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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
COMUNICAÇÃO E CULTURA
CONTEMPORÂNEAS
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
Ana Claudia Freitas Pantoja
SALVADOR
BAHIA - BRASIL
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2005
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Ana Claudia Freitas Pantoja
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
Dissertação apresentada como requisito para
obtenção do título de Mestre em
Comunicação e Cultura Contemporâneas
pela Universidade Federal da Bahia - UFBa
Orientador
Prof. Doutor Jeder Janotti Jr
SALVADOR
BAHIA - BRASIL
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2005
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Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
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Agradecimentos
Adelaide, Adilson e Fábio: sem o apoio irrestrito dessas três pessoas (uma
verdadeira torcida organizada), comprovado de todas as maneiras possíveis e imagináveis,
minha pesquisa jamais teria saído do patamar das boas intenções. Por terem me ensinado o
significado da palavra incondicional, obrigada.
Jeder: de quem eu tive a honra de ter sido a primeira orientanda de Mestrado, ao
lado de Luiz, para quem eu dei muito trabalho e que me respondeu sob a forma de
atenção redobrada, gentileza e elegância na hora de tecer críticas, obrigada.
Agradeço também a todos os Professores e demais funcionários do Curso de
s-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBa, que investiram em
mim recursos materiais, tempo, dedicação e empenho.
À Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) que
possibilitou a finalização da pesquisa através de uma bolsa de auxílio financeiro.
A todos os colegas que solidariamente ofereceram suas casas e equipamentos
digitais quando sabiam que nem sempre eu contava com infra-estrutura adequada para a
condução da pesquisa. o oferecimento às vezes já garantia ânimo suficiente para eu
8
continuar.
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``Deformando o espaço através duma espiral,
Escher mostra-nos um jovem que contempla,
numa galeria de pintura, um quadro do qual,
afinal, ele próprio faz parte integrante.
Se o sujeito e o objecto se envolvem num
anel auto-referente, o que é a realidade?
Se o sujeito e o objecto se geram mutuamente,
não podendo estabelecer-se o ponto
onde tudo começa, o que é o objecto?''
Maria Manuel Araújo Jorge
Somos herança da memória”
Lars Ramos
O tempo é um guia cego
(Anne Michaels)
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Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
_____________________________________________________
Sumário
_____________________________________________________
RESUMO / ABSTRACT .................................................................................... f 09 /
10
INTRODUÇÃO ..............................................................................................................
12
CAP. I ..............................................................................................................................
17
Panorâmica geral da obra
Bases de constituição do objeto
Formas de aproximação analítica
1.1 Nós que aqui estamos por vos esperamos .................................................................
17
1.2 Fontes primárias de inspiração: microhistoriografia e psicanálise ............................ 23
1.2.1 Hobsbawm e a A era dos extremos ............................................................
23
12
1.2.2 A microhistória ..........................................................................................
29
1.2.3 A psicanálise ..............................................................................................
34
1.3 Metodologia ...............................................................................................................
37
1.4 A Montagem ..............................................................................................................
45
5 Edição digital .............................................................................................................
51
13
CAP. II ..............................................................................................................................
62
Detalhamento da obra
2.1 Nós que aqui estamos por vos esperamos – Estruturação ..........................................
62
11 Seqüência de abertura ..................................................................................
63
12 Seqüência Nijinski .......................................................................................
71
13 Transição entre seqüências ..........................................................................
79
14 Seqüência Ford T .........................................................................................
80
15 Seqüência O Alfaiate ...................................................................................
83
16 Seqüência Família Jones ..............................................................................
88
17 Seqüência Marta-Pablito ..............................................................................
94
18 Seqüência Hans e Anna .............................................................................
117
19 Seqüência A Solidão e a Guerra ................................................................
124
20 Seqüência Paranóia ....................................................................................
132
14
21 Seqüência 4 Pernas ....................................................................................
142
22 Seqüência Viagem à Lua ...........................................................................
145
23 Seqüência Elas ............................................................................................
149
24 Seqüência Luz, Rádio e Aspirina ..............................................................
160
25 Seqüência Domingos .................................................................................
166
26 Seqüência Perto de Deus ...........................................................................
172
CAP. III ..........................................................................................................................
181
Programas de Produção de Efeito – Análise
3.1 Programa Sensorial ...................................................................................................
182
3.11 Apropriação das estratégias do Cinema-Verdade ....................................
183
3.12 Estratégias de construção do sentido de velocidade ................................
186
3.13 Estratégias de continuidade ......................................................................
188
15
3.14 Estratégias de Realce ............................................................................... 192
3.15 Estratégias de Corporalidade ...................................................................
200
3.16 Construção de Relações Temporais-espaciais .........................................
202
3.2 Programa Sentimental ..............................................................................................
206
3.2.1 Corporalidade e Identificação ..................................................................
207
3.2.2 Constituição de atmosferas afetivas ........................................................
211
3.3 Programa Cognitivo .................................................................................................
226
3.3.1 Formação de blocos heterogêneos e Reiteração .....................................
227
2 Organização de dados através da montagem ..........................................
229
3 Estratégias de autoridade discursiva .......................................................
231
4 Estratégias de actorialização ...................................................................
235
5 Estratégias de Negação ...........................................................................
238
CONCLUSÃO ..............................................................................................................
16
241
ILUSTRAÇÕES ...........................................................................................................
248
ANEXO 1 - Breve histórico profissional de Marcelo Masagão ............................... 253
ANEXO 2 - "O Dogma e o desejo" .............................................................................
258
FICHA TÉCNICA DO FILME ...................................................................................
261
REFERÊNCIAS ...........................................................................................................
264
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
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Resumo
O premiado longa-metragem brasileiro Nós que aqui estamos por vós esperamos, de
Marcelo Masagão, foi apresentado pela primeira vez ao público em 1999, sob a incomum
classificação de “filme-memória” e uma proposta ambiciosa: contar em 73 minutos a
17
história do século XX. O personagem principal o “homem comum”, anônimo e
normalmente esquecido nas retrospectivas grandiloqüentes que se acumulavam no mesmo
período. As fontes de inspiração a microhistória e a psicanálise. A premissa a
montagem. Pouco mais de 95% do conteúdo da obra são provenientes de bancos de
imagens; exclusão do locutor off-screen e a trama é construída somente a partir de
imagens, sons e legendas; tamm verifica-se a rejeição à apresentão cronológica dos
fatos; eliminação dos depoimentos de testemunhas oculares; inexistência de um protagonista
aos moldes tradicionais; enorme gama de personagens e sub-temas tratados; ausência de
diálogos; emprego de tecnologia digital no processo de edição; e reunião de eventos
segundo uma lógica conceitual e não historiográfica (rigorosamente falando). Enfim, uma
trama que tenta reproduzir em sua própria forma a velocidade, a dispersão, a técnica e
violência que marcaram o século XX. Um objeto que reúne as condições procias para o
estudo espefico da montagem e das formas de orientação de leitura contidas no texto
fílmico. Como a obra guia o público em meio à profusão de personagens, assuntos e
efeitos?
A análise e identificação das estratégias empregadas em Nós que aqui estamos por
vós esperamos para guiar o espectador na construção de sentido são os principais objetivos
da presente pesquisa. Como instrumental de aproximação ao objeto é aplicado o método
desenvolvido no Laboratório de Análise lmica do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, baseado nos
programas de produção de efeitos de caráter sensorial, sentimental e cognitivo.
Palavras-chave: cinema – montagem – texto – leitura – orientação – estratégias
_________________
Abstract
18
_________________
This current research has as its main goal to figure out the film guiding strategies of
a Brazilian movie intitled Nós que aqui estamos por vós esperamos (witch basically means:
Here we are, waiting for you). It´s a kind of memory-movie”, between the documentary
and fiction borders. The story is about the XX century: all the glory and all failure involved
in the human adventure during this period. The science and technology progresses are
shown to the side of misery, starvation and hopelessness; the laboter who worked in Fort T
factory, for example, could never afford his own vehicle, and even with the remarkable
digital new life, children still work until death in the poor countries. The movie presents us
the deep inaquality in the good’s distribution exactly in the richest century of history. On the
other hand, it also shows us the largeness of modern art and the beauty of the movements
for freedom in the 20´s and 60´s. But probably the most important aspect of Nós que aqui
estamos por vós esperamos is the day-by-day people recognition built by the film. Sets of
ten not-famous are the drama protagonists: men and women involved in the simplest works,
the truly history force.
And the movie also presents other attraticves to the research: more than 95% the
film’s images are proceeded from old movies archives; there´s no off-screen narrator, nor
dialogues or witnesses speeches. Only music, images and writing texts (legends) tell the
story. The chronological order has been banished and events from very different places and
times are congregated in a conceptual logic. The huge number of personages and small
biographies showed make the movie seems like bedspread of remnants, a complex mosaic of
information and stimulations. Everything assembled by the editing processes. That’s the
password to this work of art magic.
So what we want to understand is how the film guides the public during the show.
What strategies the communication product uses to limit the endless number of possible
interpretations? It must have some plan because very different people from the public can
reach a much seemed view of the film.
Trying to answer these questions, the analysis uses a research method based in a
19
stimulator division. The strategies are studied in three different ways: in a cognitive
point-of-view, in an emotional approach and through a sensorial boarding. This
methodology has been developed and applied for a group of researchers from a Brazilian
university. They make part of the Film Analysis Laboratory by the Postgraduation Course
in Contemporary Culture and Mass Comunication”, tied to the Universidade Federal da
Bahia (UFBa).
Key-words: cinema – cinematographic editing processes –
film text – interpretation – movie guiding strategies
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
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Introdução
_____________________________________________________
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Em 1999, quando realizadores do mundo todo apresentavam ou finalizavam obras
audiovisuais relativas ao fim do século XX (normalmente com o intuito de exibir um
balanço geral das perdas e ganhos acumulados no período), um filme chamou a atenção nos
festivais brasileiros e estrangeiros de que participou. Primeiro pela dificuldade de
identificação do gênero cinematográfico ao qual se filiava; segundo, pelo estilo pouco
convencional de reunir e apresentar os temas selecionados. O - a princípio - enigmático
título Nós que aqui estamos por vós esperamos revelou ao público uma obra que mescla
eventos cruciais do último século com pequenas biografias livremente criadas pelo
produtor, roteirista, diretor e editor do filme, Marcelo Masagão. Exibido como um
filme-memória”, Nós que aqui estamos por vós esperamos é bem mais uma expressão de
perplexidade frente a um período altamente spare que a pretensão de retratar literalmente
os acontecimentos da época.
Centenas de planos selecionados em bancos de imagens de quatro continentes, sob
tutela de mais de 40 instituições, foram reunidos no filme, porém sem qualquer respeito pela
ordem cronológica original dos registros. Acontecimentos apartados no tempo e no espaço
foram aproximados por suas possibilidades plásticas, poéticas e conceituais, sem o auxílio
de locução off-screen ou de depoimentos de testemunhas. Em Nós que aqui estamos por
vós esperamos, somente imagens, sons e legendas são utilizados na composição da trama.
Nem mesmo o acompanhamento da trajetória de um herói nos ajuda na compreensão da
narrativa. Dezenas de homens e mulheres provenientes de diferentes países, décadas, graus
de reconhecimento blico e classes sociais são exibidos. Cientistas recebem tanta atenção
quanto operários comuns, políticos ilustres, donas casa anônimas e mais uma miscelânea de
personagens diversos.
Numa observação superficial, o filme assemelha-se a uma colcha de retalhos, onde o
aleatório é a palavra de ordem. Se pensarmos então no conjunto de espectadores aos quais
a obra se destina, mais obscuro ainda parece o sentido de unidade do produto final. Por
reunir conteúdos de alguma forma disponíveis ao público através de fontes anteriores (seja
por meio da dia televisiva, de outros filmes ou da literatura historiográfica), torna-se
impossível determinar o grau de ineditismo que a obra representa a cada espectador ou o rol
21
de conhecimentos prévios que ela é capaz de mobilizar. Como vislumbrar o amplo universo
de recepção de uma obra formada por tantas referências e de que modo podemos falar num
tipo de leitura” comum frente a um produto composto por materiais de natureza e origens
múltiplas? Os tipos de interpretação posveis serão tão numerosos quanto numerosos
forem os indiduos que se dispuserem à fruição do produto. Além das diferenças
vinculadas ao investimento pessoal de cada integrante da audiência no exercício de
compreensão, sempre questões ligadas à formação cultural de cada espectador, suas
idiossincrasias, preferências e formas de leitura subjetivas, aliadas às imposições e liberdades
propostas pelo contexto sócio, econômico, político e cultural que o cercam.
Mas, ainda assim, a despeito de toda pressuposição baseada na dispersão tempo-
espacial aparente no filme e da profusão de personagens e possibilidades individuais de
leitura, Nós que aqui estamos por vós esperamos tece em seu interior mecanismos de
unificão que transformam a obra numa experiência coerente e passível de ser apreendida
pelo público, se não de forma unânime, pelo menos de maneiras similares. Os fragmentos
biográficos tornam-se partes de um mesmo todo; um mundo finito, delimitado por fronteiras
narrativas nem sempre óbvias no primeiro olhar, mas capazes de transformar a obra num
evento irrepetível.
São esses limites que determinam as margens de leitura e constroem um certo tipo
de linha de racionio a ser seguida pelo público. Obviamente, não em Nós que aqui
estamos por vós esperamos, nem em qualquer outro produto audiovisual, garantias
indubitáveis de que os sinais e as instruções” oferecidas à audiência serão seguidas à risca.
Nada impede que alguém simplesmente não encontre sentido algum num filme. Contudo, é
perfeitamente razoável a idéia de que as obras foram concebidas para ampla compreensão
do público (ou pelo menos de um certo público) e que conspiram não apenas para transmitir
idéias mais ou menos originais, mas para fazê-lo de um modo muito particular, seduzindo,
enternecendo, alegrando ou chocando o espectador.
Logo, se quisermos compreender o funcionamento de uma obra e como seus efeitos
sobre a audiência são efetivados, é preciso desvendar os mecanismos através dos quais o
produto guia” seu destinatário. Trata-se de explorar os sistemas operacionais previstos na
obra, prolongando as pistas que o próprio filme oferece.
A presente pesquisa tem exatamente esse objetivo: investigar como Nós que aqui
22
estamos por vós esperamos enfrenta os desafios da plurissemia imagética, analisando as
estratégias adotadas na obra para orientação de sentido.
Como ferramentas de aproximação ao objeto de estudo, foram aplicadas as
diretrizes metodológicas desenvolvidas no Laboratório de Análise lmica do Programa de
s-Graduação da Universidade Federal da Bahia, que prevêem uma investigação baseada
exclusivamente nas informações disponíveis no interior do próprio filme. Aspectos ligados à
produção da obra, divulgação comercial e êxito financeiro ou sob a forma de prestígio entre
os críticos são incldos apenas para situar minimamente o leitor da pesquisa frente ao filme,
não fazendo parte da análise propriamente dita. Esta opção vincula-se à meta de encontrar
na obra, e tão somente nela, as respostas para instituição de um consensonimo acerca do
produto, investigando em meio a seus articios as estratégias de produção de efeitos.
Mas, se falamos sobre “instruções” e “estratégias” é óbvio que, de certa forma,
que se chamar em causa os destinatários a que são dirigidas. Eis que a audiência empírica,
vasta e multíplice, sai de foco, abrindo espaço para o espectador “previsto”, de certa forma
até construído pela própria obra como uma estratégia textual. Nesse ponto, a metodologia
utiliza os conceitos de autor-modelo e leitor-modelo desenvolvidos pelo teórico Umberto
Eco em obras como Os limites da interpretação, Lector in fabula, Obra aberta e Seis
passeios pelos bosques da ficção.
“O autor-modelo é uma voz que nos fala afetuosamente (ou
imperiosamente, ou dissimuladamente), que nos quer a seu lado. Essa
voz se manifesta como uma estratégia narrativa, um conjunto de
instruções que nos são dadas passo a passo e que devemos seguir
quando decidimos agir como o leitor-modelo (...) O leitor-modelo que
propus depois é um conjunto de instruções textuais, apresentadas
pela manifestação linear do texto precisamente como um conjunto de
frases ou de outros sinais.”
(ECO, 1994, p. 21-22)
Em busca desse “leitor-no-texto”, o suporte metodológico oferece três categorias
sicas que o pesquisador pode aplicar na análise dos estímulos responsáveis pela produção
23
de efeitos: os artifícios de ordem sensorial, sentimental e cognitiva. Uma tade que
beneficia os estudos de obras audiovisuais por considerar que a eficácia simbólica não se
baseia exclusivamente em fenômenos cognitivos, mas também se por via perceptiva de
apelo direto aos sentidos corporais e emocionais, o que permite um tipo de abordagem mais
rica do complexo som/imagem/texto verbal (GOMES, 2003, p.06).
Esse aspecto é essencial para compreensão de obras como Nós que aqui estamos
por vós esperamos, onde a aplicação simultânea de recursos sensoriais diversos possui
função-chave para eficácia da trama. Tendo 95% de seu material composto por imagens de
arquivo, o filme é um produto bastante favorável para análise específica da montagem, não
apenas pela mera junção de planos (o que ocorre em qualquer filme, salvo pelos realizados
em plano-sequência), mas tamme sobretudopelo fato de a montagem constituir-se na
grande articuladora de sentido no interior da obra. Ao contrário de outros filmes, onde os
demais elementos cinematográficos (enquadramento, iluminação, diálogos, cor...)
usualmente determinam o estilo de montagem, em Nós que aqui estamos por vós esperamos
essa lógica é invertida e a primazia passa para o outro lado da equação. Em resumo, o filme
é a montagem do filme. Por isso a pesquisa destina especial cuidado à descrição dos
elementos cnicos, seu manejo através da montagem e efeitos decorrentes desse uso em
Nós que aqui estamos por vós esperamos, reservando um capítulo inteiro ao detalhamento
da obra.
A análise de Nós que aqui estamos por vós esperamos também nos permite tecer
considerações acerca das possibilidades advindas das tecnologias digitais, pelo menos em
relação à obra em questão. Mas esta é apenas uma reflexão paralela, cuja inclusão no bojo
da pesquisa se pelo fato de Nós que aqui estamos por vós esperamos ter sido
concretizado num equipamento digital. O objetivo da análise é mesmo a investigação das
estratégias de orientação de leitura aplicadas na obra, muitas das quais independem do
suporte digital.
Para concretizar os objetivos traçados, o trabalho foi dividido em três capítulos. No
primeiro, são apresentadas as prescrições metodológicas e as características gerais do filme,
incluindo a abordagem dos eixos historiográfico e psicanalítico que norteiam o produto. No
segundo, a obra é descrita em pormenores: cada legenda é reproduzida na íntegra e
praticamente todos os efeitos visuais e sonoros são explicitados. No terceiro, é realizada a
24
análise das estratégias de produção de efeitos propriamente dita.
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
CAP. I ________________________________________________
Panorâmica geral da obra
Bases de constituição do objeto
Formas de aproximação analítica
________________________________________________
1.1
Nós que aqui estamos por vos esperamos
Um ás insuspeito. Ninguém esperava – a princípio nem mesmo o criador do filme – a
repercussão que Nós que aqui estamos por vós esperamos geraria dentro e fora do país. A
obra nem sequer foi originalmente concebida para ganhar as telas.
25
Ganhador de uma bolsa de estudos da Fundação MacArthur, o cineasta Marcelo
Masagão dedicou três anos ao estudo do século XX. O objetivo era desenvolver um
CD-Rom sobre os principais acontecimentos dos últimos cem anos. Para tanto, Masagão
percorreu bancos de imagens nos Estados Unidos, Europa e Brasil, além de freqüentar
durante um ano aulas sobre História Contemporânea, recebendo consultoria do professor da
Universidade de São Paulo (USP) Nicolau Sevcenko.
O trabalho cresceu e ficou claro o potencial de vir a tornar-se o primeiro
longa-metragem de um profissional que acumulava realizações de peso no currículo,
dentre elas a criação do elogiado Festival Internacional do Minuto e a direção da TV Cubo.
Fora do âmbito audiovisual, Masagão também exerceu atividades na área de psicologia,
mais especificamente no sentido da limitão de internações em manimios e reintegração
de doentes mentais ao convívio social .
Pronto. Estavam reunidas ali as condições propícias para o desenvolvimento de um
filme como Nós que aqui estamos por vós esperamos: o enfoque historiográfico, a
tendência psicanalítica de abordagem dos temas e a apologia da ntese como força de
expressão criativa. Os dois primeiros absolutamente explícitos nas legendas que introduzem
o filme (“O historiador é o Rei. Freud é a Rainha”), o terceiro evidenciado-se pela enorme
quantidade de personagens e assuntos apresentados nos 73 minutos de durão da obra.
A resposta o tardou a aparecer. Dentro e fora do país, Nós que aqui estamos por
vós esperamos teve grande receptividade de crítica e de público, com ótimo desempenho
nos festivais de que participou. Conquistou 14 prêmios no total, incluindo o de melhor filme
no IV Festival É Tudo Verdade”; de melhor documentário no XV Festival Internacional
do Uruguai; de melhor filme, roteiro e direção do III Festival de Cinema de Recife, pra
citar alguns exemplos.
Fora do circuito competitivo, Nós que aqui estamos por vós esperamos” tamm
trilhou uma carreira de sucesso, atraindo mais de 58 mil pessoas às salas de cinema com
apenas duas pias e permanecendo oito meses em cartaz em São Paulo e no Rio de
Janeiro. Conquistou a oitava posição no ranking de filmes nacionais mais assistidos em
1999. Isso num ano em que as produções nacionais recuperaram boa parte do público
(especialmente por Central do Brasil), sem o respaldo de atores consagrados pela televisão
26
no elenco e absolutamente nenhuma verba para divulgação. Dos U$ 140 mil destinados ao
projeto pela Fundação MacArthur, U$ 80 mil foram consumidos em direitos autorais,
destinados a 40 instituições e pessoas em quatro continentes. A RioFilmes financiou a
Kinescopia, mas nada restou para os anúncios sobre a exibição.
A saída encontrada foi oferecer sessões grátis em universidades, distribuir cópias em
VHS e pedir espaço nas salas do Serviço Social do Comércio, o Sesc. A propaganda
boca-boca” se revelaria bastante eficiente e os prêmios também começaram a chamar a
atenção da imprensa. Ao ponto de o programa jornalístico semanal da Rede Globo O
Fantástico veicular trechos do filme ao longo de sua exibão (um expediente raro em se
tratando de longa-metragens), com uma resposta positiva dos índices de audiência.
Indicativos de que a obra, além de agradar aos críticos e apreciadores exigentes dos
festivais de cinema, também conseguia alcançar o grande público.
Outro motivo de comemoração foi balanço do custo total do filme. Mesmo no
Brasil, onde a maior parte da produção cinematográfica não investe em efeitos especiais,
nem em divulgação maciça ou tampouco repassa cachês milionários às estrelas convidadas,
é comum que as produções ultrapassem a marca de U$ 1 milhão.
Essas cifras entram em contradição clara com o sistema de exibição vigente no país.
O número de salas é restrito, milhares de cidades não possuem qualquer espaço para
veiculação das obras e os pros dos ingressos inviabilizam a inclusão da maior parcela da
população entre o público pagante. Obviamente, é preciso repensar a lógica de distribuição
dos filmes, mas, enquanto isso, é clara a necessidade de produções financeiramente mais
viáveis.
A filmagem digital pode ser uma boa saída. É possível captar uma infinidade de
planos e contraplanos sem que isso acarrete um estouro orçamentário, que cada fita
digital equivale a aproximadamente U$ 30. A edição digital entra nesse rol de alternativas.
“Nós que aqui estamos por vós esperamos” foi gerado num dual Pentium 240 MHZ, com
126 de RAM, 28 GB de disco, com placa digitalizadora Perception e software Speed Razor
3.5. Um equipamento adquirido por um total de U$ 7 mil. Comparativamente, um preço
pouco elevado para edição digital e absurdamente irririo em relação ao valor da
aparelhagem e material do cinema em película.
27
Masagão estima que tenha consumido aproximadamente 2 mil horas na edição de
Nós que aqui estamos por vós esperamos. Considerando o preço investido no equipamento,
o diretor calcula que tenha gasto U$ 1 para cada hora na ilha digital. Marca importante da
possibilidade de barateamento da produção fílmica através das novas tecnologias.
Na mesma linha do “custo mínimo foram lançadas entre 1997 e 2003 diversas
outras obras produzidas a partir de tecnologias ditas alternativas em relação à filmagem em
35mm e/ou o processo de montagem. Entre elas: A Pessoa é Para o que Nasce, de Roberto
Berliner; Cine Mambembe, de Laís Bodanski e Luis Bolognese; O Filme da TV de Roberto
Moreira; O Cineasta da Selva, de Aurélio Michilles. Mesmo cineastas rigorosos
experimentam processos digitais em seus filmes, como Eduardo Coutinho. Aos poucos,
amplia-se a noção de que a tecnologia digital bem empregada corta custos, poupa tempo,
aumenta a oferta de produtos e, em conseqüência, pode vir a expandir as possibilidades de
expressão criativa.
Mas, a despeito das transformações que paulatinamente vêm abrindo pequenos
espaços para a maior democratização da produção, persiste a grande questão que move o
Cinema desde sempre, seja em 35 mm ou em suporte digital: o que dizer e como dizer.
Esse é o diferencial de Nós que aqui estamos por vós esperamos em relação às
retrospectivas feitas à base de lugares-comuns que se sucederam em salas de cinema e
programas de TV próximos à virada do milênio. Em meio a imeros outros produtos
audiovisuais com o mesmo mote o século XX, a questão seria como contar as mesmas
histórias sem a impressão de mesmice e o monótono pensamento "isso sei". Guerras,
avanços médicos, liberação feminina não são novidades. a forma de apresentá-los pode
ser, ao agregar novas abordagens ao conhecimento sedimentado.
O primeiro aspecto de grande importância na estruturação do filme foi a exclusão do
locutor aparente ou off-screen, figura que normalmente uniformidade aos produtos
audiovisuais de caráter histórico ao conduzir o texto de forma a tornar as imagens mera
confirmação do discurso verbal. Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, a lógica do
locutor onisciente, professoral, dá lugar a uma sucessão de imagens acompanhadas de
legendas, muitas das quais sequer apresentam razões para as ações representadas na tela e
ainda suscitam novas dúvidas.
Declarações testemunhais, como depoimentos de sobreviventes de guerra, também
28
foram retirados da obra. Segundo Masagão, elas parecem estar fadadas ao espetáculo, ao
ego mentirinha”, significando cada vez menos numa era onde esse recurso multiplica-se em
progressão geométrica (MASAGÃO, 1999).
Restaram as imagens, as legendas, música, rdos e silêncios para contar a história.
Uma trama pouco convencional que rejeita a ordem cronológica dos acontecimentos e
investe em abordagens pouco didáticas. Anônimos são apresentados com tanta ou mais
importância que grandes personalidades do século. Essas últimas às vezes tratadas apenas
pelo prenome ou em certos casos até representadas por fórmulas científicas (como a
referência a Einstein, mencionado simplesmente como: E=mc²). A caracterização proposta
pelo filme tende menos à consagração de mitos do que à compreensão de que muitas
celebridades do século XX transformaram-se em marcas.
Imagens de diferentes épocas e lugares são reunidas numa irmandade que
improvel. Dezenas de personagens diferentes, muitos desconhecidos do público, são
apresentados ao longo de todo o filme, obrigando o espectador a adaptar-se continuamente
às diversas contextualizações apresentadas, apreendendo cada uma em suas
particularidades, mas sem perder o fio da meada que reúne todos os segmentos da obra.
Parece tumultuado? E é. Porque se trata de levar às telas toda diversidade de um
século muito rico em conflitos e disparidades, traduzindo em imagens o imperativo da
supremacia tecnológica, o anseio da aceleração, da intensidade, da conectividade, a abolição
dos limites estreitos de tempo e espaço. Uma tentativa de adequar a forma do filme ao seu
conteúdo.
Mas contar, sem o concurso dos dois elementos mais comuns da tradição
documentarista – o locutor off-screen e as testemunhas oculares – a trajetória de um
período tão extenso é um desafio e tanto. Representar esse mosaico de pequenos recortes
biográficos, conquistas grandiosas e tragédias impactantes, aliados a uma representação
pouco ortodoxa de tempo e espaço, parece fadado à confusão do espectador. Contudo, de
alguma forma, a obra apresenta uma lógica própria. E esse é justamente um dos grandes
méritos de Nós que aqui estamos por vos esperamos: encontrar uma ordenação possível
àquilo que, à primeira vista, sugere um conjunto caótico e pouco acessível.
Se o filme o fosse composto por imagens de arquivo, mas constitdo a partir de
29
reconstituições encenadas por atores, teria sido mais fácil arquitetar formas de facilitar a
condução da trama. Mas não foi o caso. Nós que aqui estamos por vós esperamos é um
amplo painel formado por imagens colhidas em diversos recantos do mundo.
Tamm não se trata de um material absolutamente inédito aos olhos do público.
Grande parte das cenas já foi muitíssimo explorada anteriormente. Além de extirpar a
imagem da montagem original, ou seja, de um contexto imagético e sonoro, e inseri-la em
uma nova realidade, tratava-se também de lidar com os significados que boa parte do
público atribuía a essa imagem. Muitas vezes, tentar imprimir um outro olhar sobre o
conhecido é mais difícil que construir algo inédito. Seria preciso construir uma abordagem
nova e, sobretudo, convincente, para envolver o público numa obra constitda pelo “já
visto”.
Os caminhos utilizados para fugir das amarras da repetição e de encontrar fios
condutores viáveis no interior da obra são exatamente os alvos da presente pesquisa. Que
estratégias estão em operação em Nós que aqui estamos por vós esperamos para orientar o
espectador na apreciação do filme? Como estão estruturados os materiais expressivos de
forma a causar impacto? Se o locutor, as testemunhas, a ordem cronológica e os processos
usuais de construção dos personagens foram excluídos da trama, o que guia a audiência a
uma comunhão mínima de conclusões sobre a sucessão de imagens na tela? Uma análise que
desconsiderasse essas questões levaria o leitor da pesquisa a considerar a obra um exercício
delirante, imaginando que o espectador pode interpretar o filme de Masagão ao seu bel
prazer. Não é esse o caso. um sistema de orientação em funcionamento no filme, que
sugere ao público a exploração ativa, o acompanhamento das pistas que ele nos concede.
Compreender esse sistema, saber como ele opera, que dispositivos o compõem e o que ele
requisita do espectador são as respostas que devem estar contidas no final desse trabalho.
Mas antes de chegarmos à análise da obra em si, são necessários alguns
esclarecimentos prévios sobre os campos de pensamento que permeiam o filme e os
elementos da obra que justificam a escolha metodológica. Elementos que nos permitem uma
aproximação mais incisiva e eficiente do objeto de estudo.
30
_____________________________________________
1.2 Fontes primárias de inspiração:
microhistoriografia e psicanálise
_____________________________________________
O próprio Marcelo Masagão afirma: não era possível pensar num roteiro gido a ser
seguido durante a feitura de Nós que aqui estamos por vós esperamos. Eram tantas as
experimentações posveis a partir da tecnologia disponível e tamanha a variedade de
assuntos a serem tratados, que era mais viável apenas estabelecer “nortes”, horizontes de
pensamentos que deveriam funcionar como premissas da obra, de modo a não perdê-la no
torvelinho de suas próprias imagens (MASAGÃO, 1999).
Nesse sentido, três pontos de apoio foram utilizados para estruturão do filme: a os
parâmetros historiográficos hobsbawmianos, a abordagem da microhistória e a ênfase nas
idéias psicanalíticas.
______________________________________
1.2.1 Hobsbawm e a
A era dos extremos
O historiador marxista Eric Hobsbawm é nominalmente citado nos créditos finais do
filme como um dos consultores espirituais” de Nós que aqui estamos por vós esperamos.
Seu livro, A era dos extremos, lançado em 1994, foi fundamental para a seleção de temas e
formas de abordagem dos eventos marcantes do século XX exibidos na tela.
Hobsbawm consolidou-se como um dos maiores historiadores da atualidade após
lançar uma trilogia sobre o século XIX composta por A era das revoluções, A era do
capital e A era dos impérios, volumes que ajudaram a criar uma base consistente para
análise do período posterior.
Em A era dos extremos, Hobsbawn demonstra incrível fôlego ao destrinchar uma
gigantesca gama de acontecimentos e atividades humanas desenvolvidas ao longo do século
XX. Conhecimento hisrico e econômico aliam-se a impressões pertinentes sobre arte e
31
comportamento, compondo um painel vívido das crises, acontecimentos políticos e
impasses que marcaram o período.
Obviamente, a duração de Nós que aqui estamos por vós esperamos frente à
extensão do trabalho de Hobsbawm impossibilitou que um amplo volume de assuntos
presentes em A era dos extremos fosse abordado no filme. Mas pelo menos quatro das
principais idéias-chave do livro foram aproveitadas por Masagão. São elas:
a) A periodização
Não por acaso, o subtítulo de A era dos extremos é “O Breve Século XX”. De
acordo com a periodização proposta por Hobsbawm, até 1913 o mundo ainda vivia sob a
égide das crenças desenvolvidas no século XIX; no outro oposto, na cada de 90 os
aspectos fundamentais do século XX deram lugar às características do século seguinte.
Embalada pelos ritmos frenéticos dos primeiros discos fabricados, a geração Belle
Époque parecia destinada ao sucesso. Assistia-se ao acúmulo de descobertas e invenções
científicas; o crescimento urbano explosivo, o aumento vertiginoso da industrialização e,
com ela, novas formas de produção, circulação e consumo. Até a metade dos anos 10 foram
lançadas as bases para a emergência do que viria a ser um mercado verdadeiramente
mundial, sonho acalentado pela burguesia desde o mercantilismo.
Contudo, talvez o mais marcante do período tenha sido a crença de que o
tecnocentrismo e o domínio científico libertariam o homem da escassez e da arbitrariedade
das calamidades naturais e sociais, deixado-o livre do jugo das irracionalidades do mito, das
religiões e do uso arbitrário do poder. (HARVEY, 1989, p. 24). Nas palavras do então
entusiasta futurista italiano Umberto Boccioni: nós afirmamos que o triunfante progresso
da ciência torna inevitáveis as transformações da humanidade” (BERMAN, 1988, p. 24).
Para Hobsbawm, foi a partir de 1914, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial
e o naufrágio dos sonhos da Belle Époque, que o século XX teve seu primeiro ato,
enquanto a orgulhosa e sofisticada civilização européia se liquefazia em trincheiras
intermináveis.
Começava aí a trajetória de progressos gigantescos e fiascos igualmente retumbantes
do novo século. Período que pode ser dividido, na opinião do historiador, em três principais
32
fases: A Era da Catástrofe, que compreenderia as duas guerras mundiais e a crise
econômica de 1929; a Era de Ouro, assim chamada pela expansão do consumismo
capitalista nos anos 50 e 60; e o Desmoronamento, que ocorreria a partir dos anos 70, com
o esfacelamento das instituições tradicionais pela ascensão do capitalismo industrial.
Para Hobsbawm, a fase do Desmoronamento demorou pouco mais de vinte anos,
indo até a queda do muro de Berlim, em 1991. O declínio da União Soviética teria marcado
o fim de uma ordem mundial institda desde 1945, com a rendição da Alemanha e a
expansão do poderio russo sobre o Leste Europeu. Os “blocos” internacionais capitalista e
socialista perderam a razão de ser e o mundo precisava se reestruturar com a perspectiva de
um único sistema dominante. Tudo o que viria depois disso, como a disseminação da Aids,
a explosão da informática e o crescimento do poderio dos movimentos terroristas
internacionais já seriam fenômenos pertencentes ao século XXI.
Nós que aqui estamos por vós esperamos claramente centra sua atenção nas eras da
Catástrofe e do Ouro, reservando pouco espaço para os assuntos relativos ao
Desmoronamento, o que, de certa forma, adequa-se melhor às demais idéias selecionadas
por Masagão a partir de A era dos extremos.
b) A banalização da morte
Não como pensar o século XX sem os grandes conflitos bélicos mundiais. Da
arte à política, tudo mudou. Nunca o homem havia criado um sistema tão eficiente de
aniquilação quanto nesse período. Viveu-se em função da guerra, mesmo quando ela não
passou de uma ameaça.
Hobsbawm chama a atenção para o fato de que, antes de 1914, media-se a guerra
em meses ou semanas. A Era da Catástrofe significou um colapso de 31 anos no
desenvolvimento da humanidade, que do ponto de vista histórico, Primeira e Segunda
Guerras Mundiais podem ser tidas como um único fenômeno (HOBSBAWM, 1995, p. 58).
Nós que aqui estamos por vós esperamos ainda vai mais longe na defesa desse
encadeamento destrutivo, várias vezes incluindo outros conflitos, como a Guerra do Vietnã
e a Guerra do Golfo, no mesmo rol de catástrofes bélicas, sem grandes diferenciações entre
33
elas salvo pelo aumento gradativo da indiferença dos combatentes frente à carnificina. O
filme não exe quaisquer razões oficiais ou especulativas abundantes nas análises
tradicionais (como a necessidade de expansão dos mercados consumidores) que possam
justificar a matança.
Nem mesmo as estimativas sobre o número de mortos (que apontam o século XX
como o mais assassino da história humana) foram incldas no filme. Embora Hobsbawm
tenha utilizado um número considerável de estasticas em seu livro, Masagão focou sua
atenção no trecho em que o historiador afirma ser impossível o levantamento dos custos
humanos em uma guerra e cortou as estimativas oficiais de Nós que aqui estamos por vós
esperamos, acreditando que os números gigantescos acabam podem acabar causando
indiferença no espectador: quando se fala de morte, a estatística vale pouco. Na morte, não
interessa o milhar, mas a unidade-próxima” (MASAGÃO, 1999).
Outro fator que evidencia a banalização da morte no século XX de acordo com
Hobsbawm (e que Masagão incluiu no filme) é a impessoalidade provocada pelo avanço
tecnológico. Os alemães desenvolveram câmaras de gás onde centenas morriam sem que os
militares precisassem disparar um único tiro. Não o mais soldados que invadem as ruas de
uma cidade ocupada, são tanques. Como mostrado em Nós que aqui estamos por vós
esperamos, prédios inteiros agora podem ir pelos ares em segundos, sob os disparos de
alguém que os têm numa mira bem parecida com as dos jogos de vídeo-game. As maiores
crueldades do nosso século foram as crueldades impessoais decididas a distância, de sistema
e rotina, sobretudo quando podiam ser justificadas como lamentáveis necessidades
operacionais” (HOBSBAWN, 1995, p.57).
c) O fim do eurocentrismo e expansão da economia global
Até 1914 a Europa era, inequivocamente, o grande centro cultural, econômico e
social do planeta, sinônimo de “civilização”. Ter sido cenário de duas Guerras Mundiais, no
entanto, representou um altíssimo custo humano e financeiro para as superpotências do
século XIX.
Boa parte da população economicamente ativa foi dizimada; as atividades primárias
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precisavam ser retomadas praticamente do zero; o desemprego e a inflação afligiam os
sobreviventes, enquanto os mutilados amontoavam-se nas ruas pedido esmolas. Muitos
acabaram engrossando as fileiras dos movimentos socialistas ou fascistas. Os governos
respondiam com repressão policial violenta e foi preciso um longo tempo até o
restabelecimento gradual da credibilidade nas instituições democráticas.
Preenchendo o vácuo deixado pelos europeus, a economia americana cresceu a
taxas impressionantes e o país consolidou-se como a grande potência global do século XX.
Logicamente havia a rivalidade com a Rússia e os demais Estados do Leste Europeu, que
aderiram voluntariamente ou à força ao poderio de Moscou. Mas numérica, política, e
economicamente, o bloco capitalista preponderava sobre a maior parte do globo e findou o
século como vencedor”. Apesar das resistências chinesa, norte-coreana e cubana, não se
pode dizer que esses países representem uma ameaça real ao poderio americano.
Nós que aqui estamos por vós esperamos reflete essa preponderância, porém mais
sob o ponto de vista da expansão global dos bens simbólicos produzidos nos EUA. Elvis
Presley, por exemplo, surge como a grande paixão de uma jovem japonesa e a Coca-cola
como marca mundialmente apreciada.
Nesse sentido, o filme chama a atenção menos para a lucrativa indústria americana
do que para a revolução que Hobsbawn acredita ter sido a maior do século XX: a dos
transportes e da comunicação. Para o autor, ambas praticamente anularam o tempo e a
distância entre países. Nunca a informação, pessoas e mercadorias puderam se locomover
de maneira tão rápida, fácil e segura de um continente a outro. O globo transformou-se em
uma unidade operacional única, como não era e não poderia ter sido em 1914”
(HOBSBAWM, 1995, p. 24). O que significava também o intercâmbio de técnico e
científico, como ainda de importantes aspectos da vida privada.
Os chamados “objetos de desejos” adquiriram um caráter internacional e
cosmopolita: o carro, roupas sem espartilhos, os primeiros discos, quem sabe até um
emprego num dos grandes arranha-céus que pareciam erguer-se da noite para o dia. Tudo
registrado nos exemplares fotográficos e cinematográficos inaugurais de um culo que
dava à luz a reprodução de imagens em escala industrial.
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Mesmo as guerras significaram um envolvimento simultâneo entre nões, uma
mobilização conjunta de energias e recursos para finalidades comuns, infelizmente pouco
louváveis, mas que proporcionaram o desenvolvimento de diversos mecanismos de
integração intercontinental.
d) Os extremismos
Hobsbawm é categórico: por trás dos impasses, crises e conflitos do século XX, a
causa principal estava quase sempre ligada a algum tipo de extremismo. Nem tanto do
ponto de vista da bipolarização mundial em blocos capitalista ou socialista, como pode
supor o leitor, mas extremismos ligados à profunda desigualdade na divisão de riquezas
produzidas, que, por sinal, foram as maiores já registradas.
Ao lado de sucessivas ondas de desenvolvimento técnico-científico sem precedentes
na história, jamais foi tão palpável a discrepância entre a capacidade produtiva e a
repartição das benesses. O mesmo século que expandiu enormemente a possibilidade de
consumo tratou de restringi-la a poucos países e, mesmo nessas áreas, em poucas mãos. De
um lado, os avanços médicos que aumentaram enormemente a qualidade e a expectativa de
vida. Do outro, morte por miséria generalizada ou doenças há muito erradicadas nos países
de primeiro mundo.
Mesmo a fome já poderia ter sido completamente eliminada, já que volume anual de
alimentos gerados é suficiente para abastecer o triplo da população do globo.
(HOBSBAWM, 1995, p. 21). Logo, chega-se a triste constatação de que o problema recai
sobre as relações entre os homens e não a capacidade produtiva. Daí o fato de Nós que aqui
estamos por vós esperamos apagar continuamente traços que possam identificar a
tecnologia como vilã. O problema não está . A luz elétrica é a mesma que acende os
palácios nas noites parisienses e fornece energia para o funcionamento da cadeira elétrica.
Parece incrível a quantidade de vezes que expressões como “nunca vistos até então”,
sem precedentes na história humana” ou quase inacreditavelmente vastos” são
encontradas no texto de Hobsbawm tanto com conotações positivas quanto trágicas. O
século XX terminou assombrado pela bipolarização entre regiões ricas e pobres e pela
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circularidade de seus próprios equívocos.
__________________
2.2 A microhistória
Se Hobsbawn serve aos propósitos de Nós que aqui estamos por vós esperamos
para a seleção de temas relevantes no século XX, o mesmo não pode ser dito quanto à
forma de apresentação e tratamento dos personagens. A abordagem hobsbawniana em A
era dos extremos enfatiza as profundas disparidades sociais que marcaram o período, mas
sob uma ótica generalizante, enquanto Masagão opta por exibir mini-recortes biográficos,
repletos de informações que parecem banais ao andamento do culo (como o piquenique a
que o operário se dedicava aos domingos ou a existência de um único garimpeiro chamado
João em Serra Pelada). Fragmentos à primeira vista banais, porém, quando reunidos,
parecem sugerir tendências comportamentais significativas. Nesse ponto, percebemos que o
filme se vale das referências de outra vertente historiográfica não adotada por Hobsbawn: a
Microhistória.
Nela, busca-se a inclusão do cidadão comum no contexto analisado. Não apenas no
que diz respeito a seu papel como o-de-obra dos grandes eventos, mas também
atentando aos pequenos detalhes que compõe o painel da vida cotidiana, mesmo quando
não grandes revoluções. O que almoçavam os brasileiros aos sábados, no icio do
século XX? Como trajavam-se os pequenos comerciantes? O que liam as crianças? Os
homens reuniam-se para fumar após a missa? Enfim, trata-se de refletir sobre as condições
palpáveis e/ou imateriais, reunidas num determinado tempo, espaço e sujeitos, de forma a
compor o conjunto de idiossincrasias que distinguem as comunidades e os indiduos. A
Microhistória tenta restituir, mesmo que de maneira incompleta, o quinhão de humanidade
ausente na maior parte dos livros de História.
O autor James Amelang reuniu seis elementos recorrentes nas pesquisas de enfoque
microhistoriográfico, que podem ajudar na caracterização da corrente de estudos
(AMELANG, 1995, p.310):
37
1- A redução de escala de observação.
2- A preferência pelo que é singular ou extraordinário.
3- O estudo da história social focada nas classes populares.
4- A análise baseada no paradigma indiciário.
5- Uma aproximação “transparente” ao conhecimento histórico (onde o pesquisador
evidencia seu próprio papel na construção das pesquisas).
6- Predileção pela forma narrativa de abordagem.
o autor mexicano Luis González y Gonlez define simplesmente a microhistoria
como sinônimo de história local, desenvolvida sob uma óptica qualitativa e não quantitativa.
(GONZÁLEZ, 1995, p. 37).
E assim homens e mulheres comuns que instalaram telégrafos, ergueram
arranha-céus, venderam sanduíches ou viraram bucha de canhão nos conflitos mundiais
ganharam as telas. Pessoas anônimas, muitas vezes longe dos padrões de beleza,
normalmente consideradas insignificantes no que diz respeito à interferência na ordem
política e social, mas que, segundo o próprio Masagão, não avalizam como dão
consistência carnal, psíquica e social ao discurso maluco dos grandes personagens”
(MASAGÃO, 1999).
Aqui vê-se outra razão para não afogar o personagem “homem-comum no
conjunto de estatísticas estarrecedoras acumuladas no século XX o mais sangrento da
História, segundo Hobsbawn (1995, p.32).
Interessante notar que, mesmo optando por uma abordagem macro-hisrica, em
alguns breves momentos de sua obra, Hobsbawm tamm reconhece que as estatísticas
podem levar a um distanciamento do homem contemporâneo em relação ao desastre bélico,
amenizado o choque que deveriam provocar:
Que significa exatidão estatística com ordens de grandeza tão
astronômicas? Seria menor o horror do holocausto se os
historiadores concluíssem que matou não seis milhões (estimativa
original por cima, e quase certamente exagerada), mas cinco ou
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mesmo quatro milhões? (...) Na verdade, podemos realmente
apreender números além da realidade aberta à intuição física?
(HOBSBAWN, 1995, p. 50)
Palavras que indicam o fato de Hobsbawm reconhecer o mérito da pesquisa
qualitativa da microhistória. Ele não condena essa prática, apenas utiliza outras que
considera mais adequadas aos objetivos específicos de seu livro.
Historiadores diretamente vinculados a Microhistória, como Grendi, expressam
preocupação com o emprego desenfreado de estatísticas e documentos oficiais produzidos
no século XX, pelo fato desses materiais serem utilizados como fatores decisivos na análise,
em detrimento dos aspectos “humanos” envolvidos, como a possível contribuição disponível
nos depoimentos das testemunhas oculares.
O relato, oral ou escrito, direto da fonte testemunhal ou originário de terceiros,
garante um formato essencialmente narrativo pouco reconhecido pela historiografia
tradicional, mas muito valorizado na Microhistória. Humanizando o registro da trajetória
das nações, descortina-se o quanto de pessoal há no processo de construção do
conhecimento hisrico, agora revelado como discurso.
Mas se a opção pela escala reduzida de abordagem e seu formato narrativo podem
incomodar a historiografia convencional, ela encontra no cinema um terreno fértil.
A linguagem cinematográfica foi orientada e desenvolvida, desde seus primeiros
anos, para a atividade de narrar histórias, normalmente de um reduzido número de
personagens e com forte apelo emocional. Contudo é preciso cautela para evitar
generalizações apressadas. Essas coincidências não nos permitem afirmar que a maioria dos
filmes produzidos tenha ligação com a Microhistória.
Entre O Resgate do Soldado Ryan, por exemplo, filme de Steven Spilberg lançado
em 1998 e uma obra que se inspira na Microhistória, como Nós que aqui estamos por vós
esperamos, há uma grande distância. Ambos abordam a carnificina da Segunda Guerra
Mundial, porém, enquanto Ryan e seus companheiros vivem peripécias capazes de alçá-los
à condição de heróis, os soldados de Nós que aqui estamos por vós esperamos não perdem
seu caráter de homens comuns. Mesmo que seus nomes preencham brevemente os espaços
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das legendas, o anonimato permanece como horizonte de caracterização do sujeito. De tal
forma que as particularidades de cada personagem não os afastam irremediavelmente dos
demais, dos anônimos. Ao contrário. O filme torna-se um mar de características individuais
que, de certa forma, se confundem. As a exibição da obra, não é essencial que o
espectador lembre quem adorava Coca-Cola: o coveiro chileno ou o garimpeiro boliviano?
O importante é que tenha a sensação de que o filme exs o cotidiano do homem comum,
muitas vezes engolido pelo torvelinho das grandes transformações, por uma dinâmica social
que opera através da a rotinização da vida diária.
Muitos analistas identificaram nesse aspecto de Nós que aqui estamos por vós
esperamos o uma inovação propriamente dita, mas a adesão a uma idéia que outros
diretores já desenvolveram anteriormente, o ideal de um “personagem coletivo”. O pioneiro
da estratégia – e ainda hoje referência no assunto – foi o cineasta russo Sergei Eisenstein.
Como ponto de partida para a compreensão do cinema eisensteiniano, podemos falar
da utilização do chamado massa-herói, que aparece pela primeira vez com nitidez em O
Encouraçado Potemkin (1925). No filme, inexiste um protagonista singular interpretado
por um ator espefico. Não é a trajetória de um personagem ou de um grupo que se
desenrola, mas a da coletividade. Através da montagem, o diretor desconstrói a falácia de
que toda narrativa cinematográfica demanda um “galã” ao estilo hollywoodiano ou uma
heroína tradicional para ser eficiente, apresentando um surpreendente número de homens,
mulheres e crianças que incorporam o herói da trama: o próprio povo. Da mesma forma, a
ordem econômica é muito mais fortemente combatida que a figura isolada do capitalista
(apesar dessa oposição também existir).
No entanto, apesar das semelhanças, é um equívoco ver em Nós que aqui estamos
por vós esperamos uma aplicação mais recente, porém quase literal do herói coletivo
surgido em O Encouraçado Potemkin.
É verdade que em ambos os filmes, como se pretende mostrar no caso de Nós que
aqui estamos por vós esperamos, a noção de protagonista foge ao padrão do cinema
comercial de inspirão hollywoodiana. No entanto, há uma diferença básica entre as obras.
O trabalho de Eisenstein se baseia no que há de comum em todos os proletários, sua
comunhão ante a exploração da forma de trabalho.
em Nós que aqui estamos por vós esperamos, apesar de afirmarmos que os
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sujeitos são todos anônimos, o protagonista do filme não é o conjunto de operários
formando uma classe social, mas sim o homem: aquele que sente medo numa guerra,
independe da nação que defenda ou que combata; o que sonha com uma vida melhor; o que
tem suas preferências culinárias, enfim... Enquanto O Encouraçado Potemkin aponta para
o coletivo, Nós que aqui estamos por voz esperamos busca o universal.
mais distante historicamente do contexto sócio-cultural onde o cinema de
Eisenstein frutificou, Nós que aqui estamos por vós esperamos apresenta um tom
político-partidário bem menos engajado, ainda que este permaneça na linhagem do cinema
de ctica social. Em oposição radical a obras rigidamente ligadas aos ideais marxistas,
como O Encouraçado Potemkin, Nós que aqui estamos por vós esperamos prega a
descrença no socialismo como o caminho para a emancipação humana dos flagelos sociais,
caracterizando o regime aplicado na ex-URSS como um modelo tão autoritário quanto o
nazismo.
Outra diferença importante é que, apesar de apostar no homem comum como
personagem, Nós que aqui estamos por vós esperamoso reduz tão radicalmente a
presença de personagens célebres na trama como é observado na obra de Eisenstein (salvo
por Ivã, o Terrível).
Dentre a massa de personagens anônimos destacam-se alguns rostos e nomes
famosos: artistas, cientistas, intelectuais, líderes políticos e religiosos. Eles funcionam como
precursores ou catalisadores de tendências sociais e culturais importantes ao longo do
século XX. Antecipando mudanças e traduzindo as angústias humanas, eles muitas vezes
dão voz à maioria que não sabe ou não pode se expressar sobre a realidade à volta. “A
história é tramada nessa imprevivel dialética entre pressões estruturais, decies
individuais, desejos, pavores e projeções inconscientes, tensões sociais e a polifonia de
vozes que dão forma e expressão às conjunturas” (SEVCENKO, 1999). O que artistas e
líderes em geral fazem é mobilizar ativamente essas correntes sub-reptícias.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos a idéia não é promover a diferenciação
absoluta entre famosos e desconhecidos do grande público, mas alçar o anônimo ao patamar
de importância que lhe é devido, criando um centro de gravidade que inclui também
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indiduos simplórios, não apenas mitos. Falamos em conectar grandes e pequenos,
compreendendo-os como integrantes de um mesmo processo histórico em andamento.
Aqui (em Nós que aqui estamos por vós esperamos) o jogo o é de oposição, mas de
dupla adjetivação” (WERNECK, 1999).
__________________
2.3 A psicanálise
O terceiro pilar de sustentação de Nós que aqui estamos por vós esperamos são as
idéias baseadas nos prinpios psicanalíticos.
Não que o filme seja um tratado sobre a psicanálise, o que a obra efetivamente
apresenta ao espectador é a inquietante afirmação de que mais na sangrenta trajetória do
século XX do que afirmam a História oficial e a Sociologia. Subjacente às razões defendidas
pelos Estados e às teorias que apontam a estrutura econômica como causadora-mor das
guerras que assolaram os últimos cem anos, haveria o lado mais obscuro, subterrâneo da
própria natureza humana. É quando vem à baila o segundo consultor espiritualdo filme
Sigmund Freud.
O neurologista e psiquiatra austaco tornou-se mundialmente famoso a partir do
final do século XIX ao “fundar” a psicanálise. Livros como Da Interpretação dos Sonhos
inauguraram uma onda de estudos sobre o inconsciente que viria influenciar os rumos da
medicina, da arte e até da política durante todo o restante do século XX. Freud revelou a
existência de um mundo secreto, povoado de repressões, instintos e fantasias, muito além
da aparência exterior dos indiduos.
Toda nossa vida seria resultado da luta constante entre impulsos naturais e a
consciência, entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. O conceito de saúde
mental passou a residir no equilíbrio entre essas forças antagônicas e o papel da psicanálise
focou-se em tornar o paciente consciente dessa luta interior, deixando-o apto a modificar
comportamentos nocivos a si e aos demais (WALLIS, 1985, p.56).
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Em O Mal-Estar na Civilização, obra escrita no peodo entre-guerras, Freud
preocupa-se especificamente com a pulsão da morte que se manifesta de maneira latente
e/ou explícita em todo o ser humano, o fascínio pela morte do Outro, o prazer de matar, a
gana pela destruição. Nós que aqui estamos por vós esperamos investe significativamente
na exploração desse enfoque, em muitos momentos em detrimento do eixo historiográfico
do filme, ignorando as explicações usualmente apontadas para eclosão dos conflitos bélicos
no século XX (como a fase expansionista do capitalismo industrial) e lançando a questão
para o patamar dos conflitos psíquicos.
É importante ressaltar que a psicanálise, na verdade, influenciou fortemente mais de
um movimento cinematográfico. Luis Buñuel e Salvador Dali, por exemplo, chegaram a
desenvolver experimentações muito interessantes com base nas idéias de Freud, como no
filme Um Cão Andaluz, de 1929. O cineasta G.W. Pabst filmou pelo menos seis obras
diretamente inspiradas na psicanálise, entre 1926 e 1957. Mesmo em obras recentes, como
Exótica (1994), de Atom Egoyam, ou Veludo Azul (1986), de David Lynch, há a clara
sugestão de que as condições que motivaram as tramas são da ordem do bizarro, do que
foge à razão consciente. Neles, uma camada obscura, na maior parte do tempo vedada
ao próprio espectador, que promove acontecimentos estranhos e violentos. Para o teórico
da montagem Ken Dancyger, “os filmes são, em geral, fábulas de impulsos (instintos) e as
conseqüências da ação desses impulsos. É por isso que muitas histórias de ficção trabalham
com uma despudorada sexualidade e agressão” (DANCYGER, 2003, p. 224).
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, a influência das teorias freudianas
pode ser percebida em primeiro lugar na brutalidade aparentemente gratuita exibida em
várias seqüências, impulsos de violência que nem mesmo uma situação de conflito intenso
justifica; em segundo, na idéia de filme-memória”.
Ora, na memória, fatos e pessoas o assumem exatamente as mesmas
circunstâncias e papéis que tiveram quando o acontecimento se passou de fato. Lembramos
de algo pelo que esse algo nos impressionou, não pela medida “real”. Tanto que, um mesmo
evento, presenciado por ltiplas testemunhas, jamais será exatamente descrito da mesma
forma por nenhuma delas. Am disso, é possível garantir que a memória não está também
condicionada pela perspectiva que temos do presente?
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Ao reunir épocas e lugares diferentes num mesmo contexto o filme assume sua
condição de filme-memória, ou seja, não como simulacro de reconstituição literal dos fatos,
mas como obra de nítido investimento afetivo sobre os eventos e uma releitura que assume
parâmetros da atualidade.
Assim, Nós que aqui estamos por vós esperamos parte da perspectiva psicanatica
para justificar a quebra do nexo temporal formal, permitindo que as cenas sejam agrupadas
na ação mais pela proximidade de significados que pela linearidade espacial e cronológica.
Criando uma rede de relações não de ordem histórica, mas conceitual, o filme
permitiu que várias imagens dispensassem as categorizações convencionais e criassem
vínculos aparentemente imposveis entre si. A dança de Fred Astaire e o futebol de Mané
Garrincha não são, em prinpio, compatíveis de exibição conjunta. Salvo através da criação
de uma idéia que as interligasse: a da unidade rítmica.
O que ocorreu nesse caso foi a elaboração de uma ponte entre elementos
conceituais, algo passível de acontecer na memória, como citamos, e também em outro
fenômeno de especial interesse para a psicanálise o sonho. Este, ainda menos influenciado
pelo compromisso com a realidade que a memória, constitui-se numa manifestação mais
direta do inconsciente, fluido, anárquico, desconcertante e despreocupado com o próprio
grau de inteligibilidade absoluta. Daí fazer mais sentido caracterizar Um Cão Andaluz, por
exemplo, como um filme voltado à retratação do inconsciente e Nós que aqui estamos por
vós esperamos como um filme-memória, já que, mesmo por vias labinticas, a segunda obra
tem objetivos outros além da apologia ao inconsciente e um formato mais semelhante à
representação naturalista” dos acontecimentos.
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3. Metodologia
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Muito foi debatido sobre Nós que aqui estamos por esperamos: de onde provinham
suas cenas; a que outros filmes ele fazia referência (ou prestava reverência); quais
acontecimentos do século XX deveriam ter sido incldos; que tecnologia havia sido
empregada; as formas de representação do homem anônimo; a eliminação do locutor e dos
depoimentos das testemunhas; etc. Em meio ao alarido de vozes diversas, no entanto, o que
menos se ouviu falar foi do espectador comum. Aquele que não conhece a evolução do
cinema, nem as diferentes correntes historiográficas, mas que foi ao cinema, assistiu ao
filme, emocionou-se, riu, concordou ou desprezou o que foi exibido. Desse, quase nada foi
dito.
Será então que Nós que aqui estamos por vós esperamos não pode ser apreciado
por um blico leigo? Se assim for, como explicar os prêmios obtidos através da votação
popular nos diversos festivais de que o filme participou? O que gerou a divulgão boca a
boca intensa, garantindo uma bilheteria considerável mesmo quando o produtor não
dispunha de recursos para propaganda? E a iniciativa das escolas de várias capitais do país
em exibir o filme para estudantes de segundo e primeiro grau, com enorme receptividade
dos pais e alunos? Como explicar tudo isso? Simples: há algo em Nós que aqui estamos por
vós esperamos, no interior da obra, que mobiliza o espectador, mesmo que ele conheça
os assuntos retratados parcamente, a partir de reportagens televisivas ou revistas semanais.
É posta em funcionamento no filme uma engrenagem coerente, acessível ainda que as
referências do público não sejam vastas.
Em busca desse conjunto de fatores é preciso então buscar uma metodologia que
permita a avaliaçãointerna” do filme. Nada de averiguar como a realidade pode ser
encontrada na obra, mas que mundo é constrdo por Nós que aqui estamos por vós
esperamos e com que articios esse universo particular seduz o público.
Para tal, a solução encontrada foi adotar como parâmetros os estudos realizados no
Laboratório de Análise lmica do Curso de s-Graduação em Comunicação e Cultura
Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia. Neles, são reunidos conceitos de
diversos autores entre os quais Aristóteles, Paul Valery, Umberto Eco, Luigi Pareyson e
Wilson Gomes de forma a encontrar um estilo de aproximação analítica que respeite os
prinpios estabelecidos pela própria obra, suas singularidades e modos operacionais.
45
O primeiro passo rumo a esse objetivo é tratar o construto fílmico como uma
elaboração textual. Por “texto”, entendemos toda reunião de elementos expressivos (mesmo
que não verbais) criada como conjunto de sugestões endereçadas a um “leitor” interessado
em renovar a obra, desfrutar de seus efeitos. O texto imporia suas próprias condições de
leitura, mas deixaria espaços em aberto para serem preenchidos pelo destinatário com
iniciativa interpretativa (ECO, 1986, p. 35-41).
Logo, por essa perspectiva metodológica, Nós que aqui estamos por vós esperamos
pode ser analisado como a reunião de instruções que, quando executadas a contento pelo
público, produzem efeitos pré-programados na audiência. Uma espécie de mapa, repleto de
orientações apontando desvios, atalhos e surpresas até o destino final.
Obviamente, haverá obras com um conjunto claro de instruções, outras nem tanto;
assim como alguns indiduos seguirão à risca o que lhes é sugerido, alguns não. Mas assim
é a sorte de todos os textos. Resta-nos compreender que aquilo que o filme traz em si são
as potencialidades de prazer ou dor, promessas que se cumprem se alguém se dise a
isso, um espectador que aceita minimamente as regras do jogo cinematográfico. Em outras
palavras, um texto adquire real sentido no ato de sua fruição, quando o público atualiza
as instruções ali contidas.
Significados e sentidos não são qualidades do ser, como cor
ou textura, mas propriedades da interpretação quando
interpretados, quando compreendidos é que textos significam ou
fazem sentido. Uma obra pode consistir numa configuração material
que solicita respostas sensoriais, mas a sensação mesma não está no
material e sim na subjetividade, como resposta da sensibilidade
humana aos estímulos materiais provenientes da obra.
(GOMES, 2003, p.12)
A primeira conclusão a que chegamos é de que parte do próprio filme os limites para
sua interpretação. Pareyson muito apropriadamente refere-se à capacidade de
46
auto-regulamentação da obra” e prega o profundo respeito do público e, principalmente, do
pesquisador, pelos modos de funcionamento que o produto requer e ime. (PAREYSON,
1989, p. 139).
Se o público e o analista não podem dispor da obra conforme lhe aprouverem,
tampouco pode o autor fazê-lo. Embora digamos que o texto é um conjunto de instruções e
que, obviamente, essas orientações foram arquitetadas por alguém, depois de pronta e
exposta à fruição, a obra o mais pertence ao seu criador. Ele fica destitdo do poder de
prever e controlar os possíveis efeitos do texto (se é que um dia deteve o poder de fato e
não apenas o desejo de possuí-lo e a capacidade de especulação sobre a audiência...).
Dissemos um pouco antes que o filme é como um mapa. Ora, um mapa não é o caminho.
Na trajetória, mesmo seguindo as instruções, o público realiza descobertas individuais e na
maioria das vezes intransferíveis, revive experiências anteriores que jamais foram
imaginadas pelo autor e até visualiza na obra aspectos ignorados pelo próprio realizador do
produto. O filme não é de seu diretor, roteirista, ator ou editor, nem mesmo da audiência,
apesar de não existir sem qualquer desses elementos. A obra pertence a si mesma (GOMES,
2003, p.15).
Assim, justifica-se a expressão “análise interna” em relação à metodologia
apresentada, haja vista que ela não está centrada nos aspectos de produção ou recepção dos
filmes, mas nas características intnsecas que os tornam únicos. A produção e a recepção
comparecem nesse tipo de aproximação metodológica apenas pela forma como o sentidas
ou previstas no próprio texto.
Falamos que o autor, após a finalização da obra, não mais pode controlar os usos
que oblico fará de sua criação. No entanto, em vários momentos, Umberto Eco refere-se
em seus livros a um elemento curioso e capaz de causar grande impacto no momento da
fruição: o autor-no-texto ou ainda autor-modelo. O trico italiano faz questão de ressaltar
que o se trata aqui do criador empírico, mas de uma estratégia textual que representa o
autor na apreciação da obra (ECO ,1986, p39).
O autor-modelo seria responsável pelo planejamento, seleção e distribuição dos
estímulos e informações no interior do filme (a chamada economia narrativa), capazes de
criar efeitos durante a fruição. Uma espécie de condutor que nos aborda gentil, imperiosa
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ou disfarçadamente e cuja presença se faz sentir cada vez que nos deparamos com um
produto comunicacional (ECO, 1994, p. 21). Por exemplo, em Nós que aqui estamos por
vós esperamos, podemos vislumbrar o autor-modelo nos momentos em que a história
parece ter seu ritmo propositalmente acelerado ou diminuído, de forma a criar as sensações
de passagem de tempo ou tensão.
Cabe ao autor-modelo prever o que, quando e como cada elemento do filme vai
funcionar, sendo responsável pela criação da chamada atmosfera” do filme e estabelecendo
os limites de interpretação da obra. É sua função tentar controlar a aprecião do público
(mesmo sabendo de antemão a impossibilidade de êxito absoluto na tarefa).
Seja como for, ao falarmos de estratégias ou instruções contidas no texto, estamos
falamos sempre dessa figura meio enigmática, que o público tenta revelar continuamente no
transcorrer de uma obra. E quem está nessa busca também tem seu papel no jogo.
Se estamos falando no autor-modelo, em orientações, sugestões, pistas e articios
que geram efeitos, temos de pensar que tudo isso foi criado para alguém. Não exatamente
uma pessoa específica, mas pelo menos uma idéia de leitor/espectador que possa
minimamente executar as sugestões apresentadas pela obra. A um autor-modelo
corresponde um leitor-modelo. Duas instâncias que se pressupõem reciprocamente e cuja
existência limita-se à circunscrição do texto.
Obviamente, como insiste Eco, o qualquer lei que determine a forma como
uma obra ser lida. Até porque a obra costuma ser transformada pelo leitor emrico em
um receptáculo de suas próprias paixões, as quais podem ser exteriores ao texto ou
provocadas pelo próprio texto” (ECO, 1994, p.14). No entanto, assim como ocorre no caso
do autor-modelo, o leitor-modelo não se confunde com o leitor emrico. Também ele
origina-se de um conjunto de instruções textuais, uma entidade que surge durante a fruição
do produto comunicacional e cuja existência está estritamente vinculada à obra.
O leitor-modelo esboça-se a partir de uma idéia geral que o autor emrico tem do
seu público, um movimento especulativo que tenta adivinhar quais as características do
público-alvo daquele tipo de obra. Mas o consumidor-padrão, ou público-alvo, restrito por
pesquisas de opinião e números de vendagem, não está no texto. O que verificamos na obra
é como o autor-modelo trabalha no sentido de construir seu leitor-modelo, não mais
especulando sobre suas preferências, mas exigindo-lhe competências específicas para a
48
compreensão do produto (ECO, 1994, p.22).
Essa criatura espectral, presente no texto também como uma instrução, deverá agir
cooperativamente, aceitando os acordos explícitos ou não-verbais que a obra ime. O que
não significa, em nenhum momento, passividade absoluta. O andamento da obra depende de
um grande investimento do leitor-modelo em termos de tempo, atenção, vontade e
sagacidade para a execução dos efeitos previstos.
Seja como for, autor-modelo e leitor-modelo são remetidos igualmente ao mesmo
patamar o de estratégias textuais. O que significa que, utilizando ferramentas
metodológicas adequadas, são pasveis de identificação e análise. A questão é como
fazê-lo.
Os pesquisadores do Laboratório de Análise lmica tentam resolver essa questão
sugerindo que o analista, em primeiro lugar, assuma sua condição primordial – e até óbvia –
de espectador do texto fílmico. Partindo da fruição, chega-se a condição de leitor-modelo,
ou seja, daquele que segue instruções pré-determinadas a fim de executar os efeitos da obra.
Somente assim, anuindo com o jogo proposto pelo filme, o pesquisador é capaz de
compreender os limites que o produto comunicacional ime para sua compreensão. o
retorno constante ao filme pode esclarecer que competências são exigidas do público.
Por exemplo, no caso de Nós que aqui estamos por vos esperamos, quanto
conhecimento histórico o espectador deve possuir para compreender cada seqüência? Que
grau de atenção obra exige? Qual nível de familiaridade com o gênero documentário o
público deve apresentar?
Numa análise interna, todas essas questões nascem e devem ser respondidas a partir
da fruição do filme. E mais: o analista deve tentar estipular um perfil do leitor-modelo
adequado não a si, mas a qualquer espectador apto a realizar uma leitura razoável da
obra.
Mas o que quer dizer exatamente abandonar-se à fruição de um filme? Em vel
sico, significa sofrer os efeitos provocados pela exibição dos elementos cinematográficos
reunidos. Esse é o estágio primário pelo qual passa qualquer tipo de espectador, mesmo o
futuro sujeito da pesquisa. Somente a partir daí, o leitor será capaz de iniciar a busca pelas
estratégias que ocasionaram os efeitos. Ao analista, cabe isolar, estudar o funcionamento,
organizar e classificar cada uma delas. Essa sistematização das estratégias forma o que os
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pesquisadores do Laboratório de Análise lmica convencionaram chamar de programas de
produção de efeitos.
Cada programa agrupa estratégias afins, utilizadas para mobilizar materiais fílmicos
expressivos de maneira similar. O autor-modelo lança mãos dos programas com o intuito de
prever os efeitos verificados na apreciação. No texto Princípios da Poética, Wilson Gomes
(2003, p.24) apresenta três programas identificáveis nas produções cinematográficas: o
cognitivo, o sensorial e o sentimental.
O programa cognitivo ou comunicacionalconta da organização dos materiais que
expressam idéias. Tratamos aqui da “mensagemque o texto transmite:
A programação cognitiva de uma obra é muito extensa e
recobre desde o tecido básico de informações e a malha mais
elementar de sentido até os reconhecimentos capitais da trama
narrativa, os jogos de revelação e ocultamento, as metáforas e
alegorias com que se mostra e se esconde ao mesmo tempo.
(GOMES,2003, p. 24)
programa sensorial corresponde, na maioria dos casos, à porta de entrada para a
obra. Através da apreciação dos sentidos, temos acesso a todo o universo retratado, seus
modos de operação particulares, sua “atmosfera”. O programa sensorial estrutura os
materiais que apelam diretamente aos sentidos do espectador.
Não que a abordagem metodológica relacione os estímulos sensoriais a categorias
meramente fisiológicas, como o fenômeno da persistência retiniana ou a ilusão de
tridimensionalidade através da profundidade de campo. Esses são elementos primários que
podem ser usados para conduzir o espectador a um segundo nível de percepção sensorial,
mais complexo e precioso na compreensão da obra. Falamos da produção de “estados
sensoriais”, decorrentes da aplicação dos estímulos sensíveis às necessidades da narrativa.
Uma imagem que remeta a grandes alturas apela diretamente ao sentido da visão, mas
também é capaz de criar a sensação de queda, confusão, desfalecimeto, profundidade ou
vertiginosidade. Todos esses elementos apontados por Wilson Gomes como exemplos do
50
resultado de um programa sensorial em funcionamento (GOMES, 2003, p. 25).
Há filmes, muitos de caráter experimental, que apostam no programa sensorial como
finalidade primeira e última da obra, enquanto outros utilizam-no como ponte de acesso aos
programas cognitivo e/ou sentimental.
A palavra sentimental já dá uma boa idéia do terceiro programa de produção efeitos.
Ele é responsável pela criação, manejo e distribuição dos elementos induzem o público a
um investimento afetivo na apreciação da obra. Isso pode ser alcançado, por exemplo,
através de estratégias que promovam no espectador a identificação, empatia ou antipatia em
relação aos personagens. O importante aqui é que a audiência seja levada à criação de
ânimos emocionais, impossibilitando-a de manter-se indiferente à trama apresentada.
Em princípio não é difícil a separação dos tipos de programas de produção de
efeitos. Quer dizer, na teoria. Durante a prática da análise, os três aparecem como fios de
um único e intricado tecido de estímulos que, no fim das contas, resulta no próprio fascínio
da obra. Num filme como Nós que aqui estamos por vós esperamos, a coexistência e
justaposição de programas torna delicado o exercício de distinção entre eles. Mas não
impossível.
Para destrinchar esse emaranhado é preciso ter em mente, primeiro, o fato de que as
estratégias sensoriais, sentimentais e cognitivas estão em constante negocião entre si.
Apesar de múltiplas, elas conspiram para um objetivo comum. Os efeitos verificados
durante a fruição devem funcionar como farol para encontrarmos os estímulos que os
provocaram. A partir deles nasce a pesquisa. Trata-se de refazer, porém no sentido inverso
ao da fruição, a trilha que vai das sensações, mensagens e sentimentos gerados até os
dispositivos empregados para obtê-los. Como recriar uma obra às avessas.
O segundo ponto importante para identificão de cada programa, como preconiza
Wilson Gomes, é abandonar algumas concepções da estética contemporânea que tendem a
converter todo e qualquer tipo de efeito em informação cognitiva: “não é evidente que para
o apreciador de uma obra a sensação de nojo, de frio ou de rugosidade seja intica à
informação textual de que há uma coisa nojenta, fria ou rugosa” (GOMES, 2003, p.25).
Tampouco sensação e sentimento são coincidentes. Imaginemos um mendigo como
personagem de uma obra. Sua aparência e cheiro descritos induzem à sensação de nojo no
espectador. No entanto, dependendo do programa sentimental em curso, o sentimento
51
gerado no apreciador pode ser tanto o de repugnância quanto os de pena e compaixão. E
essa é uma distinção que o analista não pode perder de vista durante a pesquisa, sob pena
de realizar um trabalho pouco condizente com a complexidade da obra selecionada.
Chegando aqui, após a utilização contínua de expressões como “dispositivos que
conduzem o espectador” ou “efeitos previstos pelo autor-modelo temos que fazer uma
ressalva para evitar um possível e grave equívoco na compreensão da pesquisa: o de
acreditar que a metodologia sugere uma integração entre obra e espectador onde este
último assume uma condição passiva no processo de fruição. A realidade está muito
distante disso.
A metodologia aplicada pelo Laboratório de Análise Fílmica une-se ao coro de
pesquisadores das áreas de cinema, estética, psicologia da percepção, educação e história da
arte no sentido de compreender o receptor como elemento extremamente ativo na
construção de sentido da obra comunicacional. “O fruidor jamais é solicitado na experiência
estética a abandonar-se ao efeito da obra sofrendo-o passivamente. Ao contrário, o tipo de
recepção necessário para a experiência estética é o modo ativo e operativo da execução”
(GOMES, 1996, p 18).
Esse dado é essencial para compreensão da metodologia aplicada a Nós que aqui
estamos por vós esperamos, um produto cujo prinpio operacional básico depende
essencialmente da cooperação do espectador: a montagem.
Como já dissemos antes, apenas ter o instrumental metodológico não basta. É
preciso que suas formas de aplicação espeficas sejam subordinadas às exigências impostas
pela própria obra.
No caso de Nós que aqui estamos por vós esperamos, a primeira e principal
demanda é de que seja respeitada sua condição de “filme de montagem”. Entretanto, para
compreender com exatidão o que isso significa, é preciso definir montagem, ver como esse
processo pode ser articulado em termos de estratégias gerais de orientação de leitura e
porque a montagem é o ponto central de estruturão de Nós que aqui estamos por vós
esperamos.
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4 . A Montagem
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Por montagem, não queremos dizer a mera reunião de planos filmados. Esse
conceito, em sua flagrante simplicidade, não abarca toda a dimensão do processo, nem
tampouco responde como a simples colagem de imagens pode gerar nuances sutis ou
violentos efeitos de sentido ao longo de uma trama cinematográfica. Isso porque a definição
acima abrange somente o caráter mecânico da montagem.
Ao longo do tempo, os cineastas vêm ampliando mais e mais os limites criativos do
processo, obrigando os teóricos a se deterem menos nos aspectos maquinais e se
debruçarem sobre a dimensão artística da montagem.
Kulechov, cineasta russo contemporâneo de Eisenstein, foi um dos primeiros a se
preocupar com o estudo formal da montagem, comandando a célebre experiência do
modelo vivo. A um público não previamente informado do experimento, Kulechov exibiu a
seguinte seqüência de imagens:
a) um prato de sopa
b) um primeiro plano de um ator (Mosjoukine)
c) uma jovem deitada num caixão
d) novamente a face do ator
e) uma criança brincando
f) finalizando com um primeiro plano de Mosjoukine
As a apresentação das cenas, o blico mostrou-se surpreendido pela capacidade
interpretativa de Mosjoukine, que podia alternar tão eficazmente expressões de fome,
tristeza e alegria. Não sabiam os espectadores, contudo, que Kulechov usara exatamente a
mesma imagem de Mosjoukine, alternando apenas as demais.
53
Assim, o cineasta alcançou seu intento. Ficava claro, a partir de então, que cada
cena tinha um significado próprio, mas que o encadeamento, a ordem em que as imagens
eram exibidas criava novos sentidos, novas possibilidades interpretativas.
André Bazin centra sua definição de montagem exatamente nesse fato,
descrevendo-a como a criação de um sentido que as imagens o contêm objetivamente e
que procede unicamente de suas relações” (BAZIN, 1991, p. 68). Segundo o autor, o
sentido não reside na imagem em si, porque, na verdade, ele é “a sombra projetada pela
montagem, no plano de consciência do espectador” (BAZIN, 1968, p. 68).
Mas não seria essa exatamente a base das estratégias de orientação do leitor de que
falamos? O que está aqui nada mais é do que uma organização de materiais capaz de
transformá-los em estímulos diretos ao leitor. É claro que no Modelo Vivo de Kulechov não
podemos falar ainda de programas de produção de efeitos bem delineados. Porém,
estabelecia-se aí um esboço das estratégias de orientação que seriam específicas do Cinema.
A consolidação da linguagem cinematográfica como autônoma em relação às artes que a
precederam, como o teatro e literatura, baseou-se nesse aspecto, de decomposição da ação
em planos diversos como forma de permitir a fluência narrativa. Como se faz isso? Por
meio de artifícios que pré-programam os efeitos almejados.
Depois do primeiro passo de Kulechov, não tardou muito para que os teóricos
descobrissem outro aspecto de enorme importância para a produção lmica também
estreitamente ligado à montagem: o ritmo cinematográfico. Roger Leenhardt, citado por
Merleau-Ponty, refere-se a essa questão da métrica lmica como uma determinada ordem
de tomadas e, para cada uma dessas tomadas ou planos, uma duração tal que o todo
produza a impressão desejada com máximo de efeito.” (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 26).
Herbert Reed aponta o suspense e a tensão no cinema ou até o desconforto causado
por uma cena demasiado tediosa como conseqüências do ritmo adotado pela montagem,
explicando que uma série de planos proporcionalmente longos assegura um ritmo sereno,
enquanto uma série que alterne planos de longa e curta duração forja um ritmo mais pido
(REED, 1969, p. 39). A essa qualidade da montagem na atribuição de agilidade ou lentidão
em um filme, Merleau-Ponty chama de unidade melódica (MERLEAU-PONTY, 1969,
p.26), enquanto José Rafael de Menezes e Ken Dancyger optam pela expressão
54
orquestraçãotmica” (MENEZES, 1958, p. 106 e DANCYGER, 2003).
Aqui tornamos mais uma vez a pensar na montagem como instrumento importante
nas mãos do estrategista-mor de um filme - seu autor-modelo. Seria difilimo conceber
programas de produção de efeitos, especialmente os sensoriais e os sentimentais, sem a
utilização do ritmo cinematográfico. Os filmes que apresentam longas perseguições que o
digam. Mesmo quando o final da história é previvel, a alternância de estados de ânimo do
espectador proporcionada pela variação de ritmo pode evitar a monotonia durante a
apreciação.
O ritmo, especialmente se acompanhado de um suporte musical adequado, conduz o
público na rotina ou até na anti-rotina proposta pela narrativa. Por exemplo, faz sentido que
uma seqüência de despertar seja suave, assim como outra ambientada numa discoteca seja
acelerada. Caso essa ordem seja invertida, o público é remetido a outras possibilidades da
trama: este acordar súbito e acelerado será uma referência sobre a vida nas grandes cidades?
E o ritmo lento na discoteca indica de que o personagem usou drogas e encontra-se num
estado alterado de consciência? Em grande parte, é através do ritmo constrdo na
montagem que adentramos no mundo particular construído pela e para fruição da obra.
Mas talvez o elemento mais complexo e fascinante derivado das técnicas de
montagem seja ainda um outro: a possibilidade de construção de relações espaciais e
temporais em uma obra audiovisual.
Para que um filme tenha nexo, o espectador precisa entender e acompanhar
variações de ângulos visuais; identificar pontos de vista espaciais distintos de um ou mais
ambientes; perceber que os personagens, em lugares separados, vivem situações diferentes
simultaneamente; e várias outras formas de paralelismo. Isso tudo sem perder o fio
condutor da trama.
Efeitos de memória e de previsão, relações causais, sensação de
contemporaneidade, onipresença ou anulão de tempo. Todos já foram levados com êxito
às telas, mesmo que as cenas, isoladamente, não comportem tantas relações.
Como isso é possível? A resposta encontra-se justamente na montagem. Ela é capaz
construir, reproduzir ou transformar as representações de espaço e espaço através da
55
combinação de grandes planos com imagens pormenorizadas, utilizando elementos de
transição e/ou conexão, além de exibir apenas trechos de movimentos capazes de exprimir a
idéia do todo.
Essas relações explicam como Nós que aqui estamos por vós esperamos adota um
eixo psicológico de abordagem, produzindo pontes de caráter conceitual que ligam os
acontecimentos. O tempo e o espaço não são exatamente aqueles das imagens originais
contidas no filme, mas os que a montagem constrói. É assim que cenas do Japão no icio
do século XX são exibidas lado a lado com outras do final da década de 80 no Brasil sem
que haja prejzos na inteligibilidade da obra. As questões de onde e quando
transformam-se em como.
As relações de tempo e espaço oriundas da montagem constituem o que o teórico
do cinema Jean-Luc Godard chama de “continuidade profunda do filme”. Segundo o autor,
cabe à montagem o papel de exprimir não apenas a mensagem capital da trama, mas
também as sutilezas capazes de torná-la única:
Se o ato de dirigir é um olhar, o de montar é uma batida de
coração. Prever é a característica de ambos (...) Suponhamos que se
note, na rua, uma moça que agrade. Hesita-se em segui-la – um
quarto de segundo. Como apresentar essa hesitação? À indagação,
“como abordá-la?”, de responder a direção. Mas tornar explícita
essa outra pergunta “será que vou amá-la?” forçoso é dar
importância ao quarto de segundo, durante o qual nascem ambas as
indagações. Pode ser, daí, que se trate de função da montagem.
(GODARD, 1969, p. 140)
Na trajetória do cinema, no entanto, o aperfeiçoamento da montagem até atingir um
patamar de sofisticação no manejo do tempo, como o descrito por Godard, passou primeiro
por um período de experimentações e desenvolvimento, na maioria das vezes, nos moldes
56
tentativa-erro-acerto.
Tão logo os realizadores conseguiram razoavelmente consolidar a linguagem
cinematográfica a partir das técnicas da montagem, entre os anos 10 e 20, outras inovações
tecnológicas ampliaram (como ainda estão fazendo) os horizontes da produção fílmica.
A primeira grande revolução foi a introdução do som sincronizado na película. O
cantor de jazz, filme de Alan Crosland lançado em 1927, marcou oficialmente a entrada no
cinema numa nova era. Verdade que as exibições dos filmes sempre foram acompanhadas
de algum tipo de sonorização, como o de pianistas que tocavam temas previamente
escolhidos. Porém, as possibilidades advindas da nova tecnologia eram muito superiores a
isso e os desafios para os montadores também.
Imagine que já era possível a construção de diálogos inteiros sem a necessidade de
letreiros entre os planos, o que implicava numa maior complexidade de roteiros e técnicas
de direção. A montagem deveria então preocupar-se tamm com a pertinência dos cortes
em relação às falas. A performance dos atores agora não era mais limitada à mímica e a
montagem teve de se rearticular em termos de entonação de voz, ritmo muitas vezes
imposto pelo diálogo e o respeito a múltiplas pausas antes irrelevantes, como as da
respiração.
Isso quer dizer que filmes que não apresentam diálogos podem ser considerados
retrocessos? Nós que aqui estamos por vós esperamos seria um passo para trás em termos
de montagem? Certamente que não. Embora a obra não invista na palavra falada, ela utiliza
outros recursos sonoros sincronizados na película de uma forma extremamente sofisticada.
Primeiro com relação ao uso da música, elemento-chave na condução do espectador rumo a
uma atmosfera específica. Segundo, quanto ao uso de elementos de sonoplastia que
intensificam o efeito provocado pelas imagens. Terceiro pela possibilidade de construção do
ritmo não apenas pelo comprimento dos planos, mas também inter-relação entre som e
imagem. Em quarto lugar, verificamos que a ausência de diálogos permite o preenchimento
quase total do filme pela sica, o que potencializa um outro elemento, extremamente
importante para as estratégias desenvolvidas pelo autor-modelo: o silêncio.
Logo, vê-se que aquilo que poderia ser uma perda para a obra, transforma-se em um
57
de seus trunfos.
Outra inovação impactante para a montagem foi a introdução da cor nas películas a
partir da segunda metade da cada de 30. Um recurso que poderia ser extremamente
importante no estabelecimento das convenções de tempo e espaço na montagem. Por
exemplo, cenas do Velho Oeste costumam tender para tonalidades amarelas e laranjas, em
função da alta luminosidade nas regiões semi-desérticas americanas; enquanto ambientes
urbanos costumam ser caracterizados por tons azuis ou cinzentos, reflexos do vidro e
concreto usados em larga escala. A montagem pode ajudar o espectador a se situar no
espaço somente através da inserção de imagens de diferentes cores, sem o concurso de
diálogos, o que economiza bastante tempo na narrativa. Também é possível vincular
experiências passadas de algum personagem através do uso de imagens em preto-e-branco
ou em sépia. Obviamente, essas são decies que na montagem tradicional em película
dependem diretamente da direção.
O desenvolvimento da tecnologia eletnica foi outro marco. Os realizadores
interessados em deo começaram uma série de experimentações que obrigavam a uma
mudança de postura também no âmbito cinematográfico. Surgiu o cinema-verdade, vertente
que pregava a naturalização do processo de filmagem, tentado aproximar o filme da
experiência imediata e sem retoques da realidade exibida.
Isso significava que todos aqueles elementos que antes a montagem tentava ao
máximo excluir do produto final, como imagens registradas por câmeras sem estabilidade,
enquadramento pobre e som não muito claro, ganharam novo status. Nas palavras do
teórico da montagem Ken Dancyger, os elementos brutos do processo de filmagem,
anátema do filme dramático, tornaram-se parte da experiência do cinema-verdade.”
(DANCYGER, 2003, p.126).
A mais recente “revolução” no mundo da montagem diz respeito diretamente a Nós
que aqui estamos por vós esperamos e responde pelo nome de edição digital.
________________
58
4.1 Edição digital
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Das primeiras experiências cinematográficas para cá, um número importante de
inovações tecnológicas ajudaram a ampliar os limites da montagem. Foi possível acrescentar
som e cor aos filmes. As câmeras adquiriram recursos que permitiram aumentar a
profundidade de campo e acompanhar praticamente qualquer tipo de movimento. A
sensibilidade das películas aumentou e é posvel realizar extensos planejamentos para
diferentes efeitos de luminosidade em um filme. No entanto, a estrutura básica da maior
parte dos registros cinematográficos continua muito semelhante à que foi apresentada pelos
Lumière em 1895: a exposição controlada de luz sobre uma película fotossenvel, capaz de
produzir efeitos de luz e sombra. Assim como a ordenação seqüencial e rítmica do conteúdo
continua, em linhas gerais, sendo realizada através de corte e colagem de cada fragmento da
cena registrada, com o efeito de ilusão de movimento sendo garantido pelo fenômeno da
persistência retiniana.
Mas, se do ponto de vista técnico, a montagem cinematográfica em película continua
muito próxima à que era realizada nos primórdios da sétima arte, o mesmo não pode ser
dito com relão a outros meios de difusão. A TV e os equipamentos digitais, como os
microcomputadores, promoveram o desenvolvimento de novos recursos tecnológicos
destinados à manipulão da imagem. Atualmente, há outras duas formas bastante
difundidas de “montagemde conteúdos audiovisuais: a eletnica e a digital. Mas ambas,
por dependerem de suportes diferentes da película cinematográfica e por exigirem outros
procedimentos de manuseio, acabaram sendo conhecidas pelo termo genérico de edição.
No caso do registro eletrônico, a lente da câmera de deo capta a luz assim como
ocorre no equipamento cinematográfico. que ao invés de película, as câmeras de deo
utilizam receptores fotossenveis chamados Charged-Coupled Devices (CCDs) capazes de
detectar diferenças na intensidade do brilho nos diferentes pontos de uma imagem. A
superfície do CCD contém de centenas de milhares a milhões de pixels (menor elemento de
registro luminoso), que reagem eletricamente à quantidade de luz focalizada em sua
59
superfície. As áreas de luz e sombra de uma imagem, detectadas nesses pontos, são
convertidos em sinais elétricos, o que permite sua “leitura” por diversos tipos de
equipamentos eletrônicos. O tape é justamente o material onde são registrados os sinais
codificados.
Num sistema eletrônico, editar significa selecionar planos de um tape e gravá-los em
outro. Para facilitar a compreensão, chamaremos o primeiro de tape-matrix e o segundo de
tape-produto. Uma vez que o editor efetua a gravação no tape-produto, ele está limitado
àquela ordem e duração dos planos. Caso deseje extrair ou acrescentar alguma cena ou
alterar sua duração, terá de regravar tudo o que estiver já registrado no tape-produto a
partir do trecho modificado. Não é possível, numa edição eletrônica, criar ou suprimir
espaços de uma seqüência no tape-produto sem que isso cause uma grande perda de tempo
e trabalho.
em suporte digital, editar quer dizer construir uma playlist, ou seja, um conjunto
de instruções para que o programa execute uma seqüência seguindo padrões estipulados
pelo editor. Mostrar somente as imagens escolhidas, na ordem planejada e com durão
pré-estabelecida. Porém, não significa que, durante o processo de edição, haja algum tipo
de corte “realna matéria-prima gravada, como ocorre na película ou no tape-produto. A
completa duração de cada cena capturada pela câmera está disponível ao editor a todo o
momento.
Isso é possível graças ao elemento básico de construção da playlist o clip, isto é,
uma orientação para que a máquina exiba certo trecho de uma cena que permanece íntegra
sob a superfície aparente da edição digital. Até que o editor finalize a totalidade de seu
trabalho, os cortes o meramente ilusórios, tudo funciona como uma simulação. Portanto,
alterar a ordenação, duração, pontos de corte e efeitos especiais aplicados sobre os planos
são tarefas facilmente executadas, bastando para isso apagar as instruções iniciais e estipular
outras. Todo o material gravado continua disponível para mudanças parciais ou completas,
até que o editor efetue uma operação chamada redering, onde a edição ganha contornos
definitivos. Trata-se da fase em que todas as modificações, superposições e transições de
clips são reunidas em uma única orientação para a máquina.
Essa flexibilidade proporcionada pelo efeito de simulação, em lugar do corte real,
60
permite que edição digital seja também chamada de o-destrutiva, na medida em que
permite ao realizador utilizar o mesmo conteúdo gravado para concretizar múltiplos
projetos simultaneamente, sem riscos de deterioração do material, com enorme economia de
tempo e de recursos financeiros. Mesmo os registros realizados em película podem ser
digitalizados, manipulados e, em seguida, transpostos novamente para um suporte
cinematográfico convencional. Esse foi o caso em Nós que aqui estamos por vós
esperamos, através de um processo intitulado Kinoscopia. Diminui-se significativamente o
manuseio do caríssimo material em película, evitando prejuízos. Traduzindo: já é possível
experimentar mais livre, rápida e eficientemente maneiras novas de se contar uma história.
Mas entre o possível e a realidade concreta há intervalos a serem preenchidos. Os
autores não são unânimes em determinar o impacto das novas tecnologias de edição digital
sobre a produção contemporânea.
Brennesis, por exemplo, é uma pesquisadora que considera absolutamente
indispensável considerar o tema sob o ponto do vista da produção. Os programas de
edição digital estão mudando o modo como as histórias são contadas porque está mudando
também quem as conta” (BRENNEIS, 2002, p. IX).
Em alguma medida, ela tem razão. A edição digital cria um contexto semelhante ao
que gerou a Nouvelle Vague, quando o barateamento dos custos totais do filme permitiu
que uma leva de novos diretores tivesse a chance de experimentar linguagens inovadoras e
conduzir o Cinema um passo adiante. Um fenômeno semelhante foi observado em diversos
outros países, aproximadamente no mesmo período, inclusive no Brasil com o Cinema
Novo.
Entretanto, Brennesis e diversos outros autores que em na tecnologia digital a
alavanca para grandes revoluções no Cinema parecem sempre confundir a idéia de potencial
transformador com a de transformação em si. Uma promessa passível de ser viabilizada num
futuro próximo, porém ainda não plenamente cumprida pelo cinema atual.
Em sentido contrário, o trabalho do pesquisador Lev Manovich é importante ao
desmistificar vários pontos da questão. Tentando desvendar os princípios norteadores das
novas tecnologias, o autor chega à conclusão de que o são os novos meios as grandes
fontes de mudança para o Cinema, mas justamente o contrário. É a produção lmica que
tem servido de influência às obras digitais.
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Segundo o autor, a linguagem cinematográfica vem paulatinamente conquistando
mais e mais espaço na interface de relações entre máquinas e usuários, especialmente no que
tange à internet e aos jogos eletrônicos e digitais. O conhecimento amplamente
compartilhado das convenções fílmicas, como as relações temporais-espaciais e a condução
da trama sob o ponto de vista de um protagonista, tem auxiliado e muito usuários do
mundo inteiro a consumir as novidades do universo computadorizado.
Como o poderia deixar de ser, Manovich admite a possibilidade de o cinema
também vir a se beneficiar com o possível desenvolvimento da linguagem das novas mídias.
Entretanto, o autor joga essa perspectiva para o futuro (talvez próximo). Avaliando o
trabalho de Dziga Vertov, Um homem com uma câmera, de 1929, Manovich acredita ver ali
a compilação do que de mais importante em termos de linguagem tanto para o cinema
quanto para as novas mídias. Ou seja, a “novidade” de hoje seria a mesma dos anos 20.
Outra crítica pertinente à afirmação de que a tecnologia digital já está transformando
o Cinema parte de Dancyger. Segundo o teórico, é um erro grave depositar na tecnologia a
esperança de revoluções significativas sem levar em conta que de um operador por trás
das máquinas e de que é sempre do componente humano que partem os saltos de qualidade
numa história a ser contada. Onde cortar, como e por que continua a encargo do editor
(DANCYGER, 2003, p. 410). A rapidez da edição computadorizada permite que se
experimente mais e melhor, que o montador “brinque” com o filme e suas possibilidades.
Mas a edição digital pode resultar em fracasso estrondoso, tanto ou até mais que a
convencional pela chance de haver saturação na quantidade de recursos empregada numa
mesma obra.
É provável que a edição digital transforme o Cinema? Sim, a democratização do
acesso aos bens de produção cinematográfica costuma ter esse poder. Mas ainda o é
possível apontar com absoluta certeza alguma obra que tenha de fato revolucionado os
padrões de linguagem em função do uso da tecnologia digital. Mesmo os filmes de
animação, que dependem cada vez mais do uso de computadores, estão na verdade se
aproximando dos padrões do cinema não-animado, mais do que criando novas linguagens.
Outra postura interessante de Dancyger é a de diferenciar os fatos tecnológicos da
experiência cinematográfica da não-linearidade. Tornou-se comum chamar de narrativa
o-linear” qualquer filme produzido a partir da edição não-destrutiva ou que minimamente
62
fuja das convenções do cinema hollywoodiano. No entanto, o autor aponta quatro
características que ele considera básicas para uma definição mais precisa.
A primeira é o prinpio operador relacionado às expectativas. Numa obra
não-linear, é observada a desvinculação entre causa e efeito, o que leva a um embate
constante de expectativas alimentadas versus expectativas frustradas. “O resultado é uma
narrativa de forma alternada, suficientemente imprevivel para criar uma espontaneidade ou
artifício que altere o significado” (DANCYGER, 2003, p. 413).
A segunda característica da não-linearidade apontada pelo autor é na verdade uma
observação complementar à primeira. Ela diz respeito ao uso de elementos opostos
dispostos lado a lado ou simultaneamente. O oposto, por conta de seu não-fluido
relacionamento com o que o precede, serviria para minar as expectativas do público,
podendo ser usado como contraponto.
A terceira característica da não-linearidade para Dancyger é a possibilidade de o
filme provocar a quebra da identificação do público com o personagem. Isso poderia ser
alcançado através do uso de um personagem inico ou da valorização de personagens
secundários às custas do principal. O distanciamento seria uma arma importante na criação
de novas perspectivas narrativas.
Por fim, um filme não-linear pode surgir da substituição da trama convencional por
muitos incidentes. A multiplicidade de pontos de vista poderia funcionar para romper um
fluxo psicológico único que resultaria numa obra previvel.
No caso de Nós que aqui estamos por vós esperamos, somente após o detalhamento
das seqüências e da análise dos programas de produção de efeitos, será possível avaliar a
aplicabilidade desses parâmetros no filme, buscando descobrir se a obra pode ou não ser
identificada como uma narrativa não-linear.
Seja como for, a reunião desses quatro aspectos levou Dancyger a uma conclusão
bem similar a que Lev Manovich alcançou quando analisava a obra de Vertov (O homem
com uma câmera): uma tradição não-linear institda no Cinema. (DANCYGER,
2003, p. 419). Se é antiga a linha fundada pelo diretor americano D.W.Griffith entre os anos
10 e 20 no sentido de criar tramas coesas e sem dubiedade, a primeira tentativa de quebra
dessas convenções também é. na década de 20, os realizadores russos (particularmente
Eisenstein) estabeleceram interessantes possibilidades não-unidirecionais na condução da
63
narrativa fílmica. Também em Luís Buñuel há a pulverização de toda e qualquer esperança
de entender o mundo somente em seus aspectos lógico-lineares, como se vê em Um Cão
Andaluz. Sem contar uma série de diretores atuais que misturam tanto as perspectivas
lineares quanto a subversão às mesmas.
Dessa forma, é preciso extremo cuidado na hora de relacionar a tecnologia digital
com as narrativas não-lineares, acreditando que uma instância de pressuposição entre
elas. O que existem são possibilidades.
Não que os trabalhos de autores mais otimistas sejam destitdos de algum fundo de
razão. Talvez seja mesmo mais fácil que a edição digital gere um filme com estrutura
narrativa não-linear, tanto pela praticidade na experimentação de novos formatos, como
pela maior possibilidade de intervenção no interior dos planos. É mais que possível, é
provável. O tempo dirá.
Por enquanto, o que temos são algumas modificações interessantes promovidas pela
edição digital. Ainda não suficientes para caracterizar uma evolução na linguagem, mas que
merecem destaque.
No caso de Nós que aqui estamos por vós esperamos, os procedimentos digitais
promoveram o surgimento de dois fatos interessantes. O primeiro foi o deslocamento de
algumas decisões que eram tipicamente do âmbito da direção para o da montagem. Num
filme convencional (em película), onde o diretor registra as ações seguindo um roteiro
pré-estabelecido, vários procedimentos são adotados ainda durante as gravações para
garantir a unidade do material. A tonalidade do filme, por exemplo, tende a ser a mesma,
independente da locação, graças à utilização de um mesmo material de filmagem e
comumente o uso de um filtro a frente da câmera. Normalmente há o registro de imagens já
planejadas para a transição de locações ou para não causar desconfortos com lapsos
temporais. Até mesmo a possibilidade de repetição consecutiva de uma mesma cena ao
longo do filme deve estar prevista, de modo a não faltar material registrado em película. As
sobreposições de imagens num filme tradicional também dependem da exposição dupla do
negativo.
No entanto, Nós que aqui estamos por vós esperamos é um filme composto
basicamente por imagens de arquivo, ou seja, seu conteúdo está parcialmente
determinado pela filmagem, que não pode ser refeita em caso de imperfeições” no registro.
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Assim, se a montagem fosse realizada diretamente sobre a película, em estilo convencional,
o editor seria obrigado pelas condições técnicas a adotar uma das seguintes decies: tentar
disfarçar os problemas; assumir as lacunas ocasionadas pelo número mais restrito de planos;
ou simplesmente excluir cenas pela impossibilidade de conexão ou unidade com o restante
da obra.
Com os aparatos digitais, uma quarta opção está disponível ao editor: a chance de
tentar corrigir os problemas advindos da captação de material em arquivo. É posvel
aplicar um filtro na fase de pós-produção e obter maior uniformidade entre as cenas. Assim
como utilizar cenas de conexão entre os planos que não provinham exatamente da época de
gravação das imagens originais, atribuindo a aparência de antiguidade aos planos mais
recentes e evitando o choque entre tomadas novas e antigas. Não há restrições quanto ao
número de vezes que uma cena pode ser repetida, já que não limitação de número de
fotogramas na película e as sobreposições são facilmente obtidas através de comandos
simples, chamados clips como vimos anteriormente. Daí afirmarmos que algumas operações
típicas do universo da dirão passaram a fazer parte também do exercício de edição, num
processo de transferência de poder entre esferas decisórias.
Considerando todas essas possibilidades e, sobretudo, o quão fácil tornou-se efetuar
qualquer uma dessas operões, devemos admitir o fato de que, muitas vezes a decisão mais
radical numa edição digitalizada é justamente a de manter as características originais da
imagem de arquivo. Mais adiante, será de suma relevância entendermos como e por que
Nós que aqui estamos por vós esperamos em diversos momentos segue pela lógica da
manutenção, na contramão da variedade de recursos.
Por outro lado, a edição digitalizada também permite (e essa chance é aproveitada
em Nós que aqui estamos por vós esperamos) a possibilidade de intervenção direta não
apenas entre as imagens, mas também no interior do próprio plano. Esse é exatamente o
segundo “porém” que nos faz atribuir importância ao aspecto digital nesta dissertação.
Diversos realizadores, inclusive Eisenstein, previam a possibilidade da montagem
no plano”, sem que fosse necessário o intermédio de um corte e união com outra imagem.
No entanto, o planejamento da coexistência de diversos elementos num mesmo plano ficava
ao cargo da composição de quadro. Durante as filmagens, era preciso que todos os objetos
ou personagens estivessem à disposição e devidamente enquadrados.
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Na edição digital, eliminam-se essas restrições. É possível remover parcial ou
completamente elementos do plano, acrescentar outros, sem que o espectador perceba que
a imagem foi manipulada. Caso seja a intenção do editor, também há como deixar
absolutamente clara a intervenção, mostrando-a sob a forma de incrustações. Seja como for,
a edição digital possibilita a impressão multitemporal e multiespacial no interior do plano,
atribuindo características pluridimensionais à imagem, um aspecto imprescindível à análise
de Nós que aqui estamos por vós esperamos.
Mas como todos esses aspectos aparecem ao espectador de Nós que aqui estamos
por vós esperamos ? Sob a forma de compreensão de que a obra é um “filme de
montagem”.
O fato de 95% das imagens que compõem Nós que aqui estamos por vós esperamos
serem provenientes de arquivos por si justificaria a afirmação. Mas não parte desse
dado a verdadeira chave para compreensão de um filme de montagem”, até porque o
percentual de planos captados em bancos de imagens é uma informação extra-textual, não
disponível ao público em qualquer momento da exibição, apenas nos artigos e críticas
publicados sobre a obra.
No entanto, o espectador se apresenta na sala de exibição, assiste ao filme e
compreende exatamente que se trata de um filme de montagem”, mesmo que não saiba que
esse é o termo a ser empregado. O que leitor percebe é que há ali uma junção de fatos,
sujeitos e lugares díspares, provavelmente sem qualquer laço comum fora da obra. A
própria variedade dos tipos de granulação da imagem impede que se pense de forma
diferente. O filme com um todo investe firmemente na explicitação da montagem e de seu
papel como elemento dominante na construção da obra.
Nós que aqui estamos por vós esperamos faz sentido porque os materiais estão
dispostos ao leitor de uma maneira que exige a compreensão via montagem. Isto é, através
de processos que demandam habilidade de antecipar-se aos fatos, preenchendo as lacunas
deixadas durante o corte e junção dos planos.
Um exemplo: o filme apresenta imagens antigas de trabalhadores formando filas por
comida grátis com a legenda “New York, 1929. Crash da Bolsa”. Logo em seguida é
exibida uma imagem (da atualidade) onde japoneses gesticulam freneticamente, na confusão
que os operadores de uma bolsa de valores compreendem. Mais nada. Cabe ao
66
espectador completar: milhões perderam seus empregos por algo incompreensível para a
maioria; isso aconteceu no passado, o mesmo perigo ainda ronda a economia na presente, o
desastre pode ser clico. E se a Bolsa de NY quebrasse hoje?
Essa é uma operação apenas um pouco mais complexa do que a junção entre uma
imagem de alguém observando uma faca, seguida de outra exibindo pulsos cortados, ou do
Modelo Vivo de Kulechov. O que está em questão é um tipo de lapso provocado pelas
operões de colagem que é plenamente convertido ação pelo leitor.
Para Ernest Gombrich, teórico ligado à história da arte, o apreciador possui a
incrível capacidade de esperar a continuação provável de uma série de acontecimentos,
através do “princípio do etc.(GOMBRICH, 1995, p 230). Seria um estado de prontidão
para projetar o pensamento no devir, para lançar os tentáculos de correspondência entre os
dados disponíveis e encontrar uma lógica de encadeamento entre eles. Para o teórico, esse
contexto mental é o responsável por toda a série de expectativas inconscientes que
acumulamos na fruição de uma obra:
Quando se mostram a um observador as imagens de um
dedo que aponta ou de uma flecha, ele tende a deslocar a sua
situação, de certa forma, na dirão do movimento. Sem essa
tendência que temos a ver um movimento potencial sob a forma de
antecipação, os artistas nunca teriam sido capazes de criar a
sugestão de velocidade em imagens estacionárias.
(GOMBRICH, 1995, p 239)
Ainda segundo o autor, toda a cultura e comunicação dependem da interação entre
expectativa e observão, das ondas de gratificação, desapontamento, conjeturas acertadas
e jogadas em falso, que constituem a nossa vida diária. (GOMBRICH, 1995, p 62). Aos
mágicos, pintores, cineastas e demais “ilusionistas”, caberia desencadear a série de
expectativas, um simulacro de situações familiares, que fazem com que a nossa imaginação
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se precipite, avence o sinal e complete o ciclo dos eventos sem saber a que altura foi
ludibriada” (GOMBRICH, 1995, p 215).
No caso de Nós que aqui estamos por vós esperamos todo esse jogo de expectativas
está organizado sob a forma montagem. Ela é a porta de acesso à narrativa que a obra
oferece ao espectador, assim como para os pesquisadores interessados em compreender o
filme. Todas as estratégias organizadas na forma de programas de produção de efeitos estão
subordinadas à estratégia primeira da obra: a montagem.
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Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
CAP. II
_____________________________________________________
Detalhamento da obra
_____________________________________________________
1. Nós que aqui estamos por vos esperamos
– Estruturação
Foi mencionada no Capítulo I a opção por uma análise interna de Nós que aqui
estamos por vós esperamos. Ora, isso demanda uma descrição mínima do filme. Não que
essa especificação recaia numa análise sociológica das condições de produção, o que seria
um desvio do foco principal; o objetivo do relato, nesse caso, é o de realizar um exame
particular dos elementos que constituem a obra propriamente dita, dos fatores que
produzem uma articulação significativa ímpar, compreensível mesmo que tenhamos
reduzida ou nenhuma informação sobre a gênese do filme e as circunstâncias sociais,
políticas e culturais envolvidas. Muitas obras são constitdas em contextos semelhantes, no
mesmo período e às vezes até pelos mesmos criadores, o que não significa que os produtos
culturais sejam sempre equivalentes; é preciso decifrar a estruturão interna global para
compreender os segredos da peculiaridade de cada filme.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, é possível verificar dezesseis
segmentos definidos que comem a obra. E esta não é uma divisão arbitrária, estipulada
exclusivamente para fins de análise acadêmica, mas sim uma disposição explícita na obra.
69
Cada novo trecho encontra-se devidamente sinalizado através de um mesmo padrão:
surgimento de imagens colhidas em cemitérios, variação no acompanhamento musical e
apresentação do título que designa a seqüência.
Nós que aqui estamos por vós esperamos é formado pelos chamados set pieces, ou
seja, conjuntos de incidentes reunidos devido a similaridades temáticas, porém relativamente
independentes uns dos outros. Caso as seqüências sejam exibidas em separado, é possível
construir sentido a partir de cada uma delas, sem que seja obrigatório o esclarecimento
daquilo que a precede ou sucede. Tanto que foi essa mesma a forma de apresentação do
filme utilizada pelo programa dominical Fantástico após a consagração da obra nos
primeiros festivais de que participou.
Obviamente, a autonomia das partes não significa que a experiência da apreciação
isolada das seqüências seja igual a da fruição completa do filme. É preciso compreender
cada trecho em suas especificidades, mas também o tipo de relação se estabelece entre as
diversas partes e o efeito do filme como um todo.
Portanto, neste catulo seguiremos a divisão apresentada em Nós que aqui estamos
por vós esperamos, respeitando o estilo e a ordem de agrupamento da obra, porém
tomando-os como pré-requisitos para análise posterior sobre a simbiose das seqüências e
das características do filme como conjunto, através dos programas de produção de efeitos,
no capítulo III.
Dos dezesseis segmentos analisados, os quatro primeiros o essenciais para
introdução dos temas e das formas específicas de abordagem. São eles que oferecem ao
espectador as chaves para compreensão básica da narrativa, informando as condições
mínimas para apreciação. As nove seqüências posteriores são de exploração e
aprofundamento contínuo das relações instituídas no prinpio da obra através montagem. O
último segmento claramente funciona como uma resposta (ou tentativa) aos seus
predecessores, um alinhavo globalizante da trama.
_____________________________________
1.1 Seqüência de abertura
______________________________________
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Nós que aqui estamos por vós esperamos inicia-se com a exibição de um fundo
branco, sobre o qual surge a primeira legenda, na porção superior da tela:
O Historiador é o Rei.
As palavras são exibidas e posteriormente excldas da tela através dos efeitos de
fade-in e fade-out. Na metade inferior é apresentada a segunda afirmação:
Freud é a Rainha.
Ambas as frases são acompanhadas de notas graves ao piano, num tom peremptório,
impositivo, que não aparece em qualquer outro momento do filme.
Exatamente aqui são estabelecidos os primeiros critérios para o acompanhamento da
obra: a credulidade e convicção que o espectador deve depositar no aporte historiográfico e
a certeza de que o inconsciente tem um papel de suma importância em nossa trajetória. O
emprego das letras maiúsculas nas palavras historiador, rei e rainha funciona para ratificar a
importância atribuída a esses elementos.
Freud é apresentado sem qualquer introdução ao seu histórico profissional,
empregado como sinônimo da psicanálise como um todo e, sobretudo, como uma figura de
conhecimento geral. Começa aqui a aposta que o filme vai realizar ao longo de todo sua
exibição sobre a Enciclopédia do espectador. Desse, não se exige muito apuro na
diferencião das teorias freudianas, porém é obrigatório que o público esteja apto a
reconhecer Freud como precursor das pesquisas sobre a psicanálise e principalmente como
um sinal de que a obra vai tratar os assuntos exibidos de uma perspectiva não
exclusivamente historiográfica.
Atentemos para alguns curiosos detalhes quanto às frases. A não simultaneidade da
exibição funciona para promover uma separação básica das duas idéias norteadoras do
filme, que se complementam, mas não se confundem. Também a frase de referência a Freud,
sendo mostrada em segundo lugar em relação a do historiador, aponta para o caráter nem
71
sempre óbvio das implicações psicanalíticas. A obra investe no senso comum que identifica
o gênero feminino (a Rainha”) como menos racionalista, mais emocional e impulsivo que o
masculino.
Quando as frases desaparecem da tela, a condução da abertura modifica-se. O tom
grave das notas ao piano dá um lugar a uma melodia bem mais suave, porém melancólica. O
estímulo sonoplástico responsável pela impressão de “peso” é substitdo pela sensação de
leveza construída tanto pela música quanto pelos planos visuais. Inicia-se uma espécie de
sobrevôo aéreo da câmera, numa paisagem toda feita de nuvens.
É importante ressaltar que na tradição cinematográfica um ambiente esfumaçado
costuma introduzir situações bem específicas: ambientação da trama em países frios e com
grande incidência de nevoeiros, como a Inglaterra, por exemplo; indícios de manifestações
de ordem espiritual na trama; perigo oculto nos filme de terror; segredo e mistério no
Cinema noir; antecipação nas obras de suspense; ou alteração dos estados de consciência
seja através da experiência onírica, consumo de alucinógenos ou da hipnose. Nós que aqui
estamos por vós esperamos aproxima-se mais do último caso, conduzindo o espectador a
uma atmosfera que sugere um transe, ou pelo menos o mergulho num universo particular,
distanciado das leis que regem o mundo cotidiano, instituindo novas relações de pertinência
entre tempo e espaço.
No canto da tela, surge uma incrustão onde caminhões (provavelmente militares)
seguem em fila indiana. Parado no acostamento da pista, um homem observa a passagem
dos veículos. É noite e ele segura uma lamparina.
A incrustação aparece e some através de efeitos de fusão.
Os processos de transição de imagens que passam a ser empregados daqui por
diante, afetam diretamente o ritmo de condução do filme. O corte seco cede lugar à fusão
entre o final de um plano e o icio do próximo criando um tipo de transposição suave, que
atribui leveza a obra mesmo nos momentos em que os temas tratados são a violência e o
assassinato. Um articio técnico eficiente para minar a associação comum entre morte e
desespero, fomentando no espectador uma impressão muito mais próxima da melancolia do
que exaltação emocionada, algo extremamente importante no desenrolar da obra.
Entram as legendas:
72
Grandes personagens, pequenas histórias
Grandes histórias, pequenos personagens
Memória do breve Século XX
Ao sumir o texto verbal, vê-se a segunda incrustação. Dois homens ajoelhados e
com as mãos amarradas são sumariamente assassinados com tiros na cabeça por um soldado
posicionado atrás deles. Não como saber onde ou quando a cena foi captada. Ao ser
extirpado de seu contexto original, o segmento torna-se disponível a outras funções e usos
através da montagem. Obviamente, a essência da ação permanece inalterável: um homem
continua executando outros dois. Porém as circunstâncias que cercam o ato ficam à mercê
de um novo processo de significação. Talvez a antiga seqüência completa tivesse
esclarecido mais, mostrado um julgamento prévio ou os motivos dos disparos. Em Nós que
aqui estamos por vós esperamos, contudo, só o que é possível determinar é a tensão
estabelecida entre as duas incrustações exibidas. Enquanto na primeira alguém acompanha a
passagem dos veículos pesados, representando passividade, muitas vezes até o atropelo do
observador comum pela História, a segunda caminha exatamente na direção contrária: um
soldado toma a iniciativa e atira em dois homens que não ofereciam qualquer risco iminente.
São mostradas duas versões de sujeitos históricos, concepções que voltarão à tona nas
seqüências posteriores.
Mas o que é importante notar nesse caso é a construção do delicado tecido
narrativo, sobretudo da ressignificação, construído a partir do plano. Os filmes não
compostos por imagens de arquivos, via de regra, são estruturados em grande blocos,
utilizando tomadas de longa duração, diversos ângulos de visão de um mesmo ambiente e
opções de close-up através de inserts. Nós que aqui estamos por vós esperamos conta
com um repertório bem menos vasto. Algumas imagens do filme simplesmente são únicas,
têm baixa qualidade técnica, curta duração, impossibilidade de exibição através de múltiplos
pontos de vista espaciais e uma conexão nem sempre muito óbvia com o restante do
material coletado. Daí a necessidade de uma montagem atenta à exploração máxima de cada
plano e dos elos de ligação entre as diversas imagens.
As incrustações são de enorme relevância nesse caso. Na falta de uma coesão rígida
73
entre as imagens (pela multiplicidade dos personagens, diferenças técnicas de filmagem,
temas variados, etc.), o fator simultaneidade de exibição impede que o espectador
considere a ordenação dos planos como aleatória, por mais impertinentes que as relações
possam parecer a princípio. A montagem em Nós que aqui estamos por vós esperamos
trabalha no sentido de tornar a tela um palco onde os conflitos não se estabelecem
exclusivamente no tempo, mas também no espaço (e não falamos aqui no sentido da
representação desses dois elementos na trama, mas do filme como materialidade, ou seja,
uma obra que demanda um tempo de apreciação e de um espaço físico de exibição).
Tamm a questão do tempo retratado no interior da trama. Apesar da frase
Memória do breve Século XX fazer clara menção ao subtítulo de A Era dos Extremos, ela
funciona também para situar o espectador que nada sabe a respeito da obra de Hobsbawm,
assinalando um parâmetro importante: essa é a história de um período, não de um
personagem. Além disso, se o adjetivo "breve" evidencia o icio tardio e o término
abreviado do século (da Segunda Guerra Mundial à queda do Muro de Berlim), como prega
Hobsbawm, o espectador há de descobrir apenas ao término do filme, ao constatar a
insistência de Nós que aqui estamos por esperamos nos anos que se concentram entre esses
dois marcos históricos. Por enquanto, na seqüência de abertura, o breve” será
compreendido pelo público pelo caráter de velocidade nas transformações tecnológicas e
sociais verificadas no período. Uma leitura plausível e em vários momentos confirmada no
decorrer da obra.
A determinação temporal explícita a ser representada na trama (o século XX), aliada
ao uso das palavras “memória” e historiador”, aparece também como forte indicador do
gênero cinematográfico a que o filme faz referência, no caso, o documentário. Isso porque
o período histórico deixa de ser mero pano de fundo para atribuir verossimilhança à
trajetória dos personagens e assume a própria razão de ser da narrativa.
Esse verniz documentarista garante uma arma extra e de suma importância para a
obra: ao atribuir o status “testemunhal ao filme, o espectador pode tornar-se mais
receptivo ao conteúdo exposto. Enquanto outros filmes de ficção convencional demandam
certo tempo para introduzir o público no universo particular de seus personagens,
atribuindo-lhes a credibilidade mínima para o acompanhamento da trama, Nós que aqui
estamos por vós esperamos apresenta-se sob outra ótica: se esta é uma obra de cunho
74
historiográfico, então não há necessidade de pré-requisitos o exigentes para atribuão de
confiança. A “verdade”, teoricamente contida num documentário, dispensa verossimilhança.
Esse tipo de carta-branca permite à montagem uma grande flexibilidade para construir
relações entre imagens, sons e palavras que, em princípio, já terão uma aceitação
considerável por parte do público.
No mputo geral, a seqüência de abertura já apresenta várias das características
que atribuem feições únicas a Nós que aqui estamos por vós esperamos.
O programa sensorial está fortemente calcado nos recursos de transição de imagens
e na música. A suavidade dos efeitos de fusão e Key lighting é potencializada por um estilo
musical minimalista, que se utiliza de um número restrito de instrumentos musicais.
A particularidade dessa seqüência em grande parte reside na construção de uma
clima etéreo, principalmente através da utilização do fundo branco e das imagens de nuvens.
A passagem para uma caracterização mais “palpável”, digamos assim, dos elementos do
filme se a partir da terceira incrustação, onde aparece uma lápide. A pequena imagem
é exibida no canto da tela e, logo depois, paulatinamente, as nuvens vão dando lugar ao
cenário em torno da estrutura mortuária. As demais sepulturas tornam-se viveis e, durante
um breve instante, a imagem permanece congelada e a música decresce até desaparecer. É o
sinal para o término da abertura do filme.
Até aqui, o programa sentimental ainda é incipiente, mas aponta uma tendência à
construção de melancolia e desilusão no público.
o programa cognitivo apresenta um caráter predominantemente introdutório das
abordagens historiográfica e psicanalítica, além de apontar o gênero cinematográfico a que
o filme se vincula. O texto verbal escrito e as notas ao piano inicialmente se entrelaçam
numa função impositiva, mas depois os dois elementos expressivos se tornam relativamente
independentes entre si. Nesse primeiro segmento, as legendas passam a ser usadas como
títulos e a melodia desvincula-se do compromisso de ênfase direta do texto verbal,
caminhando para um estilo sonoro que dará unidade à obra.
O interessante da seqüência de abertura reside não tanto no que o programa
cognitivo explicita, mas no que ele omite. Onde estão os créditos iniciais de Nós que aqui
estamos por vós esperamos? Seria razoável esperar ver pelo menos o nome do criador do
filme, a um tempo roteirista, diretor e editor da obra. Contudo, nada aparece. Pode-se
75
argumentar que os créditos iniciais não o parte da obra propriamente dita, mas um
paratexto. O problema é que nem o título do filme é exibido. Logo, essa não é uma questão
do que seria texto ou paratexto e sim um movimento proposital que deve ser investigado
tendo em vista seu papel na trama.
Falamos um pouco acima que é interessante ao filme apresentar-se ao espectador
como um documentário, angariando um elevado grau de credibilidade prévia por
enquadrar-se na categoria “cinema-verdade”, ou seja, cujo objetivo é levar ao público uma
exposição do tema o mais próxima possível da "realidade" extra-cinematográfica. Se este é
o cartão de visitas de Nós que aqui estamos por vós esperamos, o que poderia ser mais
eficiente do que apagar as marcas de autoria empírica e criar a sensação de que a obra
conduz a si mesma, de que as imagens “falam” por si?
Diversos pesquisadores da área da comunicão instituíram longos debates sobre
a falácia da objetividade na produção fotográfica e fílmica, destacando o enorme grau de
intervenção nas atividades de filmagem, direção e montagem dos conteúdos audiovisuais.
Desde a escolha do ângulo de visão até a seleção final das imagens a serem exibidas, todas
as etapas do processo requerem a manipulação dos materiais, do contrário, eles sequer
existiriam.
No entanto, se os autores estão preocupados em esclarecer sobre os níveis de
interferência subjetiva na produção de filmes e fotos, significa que uma crença
fortemente disseminada na “transparência” das imagens, na “verdade” expressa em cada
uma delas. É justamente desse lugar-comum equivocado, porém de grande impacto que
Nós que aqui estamos por vós esperamos lança mão para funcionar. Ao excluir as marcas
de autoria da seqüência de abertura, o filme reforça a idéia de naturalidade” do discurso
visual. Até porque a obra apresenta fatos que, a princípio, são de conhecimento público,
acontecimentos marcantes constantemente retratados pela mídia. De quem é a “memória” a
que a obra se refere na legenda inicial? O espectador deve entender que, no máximo,
trata-se das reminiscências dos próprios personagens retratados, não um construto artificial
de um indiduo criador emrico. Os fatos evidenciariam a si mesmos.
76
_______________________________
1.2 Seqüência Nijinski
________________________________
A seqüência seguinte tem um icio peculiar. Após a imagem ter permanecido
congelada e a sica ter se extinguido durante um rápido instante, inicia-se um movimento
de aproximação (zoom-in) focalizando novamente a sepultura destacada na incrustação da
abertura. Um tipo de efeito que pode ser decorrente tanto da variação do comprimento
focal da lente durante a filmagem, quanto de um efeito de s-produção através da edição
digital. Em qualquer dos casos, o objetivo principal é encaminhar o espectador para um
outro contexto. A estagnação proposital da imagem, seguida por um “recomeço” dentro de
um mesmo plano, sem nenhum tipo de corte, alia-se ao emprego de uma música
diferenciada (introduzida justamente a partir do icio do zoom) para auxiliar o espectador
na compreensão da separação entre os segmentos. A distinção entre as seqüências não se dá
via mudanças na identificação visual e sim através da interrupção e posterior continuidade
de movimento.
Vemos a seguir - agora novamente por fusão de imagens - a fotografia de um
homem deitado, com o corpo recoberto por pinturas (talvez simulando uma pele animal),
displicentemente tocando uma espécie de flauta primitiva. Pelo tipo de imagem apresentada,
é possível supor a interferência de pintores sobre as fotografias originais. As legendas
informam:
Paris à noite, Maio de 1912.
Nijinski
L’aprés - midi d’un faune”
Théatre du Châtelet
Em seguida, vemos fotos de Ninjinski e de outra bailarina (não identificada pelas
77
legendas, porém com pinturas e ornamentos que sugerem sua participação no mesmo balé
encenado por Nijinski). Ambos estão submetidos a dois efeitos de edição digital: a fake
mask e o bluring. O primeiro assemelha-se à colocação de um anteparo diante da mera
para recortar uma porção do campo de visão. O segundo permite a suavização das bordas
da máscara, reduzindo o contraste entre o segmento exposto da foto e o fundo negro.
Combinados, os articios concentram a atenção do espectador no detalhe capturado pelo
instantâneo, no maneirismo dos gestos, no posicionamento minuciosamente estudado nos
ensaios. Corpos eternizados e imobilizados pelo registro fotográfico.
Isto é, se a montagem não interviesse para explorar o potencial latente de cada
imagem, construindo uma simulação de movimentos através da combinação de recursos
visuais e sonoros. Posicionando parte da fotografia de Nijinski no canto superior esquerdo
da tela e em seguida exibido o detalhe da bailarina no extremo oposto (porção inferior
direita), a montagem associa a deixa visual proporcionada pela própria imagem à música,
dando a impressão de que as mãos dos dançarinos de alguma forma podem tocar-se. Em um
nível que só a montagem permite, mesmo através de fotografias isoladas, os bailarinos
interagem entre si. Do mesmo modo como as fotos seguintes formam um conjunto
relativamente coeso, somente pela sugestão de movimentos criada a partir da seqüenciação
dos planos. As imagens surgem e desaparecem acompanhando o mesmo ritmo suave da
melodia, criando uma coreografia artificial gras ao emprego criativo da fake mask, do
bluring e da diversificação dos ângulos de filmagem, fatores que permitiram o refinamento
de cada plano até que fosse estabelecida a ênfase dramática exigida pela seqüência.
Os bailarinos desaparecem na tela, dando lugar ao pêndulo de um relógio em
funcionamento. As legendas explicam a conexão:
No dia seguinte...
Surgem imagens de prédios “duplicando-se” e virando de cabeça para baixo.
Máquinas funcionam em ritmo frenético. É possível identificar trilhos de trem, trânsito,
congestionamento. rios planos passam a ocupar a tela simultaneamente, formando um
conjunto de incrustações. Segundo a legenda:
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O balé já não era clássico
Um sistema de engrenagem fabril gira velozmente, enquanto um vagão surge em
movimento.
A cidade já não cheirava a cavalo
Vê-se um cavalo deitado numa rua da cidade, surgem planos de telefones,
maquinário empregado na construção civil, metrô e equipamentos da indústria têxtil.
Pelo túnel, o metrô
Pelo fio preto, a fala
As imagens mostram a discagem acelerada das telefonistas, a instalação de fios
elétricos nas ruas, fontes tipográficas características de jornais impressos se sucedem em
alta velocidade das bordas em direção ao centro da tela (como se “caíssem”). Vê-se tamm
uma máquina de datilografia, um rosto feminino, uma engrenagem de polimento e homens
com máscaras anti-s.
Garotas trocavam o corpete pela
máquina de escrever
É interessante perceber que, apesar da tentativa de descrever os planos visuais
apresentados, boa parte das imagens contidas nesse segmento do filme não se encontra
detalhada aqui. Seria preciso rever inúmeras vezes a obra em baixa velocidade de exibição
para que elas fossem perfeitamente identificadas, dado o ritmo acelerado com que se
sucedem em Nós que aqui estamos por esperamos. Ora, isso estaria claramente distante da
fruição posvel nas salas de cinema, a partir do que podemos supor que as imagens não
foram exibidas com o intuito de serem completamente distinguidas pelo público.
Na verdade, pouco importa que o espectador saiba diferenciar inteiramente um
79
mecanismo industrial das rodas de um trem em meio ao torvelinho de planos exibidos. O
que está em questão é o emprego da imagem e da palavra (no caso dos tipos usados em
jornais impressos) como uma espécie de “mancha gráfica”. Se um desses planos fosse
trocado de lugar, repetido ou até substitdo é provável que o fizesse qualquer diferença,
ele tem relativamente pouco valor do ponto de vista individual. O importante é a sensação
produzida pela soma dos fragmentos, pelo todo.
Além disso, a impossibilidade de distinção absoluta entre os diversos elementos que
constituem o universo urbano retratado no filme acaba por representar também uma das
marcas distintivas que Nós que aqui estamos por vós esperamos atribui às grandes cidades.
A multiplicidade de estímulos, que impede que notemos os trajes dos pedestres, por
exemplo, traz à tona outros componentes de uma metrópole que o filme não exibe
diretamente, mas que podemos - como espectadores - agregar: a poluição, o barulho
intenso, as atividades culturais, etc. Ao mostrar tudo muito rápido, o filme não nos permite
identificar detidamente cada coisa, o que de certa forma nos leva a “ver” muito mais do que
está na tela: toda nossa concepção de espaço urbano, a iia de velocidade, de mudança, de
transformação.
Nesse ponto, Nós que aqui estamos por vós esperamos aposta numa abordagem
pouco usual. É comum atribuirmos à montagem o exercício da busca pela relevância; se não
é preciso ver toda a ação para compreender a narrativa, o montador deve cortar todo o
supérfluo, mostrar apenas o estritamente necessário de forma a economizar tempo para os
instantes realmente significativos (salvo nos casos em que o objetivo principal é aproximar o
tempo de representação do tempo real). Tende-se a pensar sempre na montagem em termos
de recursos mínimos para compreensão. No entanto, na segunda seqüência de Nós que aqui
estamos por vós esperamos, a montagem investe justamente no contrário: no excesso, no
volume, na falta de distinção total, na saturação. Um recurso que substitui as estatísticas
sobre o crescimento vertiginoso do século XX através de estímulos sensoriais.
Em meio a tantas incrustões rapidamente exibidas, uma ganha destaque. Um
pequeno rosto masculino, de meia idade, surge no canto da tela. Ele diferencia-se dos
demais por não parecer inserido no contexto imagético geral, mas por apresentar-se como
uma figura que foi “recortada” e “colada” sobre as outras, numa sutil diferença entre
primeiro plano e fundo de tela. Também o tempo de exibição é diferente, o rosto não é
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rapidamente substitdo como os demais. Surge a legenda:
Os quadros já eram Picasso.
Imagens diversas se sucedem. Uma mulher dança. As mãos de um pianista tocam
uma melodia veloz sobre o instrumento. Mãos de um datilógrafo também trabalham
rapidamente. Homens participam de apostas e mulheres aplicam maquiagem.
Os sonhos já eram interpretados.
Uma pequena imagem de rosto de Freud surge e permanece na tela, juntamente com
a de Picasso. Vê-se aviões em pleno vôo, uma multidão caminhando pelas ruas e máquinas
trabalham em ritmo acelerado.
Na Rússia.
O rosto de Lênin vem fazer companhia aos seus predecessores, ocupando a tela.
Surgem imagens de fábricas, operários, mimgrafos produzindo panfletos.
E = mc²
O último rosto em destaque nessa seqüência aparece na tela: Einstein. O filme
mostra ainda uma montanha-russa e olhos humanos são mostrados em detalhe, com
bastante insistência, enquanto máquinas giram ao seu redor.
Esses são exemplos de como a montagem pode utilizar-se explicitamente da
enciclopédia do espectador e sutilmente associar novas idéias a ela.
Mencionamos no capítulo I a apresentação de algumas personalidades históricas no
filme como marcas, mais do que como personagens convencionais. Picasso é um desses
casos. Mas, para compreender essa operação, é necessário ter em vista todo o conjunto
complexo de pressuposições existenciais envolvidas; para efetivar o processo, o espectador
deve saber ou supor (sobretudo aceitar) que: Picasso foi um pintor, conquistou o
reconhecimento no meio artístico, quebrou os padrões convencionais da representação
81
pictórica, simboliza o movimento de contestação artística que mobilizou vários outros
criadores da sua geração, representa um divisor de águas nas formas de expressão.
Mas digamos que o espectador já detivesse todas essas informões antes de assistir
ao filme. Qual a novidade oferecida em Nós que aqui estamos por vós esperamos?
Primeiro a apresentação de Picasso não como um gênio isolado, mas como fruto e,
ao mesmo tempo, construtor do contexto hisrico no qual estava inserido. A arte do
grande pintor espanhol estava intrinsecamente ligada às transformações, glórias e desgraças
do século XX, daí a importância da inclusão de homens com máscaras de gás na seqüência
e o "fundo" da incrustação, formado por imagens típicas das décadas 10, 20 e 30.
Em segundo lugar, um fato curioso: vê-se o rosto de Picasso, mas nenhum de seus
quadros surge na tela. É claro, sempre se pode levantar justificativas ligadas ao pagamento
de direitos autorais para exibição das obras no filme. Porém essa é uma questão
extra-textual. Para o espectador, a idéia que prevalece é de que o nome do criador superou
a própria criação.
Em terceiro, a aplicação de um único advérbio funciona como ponte essencial para a
conexão entre Picasso, as incrustões ao redor e a totalidade da seqüência: o já. O
artifício, enganosamente simples, esconde uma grande sofisticação. O emprego do já”
aplicado à Nijinski, Picasso e Freud abre a possibilidade de relacionar as diversas imagens
exibidas, as figuras históricas e os fenômenos da urbanização e produção em massa a um
mesmo conceito que interliga todos eles - a velocidade. A legenda (o elemento mais
facilmente identificável como pertencente ao programa cognitivo) não funciona para o mero
repasse de uma informação primária, como nome do personagem, nem tampouco descreve
o que é totalmente apreenvel apenas a partir da imagem; ela apresenta um dado adicional
intrinsecamente ligado a todo o discurso imagético, de forma a promover uma
contaminação mútua entre os diversos recursos fílmicos.
Outro elemento expressivo importante na sequência é a pontuação. Na legenda "Na
ssia.", por exemplo, o inusitado ponto final atribui um caráter determinista à relação
entre o texto verbal e a incrustação da face de Lênin. O espectador é conduzido diretamente
à conexão entre o território moscovita e a Revolução Socialista, porém o sinal gráfico inibe
todo e qualquer posvel desdobramento mais elaborado. A efervescência cultural russa do
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icio do século XX, o caótico contexto sócio-econômico s-revolucionário ou as disputas
internas no Partido Vermelho - só para citar alguns casos que poderiam ser trazidos à tona -
são descartados. Do mesmo modo que, ao citar a possibilidade de interpretação dos sonhos
a partir de Freud, o autor-modelo não pretende que o espectador relembre os opositores da
psicanálise. Mesmo a citação da fórmula da relatividade segue a mesma lógica: a
mobilização limitada de conhecimentos (não precisamos sequer lembrar que forças estão
representadas em E=mc²), registringindo as possibilidades de leitura.
O resultado é a maior fluidez narrativa e sedimentação de um conjunto relativamente
coeso e simplicado de acontecimentos relevantes do culo, representões que voltarão à
baila durante o filme. Na sequência Nijinski, ao estabelecer uma rede limitada de conexões
propostas entre legendas e incrustações, a montagem baseia-se no princípio de que o amplo
exercício de memória ativa do espectador nem sempre pode ser benéfico ao
desenvolvimento da obra. Para fins de orientação de leitura, a repressão às digressões
parentéticas é tão importante quanto o apelo direto à Enciclopédia do leitor-modelo.
O texto escrito e as incrustações lentamente desaparecem através do efeito de
fade-out. Em seu lugar, surgem imagens exibidas em câmera lenta de um papel carregado
pelo vento numa rua vazia, acompanhado das legendas:
Câmeras Kodac registram
os instantâneos das
primeiras gerações que
conviveram em seu cotidiano com
uma produção em série de idéias,
matemática abstrata
maquinários complexos,
refinadas bombas
e muitos botõezinhos
Apesar do texto verbal reiterar a idéia de velocidade construída ao longo da
sequência, a súbita desaceleração na apresentação das imagens sobrepõe-se em termos de
impacto sobre o espectador. De tal forma que, apesar de ser posvel identificar o
83
movimento no interior do plano, a queda no ritmo aliada às palavras "câmeras Kodac"
promovem um efeito muito similar à exibição de uma fotografia. Através da mudança de
ritmos na sequência, a montagem promove a equiparação entre os novos instrumentos
audiovisuais popularizados no século XX (o fotográfico e o cinematográfico), reunindo-os
numa mesma categoria genérica, a que permite registrar o detalhe, o gratuito, o comum. Ou
seja, na era da mudança e da tecnologia, já é possível capturar e eternizar o que há de mais
simples e poético no cotidiano. Essa imagem do papel à merdo vento de certa forma
resume boa parte da proposta de Nós que aqui estamos por vós esperamos, em sua defesa
do homem e do instante comum.
A sequência termina com a apresentação de outra foto de Nijinski, agora de bruços,
acompanhado das legendas:
Nijinski
1890 -1950
O retorno ao artista, sua postura indicativa de término da apresentação cênica e o
efeito de fade out aplicado sobre a fotografia constroem um clima de encerramento
encadeado, como um ciclo que por fim fosse completo.
Nesse sentido, é importante destacar que o bloco "Nijinski" é apenas a segunda
sequência de Nós que aqui estamos por vós esperamos, tendo sido precedida por uma
abertura um pouco distanciada do padrão imagético e sonoro adotado ao longo do filme.
Portanto, até esse momento, ainda não estava sedimentado aos olhos do espectador o estilo
de estruturão da obra em grandes blocos temáticos. Daí a "volta" a Nijinski ser tão
importante, para auxiliar o público na compreensão do fim da sequência e a consequente
passagem para a seguinte. Assim o filme começa a evidenciar sua condição de obra
composta por set-pieces.
O articio de "retorno" ao personagem inicial da sequência é observado uma única
vez durante todo o filme. Logo após "Nijinski" e em todos os blocos posteriores, passa a
ser adotada uma estratégia mais enriquecedora de trânsito entre sequências: a exibição
contumaz de cenas filmadas em cemitérios.
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______________________________________
1.3 Transição entre Sequências
______________________________________
Como sinalização de passagem entre blocos, as imagens de lápides e sepulturas
diversas formam um padrão extremamente eficiente. A montagem acerta o alvo ao insistir
no poder da repetição e da monotonia como elementos expressivos de fixação e unificação
da obra, empregando-as como espécies de anáforas visuais. Através delas, economiza-se
tempo útil à narrativa pela exibição de imagens similares entre si (reduzindo os segundos de
apresentação dos planos na tela).
Há ainda a aproximação compulria da totalidade de personagens exibidos ao
longo do filme, por mais dessemelhantes que possam parecer a prinpio. A mortalidade
equipara a todos, remetendo a discussão sobre o século XX a um patamar não
exclusivamente historiográfico. O retorno obsessivo do filme ao tema morte é de
fundamental importância tanto para o eixo psicanalítico adotado em Nós que aqui estamos
por vós esperamos, como para o programa sentimental da obra, fortemente marcado pelo
reconhecimento implícito do espectador de sua própria condição de efemeridade. As
imagens do cemitério em grande parte funcionam no contexto do filme porque nos dizem
diretamente respeito, impedindo o distanciamento excessivo entre personagens e público,
promovendo continuamente laços de identificação. Feito alinhavo delicado e cuidadoso, elas
preparam o público para cada novo bloco ao mesmo tempo em que martelam a sentença
implacável: tudo e todos passam.
As lápides também são um trunfo para o autor-modelo pelo seu aspecto de
neutralidade. Não é possível atribuir-lhes datas precisas; sua presença é verificada ao longo
de todas as décadas do século XX e em diversas áreas do globo com poucas variações. Elas
driblam até mesmo as diferenças de idade, gênero e classe social, representando talvez a
mais importante solução de montagem de toda obra, pela versatilidade e grau de
abrangência.
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________________________________
1.4 Seqüência Ford T
_________________________________
Do fundo negro para nova música e imagem de um cemitério. Nenhuma lápide é
focada em particular, o plano engloba várias cruzes e sepulturas. O nome Alex surge em
letras miúdas, depois médias e, por último, em tamanho maior:
Alex Anderson
Vários carros antigos - todos iguais - deixam um mesmo prédio em seqüência.
Algum dia em Detroit, 1913
Ford T
Vê-se uma fábrica em pleno funcionamento, provavelmente o interior do prédio
exibido anteriormente. Operários trabalham de maneira compenetrada, aparentando não
notar a câmera. É posvel identificar o sistema de divisão de trabalho especializado, onde
cada funcionário fica responsável por uma única parte do processo. Uma correia facilita o
transporte de uma grande peça até o local onde o operário deve ajustá-la.
O tempo de produção de um carro
foi reduzido de 14 hs para 1h e 33 minutos
Um carro acaba de ser finalizado pelos trabalhadores. Num plano mais fechado, a
câmera foca apenas um homem, mostrado quase de costas para a câmera. Abaixado ao lado
do veículo, ele ajusta uma das rodas. A imagem é congelada.
Alex Anderson
1822-1919
Salário 22 dólares / semana
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12 hs por dia, incluso sábado
Domingo: piquenique
As um efeito de fusão, vemos dois homens num ambiente externo, talvez um
parque. Eles estão agachados junto a uma pequena fogueira e parecem cozinhar. O homem
de costas, usa uma boina muito semelhante a do último operário mostrado na fábrica,
permitindo ao espectador identificá-lo como Alex Anderson.
Nunca teve um Ford T
Morreu de gripe espanhola
Um efeito de fade-out mais longo sinaliza o fim de uma seqüência totalmente
estruturada a partir da informação geral para o detalhe, espécie de zoom composto por
muitos planos: fora de um prédio/ interior do edifício/ produção em massa/ produção em
larga escala de veículos/ sistema de produção/ trabalhadores fabris/ Alex Anderson/ dados
sobre Alex. A própria seleção de planos, dos gerais para os mais fechados segue o esquema
de aproximação.
Porém o mais importante nesse segmento do filme é o “clima” de normalidade que
se institui. A melodia serena, sem grandes variações, combina com a movimentação
eficiente, mas tranqüila dos trabalhadores e sua aparente indiferença em relação à câmera.
Alex Anderson encarna a essência mesma desse cotidiano regular: quase anônimo, pouco
importante, exibido de costas, ele tem seu nome repetido várias vezes na introdução da
seqüência, ou seja, como ele são muitos. A produção em larga escala não se aplica apenas a
produtos, mas também gera operários em série.
Tampouco o sistema de trabalho limita-se ao espaço da fábrica. Ele vira um estilo de
vida, aplicado inclusive nos momentos de lazer: o piquenique é repetido todo domingo e
Alex e seu companheiro reproduzem ali exatamente o mesmo tipo de comportamento visto
na brica. Durante o preparo do alimento, um complementa a tarefa do outro, agindo
rápida, compenetrada e silenciosamente, interagindo apenas do ponto de vista dos
procedimentos práticos, sem notar a câmera ou estabelecer diálogos entre eles. Ao reunir
planos similares (como o posicionamento de Alex na fábrica e no piquenique, por exemplo)
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a montagem consti uma relação de continuidade e perpetuação entre espaços sicos e
principalmente entre modos de comportamento que caracterizam o personagem.
Mesmo a causa mortis de Alex Anderson (a gripe espanhola), ao ser citada tão
casualmente quanto o piquenique, reveste-se dessa atmosfera de normalidade. Mas é aqui
que Nós que aqui estamos por vós esperamos lança um sinal fugaz ao espectador. O
Influenza, vírus responsável pela disseminação da moléstia, foi um dos grandes assassinos
do século XX, ceifando miles de timas no mundo todo. Citar a gripe espanhola assim,
tão brevemente, uma única vez durante a obra, alerta o espectador de que a aparência
casual das informações apresentadas dissimula sua real importância histórica e serve de
alerta: cuidado com os dados que sugerem gratuidade. Para reconstituir um século tão
complexo, Nós que aqui estamos por vós esperamos muitas vezes tem de excluir assuntos
importantes, ou apenas mencioná-los de passagem. Logo, o público deve estar atento e não
descartar qualquer informação, ainda que ela surja sob um aspecto de banalidade.
A seqüência de Alex Anderson também introduz mais enfaticamente a crítica da obra
quanto à má distribuição das riquezas produzidas no século XX, suas contradições e
absurdos, temas apenas sugeridos nas seqüências de abertura (tiro na cabeça de um soldado
amarrado) e de Nijinski (homens utilizando máscaras de gás), mas que assumem aqui o
núcleo principal do bloco.
_______________________________
1.4 Seqüência O Alfaiate
________________________________
As o fade-out sobre a imagem de Alex Anderson, vemos outra vez imagens de um
cemitério, porém agora com close específico na foto encontrada em uma das sepulturas.
-se a legenda:
O Alfaiate
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É perceptível a modificação na música que acompanha a seqüência. A tranqüilidade
anterior é substitda por uma condução bem mais tensa.
A Torre Eiffel é mostrada a partir de um tilt, isto é, movimento de câmera no
sentido vertical, neste caso de cima para baixo, salientando a altura do monumento. Logo
em seguida, vemos uma imagem possivelmente captada a partir de um elevador em
ascensão, instalado no interior da estrutura. A inserção desse plano é absolutamente
essencial para o restante da seqüência, instituindo a torre não como símbolo nacional
francês, mas como elemento espacial básico que estabelece tanto o sentido de deslocamento
quanto as contraposições solo/altura, segurança/periculosidade, atores/testemunhas. Nas
legendas:
Meio-dia. Paris, 1918
Através de uma câmera posicionada a curta distância do personagem, vemos um
homem com uma grande estrutura presa às costas, coberta por um tecido negro, olhando
em direção ao chão. Ele realiza alguns preparativos de última hora.
M. Reisfeldt - 1867-1911
Profissão: alfaiate
Objetivo imediato:
Aparece a incrustação de um pássaro voando.
O alfaiate claramente hesita em pular durante alguns segundos. Ele ameaça
brevemente um salto, mas recua. Testemunhas olham para cima (imagens em
preto-e-branco) e isso elucida o adjetivo “imediatoda legenda. Se público presente na
torre, é provel que tenha havido divulgação prévia da experiência. Além do vôo em si,
outra possível meta secundária do alfaiate talvez seja a notoriedade.
Um elemento fundamental nesta seqüência é justamente a atitude vacilante de
Reisfeldt. A opção por planos mais longos, sem interferência direta do corte, caracteriza
uma montagem atenta à estrutura emocional da encenação, seja ela ficcional ou verídica. A
incrustação da imagem do público (em lugar de sua exibição consecutiva) tem, nesse caso, a
função de não interromper o fluxo contínuo das ações do alfaiate, seus aparentes recuos e
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receios. Ao optar pela manutenção do plano de Reisfeldt com o mínimo de intervenções via
corte, a montagem assinala a hesitação não como um lapso ou tempo morto à narrativa,
mas como instrumento de comunicação corporal tão ou mais importante à seqüência que o
discurso verbal. Temos aqui um exemplo do tipo de dilema apresentado por Ken Dancyger
em sua pesquisa sobre montagem: qual informação visual é dramaticamente interessante e
qual informação visual é dramaticamente necessária? (DANCYGER, 2003, p. 377). A
música pára e o alfaiate salta. A hesitação não levou a uma mudança real nos planos do
visionário ingênuo. No entanto, não seria justamente ela o recurso que nos aproxima do
personagem? Aquilo que lhe confere certa simpatia do espectador ao perceber o medo do
pulo? A montagem permite que o espectador reconheça a si mesmo como um daqueles
rostos estarrecidos, olhando para o alto, perguntando-se se o alfaiate terá mesmo coragem
para o salto. Desses detalhes, que consomem poucos segundos do filme, constrói-se o
programa emocional, baseado na pena pelas perdas vãs, pelos fiascos inúteis.
Inúteis? Bem, nem tanto, como o próprio filme informa em seguida.
Uma câmera posicionada no solo filma a queda. No entanto, antes do corpo tocar o
solo, entra uma outra imagem - a de uma explosão em pleno céu azul. A legenda informa:
Challenger, 1986
Vemos as expressões assustadas do mesmo público que aparentava esperar pelo vôo
do alfaiate, que agora em cores. Na realidade, eram as testemunhas atônitas que
acompanharam a tragédia da exploo do ônibus espacial Challenger, minutos antes da
aterrissagem. Fragmentos da nave riscam o céu e vê-se uma incrustação com o rosto de
Freud e as legendas:
Nunca dominaremos completamente
a natureza e o nosso organismo
corporal, ele mesmo parte dessa
natureza, permanecerá sempre
como uma estrutura passageira,
90
com limitada capacidade de
realização e adaptação.”
Dr. Freud
O susto que assalta o espectador ante a brusca transmutação de um corpo em uma
nave em chamas é grandemente favorecido pela operação de corte de imagens em
movimento.
Desde o Cinema mudo, diretores e montadores vêem aperfeiçoando a ilusão de ação
contínua através de “deixas visuais”, planos que relacionam a ação de um plano com a
exibida no seguinte. Por exemplo, imaginemos uma tomada que termine na parede branca
de uma sala; na tomada seguinte, a mera focaliza um lençol branco dependurado no varal
e, em seguida, vai enquadrando outros elementos no exterior da casa. Nesse caso, a
mudança na ambientação e o corte foram amenizados pela solução de continuidade
cromática.
Entretanto, a interrupção inesperada na trajetória de queda de um objeto (corte em
movimento) e a apresentação de outro - até então inexistente no filme - não se enquadram
em quaisquer exemplos possíveis de deixas visuais de suavização. O filme joga com o hábito
estabelecido (mesmo inconsciente) pela linguagem cinematográfica no sentido de promover
o choque e com isso a identificação do espectador com as testemunhas também atônitas
com a tragédia da Challenger.
Sabíamos que o alfaiate falharia em seu intento de voar pela mera força do pano, em
função da precariedade do equipamento de que ele dispunha. O infeliz destino dos
ocupantes do ônibus espacial também é de amplo conhecimento, dada a grande cobertura
promovida pelos meios de comunicação ao evento. A junção de ambos numa mesma
seqüência é que agrega um novo sentido às duas ocorrências. Trata-se de minar a segurança
do conhecimento do espectador, colocando em xeque a crença na linearidade do progresso
tecnológico. O alfaiate e os astronautas passaram a compartilhar a glória e o fracasso de
gerações consecutivas que ousaram erguer seus pés da Terra. Os limites de pessoa, tempo e
espaço entre o alfaiate, os astronautas e o público são fragilizados. Todos tornamo-nos
personagens na mesma aventura humana de voar.
Mas tudo isso só é possível graças a um estilo de montagem que investe no
91
potencial narrativo do corte e na aptidão do espectador em compreender configurações
temporais-espaciais incomuns. Sobretudo, uma montagem que arrica-se a r a si mesma
em evidência. O corte “sem-emenda”, aquele que se vale das deixas visuais, não chama
atenção para si mesmo e envolve a trama numa atmosfera de naturalidade. outros tipos
de corte, como o que interrompe o movimento de um objeto, apresenta a vantagem de
promover o choque, mas também deixa clara a condição da obra como construto artificial,
ou seja, a intervenção de um criador da trama. Para um filme como Nós que aqui estamos
por vós esperamos, que esconde até mesmo as marcas de autoria emrica (conforme
discutimos anteriormente) e brinca como senso comum de as “imagens narram a hisria por
si mesmas”, não deixa de ser um lance arriscado. Vislumbra-se um conjunto de estratégias
por detrás da cortina, a que convencionamos aqui chamar de autor-modelo.
Como contornar o posvel embaraço?
Em Nós que aqui estamos por vos esperamos, a solução encontrada foi pegar de
empréstimo a credibilidade de uma figura capaz de embasar - cientificamente - a relação
construída entre o alfaiate e a Challenger: o Dr. Freud. Sentenciando que nunca
dominaremos completamente a natureza, mesmo a humana, as palavras do psicanalista
resolvem dois problemas de uma vez. Ele avaliza a reunião dos dois eventos numa única
seqüência e ainda atualiza a questão, deixando bem claro que ainda vamos enfrentar riscos
imensos ao perseguirmos o mesmo sonho de conquista, no presente e no futuro, não
importando o grau de tecnologia empregada.
O segmento "O Alfaiate" notabiliza-se também pelo emprego da música, inclusive no
que diz respeito a sua supressão. A melodia tensa promove uma sensação de ansiedade,
exatamente quando se inicia a movimentação preparatória de Reisfeldt para o salto; a
música soa como um relógio, realçando os segundos de hesitação do homem. Vemos a
incrustação do pássaro e, após seu desaparecimento, a música decresce até deixar de ser
notada por completo. De maneira bem sutil, quase como se fosse um som natural, captado
no ambiente da torre, ouve-se o arrulhar de uma ave. Enquanto o alfaiate parece refletir
sobre a execução do ato, o efeito sonoplástico prolonga o sentido do objetivo imediato”: o
vôo simbolizado pelo pássaro.
92
O ruído cessa por completo. A incrustação exibindo a expressão ansiosa do público
fica ainda mais evidente pela ausência de acompanhamento melódico. O alfaiate atira-se da
torre. Seu corpo é exibido através de uma câmera posicionada à certa distância da
construção e cai vertiginosamente, em silêncio. Eis que surge a explosão da Challenger e o
agente potencializador do choque entre os planos – a música.
Vemos assim uma atividade de montagem que, do ponto de vista sonoro, está
voltada para a reunião de elementos expressivos que atuam em diversas frentes: em
sincronia para reafirmação de sentido, como extensão prolongada de recursos (arrulhar do
pássaro) e com fins de maximização de efeitos visuais.
__________________________
1.6 Seqüência Família Jones
__________________________
A seqüência inicia-se com a imagem de três fotografias afixadas numa mesma
sepultura, mostrando os rostos de homens adultos e relativamente jovens. A música é bem
mais lenta e comovente que a utilizada no segmento do Alfaiate. Surge a legenda:
Um século de família Jones
Imediatamente depois, vemos um cartaz de convocão utilizado nos Estados
Unidos durante a Primeira Guerra Mundial, exibindo a tradicional figura do “Tio Sam”
olhando e apontando diretamente para o espectador. Em Nós que aqui estamos por vós
esperamos, a figura não é exibida por inteiro, mas em close, detalhando o rosto e uma das
mãos da pintura, exatamente as porções que estão direcionadas ao leitor do cartaz.
A primeira conclusão a ser esboçada é óbvia: o filme confia no conhecimento prévio
do espectador em relação ao Tio Same a vinculação do personagem à propaganda oficial
93
americana. Porém, mais do que isso, Nós que aqui estamos por vós esperamos resume em
um único instante boa parte do contexto que cerca a família Jones: a nacionalidade de seus
membros, a tradição do país em conflitos internacionais armados e a forte relão
patriotismo/defesa bélica dos ideais da pátria e - sobretudo - a atmosfera de coerção
institucional para o ingresso de cidadãos nas forças armadas.
Mesmo que o espectador não disponha de qualquer dessas informações prévias
sobre o Tio Sam”, ele pode de alguma forma apreender o tom incisivo e autoritário que a
imagem transporta de seu meio de comunicação original (o cartaz) para seu segundo
veículo de expressão (o filme). Ao exibir o “Tio Sam criado por Flagg, Nós que aqui
estamos por vós esperamos apropria-se da relação já instituída pelo cartaz entre
emissor-receptor, um tipo de interação inscrito no produto de 1916 e que o filme atualiza: a
força imperativa estatal de um lado e a fragilidade do homem sendo “conclamado” de outro.
Apresentando parte do cartaz, Nós que aqui estamos por vós esperamos propõe ao
espectador vislumbrar e tentar compreender o tipo de influência a que a família Jones estava
submetida. Como fazê-lo? Explorando ao máximo o que a figura tinha de mais radical: o
apelo direto do olhar e da mão voltados ao blico, a relação eu-opressor você-oprimido
que o cartaz constrói.
O close, nesse caso, não tem por objetivo conduzir o olhar do espectador a algo ou
alguém, ao detalhe que pode nos tornar oniscientes na trama, sem que ninguém nos
perceba, mas o contrário. Ele cria a sensação de estarmos sendo vistos, de que alguém nos
apanha em flagrante e lança uma ordem brusca e spida. Exatamente como devem ter se
sentido os jovens americanos que viram o material pela primeira vez. O filme estabelece,
assim, um tipo de reconhecimento e empatia entre personagem e espectador muito
importante para o restante da seqüência, para que os destinos apresentados de alguma
forma nos comovam.
É claro que essa potencialidade (e realização) de foa convocatória já se encontrava
originalmente no cartaz, do mesmo modo que a hesitação do Alfaiate já estava na filmagem
do início do século antes de ser incluso em Nós que aqui estamos por vós esperamos. Ao
explorá-los, porém, o filme pode ou não manter intactos seus propósitos originais através
da montagem (o cavalo caído exibido na seqüência Nijinski, por exemplo, tinha um sentido
completamente diferente, quase anetico, na obra de onde foi extrdo, Berlim, Sinfonia
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de uma Metrópole). O Tio Sampoderia ter virado motivo de chacota, se inserido entre os
planos de uma vaca e um aparelho sanitário. Em qualquer dos casos, o filme transforma em
suas as estratégias de pessoalidade ou impessoalidade inscritas nas imagens.
Logo após o apelo direto ao espectador representado pelo Tio Sam, surgem
imagens do corpo de um soldado sendo colocado no interior de um grande saco. Dois
homens realizam a tarefa, mas é possível observar as mãos e braços dos personagens, a
câmera focaliza a face do morto. Seus olhos e boca estão abertos, o rosto sujo de lvora
sugere uma morte em combate. É interessante notar que, nesse trecho onde o rosto do
soldado abatido fica em evidência, o ritmo de exibição é ligeiramente desacelerado, depois
segue um ritmo normal. Um recurso bastante fácil de ser aplicado nas edições eletnica e
digital, porém bem mais difícil através da montagem cinematográfica sobre película, que
exigiria um aumento na velocidade de exposição dos fotogramas durante a filmagem e não
apenas numa montagem posterior, como aconteceu em Nós que aqui estamos por vós
esperamos. O resultado é a melhor adaptação do tempo de exibição da imagem ao tempo de
leitura das legendas:
Primeira Guerra
Tom Jones, o Bisavô
1896-1918
Em uma guerra não se matam
milhares de pessoas
mata-se alguém que adora espaguete,
outro que é gay, outro que
tem uma namorada.
Uma acumulação de pequenas memórias...”
Cristian Boltanski
O rosto do soldado é totalmente coberto pelo tecido.
Fade-out.
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Tamm em câmera lenta, porém agora com uma desaceleração bem mais evidente,
vê-se um grupo de jovens em trajes de banho, divertindo-se na água. Em segundo plano,
está um navio de guerra utilizado para transporte de tropas. As legendas indicam:
Em algum canto da Europa, 1944
Morrer pela pátria, pela idéia.
Não, isso é fugir da verdade.
Ninguém pode imaginar sua própria morte.
Matar é o importante.
Esta é a fronteira a ser cruzada.
Sim, esse é um ato concreto de vontade.”
Paolo Gracie, soldado italiano
Durante uma brincadeira com os companheiros, um dos rapazes é jogado para cima
através de uma cama elástica improvisada. Quando o homem atinge o máximo de altura no
lançamento e a câmera brevemente isola-o dos demais, aparecem as legendas.
Paul Jones, o Avô
1916-1945
Fade-out.
O próximo bloco da seqüência inicia-se com imagens coloridas, porém num tom
amarelado, típico das exibições televisivas em cores nas décadas de 60 e 70. A sica é
interrompida. Vê-se uma perna humana, mas nenhum sinal do restante do corpo é
visualizado. Surge um barulho estranho, como de um aparelho de TV fora de sintonia,
seguido de um som menico semelhante ao da movimentação de um tanque de guerra. O
efeito sonoro sugere a relação de causalidade entre a passagem do veículo militar e a
destruição do corpo.
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Robert Jones, o Pai
1942-1971
A música retorna. Um soldado asiático sorri abertamente e exibe a perna para a
câmera.
Vietnã
A perna é arremessada em direção à câmera e cai sobre um estrado de madeira,
recebendo imediata e exclusiva atenção do cinegrafista.
Fade-out.
Enormes labaredas em cores vivas, típicas da combustão de material altamente
explosivo, como o petróleo, preenchem toda a tela.
Guerra do Golfo, 1991
Agora em preto-e-branco, em uma filmagem precária, vê-se uma mira apontada para
um prédio à distância. Trata-se de uma visão área, provavelmente gravada por um avião
militar.
Robert Jones Junior
1966 -
O prédio sob a mira explode.
Fade-out.
Termina a seqüência. A saga da família Jones se confunde com a história americana
e reconstitui a trajetória de violência do país ao longo do século. Nesse sentido, é
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interessante notar como a montagem organiza os segmentos em pares de contraposição.
Mesmo não sendo com cuidados ritualísticos, o depósito do corpo do soldado num tecido
mortuário durante a Primeira Guerra Mundial opõe-se diretamente ao desrespeito absoluto
do combatente vietnamita ao manusear a perna amputada do inimigo. Assim como a
camaradagem dos soldados brincando à beira-mar, em frente a um navio de transporte de
tropas, funciona como antípoda da Guerra do Golfo, também chamada de “guerra de
deo-game”, por eliminar ou reduzir os confrontos corpo-a-corpo, transformando
instalações militares e civis em meros alvos para a descarga de bombas, como acontece nos
jogos eletnicos. As imagens de vítimas e escombros ficam em segundo plano em relação
às tomadas aéreas filmadas sob o ponto de vista do atacante, enquanto as perdas humanas,
bem como a possibilidade de interação entre os soldados (aliados e inimigos) são relegadas
a segundo plano. Por isso é tão importante a supressão da data de morte de Robert Jones Jr
na legenda, o único combatente identificado durante todo o filme como sobrevivente à
virada do século. Essa informação é um indicativo de que, se houve alguma evolução no
que diz respeito aos enfrentamentos militares, ela não ocorreu em direção à busca pelo
entendimento diplomático, mas sim ao avanço tecnológico que permite aos EUA
eliminarem seus oponentes com redução de perda entre suas próprias tropas. O assassinato
sistemático e em larga escala continua, porém unilateralmente.
A Guerra do Golfo também suscitou entre seus críticos a discussão sobre a situação
confortável assumida pelos EUA, ao suprimirem imagens chocantes aos olhos da opinião
pública. Um alvo atingido sob a mira perfeita do atirador é sempre uma matéria-prima muito
menos inmoda para nutrir os discursos governamentais do que a visão de membros
destroçados dos soldados em terra. Talvez esse efeito de alheamento do público em relação
à tragédia em território iraquiano fosse reproduzido pelo filme caso as cenas do combate
fossem apresentadas isoladamente em Nós que aqui estamos por vós esperamos. A exibição
das imagens da Guerra do Golfo logo após as filmagens do Vietnã, contudo, age
exatamente na contramão dessa lógica. A montagem não permite que sejam esquecidas as
vítimas do bombardeio aéreo, pela rede seqüencial estabelecida desde o início do bloco.
Esse é o mote. Ele não desaparece pelo fato da mira do aeroplano impedir a visualização
dos feridos. Ao seguir uma exposição linear da tradição bélica americana, o filme
necessariamente conduz às mortes subtendidas na Guerra do Golfo.
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Vemos aqui um exemplo onde a montagem reúne os elementos mínimos para que o
próprio espectador esteja apto a complementar lacunas, acompanhando o desenvolvimento
da trama. A partir dos eventos mostrados ao longo da seqüência, por analogia, o blico
pode e deve presumir o acúmulo de mortos e feridos no Golfo Pérsico, bem como partir
para o questionamento seguinte: quais os possíveis motivos para supressão das timas nas
imagens? Assim, a montagem transforma ausência em presença, permitindo que o
espectador participe ativamente do jogo investigativo acionado em torno da elucidação dos
acontecimentos-chave do século XX.
Um dos recursos mais importantes para que a montagem atinja seus fins nesse caso,
foi a utilização de aparatos de edição digital que alteram a velocidade de exibição das
imagens, simulando a filmagem em câmera lenta. Essa interferência foi fundamental para a
adequação do ritmo dos planos à música, atribuindo um tom melanlico mesmo nas
tomadas de brincadeiras entre os soldados e criando uma atmosfera geral de perda e
fatalidade.
_________________________
1.7 Seqüência Marta-Pablito
_________________________
A seqüência principia com a imagem de várias cruzes comuns, distribuídas em
primeiro e segundo plano. Logo é possível distinguir nomes exibidos numa velocidade
superior às demais legendas do filme:
Marta, George, Mary, João, Hermann, Antônio, Sabrina, Lev, Pablito
Como os nomes são típicos de diversos países e aparecem num curto espaço de
tempo na tela, é plausível supor que o filme esteja mais interessado em transmitir uma idéia
geral de multiplicidade (de personagens e nacionalidades) do que em permitir ao espectador
registrar cada um dos nomes citados. É um tipo de preparação para a miscelânea
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subseqüente.
Surge uma fotografia na tela. Inicialmente a câmera focaliza uma única pessoa,
porém, logo em seguida, um efeito de edição digital simula o movimento de zoom-out,
amplificando o raio de visão e permitindo observar outros personagens. Todos são homens.
Eles sustentam enormes cartazes, suspensos pelos ombros e encobrindo suas roupas.
Legendas são aplicadas sobre a imagem durante o zoom-out:
1903, trabalhadores do Metrô
8 hs de trabalho
8 hs de lazer
8 hs de descanso
Muitos bigodes
O zoom-out é interrompido e, de fato, é possível notar que todos os homens da
fotografia têm frondosos bigodes.
Fade-out.
O mais interessante desse segmento é o casamento promovido pela montagem entre
movimento de câmera e legendas. Um efeito como o zoom-out pode perfeitamente ser
utilizado nos casos de carência de planos, de modo a evitar a monotonia de uma imagem
estagnada exibida por um tempo superior ao necessário para a sua apreensão, preservando
o ritmo do filme. Contudo, em Nós que aqui estamos por vós esperamos, o recurso
apresenta uma vantagem a mais. Ao partir da ampliação do foco centrado em um único
homem até a imagem completa do conjunto de companheiros que o apóiam no protesto, a
montagem constrói um sentido de força em expansão, de coletividade. Simultaneamente,
são exibidas as legendas, significativamente maiores em relação às que haviam sido
apresentadas até este momento do filme. A impressão de fortalecimento constante da
manifestação, transmitida através do zoom-out, é reforçada pela utilização do texto verbal
escrito em seu potencial imagético. As fontes em destaque remetem ao tom enérgico e
reivindicativo das palavras de ordem registradas nos cartazes ou entoadas nos piquetes. A
100
própria utilização seguida de “8 hs” no icio de cada frase lembra a estratégia de repetição
constante de boa parte dos lemas aplicados em movimentos civis organizados.
Juntos, fotografia, zoom-out, conteúdo do texto verbal e tamanho das fontes
trabalham em conjunto para criar a sensação de que partem das imagens os “gritos” de
protesto. Temos a impressão de “ouvirvozes que efetivamente os personagens não nos
concedem, mas que a obra faz chegar ao público, ao construir uma montagem que
fortemente sugere efeitos acústicos através dos recursos visuais.
Por fim, a legenda “muitos bigodes” possibilita uma tirada de humor inteligente e útil
ao contexto. Graças à observação pitoresca, somos convidados a olhar mais detidamente
para os integrantes da foto, passeando o olhar por sobre todo o plano. A montagem
interrompe o zoom-out e nos concede tempo para a investigação. Ao confirmar o fato, o
espectador fortalece ainda mais o sentido de união entre os manifestantes. Uma simples
opção estética masculina individual (o bigode) é elevada à condição de mbolo de uma
classe e de uma postura política.
As o progressivo desaparecimento da fotografia, outra imagem ocupa a tela, a de
mãos femininas empacotando velozmente maços de cigarro. Logo depois, vê-se telefonistas
com fones de ouvido, ajustando um sem-número de fios às conexões de chamadas, também
numa velocidade impressionante.
Leningrado, 1926
Novos planos de empacotamento de cigarros e de jovens telefonistas são
intercalados. As legendas explicam:
Martha Vertvoska, 1892 - 1945
Empacotou milhões de cigarros...
depois virou telefonista
101
Vemos uma tomada em que o quadro de chamadas manuseado pelas telefonistas
está quase totalmente ocupado por fios que se entrecruzam, numa confusão que
provavelmente apenas elas podem compreender.
A montagem, nesse caso, abre espaço para diversas leituras. A associação de
imagens pode propor, por exemplo, uma espécie de alheamento do trabalhador do processo
produtivo, através da aproximação da atuação humana ao desempenho mecânico de uma
máquina, chegando ao ponto de tornar similares duas atividades bem diversas: a
disseminação de umcio e a facilitação da comunicação no século XX. Ou será que o filme
brinca e está a afirmar que o telefone também tornou-se umcio? Talvez ainda a mensagem
seja outra: a de que telefonar ficou tão fácil quanto acender um cigarro.
Mas seja qual for a opção, o principal é que o espectador perceba que a produção
em série atingiu as mais diversas áreas de atividade e ocasionou também a aceleração no
ritmo de trabalho humano. A explosão na produção e consumo no século XX cobrou seu
preço.
Fade-out.
A próxima imagem é introduzida não somente pelo fade-in mas também pelo efeito
que transforma um plano completamente fora de foco em uma figura normal e reconhecível.
Esse recurso ajuda a evidenciar a imagem apresentada como pintura, haja vista que a
verossimilhança da obra poderia induzir o espectador a considerá-la uma fotografia. A
reconstituição do foco também se assemelha a um passe de mágica, um efeito lúdico que
ajuda a criar um clima bem apropriado ao tema tratado a seguir: o cinema.
A pintura retrata uma mulher recostada na parede interna de uma sala de projeção e
voltada para a platéia, apenas uma reduzida porção da tela de cinema é distingvel.
Anos 30
Mary Brinkely 1912 - 1973
Profissão: Lanterninha
Ator predileto: Gary Cooper
102
A imagem permanece sendo exibida por um tempo relativamente longo, enquanto as
legendas se sucedem. No entanto, a riqueza de detalhes da pintura e a profundidade de
campo constrda a partir das linhas do corredor do cinema prendem a atenção do
espectador, sem aborrecê-lo demasiadamente pela apresentação de uma imagem estagnada.
Mas eis então que uma pausa deliberadamente mais longa na exibição do texto
verbal até o aparecimento da próxima legenda. Esse intervalo temporal cria a expectativa de
que uma informação importante vá ser apresentada, algo que talvez justifique a inclusão da
personagem no filme. Mas surge apenas a frase:
Hoje, cansada
Fade-out.
O que ocorre aqui nada mais é do que a reafirmação da proposta do filme de
representação da pessoa comum, do homem que não deixa grandes marcas na História, mas
que faz parte dela. Se Nós que aqui estamos por vós esperamos pretende ser uma
experiência de alguma sorte vinculada à historiografia, porque não registrar o instante banal,
que não mudou o curso dos eventos, mas abriu espaço para outras reflexões?
Uma delas seria exatamente a contraposição deste segmento com o seu antecessor.
A mesma tecnologia que impôs um ritmo brutal na produção de cigarros também promoveu
o surgimento de uma nova arte, de empregos inesperados como o da lanterninha que pode
assistir tranquilamente o desempenho de seu ator favorito, a máquina também abriu espaço
para o sonho.
A frustração da expectativa do público quanto à relevância da última legenda, faz
com que a proposta do filme de registro do cotidiano seja recolocada em posição de
destaque e a pausa entre as informações imediatamente é transformada em manifestação da
lentidão pica de uma pessoa cansada, auxiliando na contextualização da personagem.
A seguir, é exibido um plano filmado do alto de um prédio. É posvel ver dois
homens trabalhando na conclusão do edifício e o trânsito intenso na rua logo abaixo. A
angulão deixa em evincia a enorme distância entre os operários e o solo.
103
Nova Iorque, 1938
Vemos outros planos captados do alto de arranha-céus. Num deles, um operário
está pendurado por cordas, trabalhando na construção. É possível ver a estrutura de ferro
ainda inacabada e a cidade ao fundo. A altura parece gigantesca. Nesse ponto, é introduzido
o efeito de simulação de filmagem em câmera lenta, o que permite a total exibição das
legendas somente sobre uma curta tomada e propicia ao espectador ter toda a dimensão do
perigo envolvido no trabalho. O operário olha para baixo.
George Gotman
1906 - 1962
Construiu diversos edifícios
em NY
O mesmo operário (ou alguém muito parecido) sobe até a cúpula do prédio, uma
estrutura reduzida e de acesso extremamente dicil e arriscado. Ligeiramente agachado, ele
se segura com apenas uma das mãos na cúpula e com a outra acena com o chapéu em
dirão à câmera.
Não tinha problemas
de vertigem
A imagem é congelada durante o aceno e um efeito de fusão entre o plano do
operário e o seguinte, onde a câmera vira de cabeça para baixo, dando a impressão de que a
cidade muda de lugar, numa simulação de vertigem. Um recurso simples, mas que exibido
após vários planos que reaam a periculosidade da construção civil, fornece a real
dimensão das aptidões excepcionais exigidas desses trabalhadores anônimos. Um tipo de
valorização da mão-de-obra que faz eco às imagens anteriormente exibidas das telefonistas,
em sua difilima tarefa em meio a dezenas de fios.
Fade-out.
104
O segmento seguinte mostra uma seqüência de estruturas metálicas, como
porta-retratos enormes, dispostas numa fila indiana ligeiramente em posão diagonal, de
forma que, vendo a primeira estrutura, visualiza-se também uma pequena porção da
segunda e assim sucessivamente. Cada uma delas é preenchida com a foto de um
trabalhador e é posvel notar que todas estão montadas numa área aberta. Inicialmente, a
câmera focaliza apenas o primeiro rosto, o de um homem aparentemente satisfeito com a
honraria. Em seguida, inicia-se um zoom-out e a fileira de “porta-retratos” passa a
preencher toda a tela.
Moscou, 1952
Lev Pankratov, 1905 - 1973
Torna-se visível uma pintura de Lênin, posicionada atrás e acima das fotos. O líder
soviético ergue um dos braços, como se estivesse conclamando os demais a uma marcha.
Eleito operário-padrão
por cinco anos consecutivos.
Apaixonou-se por uma turista italiana,
discordou do partido e morreu na Sibéria.
É importante ressaltar a adequação da escolha da imagem ao texto verbal. Durante o
breve relato do conflito entre o operário e o partido, é exibido um plano em que a direção
apontada por Lênin não coincide com o posicionamento dos trabalhadores homenageados.
É construída, assim, a idéia de que o confronto não é meramente pessoal entre Lev
Pankratov e alguns dirigentes soviéticos, mas do operariado como um todo em relação ao
sistema institdo.
Tamm é notável a vinculação refoada pelo filme entre uma simples palavra -
Sibéria - e as condições de prisão, degredo, dor e perecimento cruéis. Em momento algum
as legendas afirmam explicitamente que o operário foi condenado à morte pelo Partido
Comunista, a simples utilização do nome de uma região é suficiente para informar ao
105
espectador sobre o destino infeliz do homem que se tornou incômodo ao sistema.
Fade-out.
Da Rússia para a América Latina. Surge na tela a foto de um homem idoso,
abaixado junto a uma sepultura.
Chile, 1957
O Coveiro
Aos domingos, jogava domi
Pablito Mendonza
1895 - 1967
Salvo por apenas uma exceção (um pouco mais adiante no filme), o há referências
ao regime militar no Chile em Nós que aqui estamos por vós esperamos. Nenhuma palavra
quanto o número de vítimas de uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, o que
torna extremamente significativo o fato de o único personagem chileno apresentado (cujo
tempo de vida coincide com alguns anos do governo Pinochet) ser justamente um coveiro.
Através de uma breve citãom à tona os mortos políticos do período.
Como ocorreu com relação à gripe espanhola, vemos novamente Nós que aqui
estamos por vós esperamos recorrendo à aparente normalidade cotidiana dos personagens
simplórios para trazer à baila dados importantes sobre o século XX. O apelo ao paralelismo
temático promove o surgimento de formas de abordagem indiretas, pouco óbvias, mas que
lentamente constroem um painel onde anônimos, tendências comportamentais em larga
escala e contextualizações sócio-políticas formam um conjunto coeso.
Fade-out.
A seqüência tem prosseguimento com imagens de soldados suspendendo blocos de
sustentão de uma obra.
Berlim, 1961
106
Duas pessoas instalam cercas de arame farpado.
Hermann e Rainer construíram centenas
de metros do muro de Berlim
Surgem vários planos de cercas simples e elétricas, paredes imponentes, muros
fortemente protegidos e grandes blocos de pedra. Soldados mantêm vigilância. Claramente
trata-se de construções distintas. Close no rosto de um soldado.
Quando a construção acabou...
O militar cuja face foi detalhada escala uma grade que parece ser de jardim. Do
outro lado, pessoas ajudam-no a alcançar o chão. Novamente vemos tomadas de muros e a
proteção armada feita por homens uniformizados.
No canto direito inferior da tela surge uma pequena incrustação. Nela há uma
imagem bem mais recente do que as que foram utilizadas até então, colorida e exibindo
pessoas com trajes mais atuais. É possível identificar a cena como uma filmagem realizada
durante as manifestações que marcaram a queda do Muro de Berlim. Na incrustação, um
homem emprega uma marreta na tentativa de derrubar uma porção do muro e o movimento
é acompanhado pelo som de batidas.
Numa análise especial encomendada pelo periódico Folha de São Paulo sobre Nós
que aqui estamos por vós esperamos, o crítico de cinema Jean Claude Bernadet menciona
exatamente este segmento, afirmando que a utilização de imagens diversas, não coincidentes
com a construção “realrepresentada é de suma importância para afastar do espectador a
idéia restrita do muro como uma barreira meramente física, destitdo de valor simbólico.
“Trata-se indiscutivelmente do muro de Berlim, mas como que
desrealizado, a montagem nos remete a um fato (muro) e ao mesmo
tempo distancia-se dele para possibilitar que nos encaminhemos para
uma reflexão mais ampla, de teor político. Os regimes comunistas, a
opressão”.
(BERNADET, 1999)
107
Mas é importante ressaltar que, nesse ponto, o filme não apresenta uma inovação
propriamente dita. O cineasta russo Eisenstein havia elaborado ensaios e levado às telas
experiências similares, exemplos do que ele chamava de Cinema Intelectual, isto é, a
possibilidade de criar uma representação visual ampla de um conceito complexo,
dispensando ao máximo o recurso da palavra e creditando à montagem os méritos
exclusivos pela condução da trama (EISENSTEIN, 1990, p. 78). Nas palavras do
pesquisador Arlindo Machado, no Cinema Intelectual “a evolução do acontecimento é
distendida a partir de um critério não naturalista, de modo que o evento se deixa desintegrar
num espaço-tempo descontínuo que, para Eisenstein, é intelectual, pois coloca a nu a
ossatura significante dos fenômenos” (MACHADO, 1982, p. 58).
Diversas seqüências criadas por Eisenstein representam situações sócio-políticas de
maneira bem similar à que vemos no caso do Muro de Berlim em Nós que aqui estamos por
vós esperamos. No filme Outubro, por exemplo, há um segmento que se tornou célebre por
sua montagem extremamente eficaz no que tange a um assunto espinhoso, o deísmo. Para
deslegitimar os argumentos da Igreja Ortodoxa Russa em seu apoio ao czarismo, todos
baseados na “vontade de Deus”, Outubro exibe uma série de estátuas de divindades
diversas, desde um elaborado Cristo até totens primitivos, desconstruindo a crença numa
representação unânime da divindade e, consequentemente, questionando o poderio da Igreja
Ortodoxa. Deus transforma-se em deuses”. A montagem abala a confiança no
conhecimento estabelecido, ao mostrar quantas faces pode ter um mesmo princípio.
Um mecanismo bastante similar é encontrado em Nós que aqui estamos por vós
esperamos no caso do Muro de Berlim. Porém um pequeno detalhe opera uma diferença
importante - a inclusão da frase quando a construção acabou...”. A sequência apresenta
vários planos ligados à fase de preparação do muro, até mais do que da barreira conclda.
Eis que, quando finalmente ela parece ser uma obra acabada, a legenda permite uma
conexão entre os planos de construção, as imagens em que o soldado salta a cerca e a
incrustação exibindo os golpes da marreta contra o muro. Ou seja, a construção finaliza-se
não no depósito do último tijolo ou no momento em que rede proteção elétrica é instalada,
mas quando o muro “cai”. Ao estabelecer essa idéia, Nós que aqui estamos por vós
108
esperamos prolonga o processo de levantamento da barreira entre as duas Alemanhas por
mais de 40 anos, tempo que o muro permaneceu de . A opressão é sedimentada
diariamente. A montagem gera uma espécie de tempo gerúndio, em que todos os planos do
segmento são interligados por laços de continuidade.
Fade-out.
Surge a imagem de um jovem chinês cercado por rodas de bicicletas. O
posicionamento do personagem (sugerindo um giro em torno do próprio eixo), o grande
número de objetos esféricos e sua forma de disposição na tela (como se estivessem
suspensas no ar) conferem ao plano uma aparência leve, irreverente e em movimento, ainda
que seja visível o fato de tratar-se de uma fotografia. Tem-se a impressão de que o jovem
está a girar uma grande pilha de rodas, quase brincando, o que é salutar para que seja
estabelecido o contraste flagrante com o conteúdo das legendas apresentadas em seguida:
China
1970
Ling Yan
1948 - 1992
Atividade principal: montar bicicletas
Livro de cabeceira: O vermelho
A legenda seguinte é apresentada em letras maiores:
Curriculum
Por sobre a pilha de rodas, surge uma incrustação. Nela, jovens chineses marcham
exibindo livretos e aparentemente emitindo palavras de ordem. Em seguida, soldados
exem homens de meia idade, ajoelhados, com as mãos presas às costas e cartazes
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pendurados no pescoço.
Durante a Revolução Cultural...
executou 3 professores de Matemática
A imagem do jovem chinês não parece tão cândida e, aos olhos do espectador, o
esboço de sorriso que a fotografia deixa entrever ganha ares de provocação, talvez sadismo.
O mesmo plano, disposto em negociação com o texto verbal e a incrustação, rapidamente
torna-se dispovel a uma nova leitura, muito diferente da inicial.
Verdade que experiências como a de Kulechov (ver Capítulo I, f.45)
demonstravam essa possibilidade. A diferença entre o que se em o Modelo Vivo e Nós
que aqui estamos por vós esperamos é que, no segundo caso, a montagem o estrutura as
diversas perspectivas de leitura através de ordenações exclusivamente consecutivas. É de
extrema importância que o plano de Ling Yan seja mantido na tela ininterruptamente ao
longo de todo o segmento. É a onipresença do olhar registrado pela foto que permite que,
em momento algum, o foco saia do personagem principal, mesmo quando as imagens dos
professores condenados são exibidas. Do jovem montador parte a ação. Ele executa os
homens. Ele nos observa. Pode-se sempre rememorar a inserção de Ling Yan no contexto
sócio-político da Revolução Cultural na China, no entanto, o filme não deixa esquecer da
participação direta do rapaz.
Além da insistência na exibição da foto, as legendas também enfatizam esse caráter
de escolha pessoal na adesão ao assassinato dos professores. Por currículo (grafado no
filme em letras grandes, importantes) costumamos entender a apresentação de atributos
individuais que o aluno ou profissional considera vantajosos, talvez superiores a de seus
concorrentes. É de se supor, portanto, que Ling Yan tivesse orgulho de sua atuação na
Revolução Cultural Chinesa. Seu rosto captado na fotografia, nem um pouco embaraçado,
ratificaria o fato. Pelo menos segundo a lógica da montagem.
Contudo, talvez o mais crucial - e incômodo - na breve descrição da participação do
rapaz na vida política de seu país, seja mesmo a informação de que ele executou três
homens que lecionavam Matemática. A forma de apresentação do problema é peculiar no
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sentido de atribuir um tom extremamente pessoal à atitude do Ling Yan. As vítimas não são
designadas pelos atributos esperados como “opositores da revolução”, traidores da pátria”
ou inimigos do povo”. São professores da disciplina menos estimada pela maioria dos
estudantes. A coincidência(?) de Ling Yan ter executado três homens que praticavam
exatamente a mesma atividade soa como ressentimento e vingança, até porque o chinês
mostrado é jovem (com 22 anos em 1970, segundo as legendas) e possui um emprego
simplório. É provável que seus anos de escola não estivessem distantes da execução e que o
salário de montador de bicicletas não indique a pré-existência de um aluno brilhante.
Assim, um rapaz chinês, sem uma carreira de destaque, anônimo no meio da
multidão e talvez insatisfeito com sua experiência escolar, foi capaz de assassinar três
professores de matemática. Ele não foi um dos grandes responsáveis pelos genocídios
cometidos no século XX, mas deu sua parcela de contribuição quando a oportunidade
surgiu. E é isso que levanta uma dúvida sutil e corrosiva na audiência: o que faria qualquer
outro homem comum se tivesse a mesma chance? Ao situar o comportamento do jovem
num patamar de pessoalidade e talvez proximidade com um espectador que também possa
odiar matemática, o filme fragiliza as fronteiras entre personagem e público, remetendo a
abordagem novamente para o âmbito psicanalítico.
Fade-out.
A seguir, vemos o plano aéreo de um garimpo apinhado de trabalhadores,
assemelhando-se a um enorme formigueiro humano.
Serra Pelada, Brasil
1985
Do alto de um dos barrancos, a câmera mostra homens subindo escadas
improvisadas, levando às costas pesados sacos de areia. É impossível ver seus rostos, já que
eles mantêm a cabeça inclina, com a atenção totalmente presa nos perigosos degraus. Os
números se sucedem:
8.237 Joãos
12.668 Pedros
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9.525 Josés
Vemos planos de detalhe de pernas e pés dos garimpeiros, galgando com esforço um
terreno íngreme e lamacento. Em letras grandes, surge a próxima legenda:
Atrás de Ouro
Um único garimpeiro, de costas, sobe as escadas carregando uma saca de areia.
1 Antônio
1945 -1980
Fade-out.
Aqui, ao utilizar exclusivamente planos que ocultam as faces de cada homem, a
montagem constrói um forte sentido de indistinção. Como num formigueiro, onde o diálogo
parece inexistente, o trabalho braçal e a lama impõem uma irmandade forçada e como o
objetivo é o mesmo - o enriquecimento - poucas coisas poderiam representar uma diferença
real para quem olha de fora do garimpo, para os espectadores. Todas parecem vidas
consumidas em vão.
Jean Claude Bernadet também levanta a possibilidade de Nós que aqui estamos por
vós esperamos estar utilizando a legenda “Atrás do Ouro” como uma referência a Em Busca
do Ouro, filme de Charles Chaplin. (BERNADET, 1999). Tem sentido. Filmado em 1925,
Em Busca do Ouro conta a trajetória de Carlitos e um amigo como garimpeiros durante a
chamada “corrida do ouro”, ocorrida no final do século XIX, no Alasca. Além da
semelhança temática, seria uma homenagem a um filme que traz algumas cenas antológicas
do Cinema ligadas à miséria, como a do célebre cozido de botinas saboreado por Carlitos
ou a famosa dança dos pãezinhos.
Obviamente, essa conexão faz sentido se o espectador detiver essas informações
em sua enciclopédia. Mas se assim for, cria-se uma grande chance para que Nós que aqui
estamos por vós esperamos teça um comentário sobre a oportunidade social de seus
personagens. Em Busca do Ouro é a única obra da filmografia de Chaplin que possui um
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final verdadeiramente feliz: o garimpeiro encontra a mina desejada e termina ao lado de seu
grande amor. Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, o garimpo representa apenas
sacrifício. Sabemos que, mesmo que alguém descubra o ouro escondido sob a lama, essa
jamais será a sorte da grande maioria, dos milhares de homens mostrados no icio do
segmento. A melancolia e a pena substituem o final feliz de Chaplin; do ouro, permanece
a busca.
Do Brasil para o Japão.
A próxima imagem mostra jovens operárias japonesas montando dispositivos
eletrônicos. Um movimento de câmera aproxima o foco de uma das moças. Vê-se um plano
detalhe de uma peça sendo concluída.
Japão, 1977
Muitas japonesas
produzindo muitas TVs
Uma operária ajusta um mecanismo da TV.
Midori Uyeda
1955 - 1997
Uma jovem, mostrada de perfil, desmagnetiza a série de listras que ajudarão o
usuário a ajustar o sistema de cores da TV. Ela passa um equipamento por sobre a tela do
futuro aparelho de televisão. Vemos um efeito de edição digital que simula a perda de
sintonia da emissora e surge o rosto recortado de Elvis Presley.
Adorava o Elvis.
A montagem aqui brinca com os dois aspectos da “televisão”: o físico, como
aparelho composto de dispositivos eletnicos; e o simbólico, na medida em que é também
um veículo de comunicação de massa, um complexo industrial especializado em informação
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e entretenimento capaz de transpor distâncias intercontinentais.
Nesse sentido, a referência ao Japão o é aleatória. Em A Era dos Extremos, Eric
Hobsbawm comenta a ascensão japonesa durante o final dos anos 70 e toda a década de 80.
Considerado um dos grandes fenômenos da economia mundial, detentor do segundo maior
PIB (Produto Interno Bruto) do planeta, o Japão exportou bilhões de dólares ao ano neste
período, com ênfase nas indústrias automobilística e de produtos eletrônicos.
Internacionalmente, o Japão tornou-se sinônimo de tecnologia de ponta.
Por outro lado, o enorme volume de riquezas promoveu um outro fenômeno: a
chamada “ocidentalização” japonesa. Financeiramente guarnecidos, os jovens ninicos não
economizaram na hora de consumir produtos com selos europeus e, principalmente,
americanos. Cinema, música, moda e tendências de comportamento foram largamente
importados”, juntamente com seus respectivos ícones, tornando o Japão uma miscelânea
ímpar de tradição e cultura pop.
É do que trata Nós que aqui estamos por vós esperamos quando menciona Elvis
(assim, somente pelo pré-nome, na intimidade pica que a fama autoriza). O filme mobiliza
o cantor representa: o rock; a América; a histeria das tietes; a superação do tempo pelo
ídolo; a performance de impacto multinacional do cantor; etc. Elvis é, no filme, mais do que
um artista singular, mas a própria encarnação da cultura pop ocidental.
Daí o estabelecimento de um trânsito, no mínimo, interessante. O Japão envia as
televies para o resto do mundo, que, por sua vez, envia seus astros e estrelas ao Japão
através justamente das imagens televisivas. Quase uma brincadeira da montagem, mas que
demanda um conhecimento mínimo do espectador a respeito das condições econômicas e
culturais de âmbito multinacional que caracterizam o século XX.
Fade-out.
Voltamos à América do Sul. As imagens mostram as mãos de um homem acoplando
porcas a parafusos.
Argentina, 1983
Daniel Escobar, 1925 - 1998
114
Nos anos 70, apertou 9.872.441 parafusos
para veículos Renault
As mãos de Escobar parecem multiplicar-se enquanto realizam o trabalho.
A opção por exibir exclusivamente as mãos de um funcionário revela uma crítica
feroz do filme ao sistema de produção fabril. Limitando o trabalho humano ao mecanicismo
de uma tarefa repetitiva, o modelo de divisão do trabalho atinge a eficiência (quase um
milhão de parafusos apertados ao ano por um único trabalhador!), mas também resume o
operário a um par de mãos. Todo o restante do corpo (leia-se a versatilidade do indiduo, a
possibilidade de interação com outros trabalhadores e o intelecto) podem perfeitamente ser
relegados a segundo plano, excluídas totalmente da representação imagética, já que não
significam muito para a empresa.
Ao mesmo tempo, os efeitos de sobreposição e semi-transparência revelam o
enorme potencial produtivo desenvolvido pelo argentino, o que não deixa de ser um
reconhecimento importante. Como aconteceu no caso do operário da construção civil “sem
vertigens”, a montagem coloca seus recursos a serviço da ênfase na grande capacidade da
força-de-trabalho do século XX. Ela dedica atenção especial à importância das tarefas que
ninguém “vê”, mas, sem as quais, as grandes construções, máquinas e serviços não
existiriam.
Os ruídos também o importantes nesse sentido. Ouve-se o barulho de peças
metálicas chocando-se umas contra as outras. Um lembrete de todos os inconvenientes com
os quais o trabalhador é obrigado a lidar durante a operação que lhe foi destinada e,
consequentemente, do grau de superação dos obstáculos.
Nesse trecho específico, a montagem realiza então, simultaneamente, um exercício
de ctica e elogio; um estilo de representação que abrange o todo (a Renault, a indústria) e
a parte (o operário), construindo um sentido de oposão sem sequer prescindir da variação
de planos.
Fade-out.
A seguir, vemos um adolescente utilizando uma picareta contra a parede de uma
caverna. Uma pequena vela está acesa. Percebe-se que, se não fosse pela iluminação do
equipamento de filmagem, o lugar estaria praticamente às escuras.
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Índia, 1992
Os pés de uma pessoa, descalços e enlameados, são mostrados em detalhe, na saída
de um túnel bastante estreito. O mesmo rapaz visto no interior da caverna atinge um local
aberto. Ele leva saco pesadíssimo às costas, preso a sua cabeça por meio de uma correia.
Nehru Gupta, 1978 - 1997
Fade-out.
A própria descrição da cena deixa entrever o sentido de piedade profunda que as
imagens inspiram. Tanto pela idade do personagem, a morte prematura indicada nas
legendas, quanto pelas condições precárias de exploração mineral a que ele se submete. Não
é diretamente mostrada, mas fica subtendida a miséria que conduz a uma situação extrema
tanto em periculosidade quanto em desconforto e sofrimento envolvidos na tarefa. Mesmo
as legendas informam apenas o estritamente necessário, sem acréscimos supérfluos ao
impacto das imagens.
Pequenos fragmentos biográficos como o do indiano Nehru podem até ser
considerados pouco importantes do ponto de sua relevância global para o século XX, do
número de pessoas afetadas por essa circunstância específica. No entanto, são salutares para
a representação do desequibrio na balança de riquezas entre as classes sociais.
Eles também são fundamentais na composição do programa sentimental do filme, na
medida em que conduzem o espectador a uma relativização constante doprogresso”
construído pelo homem. Mesmo os instantes de êxito exibidos na obra são inevitavelmente
contaminados pela amargura. Reside uma das diferenças entre a exibição fragmentada de
Nós que aqui estamos por vós esperamos e sua fruição completa. Ainda que arranque
aplausos ou sorrisos ocasionais do público, vista por inteiro, a obra não permite esquecer os
abismos formados entre as diversas regiões do planeta. A própria forma de construção do
filme impede a supremacia extremada do otimismo, vetada inclusive no âmbito do avanço
tecnológico. Nada ou quase nada é tão bom quanto aparenta ser.
O segmento seguinte é introduzido pela fotografia de pés de trabalhadores já idosos,
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com dedos curvos, artticos, calçados em sandálias de borracha. A calça de um deles está
esburacada. Na verdade, é possível ver três pernas, a de um homem que não foi totalmente
enquadrado pela câmera e um par pertencente ao personagem descrito pelas legendas; ele
está de pernas cruzadas. A estranheza do enquadramento e a postura relaxada do
trabalhador cujos pés estão sobrepostos ajudam a criar uma atmosfera mais descontraída
frente ao maltrato visível dos pés.
Bolívia, 1994
Juan Domingues
1903 - 1995
Trabalhador do campo.
Nunca viu uma imagem de TV.
Nunca foi para a guerra.
Gostava de coca-cola.
Fade-out.
Esse segmento prova que uma única imagem bem empregada é capaz de substituir
um sem-número de planos. Mesmo que nenhuma legenda fosse acrescentada, a fotografia
dos pés retorcidos daria conta de toda uma história de labuta árdua, de pobreza, de
passagem do tempo, longas caminhadas e tranila casualidade, flagrada no cruzar de
pernas displicente. Quando uma obra consegue incluir em seu bojo uma imagem tão
significativa, crivá-la de efeitos, informações excessivas ou planos complementares
supérfluos é contraproducente. A montagem, ao optar por não intervir do ponto de vista
visual, respeita não o potencial, mas a realização já completa do elemento fotográfico em si
mesmo.
Mas se é possível caracterizar a montagem desse segmento como mantenedora e até
passiva em vel específico, o mesmo não pode ser dito em vel geral, ou seja, no que
tange à relação da foto com o restante do filme. Ao exibir somente os pés do campos, a
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montagem realiza uma associação direta entre a imagem de Juan Domingues e outros
planos de Nós que aqui estamos por vós esperamos em que somente partes do corpo dos
trabalhadores são exibidas, mais especificamente àqueles ligados a Daniel Escobar, o
operário de quem amos as mãos apertando parafusos. Indireta e sutilmente, a
montagem constrói instrumentos de aproximação e comparação das atividades produtivas.
Já a Coca-Cola adiciona humor ao segmento, ao quebrar uma descrição tão exata de
um pacato lavrador. Era de se esperar uma legenda que falasse de cachaça ou de qualquer
bebida regional, mas eis que o filme escolhe outro artifício, remetendo o espectador ao
fenômeno da internacionalização dos objetos consumo, já mostrada com relação a Elvis e
seus s japoneses. Nesse sentido, os mbolos pop surgem como os verdadeiros
vencedores” do século XX, ao conseguir alastrar-se até nos ambientes onde outros marcos
do século não tiveram lugar, nos territórios poupados pela guerra ou ainda destitdos de
veículos de comunicação de massa. no filme uma defesa velada da idéia de que a única
democratização” real ocorrida no século XX está vinculada ao consumo de bens não
duráveis e pouco ou nada significativos do ponto de vista da melhoria concreta das
condições de vida da população.
Fade-out.
A fotografia é substitda por imagens em movimento. A câmera, provavelmente
instalada num veículo, percorre uma grande extensão da rua, exibindo dezenas de homens
sentados no meio fio da calçada, como numa longa e cansativa fila. O plano é inusitado.
Num ambiente urbano, imagina-se sempre a rua como espaço de grande movimentão de
transeuntes, agitão, pressa.
New York, 1929
O Crash da Bolsa
Por sobre as imagens dos trabalhadores na calçada, são exibidas duas incrustações
no canto superior direito da tela. Elas exibem planos coloridos, bem mais recentes que a
imagem de fundo. Primeiro, vemos a face de um japonês preocupado. Depois, mãos
repetindo gestos nervosos, característicos das transações efetuadas em bolsas de valores.
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As incrustações desaparecem e continua inalterado o travelling da câmera,
parecendo não ter fim o número de homens nas calçadas.
Depois, é possível distinguir uma fila convencional. Vemos planos de detalhe
exibindo apenas as pernas e pés dos que estão na espera. Voluntários distribuem sopa e pão
aos integrantes da fila.
Tamm num ambiente aberto, um homem mantém a cabeça baixa e as mãos nos
bolsos, talvez por frio ou desânimo. Em frente um banquinho com uma caixa de frutas
expostas.
Paul Davis, 1895 - 1955
Um transeunte caminha apressadamente e agarra uma fruta. Tem-se a impressão de
que ele vai roubá-la, porém ele atira uma moeda em direção ao vendedor, que a apanha no
ar. Ao conferir o valor exato do objeto, o homem novamente abaixa a cabeça e, nessa
postura de recolhimento, a imagem lentamente vai sumindo.
O engenheiro que virou maçã
Fade-out.
Outra vez fica claramente perceptível o enorme investimento da obra na mobilização
dos conhecimentos prévios acumulados pela audiência em sua Enciclopédia. Não são
especificadas as causas e conseqüências catastróficas para a economia americana da quebra
da Bolsa de Nova York, mas o espectador deve estar apto a identificar nas enormes filas ao
ar livre a multidão de desempregados decorrente do fechamento de milhares de empresas
nos EUA. A distinção entre desocupados oportunistas e trabalhadores que sofreram os
reveses da economia em crise abre caminho para o que o público possa comover-se e
solidarizar-se com o infortúnio coletivo. Especialmente no que diz respeito à queda brusca
do indiduo na escala social. O engenheiro que precisou vender maçãs na calçada para
sobreviver, contando cada moeda recebida, parece encarnar com exatidão o drama. A
postura taciturna, cabisbaixa, é significativa na caracterização do personagem-síntese do
desemprego estrutural. Ele aumenta os nculos entre homem que busca o trabalho, mas
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não encontra, e o espectador penalizado.
Bem como são as incrustações que promovem nexos espaço-temporais entre a
quebra da bolsa em 29 e o contexto sócio-econômico do público na atualidade. Ao exibir
tomadas compostas por imagens coloridas, filmadas mais recentemente que os planos das
ruas de Nova York, o autor-modelo transporta as circunstâncias que causaram o desastre
econômico no icio do século para uma possibilidade presente, contemporânea do ato de
fruição do filme.
Inevitavelmente, o espectador se depara com um conjunto de fatores muito similar -
senão ainda mais grave - do que aqueles que geraram o crash de 29: o dinheiro torna-se um
bem volátil”, podendo ser transferido de território em questão de minutos; a
internacionalização da economia (simbolizada pela face do investidor japonês preocupado)
ocasiona abalos intercontinentais em caso de desestabilização de qualquer bolsa de valores
importante; o mercado de ações segue uma lógica pouco compreensível para o público
leigo; e praticamente ninguém é poupado quando um problema atinge os núcleos centrais
do poder econômico. O fantasma do desemprego em massa de repente não parece tão
distante do espectador. Naquelas poucas mãos que repetem gestos estranhos, engraçados,
está o destino de quase todo mundo, sem que sequer tenhamos a mais vaga idéia do que
sinalização corporal significa.
Nesse sentido, o filme inclui diretamente o espectador na trama, ao apresentar um
espelho viável em que ele é capaz de supor e temer o próprio futuro, num jogo de
comparações e semelhanças que carrega personagens, leitores e contexto para o interior de
um mesmo tabuleiro.
o “Engenheiro que virou maçã” possui uma dupla vertente de possíveis
referências. A primeira diz respeito ao filme O homem que virou suco, de João Batista de
Andrade, obra que retrata a vida de um poeta popular nordestino que migrou para São
Paulo. Confundido com um assassino, o protagonista defronta-se com uma sociedade
opressora que sufoca o cidadão de vida simples. Ainda que nenhuma imagem da obra de
João Batista de Andrade seja exibida em Nós que aqui estamos por vós esperamos é cabível
admitir nesse segmento uma homenagem a um dos filmes brasileiros mais premiados da
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década de 80, especialmente pela semelhança geral entre os personagens, o engenheiro e o
poeta.
Para o espectador que não detém essa informação, a legenda tem o impacto de
evidenciar uma crítica do filme frente a invisibilidade” social de determinadas profissões.
Nesse caso, o vendedor desaparece frente ao objeto da transação monetária identificada no
texto verbal escrito e parcialmente no texto visual (o comprador volta sua atenção para a
maçã, mas apenas arremessa a moeda ao homem responsável pela venda, sem sequer
destinar-lhe um olhar). Já a carreira anterior, graças ao status que a envolve, perdura
mesmo quando não é mais exercida. A maçã não apaga o engenheiro, mas engole seu
próprio vendedor.
A seqüência Marta-Pablito é uma das longas de Nós que aqui estamos por vós
esperamos e não é exatamente óbvio, logo a princípio, o que reúne tantas informações
diferentes num mesmo bloco do filme. Marta, George, Mary, João, Hermann, Antônio,
Sabrina, Lev e Pablito são todos anônimos, é verdade, mas, além disso, todos têm em
comum o fato de serem exibidos sob o ponto de vista de sua atuação e/ou postura
profissional.
A sequência explora a luta por condições de trabalho mais justas; os padrões quase
mecânicos de velocidade de produção exigida dos operários fabris; os empregos surgidos
exclusivamente no século XX; a notável capacidade de trabalhadores anônimos sobre a qual
erguem-se as grandes cidades; a adequação do comportamento do operário ao sistema de
governo; a atividade do homem que sinaliza o caráter de finitude de todo restante da
mão-de-obra (o coveiro); o trabalho ininterrupto de opressão; o orgulho de ter no
currículo execuções sumárias; o trabalho como meio para a ascensãoeconômica; as
atividades que estabelecem uma indistinção quase absoluta entre todos os homens; a
produção material em comunhão com a simbólica; os meios de subsistência que em nada
refletem o desenvolvimento tecnológico do período; a ausência de emprego massificada; e a
relação entre trabalho e status. A sequência traça um vasto painel que nos permite duvidar
da ampla melhoria nas condições de trabalho no século XX. Pelo menos em relação ao que
a tecnologia nos possibilitaria ter.
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_________________________
1.8 Seqüência Hans e Anna
_________________________
As a exibição de duas fotos numa pide, surge uma imagem pouco comum. No
canto esquerdo da tela, cercado por uma simulação de máscara, um casal dança. Os
movimentos, no entanto, não têm compasso natural, carecendo de constância rítmica que
lhes garanta a impressão de normalidade de movimentos. A dança também é limitada a
pouquíssimos passos. Os planos parecem ir de “trás para frente”, promovendo uma
repetição incessante dos trejeitos do casal. Aqui, recursos digitais criam um visual muito
semelhante às imagens de cinetoscópio, dando a sensação de que o espectador está diante
de um registro legítimo, provavelmente para uso familiar e de caráter íntimo.
Sobre o fundo negro da outra metade da tela, surgem as legendas:
Sábado, verão de 1914
2.000 casamentos foram
realizados às pressas em Berlim.
Aqui, a festa de Hans e Anna.
Vestido improvisado, lua-de-mel
relâmpago, hotel simples.
Segunda-feira, Hans estava
em um dos inúmeros trens que
partiram em direção ao front.
A imagem do casal é substitda pela de homens acenando das janelas de um trem. O
veículo parte tendo um dia ensolarado como pano de fundo. O recurso da “máscara” ainda
é empregado e como o ângulo da filmagem focaliza o trem de baixo para cima, a porção
superior do plano fica iluminada, enquanto a inferior assume a coloração do veículo, bem
mais escura. Mesmo que o formato do recorte em torno da imagem o tenha sido
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modificado, permanecendo circular, o jogo claro/escuro faz que com o plano se assemelhe a
um buraco de fechadura, reafirmando o quê voyeurista do icio da sequência, quando
foram apresentadas as imagens do casal.
Em seguida, a máscara desaparece e a tela é totalmente preenchida por soldados em
marcha. Alguns rapidamente recarregam a munição de canes.
Hans atira bombas
Vê-se uma explosão.
Logo depois surge uma moça finalizando a produção de uma bomba num ambiente
fabril. Depois, aparecem várias outras mulheres efetuando a mesma atividade.
Anna produz bombas
As moças agora estão protegidas por máscaras e despejam líquidos no interior das
bombas.
Os restos de uma casa são destruídos por uma explosão. Desabrigados andam pelas
ruas, carregando pertences e crianças.
A metade esquerda da tela é ocupada pela filmagem dos sobreviventes.
Simultaneamente, a outra metade começa a apresentar a panorâmica de um quarteirão em
ruínas e mais explosões.
Em seguida, as posições se invertem. Tiros, luzes e explosões passam para o lado
esquerdo, enquanto na metade direita vemos soldados fazendo uma refeição num campo
aberto, sob a queda da neve. A câmera movimenta-se, exibindo os militares durante o
almoço, enquanto isso o plano também “passeia” pela tela, percorrendo toda sua extensão.
Explosões ocupam os espaços deixados pela filmagem da tropa.
Os pares de imagem acabam por transmitir uma sensação de deslocamento
ininterrupto, tanto pela exibição conjunta de planos, quanto pelo movimento no interior de
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cada imagem (mesmo os flocos de neve contribuem para essa impressão).
O programa sensorial, nesse caso, está fortemente a serviço do cognitivo, ao ser
responsável pela construção da idéia de que uma guerra não deixa absolutamente nada em
seu lugar. O número de refugiados multiplica-se, levando à migração pela destruição das
moradias; as tropas são obrigadas a levantar acampamento constantemente, em busca ou
fugindo do inimigo; as provisões precisam chegar aos soldados. Aqui, a sensação de
deslocamento construída por estímulos sensoriais é o principal veículo para que o
espectador forme uma idéia dinâmica do conflito bélico.
As imagens seguintes também têm um propósito similar, mas são estruturadas de
maneira diversa.
A montagem subitamente acelera o ritmo da seqüência, introduzido tomadas de
curta durão. Planos de soldados em trincheiras são rapidamente alternados com as de
explosões e de militares correndo e sendo alvejados pelo inimigo.
Ouve-se o barulho de artilharia pesada, no entanto, é plenamente perceptível ao
espectador que esses não são ruídos originais, captados conjuntamente com as imagens. A
falta de sincronia com as tomadas, a ausência de outros sons do ambiente e a constância
sonora frente à grande variedade de planos não permite o engano. Trata-se de uma
simulação claramente artificial no ambiente de guerra, mas que tem como efeito
potencializar o clima de ataque.
Através da sucessão de tomadas, o filme concretiza uma relão que efetivamente as
imagens não explicitam, apenas sugerem. Cada plano exibe um atirador ou uma vítima,
nunca os dois simultaneamente. Acelerando o ritmo, a montagem sedimenta os laços de
causalidade e conseqüência, sem que tenha sido mostrada a trajetória completa de um único
tiro. “Vemosos disparos apesar de que, na realidade, as armas jamais tenham lançado sua
munição. Toda a sensação de ataque é simulada exclusivamente pela montagem através da
exposição de ângulos diferenciados da investida militar.
Assim, a montagem deixa de ser unicamente um instrumento de construção do clima
dramático (seja de tensão, medo, humor, romance, etc.). Ela agora funciona não apenas
para conduzir o espectador até o ápice de uma ação, mas transforma-se na própria ação. A
montagem torna-se meio e fim.
Em seguida, o ritmo cinematográfico é desacelerado novamente. A imagem exibe
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um soldado olhando diretamente para a câmera. Aparecem outras faces de combatentes, um
deles ferido no lábio. O som, entretanto, continua sendo o de tiros e explosões, o que cria
uma relação de continuidade entre os planos. O ataque é uma realidade onipresente para
aqueles soldados, seja do ponto de vista imediato, seja sob a forma de perspectiva próxima
ou medo. Os ruídos, nesse caso, oferecem uma informação sobre os personagens, mais do
que sobre o instante da ação.
As tropas aparecem não mais marchando, apenas caminhando. Os homens
aparentam cansaço. Eles carregam seus pertences em sacos, nas costas.
Surge uma incrustação no alto da tela detalhando um par de botinas altamente
deterioradas.
Minas terrestres explodem. Numa trincheira, um soldado lança um olhar desolado à
câmera enquanto carrega um companheiro desacordado. A constante utilização de planos
de rostos dos combatentes a seqüência um tom de apelo mais sentimental que suas
predecessoras.
Surge a imagem de um navio de guerra com enorme número de passageiros. Logo
depois vemos a filmagem do navio naufragando repentinamente. Os homens se jogam ao
mar.
O salto brusco entre os dois planos (do navio íntegro seguido do afundamento) é
intermediado por imagens sutilmente sobrepostas. Por sobre as tomadas da embarcação, são
exibidos planos de trincheiras e disparos, porém com vel de transparência quase total.
Dessa forma, é possível distinguir o brilho de explosões em todo o navio e no ambiente em
volta dele. Esse efeito possui dupla função: primeiro, deixa evidente a causa do
afundamento (um ataque inimigo); segundo estabelece a contigüidade entre os campos” de
batalha numa guerra; terra e água tornam-se palcos para ações militares.
E a expansão dos territórios tomados pela guerra no século XX não pára . Nos
próximos planos vemos homens deixando uma passagem para o subsolo, protegido por
máscaras. Uma placa informa: Danger Gas (Gás Perigoso).
Vemos ainda aviões em pleno vôo. Uma tomada exibe o detalhe de um dos pilotos
e, em seguida, bombas caem em direção ao solo. Os explosivos são um truque de edição,
imagens repetidas, coladas sobre um fundo razoavelmente neutro, dispostas num ângulo
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que cria a impressão de que foram arremessadas do aeroplano.
Tamm a partir de filmagens aéreas, porém a uma curta distância da câmera, é
possível distinguir uma mulher trajando um figurino masculino e tocando com um graveto
uma mão humana decepada. A personagem está envolta pelo efeito de “máscara”.
Na imagem seguinte, percebe-se que a moça está cercada por uma multidão de
curiosos. Um policial mantém todos afastados.
Um casal observa de uma janela e é possível notar que o homem tem uma expressão
de interesse mórbido pela cena.
O policial volta-se para a moça e bate continência. Ele diz algo a ela, abaixa-se, pega
a mão decepada e deposita-a numa pequena caixa. O oficial oferece o pacote à mulher. Ela
segura a caixa contra si, com uma expressão emocionada.
Não é difícil reconhecer as últimas imagens como provenientes do filme Um Cão
Andaluz, de Buñuel e Salvador Dali, obra de franca inspiração nas teorias psicanalíticas e
que descreve com raro preciosismo todo absurdo de uma a guerra.
que, de repente, num contrasenso similar à obra de Buñuel, as imagens começam
a correr ao contrário e em câmera acelerada, partindo do rosto emocionado da jovem até o
retorno das bombas ao espaço aéreo.
Nesse ponto, o ritmo volta ao normal e vemos um avião, agora um aparelho enorme,
abrindo o compartimento para o lançamento de carga ao solo. O plano detalhe mostra as
palavras pintadas na fuselagem: Enola Gay, o nome do aeroplano que arremessou a bomba
atômica sobre Hiroshima. Esse fato pode explicar o andamento das imagens de trás para
frente. O retorno da bomba ao avião nos remete à idéia de que devemos deixar para trás
tudo o que conhecemos antes sobre armamento e destruão. O Enola Gay inaugurou uma
nova era, a do pavor atômico e poderio suficiente para o aniquilamento em massa
instantâneo. Hans e Anna tornam-se quase insignificantes frente ao novo poder de fogo do
século XX.
Vemos uma tomada congelada de uma explosão atômica. A princípio, parece uma
fotografia, porém a imagem começa a ter movimento e a explosão se dissemina. Um plano
filmado mais a distância mostra a formação do chamadocogumelo atômico”. A paralisação
inicial e posterior retomada da exibição normal da filmagem transmite a sensação de aquele
tratar-se de um momento único, impactante o suficiente para tornar-se um marco divisório
126
na história humana. Define-se claramente os instantes anteriores e posteriores à explosão.
É apresentada uma tomada de detalhe de nuvens contra o céu, aparentando ser uma
continuação dos efeitos da bomba. Sobre ela, é inserida uma incrustação inusitada: um
campo branco com duas estruturas escuras no centro; uma assemelha-se a um pequeno
animal; a outra, algo inanimado e com uma curvatura côncava. Quando o animal chega bem
próximo e toca a curvatura, a estrutura subitamente fecha-se sobre ele e percebemos que se
tratava da filmagem microscópica de uma flor carnívora, formando um paralelo com a
"rosa" atômica e sua periculosidade.
A incrustão desaparece e lugar a uma outra, agora perfeitamente delineada em
formato oval. Vê-se uma foto e o recorte elíptico do plano lembra um porta-retrato antigo.
A imagem é de uma família japonesa: esposa, marido e duas crianças. As legendas
agrupam-se ao redor das pessoas retratadas, permitindo atribuir as informações a cada
membro certo do grupo.
Mariko Takano
1923 - 1945
Fazia bolinhos de arroz como ninguém
Takio Takano
1920 - 1945
Um exímio carteiro
Takao, 1944 - 1945
Naki, 1943 - 1945
Ao utilizar as incrustações sobre um fundo de nuvens, a montagem estabelece um
laço direto entre os efeitos da bomba e suas pretensas vítimas, associando as imagens à idéia
de esvanecimento súbito. Nem rnas ou corpos restaram.
A fotografia desaparece e surgem as legendas:
“Os homens criam
127
as ferramentas,
as ferramentas
recriam os homens.”
Mc Luhan
Fade-out.
A seqüência Hans e Anna pode perfeitamente ser considerada uma espécie de
continuação detalhada da anterior, uma vez que segue a abordagem ligada ao trabalho. A
diferença, no entanto, está no potencial de abrangência. Qual outra atividade humana possui
igual alcance de mobilização social quanto uma guerra?
E no pior sentido possível. Hans atira as bombas que Anna constrói e, nesse ciclo,
todo o resultado das outras produções humanas é demolido. Os conflitos armados do século
XX têm como marca um alcance muito superior que seus antecessores, ampliando o raio de
destruição para o interior das grandes cidades, atingindo indistintamente soldados inimigos,
civis, mulheres, idosos e crianças. A capacidade produtiva material e humana é
sistematicamente dizimada, reduzindo populações e tropas a condições deploráveis. Esse é
o conjunto decadente constrdo durante a seqüência.
Porém o mais importante para fins de análise é o fato do segmento expor todo esse
contexto utilizando um número muito reduzido de legendas. Em “Hans e Anna”, o discurso
visual de fato consegue estabelecer um tipo de condução da trama muito articulado,
especialmente pela concentração do foco de atenção em um único assunto. Ao contrário
dos blocos anteriores, onde a multiplicidade era a palavra de ordem, aqui a guerra é o único
tema retratado.
Outro motivo são as formas de enlace entre os diversos planos. A divisão da tela em
metades”, a variação de ritmo durante os ataques, a reversão das imagens de Um Cão
Andaluz (um recurso condizente com o tom surreal do filme), a inserção da flor carnívora e
o esvanecimento” da família Takano criam soluções visuais intrinsecamente conectadas
com as informações dispoveis. A forma e conteúdo completam um ao outro.
O alinhavo final, a citação de Mc Luhan, novamente explora a variação do tamanho
das letras como elemento expressivo, atribuindo às ferramentas uma condição de força. Pela
128
primeira vez na história o homem constrói algo que verdadeiramente pode significar o fim
da espécie. A tecnologia que deveria emancipar o ser humano das coerções da natureza
transforma-se em sua antagonista.
Fade-out.
____________________________
1.9 Seqüência A Solidão e a Guerra
____________________________
Como o própriotulo do bloco sugere, esta também é uma seqüência voltada
exclusivamente para a temática bélica. A segunda de um total de quatro em todo o filme. O
que não significa, entretanto, que esteja em jogo aqui somente a idéia de conflito armado
direto entre países.
Uma única foto é mostrada sobre uma lápide no icio da seqüência e, neste ponto,
surge uma mudança importante. A música que introduz o bloco diferencia-se das que foram
apresentadas até então ao longo da obra. É perceptível a inserção de vozes humanas
repetindo frases num tom de fala, não de composição melódica. O idioma empregado não
foi identificado durante a análise e cada frase é seguida de uma breve repetição, como um
efeito de eco. Mais importante que a informação que possa estar contida nas palavras, é a
sensação transmitida pelas frases ouvidas, como uma promessa de abordagem mais pessoal
do tema, como se fossem as “vozes” distantes dos personagens.
Surgem as legendas:
A Solidão e a Guerra
Vemos a tomada um soldado, cercado por equipamentos militares, concentradíssimo
em costurar uma peça de roupa.
“Tornamo-nos uma máquina de esperar.
No momento esperamos a comida,
depois será a correspondência
129
e a qualquer momento
uma bomba inimiga
que poderia acabar com nossa
ansiosa e tediosa espera.”
Heinrich Straken
1919 - 1942
A inusitada reunião dos três elementos - ambiente de guerra, soldado e costura -
imprime um tom cândido, quase pueril ao icio do bloco. As legendas, no entanto,
rapidamente minimizam essa impressão, emprestando à atividade do soldado um significado
bem mais amplo no contexto da guerra. Costurar transforma-se em esperar, que, por sua
vez, torna-se apenas uma prévia da morte. A rede de associações que o texto verbal escrito
desencadeia auxilia o espectador a refletir sobre os tipos diferenciados de pressão exercida
sob os soldados durante, antes e depois dos combates. Somente assim é possível
compreender as reações individuais e coletivas extremadas que se seguem no bloco.
Vemos a imagem de um homem acometido por tremores incontroláveis. Ele
encontra-se sentado, com o torso nu e num cenário de fundo neutro. Tanto a sua condição
física, quanto a ausência de uniforme e outras referências militares, levam à conclusão de
que ele não está num campo de batalha. Pelo menos não mais. Lê-se nas legendas:
Choque de guerra
Silêncio
(do Lat. Silentiu) S.m.
1. Estado de quem se cala.
2. Interrupção de ruído.
3. Taciturnidade.
4. Sigilo, segredo.
Pierre Ledoux
130
1898 - 1927
A música vai sumindo e é substitda por um barulho estranho, composto por
rápidos sons repetitivos e em sincronia com os tremores do personagem.
De acordo com Dancyger, é provável que nenhuma tarefa ligada à montagem sonora
seja mais importante do que a decisão sobre o realismo sico versus o realismo emocional
(DANCYGER, 2003, p. 402). O que está em questão no segmento analisado é exatamente
essa questão.
Em instante algum, a seqüência exibe sons diegéticos, no entanto, ao reunir sons
pouco usuais em perfeita sincronia com movimentações corporais também fora dos padrões,
a montagem possibilita a simulação de um som “supradiegético”. Mais do que a impressão
de que o som é oriundo do ambiente de filmagem, temos a sensação de que a fonte do ruído
é o próprio interior da mente de Pierre Ledoux, como se a sonoplastia fosse um tipo de
"superclose-up", permitindo a aproximação do personagem e a detecção de detalhes
insuspeitos.
Obviamente, esse tipo de registro não é possível e o leitor-modelo sabe disso.
Tampouco é uma sugestão que a imagem implicitamente proponha. O efeito é obtido graças
a um jogo da montagem, que dise os elementos expressivos de forma a gerar
pressuposões de causalidade (se sons e movimentos coincidem, é provável que um seja
decorrente do outro). Somente através da exposão conjunta dos estímulos visuais e
sonoros, via montagem, a conexão pode ser concretizada.
E é assim que os efeitos sonoplásticos ganham uma função normalmente atribuída à
música - a descrever o estado emocional do personagem. A montagem estabelece o
predomínio completo dos tormentos interiores sobre o comportamento exterior através do
padrão sonoro, enquanto a legendas oferecem o contraponto perfeito entre desejo (silêncio)
e realidade.
O choque produzido entre imagem, sons e texto verbal é de tal intensidade que gera
a impressão de permanência indefinida numa situação de desespero. Pierre Ledoux talvez
jamais se recupere. O desconforto e a pena gerados no público baseiam-se fortemente nos
laços de identificação, já que, ao permitir que o espectador ouça os rdos que “habitama
mente do personagem, a montagem promove a simulação de um compartilhamento fugaz,
131
porém intenso entre ambos. Uma reuno de artifícios a serviço tanto do programa sensorial
quanto sentimental.
Ainda na mesma seqüência, a imagem seguinte apresenta uma enorme onda
formando-se sob sol forte, os rdos decrescem e música anterior retorna. Surgem as
legendas:
Kamikaze, Vento Divino
Numa pequena incrustação no canto da tela, vemos aviadores japoneses fardados,
tomando uma bebida simultaneamente, como num ritual.
A seguir, o filme exibe planos de aviões estacionados numa pista de pouso, cada um
com um trio de militares a sua frente, em formação oficial. Vemos o detalhe de uma hélice
em pleno funcionamento e depois uma ampla filmagemrea. O cenário abaixo é marítimo e
a mira do aeroplano está posicionada sobre um navio de guerra. Imagem congela-se.
“Papai, mamãe, me desculpem por ser um filho ingrato.
Não há pior desgraça do que um filho morrer
antes dos pais, isso foge à ordem natural das coisas.
No meu silêncio já refleti muito sobre
o sentido e a finalidade desta guerra.
Mas estar aí junto a vocês seria
uma grande humilhação...
Surge uma pequena incrustação com o rosto de um jovem aviador japonês.
Kato Matsuda
1927 - 1945
No plano posterior, um avião atira-se sobre um porta-aviões. A imagem congela-se.
...Conforta-me aquele velho
ditado japonês:
132
“ A morte é mais leve do que uma pluma.
A responsabilidade de viver é
tão pesada quanto uma montanha”
Adeus Kato
Fade-out.
Novamente neste segmento Nós que aqui estamos por vós esperamos constrói
mecanismos de identificação com o personagem, de forma a tornar compreensível o ponto
de vista do soldado no âmbito geral do conflito. O aspecto ritualístico do suidio na cultura
japonesa (lembrado na incrustação) e o texto verbal reproduzindo uma pretensa carta de
despedida de um jovem kamikaze aos pais desviam a atenção do público das dezenas ou
centenas de timas do piloto, oferecendo uma perspectiva pouco comum no cinema
ocidental, que, via de regra, defende a atuação das tropas Aliadas contra as do Eixo.
O congelamento da imagem exatamente quando a embarcação militar é enquadrada
na mira do kamiase também funciona como um elemento de ênfase dramática, promovendo
uma distensão temporal no instante-chave da seqüência: quando comprova-se a decisão
intencional pela morte, o planejamento, a certeza. Apresentar aqui a carta de adeus do
jovem suicida elimina definitivamente toda e qualquer vida que ainda pairasse,
porventura, sobre o caráter premeditado da ação. A montagem aqui faz valer a
elasticidade” do tempo cinematográfico, prendendo a atenção do público não na morte em
si, mas num momento ainda mais crucial para a sequência e que precede a queda da
aeronave: o da decisão.
Outro diferencial desse segmento encontra-se no texto verbal escrito. A carta de
Kato Matsuda apresenta uma novidade: a inclusão na trama de personagens ausentes no
contexto imagético - os pais do aviador. Ao construir um espaço no interior da narrativa
para essas duas figuras não enquadradas na tela, ao explicar-se àqueles que mais sofreriam
com seu ato suicida, o kamikaze fornece uma justificativa também ao espectador. E pelo
fato de existirem destinatários para a mensagem (mesmo que apenas ficcionais), as
informações podem ser enquadradas mais facilmente na categoria “carta” e ganhar um forte
status testemunhal, o que ajuda a convencer e cativar o público.
Já a legenda seguinte suscita dúvidas. Quem precisa ser consolado pela morte de um
133
jovem? Quem conhece o antigo ditado japonês? E quem se despede com familiaridade do
personagem? Aqui o espectador é obrigado a reconhecer uma instância textual que tende a
chamar pouca atenção em Nós que aqui estamos por vós esperamos devido ao estilo
impessoal adotado, porém que, nesse curto espaço, aparece com clareza: o narrador do
filme.
Não que suas marcas não sejam viveis em outros momentos da obra, é possível
identificá-las. A questão é que, nessa legenda, ele assume explicitamente sua existência e
atuação. Para um filme que tenta transmitir a sensação de que “as imagens contam a si
mesmas” esse surgimento parece contraditório, no entanto, ele é gerado pela necessidade de
reafirmar a compreeno dos atos do personagem. Se até esse ponto o espectador ainda não
estiver convencido de que o kamikaze tinha suas próprias razões (mesmo que o público o
as compartilhe), somente um aval muito forte poderia fazer diferença. É quando o narrador
entra em cena como tal, oferecendo um ditado de forte apelo popular, que funciona também
como introdução para a as imagens seguintes.
São exibidos planos de uma passeata composta somente por monges. As legendas
identificam o local e a data:
Sudeste Asiático, 1969
Um close up mostra em detalhe uma enorme fotografia carregada por um dos
manifestantes. Nela, está retratado um homem envolto por chamas.
Logo depois vemos a filmagem do acontecimento registrado na foto. O corpo de um
homem, sentado numa calçada, é consumido pelo fogo. Algumas pessoas assistem em volta.
Monge budista protesta
Contra a Guerra do Vietnã
Tashi Tungten
1925 - 1969
Na imagem seguinte, restam apenas as cinzas do monge.
134
Como prenunciou o ditado chinês, o manifestante preferiu atear fogo em si a manter
uma postura neutra diante da guerra. O filme então coloca numa posição de paridade dois
atos a prinpio absolutamente opostos: uma morte para prolongar a guerra e outra para
abreviá-la. Não importando as posições contrárias ou a favor do conflito armado, o filme
constrói um mesmo sentido de compreensão às duas faces do suidio.
Mas o tipo de abordagem modifica-se a partir das imagens seguintes, inclusive do
ponto de vista sonoro. A música torna-se opressiva, enquanto são exibidas cenas de um
homem barrando a passagem de uma fileira de tanques de guerra.
China, 1989
Praça da Paz Celestial
O condutor do primeiro veículo tenta desviar do obstáculo, porém o manifestante,
sozinho e desprotegido, também muda de lugar, tornando a enfrentar a máquina.
Chen Yat-sen, 1932 - 1998
Professor de Literatura
Estudioso de Baudelaire
O tanque pára e a imagem é congelada.
A seguir, vemos planos de um índio. Apenas as mãos de uma pessoa branca também
estão viveis no enquadramento, elas depositam e ajeitam um chapéu sobre a cabeça do
indígena.
Brasil, 1975
O Chapéu
Surge uma fotografia exibindo um grupo de índios, alguns com arcos e flechas em
riste; uma das mulheres aponta para uma dirão distante. Um movimento de zoom-out
começa a mostrar o grandemero de pessoas enquadradas na foto. De um lado, índios; em
frente fografos e cinegrafistas; por último, formando um cordão de isolamento, um grupo
135
de policiais. A postura da índia de braço erguido assume então características de protesto, o
espectador passa a considerá-la como líder da manifestação. O movimento de câmera
também funciona como contraponto à imagem anterior, onde apenas o indígena era visto e
sob uma ótica que remete à iia de um silvícola ingênuo, frágil e facilmente ludibriado
através de falsos símbolos de fortuna, como um espelho ou chapéu.
A partir da fotografia do “protesto”, o índio assume uma postura de força, coragem
e enfrentamento direto. O homem branco”, a princípio compassivo e benevolente,
transmuta-se no batalhão de repórteres prontos a transformar o índio em espetáculo e no
grupo de policiais dispostos a interromper a passagem das tribos.
A foto seguinte tamm exibe a barreira policial. Um índio caminha ao longo da
linha composta por homens armados com uma postura de orgulho, aparentemente
desprezando os soldados militares.
A seqüência termina com uma importante conexão criada entre o manifestante
chinês e os índios, em oposição frontal aos personagens exibidos anteriormente no mesmo
bloco. O soldado costurando compenetradamente à espera da batalha, o homem acometido
por tremores, o jovem kamikaze e o monge suicida foram reunidos sob uma melodia suave
e triste reservada a momentos pesarosos e, de certa forma, representando total aceitação à
guerra ou um tipo de resistência pouco articulada. A mudança para uma música mais
agressiva marca a introdução de outro tipo de posicionamento político, de luta direta contra
a opressão. Entre o monge que ateou fogo em si mesmo e o professor de literatura que
enfrentou os tanques governamentais, o filme institui uma diferença radical, apesar de
ambos adotarem uma postura contrária à luta armada; o primeiro se aproxima do kamikaze
ao pôr fim à própria força de resposta; já o jovem da Pra da Paz Celestial não parece tão
distante do índio que enfrenta a barreira policial no Brasil.
A música, nesse caso, cria instâncias de aproximação e distanciamento que as
imagens por si não estabelecem. Um nculo tão forte que chega a relativizar alguns
importantes marcos culturais distintivos. As legendas indicam que o professor de literatura
era estudioso de Baudelaire, ou seja, teoricamente ele tivera contato prévio com a produção
intelectual européia e era versado em mais um campo de conhecimento além daqueles
desenvolvidos em seu país de origem. os índios normalmente são identificados como
indiduos altamente ligados a uma tradição cultural geograficamente localizada, oral e
136
familiar (as últimas legendas apresentadas na seqüência,A Cidade e a TV”, fortalecem essa
idéia). No entanto, através da música o Nós que aqui estamos por vós esperamos consegue
minimizar as diferenças, situando tanto o jovem chinês quando o índio numa mesma
categoria, a de ativistas engajados num embate direto contra as forças oponentes.
_________________________
1.10 Seqüência Paranóia
_________________________
Numa superfície cinzenta e rugosa lê-se o número 287 gravado. Não é posvel
identificar se a tomada corresponde a alguma imagem colhida num cemitério como as
demais apresentadas na introdução de cada seqüência. A forma de disposição das legendas,
no entanto, elimina a dúvida: trata-se de fato de um indicador do próximo bloco temático.
-se:
eu, tu, nós, vós, eles
O último pronome (“eles”), no entanto, é apresentado em letras bem maiores e
durante mais tempo que os demais, de forma a dar a impressão de sobrepujá-los.
A música é sombria, composta por notas graves.
Sobre um fundo negro, aparece a fotografia de um bebê na metade esquerda da tela.
Na outra metade surge o seguinte texto verbal:
Indolente,
mal-humorado
e austero
Pouco dinheiro,
poucos amigos,
poucas mulheres.
Nem cigarro, nem bebida.
137
Bigode ralo.
Foto e texto são substitdos pelo rosto de Hitler na tela.
A incongruência promovida pela montagem entre a descrição (obviamente de um
adulto) e a fotografia do bebê, seguidos da representação do chefe de Estado da Alemanha
tem como efeito estabelecer um intenso elo temporal entre as partes. Cada uma delas
exprime um período diferente da vida do ditador: primeiro a de uma criança que em nada
inspira medo; depois como um jovem introspectivo (“pouco dinheiro o pode ser
exatamente aplicado a um líder político bem-sucedido) e depois Hitler tal como ele ficou
conhecido posteriormente. O espectador percebe que se trata de uma abordagem pessoal da
figura histórica, em que importantes traços da personalidade eram esboçados desde antes
da chegada ao poder máximo da nação germânica. A montagem, nesse segmento, aposta na
capacidade do espectador em compreender os saltos e conexões temporais sugeridos.
A representação de Hitler, no entanto, não segue critérios de precisão histórica. A
fotografia é submetida ao efeito de distorção “em ondas”, através do qual porções da
imagem são deslocadas vertical ou horizontalmente em ordem contínua.
Tamm “em ondas” e através de um efeito de semi-transparência, vemos a foto de
Stalin lentamente tomando o lugar da de Hitler.
A imagem desaparece e surgem legendas em tamanho grande, preenchendo todo o
espaço da tela:
para
ia
Em seguida as labas da palavra "paranóia" são repetidas continuamente, em
tamanho menor, porém ainda sobre toda a exteno da tela.
Voltam as imagens distorcidas de Hitler e Stalin, acompanhadas do texto:
... manifestação de desconfiança,
conceito exagerado de si mesmo,
138
e desenvolvimento progressivo
de idéias de reivindicação
perseguição e grandeza.
As figuras de Hitler e Stalin são “cruzadas uma sobre a outra. A de Hitler
esvanesce, permanece a de Stalin
Rude,
provocador
e cínico.
Não era afeito à teoria
A mãe queria que fosse padre
Bigode avantajado.
Por analogia, o espectador compreende que a mesma operação posta em curso
durante a descrição de Hitler pode ser aplicada também à de Stalin. Assim como a
superexposição da palavra paranóia corresponde ao grau de importância que o distúrbio
assume frente a todas as outras características pessoais dos líderes políticos.
Porém o principal efeito aplicado na sequência é mesmo o da distorção proposital
das imagens, na medida em que o artifício de edição digital está francamente sendo utilizado
para traduzir em imagens um dado contido nas legendas. Ao tornar a temática parte da
estrutura formal da obra, o filme torna inseparáveis os programas cognitivo e sensorial. A
informação, neste caso, é tão importante quanto a sensação de inadequação à realidade.
Vários outros rostos são exibidos após o de Stalin, enquanto as legendas compõem
uma lista tenebrosa:
Mao Tsé-Tung
Mussolini
Pol Pot
Franco
139
Salazar
Idi Amin
Ceausescu
Ferdinand Marcos
Pinochet
Reza Pahlevi
Videla
Médici
Mobutu
Enquanto os nomes de ditadores de diversos países se acumulam na tela, começam a
ser ouvidos sons radiofônicos. Várias vozes se misturam e é impossível identificar o(s)
idioma(s) empregados, até que apenas uma das fontes é destacada, um forte e inflamado
discurso em alemão.
Vemos a fotografia de dois homens trajando apenas sungas. Entre eles, surge a
incrustação de um fisiculturista exibindo os músculos peitorais. Os trejeitos da
performance, no contexto de Nós que aqui estamos por vós esperamos, parecem
exagerados e com traços de comicidade.
Eugene Sandow
1864 - 1917
Como na seqüência anterior, aqui os efeitos sonoros têm papel fundamental na
condução da trama. Além da música funesta, o discurso proferido em alemão através do
rádio faz referência direta às táticas de propaganda nazista, envolvendo o espectador numa
atmosfera coercitiva. Mesmo que não seja apresentada qualquer tradução das falas, o filme
aposta na Enciclopédia do leitor para associar o idioma germânico e a inflexão severa dos
líderes militaristas alemães à exaltão desmedida que acarretou as atrocidades cometidas
durante a Segunda Mundial. Uma estratégia muito similar à empregada por Charles Chaplin
em O Grande Ditador, filme de 1940, em que um simples barbeiro é confundido com
Hitler. Pressionado a proferir palavras a uma multidão em expectativa, o impostor cria uma
140
convincente imitação da língua alemã, num tom inflamado muito similar ao do líder do
Terceiro Reich, chegando ao ponto de “envergar” o microfone somente pela força da
entonão de voz. O ditador fictício se contorce, esbraveja e engasga, sem que uma
palavra seja compreendida. O resultado pretendido é o riso, bem diferente do que ocorre em
Nós que aqui estamos por vós esperamos. O artifício, contudo, possui o mesmo alicerce:
utilizar o tom, o timbre, a altura, a clareza e o espaço sonoro para identificar os
personagens e o contexto em que se situam. Nesse segmento específico, os recursos
sonoplásticos criam um sentido de eles versus razão” fundamental para o eixo psicanalítico
adotado em Nós que aqui estamos por vós esperamos.
Ao reunir o idioma alemão, o som radiofônico, o tom dos discursos, as imagens
precedentes de Hitler, das faces distorcidas e dos fisiculturistas (utilizados como símbolos
do homem ideal), a montagem cria uma sensação geral de ameaça e loucura, especialmente
por lançar a idéia da não circunscrição temporal-espacial do distúrbio paranóico. Os
ditadores africanos, asiáticos, latino-americanos, árabes e europeus que se seguem a Hitler
(encabeçados por Stalin) ajudam a desestruturar a crença de que os sonhos de genocídio,
poder e megalomania generalizados eram restritos à Alemanha da década de 40.
Logo em seguida, porém, há mudanças importantes, a música assume novamente um
tom comovente, fortemente marcada por vozes humanas. Vemos soldados carregando
grandes tochas e marchando sob a noite escura. Numa visão aérea, é possível notar que o
movimento das tropas forma figuras conhecidas, entre elas a suástica. Nas legendas:
Fahrenheit 451
Soldados e - pelos trajes - talvez também estudantes atiram livros numa grande
fogueira armada ao ar livre.
autores degenerados
Esta última legenda apresenta um tipo de operação até então não observada no
filme: a utilização do discurso indireto livre. Nessa modalidade de discurso, o narrador
assume diretamente o ponto de vista de um dos personagens (no caso, dos representantes
141
do regime que incineram os livros), sem a presença de verbos de elocução, travessões, dois
pontos ou orões subordinadas substantivas próprias do discurso direto comum.
Necessariamente, estamos lidando com um narrador onisciente, capaz de utilizar uma fala
que seria do personagem, o que não significa que o sentido do texto permaneça inalterável
independente do emissor.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, parece pouco provável que a obra
defenda, de fato, a idéia de que eram degenerados os autores condenados ao ostracismo
pelos líderes nazistas. Até porque que a caracterização desses mesmos chefes de Estado
acabara se dar por meio de distorções visuais que simulavam a paranóia. Logo, é posvel
identificar no discurso indireto livre não uma anuência entre narrador e personagens, mas
um tipo de ironia fina que descortina as justificativas oficiais para a fogueira feita de livros.
O uníssono aparente revela-se uma discordância irremediável.
Enquanto centenas de livros passam de mão em mão até serem lançados às chamas,
jovens circundam a fogueira carregando bandeiras com o mbolo nazista. Por sobre as
imagens das labaredas, surgem quatro incrustações contendo fotografias de autores
célebres, cada um acompanhado por legendas contendo seus respectivos fragmentos
literários:
“Há três tipos de déspota:
O que tiraniza o corpo, o Príncipe.
O que tiraniza a alma, o Papa.
O que tiraniza o corpo e a alma, o Povo.”
Oscar Wilde
1854 - 1900
“Ao despertar pela manhã
após ter tido sonhos agitados
Gregor Samsa encontrou-se
em sua própria cama transformado
142
num gigantesco inseto.
Franz Kafka
1883 - 1924
“O homem já não é o senhor
dentro de sua própria casa”
Sigmund Freud
1856 - 1939
O segredo do demagogo é parecer
tão tolo quanto sua platéia
de maneira que estas pessoas
possam se achar tão espertas
quanto ele.”
Karl Kraus
1874 - 1936
Ao espectador que detém informações sobre a obra de Truffaut, Nós que aqui
estamos por vós esperamos apresenta imagens que desintegram as fronteiras entre um
passado muito próximo e a ficção futurista, aproximando-se de forma assustadora das
situações surreais construídas pela literatura (inclusive a kafkiana), numa homenagem
amarga ao cineasta francês.
À parcela do público que tem como referência apenas o próprio texto de Nós que
aqui estamos por vós esperamos, não soa menos absurda a sistemática obra de demolição
cultural nazista. Ao mostrar as fotografias dos autores e trechos de seus escritos, o filme de
certa forma também transforma os escritores em timas do sistema totalitário alemão. A
montagem reúne imagens e música de maneira a evidenciar o quanto genialidade artística foi
consumida no ato de destruição física do papel. Está ali retratada não a tentativa de
143
apagamento de A Metamorfose, mas de toda e qualquer obra que pudesse servir de espelho
para situação absurda a que o homem comum estava submetido. Um sacricio de ordem
estritamente simbólica, mas que, no filme, soa tão cruel quanto a morte de soldados em
combate.
As imagens de incineração das obras literárias também sofrem a reverberação direta
da incrustação de Eugene Sandow, exibida na mesma seqüência. Juntas, elas funcionam
como indicativo do projeto nazista de dominação como um todo, do ideal humano
apregoado pelo regime político. Isoladamente, elas não têm esse caráter de oposição; o
culto ao corpo e ao conhecimento não são auto-excludentes. Entretanto, a montagem em
Nós que aqui estamos por vós esperamos cria um modelo hermético de preferências e
prioridades associado ao nazismo.
As imagens da fogueira desaparecem e há uma mudança súbita no acompanhamento
musical, agora formado por sons desconexos.
Vemos um jovem soldado nazista pintando uma estrela no vidro de uma loja (a
habitual forma de identificão das propriedades judias na Alemanha durante a Segunda
Guerra Mundial).
Ralf Welfer
1925 - 1979
No instante em que o rapaz completa o último traço para formar a estrela, a imagem
começa a “correr” ao contrário e novamente adiante, sucessivamente. Enquanto isso, as
legendas são apresentadas.
Membro da Juventude Nazista
depois da derrota nazista
foi criar coelhos no Brasil...
Morreu obsessivo e
brigado com os vizinhos
Do ponto de vista meramente técnico, o efeito de reverter continuamente o sentido
144
de exibição da imagem propicia tempo suficiente para que o espectador leia a legenda e
associe-a ao jovem soldado. Porém o ato de repetição também outra conseqüência
importante: a sensação de que o nazista permanece indefinidamente preso à situação de
diferencião entre os indivíduos, como num rculo vicioso. Sem esse articio, é provável
que as razões para a morte solitária no Brasil fossem menos claras. São pequenos recursos
de montagem, como esse, que permitem a fluência narrativa do filme.
Nesse ponto da seqüência é importante atentar também para o tipo de gradação que
Nós que aqui estamos por vós esperamos utiliza na abordagem do fascismo desenvolvido na
Alemanha. Partindo de uma visão global (a paranóia atribuída a ditadores do culo XX) o
filme começa a explorar o problema através dos altos cargos políticos; passa para o
conjunto militar que realiza grandes operações de repressão, como a queima dos livros; até
chegar ao soldado raso, responsável pelas pequenas tarefas discriminatórias. O emprego de
escalas diferenciadas permite à obra escapar de um tipo de caracterização simplória da
Segunda Guerra, que normalmente atribui total responsabilidade pela tragédia mundial a
Hitler, sem mencionar o papel da sociedade alemã na política anti-semita do regime nazista.
Os milhares de civis que aplaudiam e votaram em Hitler costumam desaparecer de
boa parte dos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. O historiador Eric Hobsbawm, autor
de A era dos extremos, no entanto, é enfático ao afirmar que uma tentativa de golpe contra
o chefe de Estado, deflagrada em 1944 sob o comando militares de alta patente, foi
sufocada por não obter apoio popular, sendo seus líderes mortos em massa pelos legalistas
de Hitler (HOBSBAWM, 1995, p. 49).
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, os pequenos e médios colaboradores
do nazismo têm lugar na narrativa.
Finalizando o bloco, vemos um prédio imponente exibindo na fachada uma enorme
suástica. O símbolo é destruído e ouve-se uma sirene. Não é possível, contudo, identificar a
causa da explosão, o que cria no espectador a impressão de que o nazismo implodiu a si
mesmo.
_______________________
1.11 Seqüência 4 Pernas
145
_______________________
Por sobre as imagens de sepulturas, surgem pausada e distintamente os números:
1
2
3
4 Pernas
Cada um deles é exibido através de efeitos de fade-in e fade-out, devidamente
acompanhados por uma nota musical diferente. Ao reunir esses artifícios, a montagem
imprime suavidade à exibição das legendas, como se elas fossem apenas leves passos sobre
a tela. O tipo de fundo musical empregado assemelha-se ao padrão hollywoodiano clássico,
desenvolvido nas décadas de 30 e 40, em que havia predomínio do estilo sinfônico
descritivo, normalmente redundante em relação à imagem, utilizado para intensificar o teor
dramático de cada cena. Acompanhamentos dessa natureza fazem referência aos grandes
musicais produzidos na chamada Era de Ouro de Hollywood, reunindo números de dança e
às vezes canto, em seqüências criadas exclusivamente para exibição dos dotes artísticos das
estrelas da época. Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, eles funcionam como uma
introdução tanto ao tema quanto ao estilo da seqüência.
As mesmas quatro notas são repetidas, agora, contudo, com a presença também de
instrumentos de percussão, dando início a um samba.
Simultaneamente, surgem imagens de um homem atento, “captando o ritmo da
música. Logo depois ele icio a alguns passos de dança. A percussão faz uma ligeira
pausa, justamente quando o dançarino também interrompe os movimentos. É possível notar
que não há sincronia exata entre a melodia e os passos. Os trajes e estilo de dança também
não são coerentes com o samba, mas com os de um musical.
A batucada retorna e inicia-se a intercalação dos planos do dançarino com imagens
de um jogador de futebol em campo. Posteriormente, no final do bloco, ambos são
146
identificados através de legendas:
Fred Astaire, 1899 - 1987
Mané Guarrincha, 1933 - 1983
Via intercalão de planos, a montagem constrói um paralelo poético entre duas
atividades aparentemente díspares e sem grandes laços de comunhão. Um cabide para
casacos e chapéus, um cavalete improvisado e os adversários do jogador de futebol
tornam-se os coadjuvantes de um balé inusitado, porém extremamente eficiente em termos
de adequação rítmica entre imagens e música.
Para compreender como é posvel a construção da seqüência um dos grandes
momentos do filmeé preciso atentar para o tipo de informação específica contida em cada
plano e notar os tipos de interseções entre elas.
Primeiramente, é notável o agrupamento das imagens segundo as semelhanças entre
os movimentos no interior dos planos, os movimentos de câmera, o comprimento das
tomadas e os ângulos de filmagem escolhidos. Se Astaire realiza um círculo completo em
torno do cabide, o plano imediatamente posterior apresenta Garrincha efetuando um tipo de
drible similar ao giro do dançarino. Instantes de interrupção súbita na dança correspondem a
paradas do jogador no campo, de maneira a confundir o oponente.
Esse tipo de correlação ocorre também em casos de encadeamento de reações usuais
provocadas pelos lances ou passos. Quando Garrincha dribla o último adversário e
encontra-se bem perto do gol, o plano de Astaire balando-se no cavalete sugere
comemoração, de tal forma que a paridade constrda pela montagem simula uma interação
pessoal entre a dupla, não apenas profissional (o que se converte em estratégia importante
para o programa sentimental do filme).
Mesmo quando as imagens não possuem por si ponto em comum, a montagem
constrói semelhanças plausíveis. No momento de apresentação das legendas de Garrincha,
por exemplo, é exibida uma belíssima fotografia do atleta jogando-se contra a rede do gol
como se o próprio jogador fosse a bola e a consumação final do espetáculo em campo. No
147
caso de Astaire, contudo, a imagem em movimento poderia quebrar a similaridade com a
forma de apresentação de Garrincha. A solução de montagem encontrada foi congelar um
dos planos do dançarino, simulando um efeito fotográfico e possibilitando a equiparação
entre os dois protagonistas da seqüência.
Há dois principais efeitos gerados pela criação de paralelos contínuos entre os
planos na seqüência. O primeiro é a reiteração de uma crença bastante difundida no Brasil
de que este é um território do “futebol-arte”. Para isso, nada melhor do que estabelecer
linhas comparativas entre a dança e prática esportiva, nutrindo-se da credibilidade de um
artista mundialmente reconhecido (Astaire). O emprego do samba como fio condutor entre
ambos, também é extremamente importante na vinculação do futebol com a idéia de
brasilidade”, funcionando como instrumento de diferenciação e exaltação dos talentos
nacionais.
Em segundo lugar, a montagem promove a identificação não apenas entre os dois
protagonistas da seqüência, mas também entre os demais agentes enquadrados pela câmera,
que são automaticamente equiparados. O controle demonstrado por Astaire sobre o cabide
parece exatamente o mesmo de Garrincha sobre seus oponentes. Os jogadores parecem
mobilizados exclusivamente ao bel prazer do craque, um mecanismo decorrente do estilo de
montagem de Nós que aqui estamos por vós esperamos a que normalmente os atletas não
estariam sujeitos numa exibição normal da partida.
Esses três efeitos, contudo, estão intrinsecamente ligados ao aproveitamento do
potencial das informações “intra-planos”. Eles oferecem pistas, mas não explicam de todo a
adequação das imagens ao ritmo imposto pela música.
Mesmo que o samba tenha sido criado para a seqüência e programadamente
acompanhe as hesitações dos passos de dança e dribles, a montagem precisa, de alguma
forma, atuar na direção contrária, adaptando também a exibição dos planos ao samba. E ela
faz isso através da manipulação do comprimento das trilhas de imagens na edição digital.
Salvo pela primeira tomada, que exibe Astaire se “preparado” para a dança, a
seqüência “4 Pernas” não exige uma ordemgida de exibição das imagens. Logo, foi
possível determinar que planos com maior quantidade de informação visual (e por isso mais
longos) fossem encaixados exatamente em períodos mais lentos do samba, de maneira a
148
permitir que o público absorva facilmente os dados disponíveis. imagens repetidas, que
exigiam menos atenção do público, ou apreensão de pouca informação inédita, puderam ser
inseridas nos instantes de aceleração da música. Do contrário, além de causar monotonia, a
falta de diversidade temporal iria enfraquecer o impacto da seqüência e comprometer a
sincronia com a música.
A variação vale não para o tempo dos planos, mas também pela angulação de
câmera. Observamos que uso de panorâmicas, tilts e zooms o igualmente importantes na
dinâmica tmica da seqüência, funcionando seja como contrapontos, seja como
potencializadores de recursos percussivos.
_________________________
1.12 Seqüência Viagem à Lua
_________________________
A seqüência se inicia com uma figura estranha. Não é possível identificar
exatamente o que a imagem representa: se um caminho tortuoso ou uma escultura em
formato de coelho captada numa angulação pouco usual. As legendas tampouco ajudam a
decifrar a figura:
Viagem através da Lua
Vemos uma imagem congelada (e colorida) de um homem já idoso. A sica que
acompanha a seqüência lembra muito às tocadas por coretos de pra, com forte presença
de tubas.
Sintonize,
se ligue,
caia fora!
149
Timothy Leary
1922 - 1997
As imagens agora o em preto e branco, bem antigas. Elas mostram mulheres
trajando roupas parecidas com trajes de banho e cartolas. Sob o comando de um homem
portando uma espada, elas empurram uma espécie de foguete para o interior de um grande
tubo e depois acenam felizes com seus chapéus. O clima é burlesco.
Conforme o último desejo
de Timothy, suas cinzas
foram lançadas no espaço
Agora vemos o tubo sob outro ângulo. Trata-se obviamente de uma pintura,
simulando uma estrutura enorme e apontada em direção ao u (também um cenário
artificial). As mulheres de maiô seguram bandeiras e esperam. Sob as ordens do mesmo
comandante portando a espada, um homem acende um pavio e dispara o foguete, de
maneira muito similar ao acionamento de um canhão. Outras pessoas, formalmente trajadas,
aparecem em cena, comemorando o sucesso lançamento.
Lucy in the sky with diamonds
Tendo como fundo um céu artificial, a Lua parece “aproximar-se” na tela, em
dirão ao blico. Vemos que o satélite natural da Terra trata-se, na verdade, um homem
maquiado de branco e com uma scara ao redor da cabeça, simulando o formato e as
crateras lunares.
Para surpresa de Timothy...
Há um corte seco e a “Lua” é mostrada com um projétil preso a um dos olhos.
150
... na Lua ocorria um curioso encontro
Um cenário “lunar” é exibido e o foguete aterrissa em solo extra-planetário.
Surgem diversas incrustações, simultaneamente, sobre a falsa lua. Nelas, vemos
Timothy Leary, Mahatma Gandhi, Che Guevara, Martin Luther King e John Lennon. Todos
aparecem falando ou cantando.
A mesma Lua” composta por uma face maquiada vai se distanciando da tela.
... discutindo assuntos terrestres.
Fade-out.
Sem dúvida, de todo filme, esta é a seqüência que mais exige conhecimentos
espeficos do espectador sobre um único assunto, no caso, o envolvimento de Leary com o
LSD.
No entanto, o tipo de abordagem adotada pelo filme sobre a onda psicolica acaba
por englobar uma gama de assuntos e personalidades bem maior que a estritamente
vinculada às drogas e aos anos 60.
Ao reunir Gandhi, Guevara, Luther King e Lennon num mesmo ambiente” através
das incrustações, a montagem permite que o espectador desavisado sobre Leary utilize
referências paralelas para minimamente situá-lo num contexto razoável. A despeito da
diversidade de países e tarefas a que se dedicaram, o que todos esses famosos possuem em
comum? Forte poder de mobilização pública, visibilidade midiática, representação de
minorias oprimidas, importância na vida política e posicionamento frontalmente divergente
do poder estabelecido.
A montagem, assim, dribla o possível o conhecimento prévio e específico sobre
Leary, apelando para outras fontes de informação na Enciclopédia do espectador, sem
responder diretamente, mas fornecendo importantes pistas para reconhecermos, ou melhor,
construirmos Leary como um personagem potencialmente rebelde e impactante.
Para o espectador que conhece o trabalho do psicólogo americano, a montagem
reserva também uma surpresa: a vinculação intnseca das experiências de expansão da
151
consciência com movimentos civis organizados de teor político. A loucura” psicodélica
perde seu caráter de alienação e é inserida num contexto mais amplo de luta pela liberdade
de expressão e pensamento. Mesmo o pacifista Gandhi e o adepto da revolução armada
Guevara aparecem reunidos a Leary numa esfera aparentemente fora da realidade, porém
discutindo temas essenciais ao período histórico em que viveram. Mais do que uma simples
menção às drogas e às comunidades alternativas, Nós que aqui estamos por vós esperamos
apresenta aqui um contraponto às dezenas de personagens exibidas durante a obra que
pareceram atropeladas pela história do século XX, sem vislumbrar qualquer possibilidade de
mudança.
A diferenciação no tratamento destinado aos personagens, a grande utilização de
cenas de um mesmo filme, a atmosfera lúdica e sobretudo o tom otimista da seqüência,
transformam “Viagem a Lua” no momento de maior exceção de toda a obra. Um segmento
que oferece um rico conjunto de referências, sobretudo ao Programa Sentimental, conforme
veremos no Capítulo III.
_____________________
1.13 Seência Elas
_____________________
Em movimento zoom-in, a câmera aproxima-se de uma foto disposta numa lápide de
cemitério. Não é possível identificar o gênero da pessoa retratada. Com a aproximação
progressiva, contudo, vê-se um nome - Mafalda - e detalhes do rosto de uma mulher jovem.
Na legenda:
Elas
Depois surge uma imagem inusitada, uma mulher deposita um quido escuro em
cinco diferentes copos. A grande proximidade da câmera em relação aos recipientes e a
angulão escolhida (de baixo para cima) faz com que os corpos tenham um tamanho
desproporcional ao da mulher; comparados à moça, eles parecem enormes. Em cada deles,
surge a imagem de uma mulher. Elas dançam.
152
A personagem principal até então (a que preencheu os corpos) toca ligeiramente o
conteúdo de cada um deles, fazendo gestos de maestro no comando de uma orquestra.
Surge uma incrustão, porém bem diferente daquelas que o filme vinha exibindo.
Além do movimento interno dos planos exibidos, a incrustação também se desloca. A
pequena nuvem” de inserts parte de um dos copos até alcançar a porção central da tela. A
incrustação expande-se, ampliando sua área de exibição até que a imagem de fundo (com os
corpos e a mulher que os enchera) fique semelhante a uma moldura.
A primeira incrustação dessa seqüência mostra a fotografia de uma jovem em trajes
de banho típicos do icio do século XX. Um policial utiliza uma fita métrica para
determinar a quantidade de pele que a roupa deixa à mostra.
Atlantic City, 1901
Doris White
1885 - 1947
Abusou na ousadia do maiô
Incrustação é novamente reduzida até retornar ao “copo de onde surgiu e
desaparece. A partir daqui, todas as incrustações do bloco seguem o mesmo padrão:
saltam” e “retornam” a seu respectivo “copo” de origem.
Incrustação 2: Duas mulheres fumam. Ambas fazem poses confiantes, porém uma
delas começa a tossir e sente-se mal.
Sandra Michel
1878 - 1939
Fumando seu primeiro cigarro
As imagens voltam ao “copo”.
153
Incrustação 3: Uma mulher afixa um cartaz sobre o voto feminino numa árvore.
Dois meninos observam. A mulher sai e os garotos arrancam o cartaz da árvore. Um deles
finge pedir uma informação a um senhor que está passando por ali, enquanto o outro
aproveita para pregar o cartaz nas costas do homem. O senhor parte e os meninos riem.
Vemos imagens de uma série de passeatas compostas exclusivamente por mulheres.
Segundo as legendas:
Nos anos 20, as sufragetes
conquistam direito ao voto
Continuam as cenas de manifestações públicas, com vários planos de detalhe de
rostos femininos. Surge a fotografia de uma mulher sendo detida por policiais.
“Todo homem com direito a voto
é considerado inimigo,
a não ser que tenha sido ativamente
educado para ser amigo”
Emmeline Panknurst
1872 - 1927
Incrustação 4: Num ambiente íntimo, entre lençóis, um casal se beija. Enquanto o
homem está distraído, a mulher pega um lenço escondido e coma a asfixiá-lo.
Estrangulou
o marido e foi
ao cinema
Surge na tela a palavra Cinématographe, em néon. Numa sala de exibição, o público
acomoda-se para assistir a um filme. Num plano de detalhe, vemos pés calçados em sapatos
femininos acariciando pés em sapatos masculinos na fileira de trás.
154
Lílian Parker
1870 - 1929
A imagens “voltamao copo.
Incrustação 5: Close-up do rosto de uma bela e jovem mulher negra. Depois, numa
imagem mais ampla, vemos a mesma moça imersa numa banheira. Ela está cercada de
espuma, mas é possível distinguir seus seios à mostra.
Josephine Baker
1906 - 1957
Olhando diretamente para a câmera, Josephine apresenta uma dança exótica. Ela
aparece nua da cintura para cima, enfeitada com penas, fazendo-se de estrábica e exibindo
trejeitos imitando pássaros e macacos.
Incrustação 6: Vemos apenas uma silhueta feminina dançando. A roupa que
recobre a figura muda de cor.
Em seguida, uma mulher completa a maquiagem, contemplando-se no espelho.
“E se eu te amasse na quarta,
não te amarei na quinta.
Isso pode ser verdadeiro
Por que você reclama?
Te amei na quarta sim, e daí?
Surge a fotografia de um rosto feminino
Edna Vincent Millay
155
Poet 1892 - 1948
O filme exibe diversas cenas de mulheres dançando, tanto sozinhas quanto
acompanhadas. O ritmo é frenético e os movimentos são amplos. Uma jovem fuma, com
grande desenvoltura.
“Minha vela
Queima dos dois lados.
Mulheres continuam dançando. Num dos planos, uma moça sobe em uma das mesas,
rodeada por vários homens e outras senhoras.
Não durará a noite toda.
Mas oh! Meus amigos,
ah! Meus inimigos
É de uma luz maravilhosa!”
Mais dança, orquestras, bailes e imagens de discos de vinil.
40 anos depois
Casais dançam um rock. Close-up de uma mulher cantando (aqui, ouve-se inclusive
sua voz) e a incrustação retorna ao copo de onde partiu.
Incrustação 7: Uma mulher despe um casaco e apresenta um vestido, modelo típico
da década de 20. Ela faz pose e aparenta ser uma modelo.
Mulheres andam nas ruas, com diferentes trajes e chapéus. Penteados elaborados
completam o visual.
É exibida uma foto de uma senhora elegantemente vestida, sobre um divã.
156
Cocô Chanel
1883 - 1971
Incrustação 8: Cartaz de uma mulher, mostrando punho cerrado, trajando camisa
masculina com as mangas enroladas até os cotovelos e exibindo os músculos do braço, com
os seguintes dizeres: “We can do it!”.
Mulheres trabalham em diferentes bricas. Pelo tipo físico e vestimentas das
operárias, é posvel notar que as filmagens foram realizadas em vários países. Até mulheres
impecavelmente vestidas em quimonos foram registradas pelas câmeras. As legendas
informam:
Moças na indústria bélica
Francesas
Alemãs
Russas
Inglesas
Japonesas
Americanas
Moças consertam aviões.
Mais americanas
Mulheres aparecem vestidas em uniformes militares e batendo continência.
E quando acaba a guerra
Vemos cenas domésticas: mulheres cuidando da casa, cozinhando, dando banho em
crianças, servindo o jantar. A peculiaridade deste segmento é a reunião de imagens
claramente de diversas origens e datas de filmagem. Jovens negras, brancas, orientais são
mostradas em seqüência. A qualidade das tomadas não deixa dúvida de que os planos foram
157
captados em décadas distintas. As legendas ajudam a articular e unificar o conjunto:
A cozinha
A casa
Os filhos
As roupas
O marido
Uma mulher completamente desanimada senta na borda de uma cama.
E a depressão
As imagens “voltam” ao copo.
Incrustação 9: Cenas de bebês dormindo placidamente, seguidos da fotografia de
uma mulher.
Em 1916, Margareth
Sanger abriu a
primeira clínica
de controle
de natalidade
Vemos outras fotos de mulheres, cada qual carregando um bebê.
Acusada de obscenidade,
Margareth foi presa
Uma fotografia exibe Margareth sendo levada por policiais.
158
Margareth Sanger
1883 - 1966
Incrustação 10: É possível ver uma tesoura cortando as saias que diversas moças
estão usando.
Anos 60
Mulheres dançam de shorts e mini-saias, exibindo as pernas.
Algumas criaram a mini-saia
Vemos cenas de mulheres atirando objetos numa grande lata de lixo e dando
depoimentos para uma equipe de TV.
Outras queimaram os sutiãs
Incrustação 11: Pessoas nuas correm em meio à vegetação. A imagem é congelada.
Woodstock, 1969
A incrustação “volta” ao copo
A moldura” formada pela mulher e os corpos de onde partiam as incrustações
lentamente desaparece. Em seu lugar, vemos cenas de duas mulheres numa praia. Uma
delas, sorridente e graciosa, pisca para a câmera. A imagem congela-se.
Fade-out.
Mesmo sendo extensa, a seqüência “Elas” possui um tipo de estruturação interna
que facilita a leitura do bloco. A utilização das imagens contendo uma mulher em tamanho
grande (devido à angulação), orquestrando” as demais no interior de cada copo tem um
papel fundamental para assegurar a unidade e o fluxo de materiais spares. Apesar de a
159
seqüência exibir mais de uma vertente do tema principal, o fato de todas as incrustações
terem uma origem comum (os copos) e a onipresença da imagem de fundo permitem que o
espectador não perca o fio da meada, algo que passível de ocorrer em seqüências como
Marta-Pablito, onde o tema trabalho” pode não parecer tão óbvio como fio-condutor.
Mas a moldura” só é de fato eficaz por ter sido previamente apresentada ao
espectador por tempo suficiente para apreensão do seu sentido, pela a regularidade de seu
conteúdo, pela neutralidade do plano e uma forte identificão cromática, que permite com
que ela não seja confundida com as incrustões. A montagem, nesse caso, investe na
simultaneidade da exibição de imagens (moldura e incrustações), porém mesclando
materiais que não deixem dúvida quanto a seu posicionamento hierárquico: enquanto as
incrustações ocupam o centro da tela, elas passam a ter supremacia sobre o pano de fundo;
porém, após seu “retorno ao copo”, graças à apresentação ininterrupta da moldura, esta
última voltar a reinar como grande sistematizadora do bloco.
Outra articulação importante desenvolvida pela montagem foi a utilização de
referências corporais para discutir a evolução da mulher no século XX. As novas formas de
exibição do corpo, através da moda, partem dos modelos criados por Channel (cada vez
mais distantes do espartilho) até chegar à minissaia e à nudez total em Woodstock. Entre
esses extremos, o filme mobiliza uma ampla gama de representões vinculadas à
corporalidade. A dança liberta o corpo dos gestos contidos. A identificação do progresso
feminino é clara através das silhuetas em mutação. Institui-se o controle sobre as funções
reprodutivas. descoberta da sexualidade para além dos laços matrimoniais (estrangulou
o marido, foi ao cinema e lá se encontrou com outro). A força sica feminina é ressaltada
pelos cartazes de guerra. Enfim, o corpo deixa de ser símbolo de fragilidade para se
transformar em instrumento da revolução social, segundo a ótica do filme.
A montagem também insere na seqüência uma espécie de “complemento às
transformações identificadas com o corpo feminino através da inclusão do reconhecimento
da capacidade intelectual da mulher e sua autonomia em relação ao parceiro. As sufraguetes
estendem os direitos da mulher ao poder decisório político, enquanto poetisas do quilate de
Edna Vincent Millay defendem a independência emocional da mulher, derrubando os mitos
relacionados ao amor e dedicação eterna ao marido. Isoladamente, as cenas apresentadas
têm um sentido restrito a aquele que imediatamente exibem. Reunidas, formam um conjunto
160
corpo-mente-coração possível excluvisamente pelas operações de montagem.
Outro aspecto importante a ser considerado na seqüência são as formas de
construção das relações temporais. Numa escala crescente de complexidade, vejamos como
elas podem ser identificadas.
a) Progressiva: a mais simples das operações temporais presentes na seqüência Elas” diz
respeito à gradação de tendências. Mesmo sem informar datas de modo detalhado nas
legendas, é posvel que o espectador estabeleça uma idéia mínima de passagem do tempo
através da evolução contínua dos comportamentos sociais apresentados. Por exemplo, a
dispensa do espartilho, a diminuição dos vestidos, a queima dos sutiãs e o nudismo seguem
uma escala crescente que só é posvel com intervalo de algumas décadas. Também a
exibição de uma moça inexperiente acendendo seu primeiro cigarro e outra, alguns planos
depois, fumando com desenvoltura, abre caminhos para que o espectador complete as
lacunas e perceba que um certo período se passou até que o bito de fumar se tornasse
comum entre as mulheres. O conjunto de imagens reduz a necessidade de legendas
informativas sobre as épocas representadas.
b) Conectiva: outra maneira de permitir transições temporais é através de vínculos de
similaridade. No bloco “Elas”, as imagens de dança foram extremamente úteis nesse
sentido: o Charleston da década de 20, quando exibido próximo ao iê-iê-iê dos anos 60
estabelece paralelos que permitem ao blico comparar as duas épocas. No caso, ambos
foram períodos em que a população jovem representava uma fatia demográfica considerável
(pela melhoria das condições de saúde no icio do século e o baby boom após a Segunda
Guerra Mundial), o que gerou importantes transformações culturais, no filme representadas
pela dança.
c) Ensaística: a mais complexa operação temporal observada na seqüência pode ser
percebida no segmento que retrata o retorno da mulher ao lar, após uma experiência de
ingresso no mercado de trabalho, em substituição aos maridos, durante a Segunda Guerra
Mundial. As mulheres aparecem em situações domésticas, cuidando da casa, dos
companheiros e dos filhos. No entanto, imagens do icio do século, ainda de qualidade
161
precária, são exibidas com outras de cadas posteriores. Mas, ora, a trama aqui retrata
acontecimentos pós-45! O filme rompe com o sentido cronológico linear e o espectador é
obrigado a reequilibrar-se em outro nível, o conceitual.
Poderíamos dizer que a seqüência está lidando com a mulher pós-guerra genérica,
mas não apenas isso: também com a mulher que herdou todo um passado de
comprometimento com o lar das suas predecessoras, sendo nesse caso a figura feminina dos
anos 10 e dos anos 20 e dos anos 30... Essa ótica permite não apenas compreender a
depressão provocada pelo retorno às atividades domésticas, mas também a dificuldade no
enfrentamento de uma tradição muito arraigada. Passado e presente (aqui, a segunda
metade década de 40) coexistem em conflito no filme.
Com relão às delimitões espaciais observadas na seqüência, podemos afirmar
que Nós que aqui estamos por vós esperamos praticamente extinguiu-as, ao tornar por
demais amplo o território onde a evolução feminina tomou lugar. No filme, o é discutida
a variação nas condições sócio-econômicas conquistadas pela parcela feminina da
população em diferentes países.
_______________________________
1.14 Seqüência Luz, Rádio e Aspirina
_______________________________
Por sobre a imagem de sepulturas, surgem as legendas:
A Luz Elétrica, o Rádio e a Aspirina
Uma panorâmica exibe Paris no início do século. A música ao fundo assemelha-se às
batidas de um relógio.
162
1900, faltam poucos dias
para a inauguração da
“Exposição Universal de Paris
Vemos um desenho de uma enorme estrutura metálica em forma de estrela.
Operários trabalham na finalização da obra. Na base da construção, um homem observa
atentamente a colocação das peças.
Henry Bean, 1865 - 1916
Profissão: Engenheiro Elétrico Preocupado
Tem apenas 24 h para ligar 5.700 lâmpadas...
... do Palácio da Eletricidade
Surge a fotografia de um prédio todo iluminado à noite.
Em seguida, num zoom-out, vemos o olhar desesperançado de um homem negro. A
partir do movimento de câmera é posvel verificar que ele está sendo amarrado a uma
cadeira elétrica.
1900, em algum ponto da América
Paul Norman
1882 - 1900
Não tinha luz elétrica em casa
Vemos imagens de uma lâmpada.
Casa de um camponês na Rússia
Um homem acompanha com o olhar o movimento de uma lâmpada acesa
163
balançando no ar. Ele sorri.
Yuri Gagarin, o Pai
Conheceu a luz elétrica em 1931
Depois, são exibidas filmagens precárias de um astronauta, provavelmente captadas
no interior de um foguete.
Yuri Gagarin, o Filho
1934 - 1968
Conheceu o espaço em 1961
O astronauta lentamente desaparece e, em seu lugar, vemos mãos sintonizando um
aparelho de rádio antigo. Também é posvel ouvir sons provenientes do equipamento.
Aparecem grupos de pessoas reunidas em torno do rádio: em casa, na praia, no trabalho, na
oficina mecânica e o aparelho é disposto até num carrinho de bebê. Todos estão bastante
atentos à transmissão. Ouve-se a voz tenebrosa de um homem através do rádio, seguida de
um riso macabro:
- “Who knows what evil lurks in the heart of men? Shadow knows…”
Um grupo de soldados está reunido em torno de um pequeno rádio de pilha.
Um radinho no Vietnã
O Secretário de Defesa anunciou
a partida das seguintes unidades:
No decorrer da exibição das legendas, a montagem apresenta uma sucessão de
164
planos detalhe mostrando os rostos ansiosos dos soldados.
Fuzileiros da Brigada Aérea...
34ª Tropa de Fuzileiros ...
... e ainda...
a 3ª Brigada da 82ª Tropa ...
Os soldados pulam e gritam de alegria diante da notícia. Eles se abraçam. Vemos em
detalhe um dos homens comemorando, a imagem é congelada.
Bill volta para a América...
Um grande pano branco é puxado de cima de um prédio, como numa inauguração.
Embaixo do tecido, há uma loja McDonald’s.
... foi vender Big Macs & Fritas
Em um plano bem aproximado do objeto, vemos uma carne de hambúrguer sendo
depositada sobre o pão.
Bill Popper, 1943-1997
O hambúrguer desaparece.
Em seguida, um homem mostra com orgulho um carro e abre a porta do veículo,
num convite” para que câmera filme o interior do automóvel. Nas legendas:
Bens adquiridos
165
Um casal aparece assistindo à televisão. Também com amplos gestos de cicerone,
uma mulher mostra um ambiente interno de uma casa.
A Casa Própria
A TV
O carro
A moça dobra um disco de vinil até que as duas extremidades se unam, mas o objeto
permanece intacto, aparentemente inquebrável. Alguém gira um pequeno botão.
17 Eletrodomésticos
Vemos imagens diversas de equipamentos de serviço doméstico: uma torradeira,
uma enceradeira operada por uma garotinha, uma máquina de lavar roupas, uma geladeira.
Uma mulher aciona um dispositivo que exe um pequeno armário escondido sobre o
fogão. Vê-se as legendas:
Um vício: A Aspirina
Aparece na tela uma animação (provavelmente oriunda de uma antiga propaganda
televisiva). Nela vemos o interior” de uma cabeça humana preenchida por molas e trovões.
A palavra “Aspirin” surge no canto do vídeo e emite raios que diminuem o pretenso
funcionamento turbulento do cérebro. Aparecem também as palavras: “Add Buffering”.
Logo depois surge uma tela de TV “fora do ar” e duas pequenas incrustações. Na
primeira, há um homem bem magro, de chapéu de couro tipicamente nordestino e olhar
arregalado. Na segunda, o rosto e os ombros de uma mulher obesa. Também aparecem
legendas:
Pouca TV
166
Muita TV
Em movimento zoom-in vemos a foto de um grupo enorme de pessoas em torno de
um aparelho de TV. Entre elas, está o sertanejo de olhar admirado que vimos há pouco na
incrustação. Com o movimento de aproximação, a câmera fixa-se nele.
Brasil, 1993
Lucelino Silva
1910 - 1998
Quando conheceu a TV, ela já era colorida
Em sentido oposto (zoom-out), é apresenta a foto de uma mulher muito acima do
peso normal, deitada sobre um colchão.
Joselina da Silva
1959 - 1996
Nunca perdia a sessão da tarde
Fade-out.
Apesar do tema central da seqüência girar em torno dos excessos e carências na
distribuição dos benefícios tecnológicos produzidos no século XX, não se pode dizer que o
clima geral do bloco seja de amargura ou melancolia. O fato de a montagem acrescentar
uma música similar às batidas de um relógio sugere expectativa e não tristeza. Tamm a
escolha de planos exibindo personagens serenos ou em momentos de felicidade (salvo pelo
homem executado na cadeira elétrica) auxilia no balanceamento geral dos estímulos,
conduzindo o espectador a um vel de baixo engajamento emocional com a trama, o que
permite ao leitor analisar menos passionalmente os progressos e retrocessos do século XX
neste segmento.
As legendas possuem um papel decisivo na contextualização temporal da seqüência,
ao estabelecerem parâmetros de comparação muito próximos. Nem um ano se passou entre
a inauguração do Palácio da Eletricidade e o primeiro uso da cadeira elétrica. No espaço de
167
apenas uma geração, a Rússia deu salto tecnológico sem precedentes, que partiu da maior
acessibilidade à infra-estrutura básica (luz elétrica) à conquista espacial. Nesse aspecto,
cortes, fusões, acelerações de imagem ou outros efeitos que poderiam expressar a idéia de
velocidade são relegados a segundo plano, em franco favorecimento ao texto verbal escrito.
Os recursos visuais, no entanto, são muito importantes na construção de um
clima” de perfeito lar americano, através de uma seleção de planos muito parecidos com os
observados em comerciais ou antigas séries televisivas. A dona de casa vaidosa dos novos
utensílios, o feliz comprador de um carro e os gestos de apresentação à câmera o deixam
dúvidas sobre a tentativa do filme em reconstituir a impressão de progresso após a Segunda
Guerra Mundial nos EUA e crença no american-way-of-life”, o que é possível pelo fato
de o filme incorporar algumas convenções típicas da propaganda televisiva: a aparência de
felicidade constante dos personagens em função do consumo, a comunicação gestual
indicativa de orgulho, o apelo direto ao espectador através do olhar dos atores voltado para
a câmera (que o público vivencia como um olhar direcionado a si).
Entretanto, a inserção da aspirina neste contexto (também parecendo retirada de
uma propaganda) funciona como elemento de crítica ácida às cenas precedentes, levantando
dúvidas quanto à natureza do real vício americano. O senso de ironia permeia todo o bloco,
culminando num jogo de comparações entre a mulher obesa e homem espantado, o que
permite à montagem resumir toda a seqüência em pares de opostos: familiaridade com a
tecnologia / novas formas de exclusão originadas no século XX; número restrito de grandes
beneficiados / enorme maioria composta por marginalizados; excesso absurdo / escassez
absoluta. O grande trunfo da montagem no bloco é o de conseguir demonstrar as perdas
geradas em ambas as partes da equação, utilizando o redio para a dor de cabeça
(ocasionada pelo consumo) e a obesidade como elementos tão importantes quando os da
carência generalizada.
________________________
1.15 Seqüência Domingos
________________________
168
4 Domingos
Esta legenda inicia a penúltima seqüência de Nós que aqui estamos por vós
esperamos, exibida sobre imagens de um cemitério.
Surge uma fotografia incomum, apresentada através do efeito que simula a transição
entre a ausência completa de foco até a nitidez normal do plano. Na foto, vemos um homem
jogando xadrez com um mulher nua e com um capuz sobre a cabeça. Aparecem a legendas:
I
1963
Entre os dois jogadores, no lugar da mesa com o tabuleiro, é inserida a incrustação
de uma mulher nua, subindo degraus de uma escada.
Marcel Duchamp
1887 - 1968
Sobre um fundo negro, lê-se:
II
É exibida uma série de planos de uma mesma pintura, partindo dos mais
aproximados até os que exem a obra completa. A montagem aqui realiza uma espécie de
zoom-out artificial, sem movimentos de câmera, apenas através da utilização de cortes
simples em progressão contínua de enquadramento da imagem. A pintura retrata um homem
negro e uma mulher branca, nus, um frente ao outro. As legendas informam:
Edvard Munch
1863 – 1944
169
Novamente há a utilização do fundo negro para inserção da legenda:
III
Uma nova pintura começa a ser mostrada, inicialmente sem nitidez, mas
gradualmente adquirindo foco até ficar claro o tema retratado: uma mulher, sentada sobre
uma cama, num quarto parcialmente desarrumado, lendo um livro.
1931
Edward Hopper
1822 - 1967
Um novo segmento da seqüência é apresentado:
IV
Um simples travesseiro ocupa a tela. Como aconteceu com o quadro de Munch, um
conjunto de cortes secos consecutivos substitui o movimento de câmera, porém agora no
sentido de aproximação do objeto.
1992
Um close-up revela uma palavra escrita no canto superior esquerdo do travesseiro,
como uma espécie de assinatura” do autor da obra: “Ninguém”. Nas legendas:
José Leonilson
1957 - 1993
Fade-out
A primeira particularidade da seqüência é a legenda inicial que, ao contrário das
demais, tira o foco de personagens ou de eventos bastante específicos do século XX, o que
170
não significa, contudo, uma mudança essencial nos rumos da obra em sua busca pela
representação do homem comum.
Tradicionalmente, o domingo não é um período dedicado ao emprego formal. É um
direito conquistado pelos trabalhadores de diversos países entre o final do século XIX e
icio do século XX, com a respectiva redução da carga-horária semanal, adquirida após
vários anos de luta. Em tese, são 24 horas totalmente destinadas ao livre dispor do
trabalhador, seja para o descanso, lazer ou simplesmente ócio. No espectador surge a
expectativa de preenchimento temporal de plena escolha do indiduo. Pelo menos uma vez
a cada sete dias o homem comum pode desacelerar o ritmo frenético de trabalho e decidir o
teor de suas atividades. Personagens históricos conhecidos e anônimos compartilham a
mesma condição no espaço privado do descanso. Daí a grande amplitude temática e estética
possibilitada pela simples legenda.
o emprego do numeral funciona como indicador para diferentes tipos de
abordagem sobre o mesmo assunto, o que nem sempre acontece em outros segmentos do
filme, quando há a mistura de temáticas diversas. Esse é um aviso importante, porque
conduz o espectador imediatamente ao exercício de comparação direta entre as imagens que
se seguirão, colocando-o na expectativa de verificar convergências e desacordos seja em
linha de oposão, seja em caráter complementaridade.
No “primeiro domingo”, temos uma personalidade controversa - Marcel Duchamp.
O pintor francês ligado a diversas vanguardas do icio do século XX, revolucionou o
universo das artes ao reivindicar a valoração artística de objetos do cotidiano, o que não
deixa de ser uma proposta com relativa proximidade dos objetivos da microhistória (como
mencionamos anteriormente, muitas vezes os artistas ajudam a dar forma a tendências que
percorrem campos diversos). O "domingo" de Duchamp transforma-se num elo de ligação
importante entre os movimentos desenvolvidos no século XX e o homem comum.
Já com relão à obra de Edvard Munch, o domingo ganha ares intimistas ao revelar
a vinculação de lazer e descanso com o sexo. O mais famoso pintor norueguês propunha
uma arte fortemente ligada à realidade do homem comum, sem falsas posturas
aristocráticas: Não devemos pintar interiores com mulheres tricotando; devemos pintar
pessoas que vivem, respiram, sentem, sofrem e amam”, escreveu o artista (LANGAARD,
1964, p. 17).
171
Na tela exibida em Nós que aqui estamos por vós esperamos, a utilização de traços
fortes em sentido vertical para composição das figuras lembra uma imagem vista a partir de
uma janela, num dia de chuva. A insinuação de um possível contato físico entre o casal,
potencializada por cortes secos exibindo diferentes enquadramentos de detalhes da pintura,
também lembra um ambiente interno, a possibilidade de registro de uma cena íntima.
Esta referência, embora apenas implícita na obra, abre espaço para que o espectador
inicie especulações acerca do tipo de quebra de convenções reservada aos momentos
privados do domingo, no caso, o intercurso multi-racial.
Novamente nummodo fechado, o terceiro “domingo” apresenta uma mulher
entretida na leitura de um livro. Peças de roupa e um sapato estão fora do lugar. A pintura
remete de imediato à fotografia exibida anteriormente de Duchamp, em que ele joga xadrez
com uma oponente do sexo feminino, num reconhecimento explícito de seu potencial de
racionio lógico. Tanto na foto, quanto na tela, as duas mulheres exibem suas formas
sinuosas, evidenciando a perfeita conciliação entre as porções intelectual e sedutora das
figuras.
A grande diferença é que Duchamp marca firme posão quanto à universalidade do
potencial feminino. Ao cobrir o rosto da jogadora de xadrez nua, ele faz com que a sua
avaliação o seja pessoal, mas estenda-se a todas as representantes do gênero. Edward
Hopper, por sua vez, cria uma representação mais naturalista, dando a impressão de
capturar uma cena cotidiana sem artifícios. O despojamento aparente, entretanto, revela um
outro dado passível de ser captado pelo espectador: a desarrumação do quarto revela uma
mulher não mais aprisionada às tarefas domésticas, às imposições de uma vida familiar
intensa. A moça pode se dar ao luxo de preencher o tempo livro a seu bel prazer, inclusive
lendo.
A “leitora” de Hopper, na verdade, tamm apresenta outro laço com a arte de
Duchamp. Na incrustação exibida entre os jogadores de xadrez, vemos uma mulher despida
e uma escadaria. A imagem faz referência ao quadro Nu descendo a escada, que, na
incrustação, a moça sobe os degraus, construindo um sentido de ascensão feminina em
concordância com o xadrez, a leitura e a liberdade de escolha (em parte refletida na cena
íntima com um homem da ra negra).
O quarto e último “domingo leva ao ápice da sensação de recolhimento e
172
intimidade relacionados ao primeiro dia da semana. Um travesseiro apresentado como obra
de arte graças à assinatura no canto fecha o rculo, novamente demonstrando a ligação de
Duchamp com a arte do cotidiano. O anônimo e criativo Ninguém(que, em Nós que aqui
estamos por vós esperamos significa “todos nós”) revela o real prazer do homem simples
nos finais de semana, novamente valorizando as atividades que não deixam marcas na
história, mas que nem por isso deixam de ter sentido e importância.
Quatro representações diversas são exibidas. Em nenhuma delas incios que
vinculem sua adequação exclusiva a um dia da semana; o conjunto, entretanto, convence
como descrições de “domingos”. A montagem, nesse caso, utiliza-se do sistema de
progressão numérica (I, II, III, IV) exatamente com a mesma finalidade das “molduras”,
criando um conceito geral que interliga as imagens, estabelecendo uma rede de unificação
que tem sentido no contexto do próprio filme. Fora de Nós que aqui estamos por vós
esperamos, talvez apenas José Leonilson e Duchamp pudessem ser aproximados. Hopper e
Munch, contudo, adeqüam-se tranquilamente à engrenagem não por uma relação estreita
com os outros dois, mas pela sua filiação com o prinpio geral que norteia Nós que aqui
estamos por vós esperamos. São muito menos as especificidades do domingo e bem mais as
do homem comum que estão em jogo na seqüência.
___________________________
1.16 Seqüência Perto de Deus
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A seqüência se inicia com a fotografia de duas pessoas num espaço quase
completamente tomado por sinos enormes. Elas estão debruçadas talvez arrumando, talvez
tentando deslocar dois dos objetos. Nenhuma música é ouvida.
Perto de Deus
Surge a imagem de um monge concentrado, provavelmente em meditação. Começa
173
uma música suave.
Tibet, 1927
Vemos vários monges caminhando.
Perto de Deus
Perto de Buda
Em seguida, é mostrado um prédio de abóbada dourada. Através de um movimento
de câmera, a imagem amplia sua área de enquadramento passa a exibir também o Muro das
Lamentações.
Jerusalém, 1964
Uma multidão encontra-se próxima ao muro. Judeus com roupas ortodoxas oram,
encostando as cabeças na barreira de pedra.
Perto do Deus
Perto do muro
Em outro cenário, árido e sob o sol escaldante, homens caminham sob guarda-sóis.
Meca, 1945
Fiéis muçulmanos andam em rculos em torno da Caaba.
Perto de Deus
Ao redor de Alah
As imagens de Meca são substitdas pelas de um rio caudaloso. Nas margens,
integrantes de uma comunidade negra dançam.
174
Angola, 1927
Uma espécie de sacerdote batiza pessoas nas águas de um rio.
Perto de Deus
Perto dos Orixás
Uma das mulheres presentes à cerimônia aparenta estar em transe, como “possuída”
por um esrito.
O cenário muda novamente. Vemos um homem suspenso por uma corda, de cabeça
para baixo, bem próximo a um fogo aceso. Ele é balançado de um lado para outro, envolto
em fumaça. Várias pessoas o cercam e todas vestem roupas rústicas.
Índia, 1902
Perto de Deus,
Perto do Vento
Já num salão enorme, um pastor exorciza uma mulher durante um culto.
Venezuela, 1946
Deus espanta o Diabo
Agora através de uma fotografia, o filme exibe o rosto de uma jovem, de cabeça
baixa e coberta por um véu.
Portugal, 1968
Deus perto dos pequenos
problemas humanos
175
Numa filmagem aparentemente muito antiga, observamos a caminhada de um
religioso ao lado de uma trincheira. Os soldados tiram os chapéus à sua passagem e fazem o
sinal da cruz. O sacerdote passa abençoando mecanicamente o grupo.
Em algum campo de batalha, 1917
Deus perto do Inferno
As imagens agora são bem mais recentes. Num ambiente movimentado, uma câmera
posicionada na altura das pernas de pessoas adultas filma a passagem dos transeuntes. Uma
criança parada, sozinha, negra e com a face suja pode ser visualizada através das bolsas e
roupas dos pedestres.
Em alguma esquina no Hemisfério Sul
Por entre as pessoas que passam, a criança nota a mera. A imagem perde a nitidez.
A impressão do espectador é de que o cinegrafista tenta ajustar o foco ao rosto da criança.
Vários segundos se passam e o menino continua a olhar fixamente para câmera. Quando o
foco, por fim, estabelece-se, surgem a legendas:
À espera de Deus
A face da criança desaparece lentamente. Em seu lugar, vemos um homem
manuseando um grande crucifixo no alto de uma igreja.
Rússia, 1922
Pessoas saem do templo carregando relíquias. A cúpula da Igreja começa a ser
derrubada. Um grupo comemora e continuidade à retirada dos mbolos de dentro do
prédio. População em volta aplaude.
176
O templo de Deus é transformado
em Repartição Pública Vermelha
Uma bandeira é posta no lugar do crucifixo, no alto da igreja. O sino também é
arremessado ao chão. As imagens desaparecem.
Em seguida, é exibida uma foto de Arthur Bispo do Rorio.
Brasil, 1980
Arthur Bispo do Rosário
1922 - 1994
Fez uma roupa especial
para se encontrar
com Deus
Sobre a fotografia, na altura das costas de Bispo do Rosário, é inserida uma
incrustação. Nela, observa-se uma imagem bem antiga de um homem tentando voar através
de uma invenção que imita o bater das asas de um pássaro.
Bispo do Rosário é substitdo por cenas de um cemitério. A câmera passeia” entre
as lápides, indo em direção à saída do lugar. As imagens são inicialmente exibidas em
preto-e-branco, porém tornam-se coloridas sem qualquer efeito de transição. As cores
berrantes de algumas sepulturas atribuem o caráter de singularidade a cada uma delas, o que
não era verificado anteriormente. Ouve-se a mesma música executada na abertura do filme.
A atenção do espectador é momentaneamente desviada da saída da câmera do
cemitério para uma incrustação exibida no canto da tela. Numa cena típica do cinema mudo,
vê-se um homem sentado sobre a peça de ligação entre as rodas de um trem em movimento,
ele tem uma postura meditativa, passível de ser traduzida como tristeza ou desesperança.
“Dizem que em algum lugar,
parece que no Brasil,
existe um homem feliz”
177
Maiakovski, 1907
O trem afasta-se e a incrustação some.
Voltamos ao passeiopelo cemitério. A câmera exibe o rtico do lugar, nele está
gravada a inscrição:
Nós que aqui estamos por vós esperamos.
A imagem permanece inalterada por alguns segundos.
Fade-out.
Entram os créditos finais. Dentre os que merecem maior atenção do espectador,
destacam-se:
Pesquisa, roteiro, edição, produção e direção: Marcelo Masagão
Consultores Espirituais: Dr. Sigmund Freud and Dr. Eric J. Hobsbawn
OBS: As histórias dos personagens relatados neste filme, baseadas em fotos, pinturas,
imagens de arquivos e extratos de filmes clássicos são fictícias e concebidas pelo roteirista
e diretor deste filme.
Como o próprio nome sugere, "Perto de Deus" é uma sequência cujo tema central é
a religiosidade. Ao reunir representações de seitas diversas, Nós que aqui estamos por vós
esperamos poderia facilmente ter desenvolvido a idéia de comunhão com a divindade
independentemente do credo professado pelos fiéis ou ainda seguido o mesmo caminho de
Eisenstein na sequência "Deuses" em Outubro, em que o foco é a desconstrução do
conceito de Deus.
O filme, no entanto, desenvolve outros argumentos, bem menos ligados às
manifestações celestiais que ao cotidiano dos pedintes na Terra. O que está em questão ao
178
longo da sequência é a busca pela divindade através de recursos meramente físicos,
circunstanciais, ritualísticos e muitas vezes completamente distanciados da razoabilidade.
Mesmo a substituição dos ídolos religiosos milenares por novas formas de culto, como
aconteceu com a supervalorização do Partido Comunista na Rússia, revelam-se infrutíferas.
Entre os muçulmanos que circulam a Caaba e Bispo do Rosário envolto em seu
manto sagrado, nãodiferenças fundamentais. Salvo pela referência a Portugal, é possível
notar que montagem aproxima os personagens da seqüência, demonstrando que eles
compartilham o mesmo equívoco pririo: a confusão entre transcendência e aparatos
ornamentais.
Em meio a planos diversos, a única chave que o filme sugere como saída para a real
solução dos problemas humanos surge sob a forma da criança sozinha na multidão.
Personagem revestido do grau máximo de anonimato em todo a obra (um menino sem
nome, numa esquina qualquer de um país também não identificado), ele conta com dois
artifícios de montagem extremamente importantes, que lhe garantirão destaque no conjunto
do filme.
Primeiro a não intervenção no andamento da tomada através do corte, algo
observado em outros momentos de Nós que aqui estamos por vós esperamos, porém que
aqui é aliada ao significativo atraso na apresentação das legendas, gerando um clima de
forte de expectativa. Uma tensão que também é potencializada pelo conteúdo do texto
verbal - espera de Deus". A obra nos deixa aguardando pela legenda, como o menino
aguarda por alguma ajuda.
O segundo artifício é a limitação do mero de ângulos de filmagem exibidos. O
menino olha de frente para a câmera durante o completo intervalo de sua apresentação,
todos os demais planos foram excldos. O resultado é um efeito de apelo direto e
extremamente pessoal endereçado ao espectador. A exploração da facialidade, da
frontalidade e do direcionamento do olhar criam um tipo de interação entre personagem e
público intensa, que parece tornar o narrador desnecessário como instância de mediação
entre ambos. Trata-se do momento mais evidente em que o espectador é chamado a assumir
seu lugar na narrativa. Em última instância, uma convocação para que ele cumpra seu papel
também para além da trama, na realidade extra-cinematográfica, enfrentando os desafios
reais que foram ignorados pelos personagens exibidos na sequência.
179
Problemas graves como o abandono da infância carente em países do Terceiro
Mundo, como mostrado no filme, precedem e sobrevivem à obra, por isso a importância da
sensação de expectativa, de necessidade urgente de atenção que a montagem constrói
através da manipulação do ritmo das imagens e do texto verbal escrito.
As cenas da criança, porém, parecem ser "engolidas" pelo conjunto de pequenas e
grandes tentativas vãs de transcendência dos personagens, que lentamente desaparecem
através do efeito de fade out.
O encerramento do filme (o passeio da câmera pelo cemitério) é na verdade uma
extensão das cenas de transição entre os blocos do filme, funcionando como epílogo
unificador que sistematiza elementos dispersos da montagem. Os set-pieces passam a
desaguar todos entre as lápides e inscrições, enquanto a transposição das imagens do
preto-e-branco para as cores vidas atualiza a questão, reposicionando o drama da
mortalidade numa perspectiva contemporânea ao espectador. A efemeridade da existência
humana banaliza os sonhos grandiloquentes dos personagens do século XX no mesmo
instante em que a montagem faz uso da variação cromática para aproximar as fronteiras da
morte do próprio público do filme.
A figura triste e desesperançada do passageiro sobre as rodas do trem (talvez o da
história...) e versos de Maiakovski sumarizam todo o sentido de perda de tempo e de
esforços acumulada durante o filme, revelando o verdadeiro impulso que moveu todos os
personagens mostrados: a permanente insatisfação intrínseca ao homem. A incrustação,
recurso largamente utilizado no filme, é pela última vez empregada, agora com o intuito de
oferecer a imagem-síntese do filme.
Resta a mensagem, a um tempo melancólica e inica do rtico do cemitério e
que responde à pergunta implícita do princípio do filme, ainda na sequência de abertura,
quando foram apagadas as marcas de autoria emrica: afinal, quem conta a história de Nós
que aqui estamos por vós esperamos?
Como um de seus últimos atos, o filme escamoteia novamente sua condição de
discurso não-naturalista”, apresentando os próprios personagens (agora meros ecos
provenientes do cemitério e das imagens remanescentes do século XX) como os
responsáveis pela trama. Figuras que teriam aval suficiente para lançar uma última sentença
inescapável à audiência: "por vós esperamos”. Uma maldição de duplo sentido que pode
180
soar às avessas e transformar-se num convite ao desfrute da vida e seus prazeres enquanto
for possível.
Seria esse o último decreto lançado pela obra, não fosse a transformação de um
espaço normamente utilizado como paratexto em outros filmes em palco para novas
revelações referentes à trama – os créditos finais. Aqui, eles não informam somente sobre os
responsáveis pela concretização do produto. As referências aos "consultores espirituais"
comprovam o fato, mas, principalmente, a revelação sobre o caráter estritamente ficcional
da obra não deixa dúvidas: os créditos também têm que ser analisados como estratégias de
orientação de leitura em Nós que aqui estamos por vós esperamos.
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
181
CAP. III
_____________________________________________________
Programas de Produção de Efeitos – análise e identificação
_____________________________________________________
Nos capítulos I e II foi mencionada a estruturação de Nós que aqui estamos por vós
esperamos em séries de set-pieces, frações da trama reunidas por similitude temática e com
relativa indepenncia entre si, o que facilita a exibição parcimoniosa do filme. A
segmentação circunstancial da trama, contudo, não impede que seja formada uma
concepção globalizante da obra. A fruição completa de Nós que aqui estamos por vós
esperamos revela um delicado jogo de intermbio entre as sequências e estratégias comuns
de envolvimento gradual do espectador no universo particular da obra. Graças a esse
conjunto de estratégias, organizadas sob a forma de instruções a serem atualizadas pelo
público, o filme alcança sua finalidade durante o ato de apreciação.
Descobrir quais são e como funcionam esses artifícios de orientação de leitura em
Nós que aqui estamos por vós esperamos é o objetivo deste capítulo. Seguindo as linhas
metodológicas descritas no Capítulo I, as estratégias foram agrupadas em três programas de
produção de efeitos: cognitivo, sensorial e sentimental. O que não implica, porém, na
existência de uma fronteira rígida entre os artifícios que compõem cada um deles.
estímulos que servem a mais de um programa, como veremos durante a análise. Portanto, a
divisão tplice deve ser compreendida não como instância inflexível de categorização, mas
como uma ferramenta maleável de organização de conteúdos, adaptável à realidade
particular da obra. Assim, teremos que ocasionalmente revisitar algumas estratégias, porém
a cada vez visualizando-as sob perspectivas diferenciadas, dependendo das funções que
assumem no filme, seja a de informar, estimular através dos sentidos ou emocionar.
_________________________
3.1 PROGRAMA SENSORIAL
_________________________
182
múltiplos pontos de entrada em um evento narrativo complexo. A grande
maioria, contudo, está diretamente relacionada a efeitos de ordem sensorial. Via de regra,
são os estímulos visuais e sonoros que dão forma a boa parte dos fenômenos cognitivos e
sentimentais num filme, que permitem as transformações simbólicas conceituais através de
"veículos" estéticos e perceptivos. Sem contar as ocasiões em que as sensações são a
finalidade mesma da obra, não havendo uma "mensagem" que deva dar-lhe destino.
Em ambos os casos, sejam os estímulos sensoriais mecanismos para construção de
outros efeitos ou sejam objetivos exclusivos de um produto fílmico, é de suma importância
sua investigação para análises de obras audiovisuais.
Vale reiterar, no entanto, uma observação presente no capítulo I desta pesquisa
sobre o tipo de estímulo sensorial que está sendo avaliado: o de segundo vel. Em outras
palavras, o estaremos buscando fenômenos fisiológicos, ligados à transmissão de
informações através dos nervos óticos ou auditivos; o alvo, na verdade, são os "estados
sensoriais" - o conjunto de efeitos provocados pelos estímulos sensíveis e aplicados a fins
narrativos; aquilo que genericamente chamamos de impressões durante a fruição de uma
obra (ver Cap. I, f. 43). Por exemplo, mais importante do que compreender como os
processos de formação da imagem que acarretam a ilusão de movimento, será
desvendarmos que sensação o movimento observado pode causar no público e como isso
modifica os rumos da trama.
Obviamente, num produto audiovisual as manifestações sensíveis trabalham em
conjunto e as impressões sentidas pelo espectador são normalmente o resultado da
aplicão simultânea de mais de um estímulo. Nós que aqui estamos por vós esperamos não
foge à regra.
Há, no entanto, situações em que fica claro o maior investimento em certos
estímulos em detrimento dos demais, a depender do tipo de efeito almejado. Por isso a
análise também segue uma trilha sinuosa, ora ressaltando o aspecto de complementariedade
entre os estímulos, ora destacando a prevalência de um ou mais deles, cumprindo ao
máximo os ditames estipulados pela própria obra.
No contexto geral de Nós que aqui estamos por vós esperamos, podemos destacar
seis grandes estratégias que comem o programa de produção de efeitos sensoriais,
183
detalhadas a seguir.
_____________________________________________
3.1.1 Apropriação das estratégias do Cinema-Verdade
Nós que aqui estamos por vós esperamos inicia sua exibição apresentando-se ao
público como uma obra de "memória" do século XX. Sem receber maiores explicações
posteriores sobre o termo, resta ao espectador apreender o sentido do intróito através do
conjunto de estímulos senveis, sentimentais e cognitivos que se seguem durante o
desenrolar do filme. E mesmo diante de todas as possíveis discuses suscitadas acerca da
natureza da verdade e da possibilidade do cinema em revelá-la ou representá-la, um aspecto
do produto é claro: Nós que aqui estamos por vós esperamos parece um registro fiel,
mesmo que breve, da trajetória dos personagens mostrados. Ele assume caractesticas de
um discurso pretensamente naturalista, e, sobretudo, estrutura suas informações de maneira
que possamos apreendê-lo de maneira muito similar ao modo como "lemos" um
documentário, em especial os de formato "Cinema-Verdade", desenvolvido entre os anos 50
e 60.
Vale ressaltar: não estamos afirmando que Nós que aqui estamos por vós esperamos
é de fato um documentário no sentido restrito do termo (essa é uma discussão levada
adiante na análise do programa cognitivo). O filme na verdade se utiliza da prerrogativa de
parecer-se com um "filme-verdade" a fim de angariar credibilidade discursiva necessária
para o seu funcionamento. Nesse momento, cabe-nos saber como esse processo de
auto-construção da identidade documentarista é estruturado e que resultados acarreta na
compreensão da obra.
Do ponto de vista sensorial, pode-se dizer que a montagem de Nós que aqui
estamos por vós esperamos utiliza e potencializa todos os recursos capazes de promover o
reconhecimento da experiência física da realização documentarista: a presença in situ dos
mecanismos e pessoas responsáveis pelo registro; o tremor da câmera portátil durante um
ataque de tropas inimigas; o enquadramento pouco profissional de um cinegrafista
improvisado; as falhas de continuidade geradas pela precariedade das filmagens,
184
completamente destituídas de recursos cênicos; a performance distante de qualquer
sofisticação ou glamour atribuída à atuação profissional; e falhas na captação uniforme da
luz.
A montagem dispensa várias técnicas digitais que poderiam ser aplicadas na
supressão de "imperfeições" imagéticas e sonoras, como o emprego de filtros para
unificão cromática, inserção de planos neutros a título de deixas visuais e uso de locução
off-screen. Na verdade, a montagem segue justamente na direção oposta - o da
evidenciação e valorização das marcas de não "artificialidade" do registro.
Os elementos brutos do processo de filmagem, devidamente escamoteados durante a
produção e s-produção nas obras ditas estritamente ficcionais, tornam-se chaves-mestras
para Nós que aqui estamos por vós esperamos em seu intento de convencer como
documentário. Falhas na geração de imagens, perda ocasional de foco, angulação
inadequada, baixa visibilidade e outros "erros" de filmagem carregam o ônus e o bônus das
surpresas e acasos da "vida real", garantindo não a admiração pela qualidade técnica, mas a
credibilidade da experiência testemunhal no local e hora exatos dos eventos.
Mesmo a utilização de fotografias em lugar de imagens em movimento contribui
para a estratégia: antes a representação inanimada, porém autêntica, que uma reconstituição
flagrantemente forjada e passível de r em xeque a confiança depositada pelo espectador
no filme, no compromisso de retratar fielmente o mundo para além das telas (um universo
que o público crê, em princípio, estar disponível através do cinema).
Salvo pela seqüência “Viagem através da Lua” (momento de exceção também em
vários aspectos), o emprego de articios de montagem que contrariam o rigor "naturalista"
é aceitável somente sob duas condições. Primeiro para realce de elementos explícitos no
contexto imagético original, sobretudo através do som. Isto é, quando fica claro ao
espectador que os ruídos o são fidedignos, mas a imagem com certeza é. Segundo, para
estabelecer relações novas, por vezes inusitadas, porém calcadas em filmagens
reconhecidamente não ficcionais, onde inexistem dúvidas sobre o registro in situ.
Resumindo, em ambos os casos o fator verdade” ainda comparece fortemente em causa
durante a montagem.
Tomemos alguns exemplos do primeiro caso. A inserção de sons de marretas junto
às imagens da derrubada do Muro de Berlim potencializa o sentido de golpeamento contra a
185
opressão ali representada, contudo, os ruídos o claramente diferentes dos sons que seriam
captados na ocasião (pela ausência de outros barulhos do ambiente, como possíveis gritos
dos manifestantes; e também pela falta de sincronia com os movimentos do homem que
atinge a construção). Também há os ruídos metálicos que acompanham o trabalho do
argentino Daniel Escobar apertando parafusos de automóveis, dando toda a dimensão do
quão perturbador pode ser uma tarefa altamente repetitiva. No quesito imagens, temos a
representação da idéia de vertigem através de planos em que a cidade "vira de cabeça para
baixo, logo após os planos filmados do alto de prédios enormes. É claro que o cinegrafista
não desmaiou durante a gravação, mas o articio aqui apenas fortalece uma idéia que a
própria imagem pode sugerir. Não um sentido de artificialidade absoluta aos olhos do
espectador.
Como exemplos da segunda quebra relativa do teor "realista" da trama,
encontram-se: a junção de planos de Guarrincha e Astaire, na inesperada, porém viável
equiparação entre ambos por meio da beleza do movimento corporal; a apresentação de
uma música que parece vir "do interior" da mente do ex-soldado acometido por tremores
em "A Solidão e a Guerra"; e a distorção em ondas dos rostos dos ditadores fascistas, em
prinpio extremamente condizente com a noção de anormalidade, de paranóia. No filme,
esses recursos de montagem não se apresentam como falseamento, mas, ao contrário, como
agentes capazes de revelar camadas insuspeitas do real.
Seja como for, mesmo nesses casos em que a montagem sacrifica os mecanismos
tradicionalmente vinculados ao Cinema-Verdade, ela retorna inevitalmente ao mesmo
ponto: a reunião de imagens que constroem a impressão de registro do autêntico, do
imediato e irrepevel.
________________________________________________
3.1.2 Estratégias de construção do sentido de velocidade
Nós que aqui estamos por vós esperamos não exibe imagens em velocidade
acelerada ou objetos que se desloquem com rapidez significativa no interior do plano. Pelo
186
contrário. A utilização do efeito de retardo na apresentação das cenas (um efeito de edição
digital que simula a filmagem em câmera lenta) é observado em diversas seqüências do
filme. O ritmo cinematográfico ameno também é condizente com o exercício de leitura das
legendas, o que demanda certo tempo de permanência do texto verbal escrito sobre os
mesmos planos. Fatores que implicam em certa lentidão no andamento da obra. No entanto,
ao assistir a Nós que aqui estamos por vós esperamos o espectador tem a tida impressão
de que o "breve" - adjetivo associado ao tema da obra, o século XX - também diz respeito à
forma do filme. Ledo engano.
O que em Nós que aqui estamos por vós esperamos é uma reunião de estímulos
sensoriais que induzem à impressão de velocidade, sem que haja equivalência real no ritmo
de exibição dos planos.
Um dos articios de que o filme lança mão para construir esse efeito é o emprego de
"manchas gráficas" (descritas no capítulo II, p.58). Através de uma grande quantidade de
informações visuais exibidas simultaneamente gras ao recorte de planos diferenciados (o
que permite a apresentação de um grande mero de tomadas na tela) e, algumas vezes,
também devido às incrustações, tem-se a impressão de que o que está em jogo é a rapidez
na sucessão de ações diversas, quando, de fato, é na multiplicidade e apresentação conjunta
de estímulos visuais que devemos buscar as causas do efeito.
Outro articio importante é o da sobreposição de imagens. Multiplicando os de
empacotadores, montadores de fábricas automobilísticas, disparos de canhões ou imagens
de refugiados de guerra, o filme artificialmente promove a impressão de aceleração de
movimentos, ainda que a imagem de base permaneça num ritmo de exibição ao longo de
todo segmento.
O terceiro recurso é o da apresentação de eventos interligados entre si, porém com
parâmetros de comparação temporais que sugerem velocidade. Por exemplo, na sequência
"A Luz Elétrica, o Rádio e a Aspirina", o Palácio da Eletricidade é inaugurado em 1900 e,
já no ano seguinte, executa-se o primeiro condenado da justiça à cadeia elétrica. No
intervalo de uma única geração a Rússia deixou o atraso semi-medieval (o camponês
conhece a lâmpada) e alcançou o patamar de superpotência mundial (o filho do mesmo
camponês conhece o espaço). É lógico que se pode argumentar serem estas informações de
caráter meramente cognitivo. Contudo, se podemos pensar na possibilidade de um estímulo
187
sensorial transformar-se em dado cognitivo, por que não considerar a possibilidade do
mesmo trânsito ocorrer no sentido inverso? Parece-nos cabível a idéia de que um texto
verbal escrito possa gerar impressões sensoriais. Estudos na área de literatura,
especialmente aqueles voltados às interseções entre poesia e música, o suporte à idéia
(BROWN, 1987, p. 50-52). Porém, mesmo as pesquisas mais simples, vinculadas às figuras
de linguagem, demonstram claramente esse potencial, como vemos no caso da
onomatopéia, do assíndeto e da sinestesia.
Vejamos outros exemplos, também em Nós que aqui estamos por vós esperamos,
em que o texto verbal escrito funciona como um estímulo para impressões sensoriais.
Na seqüência Quatro Pernas, os numerais "1 2 3 4", acompanhados pelo toque de
notas de piano, estão longe de representar meramente uma contagem, insinuando
impressões de uma dança mesmo antes da execução do samba que dá tom à sequência.
As legendas presentes no bloco Nijinskitambém são importantes nesse sentido,
como em: "O balé não era mais clássico" e "A cidade já não cheirava a cavalo".
Novamente a construção da sensação de velocidade se através de uma palavra que
resume em si mesma a idéia de instantaneidade, auxiliada por planos de prédios que
parecem virar de cabeça para baixo. No outro caso, a referência ao cheiro remete
imediatamente a uma importante caracterização espacial do período anterior ao retratado
pelo filme, estabelecendo instâncias de oposição entre os anos que antecederam e
sucederam à difusão em massa do automóvel. Informações cognitivas, portanto, mas
repassadas ao espectador através de um fortíssimo instrumento de mobilização sensorial - a
memória olfativa. Esta última capaz de suscitar uma rede de correlações importantes para o
andamento de qualquer trama.
A velocidade como dado aprendido através de estímulos sensoriais, seja através
das imagens, dos sons ou do texto verbal chega a ser mais importante do que quando
apresentada por meios exclusivamente cognitivos em Nós que aqui estamos por vós
esperamos.
_______________________________
3.1.3 Estratégias de continuidade
188
Foram mencionadas no capítulo I as peculiaridades que tornam Nós que aqui
estamos por vós esperamos um objeto de estudo interessante do ponto de vista da
montagem: a exclusão do locutor off-screen, a rejeição da apresentação cronológica dos
fatos, a eliminação dos depoimentos de testemunhas oculares, a inexistência de um
protagonista aos moldes tradicionais, a gama enorme de personagens e sub-temas tratados,
o eixo historiográfico aliado ao eixo psicanalítico de abordagem, a composição do filme a
partir de imagens de arquivo, a ausência de diálogos e a reunião de eventos segundo uma
lógica conceitual e não histórica (rigorosamente falando). Tais características atribuem uma
primeira impressão geral de um filme extremamente fragmentado e destituído de nexos
claros.
Foi preciso então que a obra desenvolvesse uma série de mecanismos que
garantissem uma coesão mínima para apreensão dos conteúdos. Estímulos sensoriais
estruturados conjuntamente de forma a compor um padrão de reconhecimento e articulação
de sentidos que tornassem a obra acessível e, ao mesmo tempo, única no tipo de efeitos
promovidos.
A primeira e mais evidente estratégia de unificação identificada no filme é o estilo de
acompanhamento musical. Nós que aqui estamos por vós esperamos utiliza quase
exclusivamente composições do belga Wim Mertens. Adepto de um estilo minimalista,
Mertens utiliza um número limitado de instrumentos musicais e apresenta paulatinamente
pequenas variações melódicas nas músicas. A presença de vozes humanas também é
perceptível, contudo, nem sempre é possível distinguir se estamos ouvindo timbres
femininos ou masculinos. O texto verbal sendo pronunciado nas sicas o está acessível
ao espectador, menos pela barreira idiomática do que pelo uso intencional dos sons
humanos como elementos de apelo sensorial e sentimental e o cognitivo. É pouco
provável que a música aplicada tenha como objetivo ser compreendida, mesmo porque a
atuação dos intérpretes flerta com o uso da voz como instrumento musical, sem a mesma
ênfase reservada à letra, como observamos na canção. Nas músicas, as palavras são
apenas” sons.
Mas tanto nas composições exclusivamente instrumentais quanto naquelas que
189
contam com cantores(as) tem-se a manutenção do estilo do criador, o que representa o
primeiro passo em direção a unificão de Nós que aqui estamos por vós esperamos.
O segundo articio diz respeito ao emprego quase ininterrupto da música durante a
totalidade do filme, uma característica também condizente com os padrões do
Cinema-Verdade, onde permanência sonora encobre posveis falhas na captação do som
ambiente. Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, praticamente todas as sequências
apresentam o recurso musical como base para a continuidade entre cenas díspares.
Obviamente, a música também assume outras funções durante o filme: a geração de
contextualizações convincentes de tempo e lugar; o refinamento de estratégias sentimentais,
e aa miso descritiva. No entanto, do ponto de vista sensorial, nenhuma tarefa destinada
à trilha sonora é tão marcante quanto a construção do sentido de unidade na obra,
especialmente pela criação de uma atmosfera de "Cinema mudo" que permeia a exibição de
Nós que aqui estamos por vós esperamos.
A exclusão dos depoimentos e do locutor off-screen abriu espaço para o
preenchimento do campo sonoro através de um recurso-padrão - a música. O articio,
aliado ao uso massivo de imagens da primeira metade do século e a uma leve nuance de
humor que lembra as tragicomédicas chaplinianas, remete-nos inevitavelmente à atmosfera
das obras cinematográficas do início do século XX. E há ainda o uso das legendas, típicas
das narrativas pré-Cinema falado. A minimização do emprego da voz dos personagens, a
maximização do uso da música, o exercício constante de leitura (do ponto de vista verbal
escrito) e a insistência na exibição de imagens em preto-e-branco aproximam Nós que aqui
estamos por vós esperamos do conjunto de referências que o espectador acumula sobre o
passado (cinematográfico), traduzindo em termos sensoriais a proposta da obra de
constituir-se num "filme-memória".
Além da música e da atmosfera de Cinema-mudo, o padrão unificador composto por
manifestações senveis em Nós que aqui estamos por vós esperamos também recebe o
reforço do uso recorrente sempre dos mesmos articios de edição digital. A constância dos
efeitos de fade-in, fade-out, sobreposições, fusões e incrustações cria no espectador uma
familiaridade com o estilo de montagem. E essa adaptação torna o público apto a
reconhecer "pontes" de sentido entre os vários segmentos do filme, ainda que eles não se
encontrem exatamente próximos no contexto da fruição. A incrustação do pássaro exibido
190
como o "objetivo imediato" do Alfaiate francês no icio do filme, por exemplo, vem de
alguma forma à tona quando outra incrustação mostra um aparelho parecido com as asas de
um pássaro sobre o manto de Bispo do Rosário. Em Nós que aqui estamos por vós
esperamos, os dois personagens, separados no tempo e no espaço (inclusive na obra),
pretensos inventores de "roupas de voar", criam vínculos entre si através repetição da
técnica de montagem.
No entanto, é importante ressaltar que mesmo observando o caráter de recorrência
dos efeitos no filme - o que integra a estratégia de unificação - isso o significa que os
estímulos sensoriais tenham sempre a mesma finalidade específica quando repetidos. No
momento em que as imagens de prédios "viram de cabeça para baixo" após a apresentação
de Nijinski, o sentido é completamente diferente de quando a cidade também parece inverter
seu eixo na sequência “Marta-Pablito”. No primeiro caso, delimita-se o instante em que "o
balé já não era clássico"; no segundo, é criada a simulação de vertigem para ratificar a altura
dos prédios em que os operários civis trabalham. É verdade que, nas duas seqüências, as
legendas atuam fortemente como orientadores de leitura, guiando o espectador, mas é
também inegável a possibilidade de um mesmo estímulo sensorial provocar resultados
diversos, a depender dos meandros narrativos.
Dois elementos que particularmente apresentam papel fundamental na promoção da
unidade em Nós que aqui estamos por vós esperamos são os efeitos de fade-in e fade-out.
Observados diversas vezes em todas as sequências do filme, eles consistem na gradação
cromática que varia da escuridão total até a luminosidade normal do plano (in) ou
vice-versa - do claro para o escuro (out). Ambos normalmente são utilizados em produções
audiovisuais com o intuito de promover a diminuição do ritmo cinematográfico ou reduzir o
choque entre planos situados em tempo e espaços apartados, quando não há inserção de
tomadas adequadas para funcionar como deixas visuais.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, contudo, o surgimento ou
desaparecimento graduais da imagem acumulam outras utilidades, sendo apreendidos quase
em sentido literal: a materialização e esvanescimento dos planos correspondem em número
e grau à inclusão ou adeus aos personagens da trama. Fade-in e fade-out tornam-se
estratégias de produção de efeitos sensoriais que aproximam técnica e função narrativa.
Eles criam as condições para que a obra guie o espectador a um outro nível, ao salto para
191
um patamar metafórico fundamental para os programas sentimental e cognitivo: em última
instância, fade-in e fade-out representam a morte, o perecimento inevitável que percorre
toda a lógica do filme. Isso é possível pela utilização de dois agentes expressivos
tradicionalmente vinculados à dicotomia vitalidade versus finitude - luz e sombra.
Tamm os dois efeitos podem ser considerados, simultaneamente, elementos de
transição entre seqüências, devido à maior lentidão na variação cromática entre os grandes
blocos do filme.
Fade-in e fade out apresentam ainda a vantagem de minimizar a possível dissonância
causada pelo uso do corte seco, produzindo um tipo de transição suave que possui
profundo impacto sobre o ritmo de Nós que aqui estamos por vós esperamos, devido a sua
utilização sistemática. Eles permitem a compressão ou elasticidade do tempo
cinematográfico e garantem a passagemsem grandes sustos – entre locações diversas.
Além da gradação de cor entre claro/escuro absolutos outros articios também
interferem na dinâmica tmica: a variação dos planos, os inserts, os efeitos de edição digital
e os recursos diretamente ligados aos movimentos de câmera (simulados através de efeitos
de edição digital) aplicados sobre fotografias. Os chamados zoom-in e zoom-out permitem a
manutenção do ritmo apesar da mescla de exibição de imagens estagnadas e em movimento
durante a obra.
A montagem de Nós que aqui estamos por vós esperamos atua continuamente no
sentido de não interromper a periodicidade na apresentão dos planos. As imagens
parecem surgir e desaparecer em cada sequência num intervalo relativamente uniforme,
através da exploração da movimentação intra-planos e do passeiodos próprios planos na
tela, como observamos durante a construção do sentido de deslocamento constante na
seqüência “Hans e Anna”. A temática exposta nesse bloco o drama dos refugiados e dos
soldados obrigados a uma vida nômade, ocasionada pela guerra está plenamente
representada em termos sensoriais através do uso criativo dos elementos que comem o
ritmo.
_______________________________
3.1.4 Estratégias de realce
192
Mas nem tudo em Nós que aqui estamos por vós esperamos segue a linha da
familiaridade contínua. Assim como a narrativa utiliza-se de recursos que garantem um
padrão mínimo de regularidade, o filme também investe em alguns momentos de
rompimento desses modelos, transformando recursos sensoriais em instrumentos para
geração de surpresa, choque ou desconforto. Nós que aqui estamos por vós esperamos
consegue criar instâncias de produção de sentido baseadas na quebra de expectativas. Por
isso, é preciso ter sempre em mente os elementos constitutivos dos padrões de continuidade
para compreender as estratégias de realce; do desempenho do primeiro grupo, depende
grande parte do sucesso do segundo.
A quase onipresença da música, por exemplo, é o que torna os breves instantes de
sua supressão perceptíveis. Esse é o pré-requisito para transformar o silêncio que precede o
salto do Alfaiate em estímulo sensível importante na constituição do clima de expectativa
durante a sequência. Assim como é a aplicação seguida dos efeitos de fade-in e fade-out
que garantem a surpresa frente ao uso do corte seco entre o corpo do francês e a
Challenger. Nesse caso, a subversão ao modelo de transposição suave entre imagens,
alia-se ao salto temporal-espacial dos acontecimentos e às variações cromáticas (do
preto-e-branco para o colorido dos planos das testemunhas) para construir novos
referenciais comparativos, ratificando a montagem como instrumento cinematográfico ímpar
na rapidez com que pode reconfigurar fronteiras de leitura.
A passagem às filmagens em cores também é fundamental no final da obra, quando é
preciso exibir uma atmosfera mais contemporânea, mais próxima do espectador, para
atualizar ao máximo a inscrição contida na entrada do cemitério. A cor, nesse momento, é a
chave de entrada para a releitura de todas as questões abordadas no filme sob o ponto de
vista de sua vigência no presente. Mais um exemplo da aplicação de estratégias sensoriais à
serviço do complexo cognitivo.
Outro artifício sensível importante na trama é utilização do som "superlativo".
Partindo de uma imagem que apresente uma sugestão de fonte sonora (os planos da marreta
contra o Muro de Berlim, por exemplo), a montagem insere o que seria seu ruído
correspondente, porém não completamente em sincronia com a imagem e com flagrante
193
ausência de outros posveis sons captados no ambiente original provável que também se
ouvisse gritos dos manifestantes, os latidos dos cães policiais ou a confusão de idiomas
proferidos por jornalistas do mundo inteiro que cobriam o evento). Isolado, em volume
razoavelmente alto, sugerido pelo próprio plano, porém ligeiramente descoordenado do
universo imagético, o som ganha destaque dos demais elementos expressivos, cresce em
importância e acaba chamando mais atenção para si e para sentido de desconstrução que
carrega do que se fosse apresentado num padrão "naturalista", em anuência absoluta com a
imagem.
É importante ressaltar que esse artifício seria impensável numa montagem seqüencial
(salvo se o responsável pela captação de imagens tivesse o efeito em mente, o que é
bastante improvável) em função do reduzido número de trilhas sonoras de gravação que
tecnologia tradicional implica. Nesse caso, nem sempre é possível eliminar sons secundários
sem prejudicar o registro completo. A edição digital, entretanto, praticamente elimina as
dificuldades de montagem sonora pelo substancial aumento das fontes de registro distintas.
A partir das novas tecnologias, pode-se inclusive "sujar" o som original, dificultando a
identificação de sua origem, exibi-lo parcialmente ou através de centenas de distorções
minuciosamente construídas pelos técnicos de som. Fatores que ajudam a compreender, mas
não explicam de todo a montagem sonora em Nós que aqui estamos por vós esperamos.
O filme realça sons marginais, exclui, intensifica ou transforma o restante sem
abusar das possibilidades computadorizadas (até para não corromper os padrões de
unificão, optando por subvertê-los apenas circunstancialmente). Dessa forma, comedida e
esporadicamente explorando efeitos diversos, a montagem garante que o emprego do som
permaneça sob o jugo da economia narrativa, mais do que sob o domínio da técnica pela
técnica.
O uso restrito das fontes sonoras possibilita, por exemplo, o realce de instantes
simples, porém extremamente importantes do ponto de vista dramático, como o da voz de
uma cantora não identificada na sequência "Elas". As palavras pronunciadas pela intérprete
têm pouca ou nenhuma importância. O canto deve ser entendido como efeito sonoro que
carrega em si a importância expor a voz feminina (aqui como sinônimo de poder e
visibilidade social), mais do que como conjunto de dados a serem compreendidos
literalmente. Falamos em "manchas gráficas" na sequência “Nijinski”; esse seria um caso
194
similar de "mancha auditiva".
Outra oportunidade em que a montagem apresenta o som como estratégia de realce
é observada na sequência "A Solidão e a Guerra". Vemos um jovem rapaz acometido por
movimentos desconexos e tremores aparentemente incontroláveis. As legendas mencionam
um choque causado pela guerra como razão para o quadro clínico. No entanto, Nós que
aqui estamos por vós esperamos nega o acesso ao passado do rapaz através da
reconstituição imagética, utilizando outro recurso para prender tanto personagem quanto
público no presente perturbador da moléstica - o som. Sem qualquer movimento de
aproximação da mera, exclusivamente pela introdução de ruídos em sincronia com os
tremores do ex-soldado, a montagem transmite a idéia de que este é o contexto repetitivo e
angustiante da mente do homem mostrado. Aqui, os ruídos seriam "ultra-diegéticos",
apresentando ao espectador um contexto absolutamente vinculado à primazia da vida
interior do personagem, um efeito obtido através de um único articio: a sincronia entre
imagens e sons. Essa é claramente uma estratégia sensorial a serviço do Programa
Sentimental, mas também nos interessa no presente momento por demonstrar como
características do som correspondência à imagem, altura, tom, timbre afetam a maneira
como o espectador pode dar sentido aos rdos à medida em que eles são apresentados
diegeticamente (diálogo sincrônico, efeitos sonoros) ou do espaço exterior à tela (música e
narração). No artigo Fundamental Aesthetics of Sound in the Cinema”, David Bordwell e
Kristen Thompson (Bordwell, 1985) esclarecem que a atenção ao ritmo (musical, não o
cinematográfico), a fidelidade, o espaço sonoro (a proximidade ou distância do som que
sentimos durante a exibição do filme) e o tempo fornecem uma estrutura tridimensional a
partir de onde vamos considerar as mudanças no som.
Estrutura sonora e estrutura imagética quando configuradas de maneira a explorar
potenciais latentes em cada uma delas costumam apresentar resultados criativos poderosos
sobre o espectador. Reunindo esses dois elementos à capacidade do texto verbal escrito em
inspirar sensações de ordem sensorial no público, podemos compreender o apelo sinestésico
de que Nós que aqui estamos por vós esperamos se utiliza por vezes.
A sinestesia em obras audiovisuais é um fenômeno decorrente da junção de
impressões de visualidade, sonoridade, cinetismo e tato a partir de estímulos diversos,
muitas vezes dissociados das fontes tradicionais associadas aos efeitos descritos.
195
Poderíamos, pelo poder de sugestão, ter um “som visual”, isto é, um conjunto de ruídos
que, ao serem percebidos, inspirassem algum tipo de vinculação a um contexto imagético. O
mesmo poderia ocorrer com relação ao som e o texto verbal – escrito ou falado.
Na década de 40, Merleau-Ponty produziu estudos que ainda hoje são referência no
assunto. Segundo o autor, a psicologia clássica afirmava a existência de cada sentido
praticamente sem comunicação com os demais. As relações entre eles seriam construídas
pelo sujeito somente através da memória. A partir dos estudos da Gestalt, modelo teórico
alternativo à psicologia clássica, iniciou-se um novo tipo de abordagem baseada na premissa
da percepção indivisa. “Percepcionamos um conjunto, um todo, uma organização e esta
percepção é a percepção natural (MERLEAU-PONTY, 1945). Em outras palavras, os
sentidos estão intrinsecamente conectados e nossa maneira de apreensão dos objetos,
incluindo as obras audiovisuais, mobiliza o conjunto sensório como um todo.
Mas para que falar em efeitos sinestésicos faça algum sentido, é preciso deixar de
lado idéias relacionadas a uma hierarquia inflexível entre imagens, sons e palavras no
contexto lmico. Cada obra institui sua própria lógica de preferências e investimentos, a
maioria utilizando recursos de naturezas diversas para a composão de suas estratégias de
funcionamento. Nesse sentido, a proposta metodológica de compreensão da obra a partir de
programas de produção de efeitos cognitivos, sensoriais e sentimentais abre espaço para
análises de estratégias sinestésicas, por admitir a possibilidade de contaminaçãotua entre
manifestações senveis e o reconhecimento do caráter sincrético do Cinema.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, a primeira vez em que se pode
observar um efeito claramente sinestésico é na seqüência Nijinski”. Através do emprego de
uma música ligeira e presença marcante do piano “vemos” (ainda que a imagem não
corresponda exatamente à nossa visão) cenas típicas do início do século. Como os
realizadores de então ainda não haviam atingido a marcação ideal de exposição de
fotogramas por minuto (de modo a garantir a impressão de naturalidade de movimentos),
todas as cenas retratadas no período o caminhar dos pedestres, os passos dos casais nas
pistas de dança, os desfiles de modas das senhoras de sociedade são marcadas por uma
impressão de pressa e comicidade. A música de Wim Mertens aplicada na seqüência tem a
capacidade de sugerir um padrão visual instituído pelo próprio cinema.
O sentido inverso conjunto de imagens sugerindo sons também é observado em
196
Nós que aqui estamos por vós esperamos, especialmente quando o filme apresenta
fragmentos de Berlim, Sinfonia de uma cidade. Dirigido por Walter Ruttman e finalizado
em 1927, portanto antes do advento do cinema falado, a obra aposta fortemente no poder
de estruturão da montagem com intuito de transformar estímulos visuais em instrumentos
de percepção do ritmo e da “música” de uma grande metpole. Para tal, foram
desenvolvidas imagens “prismáticas”, ou seja, planos simples nos quais eram aplicados
efeitos de fusão, sobreposição, duplicação, alteração na velocidade de exibição e/ou
inversão de eixo. Planos que valorizassem retratassem o movimento caótico do trânsito, a
agitação das fábricas, o perigo da construção civil e todo e qualquer outro símbolo de
progresso” eram os preferidos para lapidação”. O emprego de cenas do filme de Ruttman
acabou transferindo para Nós que aqui estamos por vós esperamos boa parte dos efeitos ali
contidos, sobretudo a sugestão musical presente no texto imagético e o sentido apurado de
construção do ritmo.
Ainda no quesito “poder de voz” das imagens, podemos nos deter sobre a
representação das manifestações de trabalhadores do met que aparecem na seqüência
Marta-Pablito”. Na descrição realizada no capítulo II (ver f. 96) falávamos sobre a
impressão transmitida ao espectador de que o texto verbal exibido era, na verdade,
vociferado pelos operários, mesmo que eles fossem apresentados através do estático
registro fotográfico. As imagens isoladamente não detinham tal potencial expressivo,
contudo, o emprego do zoom-out sobre a fotografia, a visão dos cartazes carregados pelos
manifestantes, o conteúdo do texto verbal e a progressão contínua do tamanho das fontes,
todos juntos, criam uma sensação intensa de fala através da recriação momentânea, mas
verossímil, de um contexto de reivindicação sindical: uso repetitivo de palavras de ordem,
tom exaltado do discurso, sinais de união da classe através de cartazes e manifestação
conjunta até o clímax do protesto. Nesse caso, a montagem consegue suprir, indiretamente,
a ausência de rdos através de uma série de recursos voltados para a descrição sonora,
inclusive utilizando o discurso indireto livre aplicado pelo narrador (ele “assume” a voz dos
personagens).
Atentemos para a peculiaridade do processo sinestésico aqui: a partir da combinação
entre o texto verbal escrito e algumas características atribuídas à imagem cinematográfica
(as palavras preenchem toda a tela) temos como conseqüência a impressão de som, mais
197
precisamente, da fala. A tecnologia digital em Nós que aqui estamos por vós esperamos
parece refazer em sentido inverso os próprios passos do cinema, chegando a
experimentações iniciadas por realizadores do início do século XX como Dziga Vertov em
O homem com a câmera, cuja influência sobre as produções audiovisuais contemporâneas
foi analisada por Lev Manovich (2003): busca-se no visual a caracterização do sonoro.
Em “Paranóia” e A Luz Elétrica, o Rádio e a Aspirina” a sinestesia é observada de
maneira bem específica: sob a forma de discursos radiofônicos. No primeiro caso, o tom
forte da fala alemã é aplicado sobre imagens de fisiculturistas, em referência aos ideais de
beleza e superioridade ariana pregadas pelo governo germânico da época. O som, contudo,
não remete aos concursos de fisiculturismo, mas às filmagens dos grandes comícios
realizados em praça pública, sob a atenção de milhares de espectadores carregando
mbolos nazistas. O volume de voz elevado e a rispidez do tom sugerem grandes espaços
abertos, muitos ouvintes e um conteúdo pouco apaziguador.
na outra seqüência vemos diversos planos exibindo um blico em expectativa,
numeroso e constituído por pessoas de diferentes sexos, locais e idades. No entanto, a
transmissão agora parece não apresentar qualquer teor político-partidário. Uma voz sinistra
quase sussurra a pergunta: Who knows what evil lurks in the heart of men? Shadow
knows…”, emitindo em seguida uma risada em tom maléfico. Sabemos logo de princípio
tratar-se de um outro tipo de aplicação dos recursos radiofônicos: o radiodrama. Apesar das
imagens exibirem nesse momento do filme pessoas displicentemente reunidas em torno do
aparelho de rádio, o dia ensolarado e até um bebê posicionado próximo a um receptor
radiofônico, o que a voz e o texto nos sugerem são cores soturnas, personagens estranhos,
um clima de mistério e crime. A própria palavra shadow” pode indicar a intervenção de
forças sobrenaturais no drama construído pelo radialista ou ator. O poder de sugestão do
som, nesse caso, não pode ser ignorado, criando um contraponto com as cenas, ajudando o
espectador a desconfiar das imagens a princípio tranqüilizadoras de uma comunidade feliz;
ou pelo menos chamando a atenção para o fato de um mesmo mecanismo tecnológico pode
ter boas ou más finalidades (nazismo/radiodrama), dependendo do realizador e do público.
Saindo do nível sinestésico podemos indicar ainda outra estratégia de realce
essencialmente vinculada à montagem que diz respeito a possibilidade de construção de
sentido quase exclusivamente em torno apenas do ritmo cinematográfico, como na
198
sequência "4 Pernas".
Aparentemente embalados pelo samba criado por André Abujamra especialmente
para este segmento (o que por si já é um destaque frente à música minimalista de Wim
Mertens), Astaire e Garrincha parecem travar um duelo de talentos que mistura equilíbrio,
agilidade, familiaridade com o ambiente físico e domínio dos demais elementos cênicos (em
que parecem ser convertidos os adversários do jogador). O inusitado da reunião de dois
profissionais tão diferentes, associado à impressão de que ambos respondem aos ditames da
música, na verdade pode ser explicado pela forma de estruturação das manifestações
senveis. Aproveitando as deixas oferecidas pelo próprio samba, a obra intercala imagens
paradas e em movimento, além de tomadas que alternam o foco em primeiro plano e plano
de fundo. O movimento no interior do quadro (relacionado ao posicionamento dos
personagens, grau de mobilidade e interação com os outros elementos em cena) é
potencializado pelo uso de cortes secos, cuja periodicidade é rigidamente controlada a partir
da cadência musical. Mesmo a luz, cor e organização dos objetos e pessoas em relão aos
personagens principais tornam-se secundários e a obediência ao ritmo tem prevalência sobre
qualquer outro aspecto. Aqui, podemos pensar num trabalho de montagem muito similar ao
exercício de composição musical, no sentido de que montar não significa reunir
aleatoriamente planos e sons, mas desvendar linhas melódicas, harmônicas, sugeridas no
interior do próprio plano e fazê-las funcionar em conjunto.
Outra observação importante. Usualmente, pensamos no aproveitamento de
recursos sensoriais para fins cognitivos. Em "4 Pernas", no entanto, Nós que aqui estamos
por vós esperamos joga suas fichas na possibilidade de oferecer ao espectador um atrativo
quase exclusivamente ligado aos sentidos, quase sem qualquer "mensagem" no sentido
restrito do termo, salvo pelo reconhecimento óbvio das habilidades do dançarino e do
atleta. As estratégias de fascínio e sedução são compostas, nesse caso, por artifícios menos
óbvios, porém eficientes, tornando a seqüência um dos maiores achados de toda a obra.
É necessário destacar ainda a habilidade da montagem em construir o segmento a
partir de imagens de arquivo, sobretudo pelo fato de que as filmagens de futebol mais
antigas não contavam com o controle de direção de fotografia que se observa atualmente.
As variações de cor, luz e imprevisilidade de elementos que compõem o enquadramento
poderiam resultar num fracasso estrondoso na ilha de edição. Em Nós que aqui estamos
199
por vós esperamos, contudo, o ritmo da seqüência impõe-se de tal forma que distrai o
espectador da análise mais detalhada dos quadros (até pela rapidez de exibição dos planos).
E, mesmo nos casos em que as imperfeições técnicas sejam observadas, as justificativas
relacionadas à captação das imagens ao estilo "Cinema-verdade" contornam o problema.
Logo, podemos afirmar que o ritmo tem em "4 Pernas" também a função de disfarce através
da redução das possibilidades de exame das particularidades de cada quadro, atuando como
um convite incessante para a fruição do todo.
________________________________
3.1.5 Estratégias de corporalidade
Estratégia presente nas três categorias de programas de produção de efeitos, a
corporificação é provavelmente o elo mais forte de conexão entre os temas e sub-temas de
caráter cognitivo e os artifícios sensoriais, haja vista a mobilização constante da obra em
fornecer consistência carnal aos grandes acontecimentos e tendências do século XX. É tão
somente por via dos personagens exibidos que os assuntos tratados se delineiam. A quebra
da bolsa de Nova York é citada, mas apenas através das filas e expressões abatidas de
desempregados o desmoronamento econômico ganha forma e não sob os auscios das
estatísticas oficiais do peodo. Assim como a ascensão feminina se estrutura no filme por
meio de referências corporais (a maior exposição do corpo através das ousadias da moda, o
controle sobre a sexualidade e a natalidade, a liberdade de movimentos através da dança).
É claro que fornecer um nome e uma face a temas sociais é um articio
normalmente de apelo sentimental. Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, no
entanto, a utilização de referências corporais sob o ponto de vista sensorial muitas vezes
suplanta a tendência sentimentalista em função da restrita caracterização psicológica da
maioria dos personagens do filme. Vemos isso, por exemplo, na apresentação das legendas
Muita TV” e “Pouca TV” acompanhadas da foto de uma única mulher, muito obesa,
seguida do registro fotográfico de um grande número de pessoas de aparência famélica,
200
reunidas em torno de apenas um aparelho televisivo. A ausência flagrante de dados mais
substanciais sobre a história e a motivação dos personagens transforma estímulos sensoriais
peso e número em veículos para reflexão sobre a oportunidade social mais do que
elementos de constituição de atmosferas afetivas.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos o corpo chega a ser convertido até em
cenário para materialização de conflitoso verbais, como no caso da dor de cabeça
associado ao consumo desenfreado em A Luz Elétrica, o dio e a Aspirina”. Através dos
movimentos frenéticos dos jovens ao ritmo do Charleston ou do rock nas pistas de dança,
são representadas as mudanças cio-culturais impactantes das décadas de 20 e 60.
Tamm via corporificação, os sonhos fascistas de uma raça ariana superior são
materializados sob a forma de exibições de fisiculturismo. A montagem, ao incluir em todas
as oportunidades possíveis planos referentes ao corpo (músculos, formas femininas
sinuosas, pés feridos, mãos de telefonistas ou rostos desesperançados de combatentes)
converte-os em estímulos sensoriais tão importantes quanto a movimentação de câmera,
luz, cor e efeitos de edição digital para o desenrolar da trama. Ao ponto de outros tipos de
estímulos visuais, como o travesseiro em Domingos”, funcionarem pela referência
indireta ao corpo e a lógica da equidade imposta pela necessidade de descanso.
No quesito corporificação, mesmo sua representação fragmentada possui profundo
impacto sobre o espectador. São as mãos e costas arqueadas sob o peso das sacas e
completamente enlameadas dos garimpeiros de Serra Pelada que despertam atenção do
público para a seqüência, mais do que a sugestão de descoberta do ouro. Assim como
apenas porções dos corpos de um casal multirracial (em “Domingos”) são suficientes para
transmitir sensualidade.
Mas como estratégia sensorial, é importante estabelecer as diferenças entre os tipos
de fragmentação da corporalidade exploradas no filme. Quando são exibidas apenas as
mãos do montador da Renault ou os pés artticos de um agricultor, essas imagens
imediatamente remetem à presença do todo, fortemente implícito no contexto
extra-enquadramento. Outra circunstância bem diversa ocorre quando apenas uma perna é
apresentada como sendo Robert Jones, durante a Guerra do Vietnã. Nada remete tanto à
ausência do corpo quanto apenas uma parte. O fragmento não simboliza mais a totalidade,
mas a destruição.
201
De maneira similar, mesmo que envolta em ares menos trágicos, estão as exibições
de objetos inanimados onde deveriam ser vistos corpos, seja através de fotos ou de imagens
em movimento. O nome e as datas de nascimento e morte de um combatente americano
citado sobre um sanduíche do McDonald’s e a apresentação da operária japonesa sobre a
que TV por ela construída também o estímulos visuais que indiretamente se utilizam da
referência ao corpo como materialidade (nesse caso apenas presumida) para funcionar,
resultando na impressão de que os personagens foram desumanizados” (porque destitdos
da representação através do corpo) pelo trabalho.
O corpo como estímulo sensível também é fundamental em “Em Busca de Deus”
quando a religiosidade inicialmente surge como uma busca por representações espaciais
concretas lugares, monumentos e mbolos teoricamente revestidos de santidade e é
subitamente contestada pelo rosto e, sobretudo, pelo olhar de uma criança que transfere a
questão para o patamar da corporalidade, do humano, do pessoal. O recurso provoca ainda
o reconhecimento do próprio espectador como agente dotado de um corpo emrico, capaz
de ser “acionado” através dos mecanismos de funcionamento da obra. O público é
convocado explicitamente a tomar lugar na trama através da corporalidade que lhe é
atribuída no interior da narrativa.
__________________________________________
3.1.6 Construção de Relações Temporais-espaciais
Normalmente associa-se as delimitações temporais-espaciais presentes num produto
comunicacional a dados de natureza cognitiva, expressos através do texto verbal falado ou
escrito, o que é verdade, porém não exclusivamente. Os filmes apresentam um amplo
manancial de referências sensoriais que auxiliam o espectador no reconhecimento, ou
melhor, na construção de fronteiras de tempo e espaço onde a trama se desenrola. Nós que
aqui estamos por vós esperamos não foge à regra e emprega o sensorial para situar o
espectador.
A utilização maciça de imagens dos primeiros anos do século até o período
pós-Segunda Guerra, com declínio vertiginoso de cenas posteriores aos anos 60, ajudam a
202
formar o que chamamos de “atmosfera de cinema mudo”, através da ligação comum que a
audiência estabelece entre o preto-e-branco e os primórdios da sétima arte. No filme, chama
a atenção o número de imagens em tons de cinza, mesmo em se tratando de épocas onde as
cores já estavam disponíveis em deo ou no cinema. No caso, podemos falar numa
estratégia de auto-afirmação do filme em seu caráter historiográfico. O preto-e-branco
auxilia a idéia de autenticidade das imagens, remetendo constantemente a um passado em
que as cores eram apenas uma aspirão do cinema. Nós que aqui estamos por vós
esperamos faz uso do clichê “o passado em preto-e-branco” para criar a sensação de
assistirmos a um grande flashback, daí grande parte do sentido de “filme-memória.
Assim, os recursos sensoriais nos transmitem a informação de que aproximadamente
cinqüenta anos são retratados na obra. Pode parecer um período muito extenso em termos
de delimitações narrativas, porém, quando lembramos que a proposta do filme é a de
retratar o século, fica mais palatável o recorte.
Outra dificuldade a ser enfrentada é a compreensão da espacialidade representada na
obra. Falar numa tendência ocidentalizante faz sentido, já que países os orientais são
normalmente exibidos no filme sob um ponto de vista que os aproxima da porção oeste do
globo. Em raríssimos casos, são vistos elementos de forte identificão sensorial vinculados
à cultura produzida fora da Europa e América. Mas ainda assim, a ocidentalização
permanece como uma resposta por demais ampla ao tipo de caracterização espacial
esperada num filme.
O que nos remete à suposição de um apagamento intencional das marcas sensoriais
que carreguem traços muito intensos de especificidades temporais-espaciais na obra, o que
abre caminhos para um outro tipo de retratação - a do genérico. Por exemplo, nas
seqüências iniciais do filme, a montagem reúne planos tipicamente relacionados ao contexto
de uma grande cidade: a fumaça; o trânsito; a vertigem provocada pela altura dos
arranha-céus; a paisagem de concreto; a quase inexistência de cores, texturas e sons ligados
à natureza; o ritmo de vida acelerado. A montagem do filme expulsa as peculiaridades
geográficas de cada paragem, construindo uma referência temporal-espacial generalizante: a
experiência da urbanidade.
Um dos fatores que permitem esse processo é o uso de planos fechados onde o
espaço em torno do personagem é pouco vivel; também há o emprego de planos abertos,
203
porém com restrição de imagens de identificadores culturais de largo alcance (a Estátua da
Liberdade como marca de ambientação nova-iorquina, por exemplo). O resultado é uma
relativa neutralidade que garante o bom funcionamento da montagem voltada para o
genérico. Obviamente, exceções, como a abordagem dos kamikases ou as imagens dos
muçulmanos caminhando em torno da Caaba, mas a concentrão de esforços em marcas
culturais restritas representa a minoria dos casos no filme.
Assim, Nós que aqui estamos por vós esperamos prova que nem sempre que o
detalhamento é o elemento fundamental único em termos de contextualização. E se “O
Alfaiate” tivesse saltado do alto de alguma outra construção, ao invés de da Torre Eiffel?
Perderíamos um mbolo importante dos ideais da Belle Époque, contudo, tamm parece
razoável creditarmos a um estímulo visual no caso a altura o desenvolvimento da
seqüência. Assim como é a transposição temporal pouco exigente (o homem poderia ter
saltado um ano antes ou depois, pouca diferença faria para o espectador) que permite a
transformação” do alfaiate na Challenger, através da montagem. O corte seco obriga o
espectador a se equilibrar em umvel conceitual, mais genérico. E são os estímulos
sensoriais que garantem essas correlações entre elementos díspares em termos espaciais e
temporais.
Mas é de fundamental importância destacar: esse acesso a uma contextualização
pouco definida começa a ser esboçado na estruturação da seqüência de Abertura, cuja
música suave e imagens de nuvens transmitem a sensação etérea de que estamos
mergulhando num sonho, aos auspícios da Rainha Freud”. O eixo psicanalítico, nesse caso,
é o que oferece respaldo à abordagem historiográfica pouco convencional, inclusive pela
rememoração constante da cientificidade” dos estudos freudianos, abrindo espaço para
composição de pontes oricas que reúnem eventos originalmente dissociados, porém
interligados por uma montagem que explora as potencialidades plásticas e poéticas dos
planos.
Em segundo lugar, estímulos sensoriais dissonantes são reunidos com o intuito de
obrigar o espectador a repensar diferenças e similitudes aparentes de cada imagem e som,
construindo novos contextos temporais-espaciais às vezes inverossímeis em relação à
realidade” extra-textual, porém extremamente condizentes com a proposta do filme.
Vejamos o caso da seqüência “Elas”. Planos dos primeiros anos do século XX são
204
reunidos a representações femininas das décadas de 30, 40 e 50. A discrepância de cenários,
o óbvio distanciamento etário e racial entre as mulheres, a diversificação no vestuário e,
principalmente, as diferenças radicais na granulação das imagens não são minimizados
através de efeitos de edição digital. Ao contrário, o intuito da montagem é mesmo o de
promover o choque. Segundo Jean Claude Bernadet, a surpresa gerada no espectador pelo
contraste entre os planos abole o efeito narrativo linear e a preocupação cronológica,
projetando a significação para ovel conceitual:
As diversas imagens que compõem a seqüência, ao conectar
entre si épocas diversas, mulheres diversas, atividades domésticas
diversas, dilui a particularidade de cada uma delas para evoluir para
o genérico. Este se constrói quando o espectador percebe o ou os
denominadores comuns das várias imagens, expulsando as
diferenças. Não é a soma de uma mulher dos anos 10, e de outra
mulher dos anos 30, e mais outra dos anos 50, mas: A mulher
pós-guerra, significação conferida pela nova montagem. As
diferenças são expulsas, o que não implica que fiquem totalmente
inoperantes: a sua expulsão reforça o denominador comum.
(BERNADET, 1999)
A variedade de imagens e sons reunidos, no entanto, às vezes também exige a
aplicão de artifícios sensoriais de maneira menos sofisticada na montagem para garantir a
unidade das seqüências. A moldura amarelada e o retorno constante das incrustações ao
ponto de onde partiram em “Elas” o um exemplo. Eles garantem a permanência do fio
condutor que interliga as imagens e sons a uma só idéia – a ascensão feminina.
O som também se apresenta como um elemento de unificação temporal-espacial em
mais de um segmento do filme, como no instante em que são exibidas imagens de soldados
em diferentes situações no cotidiano de uma guerra, porém sempre sob os mesmos rdos
de batalha, transformando o ataque e o perigo em sensações onipresentes ainda que as
imagens não correspondam às explosões ouvidas.
205
Outro aspecto de caracterização temporal-espacial a ser considerado é o ritmo
cinematográfico. A constância ditada pela submissão da velocidade de exibição das imagens
à leitura das legendas ajuda na retratação de época que lembra a do Cinema mudo. O
passado” materializa-se sob a forma de ritmo, já que evidencia uma obra liberta das
amarras do diálogo (que muitas vezes pode determina o momento do corte).
Mas é crucial ressaltar que todos esses efeitos demandam certo tempo para
funcionar. Alguns instantes são necessários para apreensão do ritmo, para o reconhecimento
da unificação através dos sons, das molduras e mesmo o sentido da reunião de planos de
mulheres diversas formando o conceito “mulher”. Esses são processos que se desenvolvem
somente a partir da sucessão de imagens, em função do estilo de montagem tradicional
linear. O espectador precisa de, no nimo, dois ou três planos para compreender
plenamente o sentido de generalização construído.
O que não significa que Nós que aqui estamos por vós esperamos trabalhe sempre
através da lógica da sequenciação linear e apresentação consecutiva das ações.
momentos de exceção no filme, em que a montagem tradicional lugar à adoção do eixo
vertical de simultaneidade, através do emprego de incrustões. Nesse caso, a tela deixa de
exibir o recorte espefico de um lugar e de uma época para tornar-se uma arena de
convergência multitemporal e multiespacial.
É bem verdade que experiências desse tipo foram realizadas na montagem
convencional. Porém, em função do grau de dificuldade técnica de inserção de incrustações
através de meios não-digitais, no suporte fotoquímico o processo é bem mais raro e a
montagem acaba por desenvolver-se basicamente por meio do choque entre os planos,
enquanto na edição o-linear, verifica-se a maior profusão de experimentações no sentido
de construção de uma montagem intra-planos.
_________________________
3.2 PROGRAMA SENTIMENTAL
_________________________
206
A análise de Nós que aqui estamos por vós esperamos revelou um menor número de
estratégias sentimentais se comparadas às diretamente ligadas aos programas sensorial e
cognitivo, o que não equivale dizer, entretanto, que haja baixo investimento nas tentativas
de envolver o espectador e conduzi-lo a estados emotivos. Numericamente em
desvantagem, as artimanhas sentimentais viram o jogo em termos de intensidade de efeitos.
E justamente através de um mecanismo essencial para a compreensão do filme que já tinha
sido tratado na pesquisa, porém sob viés sensorial: a corporalidade.
Nós que aqui estamos por vós esperamos é estruturado sobre o pilar da
corporalidade. Fatos, revoluções, tendências, tragédias e momentos de banalidade” são
viabilizados através do vculo corporal. No filme, o século são os homens e mulheres que o
constitram. Portanto, também é em grande parte nessa ferramenta que está alicerçado o
programa sentimental em vigor na obra.
_______________________________________
3.2.1 Coporalidade e Identificação
Talvez a forma até hoje mais empregada pelo Cinema para envolver emocionalmente
o público se por meio da promoção de identificação com os personagens. Um tipo de
artifício o arraigado na tradição lmica que sua exclusão é uma das principais categorias
utilizadas identificação de obras ditas não-lineares, segundo os critérios adotados por
Dancyger (DANCYGER, 2003, p. 413). Assistir a uma obra que não apresente pontos de
interseção entre audiência e personagens, sequer o protagonista, cria um tipo de
estranhamento em relação ao produto que muitas vezes chega a inviabilizá-lo
comercialmente.
Mas é importante destacar: reconhecer-se nas telas na figura de uma dona-de-casa
de meia-idade brasileira, um jovem boiadeiro americano ou um aspirante a fotógrafo
japonês não significa que espectador obrigatoriamente compartilhe das caracterizações
exibidas, mas que tenha recebido instruções suficientes da obra para compreender os
207
pontos-de-vista adotados por cada figura exibida na tela. A fim de estabelecer instâncias de
identificação, mesmo um personagem insano deve atuar segundo uma lógica institda na
obra, o que nos permite sentir pena ou raiva diante da demência que o mobiliza às ações.
No entanto, o processo de construção dos personagens demanda certo tempo.
Costuma-se iniciá-lo através da contextualização geral da trama (onde e quando a ação se
situa), passa-se à apresentação do personagem e o detalhamento de suas motivações para
gerar ou reagir a um evento narrativo. A identificação, nesse caso, é construída através de
elementos cuidadosamente empilhados sobre o tempo e cujo rejunte é garantido pela
familiaridade gerada. O tempo de conquista e envolvimento do público é tão importante que
normalmente as narrativas cinematográficas preferem destinar toda ocasião possível para
iluminar as intenções e gestos de apenas um, no máximo dois protagonistas.
Mas como imaginar esse tipo de progressão gradual em Nós que aqui estamos por
vós esperamos tendo em vista o número de personagens e ações representadas no filme? A
aproximação delicada e crescente a cada participante da trama inviabilizaria o próprio
formato da obra.
A saída encontrada para abordar os eventos cruciais do século “encarnados” nos
personagens sem reduzir em demasia o vel de engajamento emocional do espectador é
acionar o mecanismo de identificação através do recurso mais primário de reconhecimento
visual: o corpo humano.
O indiano minerador Nehru Gupta impressiona não pela trajetória pessoal de
superação ou algum envolvimento amoroso mal sucedido. Toca-nos a sujeição sica do
personagem ao confinamento e escuridão da caverna, o peso sob o qual os ombros
adolescentes são envergados.
Da mesma forma que é o martírio corpóreo que choca na seqüência “Família Jones”,
mais do que a informação sobre os laços de consangüinidade entre as vítimas.
O corpo é o veículo da hesitação que aproxima o espectador do alfaiate Reisfeldt ou
da expectativa e susto marcados nas feições das testemunhas da tragédia com a challenger.
A corporalidade, em contornos sinuosos, femininos, materializa a ascensão da
mulher no século XX, através da moda, da arte e da dança.
Sobretudo o olhar dos personagens é explorado ao máximo através da seleção de
planos na montagem com intuito de “queimar etapas de aproximação e lançar ao
208
espectador um apelo direto de ordem sentimental. Aparentemente dispensando a
intermediação do narrador, o olhar cravado na câmera transmite a impressão de que os
equipamentos de registro cinematográfico desaparecem no processo fílmico e o personagem
também pode “ver” o público do local e tempo narrativos onde se localiza. É claro que
essas são sensações que a própria audiência reconhece como impossíveis, o que o
minimiza o poder de inscrição da intersubjetividade no texto visual através do olhar.
Os simulacros de interação presentes em Nós que aqui estamos por vós esperamos
baseiam-se nos artifícios de construção de pessoalidade e impessoalidade reunido numa
montagem que explora intensamente a facilidade, seja através do protocolo do olhar (como,
por exemplo, a picadela cúmplice e sedutora da banhista ao público, no final da seqüência
Elas”), seja através de planos que exibem toda estranheza do rosto inerte, já sem chances
de fixar o olhar em qualquer objeto (como no caso do primeiro integrante da Família Jones
mostrado, deposto num saco mortuário ainda com o rosto sujo pela batalha e
impressionantes olhos abertos para o nada).
Contudo, o filme explora a corporalidade não apenas como apelo explícito de
caráter sentimental, a aparência acidental do registro corpóreo em imagens também assume
papel importante na obra. Personagens fora dos parâmetros de beleza, fotogenia e
performance profissional dão credibilidade às cenas em que os personagens aparentam
ignorar a presença do equipamento cinematográfico ou demonstram acanhamento diante da
situação. Nesse caso, convencer o espectador das possibilidades de identificação com os
personagens se por meio de uma comunicação corporal de feições “naturalistas”, não
ensaiadas e que funcionam como cartão de visitas dos personagens, tão “comunsquanto o
público.
Tamm é graças à corporalidade que o principal instrumento de produção do afeto
e identificação se articula em Nós que aqui estamos por vós esperamos. Através do corpo e
o reconhecimento de sua fragilidade e transitoriedade que atingimos o nervo central da
obra: a certeza da morte.
Estabelecemos vínculos de solidariedade e compaixão com nossos companheiros ou
predecessores na grande aventura histórica retratada no filme, em grande parte pelo retorno
obsessivo da obra ao tema da finitude. Os momentos de transição entre cenas exibindo
planos de cemitérios, a música suave, os efeitos de fade-in e fade-out, as legendas com um
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conteúdo similar ao de lápides (datas de nascimento e morte) e a insistência da obra nos
conflitos armados que marcaram o século XX atribuem à morte um caráter de onipresença
no filme, mesmo quando o assunto parece desviar-se para outro foco. No final de cada
seqüência, percebe-se o caráter circular da montagem e um novo retorno ao ponto de
partida: cruzes e sepulcros.
Mas é preciso observar que o programa sentimental em Nós que aqui estamos por
vós esperamos cria uma atmosfera emotiva bem diferente da observada em outros filmes
que também se detêm na morte como tema. É comum encontrarmos em produções
audiovisuais a construção de um clima de expectativa nos momentos que precedem a morte
de um personagem. a aceleração do ritmo cinematográfico através do uso progressivo
de planos de curta duração e corte seco. As obras apostam na construção do sentido de
antecipação muitas vezes até de dúvida sobre o destino do(s) sujeito(s) retratado(s).
Have mesmo alguma morte? Como e com que impacto? O grande número de planos
reservado aos instantes decisivos permite a distensão temporal da seqüência, enquanto a
súbita diminuão do ritmo através da câmera lenta se tornou lugar-comum no cinema
para definir o segundo exato do golpe fatal e da morte.
Excetuando-se pela representação de “O Alfaiate”, Nós que aqui estamos por vós
esperamos segue ostensivamente na contramão desse modelo. A montagem constrói um
ritmo contrário à progressão de natureza fortemente antecipatória, além de excluir quase
completamente os planos que exibem a morte dos personagens. As legendas que
apresentam datas natalícias e mortuárias, normalmente o exibidas no icio das
seqüências, ou seja, o tempo de vida dos homens e mulheres que vemos na tela já não é
mistério, é fato consumado, ajudando a afastar o espectador dos sentimentos de comoção
intensa. O fim de cada personagem assume uma perspectiva passada, vista já com algum
distanciamento temporal e emocional. O resultado é a criação de uma atmosfera mais
melanlica que de desespero ou desolação.
Por outro lado, o tipo de abordagem apresentada também impede a indiferença
completa por parte do público. Mesmo não sendo uma experiência vivenciada no tempo
presente” da narrativa, a morte mostra-se como destino final não de um personagem, mas
de gerações sucessivas. A perspectiva de aniquilamento – breve ou distante – alcança
inclusive o espectador, postulando continuamente sua condição de efemeridade,
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incluindo-o, de alguma forma, no conjunto representado. Sentimos, moderada e
tranqüilamente, pelos personagens simpáticos ou deploráveis mostrados. Porém, somos
afetados mais incisivamente pelas referências de âmbito estritamente pessoal (“por vós
esperamos”). O filme mina a possível apatia da audiência espelhando no passado dos
personagens o futuro inescapável de cada integrante do público.
Mesmo que surjam argumentos de que a discussão sobre a morte não deve ser
restrita à corporalidade e que aspectos ligados à sobrevivência da alma após a morte podem
ter lugar na trama, essa não é exatamente uma saída em se tratando do universo particular
de Nós que aqui estamos por vós esperamos. A seqüência “Perto de Deus” funciona
exatamente para afastar possíveis tentativas de remeter a discussão sobre o sentido de
finalidade da vida humana ao patamar religioso. Sistematicamente, o filme questiona o tipo
de atuação de religiões tanto do Ocidente quando do Oriente, apresentando a criança
sozinha e desamparada no meio da multidão como um alerta imediato para que se pense
menos no “futuro espiritual e mais no presente de imperfeições e desigualdades. Assim,
retorna-se ao corpo, em suas múltiplas manifestações exibidas na tela e seu caráter efêmero,
como a grande matriz de estratégias emocionais.
_________________________________________
3.2.1 Constituição de atmosferas sentimentais
A morte como tema, aliada a uma abordagem muito rápida de cada personagem e ao
formato de set pieces, permite que pensemos em Nós que aqui estamos por vós esperamos
como uma obra marcada pela constituição de múltiplos “climas” ou “atmosferas”
emocionais, aqui compreendidos como resultados de um conjunto de fatores fílmicos que
geram tendências regulares de leitura do ponto de vista afetivo. A diversificação de
atmosferas sentimentais segue a direção contrária do que normalmente ocorre em filmes
dedicados à caracterização detalhada dos sujeitos da trama. Nesses últimos, os programas
sentimentais tendem a acompanhar um reduzido número de trajerias, muitas vezes apenas
uma (a do protagonista), apresentando artifícios que normalmente tornam os personagens
principais únicos aos olhos do espectador.
211
em Nós que aqui estamos por vós esperamos, a intenção é exatamente oposta:
fazer com que o personagem assemelhe-se a muita gente, com um sujeito comum, que
podemos reconhecer em centenas de outros fora da sala de cinema. O que deve ser especial,
segundo a lógica do filme, é o sentimento acarretado pelas condições e circunstâncias
históricas que cercam os personagens: a solidão e o choque que a guerra implica e não a
admiração ou decepção pelo desempenho heico ou covarde do soldado; a tristeza pelas
vidas consumidas na lama de Serra Pelada, mais do que as dúvidas sobre o destino do único
garimpeiro chamado Antônio; o sentimento de injustiça frente ao operário das fábricas Ford
que nunca pôde adquirir o próprio carro é mais importante que saber quem era o amigo que
compartilhava do piquenique dos domingos.
Por isso a maior atenção aos “climasemocionais que ao processo de composição
dos personagens durante a pesquisa sobre o Programa Sentimental, que identificou o
investimento da obra em sete principais atmosferas sentimentais, além da citada
melancolia em função do obrigatório reconhecimento da mortalidade do próprio espectador.
a) O sentimento de exultação devido aos avanços científicos, tecnológicos e artísticos
alcançados no século XX corresponde exatamente aos instantes em que o ritmo do filme é
mais acelerado, principalmente na seqüência “Nijinski”. Aqui, a previsão da morte se
apresenta de maneira mais difusa e a montagem emprega a multiplicidade de planos para
transmitir a iia do alcance em larga escala dos novos benefícios, bem como a possibilidade
de rapidez na difusão dos recursos. Inclusive as legendas, normalmente apresentando um
tom pouco otimista no filme, nesse bloco estão voltadas para exaltão do potencial dos
grandes criadores do século: as primeiras gerações que conviveram em seu cotidiano com
uma produção em série de idéias, matemática abstrata, maquinários complexos (...)”.
O júbilo pela grandeza humana também é o motor de “4 Pernas”, cuja montagem
revela-se um elogio ao domínio do homem sobre o corpo, não mais visto com um relógio
implacável que guia rumo ao fim, mas como instrumento de imortalização através da beleza.
Marta-Pablito é outro segmento que lança luzes ao poder construtivo da
humanidade, mostrando a superação dos riscos e conseqüente vitória sobre o medo,
212
retratados através dos efeitos de edição digital de inversão do eixo da imagem (a
vertigem”).
Já em “A Solidão e a Guerra”, as cenas de enfrentamento direto entre o manifestante
da Praça da Paz Celestial em Pequim e os tanques de guerra o tão inspiradoras em sua
representação dos limites da coragem humana que parecem peça de ficção, mas que o
conhecimento prévio do espectador resgata como imagens exibidas em telejornais de todo o
mundo e, por isso mesmo, ainda mais impactantes.
A própria seqüência “Domingos” é também uma celebração à capacidade criativa e
renovadora do artista, ao reunir a atitude contestatória de Duchamp em relação à história da
arte a força das retratações de Hooper e Munch e a irreverência de José Leonilson e seu
incomparável travesseiro assinado Ninguém”.
b) O contentamento, no entanto, não representa a maioria dos esforços da obra na
composição do Programa Sentimental. Outras seqüências foram inclusas no filme
devidamente para relativizar a idéia de progresso construído ao longo do século. Ford T” e
A Luz Elétrica, o Rádio e a Aspirina” são os segmentos mais claramente constrdos com
a finalidade de oferecer um contrapeso ao otimismo apressado, capaz de levar o espectador
ao equívoco de ver ganhos e evoluções no período. Falamos aqui num clima de
desapontamento. A montagem assume um caráter até convencional nesses dois trechos,
estando fortemente estruturada sob os auspícios do texto verbal escrito, no entanto,
transmite com clareza o sentido de desigualdade profunda na distribuição de riquezas
produzidas. Algumas vezes de maneira óbvia, como na retratação do personagem que não
tinha luz em casa, mas morreu na cadeira elétrica. Em outras, a abordagem é indireta, como
na reconstituição da onda consumista s-Segunda Guerra Mundial e no clima de
felicidade de propaganda” adotada pelos vorazes compradores de bens de consumo. As
dores de cabeça (também devidamente acompanhadas de uma solução disponível para a
compra a aspirina) permitem especulações sobre o desequilíbrio e infelicidade geradas
pelo estilo de vida capitalista. Entre a mulher obesa que passava as tardes em frente à TV e
o grupo de pessoas magérrimas que conheceram a transmissão televisiva quando ela já
era colorida, institui-se um fosso profundo, sem soluções apontadas no filme. O clima
sentimental decorrente desse reconhecimento do problema, mas sem perspectiva de
superação, é de injustiça e revolta.
213
c) Outras seqüências, contudo, investem mais fortemente nos elementos de montagem que
constroem uma atmosfera de fracasso absoluto do homem no século XX, sem paliativos ou
contrapesos. A sujeição humana às condições precaríssimas na lama de Serra Pelada; a
transfiguração da família japonesa em fumaça após o arremesso da bomba amica sobre
Hiroshima; e a insistência no conflito armado como forma de resolução de impasses (a
despeito das lições da história), exibida através da Família Jones, não deixam dúvidas sobre
o malogro dos sonhos de crescimento econômico, científico e social ininterruptos durante o
século XX.
E, nesse conjunto de fiascos, até a tecnologia aerodinâmica é chamada em causa. O
avião é transformado quase em personagemem Nós que aqui estamos por vós esperamos
justamente por seu uso expressivo como mbolo do progresso às avessas. Após o
fracassado salto do “Alfaiate” e a explosão da Challenger, o avião surge no filme
despejando bombas sobre as comunidades civis durante a Segunda Guerra Mundial, em
contraponto com as guerras anteriores, cuja área de alcance era essencialmente o território
rural e as vítimas, em sua maior parte, composta por adultos. O avião transforma a guerra
num fenômeno de amplitude global, não poupando qualquer área e matando homens,
mulheres, idosos e crianças, indistintamente.
Na seqüência “Hans e Anna”, Nós que aqui estamos por vós esperamos investe
numa montagem fortemente centrada nas iias de deslocamento intra e interplanos
(retratando o drama dos refugiados e a movimentação de tropas), explicitando a guerra
como destruidora sistemática de todos os benefícios adquiridos antes do conflito. A reunião
de elementos visuais primários, aqui, consti um conceito geral de tal impacto que irá, daí
em diante, influenciar toda a obra: a decadência física representada pelos planos de sapatos,
roupas, casas, ruas e cidades inteiras em ruínas transformam-se também em marcas da
decadência moral de uma sociedade voltada à auto-destruição.
Justamente o que também é evidenciado na seqüência “A Solidão e a Guerra”. A
carta do jovem Kato aos pais, com todo apelo emocional que a envolve (inclusive o
reconhecimento da infelicidade que é a sobrevivência dos progenitores ao filho) evidencia o
fracasso primário de toda uma geração em conviver com o sentido de perda. Do ponto de
vista afetivo no filme, a derrota mais clara ao espectador é a de cunho psicológico do
214
personagem, extremamente representativo no que diz respeito à valorização das conquistas
licas e banalização da vida - sobretudo das alheias haja vista que o kamikase representa
também o assassinato do inimigo. Kato simboliza o fiasco fragoroso de século que prefere a
morte à rendição, em nomes de ideais questioveis e perecíveis.
Contudo, é provel que em nenhum outro momento do filme as conseqüências
danosas do século XX e sua promessa falida no sentido de promover a felicidade humana
sejam tão claros quanto na retratação do choque de guerra” (assim definido pelas
legendas) de Pierre Ledoux: seus tremores incontroláveis e sons desconexos que parecem
refletir toda a perturbação provocada pela moléstia oferecem uma perspectiva de vida talvez
pior do que a morte. A montagem nesse caso sublinha a preponderância da vida interior do
personagem através da construção de um padrão sonoro estruturado em sincronia coma
superfície vivel na imagem e em volume crescente. Em termos emocionais o correlato à
seqüência é a desolação e a pena.
Os sentimentos de fracasso, insatisfação, perda de tempo, esforços e vidas em vão
dão o tom no encerramento do filme, quando uma incrustação exibindo um homem sentado
sobre as rodas de um trem, com ar tristonho, acompanha a citação:
“Dizem que em algum lugar,
parece que no Brasil,
existe um homem feliz”
Maiakovski, 1907
O nome do poeta russo, citando o Brasil como um lugar desconhecido, pouco
preciso, distante e referido como um objetivo inatingível, resume toda busca inútil realizada
pelos personagens do filme. Mas, ao mesmo tempo em que transforma a inscrição no
pórtico do cemitério (“Nós que aqui estamos por vós esperamos”) numa determinação final
sobre o fim comum e inequívoco, paradoxalmente também lança num desafio para a
construção de uma realidade menos grotesca.
Não todos, mas pelo menos a metade dos personagens escolhidos para retratar o
215
século em Nós que aqui estamos por vós esperamos são representões do fiasco, do
patético, do desastroso, da mediocridade e da tragicômica circularidade dos equívocos
acumulados no período.
d) Mas o fracasso não impede que surjam (aliás, às vezes até alimenta) momentos de humor
em Nós que aqui estamos por vós esperamos. A colagem de irrelevâncias e fiascos na obra
por vezes reveste-se de um espírito juvenil, disposto a revelar o patético e riculo que
desponta num filme quase sempre sóbrio.
Completando a descrição do conjunto de reivindicações dos trabalhadores do met
de Nova York, no ano de 1901, o filme chama a atenção do espectador para o que de
peculiar na imagem. A legenda muitos bigodes faz-nos perceber que todos os
manifestantes, de fato, ostentam bigodes e o quanto de graça na reunião de um número
enorme de homens adultos, de expressão tão séria, todos iguais, na ingênua crença de que a
uniformização aparente representa a união formal e indissolúvel entre eles. Adentra-se aqui
no universo quase infantil de rir das roupas antigas, vistas em fotos ou filmes, dos penteados
elaborados, das maquiagens estranhas e hábitos diferentes dos atuais. A relativização
histórica é devidamente dispensada e somos convidados a um julgamento estético bem
pouco complacente, mas quase sempre muito divertido. Na sala de cinema, estamos longe
da censura blica e no caso de Nós que aqui estamos por vós esperamos ainda contamos
com a benevolência e a colaboração do narrador numa brincadeira sem maiores
conseqüências. Longe dos adultos, as crianças riem dos outros. Institui-se um clima ameno
de brincadeira e cumplicidade.
Numa operão similar, porém agora incluindo também o espectador no alvo da
chacota, Nós que aqui estamos por vós esperamos descreve o cenário de transformações
tecnológicas do início do século XX:
Câmeras Kodac registram
os instantâneos das
primeiras gerações que
conviveram em seu cotidiano com
uma produção em série de idéias,
216
matemática abstrata
maquinários complexos,
refinadas bombas
e muitos botõezinhos
O termo tão coloquial, botõezinhos”, coloca os grandes avanços no âmbito do
homem comum, ignorante em relação ao conhecimento especializado que garante a
evolução científica e tecnológica, mas que – pela circulação em massa de produtos – tem de
lidar com equipamentos nem sempre muito fáceis de manusear e compreender. A legenda
faz referência ao tipo de relacionamento estabelecido com a quina, muitas vezes
institdo sobre bases completamente empíricas no esquema tentativa-erro-acerto. E como é
difícil imaginar alguém que atualmente domine todas as áreas do saber, é plenamente
razoável prever o reconhecimento da condição de leigo por parte do público em geral e
imaginar um sorriso discreto no rosto do espectador que lembrou-se de certos
botõezinhos” incômodos no seu dia-a-dia.
Já na seqüência Elas”, somos convidados a compartilhar da risada franca dos
meninos que ludibriam um “distinto cavalheiro”, pregando um cartaz em defesa do voto
feminino nas costas de seu paletó. A cena lembra ao espectador toda a série de posturas
irredutíveis no passado e que hoje parecem descabidas e riveis. Do mesmo modo como
acontece quando vemos a fotografia (também em “Elas”) de um policial medindo a
quantidade de pele exposta por um maiô ousado no início do século XX, mas que hoje seria
tão discreto que pareceria riculo.
A própria referência ao poeta russo Maiakovski sobre o Brasil contribui com certo
toque de humor, porém um humor de cores pálidas, melancólico, em certa medida, similar
ao de Chaplin.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, o impacto causado pelas breves
tiradas de humor possui uma função similar à dinâmica rítmica: impede que a constância
ininterrupta da seriedade gere monotonia, lançando o espectador a níveis de interação
afetiva diferenciados. Construir instantes procios à variação de estados emocionais (a
pena, o choque, a indignação, o humor, a expectativa, a angústia...) transforma o filme
numa experiência sentimental mais rica, o que não significa que haja sacrifício do sentido de
217
coesão da obra. Mesmo que estejamos tratando de diferentes climas afetivos, todos eles
estão rigidamente submetidos ao sentimento genérico de melancolia e perda ligados à
vinculação entre os temas abordados e a morte.
e) Outra instância de envolvimento do espectador relacionada ao Programa Sentimental e
que ajuda a minimizar a sobriedade do filme vincula-se diretamente ao eixo
microhistoriográfico adotado na obra: a criação de uma atmosfera de “cotidianidade”.
Ao reunir planos que exibem cenários e iluminação naturais, personagens cuja
atuação” distancia-se dos moldes profissionais e ações de pouca importância do ponto de
vista da historiografia tradicional (como lavagem de roupa, diversão em piqueniques,
empacotamento de cigarros, levantamento de cercas, costura de peças de roupa e limpeza
do lar) a montagem constrói uma rede de estímulos visuais que instituem um clima de
casualidade e até intimidade. A própria impressão de que muitos personagens não percebem
a câmera ligada e ignoram que estão sob a mira do equipamento facilita esse processo.
Quando o espectador é apresentado a um trabalhador rural que “nunca foi à guerra,
nunca viu uma imagem de TV e gostava de Coca-cola” (seqüência “Marta-Pablito”), ele é
remetido a um estilo de caracterização de personagens pouco condizente com a descrição
da trajetória de um herói e cujo foco de interesse é justamente a rotina, não a exceção. A
lanterninha que hoje” está cansada (“Marta-Pablito”), o soldado que adora espaguete,
outro que é gay, aquele que tem uma namorada (sequência Família Jones”), a japonesa que
fazia bolinhos de arroz como ninguém (“Hans e Anna”), o vendedor de Big Macs&Fritas
(“A Luz Elétrica, o Rádio e a Aspirina”) ou a mulher que não perdia a Sessão da Tarde (“A
Luz Elétrica, o Rádio e a Aspirina”) são exemplos não apenas de retratação, mas de
valorização do banalno filme. Daquilo que parece nulo em termos de impacto sobre a
coletividade, porém que se mostra essencial na representação do homem anônimo que, no
final das contas, poderia ser também o espectador. Entra em cena novamente o fator
identificação como chave da engrenagem sentimental.
Mas abordar o cotidiano, o simples e o anônimo não significa rejeitar o sentido de
beleza no filme. Pelo contrário. Nós que aqui estamos por vós esperamos investe
firmemente em na aplicação de recursos como a música, efeitos de simulação de câmera
218
lenta, construção de um discurso visual sofisticado, texto verbal escrito de forte apelo
emocional e planos esteticamente elaborados justamente nas passagens em que o
aparentemente “banalé exposto. Um bom exemplo é o do saco sendo levado pelo vento
numa rua vazia, em baixa velocidade de exibição, justamente após o ritmo acelerado das
cenas que o precederam, na seqüência “Nijinski”. O choque entre os ritmos e a delicadeza
das imagens transformam o fragmento num instante de valorização do momento fugaz de
calmaria (e a possibilidade de registro pelas câmeras Kodac”) em meio ao caos de uma
grande cidade.
A atmosfera de cotidianidade” acaba também imprimir um quê voyerista a Nós que
aqui estamos por vós esperamos. O efeito de máscara sobre a animação das fotos no
casamento de Hans e Anna, seguido de um emprego de dispositivos cromáticos que
remetem ao formato de um buraco de fechadura criam um clima de curiosa observação da
vida íntima dos personagens. Na mesma linha, a obra permite entrever também a sugestão
de um encontro sexual no quadro de Edvard Munch, a semi-nudez de uma mulher no
espaço privado do quarto, pintada por Edward Hopper e o travesseiro do “NinguémJosé
Leonilson. Elementos que, reunido, comem um clima de leve indiscrição em Nós que
aqui estamos por vós esperamos.
f) Outro caso, bastante diferente, encontramos nas seqüências em que o Programa
Sentimental reúne artifícios no sentido de criar uma atmosfera afetiva voltada às impreses
de orgulho por conquistas arduamente construídas ao longo de gerações. Na seqüência
Elas”, por exemplo, o número de legendas realmente “informativas” (exibindo datas,
nomes e sentido das imagens) é relativamente pequeno para a extensão do bloco. No
entanto, diversos fragmentos verbais escritos apresentam citações de poetisas e pensadoras
que produziram trabalhos importantes sobre a condição da mulher especialmente nas
décadas de 40 e 60, trechos com elevador teor poético, que não apresentam conteúdo
cognitivo de destaque (no filme), mas de suma importância para caracterizar os sentimentos
de liberdade, audácia e enfrentamento direto em relação a uma sociedade e cultura que
milenarmente basearam-se na supremacia masculina. Vejamos dois exemplos
219
“E se eu te amasse na quarta,
não te amarei na quinta.
Isso pode ser verdadeiro
Por que você reclama?
Te amei na quarta sim, e daí?
Edna Vincent Millay
Poet 1892 - 1948
“Minha vela
Queima dos dois lados.
Não durará a noite toda.
Mas oh! Meus amigos,
ah! Meus inimigos
É de uma luz maravilhosa!”
Do ponto de vista visual, “Elas” também investe em planos que denotam sentido de
extrema agitão e movimento constante, especialmente pelo grande número de tomadas
apresentando números de dança. a música não apresenta grandes variações, salvo pela
inclusão de uma voz feminina entoando uma canção. Porém o mais importante é a
combinação final dos elementos que orienta o espectador no sentido de ler “Elas” como um
bloco coeso, de forte teor emocional, porém não do ponto de vista terno ou romântico,
como o público poderia associar em princípio (pela relação com o feminino). O segmento
mostra a trajetória ascendente do sentimento de contestação culminando com um sinal
amistoso de uma banhista em direção à câmera. O interessante é notar que o mero gesto de
uma das mulheres da seqüência, ao piscar “para o espectador”, automaticamente tira-o da
mira de fogo das feministas, situando-o quase como um colaborador ou pelo menos alguém
simpático à causa. Um tipo de envolvimento que oblico poderia nem assumir, mas que o
filme institui através do manejo dos articios.
Outro momento em que o desafio é o mote pode ser localizado na segunda metade
220
da seqüência “A Solidão e a Guerra”. Porém, aqui, todo o efeito é garantido através da
variação de um único recurso: a música. Até então haviam sido mostradas no segmento as
cenas de Heinrich Straken (o soldado costurando meias no acampamento militar), Pierre
Ledoux (do “choque de guerra”), do kamikaze e do monge que ateou fogo ao próprio
corpo em protesto contra o conflito entre EUA e Vietnã. Todas acompanhadas de uma
música suave, similar as do restante do filme. No entanto, a partir da exibição das imagens
de Chen Yat-sem (o professor de literatura que enfrentou os tanques chineses na Pra da
Paz Celestial) e depois sobre as fotografias dos índios brasileiros, a música é substitda por
sons desconexos, pouco articulados e que provocam desconforto no ouvinte. A diferença
condiz com os modos distintos de protesto construídos pelos últimos personagens da
seqüência: o desafio direto aos detentores do poder armado por parte dos manifestantes.
Sem a música, o bloco ficaria inteiramente unificado e é possível que o público não
distinguisse as diferenças entre as modalidades de manifestação. A música, entretanto,
orienta o tipo de leitura das imagens e constitui-se no elemento-chave para a criação da
atmosfera sentimental nesse caso.
g) Durante a análise do programa sensorial, mencionamos o comprometimento de Nós que
aqui estamos por vós esperamos com a verossimilhança em função de sua vinculação com o
formato Cinema-verdade”, porém também foram citadas algumas possibilidades de quebra
desse compromisso estreito, desde que a subversão ao estilo de representação “naturalista”
funcionasse para revelar camadas da “realidade” não viveis nas imagens captadas in situ,
ou seja, o filme poderia se utilizar de recursos de montagem para uma intervenção mais
radical sobre o conteúdo, porém, deveria fazê-lo partindo de idéias de alguma forma
sedimentadas. Dois dos três segmentos que veremos agora, encaixam-se exatamente nesse
padrão: a seqüência “Paranóia” e os trechos de Um Cão Andaluz utilizados em “Hans e
Anna”. O terceiro, o bloco “Viagem à Lua” representa um momento de exceção no filme e
extremamente importante do ponto de vista do programa sentimental. Os três, no entanto,
podem ser reunidos numa mesma categoria de efeitos de ordem emotiva por apresentarem
um eixo comum de abordagem: o fantástico como instrumento de envolvimento e fascínio.
Em Viagem a Lua”, percebe-se a importância de alguns elementos de pouco
destaque nas demais seqüências de Nós que aqui estamos por vós esperamos: os cenários,
221
profusamente decorados e confeccionados a partir de pinturas; grande número de figurantes
e atores profissionais; comunicão corporal vinculada à mímica e gestos típicos das
apresentações abertas para o grande público; maquiagem carregada; e vestuário composto
por fantasias. A aproximação com a encenação teatral, contudo, não impede que sejam
observados diversos recursos tipicamente cinematográficos como os movimentos de
zoom-in e zoom-out; mudanças de locação somente a partir da sugestão de continuidade
entre os planos (os astronautas entrando na “nave” no planeta Terra e depois saindo do
transporte em terreno lunar); uso do corte seco diretamente entre tomares similares,
compreendido não como falha de continuidade, mas como elemento expressivo; e aplicação
de efeitos especiais como sobreimpressões, fotografias compósitas, exposições múltiplas do
mesmo negativo à luz e máscaras. O resultado é a criação de um clima lúdico, circense,
onde o espectador reencontra a atmosfera característica das obras voltadas ao público
infantil, em que os limites entre o possível e a imaginação tornam-se indistintos. Astronautas
trajados com roupas militares, foguetes arremessados por imensos canhões pintados no
próprio cenário e monstros lunareso parecem deslocados na trama e aceitação das
premissas absurdas transforma-se no passaporte para a compreensão da narrativa.
Mesmo a inclusão de Leary e a referência ao consumo de drogas não destoam do
conjunto, haja vista que sua vinculação ao filme de Méliès descaracteriza o enfoque usual de
criminalidade. A rejeição ao estado opressivo das coisas apresentada nas legendas
(“Sintonize, se ligue, caia fora!”) estabelece uma conexão com os homens que literalmente
abandonaram a Terra, enquanto as incrustações de figuras célebres no século XX (Timothy
Leary, Mahatma Gandhi, Che Guevara, Martin Luther King e John Lennon) relacionam-se
aos fragmentos originais da obra de Méliès ao construir uma representação genérica de
homens que buscam a aplicação de horizontes e utilizam o potencial humano para expansão
das fronteiras conhecidas.
O eixo de ligação entre Viagem a Lua” às demais seqüências de Nós que aqui
estamos por vós esperamos fica por conta da legenda: “... discutindo assuntos terrestres”, o
que relaciona o clima de sonho e fantasia a sua aplicabilidade prática em termos políticos,
econômicos e culturais. O que temos é a instituição de uma breve uma atmosfera lúdica,
porém não admitida como “inútildo ponto de vista da intervenção sobre a ordem social.
Pelo contrário. Em “Viagem a Lua” o conjunto de personagens caracteriza-se justamente
222
como contraponto a toda a série de representações de passividade contidas no filme. Leary,
Gandhi, Guevara, Luther King e Lennon rompem a cadeia de personagens que apenas
reagem com maior ou menor intensidade às imposições históricas. Tanto que todos eles
aparecem discursando, ativamente apresentando seus pontos de vista nas incrustações, o
que, de certa forma, muda um pouco a atmosfera no final da seqüência, imprimindo ao
segmento um tom de ação positiva, trabalho, rebeldia, vigor e luta.
A reunião de celebridades distanciadas por décadas e locais de atuação também
ajuda no sentido de construir uma representão pouco localizada: trata-se aqui de um
vislumbre de toda uma trajetória de contestação constitda por gente de toda parte, não de
figuras esparsas. O resultado é que o clima sentimental fantasioso não dá lugar à fria
realidade”, o que se observa é uma sofisticação discursiva que permite a coexistência de
ambos.
Um Cão Andaluz, cujas cenas estão presentes na seqüência Hans e Anna”, também
é um produto essencialmente vinculado à natureza imaginativa do fazer cinematográfico em
suas possibilidades de criação de mundos “fechados”, explicitamente ficctícios, mas nem por
isso considerados como falseamento da realidade.
No entanto, esse segundo caso difere radicalmente da atmosfera sentimental
verificada em “Viagem à Lua”. O clima é o de um pesadelo, onde o horror pode se
manifestar sob qualquer forma. Corpos decepados, morbidez na apreciação do sofrimento
do outro, certa familiaridade com elementos que deveriam causar aversão (como “brincar”
com uma mão decepada no meio da rua) e até comoção com o esdrúxulo (apertar com ar de
gratidão a pequena caixa contendo a mão mutilada) o aceitáveis nessa lógica de subversão
à lógica vivel. Em grande parte porque determinados níveis de crueldade no universo
extra-textual são tão elevados que apenas uma situação absurda poderia representá-los.
que se ter em conta, por exemplo, que num contexto de aniquilamento em massa como na
Primeira e Segunda Guerras Mundiais, obras como Um Cão Andaluz ou Guernica, de
Picasso, podem causar mais impacto que fotografias tiradas nos campos de batalha. Existem
casos que somente uma atmosfera sentimental absurda pode representar uma realidade o
menos caótica.
Paranóia” segue uma vertente similar, porém o mote é a retratação da loucura.
A atmosfera de distorção da realidade é criada através de um fundo negro
223
(exatamente o oposto do cenário extravagante de “Viagem à Lua”); da música
desconfortável aos ouvintes; e da fixação intensa em poucos personagens, apresentados
isoladamente na tela como representação do egocentrismo e dominação. O preenchimento
completo da tela através da repetição da palavra “paranóia”, exibida conjuntamente com o
efeito de edição digital de distorção “em ondas” é o sinal vivel mais marcante de uma
estratégia de orientação de leitura em todo o filme. É muito difícil se pensar num outro tipo
de interpretação possível que o espectador possa tecer sobre a seqüência, mesmo que
porventura não concorde com o diagnóstico apresentado pela obra. As ondas” são
claramente percebidas não como um tipo de julgamento equivocado sobre as personalidades
históricas, mas como um erro primário de como os personagens apreendiam e interagiam
com o mundo. A montagem, nesse caso, apropria-se da premissa de que o espectador
detém a concepção “normal da realidade para atribuir ao outro a responsabilidade pela
distorção. “Vemos” o que seria o olhar do personagem.
No entanto, a atmosfera sentimental criada a partir da reunião completa dos
elementos o deslocamento das fotos, o som desconexo, as cores sombrias e as descrições
inquietantes do texto verbal escrito (“manifestação de desconfiança, conceito exagerado de
si mesmo, e desenvolvimento progressivo de idéias de reivindicação, perseguição e
grandeza”; “rude, provocador e nico”) impedem que o distúrbio seja encarado através
das lentes da compaixão. Apesar da obra apresentar o problema sob a ótica de um
desequibrio mental (em princípio algo que não é culpa do portador), a mobilização dos
recursos materiais assemelha-se significativamente à observada na retratação do Mal no
cinema. Mesmo que os dados de natureza cognitiva não exponham esse nculo, o
Programa Sentimental torna-o inegável.
Já o compartilhamento da distoão em ondas por diversos outros chefes de Estados
além de Hitler e Stalin, alguns muito distantes espacial e temporalmente entre si, faz com
que o espectador não relacione a paranóia” apenas ao fascismo ou a poucas figuras ilustres
do século XX. Sugere-se que o problema seja bem mais amplo do que se imaginava e não
exatamente individual, mas da espécie. É o que fica claro nas manifestações coletivas de
loucura” como no epidio da destruição coletiva de livros por soldados e estudantes, na
celebração e culto da superioridade ariana através dos fisiculturistas e através do também
paranóico ex-soldado nazista que fugiu para o Brasil e morreu sozinho, brigado com os
224
vizinhos. O programa sentimental consti uma atmosfera geral de insanidade que nos
obriga a pensar no desequibrio de um ponto de vista mais amplo.
Sete principais climas sentimentais foram identificados durante a análise: júbilo,
desapontamento, fracasso, humor, cotidianidade, orgulho e absurdo. Todos eles, contudo,
estão subordinados a um tipo de preferência que Nós que aqui estamos por vós esperamos
deixa evidente durante a apresentação dos temas: a representação dos personagens a partir
de um viés individualizante. Não são exibidas relações de amizade no filme, nem
envolvimentos afetivos entre casais, já que Hans e Anna casam-se um pouco antes da
partida do namorado para o front e, daí em diante, eles são mostrados isoladamente na
obra. Tampouco relações familiares são exploradas. Os Jones surgem como bisavô, avô, pai
e filho para possibilitar a identificação dos personagens com a cultura americana e sua
tradição em conflitos armados no século XX, com o consentimento reiterado de um povo
frente a auto-destruição sucessiva (mais do que como personagens com fortes vínculos
emocionais entre si). O erotismo também é excldo; o sendo posvel encontrar na breve
sugestão sexual do quadro de Hopper, em “Domingos”, um investimento significativo por
parte da trama. Nem mesmo crianças são vistas em Nós que aqui estamos por vós
esperamos, com duas pequenas exceções: a foto de Hitler em “Paranóia” e as imagens de
um menino em Perto de Deus”. Na quase totalidade de sua exibição, o filme aborda o ser
humano adulto, independente do gênero e sem dar idéia dos laços sentimentais específicos
criados entre os personagens. Sabemos apenas de sua busca individual e incessante por um
sentido de finalidade e felicidade, dos momentos de glória particular, de solidão, choque e
desafio. E nessa individualização extrema, define-se um microcosmo sentimental que define
a narrativa como algo mais que uma reunião das histórias de João, Marta e Hanns e sim
uma obra de foco único: o homem. A abordagem miniaturizante alcança o universal.
Outro aspecto a ser verificado: nem mesmo a oposição homem versus natureza é
trabalhada. Toda angústia enfrentada pelos personagens tem como causa condições geradas
pela própria ordem social institda. Assim, do ponto de vista afetivo, Nós que aqui estamos
por vós esperamos estabelece a situação amgua de apresentar um mesmo personagem o
homemsimultaneamente com protagonista e antagonista da trama.
225
_________________________
3.3 PROGRAMA COGNITIVO
_________________________
Não é exagero afirmar que o principal eixo sobre o qual se estrutura o programa
cognitivo de Nós que aqui estamos por vós esperamos é o tema morte. Mesmo quando os
segmentos parecem desviar-se do rumo e fugir do imperativo do reconhecimento da
finitude, a estrutura geral do filme intervém para enquadrá-los de alguma forma no mote
agregador inicial. O tecido básico de informações, com seus jogos de revelação,
ocultamento, alegorias e preferências tem na morte o princípio capital da trama. Um fator
que não impede, contudo, que possamos entrever a por vezes discreta outras explicita
apologia à vida que a abordagem da morte traz embutida.
Determinado por esses dois parâmetros que se pressupõem mutuamente, Nós que
aqui estamos por vós esperamos explora uma linha argumentativa que inspira ao máximo o
aproveitamento dos recursos produzidos século XX nos campos da ciência, arte,
tecnologia e entretenimento, ao mesmo tempo em que deixa evidente o quão frágeis e
passageiros são os esforços individuais de negação da mortalidade.
Conhecendo o pilar argumentativo da obra, o primeiro passo para o entendimento
do programa cognitivo é elencar o conjunto de temas discutidos no filme e suas formas de
apresentação no desenrolar da trama.
Subjacentes à discussão sobre a morte encontram-se imediatamente dispostos no
filme desdobramentos da dicotomia criação versus destruição, com reflexo direto sobre a
banalização da vida e da morte ao longo do século XX. Nós que aqui estamos por vós
esperamos conduz o olhar do público pelos torvelinhos do século XX: o impacto do avanço
tecnológico; o anseio de velocidade; as transformações no ambiente urbano; os apelos do
consumo; o assassinato em larga escala; o crescimento da abrangência dos meios de
comunicação de massa; e toda irreverência e contestação de uma arte liberta da necessidade
imediata de retratação do mundo em termos figurativos, graças aos novos meios de registro
226
da imagem. Sobretudo, Nós que estamos por vós esperamos consegue orquestrar o trânsito
entre o individual e o coletivo de maneira a lançar luzes tanto sobre os instantes de glória ou
fracasso globais quanto sobre a fragilidade e os limites da condição humana. Os sacricios
desmedidos impostos a populações diversas e os momentos de superação do indiduo
frente às adversidades são intermediados pela valorização do cotidiano, das atividades
comuns que não deixam grandes marcas segundo a historiografia tradicional, mas que são a
tônica de obras que investem na vida diária como fonte de inspiração narrativa.
_____________________________________________
3.3.1 Formação de blocos heterogêneos e Reiteração
Neste amplo painel, a um tempo tenebroso e libertário, composto por figuras tão
spares quanto Pinchochet, Ghandi e a dona de casa anônima, a grande característica do
estilo de distribuição das informações em Nós que aqui estamos por vós esperamos é o
agrupamento de dados e abordagens-chave do filme em blocos heterogêneos.
temáticas generalizantes que interligam as cenas de cada seqüência: em
Nijinskio progresso tecnológico, científico e arstico; Ford T” o método de divisão
do trabalho especializado; O Alfaiate” – riscos e fracassos inerentes às experimentações de
avanços técnicos; “Um Século de Família Jones” – a tradição bélica americana e a crescente
indiferença em relação à morte; Marta-Pablitoo trabalho; “Hans e Anna” o trabalho
durante a guerra e a separação; A Solidão e a Guerra’ as conseqüências dos conflitos
armados sobre o indiduo; Paranóia” a distorção na apreensão da realidade; 4 Pernas”
o potencial humano na produção da beleza; “Viagem a Lua” a contestação à ordem
social vigente; “Elas” a ascensão feminina; “A Luz Elétrica, o Rádio e a Aspirina
evolução tecnológica e expansão do consumo s-guerra; Domingos” a arte no século
XX e as formas de representação do lazer; e Perto de Deus” a inutilidade da busca
religiosa dissociada da realidade social.
No entanto, com exceção de “4 Pernas”, todas as seqüências da obra reúnem pelo
menos três dos temas principais temas do filme: valorização do homem comum como
personagem, denúncia de distorção na distribuição das benesses produzidas, realce da
227
abordagem psicanalítica, representão das transformações sociais decorrentes da produção
em larga escala de bens de consumo material e cultural; e reconhecimento do potencial
criativo humano, empregado tanto para fins de destruição quanto de progresso.
Daí falarmos na reiteração como uma das estratégias primordiais de Nós que aqui
estamos por vós esperamos, seja na forma de repetição literal (como nas imagens de
sepulturas na transição entre as seqüências), seja através da apresentação de novos dados
cognitivos (personagens, contextualizações espaço-temporais, ações ou referências
indiretas) mas cuja “mensagemfinal tenha relação direta com os eixos temáticos principais.
Nós que aqui estamos por vós esperamos prova que há muitas formas de retratar as mesmas
idéias. Afirmar, por exemplo, “pelo fio preto, a fala” ( em “Nijinski”) cognitivamente
equivale à imagem de fascínio do camponês russo apresentado a uma lâmpada elétrica. Bem
como a tomada do travesseiro assinado por Ninguém (emDomingos”) representa a
cotidianidade tanto quanto a legenda sobre o homem que nos finais de semana jogava
domi (“Marta-Pablito”) ou o som da transmissão radiofônica que as famílias
acompanhavam ao fim do dia (“A Luz Elétrica, o Rádio e a Aspirina”).
A multiplicidade de personagens, a miniaturização dos recortes biográficos, o
número de efeitos de edição digital e, principalmente, a mescla realizada pela montagem na
apresentação de planos e informações provenientes de fontes variadas, utilizando planos de
tempos e espaços diversos, evita o reconhecimento imediato das mesmas instâncias
cognitivas, mas a realidade é que é a reiteração que permite formar uma concepção
abrangente da obra, vista não apenas como uma colagem microbiográfica inteligente, mas
como a representação de um século. Tanto que, na análise, faz mais sentido falarmos em
equívocos e acertos do Homem, no sentido universal (em última instância personagem
singular do filme no ponto de vista cognitivo), do que em cada rosto individual exibido.
_____________________________________________
3.3.2 Organização de dados através da montagem
A segunda estratégia ligada ao Programa Cognitivo diz respeito à forma de
construção de Nós que aqui estamos por vós esperamos sob a égide da montagem, o que
228
determina uma busca constante pela relevância. Somente um investimento cuidadoso em
planos, textos verbais e sons “mínimospara a caracterização dos sujeitos poderia permitir
que tantos personagens povoassem o universo particular de Nós que aqui estamos por vós
esperamos.
Registros incompletos de uma ação são suficientes para um estilo de montagem que
articula-se sobre a premissa de que o espectador está apto a construir um sentido totalizante
a partir de fragmentos reduzidos. O Alfaiate e a Challenger dispensam planos de transição
(que aliás, ainda nos faria perder o fator surpresa, essencial nesse caso); apenas a inserção
da foto da família da Takano sobre planos de nuvens já transmite a idéia da morte pela
explosão da bomba atômica sobre a cidade de Hiroshima; entre o plano do bebê, as
legendas descrevendo a juventude e a exibição do rosto de Hitler, o espectador encontra-se
plenamente apto a acompanhar os saltos temporais propostos, sem que o filme necessite
apresentar uma rede de dados entre os estágios exibidos. A condição de filme-colagem de
Nós que aqui estamos por vós esperamos dispensa uma série de mecanismos de
intermediação cognitiva, constituindo um forte sentido de coerência interna, mesmo
partindo de elementos em aparente desacordo caterico. O filme explora as possibilidades
significantes da ambiidade, da quebra de expectativas e do choque.
Através da montagem o espectador consegue entender e acompanhar a evolução do
Programa Cognitivo, identificando pontos de vista espaciais distintos, efeitos de memória e
de previsão, relões causais, sensação de contemporaneidade, onipresença ou anulão de
tempo, sem que o narrador precise intervir de maneira incisiva. A contextualização
temporal-espacial composta por estímulos sensoriais (ver f. 202) em grande parte supre as
demandas do conjunto cognitivo, representando ganhos em termos de rapidez, o que, por
sua vez, permite a exibição de um grande número de temas e sujeitos sem que isso impeça a
fluidez de leitura. E temos de considerar que também a apresentão detalhada de cada
personagem e temas seria contraproducente para os prositos da narrativa, já que o
Programa Cognitivo atua com base nos processos de previsão a partir de amostragens.
Através da montagem, o tempo da história (um século) adequa-se a um tempo de
discursivo comparativamente exíguo (73 minutos); o espaço (27 países mencionados ao
todo) converte-se em um único cenário, o globo; e os personagens transformam-se numa
referência ao Humano. Do ponto de vista cognitivo, Nós que aqui estamos por vós
229
esperamos é um elogio à síntese como forma de expressão.
O fato de a base constitutiva da obra ser a montagem permite ainda que as
reverberações de sentido ocorram não somente no interior de cada seqüência, mas também
entre os diversos blocos do filme. A lanterninha cansada”, em “Marta-Pablito”, reflete
diretamente nas mulheres da seqüência “Elas”. Por um olhar menos atento, a primeira
desenvolve uma atividade muito menos exaustiva que as últimas (mostradas executando
tarefas domésticas diversas: o cuidado com a casa, com os filhos e o marido). No entanto,
as legendas em “Elas” informam que as senhoras não estão cansadas, mas deprimidas pelo
retorno ao lar após uma breve experiência no mercado de trabalho durante a guerra. Volta à
tona o eixo psicanalítico do filme através de uma montagem que atua em vel indireto,
sub-reptício. Similarmente, o absurdo e o fantástico como caracterizações dos personagens
em Viagem a Lua” também incidem sobre os sujeitos retratados em Paranóia”. Em ambos
os casos, os personagens fogem aos padrões de referência do homem comum, porém
servem de contraponto um ao outro, como as faces às avessas dos meios empregados para
intervenção sobre a ordem social e política no século XX.
Mas essas reverberações à distância necessitam do espectador, seu investimento e
memória para funcionar. Segundo Bernardet:
“O filme solicita um espectador ativo que, de alguma forma,
prolonga a montagem nele próprio. Podemos ir mais longe e tornar o
espectador um montador. Será uma montagem ativada pelo sistema
do filme, suas associações de materiais díspares, sua circulação por
imagens e significações, a grande liberdade que lhe permite essa
montagem de tipo ensaística”
(BERNARDET, 1999)
Como estratégia de orientação de leitura, a montagem “à distância” é provavelmente
o artifício que mais exige a compreensão e cooperação do espectador no sentido de unidade
do produto fílmico.
Porém, o estilo de montagem de Nós que aqui estamos por vós esperamos também
230
pode promover instantes em que o investimento cognitivo é praticamente nulo, como na
seqüência “4 Pernas”. Aqui se pode até argumentar que o que está em jogo é valorização
dos talentos de Astaire e Garrincha, porém o resultado final está bem mais ligado ao
Programa Sensorial pelo enorme impacto visual e tmico sobre o espectador. Assim como
no segmento sobre Nehru Gupta (o adolescente minerador indiano) a montagem está
francamente voltada para a produção de efeitos sentimentais.
________________________________________
3.3.3 Estratégias de autoridade discursiva
Nós que aqui estamos por vos esperamos é construído a partir de um conjunto de
estratégias que têm na surpresa, no choque entre imagens e sons, nos articios de sedução e
unidade seu alicerce de funcionamento. Contudo, para que uma série desses elementos
funcione, o filme requer a confiança do espectador, certas senhas que lhe garantam uma
fluência mínima, espécie de concessão provisória que o público oferece à obra a fim de
poder fruir seus efeitos.
Mas um texto fílmico somente consegue manter essa concessão se de alguma forma
apresentar autoridade discursiva sobre o tema que versa. Algumas obras apelam para uma
reconstituição física temporal-espacial convincente através de iluminão, cenografia e
figurinos. Outras constroem suas bases de atuação sobre as instâncias de identificação entre
público e personagens, apostando no Programa Sentimental como alicerce. Em Nós que
aqui estamos por vós esperamos, o principal instrumento de constituição da autoridade
discursiva é a apropriação das estratégias do cinema documentário.
Para Manuela Penafria, entre documentário e ficção não existe uma diferença de
natureza, mas de grau (PENAFRIA, 1999). Ambos representam o mundo através da
manipulação de materiais expressivos, porém no documentário, ao contrário das obras
ficcionais, o que está em jogo é a tentativa de preservação da autenticidade do registro,
mesmo que a manutenção absoluta da experiência “real permaneça apenas como meta
inalcançável. Este é projeto de cinema que se apreende a partir de um documentário.
231
A gravação in situ, a não utilização de atores profissionais, a subserviência do
roteiro às ações desenroladas ou a desenrolar-se diante da câmera fazem parte dessa
trajetória histórica dos documentaristas e firma-se como porta de entrada para diversas
obras que se apresentam como experiência de registro da realidade.
Mas é importante frisar: não estamos fazendo apologia ao gênero como grande
captador da experiência extra-cinematográfica. Nada garante que o que vemos na tela, por
mais verossímil que possa parecer, seja um discurso fiel ou uma verdade irrefutável. Até
porque que se ultrapassar a própria noção de “verdade” num produto comunicacional.
Para Eco, a delimitação de mundos ficcionais ou “fechados” torna improdutível essa
consideração estreita. “verdades” que têm vigência entre os muros de uma obra,
graças a um acordo tácito entre autor e leitor - a chamada suspensão da descrença
construída e mantida a partir de conhecimentos prévios que temos do mundo, somados ao
poder de convencimento de um criador:
Os estudiosos têm discutido amplamente o que significa uma
afirmação ser verdadeira” numa estrutura ficcional. A resposta
mais razoável é que as afirmações ficcionais são verdadeiras dentro
da estrutura do mundo possível de determinada história. (...) É
espantoso um homem acordar e se ver transformado em inseto;
contudo, se realmente se transformou, tal inseto deve ser as
características normais de um inseto normal. Essas poucas linhas de
Kafka constituem um exemplo de realismo, não de surrealismo.
(ECO, 1994, p. 84 e 94)
No caso do documentário, a “realidade” a que a obra nós acesso corresponde a
uma parcela do mundo “reale à parcela do relacionamento do autor com os elementos de
construção do filme. Mas, sobretudo, um documentário é uma intervenção na realidade, é
um percurso que se faz e que se partilha com o espectador. Um percurso equacionado por
uma relação de confronto e/ou uma relação de compromisso com os
232
intervenientes/personagens” (PENAFRIA, 1999, p. 14).
Pronto, aqui chegamos à palavra-chave do Programa Cognitivo de Nós que aqui
estamos por vós esperamos: compromisso. Sabemos de antemão da impossibilidade
completa de registro do real, mas o que nos interessa não é o estudo ontológico da
realidade cinematográfica, mas a relão de confiança que o espectador estabelece com as
obras que se revestem de feições documentaristas. Falamos aqui do conjunto de
expectativas cognitivas tecidas em torno dos modelos de representação. É o que está em
jogo no filme: o prinpio da confiança.
Nós que aqui estamos por vós esperamos começa a construir-se como um
documentário através de uma defesa explícita contra refutações: as notas graves ao piano, o
estilo seco de apresentação das primeiras legendas e o conteúdo do texto verbal escrito (“O
Historiador é o Rei”; “Freud é a Rainha”) imediatamente constroem a base de apoio da obra
sobre a credibilidade historiográfica e sobre as teorias psicanalíticas, de modo a ratificar a
veracidade” das cenas posteriores e o enfoque pouco linear do ponto de vista
temporal-espacial apresentado.
Em segundo, a identificação concisa dos locais e datas das imagens exibidas no
icio de cada seqüência também estabelece confiança. O espectador imagina que sempre é
viável uma possível conferência de dados (mesmo que realizada por outros). Logo, o filme
não se arriscaria a imprecies.
Depois, há o próprio caráter de imperfeição e marcas de antiguidade no registro
imagético do início do século XX. Além do que, rias das cenas apresentadas já faziam
parte do repertório anterior do público antes da fruição, graças a seu emprego comum em
outros filmes e produtos midiáticos em geral. aqui um processo de transferência de
legitimidade de cada imagem para a obra com um todo.
Tamm os temas selecionados já eram, de uma forma ou outra, de amplo
conhecimento geral. A novidade trazida por Nós que aqui estamos por vós esperamos são
as formas de apresentação e a reunião pouco comum de diversos elementos ao longo do
filme (devidamente justificados pelo eixo psicanalítico). Mas o fato dos assuntos não serem
inéditos, também alimenta a crença no caráter historiográfico da obra.
a dispensa do locutor off-screen e sua substituição por legendas condizem com
uma estratégia de autoridade baseada na “literolatria”, expressão utilizada por Arlindo
233
Machado, que consiste na crença inabalável no poder, na superioridade e na transcendência
da palavra, sobretudo da palavra escrita (MACHADO, 2001, p.11). É claro, as legendas
possuem múltiplas funções: suprimindo a voz, elas não atrapalham a sica; imprimem um
certo “quê” de Cinema mudo; economizam tempo na narrativa; podem ser utilizadas tanto
como elemento informativo verbal como em seu potencial imagético (a variação no
tamanho das fontes como elemento expressivo); e facilmente atribuem a fala ao narrador ou
ao personagem, dependendo dos sinais gráficos utilizados (travessões ou aspas, por
exemplo). Mas, além de todas essas vantagens, também é inegável que Nós que aqui
estamos por vós esperamos toma de empréstimo a vinculação tradicional da palavra com a
racionalidade, inclusive pela forma de apresentação das legendas iniciais do filme e do
intróito cada seqüência, que lembram os tulos e divisão em capítulos de uma obra literária.
Ainda no âmbito das estratégias de autoridade discursiva, chegamos à atuação do
narrador no filme. Figura normalmente associada à locução verbal falada, encontramos essa
instância textual em Nós que aqui estamos por vós esperamos sob a forma de legendas que
orientam a leitura dos estímulos visuais e sonoros. O narrador utiliza logo no prinpio do
filme um estilo muito similar ao padrão do jornalismo impresso “não-opinativo”: limita-se a
apresentar dados de contextualização geral (nome do personagem, local e data do evento)
em tom de forte impessoalidade. Contudo, à medida que o filme se desenrola, ele coma a
expor dados de natureza menos formal e mais criativa, agregando valor ora crítico, ora
poético ao conteúdo das imagens (O engenheiro que virou maçã”; “Os quadros já eram
Picasso”). Sua presença é absolutamente fundamental para a compreensão de alguns links
propostos na obra (como apresentação do nome “Robert Jones Jr.” à perna arremessada por
um soldado no Vietnã) e como vculo de expressão dos personagens através da citação
direta (Freud, autores cujas obras foram queimadas pelos nazistas, soldados nos
acampamentos militares, Thimoty Leary, poetizas libertárias, kamikaze Kato Matsuda e
Maiakovski). Também se verifica o uso do discurso indireto livre (“autores degenerados”,
abusou na ousadia do maiô”), quando o narrador utiliza a própria “voz” para expor o
ponto de vista do personagem. até o uso de verbetes de dicionários, como na definição
de “paranóia” e silêncio”. Em todos os casos, o narrador apresenta-se como instância de
autoridade pela sua onisciência no interior da trama. Nada lhe escapa: nem ciência, nem
234
arte, nem comportamento humano, ordem social e política, as motivações dos personagens
e o destino final de cada um deles (inclusive do espectador). Ele assume uma postura de
especialista, sendo o tipo de “guia” mais facilmente identificado em todo o filme.
Todas as estratégias citadas funcionam no sentido de evitar posveis
questionamentos sobre a legitimidade do discurso. Táticas que expressam os antagonismos
e convênios próprios do mecanismo narrativo e evidenciam a conflitividade textual.
_______________________________
3.3.4 Estratégias de actorialização
O processo de reconhecimento do sujeito como personagem da trama em Nós que
aqui estamos por vós esperamos, de grande importância do ponto de vista cognitivo (quem
principia uma ação ou reage a uma circunstância mostrada?) e aqui chamado de
actorialização, muitas vezes distancia-se do padrão usual em obras ficcionais ou de teor
documentarista, por eliminar os ritos de aproximação progressiva e contextualização
temporal-espacial prévia. Vejamos como essas exceções se manifestam no texto fílmico a
partir de três formas distintas básicas.
A primeira liga-se à corporalidade. O grande número de pessoas exibidas sem o
acompanhamento de legendas explicativas permite sua consideração no interior da trama
através de um recurso visual básico: a comprovação da existência material de um sujeito
exatamente no local e hora exatos da filmagem. Como o filme apresenta-se nos moldes do
cinema-verdade” e institui o homem comum como grande foco da obra, torna-se
obrigatória a inclusão do detentor do corpo na compreensão da obra, ainda que
anonimamente.
A segunda modalidade está vinculada à citação do sujeito por meio do narrador. Os
pais de Kato Matsuda, o kamikaze; os ditadores que são apontados como portadores da
mesma visão distorcida de Hitler (Mao Tsé-Tung, Mussolini, Pol Pot, Franco, Salazar, Idi
Amin, Ceausescu, Ferdinand Marcos, Pinochet, Reza Pahlevi, Videla, Médici e Mobutu); e
os pintores responsáveis pelas pinturas exibidas no filme (Edward Hopper e Edvard Munch)
235
são alguns exemplos. Eles o introduzidos como personagens graças à autoridade
construída pelo narrador: seu conhecimento histórico-cultural e até mesmo a onisciência em
relação aos sentimentos de cada sujeito da trama (o narrador compreende Kato e a
infelicidade da família do aviador, chegando ao ponto de precisar ser “consolado pelo
suidio do jovem). Vem do texto verbal escrito, nesse caso, o respaldo necessário para
actorialização.
A terceira forma de actorialização liga-se ao princípio de relativização da
identificação entre espectador e personagens e encontra-se especificamente na seqüência
Paranóia”. No bloco, a chave central de compreensão da actorialização está nas estratégias
presentes no texto escrito.
E que táticas são essas? Basicamente as de exclusão parcial do público do tipo de
representação constrda. Ao exibir o pronome Eles” separado dos demais e em letras
maiores na introdução da sequência, o que o narrador está fazendo é retirar, em parte, a si
mesmo e ao espectador das categorias que serão apresentadas a seguir.
Se pensarmos que o filme trabalha com referências ao homem em seu caráter
universal, temos que observar os instantes em que essa universalidade é chamada em causa
e também quando ela é minimizada em Nós que aqui estamos por vós esperamos. Ou seja,
quando temos que admitir os personagens como representantes de nossa trajeria coletiva
ao longo da história, porém sob um viés que os distancia do homem comum. O filme
esclarece que o “Eles” refere-se a personalidades históricas que detiveram enorme poder
decisório nas mãos, grandes ditadores do culo XX e ainda: a obra declara enfaticamente o
aspecto paranóico da personalidade de cada um deles, limitando cada vez mais os
parâmetros de reconhecimento pelo público. A impressão inicial é de que os protagonistas
da seqüência passam a ser outros, à parte de quem assiste e de quem mais participa do
filme. Literalmente, trata-se d’Eles, que não podem ser confundidos com o nós”.
No entanto, Nós que aqui estamos por vós esperamos apresenta em seguida a
atuação de soldados e estudantes durante a queima de livros “subversivos” e, por último,
um jovem pintando o mbolo distintivo de uma propriedade judia na vitrine de uma loja.
Somos informados pelas legendas de que o rapaz imigrou para o Brasil após a guerra. Esses
236
dois complementos à “Eles” minimizam o caráter de exclusão e ajudam a identificar a
paranóia” não mais como exclusividade dos ditadores, mas como algo passível de
acometer qualquer um. A estranheza inicial é convertida no reconhecimento do lado
tenebroso que todo homem pode vir a externar um dia. Voltamos a pensar no coletivo.
Nos três casos, os fatores poder, saber, querer, dever e idealizar unificam as
representações individuais, agrupando os personagens numa categoria única o homem.
Presos entre o avanço possível e felicidade inalcançável, os sujeitos formam um
protagonista isolado. Mesmo quando a loucura ditatorial é abordada, ela é exibida como
uma possível faceta da personalidade humana, não sua negação. Do ponto de vista
cognitivo, somos também cada homem e mulher que aparece em Nós que aqui estamos por
vós esperamos.
___________________________________
3.3.5 Estratégias de Negação
Pode parecer estranho à primeira vista, mas Nós que aqui estamos por vós
esperamos também apresenta estratégias de negação do próprio discurso, de maneira a
questionar a si mesmo como forma de representação e às obras a que faz referência.
O primeiro incio de auto-refutão está na ausência sistemática de explicações
espeficas sobre os eventos cruciais do século XX. Desde os anos 30, quando ganhou força
o movimento documentarista britânico, documentários costumam cumprir uma agenda
didática. Os realizadores de então defendiam a tomada de consciência social sobre
problemas que diziam respeito à população como um todo. Os filmes eram concebidos
tendo como suporte a idéia de utilidade pública do Cinema, auxiliando inclusive nas
medidas governamentais para reverter os problemas gerados pela Grande Depressão da
década de 30 e depois para mobilizar as fortes correntes políticas no período entre-guerras.
O clima social era imprevisível e instável. “Os documentários dessa época buscavam a
estabilidade e a força que não estavam presentes no mundo real” (DANCYGER, 2003, p.54).
Apresentando-se como filme-memória, era de se esperar que s que aqui estamos por
vós esperamos também seguisse as convenções do gênero documentarista e apresentasse um
enfoque professoral. Não é o que acontece. Mesmo tendo por base as teorias psicanalíticas,
237
faltam dados do ponto de vista cognitivo para explicar as causas da desigualdade na distribuição
de riquezas e da matança em massa no século XX. O filme exibe os problemas, mas não
necessariamente esclarece as causas.
O final, então, rompe completamente o estilo convencional instituído pela tradição
documentarista: exclui previsões mais otimistas sobre o futuro, não aponta culpados óbvios
(pessoas ou circunstâncias) pela problemática apresentada e ainda suscita dúvidas sobre a
competência do público em reverter os processos em andamento. Mas nada representa uma
negativa tão impactante quanto a revelação contida nos créditos finais:
OBS: As histórias dos personagens relatados neste filme, baseadas em fotos, pinturas,
imagens de arquivos e extratos de filmes clássicos são fictícias e concebidas pelo roteirista
e diretor deste filme.
Uma observação, quase um detalhe”, atua no sentido de desmonte de todo
investimento do filme em mostrar-se como uma obra ligada ao “cinema-verdade”. O fator
comprometimento, que institui a base da relação de credibilidade e confiança que o público
deposita no produto, é no primeiro instante literalmente implodido e a ficção impõe-se
avassaladora.
Mas, passado o choque inicial, o espectador é obrigado a reconhecer que Nós que
aqui estamos por vós esperamos não parece também se enquadrar completamente na
categoria ficção. As histórias exibidas não foram verificadas na “vida real”, mas poderiam
ter sido. A chave motivacional do gênero documentarista permanece de certa forma intacta.
Sentimos que o filme baseia-se no universo extra-cinematográfico.
Assim, a primeira conclusão razoável que o filme inspira é de que se trata de uma
obra na zona de interseção de formatos, apresentando características tanto um quando de
outro gênero. Compreende-se que a representão acurada de um evento nem sempre
corresponde à preservação integral dos dados sobre o acontecimento (quem, onde e
quando) e que muitas vezes a desconstrução de formas óbvias de registro e exibição permite
um tipo de leitura bem mais condizente com a complexidade da ordem social, política e
artística de um período.
Segundo, o espectador é obrigado a reconhecer a relatividade do sentido de
238
mentira” e “verdade” no interior de um produto comunicacional. O filme-memória acabou
por revelar uma organização interna que sugere uma “ficção-factual”. Haverá personagem
que pareça mais com um homem real e comum que o imaginário Alex Anderson, operário
da fábrica Ford que nunca conseguiu adquirir o próprio veículo? Haverá personagem que
pareça mais fictício que Arthur Bispo do Rorio, envolto em sua capa para “conhecer
Deus”? Ambos revertem a lógica da aparência superficial, contribuindo para o sentido de
negação e dúvida do Programa Cognitivo.
Por fim, Nós que aqui estamos por vós esperamos levanta um tipo de questão que
abrange representações que vão muito além do filme em si: se foi possível convencer o
público da veracidade das histórias livremente criadas, somente a partir de um pano de
fundo reconhecível e considerado confiável, como afirmar que outros relatos de cunho
historiográfico não são também pura obra imaginativa? Dessa forma, somente a partir de
sua articulação textual, Nós que aqui estamos por vós esperamos expande a estratégia de
negação e desmonte. Artifícios de desconstrução e incredulidade que refletem em outras
obras, inclusive as utilizadas como referência no filme.
Aproximando-se do real como forma de reinventá-lo no universo fílmico, Nós que
aqui estamos por vós esperamos constitui-se num comentário sobre a oportunidade social
no século XX, por vezes sombrio, por vezes poético e ao final, crítico até de si mesmo.
Segundo Cássia Borsero, a apoteose incerta e aterradora construída pela obra tem como
principal conseqüência iluminar a mortalidade como condição esquecida nos desvãos da
história (BORSERO, 1999).
239
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
_____________________________________________________
Conclusão
Longe do que possa parecer a prinpio ou afirmaram diversas críticas publicadas no
país por ocasião do lançamento do filme, Nós que aqui estamos por vós esperamos não é
uma obra absolutamente fragmentada, sem prinpios coerentes de contextualização
temporais-espaciais ou composta apenas de questionamentos, sem indícios de respostas
coerentes às vidas suscitadas na/pela obra sobre a trajetória humana ao longo do século
XX. Tampouco revelou-se verdadeira a inexistência de modelos de unificação do relato.
Pelo contrário. O que a pesquisa encontrou ao longo do exercício de análise foram padrões
bem determinados de orientação de leitura, compostos por estímulos sensoriais,
sentimentais e cognitivos. Parâmetros o eficientes que chegam a nortear mesmo os
momentos de exceção do filme, de subversão dos modelos, já que o rompimento das
240
regras conta com uma certa familiaridade institda para funcionar. E justamente na
quebra de expectativas são criadas situações de intensa relevância e impacto no desenrolar
da trama.
Treze estratégias textuais de orientação de leitura foram identificadas na pesquisa
como as grandes responsáveis pelos efeitos observados no ato de apreciação do filme:
apropriação das estratégias do cinema-verdade; estratégias de construção do sentido de
velocidade; estratégias de continuidade; estratégias de realce; estratégias de corporalidade;
construção de relações temporais-espaciais; corporalidade e identificação, constituição de
atmosferas afetivas; formação de blocos cognitivos heterogêneos e reiteração; organização
de dados através da montagem; estratégias de autoridade discursiva; estratégias de
actorialização; e estratégias de negação
Estratégias subdividas segundo as diretrizes metodológicas estabelecidas por Gomes
(1994), que recomendam a investigação dos articios de produção de efeitos a partir de três
modalidades de estímulos, já citados acima (sensoriais, sentimentais e cognitivos), embora
na prática de análise de Nós que aqui estamos por vós esperamos a categorização tplice
não tenha sido aplicada de maneira inflexível. As caractesticas da própria obra impuseram
o reconhecimento da coexistência de um mesmo estímulo a serviço de diferentes programas
de efeitos, até porque os artifícios o apresentam caráter auto-excludente, mas
complementar.
Seria imposvel afirmar que esse tipo de adaptação (que de certa forma era
prevista pela metodologia aplicada) garantiu a completa apreensão da obra, mesmo porque
nenhum método, enquanto recorte e instrumento de exclusão o faria. No entanto, a
flexibilidade na categorização permitiu um tipo de abordagem estreitamente delimitado
pelas feições do próprio filme. O que se verificou foi que o resultado final da análise não se
desvinculou de um de seus princípios mais caros: a premissa de que cada produto
audiovisual é único e traz embutido em seu conjunto as formas como quer ser lido.
Quanto às especificidades de Nós que aqui estamos por vós esperamos como um
filme essencialmente baseado na montagem, acreditamos que o enfoque metodológico
possibilitou a análise das modalidadescnicas voltadas para sua aplicação criativa no
interior da obra. Isso se deve ao reconhecimento e valorização dos estímulos sensoriais
propostos pelo método, algo por vezes subestimado ou totalmente ignorado em outras
241
abordagens de aproximação do objeto, porém fundamentais em se tratando que de um filme
que constrói parâmetros de releitura para imagens de arquivo. A materialidade dos efeitos
de edição digital não pode ser ignorada em Nós que aqui estamos por vós esperamos sob
pena de determinar uma análise altamente distanciada da fruição.
E já que foi mencionada a especificidade técnica aplicada na construção de Nós que
aqui estamos por vós esperamos, é importante ressaltar que a pesquisa indicou a edição
digitalizada como um tipo de conhecimento extra-textual. Ou seja, ainda que as novas
tecnologias tenham poupado tempo e recursos financeiros, sendo responsáveis pela
concretização do filme, esta é uma informação que o blico pode simplesmente dispor ou
não durante a apreciação da obra, sem que este dado determine as formas de leitura
previstas no corpo do texto. Podemos assistir a Nós que aqui estamos por vós esperamos
sem a menor noção de como o produto foi finalizado da mesma maneira que é posvel
ignorar o nome de seu criador empírico ou dos financiadores do projeto (tão essenciais para
o filme que o próprio sistema digital).
Para atingir os objetivos traçados no início da pesquisa foi muito mais importante
observar como a montagem em Nós que aqui estamos por vós esperamos força os limites
da linguagem, utilizando elementos expressivos para fins criativos. Nem procedimentos
digitais nem mecanismos fotoquímicos determinam o grau de envolvimento do espectador
com o filme. Como afirma Dancyger, há oportunidades estéticas na tecnologia digital,
sobretudo pela sua capacidade de contar histórias numa escala não prevista anteriormente.
Não obstante, o teórico ressalta:
Uma máquina de edição computadorizada não importa
o quão sofisticada seja, não pode tomar a decisão criativa de
onde cortar e porquê. A decisão sobre a continuidade ou a
ênfase dramática é uma escolha criativa ou, se você quiser,
estética (...) A velocidade da edição computadorizada
permitirá que a decisão criativa chegue mais rapidamente do
que a antiga tecnologia de montagem, mas não toma as
decies criativas. Aqui residem várias falácias sobre a edição
não-linear.
242
(DANCYGER, 2003, p. 410)
O que nos interessa mais atentamente, de fato, é um dos resultados viveis da
aplicão dos recursos digitais em Nós que aqui estamos por vós esperamos que chamamos
ao longo da análise de incrustações”. A partir delas, institui-se um mecanismo de
intervenção direta no interior do plano, mesmo após as filmagens terem sido concldas. A
articulação imediata, principalmente simultânea entre os elementos apresentados, rompe
com o paradigma de linearidade na montagem, revisitando e ampliando o conceito de
montagem polifônica, desenvolvida por Eisenstein. Para o cineasta russo, a montagem era
entendida como o princípio articulador do Cinema. Planos, seqüências, fragmentos no
interior do plano (composição) e som eram elementos a serem trabalhados em justaposição
constante, de modo a produzirem sentido pelo choque entre si. Porém, o diretor utilizou
mais acentuadamente a montagem exterior ao quadro, ou seja, o encadeamento de planos
para constituição da seqüência. Na época, os recursos praticamente permitiam a
montagem dentro do quadro na forma de disposição dos objetos durante a composão do
cenário geral. Esse processo, quando desenvolvido em suporte fotoquímico, dá-se
basicamente através do choque entre os planos, enquanto na edição digital, ele ocorre no
interior no próprio plano. Através das incrustações, fala-se com maior naturalidade da
impressão multitemporal e multiespacial num mesmo segmento de tela. Daí o cuidado no
detalhamento dos usos da incrustação durante a pesquisa.
Outra observação importante a ser feita com relação ao filme diz respeito à
adequação da obra à categoria “narrativa não-linear”. Foram especificados no primeiro
capítulo quatro quesitos que, de acordo com o teórico da montagem Ken Dancyger,
precisam ser preenchidos para se concluir sobre a não-linearidade de um produto
(DANCYGER, 2003, p. 213). Vejamos:
a) Princípio operador relacionado com as expectativas /Desvinculação de causa-efeito.
Diversos críticos cinematográficos chegaram a insistir nesse ponto, afirmando que Nós que
aqui estamos por vós esperamos nega-se a apresentar qualquer tipo de justificativa plausível
243
para os sangrentos embates que marcaram o século XX (normalmente através de artigos
baseados nos padrões convencionais do documentarismo, em que a verticalização
historiográfica e o reconhecimento claro de heróis e vilões dão a tônica). O eixo
psicanalítico presente em Nós que aqui estamos por vós esperamos, contudo, vem
completar a lacuna aberta pelo filme, indicando o próprio ser humano em sentido
universalizante como razão primeira para todos os seus males. O cientificismo das teorias
freudianas, constantemente rememoradas ao longo da obra, ajuda a transferir eventos como
as guerras do patamar de “inexplicáveis” para “patológicos”, identificando na natureza
humana as premissas para as tragédias retratadas no filme.
b) O uso de opostos para propor uma forma narrativa diferente. Oposto, por causa de
seu não-fluido relacionamento com o que o precede, minando as expectativas. O
oposto pode ser usado como contraponto.
Nesse aspecto é posvel enquadrar Nós que aqui estamos por vós esperamos. O emprego
de elementos díspares reunidos a fim de promover o choque é uma das marcas do filme, seja
através da disposição próxima ou até simultânea de planos cujo conteúdo cognitivo
parece ser incompatível, seja através da mobilização de estímulos sentimentais ou sensoriais
(pensemos na aproximação de tomadas com diferentes granulações fotográficas ou no
embate som versus imagem, por exemplo). O resultado é uma potencialização dos
instrumentos expressivos que nos permite apontar a montagem como a grande matriz de
estruturação da trama.
c) Afastamento da identificação com o(s) personagem(ns)
Ainda que Nós que aqui estamos por vós esperamos não apresente um protagonista aos
moldes tradicionais ou mesmo exiba um personagem sequer que apareça ao longo do filme
completo, não é possível afirmar que a obra despreze os mecanismos que promovem a
identificação entre público e personagens. Seja através da música, de planos chocantes de
soldados mortos ou de fragmentos biográficos simplórios em que o espectador se reconheça
244
(“gostava de coca-cola” ou “aos domingos, dominó”), Nós que aqui estamos por vós
esperamos constrói atalhos para o leitor se veja na tela ao deparar-se com uma
representação que não se detém em João, Hanns ou Martina, mas no Homem em sentido
universal, como indivíduo solitário e perdido na grande aventura histórica.
d) substituição da trama linear por muitos incidentes, set pieces por narrativas em
crescimento, cenas emocionais por cenas expositivas. O enfoque mina a noção de
trama e de narrativa guiada pela necessidade do personagem principal.
É fato que Nós que aqui estamos por vós esperamos é estruturado sob a forma de set
pieces: cada seqüência apresenta relativa independência em relação às demais, podendo
inclusive ser exibida numa ordem diferente da original ou até em separado. O que não
acarreta, contudo, na inexistência de uma trama geral. Ao longo de todo filme são tecidas
linhas de intercomunicação que resultam num todo coeso. Mesmo a recorrência dos efeitos
de edição digital auxiliam na constituição de um só conjunto no filme. Fatores como música,
ritmo, molduras, emprego de legendas e temática também unificam a obra, impedindo de
que se fale de Nós que aqui estamos por vós esperamos como um produto destitdo de
uma trama norteadora que congregue os diferentes estímulos sensíveis.
Com os breves argumentos apresentados (baseados nas próprias características do
filme detalhadas durante a análise) não pretendemos sob hitese alguma avançar na
discussão, tentando discutir as possibilidades de existência de filmes de narrativa
o-linear”, nem é essa a proposta da pesquisa. Salientamos apenas que, no caso de Nós
que aqui estamos por vós esperamos, o conceito não é plenamente aplicável em três das
quatro categorias sugeridas por Dancyger e que consideramos razoáveis como parâmetros
mínimos de classificação.
Mas dentro da linhagem dos filmes que se utilizam da edição o-linear, há aqueles
que a empregam tão somente para perpetuar os antigos moldes do Cinema baseado nos
procedimentos fotoquímicos, sob a égide de Griffith. Outros, contudo, aproveitam antigas e
novas tecnologias para usos estéticos inovadores, para forçar os limites da linguagem. É o
245
caso de Nós que aqui estamos...” e esse é um dos trunfos que tornam o filme um objeto de
estudo extremamente favorável para uma pesquisa qualitativa, centrada em edição.
A pesquisa ajudou a identificar também outros posveis e instigantes caminhos para
análise de Nós que aqui estamos por vós esperamos além das que discutimos neste trabalho.
Apesar de indisponíveis para o estudo atual por inadequação das propostas à metodologia
aplicada, acreditamos que as idéias porventura possam ser úteis para futuros trabalhos sobre
o rico manancial disponível em Nós que aqui estamos por vós esperamos. Aqui, citamos
três delas.
· Explorando o conhecimento extra-textual do leitor, o analista pode identificar em
Nós que aqui estamos por vós esperamos um exercício ativo de metalinguagem,
verificando como a obra pode revelar-se um produto voltado o à representação
historiográfica em geral, mas um conjunto de referências ligadas ao próprio cinema
como instrumento de documentação e construção do imaginário em torno do
passado recente, pós-irmãos Lumière. Como a sétima arte reconstrói o culo XX e
como ela retrata a si mesma na tela?
· Tamm parece-nos razoável um estudo posterior sobre a tendência contemporânea
de obras cinematográficas como Nós que aqui estamos por vós esperamos
investirem numa correlão fluída entre tempo e espaço, explorando lapsos
intencionais cada vez mais intensamente, de modo a construir uma economia
narrativa baseada na supressão de dados. Afinal, o que é de fato imprescindível
numa trama; quais as informações mínimas para seduzir um espectador?
· Por fim, uma pesquisa que se detivesse quadro a quadro e, se possível, conseguisse
acesso às imagens originais que geraram Nós que aqui estamos por vós esperamos
poderia esclarecer dúvidas sobre a narratividade residual existente em cada plano.
Diferentemente da pesquisa agora apresentada (cujo foco é o efeito produzido pela
junção de planos, sons e textos verbais na montagem), a abordagem voltada à
análise de cada plano poderia investigar os resíduos de sentido remanescentes das
246
filmagens originais, ajudando a compreender como se estrutura o processo de
releitura de conteúdos visuais.
Mesmo que jamais venham a ser concretizadas, as sugestões acima abrem espaço
para o reconhecimento de Nós que aqui estamos por vós esperamos como um objeto de
estudo farto e extremamente útil a uma série de discussões ligadas à contemporaneidade e
suas formas de representação.
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
_____________________________________________________
Ilustrações
OBS: A apresentação do texto escrito o corresponde exatamente à forma
apresentada nas legendas de Nós que aqui estamos por vós esperamos, tendo sido adaptada
para fins de impressão.
247
Seqüência “Família Jones”
248
Seqüência “Marta-Pablito
249
Seqüência “Marta-Pablito
250
Sequência “Marta-Pablito
251
Seqüência “Hans e Anna”
252
Seqüência “A Solidão e a Guerra”
253
Seqüência “Elas”
254
Seqüência “Elas” e
cartaz de divulgação do filme
255
Seqüência “A Luz Elétrica, o Rádio e a Aspirina”
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
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Anexo 1
Breve histórico profissional de Marcelo Masagão
256
FORMAÇÃO ACADÊMICA
Pontifícia Universidade Católica - SP
Curso de Psicologia (incompleto)
1978-1982
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
· Estágio no hospital Psiquiátrico de Trieste, Itália, onde se desenvolve uma
experiência inédita no campo da Psiquiatria, no sentido da abertura dos
manicômios.1979 - 1980
· Trabalhou junto com os psiquiatras Domingos Lalaina e Ronaldo Pamplona como
assistente psiquiátrico. Trabalho desenvolvido fora do consultório, no
acompanhamento do cotidiano de pacientes mais graves, para evitar sua internação.
1981 - 1985
ATIVIDADES CULTURAIS
· Coordenador do Grupo SANIDADE / LOUCURA.
Atuação junto a pacientes psiquiátricos e profissionais da área,no sentido de
denunciar a situação desumana das instituições psiquiátricas brasileira.
1985 - 1986
· Coordenador da Rádio Xilik
Experiência de rádio Livre em São Paulo
1986
· Organizador da Mini-Bienal da TV CUBO
Evento em que participaram artistas como Tomie Othake, Wesley Duque Lee,
Aguilar e outros, para arrecadar fundos visando a compra do transmissor da TV
CUBO.
1987
257
· Coordenador da TV CUBO
Experiência pioneira de TV Livre no Brasil. Fez inúmeras transmissões no Bairro de
Pinheiros. Atualmente o grupo está pleiteando um canal de UHF junto ao Ministério
das Comunicações.
1987 - 1988
· Coordenador da Oficina para "ZAPPERS" (Uma conversa com sua TV). Realizado
nas Oficinas Culturais Três Rios, Secretaria de Estado da Cultura.
1988
· Coordenador do HORIZONTV
experiência de TV comunitária realizada com alunos da escola Horizontes. A partir
desta experiência o curso de TV foi introduzido no curculo escolar, na cadeira de
Artes.
1991
· Idealizador & Coordenador do Festival do Minuto
O festival do minuto convida anualmente realizadores a produzirem trabalhos com
até 01 minuto de duração. Em suas seis ediçoes o festival contou com cerca de
4.000 inscriçoes provenientes de 40 países.
Em 1995 foi lancada a categoria Minuto Kids dirigida a crianças com até 13 anos.
1991-1997
LIVROS
· Co-Autor do livro: Rádios Livres a Reforma Agrária no AR.
2@ edição, esgotada. Editora Brasiliense.
· Co-Autor do livro: Rede Imaginária
Editora Companhia das Letras.
1991
258
VÍDEOS E FILMES REALIZADOS
· TV CUBO
Co-roteirista e repórter
1987 - 1988
· Sexo, Fé, Sorte e Morte no Centro de SP
Enquete realizada no Centro de São Paulo para saber o que os paulistanos haviam
sonhado na noite anterior.
1987
· Neurotec
deo discute as influências das descobertas eletrônicas na vida dos terrestres.
Roteirista
1989
· 11 hs e 30 minutos na estação da Luz.
Dez locais/fotos antigas da cidade de São Paulo, foram revisitados pelo olhar da
câmera de vídeo. Prêmio Estímulo da Secretaria de Estado da Cultura
1989
· O Ar Pertence a Deus
deo documentário que resgata as experiências de comunicações eletnicas não
oficiais realizadas no munipio de SP na década de 80.
1990
· Deus Tudo Pode
deo edição de pronunciamentos à nação realizados pelos últimos sete presidentes
da república do Brasil.( 1964 a 1991).
Prêmios: menção honrosa do juri no ForumBHZVídeo 1991; Medalha de bronze nas
olimpíadas de vídeo da França 1992.
259
1991
· 1 Minuto na Vida de André e Liza
assistindo.
prêmios: prêmio SSV no ForumBHZVídeo 1991; Viagem para participar do 7@
Encontro de Vídeo e Televisão em Monbeliard/França.
1991
FILMES
Filme-memória 35mm - Longa Metragem
“Nós que aqui estamos por vós esperamos”. Discute o Século XX do ponto de vista de
pequenos e grandes personagens.
Ficção 35mm - Longa Metragem
“1,99 - Um Supermercado Que Vende Palavras”. Obra que retrata a “fetichizaçãodas
grandes marcas ao infinito para sobreviver no mercado.
EXPOSIÇÕES
· Adote um Satélite (Uma homenagem à TV)
Galeria Fotóptica-1989; Museu da Imagem e do Som 1989; 7 Encontro de deo e
Televisão de Monbeliard/França 1990. Atualmente a exposição está sendo mostrada
em Centros Culturais Europeus.
1989
· "Volto Logo, Favor Aguardar"
Exposição realizada a partir de mapas da cidade de São Paulo.
Galeria da Consolação.
1990
· "TOTENS DOMÉSTICOS"
Sesc Pompéia- Videobrasil de 1992
260
Fonte: Site oficial de apresentação de Nós que aqui estamos por vós esperamos e
site oficial de 1,99 – um supermercado que vende palavras
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
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Anexo 2
"O Dogma e o desejo"
Marcelo Masagão
261
"Dogmático ou desejantes?
Apesar da culpa, apesar do dogma, os dinamarqueses e seus recentes filmes nos colocam
uma questão fundamental: o prazer de fazer filmes. É o que se vê em cada centímetro de
videopelícula ali realizado. No meio daquela narrativa ninguém se pergunta se está vendo
vídeo ou película? Se é arte ou mercado? Se é doce ou salgado? É só um filme bacana em
que talvez o único dogma existente seja o fato de se ter um bom roteiro e muito desejo de
realizá-lo.
Nós, os desejantes tropicais, atualmente estamos mais para o dogma do comércio do que
para o do desejo. Nosso negócio é discutir estratégias, leis de incentivo, certificados,
agentes intermediários... O Zé e o Chico.
Tudo verdade (ou mentira).
No Brasil tudo pode.
Dogma 1. Viva o sabonete
Apesar dos recursos destinados à cultura serem ínfimos, quem gerencia seu destino são
aqueles que entendem de sabonete. Diretores e gerentes de marketing passaram a ser
experts em cultura. E tudo isso sem tirar nenhum do bolso, como no caso da Lei do
Audiovisual. O ministério nos entrega papeletes denominados certificados, que, na
esmagadora maioria das vezes, morrem na praia. Afinal, não o todos que têm bons
contatos em grandes empresas ou nas estatais.
Santa Rio Filme.
Não seria mais adequado conversarmos de cultura com quem entende do assunto? A Rio
Filme ou o Sesc São Paulo são instituições que administram dinheiro público com fins
culturais e o fazem muito bem. Ali não se administra cultura, se promove a cidadania
cultural, em que artistas e produtores discutem seus produtos com administradores sérios e
formados na área. Ali, com recursos muito inferiores aos do ministério, se faz muito mais
pelo cinema, pela cultura.
"Mas a Embrafilme não funcionava", dizem alguns. Mentira. A Embrafilme teve diversas
fases e administradores melhores ou piores. Mas não nos esqueçamos que sob sua tutela o
cinema brasileiro era muito mais visto do que hoje.
262
Fica uma pergunta: É melhor discutir o fazer filmes com administradores culturais
(melhores ou piores) ou com diretores e gerentes de marketing? Se as empresas e
empresários se interessarem por produtos culturais que botem suas mãos em seus bolsos e
façam cheques. Neste caso, parece legítimo que eles decidam e escolham o projeto que lhes
convenham.
Dogma 2. A Baleia e o Bidê.
Distribuir filmes no Brasil é como criar baleias em um bidê. Apesar de já existir uma lei de
cota de tela, nosso adorável ministério não mexe palha para aplicá-la. Afinal, a legitimidade
de proteger mercados não combina com a atual cartilha da corte.
Dogma 3. Orçamentos elefânticos e o Garrincha.
Se o público médio para filmes nacionais é de 30 mil espectadores e o custo médio de cada
produção é de R$ 3 milhões, cada espectador acaba custando cerca de R$ 100. É meio
complicado, né?
Viva o Garrincha.
Porque a política pública não estimula os cineastas a fazerem filmes de baixo orçamento? A
tecnologia possibilita que hoje se possam fazer ousados projetos com não mais do que R$ 1
milhão. Os gringos, sejam eles dinamarqueses, franceses ou os independentes radicais
americanos, já estão nos mostrando que é possível fazer isto.
Onde andará o Garrincha e seus dribles?
O fazer, fazer, fazer, bailar, bailar...
E, afinal, por que bailar se a única música que se dança hoje é a dança do mercado? Será
que, além de se preocupar em estimular a distribuição, o papel principal do ministério não é
o de promover a realização de uma grande quantidade de filmes de baixo orçamento? Mais
quantidade, menos eixo Rio-SP e principalmente a possibilidade de exercer a profissão com
constância e não de cinco em cinco arrastados anos.
Dogma 4. A Família Monofásica e a Família Polifônica.
Quem serão mais corporativos: os cineastas brasileiros, os metalúrgicos do ABC ou os
médicos de Bauru? O vírus hollywoodiano espalha-se por todos os cantos. Cinematografias
nacionais resistem e aderem à linguagem deles com ou sem sutileza. Não existe um
263
cinema brasileiro, iraniano ou italiano.
Poderíamos dividir esta família em pelo menos dois blocos: aqueles que, por meio de seus
filmes, estimulam os neurônios e aqueles que deixam nossos neurônios muito aflitos e
entediados. Estes últimos são aqueles que em geral estão muito preocupados com o
mercado, com o público médio...
A outra família é uma família polifônica, em que criadores estão preocupados em
experimentar linguagens das formas mais diferentes e singulares possíveis. Esta família
normalmente é pouco articulada politicamente mas faz mais sucesso com a ctica e não raro
com o público. Seus orçamentos e verbas de mídia costumam ser bem mais modestos que
os da família monofásica.
Dogma 5. Baratas.
Ao mercado, as baratas.
À cultura, os toros.
A sensibilidade é digital.
Dogma único.
Façamos filmes baratos."
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
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Ficha Técnica do Filme
· Pesquisa, roteiro, edição, produção e direção: Marcelo Masagão;
· Música: Wim Mertens;
264
· Efeitos Sonoros: André Abujanra:
· Consultores de História: José Eduardo Valadares and Nicolau Sevcenko:
· Consultoras de Psicanálise:Andrea Meneses Masagão and Heidi Tabacov;
· Consultores “Espirituais” (conforme são citados no filme): Dr. Sigmund Freud and
Dr. Eric J. Hobsbawn;
· Consultoria de Informática e Computação Gráfica: Mauricio Mendes;
· A pesquisa do filme foi financiada pela Fundação MacArthur (The MacArthur
Foundation)
· Tradutora-chefe Inglês: Laila Penha;
· Tradução inglês: Flávia Romano and Luciana Pereira;
· Tradução Russo: Victor Selin;
· Tradução Alemão: Urike Pfeiffer and Volker Haupt;
· Tradução Francês: Edith Nicole Laniado and Ana Maria Gilioli;
· Fotos Cemitério: Sergio Israel;
· Fotografia e Stadycan no cemitério: Marco Tulio Guglielmoni;
· Assistente de camera: Silvano Livio Guglielmoni;
· Consultoria Jurídica: Carla K. Nass de Andrade, Luiz G. M. Lobato e Ronaldo Luiz
Pires;
· Administração: Pita Masagão e Carlos Aparecido Boni;
· Produção da pesquisa e pesquisa na Agência Estado: Sofia Alencastro;
· Pesquisa no Imperial War Museum; Phillip Vaughan;
· Pesquisa na Library of Congress e nos Bancos de Dados Americanos; Eric Krasner;
· Fotos: Benito Salgado, Clovis Ferreira,Julian Wasser, Julie Lockley, Sebastião
Salgado, Vidal Cavalcanti;
· Extratos de Filmes Clássicos:
· Un Chien Andalou - Luis Buñuel / Salvador Dali;
· The General - Buster Keaton;
· The Man with the Movie Camera - Dziga Vertov;
· Berlin, Symphony of a Great City - Walther Ruttman;
· Le Voyage dans La Lune - Georges Melies;
265
· The Fall of the Romanov Dynasty - Esther Shub;
· The Conquest of the Winter Palace - Goshinko;
· The Brain of the Soviet Russian - Dziga Vertov;
· To Wise Wives - Lois Weber;
· A House Divided - Alice Guy-Blanché;
· Royal Wedding - Stanley Donen.
· Outros Filmes: Her first cigarrete - Edson Company;
· Sandow, the strong man - Edison Company;
· Yndio do Brasil - Silvio Back;
· Powaqqatsi - Godfrey Reggio;
· Garrincha, Alegria do povo - Joaquim Pedro de Andrade;
· Curriculum - Beto Sporkes;
· Timothy Leary's Last Trip - A.J. Catoline and O.B. Babbs
· Imagens de Arquivos - reportagens :Archive Films; Cinémathéque Gaumont; Classic
Images; CNN Library;Image Bank do Brasil; Imperial War Museum;The Research
Source; Sherman Grinberg Film Libraries; Streamline Films.
· Instituições relativas aos filmes e músicas:
"A DOVZHENKO" Art Cinema, Ucrain; Cinemateca Brasileira, Brasil; Funarte,
Brasil; Fox Lorber Associates, USA; Gosfilmofund, Russia; Kino International,
USA; LC Barreto, Brasil; Les disques du Crépuscule, Belgium;Les Grands Films
Classiques, France. The Library of Congress, USA. Pinturas e esculturas: New York
movie - Edward Hopper; Excursion into Philosophy - Edward Hopper; Seated
Model - Edvard Munch; Ninguém - José Leonílson; Images of Nijinski - Adolph De
Meyer
· Instituições relativas aos quadros , fotos e esculturas: Amazonas Images, França;
Agência Estado, Brasil Getty Images do Brasil; Museum of Modern Art, USA;
Reuters, England; Musée d'Órsay, France; Munch-museet, Norway;Projeto
Leonilson, Brasil; Whitney Museum, USA
266
· Musicas Wim Mertens: Theis Duet / His own thing / watch over me; Silver lining /
Shot one / We'll find out; Wandering eyes / The fosse / Lir; Maximizing the audience
/ Darpa / Houfnice; Iris / Struggle for pleasure / 4 mains; To Keep them from falling
/ Often a bird; Out of the dust / Hedgehog's skin / Not me; A Frase do Shadow:
"Who Knows What Evil Lurks in the Heart of Men" and "The Shadow Knows".
Advance Magazine Publishers.
Grandes Histórias, Pequenos Personagens:
análise e identificação das estratégias
de orientação de leitura no filme
Nós que aqui estamos por vós esperamos
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Ilustrada, 09 de Novembro 1999.
GIGLIOTTI, Fátima. O Eisenstein Secreto. Folha de São Paulo, 19 de Março de 2000.
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Internet
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XX - do site oficial de “Nós que aqui estamos por vós esperamos”
(http://www2.uol.com.br/filmememoria), texto produzido originalmente em 1999.
MACHADO, Arlindo - Este Maravilhoso e Repulsivo Século – do site oficial de “Nós que
aqui estamos por vós esperamos” (http://www2.uol.com.br/filmememoria), texto produzido
originalmente em 1999.
MASAGÃO, Marcelo - Carta de Apresentação
SEVCENKO, Nicolau - Nós que aqui estamos por vós esperamos - extraído do site oficial
de “Nós que aqui estamos por vós esperamos” (http://www2.uol.com.br/filmememoria),
texto produzido originalmente em 1999.
WERNECK, Alexandre – Espectros de uma História Pensada - do site oficial de “Nós que
aqui estamos por vós esperamos” (http://www2.uol.com.br/filmememoria), texto produzido
originalmente em 1999.
_______________
Ilustrações:
273
Imagens extraídas do site oficial de s que aqui estamos por vós esperamos
(http://www2.uol.com.br/filmememoria)
Cartaz Promocional de Nós que aqui estamos por vós esperamos obtido a partir do
processo de cópia da capa do filme disponível para locação.
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