Ver XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. Op.cit.
187
A própria criação de seu caipira, avesso à postura burguesa, desnuda esse mundo às avessas de Mazzaropi. A
figura contestadora de seu caipira, associada, de certa forma, à imagem do malandro das chanchadas e da
tradição literária que as antecedem, remontam a um mundo avesso aos interesses do colonizador. Sua
barulhenta platéia, lembrando a platéia das chanchadas cariocas, ia de encontro à ordem burguesa.
188
Não quero dizer que este fator seja decisivo na obra de Mazzaropi, muito menos que desqualifique sua obra,
117
Mazzaropi — para o perfeito entrelaçamento do enredo. Assim, honestidade, justiça, amizade,
sinceridade, etc, deixam de ser meros conceitos, passando a incorporar as características
chaves de cada personagem.
Em O Jeca e a Freira, o personagem mais ciente do seu papel social é o vilão da
narrativa, o coronel Pedro, que usa de seu poder e influência para barganhar vantagens sobre
os demais personagens. O restante, com exceção de Sigismundo e Floriana, gravitam entre os
segmentos sociais como se fosse comum esse acordo social
189
. Embora apareçam na narrativa
como forma de contestação, esses momentos não são raros no filme e servem tanto para
demonstrar esse intercruzamento sempre eivado de preconceitos, é claro direto entre as
classes, como para mostrar o constante ir-e-vir do caipira nesses espaços alheios.
Após combinarem com os escravos da casa e com Celeste, Sigismundo, Floriana e
Fernando vão tomar café na casa de Pedro, em decorrência de uma acusação de que
o coronel estava se aproveitando da inocência da filha dos caipiras. A mesa está
farta de frutas e bem ornada de uma prataria reluzente, porém ninguém se manifesta
em decorrência do desconforto causado pela situação.
Sigismundo: Como é, nós não vamos comer, vamos ficar aqui um olhando para a
cara do outro?
Sigismundo (para Fernando e depois para Pedro): O mamão está esfriando já. O
senhor que é dono da casa tem que começar, senão fica todo mundo com vergonha,
ninguém pede nada.
Sigismundo (para a freira): E a dona freira aí..., começa a comer, assim nós entra
logo também.
Sigismundo: Tem manteiga aí?
Pedro (com raiva): Está aqui. Toma.
Sigismundo: Não precisa bater desse jeito. Meu filho, você que gosta de gordura.
Pode comer, lubrificar à vontade, porque isso aí nós não temos todo dia.
Celeste: Mas manteiga não é tão caro assim.
Sigismundo: Não é caro pra vocês, mas pra nós é. Com o ordenado que o seu pai
paga não dá nem para comprar sebo.
Pedro (com raiva, para Sigismundo): Em primeiro lugar eu gostaria de saber quem o
trouxe a minha casa?
Celeste: Fui eu quem o convidou, papai.
Pedro: E você sabe que eu não gosto dessas liberdades.
Sigismundo: Mas quem é que está querendo liberdade aqui? Ninguém está
querendo liberdade. Ah, por isso que vocês não estão comendo, né? Ele está
pensando, meu filho, que nós estamos precisando dessas porcarias aqui.
Fernando: Vamos embora, pai.
Sigismundo: Está vendo, você ainda está querendo namorar essa menina. Você viu,
se vocês estão namorando irias morar naquele rancho lá?
Celeste: Se eu amasse Fernando não me importaria onde morar.
Sigismundo: E se você tivesse um pai pobre que nem eu?
Celeste: Não tem importância, existe muitos lares humildes mas cheios de
relegando-a a um segundo plano na cinematografia nacional. Acontece que seus propósitos eram diferentes
dos propósitos artísticos do Cinema Novo, apenas isso.
189
Como foi explanado anteriormente, Sigismundo e Floriana invadem o espaço do outro com o objetivo de
resgatar a guarda de Celeste, não por outro motivo.
118
felicidade.
Pedro (para Celeste e Sigismundo): Vamos acabar com este assunto que essa
conversa não está me agrandando, entendeu?
Capanga (em volta da mesa): Até agora eu fiquei calado, mas eu acho que
falaram demais.
Sigismundo: E você também, abriu a boca numa hora bem ruim, porque eu te prego
esse bule na boca já já. Vê se fecha essa gamela e só abre lá no dentista, viu.
Fernando (se levantando da mesa): Já entendi a sua conversa.
Capanga: Chega!
Fernando: Se for homem faça o que está pensando.
Os dois começam a brigar e vão parar somente no alpendre da casa, com o capanga
saindo derrotado do confronto.
Sigismundo (na rua, para Pedro): espera lá. Você não se meta, hein. Com você eu
posso.
Sigismundo (retirando-se): Vamos embora, filho. Vai pra frente.
Como se vê, fica
evidente não somente a
invasão ao espaço do
outro, sempre envolta
de um certo constrangi-
mento que vai aos pou-
cos esmaecendo, mas
também o confronto di-
reto entre os persona-
gens Pedro e Sigismun-
do, em decorrência não
apenas de divergências sócio-culturais, mas também, e principalmente, de caráter. Uma pe-
quena discussão serve de pretexto para que o caipira avance na sua investida contra o coronel.
É a primeira vez que questiona Celeste com questões que mostrariam os seus valores e,
concomitantemente, desvendariam seu caráter enquanto ser humano. Se algum personagem
perguntasse a Sigismundo a imagem que formulou da filha após esse rápido diálogo,
certamente responderia que foi a melhor possível. E não poderia ser diferente, pois, mesmo
dotada de uma condição financeira bem superior a sua, mostrou não ter sido “contaminada”
pelo poder que o dinheiro é capaz de proporcionar, nem tampouco se mostrar dotada de um
caráter sequer parecido com o do falso pai: o coronel Pedro.
Nesse sentido, a conversa serviu para Sigismundo tirar qualquer tipo de dúvida que
pudesse ter a respeito do caráter da filha. Fossem elas as mais insignificantes, o caipira, após
119
esse café da manhã, deixaria de tê-las e contra-atacaria com mais persistência. De fato, a
partir daí a rivalidade entre o coronel e o empregado se torna mais evidente e os confrontos
mais constantes. De um lado, o coronel sempre autoritário, de outro, o caipira explorado que
resolve se levantar contra o autoritarismo daquele. Dualismo não apenas entre dois
personagens em busca de um único objetivo: Celeste, mas ideológico, se levar-se em conta o
momento em que é produzido o filme.
Assim, os personagens mais fortes e marcantes na narrativa são Floriana, Sigismundo
e Pedro (esses últimos mais que aquela), por situarem-se em planos distintos, avessos o casal
ao coronel. Embora o foco da narrativa convirja para Celeste, esta somente adquire
significativa importância quando, ciente de toda a verdade, decide ir para a casa dos pais
verdadeiros. Nesse momento adquire força, interferindo diretamente no desfecho da narrativa.
Antes desse momento, porém, é apenas mais um personagem, tornando-se diferenciada”
apenas pela temática do enredo. Todavia, mesmo não tendo tanta expressão, é por causa de
Celeste que Sigismundo, e sua família, parte numa investida contra o coronel Pedro,
desafiando assim o poder. Uma investida que se dá por dois meios: pela constante travessia de
uma esfera social a outra, adentrando um território até então estranho ao seu e pelo confronto
mais direto (final) que culmina na morte do coronel repressor. Dentre as invasivas investidas
de Sigismundo, uma das mais interessantes e significativas é a cena em que, ajudado pelos
filhos do coronel Orlando, Otávio, Cláudio e Sônia, o caipira e sua família invadem” um
espaço social muito diverso do qual estão acostumados, pretendendo uma primeira
aproximação de Celeste:
Em homenagem à chegada de Celeste, Pedro organiza uma festa. Ciente desse
acontecimento, Sigismundo conversa com os filhos de Orlando e arruma um jeito de
ir ao encontro da filha. A saída para fazer com que a família de Sigismundo participe
de um evento social da aristocracia é conseguir vestimentas adequadas para a
ocasião, vestindo Floriana, Sigismundo e Fernando à moda do tempo. Então, no
decorrer da festa, chegam, desconcertados e extremamente constrangidos, os três.
Esposa de Orlando (para Cláudio): O que está acontecendo, meu filho? Aquela
casaca não é de seu pai?
Cláudio: Foi uma brincadeira que fizemos, mamãe. A casaca é do papai, e o vestido
da titia Dolores.
Ambos se levantam, dirigindo-se para a família de Sigismundo. Cumprimentando-
se, acompanha-os até a mesa onde estão sentados. É evidente o constrangimento e a
tensão dos três recém chegados.
Sigismundo (sentando-se e cumprimentando a esposa de Orlando): Ah... Boa noite.
Esposa de Orlando: Boa noite. Como vai, Senhor?
120
Sigismundo: Estou bom.
Sigismundo (para a escrava que serve as mesas): Tem uma pinga aí, Dona?
A câmera muda o foco, tirando a mesa de cena e centrando em Sônia e Fernando,
que estão de pé.
Sônia: Fiquei tão satisfeita por você ter vindo, Fernando.
Fernando: Esta situação é humilhante pra mim.
Sônia: Fizemos isso para que vocês pudessem se aproximar de Celeste.
Fernando: É por ela que eu estou passando tanta vergonha.
A câmera volta a focalizar a mesa.
Sigismundo (novamente para a escrava que passa rapidamente): Trouxe a minha
pinga aí, oh?
Sigismundo (para esposa de Orlando, após beber meia taça de licor): Eu não vou
ficar sem beber nada. A senhora desculpe, a gente vem aqui não come nem bebe.
Sigismundo (ajeitando-se na cadeira e pondo o cachimbo aceso sobre a mesa): Ai,
estou com uma dor no pé que não agüento mais.
Sigismundo retira a botina, colocando-a sobre a mesa, e retira o cachimbo.
Espantada com a situação, a esposa do coronel Orlando retira a taça do lado da bota.
Sigismundo: Ah, vai sujar seu copo.
Nesse momento surgem Otávio (Mauro Mendonça) e Celeste, que é apresentada
para os membros da mesa.
Otávio: Essa é a Celeste, filha do Seu Pedro.
Otávio: Seu “Sujismundo”.
Celeste: Muito prazer.
Otávio (apontando para Floriana): Esta é Dona Floriana.
Celeste: Muito prazer.
Floriana (dirigindo-se a Fernando): Este é Fernando, nosso filho.
Sigismundo (só): Porcaria de vida.
Otávio (para todos e acompanhado de Celeste): Bem, agora os senhores podem ficar
à vontade que nós vamos dançar.
Sigismundo (para a esposa de Orlando, cuspindo no chão): A Senhora sabe o que eu
estou reparando? As moças daqui, né, andam durinhas, né, aqui dentro de casa.
Porque na rua, não sei se a senhora reparou, na rua não são assim não, é meio, é tudo
meio desbarrancado.
Como se vê, é nesse baile, nesse ambiente social alienígena, que Sigismundo, Floriana
e Fernando têm um primeiro contato com Celeste, que até então os desconhecia
completamente. É a primeira de uma série de aproximações que teriam os pais com a filha
legítima e Fernando com a irmã, afastada da família por mais de 13 anos. A partir desse
primeiro encontro é que arquitetam os meios necessários principalmente Sigismundo
para se aproximarem de Celeste.
Todavia, o que de mais notável pode ser captado dessa seqüência de cenas pouco
transcritas, diz respeito ao questionamento, por parte do caipira, ao poder instituído. As cenas,
121
na qual retira uma de suas botinas, colocando-a sobre a mesa, e a que comenta ironicamente
sobre a postura adotada pelas moçoilas da sociedade, desnudam a artificialidade desse
“mundo das aparências” e da imagem, tão comum nas castas mais altas da sociedade.
Contudo, outras duas cenas são igualmente interessantes por confrontarem diretamente as
culturas popular e hegemônica. Refiro-me à cena em que o caipira acende o seu cachimbo,
dando uma cuspidela no chão, e a que pede à escrava uma dose de cachaça, bebida
tipicamente popular e não consumida pela aristocracia.
Outro fator importante a ser ainda ressaltado nessa interpolação de cenas, e que talvez
pudesse ser colocado, concomitantemente, nessa dicotomia cultura popular x cultura
oficial/erudita, concerne na dicotomia campo x cidade, muito bem apanhada por Mazzaropi
190
.
Quando a família de Sigismundo entra na festa trajada à moda oficial há um certo desconforto
causado pelo choque de culturas. Isso porque a família do caipira, além de ser dotada de
modos e costumes completamente diferentes, se retrai em decorrência das circunstâncias
criadas. Porém, com o transcorrer da narrativa, feitas as devidas apresentações, Sigismundo
questiona os valores corteses, deixando claro — não sem ironia — seu desconforto em relação
à ocasião.
Como se vê, mesmo não se alinhando à concepção cinematográfica apresentada tanto
pelos cinemanovistas da primeira fase (anteriores ao golpe), como pelos da segunda fase, a
filmografia de Mazzaropi traz elementos em comum com os apresentados pelo Cinema Novo.
Essa aproximação se torna possível, nesse momento, em decorrência dos fatores históricos
apresentados. Como se viu, após a fundação do INC, o Cinema Novo se “recria” enquanto
movimento, passando a ser muito mais mercadológico que outrora e preocupando-se cada vez
menos em “educar o povo para a Revolução”. Uma Revolução cada vez mais distante,
principalmente por causa da inanição das massas populares e da ineficiência teórica dos
aparatos políticos de esquerda. O que Mazzaropi consegue, com O Jeca e a Freira, é captar,
com certa destreza, esse “espírito do tempo”, vinculando um olhar um pouco mais crítico ao
seu modelo cinematográfico, ao seu jeito de fazer e produzir películas.
Esse olhar crítico ao modelo econômico perpassa toda a narrativa e comprova que
Amácio Mazzaropi não se esquivou completamente das discussões e dos problemas de seu
190
Essa dicotomia, oriunda em parte do marxismo ortodoxo, é amplamente adotada/divulgada pelo Cinema
Novo. Todavia, em decorrência de “Mazza” “recriar” a imagem do caipira, esse jogo de forças acaba, de
certa forma, transparecendo em seus filmes. Acredito que não seja esse seu propósito imediato, porém é
insofismável que essa dicotomia existe. Quanto ao Cinema Novo, começa a se desvencilhar dessa temática
no final da década de 60, quando surge, em São Paulo, o “Cinema do Lixo”, com sua abordagem recaindo
muito mais nas angústias da classe média pós-golpe que nas divergência entre campo e cidade.
122
tempo. A crítica recorrente à sua obra recai no fato de se perceber, em seus filmes, pouca evo-
lução técnica e de sua suposta alienação político-cinematográfica. O que não deixa de ser, a
meu ver, meia verdade, na medida em que seus filmes, além de não dialogarem diretamente
com a cinematografia brasileira, são produzidos sem o menor critério estético, como se
comprova no filme aqui estudado. Ademais, seus personagens principais são praticamente
estáticos. Ou seja, de 1959 a 1980, ano em que produz o seu último filme: O Jeca e a égua
milagrosa, sua produção fílmica pouco evolui em termos técnicos
191
e psicológicos de seu
caipira. O Jeca é praticamente um do início ao fim, de 1959 a 1980. que se considerar,
todavia, que afirmar que sua concepção cinematográfica é alienada e equivocada, quando se
adapta ao modelo cultural existente, é um “erro” apontado pela vanguarda de seu tempo, que
propunha como alternativa uma indústria independente, porém financiada pelo governo
192
. O
que Mazzaropi almejou foi uma indústria nacional de cinema, que movimentasse o mercado
local e contribuísse para a evolução técnica do cinema brasileiro. Nesse sentido, sua
concepção de cinema vai mais ao encontro da política getulista de substituição de
importações, do que da concepção desenvolvimentista de associação de capitais.
Se O Jeca e a Freira pode ser vista como uma produção inocente e conservadora, não
é por outra coisa senão que por opção artístico-estética do próprio Mazzaropi, que em nenhum
momento entrou em acordo com esta ou aquela teoria política. O que Mazzaropi buscou foi
apenas levar seu caipira às salas de cinema do país, um caipira com laivos conservadores
herdados do primeiro Lobato, é bem verdade, porém acrescido de outros elementos populares
colhidos não somente na tradição oral, mas literária também, como, por exemplo, a
malandragem.
O caipira de Mazzaropi é um malandro em todos os sentidos de termo, embora em O
Jeca e a Freira o seu criador consiga dar um outro significado que não aquele do Jeca Tatu
de 1959. A “preguiça” de Sigismundo não pode ser considerada uma falha de seu caráter,
como era do Jeca de 59, na medida em que o olhar sobre o caráter e o tipo do caboclo mudam.
Astuto, Sigismundo tira vantagem de determinadas situações adversas em benefício próprio.
Embora tenha-se ressaltado que seus caipiras sejam praticamente um personagem, existem
algumas diferenças que merecem uma nota. Enquanto no Jeca de 1959 era acentuado o tom da
preguiça, no de 1967, embora não fosse explicada, passa a não ser mais uma característica
191
“Técnico” visto como linguagem cinematográfica, modo de expressar sua linguagem e “recriar” seu
universo, e não como acabamento estético de suas produções.
192
Concepção, diga-se de passagem, um tanto inocente.
123
chave da personalidade do personagem. Ademais, enquanto o personagem Jeca, sempre com
preguiça, tira proveito das arbitrariedades em benefício próprio, em Sigismundo a preguiça
não é tão evidente e sua malandragem é mais propícia a desnudar as mazelas da aristocracia,
que usada propriamente em benefício próprio.
Caracterizá-los como se fossem completamente imutáveis significa desconsiderar essa
pequena evolução psicológica entre os dois Jecas e, mais que isso, limitar o olhar sobre os
reais propósitos de Amácio Mazzaropi. Como se viu, mesmo inserindo em seus personagens
as características bási-
cas do estereótipo loba-
tiano de 1914, os caipi-
ras de Mazzaropi extra-
vasam, em determina-
dos momentos, estes
193
,
trazendo à baila um tipo
humano praticamente
extinto, em decorrência
das relações capitalistas
no campo. Com isso,
relacionou-se diretamente com o seu público, criando um vínculo com ele, e contestou a
cultura do ocupante, passando a ser, seu caipira, um ícone da resistência ao poder instituído
194
.
Esse propósito fica claramente exposto não somente nos trechos citados do filme,
como nos modos e no figurino do seu personagem protagonista. O constante vai-e-vem entre
os meios sociais, e com ele a contraposição de idéias, reforçam esse argumento anti-elitista
e anti-intelectual. É o que fica bem claro na conversa que Sigismundo tem na delegacia com o
delegado de polícia, membro máximo (local) e representante oficial da justiça. Adotando-se o
substantivo “polícia” como metonímia para o conceito de “justiça” e associando-se a figura do
delegado com a figura do juiz, que decide e delimita, obtém-se o resultado:
A câmera focaliza um largo. Na cena algumas mulheres elegantes figuram
caminhando com suas sombrinhas para se protegerem do sol. Ao fundo, aproxima-se
Sigismundo, que está se dirigindo para a delegacia. Quando se aproxima do
departamento policial, pára, olha para cima, coçando a cabeça, e entra. No local
encontra-se o delegado assinando algumas atas e um outro, que se aproxima deste
193
Assim como Monteiro Lobato superou o preconceito característico de seu caipira de 1914.
194
Em Jeca Tatu: a ressurreição e em Zé Brasil, foram esses, também, o propósito de Monteiro Lobato.
124
para lhe informar da chegada de Sigismundo.
Policial: Dá licença, Doutor. Está ali fora um cidadão que quer falar com o senhor.
Delegado: Mande entrar.
Policial: Pois não.
Policial: Faz favor de entrar.
Sigismundo: Sim senhor.
Delegado: Sim senhor.
Sigismundo: Como é que vai?
Delegado: Bem.
Sigismundo: Mulher, está boa? Filharada?
Delegado (acenando com a cabeça): Tudo bem.
Sigismundo: Deus conserva.
Delegado (impaciente): Senta, e vai falando logo o que você quer aqui. Eu estou
muito ocupado, hein.
Sigismundo (sentando-se): Foi bom o senhor lembrar de mandar eu sentar porque
eu estou cansado mesmo. Sabe que de da minha casa até aqui na polícia não é
brincadeira. A polícia está longe, doutor. Porque que o senhor não muda para
perto de casa?
Delegado (irritado): Você podia falar de uma vez o que veio fazer aqui...
Sigismundo (levantando): Mas desse jeito não dá; desse jeito não dá. O senhor está
bravo; eu vou embora.
Delegado: Quem é que está bravo? Senta! Senta e vai falando o que você quer aqui
na delegacia.
Sigismundo: Doutor, não para nós conversarmos. Eu não vou falar sentado. O
senhor está bravo, eu vou embora.
Delegado (irritado e impaciente): Mas quem é que está bravo?
Sigismundo: Mas o senhor não está brigando comigo? Doutor, eu não fiz nada.
Cheguei aqui querendo conversar, o senhor está berrando aí. Como é que nós vamos
conversar? Eu sou esquentado, doutor. O senhor vai desculpar minha franqueza,
né...
A câmera foca o outro policial, em pé, no departamento.
Sigismundo (continuando): ...e você também, o que está olhando com essa cara de
bolacha pra mim? Vai embora também. Doutor, mande o cara embora.
Delegado: Vai, vai.
Sigismundo: Que falta de educação, o senhor é o delegado, o que ele tem que
escutar a conversa nossa aqui?
Delegado: Sim, é...
Sigismundo: Eu sou nervoso, o senhor também é. Agora veja bem, doutor, nós
dois..., eu esquentado, o senhor esquentado..., é melhor eu ir embora, porque senão
ainda vai dar um rolo desgraçado aqui dentro.
Delegado: Pois olha, aqui é muito ruim para gente esquentada.
Sigismundo: Aqui é ruim?
Delegado: É.
Sigismundo: Doutor, vamos sair pra fora, vai, vamos. Vamos pra fora.
Delegado (ao mesmo tempo): Senta. (pausa) Senta.
Sigismundo: Mas também não para conversar assim, eu vou sentar, mas está
tudo errado. Não para... para conversar desse jeito. O senhor quer brigar com a
gente.
Delegado: O senhor está me desafiando, é?
Sigismundo: Mas... e quem é que vai... Ahhh, quem é que vai desafiar o senhor
como delegado? Eu vou desafiar o senhor porque não estás é compreendendo eu? Eu
falei “sair pra fora”, porque aqui dentro o senhor diz que não pode esquentar. Então
vamos esquentar lá fora. Mas não é briga não, é conversar.
Delegado (com raiva): O senhor vai esquentar aqui dentro mesmo, e é já. Senta e vai
falando o que você quer aqui. Vamos.
125
Sigismundo: Eu sentar não vou...
Delegado (com raiva): Então fala de pé mesmo.
Sigismundo: Sabe, doutor. Eu queria que o senhor me emprestasse uma espingarda
porque eu vou dar um tiro no Pedro, que eu quero acabar com a vida dele.
Delegado: Quer uma espingarda para dar um tiro no Pedro, para acabar com a vida
dele?
Sigismundo: Perfeitamente. E como eu estou vendo que o senhor está com boa
vontade, doutor, se der para emprestar não estou abusando se der para
emprestar duas é bom, porque uma o meu filho usa, que eu não tenho boa pontaria.
Se eu errar, meu filho carca.
Delegado: A espingarda?
Sigismundo: Chumbo.
Delegado: Você quer saber de uma coisa? Eu vou mandar prender você e é já.
Sigismundo: Ah, está tudo errado. Tudo errado, doutor. Eu que sou bom você
prende, né. O safado do Pedro, que é um sem vergonha, e está matando gente,
fazendo o que quer, você deixa solto.
Delegado (alterado e com raiva): Chega! Como é que eu vou prender alguém se eu
não sei de quem se trata?
Sigismundo: Mas ninguém tem coragem de vir contar, doutor. Eu venho porque sou
diferente. Eu venho e falo mesmo.
Delegado: Mas até agora você não me contou nada.
Sigismundo: Eu estou contando, doutor. O senhor é que não..., não tem
entendimento para compreender.
Delegado: O que é que você está querendo?
Sigismundo: Eu estou falando, doutor, que mataram o Bento na porta da cozinha.
Delegado: Quem matou?
Sigismundo (puxando a parte inferior do olho para baixo): Aqui, oh. Isso eu não sei
não.
Delegado (indignado): Mas então o que é que você veio fazer aqui?
Sigismundo: Vim pedir para o senhor me emprestar uma espingarda.
Delegado: Espingarda?
Sigismundo: É, eu quero matar o Pedro.
Delegado: Uma espingarda para matar o Pedro?
Sigismundo: Ah, quero dar um tiro nele, que ele vai rolar que ele vai ver.
Delegado: Você já conhece o nosso quartinho de hóspedes ali?
Sigismundo: Não, senhor.
Delegado: Não?
Sigismundo: Não.
Delegado: Porque você vai ficar morando uma boa temporada aqui.
Sigismundo: Não, doutor, o senhor é muito bom. Mas eu estou morando na fazenda.
Se eu sair de lá venho pra cá, viu.
Delegado: José?
Policial (ao fundo): Às ordens.
Delegado: Leve esse sujeito.
Aparece em cena José, o policial da delegacia.
Policial (pegando Sigismundo pelos braços): Vamos pra lá.
Sigismundo (afastando José): Vai pra lá, o que. Tira essa mão de mim aí, o que é?
Sigismundo: O senhor é delegado novo, não é?
Delegado: Por quê?
Sigismundo: Ué, o senhor não está entendendo de lei direito. nesse livro da lei
pra ver. Primeiro a gente mata, depois vem preso.
Delegado: Quem matou o Bento.
Sigismundo (com um sorriso irônico): Não sei. Olha aqui pra você.
Sigismundo: Doutor, o Pedro precisa morrer. E eu quero acabar com a vida dele.
Delegado (irritado e alterando o tom de voz): E quem é você para tirar a vida de seu
semelhante?
126
Sigismundo: E quem é ele pra matar o Ben... (fecha a boca com as mãos)
Delegado: Ah, então foi ele?
Sigismundo: Hum?
Sigismundo: Eu não falei nada, doutor.
Delegado: Pode ir embora, eu vou mandar abrir um inquérito.
Sigismundo: Não, inquérito não mata, doutor. Eu quero levar aquela espingarda.
Delegado: A espingarda?
Sigismundo: É.
Delegado (impaciente e apontando para a saída): Vai, vai embora, que depois eu
mando a espingarda.
Sigismundo (em baixo tom): Sim, senhor.
Com um aceno de cabeça despede-se do delegado e do policial José, que o olha
impressionado.
Primeiramente, é de se ressaltar o certo tom irônico com que Sigismundo se dirige ao
delegado de polícia, chegando a questionar explicitamente seus conhecimentos e sua
autoridade, quando diz: O senhor é delegado novo, não é? / (...) Ué, o senhor não está
entendendo de lei direito. nesse livro da lei pra ver. Primeiro a gente mata, depois vem
preso. A bem da verdade, o personagem Sigismundo, na maioria das vezes consciente, desafia
ironicamente a ordem e o poder instituídos. Na conversa entre ele e o delegado, por exemplo,
se faz de inocente e desentendido, quando, na verdade, ironiza e questiona a polícia e a
própria justiça, para o caipira inoperantes e ineficazes.
Todas as vezes em que o delegado (juiz) se irrita e o ameaça de alguma forma,
Sigismundo se faz de desentendido, como foi no caso em que o delegado pergunta se está o
desafiando. Sentindo-se ameaçado, o Jeca logo sai pela tangente, fazendo-o entender que foi
mal compreendido. Não é esse o único momento na narrativa em que Sigismundo ironiza a
ordem instituída, mas talvez seja esse o momento em que essa ironia apareça mais claramente.
Tudo soa a escárnio e deboche. Maliciosamente o poder é posto em xeque, porém sem se
perder o humor característico do caipira mazzaropiano. Acredito que resida a principal
diferença entre Mazzaropi e o Cinema Novo: enquanto os cinemanovistas faziam filmes sobre
o Brasil, Mazzaropi os fazia para o Brasil. Talvez daí seu sucesso incontestável.
Contudo, a ironia não acaba por aí. Assim que chega à delegacia e cumprimenta o
policial e o delegado, este manda-o sentar-se, na intenção de ouvir o seu relato. Porém, ao
invés disso Sigismundo reclama da ausência da polícia (justiça) e das dificuldades em que um
cidadão tem para acioná-la quando necessário (Delegado (impaciente): Senta, e vai falando
logo o que você quer aqui. Eu estou muito ocupado, hein. / Sigismundo (sentando-se): Foi
bom o senhor lembrar de mandar eu sentar porque eu estou cansado mesmo. Sabe que de
127
da minha casa até aqui na polícia não é brincadeira. A polícia está longe, né doutor. Por que
que o senhor não muda para perto de casa?). Esse é o primeiro comentário irônico e
agressivo que seria dirigido, nesse trecho, ao sistema político instituído.
Porém, como se viu, não seria o único. Essas rusgas entre Sigismundo e o delegado
provêm do contraponto ideológico entre ambos. Para o Jeca a justiça tem que ser universal e
estar à disposição e ao alcance de todos
195
. Já para o delegado, a justiça deve estar a serviço da
ordem, ou seja, a servi-
ço do poder, da oligar-
quia que comanda as
instituições e os discur-
sos do poder, a imensa
minoria. Daí, o confron-
to, a ameaça de prisão e
a ironia ácida dirigida à
justiça, à elite e ao seu
aparato de manutenção
da ordem: a polícia. É
esse o significado da pergunta: “Por que o senhor não muda para perto de casa?”, dirigida
ao delegado assim que chegou à delegacia.
Ademais, os gestos com a boca, com os olhos e a afronta direta ao policial assistente
comprovam que o caipira sabe o chão em que pisa. Mais que isso: sabe o quanto a justiça é
omissa e ausente para ele. Tanto é assim que o delegado sugere uma abertura de inquérito, um
processo burocrático, para averiguar os casos, enquanto o que Sigismundo quer é acabar de
fato com a tirania promovida pelo coronel Pedro, da Fazenda Santa. Em outras palavras,
enquanto o caipira quer mudar a realidade a sua volta, a justiça quer mantê-la como está. A
frase final, dita por um coadjuvante, após a confirmação de vitória do exército do coronel
Orlando, corrobora esse argumento.
195
Esse contraponto ideológico é o responsável pela falta de comunicação entre o delegado e o caipira, que não
consegue se fazer entender (Delegado (alterado e com raiva): Chega! Como é que eu vou prender alguém se
eu não sei de quem se trata? / Sigismundo: Mas ninguém tem coragem de vir contar, doutor. Eu venho
porque sou diferente. Eu venho e falo mesmo. / Delegado: Mas até agora você não me contou nada. /
Sigismundo: Eu estou contando, doutor. O senhor é que não..., não tem entendimento para compreender. /
Delegado: O que é que você está querendo? / Sigismundo: Eu estou falando, doutor, que mataram o Bento
na porta da cozinha.). Isso porque não somente a linguagem é diferente, mas também, e principalmente, a
concepção de justiça. Como a justiça é para os poucos, não é do interesse dela se preocupar com os reclames
da massas populares. É sim do seu interesse cuidar para que a ordem instituída seja mantida. É essa relação
que Mazzaropi ironicamente satiriza.
128
De fato, aquele Viva a Liberdade!, ditado por um personagem coadjuvante,
representando o povo oprimido, demonstra o alívio de se ter derrubado um ditador tirânico.
Mazzaropi, ainda que inocentemente, mostra que para derrotar a ditadura e a exploração não
bastam discursos políticos, sendo necessário um levante forte e organizado. Qualquer
semelhança com o sistema político ditatorial militar não é mera coincidência. Mesmo se
“ausentado” das discussões políticas, Mazzaropi intuitivamente se antenou para o fato de que
somente por meio da organização se consegue vencer as adversidades. Todavia, falando-se
assim, a impressão que se tem é que o filme tem um conteúdo revolucionário. Pelo contrário,
pois, como se viu, O Jeca e a Freira se aproxima muito mais do sistema coercitivo de
Aristóteles, proposto por Boal, do que de uma proposta revolucionária, onde o conflito não se
encerra, como modo de incentivar o povo para a luta.
Hoje esses discursos parecem beirar ao artificialismo, principalmente depois da queda
do regime soviético, onde a esquerda, mesmo que liberta das amarras do regime burocrático
estalinista, ficou deslocada. Porém, questões como essas, explanadas com humor em plena
ditadura militar, antes de ser um ato corajoso, comprova a certa consciência, ainda que
limitada, do artista. Mesmo porque esse é, a meu ver, o filme mais “combativo” produzido por
Amácio Mazzaropi, que resolveu adotar, após a decretação do AI-5, a “lei do silêncio”,
tratando, em seus filmes, de questões polêmicas, porém que não se chocassem diretamente
com os propósitos do governo.
Para o enorme público brasileiro que não perdia um filme sequer, Mazzaropi contou
histórias que abordavam o racismo, divórcio
196
(que a lei então proibia), as religiões,
política
197
e falou até mesmo dos problemas da devastação da natureza. Em O Jeca e a Freira,
a maioria desses assuntos é corrente, como se vê. O quinto filme dirigido por Amácio
Mazzaropi é um amálgama de assuntos e temas interligados entre si, não se limitando o autor
a discussões familiares. Embora ainda produza, como na década precedente, filmes musicados
como este, O Jeca e a Freira, mesmo apresentado problemas de edição e montagem, dá, em
nível político, um salto qualitativo em relação a Jeca Tatu. Se naquela produção o caipira
ainda é abordado de maneira semelhante a esta
198
, é pelo fato de o artista ter descoberto que
196
Mazzaropi, como é sabido, era contra o “divórcio e a favor da família”.
197
Esse assunto, após a promulgação do Ato Institucional número 5, ficou fadado a meros percalços políticos ou
então relegado mesmo a um segundo plano.
198
Em todas as produções em que Mazzaropi retrabalha a imagem do caipira no campo (a maioria), o perfil
psicológico de seus personagens é praticamente imutável. É o caso de filmes posteriores a Jeca Tatu, como:
A Tristeza do Jeca (1961), Casinha pequena (1963), O Jeca e a Freira (1967), No paraíso das solteironas
(1968), Uma pistola para Djeca (1969), Betão Ronca Ferro (1970), Um Caipira em Bariloche (1973), O
Jeca Macumbeiro (1974), Jeca contra o capeta (1975), Jecão... um fofoqueiro no céu (1976), Jeca e seu filho
129
“sua criação” é fórmula certa de sucesso e prestígio.
Como o cinema é uma arte eminentemente visual, os produtores e diretores de cinema
têm que se preocupar não somente com enredo, mas com uma série de coisas que vão além do
discurso verbal dos enredos, tais como, montagem, figurino, cenário, dentre outras. Assim,
(...) percebe-se pela vestimenta, caracterização e comportamento das personagens,
pelo lugar onde estão, por seus gestos e expressões faciais, se se trata de drama ou
comédia, em que época se desenvolve o enredo, enfim, de que modo o espectador
está sendo convidado a fruir aquele conjunto de significados visuais componentes de
uma trama. Cada cena comporta um peso visual e auditivo, este dado pela trilha
sonora, que se comunica imediatamente, sem necessidade de palavras. A imagem
tem, portanto, seus próprios códigos de interação com o espectador, diversos
daquele que a palavra escrita estabelece com o seu leitor.
199
Nesse sentido, O Jeca e a Freira, independente de seus problemas de edição e montagem
anteriormente citados, contextualiza o espectador e caracteriza, conforme visto, cada
personagem, designando, desde cedo, qual o “mocinho” e qual o “vilão”, sem contar o fato de
deixar bem claro que se trata de uma comédia e não de um drama ou suspense, por exemplo.
Porém, o que caracteriza O Jeca e a Freira como uma produção diferenciada de Mazzaropi
não são os elementos técnicos e sim a abertura a assuntos pertinentes e importantes da sua
época, fazendo dele um autor de seu tempo.
preto (1978), Banda das velhas virgens (1979) e O Jeca e a égua milagrosa (1980). Somente quando
trabalha com o caipira na cidade é que o reconstrói numa perspectiva modernizante, como é o caso clássico
de O Corintiano (1966), onde o caipira é um trabalhador autônomo, dono de uma barbearia e mora em
uma típica vila paulistana. Devido a esse fato, é que eu resolvi não trabalhar mais diretamente com nenhuma
outra produção mazzaropiana, mesmo ciente de que havia bons filmes, dentro da perspectiva trabalhada aqui,
como Jeca e seu filho preto, por exemplo. Essa é uma política de produção preocupada em não alterar a
imagem do caipira que tanto sucesso causara. De fato, essa postura lhe rendeu vasto público até 1980 e ainda
hoje seus filmes são relativamente procurados em locadoras e lojas de DVDs. Nesse sentido, o caipira de
Mazzaropi é muito mais um descolonizador que um colonizado, pois invade até aqui o espaço do
colonizador nas salas de cinema e das casas do Brasil.
199
PELLEGRINI, Tânia. Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações. In: PELLEGRINI, Tânia
(et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac; Instituto Itaú cultural, 2003, p.15-16.
Considerações Finais
131
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Surgindo para literatura, em 1914, com a publicação de dois artigos Velha Praga e
Urupês que chocaram a opinião pública paulistana, Monteiro Lobato pintou um caipira
estereotipado e eivado de qualidades negativas. Nesse momento, dois eram seus objetivos:
“purificar”, segundo o autor, a imagem do caboclo, mitificada ao extremo por uma literatura
viciante e com laivos românticos e atacar” o caipira enquanto tipo humano e elemento de
sociabilidade. Para o jovem Lobato, indignado pelas queimadas em suas terras,
proporcionadas, segundo ele, por caboclos nativos da região, o caipira (jeca) é um elemento
alheio ao que de moderno, além de grotesco e incapaz de evolução. Nesse momento, o
caipira é um títere, pintado segundo os desejos e anseios do autor.
Distorcendo a realidade, porém captando elementos desta, o escritor fazendeiro
pretende criar um caipira nacional bem diferente daquele criado até então pela literatura
vigente, que via o caboclo como homem robusto, valente e audacioso, imaginado à luz dos
heróis nacionalistas do indianismo alencariano. Daí sua aversão ao “caboclo oficial” das
academias, expressa nessa caracterização identitária calcada num estereótipo previamente
estabelecido.
Em suma, Velha Praga e Urupês rompem com a tradição literária em voga não
somente por inserirem um novo ponto de vista à imagem do caboclo, mas também por
romperem com uma linguagem estética finissecular. Ou seja, embora relativamente
rebuscados, ambos os textos não são dotados de períodos longos e desgastantes com
metáforas batidas. Pelo contrário, são sintéticos, com períodos curtos e bem acabados. Nesse
sentido, tanto Velha Praga quanto Urupês antevêem o Modernismo de 1922, que romperia
completamente com a estética passadista e mudaria para sempre os caminhos da literatura
brasileira.
Nessa fase, como se constatou, o Jeca é acabado e localizado, sempre visto sob a ótica
do dominante que, em suma, o “descaracteriza”, caracterizando-o negativamente, como o fez
o fazendeiro Lobato. Mesmo ambicionando um caboclo mais próximo ao real, Monteiro
acaba pintando-o apenas superficialmente, ou seja, deixando de lado elementos sociais que
explicariam o seu modo de ser e viver. Assim, a imagem do caipira lobatiano é, até certo
ponto, coerente no que diz respeito à sua imagem externa, captada pelo olhar de fora.
Tratando-se do caboclo enquanto tipo social é que peca mais gravemente sua caracterização,
132
justamente por não entender, ou não querer compreender, o modo de vida e cultura caipiras.
Lobato vê o caboclo com o olhar do fazendeiro.
Em 1918, a meio caminho entre Velha Praga e Urupês e a Semana de Arte Moderna
de 1922, surge, no cenário literário paulista, Jeca Tatu: a ressurreição, a segunda identidade
do caipira de Monteiro Lobato. Embora o caipira ainda seja visto com um olhar de fora,
externo à sua realidade, e o estereótipo praticamente o mesmo dos textos anteriores, o foco
muda, passando, o Jeca, a ser visto não mais como o grande agente de sua “anemia social”,
recaindo, agora, a culpa nas políticas públicas de um Estado que praticamente o deixa à
margem do desenvolvimento.
É uma criação que vem como resposta aos textos de 1914, tão incompreensivos com a
figura do caboclo paulista. É também uma espécie de mea culpa, por parte do escritor,
anteriormente indiferente às reais questões que depauperam o caipira e o deixam excluído de
sua própria pátria. Se num primeiro momento (1914) o caboclo é um parasita, agora é um
“parasitado por verminoses”, passando de praga a vítima.
Dessa forma, e ao contrário do que buscariam os Modernistas quatro anos mais tarde,
com a busca de um primitivismo como base de uma cultura eminentemente nacional,
Monteiro no caipira justamente o inverso, ou seja, o como algo constitutivo de nossa
fraqueza. Para o autor de Urupês, tudo que soe a primitivo tem que ser combatido para que o
país, enfim, tome os rumos do crescimento das grandes nações.
Daí o estereótipo do caipira ser o mesmo; daí a anemia do caboclo, justificada dessa
vez por verminoses que o enfraquecem e o depauperam. Daí também a intervenção da ciência,
por meio da figura do médico, que, por fim, redimiria o caipira, possibilitando, inclusive, que
ele se tornasse um coronel. Ou seja, para o caipira ser salvo ele teria que deixar de ser caipira,
isto é, transformar-se num sujeito moderno. A sua salvação estava justamente na sua extinção.
Decorrente de toda uma revisão identitária nacional, que visava a definir um caráter
para a nação e para o povo que nela vive, Jeca Tatu: a ressurreição é uma espécie de tentativa
de se pensar o país por ele próprio e não por idéias oriundas de fora. É através da exposição
do nosso subdesenvolvimento, expondo e explorando-o, numa tentativa de desvendar e
desnudar as mazelas da nação, que se pode combatê-lo e vencê-lo. É também uma forma de
combater e pensar a literatura oficial e acadêmica.
Contudo, apesar de toda essa alteração ideológica contida em Jeca Tatu, o que
realmente fez com que a imagem do seu caipira se tornasse conhecida por praticamente todos
133
os brasileiros de seu tempo, foi o fato de ter sido o conto adaptado, em 1927, agora sob o
título de Jeca Tatuzinho, para o “Almanaque Biotônico Fontoura”. É de ressaltar que esse
título não foi alterado especialmente para as edições do Almanaque”, que em 1924 que
Lobato resolvera renomear o seu texto. O fato é que, somente após a distribuição gratuita dos
almanaques ilustrados do laboratório Fontoura é que a figura estereotipada do Jeca, antes
somente conhecida nas regiões de cultura caipira, se difunde pelo país, tornando-se conhecida
por todos os brasileiros.
A década de 1930 é permeada por mudanças não somente sociais, mas também
literárias. Após a crise da bolsa de Nova Iorque, em 1929, os países latino-americanos sentem
a necessidade de se modernizar e de se industrializar. Daí o mito de autodesenvolvimento,
calcado todo ele no modelo de substituição de importações, por meio da industrialização
nacional. É um momento de grandes mudanças estruturais que alterariam para sempre o perfil
da nação.
O surto de industrialização provocado pela revolução de 30 tornou latente a
necessidade de se redescobrir o Brasil pelo Brasil. Essa mudança histórica trouxe vários
reflexos para a literatura, tais como a mudança de foco exigida aos modernistas, que passam a
não privilegiar mais a ruptura estética em suas obras, mas sim a enfatizar questões ideológicas
e de fundo social. É o momento de amadurecimento do modernismo e do surgimento de
escritores como Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado e
Graciliano Ramos, por exemplo.
Seguindo essa ótica de combate à estrutura e à política nacionais, propostas pela
literatura de 30, Monteiro Lobato lança, em 1947, um livreto de 22 páginas intitulado
Brasil. Com linguagem simples e didática e com uma acanhada edição de poucos exemplares,
o texto causa o furor do governo e da igreja católica, que passam a coibir a sua distribuição.
Isso porque Brasil é um texto altamente combativo e de denúncia ao sistema de produção
capitalista e ao latifúndio brasileiro.
Escrito com o intuito primeiro de combater o sectarismo político que jogou o Partido
Comunista na ilegalidade, Brasil se comunica diretamente com os trabalhadores urbanos e
rurais, utilizando-se, contudo, somente da figura do trabalhador rural, ou melhor, do seu
próprio jeca. É a última personificação de seu caipira, dessa vez mais consciente do seu lugar
na relação de classes e do valor de sua força de trabalho. É ainda um títere e uma caricatura,
na medida em que é criado segundo a ótica do escritor combativo. Mas é, também, o
134
revolucionário em potencial.
Mantendo em parte a ótica proposta por Jeca Tatu: a ressurreição, Lobato denuncia o
latifúndio, associando-o, dessa vez, ao fator da desgraça do caipira. Se para o escritor de 1914
o caipira era tido como uma praga, alheio à própria terra, e em 1918 como um opilado pelo
abandono e pelas doenças decorrentes deste, agora é a expropriação de suas terras, causadas
pelo latifúndio, a principal desgraça do caboclo e do povo em geral. O texto é uma laudação a
Luiz Carlos prestes e à sua coluna e sai em defesa do PCB, reprimido pelo governo brasileiro.
Como se pretendeu indicar, Brasil é parte integrante da literatura de 30 e encerra
uma trilogia iniciada em 1914, com Velha Praga e Urupês, passando por Jeca Tatu: a
ressurreição, em 1918, e chegando, por fim, a essa última caracterização do caipira. É, em
suma, a pré-consciência do caipira enquanto classe e enquanto força de trabalho. Mas é
também, acima de tudo, a consciência do papel do intelectual nesse momento da história
brasileira.
Anos mais tarde, mais especificamente no final da década de 1950, o então conhecido
ator, porém estreante produtor Mazzaropi, lança no cinema a figura estereotipada do caipira
lobatiano, resgatada das difundidas edições do “Almanaque Biotônico Fontoura”. Embora
tenha dedicado o filme Jeca Tatu (1959) ao criador do personagem, o grosso de sua narrativa
foi baseada mesmo nessas edições ilustradas, que se espalharam largamente por todo o país e
que tornaram o Jeca Tatuzinho não somente um personagem entranhado no imaginário
popular brasileiro, mas também um símbolo da propaganda nacional.
Como se viu, esse foi um lance inteligente do produtor Amácio Mazzaropi, que soube
se aproveitar de uma figura assaz conhecida para estrear no cinema o seu caipira. Monteiro
Lobato, décadas anteriores, também soube se aproveitar do espaço ocupado pelo “Almanaque
Biotônico Fontoura” para lançar a imagem do seu caipira a rincões até hoje inatingíveis por
livros. Aproveitando a campanha pública de saúde promovida pelo Governo, Lobato cede os
direitos do conto Jeca Tatuzinho para Cândido Fontoura, que o adapta e o distribui
gratuitamente pelos quatro cantos do Brasil. Não havia família brasileira que não conhecesse
o Jeca Tatu. Daí a sagacidade de Mazzaropi em se lançar, como ator e produtor independente,
com um filme baseando-se nessa narrativa.
Sabendo-se que o intuito primeiro de “Mazza” era o cinema-indústria não aquela
indústria que os cinemanovistas propunham, mas uma outra, que visava única e
exclusivamente ao lucro —, ele cria, no mesmo ano de 1959, a PAM-Filmes. Tanto que Jeca
135
Tatu, nesse processo, se torna uma espécie de marco zero para as produções posteriores do
artista. A partir dessa produção é que o personagem característico do caipira se propaga no
cinema, fazendo de Mazzaropi um artista ainda mais conhecido.
Todavia, é certo que esse processo não se involuntariamente, na medida em que
Mazzaropi alcançou o sucesso não somente pela adaptação que fez da figura do caipira. Esta,
por si só, pouco representaria se não tivesse um público fiel, que “invadisse” as salas de
cinema à procura de seus filmes e prestigiasse seu personagem. Esse público já existia e
Amácio Mazzaropi sabia disso. Por isso adaptou Jeca Tatuzinho para os cinemas. Nesse
sentido, seu personagem representava não somente o homem do campo, mas remetia
diretamente ao homem interiorano, agora urbanizado, afastado de sua terra natal em busca de
um padrão de vida minimamente digno nas grandes cidades. D as belíssimas cenas com
paisagens bucólicas atuando como contraponto à paisagem prosaica do mundo urbano. Daí a
pintura, por parte do artista, de um interior semi-paradisíaco, símbolo da vida calma e
tranqüila do campo, adversa à vida caótica e fragmentada da cidade.
Não se pode deixar de se ressaltar, porém, que a caracterização do caipira, em Jeca
Tatu, é calcada no estereótipo difundido por Monteiro Lobato. Como analiso ainda no
capítulo 2, essa imagem é conservadora e não sofre, praticamente, alterações no decorrer da
filmografia de Amácio Mazzaropi. No filme Jeca Tatu, como nos outros, isso fica bem claro.
Na verdade, o estereótipo do caipira, ou melhor, a visão com que é visto e analisado esse
estereótipo pouco se altera, ao contrário de Lobato, que, se mantém o estereótipo o mesmo,
altera o seu olhar sobre o caipira. Aliás, busquei deixar claro no trabalho que esse estereótipo
é visto de uma maneira mais conservadora que a analisada pelo próprio conto Jeca Tatu: a
ressurreição (ou Jeca Tatuzinho), na medida em que naquele a preguiça é trabalhada como
uma falha do caráter do caipira, enquanto neste como fruto de doenças provocadas pelo
descaso público para com o caboclo. Por isso a estranheza, por parte da narrativa fílmica, do
enriquecimento do personagem Jeca, protagonizado por Mazzaropi, em que a bonança, ao
final, surge quase que por milagre.
Por ora, vale a pena ressaltar que, embora trabalhado sob uma perspectiva classista e
conservadora, o caipira de Mazzaropi acaba transformando-se em um estandarte de resistência
não somente ao cinema oficial entendendo-se como oficial o cinema produzido pelos
intelectuais do Cinema Novo —, mas principalmente ao típico herói clássico do cinema
hollywoodiano, no sentido em que desconstrói o padrão estipulado para a figura do herói,
136
transformando-o numa espécie de anti-herói. Ademais, sua concepção de cinema, muito
semelhante à concepção de cinema dos chanchadistas, com um caipira como protagonista do
enredo, uma platéia relativamente barulhenta, com um enredo satirizando o cinema
estrangeiro hollywoodiano, faz de Mazzaropi e seu caipira símbolos também de resistência à
cultura do “outro”; à cultura dominante e, muitas vezes, estrangeira.
Ainda na década de 50, um grupo de intelectuais ligados ao cinema cria o movimento
cinematográfico denominado Cinema Novo. Com uma proposta similar à dos Modernistas de
1922, esses intelectuais pretendiam ir às raízes da cultura brasileira buscar as especificidades
do povo brasileiro. O projeto era um só: mergulhar na realidade sócio-político-cultural
brasileira com o claro propósito de desvendar as mazelas da nação, denunciando as injustiças
sociais, buscando criar, assim, uma identidade para o Brasil, livre do imperialismo.
Para esse grupo o cinema devia ser anti-industrial, entendendo-se como indústria
cinematográfica a ser negada e combatida as empresas de cinema estrangeiras e os estúdios
brasileiros, como a extinta Vera Cruz e a Atlântida, estúdio carioca produtor de chanchadas.
Na verdade, os cinemanovistas tinham um projeto de cinema industrial, mas não nos moldes
propostos pela indústria cultural. O projeto era bem outro: criar uma indústria nacional de
Cinema, financiada pelo Estado, porém independente deste. Essa indústria, cujo projeto é
calcado no modelo populista de autodesenvolvimento sustentável e de substituição de
importações, seria administrada por profissionais competentes das áreas de economia e
administração e não seria voltada para o cinema de entretenimento, mas sim a produzir um
cinema engajado, com vistas a educar o povo para a revolução.
Com a fundação do Instituto Nacional de Cinema (INC), em 1966, o cinema brasileiro
passa a ter, por parte do governo, um novo tratamento, que finalmente o financia, dando-lhe
um caráter mais comercial, se comparado com as produções feitas pelos cinemanovistas da
década de 50. É que o governo pós-64 resolve financiar a cultura, em especial o cinema, com
o claro objetivo de controlá-la plenamente. Ou seja, é do interesse do governo ditatorial
controlar e subsidiar os veículos de comunicação de massa e culturais. Daí a importância de
um órgão gestor e regulador como o INC.
Por meio do INC é que o governo passa a controlar o cinema, sempre tendo em vista o
mercado, o consumo. Essa meta seria alcançada com a associação de capitais estrangeiros,
unindo, ao capital destinado à produção cinematográfica brasileira, o capital estrangeiro das
indústrias cinematográficas hollywoodianas. Contudo, ao mesmo tempo em que o INC
137
estimula a produção local, a regula e a conecta a empresas estrangeiras preocupadas mais em
lucrar do que propriamente produzir algo fora dos padrões da indústria cultural. Assim, da
mesma forma em que o INC adapta à cultura o modelo econômico vigente, associando-a a
capitais estrangeiros, impede que empresas estrangeiras deixem de lucrar com o mercado
nacional.
Essa política cultural do INC e da ditadura militar serviu, na verdade, como o estopim
para uma disputa ideológica entre um setor mais avançado do Cinema Novo, liderado por
Glauber Rocha e Luiz Carlos Barreto, e o Estado. Para os intelectuais cinemanovistas, a
criação de uma indústria de cinema financiada pelo Estado era bem-vinda desde que não
tirasse a autonomia dessa indústria. Ou seja, o que queriam Glauber e Barreto vai de encontro
aos propósitos culturais do INC e do governo ditatorial. Enquanto estes pretendiam financiar,
com o auxílio do capital estrangeiro, o cinema, tirando-lhe toda e qualquer autonomia de
produção, os cinemanovistas pretendiam uma indústria cinematográfica nacional, porém
independente.
É nesse contexto conturbado da história não cultural, mas também social, brasileira
que se insere o filme O Jeca e a Freira. Produzido em 1967, ou seja, no meio do fogo cruzado
entre intelectuais de esquerda, avessos ao modelo econômico e cultural vigentes, e o Estado, o
filme é mais valioso enquanto expressão combativa à ditadura, do que enquanto obra de arte
propriamente dita. Não que Mazzaropi tenha se preocupado em produzir um cinema
combativo e desalienante, que visasse a mostrar as contradições do modelo econômico ou até
mesmo expor as mazelas de um país semi-analfabeto. Pelo contrário. Como espero ter ficado
claro no decorrer do trabalho, o interesse primeiro de Mazzaropi é produzir filmes meramente
comerciais, explorando uma figura conhecida no país, que é a figura do Jeca Tatu,
difundida pelo “Almanaque Biotônico Fontoura” por todo o interior do Brasil.
Por isso a necessidade de se criar uma indústria cinematográfica, com uma rede de
distribuição organizada e sólida, e de se manter sempre o mesmo caipira, enquanto
personagem. Isto significa afirmar que “Mazza” buscava produzir um filme meramente
comercial, que gerasse lucros e tivesse baixos custos de produção. Contudo, se o objetivo
primeiro de Mazzaropi não é um cinema mais engajado, isso não quer dizer que essa ou
aquela produção não tenha captado elementos sócio-político-culturais do tempo em que foi
produzida. Tanto é assim que, no período compreendido entre 1964-1968, Mazzaropi
produziu filmes que, se pecaram pela qualidade estética, ao menos se sobressaíram nas
138
críticas impressas contra a ditadura.
Desses filmes, talvez o que melhor conseguiu captar esses conflitos foi justamente O
Jeca e a Freira. Tendo como pano de fundo para a trama uma fazenda no interior de São
Paulo, e misturando elementos culturais diversos, tais como negros brasileiros, capangas
trajados à moda dos cowboys hollywoodianos e vestimentas exageradamente coloridas,
fazendo os membros da elite parecerem-se com tipos mexicanos de filmes de far-west, o filme
é uma mostra clara de que Mazzaropi não permaneceu completamente esquivo aos problemas
que o cercavam.
Uma mostra clara disso é o fato de o filme ter discutido, quase à exaustão, a ditadura
militar. Mesmo “borrando” o tempo o que tornou, como se viu, o filme inorgânico, no
sentido histórico —, mesclando tipos e caracteres diversos em um ambiente social cujo
momento histórico não fica claramente definido, O Jeca e a Freira, apesar de tudo, é parte
integrante do momento histórico em que foi produzido. Isso porque, conforme exposto, o
filme é crítico ao modelo econômico vigente e à repressão imposta pelos militares.
Mesmo com o golpe de 1964, uma parte da elite intelectual de esquerda, no país,
continuou atuando, no sentido de educar o povo e levá-lo à revolução. Essa cultura
esquerdizante acabou se manifestando com maior intensidade principalmente até 1968,
quando entrou em vigor o AI-5, restringindo muito a atuação dos intelectuais contrários ao
regime então em voga. Dessa disputa no campo ideológico é que surge o polêmico INC.
Criado, como se constatou, para regular e financiar o cinema nacional, o órgão
vislumbra seu primeiro longa de sucesso apenas em 1969, quando foi produzido Macunaíma,
de Joaquim Pedro de Andrade. É o primeiro filme, produzido pelo Cinema Novo, com
relativo prestígio de público e renda. Tanto que se torna referência enquanto produção
cinematográfica, conquistando o reconhecimento e o respeito de intelectuais ligados ao órgão,
que passaram a adotá-lo como referência e “padrão”.
Conseguindo aliar uma proposta cultural a um projeto meramente mercadológico,
Macunaíma faz parte de uma nova concepção de se pensar e produzir cinema, encabeçada por
uma nova geração de cinemanovistas, que souberam adaptar-se ao momento histórico. Ou
seja, com o financiamento por parte do Governo Federal, via INC, os intelectuais do cinema,
com raras exceções, moldaram-se à proposta mercadológica e de associação de capitais,
produzindo filmes com vistas unicamente ao entretenimento puro e simples, relegando a um
segundo plano a proposta revolucionária do Cinema Novo da década anterior.
139
Esse é o momento em que as concepções de cinema dos cinemanovistas mais se
assemelham com as de Amácio Mazzaropi. Tanto é que, mesmo debatendo e questionando o
modelo sócio-econômico-cultural vigente, O Jeca e a Freira, assim como o filme
Macunaíma, não passam de uma produção despretensiosa”, onde o caipira não é mais que
uma caricatura vinculada a uma imagem pré-estabelecida de um tipo social. Em suma, o
caipira, em Mazzaropi, é um só, pouco se alterando em conteúdos estéticos e psicológicos. A
fórmula que “Mazza” encontra para adaptar o Jeca Tatuzinho do “Almanaque Biotônico
Fontoura” é largamente adotada até 1980, ano de sua última produção: O Jeca e a égua
milagrosa.
Mesmo assim, entre os “jecas” de Lobato, estereotipia, e os “jecas” de Mazzaropi,
também estereótipos, adotados daquele, restaria uma imagem: a do caipira, deslocado no
tempo, precisando, ao mesmo tempo, dialogar com esse mesmo tempo: Lobato e Mazzaropi,
com os seus “jecas”, traduzem, enfim, a trajetória do capitalismo à brasileira, recobrindo boa
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julho de 2006.
FILMOGRAFIA DE MAZZAROPI
ANO DE
PRODUÇÃO
FILMES DIREÇÃO
1952, pb Sai da frente Abílio Pereira de Almeida
1952, pb Nadando em dinheiro Carlos Thiré
1953, pb Candinho Abílio Pereira de Almeida
1955, pb A carrocinha Agostinho Martins Pereira
1956, pb O gato de madame Agostinho Martins Pereira
1956, pb Fuzileiro do amor Eurides Ramos
1957, pb O noivo da girafa Victor Lima
1958, pb Chico Fumaça Victor Lima
1958, pb Chofer da Praça Milton Amaral
1959, pb Jeca Tatu Milton Amaral
1960, pb As aventuras de Pedro Malazartes Amácio Mazzaropi
1960, pb Zé do Periquito Amácio Mazzaropi
1961, pb Tristeza do Jeca Amácio Mazzaropi
1962, pb O vendedor de lingüiça Glauco Mirko Laurelli
1963, pb Casinha pequenina Glauco Mirko Laurelli
1964, pb O Lamparina Glauco Mirko Laurelli
1964, cor Meu Japão brasileiro Glauco Mirko Laurelli
1965, pb O puritano da rua Augusta Amácio Mazzaropi
1966, pb O corintiano Milton Amaral
1967, cor O Jeca e a Freira Amácio Mazzaropi
1968, cor No paraíso das solteironas Amácio Mazzaropi
1969, cor Uma pistola para Djeca Ary Fernandes
1970, cor Betão Ronca Ferro Geraldo Afonso Miranda
1972, cor O grande Xerife Pio Zamuner
1973, cor Um caipira em Bariloche Amácio Mazzaropi
1973, cor Portugal minha saudade Amácio Mazzaropi
1974, cor O Jeca macumbeiro Amácio Mazzaropi
148
1975, cor Jeca contra o capeta Amácio Mazzaropi
1977, cor Jecão... um fofoqueiro no céu Amácio Mazzaropi
1978, cor Jeca e o seu filho preto Pio Zamuner; Berilo Faccio
1979, cor A banda das velhas virgens Amácio Mazzaropi
1980, cor O Jeca e a égua milagrosa Amácio Mazzaropi
FILMES ESTUDADOS:
ANO DE
PRODUÇÃO
FILMES DIREÇÃO
1959, pb Jeca Tatu Milton Amaral
1967, cor O Jeca e a Freira Amácio Mazzaropi
ANEXOS
i
Anexo 1 — Créditos e Frames do filme Jeca Tatu (1959)
ii
iii
iv
Anexo 2 — Créditos e Frames do filme O Jeca e a Freira (1967)
v
vi
vii
Anexo 3 — Cenas lobatianas
Figura 1: Carta de Monteiro Lobato a sua futura
esposa, Maria Pureza da Natividade, a “Purezinha”,
de 24 de setembro de 1906
Divulgação: Fundo Monteiro Lobato
Figura 3: Como editor na Revista do
Brasil
Figura 3: Fazenda do Buquira, em 1911
viii
Figura 6: Monteiro Lobato
Figura 4: Monteiro Lobato com
o amigo Joaquim Correia, na
Fazenda, em 1913
Figura 5: Inauguração da “Livraria Monteiro Lobato”, da Editora
Brasiliense, em 14-11-1946
Figura 7: Monteiro Lobato assinando o contrato da
edição de suas obras completas pela Editora
Brasiliense. Ao seu lado, de pé, Arthur Heládio
Neves e Caio Prado Júnior (Da revista Fundamentos
Nº 4/5 (set.-out. de 1948)
Figura 8: Capa de seu
primeiro livro
publicado (1918)
ix
Anexo 4 — Cenas mazzaropianas
Sentido horário: Amácio
Mazzaropi; sentado em uma
pedra, na beira de um rio
em Taubaté – SP;
Mazzaropi em programa na
TV Tupi, na década de 1950
x
Sentido horário: Museu Mazzaropi, anteriormente PAM-Filmes; cartaz do filme Chico Fumaça
(1958); dependências da PAM-Filmes, hoje Museu Mazzaropi; frame do filme Chofer da praça (1958);
selo comemorativo aos 100 anos do cinema brasileiro
xi
Anexo 5 — Artigos Velha Praga e Urupês
O artigo “Velha Praga” com que o tal fazendeirinho “veio pela imprensa”, era o seguinte:
VELHA PRAGA
Andam todos em nossa terra por tal forma estonteados com as proezas infernais dos
belacíssimos “vons” alemães, que não sobram olhos para enxergar males caseiros.
Venha, pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que se fora o fogo da
guerra lavra implacável, fogo não menos destruidor devasta nossas matas, com furor não
menos germânico.
Em agosto, por força do excessivo prolongamento do inverno, “von Fogo” lambeu
montes e vales, sem um momento de tréguas, durante o mês inteiro.
Vieram em começos de setembro chuvinhas de apagar poeira e, breve, novo “verão de
sol” se estirou por outubro a dentro, dando azo a que se torrasse tudo quanto escapara à sanha
de agosto.
A serra da Mantiqueira ardeu como ardem aldeias na Europa, e é hoje um cinzeiro
imenso, entremeado aqui e acolá, de manchas de verdura as restingas úmidas, as grotas
frias, as nesgas salvas a tempo pela cautela dos aceiros. Tudo mais é crepe negro.
À hora em que escrevemos, fins de outubro, chove. Mas que chuva caínha! Que
miséria d’água! Enquanto caem do céu pingos homeopáticos, medidos a conta-gotas, o fogo,
amortecido mas não dominado, amoita-se insidioso nas piúcas
200
, a fumegar
imperceptivelmente, pronto para rebentar em chamas mal se limpe o céu e o sol lhe dê a mão.
Preocupa à nossa gente civilizada o conhecer em quanto fica na Europa por dia, em
francos e cêntimos, um soldado em guerra; mas ninguém cuida de calcular os prejuízos de
toda sorte advindos de uma assombrosa queima destas. As velhas camadas de humus
destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o
rejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrogradado; a destruição das aves silvestres e
o possível advento de pragas insetiformes; a alteração para piora do clima com a agravação
200
Tocos semi-carbonizados.
xii
crescente das secas; os vedos e aramados perdidos; o gado morto ou depreciado pela falta de
pastos; as cento e uma particularidades que dizem respeito a esta ou aquela zona e, dentro
delas, a esta ou aquela “situação” agrícola.
Isto, bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente no Brasil subtrai-se;
somar ninguém soma...
É peculiar de agosto, e típica, esta desastrosa queima de matas; nunca, porém, assumiu
tamanha violência, nem alcançou tal extensão, como neste tortíssimo 1914 que, benza-o Deus,
parece aparentado de perto com o célebre ano 1000 de macabra memória. Tudo nele culmina,
vai logo às do cabo, sem conta nem medida. As queimas não fugiram à regra.
Razão sobeja para, desta feita, encarnarmos a sério o problema. Do contrário a
Mantiqueira será em pouco tempo toda um sapezeiro sem fim, erisipelado de samambaias
esses dois términos à uberdade das terras montanhosas.
Qual a causa da renitente calamidade?
É mister um rodeio para chegar lá.
A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo
brasileiro como o “Argas” o é aos galinheiros ou o “Sarcoptes mutans” à perna das aves
domésticas. Poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades do “Porrigo
decalvans”, o parasita do couro cabeludo produtor da “pelada”, pois que onde ele assiste
201
se
vai despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morna decrepitude, nua e descalvada.
Em quatro anos, a mais ubertosa região se despe dos jequitibás magníficos e das perobeiras
milenáriasseu orgulho e grandeza, para, em achincalhe crescente, cair em capoeira, passar
desta à humildade da vassourinha e, descendo sempre, encruar definitivamente na desdita do
sapezeiro — sua tortura e vergonha.
Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, semi-nômade,
inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À
medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da
propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau
202
e o
isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina
de pedra, recua para não adaptar-se.
É de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a sua arapuca de “agregado; nômade
201
Reside; está estabelecida.
202
Espingarda de carregar pela boca.
xiii
por força de vago atavismos, não se liga à terra, como o campônio europeu “agrega-se”, tal
qual o “sarcopte”, pelo tempo necessário à completa sucção da seiva convizinha; feito o que,
salta para diante com a mesma bagagem com que ali chegou.
Vem de um sapezeiro para criar outro. Coexistem em íntima simbiose: sapé e caboclo
são vidas associadas. Este inventou aquele e lhe dilata os domínios; em troca o sapé lhe cobre
a choça e lhe fornece fachos para queimar a colméia das pobres abelhas.
Chegam silenciosamente, ele e a “sarcopta” fêmea, esta com um filhote no útero, outro
ao peito, outro de sete anos à ourela da saia este de pitinho na boca e faca à cinta.
Completam o rancho um cachorro sarnentoBrinquinho, a foice, a enxada, a pica-pau, o
pilãozinho de sal, a panela de barro, um santo encardido, três galinhas pevas e um galo índio.
Com estes simples ingredientes, o fazedor de sapezeiros perpetua a espécie e a obra de
esterilização iniciada com os remotíssimos avós.
Acampam.
Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam casa, brota da terra como um
urupê. Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o
barro das paredes e a palha do teto. Tão íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra
local, que dariam idéia de coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza se a
natureza fosse capaz de criar coisas tão feias.
Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença de morte daquela paragem.
Começam as requisições. Com a pica-pau o caboclo limpa a floresta das aves incautas.
Pólvora e chumbo adquire-os vendendo palmitos no povoado vizinho. É este um traço curioso
da vida do caboclo e explica o seu largo dispêndio de pólvora; quando o palmito escasseia,
rareiam os tiros, a caça grande merecendo sua carga de chumbo; se o palmital se extingue,
exultam as pacas: está encerrada a estação venatória.
Depois ataca a floresta. Roça e derruba, não perdoando ao mais belo pau. Árvores
diante de cuja majestosa beleza Ruskin choraria de comoção, ele as derriba, impassível, para
extrair um mel-de-pau escondido num oco.
Pronto o roçado, e chegado o tempo da queima, entra em funções o isqueiro. Mas aqui
o “sarcopte” se faz raposa. Como não ignora que a lei impõe aos roçados um aceiro de
dimensões suficientes à circunscrição do fogo, urde traças para iludir a lei, cocando dest’arte a
insigne preguiça e a velha malignidade.
xiv
Cisma o caboclo à porta da cabana
203
.
Cisma, de fato, não devaneios líricos, mas jeitos de transgredir as posturas com a
responsabilidade a salvo. E consegue-o. Arranja sempre um álibi demonstrativo de que não
esteve lá no dia do fogo.
Onze horas.
O sol quase a pino queima como chama. Um sarcopte” anda por ali, ressabiado.
Minutos após crepita a labareda inicial, medrosa, numa touça mais seca; oscila incerta; ondeia
ao vento; mas logo encorpa, cresce, avulta, tumultua infrene e, senhora do campo, estruge
fragorosa com infernal violência, devorando as tranqueiras, estorricando as mais altas frondes,
despejando para o céu golfões de fumo estrelejado de faíscas.
É o fogo-de-mato!
E como não o detém nenhum aceiro, esse fogo invade a floresta e caminha por ela a
dentro, ora frouxo, nas capitingas
204
ralas, ora maciço, aos estouros, nas moitas de taquaruçu;
caminha sem tréguas, moroso e tíbio quando a noite fecha, insolente se o sol o ajuda.
E vai galgando montes em arrancadas furiosas, ou descendo encostas a passo lento e
traiçoeiro até que o detenha a barragem natural dum rio, estrada ou grota noruega
205
.
Barrado, inflete para os flancos, ladeia o obstáculo, deixa-o para trás, esgueira-se para
os ladose continua o abrasamento implacável. Amordaçado por uma chuva repentina,
alapa-se nas piúcas, quieto e invisível, para no dia seguinte, ao esquentar do sol, prosseguir
na faina carbonizante.
Quem foi o incendiário? Donde partiu o fogo?
Indaga-se, descobre-se o Nero: é um urumbeva qualquer, de barba rala, amoitado num
litro
206
de terra litigiosa.
E agora? Que fazer? Processá-lo?
Não recurso legal contra ele. A única pena possível, barata, fácil e já estabelecida
como praxe, é “tocá-lo”.
Curioso este preceito: “ao caboclo, toca-se”.
Toca-se, como se toca um cachorro importuno, ou uma galinha que vareja pela sala. E
203
Verso de Ricardo Gonçalves
204
Capins de mato dentro, sempre ralos, magrelas.
205
Grota fria onde não bate o sol.
206
A terra se mede pela quantidade de milho que nela pode ser plantada; daí, um alqueire, uma quarta, um litro
de terra.
xv
tão afeito anda ele a isso, que é comum ouví-lo dizer: “Se eu fizer tal coisa o senhor não me
toca?”
Justiça sumária — que não pune, entretanto, dado o nomadismo do paciente.
Enquanto a mata arde, o caboclo regala-se.
— Êta fogo bonito!
No vazio de sua vida semi-selvagem, em que os incidentes são um jacu abatido, uma
paca fisgada n’água ou o filho novimensal, a queimada é o grande espetáculo do ano, supremo
regalo dos olhos e dos ouvidos.
Entrado setembro, começo das águas”, o caboclo planta na terra em cinzas um
bocado de milho, feijão e arroz; mas o valor da sua produção é nenhum diante dos males que
para preparar uma quarta de chão ele semeou.
O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cinqüenta alqueires de terra para extrair
deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua
resistência às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar fome”, sem virem a
morrer disso, ele, a mulher e o cachorro — está tudo muito bem; assim fez o pai, o avô; assim
fará a prole empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro.
Quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. No lugar fica a tapera e o
sapezeiro. Um ano que passe e este atestará a sua estada ali; o mais se apaga como por
encanto. A terra reabsorve os frágeis materiais da choça e, como nem sequer uma laranjeira
ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali do Manoel Peroba, do Chico Marimbondo,
do Jeca Tatu ou outros sons ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha.
J.R. Monteiro Lobato
(n: 18/abr/1882, Taubaté, SP; f: 04/jul/1948, São Paulo, SP)
Conto publicado em seu livro URUPÊS, de 1918
(publicado avulso inicialmente no jornal “O Estado de S. Paulo”, em 1914)
Fonte: http://www.cptec.inpe.br/queimadas/material3os/mlobato.htm
xvi
URUPÊS
Esboroou-se o balsâmico indianismo de Alencar ao advento dos Rondons que, ao
invés de imaginarem índios num gabinete, com reminiscências de Chateaubriand na cabeça e
a Iracema aberta sobre os joelhos, metem-se a palmilhar sertões de Winchester em punho.
Morreu Peri, incomparável idealização dum homem natural como o sonhava
Rousseau, protótipo de tantas perfeições humanas que no romance, ombro a ombro com altos
tipos civilizados, a todos sobrelevava em beleza d'alma e corpo.
Contrapôs-lhe a cruel etnologia dos sertanistas modernos um selvagem real, feio e
brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz, muscularmente, de arrancar uma palmeira,
como incapaz, moralmente, de amar Ceci.
Por felicidade nossaa de D. Antonio de Mariznão os viu Alencar; sonhou-os
qual Rousseau. Do contrário teríamos o filho de Arará a moquear a linda menina num bom
braseiro de pau brasil, em vez de acompanhá-la em adoração pelas selvas, como o Ariel
benfazejo do Paquequer.
A sedução do imaginoso romancista criou forte corrente. Todo o clã plumitivo deu de
forjar seu indiozinho refegado de Peri e Atala. Em sonetos, contos e novelas, hoje esquecidos,
consumiram-se tabas inteiras de aimorés sanhudos, com virtudes romanas por dentro e penas
de tucano por fora.
Vindo o público a bocejar de farto, céptico ante o crescente desmantelo do ideal,
cessou no mercado literário a procura de bugres homéricos, inúbias, tacapes, borés, piagas e
virgens bronzeadas. Armas e heróis desandaram cabisbaixos, rumo ao porão onde se guardam
os móveis fora de uso, saudoso museu de extintas pilhas elétricas que a seu tempo
galvanizaram nervos. E acamam poeira cochichando reminiscências com a barba de D.
João de Castro, com os frankisks de Herculano, com os frades de Garrett e que tais...
Não morreu, todavia.
Evoluiu.
O indianismo es de novo a deitar copa, de nome mudado. Crismou-se de
“caboclismo”. O cocar de penas de arara passou a chapéu de palha rebatido à testa; a ocara
virou rancho de sapé; o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxadal
o boré descaiu lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa aberta ao
xvii
peito.
Mas o substrato psíquico não mudou: orgulho indomável, independência, fidalguia,
coragem, virilidade heróica, todo o recheio em suma, sem faltar uma azeitona, dos Perís e
Ubirajaras.
Estes setembrino rebrotar duma arte morta inda se não desbagoou de todos os frutos.
Terá o seu “I Juca Pirama”, o seu “Canto do Piaga” e talvez dê ópera lírica.
Mas, completado o ciclo, virão destroçar o inverno em flor da ilusão indianista os
prosaicos demolidores de ídolosgente e sem poesia. Irão os malvados esgaravatar o
ícone com as curetas da ciência. E que feias se hão de entrever as caipirinhas cor de jambo de
Fagundes Varela! E que chambões e sornas os Peris de calça, camisa e faca à cinta!
Isso, para o futuro. Hoje ainda perigo em bulir no vespeiro: o caboclo é o “Ai
Jesus!” nacional.
É de ver o orgulhoso entono com que respeitáveis figurões batem no peito exclamando
com altivez: sou raça de caboclo!
Anos atrás o orgulho estava numa ascendência de tanga, inçada de penas de tucano,
com dramas íntimos e flechaços de curare.
Dia virá em que os veremos, murchos de prosápia, confessar o verdadeiro avô: um
dos quatrocentos de Gedeão trazidos por Tomé de Souza
207
num barco daqueles tempos, nosso
mui nobre e fecundo “Mayflower”.
Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da
nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma
existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna,
nada a põe de pé.
Quando Pedro I lança aos ecos o seu grito histórico e o país desperta estrouvinhado à
crise duma mudança de dono, o caboclo ergue-se, espia e acocora-se de novo.
Pelo 13 de Maio, mal esvoaça o florido decreto da Princesa e o negro exausto larga
num uf! o cabo da enxada, o caboclo olha, coça a cabeça, 'magina e deixa que do velho
mundo venha quem nele pegue de novo.
A 15 de Novembro troca-se um trono vitalício pela cadeira quadrienal. O país
bestifica-se ante o inopinado da mudança
208
. O caboclo não dá pela coisa.
207
Tomé de Souza veio ao Brasil com carregamento de 400 degredados e uns tantos jesuítas.
208
Aristides Lobo: “O país assistiu bestificado à proclamação da República”.
xviii
Vem Floriano; estouram as granadas de Custódio; Gumercindo bate às portas de
Roma; Incitatus derranca o país
209
. O caboclo continua de cócoras, a modorrar...
Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé. Social, como individualmente, em
todos os atos da vida, Jeca, antes de agir, acocora-se.
Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem
todas as características da espécie.
Hei-lo que vem falar ao patrão. Entrou, saudou. Seu primeiro movimento após prender
entre os lábios a palha de milho, sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada d'esguicho, é
sentar-se jeitosamente sobre os calcanhares. Só então destrava a língua e a inteligência.
— “Não vê que...”
De ou sentado as idéias se lhe entramam, a língua emperra e não de dizer coisa
com coisa.
De noite, na choça de palha, acocora-se em frente ao fogo para "aquentá-lo", imitado
da mulher e da prole.
Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostas um cabo de foice, fazê-lo
noutra posição será desastre infalível. Há de ser de cócoras.
Nos mercados, para onde leva a quitanda domingueira, é de cócoras, como um faquir
do Bramaputra, que vigia os cachinhos de brejaúba ou o feixe de três palmitos.
Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!
Jeca mercador, Jeca lavrador, Jeca filósofo...
Quando comparece às feiras, todo mundo logo advinha o que ele traz: sempre coisas
que a natureza derrama pelo mato e ao homemcusta o gesto de espichar a mão e colher
cocos de tucum ou jiçara, guabirobas, bacuparis, maracujás, jataís, pinhões, orquídeas ou
artefatos de taquara-poca peneiras, cestinhas, samburás, tipitis, pios de caçador ou
utensílios de madeira mole — gamelas, pilõezinhos, colheres de pau.
Nada Mais.
Seu grande cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do menor esforçoe
nisto vai longo.
Começa na morada. Sua casa de sapé e lama faz sorrir aos bichos que moram em toca
e gargalhar ao joão-de-barro. Pura biboca de bosquimano. Mobília, nenhuma. A cama é uma
209
O Presidente Hermes da Fonseca.
xix
espipada esteira de peri posta sobre o chão batido.
Às vezes se ao luxo de um banquinho de três pernaspara hóspedes. Três pernas
permitem equilíbrio inútil, portanto, meter a Quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão.
Para que assentos, se a natureza os dotou de sólidos, rachados calcanhares sobre os quais se
sentam?
Nenhum talher. Não é a munheca um talher completo colher, garfo e faca a um
tempo?
No mais, umas cuias, gamelinhas, um pote esbeiçado, a pichorra e a panela de feijão.
Nada de armários ou baús. A roupa, guarda-a no corpo. tem dois parelhos; um que
traz no uso e outro na lavagem.
Os mantimentos apaiola nos cantos da casa.
Inventou um cipó preso à cumeeira, de gancho na ponta e um disco de lata no alto, ali
pendura o toucinho, a salvo dos gatos e ratos.
Da parede pende a espingarda pica-pau, o polvarinho de chifre, o S. Benedito
defumado, o rabo de tatu e as palmas bentas de queimar durante as fortes trovoadas. Servem
de gaveta os buracos da parede.
Seus remotos avós não gozaram maiores comodidades. Seus netos não meterão Quarta
perna ao banco. Para que? Vive-se bem sem isso.
Se pelotas de barro caem, abrindo seteiras na parede, Jeca não se move a repô-las.
Ficam pelo resto da vida os buracos abertos, a entremostrarem nesgas de céu.
Quando a palha do teto, apodrecida, greta em fendas por onde pinga a chuva, Jeca, em
vez de remendar a tortura, limita-se, cada vez que chove, a aparar numa gamelinha a água
gotejante...
Remendo... Para que? Se uma casa dura dez anos e faltam “apenas” nove para que ele
abandone aquela? Esta filosofia economiza reparos.
Na mansão de Jeca a parede dos fundos bojou para fora um ventre empanzinado,
ameaçando ruir; os barrotes, cortados pela umidade, oscilam na podriqueira do baldrame.
Afim de neutralizar o desaprumo e prevenir suas conseqüências, ele grudou na parede uma
Nossa Senhora enquadrada em moldurinha amarela — santo de mascate.
— “Por que não remenda essa parede, homem de Deus?”
— “Ela não tem coragem de cair. Não vê a escora?”
xx
Não obstante, “por via das dúvidas”, quando ronca a trovoada Jeca abandona a toca e
vai agachar-se no oco dum velho embiruçu do quintal - para se saborear de longe com a
eficácia da escora santa.
Um pedaço de pau dispensaria o milagre! mas entre pendurar o santo e tomar da foice,
subir ao morro, cortar a madeira, atorá-la, baldeá-la e especar a parede, o sacerdote da Grande
lei do Menor Esforço não vacila. É coerente.
Um terreirinho descalvado rodeia a casa. O mato o beira. Nem árvores frutíferas, nem
horta, nem flores — nada revelador de permanência.
mil razões para isso; porque não é sua a terral porque se o "tocarem" não ficará
nada que a outrem aproveite; porque para frutas o mato; porque a “criação” come;
porque...
Mas, criatura, com um vedozinho por ali... A madeira está à mão, o cipó é
tanto...”
Jeca, interpelado, olha para o morro coberto de moirões, olha para o terreiro nu, coça a
cabeça e cuspilha.
— “Não paga a pena.”
Todo o inconsciente filosofar do caboclo grulha nessa palavra atravessada de fatalismo
e modorra. Nada paga a pena. Nem culturas, nem comodidades. De qualquer jeito se vive.
Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser um pão já amassado
pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe colheita, nem exige
celeiro. O plantio se faz com um palmo de rama fincada em qualquer chão. Não pede
cuidados. Não a ataca a formiga. A mandioca é sem vergonha.
Bem ponderado, a causa principal da lombeira do caboclo reside nas benemerências
sem conta da mandioca. Talvez que sem ela se pusesse de e andasse. Mas enquanto
dispuser de um pão cujo preparo se resume no plantar, colher e lançar sobre brasas, Jeca não
mudará de vida. O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade ambiente. Se a
poder de estacas e diques o holandês extraiu de um brejo salgado a Holanda, essa jóia do
esforço, é que ali nada o favorecia. Se a Inglaterra brotou das ilhas nevoentas da Caledônia, é
que lá não medrava a mandioca. Medrasse, e talvez os víssemos hoje, os ingleses, tolhiços, de
no chão, amarelentos, mariscando de peneira no Tamisa. bens que vêm para males. A
mandioca ilustra este avesso de provérbio.
xxi
Outro precioso auxiliar da calaçaria é a cana. Dá rapadura, e para Jeca, simplificador
da vida, garapa. Como não possui moenda, torce a pulso sobre a cuia de café um rolete,
depois de bem massetados os nós; açucara assim a beberagem, fugindo aos trâmites
condutores do caldo de cana à rapadura.
Todavia, est modus in rebus. E assim como ao lado do restolho cresce o bom de
milho, contrasta com a cristianíssima simplicidade do Jeca a opulência de um seu vizinho e
compadre que “está muito bem”. A terra onde mora é sua. Possui ainda uma égua, monjolo e
espingarda de dois canos. Pesa nos destinos políticos do país com o seu voto e nos
econômicos com o polvilho azedo de que é fabricante, tendo amealhado com ambos, voto e
polvilho, para mais de quinhentos mil réis no fundo da arca.
Vive num corrupio de barganhas nas quais exercita uma astúcia nativa muito irmã da
de Bertoldo. A esperteza última foi a barganha de um cavalo cego por uma égua de passo
picado. Verdade é que a égua mancava das mãos, mas ainda assim valia dez mil réis mais do
que o rossinante zanaga.
Esta e outras celebrizaram-lhe os engrimanços potreiros num raio de mil braças,
grangeando-lhe a incondicional e babosa admiração do Jeca, para quem, fino como o
compadre, “home”... nem mesmo o vigário de Itaóca!.
Aos domingos vai à vila bifurcado na magreza ventruda da Serena; leva apenso à
garupa um filho e atrás o potrinho no trote, mais a mulher, com a criança nova enrolada no
chale. Fecha o cortejo o indefectível Brinquinho, a resfolgar com um palmo de língua de fora.
O fato mais importante de sua vida é sem dúvida votar no governo. Tira nesse dia da
arca a roupa preta do casamento, sarjão furadinho de traça e todo vincado de dobras, entala os
pés num alentado sapatão de bezerro; ata ao pescoço um colarinho de bico e, sem gravata,
ringindo e mancando, vai pegar o diploma de eleitor às mãos do chefe Coisada, que lho retém
para maior garantia da fidelidade partidária.
Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando o
aranhol de gatafunhos a que chama “sua graça”.
Se tumulto, chuchurreia de firme, com heroísmo, as porretadas oposicionistas, e
ao cabo segue para a casa do chefe, de galo cívico na testa e colarinho sungado para trás, afim
de novamente lhe depor nas mão o “dipoloma”.
Grato e sorridente, o morubixaba galardoa-lhe o heroísmo, flagrantemente
documentado pelo latejar do couro cabeludo, com um aperto de munheca e a promessa, para
xxii
logo, duma inspetoria de quarteirão.
Representa este freguês o tipo clássico do sitiante com um fora da classe.
Exceção, díscolo que é, não vem ao caso. Aqui tratamos da regra e a regra é Jeca Tatu.
O mobiliário cerebral de Jeca, à parte o suculento recheio de superstições, vale o do
casebre. O banquinho de três pés, as cuias, o gancho de toucinho, as gamelas, tudo se reedita
dentro de seus miolos sob a forma de idéias: são as noções práticas da vida, que recebeu do
pai e sem mudança transmitirá aos filhos.
O sentimento de pátria lhe é desconhecido. Não tem sequer a noção do país em que
vive. Sabe que o mundo é grande, que sempre terras para diante, que muito longe está a
Corte com os graúdos e mais distante ainda a Bahia, donde vêm baianos pernósticos e cocos.
Perguntem ao Jeca quem é o presidente da República.
— “O homem que manda em nós tudo?”
— “Sim.”
— “Pois de certo que há de ser o imperador.”
Em matéria de civismo não sobe de ponto.
“Guerra? T'esconjuro! Meu pai viveu afundado no mato p'ra mais de cinco
anos por causa da guerra grande
210
. Eu, para escapar do "reculutamento", sou inté capaz de
cortar um dedo, como o meu tio Lourenço...”
Guerra, defesa nacional, ação administrativa, tudo quanto cheira a governo resume-se
para o caboclo numa palavra apavorante — “reculutamento”.
Quando em princípios da Presidência Hermes andou na balha um recenseamento
esquecido a Offenbach, o caboclo tremeu e entrou a casar em massa. Aquilo “havera de ser
reculutamento”, e os casados, na voz corrente, escapavam à redada.
A sua medicina corre parelhas com o civismo e a mobília em qualidade.
Quantitativamente, assombra. Da noite cerebral pirilampejam-lhe apozemas, cerotos, arrobes
e eletuários escapos à sagacidade cômica de Mark Twain. Compendia-os um Chernoviz não
escrito, monumento de galhofa onde não há rir, lúgubre como é o epílogo. A rede na qual dois
homens levam à cova as vítimas de semelhante farmacopéia é o espetáculo mais triste da roça.
Quem aplica as mezinhas é o “curador”, um Eusébio Macário de no chão e cérebro
trancado como muita de taquaruçu. O veículo usual das drogas é sempre a pinga - meio
210
Guerra do Paraguai.
xxiii
honesto de render homenagem à deusa Cachaça, divindade que entre eles ainda não encontrou
heréticos.
Doenças hajam que remédios não faltam.
Para bronquite, é um porrete cuspir o doente na boca de um peixe vivo e soltá-lo: o
mal se vai com o peixe água abaixo...
Para “quebranto de ossos”, já não é tão simples a medicação. Tomam-se três contas de
rosário, três galhos de alecrim, três limas de bico, três iscas de palma benta, três raminhos de
arruda, três ovos de pata preta (com casca; sem casca desanda) e um saquinho de picumã!
mete-se tudo numa gamela d'água e banha-se naquilo o doente, fazendo-o tragar três goles da
zurrapa. É infalível.
O específico da brotoeja consiste em cozimento de beiço de pote para lavagens. Ainda
há aqui um pormenor de monta; é preciso que antes do banho a mãe do doente molhe na água
a ponta de sua trança. As brotoejas saram como por encanto.
Para dor de peito que responde na cacunda”, cataplasma de jasmim de cachorro” é
um porrete.
Além desta alopatia, para a qual contribui tudo quanto de mais repugnante e inócuo
existe na natureza, a medicação simpática, baseada na influição misteriosa de objetos,
palavras e atos sobre o corpo humano.
O ritual bizantino dentro de cujas maranhas os filhos do Jeca vêm ao mundo, e do qual
não há fugir sob pena de gravíssimas conseqüências futuras, daria um in-fólio d'alto fôlego ao
Sílvio Romero bastante operoso que se propusesse a compendiá-lo.
Num parto difícil nada tão eficaz como engolir três caroços de feijão mouro, de passo
que a parturiente veste pelo avesso a camisa do marido e põe na cabeça, também pelo avesso,
o seu chapéu. Falhando esta simpatia, um derradeiro recurso: colar no ventre encruado a
imagem de S. Benedito.
Nesses momentos angustiosos outra mulher não penetre no recinto sem primeiro
defumar-se ao fogo, nem traga na mão caça ou peixe. A criança morreria pagã. A omissão de
qualquer destes preceitos fará chover mil desgraças na cabeça do chorincas recém- nascido.
A posse de certos objetos confere dotes sobrenaturais. A invulnerabilidade às facadas
ou cargas de chumbo é obtida graças à flor da samambaia.
Esta planta, conta Jeca, floresce uma vez por ano, e produz em cada samambaial
xxiv
uma flor. Isto à meia noite, no dia de S. Bartolomeu. É preciso ser muito esperto para colhe-
la, porque também o diabo anda à cata. Quem consegue pegar uma, ouve logo um estouro e
tonteia ao cheiro de enxofre — mas livra-se de faca e chumbo pelo resto da vida.
Todos os volumes do Larousse não bastariam para catalogar-lhes as crendices, e como
não linhas divisórias entre estas e a religião, confundem-se ambas em maranhada teia, não
havendo distinguir onde pára uma e começa outra.
A idéia de Deus e dos santos torna-se jeco-cêntrica. São os santos os graúdos de
cima, os coronéis celestes, debruçados no azul para espreitar-lhes a vidinha e intervir nela
ajudando-os ou castigando-os, como os metediços deuses de Homero. Uma torcedura de pé,
um estrepe, o feijão entornado, o pote que rachou, o bicho que arruinou - tudo diabruras da
corte celeste, para castigo de más intenções ou atos.
Daí o fatalismo. Se tudo movem cordéis de cima, para que lutar, reagir? Deus quis.
A maior catástrofe é recebida com esta exclamação, muito parenta do “Allah Kébir” do
beduíno.
E na arte?
Nada.
A arte rústica do campônio europeu é opulenta a ponto de constituir preciosa fonte de
sugestões para os artistas de escol. Em nenhum país o povo vive sem a ela recorrer para um
ingênuo embelezamento da vida. não se fala no camponês italiano ou teutônico, filho de
alfobres mimosos, propícios a todas as florações estéticas. Mas o russo, o hirsuto mujique a
meio atolado em barbárie crassa. Os vestuários nacionais da Ucrânia nos quais a cor viva e o
sarapantado da ornamentação indicam a ingenuidade do primitivo, os isbas da Lituânia, sua
cerâmica, os bordados, os móveis, os utensílios de cozinha, tudo revela no mais rude dos
campônios o sentimento da arte.
No samoieda, no pele-vermelha, no abexim, no Papua, um arabesco ingênuo costuma
ornar-lhes as armas - como lhes ornam a vida canções repassadas de ritmos sugestivos.
Que nada é isso, sabido como o homem pré-histórico, companheiro do urso das
cavernas, entalhava perfis de mamutes em chifres de rena.
Egresso à regra, não denuncia o nosso caboclo o mais remoto traço de um sentimento
nascido com o troglodita.
Esmerilhemos o seu casebre: que é que ali denota a existência do mais vago senso
xxv
estético? Uma chumbada no cabo do relho e uns ziguezagues a canivete ou fogo pelo roliço
do porretinho de guatambu. É tudo.
Às vezes surge numa família um gênio musical cuja fama esvoaça pelas redondezas.
Ei-lo na viola concentra-se, tosse, cuspilha o pigarro, fere as cordas e “tempera” , E fica nisso,
no tempero.
Dirão: e a modinha?
A modinha, como as demais manifestações de arte popular existentes no país, é obra
do mulato, em cujas veias o sangue recente do europeu, rico de atavismos estéticos, borbulha
d'envolta com o sangue selvagem, alegre e são do negro.
O caboclo é soturno.
Não canta senão rezas lúgubres.
Não dança senão o cateretê aladainhado.
Não esculpe o cabo da faca, como o cabila.
Não compõe sua canção, como o felá do Egito.
No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos
derramam feitiços no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de
setembro, abre a dança dos tangarás; onde abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras,
sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio
urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas.
Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.
Só ele, no meio da tanta vida, não vive...
Fonte: http://www.projetomemoria.art.br/MonteiroLobato/bibliografialobatiana/contos5.html
xxvi
Anexo 6 — Almanaque Biotônico Fontoura
ALMANAQUE BIOTÔNICO FONTOURA
xxvii
JECA TATUZINHO
Lançado em 1924, Jeca Tatuzinho veio ensinar noções de
higiene e saneamento às crianças, por meio do personagem-
símbolo criado por Monteiro Lobato. Adaptado no ano
seguinte e, ao que consta, oferecido a seu amigo Cândido
Fontoura para promoção dos produtos do laboratório
Fontoura Serpe & Cia, em especial do Biotônico, chegaria a
100 milhões de exemplares no centenário do escritor.
Considerada a peça publicitária de maior sucesso na história
da propaganda brasileira, inspiraria, naquele ano de 1982, a
criação do Prêmio Jeca Tatu. Instituído pela agência CBBA
Castelo Branco e Associados, representou uma
homenagem obra-prima da comunicação persuasiva de caráter educativo, plenamente
enquadrada na missão social agregada ao marketing e à propaganda". O folheto do Biotônico
Fontoura, cujo texto aqui reproduzimos, foi ilustrado em suas primeiras edições por Kurt
Wiese e Belmonte e, em seguida, por J. U. Campos.
I
Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no
mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior
pobreza, em companhia da mulher, muito magra e
feia, e de vários filhinhos pálidos e tristes. Jeca
Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes
cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa
nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar
cachos de brejaúva, mas não tinha idéia de plantar
um de couve atrás da casa. Perto corria um
ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns
xxviii
lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo. Dava pena ver a miséria do casebre. Nem
móveis, nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas,
umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só. Todos
que passavam por ali, murmuravam: — Que grandessíssimo preguiçoso!
II
Jeca Tatu era tão fraco que, quando ia lenhar, vinha com
um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado,
como se estivesse carregando um enorme peso. — Por que
não traz de uma vez um feixe grande? perguntaram-lhe
um dia. Jeca Tatu cortou a barbicha rala e respondeu:
Não paga a pena. Tudo para ele não pagava a pena. Não
pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem
plantar árvores de fruta, nem remendar a roupa. Só pagava
a pena beber pinga.Por que você bebe, Jeca? diziam-
lhe. Bebo para esquecer. Esquecer do quê?
Esquecer as desgraças da vida. E os passantes
murmuravam: — Além de vadio, bêbado...
III
Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la.
Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns
pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro
porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que
cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse
motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham
poucos ovos. Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho,
magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo.
Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com
xxix
isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por
quê? Desânimo, preguiça... As pessoas que viam aquilo, franziam o nariz. Que criatura
imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro...
IV
Jeca queria beber pinga e espichar-se ao sol,
no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho
rente, cochilando. A vida que rodasse, o mato
que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca
não queria saber de nada. Trabalhar não era
com ele. Perto morava um italiano bastante
arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia
inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo? Quando lhe perguntavam isso, ele dizia:Não
paga a pena plantar. A formiga come tudo. Mas como é que seu vizinho italiano não tem
formiga no sítio? É que ele mata. E por que você não faz o mesmo? Jeca coçava a cabeça,
cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história: Quá! Não paga a pena ...
— Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam.
V
Um dia um doutor portou por causa da chuva e
espantou-se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão
amarelo e magro, resolveu examiná-lo.Amigo
Jeca, o que você tem é doença. Pode ser. Sinto
uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma
pontada aqui no peito, que responde na cacunda.
Isso mesmo. Você sofre de ancilostomíase.
Anci... o que? Sofre de amarelão, entende?
Uma doença que muitos confundem com a maleita.
Essa tal maleita não é sezão? Isso mesmo.
xxx
Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo a mesma coisa. A sezão também
produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece-se a maleita
pelo arrepio ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com
muito suor. Quem sofre de sezão sara com o MALEITOSAN FONTOURA. Quem sofre de
amarelão sara com a ANKILOSTOMINA FONTOURA. Eu vou curar você.
VI
O doutor receitou um vidro de ANKILOSTOMINA
FONTOURA, para tomar assim: seis comprimidos hoje pela
manhã e outros seis amanhã de manhã. Faça isto duas
vezes, com o espaço de uma semana. E de cada vez tome
também um purgante de sal amargo, se duas horas depois de
ter ingerido a ANKILOSTOMINA não tiver evacuado. E
trate de comprar um par de botinas e alguns vidros de
BIOTÔNICO e nunca mais me ande descalço e nem beba
pinga, ouviu? Ouvi, sim, senhor!Pois é isso, rematou
o doutor, tomando o chapéu. A chuva passou e vou-me
embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como
o italiano. Na semana que vem estarei aqui de volta. Até por lá, seo doutor! Jeca ficou
cismando. Não acreditava muito nas palavras da Ciência, mas por fim resolveu comprar os
remédios, e também um par de botinas ringideiras. Nos primeiros dias foi um horror. Ele
andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal...
xxxi
VII
Quando o doutor voltou, Jeca estava bem melhor, graças à
ANKILOSTOMINA e ao BIOTÔNICO. O doutor mostrou-
lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas:Veja,
sêo Jeca, que bicharia tremenda estava você a criar na
barriga! São os tais ancilóstomos, uns bichinhos dos lugares
úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne
adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se
nas tripas e escangalham com o freguês. Tomando a
ANKILOSTOMINA, você bota fora todos os ancilóstomos
que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que
entrem os que estão na terra. Fazendo isso e fortalecendo-se
com alguns vidros de BIOTÔNICO, ovos e leite, você fica livre da doença para sempre. Jeca
abriu a boca, maravilhado. — Os anjos digam amém, seo doutor!
VIII
Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que
os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era
“positivo” e dos tais que “só vendo”. O doutor
resolveu abrir-lhe os olhos: Levou-o a um lugar
úmido, atrás de casa, e disse:Tire a botina e
ande um pouco por aí. Jeca obedeceu.Agora
venha cá. Sente-se. Bote o em cima do
joelho. Assim. Agora examine a pele com essa
lente. Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que estavam
penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos, assombrado.
E não é que é mesmo? Quem “havera” de dizer!... Pois é isso, seo Jeca, e daqui por
diante não duvide mais do que disser a Ciência. Nunca mais! Daqui por diante dona
Ciência está dizendo, Jeca es jurando em cima! T'esconjuro! E pinga, então, nem para
remédio...
xxxii
IX
Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses
depois ninguém mais conhecia o Jeca. A ANKILOSTOMINA
curou-o do Amarelão. O BIOTÔNICO deixou-o bonito, corado,
forte como um touro. A preguiça desapareceu. Quando ele
agarrava no machado, as árvores tremiam de pavor. Era pã, pã,
pã... horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio
senão cair. E Jeca, cheio de coragem, botou abaixo o capoeirão,
para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas
terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os
buracos da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um
galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar
com fúria que espantou até o seu vizinho italiano.Descanse um pouco, homem! Assim
você arrebenta... diziam os passantes. Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele, sem
largar do machado. Quero tirar a prosa do "italiano".
X
Jeca, que era um medroso, virou valente. Não
tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma
vez, ao entrar no mato, ouviu um miado
estranho.Onça! Exclamou ele. É onça e eu
aqui sem uma faca!... Mas não perdeu a
coragem. Esperou a onça, de firme. Quando
a fera o atacou, ele ferrou-lhe tamanho murro
na cara que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca
avançou de novo, agarrou-a pelo pescoço e estrangulou-a.Conheceu, papuda? Você pensa
que está lidando com algum pinguço opilado? Fique sabendo que tomei ANKILOSTOMINA
e BIOTÔNICO e uso botina ringideira!... A companheira da onça, ao ouvir essas palavras,
não quis saber de histórias — azulou! Dizem que até hoje está correndo...
xxxiii
XI
Ele, que antigamente, quando lenhava, só trazia três pausinhos,
carregava agora cada feixe que metia medo. E carregava-os
sorrindo, como se o enorme peso não passasse de brincadeira.
Amigo Jeca, você arrebenta!, diziam-lhe. Onde se viu
carregar tanto pau de uma vez? não sou aquele de dantes!
Isto para mim agora é canja... respondia o caboclo, sorrindo.
Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou
no mato grossas perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no
muque para o terreiro as toras todas. Sozinho! Quero
mostrar a essa paulama quanto vale um homem que tomou
ANKILOSTOMINA e BIOTÔNICO, que usa botina cantadeira
e que não bebe nem ummartelinho de cachaça! O italiano via aquilo e coçava a cabeça.
Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente. Per Bacco!
XII
Dava gosto ver suas roças. Comprou arados e
bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a
terra. O resultado foi que os milhos vinham
lindos e o feijão era uma beleza. O italiano
abria a boca, admirado, e confessava nunca ter
visto roças assim. E Jeca não plantava
rocinhas, como antigamente. queria saber de
roças grandes, cada vez maiores, que fizessem
inveja no bairro. E se alguém lhe perguntava:
Mas para que tanta roça, homem? Ele
respondia:É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero
cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui duas enormes fazendas a Fazenda
Ankilostomina e Fazenda Biotônico. E hei de ser até coronel... E ninguém duvidava mais. O
xxxiv
italiano dizia: — E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!...
XIII
Por esse tempo, o doutor passou por e
ficou admiradíssimo com a transforma-
ção de seu doente. Esperara que ele saras-
se, mas não contara com tal mudança.
Jeca o recebeu de braços abertos e apre-
sentou-o à mulher e aos filhos. Os meni-
nos cresciam viçosos, e viviam brincan-
do, contentes como os passarinhos. E
toda gente ali andava calçada. O caboclo
ficara com tanta no calçado, que mete-
ra botinas até nos animais caseiros! Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O
galo, esse andava de bota e espora!Isso também é demais, seo Jeca, disse o doutor. Isso é
contra a natureza!Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles vêm
aqui, vêem isso e não se esquecem mais da história.
XIV
Em pouco tempo os resultados foram
maravilhosos. A porcada aumentou de tal
modo, que vinha gente de longe admirar aquilo.
Jeca adquiriu um caminhão, e em vez de
conduzir os porcos ao mercado pelo sistema
antigo, levava-os de auto, num instantinho,
buzinando pela estrada afora, fon-fon! Fon-
fon!... As estradas eram péssimas; mas ele
consertou-as à sua custa. Jeca parecia um doido.
pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a
xxxv
casa de livros e por fim tomou um professor de inglês. Quero falar a língua dos bifes para
ir aos Estados Unidos ver como é a coisa. O seu professor dizia: O Jeca fala inglês
agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha; é hen... Mas de álcool, nada. Antes quer ver o
demônio, que um copinho da “branca”...
XV
Jeca fumava charutos fabricados especialmente para ele, e
corria as roças montado em cavalos árabes de puro sangue.
Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um
“estranja” legítimo, até na fala. Na “Fazenda Biotônico” havia
de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta fruta
no mundo. Até criação do bicho-da-seda; Jeca formou um
amoreiral que não tinha fim. Quero que tudo aqui ande na
seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos aqui da fazenda
tem que ser de seda, para moer os invejosos... E ninguém
duvidava de nada. O homem é mágico, diziam os vizinhos.
Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo, nem que seja
um despropósito...
XVI
A “Fazenda Biotônico” tornou-se famosa no
país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da
eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório,
tocava num botão e o cocho do chiqueiro se
enchia automaticamente de rações muito bem
dosadas. Tocava outro botão e um repuxo de
milho atraía todo o galinhame!... Suas roças
eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço na varanda, ele dava ordens aos feitores,
longe. Chegou a mandar buscar nos Estados Unidos um aparelho de televisão.Quero aqui
xxxvi
desta varanda ver tudo o que se passa em minha fazenda. E tanto fez, que viu. Jeca instalou os
aparelhos, e assim pôde, da sua varanda, com o charutão na boca, não falar por meio do
rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio da televisão, o que os
camaradas estavam fazendo.
XVII
Ficou rico e estimado, como era natural; mas
não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da
saúde aos caipiras das redondezas. Para isso
montou na fazenda e vilas próximas vários
POSTOS DE MALEITOSAN, onde tratava os
enfermos de sezões; e também POSTOS DE
ANKILOSTOMINA, onde curava os doentes
de amarelão e outras verminoses. E quando algum empregado sentia alguma dor de cabeça, se
estava resfriado, Jeca arrumava-lhe uns dois ou três comprimidos de Fontol, e imediatamente
o homem estava bom, e pronto para o serviço. O seu entusiasmo era enorme. “Hei de
empregar toda minha fortuna nesta obra de saúde geral, dizia. Meu patriotismo é este. Minha
divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia! Viva o Biotônico! Viva ANKILOSTOMINA! Viva o
Maleitosan! Viva o Fontol!” A estes vivas o coronel Jeca aumentou mais um. Foi quando
apareceu o grande “liquida-insetos” chamado DETEFON e ele o experimentou na miuçalha
da fazenda: pulgas, percevejos, piolhos, baratas, pernilongos e moscas. Deixou aquilo sem
um só bichinho para remédio. Não contente com isso, Jeca tomou o hábito de nunca sair a
cavalo ou de automóvel sem levar a tiracolo a bomba de pulverizar, DETEFON. Entrava nos
casebres de beira de caminho e antes do “Bom dia!” punha-se fon, fon, fon, detefon, a
pulverizar tudo, coisas e gentes. Quando acaba, dizia:Ninguém faz a conta dos males que
estes bichinhos causam à humanidade, como transmissores de moléstias... e dava mais umas
bombadas de lambuja. E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu,
aos 89 anos, não teve estátua ou grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de
consciência mais tranqüila. Havia cumprido o seu dever até o fim.
xxxvii
XVIII
Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando
crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros,
procurem curar os camaradas. Além de ser para eles um
grande benefício, é para você um alto negócio. Você verá o
trabalho dessa gente produzir três vezes mais. Um país não
vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale
pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ora,
ter mais saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais
vem daí. E o grande remédio que combate o amarelão, esse
mal terrível que tantos braços preciosos rouba ao trabalho, é
a ANKILOSTOMINA. Assim como o grande conservador
da saúde, que produz energia, força e vigor, chama-se
BIOTÔNICO FONTOURA.
Fonte: http://lobato.globo.com/misc_jeca.asp
xxxviii
Anexo 7 — Zé Brasil
ZÉ BRASIL
Nos seus artigos e con-
tos, Monteiro Lobato revelou as-
pectos da realidade brasileira
que a maioria dos intelectuais de
seu tempo desprezava. O exem-
plo maior dessa produção literá-
ria engajada, Jeca Tatu, nascido
em 1914 no artigo Urupês, se
tornaria um personagem-símbo-
lo. Preguiçoso e indolente, Jeca
fora em parte ditado pelo des-
contentamento do fazendeiro
Lobato frente ao insucesso de suas iniciativas agrícolas nas terras já esgotadas, herança do avô. Quatro
anos mais tarde, ao entrar em contato com estudos sobre saúde pública, ele revê suas idéias sobre o
homem do campo, reformulando a imagem do Jeca. Se em 1914 o escritor pintava o caboclo como o
retrato do conformismo, agora descobre que a apatia provinha do subdesenvolvimento, da fome e da
exclusão social.
Na década de 1940 Monteiro Lobato mais uma guinada e passa a ver o camponês não mais
como um ser passivo, e sim como agente da própria história. Aquele seu Jeca Tatu ressurge como um
trabalhador sem terra, cujo inimigo maior chama-se “latifúndio”, e luta pela Reforma Agrária.
Lançado pela Editorial Vitória em 1947, com ilustrações de Percy Deane, e publicado como
folhetim no jornal comunista Tribuna Popular, Brasil narra o sonho de Luiz Carlos Prestes sobre
um lugar onde os lavradores seriam donos de um sítio, plantando e colhendo os frutos de sua labuta.
Não é de se estranhar que o livreto de 24 páginas tenha sido apreendido em sucessivas investidas
policiais no governo Dutra. Edições clandestinas pipocaram pelo país, e no ano seguinte, em 1948,
sairia uma versão ilustrada por Cândido Portinari, pela Calvino Filho.
xxxix
I
Brasil era um pobre coitado.
Nasceu e sempre viveu em casebres de
sapé e barro, desses de chão batido e sem
mobília nenhuma a mesa encardida,
o banco duro, o mocho de três pernas, uns
caixões, as cuias... Nem cama tinha.
Brasil sempre dormiu em esteiras de tábua.
Que mais na casa? A espingardinha, o pote
d’água, o caco de sela, o rabo de tatu, a
arca, o facão, um santinho na parede.
Livros, só folhinhaspara ver as luas e
se vai chover ou não, e aquele livrinho do
Fontoura com a história do Jeca Tatu. Coitado deste Jeca! dizia Brasil, olhando para
aquelas figuras. Tal qual eu. Tudo que ele tinha, eu também tenho. A mesma opilação, a
mesma maleita, a mesma miséria e até o mesmo cachorrinho. Pois não é que meu cachorro
também se chama Jolí?...
II
A vida de Brasil era a mais simples.
Levantar de madrugada, tomar um cafezinho ralo
(“escolha” com rapadura), com farinha de milho
(quando tinha) e ir para a roça pegar no cabo da
enxada. O almoço ele o comia mesmo, levado
pela mulher; arroz com feijão e farinha de
mandioca, às vezes um torresmo ou um pedacinho
de carne seca para enfeitar. Depois cabo da enxada
outra vez, até à hora do café do meio-dia. E
novamente a enxada, quando não a foice ou o
machado. A luta com a terra sempre foi brava. O
xl
mato não pára nunca de crescer, e é preciso ir derrubando as capoeiras e capoeirões porque
não há o que se estrague tão depressa como as terras de plantação.
Na frente da casa, o terreirinho, o mastro de Santo Antônio. Nos fundos, o
chiqueirinho com um capadete engordado, a árvore onde dormem as galinhas, e a “horta”
umas latas velhas num girauzinho, com um de cebola, outro de arruda e mais remédios
hortelã, cidreira, etc. no girau, por causa da formiga.
— Ah, estas formigas me matam! Dizia o Zé com cara de desânimo. Comem tudo
que a gente planta.
E se alguém da cidade, desses que não entendem de nada desta vida, vinha com histórias de
“matar formiga”, dizia: “Matar formiga!... Elas é que matam a gente. Isso de matar
formiga é para os ricos, e muito ricos. A formicida está pela hora da morte e cada vez
pior, mais falsificada. E que me adianta matar um formigueiro aqui neste sítio, se tantos
formigueiros nos vizinhos? Formiga vem de longe. vi um olheiro que ia sair a um
quilômetro de distância. Suponha que eu vendo a alma, compro uma lata de formicida e mato
aquele formigueiro ali do pastinho. Que adianta? As formigas do Chico Vira, que é o meu
vizinho deste lado, vêm alegrinhas visitar as minhas plantas”.
III
A gente da cidadecomo são cegas
as gentes das cidades!... Esses doutores, esses
escrevedores nos jornais, esses deputados,
paravam ali e era só crítica: vadio, indolente,
sem ambição, imprestável... não havia o que
não dissessem do Brasil. Mas ninguém
punha atenção nas doenças que derreavam
aquele pobre homem opilação, sezões,
quanta verminose há, malária. E cadê doutor?
Cadê remédio? Cadê jeito? O jeito era sempre
o mesmo: sofrer sem um gemido e ir
trabalhando doente mesmo, até não agüentar mais e cair como cavalo que afrouxa. E morrer
xli
na velha esteirae feliz se houver por ali alguma rede em que o corpo para o cemitério,
senão vai amarrado com cipó.
Mas você morre, Zé, e sua alma vai para o céu, disse um dia o padree duvidou.
Está uma coisa que só vendo! Minha idéia é que nem deixam minha alma entrar no céu.
Tocam ela de lá, como aqui na vida o coronel Tatuíra me tocou das terras dele. Por que,
Zé?
IV
Eu era “agregado” na
fazenda do Taquaral. O coronel me deu
uma grota, fiz minha casinha, derrubei
mato, plantei milho e feijão.
— De meias?
Sim. Metade para o
coronel, metade para mim.
— Mas isso dá, Zé?
para a gente ir
morrendo de fome pelo caminho da vida
a gente que trabalha e planta. Para o
dono da terra é o melhor negócio do
mundo. Ele não faz nada, de nada, de nada. Não fornece nem uma foice, nem um vidrinho de
quina para a sezão mas leva metade da colheita, e metade bem medida uma metade
gorda; a metade que fica com a gente é magra, minguada... E a gente tem de viver com aquilo
um ano inteiro, até que chegue tempo de outra colheita.
— Mas como foi o negócio da fazenda do Taquaral?
Eu era “agregado” e ia labutando na grota. Certo ano tudo correu bem e as
plantações ficaram a maior das belezas. O coronel passou por lá, viu aquilo — e eu não gostei
da cara dele. No dia seguinte me “tocou” de suas terras como quem toca um cachorro; colheu
as roças para ele e naquela casinha que eu havia feito, botou o Totó Urumbeva.
xlii
— Mas não há uma lei que...
Brasil deu uma risada. “Lei... Isso é coisa para os ricos. Para os pobres, a lei é a
cadeia e se rezingar um pouquinho é o chanfalho”.
V
E se você fosse dono das
terras, dum sítio de dez ou vinte
alqueires?
Ah, tudo mudava. Se eu
tivesse um sítio, fazia uma casa boa,
plantava árvores de fruta, e uma horta, e
até um jardinzinho como o do Giusepe.
Mas como fazer casa boa, e plantar
árvores, e ter horta em terra dos outros,
sem garantia nenhuma? Vi isso com o
coronel Tatuíra. porque naquele ano as minhas roças estavam uma beleza, ele não resistiu
à ambição e me tocou. E que de terras esse homem tem! A fazenda do Taquaral foi medida.
Os engenheiros acharam mais de dois mil alqueires e ele ainda é dono de mais duas
fazendas bem grandes, no Oeste. E não vende nem um palmo de terra. Herdou do pai, que
havia herdado do avô. E o gosto do coronel é dizer que vai deixar para o Tatuirinha uma
fazenda maior ainda — e anda em negócios com o Mané Labrego para a compra daquele sítio
da Grota Funda.
— Então não vende nem dá as terras — só arrenda?
Isso. Também não planta nada. O que ele quer é rendeiro como eu fui, e são
hoje mais de cem as famílias que vivem no Taquaral. Desse jeito, o lucro do coronel é certo.
Se vem chuva de pedra, se vem geada ou ventania, ele nunca perde nada; quem perde são os
rendeiros.
xliii
VI
Mas, Zé, se essas terras do
Taquaral fossem divididas por essas
cento e tantas famílias que vivem lá,
não acha que ficava muito melhor?
Melhor para quem? Para o
coronel?
Não. Para o mundo em
geral, para todos. Pois está claro que sim.
Em vez de haver um rico, que é o
coronel Tatuíra, haveria mais de cem
arranjados, todos vivendo na maior
abundância, donos de tudo quanto produzissem, não da metade e o melhor de tudo seria a
segurança, a certeza de que ninguém dali não saía por vontade dos outros, tocado como um
cachorro, como eu fui. Ah, que grande felicidade! Mas quem pensa nisso no mundo? Quem se
incomoda com o pobre Brasil? Ele que morra de doenças, ele que seja roubado, e metido
na cadeia se abre a boca para se queixar. O mundo é dos ricos e Brasil nasceu pobre.
Ninguém no mundo pensa nele, olha para ele, cuida de melhorar a sorte dele...
VII
Não é assim, Zé. Apareceu um homem que pensa em você, que por causa de
você foi condenado pela lei desses ricos que mandam em tudo e passou nove anos num
cárcere.
— Quem é esse homem?
— Luiz Carlos Prestes...
ouvi falar. Diz que é um tal comunista que quer desgraçar o mundo, acabar
com tudo...
xliv
Quer acabar com injustiça
do mundo. Quer que em vez de um
Tatuíra, dono de milhares de alqueires de
terra e vivendo à custa dos que trabalham,
homem prepotente que faz o que fez a
você...
— Que toca a gente...
Que toca, que manda
prender e meter o chanfalho em quem
resmunga, haja centenas de donos de
sítios dentro de cada fazenda, vivendo
sem medo de nada, na maior abundância e segurança.
— Que beleza se fosse assim!
E por que não de ser assim? basta que vocês queiram. Se todos os que
sofrem essa injustiça da falta de terras próprias, num país tão grande como este, se reunirem
em redor de Prestes, a situação acabará mudando completamente.
— O Brasil tem 5 habitantes para cada quilômetro quadrado...
— Quanto é isso em alqueires?
— Um quilômetro quadrado é um pouco mais de 40 alqueires. Ora, havendo cinco
habitantes para cada quilômetro quadrado, cada habitante pode ter um sítio de oito alqueires,
homem, mulher ou criança.
— Quer dizer que terra é o que não falta. Falta uma boa distribuição das terras, de
modo que se acabe com isto de uns terem tudo e a grande maioria não ter nada.
VIII
— Mas por que então esse homem é tão guerreado?
Justamente por isso. Quem é que o guerreia? Os que trabalham na roça, como
você? Os que sofrem a injustiça do mundo, como você? Os que nas cidades ganham a vida
nos ofícios ou como operários de fábricas? Os que produzem tudo quanto existe no mundo?
xlv
Não. Os que combatem Prestes e as idéias de Prestes não são os que trabalham e sim os que
vivem à custa do trabalho dos outros.
Como aqui o coronel
Tatuíra... Exatamente. São os Tatuíras
que tomaram conta do mundo e como
para eles está tudo bem, não querem
mudança nenhuma.
Para eles está bom
mesmo! Não precisam trabalhar e são
donos de tudo, das terras, das casas, das
fábricas...e do produto do trabalho dos
outros. O mal está aí, Zé. No dia em que
quem trabalha ficar dono do produto do
seu trabalho, tudo entrará nos eixos e todos serão felizes. Mas isso de cem trabalharem para
um só ficar com tudo, isso não está certo e tem de acabar.
Pois no Taquaral é assim. Cem famílias trabalham naquelas terras, como
negros de eito, para que o coronel viva no macio, sempre lá pelas capitais, arrotando presunto.
Do que essas famílias produzem, a parte que a elas cabe mal dá para não morrerem de fome e
não andarem totalmente nuas. Se o Prestes quer mudar isso, esse homem merece a nossa
aprovação.
IX
Se ele tiver o apoio de vocês todos, quem poderá com ele? Vocês são os
milhões; os Tatuíras não passam de centenas. Se sendo tão poucos os Tatuíras dominam e
exploram a vocês que são milhões, isso vem duma coisa só: falta de conhecimento por parte
de vocês. É que vocês não sabem! E o remédio é um só: procurar saber. No dia em que todos
souberem como as coisas são, ah, nesse dia tudo começa a mudar, e em vez da felicidade ficar
só com as centenas, passará a ser também dos milhões.
xlvi
Mas como a gente de
saber, se cada um diz uma coisa? Jornal
eu não leio, mas o Chico Vira e outro
dia me disse que os jornais andam
falando horrores do comunismo.
Os jornais deles, esclaro
que dizem horrores. Mas os jornais
comunistas, ou do Prestes, esses dizem as
coisas do modo diferente. Em que vocês
devem acreditar? No que dizem os
Tatuíras e os jornais dos Tatuíras, ou no que dizem os homens que querem o bem de vocês?
Os homens que padecem por vocês, como esse Prestes que já passou nove anos no cárcere,
incomunicável, porque em vez de decidir pela felicidade dos Tatuíras, se decidiu pela
felicidade de Zé Brasil?
Eu estava me parecendo que era assim, mas não tinha a certeza. Agora estou
compreendendo muito bem como é a coisa. Estou vendo que o nosso homem é esse Prestes. E
que quem é contra Prestes e seus companheiros, prova uma coisa: que não quer mudança
nenhuma no mundo. Que quer que tudo fique como está.
E acha justo isso, Zé? Acha justo que tudo fique como está, isto é, uns tendo
tudo e a imensa maioria não tendo nada, de nada, de nada?
Se eu achasse justo isso, eu tinha de dar razão ao coronel Tatuíra quando me
tocou da grota e se apossou da casa que eu ergui com tanto trabalho e das roças que plantei e
estavam tão bonitas. Ora, como é que eu poderei concordar com uma injustiça destas?
Prestes! Prestes!... Por isso é que tanta gente que morre por ele. Estou
compreendendo agora. É o único homem que quer o nosso bem. O resto, eh, eh, eh! é tudo
mais ou menos coronel Tatuíra...
Fonte: http://lobato.globo.com/misc_zebrasil.asp
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