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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
ELEONORA MAGALHÃES
"DOIS TIROS NAS REDAÇÕES":
jornalismo brasileiro e o caso Pimenta Neves como incidente crítico
NITERÓI
2008
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2
ELEONORA MAGALHÃES
"DOIS TIROS NAS REDAÇÕES":
jornalismo brasileiro e o caso Pimenta Neves como incidente crítico
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Universidade
Federal Fluminense como requisito para
obtenção do grau de Mestre em Comunicação.
Linha de Pesquisa: Comunicação e Mediação.
Orientador: Prof. Dr. Afonso de Albuquerque
NITERÓI
2008
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3
ELEONORA MAGALHÃES
"DOIS TIROS NAS REDAÇÕES":
jornalismo brasileiro e o caso Pimenta Neves como incidente crítico
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Universidade
Federal Fluminense como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Comunicação.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Prof. Dr. Afonso de Albuquerque – Orientador
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________
Profª. Dra. Ana Lucia Silva Enne
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antônio Roxo da Silva
Universidade Federal do Rio de Janeiro
NITERÓI
2008
4
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, fonte permanente de inspiração na
qual me espelho e a quem dedico esta dissertação.
Ao professor Afonso de Albuquerque, meu
orientador, sem o qual este trabalho não existiria. O
meu muito obrigada pelas idéias compartilhadas,
pela paciência e disponibilidade "full time".
À professora Rousiley Maia, pelo incentivo e pelas
aulas que despertaram em mim o gosto pela vida
acadêmica.
À professora Marialva Barbosa, por acreditar na
"menina de Minas"; e à professora Ana Lucia Enne,
pelo privilégio da convivência.
Ao meu padrinho, pelo carinho e pelas orações.
Aos meus tios e primos, por fazerem parte da minha
vida.
Aos amigos, pela torcida e compreensão para com
as constantes ausências. Em especial à Flávia,
minha "irmã", que esteve ao meu lado nos
momentos mais difíceis; à Viviane, por entender tão
bem os meus muitos "não vai dar, estou enrolada
com a dissertação"; e à Lilian, pelo ouvido sempre
disponível para meus desabafos. Obrigada também
ao Rodrigo, pelas risadas; e ao João, por tornar as
horas solitárias mais musicais;
À companheira de mestrado Carolina Zoccoli, pelo
apoio incansável e pela generosidade em emprestar
textos, modelos de formatação, assim como dividir
os momentos de desespero.
À dona Tiana e família, pelas velas acesas durante
a seleção do mestrado e pela calorosa acolhida em
Niterói.
Ao colega e amigo Renato Quintanilha, agradeço o
otimismo e as palavras de motivação.
À Flora e à Donna, pelo amor incondicional.
5
RESUMO
Este trabalho se propõe a analisar o caso Pimenta Neves enquanto incidente
crítico, a partir do qual os jornalistas se viram obrigados a discutir e a renegociar os
próprios métodos de trabalho. Um crime que, ao envolver jornalistas no papel de
vítima e réu, problematizou a questão do distanciamento pressuposto para a prática
de uma cobertura objetiva. Como objeto empírico, são utilizados matérias da Folha
Online e textos relacionados ao acontecimento veiculados no site de media
criticism Observatório da Imprensa. Argumenta que o incidente em questão
mobilizou a atenção da imprensa para além da cobertura, desencadeando um
debate paralelo, realizado pelos próprios jornalistas, em torno das normas e
procedimentos de conduta, bem como das relações de poder nas salas de redação.
O objetivo final é compreender como os jornalistas lidaram com os dilemas
deflagrados pelo caso e as estratégias por eles utilizadas para a reforçar sua
autoridade interpretativa, tanto no que diz respeito ao público, quanto internamente,
entre os membros da comunidade jornalística.
Palavras-chave: jornalismo, incidente crítico, poder e autoridade jornalística.
6
ABSTRACT
This dissertation discusses the murder of journalist Sandra Gomide by
Pimenta Neves, also a journalist and her former boyfriend and boss, as a critical
incident that obliged journalists covering the case to discuss and renegotiate the
proper methods of work. By doing so the journalists discussed the issue of the
necessary distance for covering the case in an objective way. The empirical corpus
of analysis includes Folha Online reporting and texts discussed in media criticism site
Observatório da Imprensa. It argues that this critical incident has mobilized a
significant debate about the norms and behaviour appropriate to newsmaking, as
well the power relations into the newsrooms. The ultimate purpose of the dissertation
is to understand how the journalists dealt with the dilemmas presented by the case,
and which measures they took in order to reinforce their interpretative authority, both
inside and outside the limits of the journalists' community.
Key-words: journalism, critical incident, power and journalistic authority
7
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................... 9
Capítulo 1................................................................................................................. 13
1.1 Dimensão industrial do jornalismo .................................................................. 14
1.2 Jornalismo e construção social da realidade .................................................. 21
1.3 Profissionalismo e Hierarquia.......................................................................... 27
Capítulo 2................................................................................................................. 38
2.1 O modelo anglo-americano de jornalismo e sua adaptação no Brasil ............ 40
2.2 O lugar do jornalista........................................................................................ 51
2.3 Os jornalistas enquanto comunidade interpretativa ........................................ 53
Capítulo 3................................................................................................................. 59
3.1 A versão virtual da Folha de São Paulo e o Caso Pimenta Neves ................. 61
3.2 “O que”: o crime enquanto categoria............................................................... 63
3.3 Dois lados de uma mesma questão: quem é o “quem”?................................. 71
O quem-vítima................................................................................................... 71
O quem-assassino............................................................................................. 76
3.4 Como e Por Que: enquadrando o relacionamento.......................................... 80
Capítulo 4................................................................................................................. 86
4.1 O caso Pimenta Neves e o site Observatório da Imprensa............................. 87
4.2 O problema do distanciamento ....................................................................... 90
4.3 Cobertura nada usual... mas válida?............................................................... 95
4.4 “Egotrip jornalística”: o incidente como revelador do cotidiano das redações. 99
Conclusão............................................................................................................... 104
Bibliografia.............................................................................................................. 107
Anexo I ................................................................................................................... 113
Anexo II .................................................................................................................. 115
8
A VÍRGULA
A vírgula pode ser uma pausa... ou não.
Não, espere.
Não espere.
Ela pode sumir com seu dinheiro.
R$ 23,4.
R$ 2,34.
Pode ser autoritária.
Aceito, obrigado.
Aceito obrigado.
Pode criar heróis.
Isso só, ele resolve.
Isso, só ele resolve.
E vilões.
Esse, juiz, é corrupto.
Esse juiz é corrupto.
Ela pode ser a solução.
Vamos perder, nada foi resolvido.
Vamos perder nada, foi resolvido.
A vírgula muda uma opinião.
Não queremos saber.
Não, queremos saber.
Uma vírgula muda tudo.
ABI: 100 anos lutando para que ninguém mude uma vírgula da sua informação.
9
INTRODUÇÃO
O crime exigiu que os jornais praticassem meta-jornalismo. Jornais e
jornalistas se viram constrangidos a expor, a exemplo de Mister M, os
truques que tornavam a profissão fascinante. O fascínio do
jornalismo que jamais algum jornal ou jornalista permitiu manchar
tornou-se dolorosamente humano, com seus vícios e pecados
expostos à exaustão e levados ao paroxismo.
(Victor Gentilli, Observatório da Imprensa, 25/8/2000)
Alguns crimes chocam e sensibilizam a opinião pública mais do que outros. O
que estudaremos ao longo deste trabalho, em particular, parece tocar não somente
a audiência, como também e intimamente - os responsáveis por narrar ao público
o acontecimento. Relatos que são produzidos tendo como pressuposto sua
veracidade, a partir da auto-afirmação de serem os jornalistas os porta-vozes
confiáveis e legítimos dos eventos da vida real (ZELIZER, 1992).
A campanha de comemoração dos 100 anos da Associação Brasileira de
Imprensa (ABI) busca reforçar essa imagem ou, nos termos de Zelizer, exemplifica
uma afirmação por parte da imprensa brasileira de “autoridade jornalística”. Porém,
em relação ao caso que abordaremos a seguir, a vírgulas podem até estar nos
devidos lugares, mas os fatos o necessariamente falam por si. Isso porque são
produzidos enquadramentos capazes de propor interpretações distintas de um
mesmo tema: um crime de sangue, com nuances passionais, cometido por um
renomado jornalista contra a ex-namorada, que também lhe era subordinada
hierarquicamente no jornal onde trabalhavam.
Em 20 de agosto de 2000, o diretor de redação do jornal O Estado de São
Paulo, Antônio Marcos Pimenta Neves, assassinou a por ele recém demitida editora
de economia, a jornalista Sandra Gomide, com dois tiros, um na cabeça e o outro
nas costas. Esses dois tiros, disparados em um haras no interior de São Paulo,
ecoaram nas redações, comovendo-as e angustiando-as, como afirmou Alberto
Dines em seu primeiro texto divulgado no site Observatório da imprensa acerca do
crime. O incidente, e sua respectiva cobertura, foram classificados pelos próprios
noticiaristas como “sem precedentes”, uma vez que os papéis de réu e vítima, assim
como de responsável por relatar ao público os “fatos” são, todos, desempenhados
por jornalistas. Acreditamos que, a partir do acontecimento, sobressaíram-se
10
interpretações que acabaram por ser mais aceitas e adotadas pelos meios de
comunicação de modo geral. Os quais, motivados pela necessidade de produzir
relatos acerca do caso, qual Mister M - conhecido por revelar os bastidores da magia
-, se viram obrigados a discutir “segredos” que envolvem a prática profissional e que
não costumam ser evidenciados, tampouco debatidos publicamente.
Dessa maneira, o que nos motivou a utilizar esse caso como objeto de estudo
foi a idéia de que ele propôs dilemas aos jornalistas. Podemos entendê-lo como um
incidente crítico (ZELIZER, 1992), na medida em que esses profissionais são
levados a contestar e negociar seus próprios padrões de ação a partir de um crime
que coloca em questão o distanciamento exigido para a prática de um “jornalismo
objetivo”. Afinal, como alcançar tal distanciamento, uma vez que os jornalistas
precisavam mediar um crime em que os principais envolvidos eram colegas de
trabalho ou mesmo amigos?
O acontecimento em questão mobilizou a atenção da imprensa para além da
cobertura, desencadeando um debate paralelo, realizado pelos próprios jornalistas,
em torno das normas e procedimentos que regem o trabalho jornalístico - ou pelos
quais os jornalistas acreditam que deveriam se guiar -, bem como das relações de
poder que permeiam a prática profissional e a estrutura hierárquica sob a qual esta
se assenta.
Dessa maneira, optamos por colher nosso objeto de análise em dois veículos
midiáticos completamente distintos em sua finalidade, mas que nos fornecerão
material para analisarmos os jornalistas sob dois ângulos: a)enquanto produtores da
notícia e, portanto, em relação ao público; b) como comunidade interpretativa (FISH,
1997), em relação entre si próprios. Para tanto, um de nossos objetos empíricos
será a versão virtual do jornal Folha de São Paulo, a Folha Online, cuja proposta é
ser um meio de comunicação a partir do qual os leitores têm acesso às informações
acerca do acontecimento, formatadas nos moldes do jornalismo tradicional ou
seja, seguindo critério de objetividade e imparcialidade. O outro é também uma
versão virtual, agora de um programa televisivo, o Observatório da Imprensa. O site
homônimo é voltado para a crítica de mídia (ou media criticism), e se coloca como
lugar de debate em torno dos produtos midiáticos, principalmente no que concerne
ao jornalismo e à ética profissional.
Este trabalho se desenvolve a partir de quatro capítulos. No primeiro, serão
resgatados aspectos relativos à lógica que envolve a produção da notícia, cujo
11
epicentro é a sala de redação. Um processo de organização social possuidor de
uma dimensão industrial, composta por rotinas de produção e relações de trabalho
que envolvem poder, a divisão hierárquica de funções e a necessidade de
obediência a prazos (deadlines) cada vez mais escassos. Portanto, pretendemos
demonstrar como a natureza industrial da divisão do trabalho jornalístico afeta o
modo como a realidade é relatada e, portanto, construída por esses profissionais.
Mais que construtores de realidade, os jornalistas funcionam como
comunidade interpretativa (FISH, 1997), reivindicando para si o papel de intérpretes
legítimos da mesma. Partindo desse pressuposto, nosso segundo capítulo objetiva
situar a questão dessa autoridade jornalística, posição auto-proclamada pelos
próprios profissionais, que se colocam enquanto único canal de mediação confiável
entre os acontecimentos e o público. Começaremos, porém, por desmistificar o
jornalismo praticado atualmente no Brasil, vendo-o como uma adaptação ou
naturalização (ALBUQUERQUE, 2008) de um modelo importado anglo-americano,
usualmente aceito como universal. Assim, daremos contornos mais definidos ao
modelo de jornalismo praticado nos dias atuais pelos profissionais brasileiros, de
modo a situarmos o papel que esses ocupam e como eles buscam a se autorizar
como intérpretes da realidade, através da projeção de uma imagem de isenção
profissional (CASTILHO, 2005), parcialidade, objetividade; enfim, de distanciamento.
Traçado um perfil do profissional da imprensa nacional, buscaremos
identificar como o mesmo se posiciona em relação ao seu público. Para tanto,
avaliaremos a forma encontrada pelos responsáveis pela produção da notícia para
lidar com a cobertura do caso Pimenta Neves/Sandra Gomide em relação ao grande
público, a partir das matérias divulgadas pela Folha Online. Levaremos em conta
que as coberturas de incidentes como esse, as quais comumente se traduzem em
uma espécie de julgamento moral (GLASSER & ETTEMA, 1991), com vistas a inferir
“ordem” ao mundo. Essa ordenação encontra-se expressa nos jornais, compostas
por quadros de análise (ou enquadramentos) que, em certa medida, reproduzem
juízos de valor e importância, categorizam, rotulam e humanizam ou desumanizam
personagens presentes na narrativa (ENTMAN, 1991). A terceira parte deste
trabalho se propõe, então, a lançar luz sobre o dilema enfrentado por nossos
jornalistas de falar como observadores distanciados de um caso tão particular e
tocante à imprensa de modo geral.
12
O capítulo final desta dissertação desloca o foco de análise, dedicando-se a
pensar o crime que envolveu os ex-namorados e colegas de profissão segundo a
ótica dos jornalistas. O caso Pimenta Neves/Sandra Gomide despertou um debate
para além da cobertura, entre os próprios responsáveis pela produção da notícia.
Um debate público em torno da natureza da atividade jornalística e os dilemas que a
cercam, que teve como um dos principais pontos de convergência o site
Observatório da Imprensa. Diante do crime que colocou em xeque a questão do
distanciamento, os jornalistas se viram obrigados a discutir, rever e esclarecer seus
métodos de trabalho, as regras que conduzem a atividade profissional. A hipótese
que se pretende testar é que, nessa “troca argumentativa”, os jornalistas buscam,
em última instância, reafirmarem-se enquanto comunidade interpretativa e, portanto,
ter sua autoridade jornalística reforçada.
Por fim, o desafio ao qual nos impomos é pensar o jornalismo em sentido lato,
e o praticado no Brasil, em sentido estrito. A palavra “desafio”, porém, merece
destaque. Assim como aqueles envolvidos na cobertura e no debate em torno do
caso, este estudo é desenvolvido por uma jornalista. E a busca do “caminho do
meio” entre o pragmatismo científico e a proximidade com o objeto contemplado foi
tremendo. Ao leitor, pedimos que considere os eventuais desvios e aceite o convite
para compartilhar de nossas descobertas.
13
CAPÍTULO 1
O jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, 63, depôs nesta quinta-
feira por quase quatro horas. Confessou que matou a ex-namorada,
negou que o crime tenha sido premeditado e disse que matou
porque Sandra Gomide, 32, o traía no campo profissional e
pessoalmente. (Folha Online, 28 de abril de 2000)
O trecho foi extraído do começo de uma, dentre as muitas matérias
divulgadas pela Folha Online acerca do crime em que vítima e assassino são
jornalistas. E nos leva a refletir quanto ao processo de produção da notícia. Pimenta
Neves afirma que Sandra Gomide, sua namorada, o traía. E a traição, de acordo
com ele, extrapolava o campo pessoal. Sandra Gomide, que também era
subordinada de Pimenta na redação do jornal Estado de São Paulo, teria, em algum
momento, desafiado o poder quase absoluto de seu chefe. Ou seja, de acordo com
a alegação do ex-diretor de redação, a traição foi também profissional e, portanto,
envolveu o jornalismo.
Levaremos, portanto, a assertiva de Pimenta Neves em consideração para
delinearmos os contornos deste capítulo, que propõe discutir o processo de
organização social da produção da notícia. Para tanto, tentaremos problematizar a
dimensão industrial do jornalismo, da qual fazem parte as rotinas de produção, as
relações de trabalho e as hierarquias dentro das redações. Optamos por fracionar
nossa discussão em três partes, todas norteadas pela noção de divisão de trabalho.
Na primeira, discutiremos questões relativas à natureza industrial da divisão
do trabalho jornalístico. Consideraremos essa divisão do trabalho sob duas
perspectivas: temporal e espacial. Se os jornalistas trabalham “contra” o tempo,
seguindo prazos ou dead lines, também identificamos uma divisão “física” nas
redações: setores de economia, política, esportes, internacional etc. Nesses
espaços atuam profissionais especializados, porém não necessariamente (ou,
talvez, nem desejavelmente) especialistas.
A divisão de trabalho exerce um impacto sobre a forma como a realidade é
relatada/construída pelos jornalistas. Para isso, é importante se levar em conta que
o jornalista atua no campo da construção social da realidade. Ele é agente, na
medida em que constrói uma realidade pública, mas também retira sua matéria-
prima – os fatos – da realidade da vida cotidiana.
14
A relação do jornalista com esse mundo, que por ele é coberto, não
é uma relação direta, mas uma relação mediada por interesses
práticos: como descrever um mundo de atividades dentro dos limites
dos prazos finais de publicações e das limitações de espaço das
notícias; como determinar o caráter factual dos relatos; como expor
com precisão os eventos numa matéria; e assim por diante.
(FISHMAN, 1990, p.12)
Assim, a construção social da realidade pelos jornalistas será a temática
central da segunda parte deste capítulo.
Por último, diremos que a divisão do trabalho produz hierarquias e, por
conseguinte, poder. Como em uma fábrica, no jornalismo também a “base da
produção” e “aqueles que estão no comando”. E, como explica Gans (1980, p.102;
tradução nossa), “os superiores sempre têm autonomia individual maior do que a
base, e os últimos nunca saberão quando seus editores estarão dispostos a exercer
sua autoridade”
1
. Buscaremos propor, em última análise, que o jornalismo, tal como
é exercido hegemonicamente no Brasil, é uma profissão autoritária (ABRAMO,
1988). Afinal, não foi, em certa medida, o que fez Pimenta Neves ao assassinar
Sandra Gomide: exercer sua autoridade?
1.1 Dimensão industrial do jornalismo
Apesar de muitos verem no jornalismo um trabalho social, sobretudo os
próprios jornalistas, é inegável seu caráter comercial. Para além da sobrevivência da
empresa jornalística, dependente do lucro advindo da venda sobretudo de espaços
para anúncios publicitários, o jornalista trabalha imerso na lógica da oferta e da
procura.
As pessoas envolvidas na seleção da história podem ser vistas
como participantes de uma transação quase comercial, na qual
quem sugere a história são vendedores, oferecendo suas idéias aos
seletores de histórias, que agem como compradores
2
(TUCHMAN,
1979, p.90; tradução nossa).
Ou seja, os pauteiros oferecem ou “vendem”, no jargão jornalístico, as
matérias aos editores. Para além de um lado “comercial” do jornalismo, toda uma
1
Do original: “Superiors always have more individual autonomy than underlings, and the latter never
know when their editors are likely to exercise their authority”.
2
Do original: “The people involved in story selection can be viewed as participants in a quasi-
commercial transaction in witch story suggests are sellers, offering their ideas to story selectors acting
as buyers”.
15
estrutura posta em prática para que o trabalho se desenvolva; estrutura essa que
identificamos como industrial, atuando na divisão do trabalho para um melhor
aproveitamento do tempo e da mão-de-obra, isto é, dos jornalistas.
Assim, buscaremos evidenciar, na presente seção, a divisão do trabalho no
jornalismo como industrial e demonstrar como ela acontece. Podemos dizer que
essa divisão de trabalho ocorre temporal e espacialmente, ou seja, no âmbito que
envolve prazos para a produção da notícia e o local onde esta é construída - as
redações o que, por conseguinte, se reflete no próprio formato do jornal, dividido
em editorias e/ou cadernos.
Desse modo, a temporalidade é uma das dimensões da produção da notícia.
E a “luta contra o tempo” constitui-se em uma de suas facetas mais familiares aos
jornalistas, e tem na noção de prazo (deadline) um conceito central.
Fundamentalmente, as divisões de poder nas organizações
noticiosas estão ofuscadas, e as divisões de trabalho determinadas,
pelo deadline. O deadline, além disso, leva à seleção da história e
ao processo de produção, que se torna rotinizado e permanece
virtualmente imutável ao longo dos anos uma das razões porq
jornalistas descrevem suas organizações como linhas de
montagem
3
. (GANS, 1980, p.109; tradução nossa)
Nessa linha de montagem do jornalismo, perder um prazo (deadline) significa,
em última instância, prejuízo. Entretanto, não é algo restrito à esfera profissional,
uma vez que não entregar uma matéria a tempo de ser publicada ou ir ao ar pode
acarretar uma demissão dos jornalistas envolvidos na divulgação das notícias. O
prejuízo em questão diz, sobretudo, de perdas pecuniárias para os proprietários dos
jornais, pois “prazos perdidos potencialmente custam dinheiro
4
(TUCHMAN, 1978,
p.73; tradução nossa).
Portanto, todos os envolvidos na produção de um jornal devem estar muito
bem treinados quanto às normas profissionais e às internas da empresa, o que evita
desperdício de tempo na escala final de produção: quando a notícia chega às mãos
dos editores, os responsáveis por eventuais correções e pela aprovação da matéria.
3
Do original: “Ultimately, the division of power in news organizations are overshadowed, and the
division of labor determined, by the deadline. The dead line, furthermore, leads to story selection and
production process that become routinized and remains virtually unchanged over the years which is
one reason why journalists describe their organizations as assembly lines”.
4
Do original: “... missed deadlines do potentially cost money…”
16
Afinal, como mencionamos, o desperdício de tempo reflete no desempenho
comercial da instituição.
O jornal é um complilação de ‘estórias’. Se um excessivo número de
‘estórias’ tiverem de ser reescritas, o jornal não conseguirá cumprir
os seus prazos e os lucros sofrerão com isso. Os caminhões que
transportam o jornal para as regiões limítrofes partirão atrasados; os
seus condutores poderão ter de receber horas extraordinárias. Se
uma edição se atrasa, o horário das edições seguintes será
afectado; os tipógrafos podem exigir o pagamento de horas-
extraordinárias. Além disso, se as últimas edições da manhã não
chegarem às bancas, os leitores podem comprar o jornal rival à
venda, diminuindo assim os lucros da companhia. Os jornalistas
receiam que as vendas futuras possam então estar em risco. Ao ler
o jornal rival, o leitor pode achar que este é ‘superior’ e mudar os
seus hábitos de compra. (TUCHMAN, 1993, p.77)
A autora se refere ao jornal impresso, mas os radiofônicos, virtuais e
televisionados seguem uma lógica semelhante. Podemos dizer, porém, que um
grande diferencial: a forma como os jornalistas desses meios aprendem a lidar com
o "fator tempo". Nesse tipo de mídia, o dead line é levado às últimas conseqüências.
Isso faz com que seja assaz tênue a linha entre aquela matéria que vai ao ar (no
caso específico dos telejornais) e que, portanto, passa a existir para o telespectador,
e aquela que não ficou pronta a tempo de ser veiculada. As notícias, dependendo de
sua "importância", podem ser divulgadas quase simultaneamente ao acontecimento.
Ou, como gostam de dizer os jornalistas, "em tempo real". Podemos lembrar como
exemplo marcante o atentado de 11 de setembro de 2001, quando acompanhamos,
"ao vivo", o desenrolar dos ataques às Torres Gêmeas em Nova Iorque. Ao casar
imagem e som, o telejornalismo nos a impressão de que presenciamos o fato
sem, muitas vezes, termos plena consciência de que, na verdade, estamos
assistindo a um acontecimento que é transmitido através de uma mídia.
Além disso, outro diferencial é que o produto, ou seja, o telejornal ou o
noticiário, não está à venda da maneira que conhecemos: fisicamente, nas bancas.
Entretanto, em todos os casos, a maior parte do lucro é obtida por meio dos
anunciantes, seja mediante a venda de espaço físico no jornal ou tempo para a
propaganda os intervalos comerciais. E o valor desses “espaços” na grade de
programação é diretamente proporcional à tiragem vendida ou à audiência
alcançada pelo veículo de comunicação em questão.
17
Como se vê, o profissional do jornalismo é condicionado a trabalhar
obedecendo a prazos rígidos. Afinal, “matéria boa é a que vai ao ar”, ou no, caso
dos jornais impressos, o é possível atrasar uma edição sequer, uma vez que se
corre o risco de perder o leitor para a concorrência.
Os jornalistas participam do processo de produção das notícias, mas não são
os únicos agentes que dele participam. Molotch e Leste (in Traquina, 1993),
consideram os acontecimentos como constituídos principalmente pelos a)
promotores de notícias, que seriam aqueles indivíduos que se ocupam em identificar
as ocorrências, tornando-as observáveis (caso, por exemplo, dos assessores de
imprensa e demais fontes); b) em seguida, viriam os jornalistas, incluindo os
repórteres e o pessoal de apuração e edição, que trabalham a partir desse material
fornecido pelos promotores; c) no final dessa cadeia encontram-se os consumidores
da notícias, a audiência, "que analogamente assistem a determinadas ocorrências
disponibilizadas como recursos pelos meios de comunicação social e criam, desse
modo, nos seus espíritos, uma sensação do tempo público" (p.38).
Também dentro dos jornais ocorre um procedimento similar, à medida que
"divisão do trabalho", mas praticada de forma singular. Os contornos que distinguem
uma função da outra, em determinados aspectos, encontram-se bem definidos (caso
das divisões verticais), entretanto, essas fronteiras tendem a se cruzar, sobretudo no
que diz das divisões horizontes, nas quais os jornalistas ocupam cargos
hierarquicamente similares. Obedecendo a essa lógica, a maioria absoluta das
redações é formada por generalistas, uma vez que todos os jornalistas devem dar
conta, se não de todos, ao menos de boa parte dos assuntos que possam vir a ser
notícia. Entretanto, uma divisão física nas redações, uma setorização formada
não por especialistas, e, sim, por profissionais especializados.
A dispersão dos repórteres por território, especialização institucional,
e temas é formalizada na divisão de um jornal ou noticiário. Um
jornal é dividido em seções e páginas. Suas primeiras páginas
contêm, de modo geral, histórias factuais (objetivas), potencialmente
retiradas de qualquer lugar e todo lugar na rede de informações.
Assuntos especializados atuais, como esportes, mulheres e notícias
financeiras, aparecem em páginas delineadas claramente, reunidas
em seções separadas
5
. (TUCHMAN, 1978, p.97; tradução nossa)
5
Do original: “The dispersion of reporters by territory, institutional specialization, and topic is
formalized in the division of a newspaper or newscast. A newspaper is divided into sections and
pages. Its first pages contain factual (objective) general stories, potentially drawing from anywhere
18
Tanto essa divisão física do jornal em seções, tópicos ou cadernos, quanto a
atuação de profissionais especializados, mas não especialistas, estão presentes e
caracterizam, em última instância, a forma como o cotidiano terá seus contornos
delineados nas páginas ou no espelho
6
de cada edição. Nessa “linha de produção”
que insistimos ser a feitura de um jornal, todos os operários envolvidos devem ser
polivalentes, capazes de atuar em diversas frentes. Ou melhor, um produtor ou um
pauteiro deve ser capaz de produzir pautas sobre assuntos variados, assim como os
repórteres precisam estar aptos a cobrir matérias sobre uma gama de assuntos,
desde cultura a política, economia e polícia.
Especialidades são ignoradas quando necessário. Todo mundo
deve ser capaz de executar o trabalho de todo mundo. (...) Para
cada história reconhecidamente interessante a ser coberta, cada
especialista deve ser um generalista, e vice-versa. Nas palavras de
vários repórteres, cada um deve “ser um profissional” capaz de
cobrir tudo e qualquer coisa, porque cada um pode ser designado a
qualquer coisa a qualquer momento
7
. (TUCHMAN, 1978, p.67;
tradução nossa)
E, se os jornalistas não devem ser especialistas, estes entram em cena, mas
como fontes da notícia. O jornal é um espaço onde os profissionais da imprensa
atuam em relação com as fontes, geralmente especialistas e autoridades, condição
intrínseca ao exercício do trabalho jornalístico. Relação essa que envolve a defesa
de interesses e negociação permanente entre ambas as partes. Pois, “apesar da
noção de que o jornalismo transmita informação das fontes para a audiência sugira
um processo linear, na realidade o processo é circular, complicado, além disso, por
um grande número de reviravoltas
8
”. (GANS, 1980, p.80, tradução nossa) Isso
and everywhere in the news net. Specialized topical subjects, such as sports, women’s, and financial
news, appear on clearly delineated pages placed together in separate sections.”
6
Espelho a relação e a ordem de entrada das matérias no telejornal, sua divisão por blocos, a
previsão dos comerciais, chamadas e encerramento. Como a própria palavra indica, reflete o
telejornal. É feito pelo editor-chefe, e todas as pessoas envolvidas na operação do programa recebem
uma cópia do espelho. As matérias colocadas no espelho são identificadas por retrancas"
(PATERNOSTRO, 1999, p.142).
7
Do original: “Specialties are ignored when necessary. Everyone must be capable of doing everyone
else’s work. (…) For all recognizably newsworthy stories to be covered, each specialist must be a
generalist, and vice versa. To quote several reporters, each must “be a professional” capable of
covering everything and anything, because each may be assigned anything at any time.”
8
Do original: “Although the notion that journalists transmit information from sources to audiences
suggests a linear process, in reality the process is circular, complicated further by a large number of
feedbacks loops”.
19
porque, grosso modo, são as fontes que agendam os acontecimentos e os colocam
à disposição dos repórteres. Entretanto, uma fonte pode contatar o jornalista e,
apesar disso, não ter sua informação veiculada. De outro lado, os jornalistas
precisam ter acesso às fontes, e essas precisam estar disponíveis e serem
confiáveis.
Como, porém, é possível avaliar a veracidade de uma informação transmitida
por uma fonte? Ou, mais especificamente: como saber se uma fonte é confiável?
Esse é um dilema com o qual o jornalista precisa conviver. E, para saná-lo, a
imprensa se cerca de um conjunto de procedimentos, como o uso de fontes
autorizadas ou oficiais. No relato jornalístico é clara a preferência por fontes
institucionalizadas, que muitas vezes mantêm contato com os jornalistas
responsáveis pela cobertura das notícias. Além do mais, “as fontes de notícias,
embora teoricamente possam provir de qualquer lugar, na pŕatica têm um
recrutamento e acesso que refletem as hierarquias do país e da sociedade
9
” (GANS,
1980, p.119; tradução nossa).
Assim, o jornalista se resguarda. Afinal, não foi ele quem expressou essa ou
aquela opinião, mas sim a fonte, que teve parte de sua afirmação citada ao longo da
matéria. Porém, se há a clara preferência por fontes autorizadas, existe espaço para
os “cidadãos comuns”, desde que a informação seja transmitida de forma
considerada adequada ou pertinente pelos jornalistas.
Talvez as fontes mais qualificadas sejam as organizações que
executem tarefas equivalentes a reportagens de campo, ofereçam
os resultados de seu trabalho como “exclusivos” e que podem se
permitir a fazer isso anonimamente, renunciando às recompensas
da publicidade
10
. (GANS, 1980, p.121; tradução nossa)
O que interessa ao jornalista é se proteger das criticas, preservar e sempre
que possível reafirmar a imagem de credibilidade perseguida por toda a classe.
Além de, claro, conseguir as informações que lhe possibilitem produzir a notícia.
9
Do original: “...while in theory sources can come from anywhere, in practice, their recruitment and
their access to journalists reflects the hierarchies of nation and society”.
10
Do original: “Perhaps the most able sources are organizations that carry out the equivalent of
investigative reporting, offer the results of their work as “exclusives”, and can afford to do so
anonymously, foregoing the rewards of publicity.”
20
Essas estratégias servem, afinal, para que o profissional se diga imparcial em
seu relato. Portanto, “imparcialidade inclui demonstrar que alguém fez todo o
possível para ser preciso na intenção de manter a credibilidade e evitar tanto
reprimendas dos superiores como o perigo onipresente de processos de
difamação
11
.” (TUCHMAN,1978, p.83)
E se são as fontes que, na imensa maioria das vezes, disponibilizam as
informações acerca das notícias aos jornalistas, estes quase sempre têm nas mãos
mais informação disponível do que poderia ser usada. Em virtude do pouco tempo e
do pouco espaço que dispõem para tratar dos vários assuntos do cotidiano, os
jornalistas têm que desenvolver duas capacidades: a de generalizar e a de resumir.
Todos os jornalistas têm que se apoiar numa base de dados de
número limitado para não serem inundados por um volume de
informação maior do que podem rapidamente processar e adaptar
ao limitado tempo de transmissão ou ao limitado espaço de
impressão (GANS, 1980, p.17).
A relação com as fontes é fruto desse contexto. Em geral,
devido ao pequeno número de pessoal e à pequena disponibilidade
de tempo, os jornalistas se mostram ativos apenas na busca de um
pequeno número de fontes regulares que anteriormente tenham se
mostrado disponíveis e adequadas. (GANS, 1980, p.1; grifo nosso)
Por fontes "adequadas", leia-se: é preciso ser alguém na posição de saber o
que é dito e que esteja "habilitado" a isso (FISHMAN, 1980). Assim, as fontes oficiais
se constituem em agentes fundamentais na construção das notícias. Porém, e de
modo geral, é imprescindível aos jornalistas fazer julgamentos que decidam quanto
à pertinências das informações, ou melhor, que decidam o que “entrará” e o que
“ficará de fora” em uma dada matéria.
A palavra crucial é “limitada”, porque o que distingue jornalismo dos
estudos literários e de ciência-social da América é o prazo
(deadline), que é imutável na televisão e pode ser estendido nas
revistas apenas sob pena de altos custos adicionais. (GANS, 1980,
p.82)
11 Do original: “Impartiality includes demonstrating that one does everything possible to be accurate
so as to maintain credibility and aboid both reprimands from superiors and the omnipresent danger of
libel suits”.
21
E é seguindo uma rotina de produção, como vimos, limitada por prazos e
guiada por uma lógica comercial, que os jornalistas constroem a realidade que
encontramos nas páginas dos jornais ou nos noticiários dos rádios e das TVs. Uma
realidade mantida, em sua maior parte, com base em relatos de fontes
especializadas e/ou autorizadas. Uma realidade contada a partir de um processo
industrial de manipulação das notícias. Enfim, uma “realidade ressaltada” (Gans,
1980, p.92). Em nosso próximo tópico, discorreremos justamente sobre o impacto
que a divisão do trabalho na produção jornalística exerce sobre a forma como a
realidade é construída nos noticiários.
1.2 Jornalismo e construção social da realidade
Podemos dizer, em certa medida, que industrializamos nosso acesso à
realidade, o que produz uma sensação de escassez de conhecimento acerca de
nosso próprio cotidiano. Boa parte do que discutimos nas rodas de amigos extrapola
aquilo que “vimos com nossos próprios olhos, presencialmente”, e que chegou a nós
através dos meios de comunicação de massas. E, aqui, a imprensa ocupa um papel
central, uma vez que reivindica para si o papel de legítimo mediador entre as
pessoas e a realidade cotidiana, ou melhor, de “agente virtuoso da informação”
(ALBUQUERQUE, 2007, p.2). Dizemos que há a industrialização de nosso acesso à
realidade porque o que lemos, vemos ou ouvimos na imprensa atua no campo da
construção social da realidade obedecendo a uma gica industrial, no sentido de
tentar padronizar o produto, ou seja, a forma como são “fabricadas” as notícias.
Nesta dissertação pretendemos discutir os dilemas enfrentados pelos
jornalistas em relação à construção do relato em torno de um crime que envolve, em
papéis antagônicos, porém principais, colegas de profissão. Mais que isso, colegas
de profissão dos próprios responsáveis por narrar o acontecimento.
Para tanto, é preciso levar em conta que os jornalistas atuam na construção
da realidade de um modo muito particular. Não se pode falar em um olhar subjetivo.
Aquele profissional boêmio e solitário é, hoje, personagem de ficção. Ao menos no
que concerne ao modelo de jornalismo americano, conforme o qual os profissionais
brasileiros se guiam (falaremos mais sobre modelos de jornalismo, e o americano
em particular, no próximo capítulo). Dentro das rotinas cada vez mais escassas de
tempo, a imagem romântica do flaneur perdeu seu lugar. Se a realidade da vida
cotidiana apresenta-se como um mundo intersubjetivo, fruto da contínua interação
22
entre os sujeitos (BERGER e LUCKMANN, 2002), no jornalismo a realidade, além de
pública, é também algo construído coletivamente, seja dentro de uma relação
jornalista-jornalista, ou com a colaboração de pessoas que não do grupo dos
jornalistas, sobretudo os especialistas as fontes. Realidade essa, construída
através de generalizações.
O jornalista extrai a matéria-prima de seu trabalho, ou seja, as notícias, da
vida cotidiana. No livro “A construção social da realidade”, Berger e Luckmann
(2002) ressaltam que a “realidade da vida cotidiana é admitida como sendo a
realidade” (p. 40, grifo dos autores). Ou seja, entre as múltiplas realidades
existentes, ela se apresenta como a realidade por excelência.
O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma
realidade certa pelos membros ordinários da sociedade na conduta
subjetivamente dotada de sentido que imprimem a suas vidas, mas
também é um mundo que se origina no pensamento e na ação dos
homens comuns, sendo afirmado como real por eles. (BERGER e
LUCKMANN, 2002, p.36)
Um dos trabalhos dos jornalistas é tentar não apenas produzir narrativas que
busquem descrever o mundo social, mas também tentar torná-lo inteligível por meio
desses relatos. Entretanto, “é inútil encarar o noticiário como distorcendo ou como
refletindo a realidade, porque as ‘realidades’ são feitas e o noticiário é parte do
sistema que as faz” (FISHMAN, 1990, p.10). Além do mais, há uma dimensão
industrial na produção de notícias.
O noticiário é uma forma determinante de conhecimento, não porque
o mundo fora vem sob formas determinantes, mas porque as
pessoas empregam métodos específicos que procuram organizar o
mundo em algo coerente. O noticiário é o resultado dos métodos
empregados pelos jornalistas. (FISHMAN, 1990, p.12)
Rotinas escassas de tempo, generalizações, matéria-prima. Palavras que
usamos logo acima, nos parágrafos iniciais desta seção, e que nos dão algumas
pistas acerca da relação entre jornalistas e a construção social da realidade.
Começamos este capítulo afirmando que uma divisão de trabalho no jornalismo;
e que ela é industrial. Agora, veremos que essa divisão exerce impacto sobre a
forma como a realidade é relatada/construída pelos profissionais de imprensa.
Apesar de o jornalismo trabalhar com o inesperado e o inédito, o dia-a-dia das
redações nada tem de caótico em termos de organização. O trabalho é planejado
23
diariamente, com matérias agendadas para serem feitas em horários determinados,
dentro do turno de trabalho. Há também o caso de reportagens especiais, que
podem ser trabalhadas ao longo de semanas, ou mesmo meses, pela equipe e
reportagem. Os jornalistas fazem, sim, plantões, mas o efetivo é reduzido nessas
ocasiões. Em um dia “normal” de trabalho, o profissional tem horário para chegar e
para deixar a empresa, o que significa que as notícias deverão obedecer a um
horário para “acontecer”.
Ao discorrer acerca da realidade profissional norte-americana, Tuchman
evidencia a questão:
Uma conseqüência das horas sincronizadas de trabalho é que
poucos repórteres estão disponíveis para cobrir histórias antes das
dez da manhã ou depois das sete da tarde durante os dias da
semana, e menos ainda nesses horários nos fins de semana. Esse
arranjo social influencia na avaliação das ocorrências como eventos
noticiáveis em potencial
12
. (Tuchman, 1978, p.42; tradução nossa)
Desse modo, a realidade que vemos e lemos nos jornais cotidianos é
construída de modo a “caber” em um modo de produção industrial, submetida a
horários e à disponibilidade de pessoal para poder fazer a cobertura da notícia.
Grosso modo, é uma realidade com hora para acontecer, para começar e acabar,
salvo casos excepcionais.
Ao trabalhar com o cotidiano, a imprensa se imersa em um mundo de
informações muito mais abundantes do que poderia dar conta de “traduzir” nos
noticiários, são mais histórias do que é possível de ser processado na linha de
produção que acreditamos ser o jornalismo. Para conseguir “dar conta” desse
trabalho, os jornalistas fazem uma espécie de “categorização da notícia”. Como
qualquer outra organização complexa, a imprensa não pode processar o fenômeno
idiossincrático. A forma encontrada pelos meios de comunicação de notícia para
lidar com a gama de forças que compõe uma dada ocorrência foi reduzir todo
fenômeno a classificações conhecidas/familiares (TUCHMAN, 1978).
A forma como a realidade é retratada corresponde a esquemas tipificadores:
o assassino, a vítima, o israelense, o americano, o africano, o carioca, o mineiro, o
12
Do original: “One consequence of synchronized working hours is that few reporters are available to
cover stories before 10:00 A.M. of after 7:00 P.M. on weekdays, and even fewer at those times on
weekends. This social arrangements influences the assessment of occurrences as potential news
events”.
24
homem do campo, o sujeito urbano. Generalizações, ou melhor, imagens que
ajudam a construir um mundo coerente.
Assim, o exame de tempo e tipificações sugerem que os
profissionais da imprensa usam tipificações para transformar
ocorrências idiossincráticas do dia-a-dia em matérias-primas que
podem estar sujeitas a processamento de rotina e disseminação.
Tipificações se constituem em problemas práticos, incluindo aqueles
colocados pela sincronização do jornalismo com quais ocorrências
geralmente se desdobrarão. Elas impõem ordem sobre a matéria-
prima ou notícia e, então, reduz a variabilidade (idiossincrasia) do
excesso de ocorrências. Elas também canalizam a percepção dos
jornalistas acerca do mundo cotidiano, impondo uma moldura sobre
as faixas da vida diária
13
. (TUCHMAN, 1978, p.58; tradução nossa)
Essas “molduras” remetem ao conceito de enquadramento da mídia,
entendido como uma espécie de recorte da realidade promovido por jornais e outros
meios de comunicação. Inclui critérios de organização e hierarquização dos vários
elementos que constituem a notícia. “Os enquadramentos de media são padrões
persistentes de cognição, de interpretação e de apresentação, de seleção, de ênfase
e de exclusão, através dos quais os manipuladores-de-símbolos organizam
habitualmente o discurso, seja ele visual ou verbal” (GITLIN, 1980, p.6). Esses
“quadros interpretativos” apresentados pela mídia oferecem à audiência/aos
leitores/ouvintes, pistas que promovem interpretações específicas dos
acontecimentos (ENTMAN, 1991). Além disso, possibilitam aos jornalistas processar,
rápida e rotineiramente, grandes quantidades de informação.
Desse modo, podemos dizer que, em suas matérias, o jornalismo nos fornece
“modelos” que servem de analogia para entendermos e tornar um lugar mais seguro
o mundo que nos cerca. O processo de tipificação, entretanto, não é algo
completamente dado ou interiorizado. É fruto também de negociações. No caso
Pimenta Neves/Sandra Gomide, o assassino não era um marginal ordinário. Era um
sujeito de renome, que tinha, em certa medida, poder. Pimenta Neves era um
jornalista gabaritado e respeitado entre seus pares. A vítima também fazia parte do
13
Thus far, the examination of time and typifications suggests that newsworkers use typifications to
transform the idiosyncratic occurrences of the everyday world into raw materials that can be subjected
to routine processing and dissemination. Typifications are constituted in practical problems, including
those posed by the synchronization of newswork with how occurrences generally unfold. They impose
order upon the raw material or news and so reduce variability (idiosyncratic) of the glut of occurrences.
They also channel the newsworkers’ perceptions of the everyday world by imposing a frame upon
strips of daily life.
25
“clã” de jornalistas. Daí a dificuldade de se falar sobre o assassinato: era um “crime
em família”.
Além disso, e ainda de acordo com Tuchman, os jornalistas alegam que se
valem de critérios para definir o que será ou o notícia, e insistem que a tipificação
da mesma depende de seu conteúdo. Para eles, haveria “categorias” de notícias,
umas mais “factuais” ou “quentes” que outras. Assim, a principal distinção feita pelos
jornalistas seria entre hard news e sua antítese, soft news. Autores de bibliografias
técnicas do jornalismo, e os próprios jornalistas, diferenciam os dois “tipos” de
notícias, explicando que hard news correspondem às “notícias comuns e mais
importantes” (YORKE, 1998, p.197). Ou ainda: hard news se refere a uma notícias
quente, séria, importante. É o contrários de soft news(PATERNOSTRO, 1999, p.
144).
Desse modo, soft news seria menos o importante e mais aquilo que é
interessante. Porém, Tuchman destaca um aspecto importante dessa classificação:
as distinções se sobrepõem. Frequentemente é difícil, se não
impossível, decidir se um evento é interessante ou importante, ou os
dois, interessante e importante. De fato, o mesmo evento pode ser
tratado tanto quanto uma notícia hard ou soft
14
(TUCHMAN, 1978,
p.48; tradução nossa).
É importante ter em mente que os procedimentos jornalísticos, que incluem
seleção, ênfase e exclusão das notícias, levam à “naturalização“ de determinadas
perspectivas acerca do mundo em detrimento de outras.
As rotinas de trabalho do jornalismo, estabelecidas com vistas aos
interesses políticos e econômicos das empresas de notícias, se
combinam normal e regularmente para privilegiar determinadas
versões da realidade, preterindo outras. Dia a dia os procedimentos
organizacionais normais escolhem “a matéria de reportagem”,
identificam os protagonistas e as questões, e decidem as atitudes a
serem tomadas para com elas. Apenas episodicamente, em
momentos de crises políticas e mudanças em larga escala na
pervasiva ideologia hegemônica, é que os administradores e os
proprietários intervêem diretamente para reajustar ou reforçar as
rotinas prevalecentes no trabalho jornalístico. (GITLIN, 1980, p.3)
Ao lado dos procedimentos utilizados pelos jornalistas para a produção da
notícias está a objetividade, que funciona como protocolo de organização do
14
Do original: "the distinctions overlap. Frequently it is difficult, if not impossible, to decide whether an
event is interesting or important or is both interesting and important. Indeed, the same event may be
treated as either a hard-or-soft-news story”.
26
discurso jornalístico. Objetividade diz dos procedimentos técnicos de trabalho,
normas de conduta intrínsecas a cada profissão, como a de médico ou advogado.
Para além disso, e assim como o uso de citações/aspas, a “objectividade pode ser
vista como um ritual estratégico, protegendo os jornalistas dos riscos da sua
profissão” (TUCHMAN in TRAQUINA, 1993, p.74). Assim, uma noção operativa de
objetividade é usada para “minimizar os riscos impostos pelos prazos de entrega de
material, pelos processos difamatórios e pelas reprimendas dos superiores” (idem,
p.76).
Tuchman (in TRAQUINA, 1993) indica outros quatro procedimentos
estratégicos adotados por aqueles profissionais que definem o que objetividade é
como se esses profissionais seguissem um receituário em torno do qual podem se
dizer objetivos):
1 Apresentação de possibilidades conflituais, ou seja, os jornalistas devem
apresentar todos os lados da notícia, o que envolve ouvir e dar voz, em tese, a
todos os envolvidos na questão, apresentando suas versões da história;
2 Apresentação de provas auxiliares, com objetivo de corroborar uma afirmação
encontrada na matéria. A apresentação de provas auxiliares consiste na
localização e citação de ‘factos’ suplementares, que são geralmente aceites
como ‘verdadeiros’” (idem, p.80). Agindo desse modo, o jornalista poderá ratificar
a afirmação de que “os fatos falam por si”. E, “contra fatos, não argumentos”, ou
seja, evitam-se processos contra difamação ou a reprimenda do editor;
3 Uso judicioso das aspas - funcionam também como uma forma de prova
suplementar, na medida em que os jornalistas citam as opiniões de outras e,
assim, deixam de participar do relato para deixarem “os fatos falarem por si”;
4 Estruturação da informação numa seqüência apropriada - a informação mais
importante relativa a um acontecimento é suposta ser apresentada no primeiro
parágrafo e, cada parágrafo subseqüente, deve conter informação de menor
importância. A estrutura da notícia assemelha-se, do ponto de vista teórico, a
uma pirâmide invertida. Assim, é taxativamente aconselhável que seis perguntas-
chave sejam respondidas logo no começo da matéria: quem, o que, quando,
27
onde, porque e como. As respostas a essas indagações correspondem ao que os
homens da mídia chamam lead
15
.
No Brasil, porém, o termo “objetividade” também é concebido pela classe
jornalística como antônimo de “subjetividade”. Mais que procedimentos de conduta,
ser objetivo exige que o jornalista seja alguém despido de valores e julgamentos; ou
seja, mais que um sujeito blasé (SIMMEL, 1991), alguém distante da própria
humanidade.
O caso Pimenta Neves é exemplar justamente por isto: é uma boa
oportunidade para se pensar esse fazer-jornalístico. Ou, como resume Alberto Dines
em um artigo disponibilizado no site Observatório da Imprensa: “não há precedentes,
aqui ou no exterior, de como cobrir uma tragédia deste porte e que radiografa de
forma tão cruel as entranhas do universo jornalístico” (DINES, 25 agosto 2000). A
morte de Sandra Gomide é um crime de sangue quase como os outros - o quase,
entretanto, muda tudo. O assassinato em questão tem algo que o distingue dos
demais: vítima e algoz são, ambos, jornalistas. Indo mais adiante, pode-se dizer que
o caso toque fundo aqueles que deveriam manter certo distanciamento, ou seja, os
profissionais da impressa, encarregados de contar, ao grande público, a história de
modo isento, imparcial, neutro. Aqueles, por fim, que dizem relatar a realidade de
forma objetiva, e não construí-la coletivamente.
1.3 Profissionalismo e Hierarquia
A industrialização do trabalho jornalístico tem conseqüências no âmbito do
poder dentro das redações. Podemos dizer que dessimetria nas relações entre
jornalistas e seus superiores e inferiores hierárquicos. E, portanto, que a estrutura
hierárquica, que pressupõe um jogo de poder, afeta as relações dentro das
redações.
Warren Breed, em seu estudo acerca do controle social nas redações (1993),
busca lançar alguma luz acerca dos padrões culturais existentes e disseminados
15
Tuchman aponta para o aspecto problemático surgido com o lead para o jornalista. A seleção dos
aspectos principais da notícia é algo decidido pelo responsável pela matéria, é uma escolha apenas
do jornalista (ao contrário das citações, que expressam a opinião das fontes, por exemplo). Para essa
tarefa, o repórter se vale do news judment (perspicácia profissional), o que a autora caracteriza como
uma atitude defensiva, “pois o news judgement é a capacidade de escolher objectivamente’ entre
‘factos’ concorrentes para decidir quais os ‘factos são mais ‘importantes ou ‘interessantes’.
Importantes’ e ‘interessantes’ denotam conteúdo. Por outras palavras, ao discutir a estruturação da
informação, o jornalista deve revelar as suas noções de conteúdo, ‘importantes’ ou ‘interessantes’.
(TUCHMAN in TRAQUINA, 1993, p.83).
28
nesses ambientes de convivência entre jornalistas. Breed divide os jornalistas em
duas categorias principais: executivos, detentores de maior poder, e os staffers.
Dentro da primeira categoria, encontra-se o dono do jornal (publisher), quem, na
prática, define a política editorial, além dos editores. “Os staffers são os repórteres,
responsáveis pelo rewriting, os revisores, etc. Entre eles, podem aparecer os
editores da secção local ou os editores telegráficos, que ocupam um lugar
intermediário.” (BREED in TRAQUINA, 1993) Ainda de acordo com o autor, as
normas relativas ao trabalho jornalístico são socializadas, passadas dos mais
experientes aos novatos.
Basicamente, a aprendizagem da política editorial é um processo
através do qual o novato descobre e interioriza os direitos e as
obrigações do seu estatuto, bem como as suas normas e valores.
Aprende a antever aquilo que se espera dele, a fim de obter
recompensas e evitar penalidades. (BREED in TRAQUINA, 1993,
p.155)
Como podemos perceber segundo a abordagem de Breed, as normas
seguidas pelos profissionais nas redações estão mais para o que determina a
política editorial do jornal do que as próprias normas jornalísticas, sobretudo no
tocante à imparcialidade.
A “política” pode ser definida como orientação mais ou menos
consistente evidenciada por um jornal, não no seu editorial como
também nas suas crônicas e manchetes, relativas a questões e
acontecimentos seleccionados. A “parcialidade” não significa
necessariamente prevaricação. Pelo contrário, envolve a omissão, a
seleção diferencial, ou a colocação preferencial, tal como “destacar”
um item favorável à orientação política do jornal, “enterrar” um item
desfavorável numa página interior, etc. (BREED in TRAQUINA, 1993
p.153)
Assim, o profissionalismo no jornalismo estaria mais para o adestramento do
jornalista, obedecendo a um esquema de recompensa-reprimenda. E isso é tanto
mais evidente quanto menor a posição ocupada pelo profissional na escala
hierárquica. Além disso, mesmo que os jornalistas discordem da política editorial,
Breed aponta seis fatores que os levam ao conformismo para com a mesma:
1 Autoridade institucional e sanções: o editor tem autoridade maior que o
repórter dentro das redações e ocupa um cargo de poder por partilhar com o
29
dono do jornal da política editorial. Portanto, ele pode alterar ou mesmo
impedir que seja veiculada uma matéria contrária à política da empresa
jornalística. Por outro lado, o medo de sanções vinda dos superiores contribui
para o conformismo de repórteres e demais profissionais em hierarquia
profissional inferior à do editor.
2 Sentimento de obrigação e de estima para com os superiores: o
profissional pode se sentir em obrigação para com o jornal, por ter sido
contratado e, portando, busca obedecer a política da empresa. Também há
sentimentos pessoais mais “calorosos” envolvidos, como a admiração pelos
superiores e mais experientes. Como o ofício é tido como algo a ser
ensinado, estabelece-se um misto de paternalismo e postura professoral, de
acordo com a qual os tutores tendem a punir, quando julgam necessário, mas
também a defender seus pupilos. Estes, por sua vez, sentem-se gratos por
isso.
3 Aspirações de mobilidade: lutar contra a política editorial constitui-se um
obstáculo àqueles que pretendem crescer profissionalmente dentro da
empresa em que trabalham. E, mesmo aqueles que pretendem trabalhar em
outros campos, como nas assessorias de imprensa, buscam alcançar maior
reputação profissional com o intuito de serem mais bem aceitos no mercado.
4 Ausência de grupos de lealdade em conflito: os profissionais não se
unem para conspirar contra a orientação política e, mesmo as organizações
de representação oficialmente dos jornalistas não costumam interferir em
assuntos internos.
5 Prazer da atividade: seja pelos laços que se formam dentro das redações,
em que os profissionais compartilham conhecimentos em prol “da boa
informação”, seja pelo trabalho considerado interessante e prazeroso, seja
pela variedade de experiências e pela proximidade com o poder. “Assim, por
todas estas razões, e apesar da remuneração relativamente baixa, o staffer
sente-se, por vezes, parte integrante de uma empresa em plena atividade. A
sua moral é boa.” (BREED, p.159)
30
6 A notícia torna-se um valor: a ênfase na notícias como elemento central,
reforçada pela exigência da competição e pela luta contra o tempo, tendem a
evitar conflitos envolvendo a orientação política do jornal. Isso envolveria
perda de tempo e, consequentemente, menos notícias.
Dentre as principais variáveis que originariam a manutenção da política
editorial, Breed aponta como a mais significativa a segunda, ou seja, a obrigação e
a estima pelos superiores. Além de a mais importante, capaz de gerar não apenas
uma atitude desejada dos jornalistas, mas um sentimento tal que o leva a se sujeitar
à política determinada pelos superiores, a quem ele respeita e admira. Porém, é
uma variável flutuante, pois o sentimento gerado pelos “chefes” pode não ser o de
estima e admiração... De todo modo, o que gostaríamos de ressaltar é a conclusão à
qual o autor chega quanto à lógica inerente às redações, que envolve, sobretudo,
aceitação do profissional por parte do grupo.
A fonte de recompensas do jornalista não se localiza entre os
leitores, que são manifestamente os seus clientes, mas entre os
seus colegas e superiores. Em vez de aderir a ideais sociais e
profissionais, ele redefine os seus valores a ao nível mais
pragmático do grupo redactorial. (BREED in TRAQUINA, 1993,
p.166)
Faz-se interessante considerar que as hierarquias profissionais tornam-se
tanto mais fortes quanto maior o caráter institucional do meio de comunicação.
Dificilmente um blog terá papéis rígidos para cada um de seus colaboradores.
Entretanto, ele serve para comunicar. A imprensa, porém, ao reivindicar para si o
posto de agente de confiança, que fornecerá informações “de qualidade”, estabelece
um ambiente “profissional” de trabalho. “As instituições, também, pelo simples fato
de existirem, controlam a conduta humana estabelecendo padrões previamente
definidos de conduta (...)” (BERGER e LUCKMANN, 2002, p.80). Logo, podemos
dizer que institucionalizar é submeter o indivíduo ao controle social. O que, por sua
vez, contribui para legitimar a existência de hierarquias.
Institucionalizar está intrinsecamente relacionado a internalizar valores. Não
regras explícitas de conduta, impressas na forma de leis ou sanções. Nada além
dos manuais de redação, que indicam caminhos a seguir, mas dificilmente explicitam
31
o ponto exato até onde se pode chegar. O que faz o trabalho jornalístico ser
bastante baseado na experiência profissional. Os mais experientes costumam
ocupar os cargos mais elevados hierarquicamente. E são responsáveis por ensinar o
trabalho e guiar os passos dos mais novos, ou melhor, pelo adestramento dos
“focas”.
Soloski, por sua vez, segue por um caminho próximo, porém distinto ao de
Breed ao sugerir que o controle hierárquico não basta e não é o principal
estruturante das relações dentro das redações. Ele enfatiza o profissionalismo como
principal mecanismo de controle. Conforme argumenta o autor, o profissionalismo
ultrapassaria os muros da redação de uma dada empresa de jornalismo, sendo
capaz de exercer controle para além da interação face-a-face, como destacou
Breed. Assim, Soloski destaca o profissionalismo como forma de controle
transorganizacional e, quase como complemento a este estaria a política editorial,
que estabeleceria o controle interorganizacional. Juntas, essas duas formas de
controle estabeleceriam as fronteiras do comportamento profissional dos jornalistas.
Fronteiras essas amplas o bastante para permitir certa liberdade aos profissionais,
sobretudo em momentos que geralmente pouco afetam os interesses dos donos do
jornal, que dizem mais da “criatividade” do que do enfoque político propriamente
dito. “Por outro lado, as fronteiras são suficientemente estreitas para se poder
confiar que os jornalistas ajam no interesse da organização jornalística.” (SOLOSKI
in TRAQUINA, 1993, p.100)
O profissionalismo jornalístico é tido como transcendente à organização. É
algo partilhado entre todos aqueles que se dizem jornalistas “na prática”, ou seja,
aqueles que trabalham diretamente com a produção de notícias para um dado
público. Contudo, ele também se opõe, em parte, à lógica da empresa, como um
controle entre pares em oposição ao controle pelo patrão ou o dono da empresa
jornalística. Entretanto, é algo encorajado pelas próprias organizações de notícias,
salvo casos excepcionais, como uma forma de evitar desperdício de tempo,
aumento de custos ou prejuízos.
As organizações de notícias mantêm flexibilidade e economizam
dinheiro desencorajando uma burocracia mais complexa do que a
que realmente existe, e encorajando o profissionalismo entre
repórteres. Entre repórteres, profissionalismo é sabe como ter
acesso a uma história, o que vai ao encontro dos padrões e
32
necessidades organizacionais
16
. (TUCHMAN, 1978, p.65; tradução
nossa)
A relação entre os jornalistas e as empresas que os empregam é peculiar.
“Apesar de empregados por uma organização noticiosa, os repórteres se
apresentam como profissionais autônomos quando lidam com as fontes
17
(TUCHMAN, 1978, p.74; tradução nossa). Na assertiva, a autora se refere apenas
aos repórteres, o que, entretanto, gostaríamos de estender aos demais profissionais
que participam da “linha de montagem” do jornal e que lidam no dia-a-dia com as
fontes, como os pauteiros ou produtores. E, como lembra Breed, existem fatores
dentro da área de influência do repórter que o ajudam a iludir a orientação política.
Podemos dizer que as situações de desvios acontecem porque a política editoria
não costuma ser claramente exposta e estruturada. Além disso, o staffer é capaz de
influenciar na seleção da notícia em vários pontos, na medida em que tem relativa
liberdade para escolher, por exemplo, quem entrevistar e quem ignorar. Ou seja, ele
pode conferir vários tons à notícia.
Soloski aponta dois modos relacionados segundo os quais o profissionalismo
jornalístico controla o comportamento do profissional: estabelecendo padrões e
normas de comportamento e determinando o sistema de recompensa
profissional. Sendo assim, o profissionalismo se torna algo interessante para os
donos das empresas de jornalismo, sendo um meio eficiente de controle que
funciona para além das normas determinadas pela organização.
Entretanto, essas
normas profissionais partilhadas não eliminam completamente o
problema do controlo organizacional porque: 1)o profissionalismo
fornece aos jornalistas uma base de poder independente que pode
ser utilizada para frustrar a forte interferência da direcção nas
actividades profissionais do staff, e 2) o profissionalismo
demasiada liberdade aos jornalistas, e assim as organizações
jornalísticas devem adoptar procedimentos que limitem ainda mais o
comportamento profissional dos seus jornalistas. (SOLOSKI in
TRAQUINA, 1993, p.95)
16
Do original: “News organizations maintain flexibility and save money by discouraging a more
complex bureaucracy than already exists, and by encouraging professionalism among reporters.
Among reporters, professionalism is knowing how to get a story that meets organizational needs and
standards”.
17
Do original: “Although employed by a news organization, the reporter presented themselves as
autonomous professionals when dealing with sources”.
33
Tais procedimentos se “materializam” em poticas editoriais, ditadas a fim de
limitar mais o comportamento discricionário do profissional. Porém, é importante
lembrar que a política editorial é algo apreendido e ensinado entre os jornalistas,
transmitida mais oralmente e sob a forma de exemplos do que escrita e formalizada
em manuais. “Como um jogo, as normas profissionais e as políticas editoriais são
regras que toda a gente aprende; raramente estas regras são explícitas, e
raramente se levantam objecções a essas regras.” (SOLOSKI in TRAQUINA, 1993,
p.99)
Dessa maneira, o profissionalismo é uma forma de controle sobre os
jornalistas, uma vez que é algo “ensinado” e compartilhado pelo próprio grupo, no
dia-a-dia das redações. E ser objetivo faz parte desse jogo.
Para prevenir o caos, o emprego do news judgemente requer
consenso entre jornalistas, e talvez até mais que isso, uma
organização hierárquica na qual aqueles com mais poder podem
aplicar seu julgamento assim como quais considerações são
relevantes para uma dada notícia
18
. (GANS, 1980, p.83; tradução e
grifos nossos)
A objetividade é destacada por Soloski (1993) dentre as normas profissionais
como a mais importante para os jornalistas norte-americanos. Ser objetivo significa
para o jornalista construir um relato “equilibrado” dos fatos, mostrando os lados
envolvidos na questão. O que acaba por ser algo vantajoso para as organizações
noticiosas, uma vez que a responsabilidade pela exatidão dos fatos recairá sobre as
fontes, e não sobre os jornalistas. Além disso, ser objetivo é uma das maneiras
encontradas pelos jornalistas para afirmarem seu profissionalismo. Os valores
profissionais caracterizam um sistema de controle horizontal entre os pares e, mais
que isso, de controle individual. Como vimos, os jornalistas internalizam
determinados procedimentos e, muitas vezes sem refletir sobre o por quê, agem
“conforme se deve agir”, com a finalidade de ser objetivos. Entretanto, a produção
de notícia em grande escala também é marcada pelo controle vertical. Um controle
que tem como objetivo garantir que a notícias seja manipulada dentro do prazo
(deadline), que varia de mídia para mídia, sendo mais flexível na televisão que nos
jornais e revistas. “Mas em ambos, mídia eletrônica e impressa, as organizações
18
Do original: “To prevent chaos, the application of news judgment requires consensus among
journalists, and perhaps even more so, a hierarchical organization in which those with more power can
enforce their judgment as to what considerations are relevant for a given story”.
34
noticiosas são hierárquicas; consequentemente, a divisão do trabalho é também
divisão de poder
19
” (GANS, 1980, p.94; tradução nossa).
Logo, uma hierarquia que deve ser obedecida e que visa a garantir um
“produto de excelência”. Mais que um conjunto de rotinas a serem obedecidas
uma lógica de produção específica ao jornalista. Em primeiro lugar, ninguém é
senhor de seu próprio texto. É claro, o repórter tem direito à "assinatura" da matéria.
Seu nome pode aparecer escrito, ele pode ser citado pelo apresentador, no caso
das mídias o-impressas, ou mesmo pode ter sua imagem inserida, como nas
passagens
20
no caso específico dos telejornais. Mas a reportagem somente será
veiculada se, antes, houver alguém que a pautou e/ou produziu e, depois, alguém
que a editou, revisou e aprovou. Assim, a “linha de produção” do jornal de cada dia é
composta por profissionais distribuídos em cargos com variantes de poder. Ao falar
dos papéis desempenhados pelos jornalistas das redações norte-americanas, Gans
resume a questão:
Todas as organizações nacionais de notícias incluem os seguintes
papéis, listados em ordem decrescente de posição e poder:
Mentores da política, editores-chefes (ou produtores),
coordenadores de seções, repórteres e escritores (ou cinegrafistas),
e investigadores. Esses cargos são complementados por vários
cargos de apoio, alguns dos quais desempenham um papel indireto
na seleção da notícia
21
. (GANS, 1980, p.84; tradução nossa)
A nomenclatura dos cargos pode variar de país para país. No Brasil, por
exemplo, ela é distinta inclusive entre meios de comunicação impressos e
audiovisuais. O que interessa é que, independentemente de como o chamados,
aqueles que mandam e os que obedecem, em gradientes variáveis de poder. Em
nossa cobertura particular, Pimenta Neves era chefe e Sandra Gomide, sua
subordinada de acordo com a hierarquia da redação. Cabe, porém, refletir a questão
da hierarquia a partir de um ângulo diferente, o qual, por sua vez, não exclui os
19
Do original: “But in both, electronic and print media, news organization are hierarchical;
consequently, the division of labor is also one of power”.
20
Em “O texto na TV manual de telejornalismo”, passagem é definida como a “gravação feita pelo
repórter no local do acontecimento, com informações, para ser usada no meio da matéria. A
passagem reforça a presença do repórter no assunto que ele está cobrindo e, portanto, deve ser
gravada no desenrolar do acontecimento”. (PATERNOSTRO, 1999, p.147)
21
Do original: “The national news organizations all include the following roles, listed in order of
decreasing rank and power: policy makers, top editors (or producers), section heads, reporters and
writers (or film makers), and researches. These are complemented by various supporting staffs, some
of which play an indirect role in story selection.
35
demais. Numa empresa de jornalismo, há uma divisão informal entre jornalistas
(particularmente repórteres) que julgam história a partir da perspectiva das fontes, e
aqueles, como os produtores e editores-chefes, que a examinam do ponto de vista
da audiência
22
” (GANS, 1980, p.89; tradução nossa).
Assim como ser objetivo, ser generalistas, como vimos na primeira parte
deste capítulo, e saber como encontrar boas histórias significa, para os jornalistas,
ser profissional. E, para tanto, é necessário conhecer e ter acesso às fontes. São
elas que, em última instância, permitem que os responsáveis pela apuração e
produção da notícia executem seu trabalho adequadamente. Desse modo, tanto
maior é o poder do jornalista entre seus pares, e perante seu superior, quanto maior
é seu acesso à informação, ou seja, quanto melhores e em mais quantidade são
suas fonte. “Quanto mais elevado o status das fontes e maior o alcance de suas
posições, mais elevado o status do repórter
23
(TUCHMAN, 1978, p.69; tradução
nossa).
Os jornalistas expressam sua autonomia profissional ante seus chefes, sejam
eles os donos da empresa ou os próprios jornalistas a quem são subordinados,
acumulando fontes e compartilhando informações entre colegas, sejam eles da
própria redação em que trabalham ou de meios de comunicação rivais.
Descartando o ditado organizacional de não compartilhar com
competidores, repórteres invocam o coleguismo para trocar alguns
tipos de informação com competidores. Informação prontamente
disponível é compartilhada; informação fomentada primadamente
raramente o é
24
. (TUCHMAN, 1978, p.75; tradução nossa)
A troca de informações entre profissionais é uma forma de o jornalista fazer
contato com outros colegas. E, nessa profissão, conhecer gente que conhece gente
é essencial. Além do mais, nunca se sabe o dia de amanhã e o jornalistas que
trabalham em jornais concorrentes podem vir a ser colegas de redação no
fechamento da próxima edição.
22
Do original: between journalists (notably reporters) who judge a story from the perspective of
sources and those, such as top producers and editors, who look at it from the viewpoint of the
audience”.
23
Do original: “The higher the status of sources and the greater the scope of their positions, the higher
the status of the reporters”.
24
Do original: Discarding the organizational dictate not to share with competitors, reporters invoke
collegiality to exchange some kinds of information with competitors. Readily available information is
shared; privately developed information rarely is”.
36
Como vimos, não apenas a relação dos jornalistas com os donos da empresa
é pitoresca. Eles são profissionais que trabalham para uma organização, mas
gostam de se dizer autônomos, inclusive para rejeitar a posição institucional, uma
vez que precisam se afirmar imparciais. O relacionamento com os superiores
também é delicado, como explica Gans.
A delegação de poder ocorre porque as organizações de noticias
sãos constituídas de profissionais que insistem na autonomia
individual. Os jornalistas clamam pela liberdade não apenas da
interferência de não jornalistas, mas também de seus superiores;
eles têm o direito de tomar seus próprios news judgements, os quais
são o motivo porque não podem receber ordens
25
. (GANS, 1980,
p.101; tradução nossa)
No caso americano, ainda de acordo com Gans, as ordens vêem de forma
velada, na forma de pedidos. Breed sinaliza na mesma direção, ao constatar, por
meio de relatos colhidos também em redações norte-americanas, que “o chefe
nunca ordena; a ordem é sempre mais sutil” (BREDD in TRAQUINA, p.156).
No cotidiano das redações brasileiras, porém, acreditamos que os “pedidos”
por parte dos superiores vêem de forma mais "incisiva", como veremos no quarto
capítulo desta dissertação, a partir de comentários dos próprios profissionais da
imprensa registrados no site Observatório da Imprensa. Acreditamos que, no Brasil,
a dimensão pedagógica e paternalista do jornalismo é exercida de forma autoritária
pelos profissionais de maior nível hierárquico. Cláudio Abramo, apontado como um
dos responsáveis pela modernização dos jornais “O Estado de S. Paulo” e Folha de
S. Paulo”, destaca essa dimensão do jornalismo ao discorrer acerca dos critérios
usados para se formar e determinar aqueles que serão jornalistas competentes. Faz-
se conveniente ressaltar que um dos protagonistas do caso estudado nesta
dissertação, Pimenta Neves, é “cria” de Abramo no âmbito profissional.
O argumento usado na campanha contra o diploma de jornalismo e
contra a regulamentação da profissão peca pela base, porque parte
do princípio de que as escolas são ruins. Em parte isso é verdade,
mas os jornais e as empresas têm de lutar para que os cursos de
jornalismo melhorem, têm de exigir que os professores sejam mais
exigentes e examinados por bancas compostas por jornalistas
competentes. É assim que se faz. Concentrando-se uma massa de
25
Do original: “Delegation of power also takes place because the news organization consists of
professionals who insist on individual autonomy. Journalists claim freedom from interference not only
by nonjournalists but also by superiors; they have the right to make their own news judgments, which
is why they cannot be given orders”.
37
bons professores, consegue-se fazer uma boa escola. Por outro
lado, sou um grande jornalista, e por isso posso dizer quem
pode e quem não pode exercer a profissão. Pode-se julgar que
isso é arbitrário, mas é melhor eu achar do que se decidir a questão
pela média das notas de cinco professores. Jornalismo é uma
profissão autoritária. (ABRAMO, 1988, pp. 251-252; grifos nossos)
Seguindo a lógica de Abramo, a formação universitária é importante para o
jornalista, mas não é fundamental, uma vez que o "verdadeiro" profissional se
definiria dentro das redações, entre seus pares. Como geralmente ocorre nas
empresas em geral, a experiência costuma ser algo exaltado nas redações. Além do
tempo de trabalho, o conhecimento de fontes e a participação em “furos” e boas
reportagens conta, e muito, a favor do jornalista. Em outras palavras, o currículo faz
parte de seu mérito como profissional. E, geralmente, é o caminho natural seguido
para se alcançar uma promoção dentro da organização noticiosa.
Sendo assim, a “mobilidade ascendente devido ao histórico familiar ou
sucesso em atividade política é algo ressentido pelos outros, mas a rápida ascensão
baseada no mérito não é
26
(GANS, 1980, p.108; tradução nossa). Sandra Gomide
obteve, de acordo com a cobertura da mídia, rápida ascensão profissional a partir do
momento em que começou a trabalhar no Estado de São Paulo. E, ainda de acordo
com parte da cobertura, isso ocorreu depois que começou seu relacionamento com
Pimenta Neves, chefe no jornal e seu namorado. Ao misturar vida privada e
profissional, o caso em questão propõe dilemas aos responsáveis pela cobertura
jornalística. Se, de um lado, o reconhecimento profissional cabe aos próprios
jornalistas, ou melhor, cabe ao chefe (o grande jornalistas) determinar "quem pode e
quem não pode exercer a profissão", nas palavras de Abramo (1988), por outro, o
mérito profissional de Sandra Gomide é posto em xeque por esses mesmos colegas
de profissão.
Nesse caso que envolve a imprensa brasileira de modo tão particular, valores
caros aos jornalistas, como objetividade e, em última análise, o próprio
profissionalismo, começam a ser questionados pelos próprios jornalistas. Como
veremos mais adiante, primordialmente no capítulo 4 deste trabalho.
26
Do original: “Upward mobility due to family background or success in organization politicking is
resented by others, but a rapid rise base don merit is not”.
38
CAPÍTULO 2
Mais do que meros observadores, os jornalistas são tidos como “porta-vozes
confiáveis, legítimos e privilegiados” (ZELIZER, 1992, p.1) do mundo real. O Caso
Pimenta Neves, porém, coloca em xeque ou, ao menos, nos faz questionar esse
lugar ocupado pelos profissionais da imprensa, uma vez que o objeto observado o
assassinato de uma jornalista por um jornalista não oferece o distanciamento
necessário para essa observação. No caso desse assassinato em particular, a
natureza da notícia passa a ser tema de debate dos próprios jornalistas. O caso
expõe uma parte “obscura” da profissão, a forma como se desencadeia a produção
da notícia, uma vez que se pressupõe que os jornalistas ocupam o papel de porta-
vozes autorizados porque internalizaram padrões “profissionais” de conduta. O
debate em torno da cobertura noticiosa do assassinato de Sandra Gomide expõe o
processo de auto-legitimação das interpretações autorizadas apresentadas pela
media. E a definição daquela que seria a interpretação autorizada também vira
objeto de debate na mídia e pelos profissionais do jornalismo. O lugar de
testemunha é problematizado pelo fato de todos os envolvidos serem jornalistas: a
vítima, o assassino e, claro, os jornalistas encarregados de relatar o caso, os
agentes responsáveis por mediar o acesso a ele pelo grande público
Levando isso em consideração, o presente capítulo pretende tratar do papel
social do jornalista enquanto mediador. Para tanto, é preciso situar, no tempo e no
espaço, o que usualmente chamamos de jornalismo, uma prática centrada em fatos
e baseada em critérios e normas pertencentes a um “modelo” específico. Assim, na
primeira parte deste capítulo, buscaremos “desnaturalizar” o conceito de jornalismo,
demonstrando que outros modelos que o aquele vivenciado em nosso dia-a-
dia, um jornalismo que, em última instancia, reivindica filiar-se a um modelo anglo-
saxão. Usaremos de uma perspectiva comparativa para comparar esse modelo que
nos é familiar, em que a realidade é definida em torno do jornalismo centrado em
fatos e o lugar de autoridade que se estrutura nele, em relação a uma concepção
política (caso da Itália e da Polônia) e literária de jornalismo (França). Usaremos
como base teórica, trabalhos que adotam essa perspectiva comparativa, como os
desenvolvidos por Chalaby (1996) e Hallin e Mancini (2004).
39
O esforço em demonstrar que todo jornalismo não é igual em todos os lugares
do planeta também nos ajuda a situar melhor o modelo de jornalismo que tomamos
como base para a construção deste trabalho. Logo, entendemos o jornalismo como
um fenômeno culturalmente variável (SCHUDSON, 1979; CAREY, 2007) e
historicamente construído. Dentre diferentes modelos, acreditamos que o jornalismo
brasileiro se definiu historicamente a partir da referência ao modelo anglo-
americano, principalmente a partir da década de 1950. Porém, apesar de
frequentemente o jornalismo brasileiro reivindica filiar-se a esse modelo específico,
propomos que, na prática, o “modelo brasileiro” de jornalismo adaptou o anglo-
americano, relendo seus fundamentos, por vezes de modo bastante original, em
detrimento de uma simples importação do modelo desenvolvido primordialmente no
universo anglo-americano (ALBUQUERQUE, 2004).
Entretanto, quem, ou melhor, que agentes políticos são mediados pelo
jornalista? Como isso é feito? E o que é mediado? Essas perguntas retiradas do
lead, usadas aqui arbitrariamente, podem nos ajudar a elucidar a questão que
trataremos na segunda parte deste capítulo. Buscaremos situar o lugar ocupado
pelo jornalista, agente que, no modelo que nos serve de referência neste trabalho,
possui a capacidade de estar entre e, ao mesmo tempo, fazer parte do processo de
comunicação (inbetweeness). Ao pensarmos a relação que o jornalista estabelece
entre especialistas e leigos, entre autoridades e cidadãos, tentaremos elucidar as
dimensões cognitivas e políticas da prática jornalística. Para isso, é preciso
considerar que o jornalista media uma relação vertical, assimétrica, tanto em uma
dimensão cognitiva (os especialistas e o público leigo) quanto em uma política (as
autoridades e os cidadãos comuns). E faz isso por meio do texto, buscando se
posicionar como mediador legítimo entre o discurso dos especialistas/autoridades e
o senso comum (GEERTZ, 1997). Os jornalistas ocupam esse lugar de mediação
através de um duplo papel. No plano cognitivo ele se apresenta como um cidadão
bem informado (CAMPBELL, 1991) e no âmbito político, como um representante do
interesse público (HALLIN e MANCINI, 1984).
Depois de situado o modelo que usaremos para discutir o jornalismo e os
lugares de mediação que o jornalista desempenha neste modelo, daremos
continuidade à discussão deslocando o foco da análise. Buscaremos, na terceira
parte de nosso capítulo, situar como o jornalista busca legitimar esse lugar de
mediador. Para tratar das bases nas quais o jornalista define sua autoridade de
40
mediação, uma solução seria recorrer ao conceito de profissionalismo. Este aponta
para certa rigidez de regras de conduta e códigos. Zelizer (1992) propõe um
caminho alternativo. Ao valer-se do conceito de comunidade interpretativa,
desenvolvido por Fish (1997), a autora busca dar conta do aspecto dinâmico e
coletivo da interpretação, levando em consideração menos as regras, mas como
elas são definidas e renegociadas. Assim, chegamos ao conceito de autoridade
jornalística. O caminho que faremos buscará deslocar a importância do texto para a
do intérprete. Ou, em palavras mais condizentes com o jargão profissional, do fato,
da notícia para o jornalista. Mais do que observar que o significado de um texto
depende das circunstâncias, objetivamos situar a questão da autoridade jornalística,
reivindicada pelos jornalistas no papel de mediadores legítimos entre os
acontecimentos e o público. Julgamos a discussão assaz interessante, sobretudo
em relação ao objeto aqui em questão, o caso Pimenta Neves.
2.1 O modelo anglo-americano de jornalismo e sua adaptação no Brasil
Entendemos, neste trabalho, o jornalismo como um fenômeno social, cultural
e histórico. Assim como velejar, jardinagem, política e poesia, o jornalismo é um
ofício ligado ao lugar; ele funciona à luz do conhecimento local”
27
(CAREY, 2007,
p.4, tradução nossa). Sendo assim, pensamos o jornalismo brasileiro de hoje como
norteado por valores “importados”, na década de 50, dos Estados Unidos.
Dentre os vários modelos que buscam definir a profissão, escolhemos aquele
que aponta o jornalismo como sendo centrado em fatos, baseado no conceito de
notícia. Não cabe, aqui, examinar se o modelo foi implantado com sucesso ou com
fracasso no Brasil. Seguimos por outro caminho em nossa análise, pensando que
houve, em lugar de uma simples transferência de modelo vindo do vizinho do norte,
uma adaptação do modelo de jornalismo americano. “Adaptar significa aqui reler,
reformatar um modelo estrangeiro de modo que ele atenda às exigências da cultura
que o importa” (ALBUQUERQUE, 2004, p.3).
Vários autores se debruçaram sobre o jornalismo praticado em diversos
pontos do globo em busca de traçar modelos, encontrar semelhanças e diferenças
27
Do original: “’Like sailing, gardening, politics and poetry’, journalism is a craft of place; it works by
the light of local knowledge”.
41
entre a prática profissional desenvolvida em diferentes países. A comparação de
tipos ideais de jornalismo desenvolvidos por esses autores em seus trabalhos nos
ajuda a lançar luz sobre a questão da própria identidade jornalística brasileira, seja
pela diferença ou pela aproximação. o pretendemos, porém, propor um modelo
brasileiro de jornalismo, mas sim, resgatar alguns desses modelos a fim de melhor
nortear nossa discussão. Nosso objetivo último nesta seção é mostrar que o que
chamamos de jornalismo hoje, e em nosso país, é muito relativo. Ou melhor, o que
chamamos no Brasil de jornalismo não é todo o jornalismo, mas algo derivado de um
modelo em particular.
As semelhanças nos parecem, por vezes, mais recorrentes no jornalismo
atual que quase podemos nos esquecer de que o modo como a profissão se
desenvolveu - é, e foi exercida - não é tão homogêneo assim... “A tarefa claramente
definida de dar informação, a grande e na verdade crescente semelhança das
condições técnicas de produção e a rede internacional de comunicação de massa
promovem a imagem de uma profissão pan-cultural” (KÖCHER, 1986, p.1). Tentar
ver através dessa imagem é o trabalho de muitos pesquisadores. Optamos, aqui, por
lançar luz à questão usando autores que estudam o jornalismo como objeto de uma
perspectiva comparativa.
Chalaby (1996) credita a invenção do jornalismo a um país em especial. “O
jornalismo é, não apenas uma descoberta do século XIX, como também uma
invenção anglo-americana. Foi nos Estados Unidos, e em grau menor na Inglaterra,
que as práticas e estratégias discursivas, que caracterizam o jornalismo, foram
inventadas” (CHALABY, 1996, p.1). Para o autor, o conceito de notícias foi cunhado
pelos norte-americanos e pelos britânicos. Além do mais, também por eles teriam
sido inventadas “as práticas jornalísticas discursivas propriamente ditas tais como
a entrevista e a reportagem”. O autor contrapõe a produção de notícias na França do
final do século XIX à anglo-americana no mesmo período. Segundo o Chalaby, até
seria possível aceitar que notícias sempre existiram. Entretanto, “o conceito de
notícias antes do aparecimento dos jornais anglo-americanos jamais tinha adquirido
um tal predomínio dentro de uma classe de textos” (CHALABY, 1996, p.7). O leitor
francês daquele período encontraria nos jornais uma seleta de opiniões, enquanto
que nos Estado Unidos e na Grã-Bretanha, curiosamente, haveria informação.
Nesses países, a prática jornalística seria centrada nos fatos, uma vez que a
força-motriz dos jornalistas seriam os ideais de neutralidade e objetividade. Assim, o
42
jornalismo como gênero discursivo, centrado em fatos, teria nascido com os jornais
anglo-americanos.
Em seu trabalho, Chalaby nos ajuda a compreender a evolução do jornalismo
como fruto de contextos políticos, econômicos e sociais distintos. E que, portanto, se
desenvolveu de modo diferente em cada país, sendo que é realmente difícil não
atribuir aos Estados Unidos “o desenvolvimento de um jornalismo de informação
baseado nas normas discursivas de neutralidade e objetividade” (1996, p.18).
Hallin e Mancini também analisaram o jornalismo americano, agora em
comparação ao italiano. Para eles, o noticiário italiano trata a audiência como parte
do processo político, mas também mantém a discussão política estritamente dentro
dos limites dos partidos. No noticiário do país europeu, várias interpretações sobre
um mesmo acontecimento são claramente apresentadas, ao passo que o noticiário
americano oferece a interpretação, como se esta estivesse ligada em essência ao
acontecimento. O jornalismo objetivo por assim dizer, é produzido por artifícios
usados pelos jornalistas para que o significado dos acontecimentos pareça, aos
olhos do público, emergir dos fatos em si, como se na matéria apresentada não
houvesse a intervenção do jornalista. Sendo assim, o jornalismo americano é visto
pelos autores como
uma instituição dotada de um enorme e muito visível poder como o
principal produtor” de significado político, mas ao mesmo tempo
tem uma base pouco sólida de legitimidade. A instituição lida com
esse problema, em parte, ocultando seu poder (dela mesma e
também do público trata-se e, grande parte de um processo
inconsciente) pela adesão às normas profissionais de objetividade.
(HALLIN E MANCINI, 1984, p. 22)
Mesmo quando não é objeto de uma análise claramente comparativa, os
valores identificados como intrínsecos ao jornalismo norte-americano, como
objetividade e imparcialidade, servem de contraponto para se pensar o modo como
o ofício é exercido em outros países. Tomemos outro estudo assaz interessante,
agora sobre o jornalismo polonês. Karol Jakubowicz (1992) busca analisar em From
party propaganda to corporate speech? Polish journalism in search of a new
identidy” o jornalismo daquele país durante e posteriormente ao regime comunista.
Se à época do apogeu do comunismo, os profissionais da mídia se encaravam,
sobretudo, como educadores sociais e ecoavam a voz do partido comunista, depois
da queda do muro de Berlim os jornalistas se viram obrigados a redefinir a profissão.
43
É o que aponta o autor ao relatar os resultados de uma pesquisa, feita em 1990, na
qual os jornalistas precisavam definir o que acreditavam ser sua missão:
Depois do colapso do comunismo, muitos acreditaram que havia
chegado o momento de se praticar jornalismo como eles sempre
desejaram. (...) As características seguintes eram típicas dos bons
jornalistas: imparcialidade e objetividade, espírito empreendedor,
ingenuidade e coragem. Entretanto, as condições para realizar o
tão valorizado ideal de jornalismo foram em pouco tempo
descobertas ausentes
28
. (JAKUBOWICZ, 1992, p.70)
A realidade polonesa, em boa medida, moldou o jornalismo daquele país.
Para muitos jornalistas, a vinculação partidária continuou entrelaçada à atividade
profissional. A audiência, por outro lado, não se deixou atrair pelos poucos
periódicos que abandonaram os relatos apaixonados, guiados pela imparcialidade e
objetividade (JAKUBOWICZ, 1992). Porém, como podemos perceber, apesar de
estarem inclinados a despirem-se do ideal de objetividade e do papel de cães de
guarda da sociedade, dadas as circunstâncias, praticando uma forma de jornalismo
menos independente e carregada de tons “sensacionalistas”, ainda assim os
profissionais poloneses seguiram como parâmetro um ideal específico de jornalismo,
e que muito se assemelha ao norte-americano.
Em seu livro “Comparing Media Systems”, publicado em 2005, Hallin e
Mancini elaboraram um esquema interpretativo para estudar o jornalismo do
“ocidente moderno”. De modo mais abrangente, eles apresentam três modelos de
sistemas midiáticos que prevaleceriam em determinados países: o Modelo Liberal
(identificado na Grã-Bretanha, Irlanda e América do Norte), o Democrático e
Corporativista (Europa Central e Setentrional) e o Pluralista Polarizado (países da
Europa Meridional). Como os autores mesmo esclarecem, são tipos ideais, apenas
se adaptando de modo aproximado ao que seria a realidade daqueles países.
O Modelo Liberal é caracterizado por um relativo predomínio dos
mecanismos de mercado e dos meios de comunicação comerciais; o
Modelo Democrático Corporativista por uma coexistência histórica
dos meios de comunicação comerciais e os meios de comunicação
ligados a grupos sociais e políticos organizados, e por um papel
relativamente ativo, mas legalmente limitado do Estado; e o Modelo
28
Do original: “After the collapse of communism, many believed that the time had come to practice
journalism as they had always wanted to. (…) The following features were typical of good journalists:
impartiality and objective, enterprise, ingenuity, and courage. However, the conditions were soon
found to be lacking”.
44
Pluralista Polarizado pela integração dos meios de comunicação na
política partidária, um desenvolvimento histórico mais fraco dos
meios de comunicação comerciais e um forte papel do Estado.
(HALLIN & MANCINI, 2004, pp. 10-11)
A partir dessa breve exposição de estudos pontuais que buscam apontar
diferenças significativas entre “modelos” de jornalismo, podemos verificar o quão
árduo e, muitas vezes, pouco consensual, é o trabalho de tentar conferir exatidão ao
que seriam as origens do jornalismo. O ofício extrapola os limites de qualquer
modelo no qual se tente enquadrá-lo, e traçá-lo como um fenômeno estanque,
pertencente a este ou àquele país é apenas uma forma para se viabilizar o trabalho
científico. Sua evolução é muito mais complexa do que nos leva a crer em um
primeiro olhar.
Carey o jornalismo, do modo como o conhecemos, como uma invenção
situada entre os culos dezoito e dezenove. “A notícia e a informação podem não
ter sido inventadas no século dezoito, mas certamente o jornalismo foi
29
(CAREY,
2007, p.6; tradução nossa). Para o autor, o fenômeno estaria ligado à crescente
sede por informação e por experiência (pelo novo, pelo surpreendente, pelo original
e inesperado) nas sociedades modernas. E somente com o surgimento da imprensa
se é possível admitir a existência de uma categoria totalmente nova, o público
30
.
Assim, as origens do jornalismo ligam-se ao advento da imprensa, uma vez que esta
deu origem a uma esfera pública ampliada.
A ligação é realmente umbilical, se a imprensa cria o público, por outro lado
também não sentido se pensar em jornalismo sem a existência de um público ou
de uma audiência. “O público então era, para os padrões do século dezoito, uma
reunião aberta de conversadores, uma sociedade de debate que adquire força
política como representante da opinião pública, apesar de esse debate ser limitado
29
Do original: “News and reporting may not have been invented in the eighteenth century, but
certainly, journalism was”.
30
De acordo com Tarde (1992), a diferença básica entre público e multidão é que o segundo se
baseia em uma proximidade física, enquanto que aquele diz de uma proximidade intelectual,
independentemente de as pessoas ocuparem ou não um mesmo espaço físico durante um mesmo
período de tempo. Desse modo, segundo a noção de público ou audiência, as pessoas compartilham
a mesma informação sem, necessariamente, estarem unidas fisicamente.
45
por classe e gênero”
31
(CAREY, 2007, p.11). Além do público, outra característica
distintiva do jornalismo é seu caráter periódico.
Ao dar ênfase em situar temporalmente as origens do jornalismo, Carey as
como relacionadas ao surgimento das práticas republicanas ou democráticas de
governo. Para ele, não jornalismo sem democracia e tampouco o contrário seria
possível. A assertiva, entretanto, aponta para uma contradição, como explica o
autor:
No mundo moderno, na era de um jornalismo independente, essa é
uma suposição controversa, uma vez que ela parece confiar ao
jornalista a defesa de algo, a comprometer sua valorizada
imparcialidade. Ela reivindica que o jornalista pode ser independente
ou objetivo sobre qualquer coisa, exceto a democracia, fazer isso
seria abandonar o ofício. Acerca das instituições democráticas ou da
vivência na democracia, os jornalistas não são permitidos ser
indiferentes, imparciais, ou objetivos
32
. (CAREY, 2007, p.13)
Mas como esse modelo centrado em fatos e almejando a objetividade se
construiu historicamente? Se o jornalismo é um fenômeno culturalmente variável,
identificamos um modelo que foi naturalizado dentro de uma tradição, uma vez que,
em termos gerais, quando se fala do jornalismo se tem como parâmetro o modelo
anglo-americano. Porém, seguimos nossa dissertação orientados por Schudson
(1978), que aponta a hegemonia desse modelo a partir de dois planos históricos: as
mudanças ocorridas entre os séculos XVIII e XIX, e as mudanças sociais,
econômicas e políticas que se sucederam mais acentuadamente nos Estados
Unidos.
Assim, o modelo em questão teria como marco inicial a década de 1830, com
o advento da Penny Press. A partir da circulação de um jornal voltado para fins
comerciais, com preço mais acessível aos padrões da época (1 penny), a Penny
Press distingue o aspecto comercial do jornalismo de um modelo “político”, praticado
até então. Duas décadas depois, surgiria a figura do repórter.
31
Do original: “The public then was, by the standards of the eighteenth century, as open gathering of
conversationalists, a debating society that acquired a political force as a representative of public
opinion, despite the fact that it was limited by class and gender”.
32
Do original: “In the modern world, in a age o independent journalism, this is a controversial
assumption, for it seems to commit journalists to defense of something, to compromise their valued
nonpartisanship. It claims that journalists can be independent or objective about everything but
democracy, for to do so is abandon the craft. About democratic institutions, about the way of life of
democracy, journalists are not permitted to be indifferent, nonpartisan, or objective”.
46
enquanto a notícia foi mais ou menos inventada nos anos de 1830, o
repórter foi uma invenção social de 1880 e 1890. Anteriormente, os
jornais eram feitos por uma única pessoa: um homem atuava como
impressor, publicista, agente, editor e repórter. (...) No decorrer do
século dezenove, editores começaram a contar menos com as
fontes informais de notícias e mais com escritores free-lancers ou
repórteres contratados que escreviam em troca de pagamento. Os
jornais vendidos por 1 penny (penny papers) foram os primeiros a
empregar repórteres para o noticiário local.
33
(SCHUDSON, 1978, p.
65)
Entretanto, esse “novo modelo” de jornalismo que começa a se desenvolver
não adota em primeira instância a objetividade como uma de suas principais
bandeiras. Assim, como explica Shudson, a crença dos jornalistas da época nos
fatos se difere da convicção moderna de objetividade, adotada sobretudo pelos
jornalistas norte-americanos. “Mas em seu desejo de contar histórias, os repórteres
estavam menos interessados em fatos que em criar um estilo pessoal e popular de
escrita
34
”. (SCHUDSON, 1978, p. 71)
Schudson aponta a existência de dois modelos distintivos de jornalismo no
século XIX: o informativo e o sensacionalista. Apenas no século seguinte, por volta
de 1920, é que surgiria o conceito mais caro aos jornalistas americanos: o de
objetividade, que vem a ser um dos pilares do modelo de jornalismo mais
usualmente conhecidos por nós, o de um ofício centrado em fatos.
Existem outros modelos de interpretação, como o elaborado por Nerone e
Barnhust (2003), que propõem uma etapização diferente para a evolução do que
usualmente tendemos a chamar de jornalismo. Enquanto Schudson situa os anos de
1830 como marcos da comercialização do jornalismo, em detrimento dos jornais
partidários, Nerone e Barnhust descrevem o século XIX como o ápice do jornal de
tipo partidário. Situando o desenvolvimento do ofício nos Estados Unidos, os autores
indicam o primado do século 1700 como ponto de partida para sua “linha do tempo”.
Durante esse período, “esperava-se que o jornal simulasse a experiência de um
33
Do original: “As news was more or less ‘invented’ in the 1830s, the reporter was a social invention
of the 1880s and 1890s. Early newspapers had been one-man bands: one man acted as printer,
advertising agent, editor, and reporter. (…) In the course of nineteenth century, editors came to rely
less on these informal sources of news and more on free-lance writers and hired reporters who wrote
for pay. The penny papers were the first to employ reporters for local news”.
34
Do original: “But in their desire to tell stories, reporters were less interested in facts than in creating
personally distinctive and popular styles of writing”.
47
cavalheiro visitando um boa cafeteria londrina
35
(NERONE & BARNHUST, 2003, p.
436) e o debate entre seus freqüentadores. Assim, a publicação era feita a partir de
cartas e jornais que chegavam, por correspondência, da metrópole européia à
colônia na América. Poucos anos depois, “a Revolução mudou a metáfora mestre da
cafeteria para a do encontro na cidade
36
(NERONE & BARNHUST, 2003, p.437).
Desse modo, em 1770 os jornais deveriam simular a deliberação entre os cidadãos,
e, portanto, representar a opinião pública.
em 1820, a metáfora que de acordo com Nerone melhor caracteriza o
jornalismo é a da côrte, na qual os jornais, exercendo o papel de advogados,
apresentariam o caso, buscando persuadir o júri (a audiência). Na década seguinte,
os Estados Unidos se encontram em pleno processo de politização da mídia. O
autor aponta os anos de 1850 como o início do merchandising nos jornais, os quais
traziam os anúncios estampados na capa, qual uma vitrine.
Apenas em 1880 ocorre o que Nerone e Barnhust chamam de
“indrustrialização do jornal”, distribuído em massa e mantido por anunciantes. As
mudanças físicas nas publicações, motivadas por fins comerciais, são destacadas
pelos autores. Os jornais começam a ser divididos em seções, com cadernos
destinados a públicos específicos, como o caderno de esportes e o de automóveis.
A metáfora adotada pelos autores para caracterizar esse período é a da “loja de
departamento”. E somente a partir de 1910 começaria a surgir uma noção de
profissionalismo, associada a ideais de objetividade. A finalidade era combater a
hostilidade do público para com os magnatas da mídia. Assim, o “profissionalismo”
dos jornalistas teria como objetivo permitir aos jornais afirmar sua autoridade,
dizendo-se independentes de questões econômicas. O repórter, que ocupa um
papel importante no jornalismo desde 1850, de acordo com Nerone e Barnhust,
passa a ser visto como um “super-cidadão”, com habilidade incomum para entender
a política e a ciência, mantendo-se neutro e trabalhando como guia do cidadão
comum pelo mundo social. No “jornalismo profissional”, “repórter profissional
gravaria os fatos com cuidado e fidelidade, e disporia tais fatos de modo que eles
35
Do original: “A newspaper was supposed to simulate the experience of gentleman visiting a good
London coffeehouse”.
36
Do original: “The Revolution shifted the master metaphor from de coffeshop to the town meeting”.
48
falassem por si
37
(NERONE & BARNHUST, p.439). Ainda de acordo com os
autores, esse modo de exercício da profissão teria originado o que conhecemos hoje
como jornalismo.
Retomando nosso objeto, no caso Pimenta Neves está em jogo uma dinâmica
de autoridade que tem lugar em um contexto muito específico de interpretação
brasileira desse modelo anglo-americano centrado em fatos. Concordamos com a
afirmação de que “a associação entre jornalismo e notícia ou informação, não é
umbilical, como se costuma pensar, mas histórica e construída” (ALBUQUERQUE,
sd, inédito
38
). E é sobre o construto de objetivo, neutro e imparcial que se assenta o
jornalismo brasileiro. Até a década de 50, podemos dizer que a grande parte dos
textos publicados no país seguia o modelo francês de jornalismo, considerando o
exposto de Chalaby. Ou seja, um modelo literário. Neste período, o ofício de
jornalista era ocupado comumente por escritores, como Nelson Rodrigues. A partir
da adoção de um modelo industrial de produção de notícia, baseada na divisão do
trabalho (marcada pela contratação dos copy descks), a literatura passou a dar lugar
ao factual no Brasil. Um dado curioso é o fato do personagem central de nosso
objeto ter participado desse processo, como podemos perceber através do trecho
extraído do livro "O adiantado da hora", de Carlos Eduardo Lins da Silva:
Outro jornalista que levou conceitos adquiridos nos EUA para o
jornalismo brasileiro foi Antonio Pimenta Neves, que em 1966, como
bolsista do World Press Institute, fez um estágio no Los Angeles
Times e depois foi para a equipe dirigente da Folha de S. Paulo e,
mais tarde, para a Folha da Tarde. Pimenta Neves diz que a visão
de como estruturar um jornal do ponto de vista administrativo foi a
principal influência que recebeu de seu período nos Los Angeles
Times. O estilo de diagramação do New York Herald Tribune
também o impressionou. Pimenta Neves o estudou e levou muito de
suas conclusões para os jornais que dirigiu no Brasil. Da imprensa
americana como um todo, Pimenta afirma ter adquirido a dimensão
da importância do cartum político e foi dessa compreensão que
surgiu uma página de humor nas edições de domingo da Folha de
S. Paulo, coordenada pelo desenhista Jaguar, a qual, embora tenha
tido vida curta na Folha, acabou por ser a semente do semanário
Pasquim. Pimenta Neves viveu na Folha uma interessante ao lado
de Cláudio Abramo, cuja fonte de influência internacional era muito
mais a França do que os EUA. Os dois juntos tentaram uma espécie
de fusão dos dois modelos, segundo ele relata hoje, mas na verdade
37
Do original: “The professional reporter would record facts with care and fidelity, and would arrange
them so that the facts would comment on themselves".
38
ALBUQUERQUE, A. Take a Walk on the Wild Side: os Blogs como Outro do Jornalismo. [no prelo]
49
o que começava a ocorrer era o processo de internacionalização
absoluta da produção jornalística, durante o qual é quase impossível
dizer que qualquer prática em qualquer sociedade corresponde a
estruturas de uma escola só" (LINS DA SILVA, 1991, p 82-83)
Assim, há algo que aproxima o jornalismo brasileiro daquele anglo-americano,
situado em fatos, uma vez que desde a segunda metade do século XX o mesmo
definiu seu caráter em referência a um conjunto de normas e procedimentos
herdados do país vizinho. Entretanto, não podemos dizer que o modelo de
jornalismo existente no Brasil é o anglo-americano, importado e naturalizado. Ana
Paula Goulart Ribeiro aponta para uma dimensão interessante da evolução do ofício
em solo nacional, que demonstra que o jornalismo daqui não pode ser entendido
como simplesmente pertencente ao modelo anglo-americano ou a qualquer outro
dentre os supracitados. Se a partir dos anos 50 o aspecto econômico começou a
prevalecer nas empresas jornalísticas em detrimento das determinações políticas, tal
qual como nos Estados Unidos no início do século XIX, o aspecto político jamais
desapareceu totalmente das redações brasileiras. A autora aponta o fator, inclusive,
como estrutural e fundamental na dinâmica das empresas jornalísticas.
Apesar de se terem afirmado imperativos de gestão e de
administração, estes ainda não eram suficientes para garantir a
autonomia das empresas. Por isso, os jornais jamais deixaram de
cumprir um papel nitidamente político. O apoio a determinados
grupos que estavam no poder ou na oposição (dependendo da
conjuntura) era essencial para garantir a sobrevivência de algumas
empresas, fosse através de créditos, empréstimos, incentivos ou
mesmo publicidade. (RIBEIRO, 2003, p.10)
Albuquerque destaca, inclusive, “o papel importante que os jornalistas
comunistas desempenharam no processo de modernização do jornalismo brasileiro,
entre as décadas de 1950 e 1970, mesmo em jornais conservadores”
(ALBUQUERQUE, 2008, p.7). Também diferentemente do que aconteceu nos
Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, o exercício da profissão passou a ser vinculado
à obrigatoriedade do diploma
39
, o que ocorreu a partir de 1969, na época da ditadura
militar.
39
A obrigatoriedade do diploma para o exercício profissional do jornalismo foi estabelecida por meio
do decreto-lei 972, de1969.
50
Produto da junta militar que governou o Brasil durante dois meses
naquele ano, e formulado nos termo do Ato Institucional n
o
5, o
decreto provavelmente tinha como objetivo diminuir a influência dos
comunistas nos jornais, incentivando a formação de profissionais
mais técnicos e menos políticos. (ALBUQUERQUE, 2008, p.7)
Assim, podemos dizer que o que houve no Brasil foi mais uma influência do
modelo norte-americano, do que a importação deste. E a obrigatoriedade do diploma
foi um dentre os fatores que contribuíram para isso.
O modelo Americano independente é usualmente pensado em
oposição à militância política. No Brasil, entretanto, comunistas e
outros jornalistas esquerdistas foram os principais responsáveis pela
adaptação desse modelo. (...) Essas mudanças resultaram num
novo tipo de identidade profissional compartilhada entre os
jornalistas brasileiros, bastante corporativista, baseada na defesa de
privilégios trabalhistas para aqueles que possuem um diploma
universitário em jornalismo
40
. (ALBUQUERQUE, sd, inédito, p.25
41
;
tradução nossa)
Se nos EUA os jornalistas se colocam como mediadores entre o governo e o
público, e reivindicam para si o papel de serem capazes de prover essas
informações de modo objetivo e imparcial, no Brasil houve uma “leitura muito
particular da retórica americana do Quarto Poder”, como afirma Albuquerque. Os
jornalistas brasileiros “mais do que simplesmente servir como canal de comunicação
entre os poderes (e destes com os cidadãos), eles reivindicaram o papel de árbitros
dos conflitos que se estabeleceram entre as instituições políticas e de intérpretes
privilegiados do interesse nacional” (ALBUQUERQUE, 2008, p.11). E, em alguns
momentos, os profissionais da imprensa se posicionam para além desse papel,
como uma espécie de defensores do interesse nacional. Mais uma vez, um de
nossos "personagens" nesta dissertação ocupa papel de relevância, segundo seus
próprios colegas, na construção de um espaço - no caso, um jornal - que zele pela
cidadania. Pimenta Neves é citado com destaque na entrevista de Alberto Dines, no
livro "Eles mudaram a imprensa":
O Cláudio disse: 'Acredite ou não, o Frias quer que eu faça uma
transformação no jornal. E eu queria que você, quando voltasse, se
40
Do original: The American independent model is usually thought as opposed to political militancy.
In Brazil, however, communist and other leftist journalists played a major role in the adaptation of this
model. (…) This changes resulted in a new kind of professional identity among Brazilian journalists, a
strongly corporatist one, based on the defense of job privileges for those with a university degree in
journalism”.
41
ALBUQUERQUE, A. On models and margins: comparative media models viewed from Brazilian
perspective. [inédito].
51
voltar, constituísse esse grupo que vai fazer essa renovação. Estou
indo para Washington agora, para convidar o Pimenta" - Antônio
Marcos Pimenta Neves, que estava como funcionário do Banco
Mundial. 'Ficamos eu, você e o Pimenta, um grupo de elite, e
fazemos um grande jornal para enfrentar a ditadura, um jornal de
opinião" (ABREU, LATTMAN-WELTMAN & ROCHA, 2003, pp.117-
118, grifo nosso)
Entretanto, ao contrário do que poderiam desejar o supracitado "grupo de
elite" na década de 70, os jornalistas brasileiros não abandonaram a retórica norte-
americana. E é justamente sob a afirmação de seguirem rotinas que levam seus
relatos a serem neutros e objetivos que repousa, em boa medida, a autoridade
jornalística. Tanto aqui como em nosso vizinho do norte. E se o advento da imprensa
foi responsável pelo surgimento do público, também é verdadeira a assertiva de que
jornalismo se considerarmos a categoria de público. Apesar de buscarem
sempre reafirmar entre si seus papeis enquanto mediadores legítimos entre o
público e os acontecimentos, apenas ante o consentimento por parte do público é
que realmente existe a chamada autoridade jornalística. O termo, a propósito, será
um dos temas centrais discutidos ainda neste capítulo.
2.2 O lugar do jornalista
O jornalista somente pode ser encarado como tal dentro de uma relação
específica: a relação entre jornalismo e fatos, obtidos por meio das fontes, e o
público. Assim, ele ultrapassa o papel de um mediador ordinário, justamente por
estar imerso no processo de mediação. O termo em inglês inbetweeness nos ajuda
a compreender esse papel uma vez que, conforme o modelo de jornalismo
contemplado por este trabalho, o jornalista possui a capacidade de estar entre e, ao
mesmo tempo, fazer parte do processo de comunicação.
Nesse processo, o profissional estabelece uma relação entre especialistas e
leigos, autoridades e cidadãos. Diremos, portanto, que o jornalista pode ser tido
como “um mediador entre a especialização da ciência e o senso comum dos
espectadores” (CAMPBELL, 1991, p.6). Entendemos o senso comum como algo
consensual, uma opinião partilhada e aceita consensualmente pelos membros da
comunidade, uma sabedoria ordinária, compartilhada pelas pessoas comuns. De
acordo com Campbell, “o termo denota ‘sabedoria convencional’; uma qualidade
de ‘natural’, de ‘as coisas são assim’ nele” (CAMPBELL, 1991, p.11). Uma vez que
52
o jornalista reivindica ser o intérprete legítimo entre autoridades e/ou especialistas e
o público, ele o faz se posicionando como agente do senso comum.
Na verdade, seu tom (o do bom senso) é até antiespecialista, se não
for antiintelectual; (...) para este saber não existe qualquer
conhecimento esotérico, nem técnicas e talentos específicos, e
pouco ou nenhum treinamento especializado, a não ser aquilo que,
de forma mais ou menos redundante, chamamos de experiência, e
de forma mais ou menos misteriosa, de maturidade. Para expressá-
lo de outra maneira, o bom senso representa o mundo como um
mundo familiar, que todos podem e devem reconhecer; e onde todos
são, ou deveriam ser, independentes. (GEERTZ, 1997, p.138-139)
Desse modo, os profissionais da imprensa orientam-se também por valores
dominantes na sociedade, pelo senso comum, ou o bom senso, a fim de que seu
discurso seja reconhecido e aceito pelo público. “... o bom senso é uma forma de
explicar os fatos da vida que afirma ter o poder de chegar ao âmago desses fatos”
(GEERTZ, 1997, p.127). Segundo Geerz, o bom senso possui cinco propriedades
principais: a naturalidade, que seria a capacidade de proporcionar um tom de
obviedade às coisas; a praticabilidade, ou seja, a praticidade, a capacidade de fazer
com que algo pareça ser o mais sensato; a leveza, ou a literalidade, parecer ser
exatamente o que se quis dizer; a o-metodicidade, por seu saber não advir de
dogmas, doutrinas ou teorias formais; e a acessibilidade, por poder ser captado por
qualquer pessoas, ser comum e aberto a todos os cidadãos estáveis.
Para além deste trabalho de construção do discurso jornalístico com base no
senso comum em prol de reconhecimento por parte do público, Hallin e Mancini
destacam o papel social do jornalista como representante do bem público e
intérprete da realidade. Segundo os autores, esse papel seria mais ativo no sistema
político norte-americano do que na Itália, uma vez que “na ausência de outras
instituições, compete ao jornalismo desempenhar o papel ativo de dar sentido e
estruturar os eventos da vida pública” (HALLIN & MANCINI, 1984, p. 17). Assim,
além de gerar publicidade no sentido comercial, o jornalismo norte-americano
também seria responsável por publicizar a discussão pública de assuntos políticos
naquele país.
O jornalismo nos Estados Unidos (como muitos jornais se auto-
denominam) uma espécie de “tribuna do povo”: na ausência de
outras instituições que poderiam representar os interesses do
público contra os interesses do Estado, o jornalismo preenche esse
53
papel. É um papel que, por um lado, investe os jornais de
autoridade, colocando-os à parte do público em geral e exigindo
deles que ajam de modo a confirmar seus status público, e pelo
outro lado (principalmente devido a uma cultura política individualista
que confere uma alto valor à sabedoria do “homem comum”) requer
deles que adotem uma postura populista, para agir como advogado
dos interesses e perspectivas do cidadão comum. (HALLIN &
MANCINI, 1984, p.19)
E para se colocarem como intérpretes da realidade, “os jornalistas norte-
americanos devem apresentar uma persona de autoridade que irá legitimar o poder
que eles obviamente possuem”. A legitimação desse lugar será a temática central do
tópico seguinte de nossa discussão.
2.3 Os jornalistas enquanto comunidade interpretativa
Se o jornalista é um sujeito que tem como um dos apoios o senso-comum, ele
também se ancora em normas e modos de produção da notícia para se legitimar
enquanto mediador. Como já vimos no capítulo anterior, se convencionou que o lead
é elemento essencial de qualquer texto jornalístico. Porém, “com o estabelecimento
do lead como convenção jornalística tornou-se claro que os jornalistas deixaram de
ser estenógrafos ou gravadores para passarem a ser intérpretes” (SCHUDSON,
1982, in TRAQUINA, 1993, p.284). Sendo assim, muito além de meros espelhos da
realidade, ou intermediários do processo de comunicação, os jornalistas podem ser
entendidos como construtores de realidade ao buscar dar sentido e organizar os
acontecimentos (afinal, não é isso que se faz no lead e através da pirâmide
invertida?). Entretanto, como se legitimam enquanto construtores de sentido ou no
papel de intérpretes da realidade?
Mais do que de poder, podemos dizer que o jornalista é um sujeito que dispõe
de autoridade. Se entendermos o primeiro conceito como a capacidade de se fazer
obedecer, os profissionais da imprensa ocupam um lugar de destaque na sociedade
por conseguirem se fazer ouvir legitimamente. E essa autoridade repousa no papel
de mediador ocupado pelos jornalistas entre os acontecimentos e o público. Cabe,
porém, indagar de onde vem essa autoridade? Como ela é construída e mantida?
Ou, nos apropriando de questões propostas por Zelizer (1992): “que fatores tornam
os media mais bem equipados para oferecer uma versão privilegiada da realidade” e
quais os “limites dessa autoridade cultural”?
54
O termo nos leva a pensar os jornalistas como coletividade. Não apenas a
comunidade jornalística como profissão, mas enquanto classe detentora de certo
status de autoridade interpretativa. Este último conceito sugere que os jornalistas
legitimam coletivamente suas ações.
A constituição dos jornalistas como comunidade interpretativa
significa que eles circulam um conhecimento próprio entre si através
de outros canais que não os manuais os cursos de treinamento e os
procedimentos de credenciamento enfatizados pelos códigos
formalizados do profissionalismo. (ZELIZER,1992, p.13)
Aqui, faze-se necessário retomarmos alguns conceitos para melhor embasar
nossa dissertação. Fish (1980) explica que as comunidades interpretativas são
assim denominadas por estabelecerem parâmetros que definem quais são as
interpretações autorizadas de um texto e quais leituras seriam aberrantes, por
separar o que é dizível daquilo que é indizível. Não é algo determinado por um leitor
individualmente, mas pelo grupo. Em seu livro Is there a text in this class?”, o autor
se opõe ao conceito de verdade do texto (sentido literal
42
), afirmando que todo texto
existe no campo de sua interpretação, ou seja, dentro de um contexto. Entretanto,
uma disputa em torno desta interpretação, de qual seria o lugar correto,
autorizado. entram as comunidades interpretativas, no campo de agentes que, de
certo modo, conferem significado ao mundo.
De fato, são as comunidades interpretativas, mais que o texto ou o
leitor, que produzem significados e são responsáveis pela
emergência dos aspectos formais. Comunidades interpretativas são
constituídas por aqueles que compartilham estratégias
interpretativas não da leitura, mas da escrita dos textos, por
comporem suas propriedades. (FISH, 1998, p.15)
Desse modo, Fish desloca o foco sobre a verdade do texto para uma análise
que enfatiza o papel de intérprete de quem o relata. Levando isso consideração,
seguiremos a mesma lógica para deslocar o papel da notícia, ou do fato para seu
42
Fish questiona comumente adotados 2 tipos de discurso: o discurso direto, no qual o significado
seria literal; e o discurso indireto, que poderia ser chamado de interpretativo, uma vez é dependente
das circunstâncias para ser interpretado. Em seu trabalho, o autor busca eliminar as fronteiras entre
um e outro, afirmando que o significado sempre é apreendido posteriormente ao pronunciamento e
que, entretanto, sempre é necessário haver um contexto compartilhado entre os interlocutores para
que a mensagem seja compreendida. “They are direct because in each case the illocutionary force
have will be immediately perceived; and they are indirect because their immediately perceived force
will have been a function of mutually shared background information that is, of some or other
special stage setting” (FISH, 1998, p.288).
55
agente, ou seja, o jornalista, a despeito destes não assumirem tão claramente esse
papel, afinal “os fatos falam por si”... pelo menos, para o “bom” jornalista, é assim
que as coisas deveriam ser. Zelizer aponta os jornalistas como uma comunidade
interpretativa, possuidores de um tipo específico de autoridade, a autoridade
jornalística, que é a capacidade de se promoverem como porta-vozes autorizados e
críveis dos eventos da vida real. “Implícito aqui está o reconhecimento da
dependência da autoridade jornalística para com a aquiescência do público”
(ZELIZER, 1992, p. 14), ou seja, é necessário o consentimento da audiência. Além
do mais, os jornalistas utilizam a “prática narrativa como um meio de representar
coletivamente códigos compartilhados de conhecimento que por eles são
retroalimentados à comunidade a fim de se legitimarem como autoridades culturais”
(ZELIZER, 1992, p. 14).
Ainda de acordo com Zelizer, os jornalistas reivindicam uma espécie de
autoridade cultural por possuírem um conjunto particular de qualidades que os
destaca perante as outras pessoas. No caso brasileiro, não é o saber específico que
tem grande valor, não é essa a fonte de autoridade. O jornalista não chega a ser um
especialista, não é mais que um sujeito bem informado. Este, porém, tem como
pressuposto para seu trabalho o acesso a informações de forma privilegiada, de
antemão, assim como a capacidade de circular entre esferas de poder e deferentes
classes sociais. Apenas esses fatores, entretanto, não lhe conferem autoridade. Já o
ideal de objetividade serve à comunidade jornalística “como instrumento estratégico
que autoriza os media a produzir sentidos, enquadrar as ocorrências e interpretar a
realidade, projetando no jornalista a imagem de profissional isento e livre de
manipulações” (CASTILHO, 2005, p. 71). Essa suposta neutralidade nos ajuda a
entender os fundamentos da autoridade jornalística, pelo menos se nos guiarmos
pelo modelo de jornalismo calcado em fatos (discutiremos acerca desse modelo de
jornalismo mais à frente).
Podemos dizer que o caso Pimenta seria um momento em que os próprios
jornalistas questionam a autoridade jornalística; momento que também pode ser
encarado como oportunidade para eles se consolidarem no interior desta
comunidade e reafirmarem sua autoridade. É possível considerar que o caso em
questão pode ser entendido como um incidente crítico, nas palavras de Zelizer. “O
termo incidentes críticos, quando empregados discursivamente, refere-se a aqueles
56
momentos em que as pessoas circulam, contestam e negociam seus próprios
padrões de ação” (ZELIZER, 1992, p.5).
No livro Covering the body”, a autora lança mão do termo para dizer da
cobertura do assassinato do presidente Kennedy pela mídia norte-americana. De
acordo com o trabalho, os jornalistas norte-americanos capitalizaram a cobertura da
morte do presidente (o Covering the body”) como um lugar de auto-afirmação, de
reivindicação de maior autoridade. “Importaremos” o conceito, na ausência de um
que acreditemos se encaixar melhor para nos ajudar a entender o caso brasileiro.
Entretanto, no caso Pimenta Neves/Sandra Gomide supomos que ocorreu um
fenômeno diametralmente oposto ao da cobertura do assassinato de Kennedy. Ao
invés de auto-afirmação, o que houve foi o questionamento do papel do jornalista
enquanto mediador. Proponho ser possível identificar esse comportamento nos
debates promovidos por jornalistas em torno do assassinato no site Observatório da
Imprensa, que será objeto de um estudo mais aprofundado no Capítulo 4.
Para os jornalistas, os incidentes críticos constituem um modo de
tornar presentes momentos importantes do ponto de vista do bem-
estar duradouro da comunidade jornalística. Os incidentes críticos
contribuem para a importância do discurso e da narrativa na
formação da comunidade através dos tempos. (ZELIZER, 1992, p.5)
Contestar e negociar os próprios padrões de ação é, por fim, colocar em
xeque e, ao mesmo tempo, buscar reafirmar a própria autoridade jornalística, uma
vez que esta se situa no contexto das práticas jornalísticas. Boa parte dessa prática
constitui-se como um tipo de “trabalho secreto”, conforme afirma Zelizer.
Os jornalistas apresentam os eventos através de enquadramentos,
mas sem revelar os segredos, as fontes ou os métodos de tal
processo (...) Imprensados entre o público e o evento a ser descrito,
os repórteres são capazes construir aquilo que lhes parece ser
preferível e estrategicamente importante graças à pressuposição de
que eles dispõem de alguma autoridade acerca das matérias que
narram. (ZELIZER, 1992, p.11)
O caso Pimenta Neves é exemplar por nos permitir identificar esse processo
de auto-legitimação/auto-contestação das interpretações autorizadas. Os jornalistas
discutem com o público (discurso mediatizado) e entre si (discurso profissional)
43
.
43
Zelizer, ao se referir à cobertura da morte de Kennedy pela mídia norte-americana buscou distinguir
discurso mediatizado do profissional. “O discurso mediatizado, no qual os jornalistas discutiram o
assassinato com o grande público, incluiu os relatos mediatizados de massa da cobertura original
57
Arriscamos dizer que o discurso mediatizado está impregnado pelo discurso
profissional, como uma estratégia de legitimação retórica. Quando falam do crime, a
imprensa não está no papel apenas de mediadora entre o acontecimento e o
público. Nos discursos acerca do crime cometido pelo jornalista contra a colega de
profissão e ex-namorada, os jornalistas responsáveis pela cobertura falam entre si e
de si.
É a partir do terreno do bom senso que o jornalista se posiciona. E se até
então tentamos entender de onde vem a autoridade que justifica a posição de
mediador ocupada pelos jornalistas, deslocaremos o eixo de nosso estudo para uma
segunda questão: afinal que tipo de mediação é essa exercida pelo jornalista? É
preciso ter em mente que situamos nossa discussão em torno de um modelo
específico e, portanto, o lugar do jornalista enquanto mediador está ligado ao
modelo de jornalismo centrado em fatos.
Faz-se oportuno lembrar que os jornalistas usam de estratégias para forjar a
identidade do grupo. Como vimos no Capítulo 1, o uso do lead, da pirâmide
invertida, das aspas nas citações, a apresentação dos diferentes lados da questão
são exemplos de rituais estratégicos de objetividade. No entanto, a autoridade
interpretativa dos jornalistas não está apenas na objetividade, usada para legitimar o
discurso jornalístico.
Propomos que a dimensão política do jornalismo é afirmada a partir da
dimensão moralizante da profissão. Os jornalistas, ao se posicionarem como uma
espécie de guardiões da ordem moral, visariam ao fortalecimento de sua autoridade
representativa. Em certa medida, os jornalistas tendem a reforçar os valores
predominantes da sociedade em que vivem nos textos que escrevem. E acabam por
presumir, mesmo que inconscientemente, que agem de forma objetiva, uma vez que
não destoam desses valores, julgados por eles como universais. Na prática, “a
ordem moral é tornada um fato e os fatos, claro, podem ser observados e reportados
com distanciamento” (GLASSER & ETTEMA, 1991, p.13). Essa ordem moral
encontra-se expressa não propriamente nas palavras do repórter, mas nas fontes,
ou seja, inseridas nas palavras de alguma autoridade ou na letra da lei.
sobre o assassinato e as discussões sobre a tal cobertura. O discurso profissional, no qual os
jornalistas discutiram entre eles mesmos a cobertura sobre o assassinato, foi encontrado na trade
press, em discursos publicados e em recensões do jornalismo profissional”. (ZELIZER, 1992, p.16)
58
Mais do que apenas reforçar a ordem moral, o jornalismo contribui para que
essa seja renovada e atualizada. Afinal, é pouco produtivo não considerar o ofício
como algo cultural e histórico e, portanto, sujeito participante (em um sentido lato)
das mudanças de seu tempo. Apesar de tratar unicamente dos repórteres policiais,
acreditamos ser possível estender a toda a classe a afirmação de que
Os jornalistas investigativos não são, então, árbitros morais que
podem recriar a ordem moral a cada nova matéria, mas também não
reforçam simples e acriticamente essa ordem. Antes, eles
contribuem algo para a relação moral duradoura com suas
comunidades. (GLASSER & ETTEMA, 1991, p.12)
Mas essa relação com a ordem moral e sua “objetivicação” esconde conflitos.
A ordem moral e, por conseguinte, o senso comum, são menos identificáveis quanto
se pode acreditar. Para além desse fato, os jornalistas usam de estratégias para
mascarar da audiência o conflito diário travado nas redações entre objetivo versus
subjetivo. A objetividade pode ser entendida como uma forma encontrada pelos
jornalistas de mostrarem que há um método, mas que continuam sendo pessoas
comuns, apenas bem informadas. Estariam, por fim, a meio caminho entre aquele
que é científico e o universo dos leigos. Entretanto, acreditamos que nosso objeto
em particular nos ajuda a enxergar melhor as ambigüidades diárias que fazem parte
do universo das redações. Sobretudo porque o caso envolve justamente aqueles
que seriam os responsáveis por contar aos “comuns” sobre as coisas do mundo; e
lhes expõem, de forma contundente, o íntimo.
59
CAPÍTULO 3
”Antônio M. Pimenta Neves tem um dos mais notáveis currículos do jornalismo
brasileiro contemporâneo, tendo ocupado cargos de direção nas principais empresas
do setor em São Paulo.” Assim começa a matéria “Pimenta Neves tem currículo
notável”, divulgada no site da Folha de São Paulo no dia 21 de agosto de 2000.
Como nos promete a introdução do texto, os trechos seguintes continuam a discorrer
sobre a vivência profissional singular do jornalista:
Começou na profissão como repórter e crítico de cinema da "Última Hora", em
1958. Depois, foi repórter e redator de política de "O Estado de S. Paulo", para
o qual também trabalhou na Sucursal de Brasília, logo após a capital do país
ter-se transferido para lá.
Veio para a Folha com Cláudio Abramo, integrando a equipe do comando da
Redação do jornal. Dali, foi para a chefia da Redação da "Folha da Tarde",
função que ocupou em 1968, quando esse jornal se destacou na cobertura do
movimento estudantil.
Depois, foi diretor da revista "Visão" e assessor editorial da presidência da
Editora Abril.
Em 1974, mudou-se para Washington, como correspondente da Folha, para a
qual cobriu o desenlace do caso Watergate e a renúncia do presidente Richard
Nixon. Na capital dos EUA, trabalhou como correspondente também para a
"Gazeta Mercantil" e para "O Estado de S. "Paulo".
Banco Mundial
O Banco Mundial o chamou para ser o conselheiro-sênior para assuntos
públicos da vice-presidência da América Latina e do Caribe em 1986, cargo
que ocupou até 1995, quando retornou ao Brasil para dirigir a Redação da
"Gazeta Mercantil". Em 1997, retornou a "O Estado de S. Paulo", como diretor
de Redação.
No seu período no Banco Mundial, Pimenta mantinha contatos constantes com
jornalistas e autoridades brasileiras. Vinha ao país com freqüência,
acompanhando o vice-presidente do Banco Mundial, a quem assessorava, ou
com missões técnicas. Era, também, interlocutor freqüente dos governantes do
país que iam a Washington em busca de empréstimos do banco.
Pimenta Neves também teve destacada formação acadêmica. Bacharel em
direito pela Universidade Mackenzie, fez mestrado em Politica Pública
Internacional na Johns Hopkins University, uma das mais importantes dos
EUA. Participou de cursos de pós-graduação e extensão universitária em
jornalismo, economia e política no Mocallester College e na Universidade
Harvard.
"Los Angeles Times"
60
Nos anos 60, fez estágio do jornal "Los Angeles Times", um dos cinco mais
importantes e de maior circulação paga dos EUA, onde aprendeu muitas das
técnicas que depois aplicaria no jornalismo brasileiro.
Pimenta Neves é separado e tem duas filhas gêmeas, de 28 anos, nascidas e
radicadas nos EUA, uma das quais enfrenta recentes e sérios problemas de
saúde. (Folha de São Paulo online, 21 de agosto de 2001)
O que levou os holofotes da imprensa a destacarem Pimenta Neves, até
então um prestigiado jornalista, mas não alguém cuja fisionomia ou mesmo o
currículo profissional fossem conhecidos pelo grande público, não foi o recebimento
de um prêmio ou homenagem pelo “conjunto da obra”, mas, sim, o fato de ele ter
assassinado sua ex-namorada Sandra Gomide. Como o assassino, a vítima também
era jornalista, tendo trabalhado como subordinada de Pimenta Neves nos jornais
Gazeta Mercantil e O Estado de São Paulo. Neste último, exerceu os cargos de
repórter especial e, posteriormente, editora de economia, de 1998 a 2000.
Neste capítulo, avaliaremos como os profissionais responsáveis pela
produção da notícia procuraram lidar com a cobertura do crime em relação ao
grande público. Para tanto, teremos a seguinte indagação como guia: como os
problemas que se impõem aos jornalistas, que precisam falar como observadores
distanciados sobre um caso envolvendo outros jornalistas na posição de tima e
assassino, vão marcar esse relato? A partir dessa questão geral, identificamos um
conjunto de temáticas que nos ajudarão a delimitar melhor nossa análise, divididas
em categorias derivadas do lead (quem, o que, quando, onde, como e por que).
Nem o “onde” (no Haras Setti, em Ibiúna, interior de São Paulo), nem o “quando” (no
início da tarde de domingo, dia 20 de agosto) foram objeto de controvérsia na
cobertura do crime.
Assim, a primeira das categorias analíticas que exploramos aqui, "o que", diz
respeito ao crime, uma vez que as coberturas acerca desses incidentes comumente
se traduzem em uma espécie de julgamento moral (GLASSER & ETTEMA, 1991),
uma forma de trazer ordem ao mundo. Buscamos entender como o crime foi descrito
pelos jornalistas que o cobriram, qual o ponto de vista foi adotado para relatá-lo.
Nossa segunda categoria se refere ao “quem”. Aqui, existem duas
subcategorias: o quem-assassino e o quem-vítima que, em última instância, nos
propõem refletir como os jornalistas desenvolveram questões relacionadas à autoria
61
do assassinato e trabalharam aspectos como a humanização ou a
“desumanização” dos envolvidos. Logo, uma nova pergunta se apresenta: quem,
afinal, é responsabilizado pelo crime?
A questão acima proposta nos leva à nossa terceira categoria, como e por
que”, e está relacionada ao que teria levado o crime a acontecer. O relacionamento
entre Sandra e Pimenta, do modo como foi enquadrado pelo relato jornalístico, nos
algumas pistas acerca da responsabilização pelo ocorrido. Esse mesmo
enquadramento nos leva a acreditar que o modo como o crime foi relatado pela
imprensa está intimamente ligado à forma como a imprensa se articula e auto-
gerencia, o que envolve a obediência e (por que não?) subserviência às hierarquias
estabelecidas dentro das redações.
Para realizarmos nosso estudo, utilizaremos como objeto empírico os
primeiros quinze dias da cobertura que se seguiram ao assassinato de Sandra
Gomide, divulgado pela versão virtual da Folha de São Paulo, somados à matéria
postada no mesmo meio de comunicação no dia em que ocorreu o crime, a primeira
dentre as 229 que compõem nosso material de análise.
3.1 A versão virtual da Folha de São Paulo e o caso Pimenta Neves
É importante esclarecer que, por se tratar de um meio virtual de comunicação,
a dinâmica da versão online da Folha de São Paulo apresenta algumas diferenças
em relação ao jornal impresso. Um dos termos orientadores do trabalho jornalístico
impresso, o deadline, que diz do prazo máximo em que uma matéria possa ser
entregue pelo jornalista a tempo de ser impressa, não faz muito sentido no
jornalismo online, uma vez que não um horário determinado para a exibição do
noticiário. Nem por isso, porém, a luta contra o tempo deixa de existir. Pelo contrário.
O imediatismo torna-se um imperativo, que a possibilidade da atualização da
notícia a qualquer momento faz com que o ritmo de trabalho do jornalista seja
voltado para a produção de informação praticamente em “tempo real”. Apesar da
diferença no modo como os prazos devem ser encarados pelos jornalistas, a Folha
Online reivindica seguir os princípios editorias do Projeto Folha (pluralismo,
apartidarismo, jornalismo crítico e independência, divisão em cadernos temáticos),
que orienta a publicação diária.
É o primeiro jornal em tempo real em língua portuguesa. Com uma
equipe de reportagem própria, tem por objetivo a criação, produção
62
e desenvolvimento de conteúdo jornalístico on-line, além de serviços
com destaques para áreas de interatividade.
Seu compromisso é o de produzir conteúdo on-line com a mesma
qualidade editorial e seguindo os princípios de pluralidade,
independência e criticismo da Folha. (FOLHA ONLINE
44
)
As principais divisões encontradas no jornal impresso Folha de São Paulo se
mantêm na versão virtual. As matérias que fazem parte de nosso corpus foram
retiradas da sessão “cotidiano”, onde se encontra a cobertura virtual da Folha de
São Paulo acerca do caso. E, por reivindicar trabalhar em tempo real, a Folha Online
deu um “furo” no jornalismo impresso, ao colocar no ar a primeira matéria sobre o
assassinato de Sandra Gomide no mesmo dia em que o crime aconteceu, algo
impensável para qualquer jornal impresso.
A cobertura do caso se deu de forma ininterrupta durante os 20 primeiros
dias, a contar da data em que o crime foi cometido. A partir de então, houve
continuidade, com falhas em alguns dias, até 24 de março de 2001, sete meses
após o início do caso. A escolha dos 15 primeiros dias de cobertura se ocorreu em
virtude da abundância de material divulgado (veja gráfico abaixo e anexo 1), o que
demonstra a efervescência do caso e o grande interesse do jornal em cobri-lo e
mantê-lo na pauta de discussões.
Gráfico 1: Cobertura do caso Pimenta Neves na Folha Online
0
5
10
15
20
25
30
20/ago
22/ago
24/ago
26/ago
28/ago
30/ago
1/set
3/set
5/set
7/set
9/set
11/set
13/set
15/set
17/set
19/set
44
Princípios editoriais (Projeto Folha). Consulta feita em 6 de setembro de 2008 e disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/conheca/folha_online.shtml>
63
Um olhar distanciado poderia encarar o assassinato simplesmente como mais
um crime de sangue com nuances passionais:
A jornalista Sandra Florentino Gomide, 33, foi morta no início da tarde de domingo
com um tiro na cabeça e outro nas costas no Haras Setti, em Ibiúna, interior do
Estado de São Paulo. O crime é atribuído a Antônio Marcos Pimenta Neves, 63,
diretos de Redação do jornal ‘O Estado de São Paulo’. As suspeitas são de crime
passional. (Folha de São Paulo, 20 de agosto de 2000, 20h48)
Jornalisticamente, todas as perguntas que compõem o lead (a abertura da
matéria) foram respondidas. Percebemos ao longo da cobertura, que a Folha Online
buscou manter a imagem de "jornal imparcial e objetivo". Entretanto, uma análise
mais aprofundada nos leva a questionar se essa imagem realmente pode ser tida
como algo concreto ou concretizável. como alcançar o distanciamento
necessário, uma vez que os responsáveis por narrar ao público os fatos são colegas
de profissão e, muitas vezes, possuem vínculos de coleguismo com os principais
envolvidos no crime: a vítima e o assassino confesso?
Para responder a essa pergunta, nos valeremos de outras, usadas pelos
próprios jornalistas para orientar seu trabalho com vistas à objetividade e, que,
acreditamos, suscitam alguns dilemas quando relacionadas a esse caso específico.
São elas: “o que”, “quem”, “como e por que”.
3.2 “O que”: o crime enquanto categoria
O relato de um crime, mais do que contar o que aconteceu, é uma forma de
dar ordem ao mundo e, portanto, carrega em si um julgamento moral (GLASSER &
ETTEMA, 1991). A violação dessa ordem moral, portanto, é lugar de afirmação do
moralismo, servindo para a naturalização da mesma (Gans, 1980). Assim, os
noticiários acerca dos crimes ilustram, por oposição, uma regra, funcionando, em
geral, como uma espécie de espelho de um discurso social sobre o que é moral,
normal ou aceitável.
... a imprensa em geral, e a reportagem investigativa em particular,
funciona como uma influência fundamentalmente conservadora na
medida em que tipicamente reifica, mas também vivifica, valores
64
permanentes e invoca, junto ao público, indignação ante sua
violação. (GLASSER & ETTEMA, 1991, p. 22)
O que vemos, lemos ou ouvimos nos veículos jornalísticos pode ser entendido
como compartilhamento de indignação com o público em virtude de uma infração
cometida e que é moralmente inaceitável como, por exemplo, o caso que envolve
assassinatos nos quais a vítima o teve (ou não teria) chance de se defender. É o
que Priscilia Seifert (2004) encontrou ao analisar as páginas que O Globo dedicou à
cobertura do caso Daniella Perez, jovem atriz brutalmente assassinada.
O impacto e a mobilização do público diante do ocorrido quebraram
a rotina do jornal (...). Sensível a essa reação, o Globo se sentiu à
vontade para abandonar os parâmetros da objetividade e
imparcialidade jornalística e adotar um tom emocionado e trágico,
eminentemente narrativo. (SEIFERT, 2004, p;115)
Na morte de Daniella, as nuances emotivas marcaram o relato jornalístico
durante o longo período em que ocorreram as investigações, necessárias para
esclarecer vários detalhes acerca do acontecimento, inclusive quanto à arma
utilizada (chave de fenda, punhal, faca, tesoura?) e o nome de seu autor - ou
autores (Guilherme de Pádua? Paula Tomaz, mulher de Guilherme?).
O Globo acompanhou toda investigação policial, as etapas do
processo judicial e o julgamento pelo Tribunal do Júri. Mas,
paradoxalmente, a cobertura não foi construída a partir de dados da
investigação dou do processo, e sim através de uma narrativa que
reforçava a natureza monstruosa do fato e dos acusados. Dessa
forma, O Globo condenou Paula e Guilherme sumariamente
(SEIFERT, 2004, p.11, grifo nosso)
No caso Pimenta Neves/Sandra Gomide, não houve questionamentos quanto
à autoria e a arma utilizada no crime. O jornalista confessou rapidamente, e teve sua
culpa reforçada por testemunhas.
O crime
O corpo da jornalista Sandra Gomide foi encontrado com dois tiros _um na
cabeça e outro nas costas_ no domingo à tarde no Haras Setti, onde ela e
Pimenta Neves mantinham cavalos.
Uma testemunha afirmou à polícia ter visto Pimenta Neves manobrando o carro
e saindo do local logo após ouvir uma discussão e disparos.
Há duas semanas, a jornalista procurou a polícia para dar queixa do ex-
namorado, alegando que havia sido agredida e ameaçada por ele em seu
65
apartamento.
Segundo a polícia, após os disparos, Pimenta Neves saiu do haras em um
Renault Clio. O carro foi encontrado abandonado pela polícia no final da noite
de anteontem a aproximadamente 3 km do local do homicídio.
"Um segundo veículo, ainda não identificado, o ajudou a fugir", diz o delegado
Carlos Alberto Ferreira Sato, da Delegacia do DHPP (Departamento de
Homicídios e de Proteção à Pessoa).
(...)
A pena para quem é condenado por homicídio qualificado (em que é usado
recurso que dificulta ou torna impossível a defesa da vítima) é de 12 anos a 30
anos de prisão. Para o homicídio simples, é de seis anos a 20 anos. (Folha
Online, 22 de agosto de 2000, 13h18)
Em comum, porém, os dois casos possuem um ponto fundamental: assim
como aconteceu com Daniella, Sandra também não teve chances de defesa, sendo
a jornalista assassinada com dois tiros de revólver, pelas costas. Esse mesmo
aspecto, curiosamente, deu origem a coberturas completamente distintas. Seguindo
a proposta de Entman (1991), essas coberturas são formadas a partir de quadros
interpretativos, compostos de pelo menos cinco aspectos nos textos dos media:
juízos de importância (referente a elementos mais ou menos realçados na
cobertura), agente (determinação de um culpado pelo incidente, por exemplo),
identificação (ou o jogo de humanização e desumanização dos sujeitos envolvidos),
categorização (diz da escolha de rótulos) e generalização (o enfoque da parte ou do
todo).
Se a morte da atriz global foi enquadrada como ato bárbaro, idéia selecionada
e enfatizada nas manchetes (“As marcas da brutalidade: Daniella é morta com 16
golpes de tesoura”); a cobertura do crime contra a jornalista foi feita com bem menos
clamor, indignação e humanização. Observando a cena do crime, o que houve foi
um homicídio doloso, em que Sandra não teve chances de defesa.
O promotor afirma ter chegado à conclusão de que houve homicídio qualificado
a partir de laudo necroscópico do IML (Instituto Médico Legal), que aponta que
a jornalista foi alvejada duas vezes pelas costas. Segundo ele, isso denota que
ela não teve possibilidade de defesa.
De acordo com o laudo, o primeiro tiro foi nas costas. O segundo, quando a
jornalista estaria caída no chão, na orelha esquerda. As duas balas ficaram
alojadas no corpo de Sandra.
Segundo o laudo, Sandra teve morte instantânea. "O laudo mostra que os dois
66
tiros foram por trás, o que torna o crime qualificado e, portanto, hediondo,
impossibilitando o relaxamento da prisão", disse o promotor. "Se eu continuar
no caso, sem dúvida pedirei prisão preventiva." (Folha Online, 23 de agosto de
2000, 18h09)
Caso dramatizado pela mídia, o assassinato poderia ser classificado como
uma emboscada ou tocaia de Pimenta (uma vez que Sandra não pretendia
encontrar com o ex-namorado naquele domingo) e, em última instância, um ato
covarde (o crime ter sido cometido “pelas costas”). Entretanto, ao se referir ao crime
a Folha Online não se vale de palavras como covardia, brutalidade, barbaridade. A
indignação quanto ao modo como foi cometido (sem chances de defesa) não é
destacado nem enfatizado nas matérias avaliadas.
Reforçando essa assertiva, diferentemente do caso Daniella Perez em O
Globo, o ponto de vista adotado pela Folha Online para a cobertura do assassinato
de Sandra Gomide foi o dos especialistas do Instituto Médico Legal (IML), como
demonstra a manchete “Jornalista foi morta com dois tiros dados pelas costas,
revela IML”, de 23 de agosto de 2000 e a matéria abaixo apresentada:
Primeiro tiro dado por Pimenta Neves atravessou coração de Sandra
Gomide
Laudo do IML (Instituto Médico Legal), ao qual a Folha Online teve acesso,
revela que o primeiro tiro que o jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, 63,
disparou contra sua ex-namorada, a também jornalista Sandra Gomide, 32,
atravessou o coração da vítima. A bala entrou pelas costas e atingiu a sexta
vértebra antes de chegar ao coração.
Não é possível determinar a qual distância foi feito o disparo, mas não foram
encontradas marcas que indiquem que o tiro foi dado à queima roupa.
Sandra foi morta com dois tiros no último dia 20 em um haras na cidade de
Ibiúna, a 70 km de São Paulo. Pimenta Neves, que está internado em um
clínica psiquiátrica e teve a prisão temporária decretada, confessou o
assassinato em depoimento à polícia.
Na manhã desta segunda-feira, a polícia deu por encerrada a fase de
investigação e concluiu que Pimenta Neves cometeu homicídio doloso (quando
há intenção de matar) duplamente qualificado.
Ainda de acordo com o laudo do IML, assinado pelos legistas Celso Roberto
Nantes e Angelo Higo Zaccariotto, Pimenta Neves deu o segundo tiro na orelha
67
esquerda de Sandra. Pela trajetória da bala, o jornalista teve que se abaixar
para atirar. A bala ficou alojada no crânio da vítima. Os legistas também não
encontraram marcas que indicassem disparo à queima roupa.
No laudo, os legistas afirmam que a causa mortis de Sandra foi "insuficiência
cardiorrespiratória aguda, consequente a tamponamento cardíaco mais
traumatismo craniencefálico". (Folha Online, 28 de agosto de 2000, 19h21)
Ao adotar essa perspectiva, a abordagem da imprensa em torno do crime
pode ser entendida como fria, despida de emoção, não se percebendo um
sentimento de “justiça” incluso.
Também é curioso o dado de muitas das matérias não se referirem
necessariamente ao crime. No conjunto da cobertura analisada, cerca de 50 (ou
seja, mais de 25 por cento) apresentam como enfoque principal a saúde de Pimenta
Neves, como exemplificam as manchetes: “Novo boletim médico de Pimenta Neves
deve ser divulgado às 9h”, “Ex-mulher de jornalista e filhas virão dos EUA para
visitá-lo”, “Pimenta Neves está deprimido e pode se suicidar, diz advogado”,
"Pimenta está mais tranqüilo", diz advogado, “Companheiros de cela se oferecem
para dar remédios a Pimenta”. Por vezes, o crime sequer chegado a ser mencioná-lo
ao longo de todo o texto da notícia.
Quadro clínico de Pimenta Neves melhora; jornalista está em quarto
comum
O boletim médico de número 4, divulgado pouco pelo Hospital Albert
Eistein, na zona sudoeste de São Paulo, informa que o jornalista Antônio
Marcos Pimenta Neves, 63, obteve melhora em seu quadro clínico e que, por
isso, foi transferido da unidade de terapia semi-intensiva para um quarto
comum.
Segundo o boletim, o estado geral de Pimenta Neves é estável, com funções
hemodinâmicas preservadas. Ele foi internado às 19h de terça-feira em estado
de coma por ingestão de excesso de calmantes, da classe benzodiazepínicos.
O hospital o informou que medicamento contém está substância. (Folha
Online, 24 de agosto de 2000, 11h35)
Com isso, nota-se que o assassinato efetivamente não domina as notícias
divulgadas pela Folha Online, sendo identificados deslocamentos para outros
assuntos, como a internação e o estado de saúde do jornalista. Em geral, elas
retratam um homem doente, fragilizado; e pouco ou nada têm a ver com o crime.
68
Pimenta Neves recebe visita de advogado e familiares
O jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, 63, recebeu hoje pela manhã a
visita do seu advogado Antonio Claudio Mariz de Oliveria na Clínica
Psiquiátrica do Parque Julieta, na Granja Juliela (zona sudoeste de São Paulo).
Ele permaneceu das 10h às 10h30 com o jornalista.
O advogado disse que Pimenta chorou "copiosamente" e estava bastante
deprimido.
Às 11h15, chegaram à clínica a ex-mulher de Pimenta Neves e uma de suas
filhas.
Dois carros do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) da
Polícia Civil de São Paulo, permanecem no local. (Folha Online, 2 de setembro
de 2000; grifo nosso)
Aqui, faz-se necessário um esclarecimento: enquadramentos pouco
hegemônicos sempre aparecem, mas numa posição de menor destaque (ENTMAN,
1991). Algumas matérias bastante escassas - apontam para um comportamento
frio por parte de Pimenta (“Para rcio Thomaz Bastos, Pimenta Neves premeditou
assassinato”), ao contrário do aspecto passional, que poderia ser utilizado como
justificativa ao ocorrido.
Homem diz à polícia ter presenciado assassinato de jornalista em Ibiúna
(...) Segundo a Folha Online apurou com a polícia, o relato da testemunha
pode complicar a situação do jornalista, pois aumentaram os indícios de que
ele tinha a intenção de matar.
(...)
A jornalista havia acabado de cavalgar. O homem, que disse estar a menos de
20 metros do local e tinha visão completa da cena, afirma que Pimenta Neves
estacionou o carro e foi andando, calmamente, na direção de Sandra. Os
dois chegaram a trocar algumas palavras. A testemunha diz não ter
conseguido ouvir o que os dois conversaram.
Logo em seguida, de acordo com o depoimento, Pimenta Neves teria segurado
o braço de Sandra e a forçou a entrar no carro. Sandra resistiu e começou a
gritar. Depois, tentou correr. Nesse momento, segundo o relato, Pimenta
Neves teria dado o primeiro tiro, que atingiu as costas da jornalista.
no chão, Sandra teria pedido ajuda a essa pessoa que presenciou a
cena. Mas, segundo a testemunha, não houve tempo para nada. Ele afirma
que Pimenta Neves teria se aproximado, calmamente, de Sandra e teria dado
o segundo tiro, que atingiu o ouvido, a menos de meio metro da cabeça da
jornalista.
Em seu depoimento à polícia, ocorrido na última quinta-feira no hospital Albert
69
Einstein, Pimenta Neves deixa a entender que atirou a esmo, sem saber
exatamente onde tiros pegaram.
Após o segundo tiro, afirma a testemunha, Pimenta Neves teria virado as
costas, caminhado lentamente até o carro e foi embora. (...) (Folha Online,
26 de agosto de 2000, 20h08, grifos nossos)
O terror e a angústia de Sandra poderiam ser objetos de humanização do
crime. Entretanto, não há manchetes e reportagens que afirmem que a jornalista
teria implorado por sua vida. O máximo que encontramos é o trecho da matéria
acima destacado, que nos indícios do drama vivido pela jornalista ao ser baleada
por Pimenta e que, “já no chão, teria pedido ajuda”. Os relatos feitos pela imprensa
se dão à luz do IML, como foi demonstrado. A ação é, dessa forma,
“destramatizada”.
Ainda de forma contraditória ao relato hegemônico, identificam-se matérias
divulgadas na tentativa de dar um corpo mais consistente à cobertura. Ou seja,
aqueles temas que poderiam ser relacionados ao crime, foram relacionados a ele. É
o que ocorre com a questão de um suposto aumento de criminalidade, mostrada em
duas matérias da Folha Online. Em uma delas, cuja manchete “assassinato de
mulher bate recorde em SP”, a morte de Sandra Gomide é apontada como mais
uma, em meio à crescente estatística:
Levantamento feito pelo departamento de homicídios da polícia paulista e pelo
sociólogo Guaracy Mingardi, obtido com exclusividade pela Folha, mostra que
o motivo do assassinato da jornalista Sandra Gomide, aos 32 anos, pelo
também jornalista Antônio Pimenta Neves, 63, é regra, não exceção. Quem
ama continua matando: crime passional é o principal motivo pelo qual as
mulheres são mortas em São Paulo. (Folha Online, 27 de agosto de 2000,
10h03)
Em certa medida, o acima exposto é semelhante ao identificado no estudo de
Fishman (1980) sobre a “onda de crimes contra idosos”, incidente que teria ocorrido
na cidade de Nova Iorque, em 1976. De acordo com o autor, a onda de crimes foi
um evento produzido pelo trabalho jornalístico. Isso se deveu porque os meios de
comunicação foram, ao mesmo tempo, o meio pelo qual o blico tomou
conhecimento da onda de crimes, mas também onde a mesma foi montada.
Entretanto, apesar de os jornalistas manipularem (no sentido estrito da palavra, de
manusear) as informações, Fishman esclarece que eles não criaram ou inventaram
70
os crimes; o papel da mídia, portanto, foi dar forma e conteúdo aos incidentes por
ela reportados.
Sob essa perspectiva, a violência e a impunidade, como temas amplos e
preocupantes a toda a sociedade, fazem parte do corpo de matérias relacionadas ao
caso Pimenta Neves. Caso da segunda e última - reportagem relacionada
exclusivamente a essa temática, em que a indignação do público (no caso,
estudantes do ensino médio) se mostre presente. Apesar disso, esta não está entre
as temáticas preponderantes...
As estudantes Fernanda Souza de Almeida, Pamela Alcântara Augusto e Maria
Leila Veríssimo de Franca, todas de 16 anos, estão fazendo um trabalho sobre
violência em frente à clínica Parque Julieta, na Granja Julieta (zona sudoeste
de São Paulo), onde está internado o jornalista Antônio Marcos Pimenta
Neves, 63.
(...) O tema do trabalho é: "A violência está fora de controle".
As estudantes dizer ter escolhido o caso do jornalista pois acreditam que a
impunidade é um dos principais fatores que geram a violência. bem o caso
dele (Pimenta Neves), que deveria estar na prisão e não em uma clínica de
luxo", disse Fernanda.
"Se fosse uma pessoa de classe média, ela estaria na preso mesmo com
problemas psiquiátricos", acrescentou Pamela.
As alunas afirmaram que escolheram o assunto pois ficaram chocadas com o
assassinato da jornalista Sandra Gomide, 32, no domingo, 20. (Folha Online,
29 de agosto de 2000, 16h50)
A análise de nosso objeto empírico aponta para uma postura ímpar por parte
da mídia. Como pudemos observar, o que motivou o interesse jornalístico - ou seja,
um crime-, não é o tema preponderante da cobertura. Tampouco se identifica o
relato fortissimamente moralizado que costuma acompanhar crimes nos quais a
vítima é tida como um ser frágil e indefeso, como ocorreu em relação à morte de
Daniella Perez e, mais recentemente, ao assassinato do menino João Hélio, apenas
para citar alguns exemplos. Casos categorizados (ENTMAN, 1991) como rbaros,
violentos ou brutais.
O caso Pimenta Neves, por sua vez, foi rotulado pelos jornalistas como um
“crime”. Quase mais um, se não denunciasse aspectos inerentes ao cotidiano
jornalístico, desconhecidos do grande público. Ao apresentarem o que chamam de
cobertura imparcial, os jornalistas deixam transparecer desconforto e, em última
71
análise, falta de distanciamento, uma vez que tendem a reproduzir, através do crime,
as hierarquias que dominam o cotidiano das redações.
A cobertura, portanto, vincula-se intimamente aos sujeitos, ou melhor, aos
papéis ocupados pela vítima e pelo assassino na esfera profissional. E, justamente
quando se refere a esse âmbito, o jornal permite falas que identifiquem o crime
como uma tragédia, por envolver o destino de dois colegas de profissão. A despeito
de apenas Sandra ter literalmente perdido a vida, o crime também teria causado a
ruína de Pimenta. Sentimento evidenciado em nota enviada à imprensa, e divulgada
pela Folha Online, em nome da redação do Grupo Estado na qual esta se apresenta
"consternada pela tragédia que envolveu dois de seus amigos e funcionários”; e
pelo próprio diretor responsável pelo jornal "O Estado de S. Paulo", Ruy Mesquita,
que em entrevista “classificou o caso como ‘uma tragédia inédita’ em sua vida”.
Podemos dizer, ainda, que há temporalidades distintas no que diz respeito ao
crime: uma que abrange relatos referentes a momentos que o antecederam e outra
com enfoque no período posterior. Entretanto, todas enfatizam o assassino em
detrimento da vítima.
Dessa maneira, o crime envolve jornalistas que ocupam espaços de
legitimidade diferentes. De um lado, está o assassino, um grande nome do
jornalismo. Do outro, a vítima, uma jornalista pouco conhecida, cuja trajetória de
vincula a esse grande jornalista. É justamente acerca dos problemas levantados
pelo modo como esses sujeitos foram apresentados ao público pelo jornal, ou seja,
os aspectos referentes ao “quem” do lead, que trataremos em nosso próximo tópico.
3.3 Dois lados de uma mesma questão: quem é o “quem”?
O quem-vítima
É possível dizer, por um lado, que a cobertura do crime foi como a
dispensada a um assassinato corriqueiro. Por outro, se uma tendência geral de
humanização das vítimas, sobretudo quando elas não tiveram chance de se
defender, não podemos dizer que esta é a postura adotada em relação ao crime que
tirou a vida da jornalista Sandra Gomide quando analisamos o material disponível na
Folha Online.
O “quem” geralmente contemplado pelos meios de comunicação noticiosos é
a vítima, apesar de não haver uma regra específica a esse respeito. Percebe-se nas
72
páginas dos jornais que o quem-vítima é pressuposto, uma vez que o assassino é
encarado como marginal e, portanto, não deve ser enquadrado como sujeito
protagonista da ação nos noticiários. Isso representaria uma transgressão à ordem
moral; e não sua reafirmação.
De acordo com Entman (1991), o discurso moral humanizante encontrado nos
meios de comunicação “se reflete também na escolha de palavras específicas para
descrever as vítimas” (p.13). Ao identificá-las como, por exemplo, “seres humanos”,
“histórias individuais de emoção pessoal”, “seres amados”, se tornam “humanizadas
nas mensagens verbais e visuais de modo a promover a identificação com elas”
(ENTMAN, 1991, p.11). Por outro lado, a desenfatização das vítimas ajuda a
produzir, de acordo com o autor, “uma reportagem técnica”.
Assim, humanizamos quando olhamos para as vítimas como indivíduos
únicos, possuidores de histórias pessoais. Elas tinham família, ou o sonho de
constituírem uma. Elas exerciam uma profissão e faziam parte de círculos de
amigos. Vemos esforços nessa direção costumeiramente nos jornais. O mais
recente foi o caso relacionado à morte da adolescente Eloá; crime cometido pelo
namorado da jovem, em São Paulo, em outubro de 2008. Feita refém pelo rapaz,
junto com uma amiga, a “agonia” das meninas foi acompanhada a cada minuto pelos
repórteres. Sua vida pessoal foi destacada nas palavras e imagens selecionadas
pela edição: as fotos da jovem, sempre sorridente e aparentando felicidade; a ênfase
na beleza e juventude (perdidas) de Eloá e da amiga, assim como o bom
relacionamento com os colegas e a popularidade na escola.
Mas o que humanizaria nossa vítima? Em nosso material empírico, apenas
duas fotografias de Sandra Gomide foram mostradas, uma única vez cada. Na
primeira, Sandra não sorri. Aparece com os cabelos soltos, desarrumados e com
olheiras. Não podemos dizer que seja uma imagem capaz de despertar empatia
(Foto 1). Na segunda, a jornalista esboça um sorriso. Aparece com ar mais jovial e
está de cabelos presos (Foto 2). Em ambas as imagens, Sandra aparenta estar com
bem menos do que seus 32 anos. O que nos leva a crer que não eram fotografias
recentes.
73
Sandra era uma mulher relativamente jovem (apesar de as imagens
divulgadas mostrarem-na mais nova ainda), seria possível relatá-la como alguém
que teve o futuro usurpado e, ao perder precocemente a vida, deixa de desfrutar
muitas alegrias pessoais, como casar-se e ter filhos. A jornalista tinha os pais vivos
e, ao contrário do que fluxo natural, precisou ser enterrada por eles. Provavelmente,
também tinha seu próprio círculo de amigos, era querida por essas pessoas. No lado
profissional, ainda tinha toda uma carreira pela frente e deveria ter feito colegas na
redação e nos jornais por onde passou.
Entretanto, a dor da família de Sandra não encontra destaque nas matérias
analisadas. Colegas e amigos da jornalista raramente tiveram seus depoimentos
divulgados. A respeito de Sandra, pouco é relatado ao leitor. Nesse caso, a vítima é
construída em relação ao assassino. Seu passado é comumente vinculado ao de
Pimenta Neves. Nas reportagens, ela é “a também jornalista” (porque Pimenta
aparece em primeiro lugar), “ex-namorada de Pimenta” ou subordinada a ele no
jornal.
Pimenta Neves e Sandra Gomide namoravam havia aproximadamente três
anos. Eles se conheceram quando Pimenta Neves foi contratado para dirigir a
“Gazeta Mercantil", depois de trabalhar durante 12 anos no Banco Mundial, em
Washington (EUA). Sandra era repórter de matérias-primas daquele jornal.
Durante seu relacionamento com Pimenta Neves, ela foi promovida e chegou a
ser editora de economia da "Gazeta Mercantil". Deixou o jornal depois que
Pimenta Neves se transferiu para "O Estado de S. Paulo", cerca de dois
anos.
Nesse jornal, ele a contratou como repórter especial. Depois ela passou a
Foto 1 (divulgada em
21/08/2000, 13h15)
Foto 2 (divulgada em
21/08/2000, 19h13)
74
editora de economia. Há cerca de um mês, ele a demitiu. Pimenta Neves disse
a amigos ter provas de que o comportamento profissional da ex-namorada, na
função de editora, não era ético. Sandra trabalhava atualmente em um site da
Internet... (Folha de São Paulo, 20 de agosto de 2000, 20h48)
Logo, identificamos que, em grande parte das reportagens, Sandra aparece
no texto depois de Pimenta, como “a também jornalista”. Aparentemente, conforme o
que se identifica nas reportagens, ela teve conquistas profissionais em virtude do
vínculo com Pimenta. Pode-se considerar uma forma de submissão stuma da
editora em relação ao ex-chefe e ex-namorado imposta a ela pelo jornal. Pimenta só
aparece de forma “subordinada” a Sandra, e pela primeira vez em toda a cobertura,
no terceiro dia depois do crime. O segundo parágrafo da matéria “Processo deve
durar três anos, diz advogada de jornalista morta” finalmente afirma que o sujeito,
Sandra Gomide, “foi assassinada por seu ex-namorado, o também jornalista Antônio
Marcos de Pimenta Neves” (Folha Online, 23 de agosto de 2000, 17h03). Mas esse
não é o enfoque preponderante. O que se nota ao longo da cobertura é que ao se
falar de Sandra, os jornalistas parecem tratar de apenas mais um assassinato, um
crime praticamente como os outros. A vítima não ocupa posição de destaque na
cobertura - e também na redação, se comparada a Pimenta Neves.
Em muito poucas oportunidade Sandra é descrita como editora e, menos
vezes ainda, como editora de economia, último cargo que ocupou à época em que
trabalhava no Estadão. Entretanto, há momentos em que a profissão de Sandra
sequer chega a ser mencionada, como ocorre na matéria de 23 de agosto de 2000.
Pimenta Neves teria alugado apartamento na frente de imóvel de
jornalista assassinada, diz família
O jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, 63, teria alugado por dez dias um
apartamento em frente ao imóvel de sua ex-namorada, Sandra Gomide, 32.
Sandra foi assassinada no domingo e, segundo o advogado Antônio Cláudio
Mariz de Oliveira, Pimenta Neves foi o autor do crime.
A informação de que Pimenta Neves teria alugado o apartamento é de
familiares da vítima e foi transmitida pelo promotor criminal Marcelo Milani, que
acompanhou depoimentos do pai de Sandra, de seu tio e de um segurança da
vítima no DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), no centro
de São Paulo.
O imóvel supostamente alugado por Pimenta é o apartamento número 10 no
prédio em que Sandra morava, na rua França Pinto, na Vila Mariana, zona sul
de São Paulo.
75
O apartamento 10 fica na frente do de Sandra, no mesmo andar do edifício. No
local, segundo a família, teria sido instalado um olho mágico para que o
jornalista pudesse supostamente espionar a ex-namorada.
No depoimento à polícia, a família também afirmou que Pimenta Neves teria
colocado escutas no telefone residencial de Sandra.
Essas informações prestadas pelos familiares ainda não foram verificadas pela
polícia, segundo o promotor. (Folha Online, 23 de agosto de 2000, 17h)
Mais curioso ainda é o texto veiculado poucas matérias à frente da
supracitada, ainda em 23 de agosto.
Morte em Ibiúna: Entenda o que determina a prisão do autor de um crime
O crime envolvendo o jornalista Antônio Pimenta Neves fez surgir na mídia a
discussão sobre se um homicida deve ou não ficar preso enquanto aguarda o
julgamento. Pimenta Neves confessou o assassinato da ex-namorada, está
com a prisão temporária decretada, e o promotor do caso pretende pedir a
decretação da prisão preventiva.
Em princípio, o que determina se o autor de um crime grave fica preso ou não
antes do julgamento é sua história pregressa. Se não tiver antecedentes
criminais, não oferecer risco para a sociedade nem para o prosseguimento da
investigação e, além de tudo, possuir endereço e emprego fixos, deve
responder ao processo criminal em liberdade.
Mas nem sempre tudo isso basta. Se, mesmo preenchendo todos esses
requisitos, o autor do delito se mostrar desnorteado a ponto de representar
perigo para terceiros ou existir a possibilidade de fuga, então é possível que
seja mantido preso até o julgamento da ação penal.
E como se sabe se o criminoso oferece risco ou não para a sociedade?
preciso analisar as condições em que ocorreu o crime. Se foi um homicídio
passional, por exemplo, a agressão se deu contra uma pessoa determinada,
num contexto específico. Em tese esse homicida não oferece perigo para
outras pessoas e não necessidade de mantê-lo preso', argumenta o
criminalista Roberto Podval.
'Se for um homicídio qualificado, por exemplo, e o criminoso for movido por um
insano sentimento de vingança, nada garante que ele não volte a delinquir.
Mesmo que a vítima fosse o alvo principal, o autor do crime pode querer se
vingar em outras pessoas que, de alguma maneira, tinham ligações com ela.
Daí a necessidade de mantê-lo preso', avalia Antonio Fernando Pinheiro
Pedro, também advogado criminalista.
Nesses casos, o juiz pode aceitar o pedido de prisão temporária, que é de 30
dias, renovável por mais 30 dias. Depois, pode deferir ainda o pedido de prisão
preventiva, que pode perdurar até o julgamento. Os requisitos para a prisão
76
preventiva são a manutenção da ordem pública e a garantia da aplicação da lei
penal.
No homicídio simples, a pena mínima é reclusão de 6 anos e a máxima, 20
anos de reclusão. no qualificado, a pena mínima sobe para 12 anos de
reclusão e a máxima para 30 anos.
Se o réu ficar preso até o julgamento e, ao final, for condenado, esse período
será descontado da pena aplicada pelo juiz. (Folha Online, 23 de agosto de
2000, 21h01)
É assaz interessante notar que, em uma matéria que envolve o crime que a
vitimou, o nome de Sandra não chega a mencionado. Apesar de o título da matéria
“Morte em Ibiúna: entenda o que determina a prisão do autor do crime” fazer
menção a uma vítima e a alguém que cometeu o crime, apenas o nome do
assassino participa de relato. A vítima aparecendo apenas sob a denominação de
“ex-namorada”.
No enquadramento adotado hegemonicamente pelo jornal, ocorre o
apagamento da vítima. O lugar de destaque passa a ser, portanto, de Pimenta
Neves, o quem-assassino. Assim, embora tente seguir os padrões de
objetividade e imparcialidade, a Folha acaba por evidenciar as hierarquias presentes
no interior das redações dos jornais. No desenrolar do caso e, por conseguinte, da
cobertura jornalística em torno do assassinato, nota-se o apagamento da figura de
Sandra Gomide. Qual uma jornalista ordinária, pertencente à casta mais baixa na
linha de produção que é o jornal; sua presença é considerada de menor valor e
importância dentro da cobertura feita pela Folha Online.
O quem-assassino
Se o nome de Sandra Gomide não chega a ser mencionado em algumas
matérias, o de Pimenta Neves domina a cobertura da Folha Online. Contrariando o
tratamento que se costuma destinar aos homicidas, não é possível identificar
julgamento moral (GLASSER & ETTEMA, 1991; SEIFERT, 2004) em relação a
Pimenta na maioria dos relatos da Folha Online. Como demonstramos ao falar da
“cobertura do crime”, Pimenta é relatado mais com um homem doente e
atormentado do que como um assassino... apesar de não haver dúvidas quanto à
autoria do crime, confessado pelo jornalista e confirmado por testemunhas. O jornal,
porém, mostra extrema cautela.
77
Parecendo pouco à vontade, a Folha vale-se de rituais estratégicos (Tuchman
in TRAQUINA, 1993), como o uso das aspas, para afirmar sua objetividade e
imparcialidade, mas também como uma forma de "mascarar" o desconforto de
precisar fazer a cobertura de um "crime em família". Logo na primeira matéria,
Pimenta é apontado como o principal suspeito. O jornal, entretanto, sente a
necessidade de valer-se do depoimento de testemunhas do crime e do delegado
responsável pelo caso para validar a afirmação.
O crime é atribuído pela polícia e por testemunhas a Antônio Marcos Pimenta
Neves, 63. diretor de Redação do jornal "O estado de S. Paulo". As suspeitas
são de crime passional.
"Há indícios fortes e testemunhas que o apontam como principal suspeito",
afirmou o delegado Lincoln Kunisawo, responsável pelo caso.
Segundo Delmar Setti, dono do haras, ele, sua família e empregados estavam
na sede da propriedade quando ouviram, por volta das 15h, Sandra pedir
socorro e implorar para que Pimenta Neves não atirasse. (Folha Online, 20 de
agosto de 2000)
Pimenta permanece como "principal suspeito" do crime até o quarto dia de
cobertura, quando comunica oficialmente à polícia e à imprensa, por meio de seu
advogado, a autoria do assassinato. A matéria que divulga o fato é a 29ª da
cobertura. E, apesar de o jornalista já ter confessado culpa pela morte de Sandra, na
34ª matéria a Folha continua sendo cautelosa quando se refere ao autor do
assassinato.
Sandra foi assassinada no domingo e, segundo o advogado Antônio Cláudio
Mariz de Oliveira, Pimenta Neves foi o autor do crime. (Folha Online, 23 de
agosto de 2000, divulgada às 17h, grifo nosso).
De acordo com Entman, a escolha dos tulos para os incidentes tende “a
situá-los em categorias que convencionalmente ora invocam, ora omitem o
julgamento moral (1991, p.14). Em nosso caso, apesar de réu confesso, o jornal
evita a palavra “assassino” para se referir a (ou rotular) Pimenta Neves.
E, se percebemos que houve apagamento da vítima nos relatos jornalísticos
acerca do caso, o oposto ocorre em relação ao jornalista-diretor de redação. O
quadro interpretativo preponderante na cobertura da Folha Online seleciona e
enfatiza o notável currículo de Pimenta Neves, como vimos na introdução deste
78
capítulo. O jornalista-diretor de redação-assassino é mais importante, segundo a
ótica do jornalismo, do que a editora-ex-namorada-vítima.
Pensemos, pois, a “medida de importância do evento” (ENTMAN, 1991), na
qual a quantidade de material disponível e quão proeminente ele é apresentado
conferem a dimensão do enquadramento que, em sua essência, se traduz na
“ampliação ou encolhimento de elementos da realidade retratada de modo a torná-
los mais ou menos realçados” (p. 5). A posição hierárquica superior do jornalista,
diretor de redação, é mencionada 44 vezes no corpus analisado. Ao passo que
encontramos apenas 13 menções ao cargo de maior visibilidade ocupado por
Sandra; dessas referências, em dez a palavra "editora" relaciona-se a Pimenta
Neves.
Sandra, que até então não tinha atuação de destaque, passou a ser
beneficiada profissionalmente pelo relacionamento. Logo no início do namoro,
Pimenta Neves avisou aos chefes de Sandra que, dali por diante, ela só
receberia ordens dele. Dizia que o seu talento estava sendo mal aproveitado e
a promoveu de repórter a editora. (Folha Online, 27 de agosto de 200, 00h33)
(...)
Durante seu relacionamento com Pimenta Neves, ela foi promovida e chegou a
ser editora de economia da "Gazeta Mercantil". Deixou o jornal depois que
Pimenta Neves se transferiu para "O Estado de S. Paulo", cerca de dois
anos.
Nesse jornal, ele a contratou como repórter especial. Depois ela passou a
editora de economia. Há cerca de um mês, ele a demitiu. Pimenta Neves disse
a amigos ter provas de que o comportamento profissional da ex-namorada, na
função de editora, não era ético. Sandra trabalhava atualmente em um site da
Internet.
(Folha Online, 20 de agosto de 2000, 20h48)
Pimenta se torna, portanto, sujeito não apenas de sua própria história, mas
também da de Sandra Gomide. Talvez para preservar sua imagem, não a
identificação (ENTMAN, 1991) de Pimenta com imagens. Esta é feita por meio de
relatos sobre ele apresentados por familiares, colegas de profissão e amigos.
"Estava acolhendo um amigo, não um homicida", diz amigo de Pimenta
Neves
O publicitário Ênio Mainardi, que abrigou o jornalista Antônio Marcos Pimenta
Neves, 63, na noite de segunda para terça-feira, disse que não tera problema
para explicar à Justiça porque acolheu o jornalista em sua casa . "Eu espero
que, caso enfrente uma situação como essa, tenha um amigo para me
79
acolher." Pimenta Neves confessou ter assassinado a ex-namorada e também
jornalista Sandra Gomide, 32, com dois tiros.
(...)
Em relação ao que irá acontecer com o amigo, Mainardi disse: "Espero que a
Justiça seja sábia o suficiente para que não o deixe por conta de si mesmo."
(Folha Online, 25 de agosto de 2000, 18h31)
Ele aparece como um pai amoroso na nota divulgada pela ex-mulher e pela
filhas na Folha Online:
Com sua compaixão, generosidade e bondade, Antonio sempre nos deu o
melhor de tudo durante nossas vidas. Todos quantos o conhecem sabem de
suas qualidades. Ele também nos ensinou o verdadeiro significado de um amor
incondicional que nós esperamos poder retribuir (Folha Online, 26 de agosto de
2000, 19h19).
A fala da irmã de Pimenta, Isabel, destacada pelo jornal destaca seu
profissionalismo, além de qualidades pessoais.
"Lastimamos muito o que aconteceu, pela Sandra e seus familiares", afirmou
Isabel. Ela destacou, durante a entrevista, as qualidades profissionais do
irmão. "Ele se empenhava em sua atividade e exigia rigor profissional dos que
o cercavam, no sentido de não proteger ninguém", continuou Isabel.
"Todos aqueles que conhecem Pimenta Neves mais de perto, principalmente
do ponto de vista profissional, podem dar testemunho sobre a postura dele",
disse. claro que a admiração não é profissional e também a respeito
da sensibilidade, da demonstração de amizade oferecida por ele nos
momentos fáceis e difíceis", afirmou Isabel. (Folha Online, 22 de agosto de
2000, 22h07, grifo nosso)
São relatos que ajudam na construção de uma margem de vidas. Em certa
medida, o jornal nos expõe argumentos de justificativa para o não enfoque de
Pimenta Neves no papel de criminoso. E, “embora o enquadramento não tenha
eliminado as contradições presentes na linha predominante da história, ele demoliu
sua possível influência ao reduzir-lhe a ênfase” (ENTMAN, 1991, p.18). São quadros
interpretativos que apontam para a não-responsabilizabilização do criminoso, afinal,
como afirma a Folha, respaldada pelas aspas do advogado de Pimenta, Antonio
Claudio Mariz de Oliveira:
80
o jornalista tem bons antecedentes e não se enquadra em nenhum dos motivos
que, segundo a lei, poderiam levá-lo à prisão durante o processo. ''Ele não
oferece risco em liberdade, não é nenhum bandido. É um homem que cometeu
crime de ímpeto''. (Folha Online, 23 de agosto de 2000, 22h)
A forma como a notícia é trabalhada contribui para a humanização de
Pimenta. Ele é apenas grande jornalista, distinguível entre os comuns. É alguém
com um passado e cujo futuro foi gravemente comprometido; respeitado pelos
colegas e por quem os amigos e familiares sentirão se preocupam. Ele poderia ser
interpretado como um homicida frio e calculista ou como covarde, por ter atirado
pelas costas de Sandra. Relatos nessa linha até aparecem, mas se diluem no todo
de uma cobertura do caso que, em última análise, humaniza o criminoso.
3.4 Como e por que: enquadrando o relacionamento
Como podemos perceber, o modo como o lead é construído diz muito do
enfoque da reportagem. De acordo com Carey, o por que e o como são elementos
que geram grande reflexão, uma vez que seriam responsáveis por dar profundidade
à matéria.
Não gradiente acessível para a medição das causas, a avaliação
dos motivos, a predição das conseqüências ou a estimativa da
importância. Ninguém jamais viu uma causa ou uma conseqüência;
os motivos são acontecimentos fantasmagóricos da mente; e a
importância parece estar no olhar de quem observa. (CAREY, 1987,
p.14)
Em nosso objeto, esse “olhar de quem observa” pertence aos jornalistas da
Folha Online destacados para a cobertura do caso Pimenta Neves, que procuram
responder como e por que o assassinato aconteceu. Ao buscar não colocar em foco
a responsabilidade do assassino pelo crime, percebe-se que a culpa é deslocada
para um terceiro elemento dessa equação: o relacionamento entre Sandra e
Pimenta, que extrapola o âmbito profissional... ou seria o âmbito pessoal?
Pimenta Neves justificou o crime dizendo que Sandra o traiu
profissionalmente e pessoalmente. Segundo o jornalista, no campo
profissional, ela teria deixado de fazer uma reportagem sobre a companhia
aérea Vasp, mesmo tendo informações para escrevê-la. As informações,
segundo ele, apontavam que uma outra empresa que compraria a Vasp não
estaria em boa situação financeira.
81
Pimenta Neves, no entanto, negou que perseguisse Sandra ou pessoas ligadas
a ela.
Na área pessoal, o jornalista disse que Sandra o traia. Segundo Milani,
Pimenta Neves informou ainda que se sentia usado pela ex-namorada.
"Ele disse que ela era uma pessoa de pouca cultura e que com, a chegada
dele, galgou posto que não tinha condições de assumir.", afirmou Milani.
O jornalista e Sandra trabalharam juntos nos jornais "Gazeta Mercantil" e "O
Estado de S. Paulo". Em ambos ele ocupava cargo de direção. (Folha Online,
24 de agosto de 2000, 15h27, grifos nossos)
Note: de acordo com o réu, a vítima o teria traído duplamente. Além de
descartá-lo como namorado, ela haveria desafiado seu poder enquanto superior
hierárquico... O que, ainda em conformidade com a lógica do ex-diretor de redação -
e exposta pela Folha - seria algo capaz de justificar o crime.
Sendo assim, teria sido o relacionamento entre os dois jornalistas o principal
culpado pela desgraça de Pimenta, como nos informa a Folha Online:
Pimenta Neves tinha até então uma biografia invejável.
(...)
O rompimento transformou a vida dos dois num inferno.
(...)
Pimenta Neves ficou tão deprimido que pediu demissão. Alegou problemas de
saúde e o estado de saúde da filha. O jornal não aceitou. Sugeriu que ele
trabalhasse menos e se tratasse. Na última quarta-feira, "O Estado de S.
Paulo" anunciou o afastamento de Pimenta Neves do cargo de direção de
Redação.(Folha Online, 27 de agosto de 2000, 0h33)
O ditado “onde se ganha o pão, não se come a carne” parece não ser
amplamente empregado pelos jornalistas. Talvez pelo tempo que passem juntos, em
virtude de plantões e horas-extras dedicados à apuração de alguma matéria
inesperada (e o inesperado é a essência do jornalismo!), a presença de casais nas
redações é algo usual. “É o amor, que surge da convivência”. Entretanto, o
relacionamento entre pessoas de hierarquias contrastantes não costuma ser visto
com bons olhos pelos colegas (GANS, 1980), apontado como o famoso “teste do
sofá”.
A ênfase no relacionamento do casal de jornalistas encontrada na cobertura
da Folha Online é direcionado para a responsabilização de Sandra Gomide; agora
não mais enquadrada como nosso quem-vítima, mas entre os elementos
participantes do como e por que utilizados para explicar o que teria motivado o
82
crime. É possível, com base no que aparece no jornal online, vislumbrar o perfil de
uma mulher que privilegiava a ascensão profissional e cultivava desafetos. E, em
sua busca, fazia-se acompanhar pelo poder dentro e fora da redação o
envolvimento com Pimenta é apontado como exemplo, como nos mostra o intertítulo
“namoro e ascensão”, abaixo transcrito:
O relacionamento entre os dois sempre foi muito desigual. Ele era 31 anos
mais velho, famoso, culto, refinado e dividia sua privacidade com poucos
amigos.
Sandra vinha de uma família simples, era bem-humorada e ambiciosa. Até
conhecer Pimenta Neves, achava que a sua capacidade era subestimada e
estava desanimada com o trabalho.
Eles se conheceram em setembro de 1995, quando Pimenta Neves assumiu a
direção do jornal "Gazeta Mercantil" depois de 21 anos vivendo nos EUA.
O flerte começou em fevereiro de 1996, durante o aniversário de Pimenta
Neves. Sandra era repórter e o novo diretor de redação viu nela qualidades
profissionais que ninguém mais enxergava.
Em depoimento à polícia, Pimenta Neves disse que foi Sandra que se
aproximou dele. Ex-colegas dizem que foi o contrário. Sandra estava muito
entusiasmada com o assédio do chefe e perguntando a amigas se o achavam
velho demais para ela.
(...)
Depois que começaram a namorar, ele passou a repetir que havia descoberto
a melhor repórter de economia do país
.
Sandra, que até então não tinha atuação de destaque, passou a ser
beneficiada profissionalmente pelo relacionamento.
(...)
De acordo com ex-colegas de redação, Sandra usou o poder para perseguir
desafetos.
Gostava de reafirmar a sua intimidade com o diretor. Na frente de
colegas, dizia a Pimenta Neves coisas que não seria habitual comentar
com um chefe _que ele estava mal-vestido ou muito gordo, por exemplo.
Foi nesse período, em 1997, que ocorreu o primeiro desentendimento.
(...)
Pimenta Neves a remanejou para um cargo com muito menos destaque.
Sandra entrou em férias. Desesperado, ele chegou a perguntar a pessoas
próximas a ela o que fazer para reconquistá-la.
Eles reataram, Sandra foi promovida mais uma vez e virou coordenadora de
cadernos _o terceiro posto mais importante na hierarquia da redação.
Era a primeira de uma série de idas-e-voltas no relacionamento amoroso. A
montanha-russa do namoro virou chacota entre os colegas. Vários jornalistas
que tiveram problemas com Sandra foram demitidos.
Pimenta Neves trocou a "Gazeta" por "O Estado" em 1998. Meses depois de
assumir, contratou Sandra como repórter especial. No começo deste ano, foi
83
promovida a editora de Economia.(Folha Online, 27 de agosto de 2000; 0h33,
grifos nossos)
Identifica-se um esforço no sentido de "desresponsabilização" do réu. Não
obstante a sua biografia invejável, Pimenta Neves é descrito como tendo promovido
alguém cujas qualidades não condiziam com os cargos que ocupava. Há, portanto,
alguns aspectos aqui que merecem atenção. Primeiramente, o texto menciona
explicitamente o assédio de Pimenta à repórter, valendo-se de sua posição dentro
da redação para despertar o interesse da jornalista. Além disso, ele indicou alguém
supostamente sem experiência para o terceiro cargo da hierarquia do jornal, usando
o seu poder de promover Sandra para conquistá-la e também demitir os desafetos
dela. Em todos os casos, a atitude de Pimenta Neves pode ser classificada
como bastante anti-profissional, mas isso não parece presente no noticiário, não é
condenado pelo jornal.
Nessas mesmas páginas, a leitura que podemos fazer de Sandra, por outro
lado, é de uma mulher de poucos escrúpulos, que usava o sexo para conseguir o
que queria e não se importava em passar por cima dos colegas que se colocassem
em seu caminho. Em outras palavras, uma megera, que usou um deslumbrado e
quase inocente Pimenta Neves para conseguir o que queria. Além disso, ela teria
cometido outro “crime”, do ponto de vista chauvinista: envolveu-se com outro homem
enquanto ainda nutria relação com Pimenta, ou seja, teria traído o ilustre namorado.
E-mails de Sandra mostram intimidade com jornalista equatoriano
O diretor do IC (Instituto de Criminalística do Estado de São Paulo), Valdir
Santoro, divulgou a conclusão de perícia em e-mails encontrados no
computador da jornalista Sandra Gomide, 32, morta pelo ex-namorado Antônio
Marcos Pimenta Neves, 63.
Segundo Santoro, foram achadas 25 mensagens de Sandra para o jornalista
equatoriano Jayme Mantilla e 10 mensagens dele para Sandra.
Mantilla é apontado como pivô da crise de ciúme de Pimenta Neves. Nas
mensagens, disse o diretor do IC, Sandra chegou a contar para Mantilla que
Pimenta Neves havia lhe agredido.
Segundo Santoro, os e-mails trocados entre a jornalista e o colega equatoriano
demonstravam o início de um relacionamento. (...) (Folha Online, 31 de agosto
de 2000, 11h28)
84
Em outra matéria, divulgada no dia 23 de agosto, a manchete era:
“equatoriano nega relacionamento com jornalista assassinada”. Assim, uma leitura
possível a partir do recorte feito pela Folha Online é que Sandra Gomide teria
tentado investir contra mais um homem. Assim como vez com Pimenta, iniciara seu
jogo de sedução, agora com o jornalista estrangeiro.
A tradição de responsabilização da mulher é uma característica da estrutura
patriarcal, utilizada para dar suporte ao discurso referente à violação moral. Não foi
Eva, assim como houve com Sandra em relação a Pimenta, a responsabilizada pela
desgraça de Adão e de todos os demais homens da terra? Entretanto, à época em
que o crime ocorreu, essa não era mais a estrutura padrão.
O enquadramento do caso Pimenta Neves/Sandra Gomide, no fim das
contas, descarta o gênero não porque este não importa, mas por outra razão: por
reproduzir as hierarquias das redações; que tendem a ser machistas. Apenas o
discurso “um homem que matou uma mulher” não é bastante para explicar essa
responsabilização de culpa em cima do relacionamento dos dois jornalistas e, por
conseguinte, de Sandra. É possível, porém, se fazer a leitura de que o
relacionamento entre os jornalistas significaria uma ameaça para o plano
profissional. A julgar pelo relato do jornal, a presença de Sandra na sala de redação,
como parceira íntima de Pimenta, ameaçava a ordem e os valores profissionais, o
que talvez explique o tom excepcionalmente agressivo que caracteriza a cobertura.
O problema maior em se lidar com esse incidente reside, pois, na dificuldade em se
tratar do caso de forma distanciada, de falar com distanciamento desse lugar tão
íntimo aos jornalistas que é a sala de redação.
A solução encontrada pelo jornal foi deslocar o discurso para “uma jornalista
morta por um diretor de redação”, que divide espaço com “um diretor de redação
que mata uma ex-namorada” ou, “uma jornalista assassinada por um também
jornalista e diretor de redação”. “Os julgamentos de valores dos jornalistas podem,
portanto, refletir o consenso da comunidade sobre valores até que, em última
análise, esses julgamentos (...) fiquem tão incrustados’ que se tornem julgamentos
noticiosos” (GLASSER, 1991, p. 11). Nesse caso particular, os julgamento morais
feitos pelos jornalistas refletem, sobretudo, os valores das redações e, portanto, os
valores morais de uma comunidade em especial: a comunidade jornalística.
Logo, as hierarquias funcionam como uma espécie de ordem moral e,
portanto, não são apenas reproduzidas, como também reforçadas. O que nos leva a
85
constatar que esse tão almejado distanciamento não existe e tampouco é possível
de se atingir, a despeito do que prega e acredita a classe jornalística. É justamente
do questionamento dos próprios valores pelos jornalistas, incitado pelo caso Pimenta
Neves, do que trataremos em nosso próximo capítulo.
86
CAPÍTULO 4
O presente capítulo se propõe a analisar como o caso Pimenta Neves se
constituiu como uma ocasião para discutir questões relativas à natureza da atividade
jornalística. Como veremos, o crime extrapolou a cobertura, motivando um debate
público acerca da natureza da atividade profissional e dos dilemas que a cercam.
Um momento oportuno para se refletir como um acontecimento específico o crime
deu lugar a discussões mais abrangentes, de caráter generalizante sobre o
jornalismo e seu cotidiano, feitas pelos próprios jornalistas.
Logo, o caso funcionaria como “revelador” de um problema mais geral. E faz
parte de um conjunto de incidentes que, conforme demonstraram estudos recentes
envolvendo coberturas como da morte do jornalista brasileiro Tim Lopes,
assassinado durante a apuração de uma reportagem (CASTILHO, 2005); da
revelação das crenças socialistas por parte de A. Kent MacDougall, repórter da
tradicional publicação de negócios norte-americana The Wall Street Journal
(REESE, 1990); ou da confissão do repórter do The New York Times, Jayson Blair,
que admitiu publicamente inventar histórias que publicava no jornal (HINDMAN,
2005); em em xeque as rotinas e os padrões de produção das notícias,
desafiando o modelo usualmente aceito como aquele utilizado para se “fazer
jornalismo”, causando controvérsia dentro da comunidade jornalística.
São os bastidores expostos... Ou, ao menos, parte deles. Em nosso estudo,
usaremos como ancoradouro empírico as discussões que abarcam o caso do
assassinato da jornalista Sandra Gomide pelo ex-namorado, ex-chefe e também
jornalista Pimenta Neves, presentes no site Observatório da Imprensa. Acreditamos
que nosso objeto empírico nos ajudará a refletir sobre como relações tidas como
fundamentais e auto-explicáveis da produção discursiva começam a ser
questionadas pelos próprios jornalistas. Mas, para além disso, o caso é entendido
como um incidente crítico (ZELIZER, 1992), em que os jornalistas contestam,
renegociam e (por que não?) reafirmam seus padrões de ação.
De acordo com essa lógica, a hipótese que se levanta é que os jornalistas,
em meio aos textos divulgados e nos debates travados nesse espaço virtual do
Observatório da Imprensa, buscam reafirmar sua posição enquanto intérpretes
autorizados da realidade, reforçando sua autoridade jornalística (ZELIZER, 1992).
87
Portanto, o foco deste capítulo recai sobre os jornalistas enquanto comunidade
interpretativa (FISH, 1997) que compartilha e põe à prova juízos sobre como o
jornalismo é, ou como deveria ser exercido.
A análise que se propões neste capítulo será estruturada a partir do conjunto
de reflexões suscitadas por nosso objeto, dividindo-se em três partes. A primeira
relaciona-se à natureza do método jornalístico, sobretudo o distanciamento, apoiado
em critérios de objetividade e normas de trabalho, conceitos abordados no capítulo
inicial desta dissertação (TUCHMAN, 1978, 1993; BREED, 1993; SOLOSKI, 1993).
Afinal, o método jornalístico, por si só, é suficiente para se executar a cobertura
desse caso o particular? Ou melhor: a cobertura do caso foi como qualquer outra?
Essa pergunta-chave servirá de guia para iniciarmos nossa análise.
O problema ocasionado ao repórter por “estar próximo demais” dos
personagens da matéria nos levará a pensar, portanto, a cobertura – tema central da
segunda parte dessa análise. um conjunto de textos no Observatório
direcionados para a discussão do assunto, mas que se distinguem quanto ao
enfoque. Alguns apontam a cobertura do caso Pimenta Neves/Sandra Gomide como
evolução do jornalismo brasileiro; enquanto que outros a criticam como exceção
injustificada, levada por um favoritismo para com o réu.
Em nossa terceira parte, trataremos do acontecimento como revelador de
dilemas no âmbito da própria organização da produção da noticia. Ou seja, das
relações nas salas de redação e as estruturas hierárquicas que permeiam o
cotidiano dos jornalistas em seu lugar de trabalho. Aqui, as relações de poder que
configuram o caráter industrial do jornalismo não são mais meras base da notícia,
mas objeto questionado, incorporado, em última instância, à trama da qual fizeram
parte Sandra Gomide, Pimenta Neves e os jornalistas do Brasil de modo geral.
4.1 O caso Pimenta Neves e o site Observatório da Imprensa
As discussões em torno do assassinato de uma jornalista por seu ex-
namorado e chefe ganharam espaço singular no Observatório da Imprensa. Três
“edições” do site, consecutivas ao crime, foram compostas praticamente apenas por
textos dedicados ao debate do incidente. Algo nada usual, uma vez que o
Observatório de propõe a abordar os mais diversos assuntos em seu espaço virtual,
não dedicando costumeiramente edições inteiras a uma única temática.
88
Assim, apesar de ter havido a postagem de uma edição no dia da morte da
jornalista, 20 de agosto de 2000, nela não constam relatos acerca do caso.
Entretanto, pouco tempo depois, a mesma foi atualizada “de última hora”, no dia 25
do mesmo mês, sendo composta apenas por relatos referentes à discussão da
cobertura do “caso Pimenta Neves” e de críticas ao modo como se organiza o
trabalho jornalístico nas redações. Em 5 de setembro houve nova edição voltada
para reflexões e lições em torno do caso, a qual, em 12 de setembro, foi atualizada
“de última hora”, e novamente abastecida com textos em torno do caso. Dessa
maneira, nosso material de análise é composto apenas por aqueles textos
relacionados ao incidente; somando um total de 94 relatos, entre artigos e cartas.
Alguns terão mais destaque porque perpassam todos os itens que se pretende
discutir - a) o distanciamento; b)a cobertura; e c) as relações nas redações; outros
porque apresentam argumentos mais complexos relacionados às nossas temáticas.
Esses textos serão apresentados na íntegra no anexo II deste trabalho. Vale
ressaltar que a atenção destinada ao debate em torno do caso demonstra que o
assunto se tornou pauta para a discussão de questões particulares e privadas do
jornalismo entre os profissionais do meio, alcançando dimensão ímpar expressa pela
abundância de material disponível no site do Observatório.
O Observatório da Imprensa é um espaço coordenado por jornalistas
dedicado à crítica de mídia (media criticism), sobretudo no que se refere à discussão
de questões relativas especificamente ao jornalismo e à ética jornalística. Estrutura-
se a partir de seções especializadas. O conjunto de textos que compõem nosso
objeto empírico situa-se basicamente em duas dessas seções: O Circo da Imprensa,
uma espécie de espaço editorial, “primariamente voltado para a exposição das
concepções particulares do Observatório sobre questões relacionadas à ética e à
responsabilidade social da imprensa” (ALBUQUERQUE, LADEIRA & SILVA, 2002,
p. 172); e A Imprensa em Questão, “fórum de debates em torno do media criticism,
com ênfase para os desvios éticos da imprensa” (idem). Esta última se divide em
subseções, compostas por: a) artigos escritos para o Observatório; b) cartas
enviadas por leitores do site; c) textos retirados de outras publicações (subseção
intitulada “Aspas”).
São espaços compostos por textos escritos, em sua maioria, por jornalistas,
mas também por outros agentes sociais, que fazem parte da audiência.
89
... é na condição de espaço plural, aberto à participação de diversos
segmentos da sociedade que o Observatório pode clamar
representá-la. Na prática, tal abertura tende a ser sufocada pela
imposição de uma lógica editorial que hierarquiza os agentes e suas
falas. (ALBUQUERQUE, LADEIRA & SILVA, 2002, p.186)
Apesar de propor ser um espaço polifônico, o Observatório tende, em certa
medida, a reproduzir a lógica de produção das redações ao selecionar, enfatizar e
hierarquizar aqueles discursos que julga serem mais pertinentes - assim como fazem
os jornalistas em relação às notícias, ao valerem-se dos critérios de noticiabilidade.
Se o site coloca-se locus aberto onde é possível expor opiniões, as mais variadas,
sobre os produtos midiáticos, em especial o jornalismo, “ao que tudo indica,
proporcionar um espaço para o debate em torno de questões relativas à ética
jornalística não parece ser o bastante; é preciso conduzir esse debate, a fim de
garantir que ele chegue a bom termo” (ALBUQUERQUE, LADEIRA & SILVA, 2002,
p.187)
Dessa forma, o Observatório se configura em meio à ambigüidade, uma vez
que a intenção não apenas de discutir, como também educar sobre o jornalismo.
O debate existe, mas se dá, sobretudo, entre pares. O caso Pimenta Neves é
exemplar por propiciar uma repercussão nesse ambiente virtual que ultrapassa os
limites propostos pelo site no que diz respeito à crítica de mídia, despertando
discussões referentes a uma etapa anterior na produção da notícia, que envolve as
relações intra-redação e entre jornalistas.
Apesar de feito prioritariamente por profissionais da imprensa, estes não
ocupam mais a posição discursiva de contar (ou informar) algum acontecimento,
mas de comentar os relatos e/ou, a partir do acontecimento, buscar um significado
profissional. O caso Pimenta Neves, em especial, suscitou a seguinte indagação
entre boa parte dos jornalistas que participaram do debate no site: “que lições
podemos tirar desse incidente particular?”.
Verifica-se, assim, o surgimento de um processo de deliberação
45
a fim de
buscar certa “moral da história”, uma lição para o crime que envolveu jornalistas em
todos os ângulos da notícia.
45
É importante ressaltar que deliberação envolve “a busca cooperativa para as soluções corretas em
circunstâncias de conflito” (SHAPIRO, 2002, p.196), assim como uma troca argumentativa isenta de
coerção.
90
Apesar da deliberação pública, nesse sentido, pretender alcançar
um acordo racional, é provável que esta pretensão não tenha
sucesso. A questão mais relevante é compreender a dimensão
cognitiva da deliberação a qual produz conhecimento de algum
tipo (COOKE, 2000, p.948).
Ao questionarem suas rotinas, os jornalistas puderam não somente refletir,
como também propor mudanças; uma forma válida de produção de conhecimento.
Acreditamos, dessa maneira, que lançar luz sobre a troca de argumentos no
Observatório relacionada ao incidente em questão nos ajuda a pensar o jornalismo;
não mais a partir da notícia em si, mas sob a perspectiva dos profissionais que a
produzem.
4.2 O problema do distanciamento
Crimes de sangue, com nuances passionais, fazem parte do cotidiano dos
jornalistas. Para cobri-los, esses profissionais se valem de suas rotinas, como
responder às perguntas do lead e o uso das fontes, de forma a atestar um relato
objetivo e imparcial. Há, entretanto, casos capazes de colocar em questão esse
distanciamento, por envolverem os jornalistas não apenas no papel de
observadores, mas também como vítimas. É, por exemplo, o que houve em relação
à morte, supracitada, de Tim Lopes. Brutalmente assassinado em uma comunidade
pobre e violenta do Rio de Janeiro enquanto fazia uma reportagem, o jornalista teve
sua biografia construída nos jornais de modo a ter valorizado seu trabalho no
jornalismo investigativo. A estratégia, entretanto, não servia apenas para idealizar a
imagem de Tim Lopes. O jornalista foi tomado como exemplo e símbolo de toda uma
classe, e as narrativas acerca de seu assassinato tenderam a “reforçar a atuação
dos jornalistas como policiais no combate à criminalidade, agindo em favor do ‘bem
coletivo’” (CASTILHO, p.141, 2005). Nesse caso particular, o jornalista foi a vítima; e
essa posição foi enaltecida nas páginas dos jornais, a partir de um “martírio” contado
e recontado, de modo a enquadrar Tim Lopes como herói, em oposição a seu
assassino, “bandido e vilão da história”, o traficante Elias Maluco.
No caso Pimenta Neves/Sandra Gomide, no entanto, é um jornalista que
desempenha, além do papel de observador e de vítima, o de assassino. O caso é
singular porque vítima e assassino eram colegas de profissão e, muitas vezes,
conhecidos em primeira pessoa dos profissionais da imprensa. No caso de Sandra,
91
não houve nos textos do Observatório manifestação declarada de amizade ou de
algum colega de trabalho que mencionasse que a conhecera. Apenas em um
depoimento de nosso objeto identificou-se uma espécie de vínculo com a jornalista,
quando a autora afirmou se identificar com a posição de "vítima" ocupada por
Sandra em sistema que tenderia a ser o predominante nas redações brasileiras.
Antes do crime Sandra Gomide vinha sofrendo represálias e injustiças na
redação, até seu desempenho profissional foi questionado. Neste ponto,
me identifiquei com ela, lembrando dos momentos em que fui vítima
de arbitrariedades de chefes. (Miriam Leitão, em Aspas do Observatório
da Imprensa de 25 de agosto de 2000; grifo nosso)
Quanto ao assassino, o vários os textos no Observatório de jornalistas que
conheciam ou trabalharam com Pimenta.
Pimenta era amigo de meu pai e o conheço desde sempre
46
. (Cláudio
Abramo, em A Imprensa em Questão do Observatório da Imprensa de 5 de
setembro de 2000; grifo nosso)
***
Conheci o Pimenta há vinte anos, trabalhei com ele na ‘Gazeta Mercantil’
e tinha muito contato quando ele estava no Banco Mundial
47
. (Miriam
Leitão, em Aspas do Observatório da Imprensa de 5 de setembro de 2000;
grifos nossos)
***
Até esta semana, perto de mim, jamais tinha visto uma pessoa se desfazer
como este amigo de 50 anos, que se desconstruiu por razões que
somente ele soube ou armou
48
. (Ignácio de Loyola Brandão, em “Aspas” do
Observatório da Imprensa de 5 de setembro de 2000; grifo nosso)
***
Pimenta Neves cometeu um delito gravíssimo pelo qual terá de pagar.
Disse isso a ele na visita que me vi obrigado a lhe prestar, na condição de
alguém que o respeitava e admirava fazia 25 anos, desde que Cláudio
Abramo nos apresentou na Folha
49
. (Otavio Frias Filho, em Aspas do
Observatório da Imprensa de 5 de setembro de 2000; grifo nosso)
46
Texto disponível na íntegra em anexo.
47
Idem
48
Idem
49
Idem
92
Todos os relatos acima pertencem a profissionais de renome na imprensa
nacional. E nos ajudam a entender a proporção que o crime ganhou em meio aos
jornalistas. Foi praticamente impossível não tecer comentários sobre o réu. Para
alguns colegas, ele foi considerado exemplo de abuso de poder e tirania dentro das
redações, demonstrando um comportamento generalizado por parte das chefias do
jornalismo brasileiro (trataremos dessa temática de modo mais aprofundado na
última seção deste capítulo); para outros, um exemplo de profissional. Palavras
como “honradez”, “competência” são usadas para descrever o réu. Isso sem
considerar o lado pessoal da vida de Pimenta, uma vez que, de acordo com alguns
colegas “ele sempre foi, reconhecidamente, um bom jornalista, um homem com
grande zelo, que preza muito a ética (...) foi e é um bom pai, um cidadão correto
(Roberto Müller Filho, em entrevista ao Observatório do dia 5 de setembro de
2000
50
)
Não defendo o gesto de Pimenta. Mortes como a de Sandra tornam a vida
feia, mergulham o mundo no escuro. No entanto, misturadas, me chegam
imagens desencontradas do homem que saía do Cine Odeon, em
Araraquara, em nossa adolescência, ansioso por fazer filmes, criar arte.
Esse foi um de seus sonhos. Não fez, foi por outros caminhos e foi
brilhante no que fez. Ou o homem que carregou docemente por anos a
imagem de uma apaixonada de juventude.
(...) Imagens me vinham.
Pimenta e eu saindo de Washington, porque ele queria revelar-me o
fascínio do Vale de Shenandoah, o mesmo de um filme em tecnicolor que
nos encantara.
Ou passeando por museus de Washington para me mostrar pinturas que o
tocavam. A beleza o emocionava. O Pimenta que me enviava livros, ou
vídeos raros ao Rodolfo Konder. O homem que, nas viagens de volta ao
Brasil, quando estava no Banco Mundial, pedia aos amigos de Araraquara
que organizassem um reencontro com a turma de classe. A imagem que
me vem é a do futebol do curso científico, quando Bazani, já um craque na
Ferroviária, fazia longos lançamentos para a ponta, obrigando o Pimenta a
xingar, correr e a saltar feliz com o gol que o meio-de-campo lhe dera.
Enquanto escrevo, ele está no hospital, em coma induzido, com a polícia
na porta à sua espera. Ao destruir, ele se destruiu. (Ignácio de Loyola
Brandão, em Aspas do Observatório da Imprensa, 5 de setembro de 2000.)
São relatos que tendem a humanizar ainda mais o criminoso em meio aos
debates do Observatório. Percebe-se a proximidade e os laços, de anos, que
50
Texto disponível na íntegra em anexo.
93
ligavam o réu a muitos de seus colegas. Pimenta estava no jornalismo havia
décadas. Alcançou cargos de chefia. Assim como ele, muitos de seus amigos de
início de carreira também eram chefes em grandes veículos de imprensa, jornalistas
com o poder e a responsabilidade de decidir que matérias seriam veiculadas e sob
qual enfoque. Muitos desses jornalistas, apesar de condenarem o ato que levou à
morte da vítima, saíram em defesa do réu, lembrando que, antes do assassino,
existia um bom ser humano.
A proximidade com o caso representou um dilema profissional: afinal, é
possível fazer uma cobertura distanciada de um crime que envolve personagens tão
próximos dos repórteres e editores que produziriam as respectivas matérias? A
dúvida foi apontada pelos próprios jornalistas, como destacam Miriam Leitão e
Alberto Dines:
A cobertura da imprensa foi prejudicada por uma certa paralisia, os jornalistas
ficaram abalados, um pouco sem saber lidar com um caso tão próximo.
(Miriam Leitão, em Aspas do Observatório da Imprensa de 5 de setembro de
2000)
***
Jornalistas acostumados a colocar-se acima das paixões, treinados no
penoso mister de distanciar-se dos eventos transcendentais para avaliá-
los com frieza, estão perplexos diante de uma história tão velha e tão trágica
quanto a própria condição humana
51
. (Alberto Dines, em O Circo da Imprensa
do Observatório da Imprensa de 25 de agosto de 2000; grifos nossos)
Assim, houve um embate entre treinamento e humanidade, considerando-se o
primeiro termo equivalente ao método, ao distanciamento que leva à objetividade
jornalística; e o segundo ao lado humano dos jornalistas, que conheciam os
envolvidos no crime o qual, portanto, tornou-se difícil de ser examinado com a frieza
exigida. Um crime caracterizado, portanto, como excepcional pelos próprios
responsáveis pela cobertura porque “não está previsto nos manuais”, termo utilizado
pelo editor do Observatório da Imprensa ainda no mesmo texto supracitado, o
primeiro dedicado ao incidente.
51
Texto disponível na íntegra em anexo.
94
Um dado interessante é que alguns poucos relatos chegam a cobrar o
distanciamento, por notarem a ausência desse quesito indispensável ao jornalismo
tal qual é normativamente praticado no Brasil.
“A decisão de jornais de publicar o currículo de Pimenta e nenhuma palavra
sobre quem era Sandra, no primeiro dia, se deu porque eram jornais
amigos. Corporativismo mesmo. Ele teve acesso direto aos donos de
jornais e ela não. A apresentação do currículo é como se a imprensa
dissesse: infelizmente hoje aconteceu um crime envolvendo um diretor de
redação de um grande jornal... isso não faz sentido.” (Augusto Nunes, em
Aspas do Observatório da Imprensa de 25 de agosto de 2000.)
Entretanto, a abordagem predominante nos textos disponíveis no
Observatório aponta para o problema do distanciamento sob uma outra perspectiva:
não por sua falta, mas como forma de justificar uma cobertura que não poderia ser
como qualquer outra, uma vez que os envolvidos eram conhecidos “íntimos” da
imprensa em geral.
No caso Pimenta ocorreu algo inédito na imprensa recente. O autor do
assassinato era conhecido de grande parte dos jornalistas, tinha nome, era
um profissional de reputação ilibada (apenas comprometida pelos
privilégios profissionais concedidos à namorada). Até o crime nada havia
em sua vida que explicasse sua conduta. Portanto ficou impossível
recorrer-se aos velhos modelos do vilão de história em quadrinhos
52
. (Luís
Nassif, em Aspas do Observatório da Imprensa de 5 de setembro de 2000)
Ou seja, para Nassif e tantos outros colaboradores que se manifestaram por
meio do site, não seria possível agir de maneira semelhante a casos como o da
morte de Tim Lopes, nos quais o assassino pôde ser rotulado de “vilão” ou
“bandido”. Os debatedores do Observatório são unânimes ao afirmar que não é
viável haver distanciamento. Ao caso não caberia ser abordado como um crime
comum simplesmente porque, aos olhos de quem olha (ou seja, os próprios
jornalistas), ele fugiu às regras.
Sendo assim, por se conhecer o réu, foi preciso mudar o discurso a fim de
justificar uma quebra de conduta por parte dos jornalistas. Logo, o caso Pimenta
Neves/Sandra Gomide pode ser entendido como uma exceção à objetividade, uma
vez que o método jornalístico, no que concerne ao distanciamento, mostrou-se
insuficiente nesse incidente, pois o “réu” - e não somente a tima - era alguém
52
Texto reproduzido na íntegra em anexo.
95
familiar aos jornalistas. É justamente a partir da revelação desse “desvio de conduta”
que se produz uma demanda por esclarecer quais seriam, afinal, as regras válidas
(ou não) para se produzir uma cobertura adequada. Por detrás dessa espécie de
“perfil” do réu, presente não apenas nas matérias sobre o caso (como vimos em no
capítulo anterior), mas principalmente nos artigos e cartas que expressam a opinião
dos jornalistas, podemos identificar uma tentativa de justificar ou condenar a
cobertura dispensada pela mídia a esse incidente em especial. O que tende, por fim,
a reforçar autoridade dessa comunidade específica enquanto comunidade
interpretativa.
4.3 Cobertura nada usual... mas válida?
Boa parte das publicações no Observatório relaciona-se à cobertura do caso
Pimenta Neves/Sandra Gomide. Em tempo, ressalta-se, que como ocorre com a
temática do distanciamento tratada acima, a tendência geral dos relatos presentes
no site é tratar de mais de uma temática, misturando-as, o que torna pouco válida
uma análise quantitativa.
Poderíamos, em tese, dividir os textos presentes no site sobre a cobertura
destinada ao caso em uma cobertura como qualquer outra e cobertura excepcional.
A primeira posição, como se verificou em nossa análise e embora menos ressaltada,
aponta para uma cobertura sensacionalista "como sempre" ou de costume na
imprensa. Nela, o assassino tenderia a ser pré-julgado nas páginas jornais,
recebendo um "veredicto" imediato, antes mesmo de condenado pela lei (SFEITER,
2004), muito em virtude dos curtos prazos a que estão submetidos (DARNTON,
1990; GANS, 1980; FISHMAN, 1990; TUCHMAN, 1978).
Acho que boa parte da imprensa foi leviana, invasiva, parcial e
sensacionalista. Sem dúvida, alguns órgãos se comportaram bem,
registraram os fatos, ouviram e deram igual destaque às partes envolvidas e
levaram em conta os aspectos médicos e psiquiátricos do caso. (...) A meu ver,
essa volúpia sensacionalista prejudica, é óbvio, o réu; mas prejudica
muito mais o andamento da Justiça. (Roberto Müller Filho em entrevista ao
Observatório da Imprensa de 5 de setembro de 2000; grifos nossos)
a segunda foi validade por relatos que apontaram unanimemente para um
procedimento excepcional da imprensa brasileira. E isso se deu justamente porque,
o objeto é diferente e não proporcionou o distanciamento necessário, em virtude de
96
uma relação muito próxima entre os jornalistas responsáveis por mediar ou relatar o
acontecimento, a jornalista vítima e o jornalista réu.
Essa “excepcionalidade”, por sua vez, foi considerada pelos debatedores sob
duas perspectivas distintas: a) a cobertura aponta para uma mudança positiva no
comportamento dos jornalistas e, assim, é antes uma evolução do que uma exceção
em relação à prática usual; b) ela não se justifica, uma vez que a proximidade que
impossibilitou um distanciamento do caso levou ao favorecimento (em geral, do réu),
gerando uma cobertura parcial.
O que justifica a cobertura excepcional para os jornalistas participantes do
Observatório é a perspectiva de que aprendizado que ela traz consigo. Esse se
concretiza a partir na medida em que, conforme esse ponto de vista positivo acerca
da cobertura, os jornalistas teriam evitado os relatos sensacionalistas, buscando
mostrar o lado humano dos envolvidos; e não “vilões de histórias em quadrinho”.
É curioso o caso Pimenta Neves. Pela primeira vez a imprensa conferiu a
um episódio dessa natureza um tratamento absolutamente profissional.
(Luís Nassif, em Aspas do Observatório da Imprensa de 5 de setembro de
2000; grifo nosso)
A cobertura pôde ser caracterizada enquanto evolução porque esse
profissionalismo do qual Nassif fala evita alguns erros do passado recente da
imprensa.
Os jornalões de São Paulo fizeram o que sempre deveria ser feito. Tratar
suspeito como suspeito. Mas não é sempre assim. No caso, um ilustre
jornalista, mesmo diante de vários relatos, foi tratado como suspeito. Os
cidadãos comuns deveriam receber o mesmo tratamento no dia-a-dia das
redações. Não raras vezes, uma simples suspeita serve para derrubar toda
uma história particular de vida. Que todos sigam o exemplo deste
assassinato. Vale lembrar o triste caso da Escola de Base. (Carta ao
Observatório da Imprensa, 25 de agosto de 2000; grifos nossos)
O caso da Escola de Base é um fantasma que ainda ronda as redações
brasileiras e representa um exemplo de mau jornalista, carregado por nuances
sensacionalistas e que levou a um julgamento equivocado dos réus. O
incidente, ocorrido em 1994, diz de uma série de reportagens apontando os
donos e alguns funcionários de uma escola primária em São Paulo em
97
envolvimento em abuso sexual de crianças. A divulgação do caso levou à
depredação e consecutivo fechamento da instituição e os donos da Escola de
Base chegaram a ser presos. O inquérito policial foi arquivado por falta de
provas, mas os danos haviam sido causados em virtude da grande
repercussão negativa, o que levou alguns órgãos da imprensa a serem
condenados a pagar indenização aos acusados.
Dessa forma, ao construir uma abordagem que contemple o lado
humano do réu, os jornalistas acreditam evitar pré-julgamentos. Como é
sabido, a objetividade pressupõe um conjunto de rituais estratégicos, os quais
incluem ouvir e citar os dois lados da notícia (TUCHMAN, 1993).
Do conjunto de reportagens sobre o tema foi possível compor todas as
facetas de sua personalidade (de Pimenta Neves), do profissional
competente ao chefe que beneficiava a namorada, do pai de família
amoroso ao amante possessivo, da pessoa solitária e fechada ao chefe de
redação arrogante.
Fugiu-se do estereótipo primário do vilão consumado, o sujeito que tem
defeitos e nenhuma qualidade, mais propício a histórias em quadrinhos do
que a reportagens de nível.
É evidente que, expostos todos os ângulos, houve quem se desagradasse
com partes do perfil. Houve também quem lembrasse que uma pessoa
humilde não receberia o mesmo tratamento, logo seria acusada de
assassina.
Incorre-se em uma deturpação do conceito de igualdade. Todos devem ser
iguais perante a lei e a opinião pública no respeito aos seus direitos, não no
desrespeito. (Luís Nassif, em Aspas do Observatório da Imprensa de 5 de
setembro de 2000)
Assim, vítima e réu deveriam ser, via de regra e até provado legalmente
o contrário, iguais; e, portanto, tratados dessa maneira. Mais que isso: embora
pareça contraditório, foi justamente a proximidade com a vítima e o réu (ou
seja, a falta de distanciamento), que possibilitou a construção de relatos
objetivos, considerando-se que Pimenta Neves foi tratado como suspeito até
confessar o assassinato da ex-namorado; e passou, depois disso, a acusado (a
palavra assassino praticamente não foi usada para classificá-lo). Dessa forma,
o réu foi humanizado porque era alguém bastante conhecido da classe
jornalística, sobretudo das chefias responsáveis pela tomada final de decisão.
98
Pimenta Neves é tratado na matéria como "suspeito" do crime – isso apesar do
relacionamento tumultuado dele com a vítima, das ameaças deixadas na
secretária eletrônica de Sandra Gomide, do testemunho de diversas pessoas
que estavam no haras etc. E a condição de "suspeito" não é dita diretamente
pelo jornal (o Estadão), mas numa citação de palavras do irmão da vítima. A
mesma cautela em tratar Pimenta Neves como "suspeito", "suposto
assassino", "acusado" foi observada em outros meios de comunicação.
algo de errado nisso? Muito pelo contrário. A cobertura sem
emocionalismo, discreta, até certo ponto "fria", do caso Pimenta Neves–
Sandra Gomide deveria ser a norma de procedimento da imprensa em
situações semelhantes. (...) (Carta ao Observatório da Imprensa, 25 de
agosto de 2000; grifo nosso)
Entretanto, relatos concebidos por alguns jornalistas como prejudiciais ao o
réu foram classificados de sensacionalistas. Ou seja, um jornalismo que
representaria a antítese do jornalismo considerado “sério” e objetivo, sendo os
jornais que seguem essa linha “rotulados por uma tendência de publicação de
mensagens desacreditadas e sensacionalistas, nas quais a violência e o sexo quase
sempre são os temas explorados” (PEDROSO, 2001, p.47).
Ao afirmarem que a cobertura foi excepcional, os jornalistas tenderam a
considerá-la uma evolução do jornalismo brasileiro para lidar com casos “especiais”,
que causam comoção e indignação, ao menos em um momento inicial (conforme
pareceu à imprensa em geral o caso da Escola de Base, num primeiro olhar). E é
por essa razão que boa parte dos comentaristas avaliou essa cobertura
positivamente. Porém, os relatos que apontavam para o réu enquanto assassino
(construindo a imagem de um “monstro”, nas palavras de Loyola Brandão)
demonstraram, segundo essa mesma perspectiva, que o jornalismo brasileiro ainda
não evoluiu bastante...
...discordo da noção, que começa a prevalecer, de que o assassino está
sendo favorecido. A maior parte das versões divulgadas proveio da acusação
e de pessoas ligadas a Sandra Gomide. O assassino não se manifestou,
exceto em depoimento editado com notória má-fé contra ele. As revistas
capa em todas elas pintaram-no como vilão rematado. A TV se entregou
prazerosamente a seu linchamento moral. (Otávio Frias Filho, em Aspas do
Observatório da Imprensa de 5 de setembro de 2000; grifos nossos)
Um outro olhar, porém, aponta justamente para a noção da qual
discorda Frias Filho. vozes no observatório que, apesar de atestarem a
99
“excepcionalidade” da cobertura, afirmam que a mesma é injustificada, uma
vez que houve favoritismo para com o réu. Isso se constitui um delito grave,
que aponta para a quebra total da objetividade jornalística, uma vez que um
lado estaria sendo beneficiado em detrimento do outro. Ou melhor, nesse caso,
é o assassino, e não a vítima a ser humanizado e tornar-se protagonista dos
relatos.
Causa-me profunda indignação a abordagem de determinados vculos de
comunicação em especial o jornal Folha de S.Paulo e o site Folha Online
na cobertura do bárbaro e covarde crime praticado pelo ex-diretor de redação
do Estadão Antônio Pimenta Neves, contra a repórter Sandra Gomide. Neles,
de forma repugnante, uma insinuação explícita de que a vítima era, antes
de tudo, uma alpinista social, que se aproveitou do interesse do apaixonado
diretor para galgar posições e defenestrar desafetos nas redações por onde
trabalhou, fazendo questão inclusive de afirmar o acesso e o prestígio que
tinha com o diretor.
Lamentavelmente, Sandra Gomide não está mais entre nós para se defender
de abordagens para de preconceituosas e difamatórias contra a sua
memória. Não houve sequer preocupação em ouvir outras fontes, inclusive ex-
namorados e colegas, que talvez tivessem versão diferente sobre o
comportamento da jovem jornalista, sem se esconder no anonimato
53
.
(Alexandre Caetano, em A Imprensa em Questão do Observatório de 5 de
setembro de 2000)
Relatos que caracterizam a um favoritismo de réu demonstrando, portanto,
uma involução da imprensa no Brasil, porém, não são predominantes no
Observatório no que diz respeito à cobertura. A crítica que se faz, por outro lado,
apontando para um problema mais profundo. As coberturas que tenderam ao
favorecimento do chefe de redação seriam apenas fruto de uma questão mais
abrangente e problemática, incrustada no íntimo dos jornalistas - as relações
profissionais e hierárquicas presentes nas redações que cercam o exercício da
profissão, como veremos no tópico seguinte.
4.4 “Egotrip jornalística”: o incidente como revelador do cotidiano das
redações
Boa parte do debate desencadeado a partir do caso Pimenta Neves/Sandra
Gomide no Observatório da Imprensa referiu-se ao dia-a-dia das redações. A partir
53
Texto disponível na íntegra em anexo.
100
desse incidente crítico, os jornalistas se colocaram a repensar a profissão a partir de
suas bases. O acontecimento funcionou, desse modo, como um revelador da
estrutura inerente ao fazer-jornalismo, o qual envolve o autoritarismo por parte dos
profissionais ocupantes de cargos de chefia.
O comportamento do senhor Pimenta Neves não é único nas redações.
uma série de tiranos que adotam comportamentos pautados muito mais em
critérios pessoais do que profissionais. (...) As empresas jornalísticas é que
devem rever suas estruturas hierárquicas, seus critérios profissionais e o poder
tirânico que concedem a determinadas pessoas. (Alexandre Caetano, em A
Imprensa em Questão do Observatório de 5 de setembro de 2000)
Assim, mais do que questionar essas relações, os jornalistas apóiam-se
sobre o crime cometido por Pimenta para denunciar as “tiranias” presentes no
interior das redações, bem como o uso desse poder como forma de beneficiar
alguns profissionais em detrimento de outros.
Um caso de crime passional em nosso meio e logo lembramos daquela
demissão que veio de cima, inexplicável, para retirar um colega competente
que trabalhava na mesa ao lado. E também vêm-nos à memória aqueles
colegas que, surpreendentemente, tendo a mesma idade e o mesmo tempo de
trabalho, e não maior habilidade para escrever um texto do que outros de nós,
subiram rapidamente em carreiras meteóricas rumo à posição de chefes ou
repórteres especiais, com salários altíssimos
54
. (Cláudia Rodrigues, em a
Imprensa em Questão do Observatório de 5 de setembro de 2000)
Como dissemos em momentos anteriores deste trabalho, a ascensão
profissional por mérito é vista com bons olhos pelos pares; porém, aquelas
consideradas como “beneficiamento” porque o sujeito é amigo ou amante do chefe
são condenadas (GANS, 1980). Ok, pode-se afirmar que é assim em qualquer
profissão. Entretanto, o questionamento por parte dos jornalistas é recorrente; e
somente o é porque a prática de ascensão profissional por “outros méritos” é ainda
bastante comum nas salas de redação.
Logo, a proposta seria menos discutir a forma como se faz a cobertura
(porque pode ser executada de forma correta) do que as relações intra-redação. A
culpa pela morte de Sandra Gomide recai com menos peso sobre os ombros de
Pimenta Neves. A tragédia, como gostam os jornalistas de rotular, foi, na verdade,
54
Texto disponível na íntegra em anexo.
101
resultado de relações de trabalho. É no ambiente das redações que se nutrem os
egos dos “grandes jornalistas”, onde o poder é exercido a ponto dos superiores
hierárquicos se considerarem praticamente donos dos jornalistas em posição
inferior.
Mas o crime, o caso da jornalista assassinada por um ex-chefe e ex-namorado,
causa espanto. E o espanto é maior quando associamos a morte da colega
ao microcosmos doentio de uma grande redação. O espanto se torna
gigantesco quando percebemos que o sistema de funcionamento do órgão,
o jornal, tem tudo a ver com o que aconteceu, mesmo que o caso de
dezenas de outras Sandras e Pimentas não chegue a um final tão trágico.
O que aconteceu na redação do Estadão, antes do crime, não é um caso
isolado, e traduz muito bem, nesse microcosmos do universo jornalístico, o
macrocosmos de desigualdades, corrupções, bajulações, concessões e
disputas pelo poder. (Cláudia Rodrigues, em Imprensa em Questão de 5 de
setembro de 2000; grifos nossos)
Assim, o que qualquer jornalista sabe e que, por não estar estampado no
produto final de seu trabalho (ou seja, as páginas, sons ou imagens dos jornais), o
público desconhece, ganha visibilidade a partir desSe caso de sangue singular.
uma hierarquia nas redações e as relações de poder e posse fazem parte das
regras não escritas da profissão. Mais do que um homem ter matado uma mulher,
foi um diretor de redação que matou uma editora; que também fora sua namorada.
Essas relações viciadas, porém, ultrapassam o âmbito amoroso, por assim
dizer. São praticamente coisa ensinada de geração para geração. Lembremos que
os grandes jornais do Brasil são negócios familiares. Assim procura-se manter o
exercício do poder em família, entre pessoas próximas, fiéis e bem quistas aos
donos da empresa jornalística.
O crime em questão, no final das contas e levando-se em consideração a
perspectiva dos próprios jornalistas, foi uma conseqüência lógica do autoritarismo.
Dois anos atrás, o Observatório da Imprensa publicou um artigo meu
intitulado "Carta aberta aos jornalistas Os novos bárbaros", no qual eu
chamava atenção para a expansão avassaladora do poder imperial, por
parte dos chefes, no ambiente das redações. Manifestava estupefação
diante do exercício narcisista do mandonismo desbragado, que, se não
convém a nós, jornalistas, tampouco convém aos patrões, como é fácil
observar agora no caso dos Mesquita, e muito menos aos leitores.
102
Alertava para a necessidade de se pôr cobro ao autoritarismo das chefias, que
se acreditam acima do bem e do mal, e propunha, a exemplo do que ocorre em
países do Hemisfério Norte, que se cortem as asas do arbítrio. Sugeria a
criação de critérios explícitos e de instrumentos de decisão que removam o
poder absoluto dos chefes. Para o pesar de todos, vê-se agora, no caso
Pimenta Neves, que infelizmente minhas observações pareciam
pertinentes.
Ir até o fundo da questão, no caso, implica que se repense a maneira como se
exerce a autoridade nas redações. O mando a bel-prazer é uma ameaça a
todos; não apenas pelo fato de mandar, mas porque, mandando, inibe-se a
capacidade de discernimento e de reação por parte das vítimas, que, se não
morrem de tiro, como Sandra, morrem um pouco a cada dia, adubando com
sua defecção o terreno em que medram Pimentas. (Alexandre Caetano, em A
Imprensa em Questão do Observatório de 5 de setembro de 2000; grifos
nossos)
É como se os jornalistas dissessem: “a questão não está no produto de nosso
trabalho, os jornais; está num momento anterior, ainda na linha de montagem. É
algo que precisa ser revisto. Entretanto, esse caso excepcional nos uniu enquanto
classe e, mais do que nunca, trabalhamos com competência”. Ainda sob a
perspectiva dos próprios jornalistas, o problema foi identificado. E encontra-se no
interior das redações.
Mas o problema real não reside propriamente nas hierarquias e, sim,
naqueles jornalistas que apenas “fazem parte do jogo”, sem merecerem ocupar os
cargos.
Jornalismo é uma atividade que, por suas características, exige uma estrutura
vertical, ágil, disciplinada. Estas características orgânicas e intrínsecas não devem
impedir a introdução de ferramentas consensuais num vel decisório menos
imediato. Imperioso lembrar que o Caso Pimenta Neves respingou na imprensa
inteira. (...) No conjunto, a dia está oferecendo uma cobertura razoavelmente
objetiva, mas a questão vai além da cobertura: embute-se num modo de
produção imperial, ultrapassado.
A questão do comando das redações brasileiras não pode ficar reduzida a
nomes, sobrenomes, sexo, faixa etária ou atributos individuais. É preciso
pensar na modernização do sistema para que o produto seja melhor. Mais
confiável
55
. (Alberto Dines, O Circo da Imprensa do Observatório de 5 de setembro
de 2000; grifos nossos)
Por outro lado, como é possível perceber com base no trecho acima, o
autoritarismo é concebido como algo positivo e necessário pelos próprios jornalistas,
caso não se ultrapasse as tênues fronteiras do profissionalismo. Disciplina,
55
Texto disponível na íntegra em anexo.
103
comando e, logo, obediência aos superiores fazem, pois, parte do processo de
produção da notícia. Dessa forma, as hierarquias o elaboradas enquanto algo
inerente à prática profissional. Os jornalistas estariam, por sua vez, afirmando seu
profissionalismo e autoridade ao rechaçarem as escolhas arbitrárias dos dirigentes
dos jornais e afirmarem o mérito como condição para solucionar o problema do
comando nas redações - ou, nos termos do próprio Dines, a valorização dos
“talentos”, antes desperdiçados. O favoritismo encontrado nas coberturas apontadas
como injustificadas seriam proveniente dessa forma de jornalismo “ultrapassada e
imperial”, em que seus dirigentes deveriam ser depostos e dar lugar aos “bons”
jornalistas.
Sendo assim, o caso pode ser encarado como um incidente crítico, em que
os membros da comunidade jornalística contestam e renegociam seus próprios
padrões de ação. Mas também em que reafirmam sua autoridade enquanto
intérpretes autorizados da realidade (ZELIZER, 1992). A afirmação dessa
autoridade jornalística consiste no convencimento argumentativo de que o
capazes de produzir relatos considerados objetivos, ao “darem voz ao réu”, apesar
de imersos em um acontecimento tão próximos. E, para além disso, e a despeito de
algumas exceções, atestam terem construído um relato que demonstra evolução
profissional, ao “evitar e aprender com os erros do passado”. Tal procedimento
indica que o debate em torno do incidente procurou, em suma, reivindicar e
reafirmar a posição dos jornalistas no papel de mediadores legítimos entre a
sociedade e o mundo da vida.
104
CONCLUSÃO
Pimenta Neves “sempre foi, reconhecidamente, um bom jornalista, um
homem com grande zelo, que preza muito a ética. Tem duas belas filhas, gêmeas,
foi e é um bom pai, um cidadão correto”. O trecho entre aspas foi mencionado no
capítulo anterior deste trabalho, extraído de uma entrevista concedida pelo jornalista
Roberto Müller ao Observatório da Imprensa. E exemplifica bem o grau de
proximidade que havia entre o réu e os responsáveis pela cobertura jornalística do
caso o que, a nosso ver, afetou profundamente o modo como os relatos em torno
desse crime envolvendo jornalistas foram construídos na imprensa. A análise das
matérias em torno do caso presentes na Folha Online apontam para uma cobertura
parcial, apesar de os próprios jornalistas afirmarem o contrário no debate paralelo
travado no site do Observatório da Imprensa.
Percebe-se um comportamento que vai de encontro ao lugar geralmente
ocupado pelos jornalistas, de guardiões da ordem moral; em que um criminoso
confesso, que matou a vítima pelas costas, seria, ao menos, enquadrado como
“assassino”; ao contrário do que ocorreu em relação a Pimenta Neves. Um caso em
que o réu teve as qualidades ressaltadas enquanto profissional, pai e amigo, de
modo a humanizá-lo. Nesse procedimento “atípico” da imprensa, houve uma
desproblematização do crime cometido, tendo os jornalistas se eximido de produzir
relatos que conduzissem a um julgamento moral do criminoso.
Logo, a cobertura foi parcial por não mostrar os dois lados da notícia, não
apenas tendendo para um lado: o da “positivação” do assassino, mas também pelo
apagamento da vítima, ou mesmo sua “negativação”. Ao contrário de Pimenta, as
qualidades profissionais de Sandra, além de menos destacadas, foram colocadas
em questão. Nos relatos da Folha Online, paira a dúvida quanto à competência da
jornalista, que teria sua ascensão profissional vinculada ao relacionamento com
Pimenta. Ele é o homem de poder, um diretor de redação. Ela, sua subalterna, que
o teria traído “pessoal e profissionalmente”.
105
A falta de distanciamento em relação aos envolvidos na trama relatada na
imprensa, portanto, se transforma em problema. Propomos que o caso foi revelador
de uma naturalização da hierarquia existente nas redações, o que conduziu a essa
cobertura parcial, apesar de, em boa medida, elogiada pelos próprios jornalistas por
ser vista como “equilibrada”, em que o réu não teria sido tratado de forma
“sensacionalista”, como um “vilão de histórias em quadrinho”. Porém, o cuidado do
qual teria se revestido a imprensa para a produção de uma cobertura anti-
sensacionalismo, evidenciado nos argumentos divulgados no Observatório da
Imprensa, demonstra menos uma preocupação em se evitar os erros do passado
(para não s recair em casos como o da Escola Base) e mais um produto da
proximidade para com os envolvidos, de um conhecimento tanto da vítima como do
réu - e principalmente do réu - em primeira pessoa.
Entretanto, a humanização do réu, a despeito do apagamento da vítima,
demonstra mais que a ausência de distanciamento, mas a concessão de exceções
aos critérios de objetividade e imparcialidade jornalísticos. Os jornalistas, sobretudo
aqueles em cargo de chefia e com vasta experiência profissional no currículo (como
demonstrou verificamos através do depoimento de Cláudio Abramos), possuem não
somente autoridade para definir o que é notícia e qual angulação esta deve adotar;
mas seu julgamento estaria acima da própria objetividade para os profissionais
brasileiros. Porque para esta exceção; enquanto o mesmo não se pode dizer em
relação à autoridade hierárquica dos chefes. O comando vertical, portanto, se
coloca acima dos demais rituais estratégicos. Uma forma de trabalho interiorizada
por boa parte dos profissionais das redações.
O tratamento destinado pela imprensa à vítima, por outro lado, se deveu, em
boa medida, por ela ter sido assassinada não por um “qualquer”, mas por seu ex-
chefe... Ela foi “apagada” para que o réu fosse enquadrado positivamente. Somado
a isso está o fato dele também ser ex-namorado de Sandra. Um relacionamento
condenado pelos jornalistas. Pimenta Neves fez sua história como jornalista,
construiu sua carreia, “tinha um currículo exemplar”. Disso, tanto os relatos na Folha
Online, quanto os depoimentos no Observatório não deixam dúvidas. Sandra,
porém, poderia ter se beneficiado da relação extra-profissional para se promover
como jornalista, algo condenado pelos demais colegas.
106
O debate em torno do caso promovido pelos próprios jornalistas, mais do que
questionar, traz consigo uma “pedagogia do jornalismo”, uma vez que o que se
pretende é aprender com “as lições que o crime traz”. Ao contrário do que
declararam muitos profissionais, o caso não levou a uma evolução da prática
jornalística. Na verdade, essas lições apontam para um jornalismo que tende a
reproduzir, em seu noticiário, a estrutura interna da redação, que reside numa
autoridade baseada na hierarquia profissional.
Se, de um lado, os jornalistas se colocam enquanto mediadores legítimos da
realidade para o público, através da afirmação de um trabalho realizado de modo
objetivo; o caso leva ao questionamento dessa competência profissional entre os
membros da própria comunidade jornalística. Obrigados a rever as normas e os
conceitos internos de trabalho, os jornalistas acabam por reafirmá-los. E, ao
fazerem isso, deixam transparecer o que, talvez, haja de mais revelador do modo
como a atividade jornalística é exercida na prática no Brasil: os procedimentos que,
segundo os jornalistas, conferem objetividade aos relatos são, sim, importantes e
devem ser levados em conta na produção da notícia; porém, o que realmente guia
seu trabalho são os vínculos de poder existentes dentro das redações. Ou seja, a
autoridade jornalística, para os próprios jornalistas, reside menos em se dizerem e
procurarem ser objetivos e mais em se afirmarem capacitados e qualificados para
exercê-la. “As coisas são assim porque devem ser, porque alguém diz e tem
poder – para assim decidir”. Um poder que, em última instância, é distribuído
desigualmente dentro das redações, entre os próprios profissionais responsáveis
pela produção da notícia.
107
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Universidade Federal Fluminense.
SEIFERT, Priscila Leal. Tribunais paralelos: imprensa e poder judiciário no caso
Daniella Perez. 2004. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense.
113
ANEXO I
Caso Pimenta Neves
Cobertura - Folha Online
72%
28%
20 de agosto de 2000 a 4 de setembro de 2000
5 de setembro de 2000 a 24 de março de 2001
Cobertura do Caso
0
5
10
15
20
25
30
20/8/2000
22/8/2000
24/8/2000
26/8/2000
28/8/2000
30/8/2000
1/9/2000
3/9/2000
quinzena
114
demais dias
0
2
4
6
8
10
12
24/9/2000
8/10/2000
22/10/2000
5/11/2000
19/11/2000
3/12/2000
17/12/2000
31/12/2000
14/1/2001
28/1/2001
11/2/2001
25/2/2001
11/3/2001
demais dias
115
ANEXO II
Os textos que compõem este anexo estão dispostos na ordem em que primeiro são
citados no capítulo 4 desta dissertação.
116
Dois tiros nas redações
Alberto Dines
Foram disparados num haras, em Ibiúna, a duas horas de São Paulo. Cinco dias depois
continuam ecoando, comovendo e angustiando as redações brasileiras.
Jornalistas acostumados a colocar-se acima das paixões, treinados no penoso mister de
distanciar-se dos eventos transcendentais para avaliá-los com frieza, estão perplexos diante
de uma história tão velha e tão trágica quanto a própria condição humana.
Cada matéria sobre o assunto é discutida, revirada, questionada. Porque o caso do covarde
assassinato de Sandra Gomide, 32 anos, jornalista da área econômica, pelo ex-namorado
Antonio Pimenta Neves, 63 anos, até aquela data diretor de Redação de O Estado de
S.Paulo, não está previsto nos manuais.
Não precedentes, aqui ou no exterior, de como cobrir uma tragédia deste porte e que
radiografa de forma tão cruel as entranhas do universo jornalístico. Sobretudo, as relações
de trabalho. Sobretudo, o processo de premiar e punir, promover e demitir.
Junto com a obsessão e o ciúme que levaram um dos jornalistas mais experientes e
credenciados do país a cometer tamanho desatino está exposto pela primeira vez um dos
ingredientes básicos de um processo que Sigmund Freud chamaria de "psicopatologia do
cotidiano jornalístico": a onipotência.
E porque não havia precedentes e porque, enquanto instituição, pressentiu que está
sendo observada por todos os ângulos –, a imprensa brasileira comporta-se até o momento
com naturalidade. Se há constrangimento é pelo inusitado e, não, pelo impulso de esconder,
manipular, acusar ou inocentar.
O Estado de S.Paulo, diretamente envolvido como cenário onde gestou-se a brutalidade,
vem dando ao assunto um destaque que não daria se os protagonistas tivessem outra
profissão. Isso desde o primeiro dia (edição da segunda-feira, 21 de agosto), com uma
chamada na primeira página em que apresenta seu diretor como principal suspeito do crime.
Publicou nota oficial no segundo dia e no quarto comunicou o afastamento do seu diretor.
A Folha (em cuja empresa o assassino confesso trabalhou e certamente deixou amigos),
concorrente direto, tem noticiado o caso com bastante destaque e desenvoltura sem denotar
qualquer envolvimento emocional para encobrir ou denegrir. Os colunistas, aparentemente,
não foram orientados para omitir-se [veja, no Aspas desta rubrica, artigo de Barbara
Gancia].
O Globo e TV Globo têm dado grande exposição ao crime e aos protagonistas no estilo e
entonação apropriados aos veículos de grande circulação.
117
Se a cobertura da mídia impressa e televisiva está sendo ultrapassada e batida pela
cobertura da cibermídia é porque nos últimos 20 anos desaprendemos a arte da reportagem
policial, reproduzindo apenas boletins e releases oficiais. E como o jornalismo on-line está
começando da estaca zero, reaprende a contar uma história policial [veja, nesta edição,
artigo "Internet versus papel" e, no Aspas desta rubrica, matérias do no. e do iG].
Se dentro das redações dos principais veículos as matérias estão sendo examinadas com
cautela porque é a primeira vez que isto acontece –, para quem e conhece o caso o
resultado é positivo.
O que falta discutir (e não será agora que isto vai acontecer) é o código de conduta para o
caso de casamentos ou relacionamentos entre profissionais dentro da redação. Algumas
empresas já haviam estabelecido em passado recente que casais não deveriam estar
engajados no mesmo ambiente de trabalho. Recuaram porque se a cautela poderia prevenir
dissabores privava uma redação de profissionais competentes porque eram casados ou
relacionados. Ao que consta nenhuma empresa jornalística voltou a adotar a proibição.
Mas o assunto não deveria ser descartado no foro pessoal. O fato de um profissional
namorar outro profissional no mesmo nível não viola nenhum princípio funcional. Mas um(a)
chefe namorar um(a) subordinado(a) cria uma situação embaraçosa e constrangedora
capaz de gerar mal-entendidos. Se a empresa não interveio, se não no Brasil Conselhos
de Redação onde situações funcionais anômalas poderiam ser desativadas, cabe aos
profissionais levar em consideração que ao lado da ética jornalística deve pulsar a ética
funcional. Evitar-se-ão privilégios, injustiças.
E tragédias.
[Texto fechado às 17 horas de quinta-feira, 24/8]
118
Míriam Leitão
"Foi uma bomba que explodiu na cara dos jornalistas", copyright
no.<www.no.com.br>, 24/8/00
"Isso foi uma tragédia, a interrupção da vida de uma jovem, bonita, inteligente, uma bomba
que explodiu na cara dos jornalistas. A cobertura da imprensa foi prejudicada por uma certa
paralisia, os jornalistas ficaram abalados, um pouco sem saber lidar com um caso tão
próximo.
Conheci o Pimenta vinte anos, trabalhei com ele na Gazeta Mercantil e tinha muito
contato quando ele estava no Banco Mundial. Como eu, acho que ninguém suspeitou de
algo assim. A cobertura foi influenciada pela perplexidade, a dificuldade de saber como dar
a notícia do que aconteceu dentro da redação. Os jornais ficaram tímidos na hora de
explicar por que alguém bem-sucedido chega a esse ponto, e faltou mostrar que a
personalidade dele vinha desmoronando aos poucos.
Pimenta estava incapacitado para dirigir um jornal e ninguém fez nada. A questão central, o
tema para ser discutido pelos jornalistas, é a tolerância com as pequenas tiranias nas
redações. A possibilidade de decisões como a proibição do noticiário sobre a série ‘Aquarela
do Brasil’, da Globo, por motivo fútil (porque amigas da ex-namorada trabalhavam na
divulgação do programa) é censura. Igualzinha à dos militares. Por que a redação não se
revolta? É a aceitação das pequenas tiranias, aceitar que razões não jornalísticas
determinem se vai se dar ou não dar uma notícia.
Antes do crime Sandra Gomide vinha sofrendo represálias e injustiças na redação, até seu
desempenho profissional foi questionado. Neste ponto, me identifiquei com ela, lembrando
dos momentos em que fui vítima de arbitrariedades de chefes. Uma vez, fui demitida do
próprio Estadão por motivo fútil, pelo Augusto Nunes (hoje diretor de Época). Depois,
sempre se encontra um motivo para justificar aquilo, o que no caso dela foram denúncias de
favorecimento pela Vasp e de incompetência, o que é contraditório, por ter sido promovida.
A Justiça brasileira também costuma tratar com muita delicadeza o criminoso. É preciso
saber até onde se mantém a reserva da mera suspeição. Esse assassino de uma brasileira
nos Estados Unidos, por exemplo, não foi flagrado nem confessou, mas foi algemado e
arrastado em público. as empresas, como as pessoas, têm personalidade, têm caráter, e
não se pode aceitar que pessoas façam mau exercício do poder em nome de uma empresa.
A lição desse episódio é discutir a conivência com as pequenas tiranias do cotidiano dos
jornalistas."
119
Pequenos assassinatos
Cláudio Weber Abramo
O "caso Pimenta" estimula algumas observações sobre o que vem acontecendo no meio
profissional jornalístico brasileiro. Antes de prosseguir, contudo, um esclarecimento. Pimenta
era amigo de meu pai e o conheço desde sempre, razões que seriam suficientes para me
impor o silêncio, não fosse a circunstância predominante de que não pretendo comentar o
caso em si, ou a cobertura a ele conferida pela imprensa, ou as atitudes de advogados, da
polícia ou da Justiça, coisas todas essas que estão sendo objeto da atenção de pessoas
muito mais habilitadas do que eu. Apenas observo, quanto à tragédia, que se inscreve no
capítulo da insanidade, independentemente do que afirmem laudos psiquiátricos afinal, a
psiquiatria e seus aparentados está, na melhor das hipóteses, a centímetros do
curandeirismo.
Pois bem, Alberto Dines observou neste espaço [veja remissão abaixo] que o ocorrido
aponta para um determinado aspecto da vida das redações, a saber, a ausência de
mecanismos que coíbam pessoas investidas de autoridade de promoverem suas
mulheres/maridos, parentes, namorados(as) etc. A observação de Dines é, naturalmente,
correta. Acredito, porém, que pode ser ampliada, e colocada contra um pano-de-fundo mais
preocupante do que as relações amorosas.
(Considere o eventual leitor que, sem exceção, tudo o que se segue decorre de experiências
particulares. Julgo importante explicitar semelhante obviedade porque jornalistas se
acostumaram a imaginar que aquilo que escrevem estaria respaldado por alguma faculdade
superior de objetividade neutra. Desse mal, ao menos, não sofro. Também esclareço desde
logo que não alimento a meu próprio respeito imagens hipertrofiadas quanto à competência
profissional como jornalista. Nunca fiz, na imprensa, nada que possa ser considerado
memorável, ou mesmo relevante, de forma que não me considero investido de autoridades
excelsas. Só falo, repito, a partir de minha experiência.)
O ofício e a empresa
O tempo decorrido desde meu primeiro emprego na imprensa é de aproximadamente trinta
anos. Essa experiência foi bastante entrecortada por outras atividades. Tal circunstância me
permitiu obter uma perspectiva da imprensa dotada de um certo benefício claro que
também repleta de desvantagens, mas por ora deixemos isso andar): devido ao fato de não
ter vivido uma evolução constante, a cada vez que retornava à imprensa o contraste com a
situação anterior se me apresentava com uma agudeza que a vivência continuada, muito
compreensivelmente, torna mais difícil.
O que observei ao longo desses anos foi uma involução constante nas práticas do métier.
Meu primeiro emprego foi na revista Transporte Moderno, da Abril, então dirigida por Matias
Molina. permaneci apenas uma semana, tempo suficiente para evidenciar que, se algo
não se interpusesse entre mim e a revista, os transportes brasileiros correriam risco. Mesmo
nesse curto espaço de tempo, pude testemunhar o extraordinário talento formador de
Molina, mais tarde exercido, durante anos, na Gazeta Mercantil (o que induziu algumas
pessoas a imaginar que, simplesmente por terem trabalhado na Gazeta, estariam de alguma
forma elevados ao Olimpo do jornalismo). Molina sentava-se com o repórter e lhe mostrava
o que estava errado, o que queria, quem procurar, que ângulos descartar como
improdutivos, quais filões perseguir. Sobretudo, ele usava a racionalidade.
120
Após uma semana de infrutíferas tentativas de produzir minha primeira matéria (chatíssima,
sobre embalagens), a salvação para mim e para a revista apareceu na forma de uma
transferência para outra área da empresa. A Abril Cultural começava a sua operação de
fascículos, e, devido à minha formação, fui convocado para trabalhar como redator da
Ciência Ilustrada. Naquela época, fascículos não eram feitos como hoje, simples traduções
com casca e tudo (mais uma, de tantas outras involuções). Uma tradução inicial servia como
base para artigos largamente reescritos, os quais eram submetidos duas vezes a
consultores. Uma operação dessas exigia um processo de confecção complexo e muito
disciplinado, envolvendo redações grandes. O responsável pela direção era Ary Coelho da
Silva, ex-químico cassado, integrante da velha guarda comunista carioca. Cada fascículo
ficava sob responsabilidade de um secretário de redação, no caso Alberto Gambirasio
(irmão de Alexandre).
A Ary Coelho devo tudo o que aprendi na profissão. Sobretudo, aprendi que as melhores
relações profissionais, e portanto os melhores produtos, acontecem como decorrência de
mecanismos baseados no convencimento racional. Ary lia tudo, depois chamava as pessoas
envolvidas e explicava, uma a uma, todas as emendas que fazia. Quase todos os que
trabalhavam com ele eram muito jovens e relativamente inexperientes, o que facilitava as
coisas. Se o tradutor se equivocava, se o redator escrevia alguma impropriedade, se o copy-
desk deixava passar, se o secretário de redação não percebia, Ary chamava a todos e a
todos explicava o que precisaria ser mudado e por quê. Dessa forma, todos aprendiam; não
aprendiam, mas sobretudo sabiam o que e como estavam aprendendo. Nunca mais
encontrei alguém que atingisse os padrões de correção profissional que ele praticava. Com
ele aprendi que o chefe é não apenas representante da empresa e do ofício perante o
funcionário mas, também, representante do funcionário perante o ofício e a empresa.
Aprendi que a ascendência hierárquica de nada vale na ausência do respeito conquistado
pelo exercício cotidiano da competência. Aprendi que coisas que não se faz, mesmo se
não proibidas, e que há obrigações incontornáveis, ainda que não impostas.
As relações funcionais com a empresa eram, também, revestidas da mesma racionalidade.
O importante a observar quanto a isso é que a racionalidade impõe uma grande dose de
moralidade – se alguém era promovido ou demitido, todos sabiam por quê. Podia-se
discordar das avaliações, mas avaliações havia, unanimemente compreendidas.
Praga de redações
Semelhante modo de funcionamento podia existir na presença de dinheiro e de uma
orientação geral esclarecida. Este segundo requisito era proporcionado por Pedro Paulo
Poppovic, excepcional dirigente de editora com o qual me desentendi anos depois, por
motivos políticos.
É claro que também havia gente ignorante, incompetente, mau caráter etc. (bem como
namoradas e namorados, embora não cônjuges, se não me engano proibidos), mas a
existência de mecanismos de decisão e controle explícitos e interpessoais minimizava tanto
seu número quanto seus malefícios.
Depois que saí da Abril, passei por uma porção de empregos e atividades, que incluíram de
novo a Abril, a IstoÉ em seus primórdios, a Folha (duas vezes), a Gazeta Mercantil, a versão
eletrônica do Valor Econômico e outros menos visíveis.
Ao longo desse período, o que verifiquei crescentemente foi a vulnerabilidade da imprensa à
arbitrariedade no interior das redações. É comum não existirem regras de conduta
profissional, as quais são substituídas pelo comportamento de seu dirigente máximo.
Quando este é uma pessoa razoável, isso se reflete na imposição de condutas profissionais
121
melhores. Quando não, instaura-se um caos de desrespeitos pessoais, profissionais e
hierárquicos, tudo em meio a ordens esquisitas, decisões injustificáveis tomadas in pectore
e, não raro, agressões à própria inteligência.
Mesmo quando o dirigente é mais civilizado, o fato de seu ordenamento precisar ser imposto
a uma redação formada por indivíduos acostumados à arbitrariedade retira muito de sua
capacidade de cooptação. Nessas condições, o ordenamento não é entendido pelas
pessoas, mas obedecido irracionalmente. É, por exemplo, o que acontece com a Folha.
(Diga-se, aliás, que esse jornal, como precursor, no Brasil, da introdução de mecanismos
estruturados e formalizados na redação, procurou inaugurar uma racionalidade prática que a
profissão desconhecia. Por isso, foi sempre muito mal compreendido.)
Há redações, por outro lado, que funcionam com base no princípio do chefe em sua
formulação mais brutal. Dirigentes desse tipo tomam decisões sem discuti-las, ofendem-se
quando questionados e agem como crianças mimadas. Tipicamente, carregam atrás de si
grupos de apaniguados: quando uma mudança na direção, sai toda uma turma e entra
outra. Mas que profissionalismo é esse, em que se consegue trabalhar com amigos, com
aqueles que são alvo de favorecimentos extraprofissionais e que, portanto, aprendem que a
blandícia, e não o mérito ou a capacidade, é o fator relevante para o progresso na
profissão?
Apesar de toda uma discurseira auto-referenciada, tais dirigentes são incapazes de
trabalhar com a diferença, não por simples falta de disponibilidade, mas porque isso se situa
fora de sua vivência. São, portanto, cercados de puxa-sacos, uma praga de redações que,
se não coibida com o máximo rigor, infecta todo o ambiente. E são, por seu turno, cultores
do poder, qualquer poder. O antijornalismo, que se reflete diretamente no noticiário.
Caso pensado
A ausência da consciência de que existe um dever profissional em justificar decisões
perante a estrutura dissolve a organicidade que está na base de uma organização
hierárquica. Hierarquias não existem para favorecer pessoas, mas para tornar o trabalho
mais eficiente. Se, à diferença disso, a hierarquia serve para estabelecer primordialmente
quem ganha mais e quem ganha menos, seu objetivo material deixa de existir: impera o
arbítrio pessoal. O diretor dá ordens diretas ao repórter e o editor é desautorizado, perdendo
qualquer possibilidade de ganhar o respeito de seus subordinados. Não é incomum que o
editor tenha medo de orientar o repórter ou o subeditor, porque este pode ser amigo de
alguém situado mais acima. Contratações, promoções e demissões obedecem não ao
propósito extrapessoal de fazer um produto melhor, mas à finalidade mafiosa de fortalecer
posições de grupo. A solidariedade profissional transforma-se em desvio em relação à
norma, um crime tornado mais grave porque expõe, pelo contraste, a esqualidez
circundante. O cinismo, secular moléstia profissional do meio, se transforma em instrumento
explícito de gestão. Pequenos assassinatos são cometidos diariamente nesse tipo de
redação.
Instruir um repórter que fará uma matéria é algo que acontece no plano convencional. A
instrução é ministrada com consciência de que para nada servirá, e recebida com enfado.
Imagina-se que, de moto próprio, o repórter irá se preparar, escrever sem agressões
excessivas aos fatos, à gramática ou ao bom senso. Por que isso se imagina é um mistério,
pois para preparar-se o repórter precisaria saber que isso é importante, algo que
acontece no discurso, raramente na prática. Como, várias vezes na vida, estive do outro
lado da mesa, fui em muitas ocasiões entrevistado por repórteres (de grandes jornais, de
canais de TV globais, de revistas) que iniciavam o diálogo pela frase "Diga tudo sobre esse
122
negócio aí". Como o proverbial cachorro que cai do caminhão de mudança, esses valentes
profissionais sequer sabiam que raio estavam cobrindo.
Fontes que ignoram o despreparo da imprensa recaem na indignação no dia seguinte, ante
as barbaridades publicadas. Fontes que sabem disso, e que são capazes de se aparelhar,
armam-se. Como têm consciência de que o preparo médio da reportagem é nenhum,
ganham todas as condições de passar o que querem, coisa que fazem todos os dias.
Conforme Mino Carta diz há décadas, repórter brasileiro nunca faz a segunda pergunta. Não
é à toa que o jornalismo diário brasileiro é quase todo ele declaratório. Os efeitos são
notórios no noticiário econômico, por exemplo, permanentemente vulnerável ao chapa-
branquismo (há também colunistas conscientemente chapa-branca, é claro).
Como conseqüência da falta de racionalidade interpessoal na produção, em quase todos os
jornais (em revistas o problema é bem menor, devido ao tempo de edição muito mais
dilatado) a esmagadora maioria das matérias sai diretamente do terminal do repórter para a
chapa de impressão. Ninguém o que será publicado, e ninguém no dia seguinte. Isso
chegou a tal ponto que a crítica da edição, quando exercida, é encarada como ofensa (não
me refiro ao trabalho de uma equipe de controle extra-redação, a qual quem descarte,
preconceituosa e antiprofissionalmente, como "polícia"). O repórter acredita ser uma espécie
de Hemingway, no que é estimulado pela ausência de controles profissionais exercidos pela
chefia.
Sem dúvida, a predominância de uma ideologia de vida alimentada pela "livre-iniciativa"
estimula cada vez mais a perseguição de objetivos pessoais acima de qualquer outra
consideração. É um fenômeno mais amplo, que afeta todas as atividades. O
enfraquecimento dos condicionantes sociais que limitavam o escopo da ação individual
dissolve os padrões profissionais e substitui a ética do ofício pelo vale-tudo do caçador de
renda. As redações não estão livres disso. Em tais condições, pode-se considerar como
certo um recrudescimento do mercantilismo pessoal, traduzido na venda de matérias (algo
que a profissão esconde cuidadosamente, mas cuja potencialidade é bem presente) e na
montagem de esquemas de negócios paralelos, alavancados com dinheiro do patrão.
É evidente que jornais feitos dessa maneira são mal planejados, mal pautados, mal
apurados, mal escritos, mal acabados. Informam mal, portanto.
Mas como é que fica o fato de o público aceitar esses jornais? Não seria isso uma
demonstração empírica da falsidade do que se afirmou até aqui? Não é a aceitação por
parte do consumidor a medida da qualidade de qualquer produto, jornais incluídos?
A resposta é que a avaliação da qualidade pela popularidade se baseia numa alteração do
significado da expressão "qualidade", alteração essa que, por sua vez, desconsidera de
caso pensado o poder manipulador da propaganda e do marketing. O assunto tem certa
complexidade, que a já alentada extensão do presente artigo impede seja explorada. Fica
para outra vez.
123
Ignácio de Loyola Brandão
"Tantas perguntas, nenhuma resposta", copyright O Estado de S. Paulo, 24/08/00
"Talvez eu tenha vivido pouco. Tenha vivido mal e a vida me tenha poupado de experiências
brutais. Não sei quanto se deve viver até aprender.
Desde domingo carrego a sensação de que acabei de nascer. De que a vida começou esta
semana sob o impacto do mal. De domingo para trás estive num ensaio, decorando
diálogos, recebendo marcações. De domingo em diante, o palco desapareceu, sumiram as
marcações, esqueci os diálogos. Agora, não tem diretor nem texto, flutuo no vazio da
incompreensão, no vácuo da perplexidade. Ou a vida é isso? Nenhuma resposta e tantas
perguntas.
Estava em casa e recebi o telefonema de um amigo. Minha mulher, ao meu lado, me ouviu
gritar, eu que jamais grito. E me viu ficar branco e trêmulo.
Ocorreu a ela que tivesse acontecido alguma coisa grave ao meu filho, que vinha de uma
fazenda. Não foi com meu filho, felizmente. Nunca um felizmente soou tão estranho numa
frase, numa vida. Tão inadequado. momentos que a gente gostaria de varrer,
transformar em miragem. A partir do instante em que Marco Antônio Rocha me comunicou,
cheio de laconismo e dor, que Pimenta Neves tinha matado a namorada, o mundo passou a
ser incômodo, assustador.
Desde aquele momento até hoje, quarta-feira, quando escrevo esta crônica, não tenho
dormido, sinto ânsias depois de cada garfada, caminho como sonâmbulo. Um gesto. O dedo
aciona um pedaço de metal de 3 centímetros, o gatilho, e um mundo de vidas desmorona
como dominó. Infelizmente, dedos que acionam gatilhos não possuem lucidez, consciência
da extensão dos gestos, proporção do ato. Penso com dor em quem morreu, na família que
se viu em meio a uma tragédia, nos amigos dela. No entanto, meu pensamento se alonga
em outra direção. Nas duas filhas de Pimenta, as gêmeas, distantes, sem terem, talvez,
acompanhado a desintegração da mente do pai, porque acredito, neste caso, na
deterioração de neurônios, emoções, sentimentos, razão. Pela primeira vez na vida
vislumbro a extensão de um drama, sua multiplicação, o impacto da violência. Até agora fui
espectador, ingênuo, despreparado.
Domingo, comecei a amadurecer. Depois, penso na ex-mulher, nas irmãs de Pimenta, em
nós, amigos, aturdidos e atemorizados.
Durante a semana, uma avalanche de acusações e declarações se desencadeou, vinda de
conhecidos, de gente que trabalhou com ele, conviveu em redações.
Não li nem ouvi nenhuma palavra a seu favor. Em dias se montou a imagem de um monstro.
Não defendo o gesto de Pimenta. Mortes como a de Sandra tornam a vida feia, mergulham
o mundo no escuro. No entanto, misturadas, me chegam imagens desencontradas do
homem que saía do Cine Odeon, em Araraquara, em nossa adolescência, ansioso por fazer
filmes, criar arte. Esse foi um de seus sonhos. Não fez, foi por outros caminhos e foi
brilhante no que fez. Ou o homem que carregou docemente por anos a imagem de uma
apaixonada de juventude.
Não estou justificando, nem atenuando, o gesto que me fez perceber como somos frágeis,
desamparados, cheios de meandros interiores, obscuros e perigosos, atemorizantes. Ah,
como tive pavor esta semana! Como tivemos medo, nós, amigos e conhecidos, ao
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raciocinar: estamos sujeitos a isso, a um gesto desses? Em que segundo os limites se
dissolvem? Imagens me vinham.
Pimenta e eu saindo de Washington, porque ele queria revelar-me o fascínio do Vale de
Shenandoah, o mesmo de um filme em tecnicolor que nos encantara.
Ou passeando por museus de Washington para me mostrar pinturas que o tocavam. A
beleza o emocionava. O Pimenta que me enviava livros, ou vídeos raros ao Rodolfo Konder.
O homem que, nas viagens de volta ao Brasil, quando estava no Banco Mundial, pedia aos
amigos de Araraquara que organizassem um reencontro com a turma de classe. A imagem
que me vem é a do futebol do curso científico, quando Bazani, um craque na Ferroviária,
fazia longos lançamentos para a ponta, obrigando o Pimenta a xingar, correr e a saltar feliz
com o gol que o meio-de-campo lhe dera.
Enquanto escrevo, ele está no hospital, em coma induzido, com a polícia na porta à sua
espera. Ao destruir, ele se destruiu. Até esta semana, perto de mim, jamais tinha visto uma
pessoa se desfazer como este amigo de 50 anos, que se desconstruiu por razões que
somente ele soube ou armou. Nunca tinha estado próximo a um desmoronamento tão
implacável. Por mais que a psicanálise evolua, que a psiquiatria se desenvolva, que as
ciências da alma se modernizem, jamais chegarei a entender. Nem posso calcular a
extensão do sofrimento que aquele dedo no gatilho disseminou. Que dedos no gatilho
disseminam. (Ignácio de Loyola Brandão é jornalista e escritor)"
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Otavio Frias Filho
"Pimenta Neves", copyright Folha de S. Paulo, 31/08/00
"Os jornais paulistas onde Pimenta Neves trabalhou tantos anos reagiram com estupefação
à notícia do crime. Concordo com a crítica de que a edição deste jornal, no dia seguinte, foi
‘tímida’ e aceito minha responsabilidade nesse erro. Mas discordo da noção, que começa
a prevalecer, de que o assassino está sendo favorecido.
A maior parte das versões divulgadas proveio da acusação e de pessoas ligadas a Sandra
Gomide. O assassino não se manifestou, exceto em depoimento editado com notória má-fé
contra ele. As revistas capa em todas elas pintaram-no como vilão rematado. A TV se
entregou prazerosamente a seu linchamento moral.
Entendo essa avalanche como reação emocional e legítima à barbaridade do crime.
Pimenta Neves cometeu um delito gravíssimo pelo qual terá de pagar. Disse isso a ele na
visita que me vi obrigado a lhe prestar, na condição de alguém que o respeitava e admirava
fazia 25 anos, desde que Cláudio Abramo nos apresentou na Folha.
Embora reconheça minha limitação para distinguir o aspecto subjetivo do jornalístico neste
episódio, penso que a mídia em seu conjunto, no afã de se mostrar ‘independente’ (e de
acertar velhas contas com o réu, em alguns casos), corre o risco oposto. Não o de protegê-
lo, mas o de satanizá-lo num corporativismo às avessas.
Dizem que, ao assegurar o ‘outro lado’ da defesa e tratar fatos não comprovados como
versões, os jornais têm cautelas que não demonstraram em outros casos. Pois elas
deveriam ser adotadas em todos os casos. Espero que esta crise, além de testar a
independência da mídia, também ponha à prova nossa propensão ao maniqueísmo.
Sempre considerei certos recursos de que este jornal dispõe ombudsman, seção
‘Erramos’, compromisso de publicar o ‘outro lado’ e mensagens de contestação como
contrapeso da violência moral que um jornalismo crítico pode desencadear. É modo
defender esse direito da parte acusada em casos controvertidos.
Mesmo o pior dos assassinos, porém, tem direito a sua versão dos fatos. Conhecê-la é
direito do próprio público ainda quando este, açulado pelo clima de linchamento, não se
dispõe a ouvi-la. Nada do que Pimenta Neves alegar poderá justificá-lo. Nada pode restituir
a vida de Sandra Gomide ou compensar a dor de sua família e amigos.
E, no entanto, o réu não era um monstro. Os atributos que todos lhe reconhecem –
talentoso, culto, maduro, situado em posição de responsabilidade tornam seu gesto ainda
mais incompreensível e mais grave a carga de infâmia que recai sobre seus ombros. Não
sabemos quase nada sobre os abismos do psiquismo.
Vida até então sem mácula, era mais apegado às noções de moral e ética do que a grande
maioria dos mortais. Para quem o conheceu, o crime estarrece ainda mais por isso. Uma
página de Dostoiévski explica mais do que todas as platitudes que temos visto desfilar sob
pompa psiquiátrica, no eterno circo que é o julgamento humano."
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ENTREVISTA / ROBERTO MÜLLER
"Cobertura leviana, invasiva, parcial e
sensacionalista"
Luiz Antonio Magalhães
Cerca de quinze dias antes de Sandra Gomide morrer no Haras Setti, em Ibiúna, o jornalista
Antonio Marcos Pimenta Neves foi conhecer a redação do PanoramaBrasil, jornal virtual
dirigido por Roberto Müller Filho. Depois da visita, Pimenta e Müller jantaram juntos.
Müller soubera que Pimenta havia pedido demissão do cargo de diretor de Redação do O
Estado de S.Paulo. As primeiras notícias que circularam nas redações diziam que Pimenta
estava com problemas de saúde, o que também era verdade ele se recuperava de uma
cirurgia no olho e estava enxergando muito mal –, embora ocultasse o real motivo do pedido
de afastamento. O diretor de conteúdo do PanoramaBrasil soubera ainda que Ruy Mesquita,
diretor-responsável do Estadão, não havia aceitado o pedido.
Pimenta Neves e Roberto Müller são velhos amigos. Trabalharam juntos em três
importantes veículos: na Folha de S.Paulo, na revista Visão e na Gazeta Mercantil. Durante
o período em que Pimenta trabalhou no Banco Mundial, em Washington, os dois se
encontraram diversas vezes, no Brasil e no exterior.
Após o jantar com Pimenta, Roberto Müller estava preocupado. A tal ponto que ligou no dia
seguinte para saber se o colega havia seguido o conselho de Ruy Mesquita e visitado um
psiquiatra. "Ele estava muito perturbado, confuso", conta Müller, que nos últimos dias tem
visitado o amigo internado na clínica psiquiátrica Parque Julieta.
Embora condene qualquer tipo de violência sobretudo um homicídio –, Müller acha que
compete à Justiça julgar serenamente todos os tipos de crime. Em entrevista ao
Observatório da Imprensa, o jornalista comentou a cobertura do caso pela imprensa, que
qualifica de predominantemente leviana. A maior crítica tem alvo certo: as emissoras de
televisão que veicularam o depoimento que Pimenta Neves prestou, ainda durante a
internação no hospital Albert Einstein, após tentar suicídio ingerindo tranquilizantes. "O que
foi mostrado era de interesse exclusivo da Justiça. A divulgação das fitas é um
procedimento ilegal e antiético", afirma ller. Para ele, a memória de Sandra Gomide e a
vida privada de Pimenta Neves estão sendo violentadas pela imprensa. Leia a seguir os
principais trechos da entrevista.
Qual é a sua análise do comportamento da imprensa na cobertura do assassinato de
Sandra Gomide?
Roberto Müller Filho Acho que boa parte da imprensa foi leviana, invasiva, parcial e
sensacionalista. Sem dúvida, alguns órgãos se comportaram bem, registraram os fatos,
ouviram e deram igual destaque às partes envolvidas e levaram em conta os aspectos
médicos e psiquiátricos do caso. Os maiores abusos foram cometidos por algumas redes de
televisão que divulgaram cenas privadas, de interesse exclusivo da Justiça. Pior, editaram
essas cenas. E a história recente de edições, no Brasil, não é boa. Basta lembrar o episódio
da edição do debate entre Collor e Lula, na disputa presidencial de 1989. Acredito que a
invasão de um hospital, a obtenção, por meio de alguma pessoa inescrupulosa, de fitas
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contendo um depoimento privativo da Justiça, e a edição e exibição dessas imagens é um
procedimento não apenas ilegal, mas antiético, um acontecimento nada edificante para o
jornalismo brasileiro.
Há quem defenda a tese de que o caso não deveria sair na imprensa porque Pimenta Neves
e Sandra Gomide não são figuras públicas. O senhor concorda?
Müller – Acredito que o critério jornalístico deve ser levado em conta e a notícia do
assassinato é do interesse de muitos leitores. Mas ainda que se tratassem de figuras
públicas, a imprensa deveria ter alguns cuidados. Não é lícito romper com a privacidade das
pessoas. A memória da vítima não está sendo respeitada, especulações de todo tipo
sobre a conduta profissional e pessoal de Sandra Gomide. E não é isso: por que os
jornalistas, por exemplo, têm de ficar de plantão na clínica onde Pimenta Neves está
internado? Que necessidade de perturbar os outros pacientes, que estão internados,
se tratando de problemas psiquiátricos? De atrapalhar o trabalho dos médicos? E por que
invadir a privacidade das famílias envolvidas? É justo fazer tudo isso?
Quais são, na sua opinião, as conseqüências deste tipo de cobertura jornalística?
Müller A meu ver, essa volúpia sensacionalista prejudica, é óbvio, o réu; mas prejudica
muito mais o andamento da Justiça. Quando os jornalistas começam a confundir os seus
julgamentos pessoais e seu senso de justiça com a Justiça propriamente dita, um risco
muito grande. Aliás, quando qualquer um seja jornalista, capitão ou delegado de polícia
começa a confundir esses conceitos, abre-se um precedente perigoso. A Justiça precisa se
mover sem pressões de generais, de militares, de quem quer que seja. Nem da imprensa.
Experiências dessa ordem não deram certo na Alemanha, não deram certo no Brasil. Esse
tipo de pressão realmente abre precedentes graves e deve ser combatida. No caso
específico, é preciso lembrar que qualquer que seja o crime, por pior que seja o delito, a lei
garante a todos o direito de ser julgado com isenção. Depois das cenas da televisão, porém,
isto ficou comprometido. Há um pré-julgamento do réu na cobertura de boa parte da
imprensa. Não se pode tentar impedir que a Justiça seja feita de acordo com as leis e com
os ritos que lhe são próprios.
Como os jornalistas deveriam se comportar, idealmente, para cobrir um acontecimento
deste tipo sem influenciar no júri?
Müller O dever do jornalista é levar ao leitor uma informação correta. Ele não pode de
maneira alguma emitir pré-julgamentos em forma de notícia. Deve ouvir as partes, os
advogados, acompanhar e registrar o andamento do processo. Dentro dos aspectos
médicos e científicos do caso, ouvir profissionais da área, pessoas que possam contribuir
para esclarecer como e por que fatos como este acontecem. É preciso também destacar o
que for de interesse público no episódio. poucos dias, por exemplo, a OAB manifestou-
se sobre a divulgação na TV das gravações do depoimento de Pimenta Neves. O repúdio da
entidade foi dado de forma discreta, mas é algo que diz respeito às garantias individuais e
interessa a todos, sem dúvida merecia um destaque maior. Acho ainda que os jornais têm o
direito de levar o assunto para as primeiras páginas, se avaliarem que não há, no dia,
assunto de maior interesse público. E se, dia após dia, os jornais julgarem que o assunto
merece mais destaque do que outros temas, então o noticiário cabe em primeira página. É o
chamado critério jornalístico, cada órgão de imprensa tem a sua avaliação.
E os artigos de opinião e editoriais?
Müller Os jornais têm todo o direito de tratar do caso em editoriais, embora eu
particularmente ache um pouco prematuro. Quanto aos artigos de opinião, noto que
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muito ajuste de antigas contas, como mencionou o diretor de Redação da Folha de S.Paulo,
Otavio Frias Filho, em artigo na semana passada [veja no Aspas desta rubrica]. Mas é
possível fazer comentários, analisar o episódio de maneira ampla o artigo do Otávio Frias
Filho é um bom exemplo ou ainda abordando aspectos médico-científicos ou jurídicos do
caso.
quem diga que a forma com que a imprensa está cobrindo o assassinato de Sandra
Gomide é correta e que no passado o sensacionalismo seria muito maior...
Müller Na minha opinião, está aumentando essa tendência de cobertura opinativa, que
alguns chamam inadequadamente de jornalismo "investigativo". Pode ser uma impressão,
mas penso que é isto o que está acontecendo. Não me refiro ao tempo em que os jornais
eram muito "partidarizados" ou ligados a determinadas facções, mas a um passado mais
recente os longos anos desde que trabalho como jornalista. Da época da abertura política
quando a imprensa brasileira teve um desempenho notável no sentido lutar contra a
censura e de ajudar a derrubar a ditadura militar –, daquele tempo para cá, acho que a
situação vem piorando. Fico perplexo, por exemplo, quando vejo os procuradores
concedendo entrevistas sobre casos não julgados, ainda em fase de inquérito.
Também há quem pense que a imprensa reflete a sociedade em que está inserida. A noção
de que existe uma esfera pública e uma privada, por exemplo, estaria atualmente ruindo no
Brasil e os meios de comunicação estariam apenas refletindo essa realidade, inclusive por
meio de programas de entretenimento, não só no jornalismo. O senhor acha que a imprensa
reflete as virtudes e defeitos da sociedade brasileira?
Müller – Acho que não reflete. A sociedade brasileira é bem melhor do que a sua imprensa.
A elite, sim, se parece com a imprensa. Melhor ainda: boa parte imprensa brasileira reflete
as características de uma parcela leviana da elite. Quanto aos programas de baixo nível que
exploram a invasão da privacidade, penso que o fato de que as pessoas possam se excitar
e gostar dessas coisas não justifica a veiculação das perversidades. Muita gente,
especialmente os menos cultos, os que passaram por variados tipos de privações, pode até
achar graça e gostar de assistir a tais programas. Acho que isto é uma forma cruel de
explorar a falta de alternativas de entretenimento das classes mais pobres. Não defendo a
censura, mas penso que algum tipo de regulamentação precisa existir para conter as
vulgaridades. No que diz respeito ao jornalismo, é preciso lembrar que os profissionais da
área não foram eleitos para representar a sociedade. Nós, jornalistas, somos convidados
por empresas privadas para levar uma informação correta ao público, e não para
representá-lo ou agradá-lo. E é bom que essas empresas sejam privadas, para preservar a
pluralidade. A liberdade de imprensa, porém, pertence ao público, não aos jornalistas. Nós
temos o dever de exercer a profissão corretamente, em benefício do verdadeiros detentor da
liberdade de imprensa, que é o ouvinte, o leitor, o telespectador. Não temos um mandato da
sociedade, como infelizmente alguns pensam ter. Não podemos, em hipótese alguma, ferir
direitos individuais e atropelar a Justiça, como parece estar ocorrendo no caso do jornalista
Antonio Pimenta Neves. É bom não esquecer que essa prática é autoritária e
antidemocrática e pode inclusive se voltar, como aconteceu, contra a imprensa e contra
os jornalistas.
O senhor é amigo de Pimenta Neves há muitos anos. Gostaria de falar algo sobre ele?
Müller A história de Pimenta é uma história de honradez e competência. Não foi para
nenhum dos importantes postos que assumiu por parentesco com proprietários de jornais ou
por indicação de figuras públicas. Ocupou cargos de grande relevância na Folha de S.Paulo,
no Estado de S. Paulo, na revista Visão, na Gazeta Mercantil e no Banco Mundial. É muito
difícil alguém assumir e manter-se nesses cargos sem a competência necessária. Ele
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sempre foi, reconhecidamente, um bom jornalista, um homem com grande zelo, que preza
muito a ética. Tem duas belas filhas, gêmeas, foi e é um bom pai, um cidadão correto. Está
sendo tratado por muitos veículos de comunicação como um bandido contumaz, coisa que
não é, e não sou eu apenas quem digo, é a sua biografia, é tudo que fez durante 63 anos de
vida. É óbvio que não acho correto qualquer tipo de violência, mas nada justifica o
linchamento moral de uma pessoa.
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Luís Nassif
"O caso Pimenta Neves", copyright Folha de S. Paulo, 2/09/00
curioso o caso Pimenta Neves. Pela primeira vez a imprensa conferiu a um episódio
dessa natureza um tratamento absolutamente profissional. Do conjunto de reportagens
sobre o tema foi possível compor todas as facetas de sua personalidade, do profissional
competente ao chefe que beneficiava a namorada, do pai de família amoroso ao amante
possessivo, da pessoa solitária e fechada ao chefe de redação arrogante.
Fugiu-se do estereótipo primário do vilão consumado, o sujeito que só tem defeitos e
nenhuma qualidade, mais propício a histórias em quadrinhos do que a reportagens de nível.
É evidente que, expostos todos os ângulos, houve quem se desagradasse com partes do
perfil. Houve também quem lembrasse que uma pessoa humilde não receberia o mesmo
tratamento, logo seria acusada de assassina.
Incorre-se em uma deturpação do conceito de igualdade. Todos devem ser iguais perante a
lei e a opinião pública no respeito aos seus direitos, não no desrespeito. Além disso, nos
últimos anos, mercê dessa mistura de sensacionalismo e populismo, em geral nesses
episódios não se respeita ninguém. Mas é mais fácil respeitar os direitos do humilde (nas
raras ocasiões em que aparecem na mídia, porque no seu habitat o desrespeito é parte
intrínseca de sua vida) do que das pessoas mais influentes, porque já se abre espaço
para o patrulhamento primário que surge em períodos de linchamento: fulano está sendo
defendido porque há algum interesse oculto em jogo.
No caso Pimenta ocorreu algo inédito na imprensa recente. O autor do assassinato era
conhecido de grande parte dos jornalistas, tinha nome, era um profissional de reputação
ilibada (apenas comprometida pelos privilégios profissionais concedidos à namorada). Até o
crime nada havia em sua vida que explicasse sua conduta. Portanto ficou impossível
recorrer-se aos velhos modelos do vilão de história em quadrinhos.
A partir daí, deu-se consistência a um personagem de carne e osso, com virtudes e
fraquezas, tomado de um sentimento o ciúme conhecido e analisado desde tempos
imemoriais. Uma pessoa solitária, com poucos amigos, cuja rede de afetos era estritamente
familiar as irmãs, as filhas, a ex-mulher –, que, de repente, envolve-se com uma outra
mulher, o antigo círculo de afetos desfazer-se e passa a canalizar todo seu afeto para
uma pessoa. É uma aposta pesadíssima. E seu mundo começa a desmoronar quando
percebe que perdeu a aposta.
A partir daí, ocorreu a tragédia, com todos os componentes de dramaticidade e de
imprevisibilidade que caracterizam as tragédias. E, quando ocorrem as tragédias, o respeito
humano sugere que ninguém deva tirar proveito.
Para alguns, a explosão autoritária era previsível devido a suas posições políticas
simpáticas ao governo. Houve quem o julgasse a partir de um único contato em um jantar
um perfil corajoso se tivesse sido publicado antes da tragédia, quando Pimenta ainda
mantinha seu poder de contratar e responder. E houve uma publicação que, a pretexto de
não incorrer em práticas corporativistas, cumpriu o papel do soldado incumbido de executar
moribundos em campos de batalha, atropelando fatos, diagnósticos e bom senso e levando
seu advogado Antônio Mariz a identificar o uso da tragédia para acertos de contas pessoais.
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No geral, no entanto, o tratamento dado ao caso foi dos mais completos e isentos. Não
nada que possa absolver Pimenta desse crime. Mas não há nada que possa livrar a
imprensa da enorme tristeza de ver dois dos seus, tima e réu, em uma tragédia dessa
proporção, que só tem explicação no mais recôndito da alma humana."
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A versão do homicida
Alexandre Caetano
Causa-me profunda indignação a abordagem de determinados veículos de comunicação
em especial o jornal Folha de S.Paulo e o site Folha Online na cobertura do bárbaro e
covarde crime praticado pelo ex-diretor de redação do Estadão Antônio Pimenta Neves,
contra a repórter Sandra Gomide. Neles, de forma repugnante, uma insinuação explícita
de que a vítima era, antes de tudo, uma alpinista social, que se aproveitou do interesse do
apaixonado diretor para galgar posições e defenestrar desafetos nas redações por onde
trabalhou, fazendo questão inclusive de afirmar o acesso e o prestígio que tinha com o
diretor.
Lamentavelmente, Sandra Gomide não está mais entre nós para se defender de
abordagens para de preconceituosas e difamatórias contra a sua memória. Não houve
sequer preocupação em ouvir outras fontes, inclusive ex-namorados e colegas, que talvez
tivessem versão diferente sobre o comportamento da jovem jornalista, sem se esconder no
anonimato. De repente, uma versão acaba sendo reforçada, a daqueles que diziam que ela
não tinha capacidade para chegar aonde chegou, dependendo da mão "brilhante" e
"genial" do diretor que por ela se encantou. A versão do homicida, que diz ter visto mais
talento do que realmente existia nela.
São abordagens que acabam por reforçar antigos preconceitos, trabalhando com noções do
senso comum ainda fortes em nossa cultura, ou seja, o universo dos chamados crimes
cometidos em defesa da honra ou por violenta emoção. Afinal, num raciocínio como este,
alguém até pode acreditar na fala de um brilhante jornalista que, como ele mesmo disse,
teve sua dignidade de homem atingida. É como dizer que, se o sujeito era um
desequilibrado, também é preciso avaliar o caráter de quem ele vitimou.
Isso pode levar a um raciocínio compensatório, atenuante inaceitável nesse caso. Seguir
essa linha pode significar dizer que a atitude dele é condenável, mas seria compreensível,
pois é resultado da perda de equilíbrio. Na minha opinião, esse caso deveria servir para se
discutir a onipotência exercida por determinadas pessoas dentro de uma redação. Vejo que,
nesse sentido, a jornalista Miriam Leitão foi muito feliz num artigo que escreveu sobre o
assunto para o site Notícia e Opinião. É preciso discutir a falta de profissionalismo e
estrutura de poder arcaica existente nas empresas jornalísticas, que acabam concentrando
poder de vida e de morte na mão de determinados diretores e editores, que adotam
comportamentos arbitrários e autoritários.
Comportamento primitivo
O comportamento do senhor Pimenta Neves o é único nas redações. uma série de
tiranos que adotam comportamentos pautados muito mais em critérios pessoais do que
profissionais. Se não temos hoje o dono do jornal, que numa empresa familiar à moda antiga
adotava procedimentos provincianos, agora seus capatazes e feitores, que agem de
forma prepotente e arrogante, como muitos Pimentas por aí.
E se me permite o mestre Alberto Dines, discordo de seu artigo. Acho que houve e está
havendo comoção pública em torno do caso. Graças principalmente à repercussão que TV
Globo e O Globo deram ao assunto. Na internet, o caso tem sido debatido pelos formadores
de opinião. Entre os jornalistas, nem se fala. O lado trágico dessa história, para mim, não é
o fato de o senhor Pimenta Neves andar armado, mas sim as atitudes insanas que adotou e
a forma perversa como agiu depois que Sandra Gomide terminou o namoro. De forma
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impune, ele perseguiu, difamou, ameaçou, agrediu e tentou destruir profissionalmente a
jornalista. Adotou critérios jornalísticos, administrativos e profissionais os mais absurdos,
como um coronel de província, sem que nada fosse feito ou alguém tomasse nenhuma
providência. Ele era o senhor todo-poderoso da redação.
Sandra não é culpada de usufruir supostas benesses de uma relação que teve com um
desequilibrado. O que, aliás, é uma avaliação muito subjetiva, por todas as circunstâncias e
porque não poderemos mais avaliar seu trabalho sem o feitor por perto. Não é ela que está
sendo julgada. Não deve e nem pode ser. As empresas jornalísticas é que devem rever
suas estruturas hierárquicas, seus critérios profissionais e o poder tirânico que concedem a
determinadas pessoas.
Usando as palavras do homicida num programa de televisão, a atitude dele foi a
demonstração de um comportamento primitivo. Com todo o respeito que merecem os povos
ditos primitivos, que não costumam matar por orgulho, vaidade ou ciúme.
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Imprensa infeliz na intimidade
Cláudia Rodrigues
Um caso de crime passional em nosso meio e logo lembramos daquela demissão que veio
de cima, inexplicável, para retirar um colega competente que trabalhava na mesa ao lado. E
também vêm-nos à memória aqueles colegas que, surpreendentemente, tendo a mesma
idade e o mesmo tempo de trabalho, e não maior habilidade para escrever um texto do que
outros de nós, subiram rapidamente em carreiras meteóricas rumo à posição de chefes ou
repórteres especiais, com salários altíssimos.
Pura sorte, qualquer azar será mera coincidência. Acontece de se fazer um bom trabalho e
não ser visto pela pessoa certa na hora certa, no veículo certo. Também acontece de se
fazer um trabalho apenas razoável e contar com a simpatia de um chefe que lembra da
irmãzinha morta, da mãe querida, e acha que tudo o que apuramos e escrevemos está por
cima da carne-seca. Com um pouco de competência e bastante firmeza de caráter, esse
chefe nunca terá oportunidade de um relacionamento mais íntimo conosco, e mesmo assim
nossa vida profissional continuará em ascensão. E a primeira decepção num cargo,
invariavelmente, será concessão a pedido vindo de cima. Com sorte, as concessões podem
ser nimas, mas se todas as já feitas viessem a público seria de arrepiar, e não se
salvariam gregos ou troianos.
Bem, pode-se ter o azar de provocar extrema antipatia quando, sem maiores explicações,
resgatamos partes obscuras e mal-resolvidas dos porões do inconsciente de um superior.
Estranhas relações
Lembro de um chefe de redação que perguntou a respeito de uma repórter da minha
editoria: "Quem é aquela branquela com jeito de mandona?"
Eu respondi: a foca, a mais nova de todos, se formou no final do ano, escreve direitinho,
apura bem, comete pequenos erros de grafia de palavras, nada mais grave". Eu tinha
certeza de que ele não a conhecia, pois havia chegado de um outro estado para o emprego,
e a moça nunca havia trabalhado fora dali. Era um caso de antipatia à primeira vista.
Na semana seguinte, o sujeito, que é um jornalista normal e continua bem-empregado,
perguntava a mesma coisa, ficava parado olhando a menina e se sentia agredido pela
imagem exuberante dela. Ela era alta, ele baixinho, ela parecia destemida, corajosa; ele
suava muito debaixo dos 18ºC do ar-condicionado central. Enfim, não vem ao caso saber
que motivos inconscientes tinha aquele chefe de redação para implicar com a repórter. O
fato é que acabou demitindo-a quando eu não estava na editoria. A moça foi para outro
jornal e está bem, foi aceita pela equipe, faz um mestrado, nem é mais uma foquinha. É
uma jovem de talento, além de bela, e deve ter uma carreira promissora. Pelo menos se
nunca mais encontrar seu antigo chefe.
Esse caso que, em princípio, nada tem a ver com o trágico desenlace dos colegas do
Estadão, é um exemplo clássico das estranhas relações profissionais que rondam as
grandes redações. Assim como o chefe de redação "implicou" com a moça sem conhecê-la,
antipatizando com seu jeito, bem podia ser tomado por extrema simpatia e, quem sabe, até
ter namorado com ela. Caso isso tivesse acontecido, provavelmente ela não teria sido
demitida, e talvez chegasse a algum posto em futuro próximo. Quem sabe?
Frangos depenados
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O fato é que está em xeque, além da vida dos dois infelizes que não conseguiram amar e
perdoar, as relações de simpatias e antipatias gratuitas, casos de amor e de ódio isolados,
além das "turmas", para não falar em gangues, que migram de uma empresa jornalística
para outra.
Os chefões dessas gangues já estão por declarando que, do ponto de vista profissional,
"o Pimenta era um excelente jornalista". Claro, se levarmos em conta o padrão vigente do
que é ser um bom profissional no mercado: não medir formas para retorno comercial. É
sabido que cada vez mais a filosofia marqueteira sobrepuja fatos, distorce e omite notícias.
Gangues, desses senhores que se beneficiam do sistema instalado desde que a ditadura
militar foi substituída pela empresarial, não são melhores nem piores, é uma questão de
diferenças políticas e sociais, muito mais do que éticas ou jornalísticas. Afinal, a própria
existência dessas "turmas" nos fala de faltas éticas ou, no mínimo, de injustiças, sem
mencionar o conteúdo jornalístico, que varia muito pouco nas grandes corporações,
independentemente de qual gangue está no comando desta ou daquela empresa de
notícias.
O fato é que quando as turmas de medalhões se movem, muito frango miúdo é depenado.
Isto é, muita gente competente, mas alheia aos jogos de poder, é pisoteada.
Abismos salariais
Para nós, jornalistas, termos como "passaralho" – onda de demissões e novas contratações
que pode durar um ano inteiro ou mais fazem o maior sentido quando o cacique foi
trocado ou está à sombra de algum novo contratado que, tão logo possa, vai puxar o tapete
do antigo para depois iniciar sua gestão, com velhos amigos e indicados por amigos.
É uma medida de segurança para não correr riscos no poder, para mantê-lo o quanto puder.
Membros e simpatizantes de uma ou de outra turma ficam estrategicamente colocados em
outras redações – para uma emergência. Membros e simpatizantes são aspirantes a cargos,
vulgarmente conhecidos como puxa-sacos. Curiosamente, são responsáveis tanto pela
permanência quando pela instabilidade dos chefes. São pouco criativos, mas bem-
mandados, e seu pior defeito é que viram a casaca de uma hora para outra, que eles
próprios almejam o poder, não medindo esforços ou posições éticas quando surge qualquer
"boa" oportunidade.
Os diretores das redações se movem, de uma empresa para outra, acompanhados pelo
primeiro escalão de suas trupes, mas são sempre os mesmos no mercado. São os políticos
do jornalismo, os homens do poder, das mediações entre notícia, empresa e área comercial.
Chegam a ganhar 20, 30 vezes o salário de um repórter, e os caciques de confiança podem
chegar a ganhar 10, 15 vezes mais do que o resto dos índios. Isso tudo não é novidade, e
nem causa espanto, em país capitalista, que as diferenças salariais sejam tão acentuadas;
muito menos que a manutenção do poder seja o maior objetivo.
Espectadores calados
Mas o crime, o caso da jornalista assassinada por um ex-chefe e ex-namorado, causa
espanto. E o espanto é maior quando associamos a morte da colega ao microcosmos
doentio de uma grande redação. O espanto se torna gigantesco quando percebemos que o
sistema de funcionamento do órgão, o jornal, tem tudo a ver com o que aconteceu, mesmo
que o caso de dezenas de outras Sandras e Pimentas não chegue a um final tão trágico.
136
O que aconteceu na redação do Estadão, antes do crime, não é um caso isolado, e traduz
muito bem, nesse microcosmos do universo jornalístico, o macrocosmos de desigualdades,
corrupções, bajulações, concessões e disputas pelo poder.
Duas pessoas acabam de ser vítimas de uma história criada e ornamentada por elas
durante três anos. Uma história muito bem digerida pelo sistema; afinal, os dois transitaram
juntos por duas grandes e respeitáveis redações. Uma história que teve como espectadores
calados, consequentemente coniventes, os colegas de ambas as redações.
Saudações respeitosas
Sandra e Pimenta tiveram um relacionamento doentio e precisaram chegar a um desfecho
trágico para pontuar a falta da única coisa que poderia poupá-los da tragédia, juntos ou
separados: o amor. Faltou uma dose mínima desse velho e bom sentimento humano que
nos faz incapazes de ignorar, dar as costas, a uma pessoa que amamos ou que tenhamos
amado um dia; uma dose mínima que nos impede, também, de tirar a vida de alguém.
A falta de amor, de consideração à vida do outro, não se encerra no caso Sandra/Pimenta,
estopins da realidade. É apenas mais uma das demonstrações vivas de um dos maiores
problemas a ser enfrentados em nossa sociedade, especialmente nas grandes corporações,
como Estadão, Folha e outras empresas de outros setores: o mecanicismo.
Um mecanicismo que substitui horas de lazer por ganância, competição exarcebada e
ambição, que empilha quantidades exageradas de pessoas por metro quadrado levando-as
a substituir sentimentos e necessidades internas pela lógica da vantagem e das
necessidades externas. Esse quadro, representado neste momento pelo assassinato da
jornalista, está destruindo o que de melhor o ser humano conquistou até hoje: a capacidade
de amar.
Feliz da moça que, ao se apaixonar pelo chefe, decida trabalhar em outro lugar para
assegurar-se internamente de que vencerá por seus próprios méritos, sem deixar atrás de si
qualquer sombra de dúvida. Feliz do homem mais velho que, ao se apaixonar por uma
moça, não use de artifícios como presentes caros, ajuda financeira, empurrões profissionais,
na esperança de pagar um preço pela manutenção desse amor.
Felizes todos nós quando aprendermos a perseguir o ideal do proveito mútuo, quando
conseguirmos deixar de lado a lei do proveito próprio.
Saudações respeitosas a todos os colegas envolvidos direta e indiretamente no caso.
Temos muito o que pensar e muito mais o que fazer para melhorar a imprensa desse país. E
isso, por incrível que possa parecer, tem tudo a ver com a felicidade que produzimos em
nossas vidas pessoais, ao lado dos nossos companheiros e filhos.
137
Além dos tiros: a questão do poder
Alberto Dines
Jornais agora têm ombdusmen também chamados de ouvidores e "editores de qualidade"
(públicos ou domésticos). Publicam-se erratas e a crítica dos leitores começa a ser
veiculada, ainda que seletivamente. Existem alguns sites, duas revistas e pelo menos dois
programas de TV que tratam exclusivamente da mídia. O seu comportamento é tema
freqüente dos colunistas regulares e articulistas esporádicos. A questão da ética da
imprensa virou chamariz para qualquer evento, seminário ou painel para a qual os
organizadores querem chamar a atenção da própria imprensa.
Mídia e mediadores já começam a sentir-se observados. Avanço formidável na direção
daquilo que alguns chamam de "controle social" dos meios de comunicação. A verdade é
que a sociedade não engole tão passivamente o que lhe enfiam pela goela com o nome
de informação objetiva.
Mas persistem os mesmos mecanismos internos para produzir esta informação. Qualquer
estrutura que envolva a participação humana é uma estrutura de poder e o poder nas
redações continua a ser exercido da mesma forma controlado de perto pelos acionistas.
Hoje talvez até mais controlado pela introdução de sofisticados instrumentos de marketing.
Quando, em meados dos anos 80, os empresários de jornais e revistas iniciaram uma
vigorosa campanha para evitar a inclusão da cláusula da obrigatoriedade do diploma
universitário para o exercício do jornalismo no texto da nova Constituição, não visavam
apenas a questão salarial. A história deste movimento um dia precisará ser contada; por ora,
interessa o real objetivo daquela cruzada: exercitar o poder selecionando aqueles que
deveriam produzir as informações.
Profissão regulamentada, vitória de Pirro: os dois tiros desferidos 12 anos depois por
Pimenta Neves na ex-namorada Sandra Gomide revelaram a precariedade e ineficiência
das estruturas organizacionais nas redações dos grandes, médios e pequenos veículos
jornalísticos.
A atual redação do artigo 222 da mesma Carta Magna favorece o caráter familiar das
empresas jornalísticas brasileiras. Este formato acionário irradia-se inevitavelmente para os
escalões inferiores. A melhor prova é que, nos dois jornalões paulistas, o comando efetivo
da operação jornalística está diretamente na mão de acionistas sem que possa funcionar
qualquer tipo de contrapoder, atenuado ou não, como acontece nos EUA e Europa.
O fato desses acionistas serem também competentes profissionais não diminui o problema.
Só o agrava na medida em que descortina um generalizado desperdício de talentos ocorrido
no jornalismo brasileiro nas últimas décadas, em que a unção para os cargos máximos
passa ou pelo filtro da consangüinidade ou pelo crivo da obediência cega. As honrosas
exceções só servem para confirmar a regra.
A disputa que se trava na família proprietária do Estadão para ver quem será o substituto de
Pimenta Neves e revelada corajosamente pela reportagem de Carlos Maranhão [Veja São
Paulo, edição 35] é outra evidência da estrutura familiar que domina os maiores grupos
jornalísticos brasileiros. A modernização nas duas últimas décadas está longe de contornar
a questão crucial da delegação de poder.
138
De nada adiantará a implementação dos mecanismos de controle externo nos veículos
jornalísticos se as empresas não adotarem um mínimo de tensão interna. Conselhos de
Redação, Conselhos Editoriais ou Conselhos de Editores com algum nível de autonomia
poderiam ter impedido aquela dupla injustiça de converter uma repórter sem experiência em
editora de economia e, logo em seguida, demiti-la [veja artigo de Otavio Frias Filho no
Aspas da rubrica Imprensa em Questão, nesta edição]
Não se trata de colocar em votação cada manchete ou cada decisão editorial. Jornalismo é
uma atividade que, por suas características, exige uma estrutura vertical, ágil, disciplinada.
Estas características orgânicas e intrínsecas não devem impedir a introdução de
ferramentas consensuais num nível decisório menos imediato.
Imperioso lembrar que o Caso Pimenta Neves respingou na imprensa inteira. A TV Globo
pode ganhar pontos junto à opinião pública assumindo-se como principal acusadora do
assassino confesso de Sandra Gomide, mas também sobrou para ela. No conjunto, a mídia
está oferecendo uma cobertura razoavelmente objetiva, mas a questão vai além da
cobertura: embute-se num modo de produção imperial, ultrapassado.
A questão do comando das redações brasileiras não pode ficar reduzida a nomes,
sobrenomes, sexo, faixa etária ou atributos individuais. É preciso pensar na modernização
do sistema para que o produto seja melhor. Mais confiável.
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