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Mariana Peters Olivio
Reinaldo Arenas: encarceramento no
mundo, voz no exílio
Dissertação apresentada ao Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas da
Universidade Estadual Paulista, Campus de São
José do Rio Preto para obtenção do título de
Mestre em Letras (Área de Concentração: Teoria
da Literatura).
Orientador: Prof. Dr. Orlando Nunes de Amorim
São José do Rio Preto
Março 2009
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Olívio, Mariana Peters.
Reinaldo Arenas : encarceramento no mundo, voz no exílio / Mariana
Peters Olivio. - São José do Rio Preto : [s.n.], 2009.
103 f. ; 30 cm.
Orientador: Orlando Nunes de Amorim
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas
1. Literatura cubana - História e crítica. 2. Ficção cubana
autobiográfica - História e crítica. 3. Autobiografia. 4. Literatura cubana -
Memórias. 5. Arenas, Reinaldo, 1943-1990 - Antes que anoiteça - Crítica
e interpretação. I.Amorim, Orlando Nunes de. II. Universidade Estadual
Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título.
CDU - 821.134.2.(729.1).09
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE
Campus de São José do Rio Preto - UNESP
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Comissão Julgadora:
Titulares:
Prof. Dr. Orlando Nunes de Amorim
Profª. Drª. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti
Profª. Drª. Lúcia Granja
Suplentes:
Profª. Drª. Márcia Valéria Zamboni Gobbi
Prof. Dr. Arnaldo Franco Júnior
4
Agradecimentos:
Ao orientador, amigo, companheiro e pai Orlando Nunes de Amorim com quem compartilhei
descobertas, amizade, cinema e literatura;
À minha família por compartilhar de todo o percurso com paciência e compreensão.
Ao Iuri, por sua atenção, apoio e paciência nas horas mais difíceis;
Aos colegas de mestrado Gustavo e Milena pelas dicas e apoio;
Às amigas de mestrado Mariana Specian e Priscila pelas discussões benjaminianas e amizade
verdadeira; à Rafaela, Carol, Simone, Ana Amélia, Marta, Alba, Janaína, Michelle e Cláudia
por compartilhar dessa fase;
Às minhas flores Josiane e Karina, por todos os momentos, ensinamentos, parcerias, carinho
e amizade;
Aos amigos da Proambi (Katy, Celso, Luciana, Rodrigo, Renata, Márcia, Isabel, Lucimara,
Janaína e Filipe), pelo apoio e compreensão;
Aos amigos da dança (Karina, Vladimir, Gisele, Del, Leandro, Thiago, Rafaela, Cândida,
Marlei e Henrique), pelos momentos divertidos;
Às minhas queridas amigas Kelly, Jesuelem, Eliana e Natache pela amizade de todos esses
anos e muitos momentos descontraídos;
Aos professores Arnaldo Franco Júnior e Lúcia Granja pelo carinho e dedicação;
À Profª Drª. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti pela delicadeza e simpatia ao avaliar este
trabalho;
Ao professor Álvaro Hattnher pela amizade, consideração e contribuição pelo trabalho;
Às professoras e amigas Angélica Karim, Maria Angélica, Norma Wimmer e Cláudia Nigro
pelo incentivo;
Ao meu tio, Eduardo Marotta Peters, por me ensinar sobre história e cinema e por ter me
ajudado a transpor obstáculos;
Ao amigo Thiago Bomfim, por sempre ter acreditado em mim;
Ao amigo Leandro Luís, por compartilhar os momentos agradáveis e desagradáveis e uma
amizade de infância;
À CAPES pela contribuição financeira e o apoio à pesquisa.
5
Aos meus pais, Sidnei Olívio e Vera Lúcia,
que me inspiraram e tornaram tudo possível
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SUMÁRIO
Introdução............................................................................................................... 10
Capítulo I
1.1 A consciência histórica: produto da modernidade ........................................ 13
1.2 As narrativas da memória: testemunho da catástrofe ......................................... 19
1.3 A literatura de testemunho como produto do ressentimento .............................. 31
1.4 Testemunho e ressentimento na Revolução Cubana .......................................... 35
Capítulo II
2.1 O foco narrativo e suas implicações na autobiografia ....................................... 42
2.2 O foco narrativo em Antes que anoiteça: a história de uma revolução ............. 49
2.3 O papel do foco narrativo na narrativa cinematográfica: a adaptação fílmica... 60
2.4 Antes do Anoitecer: entre a adaptação e uma nova história ............................... 63
Capítulo III
3.1 A Revolução Cubana: uma breve história em Antes que Anoiteça .................... 70
3.2 O exílio: evasão e consagração do encarceramento ............................................ 77
3.3 A homossexualidade: resistência e luta através do corpo ................................... 85
3.4 Reinaldo Arenas: o narrador da catástrofe .......................................................... 94
Considerações Finais............................................................................................... 98
Referências Bibliográficas...................................................................................... 101
7
Resumo:
A autobiografia do escritor cubano Reinaldo Arenas, intitulada Antes que Anoiteça (Antes que
Anochezca, 2006), é o objeto de estudo deste trabalho que tem como objetivo analisar como
se processa a representação do sentimento de encarceramento, experimentado pelo autor
diante do contexto sócio-político do regime socialista de Fidel Castro em Cuba, no foco
narrativo desta obra e de sua adaptação cinematográfica (Antes do Anoitecer Before Night
Falls, 2000) pelo diretor americano Julian Schabel. O contexto do século XX, chamado por
Márcio Seligmann-Silva como a “Era das Catástrofes” (2003) por ter sido palco de guerras,
revoluções e genocídios, demonstra a necessidade de um conceito de história, baseada na
memória e não no progresso linear da história oficial. A obra autobiográfica de Arenas, se
entendida como um testemunho dos eventos históricos que tiveram lugar em Cuba a partir da
implantação do regime pós-Revolução de 1959, servirá como base para um novo olhar sobre
a história de Cuba, na medida em que será capaz de revelar acontecimentos que o foram
registrados pela história oficial.
Palavras-chave: Literatura; História; Memória; Testemunho; Cuba; Reinaldo Arenas.
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Abstract:
The object of this study is Cuban writer Reinaldo Arenas’ autobiography, entitled Antes que
Anoiteça, 1994 (Antes que Anochezca, 2006), and its aim is to analyze how this book
represents the sense of imprisonment, experienced by the author because of the sociopolitical
context of Fidel Castro’s socialist system in Cuba. Such aspect is investigated in the narrative
focus of both the book and its film adaptation (Antes do Anoitecer - Before Night Falls, 2000)
by American director Julian Schnabel. The twentieth century context, called the “Era of
Disaster” by Márcio Seligmann-Silva (2003), due to its having been the scene of wars,
revolutions and genocides, suggests the need for a concept of history based on memory and
not on official history linear progress. Arenas’ autobiographical work, if seen as a testimony
of the historical events which took place in Cuba during the regime established after 1959
Revolution, will serve as the basis for a new look at Cuban history, since it may disclose
events which were not reported by official history.
Key-words: Literature; History; Memory; Testimony; Cuba; Reinaldo Arenas.
9
“[...] a verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, a única vida, portanto
realmente vivida, é a literatura.”
(Marcel Proust, Le temps retrouvé)
10
Introdução:
Segundo Walter Benjamin, em suas teses “Sobre o conceito da História”, “O cronista
que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a
verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história.
Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu
passado.” (BENJAMIN, 1985, p. 223). Ao eleger um cronista para narrar a história, Benjamin
revela a necessidade de uma nova visão da história que, no século XX, se manifestará em
decorrência do “triunfo das barbáries” (GUSDORF, 1991, p. 51). Esse cronista não será
apenas responsável pelo resgate dos pequenos acontecimentos da vida humana, para que não
sejam esquecidos, mas também por trazer à tona as “ruínas da história”, a partir de uma nova
visão da história.
Sob este ponto de vista, a figura do cronista aproxima-se da do memorialista. As
relações entre a história e a literatura adquirem, nas narrativas da memória, uma profundidade
que excede os limites entre ambas, já que a memória, como ressaltaram vários estudiosos,
pressupõe, ao mesmo tempo, lembrança e esquecimento; desse modo, a autobiografia atestará
em seu cerne a existência de um ponto de vista dos acontecimentos narrados diferente
daquele relatado pela história. No entanto, vale lembrar que, de acordo com Hayden White,
em Trópicos do Discurso (1994), o registro da história também se sob um ponto de vista
particular, o do historiador, que irá transferir para a narrativa histórica os valores próprios e os
da sociedade em que está inserido. Portanto, inerente à literatura de testemunho e às
narrativas da memória, uma função tanto documental quanto literária, que refletirá não
apenas a visão do narrador sobre os fatos narrados, mas, também, uma nova configuração de
seu registro frente à exigência de um novo olhar sobre a história.
Nesse sentido, Antes que Anoiteça (Antes que Anochezca, 1992), a autobiografia do
11
escritor cubano Reinaldo Arenas, se apresenta, ao mesmo tempo, como a narrativa de uma
vida em meio a uma revolução, registrada segundo uma visão que procura incluí-la na
história oficial como uma das primeiras conquistas populares reconhecidas como tal, e,
também, o testemunho da barbárie que transformou um indivíduo em exilado em seu próprio
país. A Revolução Cubana e as medidas tomadas pelo regime instaurado em Cuba após 1959
não serão apenas pano de fundo dessa obra, que transita entre o literário e o documental, mas
a história de Cuba e de Arenas caminharão juntas.
A interpretação das narrativas do “eu” exige uma forma de pensar que considere as
relações entre o narrador das memórias e o contexto, tanto histórico quanto social, em que
este está inserido, pois, geralmente, essas narrativas são frutos de eventos que envolvem
acontecimentos traumáticos; dessa maneira, as narrativas da memória se configuram como
relatos pessoais de um evento radical em que o indivíduo que narra participou como
testemunha ou agente. Seu caráter ficcional partirá da rememoração de seu passado, pois,
segundo Georges Gusdorf, reconstruir as lembranças significa reinventá-las através da
imaginação.
Levando em conta essas considerações, pode-se dizer que Antes que Anoiteça é escrita
a partir de um contexto que envolve diversos acontecimentos que acarretaram conseqüências
tanto concretas, como perseguições, prisão e tortura, quanto de cunho psicológico para o
escritor, como um sentimento de encarceramento em si mesmo e em sua literatura, que se
revelará por meio da narrativa de sua autobiografia. Portanto, nosso objetivo, neste trabalho,
será de analisar como é representado esse sentimento de encarceramento em Antes que
Anoiteça e em sua adaptação cinematográfica pelo diretor americano Julian Schnabel,
intitulada Antes do Anoitecer (Before Night Falls, 2000), tomando como questão principal o
foco narrativo de ambas as obras.
No primeiro capítulo abordaremos as relações entre a literatura e a história a partir do
12
desenvolvimento da escrita do “eu” no século XX e de sua configuração como testemunho
das catástrofes, genocídios e perseguições que se apresentam nesse período como decorrentes
das transformações da sociedade, levando em consideração que a obra a ser analisada por este
trabalho está contextualizada nos acontecimentos decorrentes da Revolução Cubana de 1959
e a instauração do regime socialista sob o comando de Fidel Castro, o que significou, para o
autor, a concretização da catástrofe em decorrência da queda de seus ideais.
No segundo capítulo, intercalaremos as questões referentes ao foco narrativo das duas
obras: a autobiografia de Reinaldo Arenas e sua adaptação cinematográfica, visando sustentar
o papel do narrador autobiográfico como testemunha dos acontecimentos históricos, ao
mesmo tempo em que ele se configura como o sujeito da narrativa, sendo, assim, capaz de
desvendar um outro lado da história sob um novo ponto de vista que não é considerado pelo
registro da história oficial. Além disso, ao analisar a focalização em duas obras que
pressupõem características particulares em relação à sua estrutura, coloca-se em pauta as
várias formas de representação de uma realidade, principalmente em se tratando de diferentes
pontos de vista sobre essa realidade.
Para elucidar as discussões realizadas nos dois primeiros, no terceiro capítulo
analisaremos alguns temas tratados em ambas as obras que consideramos relevantes para a
compreensão do sentimento do encarceramento que o escritor Reinaldo Arenas desenvolve
diante de alguns acontecimentos e seu desdobramento, que afetará tanto a personalidade do
autor como indivíduo e escritor, como a composição de sua autobiografia, o que resultará no
testemunho do que Walter Benjamin considera como as ruínas da história.
13
Capítulo I
1.1 A consciência histórica: produto da modernidade
As relações entre história e literatura não ocorrem somente no âmbito da
contextualização da vida do autor como indivíduo inserido em uma sociedade e sua história
particular, assim como não se restringe como pano de fundo das obras literárias. Essas
relações se estabelecem, no contexto do século XX, de modo a aproximá-las a partir de sua
constituição narrativa.
Jeanne Marie Gagnebin, em História e Narração em Walter Benjamin, aborda as
relações entre a história e a literatura sob um ponto de vista que não contrapõe “‘histórias’
(plural) que seriam contadas para desviar dos fatos e a ‘história’ (singular) que deveria nos
restituir a verdade do passado” (GAGNEBIN, 1994, p. 3). A autora propõe, desse modo, a
importância da narração para a “constituição do sujeito” e que, por essa razão, ponderar a
história, também como narração individual ou coletiva, e a narração testemunhal como
“história”, seria determinante para a configuração da visão de mundo no século XX, a qual irá
se estabelecer em ambas as disciplinas: tanto na literatura quanto na história.
De acordo com Hayden White
1
, a literatura do século XX, pelo menos boa parte dela,
manifesta “uma hostilidade para com a consciência histórica” (WHITE, 1994, p. 43); isso
porque os escritores entendiam a consciência histórica como uma forma de ver o mundo que
se quer científica, e, portanto, que obrigava a história a impor-se sobre o presente de tal
maneira que este estaria inteiramente dominado pelos fatos ocorridos no passado.
Além disso, o historiador se apresenta para os escritores modernos e contemporâneos
como um indivíduo sem sensibilidade, que trata os “fatos históricos como “dados”
1
Sabemos que o ponto de vista deste autor não se fundamenta nos mesmos princípios que orientam as outras
teorias abordadas neste trabalho. No entanto, certas afirmações do autor nos pareceram adequadas para a
reflexão pretendida. Sua utilização se restringe a esta abordagem apresentada no texto.
14
científicos, e assim, o passado histórico passa a estabelecer princípios morais ao presente, ao
invés de oferecer “soluções”. Em suma, enquanto o presente for apenas o produto de um
passado intocável porque estabelecido assim pelo historiador e pelos princípios morais da
sociedade em que vive, aquele fica, portanto, fadado a ambos.
Antes de mais nada, os historiadores precisam admitir a justificativa da
revolta atual contra o passado. O homem ocidental contemporâneo tem
bons motivos para estar obcecado pela consciência da singularidade dos
seus problemas e está justificadamente convencido de que o registro
histórico, tal como é feito atualmente, pouca ajuda oferece na busca de
soluções adequadas para aqueles problemas. Para quem quer que seja
sensível à diferença radical do nosso presente relativamente a todas as
situações passadas, o estudo do passado ‘como um fim em si’ pode
afigurar-se uma forma de obstrucionismo insensato, uma oposição
intencional à tentativa de entrar em contato com o mundo atual em toda sua
estranheza e mistério. [...] O historiador contemporâneo precisa estabelecer
o valor do estudo do passado, não como um fim em si, mas como um meio
de fornecer perspectivas sobre o presente que contribuam para a solução
dos problemas peculiares ao nosso tempo. (WHITE, 1994, p.53.)
O papel do historiador torna-se mais próximo do papel do escritor, o que Hayden
White chama de imaginação histórica: a história não passa de “um modo de ver o mundo”
imposto por quem o exprime e a seus valores. O historiador não deixa de ser um indivíduo
inserido na mesma sociedade sobre a qual estabelece a história; ele é influenciado por esta
sociedade e pelo contexto que o rodeia, e, mesmo, pelo próprio contexto do passado, do qual
transmite os valores e as idéias.
Este ponto de vista em relação ao historiador e ao registro da história, Jeanne Marie
Gagnebin identifica no conceito de origem de Walter Benjamin; no entanto, ele não se mostra
como uma recusa da modernidade” em que o presente parece romper com o passado, como
em White aparece como uma hostilidade pela historiografia do século XX; mas ela (a origem)
“formula uma exigência de um retorno a uma harmonia anterior, ou, pelo menos, de uma
retomada projetiva desse estado perdido” (GAGNEBIN, 1994, p. 9). Desse modo, segundo a
autora, o conceito de origem benjaminiano serviria de base para uma historiografia de
15
temporalidade não linear, em que a história e a temporalidade não sejam apenas negadas:
A origem benjaminiana visa, portanto, mais que um projeto restaurativo
ingênuo, ela é, sim, uma retomada do passado, mas ao mesmo tempo e
porque o passado enquanto passado pode voltar numa não-identidade
consigo mesmo abertura sobre o futuro, inacabamento constitutivo.
(GAGNEBIN, 1994, p. 17)
De um conceito relativamente próximo ao de Benjamin, em relação à modernidade,
parte Octavio Paz em Os Filhos do Barro (1984), ao designar que o moderno é “uma tradição
feita de interrupções, em que cada ruptura é um começo” (PAZ, 1984, p. 17); desse modo,
Paz aborda a modernidade como um paradoxo ao contrapor ruptura e tradição, em que a
primeira implica a renovação e a segunda a repetição do “antigo”, que, no entanto, diferente
da tradição anterior à época moderna, propõe um passado “plural”, fazendo com que o
retorno a ele seja sempre diferente. Portanto, segundo Octavio Paz, “a modernidade é uma
espécie de autodestruição criadora” (1984, p. 19), em que, ao negar o passado, cria-se algo
novo, que logo será rompido, o que caracteriza a “tradição da ruptura”.
Paz ainda ressalta que a negação da tradição, e logo, do passado que é recuperado
através dela, é conseqüência da tomada de consciência desta tradição, e que, portanto, a
tradição moderna “é uma expressão de nossa consciência histórica” (PAZ, 1984, p. 26). As
civilizações primitivas, segundo Paz, encaram a história como o passar do tempo que
proporciona mudanças, as quais não são bem-vindas, pois se assemelham à queda, ao fim; a
manutenção da tradição, do passado no presente, serve como apaziguadora de tais alterações.
A consciência histórica da civilização moderna procura romper com a presença do passado no
presente, de tal modo que essa presença não seja imposta, mas que haja a mudança, o
rompimento do ciclo das tradições que repetem o passado, e que a quebra conduza para o
futuro. No entanto, a idéia de futuro para a sociedade moderna não acompanha o pensar na
história como linear, assim como o progresso temporal; desse modo, o desenvolvimento da
16
cultura e da literatura é encarado pelos modernos como algo em que a medida do tempo não é
categórica, mas sim o princípio da mudança, e, portanto, a ação do homem será o
determinante para o desenvolvimento da história.
Por essas razões, segundo Paz, “a idade moderna é concebida como revolucionária”
(PAZ, 1984, p. 50); porém, o sentido de revolução adotado pela modernidade revela um
conceito sobre a história que propõe a mudança e o progresso, e, portanto, o tempo cíclico,
fazendo com que a contradição seja estabelecida pela idéia de mudança e futuro, a qual não
permite a repetição do passado. Desse modo, ao assumir a forma de “passado
revolucionário”, a idéia de futuro parece se adequar à modernidade, pois a mudança e a
revolução não quebram o ciclo da história, mas transformam o passado que retorna: “o
primeiro princípio, o fundamento da sociedade, o é a mudança nem o tempo sucessivo da
história, mas um tempo anterior sempre igual a si mesmo” (PAZ, 1984, p. 56). Por esse
motivo, ressalta Paz, a modernidade é capaz de alcançar esse tempo anterior, pois pode negar-
se a si mesma.
A poesia moderna carrega consigo as características da modernidade, ainda segundo
Paz: “se a revolução da idade moderna consiste no movimento de regresso da sociedade à sua
origem, ao pacto primordial dos iguais, essa revolução se confunde com a poesia” (PAZ,
1984, p. 83). Isso porque os poetas modernos consideram a poesia como a linguagem original
da sociedade, que se revela uma tentativa de romper com a temporalidade da história e
retomar o passado de origem. Como linguagem original, a poesia assume para os escritores
modernos uma experiência vital, pois, através dela, é possível tanto criar quanto transmutar
uma realidade, fazendo da poesia um ato do homem, afirmando, assim, sua participação na
história.
Além disso, a modernidade “é sinônimo de crítica e se identifica com a mudança; não
é a afirmação de um princípio intemporal, mas o desdobrar da razão crítica que, sem cessar,
17
se interroga, se examina e se destrói para renascer novamente” (PAZ, 1984, p. 47). A crítica,
portanto, na modernidade, se converte em um ato revolucionário ao propor o retorno à
origem, ou seja, à sociedade igualitária. Dessa maneira, a modernidade inaugura um
pensamento crítico, tanto do homem sobre as coisas quanto sobre si mesmo, que se estenderá,
guardadas as diferenças, pelo século XX.
O movimento de vanguarda, segundo Paz, foi uma crítica do modernismo dentro do
próprio modernismo. Esse movimento se identifica com as revoluções sociais do século XX e
propõe uma consciência da realidade na poesia, que acaba por negar essa realidade e criar
uma visão de mundo que tem como proposta a união da vida e da arte; no entanto, as
contradições “entre a época e a poesia, o espírito revolucionário e o espírito poético” (PAZ,
1984, p. 135), conduziram os movimentos de vanguarda para o ocaso, principalmente em
razão da perseguição dos Estados revolucionários aos poetas. Além disso, a vanguarda
encerra a tradição das rupturas; ao romper com a idéia de progresso para o futuro, a
vanguarda rompe com a modernidade.
Na segunda metade do século XX, a visão da história como “um processo linear
progressivo revelou-se inconsistente” (PAZ, 1984, p. 191), que o futuro apresenta-se como
ruínas em conseqüência do progresso; em contrapartida, a possível solução” para impedir
que a história progrida para o horror, é enxergar o passado como plural, o que, segundo Paz,
torna possível a pluralidade de futuros. De acordo com o autor, os movimentos de afirmação
de identidade de minorias, excluídas pela sociedade, contribuíram para essa mudança de
visão em relação à temporalidade e à história na segunda metade do século XX, ao buscar a
sua inclusão na sociedade no presente, desvalorizando o futuro e considerando o agora como
ponto de convergência dos tempos, o que proporciona uma visão do poeta como o local de
convergência das vozes de todos; no entanto, se ele representa a voz de todos, não pode ser
apenas uma única voz.
18
O poeta dessa segunda metade do século XX carrega consigo tanto a impossibilidade
da narração quanto a necessidade de uma nova visão da história que permita a pluralidade do
passado e do futuro, o que, segundo Jeanne Marie Gagnebin, reúne os paradoxos da
modernidade; nesse sentido, a partir da teoria de Benjamin, essa exigência aparece na
modernidade em relação às ruínas encontradas no passado, às quais o futuro se dirige.
Gagnebin ainda ressalta a relação entre o declínio da narrativa e a morte, na modernidade,
relação esta que pode ser fundada na descrença em um futuro salvador frente à morte.
Em relação ao declínio da narração e à temporalidade histórica, Walter Benjamin
relaciona a questão da memória, ao contrapor lembrança e esquecimento. De acordo com
Gagnebin, é o instante do presente que possibilita a mudança para Benjamin, tanto em relação
ao passado quanto ao futuro, em que a lembrança ou o esquecimento dos fatos do passado
determinará o devir. Portanto, o futuro não representa mais o único local de salvação, mas,
sim, o presente, ou, ainda, a rememoração do passado no presente. Ao designar o presente
como determinante para o curso da história, Benjamin lugar à ruptura da tradição da
história oficial, o continuum da história da dominação (GAGNEBIN, 1994, p. 115) oferece
brechas que permitem romper a continuidade linear da história, cesuras que, segundo
Gagnebin, residem no próprio discurso:
[...] as fraturas que escandem a narração não são, portanto, simplesmente as
marcas da desorientação moderna ou do fim de uma visão universal
coerente. São, igualmente, os indícios de uma falha mais essencial da qual
pode emergir uma outra história, uma outra verdade (da qual podem nascer
outras histórias, outras verdades). (GAGNEBIN, 1984, p. 119)
O papel do historiador, na visão de Walter Benjamin, seria, portanto, não de voltar ao
passado para preencher as lacunas da história oficial, mas a afirmação de que a consciência
dessas fraturas forneça uma outra visão da história no passado, que ofereça mudanças no
presente, de modo que o passado não seja simplesmente um peso para o presente.
19
1.2 As narrativas da memória: testemunho da catástrofe
Walter Benjamin aponta o surgimento de uma nova narração, das ruínas da narrativa e
da história, no início do século XX. Essa nova narrativa é uma narração do trauma através da
rememoração do passado, o que Jeanne Marie Gagnebin chama de narrativas do testemunho:
O narrador formula uma outra exigência; constata igualmente o fim da
narração tradicional, mas também esboça como que a idéia de uma outra
narração, uma narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os
cacos de uma tradição em migalhas. [...] O que não significa reconstruir
uma grande narrativa épica, heróica, da continuidade histórica.
(GAGNEBIN, 2004, p. 89-90).
Para Benjamin, a narrativa do testemunho vem da necessidade de uma nova história.
A história que não é contada, tanto por não ser considerada pela história tradicional, como por
ser considerada inarrável, é o choque não processado transformado em trauma, presente
apenas no subconsciente do narrador. O autor fornece como exemplo a literatura do pós-
guerra, que ele diz não conter experiências transmissíveis de boca a boca. Essa experiência, a
experiência do trauma, não é passível de ser transmitida pela narrativa tradicional, e nesse
caso, pela história tradicional.
Em “Sobre o conceito de história”, Walter Benjamin coloca a rememoração do
passado como “redenção” (BENJAMIN, 1985, p. 224). Segundo ele, o passado tem
influência no presente, e apenas sua iluminação, no presente, é capaz de transformá-lo. A
rememoração da história do passado não deve salientar o que está presente na história
tradicional, mas, sim, mostrar uma outra visão dessa história, visando à transformação do
presente.
A relação que Benjamin propõe entre o passado e o presente está baseada na aceitação
de que não sentido na cronologia da história nem na história tradicional, e, sim, em ser
transmitida através da história uma visão de mundo ou tipo de consciência capaz de fornecer
um melhor entendimento da realidade atual do homem.
20
Georges Gusdorf, em Les Écritures du Moi (1991), assinala o “momento” do
surgimento da escrita do eu junto do surgimento da escrita e da história. A necessidade de ter
um passado e uma consciência em relação a esse passado, à qual se pode relacionar à
tradição, faz com que o narrador dessa história tenha que compreendê-la para passá-la
adiante. A literatura, a história e, portanto, a escrita do eu compreendendo a autobiografia, o
diário íntimo e as memórias, nascem ao mesmo tempo em que a escrita, pois nascem da
necessidade de uma consciência social e existencial, portanto histórica.
Essa consciência de pertencer a uma comunidade, a um grupo constituído por
indivíduos que vivem de maneira igual, é a consciência passada tradicionalmente de pai para
filho. A “consciência arcaica” de que fala Gusdorf determina que o homem não existe como
indivíduo dentro do grupo, mas como uma parte dele. A tradição histórica, portanto, busca
transmitir conhecimento e a perpetuação das tradições dessa comunidade. Neste aspecto, a
história passa a significar, para a sociedade, transmissão de conhecimento, e a escrita a ter
uma importância crucial para perpetuar esse conhecimento.
A individualização do homem, como chama Gusdorf, a capacidade que ele adquire de
pensar por si próprio e para si próprio, rompe com essa mentalidade coletiva, gerando uma
consciência de autonomia e a importância da iniciativa. O que, agora, será importante para a
memória histórica, assinala Georges Gusdorf, são os feitos dos grandes homens, aqueles que
se sobressaem como importantes para as mudanças efetivas na sociedade e conquistas tanto
pessoais quanto sociais. É por esse motivo que o autor defende, em Les Écritures du Moi, que
toda a literatura não deixa de ser uma escrita do “eu”:
O progresso cultural tornará possível a passagem ao estágio ulterior, em
que aquele que figurou na história terá consciência suficiente de seu papel
para sentir a necessidade de afirmar sua própria identidade como
testemunha ou protagonista nos acontecimentos que ele relata. O indivíduo
que escreve suas memórias obedece ao sentimento de sua responsabilidade
21
pessoal no que aconteceu. (GUSDORF, 1991, p.196, tradução nossa)
2
.
Portanto, a “nova” consciência histórica do homem, que o coloca como indispensável
para os acontecimentos históricos, reflete-se no desenvolvimento da literatura e, também, da
narrativa histórica; frente a essa visão de consciência individual, o homem passa a se
interrogar sobre “sua própria realidade e sobre seu estatuto em um mundo em que as
coordenadas de espaço, de tempo e de valores foram inteiramente renovadas” (GUSDORF,
1991, p.199, tradução nossa)
3
, comportamento que Octavio Paz (1984) identifica nos
movimentos de vanguarda, que, segundo ele, são “uma exasperação e uma exacerbação das
tendências que precederam”, e desse modo, a transgressão de todos os movimentos que acaba
por consagrar a tradição da ruptura e uma nova visão tanto da política quanto da arte.
O autor da escrita do “eu” se considera, dessa forma, um depositário da memória
coletiva”. Como, ao mesmo tempo, testemunha e protagonista dos fatos históricos, ele não
pode evitar relatar esses fatos sob seu ponto de vista individual. Deste modo, o indivíduo é
capaz de atestar a sua presença no mundo e na temporalidade. Além disso, o indivíduo que
toma consciência dos fatos entende-se responsável por “elucidar” a situação que confronta.
Qualquer gênero da escrita do eu (a autobiografia, o diário íntimo ou as memórias)
vem de uma mesma motivação: conhecer-se, mesmo que os agentes internos ou externos
sejam diversos, dependendo de cada história pessoal ou ensejo social. Desde seu nascimento,
a escrita do eu, assim como a literatura em si, atende à ideologia dominante, segundo Georges
Gusdorf. Mesmo em se tratando de uma motivação ou experiência individual, o indivíduo faz
parte de uma determinada sociedade em um determinado momento da história. Entretanto,
são esses momentos que provocam o questionamento do indivíduo sobre sua própria
2
No original: “Le progrès culturel rendra possible le passage au stade ultérieur, celui qui a figuré dans
l’histoire prendra une consience suffisante de son rôle pour sentir le besoin d’affirmer sa propre identité de
témoin ou d’acteur des événements qu’il relate. L’individu qui écrit ses mémoires obéit au sentiment de sa
responsabilité personnelle dans ce qui est arrivé.”
3
No original: “sa réalité propre et sur son statut dans un monde dont les coordonnées d’espace, de temps et de
valeurs ont été entièrement renouvelées”.
22
identidade ou sobre seu papel no desenvolvimento histórico.
Gusdorf aponta vários momentos, no decorrer da história, em que houve um maior
desenvolvimento da escrita do eu; ela somente pode afirmar-se na medida em que exista em
uma comunidade humana uma abertura à consciência de si” (1991, p. 258, tradução nossa). A
escrita do eu não se estabelece apenas em razão de um espaço à manifestação da consciência
de si, mas, também, da necessidade da emergência dessa consciência.
No século XX, que “consagra o triunfo das barbáries conjuntas da guerra, do
genocídio, da perseguição em todas as suas formas” (GUSDORF, 1991, p. 51), a escrita do eu
se apresenta como uma maneira de evasão dos indivíduos que se encontram privados de tudo
o que concerne à sua existência no passado, sua liberdade e seus costumes, que povoaram a
história do século das catástrofes. Segundo Gusdorf, essa evasão por meio da escrita do eu
ocorre nesse momento de suspensão entre o passado e o futuro incerto, na luta pela
sobrevivência, o que faz o indivíduo voltar-se para si mesmo “em seu foro interior,
interrogar-se sobre as razões de sua existência, reconsiderar seu passado à luz das evidências
de um presente ingrato” (1991, p. 7). Nesse contexto, Gusdorf procura mostrar como o
aprisionamento pode levar à iniciação à liberdade, e à autobiografia como “a escrita da
realidade humana em busca da expressão libertadora” (1991, p. 9).
Segundo Bella Josef, “a crescente importância da autobiografia é parte da revolução
intelectual caracterizada pelo surgimento de uma forma moderna de consciência histórica”
(JOSEF, 1998, p. 295). Nesse caso, Josef se refere à autobiografia como testemunho: a
história de um indivíduo que participou de um fato histórico e tem necessidade de manifestar
seu ponto de vista. Assim, na autobiografia, se entrelaçam a pessoa e a memória do sujeito em
um diálogo entre seu passado e presente:
A memória representa, mais precisamente, a elaboração do ser pessoal pela
restituição dos significados. A historicização da consciência de si na
23
lembrança permite que o indivíduo se descubra tal como foi, tal como é, tal
como deve ser de acordo com sua própria semelhança, ou seja, de acordo
com a determinação profunda de sua natureza que não pode realizar-se no
conjunto limitado do presente, em que predominam as exigências e
requisições da situação imediata e do ambiente material e espiritual, pouco
propícios à realização do ser em sua plenitude. Assim, a presença de si para
si melhor se realiza no retrospecto, de acordo com a impossibilidade no
passado, do que na atualidade do presente (GUSDORF, 1991, p. 11,
tradução nossa)
4
.
Para Georges Gusdorf, a autobiografia pode ser encarada como uma volta ao passado,
um retorno às origens, desencadeada por uma motivação tanto pessoal quanto histórica. Os
acontecimentos vividos no passado pelo sujeito da autobiografia, que residem, agora, na
memória, adquirem um outro aspecto quando transformados em discurso. Da mesma maneira
que o sujeito do presente não é o mesmo que vivenciou os acontecimentos do passado, a
representação do passado vivido não pode ser igualada ao próprio acontecimento no passado,
pois tanto a rememoração quanto a transformação desse passado em narrativa, no presente,
pressupõem uma interpretação e uma reinterpretação do vivido.
Josef assinala, ainda, que na autobiografia são relatadas “experiências concretas” que
supõem uma consciência, um conhecimento e a necessidade de transmiti-las, necessidade
essa que, geralmente, nasce do contexto da sociedade em que essa consciência se encontra,
ou, ainda, do que Josef aponta como “o duplo enfoque” da autobiografia: “como o eu reage
ao mundo e como o mundo experimenta o eu” (1998, p. 300).
Assim como a autobiografia pode ser considerada como um documento histórico
porque os fatos nela relatados fazem parte da história, eles também fazem parte da memória
de quem narra. Em relação à memória, Jean-Philippe Miraux, em L’Autobiographie (1996),
4
No original: “la mémoire met en scène, bien plutôt, l’élaboration de l’être personnel par la remise en jeu des
significations. L’historialisation de la conscience de soi dans le souvenir permet à l’individu de se découvrir
tel qu’il fut, tel qu’il est, tel qu’il doit être selon sa propre ressemblance, c’est à dire selon la voeu profond de
sa nature, en qui peut s’accomplir dans le cadre limite du présent, où prédominent les exigences et
réquisitions de la situation immédiate et de l’environnement matériel et spirituel, peu propices à
l’accomplissement de l’être dans sa plenitude. Ainsi, la présence de soi à soi se réalise mieux dans la
rétrospection, selon le mode de l’irréel du passé, que dans l’actualité du présent.”
24
aponta que o imaginário pode transformar e distorcer a verdade e o real, tanto em razão do
esquecimento quanto do ponto vista do escritor, que, ao rememorar os fatos, pode ter visão do
acontecimento no presente diferente daquela na época em que os vivenciou (MIRAUX, 1996,
p.65). Dessa maneira, a autobiografia é, também, ficcional.
Entretanto, como parte do indivíduo e da história, toda escrita do eu, em especial a
autobiografia, carrega os traços de sua época, rompendo ou não com esses traços, além de
conceder, para a história, a visão de quem realmente vivenciou os fatos. Assim, ao escrever
sobre si mesmo, o autobiógrafo escreve, também, sobre a humanidade: o sujeito parte da
existência de si mesmo no mundo para a existência desse mundo que o rodeia e, portanto,
“através da singularidade, ele evoca e invoca o universal” (GUSDORF, 1991, p.36). A escrita
do eu no século XX adquire novos aspectos dentro do amplo campo de estudos da literatura.
O período que Márcio Seligmann-Silva chama de “era das catástrofes e genocídios”
(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 8) foi e é povoado de inúmeros acontecimentos relatados
subjetivamente, e, mesmo, objetivamente, pela literatura e seus representantes. As narrativas
da catástrofe, os relatos autobiográficos e testemunhos de fatos o registrados (ou
registrados parcialmente pela História Oficial), também recebem nova valoração: são
reconhecidos como parte da história. Isso ocorre, segundo Gusdorf, como um “levante”
contra os temas e ideologias que surgiram neste culo, que pretendem proclamar a
subjetividade como um aspecto subalterno da produção literária e científica, que deve se
definir em termos de objetividade (GUSDORF, 1991, p 15).
Assim, escrever uma autobiografia passa a significar o desvendamento de algo que
está escondido sobre si mesmo e sobre o que se passa no mundo à sua volta, a reconquista de
si próprio, como nos aponta Gusdorf: “Começar a escrever, ou seja, pensar por si mesmo, é
tornar-se um suspeito que tem algo a esconder, um segredo. E este segredo chama-se
liberdade.” (1991, p. 170). O sujeito que escreve a autobiografia, portanto, é um indivíduo
25
consciente de si mesmo e do ambiente em que habita; sua intenção, ao escrever sobre si
mesmo e testemunhar os eventos que vivenciou é, de acordo com Georges Gusdorf, a
construção de um mundo pessoal a partir de suas experiências vividas, no qual a realidade
vivenciada é transfigurada para a verdade representada no mundo próprio do sujeito.
A presença da morte iminente do sujeito autobiográfico proporciona à escrita do eu a
qualidade de legado de uma existência que se quer necessária para a compreensão de
acontecimentos e fatos históricos de sua época; o indivíduo que faz o retrospecto de sua vida
procura compreender que caminho o fez chegar até onde chegou e qual o sentido de sua vida.
Aqui, a função de testemunha do autor de uma autobiografia pode aparecer como último
empenho para deixar seu rastro na história universal.
Márcio Seligmann-Silva, em História, Memória, Literatura: o testemunho na era das
catástrofes (2003), define o testemunho como o relato de um sobrevivente que problematiza a
relação entre a linguagem e o real, em que o relato é, muitas vezes, a representação do
ocorrido, como o autor identifica a literatura de testemunho na América Latina. O contrário
ocorre na literatura de testemunho do pós-guerra, em que o real é justamente o que é buscado,
procura motivada pela impossibilidade de transmissão da situação vivida, enquanto que, na
América Latina, o testemunho, ou testimonio, na maioria das vezes, insere a busca pela
identidade da comunidade representada pelo relato, o resgate de sua língua e cultura
dizimadas pelo colonizador. É possível, ainda, encontrar nos países da América Latina o
testemunho de revolucionários que lutaram contra as ditaduras no século XX e sua repressão.
Todo este contingente de literaturas de testemunho e autobiografias demonstram que a escrita
do eu é um “produto histórico” (JOSEF, 1998, p. 297).
Nascida da motivação do sujeito em modificar o mundo em que vive e expressar uma
consciência que surge a partir de uma interpelação no curso de sua existência, a autobiografia
reporta-se, também, aos agentes externos a essa tomada de consciência. O indivíduo
26
autobiográfico é sempre testemunha dos fatos relatados em sua obra, e a escolha dos fatos
representados é determinada por sua relevância na vida do sujeito; todo tipo de literatura de
testemunho apresenta em seu cerne interferências da cultura, da política e da moral, tanto do
escritor quanto de sua época. Na “era das catástrofes e genocídios”, a afirmação de
Seligmann-Silva de que “toda obra de arte, em suma, pode e deve ser lida como testemunho
da barbárie” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 12) é fomentada pela grande quantidade de
obras de cunho testemunhal e memorialístico que surgiram durante este século, originadas,
principalmente, pelos acontecimentos da II Guerra Mundial na Europa e pelos golpes,
guerrilhas e revoluções na América Latina. Ainda segundo Seligmann-Silva, o ponto de vista
está sempre presente na historiografia e na história, seja na opinião dos críticos, dos
historiadores ou dos escritores, assim como na memória individual se faz presente o ponto de
vista coletivo. É, portanto, do discurso da literatura de testemunho dos sobreviventes de
“catástrofes” que é possível recuperar as “ruínas” da história.
O narrador que testemunha a catástrofe, portanto, sente-se responsável por transmitir
esse testemunho. O que Benjamin defende, nesse caso, é que esta narrativa não conte mais
uma vez o que já foi relatado pela história tradicional, nem da mesma forma como as
narrativas do pós-guerra produziram essa narração: uma narrativa vazia, que não se preocupa
em transmitir uma experiência, mas apenas em relatar um acontecimento. Walter Benjamin
observa, também, o papel do ouvinte, tanto em relação às narrativas tradicionais quanto ao
ouvinte enquanto testemunha. Ele é o responsável pela continuidade da transmissão da
experiência, e, mesmo que ele não tenha participado ativamente do acontecimento, como
ouvinte ele pode ser considerado uma testemunha:
[...] uma ampliação do conceito de testemunha se torna necessária; a
testemunha não seria somente aquele que viu com os próprios olhos, o
histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele
que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e
que aceita que suas palavras revezem a história do outro: não por
27
culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão
simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente
essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo
infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o
presente. (GAGNEBIN, 2004, p. 93).
A narrativa das ruínas da história é essa narrativa que volta ao passado, que não deixa
o passado cair no esquecimento, que busca narrar o inarrável, é o testemunho do esquecido
que não faz parte da história oficial: “No domínio psíquico, os valores individuais e privados
substituem cada vez mais as crenças em certezas coletivas, mesmo se estas não são nem
fundamentalmente criticadas nem rejeitadas. A história do si vai, pouco a pouco, preencher o
papel deixado vago pela história comum.” (GAGNEBIN, 1994, p. 122 - 123)
O testimonio na América Latina acaba por cumprir a função de documento histórico.
A visível impossibilidade de representação universal do “real” na literatura da Shoah, como
aponta Márcio Seligmann-Silva, é possibilitada através do testimonio por seu caráter
particular, de manifestação espontânea em reportar um acontecimento, enquanto o
testemunho, na literatura pós-Auschwitz, é considerado tarefa impossível. Em História,
Memória, Literatura: o testemunho na era das catástrofes (2003), Seligmann propõe o
“esfacelamento do bloco comunista” nos anos de 1980 como momento histórico significativo
para a “virada particularista” da literatura de testemunho. Na década de 1960, auge dos
golpes de estado e revoluções na América Latina, a literatura de testimonio inaugura seu
papel de “voz” dos oprimidos; o caráter socialista que os governos revolucionários adquirem
direciona a literatura de testemunho ao enaltecimento das conquistas e esforços dos
responsáveis pela revolução. Nesse contexto, Cuba é um dos países mais representativos do
gênero e de sua institucionalização, de acordo com Seligmann-Silva. Na introdução de
História, Memória, Literatura, Seligmann afirma que na América Latina “uma
convergência entre política e literatura” (2003, p. 32). Essa colocação não diz respeito,
28
apenas, ao testimonio representado pelos revolucionários oprimidos, mas, também, vai de
encontro ao sentimento de individualização adverso aos regimes socialistas, em que Cuba
pode, da mesma maneira, servir de exemplo.
Segundo Octavio Paz, o dogmatismo acompanhou os movimentos revolucionários do
século XX, principalmente por se basearem na razão e no universalismo filosófico, o que
acabou por transformá-los, uma vez no poder, em Estados totalitários que encaram a poesia
como heresia, se a mesma não estiveste em função da manutenção dessa visão de mundo.
Assim, a literatura de testimonio encontrada na América Latina se diferencia do
testemunho propriamente dito, ela carrega a função de “contra-história”, segundo Seligmann-
Silva, e seu papel é de cobrar a justiça e de denunciar ações vistas como grandes feitos ou,
simplesmente, não relatadas pela História oficial. O relato pessoal encontrado no testimonio
não é o relato pessoal de qualquer pessoa, mas, sim, de um indivíduo que se julga
“necessário” para a compreensão dos fatos narrados por ele e do mundo à sua volta, um
indivíduo exemplar, de acordo com Seligmann-Silva: “A verdade e a utilidade são, portanto,
fundamentais na concepção de testimonio [...]” (2003, p. 34). Essa característica do narrador
no testimonio é o que o diferencia do testemunho da Shoah, que presume o relato de uma
experiência traumática:
Se é verdade que na teoria do testemunho se tematiza a enunciação como
momento de manifestação dos que tiveram sua voz calada (os assassinados
e os sobreviventes), por outro lado, não existe essa insistência na
verticalização. Esta constitui a maior diferença entre essas duas teorias, tal
como elas m se desdobrando na década de 1990. [...] é justamente esse
discurso decantado dos estudos sobre a memória que é o mais apto a
perceber os pontos de encontro (e as diferenças) do (discurso sobre o)
testemunho com o (discurso sobre o) testimonio. Ele permite pensar o teor
testemunhal como tal escritura fragmentada, ruinosa, que porta tanto a
recordação quanto o esquecimento. (SILVA, 2003, p. 36 - 37)
No testimonio latino-americano do século XX reside um caráter da memória que pode
29
identificá-la com a ideologia. Deste modo, a narrativa testemunhal dos indivíduos e
sobreviventes envolvidos nos processos políticos, guerrilhas e revoluções refletirá a memória
coletiva, que abrange a cultura e a ideologia da comunidade em questão. A narrativa penderá,
portanto, ora para a “memória” daquele que narra, ora para os fatos históricos que envolvem
essa memória. Deste modo, a literatura de testemunho presume, também, a relação da
linguagem com o “real”, segundo Seligmann-Silva: a linguagem ou escrita vem preencher
uma falta, ela “nasce [...] de uma reescritura dolorosa do ‘real’” (2003, p. 48). A narração do
“real” como uma experiência traumática não leva em conta apenas a existência dessa
realidade no intuito de descrevê-la como realmente “é”, mas reside na capacidade de
representá-la.
O trauma da realidade vivenciada reside tanto na memória quanto no esquecimento. O
autor do relato não se centrará somente no que a memória lhe proporciona sobre o
acontecimento ou período que ele procura narrar; a parte que falta para a compreensão dos
fatos e de sua consciência no passado será preenchida pela imaginação e pela linguagem, ou
seja, por meio da estética, pois a representação do “real” na obra de arte é uma forma de
ruptura do inarrável e do inimaginável.
Em relação à memória, Jean-Yves e Marc Tadié, em Le sens de la mémoire, afirmam
que não lembranças idênticas ao acontecimento que se desenvolveu (1999, p. 9); ela
poderá ser mais precisa se tratar-se de um evento cotidiano ou mesmo relacionado à
afetividade. No entanto, mesmo a memória afetiva respeita o “ato da memória”: aquisição,
transformação e “reatualização” imaginária (1999, p. 11). No caso de um acontecimento
radical, o trauma poderá ser um agente do esquecimento, principalmente se o processo de
rememoração tornar-se doloroso. Desse modo, a imaginação não atuará apenas em função da
reconstrução dessa lembrança para o próprio indivíduo, mas ela poderá servir de atenuante do
horror que o inarrável e o inimaginável provocam.
30
O esquecimento, como dito anteriormente, muitas vezes é fruto do próprio trauma;
essa lacuna apenas será superada frente ao negacionismo histórico do contexto em que o
trauma foi gerado; a rememoração do passado através da narrativa do sobrevivente do trauma
incorpora a luta contra o esquecimento coletivo da violência, e, segundo Seligmann-Silva, “A
arte da memória, assim como a literatura de testemunho, é uma arte da leitura de cicatrizes”
(2003, p. 56). No entanto, o esquecimento não se refere apenas às falhas da memória ou a
considerar o ato da barbárie não pertencente à história oficial. O esquecimento é natural e
necessário, e, assim, contrário ao historicismo que pretende relembrar” o passado “tal como
foi”, ou seja, fazer com que ele reviva no presente; esquecer remete-nos à uma nova visão da
história, às “ruínas da história”, escrita através das lembranças dos sobreviventes da barbárie.
Segundo Seligmann-Silva, os acontecimentos traumáticos do século XX impõem uma
nova visão sobre a historiografia. Os momentos de tensão fazem com que se perceba que não
é possível uma visão linear da história para a compreensão dos fatos; da mesma maneira, o
registro da história exige que se aceite uma visão pessoal desses eventos: “[...] não existe uma
história neutra; nela a memória, enquanto uma categoria abertamente mais afetiva de
relacionamento com o passado, intervém e determina em boa parte seus caminhos. A
memória existe no plural” (2003, p. 67). A nova visão da história, fragmentada, na qual se
entremeiam a memória, o esquecimento, as conquistas e as catástrofes, é relacionada por
Seligmann-Silva à figura do catador de trapos de Walter Benjamin – o chiffonnier, que
Benjamin foi buscar em Baudelaire (Cf. BENJAMIN, 1989, p. 16 e ss.) segundo o qual os
“cacos” da história devem ser recolhidos, não implicando sua relativa importância.
Grande parte das “ruínas” da história dos acontecimentos que ocorreram no século
XX pode ser resgatada da literatura de testemunho, que ganha força como “uma face” da
literatura em que convergem o registro da história e da obra literária a partir de sua relação
com o real. A discussão em torno do valor do testemunho como obra literária, ao mesmo
31
tempo em que relata um evento histórico ou suas decorrências, é defendida assim por
Seligmann-Silva: “A verdade é que esse limite entre a ficção e a ‘realidade’ o pode ser
delimitado. E o testemunho justamente quer resgatar o que existe de mais terrível no real’
para apresentá-lo. Mesmo que para isso ele precise da literatura” (2003, p. 375). Com esse
trecho, Seligmann-Silva conclui que a “representação do real” na literatura de testemunho é o
que a define como literatura de testemunho; trata-se da “simbolização” de um acontecimento
real; por isso ela é, ao mesmo tempo, obra literária e documento histórico.
1.3 A literatura de testemunho como produto do ressentimento
Pierre Ansart, em “História e memória dos ressentimentos” (NAXARA &
BRESCIANI, 2004), assinala que as discussões entre história, memória e ressentimentos
apontam para um problema entre as relações do indivíduo e da sociedade em geral, baseando-
se na significação do termo ressentimento realizada por Nietzsche: “O ressentimento estaria
na base do igualitarismo democrático destruidor, na raiz dos movimentos populares,
socialistas e anarquistas e, em uma palavra, na origem da decadência das sociedades
ocidentais” (NAXARA & BRESCIANI, 2004, p. 17). A noção de ressentimento estaria,
portanto, ligada aos sentimentos de ódio e mágoa. Ansart, partindo de Nietzsche, aponta o
surgimento deste sentimento junto da decadência da sociedade ocidental no final do século
XIX, sentimento que irá se arraigar no século XX, era das catástrofes. A essa definição,
Ansart estabelece uma comparação com a proposta de Robert K. Merton, que, apesar da
convergência desta com a proposição de Nietzsche, descarta que o ressentimento esteja
relacionado com a decadência ocidental; o entrelaçamento das acepções do ressentimento
compreende, portanto, a seguinte definição de Ansart: “um conjunto de ‘sentimentos’ em que
predominam o ódio, o desejo de vingança e, por outro lado, o sentimento, a experiência
continuada da impotência, ‘a experiência continuamente renovada’ da impotência rancorosa”
32
(NAXARA & BRESCIANI, 2004, p. 18).
No mesmo ensaio, Pierre Ansart relaciona essa definição de ressentimento com a
visão das “vítimas” sobre os acontecimentos históricos e sociais; essa visão apontaria os
indivíduos que os prejudicam como maus e injustos, causadores de sofrimento em pessoas
justas e inocentes, e esses sentimentos de hostilidade e ódio, que caracterizam o
ressentimento, serão comuns dentro de um grupo específico. Assim, a ideologia
compartilhada pelos indivíduos vinculados a esse conjunto, seja ela voltada ao nacionalismo
ou à hostilidade em relação a uma outra ideologia, lhes fornecerá suporte para apoio ao grupo
e embasamento para que o ressentimento seja alimentado:
Pode-se acrescentar, ainda, que os regimes totalitários, fascista ou
comunista, tiveram como estratégia ideológica favorecer a formação de um
ódio dominante, um ódio exclusivo, e exacerbá-lo com fins de mobilização
coletiva. Para o regime nazista, ódio dos governantes e das nações
vitoriosas em 1918; para o regime stalinista, ódio dos capitalistas e
proprietários. Estes regimes tiveram em comum integrar em sua ideologia
um ódio dominante, em ressentimento de Estado, que possibilitava a
ocultação dos ressentimentos internos contra os dominantes e governantes
no interior do regime estabelecido. (NAXARA & BRESCIANI, 2004, p.
26).
Michèle Ansart-Dourlen, em “O Ressentimento – As modalidades de seu
deslocamento nas práticas revolucionárias”, ressalta que “O ressentimento remete a um
tempo repetitivo, gerador de fantasmas e pensamentos hostis, vividos na impotência”
(NAXARA & BRESCIANI, 2004, p. 355) e, portanto, será causa e efeito de um sentimento
de ódio ou do próprio ressentimento: a imposição de um sentimento gerará um ressentimento,
que, por sua vez, será causa de um ódio coletivo.
O ressentimento está relacionado com o passado, ele está inserido na memória,
individual e coletiva. Jacy Alves de Seixas, em “Percursos de Memórias em Terras de
História: Problemáticas Atuais” (NAXARA & BRESCIANI, 2004), aponta que a
33
historiografia no século XX, mais precisamente na década de 1980, encara a memória como
parte da história, e portanto, a história seria responsável pela produção de memórias. Nesse
sentido, a memória transmitiria “conhecimento do passado”, e a consciência histórica contida
na memória continuaria sendo escrava deste passado: “[...] toda memória hoje em dia é uma
memória exilada, que busca refúgio na história: restam-lhe, assim, os lugares de memória [...]
como seu grande testemunho” (NAXARA & BRESCIANI, 2004. p. 41). Dessa maneira, a
autora conclui que “possuir” o domínio sobre a memória coletiva historicizada é possuir o
poder de impor o passado sobre o presente. É por essa razão que, no século XX, mais
precisamente na segunda metade deste século, se desenvolve com maior potencialidade a
literatura de testemunho; um olhar mais atento a esse movimento, enraizado na tentativa de
fazer surgir uma outra visão sobre os fatos históricos inseridos na história tradicional, é o que
Walter Benjamin chama de “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1985, p. 225):
voltar-se para as “ruínas da história” nas próprias palavras de Benjamin através das
narrativas de testemunho, é desvincular o presente do passado, fazendo emergir uma nova
consciência histórica.
O que Jacy Alves sugere, ao propor que o passado histórico reside na memória, é que
não seja considerada apenas a memória reconstruída, mas a memória involuntária; segundo a
autora, enquanto a memória voluntária aborda apenas as lembranças selecionadas e serve
para a reconstrução do passado, a memória involuntária teria o papel de “recriá-lo”. Aqui, a
autora, baseando-se no conceito de memória involuntária apresentada por Proust, assinala que
as lembranças e eventos resgatados por essa memória irrompem do passado para desvendar,
no presente, que o que passou não está acabado: “É este trazer à tona que constitui o
fundamento mesmo da memória, pois o passado que ‘retorna’ de alguma forma não passou,
continua ativo e atual e, portanto, muito mais do que reencontrado, ele é retomado, recriado,
reatualizado.”( NAXARA & BRESCIANI, 2004, p. 49). É, portanto, na memória
34
involuntária que os sentimentos e as emoções do indivíduo que relata estão presentes; essa
memória será capaz de “construir” uma realidade, de transmitir os fatos e eventos como
realmente aconteceram, diferentemente da memória voluntária, cujas lacunas devem ser
preenchidas através da reconstrução dos fatos, em que se presume a reflexão.
Deve-se atentar, no entanto, ao que Jaime Ginzburg coloca como a problematização
da constituição do sujeito e da verdade. Na autobiografia, segundo o autor, a dificuldade de
relatar acontecimentos traumáticos, somada ao ressentimento e ao sentimento de impotência,
pode levar o sujeito da narrativa a “manejar os recursos disponibilizados pela memória, de
modo a expor a percepção que considera mais adequada de sua própria imagem.” (2007, p.
51).
Jacy Alves destaca as duas últimas décadas do século XX como momento de maior
“revalorização” da memória, pois ela aponta que é nessa época que incidem acontecimentos
que registram a revelação da barbárie, como o fim de regimes totalitários e a explosão de
conflitos étnicos e religiosos:
É do interior deste caldeirão, carregado de fortes sentimentos e emoções,
que memórias extremamente diversificadas irrompem e invadem a cena
pública, buscam reconhecimento, visibilidade e articulação, respondendo
provavelmente a uma necessidade que a racionalidade histórica é impotente
para exprimir e atualizando no presente vivências remotas (revisitadas,
silenciadas, recalcadas ou esquecidas) que se projetam em direção ao
futuro. Nesse sentido, a memória parece responder, hoje, mais a uma
função ética do que a uma função cognitiva [...] (NAXARA &
BRESCIANI, 2004, p. 53).
Dessa maneira, a autora descreve o século XX não apenas como a “era das catástrofes
e genocídios”, mas o fim deste século revela, também, a “crise das utopias racionalistas”, em
que o relato do passado não mais será realizado pela história tradicional de maneira a instituir
sua autoridade sobre o presente, e, sim, através da memória, que estabeleceria não apenas o
vínculo entre passado e presente, mas, do mesmo modo, entre passado e futuro. Portanto, a
35
função da memória estende-se para além de uma nova construção da história voltada para o
futuro; ela será responsável por quebrar o ciclo da imposição do passado através da história
tradicional e, com isso, poderá impedir que o ressentimento permaneça como uma
característica iminente do passado no presente.
1.4 Testemunho e ressentimento na Revolução Cubana
Segundo Richard Gott, em Cuba: uma nova história (2006), pode-se dizer que a
Revolução Cubana de 1959 passou a fazer parte da história tradicional como “a aurora de
uma nova era”. Vista pelos historiadores e intelectuais em todo o mundo como uma conquista
contra o imperialismo americano, e, mais ainda após o embargo econômico dos Estados
Unidos, Cuba passou a representar um marco da vitória do povo contra a ditadura direitista.
Além disso, a instauração de um regime socialista veio acrescentar um caráter ainda mais
popular à revolução. Seu reconhecimento e enaltecimento, em várias partes do mundo,
trouxeram a Revolução para a história como uma das primeiras conquistas populares que,
enfim, havia sido reconhecida como tal: a história da Revolução não precisaria lutar por um
lugar na história oficial.
No entanto, apesar do sucesso da implantação de um regime revolucionário em Cuba,
a América Latina ainda estava envolvida em um contexto de guerrilhas e revoluções, nas
quais os povos nativos e as minorias étnicas eram massacrados; a realidade dos excluídos
proporcionou o desenvolvimento da literatura de testemunho, a única forma que esses
indivíduos encontravam para se fazerem ouvir e afirmarem sua identidade. O
desenvolvimento desse tipo de manifestação, chamado, como vimos, de testimonio latino-
americano, foi tão significativo que a Casa de Las Américas criou uma premiação exclusiva
para o testimonio em 1970, que, de acordo com João Camillo Penna, em “Este corpo, esta
dor, esta fome: notas sobre o testemunho hispano-americano”, “explicita o vínculo entre a
36
Revolução Cubana e a criação deste espaço enunciativo na América Latina” (SELIGMANN-
SILVA, 2003, p.307). Além disso, o movimento de vanguarda da literatura na América
Latina, que, segundo Octávio Paz, apresenta uma identificação com os movimentos
revolucionários, possibilitou o desenvolvimento de novas formas de literatura.
Apesar do apoio latino-americano e europeu à Revolução Cubana e seus líderes, seu
caráter socialista e uma clara relação com a União Soviética durante a década de 1960
suscitaram uma possível intervenção dos Estados Unidos, comprovada pela tentativa de
invasão na Baía dos Porcos
5
em 1961 e a declaração de embargo econômico a Cuba. Era,
portanto, necessário a afirmação da Revolução e da adesão dos indivíduos a seu caráter
socialista. A propaganda e a exportação dos ideais revolucionários transformaram-se na
principal artilharia de Cuba para a manutenção do novo regime. Além disso, a realidade
latino-americana, a qual arraigava um povo subjugado por interesses econômicos e de poder,
acabava por enxergar na Revolução Cubana a consagração do que era, antes, uma utopia,
como assinala José Miguel Oviedo:
No começo da década de 60 uma nova América Latina começou a surgir: a
luta armada em vários países, a repressão institucionalizada, a reaparição
(sob máscaras dissimuladas) do velho fascismo, etc., deram conta disto.
Mas sobretudo a presença da Revolução Cubana operou como um
fenômeno catalisador da vida política, cultural e artística continental.
Especialmente, os intelectuais compreenderam a bela lição que deixava
essa primeira e até agora única – revolução socialista da América: a
utopia se convertera numa realidade difícil, conflitiva e, ao mesmo tempo,
mais admirável; não bastava defendê-la: era preciso reelaborar, repensar
tudo e atuar com conseqüência. O campo para fazê-lo era, além disso,
muito amplo e flexível porque esta era uma revolução dentro da qual a
atividade intelectual tinha um sentido e um lugar muito precisos
(MORENO, 1979, p. 446).
As artes em geral, e em especial a literatura, em toda a América Latina e,
principalmente, em Cuba, passam a exercer uma função para além da estética: a função
5
Desembarque em Cuba de cubanos exilados nos Estados Unidos, treinados pela CIA, em abril de 1961, com
o intuito de retomar o poder de Fidel Castro. Fonte: GOTT,R. Cuba: uma nova história, 2004.
37
social. No caso de Cuba, a literatura em geral ainda garante mais um aspecto que é a
propagação e o enaltecimento da Revolução. Nos primeiros anos do regime revolucionário,
podia-se perceber uma efusão generalizada entre os escritores nacionais e estrangeiros
adeptos dos ideais da Revolução de 1959, atitude movida principalmente pelos sentimentos
de triunfo e ao mesmo tempo de ódio e aversão aos imperialistas e partidários do ex-ditador
Fulgêncio Batista. A Revolução Cubana representava, então, para seu povo, a paz e a justiça
praticamente inexistentes na ilha desde sua ocupação pelos colonizadores espanhóis; a
história de Cuba acarretou um ressentimento secular transmitido de geração em geração,
sentimento causado, principalmente, pelo constante “clima de medo e incerteza”, segundo
Richard Gott.
Apesar do apoio da União Soviética, os líderes cubanos tinham nas mãos um país
devastado política e socialmente; os rumos que o governo tomava, baseados no socialismo
soviético, representavam uma ameaça política para alguns cubanos e principalmente uma
provável intervenção americana; dessa maneira, qualquer propaganda negativa poderia
significar a perda do maior aliado do regime revolucionário: o povo cubano. Era, portanto,
necessário manter uma sociedade unificada que partilhasse dos ideais da Revolução. José
Antonio Portuondo aponta os novos rumos da literatura produzida em Cuba a partir da
revolução socialista cubana; em sua visão, não separação entre a vida” e a “letra”, mas a
literatura e as artes devem se adequar à nova realidade:
[...] desta experiência cubana deduz-se algo mais: que não se trata, na
literatura e na arte, de ensaiar poses de rebeldes ou de franco-atiradores [...]
mas da marcha unida, disciplinada, militante dos criadores cônscios de
serem integrantes de um exército a caminho da batalha decisiva pela
libertação definitiva da América, que perceberam ser a revolução não um
exercício retórico mas uma luta real contra o imperialismo, na qual não são
os homens de letras os que marcam o compasso. Não se trata, contudo, de
que o estrondo das armas chegue a afogar a pura voz do mais delicado
instrumento, nem de que a disciplina revolucionária imponha temas ou
maneiras específicas, destruindo a livre expressão. (MORENO, 1979, p.
408)
38
Neste aspecto destacado por Portuondo, de que com a Revolução os intelectuais e a
literatura poderiam ter um lugar e um motivo para manifestar-se, o testimonio ganha lugar
especial. O caráter socialista da Revolução Cubana proporcionou ao latino-americano uma
abertura para a expressão por meio de sua própria voz, a voz de alguém que antes nunca
havia tido a licença para se manifestar. Além disso, segundo Adolfo Pietro, os primeiros
momentos da Revolução Cubana manifestam a possibilidade de “conciliação entre vanguarda
artística e vanguarda ideológica, este sonho frustrado de tantas gerações” (MORENO, 1979,
p. 429).
Ao lado da abertura à literatura revolucionária e social, o governo cubano intensifica a
censura aos intelectuais e escritores considerados contra-revolucionários. No entanto, a
classificação desses intelectuais e artistas como “contra-revolucionários” não se deve apenas
ao seu posicionamento dissidente ao regime pós-revolução, mas a própria atividade, artística
ou não, que não seja a favor dos ideais revolucionários era considerada uma atitude contrária
ao regime, como comprovam as próprias palavras de Fidel Castro citadas por Antonio
Portuondo:
A revolução deve tratar de ganhar para suas idéias a maior parte do povo; a
revolução nunca deve renunciar a contar com a maioria do povo; a contar,
não com os revolucionários, mas com todos os cidadãos honestos que
embora não sejam revolucionários, isto é, que embora não tenham uma
atitude revolucionária diante da vida, estejam com ela. A revolução deve
renunciar àqueles que forem incorrigivelmente reacionários, que forem
incorrigivelmente contra-revolucionários. E a revolução deve compreender
a realidade e, portanto, deve atuar de modo que uma atitude para com esta
parte dos intelectuais e dos escritores [...] este setor de artistas e de
intelectuais que não sejam genuinamente revolucionários encontre dentro
da revolução um campo onde trabalhar e criar e que seu espírito criador,
mesmo que não sejam escritores ou artistas revolucionários, tenha
oportunidade e liberdade para expressar-se dentro da revolução. Isto
significa que dentro da revolução, tudo; contra a revolução, nada.
(Palabras a los intelectuales, Havana, Consejo Nacional de Cultura,
1961. Apud MORENO, 1979, p. 408)
39
A partir desta declaração de Fidel Castro, a literatura que se permitia publicar em
Cuba era antes aprovada pela Uneac (União Nacional dos Escritores e Artistas Cubanos);
ainda havia uma relativa liberdade em relação à publicação de obras literárias e participação
em concursos. A “Primavera de Praga” veio acabar com a harmonia e tolerância interna. Após
a invasão da Tchecoslováquia pela União Soviética em 21 de agosto de 1968, fato que causou
revolta em muitos cubanos, e considerando as relações da ilha com a União Soviética, o apoio
do líder Fidel Castro desencadeou uma manifestação violentamente sufocada; esse evento
indicava ao regime da revolução que não havia uma adesão total às atitudes do governo, o
que significou para parte do povo cubano intensificação das perseguições políticas e da
censura.
Segundo Richard Gott, os acontecimentos do ano de 1968 declararam que a
Revolução não seguiria sua proposta inicial de governo; Cuba acabou por adotar o modelo
soviético em toda sua estrutura econômica, social e política: a dissidência não tinha mais
lugar. Para os artistas e intelectuais cubanos que não compactuavam com os novos ideais do
regime, seu destino ficou claro após o caso do escritor Heberto Padilla, então membro da
Uneac
6
, que, após sua prisão em 1971 em razão da publicação de seu poema Fuera del Juego
(1968), foi supostamente obrigado a realizar uma retratação pública. O caso despertou o
interesse dos intelectuais e escritores europeus, que publicaram uma carta a seu favor no
jornal francês Le Monde. Perdendo o apoio de muitos intelectuais que haviam aderido à
Revolução desde seus primeiros anos, o regime decidiu soltar Padilla. A cultura cubana
acabava por se fechar por completo e, segundo Gott, torna-se “confinada totalmente à Europa
oriental” (2004, p. 280).
A nova configuração da política cubana alterou profundamente a produção literária e
6
Unión de Escritores y Artistas de Cuba
40
artística em Cuba. A abertura para influências culturais durante os primeiros anos da
Revolução, o período áureo, havia acabado; para aqueles que não concordavam em se
“regenerar” e trabalhar pela Revolução, restava o exílio; os escritores que permaneceram em
Cuba deveriam apoiar a Revolução ou permanecer no ostracismo à custa de perseguições e
prisão. O regime totalitário que se tornou o governo de Cuba após 1968 foi responsável por
gerar o ressentimento naqueles que lutaram a favor da Revolução e que, agora, eram
condenados por não serem mais considerados como cidadãos envolvidos com o país e, por
isso, desprezíveis.
Michèle Ansart traça o caminho do ressentimento na história, que pode ser
encontrado, também, na história cubana:
[...] a percepção das práticas revolucionárias mostra que, entre os
revolucionários e os resistentes acontecia, ao contrário, a memória da
humilhação, da injustiça e/ou da opressão dominadora, que favorecia a
expressão de hostilidade e revolta. Assim, eles se livraram dos sentimentos
de impotência e, ao mesmo tempo, concebiam sua ação como um combate
contra a apatia da população; suas denúncias da propaganda e suas ações,
pelos exemplos de revolta que propunham, destinavam-se a despertar os
desejos de libertação. Contudo, é preciso também sublinhar que o
ressentimento [...] procede das pulsões mais agressivas e destrutivas [...].
Essas pulsões agressivas, como mostrou a história do século XX, podem ser
manipuladas pelos regimes totalitários e canalizadas para os bodes
expiatórios. Tratava-se, com efeito, de desviar a revolta de seu objeto de
alguma maneira “natural”, que seria o poder opressor ao qual a população
foi submetida. Este é o papel da propaganda, que foi amplamente utilizada
pelas ideologias totalitárias. [...] O ressentimento é orientado contra os
inimigos imaginários, designados pelo poder totalitário. (NAXARA &
BRESCIANI, 2004, p. 367)
O ressentimento, portanto, apresenta-se ao longo da história de Cuba como
manifestação da impotência e desejo de libertação. A própria Revolução Cubana foi um
movimento movido pelo ressentimento gerado pelos sucessivos confrontos de poder na ilha
desde José Martí, agravado pelo imperialismo americano durante a Guerra Fria. Com o
estabelecimento de um regime totalitário nos moldes do socialismo soviético, que acarretou
41
perseguições, prisões e exílio para uma parcela da população cubana que ousava opor-se aos
ideais políticos, o ressentimento se constitui através dos mesmos sentimentos de impotência e
de privação da liberdade. A literatura de testemunho que se desenvolveu em Cuba durante a
revolução, que relatava a história de lutas e conquistas pela liberdade, passou a ser uma forma
de manifestação da impotência, talvez a única maneira que alguns tinham de extravasar as
opiniões e os sentimentos abafados pela política de censura e repressão. O testimonio cubano
se desenvolveu, em sua maior parte, fora do país, relatado por escritores que encontraram no
exílio e na literatura a expressão do ressentimento e da busca pela libertação da opressão.
Assim, o testimonio se configura como as memórias das ruínas da história da Revolução.
42
Capítulo II
2.1 O foco narrativo e suas implicações na autobiografia
Ligia Chiappini, em O Foco Narrativo (1989), assinala que as histórias sempre são
contadas por meio de um narrador, um indivíduo que, a partir de uma experiência vivida ou
testemunhada, relata fatos, memórias, experiências ou, mesmo, histórias imaginadas e criadas
por ele e outros indivíduos. Dessa maneira, conclui-se que “narração e ficção praticamente
nascem juntas.” (CHIAPPINI, 1989, p. 6). Pascal A. Ifri, por sua vez, em seu artigo
“Focalisation et récits autobiographiques” (1987), propõe que, apesar das proximidades
estruturais entre um romance autobiográfico ou em primeira pessoa em relação a uma
autobiografia, eles diferem em pelo menos um nível: a focalização.
O que define a focalização, ou foco narrativo de uma obra, é o posicionamento do
narrador em relação à narrativa. Esse narrador, assim como a narrativa, vai adquirindo
diferentes características e funções através do tempo e da história, as quais serão
influenciadas em grande parte pela transformação da sociedade.
Françoise Van Rossum-Guyon, em “Point de vue ou perspective narrative” (1970),
declara que as teorias em relação ao foco narrativo, a partir do início do século XX, são frutos
do contexto histórico e ideológico dos países nos quais elas se desenvolveram, em torno das
tradições teóricas e críticas destes países. Portanto, não uma teoria unificada sobre a
questão narrativa; desse modo, ela aborda as teorias que considera mais aplicáveis e que
propõem uma renovação sobre o assunto. Rossum-Guyon, apesar de abordar os teóricos em
seu respectivo contexto, aponta Percy Lubbock como o inaugurador da tradição da análise da
perspectiva narrativa. No entanto, foi Norman Friedman, segundo a autora, quem
sistematizou os elementos de análise do ponto de vista levantados até então. De acordo com
Rossum-Guyon, as primeiras teorias em relação à focalização partiam da análise de obras que
43
ofereciam o maior grau de “realismo” possível, em que a presença de um narrador, que se
identificasse com o autor, de fora da história, rompesse essa característica. A visão de Wayne
C. Booth e Wolfgang Kayser vem romper o mito do “desaparecimento do autor”; apesar de
apresentarem teorias relativamente distintas, ambos encontram no papel do narrador um
elemento imprescindível para o desenvolvimento da narrativa. No entanto, Rossum-Guyon
identifica apenas em Pouillon a preocupação com o elemento psicológico do romance,
principalmente da relação entre o autor e o narrador. Além disso, ao reconhecer a relação
entre ambos, Pouillon aplica a análise do foco narrativo na autobiografia, e, por esse motivo,
é sua teoria que abordaremos neste trabalho.
As transformações da sociedade no século XX, segundo Lígia Chiappini, seriam
responsáveis pelas mudanças de perspectiva em relação à narrativa. O universo se apresenta
caótico e fragmentado, assim como a narrativa, o que vai contra as teorias que apresentam
uma visão totalizadora; por essa razão, uma narrativa baseada na objetividade não é mais
acreditada; dessa maneira, “substitui-se o narrador por uma voz diretamente envolvida no que
narra, narrando por apresentação direta e atual, presente e sensível pela própria desarticulação
da linguagem, o movimento miúdo das suas emoções e o fluxo dos seus pensamentos [...].”
(CHIAPPINI, 1989, p. 72). A subjetividade vem, assim, para imprimir à narrativa um novo
aspecto, em que a narrativa tradicional não tem mais lugar. Esse novo aspecto se apresentará
na forma que a narrativa assume ao voltar-se ao passado, escamotear a história e adotar a
subjetividade de maneira a evitar o efeito de neutralidade.
Nessa nova forma de narrativa incluem-se as narrativas da memória e, em especial, a
autobiografia; ao compará-la ao romance, Jean Pouillon define a autobiografia como
“compreensão do eu sob forma romanesca” (1974, p. 39); na autobiografia, a compreensão do
eu, ou, ainda, a “narrativa do eu”, segundo Gusdorf, se dá através da rememoração do
passado: narra-se o que se lembra do passado. O que Pouillon destaca, em relação à narrativa
44
das memórias, é que não é possível lembrar-se de tudo, nem escolher o que queremos
lembrar; portanto, não sendo a lembrança algo concreto, é necessário “reinventá-la”, e, para
reinventá-la, usa-se a imaginação. Assim, a forma de construção da narrativa autobiográfica
aproxima-se da do romance. O passado rememorado, portanto, reinventado, não é um
passado artificial; segundo Pouillon, esse passado existe porque o imaginamos, da mesma
forma que a consciência sobre si: “existir para si é existir pelo sentido atribuído a si mesmo;
eu sou o que acredito ser” (POUILLON, 1974, p. 41), e, por isso, Pouillon conclui que a
consciência é parte da imaginação.
Jean-Yves e Marc Tadié, em Le sens de la mémoire (1999), identificam na memória o
papel de “unificar” a personalidade por meio da presença do passado em nosso presente. A
personalidade será, então, responsável pelo modo como as sensações e lembranças serão
registradas e, portanto, a memória será afetiva e imaginativa. Os autores também ressaltam a
importância do contexto para determinar a forma de registro dos acontecimentos na memória:
“cada percepção do mundo exterior provoca em nós uma impressão de intensidade variável,
agradável ou desagradável, portanto, carregada de sentimento.” (TADIÉ, 1999, p. 110,
tradução nossa)
7
. O contexto e a personalidade de um indivíduo, tanto no momento do
registro dessa lembrança quanto no momento de retomá-la, serão, portanto, definitivos para a
transformação dessa lembrança.
Entretanto, reinventar o passado através da lembrança e da imaginação não significa
que os acontecimentos narrados não sejam verdadeiros e que o autor não esteja sendo sincero
ao relatar esses eventos; o que Jean Pouillon propõe ao imaginar o que a memória traz à tona
não é distorcer os fatos, mas, sim, preencher as lacunas deixadas pelo esquecimento: “a
sinceridade consiste em coincidir [...] a cada instante consigo mesmo, a não ficar na esteira da
própria ação, mas também a não lhe passar na frente [...].” (POUILLON, 1974, p. 42), o que
7
No original: “chaque perception du monde extérieur entraîne en nous une impression d’intensité variable,
agréable ou désagréable, chargée donc d’affect.”
45
significa que, ao imaginar o passado, o autobiógrafo deve procurar estar “com” a ação ou
acontecimento relatado, ou seja, reconstruí-lo, e não analisá-lo. Ao analisar o passado, o
autobiógrafo se coloca “por detrás” dos acontecimentos: ele não somente recorda, mas julga
os acontecimentos; isso significa que o indivíduo do presente é um indivíduo diferente em
relação ao do passado, pois, agora, ele pode analisar suas ações em razão de sua lucidez ao
rememorar. A recordação é, desse modo, compatível com a memória involuntária, a qual traz
à tona os acontecimentos que são “imaginados” pelo indivíduo; rememorar, ao contrário, é
analisar o acontecimento trazido pela memória voluntária, e portanto, tem a ver com a
motivação do autobiógrafo ao escrever sobre si mesmo. Ao estar “com” as ões do passado,
o indivíduo volta a “encontrar uma maneira de viver”, enquanto, através das memórias, o
indivíduo é capaz de enxergar suas ações e julgá-las.
Da mesma maneira, tanto na narrativa autobiográfica quanto na narrativa de ficção, o
indivíduo que narra ou o narrador terá um “posicionamento” em relação aos fatos narrados,
como a definição de Pouillon em relação ao estar “com” esses acontecimentos ou ter uma
visão “por detrás” deles. É o que definirá o foco narrativo da obra.
Gérard Genette propõe, em “Frontières du Récit” (1969), uma definição da narrativa
baseada em suas diversas maneiras de se apresentar. Segundo ele, o que se deve levar em
conta para a classificação da narrativa são suas fronteiras, o que a diferencia em seus vários
graus como narração, descrição e discurso. Genette aponta o discurso como a fronteira mais
importante e mais significativa da narrativa, pois, segundo ele, é nessa distinção entre
narrativa e discurso que reside atualmente o conjunto da literatura. Genette realiza essa
distinção de acordo com a objetividade da narrativa e a subjetividade do discurso; a narração,
portanto, estaria interessada em contar uma história, em mostrar como os eventos relatados
aconteceram, enquanto o discurso se preocuparia em contar esses acontecimentos através da
voz e do ponto de vista de uma pessoa. Assim, enquanto a narração se apresentaria,
46
geralmente, em terceira pessoa em um tempo passado, ao discurso caberia a primeira pessoa
e, nele, se entrecruzariam diversos tempos verbais.
No entanto, o autor declara que essas “essências” do discurso e da narração não se
encontram em estado puro em nenhuma das duas formas narrativas; sempre a presença da
narração na forma do discurso e a presença do discurso na narração. Essa distinção, portanto,
se perde para dar lugar à forma como a narrativa é apresentada, de acordo com o “ponto de
vista” em que o narrador dos acontecimentos se coloca, que irá se reportar ao foco narrativo
da obra.
Em Figures III (1972), Gérard Genette demonstra que é ilusório pensar que a
narração, no sentido de mostrar”, pode existir em seu estado puro. Toda narrativa exige um
“contar”, nela está presente a linguagem, que, segundo Genette, “significa sem imitar”, ou
seja, possui a sua própria significação. Além disso, mesmo o “mostrar”, a descrição, possui
um motivo e um ponto de vista que presumem uma escolha, e, portanto, o “mostrar” faria
parte do “contar” através da voz do narrador, e cada variação desse ponto de vista é o que
Genette vai chamar de focalização ou foco narrativo. A focalização, assim determinada por
Genette, será definida em três tipos: focalização zero (ou não-focalização), interna e externa;
no entanto, sua aplicação não implica que ela seja fixa ou única na narrativa, nem que ela seja
característica relativa a um único gênero narrativo; a focalização vai variar de acordo com o
escopo da narrativa.
O que nos interessa, aqui, é a focalização interna, que corresponde à narrativa em
primeira pessoa, em que o cerne da história é o ponto de vista do “herói”, tendo o “eu” como
uma testemunha dos fatos e fator de identificação com o narrador. Em relação à
autobiografia, Genette assinala que a escolha da focalização a ser adotada neste tipo de
narrativa deve levar em consideração a identidade do narrador com o “heróido relato; se o
escritor se decide por centrar-se no presente do narrador que narra as ações do herói do
47
passado, essa relação irá corresponder à designação do foco narrativo que Jean Pouillon
define como visão “por detrás”, que fornece ao narrador um alcance maior às ações desse
herói. Na centralização do foco no passado do herói, a focalização corresponderá à visão
“com” que Pouillon designa como uma visão limitada em razão da identidade narrador-
personagem.
A razão da escolha da focalização, na narrativa autobiográfica e nas narrativas de
memórias, pouco tem a ver com a intenção do autor em dar uma forma à obra para que ela
desempenhe um papel; no caso da autobiografia, a focalização decorrerá da motivação do
autor ao decidir contar seu passado; essa motivação parte, segundo Jean-Philippe Miraux, de
um “estranhamento” de si mesmo, ao qual Georges Gusdorf relaciona a necessidade de
possuir uma consciência de si e de seu lugar no mundo; Miraux também propõe que a
superação desse estranhamento é o próprio percurso da autobiografia, e, por isso, o
autobiógrafo deve retornar às origens para encontrar o “pequeno momento essencial”, o ponto
de partida para a determinação de sua personalidade e de seu futuro (MIRAUX, 1996, p. 25).
O percurso da autobiografia se daria, portanto, no “ordenar dos fatos”, segundo Miraux, à
escolha do que vale a pena ser dito e do que faz parte desta motivação da escrita, que revelará
a consciência do “eu” que escreve.
As escritas do “eu” não possuem uma motivação idêntica; segundo Gusdorf, trata-se
do conhecimento do eu através da escrita que parte do fim: o indivíduo do presente contará
quem foi no passado, e, assim, ele será a “a medida e o critério” do que escreve (GUSDORF,
1991, p. 127). É por isso que Gusdorf assinala que, apesar de ser narrada no passado, a
autobiografia é escrita no presente. No entanto, voltar ao passado, às origens, não determina
uma progressão cronológica dos acontecimentos descritos, pois o tempo da autobiografia é
“um momento de uma vida” (GUSDORF, 1991, p. 311), que reside na memória do passado e
que será trazido à tona a fim de elucidar o presente. Ao voltar-se para o passado, o escritor
48
autobiógrafo não procura retransmitir exatamente os acontecimentos vividos, ou, segundo
Gusdorf, a transferência do vivido não é o simples decalque de uma manifestação imediata
da consciência” (GUSDORF, 1991, p. 41); por se utilizar da imaginação para reconstruir as
lembranças, a escrita do “eu” será mais do que uma representação dos fatos do passado, ela
requer uma transformação da memória em outra realidade que possuirá características
próprias, definidas pela autonomia que o sujeito reivindica ao escolher o modo de narrar sua
existência.
A focalização, portanto, ao ser determinada por uma “escolha” da maneira de narrar,
determinará, por sua vez, o estilo da autobiografia. Segundo Jean Starobinski, o estilo da
autobiografia será o ato do indivíduo, e se afirmará na medida em que existam as condições
para que se realize a escrita autobiográfica: a narrativa verídica de uma vida. Assim,
Starobinski sugere que o estilo autobiográfico depende da intenção do autor, pois, sendo a
“forma” sobre um “fundo”, ele terá um valor autoreferencial capaz de afirmar a autenticidade
do escritor autobiográfico.
A autobiografia “supõe a presença do eu”, segundo Gusdorf (GUSDORF, 1991,
p.122); de um eu que possui a si mesmo como objeto de análise e como personagem da
narrativa, mas, ao mesmo tempo em que a identificação do sujeito da narrativa com o
sujeito narrado, não se pode afirmar que essa identidade se de maneira tal que o “eu” que
narra seja substituído pelo “eu” da narrativa; mesmo se a intenção do retorno ao passado seja
a compreensão de si mesmo, “o eu escrito [...] é a elaboração em forma de discurso de uma
realidade impalpável e irredutível” (GUSDORF, 1991, p. 48), que pressupõe a atividade
autobiográfica como “reformativa”, pois, ao buscar uma verdade, a verdade de si mesmo, o
escritor não encontra uma lembrança intocada e totalizada, mas a memória ameaçada pelo
esquecimento, que deve ser reconstruída. A reconstrução da memória do passado será,
portanto, “fiel” a uma realidade presente (STAROBINSKY, 1970, p. 259), focalizada no “eu”
49
do passado, responsável por aquilo que o “eu” do presente se tornou.
Ao mesmo tempo, Miraux demonstra que, se a autobiografia focalizar-se na
exterioridade, a motivação a ela inerente terá de se “reapoderar do mundo perdido para
compreender o mundo presente” (MIRAUX, 1996, p. 54); desse modo, ao voltar-se para o
interior e para o exterior de si, o escritor autobiográfico se caracteriza, também, como uma
testemunha dos acontecimentos narrados o que configura o duplo aspecto da autobiografia.
A autobiografia, portanto, por ser um produto do “eu” que tem algo a dizer sobre si
mesmo e sobre o mundo em que habita, será construída no presente através do passado, mas
em direção a um futuro, e, assim, também poderá ser entendida como um produto do contexto
histórico de quem a escreve, cuja rememoração da realidade vivenciada contribuirá para uma
nova visão da história.
2.2 O foco narrativo em Antes que Anoiteça: a história de uma revolução
A autobiografia intitulada Antes que Anoiteça (Antes que Anochezca, 1992), do escritor
cubano Reinaldo Arenas, é o relato de uma vida em meio a um evento histórico que
transformou a história de Cuba: a Revolução Cubana. Nessa obra, Arenas aborda não apenas
as suas memórias dos acontecimentos dessa época, mas proporcionará uma outra visão da
Revolução e do regime instaurado em Cuba a partir de 1959, encabeçado por um de seus
líderes, que ficou no poder até pouco tempo: Fidel Castro
8
. Antes que Anoiteça mostra que
esses acontecimentos foram pontos-chave para a formação de Arenas como indivíduo e como
escritor.
Pode-se dizer que Antes que Anoiteça foi escrita duas vezes, e, por isso, ela antecedeu
duas noites: a noite sem luz que impossibilitava o autor de escrever quando estava escondido
no parque Lênin, em Havana, durante os três meses que precederam sua prisão, em 1974, e a
8
Fidel Alejándro Castro Ruz (1926 – Cuba), líder do movimento 26 de julho e da Revolução Cubana de
1959, desde então chefe do governo cubano. Fonte: GOTT,R. Cuba: uma nova história, 2004.
50
noite de sua vida quando estava exilado nos Estados Unidos, entre 1980 e 1990 a morte.
A motivação para Reinaldo Arenas ter iniciado sua autobiografia no parque voltou a se
manifestar no exílio: ele precisava contar a sua história para contar a história de Cuba, que,
para ele, começou com a Revolução de 1959, e, assim, deixar o seu testemunho sobre um
acontecimento histórico que teve, sobre ele, mais do que uma influência, esse acontecimento
foi responsável pelo curso indesejado que tomou a sua vida.
A introdução, intitulada “O fim”, é o início da autobiografia, que quase se conjuga com o
fim do próprio escritor; assim, ao narrar sua situação no momento em que inicia a escrita
autobiográfica, Arenas nos revela os acontecimentos que o motivaram a contar sua vida:
doente terminal de Aids, sua morte se aproximava e era preciso terminar sua obra. Em
seguida, o escritor retorna à sua infância, que é narrada, basicamente, por temas, épocas e
acontecimentos que ele considera relevantes tanto para compreender a si mesmo quanto para
revelar ao leitor traços de sua personalidade no presente. Assim, a temporalidade de Antes
que Anoiteça seguirá certa cronologia até atingir o fim outra vez: o exílio nos Estados
Unidos, e, portanto, sua narração será cíclica.
Na Introdução, Arenas antecipa do que sua obra autobiográfica tratará ao abordar as
razões que o levaram a isso. Reinaldo Arenas nasceu em 1943, na pequena aldeia de Águas
Claras, na província cubana de Oriente. Ao retratar sua infância no campo e a pobreza da
região, ele pretende mostrar a situação cubana antes e durante a ditadura de Fulgêncio
Batista
9
, no poder como ditador desde 1952. Podemos perceber, com sua narrativa, que
alguns fatos da infância o marcaram profundamente, os temas que Arenas escolhe abordar
nos primeiros capítulos da narrativa são apresentados, basicamente, sem que ele siga uma
cronologia aparente, apesar de percebermos uma sequência temporal na autobiografia como
um todo; são elementos que o seguiram até a vida adulta e que se manifestarão ao longo de
9
Rúben Fulgêncio Batista y Zaldivár (1901-1973), presidente cubano de 1940 a 1944; ditador de 1952 a
1959, deposto pela Revolução Cubana. Fonte: GOTT, R. 2004
51
toda a narrativa. No entanto, enquanto alguns fatos, a partir de sua juventude, são abordados
de acordo com o que surge na memória, os fatos da infância, por estarem distantes, são
conduzidos a uma espécie de comparação com a sua vida adulta. Ao iniciar a narrativa de sua
juventude, sua autobiografia adquire uma estrutura um pouco diferente daquela adotada
quando narra a infância; a narrativa será cronológica e suas idéias passarão a ser apresentadas
com mais clareza ao lado de uma consciência quase plena sobre sua homossexualidade,
manifestada desde a infância, e a situação social e política de Cuba .
Antes que Anoiteça segue esse curso até a vida adulta de Arenas, que corresponde ao
período de transformação do regime da Revolução em socialista segundo os moldes do
modelo político da União Soviética. Neste período, Arenas residia em Havana e havia
iniciado ativamente sua vida sexual e literária; portanto, ele percebia que, dado o caminho
que a Revolução tomou, ele começava a ser visto, assim como outros intelectuais e
homossexuais, como um possível inimigo. Em 1963, ele lança seu primeiro e único romance
publicado em Cuba, Celestino Antes del Alba, fato que desencadeou certa vigilância do
Estado em relação a ele, comprovado pelo impedimento de publicação de seu romance
seguinte, El Mundo Alucinante (1966), lançado anos mais tarde, na Espanha, e que foi um dos
motivos de sua prisão, em 1974. Nesse ponto, a autobiografia de Arenas torna-se, portanto, o
reflexo de suas inquietações ao rememorar esses fatos: ela perde seu caráter cronológico e
adota uma estrutura na qual se entremeiam lembranças, fatos históricos de Cuba e períodos de
reflexão.
O narrador de Antes que Anoiteça, movido por sua situação presente e pelos sentimentos
que surgem ao rememorar, alternará o tipo de focalização frente a alguns acontecimentos e
situações tanto em relação à sua vida pessoal quanto em relação ao contexto histórico e
político no qual está envolvido. Portanto, a focalização da obra será interna, partindo do fato
de que identificação entre narrador e personagem principal; porém, o foco narrativo não
52
corresponderá somente à “visão com” que Jean Pouillon caracteriza como se a história fosse
narrada pelo personagem no presente, mas, também, à visão por detrás” dos fatos narrados,
colocando-se como um indivíduo diferente daquele do passado, que, ao trazer à tona os
acontecimentos, procura analisá-los.
Essa perspectiva que o narrador de Antes que Anoiteça adota reflete o propósito principal
do sujeito autobiográfico ao iniciar sua narrativa, segundo Gusdorf: a procura de si mesmo
por meio do retorno às origens, que, no caso de Reinaldo Arenas, é a transformação daquilo
que “eu fui” naquilo em que eu me tornei”. Além da busca pessoal, a autobiografia do
escritor cubano reflete uma outra motivação: ao traçar o caminho desse sujeito, de sua
infância às proximidades da morte na vida adulta, ele procura colocar o contexto de sua
existência como um dos principais agentes de sua formação como indivíduo. Arenas parte,
portanto, de suas origens para dar forma ao sujeito autobiográfico:
Eu tinha dois anos. Estava nu, de pé; inclinava-me sobre o chão e passava a
língua na terra. O primeiro sabor de que me lembro é o sabor da terra.
Comia terra com minha prima Dulce Ofélia, que também tinha dois anos.
Era um menino magro, mas com uma barriga enorme devido às lombrigas
que tinham crescido no estômago de comer tanta terra. Comíamos a terra do
curral da casa; o curral era o lugar onde os animais dormiam; quer dizer, os
cavalos, as vacas, os porcos, as galinhas, as ovelhas. O curral ficava
encostado na casa. (ARENAS, 1992, p. 17)
10
.
Este trecho, retirado da autobiografia de Arenas, mostra que, ao descrever essas
memórias, o autor recorda, ele descreve o que passa pela memória, o que “vê”. Aqui não
prevalece a análise, ele se coloca no lugar daquele menino de dois anos, o que aquele
menino vê, sente o que ele sente; nesse caso, o foco narrativo de Antes que Anoiteça
10
No original: “Yo tenía dos años. Estaba desnudo, de pie; me inclinaba sobre el suelo y pasaba la lengua
por la tierra. El primer sabor que recuerdo es el sabor de la tierra. Comia tierra con mi prima Dulce Ofélia, quien
también tênia dos años. Era un nino flaco, pero con uma barriga muy grande debido a las lombrices que me
habían crecido en el estómago de comer tanta tierra. La tierra la comíamos en el rancho de la casa; el rancho era
el lugar donde dormían las bestias; es decir, los caballos, las vacas, los cerdos, las gallinas, las ovejas. El rancho
estaba a un costado de la casa.” (ARENAS, 2006, p. 17).
53
corresponde à “visão com” de Jean Pouillon, que identificação entre o eu do presente e
o eu do passado, confirmada pela descrição que ele é capaz de fazer do que revê: ao lamber o
chão, ele sente o sabor da terra e vê o que está em volta.
No entanto, mesmo em se tratando da memória afetiva, que, segundo Jean-Yves e Marc
Tadié, pode ser mais precisa, o escritor reconstrói essa lembrança ao relatá-la, e, desse modo,
o cenário de sua infância é uma restauração da memória. Essa restauração se no nível do
sensível: a relação do corpo da criança com a terra, e o seu sabor; uma evidente ênfase
num aspecto primitivo da vida do menino, seja porque a lembrança é da ordem do sensorial
(o gosto da terra, o primeiro sabor de que o homem se lembra), seja pela repetição poliptótica
(diferentes conjugações do verbo, diferente determinação do substantivo) de comer e terra
(“comia terra”, “comer tanta terra”, “comíamos a terra”), seja pela identificação com os
animais do curral. Por outro lado, a justaposição das orações coordenadas no final do trecho,
marcadas pela repetição da palavra curral, apresenta uma progressão que revela tanto a
miséria física do menino quanto a miséria social do contexto em que está inserido: o menino
come a terra do curral, a terra dos animais, e o curral e a casa são “encostados”.
Para explicitar esse contexto em que estava inserido, Reinaldo Arenas toma às vezes o
papel do narrador extradiegético, segundo Genette, que corresponde à “visão por fora” de
Pouillon:
Minha mãe era uma mulher muito bonita, muito sozinha. Conheceu
somente um homem: meu pai. Desfrutou de seu amor apenas alguns
meses. Meu pai era um aventureiro: apaixonou-se por minha mãe, pediu
sua mão a meu avô e depois de três meses a deixou. Minha mãe passou a
morar na casa de seus sogros; ali esperou durante um ano, mas meu pai
nunca mais voltou. Quando eu tinha três meses, minha mãe voltou para a
casa de meus avós; ia comigo; o fruto de seu fracasso. (ARENAS, 1992,
p. 17)
11
.
11
No original: “Mi madre era una mujer muy bella, muy sola. Conoció sólo a un hombre: a mi padre.
Disfrutó de su amor sólo unos meses. Mi padre era un aventurero: se enamoro de mi madre, se la ‘pidió’ a mi
abuelo y a los três meses la dejó. Mi madre vivió entonces en la casa de sus suegros; allí espero durante un año,
pero mi padre nunca regresó. Cuando yo tênia três meses, mi madre volvió para la casa de mis abuelos; iba
conmigo; el fruto de su fracaso.” (ARENAS, 2006, p. 17)
54
Esse trecho não faz parte de sua memória, ele não pode se lembrar de um fato de quando
ainda não havia nascido, ou de quando ainda era um bebê. Ao assumir, nesse caso, o papel de
um narrador que possui uma visão de fora dos fatos narrados, Arenas procura contextualizar o
mundo que o rodeia; a importância da contextualização, para o autor, vem de sua motivação
ao propor-se a escrever a sua autobiografia. Ao analisar seu nascimento, Arenas se como
fruto de um fracasso, marcado pela aventura (do pai), pela solidão (da mãe) e pela falta de
amor (o desaparecimento do pai, a inexistência de outros homens na vida da mãe). Esses
aspectos – aventura, solidão, busca do amor – são recorrentes no percurso biográfico do autor
e no discurso que elabora sobre si mesmo, transpostos muitas vezes para o próprio percurso
histórico dos cubanos. Por outro lado, é também pela ótica do fracasso, de uma vida
fracassada e ressentida, que Arenas expõe a sua história (e consequentemente a de Cuba).
Reinaldo Arenas busca não apenas uma elucidação dos acontecimentos históricos em
Cuba e de suas ações diante deles, ele propõe narrar sua vida como um modo de mostrar o
que há além dos fatos e, para isso, a variação no foco narrativo se dará na medida em que sua
intenção volta-se para o contexto à sua volta, para os fatos vividos e para a análise de si
próprio:
Talvez por ser solitário e atordoado, e querer ao mesmo tempo ser a estrela
de uma peça para minha satisfação própria, comecei sozinho a oferecer-me
espetáculos diferentes dos que presenciava todos os dias. Consistiam, entre
outros, em uma série de canções infinitas que eu mesmo inventava e atuava
pelo campo. Tinham uma letra cafona e sempre delirante; além disso, eu
mesmo as interpretava como peças teatrais em meio a cenografias solitárias.
(ARENAS, 1992, p. 37)
12
12
No original: “Tal vez por ser solitario y atolondrado, y querer a la vez jugar un papel estelar para
satisfacerme a mí mismo, comencé yo solo a ofrecerme espectáculos completamente distintos a los que todos los
días presenciaba. Consistieron, entre otros, en uma serie de infinitas canciones que yo mismo inventaba y
escenificaba por todo el campo. Tenían uma letra cursi y siempre delirante; además,yo mismo las interpretaba
como piezas teatrales en medio de escenografias solitárias.” (ARENAS, 2006, p. 37)
55
Arenas apresenta a criança que foi como um reflexo reduzido do homem que foi: um ser
solitário, abandonado à terra, atordoado, perdido, exilado do convívio familiar e social; um
ser que encontra satisfação na imaginação, na invenção de espetáculos para si próprio,
criações que não são compartilhadas. A idéia de fracasso insinua-se novamente na auto-ironia
presente na “letra cafona e sempre delirante”: o menino configura-se como uma espécie de
clown canhestro, que representa para si próprio e tem como único público, irônico, o
homem e escritor em que se tornou.
Pode-se dizer, portanto, que Arenas retorna às origens ao narrar sua infância a fim de
reconstruir sua identidade; para ele, é importante registrar suas raízes e os valores que farão
parte dele como indivíduo durante todo o curso de sua vida. Por ter nascido no campo, em
meio à pobreza em uma família composta por muitas pessoas, e principalmente de mulheres
abandonadas por seus maridos, o autor declara ter experimentado um sentimento de
liberdade, tanto em relação ao desenvolvimento de sua personalidade quanto de sua
sexualidade. No entanto, trata-se aqui de uma liberdade relativa, o modo como o escritor
encara a própria solidão e o peso de representar para a mãe o retrato de seu fracasso. Em
suma, a liberdade experimentada por Arenas é fruto do sentimento de abandono, o que,
quando mais velho, influenciará sua personalidade e suas relações. Dessa maneira, as
lembranças escolhidas ou trazidas à tona pela memória da infância de Reinaldo Arenas são
inerentes à formação do indivíduo que narra no presente.
As influências políticas de seu avô contra a ditadura de Batista, a gravidade da situação
econômica que obrigou sua família a vender as terras e mudar-se para uma pequena cidade e
a privação da “liberdade” do campo fizeram com que Arenas, então com quinze anos de
idade, fugisse de casa para se unir aos rebeldes. Em um primeiro momento, o apoio à
Revolução, principalmente em relação às medidas políticas e sociais com as quais Arenas foi
beneficiado. A desconfiança de que algo não havia sido revelado e a sensação de não se
56
encaixar nos ideais do homem revolucionário surgem durante a escola técnica, em que,
segundo seus preceitos, a homossexualidade não era permitida, condição determinante para o
autor, que se havia descoberto homossexual desde a infância. Após uma tentativa frustrada de
regeneração de sua “condição”, Reinaldo Arenas passa a enxergar o regime revolucionário de
outra maneira:
Por que a imensa maioria do povo e os intelectuais não se deram conta de
que começava outra vez uma nova tirania, ainda mais sangrenta que a
anterior? Talvez nos déssemos conta sim, mas o entusiasmo de saber que
vivíamos agora numa revolução, a qual havia derrubado uma ditadura, e que
chegara a hora da vingança, todos esses sentimentos eram superiores às
injustiças e aos crimes que estavam sendo cometidos. (ARENAS, 1992, p.
71)
13
Este trecho demonstra que o que a Revolução proporcionava ao escritor no início da
implantação de seu governo era ainda o reflexo de seus ideais, tanto que a homossexualidade,
algo que fazia parte inteiramente de seu ser, se lhe apresentava, em um primeiro momento,
como algo que poderia ser alterado, e até descartado. No entanto, o narrador do presente
interfere na visão dos fatos ao antecipar sua opinião sobre o governo que se formava. Além
disso, vale ressaltar uma questão presente nos trechos anteriormente citados: o contraste,
visto mesmo como incompatibilidade, entre aquilo que é da ordem do sensível, do
estritamente individual – neste caso, a orientação homossexual reconhecida desde muito cedo
e aquilo que é da ordem do inteligível, que toca o social e se converte em recalque,
opressão e tirania.
Nesse momento de Antes que Anoiteça, a focalização da narrativa estabelece uma
configuração muito mais elucidativa do que o curso baseado na memória que havia seguido
13
No original: “¿Por qué la inmensa mayoría del pueblo y los intelectuales no nos dimos cuenta de que
comenzaba otra vez una nueva tiranía, aún más sangrienta que la anterior? Quizá nos dimos cuenta, pero el
entusiasmo de saber que se vivía ahora en una revolución, que se había derrocado una dictadura y que había
llegado el momento de la venganza eran superiores a las injusticias y a los crímenes que se estaban
cometiendo.” (ARENAS, 2006, p. 70)
57
até então: a narrativa, que antes se centrava no indivíduo do passado, suas sensações,
pensamentos e na própria construção desse eu como agente da narrativa, passa a representar o
que para o autor reflete o pensamento coletivo. Além disso, torna-se importante, para
Reinaldo Arenas, resgatar a característica paradoxal que o contexto da Revolução
representava segundo o seu ponto de vista. Para o autor, a Revolução, em seu início,
representava mais do que a consagração dos ideais de um povo que, segundo ele, vinha “de
incessantes ditaduras, de incessantes abusos, de incessantes atropelos” (ARENAS, 1992, p.
81), ela lhe proporcionava uma vingança aos infortúnios que sofreu sua família durante a
ditadura de Batista. Com o estabelecimento do regime de Fidel Castro e sua ligação com a
União Soviética, a qual acabava por definir Cuba como um país socialista, a transformação
nas atitudes do governo, de acordo com o autor, acarretou seu posicionamento em conflito
com o regime: a perseguição aos homossexuais e intelectuais que não defendiam os ideais
revolucionários em suas obras acabava por torná-lo persona non grata na Cuba socialista de
Fidel Castro.
Esse posicionamento do regime cubano representa para Arenas a queda de seus ideais,
que depositava na Revolução a esperança na transformação de Cuba, o que acarreta um
sentimento de encarceramento que se caracteriza como um sentimento de exílio em seu
próprio país, que pode ser superado pelo exílio de fato, que parece impossível em um
primeiro momento, e pela reclusão em sua literatura.
Esse sentimento será representado, em Antes que Anoiteça, tanto explicita quanto
implicitamente. Retratado pelo desejo do escritor em sair do país e, depois, através de sua
constatação, no exílio, do fato de que não poderia viver fora de seu país, Reinaldo Arenas se
dará conta da necessidade de narrar suas memórias, que adquirirão, para ele, um sentido de
evasão da situação presente em que se encontra (o exílio, dentro e fora de Cuba), ao mesmo
tempo em que representará um sentimento de libertação do encarceramento que percorre seu
58
passado até seu presente, no qual o encarceramento irá permanecer como algo que o impele a
evadir-se desse presente e registrar seu testemunho:
Assim transcorria minha vida no início dos anos de 1980; rodeado de
espiões e vendo como minha juventude me escapava sem nunca ter podido
ser uma pessoa livre. Minha infância e minha adolescência transcorreram
sob a ditadura de Batista e o resto da minha vida sob a ainda mais férrea
ditadura de Fidel Castro; jamais havia sido um verdadeiro ser humano em
todo o sentido da palavra. Devo confessar que nunca me recuperei da
experiência do cárcere; creio que nenhum preso se recupera disso. Vivia
cheio de terror e com a esperança de poder escapar daquele país algum dia.
(ARENAS, 1992, p. 295)
14
.
O foco narrativo de Antes que Anoiteça será, portanto, interno e variável, pois se dará de
acordo com a motivação do autor ao escolher os fatos a serem narrados. Além disso, veremos
se apresentar um narrador que, por vezes, estará diretamente relacionado com os fatos
narrados, mas que, também, procura esclarecer algumas questões que considera relevantes
para a compreensão de seu presente, tanto para si mesmo quanto para o leitor. Essa
focalização variável reflete o estado de inquietação e de urgência em que se encontra o
escritor cubano ao registrar seu passado em vista da perspectiva da morte. Deste modo, Antes
que Anoiteça estabelece o reconhecimento da queda do que, antes, representava, para Arenas,
a consolidação de seus ideais, e, com isso, seu relato conjugará a presença de um “eu”
encarcerado em seu passado e em sua própria narrativa, ao mesmo tempo em que proporciona
a possibilidade de evasão desse sentimento do “eu” do passado agora no presente.
O encontro entre o eu” do presente com aquele que reside no passado, propiciado pela
narrativa de Antes que Anoiteça, que se realiza através da rememoração e reconstrução desse
passado, se dará em função de resgatar a realidade que, segundo Gusdorf (1991), se apresenta
14
No original: “Así transcurría mi vida a principios del año de1980; rodeado de espías y viendo cómo mi
juventud se escapaba sin haber podido nunca ser uma persona libre. Mi infancia y mia adolescencia habían
transcurrido bajo la dictadura de Batista y el resto de mi vida bajo la aún más férrea dictadura de Fidel Castro;
jamás había sido un verdadero ser humano en todo el sentido de la palabra. Debo confesar que nunca me
recuperé de la experiencia del cárcel; creo que ningún preso se recupera de eso. Vivía lleno de terror y con la
esperanza de poder escaparme de aquel país algún día.” (ARENAS, 2006, p. 295)
59
“impalpável” no presente, o que, no caso de Arenas, se configura como um real formulado
por meio da própria escrita da narrativa e que, portanto, transita entre a memória do passado e
a constatação de que a existência desse “eu” é utópica no presente. Dessa maneira, o sujeito
do presente é reconstruído através da narrativa baseada no sujeito do passado, que, por sua
vez, refletirá o sentimento de encarceramento experimentado por ele durante sua existência
em Cuba e no próprio exílio.
O sentimento de encarceramento direciona o sujeito autobiográfico a buscar um local de
evasão que lhe proporcionará a liberdade de existir de acordo com seus princípios e sua
individualidade, que, em um primeiro momento, apesar de a literatura se configurar como
esse local de evasão e libertação, o exílio representa, ainda, a possibilidade de liberdade. No
entanto, a liberdade no desterro se apresenta como ilusória a partir do momento em que o
sujeito percebe que o exílio afirmará ainda mais o sentimento de não pertencer a nenhum
lugar além daquele no qual ele pode existir como indivíduo, que, para Reinaldo Arenas,
consiste em ser um cubano, homossexual e escritor. Além disso, o encarceramento se
configurará, no exílio, também através da iminência da morte, pois, além de encontrar-se
tolhido de suas raízes, o que enfatizava o sentimento de indivíduo encarcerado em sua
literatura, o desenvolvimento da AIDS lhe proporcionava uma urgência em registrar suas
memórias frente à aproximação do fim, que representa, também, o fim de sua luta.
Deste modo, o narrador de Antes que Anoiteça refletirá em seu discurso aquilo que se
configura para si próprio como a catástrofe; motivado pela queda de seus ideais que
inicialmente convergiam com os da Revolução, o sujeito autobiográfico se coloca como a
testemunha de tais eventos, que se revelam através do ponto de vista de um sobrevivente, o
que caracteriza sua obra literária como autobiográfica ao mesmo tempo em que ela representa
um documento histórico de cunho testemunhal.
60
2.3 O papel do foco narrativo na narrativa cinematográfica: a adaptação fílmica
Um filme, por mais documental que ele pareça, sempre contará uma história. Concebido
“como um meio de registro”, segundo Jacques Aumont (1995, p. 89), o encontro do cinema
com a narrativa se deu sob rias razões: além da significação inerente a uma imagem ou
objeto, todo “mostrar” implica um contar, pois ele estará inserido em um determinado
contexto; além disso, para se afirmar como arte, o cinema deveria ser capaz de “contar
histórias ‘dignas de interesse’” (AUMONT, 1995, p. 91). Assim, para desenvolver uma
característica narrativa, sua interação com as artes pré-estabelecidas, em particular a
literatura, foi crucial. Segundo Gerald Mast, em Literature and Film (1982), a razão da
análise da narrativa cinematográfica se constituir a partir dos valores literários, além da
imposição de uma forma de arte existente, vem do motivo de que a história da narrativa
fílmica parte sempre de um “texto”, sendo ela uma adaptação de uma obra literária ou não;
além disso, como obra de arte, os filmes são análogos às formas narrativas textuais como
romances, ensaios, peças e poemas, pois prevêem uma seqüência, temporalidade e conteúdo
elaborados sob uma forma e um estilo (MAST, 1982, p. 285). No entanto, o cinema
desenvolverá, também, características próprias e inerentes apenas à arte cinematográfica.
Em relação à adaptação de uma obra literária por uma obra cinematográfica, Gerald Mast
assinala que os valores literários da obra em questão serão recuperados pela adaptação pelas
mesmas razões que o cinema fez sua aproximação com a literatura. Segundo ele, o respeito
pela integridade do texto original “obriga” o filme a manter o “espírito” da obra, mas, ao
mesmo tempo, concentrar as características intrínsecas à obra cinematográfica. Assim, na
adaptação fílmica, o que deverá ser levado em conta não é sua fidelidade ao original, mas,
principalmente, a “interpretação” que o diretor ou roteirista faz da obra de procedência que,
por sua vez, transforma o produto fílmico em uma obra original. Portanto, o que Gerald Mast
aponta, em relação à adaptação cinematográfica, é que o conteúdo da obra (o que ele define
61
como a intenção do autor, os critérios sociais e psicológicos da obra) deve permanecer
intocado, enquanto as palavras são trocadas por imagens e sons (MAST, 1982, p. 281).
A narrativa no cinema, ao contrário da literatura, será mais complexa na medida em que
“compreende imagens, palavras, menções escritas, ruídos e música” (AUMONT, 1995,
p.106) e, portanto, ela compreenderá uma forma enunciativa que “se apresenta como
discurso” (AUMONT, 1995, p. 107) por implicar um foco narrativo e um receptor, e deste
modo, instâncias narrativas que, correspondendo ao diretor, designarão “o lugar abstrato em
que se elaboram as escolhas para a conduta da narrativa e da história” (AUMONT, 1995, p.
111), que Aumont diferencia entre “real” e “fictícia”: a primeira leva em conta a organização
fílmica e se estabelece fora de quadro, enquanto a segunda está relacionada com os
personagens da narrativa, que, dessa maneira, assumirão o papel de contar a história.
No cinema, entretanto, assim como na narrativa literária, pressupõe-se um foco narrativo
que definirá a perspectiva da narrativa, o “modo” de contar. Da mesma forma que o texto
literário, o narrador ou instância narradora da narrativa cinematográfica poderá se apresentar
de diversas maneiras. Ao tratar do foco narrativo, André Gaudreault, em El relato
cinematográfico (1995), se utiliza da sistematização de Genette sobre a focalização para a
análise do foco cinematográfico; baseado nessa sistematização, a focalização no cinema pode
aparecer como zero, interna (fixa e variável) e externa. Desse modo, a focalização zero
corresponde ao narrador onisciente, a interna fixa a um personagem, a interna variável ao
ponto de vista de vários personagens e a externa será relativa ao que descobrimos no decorrer
da narrativa, como se a acompanhássemos no presente. Porém, Gaudreault assinala que a
focalização interna no cinema se estabelecerá a partir da correspondência ou não do que o
personagem vê, ao contrário do que ocorre na narrativa literária, na qual a focalização interna,
como ponto de vista cognitivo, corresponderá ao que ele sabe ou conta, e, assim, podemos
entender que a narrativa cinematográfica se utilizará das imagens (e, na maior parte das
62
vezes, também do som) para a construção de seu “texto”, e é isso que devemos levar em
conta para a análise do foco narrativo. Portanto, a focalização da narrativa cinematográfica
compreenderá a “ocularização”, relativa à visão do personagem e a “auricularização”, relativa
ao que ele escuta, além da focalização cognitiva.
Frente à focalização cinematográfica apresentada acima, Mast chama a atenção para
alguns problemas em se filmar uma obra literária. Em primeiro lugar, enquanto a duração da
leitura não influencia na estrutura da obra, o cinema utiliza de um período médio de duas
horas apenas, portanto, a dificuldade residirá na adaptação do volume da obra caso este for
inerente à sua concepção; ademais, o estilo e a linguagem da obra se perdem, além da
dificuldade em representar conceitos abstratos, fluxos de pensamento ou digressões sobre
algum assunto. No caso da adaptação de uma obra autobiográfica ou baseada em fatos, reais
ou históricos, Gerald Mast assinala que o filme pode ser, ao mesmo tempo, mais verdadeiro
que a obra literária e autobiográfica ou mais falso: a veracidade de uma imagem é menos
contestável do que sua forma verbal, no entanto, a montagem que o cinema exige e todo o
processo de filmagem pode remeter à falsa construção de uma realidade. Mast defende essa
hipótese voltando à valorização da literatura como arte pré-existente ao cinema, em que a
estrutura verbal nos é mais familiar; além disso, o fato de o cinema ser uma arte mais
contemplativa do que a literatura, porque nos envolvemos mais profundamente com a leitura
de um livro, faz com que o cinema resida, para a maioria, como uma arte das massas, e que
dessa maneira tem o papel de entreter e não de representar a realidade.
Além do mais, o filme de uma autobiografia não será uma autobiografia, que seu autor
não se filmará a si próprio; ele pode parecer uma cine-biografia ou mesmo um filme de
ficção, e, portanto, o que poderá ser mantido da obra original será seu conteúdo e não sua
forma. Em relação ao foco narrativo, uma narrativa autobiográfica prevê uma identificação
entre o narrador e o personagem; quanto a esse ponto, o cinema poderá fazê-lo através da
63
ocularização interna ou, mesmo, a partir de interferências de um narrador extradiegético,
como o eu do presente relatando seu passado, ou, ainda, através de flashbacks que podem
representar uma rememoração dos fatos que serão contados. No entanto, nem mesmo uma
autobiografia sepura e totalmente construída a partir de um único foco, nela se intercalarão
o contar, o mostrar, fatos e recordações, além de outras vozes. O mesmo acontecerá com a
narrativa cinematográfica em se tratando ou não de uma adaptação.
2.4 Antes do Anoitecer: entre a adaptação e uma nova história
Dez anos após o suicídio do escritor cubano Reinaldo Arenas, em 1990, na cidade de
Nova York, o diretor americano Julian Schnabel lançou Antes do Anoitecer (2000), uma
adaptação fílmica da autobiografia de Arenas. A construção da obra cinematográfica levou em
consideração tanto a estrutura autobiográfica da obra do escritor cubano quanto os
acontecimentos relatados; porém, em se tratando de uma adaptação, Antes do Anoitecer
apresentará elementos que não fazem parte da narrativa de Antes que Anoiteça, configurando-
se não apenas como a adaptação fílmica da autobiografia, mas como uma obra independente,
de características próprias.
Schnabel procura apresentar uma configuração do foco narrativo que leve em conta tanto
o narrador autobiográfico quanto seu próprio ponto de vista em relação à obra de Arenas, o
qual corresponderá ao ponto de vista da “câmera”, ou o que chamamos, anteriormente, de
focalização zero, aquela que procura “mostrar” os acontecimentos como se a história se
contasse sozinha. A presença do narrador autobiográfico se dará de modo a construir a
narrativa cinematográfica a partir de dupla focalização, atestando o ponto de vista do
narrador-personagem da autobiografia além de um segundo narrador, cujo papel será o de
intermediar o relato do próprio Reinaldo Arenas em sua autobiografia, (representado, agora,
na adaptação fílmica), com outros discursos: o de “testemunhas” que vivenciaram os
64
acontecimentos relatados em sua autobiografia, além do discurso da história oficial em
relação à Revolução Cubana.
Dessa maneira, o filme de Scnabel assume um caráter que tanto oscila entre o alegórico e
o irônico, quanto assume uma tentativa “fiel” de representação daquilo que ele considera real
para Arenas; a estrutura do foco narrativo se dará, assim, de acordo com a característica que a
narrativa procura apresentar: documental, ficcional (que pode representar sentimentos e fluxo
de pensamento) e autobiográfica, com a presença de voz em off. Antes do Anoitecer se
configurará dessa maneira por não ser possível uma adaptação de uma obra literária para o
cinema manter, seja ela de ficção ou não, uma estrutura exatamente similar àquela. No
entanto, em Antes do Anoitecer, o diretor procura se ater à cronologia apresentada em Antes
que Anoiteça e à narrativa do sujeito autobiográfico, o que revela uma intenção de resgatar a
motivação original da autobiografia do escritor cubano, ao mesmo tempo em que cria uma
nova narrativa a partir do percurso da vida de Arenas.
Julian Schnabel não se atém somente à autobiografia de Reinaldo Arenas; ele recupera
elementos de outras obras do autor que complementam a narrativa cinematográfica que ora
exercerão a função de substitutos de outros elementos da história original e ora funcionarão
como representativos de situações e sentimentos cuja compreensão ficaria comprometida se
representada por meio de uma voz em off, ou, ainda, se tornariam cansativos se dependessem
de uma seqüência explicativa. Além disso, o diretor ainda contrapõe filmagens de fatos
históricos que correspondem a alguns relatados por Arenas. Assim, Antes do Anoitecer é
construído a partir de diversas representações sobre a autobiografia de Reinaldo Arenas, sua
vida e obra, além da situação sócio-política cubana partindo de um ou mais pontos de vista
individuais.
A narrativa cinematográfica alcança os diferentes aspectos apresentados em Antes que
Anoiteça através da variação de focalização, que proporciona tanto o ponto de vista de
65
Reinaldo Arenas quanto o ponto de vista de outros sobre essa narrativa, além de apresentar
sua própria narrativa, baseada na interpretação do diretor sobre a obra. Dessa maneira, a
representação da realidade e dos sentimentos que experimentou o escritor torna-se possível e,
portanto, possibilita, também, resgatar o contexto que motivou as suas ações e a escrita de sua
autobiografia.
Descrita através de diversos elementos que tanto correspondem aos fatos que povoaram
sua infância, como análise dos próprios eventos, a narrativa dessa primeira fase da vida de
Arenas se apresentará difusa entre focalizações em diferentes pontos, o que obrigou a
adaptação fílmica da obra a desenvolver uma forma de representação que considerasse a
noção da realidade que pertence ao sujeito da narrativa, além dos elementos referentes à sua
formação como indivíduo que faz parte de um contexto que, no passado, se apresenta
fragmentado para si mesmo. Deste modo, para adequar a narrativa autobiográfica à
cinematográfica, o diretor se utilizou de recursos que consistem em emprestar elementos de
outras obras do autor a fim de conectar os acontecimentos da vida de Arenas, apresentados
em sua autobiografia, com seu ponto de vista próprio.
Um exemplo da utilização de elementos de outras narrativas do autor é a seqüência
que retrata a infância de Reinaldo Arenas, onde se inicia a narrativa do filme, a qual procura
introduzir a personalidade do autor e caracterizá-lo como escritor, na qual o diretor utiliza
elementos do primeiro romance de Arenas, Celestino Antes del Alba (1963), cuja fábula
consiste na história de um garoto que entalha versos em árvores que, depois, são cortadas por
um velho, e que, no filme, corresponderá ao avô do autor ao saber, através da professora
primária, das inclinações literárias do neto. Esses elementos o estão presentes na narrativa
autobiográfica, o que revela a intenção, do diretor, de elucidar que a narrativa que se
apresenta trata-se da vida de um escritor, em que a atitude do homem que corta a árvore
entalhada representa a problemática do autor em relação à literatura no contexto histórico
66
cubano.
A narrativa fílmica também revela, desde o início, um narrador que se identifica com
aquele personagem através da narração de voz em off; o que antecipa que, em relação ao
enredo, trata-se do relato de uma vida, baseado no ponto de vista deste narrador-personagem.
Porém, ao introduzir elementos estranhos à narrativa literária original, o diretor interpõe o seu
ponto de vista sobre os fatos, e é capaz de criar uma obra que difere da autobiografia de
Arenas, ainda que construa o seu enredo a partir dela. Isso faz com que o foco narrativo da
adaptação fílmica de Antes que Anoiteça seja variável segundo o que o diretor procura
expressar, podendo identificar-se com um narrador onisciente que corresponderá à
focalização zero, na qual a câmera assume o papel de “mostrar” os acontecimentos; a
focalização da obra cinematográfica se apresenta, também, como interna, correspondendo à
visão do personagem em momentos nos quais o diretor deseja expressar o ponto de vista do
sujeito autobiógrafo, condizendo, na maior parte das vezes, com situações que refletem a
opinião desse sujeito em relação aos eventos narrados, assim como seus próprios
pensamentos expressos por meio de voz em off ou mesmo quando o personagem fala
diretamente para a câmera, dirigindo-se ao espectador.
A narração em off, que Schnabel identifica com o personagem de Arenas no filme, muitas
vezes compreenderá trechos de poemas e outras obras do autor que ilustram o contexto
exibido na tela, principalmente em se tratando de cenas apresentadas na obra cinematográfica
que não aparecem em sua autobiografia, pelo menos não relatadas daquela maneira, como,
por exemplo, a utilização de um poema que relata a chegada dos revolucionários em Santiago
de Cuba, que, ao mesmo tempo em que complementa a seqüência de imagens de Castro e
Guevara nos tanques de guerra cumprimentando a população em júbilo, a seqüência se torna
irônica, que os versos transformam essa entrada triunfal em um acontecimento meramente
figurativo, no qual a simbolização da liberdade finalmente alcançada de Cuba não passasse de
67
um desfile alegórico onde as vestimentas dos rebeldes, as bandeiras e os armamentos se
apresentam como objetos decorativos que engrandecem o espetáculo.
Nessa seqüência, que registrou um acontecimento histórico, o diretor pôde antecipar o
ponto de vista de Arenas em relação à significação que a Revolução de 1959 representou para
ele, o que proporciona à narrativa fílmica a liberdade de desenvolver-se segundo critérios
próprios para a representação do sentimento de encarceramento experimentado por Reinaldo
Arenas de maneira implícita.
Julian Schnabel volta a utilizar esse recurso para registrar os fatos históricos ao
apresentar imagens dos discursos do líder revolucionário Fidel Castro, garantindo, deste
modo, a contextualização e a propriedade da representação do discurso de Reinaldo Arenas
na narrativa cinematográfica. Além disso, ao ressaltar os fatos históricos relatados em Antes
que Anoiteça, Schnabel enfatiza o discurso de Arenas como testemunho da história da
Revolução, assegurando assim seu valor documental.
Além da narrativa histórica, diversos aspectos da obra do escritor cubano, ao serem
abordados pelo diretor em sua adaptação cinematográfica, serão retomados a partir de um
ponto de vista que irá enfatizá-los com maior ou menor relevância em relação à própria
construção da narrativa fílmica: enquanto, para Arenas, a literatura e o sexo adquirem uma
significação mais palpável enquanto formas de ruptura e evasão, o contexto dos
desdobramentos da vida do autor em Antes do Anoitecer se apresentará mais homogêneo,
como uma rede de eventos que culminará no suicídio. A literatura para Arenas,
principalmente em relação ao ato de escrever Antes que Anoiteça, se configura, no contexto
do filme, mais como uma necessidade de denúncia, uma maneira de burlar a censura, do que
procura enfatizar seu caráter de lugar existencial ou realidade utópica; além disso, o diretor
compactua com o ponto de vista do escritor cubano em relação ao regime de Castro, o que o
leva a fazer convergir o ponto de vista da adaptação fílmica com o da obra autobiográfica. O
68
mesmo acontece com a representação da função do sexo na vida de Arenas, através da qual a
homossexualidade será retratada como motivo de exclusão social e repressão, sem qualquer
relação com o sentimento de encarceramento experimentado pelo autor.
Apesar das cenas que abordam a questão homossexual, tanto em Cuba quanto para
Arenas, individualmente, tratarem a questão da repressão da homossexualidade como
banalidade, Schnabel procura, com a simplificação da questão, apresentar um aspecto natural
da homossexualidade e caracterizar a perseguição como infundada, mostrando que o sexo,
homossexual ou não, não representava perigo para a afirmação da Revolução. Deste modo foi
também em relação à censura; o diretor é capaz de revelar em Antes do Anoitecer que as
conseqüências da censura artística e literária foram muito mais negativas para o caráter do
regime socialista do que as obras em si, pois chamou a atenção internacional para esses
problemas sociais, especialmente em relação ao caso Heberto Padilla e sua retratação pública.
Dessa maneira, Antes do Anoitecer exercerá, mais uma vez, o papel de dar voz àqueles
que procuram reescrever a história da Revolução Cubana de 1959 através do relato da vida de
Reinaldo Arenas e do contexto de sua obra autobiográfica. Essa função que desempenha a
adaptação fílmica ficará clara diante das seqüências de conclusão da obra, que documentam a
declaração dos sofrimentos do autor no desterro e a evolução da AIDS. Schnabel adiciona à
narrativa os últimos momentos do autor antes de seu suicídio, testemunhados por seu amigo
Lázaro, que tratam da posição do autor em relação à morte iminente, a qual é retratada, na
autobiografia, pela publicação de sua carta de suicídio: Arenas aceita a presença da morte do
corpo porque foi capaz de deixar um registro dos acontecimentos de sua existência que ele
considera um legado para a humanidade; porém, ao cometer suicídio, o escritor procura se
privar tanto da dor quanto da luta, pois a morte irá ocorrer no momento escolhido por ele, o
que se pode interpretar não como uma desistência da vida, mas também como uma negação a
entregar a luta.
69
Pode-se concluir, portanto, que a obra cinematográfica de Julian Schnabel será a
adaptação fílmica da autobiografia do escritor cubano Reinaldo Arenas ao mesmo tempo em
que uma obra completamente diferente, com uma abordagem própria da história de Cuba e do
regime socialista de Fidel Castro e da existência do autor, procurando resgatar a motivação
que o levou a escrever sua autobiografia.
70
Capítulo III
3.1 A Revolução Cubana: uma breve história em Antes que Anoiteça
Conhecida como a primeira revolução de cunho social vitoriosa na América Latina, a
Revolução Cubana, de 1959, ocorreu em um momento histórico no qual a Guerra Fria dividia
o mundo entre socialista e capitalista. Em Cuba, desde 1952 sob a ditadura militar de
Fulgêncio Batista, a corrupção do governo, o apoio americano e o impedimento das eleições
presidenciais que deveriam ser realizadas naquele ano acarretaram uma insurreição de alguns
jovens líderes políticos que competiriam nas eleições. O ataque ao quartel general de
Moncada, em 1953, que deu origem ao movimento de 26 de julho liderado por Fidel Castro,
trouxe, também, uma nova expectativa para os cubanos contrários ao regime de Batista, além
de, segundo Richard Gott, em Cuba: uma nova história, tornar “o nome de seu líder
conhecido em toda a ilha” (GOTT, 2004, p. 171).
A prisão e o julgamento de Fidel Castro proporcionou ao movimento um interesse
internacional. Mesmo com uma abertura democrática na ditadura, Castro não viu
possibilidade de ganhar a eleição, e, por isso, pouco tempo após sua soltura, em 1955, decidiu
voar para o México, onde poderia iniciar o planejamento da Revolução. Financiadores, como
Venezuela, Estados Unidos e alguns partidos políticos cubanos, possibilitaram que os irmãos
Castro e Che Guevara, que havia se juntado a eles no México, reunissem homens e
armamentos para um ataque a Cuba. Assim, em 1956, o navio Granma, carregado com 82
guerrilheiros, desembarcou na ilha. O ataque foi frustrado, tanto do navio quanto o planejado
para acontecer na cidade de Santiago de Cuba: muitos foram presos, e alguns, julgados e
fuzilados; os rebeldes restantes conseguiram escapar e refugiar-se na Sierra Maestra, na
província rural de Oriente.
O impacto mundial da Revolução se iniciou com a instalação dos rebeldes em
71
Oriente. Por ser uma das províncias mais pobres da ilha, a organização de guerrilha estava
instalada nos palenques, assentamentos ilegais de escravos negros e indígenas refugiados
durante os anos da conquista (GOTT, 2004, p. 181), o que possibilitou aos rebeldes encontrar
mais membros para o exército guerrilheiro e ganhar o apoio popular da região. Outro fator
que auxiliou a difundir os ideais da Revolução e conquistar o apoio de diversos países,
principalmente em relação à liderança de Fidel Castro, foi a imprensa americana, mais
especificamente Hebert Matthews: “[...] os cubanos sabiam muito bem da necessidade de
garantir o apoio da imprensa norte-americana, e os relatos de Matthews ajudaram a criar,
tanto em Cuba como no estrangeiro, a imagem duradoura de um líder carismático e
invencível [...]”(GOTT, 2004, p. 181).
Reinaldo Arenas, na época com quinze anos, quando os guerrilheiros iniciaram a
conquista de alguns vilarejos e bases militares da região, decide unir-se a eles, instalados em
um vilarejo próximo. Apesar de sua idade, os assuntos políticos faziam parte da realidade do
autor desde a infância, pois seu avô era militante do Partido Ortodoxo de Cuba, do qual Fidel
Castro era membro antes de liderar a Revolução. Arenas, em seu livro, proporciona uma visão
dos rebeldes diferente daquela disseminada pela imprensa cubana e americana e pelo governo
de Cuba ao relatar a situação precária em que se encontravam as bases guerrilheiras e os
armamentos. No entanto, essa visão ainda se apresenta romantizada, considerando-se a
confluência entre os ideais dos líderes da Revolução e os da comunidade em que o autor
estava inserido.
A tomada de poder dos revolucionários se concretizou após a fuga do ditador
Fulgêncio Batista para a Colômbia. Apesar de a guerrilha estar em curso desde a instalação
dos rebeldes em Oriente, com a participação de diversos vilarejos e comunidades, não houve
batalha para a tomada de poder; os rebeldes, portanto, se instalam na província e no dia dois
de janeiro de 1959, Fidel Castro pronunciou seu primeiro discurso em Santiago de Cuba. A
72
aceitação do povo em relação à tomada de poder pelos rebeldes foi unânime e, segundo Gott,
muitos foram os motivos para isso:
A memória da Cuba pré-revolucionária que prevaleceu nos primeiros anos
da Revolução era de estagnação econômica ao longo de muitas décadas, de
malogro político, corrupção, incompetência burocrática , gangsterismo,
violência e colapso social. Assim, a revolução e/ou o socialismo, conforme
o gosto, eram percebidos como resultados naturais de uma situação
insuportável. E a tarefa da Revolução era reordenar a sociedade e suturar as
suas feridas. (GOTT, 2004, p. 190-91).
A tomada do poder por meio da Revolução é descrita por Arenas como um grande
desfile de homens barbudos e armados, rodeados de admiradores por todos os lados e
recebidos com grande festejo pela população. Nos dias que se seguiram, os líderes da
Revolução iniciaram reformas em todos os aspectos econômicos, sociais e políticos na ilha, o
que rendeu, para o autor, uma bolsa de estudos na escola politécnica para contadores
agrícolas. O relato de Arenas procura revelar alguns aspectos da proposta do curso para
contadores agrícolas, ao narrar a imposição do estudo do marxismo-leninismo, além do
caráter militar do alojamento, que consistia em oferecer treinamento de guerrilha e atividades
que inspirassem os estudantes a apreenderem e defenderem os ideais revolucionários. No
entanto, essas imposições não suscitaram nenhum tipo de posicionamento contrário à
Revolução, apesar da discriminação interna contra homossexuais e da seleção dos estudantes
por meio de provas de força e resistência física, segundo Arenas.
Um fator que pareceu abalar a imagem da Revolução, tanto externa quanto
internamente, foram os chamados “julgamentos e fuzilamentos públicos”:
[...] a euforia inicial com que a Revolução foi saudada no exterior
rapidamente cedeu lugar a uma sombria compreensão de que revoluções
cobram um preço daqueles que outrora lhes fizeram oposição. Várias
centenas de policiais, torturadores e antigos colaboradores de Batista foram
mortos por pelotões de fuzilamento depois de processos perfunctórios. [...]
73
O governo argumentou que todos os condenados tinham sido levados a
julgamento sob a legislação promulgada em Sierra Maestra, mas para
muitos forasteiros as execuções tiraram o brilho da Revolução. (GOTT,
2004, p. 193 - 94)
O que tornou os julgamentos e fuzilamentos públicos mais desagradáveis aos olhares
estrangeiros, e também para alguns cubanos, foi sua forma de exposição, que, segundo Gott,
consistia em realizá-los na arena de esportes da capital Havana, além de serem televisionados.
Isso acrescentava um caráter de vingança contra os traidores do regime, que, com o apoio da
população de Cuba, configurava-se em um exemplo a ser dado para aqueles que ficassem
contra os novos ideais e, assim, a palavra paredón tornou-se o grito de guerra da Revolução.
À medida que o regime da Revolução se solidificava, seu posicionamento contrário
em relação à política imperialista dos Estados Unidos se mostrava cada vez mais intenso:
Cuba pretendia romper definitivamente os laços. Os ataques aos americanos resultaram em
um embargo econômico dos mesmos, o qual obrigou os líderes cubanos a aceitar o apoio
soviético tanto político quanto econômico e culminou na adoção do socialismo aplicado na
União Soviética:
Pode-se encontrar a razão na falta de ideologia do Movimento. Quando
chegaram ao governo, os revolucionários cubanos estavam perdidos. Eles
eram essencialmente pragmáticos. Primeiro, tentavam uma coisa, depois
outra: importaram economistas estrangeiros; tentaram a substituição de
importações; empenharam-se na diversificação; nacionalizaram tudo que
estava à vista; ouviram o canto da sereia dos que sugeriam a autarquia
econômica. Finalmente, voltaram-se para a União Soviética, fonte de
inúmeros conselheiros, de muita tecnologia nova e de montantes
aparentemente ilimitados de dinheiro. Os russos tinham dirigido uma
Revolução por cinqüenta anos. Eles eram os especialistas. Eles sabiam as
respostas [...] (GOTT, 2004, p. 270).
Apesar de o regime revolucionário ter aplicado, desde a sua implantação, medidas que
demonstravam certo caráter totalitário por meio de atitudes veladas, de acordo com Arenas e
Gott, foi com a transformação do país em socialista nos moldes da União Soviética que
algumas atitudes repressivas, principalmente em relação aos intelectuais e homossexuais, se
74
tornam explícitas para o povo cubano. O socialismo se afirmou à medida que a pressão dos
Estados Unidos sobre a ilha se intensificou, o que culminou na tentativa de invasão da Baía
dos Porcos pelos americanos, em 1961, e na crise dos mísseis
15
, em outubro de 1962. A
situação econômica cubana e a pressão mundial após a adoção do socialismo soviético
suscitaram as medidas de contenção de dissidentes e controle da população, a principal causa
do chamado primeiro êxodo cubano, através do porto de Camarioca, em 1965, no qual
saíram do país em torno de 20 mil pessoas em direção aos Estados Unidos (GOTT, 2004, p.
245).
A narrativa de Reinaldo Arenas sobre a adoção do socialismo em Cuba anuncia um
paradoxo que, por um lado, proporcionava a liberdade econômica e política, ao romper com o
imperialismo americano, mas que, por outro, subjugou uma parcela da população cubana, em
sua maioria homossexuais e intelectuais, além dos programas de voluntariado em campos
agrários que, segundo o autor, eram obrigatórios. Essa situação reflete a tentativa de
estabelecer o controle da população, principalmente em função da manutenção da Revolução
no poder.
Essas situações, consideradas como positivas no estrangeiro, e que pareciam refletir o
apoio do povo cubano ao novo regime, são avaliadas sob um outro aspecto na narrativa do
autor cubano, especialmente os aspectos relacionados à censura e à perseguição aos
homossexuais através da criação das UMAPS (Unidades Militares de Auxílio à Produção),
para onde eram levados, para trabalhos forçados, os considerados contra-revolucionários e
dissidentes, bem como a perseguição velada realizada pela polícia de Segurança do Estado. A
razão de Arenas abandonar os motivos políticos e econômicos para explicar as atitudes do
regime cubano vem do fato de que a repressão atingiu não apenas a crença em seus ideais,
15
A chamada “crise dos mísseis”, em outubro de 1962, iniciou-se quando um sobrevôo norte-americano
fotografou uma plataforma de lançamento de mísseis em Cuba. Frente às ameaças de invasão pelos
americanos, após um longo acordo, os mísseis foram retirados e levados de volta para a União Soviética.
Fonte: GOTT, 2004
75
mas, principalmente, suas características essenciais como indivíduo, homossexual e escritor.
O contexto apresenta-se, então, como pano de fundo, em um primeiro momento,
transformando-se no propósito da narrativa à medida que o sujeito se depara com a queda de
seus ideais e sua impotência frente à repressão do regime castrista.
Alguns eventos relatados na autobiografia de Reinaldo Arenas entram em confronto
com o registro da história oficial da Revolução Cubana de 1959, tanto por representarem
acontecimentos não registrados pela história oficial como também por divergirem do ponto
de vista dessa história. Essa visão da história de Cuba começará a ser questionada a partir das
manifestações artísticas dos considerados dissidentes, tanto exilados quanto residentes em
Cuba, principalmente a partir da Primavera de Praga
16
, após a qual o governo de Cuba reforça
seus laços com a União Soviética e a população, em relação a isso, se manifesta contrária
pela primeira vez.
O regime passou a desagradar a população com a aceitação tácita da influência
soviética, o que resultou no Primeiro Êxodo, em 1965, como citado anteriormente. O
programa de voluntariado para trabalho no campo, junto do programa “10 milhões de
toneladas”, que consistia em produzir essa quantidade de cana-de-açúcar em apenas três
meses de colheita, culminou em um fracasso tanto econômico quanto social, pois a
exploração dos chamados voluntários, muitos deles condenados a trabalhos forçados por
conduta considerada contra-revolucionária, fez com que a população de Cuba se voltasse
contra os líderes do regime. No entanto, segundo Arenas, as manifestações de revolta
populares acarretaram ações ainda mais repressivas do governo de Castro na década de 1970,
com intensificação das prisões, proibição de saída de cubanos e filtragem maior dos
estrangeiros que entravam no país, além da contratação de diversos agentes da segurança de
16
Primavera de Praga (agosto de 1968) foi como ficou conhecida a invasão da Tchecoslováquia pelas forças
do Pacto de Varsóvia comandadas pela União Soviética, as quais estabeleceram um novo governo pró-
soviético em Praga. Fonte: GOTT, 2004.
76
estado, pessoas comuns que denunciavam atitudes consideradas ilícitas em troca de algumas
regalias.
A invasão da embaixada do Peru por dez mil cubanos, segundo Gott, foi o ponto
chave para um acontecimento que fragilizou o apoio tanto internacional quanto interno a
Cuba: o chamado segundo êxodo através do porto de Mariel, a partir do qual a postura do
regime de Fidel Castro repercutiu negativamente e uma atenção maior passou a ser dada à
causa da procura dos cubanos pelo exílio. Reinaldo Arenas foi um dos chamados “marielitos”
dentre os milhares de cubanos que deixaram a ilha sob protestos de muitos que apoiavam a
Revolução. Ainda assim, o êxodo continuava a ser encarado como um golpe contra os
Estados Unidos, pelo fato de Cuba ter aproveitado para esvaziar prisões e hospitais
psiquiátricos, além dos campos de trabalhos forçados das UMAP. Além disso, o governo
cubano manteve a idéia de que esses cubanos acreditavam que haveria uma vida mais farta no
capitalismo, e que a repressão, prisões, perseguições e fuzilamentos eram desculpas ilusórias
para os contra-revolucionários. No entanto, o governo americano se serviu desses fatos para
intensificar a propaganda anti-Cuba, pois, apesar de muitos olhos voltarem-se para Cuba
frente à insatisfação dos cubanos, eles seriam capazes de enxergar o sucesso de uma
Revolução popular que prezava os interesses sociais mais do que os econômicos. Uma visão
diferente da história da Cuba revolucionária só seria possível através do relato daqueles que
sentiram na pele o peso do regime socialista de Fidel Castro, e se dignassem a contá-la.
O que fica claro nessa situação é o papel da memória afetiva, tanto individual, como é
o caso do testemunho e das escritas do eu, quanto coletiva, da qual faz parte a história oficial.
Assim como a história oficial, Jaime Ginzburg chama atenção para o fato de que “um
discurso autobiográfico está necessariamente marcado por um risco de imprecisão” (2007, p.
55), e, portanto, não deve ser encarado como “verdadeiro” em sua totalidade.
Por essas razões abordadas anteriormente, a história da Revolução Cubana em Antes
77
que Anoiteça seapresentada de acordo com um ponto de vista que reflete a necessidade de
desmascarar o episódio que se configurou como um acontecimento de grande importância
social e histórica, ao qual o testemunho de uma pessoa que experimentou eventos cujo
desenvolvimento atingiu sua liberdade existencial como indivíduo é capaz de oferecer um
entendimento que revela a importância do papel do testemunho do indivíduo para a
construção de uma nova história, que leve em conta outras versões de um mesmo
acontecimento, fato que proporciona a libertação da imposição da moral do passado e um
meio diverso da visão da história oficial de interpretar os acontecimentos.
3.2 O exílio: evasão e consagração do encarceramento
Em seu ensaio Reflexões sobre o exílio (2003), Edward Said define o exílio como:
[...] uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu
e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada. E,
embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heróicos,
românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são
mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação. As
realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo
deixado para trás para sempre. (2003, p. 46)
O exílio é um tópico comum da literatura do século XX, bem como a literatura dos
exilados. Forçado a sair de seu meio, da comunidade que o formou como indivíduo, o poeta
exilado sente necessidade de compensar sua perda compartilhando o sofrimento. Desse modo,
ele reconstitui seu mundo e pode, ainda que de uma maneira utópica, viver nele. A
necessidade pungente de recontar o mundo e reviver sua história pessoal funciona, para o
exilado, também, como um desabafo, uma denúncia política, sua única arma contra a
violência a que foi submetido.
Um exilado carrega um estigma, o de deixar sua marca, o de querer abrir os olhos do
mundo para a realidade que ele sente na pele. Arrancar uma pessoa de seu meio é fazer com
78
que ela não se reconheça, pois não possibilidade de continuar vivendo segundo suas
tradições e costumes em meio a um local e um grupo completamente distintos, e que, por esse
motivo, pode não reconhecê-lo como uma parte dele, o que provoca a necessidade de recriar
seu mundo e uma nova rotina que se aproxime de seus interesses. Assim, o nacionalismo
configura-se essencial ao exílio, pois “[...] é uma declaração de pertencer a algum lugar, a um
povo, a uma herança cultural. Ele afirma uma pátria criada por uma comunidade de língua,
cultura e costumes e, ao fazê-lo, rechaça o exílio, luta para evitar seus estragos” (SAID, 2003,
p. 49); dessa maneira, o indivíduo que se sente como parte de um grupo não se distingue
como indivíduo fora dele.
A pessoa que deixa sua pátria para outro lugar por livre escolha não é um exilado. O
exilado está conectado ao seu país natal, ligado a ele de tal forma que não é possível viver e
se desenvolver fora dele, seja o que for que ele faça. Isso não quer dizer que retornar a seu
local de origem seja uma opção. A pátria, para o exilado, não é apenas o lugar do qual ele foi
obrigado a sair; ainda que, nesta concepção, caiba uma escolha, era a sua única escolha. A
pátria do exilado é o lugar da lembrança, ou, ainda, segundo Reinaldo Arenas:
[...] para um exilado não existe nenhum lugar onde possa viver; não
existe nenhum lugar, porque aquele com o qual sonhamos, onde
descobrimos uma paisagem, lemos o nosso primeiro livro, tivemos a
primeira aventura amorosa, continua sendo o lugar sonhado. No
exílio ele não passa de um fantasma, a sombra de alguém que nunca
consegue alcançar sua completa realidade. Deixei de existir desde
que cheguei no exílio; a partir de então, comecei a fugir de mim
mesmo. (ARENAS, 1994, p. 314)
17
Said aborda a relação entre nacionalismo e exílio segundo a dialética hegeliana do
senhor e do escravo. Assim, “todos os nacionalismos se desenvolvem a partir de uma situação
17
No original: “para un desterrado no hay ningún sítio donde se pueda vivir; que no existe sitio, porque
aquél donde soñamos, donde descubrimos un paisaje, leímos el primer libro, tuvimos la primera aventura
amorosa, sigue siendo el lugar soñado; en el exilio uno no es más que un fantasma, uma sombra de alguien que
nunca llega a alcanzar su completa realidad; yo no existo desde que llegué al exilio; desde entonces comencé a
huir de mi mismo. “ (ARENAS, 2006, p. 314)
79
de separação” (SAID, 2003, p. 49); o contrário também é verdadeiro: é necessário que exista
o nacionalismo para que exista o exílio. No caso de Cuba, o nacionalismo totalitário também
se apresenta como motivação para o exílio, pois ele não irá representar a identidade de seu
povo, mas, sim, obrigar o seu povo a adequar-se à nova Cuba revolucionária, que, muitas
vezes, repreenderá seus costumes em vez de afirmá-los. Desse modo, o nacionalismo não
nasce apenas de políticas patrióticas e da busca pela afirmação da identidade, mas nasce do
sentimento de coletividade, o indivíduo é influenciado por seu meio, e, portanto, é parte de
seu coletivo. O mais profundo de seu ser é moldado por tradições e pelo contexto em que este
indivíduo está inserido, por isso o exilado permanece como uma pessoa deslocada: “o exílio é
uma solidão vivida fora do grupo.” (SAID, 2003, p. 50)
Pode-se dizer que o exílio contemporâneo não é apenas a solidão vivida fora do
grupo, sendo que, segundo Said, a época moderna é a era do exílio em massa. Enquanto as
experiências do exílio compartilhadas através das memórias e da imaginação dos poetas e
romancistas podiam ser usadas como fonte elucidativa pelo resto do mundo “não-exilado”, a
experiência do exílio massificado é “irrecuperável”. Nas palavras de Edward Said, “para
tratar o exílio como punição política contemporânea é preciso mapear territórios de
experiência que se situam para além daquelas cartografadas pela própria literatura do exílio.”
(2003, p. 48 - 49) Os três grandes êxodos cubanos, chamados assim por Richard Gott em
Cuba: uma nova história (2004), podem ser considerados como não mapeados pela literatura
do exílio, ou, ainda que o sejam, os relatos dos sobreviventes da travessia não são tão
significativos em relação à experiência de um exilado, mas, sim, em relação à política
cubana. Além disso, poucos são os exilados de Cuba que não buscavam o exílio de fato,
principalmente por não encontrar empatia pelo sentimento nacionalista, já que, para estes, o
novo regime não representava seus ideais; no entanto, não se pode pensar nesse grupo de
exilado como um todo, em que a procura pelo exílio se resume à fuga das atrocidades do
80
regime castrista. Há, somado a este fator, manobras políticas tanto do governo americano
quanto do governo cubano, em que o primeiro abria suas portas para reforçar a propaganda
anti-Cuba, e o próprio governo cubano acabava por encontrar nessa situação mais um motivo
para se desvincular dos Estados Unidos.
Para que a experiência do exílio cubano seja de alguma forma “recuperada”, o
testemunho acaba por exercer a função de mapeamento da mesma, tanto da manifestação do
sentimento de exilado dentro do próprio país quanto fora, função que é capaz de recuperar,
também, os eventos históricos responsáveis pela experiência do exílio.
No entanto, nem mesmo a experiência recuperável de um exilado deve ser levada em
conta apenas por seu caráter político ou, ainda, pela riqueza que acrescenta à literatura e às
artes em geral. O relato da vida de um exilado, uma obra inspirada nas experiências e
seqüelas do exílio, ainda representa a sua tentativa de superar a dor da separação e a perda de
seu mundo:
Grande parte do interesse contemporâneo pelo exílio pode ser remontado à
noção um tanto descorada de que os não-exilados podem partilhar dos
benefícios do exílio como um motivo redentor [...] Mas, vistos com
indiferença que caracteriza o ponto de vista político dos deslocamentos
maciços da atualidade, os exilados individuais nos forçam a reconhecer o
destino trágico da falta de lar num mundo necessariamente implacável.”
(SAID, 2003, p. 56)
De qualquer maneira, o escritor exilado sente necessidade de compartilhar suas
experiências, tanto as realizadas no exílio quanto as que o levaram a ser um exilado. Desse
modo, o indivíduo exilado é capaz de recuperar seu contexto, além de estabelecer seu ponto
de vista, o que, em relação a Reinaldo Arenas, permite considerá-lo como um exilado
contemporâneo, o indivíduo deslocado da “era do exílio em massa”; no entanto, não é
somente o exílio que faz emergir os eventos experimentados pelo escritor em seu país natal,
Arenas incorporou a experiência do exílio em seu próprio país: o sentimento de
81
encarceramento em si mesmo e em sua literatura.
No exílio, de fato, nos Estados Unidos, o sentimento de liberdade em Arenas dura
pouco. A decepção com a reação das pessoas, principalmente dos escritores, em relação à
situação cubana, o faz fechar-se em si mesmo mais uma vez. No entanto, Arenas reproduz,
em seus últimos dez anos, toda sua vida dentro da literatura, e volta a escrever sua
autobiografia abandonada no parque Lênin durante os três meses em que ficou escondido.
Arenas encara sua literatura, tendo como ápice sua autobiografia, não somente como o auto-
retrato de si mesmo, mas, também, como um exorcismo dos anos de repressão vividos sob a
ditadura castrista. Mais uma vez, Arenas se exilado, mais ainda sem sua terra natal, que,
por muito tempo não pôde sentir como sua.
A relação do escritor cubano com sua terra natal é uma relação de dependência, pois
ele é produto da comunidade em que se desenvolveu, mas, ao mesmo tempo, ela é um local
distante, nunca alcançado, é uma pátria utópica a qual ele sente que é a sua, não a que ele
habita. No exílio em Nova Iorque, sua relação com a pátria confirma a reflexão de Said sobre
o nacionalismo: ele não consegue deixar de ser cubano, se sentir cubano e depender desta
identidade para se reconhecer a si mesmo:
Grande parte da vida de um exilado é ocupada em compensar a perda
desorientadora, criando um novo mundo para governar. Não surpreende que
tantos exilados sejam romancistas, jogadores de xadrez, ativistas políticos e
intelectuais. [...] O novo mundo do exilado é logicamente artificial e sua
irrealidade se parece com a ficção. (SAID, 2003, p. 54)
Reinaldo Arenas se encaixa no perfil do exilado desde o primeiro momento em que se
sente como um exilado, encarcerado em si mesmo. Em sua pátria natal, ele (re)cria seu
mundo na literatura, e continua a viver através da literatura durante toda sua vida. O ápice da
criação de seu mundo “fictício”, de sua realidade, é sua autobiografia. Toda a obra do escritor
cubano gira em torno de pontos comuns à sua realidade tanto individual quanto coletiva.
82
Abordando temas da política opressora de ditadores ou da realidade social e cultural das
comunidades oprimidas, a ficção de Arenas é, sempre, a denúncia de uma lembrança. Antes
que Anoiteça é o contexto dessa obra.
Arenas sempre foi um exilado, apesar de suas “realizações” do exílio terem se
iniciado em seu exílio individual, habitando seu país de origem, mas vivendo na literatura,
seu mundo paralelo. Esse encarceramento psicológico do autor explica a extrema necessidade
que sentia de publicar sua obra. Dessa maneira, ele saberia que existia, que estava vivo.
Reinaldo Arenas nunca deixou Cuba para sempre; além da literatura, era a sua
esperança de uma Cuba livre que o movia, e, mesmo no exílio, ele pensava que um dia
voltaria à ilha. Por meio da literatura, Arenas superava a dor criando sua tão desejada Cuba:
Por mais que tenham êxito, os exilados são sempre excêntricos que sentem
sua diferença (ao mesmo tempo em que, com freqüência, a exploram) como
um tipo de orfandade. Aqueles que realmente não têm lar consideram uma
afetação, uma exibição de modismo o hábito de ver a alienação em tudo o
que é moderno. Agarrando-se à diferença como a uma arma a ser usada
como vontade empedernida, o exilado insiste ciosamente em seu direito de
se recusar a pertencer a outro lugar. Isso se traduz geralmente numa
intransigência que não é ignorada com facilidade. Obstinação, exagero,
tintas carregadas são características de um exilado, métodos para obrigar o
mundo a aceitar sua visão. (SAID, 2003, p. 55)
As palavras de Edward Said, neste trecho, traduzem o sentimento de decepção de
Reinaldo Arenas quando este se instalou em Miami. Percebeu que enquanto permanecia em
Cuba era considerado um herói, um resistente. No exílio nos Estados Unidos, ele não era
mais interessante, era apenas um fugitivo que corria o risco de cair no ostracismo, e que, além
disso, passou a carregar o estigma de ter desistido de lutar por si mesmo, fato que
proporcionava questionamentos sobre seus reais interesses em exilar-se da ilha e sobre a
situação política que o obrigava a deixar seu país:
83
Ironicamente, estando preso e confinado em Cuba, tinha mais
oportunidades editoriais porque, pelo menos, alí não me deixavam falar e as
editoras estrangeiras podiam dizer que eu era um escritor que residia em
Havana. Logo, esta atitude não se estendeu somente a mim, mas a todos os
cubanos exilados, porque no desterro não temos um país que nos
represente; vivemos como se estivessem nos perdoando por estarmos vivos;
sempre a ponto de sermos rechaçados. (ARENAS, R. 1994, p. 322)
18
Um exilado não é visto como alguém que luta contra a opressão, é mais um peso para
o país que o recebe. Ele está fora de seu contexto, portanto, não tem mais utilidade. Espera-se
do artista exilado uma introspecção em sua própria condição. Essa era a decepção de Arenas:
fora de sua terra seu ponto de vista não era aceito da mesma maneira como ele imaginava, e,
desse modo, a impossibilidade de comunicar-se vem reforçar ainda mais o sentimento de
encarceramento:
E nós, cubanos, que sofremos durante vinte anos uma perseguição
violenta, num mundo terrível, somos pessoas que não podem
encontrar tranqüilidade em lugar nenhum; o sofrimento nos marcou
para sempre [...] A grande maioria da humanidade não consegue nos
entender e também não podemos esperar isso; todas as pessoas têm
seus próprios terrores e não conseguem, realmente, compreender os
nossos, ainda que queiram (ARENAS, 1994, p. 340)
19
Em Cuba, Reinaldo Arenas escrevia para se libertar. Não era apenas uma tentativa de
resgatar sua Cuba, suas raízes, mas uma maneira de continuar vivendo segundo seus próprios
princípios. Não eram propriamente as condições econômicas e a forma de governo
implantada por Fidel Castro que o incomodavam: sua relação com a sociedade estava
abalada. Escrever, além da recuperação de seu mundo, era mantê-lo vivo e em equilíbrio, era
18
No original: “irónicamente, yo estando preso y confinado en Cuba, tenía más oportunidades editoriales
porque, por lo menos, allí no me dejavan hablar y las editoriales extranjeras podían poner que yo era un
escritor que residía en La Habana. Desde luego, esta actitud no sólo se extendido a mí, sino a todos los
cubanos exilados, porque em el destierro no tenemos a un país que nos represente; vivimos como si nos
estuviesen perdonando la vida; siempre a punto de ser rechazados.” (ARENAS, 2006, p. 322)
19
No original: “Y nosostros los cubanos, los que sufrimos por veinte años aquella persecución, aquel mundo
terrible, somos personas que no podemos encontrar sosiego en nengún lugar; el sufrimiento nos marcó para
siempre [..]La inmensa mayoría de la humanidad no nos entiende y no podemos tampoco pedirle que nos
entienda; tiene sus propios terrorres y no puede, realmente, comprender los nuestros, aun cuando quisiera.”
(ARENAS, 2006, p. 330)
84
continuar existindo.
É no exílio que o escritor confirma essa dependência com seu país natal: mais uma
vez era a pessoa deslocada, mais uma vez cercado por outras que não compartilham de seu
ponto de vista. Arenas se encontra ainda mais encarcerado em sua existência literária e
dependente da reconstrução de seu mundo. O que o autor sente em relação à sua condição, no
exílio, é um sentimento dúbio: a liberdade que ele procurava não existe e sua busca por si
mesmo continua, agora ainda mais intensa.
Para conceituar o sentimento de encarceramento de Reinaldo Arenas, é preciso
adequá-lo ao exilado da “era da imigração em massa”; afinal, o escritor se encontrava entre
os milhares de cubanos que deixaram seu país pelo porto de Mariel na década de 1980. De
certa forma, o exílio foi uma escolha, ainda que a única opção. No entanto, a escolha o foi
a mesma para outros inúmeros exilados cubanos. Todos buscam a liberdade, mas a liberdade,
para Reinaldo Arenas, era sinônimo de plena existência individual e a consagração de seus
ideais, enquanto, para a maioria dos exilados de Cuba, a liberdade não significa mais do que
um conceito em que reside uma escolha. Arenas, como exilado cubano, se identifica com a
definição de Said de que “o páthos do exílio está na perda de contato com a solidez e a
satisfação da terra” (2003, p. 52), no entanto é a solidez que ele procura.
“O exílio baseia-se na existência do amor pela terra natal e nos laços que nos ligam a
ela o que é verdade para todo exílio não é a perda da pátria e do amor à pátria, mas que a
perda é inerente à própria existência de ambos” (SAID, 2003, p. 59). A solidez que busca o
escritor Reinaldo Arenas é, justamente, a dos laços de ligação da pátria que lhe conferiu as
suas características como indivíduo. Esta ligação de Arenas com a terra natal se faz através do
rememorar.
Sua autobiografia foi iniciada durante os três meses de refúgio no parque Lênin, nos
arredores da capital Havana. Em um ato de desespero, tanto para manter-se vivo e lúcido,
85
quanto para denunciar sua condição, Reinaldo Arenas principia a escrever suas memórias
antes que anoitecesse:
Para o exilado, os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo
ambiente ocorrem inevitavelmente contra o pano de fundo da memória
dessas coisas em outro ambiente. Assim, ambos os ambientes são vívidos,
reais, ocorrem juntos como no contraponto. [...] Temos também um
sentimento particular de realização ao agir como se estivéssemos em casa
em qualquer lugar (SAID, 2003, p. 59-60).
Essa consciência descrita por Edward Said se perpetua, no Arenas escritor, enquanto
cidadão cubano e enquanto exilado. Seu encarceramento psicológico, decorrente da
conjuntura sócio-política em que se encontrava em Cuba, permite a evasão deste sentimento
da memória à literatura, lugar em que Reinaldo Arenas sente-se verdadeiramente em casa.
3.3 A homossexualidade: resistência e luta através do corpo
Guillermo Cabrera Infante, ao descrever Reinaldo Arenas, faz a seguinte afirmação:
“Três paixões regeram a vida e a morte de Reinaldo Arenas: a literatura (não como um jogo
mas como um fogo que consome), o sexo passivo e a atividade política. Das três, a mais
dominante foi, sem dúvida, o sexo.” (1992, p. 399). Cabrera Infante não deixa de ter razão ao
colocar o sexo como a paixão mais dominante em Arenas. O sexo está ligado a quase todos os
acontecimentos relatados em Antes que Anoiteça. Ele significa, para Arenas, mais do que uma
paixão ou um prazer, é um sentir que reflete a luta pela liberdade e por afirmar sua
individualidade dentro de um sistema opressor. Além disso, a homossexualidade é uma das
causas tanto do sentimento de encarceramento quanto da procura pelo exílio.
Ainda na década de sessenta, apesar de todos os problemas enfrentados e criados pelo
governo cubano, o apoio popular era praticamente total. Ainda havia muitos habitantes que
86
não eram a favor da adoção do socialismo, mas não podiam negar o êxito das reformas,
principalmente em relação à educação e à saúde. Foram outros aspectos do novo regime que
levaram multidões e centenas de escritores e intelectuais a se desvincularem de Cuba,
principalmente a partir de 1968.
Em 1968, a União Soviética, sob a liderança de Stalin, invade a Tchecoslováquia na
chamada Primavera de Praga. rios intelectuais de todo o mundo, que apoiavam o
socialismo e, por conseqüência, a União Soviética e Cuba, foram contra essa intervenção. O
povo cubano esperava uma posição de Fidel. Seu apoio à invasão antecipava as
características do que seria o governo cubano. Este incorporou o modelo soviético stalinista;
junto dele, a censura à imprensa e às publicações literárias, a caça às empresas privadas (que
segundo Gott, em Cuba eram “bares, mercearias, pequenas lojas, oficinas de artesãos
autônomos e outros trabalhadores independentes, de carpinteiros a pedreiros e bombeiros”),
aos contra-revolucionários, homossexuais e cidadãos comuns que não manifestavam apoio às
medidas revolucionárias:
O ataque de Castro à Primavera de Praga foi a gota d’água para muitos que
apoiavam de fora a Revolução. Os liberais europeus ocidentais, e os
socialistas na França e na Itália, começaram a se distanciar de seus tributos
anteriores. A solidariedade de Castro com Moscou também foi um golpe
para os trotskistas, partidários da tradução anti-stalinista do comunismo.
Muitos deles haviam apoiado o Comitê Justiça para Cuba, que defendeu a
Revolução como uma alternativa socialista para o comunismo de estilo
soviético. Em meio a um ano de revolta política nos Estados Unidos e de
fervor rebelde na Europa ocidental [...], o discurso de Castro pareceu a
muitos de seus antigos partidários uma tentativa de golpear o radicalismo
popular. Críticos da Revolução mais intencionais, e até hostis, começaram a
surgir no estrangeiro, onde antes havia aplauso e adulação. (GOTT,
2004, p. 271)
A sociedade cubana, após a implantação do socialismo de feição stalinista, passou a
viver sob um ponto de vista totalitário. A relativa “liberdade” de não estar sob o imperialismo
dos Estados Unidos passou a significar submeter-se às novas regras do regime castrista. O
caráter democrático da Revolução, que se havia demonstrado tão eficaz no início da primeira
87
década, abandonava suas características em troca do modelo soviético opressor, o qual
condenava manifestações artísticas que não defendiam os ideais revolucionários, práticas
homossexuais e qualquer atividade que significasse um reflexo da cultura americana:
O governo Revolucionário passou a controlar a conduta sexual dos
cubanos, visando principalmente os homossexuais e, entre eles, os
intelectuais. Uma política de perseguição individualizada transformou-se,
em 1965, numa política massiva de perseguição, com buscas e internações
de homossexuais, reais ou presumidos, nas Unidades Militares de Ayuda a
la Producción (Umap), em Camagüey, que funcionavam como campos de
concentração para os ‘desviados’ ideológicos ou sexuais, incluindo todos os
dissidentes, os hippies, os religiosos e os intelectuais. (MISKULIN, 2002,
p. 84)
Não é difícil imaginar o porquê da repressão sexual e principalmente homossexual do
regime cubano a partir dos anos sessenta. Assim como qualquer regime totalitário, o regime
socialista de Castro precisava manter um controle centralizado da sociedade sob todos seus
aspectos. Principalmente no caso de Cuba que, por um lado, era dependente da União
Soviética para sobreviver economicamente, a qual era seu principal mercado comprador, e,
por outro lado, havia o embargo norte-americano que tolhia qualquer tipo de expansão
comercial e social, mantendo a ilha sob constante ameaça. Nesse aspecto, a questão da
homossexualidade em Cuba reflete uma problemática já existente no país antes mesmo da
implantação do socialismo nos moldes soviéticos: além de ser vista como uma “doença
mental”, a Revolução não consegue romper completamente com as características da
sociedade cubana herdadas do período colonial e dos governos conservadores. Há, além
disso, o teor reacionário do socialismo de modelo soviético que na homossexualidade um
símbolo da decadência burguesa, princípio que vai contra a moral da família e da sociedade
homogênea.
Gore Vidal, em “Sexo é Política”, assinala que “as atitudes sexuais de qualquer
sociedade são resultado de decisões políticas”. Ele ressalta, também, no mesmo artigo, que a
88
defesa pela família heterossexual “contribui para a docilidade”, pois “o homossexualismo
também representa uma ameaça a seu antigo domínio, porque homens que não têm mulher
nem filhos com os quais se preocupar não são facilmente domináveis quanto os que têm”
(VIDAL, 1987, p. 230 - 31). Assim, a ideologia do “homem novo” que nascia em Cuba
presumia que os cidadãos cubanos deveriam refletir os princípios da moral social e trabalhar
para a construção de um novo país; levando em consideração que Cuba era um país agrário,
cuja principal produção, segundo Gott, era a cana-de-açúcar, o trabalho no campo
representava não a força de trabalho principal da ilha, mas, principalmente, um modo de
dominação da população através da implantação das Umaps, que controlavam o trabalho
“voluntário” para a plantação e colheita.
O governo de Cuba, portanto, comporta-se como qualquer governo que busca
controlar os governados, e, assim, segundo Vidal, ele vai impedir “qualquer atividade sexual,
intelectual, recreativa ou política que possa diminuir a quantidade de carvão extraído de uma
mina, o número de pirâmides construídas, a quantidade de comida de qualidade
produzida, será proscrita através de leis” (1987, p. 229); ou seja, os líderes do novo regime
não conseguiriam aplicar suas iniciativas se não tivessem o apoio populacional,
principalmente em se tratando de mão-de-obra agrária e retomada das propriedades estatais,
que a economia do país baseava-se principalmente na agricultura e produção de cana-de-
açúcar. Além disso, o governo cubano necessitava manter a imagem popular criada sobre a
Revolução em seu início para conquistar o apoio mundial em detrimento dos Estados Unidos,
que queriam derrubá-lo.
Mais do que tudo, as atividades intelectuais e homossexuais que iam contra os planos
dos líderes revolucionários representavam uma ameaça. Esse contexto, portanto, configurou
Reinaldo Arenas como uma ameaça, mesmo antes de ele concluir que os ideais do regime não
condiziam com os ideais que ele apoiara no início da revolução. Com relação à
89
homossexualidade, a perseguição afetou o autor mais do que em relação aos seus princípios,
pois negava algo que fazia parte de si próprio, e não apenas uma opção de vida que poderia
ser alterada.
A sexualidade apresentou-se, para o escritor, muito naturalmente desde a infância;
segundo o autor, no campo isso era encarado pelas outras crianças como um acontecimento
cotidiano:
Creio que sempre tive uma grande voracidade sexual. [...] Aquela etapa
entre os sete e os dez anos foi para mim de grande erotismo, de uma
voracidade sexual que [...] quase abarcava tudo. Abarcava a natureza em
geral e portanto também as árvores [...]. De qualquer maneira, deve-se levar
em conta que, quando se vive no campo, se está em contato direto com o
mundo da natureza e, portanto, com o mundo erótico. O mundo dos animais
é um mundo incessantemente dominado pelo erotismo e pelos desejos
sexuais. [...] É falsa essa teoria sustentada por algumas pessoas sobre a
inocência sexual dos camponeses; nos meios camponeses uma força
erótica que, geralmente, supera todos os preconceitos, repressões e castigos.
[...] (ARENAS, 1994, p. 39-40).
20
O erotismo, para Arenas, desenvolveu-se desde a infância como parte de seu cotidiano
no campo; principalmente por ser solitário, o sexo se configura para ele como algo natural,
que mesmo diante das repressões e castigos, superava todos os tabus, característica que o
autor carregará tanto para a juventude quanto para a vida adulta. No entanto, a importância do
sexo, principalmente homossexual, não se revelará apenas na esfera pessoal, como algo de
sua natureza e que lhe proporciona satisfação, mas ele representará uma forma de ruptura
tanto em relação à repressão instaurada pelo regime de Castro quanto ao próprio
encarceramento em sua literatura. O sexo, portanto, configura-se como a própria luta contra a
repressão em favor da liberdade civil, pois realiza um ato que é considerado proibido pelo
20
No original: “creo que siempre tuve una gran voracidad sexual. [...] Aquella etapa entre los siete y los diez
años fue para mí de gran erotismo, de una gran voracidad seuxual que [...] casi lo abarcaba todo. Abarcaba la
naturaleza en general, pues también abarcaba a los árboles [...] De todos los modos, hay que tener em cuenta
que, cuando se vive em el campo, se está en contacto directo con el mundo de la naturaleza y, por lo tanto,
con el mundo erótico. El mundo de los animales es un mundo incesantemente dominado por el erotismo y
por los deseos sexuales. [...] Es falsa esa teoría sostenida por algunos acerca de la inocencia sexual de los
campesinos; en los medios campesinos hay una fuerza erótica que, generalmente, supera todos los prejuicios,
represiones y castigos.” (ARENAS, 2006, p. 39-40)
90
regime, porque vai contra seus ideais sócios-políticos.
Essa situação se define em razão da frustração do autor ao ser considerado como
persona non grata por sua homossexualidade e o caráter de sua obra ser avaliado como
subversivo, considerações que ele acreditava injustas, e que, portanto, serão determinantes
para o desenvolvimento da sexualidade como forma de evasão. Desse modo, Reinaldo Arenas
desenvolve, assim como muitos homossexuais cubanos, uma forma de resistência à repressão
através do sexo, e de romper com os próprios tabus frente à adesão inicial aos ideais
revolucionários; mas, principalmente, uma maneira de buscar algo que, por ser proibido, se
torna ainda mais aprazível, e que passa a significar a existência em si, já que, mesmo
correndo o risco de ser preso, essa atividade figurava-se como algo que não lhe podia ser
suprimido, ao contrário da literatura, que dependia da aprovação dos órgãos superiores para
ser publicada, além de que os manuscritos poderiam ser destruídos muito facilmente.
Desse modo, segundo Reinaldo Arenas, desenvolve-se em Cuba uma forte reação à
questão homossexual:
Acho que a Revolução sexual em Cuba foi realmente um produto da
repressão existente. Talvez como um protesto contra o regime, as práticas
homossexuais começaram a proliferar cada vez mais. Por outro lado, como
a ditadura era considerada um mal, tudo o que ela havia condenado era
interpretado como uma atitude positiva pelos dissidentes, que nos anos
sessenta representavam a maioria. Acredito francamente que os campos de
concentração para homossexuais e os policiais disfarçados de rapazes
obsequiosos, para encontrar e prender os homossexuais trouxeram apenas
como resultado um maior desenvolvimento da atividade homossexual.
(ARENAS, 1994, p.138)
21
Sendo esta praticamente a única prática considerada ilícita pelo regime de Castro que
proporcionava ao autor experimentar concretamente uma vivência plena em um contexto que
21
No original: “Creo que si una cosa desarrolló la represión sexual en Cuba fue, precisamente, la liberación
sexual. Quizá como una protesta contra el régimen, las prácticas homosexuales empezaron a proliferar cada
vez con mayor desenfado. Por otra parte, como la dictadura era considerada como el mal, todo lo que por
ella fuera condenado se veía como una actitud positiva por los inconformes, que eran ya em los años sesenta
casi la mayoría. Creo, francamente, que los campos de concentración homosexuales y los polícias
disfarzados como si fueran jóvenes obsequiosos, para descubrir y arrestar a los homosexuales, sólo trajeron
como resultado un desarrollo de la actividad homosexual.” (ARENAS, 2006, p. 132-133)
91
se apresenta inóspito para seu desenvolvimento intelectual, de sua consciência, a verdade
concreta de Reinaldo Arenas como indivíduo não reside cabalmente em sua autobiografia, ela
se manifesta através do corpo, mais propriamente do ato sexual, pois a autobiografia encerra
a existência (re)criada pelo próprio escritor, e, portanto, ela se apresentará abstrata, levando
em conta que se trata não apenas de relatar os acontecimentos, mas, também, da utilização da
imaginação pelo autor ao rememorar o passado. Dessa maneira, a existência relatada através
da escrita de Arenas, e, posteriormente na autobiografia, é irrecuperável, o que configura o
sexo como única forma de transgressão ativa ao sistema castrista e, por essa razão, a privação
da liberdade física acarretará a supressão de qualquer outra atividade que esteja relacionada
com a necessidade de evasão.
Durante os dois anos na prisão de El Morro, o sentimento de encarceramento se
apresenta ainda mais significativo, pois apenas em liberdade, ainda que relativa, o autor é
capaz de realizar as ações que ele considera transgressoras ao mesmo tempo em que
essenciais para sua existência em Cuba; portanto, o sexo torna-se impraticável no cárcere,
pois o pode mais proporcionar a sensação de evasão, assim como a prática literária perde
seu significado se não pode ser um instrumento para a existência individual:
Negava-me fazer amor com os presos mesmo que alguns, apesar da fome e
dos maus-tratos, eram bastante desejáveis. Não havia nenhuma grandeza
naquele ato; teria sido rebaixar-me. Além do mais era muito perigoso; esses
delinqüentes, depois de possuírem um preso, se sentiam donos dessa pessoa
e de seus poucos pertences. As relações sexuais se convertem, dentro de
uma prisão, em algo sórdido que se realiza sob o signo da submissão e da
subordinação, da chantagem e da violência; inclusive, em muitas ocasiões,
do crime. A beleza da relação sexual está na espontaneidade da conquista e
do segredo sob o qual se realiza essa conquista. No cárcere tudo é evidente
e mesquinho; o próprio sistema carcerário faz com que o preso se sinta um
animal e qualquer forma de sexo é algo humilhante. (ARENAS, 1994, p.
205)
22
22
No original: “Me negaba a hacer el amor con los presidiarios aunque algunos, a pesar del hambre y del
maltrato, eran bastante apetecibles. No había ninguna grandeza en aquel acto; hubiera sido rebajarse.
Además, era muy peligroso; esos delincuentes, después de que poseían a un preso, se sentían dueños de esa
persona y de sus pocas propiedades. Las relacione sexuales se convierten, en una cárcel, en algo sórdido que
se realiza bajo el signo de la sumisión y el sometimiento, del chantaje y de la violencia; incluso, en muchos
92
Assim como a prisão, a AIDS representa, para o escritor cubano, a destruição do
universo que, até então, se lhe apresentava como refúgio, no qual o sexo se configurava como
a afirmação de sua consciência como indivíduo privado de identidade no exílio, que, junto de
sua literatura, celebrava essa identidade ao mesmo tempo única e compartilhada pelo
contexto cubano. A doença não se apresenta, para Arenas, como uma conseqüência de seus
próprios atos, mas, sim, como o resultado de algo muito maior do que o ato sexual em si: a
destruição do que significava, para ele, a vivência plena. Para o escritor, a deterioração do
corpo se apresenta pior do que a própria morte, pois isso o impede de prosseguir sua vida sem
que essa tenha se concluído:
Vejo que chego quase no final desta apresentação, que é na realidade meu
fim, e não falei muito sobre a AIDS. Não posso fazê-lo, não sei o que é.
Ninguém sabe na verdade. Visitei dezenas de médicos e para todos é um
enigma. Trata-se as enfermidades relativas à AIDS, mas a AIDS parece
mais um segredo de Estado. Se posso assegurar que é uma doença, não é
uma doença do mesmo tipo das conhecidas. As doenças são produtos da
natureza e, como tudo que é natural não é perfeito, é possível combater e
até eliminar. A AIDS é um mal perfeito porque está fora da natureza
humana e sua função é acabar com o ser humano da maneira mais cruel e
sistemática possível. Realmente jamais conhecemos uma calamidade tão
invulnerável. Esta perfeição diabólica é o que faz pensar às vezes na
possibilidade de haver a intervenção do homem. Os governantes do mundo
inteiro, a classe reacionária sempre no poder e os poderosos sob qualquer
sistema devem se sentir muito contentes com a AIDS, pois grande parte da
população marginal que não aspira mais do que viver, e que por isso, é
inimiga de todo o dogma e hipocrisia política, desaparecerá com essa
calamidade. (ARENAS, 1994, p.15)
23
ocasiones, del crimen. Lo bello de la relación sexual está en la espontaneidad de la conquista y del secreto en
que se realiza esa conquista. En la cárcel todo es evidente y mesquino; el propio sistema carcelario hace que
el preso se sienta como un animal y culaquier forma del sexo es algo humillante.” (ARENAS, 2006, p. 205)
23
No original: “Veo que llego casi al fin de esta presentación, que es en realidad mi fin, y no he hablado del
SIDA. No puedo hacerlo, no que es. Nadie lo sabe realmente. He visitado decenas de médicos y para
todos es un enigma. Se atienden las enfermedades relativas al SIDA, pero el SIDA parece más bien un
secreto de Estado. Sí puedo asegurar que, de ser una enfermedad, no es una enfermedad al estilo de todas las
conocidas. Las enfermedades son producto de la naturaleza y, por lo tanto, como todo lo natural no es
perfecto, se pueden combatir y hasta eliminar. El SIDA es un mal perfecto porque está fuera de la naturaleza
humana y su función es acabar con el ser humano de la manera más cruel y sistemática posible. Realmente
jamás se conocido uma calamidad tan invulnerable. Esta perfección diabólica es la que hace pensar a
veces en la posibilidad de la mano del hombre. Los gobernantes del mundo entero, la clase reaccionaria
siempre en el poder y los poderosos bajo cualquier sistema, tienen que sentirse muy contentos con el SIDA,
93
Reinaldo Arenas encara a epidemia de Aids, na cada de 1980, como um produto do
sistema em que está inserido; como, para ele, o sexo, como um ato físico de transgressão,
corresponde à própria existência, a Aids significará a decadência dessa existência, a
personificação da catástrofe, que não ocorreria se ele, como tantos outros, pudesse ter vivido
livre segundo seus próprios princípios. A liberdade e o sentimento de evasão, tão buscados
em Cuba através da literatura e do sexo culminam, no desterro, na destruição de todos esses
ideais pela Aids, pois ela proporciona a proximidade do fim, que, para o autor, parecerá ainda
pior do que o fim em si mesmo.
A iminência da morte do corpo desperta em Arenas a obrigatoriedade de deixar seu
rastro na história, seu testemunho; ao saber que não mais nada a fazer, que o fim está
próximo, ele acaba por desejar a morte, pois o indivíduo que escreve não é o mesmo que
vivenciou os fatos que ele narra no presente; o sujeito do presente não possui mais nada que o
caracterize como o indivíduo que foi, apenas seu passado, que reside na memória, pode fazer
existir esse indivíduo. Assim, ele deseja a morte como libertação, pois segundo Gusdorf, “a
narrativa de uma vida somente pode terminar quando a vida termina” (1991, p. 51, tradução
nossa), e portanto, se Arenas reside em sua autobiografia e vive fisicamente através do sexo,
ele apenas poderá existir com sua própria morte:
Na realidade, não vou dizer que queria morrer, mas considerando que
quando não outra opção que o sofrimento e a dor sem esperanças, a
morte é mil vezes melhor. Por outro lado, alguns meses entrei em um
banheiro público e não consegui sentir essa sensação de expectativa e
cumplicidade que sempre se produzia. Ninguém fez caso de minha
presença, e os que ali estavam continuaram com seus jogos eróticos. Eu
não existia. Não era jovem. Ali mesmo pensei que o melhor era a morte.
Sempre considerei um ato miserável mendigar a vida como um favor. Ou se
vive como se deseja, ou é melhor não seguir vivendo. Em Cuba suportei
milhares de calamidades porque sempre me encorajou a esperança de fugir
pues gran parte de la población marginal que no aspira más que a vivir y, por lo tanto, es enemiga de todo
dogma e hipocresía política, desaparecerá con esta clamidad.” (ARENAS, 2006, p. 15)
94
e a possibilidade de salvar meus manuscritos. Agora a única fuga que me
restava era a morte. (ARENAS, 1994, p. 9)
24
Este trecho conjuga o que representava para o escritor tanto o sexo quanto a literatura
e o próprio exílio: a existência de plena liberdade sexual e literária. O exílio, junto da Aids
que representa a iminência da morte, consagram o sentimento de encarceramento e, junto
dele, todos os terrores que configuram a catástrofe: o exílio não significava a liberdade.
3.4 Reinaldo Arenas: o narrador da catástrofe
O escritor cubano Reinaldo Arenas foi considerado um contra-revolucionário pelo
regime castrista pelo apelo político presente em sua escrita e sua convivência com outros
escritores e artistas considerados subversivos ao regime; além disso, sua condição de
homossexual intensificou ainda mais a perseguição que sofria. Reinaldo Arenas não podia ser
ele próprio, tudo o que fazia parte de seu ser era proibido no contexto cubano pós-revolução:
sua literatura e sua homossexualidade. O escritor busca, então, refúgio na literatura; Arenas
passava seus dias em uma constante produção literária, mesmo correndo o risco de ser preso a
qualquer momento, mesmo sabendo que, talvez, nunca pudesse publicá-los, mesmo tendo de
destruí-los e reescrevê-los inúmeras vezes, produzir seus manuscritos era seu único fim:
Essa exigência paradoxal de transmissão sem inteligibilidade acaba sendo
talvez a última maneira de atestar a possibilidade de uma dignidade humana
[...]. Como se continuar a transmitir aquém de toda explicação, continuar a
falar mesmo sem saber se, um dia, alguém ouvirá, como se essa absurda e
última aposta na linguagem e na comunicação desenhasse ainda a figura
24
No original: “En realidad no voy decir que quisiera morirme, pero considero que, cuando no hay otra opción
que el sufrimiento y el dolor sin esperanzas, la muerte es mil veces mejor. Por otra parte, hacía unos meses
que había entrado en un urinario publico, y no se había producido esa sensación de expectación y
complicidad que siempre se había producido. Nadie me había hecho caso, y los que allí estaban habían
seguido con sus juegos eróticos. Yo yá no existía. No era joven. Allí mismo pensé que lo mejor era la muerte.
Siempre he considerado un acto miserable mendigar la vida como un favor. O se vive como uno desea, o es
mejor no seguir viviendo. En Cuba había soportado miles de calamidades porque siempre me alen la
esperanza de la fuga y la posibilidad de salvar mis manuscritos. Ahora la única fuga que me quedaba era la
muerte.” (ARENAS, 2006, p. 9)
95
frágil de uma possível humanidade. Renunciar a contar e a transmitir,
mesmo por falta de palavras ou por excesso de dor, significaria [...] pactuar
com a ignomínia. (GAGNEBIN, 1994, p. 125)
No mesmo texto, Gagnebin diz que “aniquilar um homem, é tanto privá-lo de comida
como de palavra” (1994, p. 125). Portanto, privar Arenas de produzir sua literatura era o
mesmo que privá-lo da vida, que o autor declara apenas poder existir através da literatura.
A necessidade de exteriorizar suas idéias, seus sentimentos e os acontecimentos que o
tornaram um indivíduo que experimentou, em Cuba e no exílio, um sentimento de
encarceramento em si próprio e em sua literatura, configura o autor como testemunha desses
acontecimentos cujo papel será o de transmitir um novo ponto de vista que conta do que
ele considera inarrável e que proporcione outro modo de olhar a história de Cuba. Dessa
maneira, seu papel como testemunha se converterá no papel de narrador das ruínas da
história.
Em “O Narrador”, Walter Benjamin declara que a narrativa, como “uma forma
artesanal de comunicação” (BENJAMIN, 1985, p. 205), transmite, junto com a experiência, a
marca do narrador. De todo modo, o narrador da tradição vivenciou esses fatos para adquirir
essa experiência narrada por ele, e, assim, seu ponto de vista, sua “marca”, segundo
Benjamin, não tem como não fazer parte da coisa narrada. Na autobiografia de Arenas, a
marca que o narrador carrega consigo é aquela trazida à tona pela memória do passado, que
imprime no narrador no presente as sensações experimentadas por ele tanto no momento de
registro dessas lembranças quanto no momento de recuperar o passado, no qual o contexto do
presente exercerá uma influência de modo a transformar e recriar essas lembranças.
O testemunho de Reinaldo Arenas, portanto, algo além da narrativa de fatos e eventos
vivenciados por ele que fazem parte de uma história; seu papel como narrador é transmitir
uma experiência individual em meio a esse contexto, um ponto de vista. Independentemente
96
de posição política ou orientação sexual, o escritor faz parte do povo cubano que não pode
participar nem transmitir a nova história que é construída em seu país natal senão por meio de
palavras. Toda sua existência, relatada em sua autobiografia, é, também, um relato coletivo, é
uma vida inserida em uma sociedade que vivencia o mesmo que ele, e que não é narrada pela
história.
Walter Benjamin declara que o sentido da vida de alguém somente é revelado a partir
de sua morte. Essa vida que chegou ao fim alcançou seu destino. A moral da história se
conclui. Em Antes que Anoiteça, o destino final do narrador está traçado pela Aids, ele
próprio declara estar no fim de seus dias, nada mais pode ser feito por ele além de concluir a
narrativa de sua vida. Suicidando-se, ele a conclui:
Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem
para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada.
Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens é a
imagem de uma experiência coletiva, para a qual o mesmo e mais profundo
choque da experiência individual, a morte, não representa nem um
escândalo nem um impedimento. (BENJAMIN, 1985, p. 215).
O narrador Reinaldo Arenas não deixa seu passado cair no esquecimento, ele deixa
seu rastro, a ser seguido ou não. Rememorando o passado, ele tenta transformar o presente,
ou seja, consolidar sua existência, que existe, apenas, nas palavras em um papel. Em sua
narrativa, residem também as ruínas da história que ele acredita não ser somente a sua, mas
de seu povo, a história que ele não quer que seja esquecida antes que possa existir fora da
memória. Transmitir sua experiência é, para ele, o mais importante de tudo, mais do que
viver; toda sua vida está nessa experiência relatada antes do anoitecer de sua existência.
Reinaldo Arenas procura, portanto, narrar o inarrável, narrar o trauma, através de sua
história. Sua intenção, ao narrar sua vida em sua autobiografia, é, justamente, compartilhá-la,
como se ela servisse de alerta e como um desabafo. Toda sua vida adulta foi centrada em um
esforço para transmitir essa experiência, dentro ou fora de Cuba, experiência que, segundo
97
Benjamin, em “Experiência e Pobreza”, é capaz de recuperar novamente na história os rastros
que foram apagados, o para retomar esses rastros, mas, sim, para deixar outros através do
testemunho individual. O processo mesmo de criação da autobiografia parte da pobreza de
experiência segundo Gusdorf: “Essa despossessão da consciência pessoal, despojada de toda
iniciativa, devia naturalmente culminar no caso do conhecimento de si [...]” (GUSDORF,
1991, p. 70, tradução nossa), em que o sujeito seja responsável por romper com os valores
morais da sociedade que transmitem apenas uma versão da história. Dessa maneira, “a
história do si vai, pouco a pouco, preencher o papel deixado vago pela história comum”
(GAGNEBIN, 1994, p. 68): transmitir a experiência individual que resgate aquela que reside
nas ruínas da história.
A isso deve-se somar o papel do narrador tradicional, que carrega consigo a
experiência a ser transmitida. Reinaldo Arenas exerce esse papel ao narrar, através de sua
autobiografia, os eventos que tanto testemunhou como vivenciou; o que se configura, sob seu
ponto de vista, como a catástrofe o reconhecimento da queda de seus ideais, a despossessão
de sua identidade e a iminência da morte deve ser passado adiante a fim de elucidar o
presente e oferecer, à história da humanidade, um olhar capaz de proporcionar um novo
conceito de história.
Portanto, a catástrofe, para o escritor cubano, não se configura apenas pela não
consagração de seus ideais, mas também pelo fato de que os acontecimentos que compõem
sua idéia de catástrofe não sejam transmitidos e nem reconhecidos. Ao revelar esses
acontecimentos, ele pode ser considerado o narrador da catástrofe.
98
Considerações finais
As relações entre a narrativa literária, autobiográfica e histórica em Antes que
Anoiteça (1992), de Reinaldo Arenas, são a base para a análise, nesse trabalho, da
representação do sentimento de encarceramento experimentado pelo autor, que se revelará em
sua obra assim como na adaptação cinematográfica da mesma, através do foco narrativo, que
possibilita a representação de uma realidade por meio do discurso de uma testemunha e um
novo ponto de vista em relação ao registro dos fatos históricos que entremeiam a narrativa
autobiográfica. Desse modo, os diversos elementos que compõem a autobiografia do escritor
cubano fazem parte de um novo olhar sobre a história da Revolução Cubana de 1959, olhar
que enfatizará a necessidade, que aflora com mais vigor no século XX, de voltar-se para as
ruínas da história a fim de elucidar o presente e desatá-lo da imposição do passado.
Octavio Paz (1974) aponta a importância da crítica em geral, na América Latina,
principalmente em relação ao que ele chama “mitologias históricas e políticas” (p. 115). Para
o autor, a história da América Latina é delimitada pela visão totalizadora, em que a adoção da
temporalidade linear assume o papel de manter a imposição do passado sobre o presente, e,
consequentemente, que essa imposição se repita no futuro. Segundo Paz, a tradição da ruptura
instituída pelos movimentos literários e filosóficos da modernidade permitiu o surgimento de
uma visão sobre o percurso da história no qual não cabe um progresso linear: a pluralidade de
passados, a qual permite a possibilidade de pluralidade de futuros.
Esse ponto de vista em relação à história e à temporalidade, Paz identifica na poesia
contemporânea da América Latina, mais precisamente no ponto de vista dos escritores do
final do século XX, que vêem no agora, no presente, o “centro de convergência dos tempos”
(1974, p. 198). A transformação dos movimentos políticos revolucionários do século XX no
que Paz chama de “inquisições”, deve-se, segundo ele, à visão marxista de progresso linear
99
da história, que culminaria no próprio socialismo, o que, para Walter Benjamin, se identifica
como uma visão messiânica da história cujo ápice seria o retorno às origens, ou seja, à
sociedade inicial, igualitária. No entanto, as revoluções que romperam com a política vigente
e implantaram mudanças sociais em seus países, não romperam com o ciclo de repetições do
passado. Portanto, o curso linear da história deve ser rompido no presente para que o futuro
não seja a consolidação do passado, mas sim, a transformação deste passado.
A rememoração do passado nas narrativas de testemunho, entretanto, fornecerá a base
para a transformação do passado, no presente, tanto no próprio ato de rememorar, o que não
permite que os eventos do passado caiam no esquecimento, quanto na transformação desse
passado.
Para isso, abordamos a questão das escritas do eu e da literatura de testemunho
atribuindo-lhes o papel de identificar as lacunas da história oficial através de um novo olhar
para os acontecimentos do passado, resgatados através da memória de sobreviventes e
testemunhas de eventos-limite, que, segundo rcio Seligmann-Silva, povoaram a literatura
da era das catástrofes e genocídios. Desse modo, a literatura de testemunho exerce a função
de documento histórico e abre precedentes para que o ponto de vista do indivíduo seja
considerado como parte do registro da história, e, com isso, surja uma nova consciência
histórica do passado.
Se a escrita do eu, como testemunho dos fatos históricos que não pertencem à história
oficial, é capaz de oferecer uma versão diferente dos acontecimentos, isso se deve ao papel do
narrador, que proporciona, por meio de sua narrativa, não apenas a visão do indivíduo que faz
parte daquilo que narra e, por isso, figura-se como o detentor de uma verdade capaz de
elucidar uma parte da história da humanidade, mas ele também transmite uma experiência
que resgata seu papel como artesão da história:
100
Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar
conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, não para muitos casos,
como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que
não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência
alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe
por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la
inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua
narração consumir completamente a mecha de sua vida. (BENJAMIN.
1986, p. 221)
Nesse sentido, Reinaldo Arenas transmite, em Antes que Anoiteça (1992), a
experiência de um sobrevivente da catástrofe, que, ao mesmo tempo em que testemunha uma
situação radical, reconstrói um universo no qual é possível existir, e é a partir desse mundo,
construído por ele em sua autobiografia, que seu papel como narrador se desenvolve. Como
narrador da catástrofe, ele consegue recuperar sua existência perdida nos escombros da
história da Revolução Cubana, e partir dela para estabelecer uma nova história.
101
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